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JURISMAT

Revista Jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

N.º 2 – PORTIMÃO – MAIO 2013


Ficha Técnica

Título: JURISMAT – Revista Jurídica – N.º 2


Director: Alberto de Sá e Mello
Edição: Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes
Avenida Miguel Bombarda, 15
8500-508 Portimão
PORTUGAL
Correspondência: informacoes@ismat.pt
Data: Maio 2013
Tiragem: 250 exemplares
Design Gráfico: Eduarda de Sousa
Impressão: Serise Expresso, Lda
Depósito Legal: 349962/12
ISSN: 2182-6900
JURISMAT – REVISTA JURÍDICA DO ISMAT

COMISSÃO CIENTÍFICA

Ana Balmori Padesca


Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

Carlos Rogel Vide


Universidad Complutense de Madrid

Gonçalo Sampaio e Mello


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

José Lebre de Freitas


Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Luiz Cabral de Moncada


Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
& Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

Maria Serrano Fernández


Universidad Pablo de Olavide – Sevilha

Mário Ferreira Monte


Universidade do Minho

Paulo Jorge Nogueira da Costa


Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa
& Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

Pedro Romano Martinez


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
& Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Pedro Trovão do Rosário


Universidade Autónoma de Lisboa
& Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

Pilar Blanco-Morales Limones


Faculdad de Derecho de Caceres da Universidad de Extremadura
& Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes
ÍNDICE

PALAVRAS DE ABERTURA ...................................................................... 9

ALBERTO DE SÁ E MELLO
Palavras de Abertura ....................................................................................... 11

ANA LUÍSA BALMORI & RUI MANUEL LOUREIRO


Docência e Investigação num Projecto Universitário ........................................ 13

ARTIGOS ...................................................................................................... 15

CARLOS ROGEL VIDE


Crisis Económica y Solidaridad Familiar. Los Alimentos entre Parientes .......... 17

PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI


Las Sucesiones Internacionales y su Régimen Jurídico ..................................... 33

MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES


Perspetivas do Direito Internacional da Concorrência:
a necessidade de uma abordagem alternativa aos acordos de
cooperação e à convergência de sistemas de direito da concorrência ................. 71

GONÇALO SAMPAIO E MELLO


Professores de Direito ..................................................................................... 99

PAULO FERREIRA DA CUNHA


Princípios Fundamentais da Constituição de Timor Leste:
Uma Anotação ao Poema «Pátria» de Xanana Gusmão? ................................... 109

LUIZ CABRAL DE MONCADA


A Nulidade do Acto Administrativo ................................................................. 117
8 ÍNDICE

VIRGÍLIO MACHADO
Administração Pública Electrónica e Directiva dos Serviços:
Aplicação ao Sector do Turismo ....................................................................... 139

HENRIQUE DIAS DA SILVA


O Código de Procedimento Administrativo e a atividade de polícia ................... 161

FRANCISCO MOREIRA BRAGA


Mercado Imobiliário em Portugal ..................................................................... 199

ANA PAULA PINTO LOURENÇO


Justiça e Comunicação Social.
Entre a tensão e a tentação recíprocas; do conflito à harmonização .................... 217

ANTÓNIO AMADO
Discorrendo sobre as terceira e quarta alterações ao Código do Trabalho.
A Lei 23/2012, de 25 de Junho. A Lei 47/2012, de 29 de Agosto ...................... 255

CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL


Ética, Deontologia e Fair Play no Desporto ...................................................... 275
PALAVRAS DE ABERTURA
Palavras de Abertura
ALBERTO DE SÁ E MELLO *

É agora publicado o segundo número da JURISMAT. Conta já com a colaboração de


Professores de outras Universidades, portuguesas e estrangeiras, o que nos permite
alargar e diversificar a colaboração científica sem perder a marca que é o cunho da
Revista: a promoção da investigação científica, no seio do ISMAT - Instituto Supe-
rior Manuel Teixeira Gomes, da comunidade jurídica do Sul de Portugal, em espe-
cial do Algarve. Tem a JURISMAT também agregada, a partir deste número, uma
Comissão Científica de reputados professores de Direito, chancela de qualidade das
colaborações individuais.

Está estruturado o número seguinte da Revista, para o qual dispomos já de uma


colecção completa de artigos de grande qualidade. Abrimos também a colaboração a
Estudantes, que nos enviam os seus trabalhos científicos que serão avaliados e selec-
cionados para publicação por uma Comissão instituída para o efeito.

É nosso propósito incluir, já a partir do quarto número da JURISMAT, recensões de


jurisprudência e de doutrina, continuando a contar com os contributos científicos de
docentes do ISMAT e de diferentes outras universidades.

Impõe-se uma palavra de agradecimento a todos os que contribuíram com os seus


artigos para a nossa Revista, bem como aos que tanto têm colaborado para a sua
realização, em especial a Dr.ª Ivone Portugal, Delegada da Administração, o Prof.
Doutor Rui Loureiro, Director do Instituto e a Prof. Doutora Ana Balmori, Directora
dos Cursos de Direito e de Solicitadoria. Obrigado a todos.

*
Director da JURISMAT.
Docência e Investigação num Projecto Universitário
ANA LUÍSA BALMORI & RUI MANUEL LOUREIRO *

O ISMAT – Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, de acordo com o Decreto-


Lei n.º 194/2004 de 17 de Agosto, «tem a natureza de instituto universitário não
integrado». O que significa uma acrescida responsabilidade em termos de produção
de investigação original e de publicação dos respectivos resultados. A JURISMAT,
Revista Jurídica do ISMAT, entronca-se assim numa estratégia de consolidação de
um projecto universitário algarvio, que para além da componente formativa não
pode descurar a vertente da criação de saber. As profissões jurídicas, no século XXI,
desempenham um papel por demais relevante no desenvolvimento social, não só a
nível interno, como igualmente além-fronteiras. Num mundo cada vez mais globali-
zado, o ISMAT procura ser, nas regiões portuguesas a sul do Tejo, um pólo de
informação, de discussão, de formação, e também de inovação, na área do Direito.

No dia 30 de Novembro de 2013, cumprindo um desígnio dos cursos da área das


Ciências Jurídicas do ISMAT, era lançado em Portimão, em sessão solene, o pri-
meiro número da JURISMAT, que contava com a participação exclusiva de docentes
deste estabelecimento de ensino superior particular e cooperativo, que é parte inte-
grante do grupo Lusófona. Partindo de um estabelecimento universitário sediado na
região do Algarve, longe dos grandes centros culturais e intelectuais de Portugal,
esta aposta poderia ser considerada excessivamente arrojada, sobretudo por aqueles
que conhecem de perto as complexidades que rodeiam a publicação com continui-
dade de uma revista de natureza científica.

Seis meses passados, e dando continuidade ao projecto, aqui está o segundo número
da JURISMAT, que, para além de valiosas colaborações de membros do corpo
docente do ISMAT, conta agora com duas novidades. Por um lado, a JURISMAT

*
ALB: Directora do Curso de Licenciatura em Direito, ISMAT.
RML: Director do ISMAT.
14 ANA LUÍSA BALMORI & R UI MANUEL LOUREIRO

passa a dispor a partir deste número de uma Comissão Científica, composta por um
alargado grupo de prestigiados especialistas, oriundos de universidade portuguesas e
espanholas, públicas e privadas. Competirá a esta Comissão Científica, que generosa
e entusiasticamente aceitou o desafio da JURISMAT, zelar pelo rigor, pela actuali-
dade, pela qualidade das colaborações publicadas. É essencial, no actual mundo das
publicações académicas, assegurar uma constante avaliação de pares. Por outro lado,
e igualmente já a partir deste número, a JURISMAT recebe colaborações de espe-
cialistas oriundos de outras instituições de ensino e de investigação. Concretizam-se
assim dois dos principais desideratos da JURISMAT: assegurar um sistema de peer
review e abrir as suas páginas a colaborações exteriores ao próprio ISMAT.

Uma publicação académica desta natureza não prescinde contributos significativos


de todo um conjunto de colaboradores, desde os próprios autores aqui publicados,
até ao revisor, à designer, aos gráficos, e outros, que contribuem cada um a seu
modo para a produção da JURISMAT. Contudo, é de toda a justiça salientar o papel
fundamental do Professor Doutor Alberto de Sá e Mello, enquanto director da Revis-
ta Jurídica do ISMAT, que muito fica a dever ao seu saber, ao seu empenho, à sua
persistência, e também à sua vasta rede de ligações académicas, que permitirá, esta-
mos seguros, manter este projecto em «velocidade de cruzeiro», como sói dizer-se.
O mesmo é dizer que qualquer projecto – académico ou de outra natureza – só pode
nascer e desenvolver-se, sobretudo em tempos de crise como os que vivemos, graças
a pessoas que o acarinhem. O nosso «bem haja»!
ARTIGOS
Crisis Económica y Solidaridad Familiar.
Los Alimentos entre Parientes
CARLOS ROGEL VIDE *

1. Beneficencia y Estado Social. Prestaciones sociales y cargas familiares. 2. Aten-


ción prestada por uno mismo a sus propias necesidades. 3. Alimentos resultantes de
diversas instituciones. 4. Matrimonio, alimentos y pensiones compensatorias. 5.
Liberalidades de uso y donaciones. 6. La obligación legal de alimentos entre parien-
tes; alimentos y auxilios necesarios para la vida. 7. Alimentantes, orden establecido
para ellos y pluralidad de los mismos. 8. Modo de prestar los alimentos. 9. Mon-
tante, modificación y extinción de la obligación alimenticia. 10. Los alimentos y el
impuesto sobre la renta. 11. A modo de epílogo. Alimentos, limosnas y obras de
misericordia.

1. Beneficencia y Estado Social. Prestaciones sociales y cargas familiares

Más allá de la beneficencia propia del Estado, liberal o conservador, del Siglo XIX –
beneficencia episódica, esporádica y próxima a la caridad para con los menesterosos
–, nuestra Constitución consagra – gracias a Dios y a los votos de los ciudadanos –
un Estado Social de Derecho, al que se aparejan, en mayor o menor medida, múlti-
ples prestaciones sociales, que tienen lugar en los siguientes frentes cuando menos:
educación (artículo 27); protección de la familia, de los hijos y de las madres (artí-
culo 39); formación profesional (artículo 40); seguridad social (artículo 41); salud
(artículo 43); cultura (artículo 44); vivienda (artículo 47); discapacidades (artículo
48); pensiones, en fin, y atenciones a la tercera edad (artículo 50 de la Constitución

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 17-32.

* Professor Catedrático, Facultad de Derecho, Universidad Complutense de Madrid.


18 CARLOS ROGEL VIDE

dicha). Las prestaciones resultantes, como es obvio, redundan en beneficio de


muchísimas personas, a cuyas necesidades se atiende.

Ciertamente, con todo y en no pocas ocasiones, los artículos de la Constitución


dichos consagran principios rectores de la política social, que, marcando tendencias
obligadas, no generan derechos subjetivos públicos propiamente dichos, contando
con límites resultantes de los propios del Presupuesto, sabidos los muchos gastos a
que atender. Por ello, precisamente, artículos como el 40, el 43 o el 44 del texto
constitucional se limitan a decir que, los poderes públicos, “promoverán” o “fomen-
tarán” ciertas actuaciones, sin constreñirlos a que asuman los costes de las mismas
en todo caso.

Cuando – ello sabido – la crisis económica campa por sus respetos, no hay más
remedio – a lo que parece – que reducir prestaciones como las sanitarias, respecto de
determinados colectivos, de extranjeros y de españoles también, cual se reducen las
becas para la realización de estudios, incrementándose los requisitos exigidos para
su concesión.

Si el Estado actúa, la familia no ha de hacerlo. Si no lo hace, o lo hace en menor


medida, la familia recupera su protagonismo, mostrándose la solidaridad familiar, en
el seno de la cual y por imperativo jurídico (imperativo moral al margen) tiene aco-
modo la obligación legal de alimentos entre parientes, regulada en los artículos 142
y siguientes del Código civil español, obligación que se actúa siempre que el ali-
mentista carezca de medios, teniendo, el potencial alimentante, una especie de bene-
ficio de excusión, que le permite liberarse de la obligación alimentaria, si señala
bienes o rentas, del potencial alimentista, suficientes para la subsistencia digna de
éste, o pone de manifiesto bienes de un obligado preferente a la prestación de los
alimentos dichos.

La obligación de alimentos entre parientes es, pues, subsidiaria y complementaria


respecto de las prestaciones sociales, que, aun existiendo, pueden ser insuficientes,
cabiendo, también, que no existan.

Decir, al respecto y ello sabido, que, en el diario La Región de Orense del 6 de agos-
to de 2011, se daba noticia de un estudio de la Universidad de Santiago, de confor-
midad con el cual el 80% de los gallegos entre 18 y 29 años son económicamente
dependientes, residiendo, el 65% de los mismos, con sus padres, alimentantes de los
primeros, más allá de la patria potestad, extinguida, ya, por la mayoría de edad de
sus hijos.

Decir también que, en el diario 20 minutos de Madrid, del día 1 de junio de 2012, se
señala que, el 43,8 de las personas mayores de 65 años habitantes en la Comunidad
dicha – unas 400.000 –, participan, de un modo u otro, en el sustento de sus descen-
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 19

dientes y familiares más cercanos, azotados por el paro. La crisis – puede leerse en el
Diario referido – ha convertido a uno de los grupos sociales más vulnerables – la
tercera edad – en piedra angular de muchos hogares. Los ancianos de la región han
dejado de ser destinatarios de ayuda, para convertirse en prestadores de la misma. Si,
en 2010, el 12,5% de los mayores de 65 años reconocía recibir ayuda económica de
sus hijos – que les compraban comida o les pagaban algún recibo –, en 2012, solo el
7,5% de ellos afirma seguir recibiendo este tipo de ayudas.

Alimentos entre parientes, pues y como puede verse, con el acento curiosamente
puesto en los ascendientes como alimentantes.

Con todo y dado el carácter subsidiario de la obligación alimenticia, en clave jurí-


dica cuando menos, para que tales alimentos procedan es necesario que se hayan
agotado, previamente, todas las posibilidades de atender al sustento y atención de los
potenciales alimentistas, posibilidades que empiezan, en buena lógica y cual hemos
de ver seguidamente, por la ayuda que una persona pueda y deba prestarse, de un
modo u otro, a sí misma, recurriendo a sus propios medios.

2. Atención prestada por uno mismo a sus propias necesidades

Como es obvio y ha quedado dicho, una persona debe atender a sus necesidades con
sus propios medios; con las remuneraciones obtenidas de su trabajo o actividad pro-
fesional, empresarial o comercial, que ha de reanudar, en el caso de que la hubiese
dejado, inscribiéndose en las listas del paro cuando fuese necesario; con las rentas
procedentes de sus propios bienes; con la realización del valor de los mismos, en fin
y en su caso, para obtener numerario suficiente para atender a sus necesidades.

Con vistas a necesidades futuras, los seguros de vida y los fondos de pensiones se
manifiestan como medidas aconsejables, pudiendo recurrirse también a créditos
garantizados con hipoteca inversa o a la constitución de una renta vitalicia o a la
celebración de un contrato de alimentos.

A la renta vitalicia se refiere el artículo 1802 del Código civil, del siguiente tenor:
“El contrato aleatorio de renta vitalicia obliga al deudor a pagar una pensión o rédito
anual durante la vida de una o más personas determinadas, por un capital en bienes
muebles o inmuebles cuyo dominio se transfiere desde luego con la carga de la pen-
sión”.

Al contrato de alimentos – de más amplio espectro y garantías y mucho arraigo en


Galicia, desde antíguo – se refiere, por su parte, el artículo 1791 del citado Código,
que data, en su redacción actual, de 2003 y dice así: “Por el contrato de alimentos,
una de las partes se obliga a proporcionar vivienda, manutención y asistencia de todo
20 CARLOS ROGEL VIDE

tipo – cuidado, compañía y cariño incluso – a una persona durante su vida, a cambio
de la transmisión de un capital en cualquier clase de bienes y derechos”.

El contrato de alimentos puede hacer transito a la renta vitalicia, pues, de conformi-


dad con lo dispuesto en el artículo 1792 del Código civil, cuando concurra cualquier
circunstancia grave, que impida la pacífica convivencia entre las partes, cualquiera
de ellas podrá pedir que, la prestación de alimentos convenida, se pague mediante
una pensión, actualizable, a satisfacer por plazos anticipados.

3. Alimentos resultantes de diversas instituciones

Los padres, respecto de los hijos sometidos a su patria potestad, tienen, de confor-
midad con lo dispuesto en el artículo 154.2º del Código civil, el deber de velar por
ellos, tenerlos en su compañia, alimentarlos, educarlos y procurarles una formación
integral. Incluso en el caso de que no ostenten la patria potestad dicha, el padre y la
madre, en virtud de lo establecido en el artículo 110 del Código dicho, están obliga-
dos a velar por sus hijos menores y a prestarles alimentos, siendo de destacar, en
todo caso, la singularidad y mayor vigor de los alimentos dichos, respecto de los
debidos por los ascendientes, de conformidad con lo dispuesto en los artículos 142 y
siguientes del Código civil, alimentos que jugarían, tan solo, respecto de los hijos
mayores de edad o emancipados. De conformidad con lo dispuesto en la Sentencia
del Tribunal Supremo de 24 de octubre de 2008 (Auger), la obligación de dar sus-
tento a los hijos menores es un deber incardinado en la patria potestad que subsiste
de manera incondicional, en vía de principio, aun el caso de que el hijo tenga sus
necesidades cubiertas con sus propios medios.

Los tutores, respecto de los pupilos sometidos a su tutela, tienen obligaciones simila-
res a las que acabo de referir, señaladas en el artículo 269 del Código, que, en lo que
interesa, dice que el tutor está obligado a velar por el tutelado y, en particular, a
procurarle alimentos, educación y formación integral. Algo del género sucede en los
supuestos de ausencia (artículo 184 del Código) y acogimiento familiar (artículo
173 del dicho cuerpo legal).

En sede de donación, se señala una particular obligación de alimentos, al donatario,


en el artículo 648.3º del Código civil, de conformidad con el cual una donación
determinada podrá ser revocada, a instancia del donante y por causa de ingratitud del
donatario, si éste, indebidamente, le niega alimentos a aquél. En todo caso, los ali-
mentos que se pueden requerir por esta vía estarán en función del montante de lo
donado, montante que marca el techo de los mismos.

Unos curiosos alimentos aparecen, en fin, en el concurso de acreedores, establecidos


en el artículo 47.1 de la vigente Ley Concursal, que, en lo que ahora interesa, reza
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 21

así: “El concursado persona natural que se encuentre en estado de necesidad tendrá
derecho a percibir alimentos durante la tramitación del concurso, con cargo a la
masa activa, siempre que, en ella, existan bienes bastantes para atender sus necesi-
dades, las de su cónyuge… y descendientes bajo su potestad”. Los alimentos dichos
son curiosos, en la medida en que proceden, a la postre, del propio patrimonio del
alimentista y en la medida en que el Juez, de conformidad con lo dispuesto en el
artículo antes citado, puede modificar la cuantía y la periodicidad de los mismos.

En otro orden de cosas, conviene recordar que, cualquier persona, puede verse bene-
ficiada por atribuciones patrimoniales, resultantes de una herencia o legado a su
favor, existiendo legados destinados, específicamente, a atender necesidades ali-
menticias del legatario, cuales los de educación y alimentos, contemplados en el
artículo 789 del Código civil, o el de pensión periódica, regulado en el 880 de dicho
cuerpo legal.

Por vía de legado puede establecerse, también, el usufructo de determinados bienes,


a título de alimentos incluso, ello al margen del usufructo legal correspondiente al
cónyuge supérstite, referido en el artículo 834 y siguientes del Código tantas veces
citado, o de la constitución, por actos inter vivos, de un usufructo, uso o habitación a
favor de personas determinadas.

Estos dos últimos derechos tienen, por cierto, una vocación alimenticia innegable,
cual resulta del propio tenor literal del artículo 524 del Código civil, que dice así:
“El uso da derecho a percibir, de los frutos de la cosa ajena, los que basten a las
necesidades del usuario y de su familia, aunque ésta aumente. La habitación da, a
quien tiene ese derecho, la facultad de ocupar, en una casa ajena, las piezas necesa-
rias para sí y para las personas de su familia”.

4. Matrimonio, alimentos y pensiones compensatorias

Constante matrimonio, los cónyuges tienen, entre sí, los deberes de ayuda y socorro
mútuo, contemplados en los artículos 67 y 68 del Código civil, deberes que engloban
los de alimentos, ampliamente entendidos. Decir, a mayor abundamiento, que, de
conformidad con lo dispuesto en el artículo 1318.I del Código, los bienes de los
cónyuges están sujetos al levantamiento de las cargas del matrimonio, cualquiera
que sea el régimen económico por el que se rija éste, estableciendo, el artículo 1362,
una serie de gastos a cargo de la sociedad de gananciales, gastos entre los que se
encuentran el sostenimiento de la familia y la alimentación y educación de los hijos.
El 1408, por su parte y en sede de liquidación de la sociedad dicha, establece ali-
mentos a favor de los cónyuges, del cónyuge supérstite o de los hijos, con cargo a la
masa común. El 1438, en fin y en el marco del régimen de separación de bienes,
22 CARLOS ROGEL VIDE

establece, también, que los cónyuges contribuirán al sostenimiento de las cargas del
matrimonio.

En supuestos de crisis matrimoniales, el artículo 102 del Código civil y sus concor-
dantes, establecen medidas provisionalísimas y provisionales, que deben adoptarse
desde que, uno de los cónyuges, se proponga presentar una demanda de nulidad,
separación o divorcio, o haya sido admitida a trámite la demanda en cuestión, medi-
das entre las que se cuentan las relativas a las atenciones y cuidados de los hijos
comunes y las que tienen que ver con la contribución a las cargas del matrimonio en
las circunstancias dichas.

Decretada la nulidad o el divorcio, la inexistencia o ruptura del vínculo matrimonial


determinan que los cónyuges dejen de serlo y, por consiguiente, el que, entre ellos,
no exista, para el futuro, obligación alguna de alimentos propiamente dichos.

Otra cosa es la separación – ya de hecho, ya decretada judicialmente –, situación en


la que el vínculo se mantiene, cabiendo la ulterior reconciliación de los cónyuges,
entre los que, por ello, subsisten los deberes de ayuda y socorro, con las obligaciones
alimenticias hipotéticamente aparejadas a los mismos, sin olvidar la necesidad – que
permanece – de que los cónyuges contribuyan a las cargas del matrimonio.

Distintas de los alimentos, posibles, entre conyuges separados, son las compensacio-
nes por desequilibrio económico que pudieran corresponder a uno de ellos, en
determinadas circunstancias, previstas en el artículo 97 y siguientes, compensaciones
que pueden darse aun cuando los beneficiarios de las mismas no estén en una situa-
ción de necesidad propiamente dicha, pudiendo ser, a mayor abundamiento, tempo-
rales.

Lo dicho, en fin, respecto de alimentos entre los cónyuges, en el marco de la ayuda y


el socorro que se deben, recíprocamente, y del sostenimiento de las cargas del
matrimonio es aplicable, mutatis mutandis, a las uniones de hecho, uniones que son
jurídicas, aun siendo más o menos informales.

Y es que, como dice la Sentencia del Tribunal de 30 de diciembre de 1994, cuyo


ponente fue Fernández-Cid, “al existir, en la unión de hecho, madurez física y psi-
cológica, relación sexual, “affectio maritalis” y convivencia “more uxorio”, con la
única salvedad de omitir la formalización social de tal unión, es posible equiparar la
misma al matrimonio, teniendo en cuenta el artículo 39 de la Constitución, que no
distingue entre familia matrimonial y extramatrimonial”.
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 23

5. Liberalidades de uso y donaciones

En relación, fundamentalmente, con vestidos, alimentos y vivienda, es posible que,


determinadas atribuciones patrimoniales a favor de ciertas personas, hayan de ser
hechas por otras, que tienen estrechos vínculos con ellas -ya familiares, ya de amis-
tad-, en virtud de un uso o costumbre jurídica que constriñe a ello, en modo tal que,
las llamadas liberalidades de uso – cuyo montante, más allá de lo módico, puede
llegar a ser importante –, no son, propiamente, liberalidades, sino atribuciones debi-
das en base a una norma consuetudinaria que obliga a hacerlas, razón por la cual,
dichas liberalidades, no siguen el régimen jurídico propio de las donaciones, no
siendo susceptibles de ser revocadas, ni reducidas, ni declaradas inoficiosas o inefi-
caces, no siendo, tampoco, colacionables.

Al margen de las liberalidades dichas, cabe, también, que una persona se vea enri-
quecida por donaciones, en dinero o en especies, hechas por otras personas, físicas o
jurídicas (piénsese en organizaciones no gubernamentales, como Caritas), que redu-
cen o neutralizan la necesidad de alimentos de aquella, ya sean, tales donaciones,
simples, condicionales, modales, remuneratorias o, incluso, onerosas, en la medida
en que superen el valor asignado o asignable a la contraprestación.

Donaciones serían también, en fin y de conformidad con lo dispuesto en el artículo


1894 del Código civil, los alimentos dados por un extraño, sin conocimiento del
obligado a prestarlos, cuando constare que, el dicho extraño, los dio por oficio de
piedad y sin ánimo de reclamarlos.

6. La obligación legal de alimentos entre parientes; alimentos y auxilios necesa-


rios para la vida

La obligación legal de alimentos entre parientes viene regulada en los artículos 142 a
153 del Código civil, que integran el Título VI del Libro Primero del mismo, Título
titulado – valga la redundancia, obligada – “De los alimentos entre parientes”, preci-
samente.

A pesar de ello, es necesario hacer las siguientes matizaciones: los cónyuges – que
pueden ser alimentantes y alimentistas, llegado el caso – no son parientes entre sí; no
todos los parientes están obligados a prestar alimentos o pueden solicitarlos; el tér-
mino alimentos se utiliza, aquí, en sentido muy amplio, tan amplio que, como ya
apuntaba Alonso Martínez, sería mejor hablar de “asistencia” que de “alimentos” tan
solo.

En efecto y dentro de los alimentos a que se refieren los artículos 142 y siguientes
del Código, se comprenden los siguientes ingredientes:
24 CARLOS ROGEL VIDE

- Sustento, que tanto quiere decir como bebida y comida e, incluso, gastos de trans-
porte, bolsillo y esparcimiento.
- Habitación, comprendidos los gastos de luz, teléfono, gas y agua, amen de los
gastos de comunidad y fiscales, en determinados casos.
- Vestido, encuadrándose aquí, además de las ropas comunes, los uniformes, las
ropas de deporte e, incluso, los trajes de primera comunión y boda.
- Asistencia médica, inclusos los gastos farmacéuticos.
- Educación e instrucción, comprendidos los libros de texto y las clases de idiomas.
- Gastos de embarazo y parto, en su caso. Sabidas los deberes existentes entre cón-
yuges, constante matrimonio, parece que se está haciendo referencia, aquí, a los
gastos generados por la gestación y alumbramiento de una mujer que tuvo una rela-
ción esporádica, aislada incluso, con quien la dejó en estado, que ha de asumir los
gastos dichos, porque benefician al hijo que va a nacer, propiciando su alumbra-
miento y el inicio de una relación paterno-filial que siempre obligará al padre res-
pecto de su hijo.

Salvando las distancias, la justificación dicha es similar a la esgrimida por el artículo


964 del Código civil, cuando dice que la viuda encinta, “aun cuando sea rica, deberá
ser alimentada de los bienes hereditarios, habida consideración a la parte que, en
ellos, pueda tener el póstumo, si naciera y fuere viable”. Como dice el profesor
Cobacho, “se trata – en el fondo – de favorecer al póstumo y no a la viuda, que, a la
postre, percibe la pensión que, por alimentos, pudiera corresponder al póstumo”.

De conformidad con el artículo 146 del Código civil, la cuantía de los alimentos será
proporcionada al caudal o medios de quien los da y a las necesidades de quien los
recibe. El caudal del alimentante, en opinión de la doctrina mas autorizada – Del-
gado, Real – comprende las rentas, tanto de capital como de trabajo, el propio capital
e, incluso, la posibilidad de trabajar misma. El alimentante, llegado el caso, debe
sacrificar parte de su capital o tomar, incluso, dinero a préstamo, si no puede atender
al alimentista de otro modo.

Distintos de los alimentos referidos y más escuálidos que éstos, de menor entidad y
consistencia, son los auxilios necesarios para la vida, que se deben los hermanos
entre sí, de conformidad con lo dispuesto en el artículo 143.II del Código civil,
cuando uno de ellos los necesite por cualquier causa que no le sea imputable, auxi-
lios que se extenderán, en su caso, a los precisos para la educación del alimentista.

La referencia a la educación, referencia inexistente antes, junto con la desaparición


de la “posición social de la familia”, como parámetro para la fijación de la cuantía de
los alimentos, suscita cierta confusión en la fijación de los lindes entre alimentos y
auxilios. Con todo, una cosa es cierta: en los alimentos, la asistencia de todo género
ha de ser digna; en los segundos, ha de ser, simplemente, elemental, asegurando,
como dice Manresa, “lo puramente indispensable para subsistir”.
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 25

Alonso Martínez justificaba la diferencia dicha, diciendo lo siguiente: “El cariño


fraternal – de existir, no viéndose afectado por la rivalidad y los celos – nace al calor
del hogar paterno y depende, principalmente, de la comunidad de vida, siendo indu-
dable que se debilita mucho cuando la familia se dispersa y otros sentimientos más
poderosos, como los resultantes del amor conyugal y de la paternidad, vienen a
embargar el alma”.

Siendo duras, las palabras del Maestro no pueden calificarse de desatinadas y,


entendidas en sus justos términos, explican quienes son los alimentantes y cual es el
orden existente entre ellos – cónyuge, hijos, padres y hermanos –, orden que, no por
casualidad, se asemeja mucho al establecido para la sucesión intestada en nuestro
Código civil, si bien, en éste último, el cónyuge se coloca después de descendientes
y ascendientes, en línea con lo que sucedía, antaño, con los cónyuges – que no son
parientes entre sí – respecto de los alimentos entre quienes si lo sean.

7. Alimentantes, orden establecido para ellos y pluralidad de los mismos

De conformidad con lo dispuesto en el artículo 143 del Código civil y cual es sabido,
están obligados a darse alimentos , en toda la extensión del término, los cónyuges,
los ascendientes y los descendientes, debiéndose, los hermanos, auxilios necesarios
para la vida, tan solo.

En puridad, los cónyuges, que no son parientes entre sí, pueden deberse alimentos
propiamente dichos tan solo cuando, habiéndose separado sin pactarlos, por no ser
preciso, uno de ellos los necesitara posteriormente. Los restantes alimentos posibles
entre los mismos derivan de los derechos y deberes inherentes al matrimonio como
institución. Incluso en caso de necesidad, acreditada, de uno de los cónyuges, si el
otro, potencial alimentante, tuviese hijos sometidos a su patria potestad, habría de
atender primero a estos que al cónyuge necesitado, de conformidad con lo dispuesto
en el artículo 145 “in fine” del Código civil.

Consciente de las singularidades propias de los alimentos apuntados, el artículo 237-


2.2 del Libro Segundo del Código civil de Cataluña dice: “Los deberes de asistencia
entre cónyuges y entre los progenitores y sus hijos se regulan por sus disposiciones
específicas y, subsidiariamente, por lo establecido en el capítulo relativo a los Ali-
mentos de origen familiar – que no solo entre parientes –”.

Cuando sean dos o más los obligados a prestar alimentos, la reclamación, de con-
formidad con el artículo 144 del Código civil, se hará por el orden siguiente: 1º. Al
cónyuge. 2º. A los descendientes de grado más próximo. 3º. A los ascendientes de
26 CARLOS ROGEL VIDE

grado más próximo. 4º. A los hermanos. 5º. A los medio hermanos – uterinos o con-
sanguíneos que sean –.

La localización del cónyuge en primer lugar no tiene raigambre histórica alguna,


teniendo un origen francés relativamente reciente, del que da testimonio Demo-
lombe, cuando dice: “Le conjoint doit les aliments avant les parents”.

Al margen de ello, decir que, quizás, valdría la pena reconsiderar el orden, tajante,
del artículo 144, pues podría desencadenar el gravamen excesivo de un familiar que,
aun pudiendo prestar los alimentos solicitados, se vería muy limitado, por ello, en
sus posibilidades económicas, a pesar de la existencia de otros que, aun ocupando un
lugar inferior en el orden dicho, dispusieran de más medios.

En todo caso y como dice, expresamente, el artículo 237-6.2 del Libro Segundo del
Código civil de Cataluña, “Si, los recursos y posibilidades de las personas primera-
mente obligadas, no resultan suficientes para la prestación de alimentos, en la medi-
da en que corresponda y en la propia reclamación, pueden solicitarse alimentos a las
personas obligadas en grado posterior”.

Cuando recayese sobre dos o más personas del mismo grado -padres, abuelos, hijos,
hermanos- la obligación de dar alimentos, de conformidad con lo dispuesto en el
145.I del Código civil, se repartirá, entre ellas, el pago de la pensión, en cantidad
proporcional a su caudal respectivo. En el caso de varios alimentantes, la obligación
de prestar alimentos, pues, no es solidaria, sino mancomunada. Con todo y como
bien dice el artículo 237-7.2 del Libro Segundo del Código civil de Cataluña, si la
obligación de alimentos se extinguiera o se redujera, respecto de una de las personas
obligadas, la obligación de las restantes habría de incrementarse proporcionalmente.

Si existen, en fin, dos o más personas que reclaman alimentos a una sola, obligada a
prestarlos, y ésta no dispone de medios suficientes para atenderlas a todas, debe
seguirse el orden de preferencia establecido en el artículo 144 del Código civil, de
conformidad con lo dispuesto en el artículo 145.II del mismo, solución rígida que
comparte, con todo, el artículo 237-8 del Libro Segundo del Código civil de Cata-
luña.

Ninguno de los Códigos dichos resuelve el problema que surge cuando, siendo uno
solo el alimentante y varios los alimentistas del mismo grado, el primero carece de
medios suficientes para satisfacer alimentos íntegros a todos. A decir, plausible, de
Alicia Real, lo más equitativo, en tal caso, sería entender que los medios de que
dispone el alimentante han de repartirse entre todos los alimentistas, en proporción a
las necesidades de cada uno. Más vale, en efecto, auxiliar a todos, aun parcialmente,
que desasistir a varios para prestar alimentos íntegros a uno solo.
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 27

8. Modo de prestar los alimentos

El obligado a prestar alimentos – de conformidad con lo dispuesto en el artículo 149


del Código civil – podrá, a su elección, satisfacerlos pagando la pensión que se fije o
recibiendo y manteniendo, en su propia casa, al que tiene derecho a ellos. Cabría
también, en mi opinión, mantener al alimentista en la casa de él – si la tuviere –,
sufragando los gastos que genere, cual cabría pagar su estancia en un hotel, colegio,
residencia o geriátrico.

La elección del alimentante no será posible, con todo y de conformidad con el propio
artículo 149, cuando contradiga la situación de convivencia determinada para el
alimentista por las normas aplicables o por resolución judicial – piénsese, pongo por
caso, en alimentos debidos por abuelos paternos a los nietos que viven con la madre
de éstos –. También podrá ser rechazada cuando concurra justa causa – sevicias,
conductas reprochables o malos tratos por parte del alimentante – o perjudique el
interés del alimentista menor de edad -separación de los hermanos, avanzada edad de
los alimentantes –.

En todos los casos dichos, los alimentos han de prestarse pagando la pensión que se
fije, salvo, claro está, que el alimentante – en disposición de prestar alimentos en su
casa – no esté en disposición de pagar la pensión dicha, en cuyo caso, creo, habrá
que ponderar la situación, pues, peor que estar en malas compañías o con quien no
tiene encomendada la custodia, es estar en situación de desamparo; en tales casos,
pues y si el alimentista quiere sobrevivir, tendrá que soportar las incomodidades
derivadas de la convivencia con el alimentante – que también tendrá que soportarlo a
él, por cierto –, porque más cornadas da el hambre. Otra cosa es que, por vía de
mediación o terciando la autoridad judicial, pueda organizarse la vida en conviven-
cia, de forma razonable para alimentante y alimentista.

En otro orden de cosas y puesto que la elección es facultad conferida al alimentante,


que se empobrece – por cierto – al prestar alimentos, la prueba de la imposibilidad
de ejercicio de ésta compete al alimentista, habiendo de ser cumplida, en modo tal
que, la mera disparidad de criterios, puntos de vista o generaciones, no justificaría,
sin más, al alimentista para negarse a vivir en casa del alimentante y pedirle, acto
seguido, una pensión para vivir a sus anchas, como le venga en gana.

Al respecto y en una Sentencia del Tribunal Supremo de 23 de febrero de 2000


(cuyo ponente fue Ignacio Sierra) puede leerse: “Lo que no se puede pretender es
realizar un modelo de vida propio y con arreglo a unos principios de conducta que
atacan y contradicen los del entorno familiar y social, y seguir obteniendo las venta-
jas de acogimiento y económicas de dicho entorno, que se rechaza”. Sépase, con
todo, que el Tribunal Supremo, en otras ocasiones – sobre todo cuando el alimen-
28 CARLOS ROGEL VIDE

tante cuenta con medios suficientes, se manifestó, en casos de género, en contra de la


elección del alimentante y a favor de la pensión para el alimentista. La polémica,
pues, está servida.

9. Montante, modificación y extinción de la obligación alimenticia

De conformidad con lo dispuesto en el artículo 146 del Código civil, el montante de


los alimentos será proporcionado al caudal o medios de quien los da y a las necesi-
dades de quien los recibe. Al caudal y a las necesidades ciertas, que no falsas. En
ocasiones, los potenciales alimentantes, que no quieren serlo, disimulan sus ingresos
o rentas u ocultan sus bienes, actitudes, todas, criticables y dignas de ser puestas de
manifiesto, con el fin de determinar el verdadero patrimonio del alimentante en
cuestión.

Cuando los alimentos se satisfacen pagando una pensión, es posible y hasta aconse-
jable proceder, periódicamente, a la actualización de la misma, pues, para satisfacer
las mismas necesidades, se requiere, con el transcurso del tiempo, una cantidad
mayor de dinero.

Cabe, por otra parte, que los medios del alimentante o las necesidades del alimentista
cambien, cabiendo, también, que crezcan las necesidades del alimentante o de las
personas que estén a su cargo, hipotéticos nuevos alimentistas comprendidos.

Estos cambios -frecuentísmos en las crisis económicas, precisamente – han de ser


puestos de relieve, tan pronto como se produzcan, por las personas que se vean afec-
tados por ellos, para proceder a la consiguiente modificación de los alimentos ini-
cialmente previstos. En este sentido se manifiesta el artículo 147 del Código civil,
cuando dice que los alimentos se reducirán o aumentarán, según el aumento o dismi-
nución que sufran las necesidades del alimentista y la fortuna del que hubiere de
satisfacerlos.

Es posible, también, que cese o se extinga la obligación alimenticia por distintas


causas, contempladas en los artículos 150 y 152 del Código civil. Son las siguientes:
- Muerte del alimentante o del alimentista.
- Imposibilidad de satisfacerlos, por reducción de la fortuna del alimentante, sin
desatender a sus propias necesidades y las de su familia.
- Falta de necesidad del alimentista, por haber mejorado de fortuna. Aquí se incluye
la posibilidad – real y concreta, que no meramente teórica – de ejercer un oficio,
profesión o industria, o desempeñar una función.
- Comisión, por el alimentista, de determinadas faltas, particularmente reprochables,
contra el alimentante, cual injuriarlo gravemente de palabra, maltratarlo de obra o
atentar contra la vida de éste.
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 29

- Mala conducta, en fin, o falta de aplicación al trabajo, del alimentista descendiente


del alimentante. Si la falta de aplicación se debe a enfermedad física o psíquica o a
toxicomanías, la obligación de alimentos permanece.

Si, en concreto, el alimentista, siendo estudiante, no estudia – en ocasiones, por


desidia y, en otras, por incapacidad – perdería la posibilidad de seguir haciéndolo a
costa del alimentante, sin que, las restantes obligaciones alimenticias, se extingan,
sin más, por dicha causa. En esta línea se mueve el artículo 237-1 del Libro Segundo
del Código civil de Cataluña cuando, refiriéndose a los alimentos de origen familiar,
habla, dentro de los mismos, de los gastos para la continuación de la formación, una
vez alcanzada la mayoría de edad, si el alimentista no la ha terminado antes por una
causa que no le sea imputable, ello siempre y cuando mantenga un “comportamiento
regular” – regular, entiendo yo, en el sentido de continuado y no en el de intermedio
entre bueno y malo –.

10. Los alimentos y el impuesto sobre la renta

La obligación, establecida para los alimentantes en los artículos 142 y siguientes del
Código civil, viene impuesta por la Ley, redunda en beneficio de quienes reciben
alimentos y disminuye el patrimonio de quien los presta.

Podría esperarse, ello sabido, que los alimentos dichos tuviesen un tratamiento fiscal
favorable, en la legislación relativa al impuesto de las personas físicas, que compen-
sare, de algún modo, el sacrificio realizado por los alimentantes, quienes, en muchas
ocasiones, cumplen con su deber espontáneamente, sin necesidad de ser requeridos
judicialmente para ello.

Sin embargo y curiosamente, para mi, la legislación dicha, amen de ignorar, en oca-
siones, lo que los alimentos sean, desconoce o menosprecia el cumplimiento de tal
obligación, no aparejando consecuencias favorables al cumplimiento dicho, y tal
sucede desde la mismísima Ley 44/1978, de 8 de septiembre, del IRPF. Con la ayu-
da de Concepción Pérez de Ayala -La unidad familiar en el impuesto sobre la renta,
Tecnos, Madrid, 1986-, cabe señalar lo siguiente:

El artículo 7 de la Ley dicha, que confunde alimentante con alimentista, se refiere


solo a las anualidades por alimentos satisfechos entre cónyuges por decisión judicial,
que considera ingresos del alimentista, no constituyendo renta gravable del alimen-
tante. De los alimentos entre parientes propiamente dichos nada se dice.

El Reglamento del Impuesto de 1981 considera incluidos, por su parte y dentro de


los “gastos excepcionales no suntuarios” deducibles, las anualidades por alimentos
30 CARLOS ROGEL VIDE

que no sean entre cónyuges, confundiendo, así, liberalidades de uso con obligación
legal de alimentos.

Con todo, la situación empeora desde 1985, al suprimirse, por Ley de 27 de diciem-
bre de ese año – de reforma parcial del IRPF –, la deducción por gastos excepciona-
les no suntuarios.

En la reforma del IRPF dicha y de conformidad con lo dispuesto en el artículo 7º.4


en su nueva dicción, las pensiones compensatorias entre cónyuges y las anualidades
por alimentos – en el caso de que hayan sido satisfechas, unas y otras, por decisión
judicial – se computan como incremento del patrimonio del perceptor, minorando
los rendimientos del ejercicio en el obligado a satisfacerlas, en lugar de asimilarlos a
las disminuciones del patrimonio.

Nada se dice del mantenimiento de parientes, mediante alimentos prestados a los


mismos al margen de una sentencia judicial que constriña a ello, con lo cual es mejor
la condición del sentenciado, contra su voluntad, a pagar, que la de quien cumple,
espontáneamente, con la obligación alimenticia que la ley le impone.

La situación no ha cambiado, en lo sustancial, en la regulación vigente del impuesto


y, si lo ha hecho, ha sido para peor, cual veremos seguidamente.

- El artículo 55 de la Ley del IRPF vigente (Ley 35/2006, de 28 de noviembre) se


limita a permitir reducciones de la base imponible general por pensiones compensa-
torias y anualidades por alimentos – con excepción de las fijadas en favor de los
hijos del contribuyente-, siempre que sean satisfechas, unas y otras, por decisión
judicial – no dice, por sentencia –.

Las cantidades satisfechas en concepto de alimentos a favor de los hijos no reducen,


pues, la base imponible general, sin que llegue yo a entender la razón. Si, el importe
de dichas anualidades, es inferior a la base liquidable general, pueden someterse a
gravamen, separadamente, con el fin de limitar la progresividad de la escala del
impuesto, de conformidad con lo dispuesto en los artículos 64 y 75 de la Ley dicha.
Eso es todo, por lo que respecta a los alimentos a favor de los hijos, hasta donde yo
llego.

- De conformidad, por otra parte, con lo dispuesto en los artículos 58 y 59 de la Ley


dicha, hay un mínimo familiar – escuálido –, no sometido a tributación, por descen-
dientes menores de 25 años (como si los mayores de dicha edad no comieran) y
ascendientes mayores de 65. Se requiere, además, que, los descendientes o ascen-
dientes dichos, convivan con el contribuyente y no hayan obtenido rentas superiores
a 8.000 euros, ni presentado declaraciones del IRPF con rentas superiores a 1.800
euros.
CRISIS ECONÓMICA Y SOLIDARIDAD FAMILIAR 31

Sabido lo anterior, en alguna ocasión, pensé que, siendo mejor tratados los alimen-
tantes constreñidos a hacerlo por decisión judicial, podría alcanzarse tal condición
allanándose a la demanda de alimentos planteada, de común acuerdo, con el alimen-
tista, forzando, así, un auto que pusiera fin, anticipadamente, al proceso, auto que,
aun no siendo sentencia, es decisión judicial, sin duda.

No estoy, hoy, tan seguro de que el asunto funcione, sobre todo teniendo en cuenta
que, los alimentos prestados a los hijos, están francamente desfavorecidos fiscal-
mente, quizás para prevenir pensamientos inconvenientes como el mio, que ahí que-
da, con todo.

De lo que si estoy seguro es de que, los padres, seguiremos alimentando a nuestros


hijos, con desgravación o sin ella, con ley o sin ella, porque, más allá y antes de la
ley, entendemos tener una obligación moral que nos constriñe, y no es mal entendi-
miento éste, que pueden y deben tener también, para con sus semejantes, las perso-
nas de buena voluntad que, creyentes o no, auxilian a su prójimo por espíritu de
liberalidad u oficio de piedad, ya directamente, ya aportando medios y dineros a
organizaciones que palian las necesidades de muchas gentes. Hace nada, he oído que
Caritas atendió, en Madrid y en el último año, a 118.000 personas, siendo tanta la
demanda de comida, que han tenido que reducir la misma, en muchos lugares, a un
solo plato de comida, sencilla y caliente.

Los creyentes, a mayor abundamiento, están obligados por las normas morales que
los vinculan en el fuero interno, normas que propician la limosna y la caridad con los
demás, cual veremos, brevemente, a continuación.

11. A modo de epílogo. Alimentos, limosnas y obras de misericordia

Obligaciones legales y solidaridad familiar al margen, cualquier creyente está obli-


gado a prestar alimentos al prójimo que los necesite, en cumplimiento de un deber
moral que lo constriñe a ello.

Tal puede y debe hacer a través de la limosna, donativo, en metálico o en especie,


que se da a un pobre -puede que pordiosero (por-dios-ero), por amor a Dios, para
remediar una necesidad material de aquél.

La limosna es uno de los cinco pilares del Islam, existiendo, en él y además de la


limosna obligatoria o zakat, una limosna privada, voluntaria y plausible, llamada
sadaqa. En el Judaísmo está presente también la limosna – Tzedakah –.
32 CARLOS ROGEL VIDE

Lo está, en fin, en el Cristianismo, donde la limosna es acto de caridad para con el


prójimo, siéndolo, también, para con uno mismo – Dad y se os dará; Bien haya
quien practica el bien; Todo lo que el pobre recibe es Cristo quien lo recibe; “Quen
da ós pobres, presta a Deus” –.

La palabra limosna – enseña Juan Pablo II – tiene su origen en la palabra griega


eleemosyne, que proviene de eleos – compasión, misericordia –. No en vano y más
allá de las simples limosnas concretas, están las obras de misericordia, entendidas
como acciones que los creyentes han de llevar a cabo, encontrándose, entre las prin-
cipales de las corporales, las siguientes: dar de comer al hambriento; dar de beber al
sediento; dar posada al peregrino; vestir al desnudo; enterrar a los muertos.

Un elenco, éste, coincidente, como puede verse, con las principales obligaciones
alimenticias legales.

Si los creyentes fuesen caritativos y llevasen a cabo las obras dichas, los efectos de
la crisis económica podrían paliarse con creces, si no fuera porque, siendo coheren-
tes los creyentes con sus creencias, la crisis económica – fruto, a la postre, de la
especulación y de la ambición – no hubiese existido nunca.
Las Sucesiones Internacionales y su Régimen Jurídico
PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI *

Sumario: Introducción. I. El reglamento sobre sucesiones: Aspectos generales. 1.


Antecedentes. 2. Ámbito de aplicación. II. Ley aplicable a la sucesión: 1. En
Derecho Internacional Privado español: 1.1. La Ley aplicable a la sucesión. 1.2. La
Ley aplicable a la forma de las disposiciones testamentarias. 2. En el Derecho
Internacional Privado portugués. 3. Ley aplicable a la sucesión. Las soluciones del
Reglamento. 3.1. La ley aplicable a la sucesión: residencia habitual del causante y
principio de la vinculación más estrecha. 3.2. La elección de la ley aplicable a la
sucesión. 3.3. El reenvío. 3.4. Ámbito de la lex sucessionis. 3.4.1. Reglas aplicables
a cualquier tipo de sucesión. 3.4.2. Reglas especiales para las disposiciones mortis
causa. 3.5. Validez formal de las disposiciones mortis causa. 3.6. La reserva del
orden público. III. Competencia internacional. 1. Competencia de los Tribunales. 2.
Competencia de los Notarios. 3. Las soluciones del Reglamento.

Introducción

La regulación jurídica de las sucesiones mortis causa es muy diferente de país a país.
Esta diferencia de regulación se aprecia tanto en el plano del Derecho sustantivo,
como en el plano del Derecho internacional privado. En el plano del Derecho
material, las diferencias están ancladas en razones sociales, económicas y culturales

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 33-69.

* PBML: Professora Catedrática, Universidad de Extremadura.


ALB: Professora Associada, ISMAT.
34 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

de profunda raigambre.1 Por ello, las sucesiones internacionales son una de las
cuestiones más arduas del Derecho internacional privado. Así lo subraya J.
CARRASCOSA,2 quien nos recuerda que en la regulación de las sucesiones
confluyen elementos del Derecho de la persona y de la familia y del Derecho de los
bienes, con toda su carga ideológica que suscita y explica la vigencia de modelos no
sólo diferentes sino inconciliables. De ahí que las sucesiones sean el espigón desde
el que observar la marea de las cuestiones clásicas del conflicto de leyes:
calificación, reenvío, orden público internacional, fraude de Ley internacional,
remisión a sistemas plurilegislativos ad extra y ad intra, prueba del Derecho
extranjero, conflicto internacional transitorio, adaptación, cuestión previa, etc.

Los numerosos y complejos problemas jurídicos que plantean las sucesiones en


casos internacionales,3 las diferencias entre los ordenamientos jurídicos de los Esta-
dos membros,4 así como su incidencia e importancia para la construcción del Espa-
cio Europeo de Justicia,5 justifican el interés y la necesidad de contar con una regla-
mentación europea. El pasado 27 de julio, el DOUE publicó el Reglamento (UE)
650/2012, que establece una disciplina uniforme sobre la competencia judicial, la
Ley aplicable y el reconocimiento de decisiones en materia sucesoria y que regula el
“certificado sucesorio europeo”, que será automáticamente reconocido en toda la
UE. Esta normativa jurídica de la UE, sustituirá a las disposiciones que en nuestros
Derechos rigen para estas materias.

Todas y cada una de las soluciones que se adoptan en este Reglamento suscitan
numerosas cuestiones dignan de reflexión. De entre ellas, hemos elegido analizar los
problemas que plantea la determinación de la ley aplicable y de la competencia

1
Vid. DE WAAL, M. J.: Comparative Succession Law, en .REIMANN, M. / ZIMMERMANN.
R.: The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, 2008, pp. 1071 y ss.; “The Social and
Economic Foundations of the Law of Succession”, StellenboschL. Rev. 8 (1997), pp. 162 y ss.
Cfr. REID, K. G. C / DE WAAL, M. J. / ZIMMERMANN, R. (editores): Exploring the Law of
Succession: Studies National, Historical and Comparative, Edimburgo, 2007; ANDERSON,
M. / ARROYO I AMAYUELAS, E. (editoras): The Law of Succession: Testamentary Freedom
– European Perspectives, Groningen, 2011.
2
Vid. J. CARRASCOSA GONZÁLEZ, Derecho internacional privado sucesorio español, en J.
CARRASCOSA GONZÁLEZ / J.J. MARTÍNEZ NAVARRO: Prontuario de derecho suceso-
rio internacional, Granada 2012, pp. 2 y ss.
3
Cfr. BONOMI, A.: Successions internationales: conflits de lois et de juridictions, R des C, 350
(2010), pp. 71-418.
4
Vid. DÖRNER, H. / LAGARDE, P. (coords.), Étude de Droit comparé sur les règles de con-
flits de juridictions et de conflits de lois relatives aux testaments et successions dans les États
membres de l’Union Européenne (Rapport final: synthèse et conclusions), Deutsches Notarins-
titut, Würzburg, 2002; FRANTZEN, T., “Europäisches internationales Erbrecht”, en: MAN-
SEL, H.P. et al. (eds.), Festschrift für Erik Jayme, T. 1, Munich, 2004, pp. 187-196.
5
Por todos, vid. IGLESIAS BUHIGUES, J.L., “Desarrollo del Espacio Europeo de Justicia:
hacia el nuevo Derecho Internacional Privado de sucesiones en la UE”, Cursos de Derecho
Internacional y Relaciones Internacionales de Vitoria-Gastéiz, 2008, pp. 337-364.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 35

judicial para resolver las cuestiones sucesorias. En este trabajo nos vamos a ocupar
de analizar en paralelo la vigente regulación en España y en Portugal y los cambios
que introduce el Reglamento. Cambios sustanciales que, especialmente en el ámbito
de la determinación aplicable, son ya elementos esenciales a la hora de planificar la
sucesión. En efecto, el juego de la disposiciones transitorias conlleva la inaplicación
en España del art. 9.8 CC, y en Portugal de los artículos 62º a 65º del CC.

I. El Reglamento sobre Sucesiones: Aspectos Generales

1. Antecedentes

La armonización del Derecho de sucesiones fue contemplada entre las prioridades


Plan de Acción de Viena de 1998;6 el Programa de La Haya impulsó a la Comisión a
presentar un instrumento que englobara todas las cuestiones relacionadas con la ley
aplicable, la competencia judicial, el reconocimiento de decisiones y las medidas
administrativas, tales como los certificados de herencia, o el registro de
testamentos.7 La Comisión encomendó al Deutsches Notarinstitut la realización de
un estudio sobre el Derecho internacional de sucesiones en la UE y las perspectivas
de su armonización, que fue entregado en noviembre de 2002.8 A resultas del cual el
Libro Verde «Sucesiones y testamentos»,9 planteó una serie de propuestas sometidas

6
Plan de acción del Consejo y de la Comisión, de 3 de diciembre de 1998, sobre la mejor mane-
ra de aplicar las disposiciones del Tratado de Amsterdam relativas a la creación de un espacio
de libertad, seguridad y justicia, DOCE C 19 de 23.1.1999.
7
Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo, de 10 de mayo de 2005,
Programa de La Haya: Diez prioridades para los próximos cinco años. Una asociación para la
renovación europea en el ámbito de la libertad, la seguridad y la justicia, COM (2005) 184
final, DOCE C 236 de 24.9.2005.
8
http://www.successions.org. Cfr. Le Droit des successions en Europe (actes du Colloque de
Lausanne du 21 février 2003), Zurich, 2003; LAGARDE, P., “Vers un Règlement communau-
taire du Droit international privé des régimes matrimoniaux et des successions”, en Pacis Artes
(Libro Homenaje al Profesor Julio D. González Campos), vol. II, Madrid, 2005, pp. 1686-
1708.
9
COM (2005) 65, http://europa.eu/scadplus/leg/es/lvb/l16017.htm. Vid. BENDITO CAÑIZA-
RES, M.T.“Quelques réflexions à propos du Livre vert sur les successions et testaments et ses
réponses”, L’Observateur de Bruxelles, nº 67 (enero 2007), pp. 23-25; BORRÁS, A., “La
expansión comunitaria: penetración en el ámbito del Derecho de familia y de sucesiones”, en:
ÁLVAREZ GONZÁLEZ, S., (ed.), Estudios de Derecho de Familia y de Sucesiones (Dimen-
siones interna e internacional), Santiago de Compostela, 2009, pp. 65-90; FONT SEGURA,
A., “Valoración de las respuestas al Libro verde sobre sucesiones y testamentos relativas a la
competencia judicial”, en R. VIÑAS y G. GARRIGA (cords.), Perspectivas del Derecho suce-
sorio en Europa, Barcelona, 2009, pp. 59-81. HARRIS, J., “ The Proposed EU Regulation on
Succession and Wills, Trust Law International 2008, pp. 181-235; MIQUEL SALA, R. “El
libro verde sobre sucesiones y testamentos: primeros pasos hacia el Reglamento de ‘Bruselas
IV’”, AEDIP, vol. 7 (2007), pp. 695-718; DE LAMBERTYE-AUTRAND, M.C. “Quel Droit
européen en Droit patrimonial de la famille?: Le livre vert sur les successions et les testa-
36 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

a discusión pública.10 La entidad y riqueza de las contribuciones que respondieron a


la audiencia pública abierta por la Comisión, confirmaron y respaldaron la necesidad
de un instrumento europeo. La iniciativa para adoptar este instrumento recibió el
apoyo del Parlamento Europeo11 y del Comité Económico y Social Europeo.12
Finalmente, el 14 de octubre de 2009 se presentó la Propuesta de Reglamento.13 El

ments”, Informations Sociales, no 129 (enero de 2006), pp. 84-90; LEHMANN, D., Die Reform
des internationalen Erb- und Erbprozessrechts im Rahmen der geplanten Brüssel-IV Verord-
nung, Heidelberg, 2006, “Internationale Reaktionen auf das Grünbuch zum Erb- und Testa-
mentsrecht”, IPRax, 2006, pp. 204-206 y “Stellungnahme zum Grünbuch der Kommission der
Europäischen Gemeinschaften zum Erb- und Testamentsrecht”, ZErb, 2005, pp. 320-327.
STUMPF,C., “EG-Rechtssetzungskompetenzen im Erbrecht”, EuR, 2007, pp. 291-316 y,
“Europäisierung des Erbrechts: Das Grünbuch zum Erb- und Testamentsrecht”, EuZW, 2006,
pp. 587-592; TERNER, P., “ Perspectives of a European Law of Succession”, Maastricht Jour-
nal of European and Comparative Law 14 (2007) pp. 147-178; VOLTZ, M., “Internationales
Erbrecht in der EU – Perspektiven einer Harmonisierung. Symposium des Deutschen Notarins-
tituts in Brüssel”, IPRax, 2005, pp. 64-66
10
http://ec.europa.eu/justice/news/consulting_public/successions/news_contributions_successions
_en. htm. Seguidamente, 1 de marzo de 2006, la Comisión el constituyó un grupo de expertos
denominado «PRM III/IV», DO C 51 de 1.3.2006, p. 3, que se reunió en siete ocasiones entre
2006 y 2008 y la Comisión organizó una reunión de expertos nacionales el 30 de junio de 2008.
11
Resolución de 16.11.2006, P6_TA(2006)0496.
12
Dictamen de 26.10.2005, DOCE C 28 de 3.2.2006, p. 1.
13
COM(2009) 154 final – 2009/0157 (COD) http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?
Uri =COM:2009:0154:FIN:ES:PDF#page=2. Cfr. Resolución de la Comisión Mixta para la
Unión Europea, de 9 de diciembre de 2009, sobre el cumplimiento del princípio de subsidiarie-
dad por la Propuesta de Reglamento sobre la jurisdicción, legislación aplicable y reconoci-
miento de decisiones y medidas administrativas en materia de sucesiones y donaciones, BOCG,
Congreso, Serie A, 22.12.2009, núm. 242.Inter allia, vid. BALDUS, C., “¿Hacia un nuevo
derecho sucesorio europeo?”, Anales de la Academia Matritense del Notariado, nº 49 (2009),
pp. 419-438; CALÒ, E., “El proyecto de Reglamento de la Unión Europea sobre la ley aplica-
ble a las sucesiones: lo que no se ha dicho. Reflexiones desde el derecho italiano”, InDret
3/2010, Julio 2010; BUSCHBAUM, M. / KOHLER, M., “Vereinheitlichung der Erbkollisions-
rechts in Europa: Eine kritische Würdigung des Kommissionsvorschlags zur Erbrechtsverord-
nung. Erster Teil”, GPR, 2010, núm. 3, pp. 106-113; DÖRNER, H. “Der Entwurf einer europ-
äischen Verordnung zum Internationalen Erb- und Erbverfahrensrecht – Überblick und
ausgewählte Probleme”, ZEV,2010, pp. 221-228; M FUGARDO ESTIVILL, J.M. En torno a la
Propuesta de Reglamento Sobre Sucesiones y el Certificado Sucesorio Europeo, Barcelona,
2010; DUTTA, A. “Succession and Wills in the Conflict of Laws on the Eve of Europeanisa-
tion”, RabelsZ 73 (2009) 547–606; GUZMÁN, M. ,“Sobre el futuro de las sucesiones interna-
cionales en la Unión Europea”, El Notario del Siglo XXI, mayo-junio 2010, pp. 187-189;
HARRIS, J. ,“The proposed EU Regulation on Successions and Wills: Prospects and Chal-
lenges", TLI, 2008, pp. 181-235; HAUSMANN, R., “Community Instrument on International
Successions and Wills”, en: BARUFFI, M. C. / CAFARI PANICO, R., Le nuove competenze
comunitarie.Obbligazioni alimentari e successioni, Verona, 2009, pp. 149-169; JAYME, E.
,“Der Verordnungsvorschlag für ein Europäisches Erbkollisionsrecht (2009) auf dem Prüfstand
– Tagung in Wien” IPRax 3/2011 (Mai 2011), pp-312; KNOT, “Europees internationaal
erfrecht op komst: het voorstel voor een Europese Erfrechtverordening nader belicht”, NILR,
2010, nº 1, pp. 3-13; MARINO,S., “La proposta di regolamento sulla cooperazione giudiziaria
in materia di successioni”, Rivista di Diritto Internazionale, 2010, nº 1, pp. 463-470; Max
Planck Institute For Comparative And International Private Law, Comments on the European
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 37

Programa de Estocolmo,14 contempló entre sus acciones prioritarias culminar los


trabajos para la adopción del Reglamento en materia de sucesiones. El Parlamento
Europeo en sesión de 13 de marzo de 2012, aprobó en primera lectura su posición
sobre la Propuesta de la Comisión y el Reglamento fue finalmente adoptado en el
Consejo JAI de 7 de junio de 2012 y publicado en el DOUE de 27 de julio.

2. Ámbito de aplicación

El nuevo Reglamento se aplicará en todos los Estados miembros excepto en


Dinamarca. De momento, tampoco será aplicable en el Reino Unido ni en Irlanda,
puesto que estos países todavía no han manifestado su voluntad de participar o no en
él.

El Reglamento tendrá una vacatio legis de 36 meses desde su entrada en vigor, a los
veinte días de su publicación en el DOUE. En su art. 83.1 se establece que será
aplicable a la sucesión de las personas que fallezcan a partir del 17 de agosto de
2015.15 No obstante, como veremos más adelante, se establecen reglas transitorias
especiales para las disposiciones sucesorias en aras a asegurar su validez material y
formal, adelantando la aplicación de las normas relativas a la ley aplicable al
momento en que se hiciera la disposición. Es decir, a partir de la entrada en vigor del
Reglamento a los veinte días de su publicación, el 16 de agosto de 2012.

La base jurídica del Reglamento 650/2012 es el art. 81.2 TFUE 16 y ha sido tramitado
de conformidad con el procedimiento legislativo ordinario. De su complejidad rinde
cuenta su extensión, el Reglamento consta de ochenta y cuatro artículos
estructurados en siete Capítulos.

Commission’s Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council on ju-
risdiction, applicable law, recognition and enforcement of decisions and authentic instruments
in matters of succession and the creation of a European Certificate of Succession (marzo de
2010), http://www.mpipriv.de/; NOURISSAT, C., “Le futur droit des successions internation-
ales de l’Union européenne”, Defrénois, núm. 4, 2010, pp. 394-418, REVILLARD, M., “Pre-
mier commentaire de la proposition de règlement communautaire”, Défrenois, 2010, núm. 2,
pp. 176-188; WAGNER, R., “Der Kommissionsvorschlag vom 14. 10. 2009 zum
internationalen Erbrecht: Stand und Perspektiven des Gesetzgebungsverfahrens”, DNotZ, 2010,
nº 7, pp. 506-519.
14
DOCE C 115, de 4.5.2010.
15
En el art. 84 se determina que el Reglamento será aplicable a partir del 17 de agosto de 2015,
excepto por lo que respecta a los artículos 77 y 78, que serán aplicables a partir del 16 de enero
de 2014, y a los artículos 79, 80 y 81, que serán aplicables a partir del 5 de julio de 2012.
16
Vid.; AGUILAR GRIEDER, H., “La cooperación judicial internacional en materia civil en el
Tratado de Lisboa”, CDT, 2010, pp. 308-338, http://kusan.uc3m.es/CIAN/index.php/
CDT/issue/view/239, WAGNER, R, “Die politischen Leitlinien zur justiziellen Zusammenar-
beit in Zivilsachen im Stockholmer Programm”, IPRax, 2010, pp. 97-100.
38 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

El Capítulo I está dedicado a delimitar el ámbito de aplicación sustantivo, para lo


cual se acompaña de algunas definiciones ancilares que completarán las reglas esta-
blecidas en los diferentes ámbitos. En el art. 1, tras proclamar que el Reglamento se
aplicará a las sucesiones por causa de muerte, se enumeran las exclusiones expresas
que comprenden las siguientes materias:
 las cuestiones fiscales, aduaneras y administrativas.
 el estado civil de las personas físicas, así como las relaciones familiares y
las relaciones que, con arreglo a la ley aplicable a las mismas, tengan efec-
tos comparables;
 la capacidad jurídica de las personas físicas, sin perjuicio de lo dispuesto
en el artículo 23, apartado 2, letra c), respecto de la capacidad para suceder
y en el artículo 26 respecto a la validez material de las disposiciones mortis
causae;
 las cuestiones relativas a la desaparición, la ausencia o la presunción de
muerte de una persona física;
 las cuestiones relativas a los regímenes económicos matrimoniales, así
como a los regímenes patrimoniales resultantes de las relaciones que la ley
aplicable a las mismas considere que tienen efectos comparables al matri-
monio;
 las obligaciones de alimentos distintas de las que tengan su causa en la
muerte;
 la validez formal de las disposiciones mortis causa hechas oralmente;
 los bienes, derechos y acciones creados o transmitidos por título distinto de
la sucesión, por ejemplo mediante liberalidades, propiedad conjunta de
varias personas con reversión a favor del supérstite, planes de pensiones,
contratos de seguros y transacciones de naturaleza análoga, sin perjuicio de
lo dispuesto respecto de la a obligación de reintegrar o computar las dona-
ciones o liberalidades, adelantos o legados a fin de determinar las cuotas
sucesorias de los distintos beneficiarios, conforme al art. 23, 2, i);
 las cuestiones que se rijan por la normativa aplicable a las sociedades, aso-
ciaciones y otras personas jurídicas, como las cláusulas contenidas en las
escrituras fundacionales y en los estatutos de sociedades, asociaciones y
otras personas jurídicas, que especifican la suerte de las participaciones
sociales a la muerte de sus miembros;
 la disolución, extinción y fusión de sociedades, asociaciones y otras per-
sonas jurídicas;
 la creación, administración y disolución de trusts;
 la naturaleza de los derechos reales, y cualquier inscripción de derechos
sobre bienes muebles o inmuebles en un registro, incluidos los requisitos
legales para la práctica de los asientos, y los efectos de la inscripción o de
la omisión de inscripción de tales derechos en el mismo.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 39

Respecto de las exclusiones, entendemos necesaria algunas precisiones. En particu-


lar, la exclusión de la capacidad jurídica de las personas físicas, pone de manifiesto
que pese a la falta de competencia para la regulación de las cuestiones relativas al
estatuto personal las remisiones a los artículos 23.2 c) y 26 conlleva la sujeción a la
ley sucesoria de la capacidad para heredar y de la capacidad para testar.

La exclusión de la desaparición, la ausencia y el presunto fallecimiento de una per-


sona física (ex art. 1.3.c) debe completarse con previsión de una solución material
para la conmoriencia, para la que se prevé en el artículo 32, por el que se establece
que: En caso de que dos o más personas cuyas sucesiones se rijan por leyes diferen-
tes fallecieran en circunstancias que no permitan determinar el orden en que se
produjeron los fallecimientos y dichas leyes regularan esa situación mediante dispo-
siciones incompatibles o no la regularan en absoluto, ninguna de las personas falle-
cidas tendrá derecho alguno a la sucesión de la otra o de las otras. Regulación que
llama la atención, en primer lugar, porque se establece una solución material, aunque
limitada al supuesto personas cuyas sucesiones se rijan por leyes diferentes. Por otra
parte, se trata de una cuestión vinculada a la extinción de la personalidad y, por
tanto, al estatuto personal

La exclusión del art.1.3.d) implica que la liquidación del régimen económico matri-
monial quedará sometida a su ley rectora. Sin embargo, los derechos hereditarios
del cónyuge viudo estarán incluidos en la ley sucesoria, aunque dicha la ley vincule
los mismos al régimen matrimonial. No así las denominadas mortis causa capiones
que estarán sujetas a la ley que rige los efectos del matrimonio.

Sin poder detenernos en esta cuestión, sólo constatamos que el juego conjunto de las
exclusiones previstas en el artículo 1.3.g) y h) y en el artículo 1.3. f) consagran lo
que en la doctrina se conoce como la doble vía: a las sucesiones de mayor importan-
cia se aplica el Derecho mercantil, a las modestas el Derecho civil17. Dicho sea sin
dejar de compartir las exclusiones señaladas que, no obstante, a la vista de lo dis-
puesto en el artículo 23. j), que incluye en el ámbito de la lex sucessionis la obliga-
ción de reintegrar o computar donaciones o liberalidades, producirán no pocos liti-
gios.

En el art. 2 se contiene una reserva de carácter ordinamental, al señalarse que el


Reglamento no afecta a la competencia de las autoridades de los Estados miembros
en materia de sucesiones.

17
E. CALÒ, “El proyecto de Reglamento de la Unión Europea sobre la ley aplicable a las suce-
siones: lo que no se ha dicho. Reflexiones desde el derecho italiano”, InDret 3/2010, Julio
2010.
40 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

De singular importancia tanto para delimitar el ámbito de aplicación material del


Reglamento como para poner en práctica las normas que establece son las definicio-
nes que se contienen en su art. 3 en el que se enuncian las nociones de sucesión,
pacto sucesorio, testamento mancomunado, disposición mortis causa, Estado miem-
bro de origen, Estado miembro de ejecución, resolución, transacción judicial, docu-
mento público, tribunal.

El Capítulo II regula la competencia judicial, dedicando los arts. 4 a 19 a establecer


los foros y las normas de aplicación del sistema establecido, tanto en orden a la rela-
ción de los diferentes foros, como al control de oficio de la competencia, las situa-
ciones de litispendencia y conexidad, así como las garantías de emplazamiento del
demandado.

A la determinación de la Ley aplicable se dedica el Capítulo III, cuyos arts. 20 a 35


contienen junto a las normas de conflicto las normas de aplicación de las mismas en
aras a precisar el ámbito de la ley aplicable, la validez material de las disposiciones
mortis causa, la validez formal de una declaración relativa a una aceptación o una
renuncia, las normas especiales relativas al nombramiento y las facultades de los
administradores de la herencia en ciertas situaciones, las disposiciones especiales
que imponen restricciones relativas o aplicables a la sucesión de determinados bie-
nes, la adaptación de los derechos reales, la conmoriencia, la sucesión vacante, el
reenvío, la reserva del orden público, la remisión a ordenamientos plurilegislativos y
la inaplicación del Reglamento a los conflictos internos de leyes.

El reconocimiento, la fuerza ejecutiva y la ejecución de resoluciones se regula en el


Capítulo IV, que dedica los art. 39 a 58 al reconocimiento, los motivos de denega-
ción del reconocimiento, la prohibición de revisión en cuanto al fondo, la suspensión
de los trámites de reconocimiento, la fuerza ejecutiva, la determinación del domici-
lio, la competencia territorial, el procedimiento, la declaración de fuerza ejecutiva, la
notificación de la resolución sobre la solicitud de declaración de fuerza ejecutiva, el
recurso contra la resolución sobre la solicitud de declaración de fuerza ejecutiva, el
procedimiento para recurrir las resoluciones dictadas sobre el recurso, la desestima-
ción o revocación de la declaración de fuerza ejecutiva, la suspensión del procedi-
miento, las medidas provisionales y cautelares, la ejecución parcial, la asistencia
jurídica gratuita y la prohibición de caución o depósito así como la exención de
impuestos, derechos y tasas

El Capítulo V se consagra a los documentos públicos y las transacciones judiciales,


que ha sido definidos el art. 3.1. h) y g) respectivamente. A tal fin, contemplan los
arts. 59 a 61 la aceptación de documentos públicos, la fuerza ejecutiva de los docu-
mentos públicos y la de las transacciones judiciales
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 41

El Certificado Sucesorio europeo se regula en el Capítulo VI, comprensivo de los


arts. 62 a 73 en los que se establece la creación de un certificado sucesorio europeo,
su finalidad, la competencia para expedirlo, la forma en que ha de solicitarse, el
examen de la solicitud, la expedición del certificado, su contenido del certificado,
sus efectos, el régimen para las copias auténticas del certificado, así como la rectifi-
cación, modificación o anulación del certificado, la vías de recurso y la suspensión
del certificado.

El Capítulo VII, arts. 74 a 84 comprende las disposiciones generales y finales desti-


nadas a regular, entre otras, la legalización y demás formalidades similares, las
relaciones del Reglamento con convenios internacionales vigentes y con el Regla-
mento 1346/2000, la información facilitada al público, las disposiciones transitorias
y la entrada en vigor.

No se aborda en el Reglamento la regulación europea del registro de actos de última


voluntad18, desplazada a una consideración posterior y singularizada, aunque en los
inicios de los trabajos armonizadores se contempló como una de las cuestiones más
relevante y de mayor trascendencia práctica.

El Reglamento establece una regulación que abarca un amplísimo conjunto de pro-


blemas que surgen en las sucesiones internacionales y procura el máximo respeto a
la competencia de los Estados para regular sustantivamente el fenómeno sucesorio.
De ahí que abunden las soluciones de compromiso. Con el objetivo de asegurar la
previsibilidad y la seguridad jurídica, el Reglamento acoge el principio de unidad y
universalidad de la sucesión y lo refuerza con una decidida orientación a procurar la
unidad forum-ius.19 A tal fin se parte de la residencia habitual del causante en el
momento del fallecimiento como criterio básico – nexo general – a efectos de la
determinación tanto de la competencia como de la ley aplicable.

En la justificación de la Propuesta de Reglamento, la Comisión recordaba que el


concepto de «sucesión» debe interpretarse de manera autónoma e incluye todos los
aspectos de una sucesión, en particular la adjudicación, la administración y la
liquidación”. El criterio interpretación autónoma regirá no sólo para el concepto de
sucesión, sino también para todas las nociones y categorías de las disposiciones del

18
BALDUS, C. / KUNZ, L., “Das Europäische Testamentsregister Sachstand und ausgewählte
Fragen”, en: JUD, B. / RECHBERGER, W. H. / REICHELT, G. (eds.), Kollisionsrecht in der
Europäischen Union Kollisionsrecht, cit., pp. 165-179.
19
En el Considerando 27 expresamente se afirma: Las normas del presente Reglamento están
concebidas para garantizar que la autoridad que sustancie la sucesión aplique, en la mayoría
de los casos, su propio Derecho. Por consiguiente, el presente Reglamento establece una serie
de mecanismos que se utilizarían cuando el causante haya elegido para regir su sucesión la ley
de un Estado miembro del que era nacional.
42 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

Reglamento, excepto cuando se prevea expresamente una remisión del Derecho de


los Estados miembros. Se trata de un principio ampliamente respaldado por la juris-
prudencia del TJUE y suficientemente conocido por los operadores jurídicos, aunque
no exento de complejidad. Una complejidad acrecentada en nuestro caso por el
carácter poliédrico del fenómeno sucesorio y las muchas disparidades existentes
entre los ordenamientos jurídicos llamados a regir la sucesión, que dado el carácter
universal del Reglamento (art. 21), pudiera ser el de un tercer Estado. En último
extremo, la interpretación autónoma será garantizada por el TJUE. En esta definición
autónoma se pone de manifiesto que estamos ante una configuración unitaria y uni-
versal de la sucesión que debe ser precisamente delimitada. Lo que no siempre será
fácil. Ello por dos razones. En primer lugar, por lo que el Reglamento no dice o no
dice con suficiente claridad.

Nada se establece respecto de los problemas que surgirán en los casos, muy fre-
cuentes, en que para solventar una cuestión sucesoria haya que resolver una cuestión
previa o incidental. Por ejemplo, la validez y existencia de una adopción. Ante la
falta de una Parte General del Derecho internacional privado de la UE y de una solu-
ción expresa para estos casos entendemos, como acertadamente se señala por el
MPI,20 que la cuestión previa debe quedar sometida a conexión autónoma y regida
por la ley que así resulte designada. Tesis que consideramos preferible, pese a que se
opone a la seguida por el Parlamento Europeo, cuya Resolución de 16 de noviembre
de 2006, en su recomendación 6ª propuso que el futuro Reglamento sometiera la
disciplina de la cuestión preliminar a la de la ley designada por la norma de conflicto
de la ley aplicable a la sucesión aunque limitada al procedimiento en que se discute
la cuestión preliminar.

En particular, respecto de aquellas de las exclusiones que resultan más frecuentes y


problemáticas, relativas a el estado de las personas físicas, así como las relaciones
familiares y las relaciones de análogos efectos; las cuestiones relativas al régimen
matrimonial, así como al régimen patrimonial aplicable a las relaciones que tengan
efectos comparables al matrimonio y las cuestiones relativas al Derecho de Socieda-
des, habrá que estar a la ley que resulte aplicable por mandato de las normas de
conflicto del foro.

II. Ley Aplicable a la Sucesión

A la entrada en vigor del Reglamento hemos empezado a despedirnos en España


del art. 9.8 CC, y en Portugal de los artículos 62º a 65º del CC. Un adiós de
momento limitado a las sucesiones internacionales y especialmente a las
disposiciones mortis causa. Pero su análisis conserva interés, en primer lugar,

20
MPI, Comments on the European Commission’s Proposal ..., cit., parágrafo 8
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 43

porque seguirá aplicándose a las sucesiones de las personas que fallezcan hasta el 17
de agosto de 2015, sin perjuicio de que la validez de la elección de la ley sucesoria
realizada con anterioridad quedará sometida a las normas del Reglamento. Y sobre
todo, conserva interés porque resultará plenamente aplicable a las sucesiones
interregionales, dada la inaplicación del Reglamento a los conflictos de leyes
internos, al menos mientras el legislador español no decida que así sea; lo que
consideramos conveniente y recomendable.

1. En el Derecho internacional privado español

El art. 9.8 del Código Civil determina la Ley reguladora de las sucesiones por causa
de muerte. El precepto contiene tres soluciones diferentes. En primer lugar establece
una regla general aplicable a cualquier tipo de sucesión, testada, pactada o intestada,
comprensiva del conjunto de los elementos: “La sucesión por causa de muerte se
regirá por la ley nacional del causante en el momento de su fallecimiento
cualesquiera que sean la naturaleza de los bienes y el país donde se encuentren”.
Esta regla general se completa con una previsión especial para un supuesto muy
concreto, cambio de ley nacional entre la disposición mortis causae y la apertura de
la sucesión, previsión ordenada a garantizar la validez de las disposiciones y su
ajuste a las previsiones sobre legitimas de la ley personal del causante en el
momento del fallecimiento: “Sin embargo, las disposiciones hechas en testamento y
los pactos sucesorios ordenados conforme a la ley nacional del testador o del
disponente en el momento de su otorgamiento conservarán su validez, aunque sea
otra la ley que rija la sucesión, si bien las legítimas se ajustarán, en su caso, a esta
última”. Y finalmente se delimita el alcance de la regla general precisando que “Los
derechos que por ministerio de la ley se atribuyan al cónyuge supérstite se regirán
por la misma ley que regule los efectos del matrimonio, a salvo siempre las
legítimas de los descendientes”.21 Estas dos reglas especiales tienen en común la
finalidad de proteger los derechos de los legitimarios.

21
En el Derecho interregional aragonés la adaptación entre estas dos leyes aplicables a la
disolución del régimen económico matrimonial y la sucesión del cónyuge viudo se soluciona
ajustando el contenido material de los Derechos en presencia ex art. 16.2 CC., apartados
primero y tercero, en relación con los derechos de viudedad previstos en la Compilación del
Derecho civil de Aragón. Según el art. 16.2, apartado primero del Cc.“El derecho de viudedad
regulado en la Compilación aragonesa corresponde a los cónyuges sometidos al régimen
económico matrimonial de dicha Compilación, aunque después cambie su vecindad civil, con
exclusión en este caso de la legítima que establezca la ley sucesoria”. Y el apartado tercero del
art. 16.2 Cc. dispone que “El usufructo viudal corresponde también al cónyuge supérstite
cuando el premuerto tuviese vecindad civil aragonesa en el momento de su muerte”.
44 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

En los casos de Derecho interregional, cubiertos también por el art. 9.8 CC, la
nacionalidad del causante será reemplazada por la vecindad civil del causante.22 Las
normas dictadas por las Comunidades Autónomas con Derecho civil propio que
reiteran lo establecido por estas normas de conflicto contenidas en el Código civil
son válidas, aunque ociosas.23

El art. 9.8 CC emplea la conexión nacionalidad del causante, si bien para evitar el
conflicto móvil fija dicha circunstancia en el tiempo. Así habrá que estar a la
nacionalidad del causante en el momento de su fallecimiento. No obstante, la
practicabilidad de la conexión presenta no pocos problemas y es muy frecuente que
los tribunales españoles deban concretar la nacionalidad del causante en supuestos
muy complejos.24

La Ley aplicable a la sucesión, en los términos que dispone el artículo 9.8 del
Código Civil, conduce rígidamente a la aplicación de la ley nacional, cuya férula
puede ser mitigada con una comprensión funcional del reenvío. En cuanto al juego
del reenvío de primer grado ex art. 12.2 CC, dada la diversidad de los sistemas
conflictuales en materia sucesoria, hemos de recordar, como señalan CALVO y
CARRASCOSA, que para aplicar el Derecho extranjero es preciso constatar que no
hay ninguna norma de conflicto extranjera que reenvíe al Derecho español. En otras
palabras: la parte interesada en la aplicación de normas materiales extranjeras,
deberá probar que las normas de conflicto extranjeras no provocan un reenvío en
favor del Derecho material español (art. 12.2 CC).25

Sin embargo, en la regulación de nuestro CC sobre el reenvío, no basta con


comprobar si se produce o no la remisión devolutiva a la Ley española. También hay

22
STS 14 septiembre 2009.
23
STC 6 mayo 1993, núm.156/1993. Cfr. art. 188 de la Ley gallega 2/2006 de 14 junio, de Dere-
cho Civil de Galicia, que indica que los gallegos pueden otorgar testamento mancomunado
incluso fuera de Galicia; el art. 417 de la Compilación de Derecho Foral de Aragón, 2011, esta-
blece: “1. Los aragoneses, sean o no cónyuges o parientes, pueden testar de mancomún, aun
fuera de Aragón. | 2. Si uno de los dos testadores es aragonés y el otro no lo tiene prohibido
por su ley personal, pueden testar mancomunadamente, incluso fuera de Aragón”. Un supuesto
muy particular es el de la Ley 200 de la Ley 1/1973, de 1 de marzo, Compilación de Derecho
Civil Foral de Navarra, que indica que “Los navarros pueden otorgar testamento de hermandad
tanto en Navarra como fuera de ella, así en España como en el extranjero”. Esta disposición
no es, en ningún caso, inconstitucional, pues se contiene en una Ley estatal. Sin embargo, coli-
siona con los arts. 11 y. 733 CC, debiendo prevalecer sobre estos por su carácter de ley espe-
cial. En general, vid. E. ZABALO ESCUDERO: “Legislación autonómica sobre las parejas de
hecho y los conflictos de leyes internos”, en Estudio comparado de la regulación autonómica
de las parejas de hecho: soluciones armonizadoras. Consejo General del Poder Judicial,
Manuales de Formación continuada, 28, 2004. Madrid, 2005, pp. 46-80
24
Vid. i.a., STS 10 julio 2009, STS 19 julio 1989, SAP Alicante 5 octubre 2010, SJPI Calatayud
23 diciembre 1985, SAT Zaragoza 10 abril 1987, SJPI núm. 1 Pamplona 16 julio 1986.
25
Tesis formulada en Francia en la sent. Cour Cass. de 20 de junio de 2006, Wildenstein.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 45

que tener en cuenta que el reenvío es un instrumento al servicio de las normas de


conflicto y que no debe destruir los principios que las inspiran. Como ha sentado la
jurisprudencia del TS, el reenvío no constituye una solución general ni un
mecanismo automático. Así resulta de la literalidad del art. 12.2 CC, que indica no
es obligado aplicar las normas de conflicto extranjeras que remiten al Derecho
sustantivo español, sino que se puede tener en cuenta la remisión que tales normas
de conflicto extranjeras realizan en favor del Derecho sustantivo español.26

La Ley que rige la sucesión ex art. 9.8 CC presenta un ámbito material muy extenso.
La intención del legislador es que la lex successionis resuelva la mayor parte de las
cuestiones jurídicas que se plantean en los supuestos internacionales. Con ello se
cumple un designio de seguridad jurídica y de prevención de conflictos los
particulares. La lex successionis regula las siguientes estas cuestiones:
 Bienes y relaciones jurídicas transmisibles por sucesión mortis causa.
 Causas y momento temporal de apertura de la sucesión, incluidas las conse-
cuencias de la conmoriencia.
 Incapacidades relativas o prohibiciones de suceder en determinados supues-
tos.
 Determinación de los sujetos que pueden recibir por sucesión mortis causa.
 Incapacidades absolutas y causas de desheredación y de indignidad.
 Régimen de las legítimas.
 Delación de la herencia.
 Aceptación de la herencia.
 Herencia yacente.
 Renuncia de la herencia.
 Comunidad de bienes anterior a la partición.
 Aspectos centrales de la partición hereditaria.
 Adquisición de la propiedad de los bienes de la herencia.
 Administración de la herencia.

Aunque son cuestiones relacionadas con la sucesión mortis causa, ciertos aspectos
jurídicos están excluidos del ámbito de la lex successionis y se rigen por su propia
Ley reguladora. Se trata de los siguientes aspectos:
 Capacidad para heredar, aceptar o repudiar la herencia y para pedir y practi-
car la partición.
 Forma jurídica del acto unilateral de aceptación de la herencia.
 Forma jurídica de la partición.
 Partición judicial.
 Contratos sobre partición de herencia.
 Registro de bienes hereditarios.
 Derechos sucesorios del cónyuge viudo.

26
Vid. STS 15 noviembre 1996, STS 21 mayo 1999, STS 23 septiembre 2002.
46 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

 Ventajas parasucesorias.

1.2. La Ley aplicable a la forma de las disposiciones testamentarias

De todas las cuestiones excluidas del ámbito de aplicación de la lex sucesiones, la


que presenta menos problemas y mayor interés es la relativa a la validez formal de
las disposiciones mortis causa. De acuerdo con el principio de conexión autónoma
de la forma, en nuestro Derecho internacional privado español la Ley aplicable a la
forma de las disposiciones testamentarias se determina con arreglo al Convenio de
La Haya de 5 octubre 1961 sobre la Ley aplicable a la forma de las disposiciones
testamentarias, en vigor para España desde el 10 junio 1988. Del carácter erga om-
nes del Convenio (art. 6), resulta la inaplicabilidad de los arts. 11, 733.1, 732.1 y
732.3 todos ellos del Código civil. Sin embargo, la Ley designada por el art. 11 CC y
por los arts. 732-733 CC regulará la forma de la sucesión mortis causa en los casos
de Derecho interregional.

El Convenio entiende que son cuestiones de forma las siguientes:


 La posibilidad de testar de forma mancomunada y las formalidades de dicho
testamento mancomunado (art. 4). Es decir, el testamento mancomunado se
calificado por el Convenio como una cuestión de forma.
 Las prescripciones que limitan las formas admitidas de disposiciones
testamentarias referidas a la edad, nacionalidad u otras circunstancias per-
sonales del testador (art. 5).
 Las circunstancias que deben poseer los testigos requeridos para la validez de
una disposición testamentaria (art. 5).

El Convenio se aplica también para determinar la Ley aplicable a la forma de las


disposiciones testamentarias que revoquen una disposición testamentaria anterior
(art. 2).

Una disposición testamentaria será válida en cuanto a la forma (art. 1) si se ajusta a


alguna de las siguientes “Leyes internas”:
a) Ley del lugar en que el testador realizó la disposición.
b) Ley del Estado de la nacionalidad ostentada por el testador, sea en el
momento en que otorgó, sea en el momento de su fallecimiento.
c) Ley del lugar en el cual el testador tenía su domicilio, sea en el momento en
que otorgó, sea en el momento de su fallecimiento.
d) Ley del lugar en el cual el testador tenía su residencia habitual, sea en el
momento en que otorgó, sea en el momento de su fallecimiento.
e) Respecto a los inmuebles, Ley del lugar en que estén situados tales
inmuebles.
f) Ley del país a la que conducen las normas de conflicto españolas si éstas
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 47

recogen algún punto de conexión no contemplado en el art. 1 del Convenio


(art. 3). En tal sentido, el testamento también será válido si respeta lo
establecido por la Ley española como Ley del país del que depende el
funcionario diplomático o consular español ante el que se otorga la
disposición testamentaria (regla auctor regit actum recogida en el art. 11.3
CC y en el art. 734 CC; o la Ley del país cuya bandera extranjera enarbola
un buque durante su navegación en alta mar, siempre que se trate de
testamento de españoles (art. 732.2 CC).

En definitiva, el Convenio acoge un sistema de puntos de conexión alternativos cuya


función residen en facilitar la validez formal del testamento, evitando las situaciones
claudicantes. No obstante, el favor validitatem inspirador de las soluciones del
Convenio ha de cohonestarse con la reserva del orden público internacional del
Estado cuyas autoridades conocen del asunto (art.7). En su virtud, no se aplicará la
Ley extranjera designada por el Convenio si su aplicación es manifiestamente in-
compatible con el orden público español. Así, el testamento mancomunado, cuando
fuera permitido por un Derecho extranjero, no podrá ser considerada contraria al
orden público internacional español,27 pues aunque prohibido en el Código civil ex
arts. 699 y 733, se admite en el Código del Derecho Foral de Aragón,28 en su
artículo 417, que puede ser otorgado, incluso fuera de Aragón, por aragoneses, y
que, a partir de la Ley de sucesiones por causa de muerte,29 incorporó un segundo
inciso, en la actualidad apartado 2 del artículo 417 del Código de Derecho Foral,
según el cual también podrá otorgarse, cuando uno de los dos testadores sea
aragonés y el otro no lo tenga prohibido por su ley personal, en el Derecho gallego,
arts. 187-195 Ley 2/2006 de 14 junio 2006 de Derecho Civil de Galicia, en el
Derecho navarro y en el Derecho vasco.

2. En el Derecho internacional privado portugués

Según el artículo 62 del Código Civil portugués, las sucesiones por muerte son
reguladas por la ley personal del autor de la sucesión en el momento de su
fallecimiento, cabiéndole también definir los poderes del administrador de la
herencia o del ejecutor testamentario. Esta conexión con la ley personal se refiere
apenas a su ley personal en el momento de su fallecimiento, evitado también el
referido conflicto móvil. Además, como regla general y para el derecho internacional
privado portugués, se considera como siendo la ley personal de un individuo la ley

27
STS 8 octubre 2010
28
Decreto Legislativo 1/2011, de 22 de marzo, del Gobierno de Aragón por el que se aprueba,
con el título de Código del Derecho Foral de Aragón, el Texto refundido de las Leyes civiles
aragonesas. BOA nº 63 de 29 de marzo de 2011.
29
Ley 1/1999 de 24 de febrero.
48 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

de su nacionalidad (número 1 del artículo 31 de Código Civil). Caso tenga más que
una nacionalidad, la ley de la nacionalidad dispone en su artículo 27, para el caso en
que el conflicto positivo se plantee entre dos o mas nacionalidades siendo una de
ellas la portuguesa, será esta última la que se considere. Para situaciones en que
ninguna de las nacionalidades sea la portuguesa dispone el artículo 28 de la misma
ley que será considerada apenas la ley del Estado en que el plurinacional tenga su
residencia habitual, y en su falta, la del Estado con el que él mantenga una conexión
mas estrecha.

En cuanto a la forma el artículo 65 del mismo Código Civil determina en su número


1 que las disposiciones por muerte, así como su revocación o modificación serán
válidas, en cuanto a la forma, si están de acuerdo, con lo dispuesto en la ley del lugar
donde el acto haya sido celebrado (lex loci actus), o con las de la ley personal del
autor de la herencia tanto en el momento de la declaración como en el momento de
su fallecimiento, o incluso con las disposiciones de la ley para la cual la norma de
conflictos de la ley local haga su remisión. Se trata de conexiones alternativas,
solución por la que el legislador portugués optó consagrando así el principio del
favor negotii.

Este número 1 del artículo 65 es completado con un número 2 que dispone lo


siguiente: Caso la ley personal del autor de la herencia en el momento de la
declaración exigiera, teniendo como consecuencia de su no acatamiento la nulidad o
ineficacia, la observancia de una determinada forma, mismo que el acto sea
practicado en el extranjero, será la mencionada exigencia respectada.

En cuanto al reenvio, la ley portuguesa tiene una regla de tipo general, prevista en el
artículo 16º del CC, que contempla la remisión material para un L2, salvo
disposición en contrario. Esta última frase significa que la regla del artículo 16º solo
será de aplicar caso no estén reunidos los requisitos para la aplicación de los
artículos 17º, o del 18º del CC, los cuales no son cumulativos.

No son cumulativos porque:

El artículo 17º dispone para situaciones en las que el derecho internacional privado
de la ley para la cual la norma de conflictos portuguesa ha hecho su remisión (L2),
reenvia para el derecho de un tercer Estado Ln, y este se considere directa o
indirectamente competente. Se trata pues de situaciones en las que el reenvio
operado por L2 es hecho, no para el derecho portugués, pero para un el derecho de
un tercer Estado, Ln.

El artículo 18º dispone para situaciones en las que, el derecho internacional privado
de la ley para la cual la norma de conflictos portuguesa ha hecho su remisión (L2),
reenvia directa o indirectamente para el derecho material portugués (L1).
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 49

Así, al analizar una situación internacional plurilocalizada, cualificada como siendo


de derecho de sucesiones, el análisis procede del siguiente modo:

PRIMEIRO: si se trata de una situación prevista en el artículo 17, y la ley para la


cual la norma de conflictos portuguesa ha hecho su remisión (L2) reenvia para el
derecho de un tercer Estado (Ln), y además este se considera directa o
indirectamente competente, en principio tendremos de aplicar ese derecho material
de Ln.

Pese a que los dos requisitos30 del nº 1, del artículo 17º, estén cumplidos, la
aplicación del artículo 17 podrá estar puesta en causa para los casos en el que L2
sea la ley personal del de cuius y este haya tenido su última residencia habitual en
Portugal o en un país cuyas normas de conflicto consideren como competente el
derecho interno (material) del Estado de su nacionalidad. Sin embargo, en
situaciones de sucesiones mortis causae, si la ley nacional indicada por la norma de
conflictos devolver para la lex rei sitae, y además esta se considere competente, será
esta ley la que se aplica.

Ó, en alternativa,

SEGUNDO: caso se trate de una situación del artículo 18, será necesario en primer
lugar, constatar si la norma de conflicto extranjera para la que ha remetido la norma
de conflicto portuguesa, reenvia para el derecho material portugués (directa o
indirectamente), situación prevista en el nº 1 del artículo 18º de CC portugués, y en
este caso habrá también que verificar si se trata de una situación prevista en el nº 2
del mismo artículo, aplicándose, en principio, a la sucesión, el derecho material
portugués de sucesiones.31

Caso no estén reunidas las condiciones no del artículo 17º, ni del 18º será de aplicar
el artículo 16, es decir, vamos a aplicar el derecho material de L2.

3. Ley aplicable a la sucesión. Las soluciones del Reglamento

Según se establece en el art. 20, las normas de conflicto del Reglamento se aplican
con carácter universal, aun cuando la ley designada sea la de un tercer Estado,

30
Es decir, que el derecho internacional privado de L2 reenvie para una otra legislación (Ln), y
que esta otra (Ln) se considere competente.
31
A. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado I, Coimbra, Almedina, 2000, pp.
287 ss.
50 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

3.1. La ley aplicable a la sucesión: residencia habitual del causante y principio


de la vinculación más estrecha.

Por lo que se refiere a la ley aplicable, el Reglamento establece que la sucesión se


regirá con carácter general por la ley de la residencia habitual del causante en el
momento de su fallecimiento (art. 21.1).

En la disyuntiva entre la ley nacional y la ley de la residencia habitual, tan presente


en todas las cuestiones que suscita la determinación de la ley aplicable a las materias
englobadas en el estatuto personal, el Reglamento se hace eco de la tensión así como
de las diferentes concepciones acerca de la sucesión y parece optar claramente por la
residencia habitual, a la que como hemos visto ha calificado de nexo general para
determinar la ley aplicable y la competencia. Sin embargo, el Reglamento reconoce
las dificultades prácticas que implica la conexión seleccionada. De ahí que dedica
tres de sus ochenta y cuatro Considerandos a explicar qué debe entenderse por resi-
dencia habitual y cómo debe concretarse. Así se afirma que:32

“Con el fin de determinar la residencia habitual, la autoridad que sustancie la suce-


sión debe proceder a una evaluación general de las circunstancias de la vida del
causante durante los años precedentes a su fallecimiento y en el momento del mis-
mo, tomando en consideración todos los hechos pertinentes, en particular la dura-
ción y la regularidad de la presencia del causante en el Estado de que se trate, así
como las condiciones y los motivos de dicha presencia. La residencia habitual así
determinada debería revelar un vínculo estrecho y estable con el Estado de que se
trate teniendo en cuenta los objetivos específicos del presente Reglamento.

En algunos casos, determinar la residencia habitual del causante puede revelarse


complejo. Tal sería el caso, en particular, cuando por motivos profesionales o eco-
nómicos el causante hubiese trasladado su domicilio a otro país para trabajar en él,
a veces por un período prolongado, pero hubiera mantenido un vínculo estrecho y
estable con su Estado de origen. En tal caso, dependiendo de las circunstancias,
podría considerarse que el causante tenía su residencia habitual en su Estado de
origen, en el que estaba situado el centro de interés de su familia y su vida social.
También podrían suscitarse otras situaciones complejas cuando el causante haya
residido en diversos Estados alternativamente o viajado de un Estado a otro sin
residir permanentemente en ninguno de ellos. Si el causante fuera nacional de uno
de dichos Estados o tuviera sus principales bienes en uno de ellos, la nacionalidad
de aquel o la localización de dichos bienes podrían constituir un factor especial en
la evaluación general de todas las circunstancias objetivas.

32
Considerandos 23, 24 y 25.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 51

Por lo que respecta a la determinación de la ley aplicable a la sucesión, en casos


excepcionales en los que, por ejemplo, el causante se haya mudado al Estado de su
residencia habitual poco tiempo antes de su fallecimiento, y todas las circunstancias
del caso indiquen que aquel tenía un vínculo manifiestamente más estrecho con otro
Estado, la autoridad que sustancie la sucesión puede llegar a concluir que la ley
aplicable a la sucesión no sea la ley del Estado de residencia habitual del causante
sino la ley del Estado con el que el causante tenía un vínculo manifiestamente más
estrecho. No obstante, la vinculación manifiestamente más estrecha no debe
emplearse como nexo subsidiario cuando la determinación de la residencia habitual
del causante en el momento de su fallecimiento resulte compleja.

El fundamento de esta opción por la residencia habitual es su consideración como el


lugar que es el centro de interés del causante y donde suele encontrarse la mayoría
de sus bienes, al tiempo que también favorece la integración en el Estado miembro
de residencia habitual y evita cualquier discriminación contra aquellas personas que
tienen su residencia en un Estado del que no son nacionales.

Frente a otros puntos de conexión, como la nacionalidad o el domicilio, la residencia


habitual se caracteriza por una mayor flexibilidad, lo que al mismo tiempo se traduce
en la posibilidad de una mayor incertidumbre en su determinación, en buena medida
derivada de la propia dificultad de su definición. Tradicionalmente se ha considerado
que dos son los elementos que integran el concepto de la residencia habitual: por una
parte, el corpus, entendiendo como tal la presencia o permanencia efectiva en un
determinado lugar y, por otra parte, el animus o la voluntariedad del sujeto intere-
sado de dotar a esa presencia de una continuidad o permanencia en el tiempo, de
manera que se constituya en el espacio para el desarrollo de sus principales intereses.

Siendo así, para el caso de una sucesión testada o pactada convendría dejar constan-
cia tanto de los elementos fácticos como de las expresiones de voluntad que permi-
tan integrar la adecuada fijación de la residencia habitual. E incluso, dejar constancia
de la expresa voluntad de que la sucesión se rija por la ley de su residencia habitual.
Como señala CALVO VIDAL, en los supuestos de sucesión intestada, a la luz de la
naturaleza no contenciosa de la intervención notarial en la declaración de herederos
abintestato, una de las cuestiones de mayor interés, una vez vigente el nuevo Regla-
mento, pasará a ser la determinación de la residencia habitual del causante. Así las
cosas, dada su trascendencia en todo el devenir del procedimiento sucesorio, par-
tiendo de la propia competencia notarial para participar en el mismo y concluyendo
en el señalamiento de quienes resulten ser los llamados a la herencia, como punto de
partida resultará aconsejable asegurar que no se suscite duda alguna acerca de la
residencia habitual del causante. A tal fin, entre las diligencias a practicar por el
notario sobre tal circunstancia serán de gran utilidad las declaraciones no sólo de
testigos, sino también de quienes puedan ser los llamados a la sucesión.
52 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

La conexión general a la ley de la residencia habitual cede frente al principio de la


vinculación más estrecha que se recoge en el art. 21.1 por el que excepcionalmente
si resultase claramente de todas las circunstancias del caso que, en el momento del
fallecimiento, el causante mantenía un vínculo manifiestamente más estrecho con un
Estado distinto al de su residencia habitual, la ley aplicable a la sucesión será la de
ese otro Estado. Principio de mayor proximidad o de la vinculación más estrecha de
textura abierta que, en situaciones litigiosas nos situará ante un escenario de onus y
medios de prueba; mientras que en situaciones no contenciosas, será dilucidable
por la autoridad que intervenga en la sucesión.

3.2. La elección de la ley aplicable a la sucesión

La residencia habitual del causante también cede frente a la posibilidad de elegir la


ley aplicable a la sucesión que se reconoce en el art. 22. Nos encontramos ante un
supuesto de autonomía conflictual limitada y controlada. Limitada porque dado que
el Reglamento se aplica a las sucesiones internacionales, la nacionalidad es el único
elemento considerado en aras de permitir la elección de la ley aplicable. Controlada
porque la única ley elegible es la del Estado cuya nacionalidad posea el causante en
el momento de la elección o en el momento del fallecimiento. Se justifica el
reconocimiento de la autonomía conflictual limitada en razones de seguridad jurídica
y se razona la elegibilidad de la ley nacional en atención a su conexión entre el
difunto y la ley elegida y para evitar que se elija una ley con la intención de
frustrar las expectativas legítimas de los legitimarios (Considerando 18, el
subrayado es nuestro).

Para lo supuestos de plurinacionalidad, el art. 22.1.2 contiene una auténtica norma


material, al permitir que la elección abarque cualquiera de las nacionalidades que se
ostente, sea en el momento de realizar la elección o en el momento del fallecimiento.
Esta previsión altera en cierta medida el princípio de remisión a la Ley del Estado
cuya nacionalidad se posee para determinar la conexión nacionalidad, principio de
vigencia general que resulta así modulado. La principal consecuencia de esta
disposición es que resultará inaplicable en España del art. 9.9 CC y con ello
inoperante la distinción entre supuestos de plurinacionalidad admitidos en las leyes y
supuestos de plurinacionalidad patológica. También y pese a las reglas contenidas en
los artículos 27º y 28º de la ley portuguesa de la nacionalidad, el interesado podrá
escoger libremente cualquiera de sus nacionalidades.

El reconocimiento de la posibilidad, siquiera limitada, de elegir la ley aplicable es


una sustancial diferencia entre el Reglamento y los arts. 9.8 CC español, y arts. 62 y
nº 1 del 31 del CC portugués. El Reglamento, que acoge la posibilidad de que pueda
señalarse en una disposición por causa de muerte la Ley reguladora de la propia
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 53

sucesión, subraya la importancia de la autonomía de la voluntad. De esta manera


será la voluntad del causante el primer factor que haya de ser tenido en cuenta al
tiempo de fijar la Ley aplicable, al tener reconocida la posibilidad de optar por la ley
de su nacionalidad, frente al criterio general de la ley de su residencia habitual.

Varias cuestiones merecen una especial referencia. En primer lugar, la elección de la


ley de la nacionalidad como ley de la sucesión podrá llevarse a cabo tanto de forma
unilateral, a través de la figura del testamento, como de forma plurilateral, a través
de un pacto o contrato sucesorio. En uno y otro caso la elección de la ley aplicable
puede ser el contenido exclusivo del testamento o del pacto sucesorio. Es decir,
resulta perfectamente ajustado al Reglamento que el testador limite el contenido de
su testamento a disponer que sea la ley de su nacionalidad la que haya de regir su
sucesión y que el pacto sucesorio se limite únicamente a acordar que la sucesión de
uno o varios de los contratantes se ha de regir por la ley de sus respectivas naciona-
lidades.

Las consecuencias de una y otra posibilidad serán diversas. En el primer caso, dado
el carácter esencialmente revocable del testamento, será posible la modificación y la
revocación de la designación de la ley de la sucesión. Tratándose de un pacto suce-
sorio, en función de cómo éste se configure, es posible que la elección de la ley
sucesoria devenga definitiva.

La designación de la ley sucesoria de manera expresa es la fórmula más conveniente


para evitar problemas sobrevenidos a causa de una posible falta de claridad, espe-
cialmente si puede entrar en juego un sistema de carácter plurilegislativo, como el
español. Sin embargo, el principio de la prevalencia de la voluntad del causante que
debe informar en cualquier caso la interpretación de las disposiciones mortis causa
también se reconoce en el Reglamento en sede de determinación de la ley aplicable,
al permitirá que aún cuando la designación de la ley de la sucesión no se haya reali-
zado por medio de una declaración expresa, bastará con que la misma pueda enten-
derse implícita en el contenido del testamento o pacto sucesorio. En el Reglamento
se regula la elección de la Ley aplicable a la sucesión vinculándola a las disposicio-
nes mortis causa, exigiéndose que se haga expresamente en forma de testamento,
testamento mancomunado o pacto sucesorio, o que resulte de los términos de una
disposición de ese tipo.

La validez material del acto por el que se haya hecho la elección de la ley se regirá
por la ley elegida. Cualquier modificación o revocación de la elección de la ley
deberá cumplir los requisitos formales aplicables a la modificación o la revocación
de las disposiciones mortis causa (art. 22, 2.3 y 4).33

33
Vid. FONTANELLAS I MORELL, J. M., «La forma de la designación de ley en la propuesta
de Reglamento europeo en materia de sucesiones», REDI, 2011-2, pp. 123-144.
54 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

La validez material de la elección de la ley aplicable, quedará sometida a la elegida


en virtud del artículo 22. 3.

En todo caso, dado el juego de las disposiciones transitorias, aunque el Reglamento


será aplicable a las sucesiones de las personas que fallezcan a partir del 17 de agosto
de 2015, si el causante realizó la elección de la ley aplicable con anterioridad a dicha
fecha, esta elección será válida si cumple las condiciones establecidas en el Capí-
tulo III del Reglamento o si cumple las condiciones de validez en aplicación de las
normas de Derecho internacional privado vigentes, en el momento en que se hizo la
elección, en el Estado en el que el causante tenía su residencia habitual o en cual-
quiera de los Estados cuya nacionalidad poseía (art. 83.2). Se pone de relieve con
ello la importancia fundamental de la autonomía conflictual en la ordenación de la
sucesión.

3.3. El reenvío

En la Propuesta de la Comisión, siguiendo la cláusula al uso en otros Reglamentos


sobre la Ley aplicable, se excluía el reenvío. Pero en el largo proceso de negociación
de la Propuesta. En diciembre de 2011, ya se incluye una norma sobre el reenvío;34 a
este texto se presentó en el Parlamento la enmienda 7535 y en el Informe presentado
el 6 de marzo ante la Comisión de Asuntos Jurídicos del Parlamento Europeo sobre
la propuesta de Reglamento, del que fue ponente el eurodiputado K. LECHNER, se
incluyó dicha enmienda con el texto que finalmente fue aprobado por el Parlamento
y pasó a ser el actual art. 34.

La regulación del reenvío no puede ser más compleja ni oscura. En primer lugar, se
deduce de la literalidad del art. 34. 1 que la remisión hecha por las normas de con-
flicto del Reglamento si se verifica al Derecho de un Estado miembro es una remi-
sión material. En segundo lugar, en consecuencia, el reenvío sólo opera cuando la
Ley aplicable resulte ser de un tercer Estado. En este caso se admite el reenvío de
retorno a la europea, es decir se aplicarán las normas de conflicto del Derecho inter-
nacional privado de ese tercer Estado que designen como lex sucessionis la ley de

34
http://register.consilium.europa.eu/pdf/en/11/st18/st18475-ad01.en11.pdf
35
En la Propuesta de la Comisión se establecía en el art. 26 que: Cuando el presente Reglamento
establezca la aplicación de la ley de un Estado, se entenderá por tal las normas jurídicas
vigentes en ese Estado con exclusión de las normas de Derecho internacional privado. La en-
mienda 75 establecía: Cuando el presente Reglamento establezca la aplicación de la ley de un
Estado, se entenderá por tal las normas jurídicas vigentes en ese Estado con exclusión de las
normas de Derecho internacional privado, sin contar aquellas normas jurídicas del Derecho
internacional privado que remitan en su totalidad o en parte al Derecho de un Estado miem-
bro. No se acompaña de justificación
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 55

un Estado miembro, sea éste el del foro -reenvío de primer grado en el sentido tradi-
cional- o el de otro Estado miembro, en este caso sería un reenvío de segundo grado
no devolutivo, pues se aplicarían las normas materiales del Estado miembro desig-
nado. Cuanto a este reenvío de retorno a la europea, se admite también el reenvío de
segundo grado no devolutivo a la Ley de un tercer Estado, siempre que ésta se con-
sidere competente.36

No obstante, el reenvío no será de aplicación cuando la ley aplicable a la sucesión


haya sido elegida por el disponente, ex art. 22, ni cuando haya sido determinada en
aplicación del principio de los vínculos más estrechos (art. 21.2), ni respecto de la
validez formal de las disposiciones mortis causa realizadas por escrito (art. 27), ni
respecto de la validez formal de una declaración de aceptación o renuncia de la
herencia conforme a la ley de la residencia habitual del declarante (art. 28.b), ni
respecto de las disposiciones especiales que imponen restricciones especiales res-
pecto de determinados bienes.

3.4. Ámbito de la lex sucessionis

3.4.1. Reglas aplicables a cualquier tipo de sucesión.

Como hemos indicado el Reglamento milita en pro de la universalidad y la unidad


de la sucesión. La universalidad queda modulada por el juego de las exclusiones, en
los términos someramente analizados. El perímetro del principio de unidad de la
sucesión se traza en el artículo 23, precepto que no debe leerse como una enumera-
ción exhaustiva y cerrada de las cuestiones que comprende. Al margen de ello, su
exacta delimitación requiere una minuciosa consideración de los artículos 24, 25, 26,
29 y 30.

La regulación establecida en el art. 23 del Reglamento se inspira directamente en el


artículo 7 de la Convención de La Haya sobre la Ley Aplicable a las Sucesiones por
causa de Muerte, de 1 de agosto de 1989, si bien como se subraya en el informe del
MPI existen algunas desviaciones terminológicas, de consecuencias no desprecia-
bles, fruto del recurso dispar a las versiones francesa e inglesa de la citada Conven-

36
Artículo 34. Reenvío
1. La aplicación de la ley de un tercer Estado designada por el presente Reglamento se enten-
derá como la aplicación de las normas jurídicas vigentes en ese Estado, incluidas sus dispos i-
ciones de Derecho internacional privado en la medida en que dichas disposiciones prevean un
reenvío a:
a) la ley de un Estado miembro, o
b) la ley de otro tercer Estado que aplicaría su propia ley.
2. En ningún caso se aplicará el reenvío respecto de las leyes a que se refieren los artículos 21,
apartado 2, 22, 27, 28, letra b), y 30.
56 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

ción.37 No obstante, el Reglamento incluye en el ámbito de la lex sucessiones algu-


nos aspectos relativos a la administración de la herencia, que como es sabido cons-
tituye el objeto de la Convención sobre la administración internacional de las suce-
siones, hecha en La Haya el 2 de octubre de 1973.

En primer lugar, con las salvedades y precisiones que a continuación realizaremos,


se comprenden en el campo de aplicación de la lex sucessionis las diferentes fases de
la adquisición de la herencia: la apertura de la sucesión, la delación de la herencia, la
capacidad e incapacidad para suceder; las prohibiciones y sus efectos; la indignidad
para suceder, sus efectos y la eventual rehabilitación del indigno; la aceptación y la
repudiación de la herencia, capacidad, forma y plazos; la responsabilidad del here-
dero aceptante por las deudas del causante y por las cargas hereditarias, etc.

La inclusión en el ámbito de la lex sucessionis de las causas, el momento y el lugar


de apertura de la sucesión, plantea algunas dudas. En primer lugar, la inclusión de
las causas de la apertura de la sucesión resulta contradictoria con la exclusión del
ámbito material del Reglamento de la desaparición, la ausencia y el presunto falle-
cimiento de una persona física. La muerte de una persona como desencadenante de
la sucesión es una cuestión previa sometida a la conexión autónoma del estatuto
personal. Por otra parte, resulta superflua pues el apartado 1 del artículo 23 ha deja-
do suficientemente establecido que la lex sucessionis rige la apertura de la sucesión.

El artículo 23.2.b) regula algunos de los aspectos principales de la delación de la


herencia, en concreto la determinación de los causahabientes, herederos y legatarios,
incluidos los derechos sucesorios del cónyuge supérstite, la determinación de las
partes alícuotas respectivas de dichas personas y las obligaciones que les hayan sido
impuestas por el difunto, así como los demás derechos sobre la sucesión que tengan
su origen en el fallecimiento. De nuevo las relaciones entre ámbito material del
Reglamento y ámbito de la lex sucessionis requiere de un esfuerzo de precisión. En
concreto por lo que se refiere a la inclusión de los derechos sucesorios del cónyuge
supérstite, convendría aclarar que se trata de aquellos que según la ley aplicable no
traen causa del régimen económico matrimonial, excluido del Reglamento ex artí-
culo 1.3.d.

Quedarán sometidas a la lex sucessionis la capacidad para suceder y las causas espe-
cíficas de incapacidad para disponer o recibir, previsión que modula la exclusión del
artículo 1.3.b) y que resulta justificada desde cualquier punto de vista. En estrecha
relación con ello, la lex sucessionis regirá la desheredación y la indignidad para
suceder. Con ello tenemos que la lex sucessionis se aplica a las principales cuestio-
nes jurídicas que plantea la identificación de los llamados a la herencia: quiénes, en
qué orden, con qué extensión, bajo qué obligaciones impuestas por el difunto, etc.

37
Vid. MPI, Comments on the European Commission’s Proposal cit., parágrafo 169
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 57

Son relevantes dos órdenes de capacidades: la capacidad para ser llamado y la capa-
cidad para adquirir o suceder. La primera presenta dos vertientes, una subsumida en
la ley sucesoria que afecta a las prohibiciones legales y el momento de apreciación
de la capacidad, en cuanto ligadas al fenómeno hereditario, y la otra comprende las
llamadas incapacidades relativas, realmente prohibiciones legales a suceder a deter-
minadas personas (por ejemplo al notario autorizante del testamento). Los llama-
mientos condicionales, a favor de nondum concepti o de nascituri plantean proble-
mas de coordinación de la ley sucesoria con la ley personal del sucesor o incluso de
situación de los bienes.

La transmisión de los bienes y derechos que componen la sucesión a los herederos y


legatarios, incluidas las condiciones y los efectos de la aceptación de la sucesión o
del legado o la renuncia a los mismos quedan sometidas a la lex sucessionis, ex artí-
culo 23.2.e). Está prevista en el artículo 28 la aplicación alternativa de la ley de la
residencia habitual del heredero a la validez en cuanto a la forma de la aceptación o
la renuncia, incluida la declaración destinada a limitar la responsabilidad del here-
dero o del legatario, favor validitatem que nos parece justificado y saludable. Pero,
esta opción de política legislativa no obsta a la aplicación de la lex sucessionis a la
responsabilidad por las deudas de la sucesión. La capacidad concreta para aceptar y
adquirir es autónoma y conduce a la ley sucesoria, que rige para la concreta capaci-
dad hereditaria del causahabiente, ya sea sucesor a titulo universal o particular. Con
carácter general, existen dos sistemas de adquisición de bienes por el sucesor: la
successio in locum et in ius, que produce una subrogación en la misma posición del
causante, ultra vires, con confusión de patrimonios y la adquisitio per universitatem,
caracterizada por la responsabilidad cum viribus de las deudas del causante.

La transmisión de los bienes y derechos que componen la sucesión y los poderes de


los herederos, de los ejecutores testamentarios y otros administradores de la suce-
sión38 son cuestiones íntimamente ligadas, que quedan sometidas a la lex sucessio-
nis La ley aplicable a la sucesión regulará las facultades de las personas -herederos,
legatarios, ejecutores testamentarios o administradores- que pueden ser designados
para administrar y liquidar la sucesión, sin perjuicio de las normas especiales relati-
vas al nombramiento y facultades de los administradores de la herencia en ciertas
situaciones que se regulan en el art. 29.

38
Vid. RODRÍGUEZ BENOT, A., “La administración de la herencia en las sucesiones interna-
cionales: especial referencia al Derecho comunitario europeo”, Academia Sevillana del Nota-
riado, Tomo 19, 2009, pp. 253-304 y “La acreditación de la cualidad de administrador de una
herencia internacional: el certificado europeo de heredero”, en: VIÑAS, R. / GARRIGA, G.
(coords.), Perspectivas del Derecho sucesorio en Europa, cit., pp. 175-217; MARIOTTINI, C.,
“The internal and external dimensions in the harmonization of european conflict rules on the
administration of estates”, en: MALATESTA, A. / BARIATTI, S. / POCAR, F. (eds.), The
External Dimension of EC Private International Law in Family and Succession Matters, cit.,
pp. 375-383.
58 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

Como hemos visto anteriormente, la validez y los efectos de las liberalidades quedan
fuera del ámbito de aplicación del Reglamento y son regulados por el Reglamento
(CE) 593/2008 del Parlamento Europeo y el Consejo, de 17 de junio de 2008, sobre
la ley aplicable a las obligaciones contractuales (Roma I). Lo mismo sucede ocurre
con otros derechos y bienes creados o transmitidos por otros medios distintos de la
sucesión y con las denominadas ventajas parasucesorias (art. 1.3.f). No obstante, la
lex sucessionis determinará si una liberalidad, o cualquier otro acto inter vivo, que
tenga por efecto la adquisición inmediata de un derecho real o de un crédito, debe
estar sujeta a una obligación de imputación, reducción o toma en consideración en el
cálculo de las partes de la herencia según la ley sucesoria. Así resulta de lo dispuesto
en el artículo 23.2.j).

La solución adoptada nos parece satisfactoria pero incompleta. Satisfactoria porque


constituye un elemento esencial para garantizar la unidad del régimen jurídico suce-
sorio, especialmente en relación con las limitaciones y reservas. Incompleta porque
la aplicación de la lex sucessionis a la restitución de las liberalidades implica una
considerable incertidumbre para el donatario y para los terceros, que en el momento
de recibir la liberalidad ni sabían, ni podían saber cuál será la ley que regulará suce-
sión tras la muerte del donante.

La lex sucessionis rige la partición de la herencia (artículo 23.2.j), por la que en la


generalidad de los casos se extinguirá la comunidad hereditaria reconociendo a cada
heredero su porción en la sucesión. Entendemos incluida en la noción de partición de
la herencia las cuestiones relativas a las personas legitimadas para pedirla, la cues-
tión de la prohibición de indivisión y, en términos generales, todos los aspectos
relacionados con las tareas particionales, las acciones de recisión, lesión e invalidez,
formación de la masa hereditaria, la colación, la reducción de las donaciones inofi-
ciosas, la acción personal en garantía de evicción. Algunos de ellos, como la reduc-
ción de las liberalidades, expresa y singularmente contemplados.

La lex sucessionis concurrirá con la lex rei sitae, frente a la que cederá, para regular
los regímenes sucesorios particulares respecto de determinados inmuebles, empresas
u otras categorías especiales de bienes debido a su destino económico, familiar o
social cuando, según dicha ley, este régimen fuera aplicable con independencia de la
ley que rige la sucesión (art. 30). Pese a la dicción del precepto, el problema que se
plantea no es de naturaleza estrictamente sucesoria. A nuestro juicio, esta disposi-
ción aborda de manera incompleta, la cuestión de las normas rigurosamente impera-
tivas o leyes de policía, que merecerían un tratamiento inspirado en la solución del
artículo 9 del Reglamento 593/2008. Por otra parte, conduce a un fraccionamiento de
la sucesión en un supuesto legal demasiado inconcreto, que únicamente nos parece
admisible en el ámbito de las leyes de policía, reguladas por lo demás con una pers-
pectiva de conjunto. Esta excepción a la ley sucesoria debe ser interpretada restricti-
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 59

vamente y, en consecuencia, no abarca ni a las normas de conflicto que someten la


sucesión de los bienes inmuebles a una ley distinta a la que rige la de los bienes
muebles, ni las disposiciones relativas a las legítimas y demás reservas hereditária.39

La lex sucessionis concurrirá con la lex rei sitae para regular la sucesión vacante, ex
art. 33. La solución que se formula aspira a prever un resultado coherente, respe-
tando en todo momento el Derecho material de los Estados miembros. Respeto que
se logra reconociendo el derecho de un Estado miembro o de una entidad designada
por la ley de dicho Estado miembro a apropiarse de la parte del caudal relicto que se
encuentre situada en su territorio. La solución propuesta, directamente inspirada en
la Convención de La Haya sobre la ley aplicable a las sucesiones, únicamente
resuelve el problema de la sucesión vacante cuando la lex rei sitae prevé el derecho
de apropiación por parte del Estado donde se encuentren los bienes. Una solución
más correcta podría ser la de someter toda la sucesión a la lex rei sitae.

La cuestión de la transmisión de la propiedad de los bienes hereditarios plantea ar-


duos problemas en la relación entre la lex sucessionis y la lex rei sitae. Aquí nos
limitaremos a señalar que la exclusión de las cuestiones de derecho de la propiedad
del ámbito de aplicación del Reglamento no soluciona los problemas que se plantean
cuando la lex sucessionis reconoce al sucesor un derecho real, por ejemplo un usu-
fructo viudal, que es desconocido por la lex rei sitae. En esta situación, partiendo de
la primacía de la lex rei sitae en materia de derechos reales, respecto de los otorga-
dos por la lex sucessionis se establece en el art. 31 una regulación que prevé las
adaptaciones necesarias para evitar la frustración del empeño unificador para deter-
minar la ley aplicable a la sucesión, por un lado, y la frustración del sucesor que ve
reconocido un derecho, conforme a la ley sucesoria, del que no podrá disfrutar ni
ejercer porque en el Estado donde se sitúan los bienes es desconocido.

3.4.2. Reglas especiales para las disposiciones mortis causa

Para garantizar la seguridad jurídica tanto en los supuestos de disposición testamen-


taria como de pactos sucesorios, el Reglamento establece una regulación especial
respecto de su admisibilidad y validez material. Se trata de normas de aplicación de
las normas de conflicto que garantizan la aplicación uniforme del Reglamento detal-
lando los elementos que se consideran integrados en la noción de validez material,
en los que se incluyen la capacidad del disponente, la admisibilidad de la repre-
sentación para realizar las disposiciones mortis causa, las cuestiones relativas a la
voluntad o al consentimiento del disponente, las causas específicas que impidan

39
Cfr. Considerando 54.
60 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

disponer a favor de determinadas personas, las incapacidades absolutas, relativas y


las prohibiciones de suceder (art. 26).40

Al vincularse a las disposiciones mortis causa las cuestiones relativas a la capacidad,


la determinación de la ley aplicable plantea la necesidad de distinguir según el tipo
de disposición. Si bien el art. 1.2.b) contiene una exclusión genérica del ámbito
material de aplicación del Reglamento de la capacidad jurídica de las personas físi-
cas, el juego de los arts. 24, 25 y 26.1.a), implica que la capacidad del disponente
para realizar la disposición mortis causa, sea mediante pacto sucesorio (art. 25) o
mediante una forma distinta (art. 24), quede vinculada a la validez material y some-
tida a Ley rectora de la sucesión. No obstante, para los pactos sucesorios relativos a
la sucesión de varias personas se establece que su admisibilidad quedará sometida a
ley que hubiera sido aplicable respecto de cada una de ellas.

La lex sucessionis regula las limitaciones testamentarias, legítimas, reservas etc., en


suma, la parte de libre disposición, las porciones de bienes de que el testador o los
contratantes no pueden disponer y las demás restricciones sobre la libertad de dispo-
ner por causa de muerte, incluidas las atribuciones asumidas sobre la sucesión por
una autoridad judicial o por otra autoridad en favor de personas próximas al difunto.
Se trata, sin duda, de uno de los mayores aciertos del Reglamento, fruto de un inten-
so trabajo para lograr el consenso.

En suma, la validez, la interpretación, la modificación y la revocación de una dispo-


sición por causa de muerte, excepto su validez en cuanto a la forma se regulan por la
lex sucessionis. En cuanto a las cuestiones incluidas entendemos que lo son tanto en
su aspecto sustantivo, como en lo relativo a la legitimación, en especial para solicitar
la revocación o la declaración de invalidez.

3.5. Validez formal de las disposiciones mortis causa

En la Propuesta de la Comisión no se contenía ninguna disposición sobre la forma de


las disposiciones mortis causa.41 La calificación de un requisito como atinente al

40
Vid. Considerandos 48, 49 y 50.
41
El Considerado (19) de la Propuesta se limitaba a señalar que: La validez en cuanto a la forma
de las disposiciones por causa de muerte no se regula en el Reglamento. Para los Estados
miembros que lo hayan ratificado, se rige en su ámbito de aplicación por las disposiciones del
Convenio de La Haya, de 5 de octubre de 1961, sobre los conflictos de leyes en materia de
forma de las disposiciones testamentarias. Sorprendía tan escueta justificación máxime si tene-
mos en cuenta que la cuestión fue expresamente sometida a consulta y recibió merecida y razo-
nada respuesta por la mayor parte de las instituciones.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 61

fondo o a la forma no siempre resulta fácil;42 por ello, para impedir que se sacrifi-
case el esfuerzo armonizador que lleva acabo el Reglamento, ante la critica unánime
de tal carencia de regulación, finalmente se recoge en el art. 27 una norma de con-
flicto, inspirada en el Convenio de la Haya sobre los conflictos de leyes en materia
de formas testamentarias de 5 de Octubre de 1961, que consagra una solución uni-
forme inspirada en el favor validitatem, aplicable a las disposiciones mortis causa
realizadas por escrito.

Se consideran cuestiones de forma las disposiciones jurídicas que limiten las formas
admitidas de disposiciones mortis causa por razón de edad, nacionalidad o cuales-
quiera otras condiciones personales del testador o de alguna de las personas cuya
sucesión sea objeto de un pacto sucesorio. También se consideran cuestiones de
forma la cualificación exigida a los testigos requeridos para la validez de las dispo-
siciones mortis causa.

Una disposición mortis causa realizada por escrito será válida si se admite como tal
por cualquiera de las siguientes leyes:

a) la del Estado en que se realizó la disposición o se celebró el pacto suceso-


rio;
b) la del Estado cuya nacionalidad poseyera el testador, o al menos una de las
personas cuya sucesión sea objeto de un pacto sucesorio, bien en el momen-
to en que se realizó la disposición o en que se celebró el pacto, bien en el
momento del fallecimiento;
c) la del Estado en el cual el testador, o al menos una de las personas cuya
sucesión sea objeto de un pacto sucesorio, tuviera su domicilio, bien en el
momento en que se realizó la disposición o en que se celebró el pacto, bien
en el momento del fallecimiento. La determinación de si el testador o cual-
quiera de las personas cuya sucesión sea objeto de un pacto sucesorio
tenían su domicilio en un Estado miembro concreto se regirá por la ley de
ese Estado.
d) La del Estado en el cual el testador, o al menos una de las personas cuya
sucesión sea objeto de un pacto sucesorio, tuviera su residencia habitual,
bien en el momento en que se realizó la disposición o en que se celebró el
pacto, bien en el momento del fallecimiento.
e) Respecto de los bienes inmuebles, del Estado en el que estén situados.

42
Vid. R. ZIMMERMANN: Testamentsformen: »Willkür« oder Ausdruck einer Rechtskultur?,
RabelsZ, 76 (2012), pp. 471-508.
62 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

3.6. La reserva del orden público

La reserva del orden público, recogida en el artículo 33 del Reglamento con una
fórmula inspirada directamente en el artículo 18 de la Convención de La Haya sobre
la ley aplicable a las sucesiones, merece algunas consideraciones. En primer lugar la
regulación del orden público en el Reglamento se ajusta a la regulación establecida
en otros instrumentos europeos, por ejemplo, art. 21 del Reglamento Roma I y art.
26 del Reglamento Roma II. De esta forma, se contribuye a la construcción de una
Parte general del Derecho internacional privado de la UE. En segundo lugar, nos
parece que los principios de orden público internacional que justifiquen la evicción
de la ley extranjera, no son ni deben ser únicamente los del foro. Como se despende
del Considerando 58 habrá que atender también a los Derechos fundamentales de la
Unión Europea.43

III. Competencia Internacional

Las sucesiones internacionales plantean en numerosas ocasiones cuestiones


litigiosas y no litigiosas que deben ser decididas por los tribunales de Justicia o por
otras autoridades públicas.

1. Competencia de los Tribunales españoles

La competencia judicial internacional de los tribunales españoles se determina con


arreglo al art. 22 LOPJ. Según dicho precepto, los tribunales españoles son
competentes en materia de sucesiones cuando las partes se hayan sometido expresa
o tácitamente a nuestros tribunales pues los litigios sucesorios versan, generalmente,
sobre materias patrimoniales, que son disponibles por las partes.44 También serán
competentes cuando el demandado tenga su domicilio en España (art. 22.2 LOPJ). Y
en defecto de estos foros generales, cuando el causante haya tenido su último

43
En circunstancias excepcionales, los tribunales y otras autoridades competentes que sustancien
sucesiones en los Estados miembros deben, por consideraciones de interés público, tener la
posibilidad de descartar determinadas disposiciones de la ley extranjera cuando, en un caso
concreto, la aplicación de esas disposiciones sea manifiestamente incompatible con el orden
público del Estado miembro de que se trate. Sin embargo, los tribunales u otras autoridades
competentes no deben poder aplicar la excepción de orden público para descartar la ley de
otro Estado ni negarse a reconocer o, en su caso, aceptar, o ejecutar una resolución dictada,
un documento público o una transacción judicial de otro Estado miembro, cuando obrar así
sea contrario a la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea, en particular a
su artículo 21, que prohíbe cualquier forma de discriminación.
44
Vid. CARRASCOSA GONZÁLEZ, Prontuario cit., pp. 2 y ss.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 63

domicilio en territorio español,45 o cuando el causante posea bienes inmuebles en


España (art. 22.3, inciso 10 in fine LOPJ).46

Una vez acreditado que los tribunales españoles poseen competencia judicial
internacional en un caso sucesorio, la precisión del tribunal español territorialmente
competente se lleva a cabo con arreglo al art. 52.4 LEC, precepto que utiliza como
foros de competencia territorial el último domicilio del finado en España, o en su
defecto, el lugar donde estuviere la mayor parte de sus bienes, a elección del
demandante.47

Respecto de los actos de jurisdicción voluntaria en que deben actuar nuestros


tribunales, tales como la elevación a escritura pública de testamento o codicilo hecho
de palabra otorgado sin intervención de Notario. (arts. 1943-1955 LEC 1881); la
apertura de testamento cerrado y protocolización de memorias testamentarias (arts.
1956-1979 LEC 1881); la adveración y protocolización de testamentos específicos
del algunos Derechos Forales, la declaración judicial de herederos, la
protocolización de los testamentos ológrafos. La competencia judicial internacional
de los tribunales españoles se decide, en relación con los actos sucesorios de
jurisdicción voluntaria, con arreglo a los criterios contenidos en el art. 22 LOPJ, si
bien, el foro de la sumisión tácita y el foro del domicilio del demandado en España,
no pueden operar en relación con los actos de jurisdicción voluntaria, pues en estos
casos nos hayamos ante procedimiento sin contienda ni partes contrapuestas.

2. Competencia de los Tribunales portugueses

La competencia judicial internacional de los tribunales portugueses se determina con


arreglo a los arts. 65 e 65-A del CPC. El art. 65 determina que los tribunales
portugueses son internacionalmente competentes en causas emergentes de
situaciones privadas internacionales con cualquiera de los siguientes fundamentos:
a) Tener el reo o algunos de ellos domicilio en territorio portugués, salvo tratando-se
de acciones que respecten a acciones relativas a derechos reales o personales de gozo
sobre inmuebles no situados en territorio portugués (actor sequitur forum rei); b)
localizar-se en territorio portugués el elemento decisivo de competencia territorial de
acedo con las regla de competencia establecidas en la ley portuguesa; c) haber sido
practicado en Portugal el acto o uno de los constitutivos de la causa de pedir en la
acción (principio de la causalidad). Además, los tribunales portugueses son
internacionalmente competentes cuando sea ese el medio necesario para evitar que el

45
SAP Madrid 23 junio 2010.
46
STS de 25 de junio de 2008.
47
SAP Valencia 14 octubre 2008.
64 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

derecho en causa se quede sin tutela judicial (principio de la necesidad o forum


necessitatis), en situaciones de conflicto negativo de jurisdicciones.

El art. 65-A dispone sobre los casos de competencia exclusiva de los tribunales
portugueses.

Una vez determinado que los tribunales portugueses poseen competencia judicial
internacional en un caso sucesorio, la precisión del tribunal portugués
territorialmente competente se lleva a cabo con arreglo al art. 77 del CPC, precepto
que hace una distinción entre las situaciones en que la apertura de la sucesión tuvo
lugar en territorio portugués (nº 1), y para los casos en que tuvo lugar en territorio
extranjero (nº 2).

3. Competencia de los Notarios

Los Notarios son competentes en relación con numerosísimos actos de jurisdicción


voluntaria en materia sucesoria, tanto en supuestos de sucesión testada – otorga-
miento de testamento, elevación (en España) a escritura pública de testamento o
codicilo hecho de palabra, etc. – como de sucesión intestada – declaración de here-
deros ab intestato, actas de notoriedad para la declaración de herederos- o comunes a
ambas -aceptación de herencia, renuncia a la herencia, partición en escritura pública
etc.-

En España, tras la reforma de la Ley de Enjuiciamiento Civil de 1881 por la Ley de


30 de abril de 1992, la competencia para la declaración de herederos es exclusiva del
notario, cuando aquéllos corresponden a los tres primeros órdenes sucesorios, des-
cendientes, ascendientes, o cónyuge viudo. Al juez le corresponde, en vía no conten-
ciosa, esa declaración sólo cuando los herederos llamados pertenezcan al orden cola-
teral, o en los demás supuestos en que el llamamiento no es a favor de parientes del
testador. No obstante, cualquiera que sea la autoridad o funcionario competente, por
razón del parentesco de los llamados por Ley, la naturaleza del expediente es la
misma.

La dualidad en cuanto a la autoridad o funcionario competente para instruir el proce-


dimiento determina también una dualidad normativa. La regulación del procedi-
miento se encuentra dispersa en varia normas, fundamentalmente en la Ley de
Enjuiciamiento Civil, en la Ley de Enjuiciamiento Civil de 1881 y en el Reglamento
Notarial (art. 209 bis), que ofrecen el cuadro normativo básico de referencia, sin
perjuicio que en ciertos aspectos puedan y deban integrarse recíprocamente.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 65

El art. 22 LOPJ es inaplicable para determinar la “competencia internacional” de los


Notarios españoles.48 De acuerdo con el principio de libre elección de Notario, ex
art. 3.II del Reglamento Notarial, el interesado puede acudir al Notario que desee y
rogar su intervención para el acto sucesorio de jurisdicción voluntaria del que se
trate. Esta regla de competencia interna puede extenderse también a casos
internacionales. En consecuencia, cualquier persona, aunque no tenga bienes ni
domicilio en España, siempre que el Notario actúe en su demarcación notarial (art.
3.IV y 116 RN), puede otorgar testamento notarial en España, renunciar o aceptar
una herencia, realizar la partición, etc.

En las actas de notoriedad de declaración de herederos a las que se refiere el art. 979
LEC 1881, esto es, cuando los herederos son hijos, descendientes, padres o
ascendientes del causante o el cónyuge viudo, el Notario competente está
determinado por el art. 209 bis Reglamento Notarial. En su virtud, es competente
para autorizar el acta de declaración de herederos cualquiera de los Notarios que sea
competente para actuar en la población donde el causante hubiera tenido su último
domicilio en España. Si el causante nunca tuvo domicilio en España, será
competente el Notario correspondiente al lugar de su fallecimiento. Si el causante
hubiere fallecido fuera de España, será competente el Notario que corresponde al
lugar donde estuviere parte considerable de los bienes.49.

En Portugal, la competencia para la declaración de herederos no es exclusiva del


notario. Tanto se pude hacer ante notario como en el llamado “balcão de heranças”
que funciona en la “Conservatoria do Registro Civil”. De acuerdo con el principio de
libre elección de Notario, el interesado puede acudir al Notario que desee y solicitar
su intervención para el acto sucesorio de jurisdicción voluntaria del que se trate. Esta
regla de competencia interna puede extenderse también a casos internacionales.

Recientemente fue aprobada la ley 23/2013, de 5 de marzo dedicada al “regime


juridico do processo de inventário”, que entrara en vigor el próximo día 2 de
septiembre de 2013. Son competentes los notarios con sede en el municipio del lugar
de la apertura de la sucesión. En los casos en que dicha apertura tuviera lugar en el
extranjero, habrá que observar lo siguiente: a) Si el de cuis haya dejado bienes en
Portugal, será competente para la declaración de herederos la Notaria del municipio
de la situación de los bienes inmuebles, e de la mayor par te de ellos, y si no hubiere
inmuebles del municipio donde se encuentren la mayor parte de los bienes muebles.

48
Vid. CARRASCOSA GONZÁLEZ, Prontuario cit., p. 8.
49
SAP A Coruña 22 septiembre 2010. Vid. CARRASCOSA GONZÁLEZ, Prontuario cit., p. 8.
Vid. Resolución de la DGRN de 18 de enero de 2005; CALVO VIDAL, I. A.: «Acta de noto-
riedad de declaración de herederos abintestato de un causante extranjero. Comentario sobre la
Resolución de la DGRN de 18 de enero de 2005». En Revista Española de Derecho Interna-
cional, vol. LVII-2005, núm. 2, julio-diciembre. Madrid, págs. 1.028-1.033.
66 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

b) caso el fallecido no hubiere dejado bienes en Portugal, es competente para la


declaración de herederos la Notaria situada en el municipio del domicilio del
habilitando.

4. Las soluciones del Reglamento

Las reglas de competencia internacional que se establecen en el Reglamento se ins-


piran en los principios de unidad y universalidad de la sucesión y gravitan sobre la
centralidad de la residencia habitual y el reconocimiento de la autonomía de la vo-
luntad, limitada y controlada, completados con la previsión de un foro subsidiario,
fundado en la situación de los bienes y de un foro de necesidad. Antes de analizarlas
hemos de tener presente que la definición de tribunal que se contiene en el art. 3
tiene un sentido amplio y respetuoso con los diferentes sistemas para sustancias las
sucesiones que rigen en los Estados miembros, comprendiendo en nuestro caso no
solo a los órganos judiciales en sentido propio, que ejercen funciones jurisdicciona-
les, sino también a los notarios en los supuestos en que ejercen tal tipo de funciones,
que acabamos de reseñar.50

El sistema de foros de competencia internacional del Reglamento parte de la


competencia general de los tribunales del Estado miembro en el que el causante
tuviera su residencia habitual en el momento del fallecimiento. Esta competencia
comprende la totalidad de la sucesión (art. 4).51

No obstante se recoge un principio de unidad entre forum y ius por el que se permite
el juego de la sumisión expresa para los supuestos en que se verifiquen dos condi-
ciones. En primer lugar que el causante tuviese una nacionalidad distinta a la del
Estado de residencia y en segundo, que el causante hubiese elegido como aplicable a
la sucesión la ley de su nacionalidad o de su residencia siempre que ésta elección
recaiga en la Ley de un Estado miembro. En estos casos, las partes en el litigio suce-
sorio o los interesados en un acto de jurisdicción voluntaria podrán acordar que un

50
Vid. Considerando 20.
51
Vid. ALVAREZ TORNÉ, M., Criterios de determinación de la competencia internacional
ensupuestos de sucesiones en el ámbito de la UE, http://miami.uni-muens-
ter.de/servlets/DerivateServlet/Deri vate-5848/diss_alvarez_torne.pdf; GAUDEMET-TALLON
H., “Les règles de compétence dans la proposition de règlement communautaire sur les succes-
sions”, en: KHAIRALLAH, G. / REVILLARD, M., Perspectives du droit des successions eu-
ropéennes et internationales: Étude de la Proposition de Règlement du 14 octobre 2009 , París,
2010, pp.121-134; FORNER DELAYGUA, J. “Consideraciones acerca de la regulación de la
competencia internacional de autoridades en un futuro Reglamento comunitario de Derecho In-
ternacional Privado relativo a las sucesiones por causa de muerte”, en R. VIÑAS y G.
GARRIGA (cords.), Perspectivas del Derecho sucesorio en Europa, Barcelona, 2009, pp. 83-
109.
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 67

tribunal o los tribunales de dicho Estado miembro tengan competencia exclusiva


para sustanciar cualquier causa en materia de sucesiones (art.5.1).

El acuerdo relativo a la elección del foro constará por escrito, con expresión de su
fecha, y será firmado por las partes interesadas. Se considerará hecha por escrito
toda comunicación efectuada por medios electrónicos que proporcione un registro
duradero del acuerdo (art. 5.2).

El carácter exclusivo de la competencia acordada, a diferencia de lo que sucede en


otros Reglamentos europeos, se refuerza con la imposición al juez que conociera de
un asunto sucesorio del deber de abstenerse (art. 6.b).

Junto a la sumisión expresa, la autonomía de la voluntad de las partes se reconoce


también como foro de competencia judicial internacional en un supuesto que si bien
no se regula como sumisión tácita, presenta perfiles muy similares a ésta al regularse
en el art. 7.c) la competencia de los tribunales del Estado miembro cuya Ley fue
elegida por el causante si las partes del procedimiento admiten expresamente la
competencia del tribunal al que se ha sometido el asunto.

La unidad forum-ius en los casos en que el causante ha elegido la Ley aplicable a la


sucesión determina además la posibilidad de que el tribunal del Estado miembro de
la residencia habitual del causante se inhiba – abstenha – a instancia de una de las
partes en el procedimiento, si considera que los tribunales del Estado miembro cuya
ley fue elegida están en mejor situación para pronunciarse sobre la sucesión, habida
cuenta de las circunstancias prácticas de esta, tales como la residencia habitual de las
partes y la ubicación de los bienes (art. 6. a). Se acoge así el forum non conveniens,
aunque de manera más imprecisa que en el art. 15 del Reglamento 2201/2003 y
prohibido en el ámbito del Reglamento 44/2001.52

La potencia de la autonomía de la voluntad como fundamento de la competencia


judicial y de la correlación forum-ius se manifiesta también en los supuestos en que
un tribunal haya incoado de oficio un procedimiento de sucesión, sea en virtud del
foro de la residencia del causante o en virtud del foro subsidario del lugar de situa-
ción de los bienes, al establecer el art. 8 que dicho tribunal sobreseerá la causa si las
partes en el procedimiento acuerdan resolver la sucesión extrajudicialmente en el
Estado miembro cuya ley fue elegida por el causante.

Como foro subsidiario, el art. 10 regula la competencia de los tribunales del Estado
miembro en el que se encuentren los bienes de la herencia. El forum rei sitae se
reconoce con alcance general o con alcance limitado. Tendrá alcance general, fun-
dando la competencia judicial de los Tribunales del Estado miembro donde radiquen

52
Vid. STJUE de 1 de marzo de 2005, C-281/02, Owusu.
68 PILAR BLANCO-MORALES LIMONES & ANA LUÍSA BALMORI

los bienes para pronunciarse sobre el conjunto de la sucesión siempre que el cau-
sante poseyera la nacionalidad de dicho Estado miembro en el momento del falleci-
miento, o, en su defecto, el causante hubiera tenido previamente su residencia habi-
tual en dicho Estado miembro, siempre y cuando, en el momento en que se someta el
asunto al tribunal, no haya transcurrido un plazo de más de cinco años desde el cam-
bio de dicha residencia habitual.

Con un alcance limitado, el forum rei sitae fundamentará la competencia judicial


cuando no se verifique ninguna de estas condiciones si bien dicha competencia sólo
alcanzará para pronunciarse sobre dichos bienes.

La virtualidad del forum rei sitae se desempeña también en una regla de competen-
cia negativa fundada en un principio de buena administración de justicia que tiene
por objetivo evitar resoluciones claudicante por la que, a instancia de una de las
partes, cuando la herencia del causante comprenda bienes situados en un tercer Esta-
do, el tribunal que sustancie la sucesión podrá no pronunciarse sobre uno o más de
dichos bienes, en caso de que quepa esperar que su resolución respecto de los mis-
mos no vaya a ser reconocida ni, en su caso, declarada ejecutiva en ese Estado. Sin
perjuicio del derecho de las partes a limitar el alcance de los procedimientos en vir-
tud de la ley del Estado miembro del tribunal que conozca del asunto (art. 12).

Finalmente, el Reglamento establece un forum necesitatis cuando ningún tribunal de


un Estado miembro sea competente con arreglo a otras disposiciones del Regla-
mento, los tribunales de un Estado miembro podrán resolver, en casos excepciona-
les, sobre la sucesión si resultase imposible o no pudiese razonablemente iniciarse o
desarrollarse el proceso en un tercer Estado con el cual el asunto tuviese una vincu-
lación estrecha y si el asunto presenta una vinculación suficiente con el Estado
miembro del tribunal que vaya a conocer de él.

Como reglas de competencia especiales, el Reglamento contempla la aceptación de


la herencia, de un legado o de la legítima o renuncia a los mismos y las medidas
provisionales. Para las primeras arbitra la competencia de los tribunales del Estado
miembro de la residencia habitual de cualquier persona que, con arreglo a la ley
aplicable a la sucesión, pueda efectuar ante un tribunal una declaración relativa a la
aceptación de la herencia, de un legado o de la parte legítima o la renuncia a los
mismos, o una declaración de limitación de su responsabilidad respecto a las deudas
y demás cargas de la herencia, siempre que esas declaraciones, con arreglo al Dere-
cho de dicho Estado miembro, puedan hacerse ante un tribunal (art. 13).

Las medidas provisionales y cautelares podrán solicitarse a los tribunales de un


Estado miembro medidas con arreglo a la Ley de dicho Estado (art. 19).
LAS SUCESIONES INTERNACIONALES Y SU RÉGIMEN JURÍDICO 69

La competencia judicial ha de comprobarse de oficio, el tribunal de un Estado


miembro requerido para conocer de un asunto relativo a una sucesión mortis causa
para el cual no sea competente en virtud del Reglamento se declarará de oficio
incompetente (art. 15). Para garantizar los derechos de la defensa, en los procedi-
mientos contradictorios y en caso de rebeldía del demandado con residencia habitual
en un Estado distinto del Estado miembro donde se ejercitó la acción, el Tribunal
habrá de suspender el procedimiento en tanto no se acredite que el demandado ha
podido recibir el escrito de demanda o documento equivalente con tiempo suficiente
para defenderse o que se ha tomado toda diligencia a tal fin (art. 16).
Perspetivas do Direito Internacional da Concorrência:
a necessidade de uma abordagem alternativa
aos acordos de cooperação e à convergência
de sistemas de direito da concorrência
MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES *

1. Introdução

Numa era de globalização, de liberalização do comércio e de desregulação de indús-


trias específicas, as autoridades da concorrência confrontam-se com novos desafios
de forma a proteger a concorrência nacional assim como a concorrência internacio-
nal.

Com empresas a operar em vários países, esvanecendo-se as fronteiras e aumentado


o comércio transfronteiras, novas estratégias devem ser desenvolvidas por forma a
ultrapassar as ameaças aos mercados internos resultantes de comportamentos anti-
concorrenciais ocorridas no estrangeiro.

Embora soluções como a "Doutrina dos Efeitos" ou acordos bilaterais permitam,


embora imperfeitamente, os países protegerem o seu mercado interno, não existem
leis salvaguardando a economia global e a concorrência internacional. Impõe-se
então o estabelecimento de um regime de direito internacional da concorrência dos
países, com o objetivo de dirimir os conflitos originados pelo comportamento anti-
concorrencial através das fronteiras e ajudar os países em desenvolvimento a alcan-
çar os padrões dos países Ocidentais.

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 71-97.

* Professora Associada, ISMAT.


72 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

Entre várias abordagens institucionais existem duas que apresentam um interesse


significativo. Por um lado a Organização Mundial do Comércio que pode comportar
um organismo de supervisão de matérias de concorrência internacional incluindo
eventualmente um código da concorrência harmonizado, enquanto por outro lado a
Rede Internacional da Concorrência que foi estabelecida para lidar com as matérias
da concorrência global através de uma política de coordenação.

Este trabalho é constituído por uma primeira parte em que se abordam as razões que
justificam a necessidade de adoção de um regime internacional da concorrência e se
apresenta uma panorâmica das duas instituições mais adequadas para contribuir para
o surgimento do referido regime através de um sistema de cooperação que constitui
uma via crucial.

Na segunda parte procede-se uma análise das abordagens contemporâneas relativas à


existência de um acordo multilateral vinculativo funcional para a implementação de
uma regulação global da concorrência. A tónica incide sobre a previsão nova de um
de acordo multilateral, o caminho do compromisso, que originará um regime inter-
nacional da concorrência. Defendemos assim, o regime global vinculativo proposto
por Gerber, apto a combater com eficácia as práticas restritivas nos mercados glo-
bais.

A análise crítica a que procedemos acerca da viabilidade da adoção de um acordo


multilateral vinculativo consubstancia-se na abordagem dos fatores que sendo alguns
ambivalentes, podem influenciar negativamente a implementação de um regime
internacional da concorrência.

A análise destes fatores faz-nos concluir que estão reunidos a maior parte dos pres-
supostos necessários para a elaboração de um código multilateral vinculativo de
direito da concorrência internacional a médio prazo.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 73

II. Prospetivas para uma Estratégia Reguladora Global

1. A necessidade de um direito internacional da concorrência

Tradicionalmente os problemas suscitados à política e ao direito da concorrência


eram resolvidos com base numa aplicação do direito interno do país em que ocorria
a prática restritiva da concorrência.

Com a globalização das atividades empresariais e na ausência de uma política e um


direito internacional da concorrência, as autoridades da concorrência confrontaram-
se com práticas que se relacionavam com muitas nações.

Esta situação originou a aplicação extraterritorial do direito interno da concorrência


que apresenta deficiências evidentes porque não faculta uma base consistente para
justificar a interferência de um direito da concorrência interno nas práticas restritivas
regulado por outro direito da concorrência como o evidenciou o litígio Laker e Ura-
nio.1

O número de atividades de empresas com dimensões internacionais torna imperativa


a cooperação entre as autoridades da concorrência dos diversos países para que as
medidas adotadas sejam efetivas.

Conforme as estratégias das empresas se tornam internacionais, os mesmos com-


portamentos ou transações tem repercussões em vários Estados e as decisões adota-
das por cada autoridade da concorrência embora limitada ao território do respetivo
Estado, pode ter repercussões significativas relativamente a outras jurisdições.

A vaga de fusões que ocorreu nos anos 90 fez relevar todos os problemas associados
à fragmentação dos direitos da concorrência nacionais e convenceu as entidades
relacionadas com a concorrência dos países mais desenvolvidos da necessidade de
uma cooperação reforçada assim como de uma convergência mais consistente do
direito substantivo e adjetivo relativamente ao controlo das fusões de empresas.
Em alguns casos, os países que cooperavam em matérias relativas a concorrência
negociaram acordos bilaterais de cooperação.

Existe consenso no sentido de estes acordos serem um sucesso.

Os termos de muitos destes acordos de segunda geração evidenciam uma profunda


interiorização relativamente à cooperação a nível internacional. O facto de certos

1
Apresenta casos práticos relativamente a esta temática, MARTIN D. TAYLOR, International
Competition Law: a New Dimension for the WTO?, Cambridge, Cambridge University Press,
2006, pp. 56-59.
74 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

países terem centrado a sua atenção e encetado um número crescente de acordos


bilaterais evidencia a importância associada a este tipo de cooperação, um facto que
é consideravelmente reforçado ao longo dos anos pelos sucessivos guias publicados
pela OCDE sobre o tópico publicados em 1967, 1979, 18862 e as Recomendações de
1995.3

Existem não obstante limitações, lacunas e criticas aos acordos bilaterais de coope-
ração.

Com efeito uma das lacunas dos acordos bilaterais de cooperação relaciona-se com a
exclusão de cláusulas sobre troca de informação confidencial. As autoridades da
concorrência não estão autorizadas a partilhar informações confidenciais relativa-
mente a atividades comerciais. A ausência de possibilidade da parte das autoridades
em trocar informação confidencial pode afetar os interesses das empresas investiga-
das por se poder tornar inviável um inquérito rigoroso. 4

Os acordos bilaterais não atribuem competência às autoridades da concorrência para


chegarem a acordo ou adotarem regras em matérias extremamente complexas como
o conglomerado de fusões, restrições verticais em acordos celebrados entre não
concorrentes e abuso de posição dominante. Assim é muito provável que as questões
não sejam resolvidas na ausência de um mecanismo ou procedimento consagrado no
acordo bilateral de cooperação.5

O rápido desenvolvimento das fusões globais suscita novos desafios aos responsá-
veis pela política da concorrência e à doutrina que se consciencializam que proble-
mas concorrenciais globais impõem soluções globais por parte do direito da concor-
rência.

2
Cfr. OECD, Recommendation of the Council for Cooperation between Member Countries in
Areas of Potencial Conflict between Competition and Trade Policie, 1986. A Recomendação de
1986 reviu versões anteriores emitidas em 5 de outubro de 1967 e 25 de setembro de 1979.
3
Cfr. OECD, Revised Recommendation of the Council Concerning Cooperation between mem-
ber Countries on Anti-Competitive Practices Affecting International Trade, 1995.
4
Cfr. para mais desenvolvimentos sobre as consequências negativas da ausência de partilha de
informações confidenciais por parte das autoridades da concorrência, MAHER M. DABBAH,
International and Comparative Competition Law, Cambridge, Cambridge University Press,
2010, pp. 517-520.
5
Cumpre sublinhar que os mecanismos de cooperação são diversos, vide, relativamente aos
cartéis, OECD, Global Fórum on Competition, Inproving International Co-Operation in Cartel
Investigations, Background Note, 2012, pp. 3-40. No que se refere às fusões em que se salienta
a perda de soberania e do controlo sobre o mercado interno, vide ARIEL EZRACHI, Merger
Control and Cross Border Transactions: A Pragmatic View on Cooperation, Convergence and
What’s Between, The University of Oxford, Centre for Competition Law and Police, Working
Paper (L) 05, 2005.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 75

No decurso do processo predominantemente pró competitivo da globalização, as


práticas privadas restritivas também aumentam e suscitam problemas intensos de
concorrência internacional. Entre eles, os cartéis internacionais hard core como o
famoso cartel das Vitaminas (fixação de preços e partilha de mercados de vitaminas
em 12 mercados no mundo entre 13 empresas da Europa e do Japão) aumenta o
número e a gravidade das práticas restritivas gerando danos massivos para os con-
sumidores em todo o mundo.6 O número de fusões com efeitos transfronteiras
aumentou durante a última vaga nos últimos anos da década de noventa e desde
então a percentagem de fusões internacionais em relação ao total das fusões tem-se
mantido elevada.7 Adicionalmente, empresas com posições dominantes nos merca-
dos mundiais foram acusadas de abusar do seu poder de mercado. O caso da Micro-
soft representa um processo exemplar.8

Não obstante as ações anticoncorrenciais terem uma dimensão global as políticas da


concorrência permanecem numa focalização nacional. A ausência de um regime
internacional origina um número significativo de problemas graves de que se dão
aqui apenas alguns exemplos.

Conflitos entre diferentes países surgem conforme as autoridades nacionais da con-


corrência protegem principalmente os seus mercados internos sem tomarem em
consideração os efeitos da execução da sua política nas economias estrangeiras. Os
conflitos entre os Estados Unidos e a União Europeia nos casos Boeing/Mc Dinnel
Douglas e GE/Honeywell constituem os exemplos mais evidentes de um amplo
número de conflitos jurisdicionais.9 Uma variante estratégia mais agressiva de polí-

6
Cfr. SIMON EVENETT / MARGARET C. LEVENSTEIN / VALERIE Y. SUSLOW, Inter-
national Cartel Enforcement: Lessons from the 1990s, The World Economy, 24 (9), 2001,
pp. 1221-1245, HARRY FIRST, The Vitamins Case: Cartel Prosecutions and the Coming
of International Competition Law, Antitrust Law Journal, 68 (3), 2001, pp. 711-734, JOHN M.
CONNOR, Global Antitrust Prosecutions of Modern International Cartels, Journal of Indus-
try, Competition, and Trade, 4 3. 2004, pp. 239-267.
7
Cfr. relativamente ao desenvolvimento das fusões internacionais FREDERIC L. PRYOR,
Dimensions of the Worldwide Merger Boom. Journal of Economic Issues, 35 (4), 2001 pp.
825-840.
8
Cfr. FRANKLIM FISHER M. / L. RUBINFELD, U.S. v. Microsoft: An EconomicAnalysis, The
Antitrust Bulletin, 46 (1), 2001, pp. 1-69, RICHARD GILBERT / MICHAEL KATZ, An
Economist’s Guide to U.S. v. Microsoft. The Journal of Economic Perspectives, 15 (2), 2001,
pp. 25-44, WARREN GRIMES, The Microsoft Litigation and Federalism in U.S. Antitrust En-
forcement: Implications for International Competition Law, in JOSEF DREXEL (Coord.),
The Future of Transnational Antitrust: From Comparative to Common Competition Law,
2003, Berne, Staempfli & Kluwer, pp. 237-258, MIGUEL MOURA E SILVA, O Abuso de
Posição Dominante na Nova Economia, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 469 a 547.
9
Cfr. relativamente ao caso GE/Honeywell, GOTZ DRAUZ, Unbundling G E /Honeywell: The
Assessment of Conglomerate Mergers under EC Competition Law, in BARRY E. HAWK,
(Coord.), Annual Proceedings of the Fordham Corporate Law Institute, Conference on In-
ternational Antitrust Law & Policy, Nova Iorque, Juris, 2002, pp. 183-201, WILLIAM J.
76 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

tica da concorrência é uma estratégia deliberada de "beggar -thy -neighbor" para


aumentar o bem-estar nacional a expensas do bem-estar estrangeiro /internacional.10
Os países em desenvolvimento enfrentam ameaças das empresas multinacionais que
cartelizam ou monopolizam seus mercados. Com muita frequência até os que dis-
põem de um regime da concorrência implementável não dispõem de poder suficiente
em termos de importância do mercado interno de forma a impor a obediência ás
multinacionais às suas leis.11

A proliferação de regimes supra citada amplia um outro aspeto da internacionaliza-


ção, a (não) aplicação de regras de concorrência por parte de uma jurisdição pode
produzir efeitos sobre outra jurisdição quer tenha ou não adotado um regime de
concorrência. Essas externalidades podem ser significativas. Proibições de práticas
restritivas da concorrência consagradas numa dada jurisdição podem afetar a possi-
bilidade ou a motivação de empresas estrangeiras entrarem ou expandirem-se num
mercado estrangeiro. Por exemplo, se um monopolista local integra acordos de dis-
tribuição exclusiva com distribuidores locais este acordo pode ser limitado pela
habilidade de empresas estrangeiras participarem no mercado.

Adicionalmente a (não) aplicação de proibições de práticas restritivas da concorrên-


cia numa dada jurisdição pode também ter repercussões sobre o comportamento de

KOLASKY, Conglomerate Mergers and Range Effects: It’s a Long Way from Chicago to
Brussels, George Mason Law Review, 10 (3), 2002, pp. 533-550, ROBERT J. REYNOLDS /
JANUSZ A. ORDOVER, Archimedean Leveraging and the GE/Honeywell Transaction. Anti-
trust Law Journal, 70 (1), 2002, pp. 171-198, e DAVID J. GERBER, The European Commis-
sion’s GE/Honeywell Decision: US responses and their implications, Journal of Competition
Law (Zeitschrift für Wettbewerbsrecht), 1 (1), 2003, pp. 87-95. Cfr. no que concerne ao caso
Boeing & MDD, ELEANOR M. FOX, Antitrust Regulation Across National Borders: The
United States of Boeing versus the European Union of Airbus, The Brookings Review, 16 (1),
1998, pp. 30-32, e DANIEL J. GIFFORD / THOMAS SULLIVAN, Can International Anti-
trust be Saved for the Post-Boeing-Merger World?, The Antitrust Bulletin, 45 (1), 2000, pp.
55-118.
10
Cfr. ELEANOR M. FOX, Antitrust and Regulatory Federalism: Races Up, Down, and Side-
ways, New York University Law Review, 75 (6), 2000 pp. 1781-1807, OLIVER
BUDZINSKI, Institutional Aspects of Complex International Competition Policy Arrange-
ments, in CLEMENS ESSER & MICHAEL H. STIERLE (Coord.), Current Issues in Com-
petition Theory and Policy, Berlim, VWF, 2000, pp. 109-132, ANDRE T. GUZMAN, The
Case for International Antitrust, in RICHARD A. EPSTEIN / M. MICHAEL GREVE
(Coord.), Competition Laws in Conflict: Antitrust Jurisdiction in the Global Economy,
Washington, D.C., The AEI Press, 2004, pp. 99-125.
11
Cfr. ELEANOR M. FOX. Antitrust and Regulatory Federalism: Races Up, Down, and Side-
ways, New York University Law Review, 75 (6), 2000, pp. 1781-1807, ELEANOR M. FOX,
Can We Solve the Antitrust Problems by Extraterritoriality and Cooperation? Sufficiency
and Legitimacy, The Antitrust Bulletin, 48 (2), 2003, pp. 355-376, FREDERIC JENNY,
Competition Law and Policy: Global Governance Issues, World Competition, 26 (4), 2003,
pp. 609-624, FREDERIC JENNY, International Cooperation on Competition: Myth, Reality
and Perspective, The Antitrust Bulletin, 48 (4), 2003, pp. 973-1003.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 77

empresas multinacionais em outros mercados em que operam. A externalidade pode


ser positiva, Por exemplo a deteção de um cartel internacional por parte de uma
jurisdição pode prevenir a sua atuação a nível mundial. Mesmo quando existem
acordos sobre matérias substantivas, o número completo de requerimentos de fusões
nacionais necessário para que seja autorizada uma fusão entre empresas internacio-
nais cria ineficiências.

Efeitos negativos podem ser suscitados pela não aplicação das leis. Para dar apenas
um exemplo, o nível limitado da atual implementação das proibições contra os car-
téis internacionais na maior parte das jurisdições deve-se à ausência de um processo
de dissuasão eficaz generalizado. Ultimamente, a descoberta e perseguição dos car-
téis internacionais tem aumentado em paralelo com o número e a significância inter-
nacional das jurisdições que perfilham legislações que proíbem práticas restritivas da
concorrência.12

Para além destas externalidades, abundam outros problemas criados pela internacio-
nalização. Esses problemas incluem duplicação de implementação de recursos por
jurisdições afetadas pela mesma medida restritiva da concorrência, elevados custos
regulatórios suportados pelas empresas reguladas e dificuldades relacionadas com a
informação acumulada quando a prática restritiva ocorre em qualquer outra parte.
Estes problemas criam aquilo que Gerber designa por paradoxo: 13 as mesmas forças
da globalização que fazem aumentar a necessidade de leis que proíbam as práticas
restritivas igualmente restringem o seu desenvolvimento e destroem sua eficácia.
Estes aspetos da internacionalização das regras da concorrência repercutem-se na
forma de desenvolvimento e execução dos mecanismos legais para resolver efetiva-
mente questões de concorrência com uma dimensão transnacional. Estes mecanis-
mos inserem-se em três categorias principais: implementação unilateral com alcance
extraterritorial, acordos bilaterais ou multilaterais baseados amplamente nos princí-
pios da cortesia e uma cooperação internacional mais ampla (regras da concorrência
internacionais). Esta última inclui uma ampla gama de soluções, partindo da harmo-
nização voluntária e acordos baseados em soft law, a um acordo multilateral vincu-
lativo aplicado por uma autoridade global. A emergência de uma nova realidade
impõe uma abordagem alternativa. A análise de uma solução nova originou uma
abundante abordagem teórica.14

12
MICHAL S. GAL, New Perspectives on International Antitrust, American Journal On Interna-
tional Law, April, 2012, p. 403.
13
J. DAVID GERBER, Global Competition, Law, Markets and Globalization, Oxford, Oxford
University Press 2010, p. 95.
14
Cfr. CHRIS NOONAN, The Emerging Principles of International Competition Law, Interna-
tional Economic Series, 2008, OLIVER BUDZINSKY, The Governance of Competition,
Competence Allocation in International Competition Policy, Cheltenham UK & Nort
Hampton, Ma, USA, Eduard Elgar Pub., 2008, D. DANIEL SOKOL, Monopolists Without
Borders: The Institutional Challenge of International Antitrust in a Global Gilded Age, Re-
78 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

Um consenso crescente sugere que o direito da concorrência internacional é o único


mecanismo que oferece uma solução efetiva para todos os problemas de práticas
restritivas internacionais. Contudo, de que forma e em que dimensão tais soluções
poderão ser adotadas constituem ainda questões em aberto.

2. Duas abordagens diversas a um regime de direito da concorrência Interna-


cional

2. 1. A importância da Organização Mundial do Comércio (OMC)

Na época atual as autoridades da concorrência europeias foram as primeiras a arti-


cular e a promover uma agenda do direito da concorrência a nível mundial. Um
Comité de Peritos elaborou um modelo de direito da concorrência mundial que ins-
titucionalizou no seio da OMC15. O projeto formar-se-ia gradualmente, iniciando-se
com blocos de cooperação entre as nações, autoridades da concorrência, princípios
de transparência, não discriminação e processo justo e um programa para facultar
assistência técnica aos países em desenvolvimento. O projeto tornaria multilaterais
os já existentes acordos bilaterais de cooperação. O sistema avançaria para uma fase
em que se adotariam princípios substantivos comuns contra o abuso de posição
dominante e os carteis, e se implementaria um mecanismo de resolução de diferen-
dos enquadrado na OMC.

Entre as matérias mais importantes em análise surgem as que se referiam à `inter-


relação entre comércio e política da concorrência, análise de procedimentos e

search Paper nr.1034, Law School, University of Wisconsin, 2007, ELEONOR M. FOX, In-
ternational Antitrust and the Doha Dome, Virginia Journal International Law, 2003, 911,
MICHAEL A. UTTON International Competition Policy, Maintaining Open Markets in the
Global Economy, Cheltenham, UK & North Hampton, Ma, USA, Edward Elgar, 2006,
CLIFFORD JONES / MITSUO MATSUSHITA, Competition Policy in the Global Trading
System, Cheltenham, UK & North Hampton, Ma, USA, Edward Elgar, 2002, WOLFGANG
KERKER, An International Multi-level System of Competition Laws: Federalism in Antitrust,
in JOSEF DREXL (org.), The Future of Transnational Antitrust-From Comparative to
Commom Competition Law, Berna/Haia/Londres/Boston, Kluwer Law International, 2003,
FIJENTSCHIFIHER IKENENTSCHER / U. UMMENGA (orgs.), Draft International Anti-
trust Code, Baden-Baden, Nomos, 1995, F. M. SCHERER, Competition Policies for an Inte-
grated World, Washington, The Brookings Institution, 1994.
15
Para uma análise dos esforços para inserir o direito da concorrência no seio da OMC e as
matérias com ela relacionadas vide KEVIN C. KENNEDY, Competition Law and the World
Trade Organization: The Limits of Multilateralism, Londres, Sweet & Maxwell, 2001,
MARTYN TAYLOR, International Competition Law: A New Dimension for the WTO, Cam-
bridge, Cambridge University Press, 2006, PHILIP MARSDEN, A Competition Policy for the
WTO, Londres, Cameron May, 2003.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 79

padrões, o impacto dos monopólios de Estado na política da concorrência e a contri-


buição da política da concorrência para o alcance dos objetivos da OMC.16

Alguns pontos cruciais foram adotados na Agenda de Desenvolvimento de Doha:17


A OMC aceitou que o início das negociações sobre a política da concorrência esti-
vesse dependente de um consenso explícito no que se referia às modalidades de
negociação. A OMC implementaria programas de apoio à criação de competências
na área da concorrência para os países em desenvolvimento. O Grupo de Trabalho
continuaria a analisar a interação entre comércio e política da concorrência, espe-
cialmente nas áreas da transparência, não discriminação, justiça na execução das
medidas e cooperação.

A Conferência Ministerial de Cancun de 2003 visava debater a abordagem de


Doha.18 As divergências de perspetivas face às modalidades das futuras organizações
e a pressão por parte dos EUA e outros países em desenvolvimento especialmente no
que se refere a subsídios e agricultura fizeram com que os participantes acordassem
que seria finalmente na Conferencia de Genebra de 2004 que seria decidida a futura
negociação da política internacional da concorrência.

Na Conferencia Ministerial de Genebra de 2004 ficou decidido que a política da


concorrência, entre outras matérias de Singapura, não seria incluída no Programa das
Conversações de Doha sobre o Comércio. Consequentemente, nenhumas negocia-

16
As reações das jurisdições relativamente à internacionalização da concorrência diferiam ampla-
mente. Os Estados Unidos manifestavam um forte ceticismo relativamente a esta iniciativa a
nível mundial com receio que os objetivos protecionistas sobretudo dos países em desenvolvi-
mento não fossem devidamente escrutinados, que os princípios adotados por consenso fossem
reduzidos ao menor denominador comum, que os diferendos fossem resolvidos por burocratas
desprovidos do conhecimento da realidade e de que as agências perdessem as suas prerrogati-
vas de atuação. Cfr. JOEL I. KEIN, Anticipating the Millennium: International Antitrust En-
forcement at the End of the Twentieth Century, in International Antitrust Law & Policy, Ford-
ham Corporate Law Institute, 1998. A firme oposição dos Estados Unidos à existência de um
direito internacional da concorrência é analisada por GEOFFREY A. MANNE / SETH
WEINBERGER, International Signals: The Political Dimension of International Competition
Law Harmonization, August 10, 2009. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=
1448223, acesso em 2 de julho de 2012. Para uma perspetiva das abordagens alternativas quer
dos Estados Unidos quer da União Europeia vide SPENCER WEBER WALLER National
Laws and International Markets: Strategies of Cooperation and Harmonization in the Enfo r-
cement of Competition Law, Cardozo Law Review, Vol. 18, N. 3, 1996, pp. 1111-1128.
17
Cfr. MITSUO MATSUSHITA / THOMAS J. SCHOENBAUM / PETROS C. MAVROIDIS,
The World Trade Organisation: Law, Practice and Policy, Nova Iorque, Oxford University
Press, 2006, pp. 9-14.
18
Cfr. Para uma análise mais pormenorizada, JOSEF DREXL, International Competition Policy
after Cancun, Placing a Singapore Issue on the WTO Agenda, World Competition, 2004, 27 (3)
pp. 419-457.
80 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

ções relacionadas coma política da concorrência no contexto da OMC estão previstas


para um futuro próximo.

No final dos anos 90 a ênfase incidiu na averiguação do tipo de acordo multilateral


que seria adequado para a prossecução de uma estratégia multilateral nesta área.
Neste contexto, um consenso considerável gerou-se no sentido de que um acordo
multilateral era, senão absolutamente necessário, pelo menos muitíssimo relevante.
Os defensores desta via confirmavam a sua posição no sentido de a adoção de um
acordo multilateral constituir o melhor caminho para viabilizar a possibilidade de
comunidade do direito da concorrência global – particularmente as autoridades da
concorrência e as empresas – operarem de uma forma mais eficaz e contribuir para o
progresso da política e do direito da concorrência.

É igualmente crucial determinar a probabilidade de sucesso que esta estratégia terá


no futuro quer seja a curto quer seja a longo prazo.

Qualquer perspetiva favorável à inserção do direito da concorrência na OMC deve


ser clara relativamente ao que deve ser considerado em termos de regras e princípios
nas futuras negociações. É necessário transparência quanto a saber se o conjunto de
regras estende-se para além da proibição de cartéis e casos graves de abuso de posi-
ção dominante, a fenómenos como fusões e restrições verticais, se algumas dessas
regras seria sujeita a procedimentos estabelecidos de discussão. Se as regras opera-
riam num enquadramento de vários princípios da OMC, tais como os princípios da
transparência, não discriminação e tratamento nacional, se uma abordagem especifi-
camente contextualizada ao direito da concorrência deverá ser adotada nas obriga-
ções dentro da OMC para remover barreiras no acesso ao mercado.

A OMC beneficia de uma ampla base constituída por 154 participantes represen-
tando membros de Estados desenvolvidos e em desenvolvimento. Este suporte cons-
tituído pelos seus membros daria a qualquer acordo sobre direito da concorrência no
âmbito da OMC uma inquestionável legitimidade: o acordo seria o resultado das
negociações encetadas entre todos estes membros e só seria alcançado uma vez
assegurado o consenso entre os países. Para além da vantagem da ampla base de
apoio , a OMC opera de uma forma que é considerada como proporcionando uma
importante flexibilidade aos países que pretendem cumprir as suas obrigações. A
adoção dessas obrigações podem ser efetuadas pelos países desenvolvidos imedia-
tamente para serem seguidos pelos países em desenvolvimento posteriormente. Esta
situação poderia ser de um significado crucial relativamente ao acordo do direito da
concorrência no contexto da OMC, ao facilitar a aproximação gradual dos países na
execução das suas obrigações de acordo com um enquadramento temporal ajustado
ás suas circunstancias e necessidades internas. Uma terceira vantagem relaciona-se
com o mecanismo de resolução de diferendos da OMC, através deste mecanismo, a
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 81

OMC tem sido capaz de demonstrar uma grande credibilidade para resolver as dis-
putas entre os países de uma forma extremamente eficiente.

Os outros argumentos em favor da inserção do direito da concorrência no âmbito da


OMC relaciona-se com o importante conteúdo das matérias da OMC e com rele-
vante perícia que a mesma de que beneficia.

Os conceitos e terminologia de direito da concorrência não estão totalmente ausentes


dos acordos e protocolos da OMC. Exemplos notáveis de provisões que lidam com
matéria de concorrência são o Artigo VIIII do Acordo Geral sobre o Comercio e
Serviços (GATS), Artigos 8 e 40 do Acordo do Comércio relacionado com os Direi-
tos de Propriedade Intelectual (TRIPS) e artigo 40 do Documento de Referência
sobre Telecomunicações. Adicionalmente casos de concorrência foram resolvidos
pela OMC pelo órgão de Recurso no caso Kodak /Fuji (1998) e considerações
baseadas na concorrência foram aplicadas pelos órgãos da OMC muito especial-
mente no caso México – Telecomunicações (2004).19 Ao adotar uma decisão favorá-
vel aos Estados Unidos, o Órgão de Resolução de Diferendos orientou-se pelo que
pode ser perspetivada como uma abordagem baseada numa análise da concorrência
que incluía a definição de mercado relevante.

Estas vantagens constituem indicadores importantes quando se considera a adequa-


bilidade da OMC para prosseguir matéria de política da concorrência.20

2. 2. A relevância emergente da Rede Internacional da Concorrência (RIC)

Na sua primeira década de existência, a RIC tornou-se a instituição chave para o


debate e implementação da política da concorrência internacional.21

19
Neste último caso, os Estados Unidos recorreu à OMC contra as regras de longa distância
internacional do México argumentando que eram incompatíveis com o Documento de Referen-
cia sobre Telecomunicações.
20
Esta adequabilidade surge consolidada quando se considera a atitude positiva de órgãos inter-
nacionais importantes especialmente o Banco Mundial, a CNUCD e a RIC relativamente à
OMC face ao seu envolvimento na área do direito da concorrência e o apoio muito sólido que
essas instituições oferecem à OMC neste envolvimento. Cfr. MAHER M. DABBAH, Interna-
tional and Comparative Competition Law, p. 553.
21
Uma análise minuciosa da génese, evolução, funções e resultados alcançados pela Rede
Internacional da Concorrência encontra-se em ELEANOR M. FOX, Linked-In: Antitrust and
the Virtues of a Virtual Network, New York University School of Law, Law & Economics, Re-
search Paper Series, Working Paper n. 09-27-2009, e HUGH M. HOLMMAN / WILLIAM E.
KOVACIK, The International Competition Network: its Past, Current, and Future Role, 2011,
disponível em httt/ssrn.com/abtract=1967705 (acesso em 2 de julho de 2012). Uma síntese
rigorosa dos progressos alcançados pela RIC é apresentada por MARIA COPPOLA, One net-
work's effect: The rise and future of the ICN, Concurrences, n.º 3, 2011, pp. 221-229.
82 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

Na década passada o trabalho da IRC sobre as notificações de fusões e processos de


investigação auxiliou as agências de concorrência a reduzir o número de notificações
e reduzir os custos através da eliminação de inspeções desnecessárias. Entre 2003 e
2006 a RIC adotou 13 práticas recomendadas nas áreas de procedimentos de fusões,
análise substantiva de fusões, determinação de poder de mercado e determinação de
posição dominante no mercado.

Apesar de as Práticas não serem vinculativas o fato de se ter alcançado um acordo


relativamente às mesmas constitui um fator impressivo. Os membros da RIC adota-
ram as Práticas mesmo quando as suas práticas e legislações da concorrência não
estavam em conformidade com as recomendações.22

A comparação dos seus sistemas com as Práticas Recomendadas permitiu às agên-


cias responsáveis pela concorrência avaliar e identificar áreas específicas do direito
da concorrência.

Os membros da RIC também utilizaram as Práticas Recomendadas como base das


suas reformas ao convencer os órgãos legislativos da necessidade da adoção das
reformas propostas por estarem em conformidade com os padrões internacionais.
A incidência na convergência é prosseguida na prática quotidiana da RIC sobretudo
através da criação de soft law sob a forma de práticas recomendadas.

Já mais de dois terços das agências membros e até governos alteraram a sua legisla-
ção e políticas em concordância com as recomendações da ICN, particularmente as
relacionadas com as notificações das fusões e processos de investigação.

O Grupo de Ação da RIC promoveu consultas individuais e a grupos a cerca de 120


membros da RIC de 106 jurisdições, assim como a muitos consultores não-gover-
namentais (NGAs). As consultas visavam obter um feedback sobre as fraquezas e os
pontos fortes relativamente à concorrência substantiva e adjetiva, tendo como obje-
tivo preparar o futuro trabalho da rede a determinar os objetivos a longo prazo. O
grupo também procedeu à análise da literatura académica sobre redes e avaliou a
forma de operar por parte de redes similares. Como resultado destas consultas, a RIC
reforçou a sua eficácia na adoção e promoção da melhor prática internacional, e
focalizou a sua atividade no aumento do desempenho da promoção da concorrência.

22
As Práticas Recomendadas foram elaboradas pelo Subgrupo da RIC sobre Notificações de
Fusões e Procedimentos. Muitos dos membros principais do grupo, incluindo a Alemanha, Itá-
lia, Coreia e Espanha, tinham no momento em que as Práticas foram formuladas, leis ou proce-
dimentos que não estavam em conformidade com as mesmas.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 83

A julgar pelas suas próprias aspirações e em contraste com um amplo leque de críti-
cos, a RIC tem obtido um enorme sucesso. A RIC evidencia estabilidade e solidez.
Tem liderança. Constitui o único elemento de conexão das pessoas a nível mundial
que estão relacionados com uma tarefa comum.

A atividade de RIC, gerou um processo de fusões e de procedimentos relativamente


aos cartéis a nível mundial aperfeiçoados e a compreensão mútua dos regimes jurídi-
cos, políticas e culturas entre a miríade de participantes alcançou um elevado nível.
Pode-se também determinar a eficácia da RIC em relação com outras organizações.
A RIC está atualmente a proceder a um trabalho que a OCDE, a CNUCD e a OMC
não poderiam produzir com tanta qualidade, atenta a natureza, consistência e orien-
tação desses organismos.23

Por definição e objetivos prosseguidos, a ICN não constitui um organismo com


capacidade suficiente para uma governação global da concorrência. Não tem possi-
bilidade de resolver os problemas mundiais da concorrência que são suscitados pela
internacionalização dos mercados como a não conexão entre os regimes jurídicos
anti-dumping e preços predatórios, hiatos jurisdicionais que permitem a existência
de cartéis de exportação, e a ausência de uma perspetiva coerente da concorrência e
comércio mundiais.

Mas promovendo a convergência de procedimentos e de princípios jurídicos a ICN


pode contribuir decisivamente para um futuro sistema de direito da concorrência
internacional.

2. 3. A necessidade de cooperação entre a OMC e a RIC

É indubitável que o trabalho destas instituições tem um valor extremo e assim conti-
nua a ser ao prosseguirem a ideia da internacionalização do direito da concorrência.
Não obstante, é óbvio que é necessário no presente expandir a sua agenda, capacida-
des institucionais e os mecanismos dessas organizações, se o processo de internacio-
nalização deve receber o adequado tratamento e consideração que merece. Um
caminho crucial para que esta situação possa ocorrer é através da institucionalização
de uma maior cooperação entre as diferentes organizações e apoio recíproco das
instituições.

A colaboração neste caso seria particularmente importante para o objetivo de aumen-


to da eficiência na forma como as organizações conduzem o seu trabalho nesta área.
Ela pode ser alcançada através de consultas adequadas que poderiam originar a parti-
lha de responsabilidades, atribuindo a cada organização a tarefa mais adequada à sua

23
Cfr. ELEONOR M. FOX, Linked-In: Antitrust and the Virtues of a Virtual Network, p. 166.
84 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

especialização, composição e recursos. Esta colaboração e partilha de responsabili-


dades não se têm verificado. É verdade que algumas organizações têm oferecido a
sua colaboração a outras organizações.24 A RIC adotou uma filosofia de cooperação
com a OMC, a OCDE e a CNUCD. Contudo questiona-se se os esforços de todas
essas organizações foram organizados de forma rigorosa e se não tem havido muita
sobreposição nas atividades que têm efetuado, sobretudo nas relacionadas com a
criação de capacidade, assistência técnica e promoção da concorrência.

A rivalidade institucional pode constituir um fator a não negligenciar e é compreen-


sível que cada uma destas instituições, OMC e RIC tenham interesse em desenvolver
o seu envolvimento e assegurar a sua posição na área. Mas ao alcançar este reconhe-
cimento estas instituições correm o risco de não alcançar o melhor resultado da for-
ma mais eficiente para cada uma das atividades. As organizações não estão em posi-
ção de construir uma agenda global na área do direito da concorrência atuando
individualmente. E estão atualmente colocadas numa posição em que estão cada vez
mais longe de alcançar o referido objetivo quando ocorre uma sobreposição signifi-
cativa nas suas atividades e tarefas, para não mencionar a utilização não eficiente
dos recursos escassos que proximamente surgirão.

A coordenação entre a OMC e a TIC e a divisão de responsabilidades são vitais para


aumentam as prospetivas de sucesso.

Cada organização beneficia de forcas e qualidade que são únicas e que não são par-
tilhadas pela outra organização. Essas forças garantirão à organização em causa
maior impacto na área do direito da concorrência quando optar por um envolvimento
de coordenação.25

3. O Direito Internacional da Concorrência: Um longo percurso a percorrer

3.1. Os acordos multilaterais vinculativos

Existem duas abordagens básicas para combater as práticas anticoncorrenciais a um


nível global. Uma é baseada na convergência que aceita a existência de um meca-
nismo jurisdicional e espera que os sistemas de direito da concorrência nacionais

24
Por exemplo a CNUCD tem trabal hado em íntima colaboração com a OCDE e RIC e em
menor extensão como a OMC, a seguir à Cimeira de Doha de 2001 e existem perspetivas de um
maior envolvimento da OMC na área da concorrência.
25
Cfr. no sentido de a coexistência da OMC e da RIC suscitar a questão de se tal concorrência de
meios é benéfica, MARIANA BODE / OLIVER BUZINSKY, Competing ways towards inter-
national antitrust: the WTO versus the ICN, Marburger volkswitschaftliche Beitrage, no. 03-
2005. Os autores consideram que a concorrência não deve ser considerada benéfica por razões
de eficiência de recursos. p. 24.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 85

alinhem com o outro nos meios para o aperfeiçoar. A análise da convergência sugere
que esta estratégia pode produzir alguns benefícios mas não pode de forma adequada
resolver muitas das questões essenciais do direito da concorrência nos mercados
globais. Os acordos não vinculativos que permitem alcançar algum nível de coorde-
nação e harmonização da implementação das leis da concorrência através de meca-
nismos voluntários são as principais ferramentas contra as práticas restritivas utiliza-
das atualmente.26 Esses esforços centram-se normalmente na criação de orientações
e melhores práticas para criar um sistema de implementação unilateral. São reconhe-
cidos os benefícios desta convergência: eles reduzem os problemas de contradição
de soluções, cria maior confiança entre as autoridades da concorrência e a natureza
pragmática e involuntária dos acordos não vinculativos aumenta o estímulo para a
participação.27

Contudo estes esforços internacionais não têm gerado o sucesso pretendido na reso-
lução de muitos problemas suscitados por práticas restritivas da concorrência porque
as suas soluções são baseadas em soluções unilaterais ou estão sedimentadas em
interelações bilaterais flexíveis limitadas.

A análise crítica dos argumentos a favor da convergência num futuro próximo leva a
concluir que os mesmos não são convincentes. Não existem fatos que sedimentem a
esperança de que uma discussão racional originará um elevado grau de convergên-
cia, ou que a socialização entre os decisores não se limitará a uma mera identificação
de situações similares, ou que a persuasão eliminará as divergências.

Os resultados limitados desta abordagem têm suscitado um debate aceso acerca da


necessidade e viabilidade de alcançar um acordo internacional sobre um regime da
concorrência.28

Quando se considera o estabelecimento de um direito internacional da concorrência


podem distinguir-se várias abordagens.

1. A implementação de leis anticoncorrenciais vinculativas com caráter global con-


trolada por uma autoridade de uma forma centralizada. Este regime de concorrência
uniforme representa a solução mais rigorosa mas negligencia os problemas da inefi-

26
Uma abordagem da génese, evolução, vantagens e lacunas destes acordos pode encontrar-se
em LARRY FULLERTON / CAMELIA C. MAZARD, International Antitrust Co-op-
eration Agreements, World Competition, no. 24, 2001, pp. 405-423, BRUNO
ZANETTIN, Cooperation Between Antitrust Agencies at the International Level, Ox-
ford, Hart Publishing, 2000, FREDERIC JENNY, International Cooperation on Com-
petition: Myth, Reality and Perspective, The Antitrust Bulletin, 48, 2003, pp. 973-1003.
27
Cfr. MAHER M. DABBAH, International and Comparative Competition Law, pp. 517-522.
28
DAVID J. GERBER, Global Competition: Law, Markets, and Globalization, Nova Iorque,
Oxford University Press, 2010, pp. 282-292.
86 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

ciência gerada pela burocracia e preferências locais /regionais. E; sobretudo devido à


transferência de soberania para um organismo internacional, o consenso em relação
a uma tal solução entre as nações é improvável. Existem custos, contudo, associados
com esta abordagem. Ela pode requerer uma execução e adjudicação amplamente
complexas e originar uma crescente burocracia. Mais, a abordagem sedimenta-se na
tese de que existe um conjunto de regras da concorrência perfeitas para todas as
empresas e nações do mundo, e que as nações podem identificar e podem e alcançar
um acordo com base nessas regras através de negociação. Mas regras ótimas estão
inseridas num contexto e podem ser culturalmente específicas, as negociações
podem implicar poder de negociação e conflitos e pode gerar regras formadas mais
baseadas na política do que em princípios. Finalmente se o acordo for alcançado
com base num conjunto de regras mundiais, a inflexibilidade será inevitável.
2. Uma harmonização gradual dos direitos da concorrência nacionais através de uma
primeira determinação de um conjunto de padrões mínimos. Esses padrões podem
inicialmente ser limitados a matérias consensuais (v.g. proibição e penalização dos
carteis hard core) e serem incrementalmente ampliados. O objetivo final contudo
mantém um regime centralizado global e uniforme.
3. O estabelecimento de um sistema com vários níveis, em que uma autoridade anti-
concorrencial supranacional tem competência para decidir as restrições da concor-
rência com efeitos transfronteiras suficiente, enquanto as agências nacionais da con-
corrência mantém a sua competência para aplicar as leis internas da concorrência em
todos os outros casos. Um sistema como este requer uma bem definida alocação e
delimitação das competências, em particular uma delimitação vertical (isto é um
critério claro para definir e identificar efeitos transfronteiras "suficientes").
4. Um acordo multilateral de cooperação para alcançar as vantagens da cooperação
sem estar limitado ao contexto bilateral. Neste caso o " regime virtual" internacional
é baseado numa rede de governação mais como uma abordagem informal para orga-
nizar relações internacionais. A questão que se suscita é a de saber se a vontade de
cooperar é suficientemente sólida para proteger efetivamente a concorrência interna-
cional
5. Uma estratégia em que os Estados comprometem-se a percorrer um caminho
partilhado, constituído por objetivos a curto e longo prazo, em conjunto coma
implementação de estratégias e planos.

Gerber analisa o acordo multilateral como uma estratégia para o desenvolvimento


do direito da concorrência a um nível global. A análise sugere que as formas tradi-
cionais de acordo não são propriamente adequadas ao desafio. Gerber elabora uma
espécie particular de acordo adaptado às necessidades do desenvolvimento de um
direito da concorrência a longo prazo.29

29
DAVID J. GERBER, Global Competition, Law, Markets and Globalization, p. 10.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 87

A análise enfatiza a necessidade de adaptar qualquer acordo multilateral às necessi-


dades de desenvolvimento do direito da concorrência mais do que seguir formas pré
existentes ou submete-lo a procedimentos institucionais pré-existentes. Tempo e
flexibilidade são ambos fatores críticos na elaboração desta estratégia por que eles
permitam que as obrigações dos Estados e as relações entre os mesmos sejam adap-
tados ao processo de desenvolvimento económico.

Esta estratégia vai para além do regime jurisdicional e cria obrigações para os Esta-
dos no sentido de combater a conduta anticoncorrencial nos mercados globais. Ela
responde às pressões e incentivos da globalização através da entrada num novo terri-
tório.

Gerber sugere que o desenvolvimento de um regime global vinculativo capaz de


combater com eficácia as práticas restritivas nos mercados globais não só é necessá-
rio para enfrentar os desafios centrais do século vinte e um como é igualmente factí-
vel.

E este regime é necessário porque recentemente ocorreu um dramático aumento na


concorrência global - o que Gerber designa por globalização profunda que aumenta
o potencial de conflitos transfronteiras ou transnacionais e ele aponta para um futuro
(que muito provavelmente incluirá muitos mais casos de práticas anticoncorrenciais
privadas) no qual ocorrerão muitos mais conflitos.30 Ele procede a uma análise dos
métodos utilizados para a resolução dos conflitos e considera-os inadequados.

Considera que o que existe é um regime de jurisdição unilateral em que a autoridade


soberana dos estados líderes, especialmente os Estados Unidos faculta os principais
meios de resolução do conflito.

A profunda globalização amplia as limitações do sistema jurisdicional unilateral de


três formas: Primeiro limita a possibilidade de os regimes detetarem o comporta-
mento anti concorrencial. Segundo existe um maior potencial para conflitos e ine-
xistência de mecanismos de resolução dos mesmos.

Gerber propõe um sistema global de direito da concorrência que pode efetivamente


resolver os conflitos jurisdicionais, uma base geral sustentável para a adoção de
decisões internas empresariais, alocar a implementação das responsabilidades entre
atores internacionais e internos de uma forma eficiente e viabilizar o desenvolvi-
mento das capacidades internas das autoridades da concorrência no que concerne ao
direito da concorrência.31

30
DAVID J. GERBER, ibidem, pp. 275-281.
31
DAVID J. GERBER, ibidem, pp. 304-315.
88 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

O que é necessário é um novo projeto transnacional. Duas abordagens têm sido ana-
lisadas: convergência voluntária e coordenação através de acordo. A segunda via não
provou ainda ser implementável. Atualmente, a focalização incide na convergência
voluntária que é mais ativamente prosseguida pela RIC e sua abordagem das "Boas
Práticas". A convergência assume que o unilateralismo continuará a constituir o
enquadramento básico.

Gerber analisa criticamente os argumentos a favor da convergência num futuro pró-


ximo e conclui que eles não são convincentes. Existe pouca evidência para justificar
a esperança de que a discussão racional levará a um grau mais elevado de con-
vergência, ou que a socialização entre os decisores produzirá efeitos para além da
identificação de semelhanças, ou que a persuasão elimine as diferenças.32 Simulta-
neamente identifica e não subestima os vários obstáculos que se opõem ao alcance
de acordos vinculativos.

Para ultrapassar alguns dos obstáculos, Gerber propõe uma abordagem flexível,
sensível às diversidades existentes entre os regimes da concorrência que designa por
"caminho do compromisso".33

Este conceito é elaborado com base em três pressupostos.34

Um pressuposto é constituído pelo reconhecimento do amplo valor potencial do


combate à conduta anticoncorrencial.

A maior parte dos Estados e analistas estão de acordo que o direito da concorrência
tem valor para obviar a adoção de condutas que reduzem os benefícios da concor-
rência nos mercados globais. Um segundo elemento reside no reconhecimento de
que há diferenças significativas nas perspetivas acerca dos conteúdos e funções do
direito da concorrência e que os esforços que requerem uma mudança rápida e radi-
cal não terão muito provavelmente sucesso. A preocupação com a necessidade de
mudanças muito rápidas pode explicar muitos dos insucessos dos Estados em gerar
consenso relativamente à adoção de um regime da concorrência global no passado.
O terceiro pressuposto traduz-se na verificação de que nestas circunstâncias, o ali-
nhamento de interesses necessário para assegurar um direito da concorrência global
efetivo só pode ser desenvolvido com o tempo.35

Com estes dados Gerber delineia uma estratégia em que os Estados comprometem-se
a percorrer um caminho partilhado, isto é, em conjunto, constituído por objetivos a

32
DAVID J. GERBER, ibidem, pp. 283-291.
33
DAVID J. GERBER, ibidem, p. 304.
34
DAVID J. GERBER, ibidem, p. 10.
35
DAVID J. GERBER, ibidem, p. 304.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 89

curto e longo prazo, em conjunto, com a implementação de estratégias e planos. Esta


abordagem constitui uma tentativa de ultrapassar as diferenças de objetivos, capaci-
dades institucionais e proibições normativas entre as diferentes instituições criando
um processo que não pressupõe harmonização como ponto de partida mas pretende
alcançá-la a longo prazo.36 Este caminho exige um acordo por parte dos países rumo
a um compromisso que não contém os pormenores do regime legal final que se pre-
tende instituir. Uma estratégia baseada num acordo que tem o potencial para fazer
face às fraquezas de um regime baseado na jurisdição e que apresenta um potencial
muito mais elevado para desenvolver um regime da concorrência global e efetivo.
Gerber baseia-se parcialmente na sugestão de um novo mecanismo, o caminho do
compromisso, para um regime internacional da concorrência.

Trata-se de um processo rumo a objetivos acordados com obrigações para suster o


movimento rumo a esses objetivos. Espera-se que os elementos do caminho adotem
uma forma mais densa conforme os Estados interagem ao moverem-se ao longo do
percurso. A estratégia estabeleceria compromissos partilhados para criar e manter
um regime efetivo para uma concorrência global.37

O objetivo de tal estratégia não será estabelecer um conjunto de normas ou institui-


ções às quais todos os participantes devem aderir num dado tempo específico e com
as mesmas condições, mas coordenar compromissos de forma a conduzir todos os
participantes ao longo de um caminho rumo a um regime de direito da concorrência
global efetivo. 38

Esta constitui a única abordagem realista porque tem subjacente as diferenças de


culturas, a diversidade de regimes de direito da concorrência e diferentes estádios de
desenvolvimento dos países.

Talvez um processo de negociação de acordo constitua a melhor via a prosseguir


mas uma abordagem similar não provou ainda ser possível no Médio Oriente e são
algumas dúvidas aonde ele nos levará no processo de globalização.

Sugere-se que a necessidade de um complexo processo de harmonização, originado


pela dificuldade em alcançar regras que sejam aceites por mais de uma centena de
países soberanos, seja ultrapassado por um processo em que o início da harmoniza-
ção se efetue por grupos regionais como acontece já com a União Europeia. Poste-
riormente a tarefa estaria simplificada porque se trataria de harmonizar o direito de
um pequeno número de regiões.

36
DAVID J. GERBER, ibidem, pp. 306-307.
37
DAVID J. GERBER, ibidem, pp. 304-310.
38
DAVID J. GERBER, ibidem, p. 310.
90 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

Considera -se ainda que um início sólido rumo a um sistema transnacional seria dado
pelos Estados Unidos e pela União Europeia em tentarem acordar por tratado ou por
uma série de tratados um direito da concorrência comum, começando talvez por
matérias que geram maior consenso como a legislação sobre os carteis.

4. Os fatores determinantes para a adoção de um direito da concorrência inter-


nacional

São cinco os fatores, alguns ambivalentes e que, consequentemente, geram dúvidas


quanto à viabilidade de alcance de uma solução baseada na adoção de direito da
concorrência internacional e alcançar resultados positivos não constitui tarefa fácil.
A alteração ideológica de regulação subjacente às atividades empresariais em cone-
xão com a concorrência constitui um fator importante que poderá influenciar a ado-
ção de uma solução multilateral.

Tentativas passadas de desenvolver um direito multilateral da concorrência não


obtiveram sucesso porque eram prematuras, no sentido que só uma relativa minoria
de nações no mundo tinham sistemas económicos de mercado e um reduzido número
tinha estabelecido sistemas de concorrência: A extensa implementação de economias
de mercado nos países e a criação de leis de concorrência em cerca de 120 países
representa uma importante alteração na reunião de condições para um sistema global
de concorrência.39

Enquanto há 60 anos atrás a maior parte das jurisdições não era baseada – ou era
apenas parcialmente baseada – em economias de mercado, a situação atual apre-
senta-se qualitativamente diversa. A queda do Comunismo na Europa Oriental e
adoção de uma economia mais orientada para o mercado por parte da China, em
simultâneo com a crença diminuída relativamente à possibilidade de os governos
controlarem eficientemente os parâmetros das atividades negociais, mudou drasti-
camente os instrumentos reguladores utilizados pela maioria das jurisdições. A con-
corrência tornou-se um instrumento regulatório fundamental para muitas jurisdições.
Esta mudança aumenta o potencial para a adoção de uma solução global na medida
em que mais negociadores adotam um enquadramento ideológico similar. Mas sus-
cita igualmente alguns obstáculos. Diferentes perspetivas das economias de mercado
originam diferenças de importância do sistema da concorrência e outros instrumen-
tos regulatórios (vg. compare-se o modelo de mercado socialista da China com o
capitalismo do Estados Unidos). Outra situação adversa resulta da existência de

39
Cfr. DIANE P. WOOD, Cooperation and Convergence in International Antitrust: Why the
Light Is Still Yellow, in RICHARD A. EPSTEIN / MICHAEL S. GREEVE (coord.), Competi-
tion Laws in Conflict: Antitrust Jurisdiction in the Global Economy, Jackson, TE, AEI Press,
2004, pp. 177-188.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 91

objetivos divergentes entre os diversos direitos da concorrência. Os efeitos distribu-


tivos intra jurisdicionais podem ser mais importantes para umas jurisdições do que
para outras.40 Os países podem opor-se a mecanismos de regulação quando a distri-
buição dos benefícios enfraqueçam os grupos desfavorecidos na sociedade, espe-
cialmente aqueles que foram sistematicamente excluídos no passado.

As questões de distribuição mesmo quando não tenham grande relevo a nível nacio-
nal adquirem um cariz de muito maior importância a nível inter jurisdicional.41

Em consonância, os países podem estar menos determinados em conceder os seus


poderes a uma instituição central se aperceberem que a mesma não toma como um
dos critérios de decisão as questões relacionadas com a distribuição inter jurisdicio-
nal.

O segundo fator reside no número de jurisdições que adotaram um regime de direito


da concorrência como resultado da mudança política para uma ideologia de mer-
cado.42 As experiências de direito da concorrência a nível interno têm um papel
relevante na determinação da dimensão da convergência rumo a um regime norma-
tivo para uma concorrência global, dado que a interseção entre os domínios nacional
e internacional constituem um fator chave para a compreensão da dinâmica do direi-
to da concorrência global. Suscita-se a questão de saber se esta mudança aumentou
ou diminuiu a viabilidade de se alcançar soluções de direito da concorrência interna-
cionais.

Por um lado, a experiência obtida com a implementação das leis da concorrência cria
uma base para uma compreensão comum dos seus benefícios e limitações. Por outro
lado, limitações de escolha pública podem surgir quando os reguladores nacionais
são chamados a renunciar a alguns dos seus poderes de forma a poder ser aplicado
um verdadeiro regime de concorrência a nível internacional, como uma autoridade
internacional anti cartel.43

40
Cfr.ELEANOR M. FOX, Competition, Development and Regional Integration: In Search of a
Competition Law Fit for Developing Countries, New York University School of Law, Law &
Economic Research Paper Series 11-04, 2011, pp. 1-21, disponível em SSRN:
http://ssrn.com/abstract=1761619 (acesso em 4 de julho de 2012), in JOSEF DREXL / MOR
BAKHOUN / ELEANOR M. FOX / MICHAL S. GAL / DAVID J. BERGER (Coord.), Com-
petition Policy and Regional Integration in Developing Countries, Cheltenham, UK & North
Hampton, Ma, USA, Edward Elgar, 2012.
41
Cfr. MICHAL S. GAL, Restrictive Agreements and Unilateral Restraints, in JOSEF DREXL /
LAURENCE IDOT / JOEL MONÉGER (coord.), Economic Theory and Competition Law,
Cheltenham, UK & North Hampton, Ma, USA, Edward Elgar, 2009, p. 247.
42
Cfr. BRENDON SWEENEY, International Competition Law and Policy: A Work In Progress,
Melbourne Journal, International Law, 58, 2009, pp. 3-4.
43
Cfr. MICHAL. GAL, New Perspectives on International Antitrust, American Journal of Inter-
national Law, vol. 106, no. 2, April 2011, p. 405.
92 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

Mas o que é mais relevante, as diferenças entre as leis da concorrência pode gerar
obstáculos a um regime internacional de direito da concorrência

Com efeito, uma análise profunda permite salientar as diferenças assim como as
similitudes entre as culturas de concorrência.

Gerber analisa minuciosamente as experiências dos Estados Unidos e da União


Europeia e providencia também uma análise do que ele designa “outros países”:
Austrália, Canada, China, Japão, América Latina, Coreia do Sul e África Subsaa-
riana. Estes países constituem a chave do futuro desenvolvimento de uma estratégia
de direito da concorrência global. A análise comparativa que vai para além da law in
books analisando o direito na prática faculta uma imagem esclarecedora acerca das
pontes que tem de ser construídas para ultrapassar as diferenças.44

Um terceiro fator central nesta análise é constituído pelo aumento dos níveis do
comércio e da interconexão dos mercados. Suscita-se a questão de saber como este
fator afeta a motivação dos países para alcançar soluções globais. É óbvio que esta
situação amplia o âmbito dos casos com efeitos extraterritoriais e, consequente-
mente, regra geral origina uma maior tendência para alcançar uma solução global.
Também como foi sublinhado supra, a recetividade dos países à adoção de uma
solução global é potenciada pelo elevado número de jurisdições que adotaram regi-
mes de concorrência o que aumenta as externalidades impostas a uma jurisdição pela
implementação das regras da concorrência noutro país.45

Em particular a adoção por parte da China e da Índia de regimes de concorrência


reforça a motivação para alcançar um consenso relativamente a adoção de uma solu-
ção global dado que devido à sua importância económica ambos têm de facto um
poder de veto sobre as decisões que tem efeitos externos. Por exemplo, uma decisão
de um destes países no sentido de proibir uma fusão internacional originará muito
provavelmente um abandono do projeto de fusão mesmo que a mesma possa poten-
cialmente criar efeitos competitivos em qualquer outra parte do mundo.

Um quarto fator é constituído pelas experiências de jurisdições com soluções alter-


nativas. Uma motivação relevante para a recetividade ao sistema de concorrência
internacional é a verificação de que a implementação unilateral extraterritorial do
direito da concorrência e dos acordos bilaterais de cooperação facultam apenas uma
solução parcial ao problema das práticas restritivas.

44
DAVID J. GERBER Global Competition: Laws, Markets and Globalization, pp. 269-272.
45
Cfr. MICHAL S. GAL, New Perspetives on International Antitrust, p. 405.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 93

Assim e mencionando apenas algumas preocupações suscitadas pela aplicação extra-


territorial do direito da concorrência, as pequenas jurisdições só muito raramente
podem criar uma ameaça credível quando aplicam as suas leis para proibir o com-
portamento de grandes empresas internacionais.

Mesmo jurisdições de grande dimensão confrontam-se com obstáculos significativos


à aplicação extraterritorial das suas leis, tais como obstáculos à obtenção de infor-
mações,46 colisão de sanções impostas por outras jurisdições e resistência à aplica-
ção extraterritorial da aplicação das suas leis.

As insuficiências evidenciadas por um sistema de implementação unilateral paralelo


têm sido o principal catalisador para a adoção de mecanismos reguladores mais
cooperativos.

Em conformidade com esta constatação, alguns países encetaram a via das soluções
bilaterais embora os acordos sejam frequentemente bastaste restritivos relativamente
à extensão da cooperação que originam. A maior parte dos acordos incluem cláusu-
las de notificação e troca de informação e princípios de cortesia positiva que reque-
rem que as jurisdições apliquem as suas leis de uma forma não discriminatória quan-
do tal for requerido pela outra parte. Embora os benefícios potenciais de tais acordos
sejam reconhecidos (v.g os acordos não colidem com a soberania dos países, tem
potencialidades para reduzir os conflitos entre os países e limitam os problemas
suscitados pela partilha de informação), não viabilizam ferramentas para resolver a
maior parte dos desafios suscitados pelas práticas anticoncorrenciais, como a colisão
de soluções adotadas pelas autoridades da concorrência, e duplicação de implemen-
tação de medidas. Esta preocupação surge por que o modelo em que estes acordos se
baseiam são de aplicação unilateral: cada jurisdição continua a aplicar a sua própria
lei no seu território.

Uma solução alternativa que pode influenciar a motivação para adotar uma solução
global são os acordos regionais de direito da concorrência que são baseados numa
implementação conjunta das referidas regras.47

Estes acordos permitem às jurisdições escaparem ao dilema da escolha entre a


extrema descentralização (implementação unilateral) e a centralização (implementa-

46
No Relatório da OCDE de 2012 a temática da troca de informação confidencial é abordada
como um dos desafios a uma cooperação eficaz nas investigações relativamente aos cartéis.
Não só as leis nacionais não permitem a partilha de informação confidencial como a maioria
dos instrumentos e acordos celebrados entre as autoridades nacionais adotam a mesma posição.
OECD Global Forum On Competition, Improving International Cooperation In Cartel Investi-
gations, 2012 págs 30-32.
47
Cfr. MICHAL S. GAL, Regional Competition Law Agreements: An Important Step for Anti-
trust Enforcement, 60 University Toronto Law Journal, 2010, pp. 239, 258-261.
94 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

ção global) através da criação de uma governação cooperativa sobre matérias de


concorrência que se estende para além das suas fronteiras.48

Uma experiência positiva num acordo regional de direito da concorrência pode


sedimentar a motivação dos países para adotarem soluções globais como é eviden-
ciado pela União Europeia que tem sido uma forte adepta da adoção de um direito
internacional da concorrência. Mas para seguir este rumo é necessário que a coope-
ração seja implementada a uma escala com maior dimensão. Os acordos podem
facultar aos seus membros uma maior força devido à agregação das forças dos seus
membros na comunidade internacional.49

A dinâmica do poder internacional tem um papel importante na determinação da


possibilidade de determinar a possibilidade de alcançar soluções globais para o direi-
to da concorrência.

O medo da perda de soberania e do poder de veto pelos países mais importantes ao


nível do direito da concorrência diminui os incentivos para a adoção de uma solução
internacional. A recente adoção de um regime da concorrência por parte da China e
da Índia alterou a dinâmica existente. O poder comercial dos dois países limita a
possibilidade dos Estados Unidos e da União Europeia para dirimir a maior parte dos
seus diferendos relativos a práticas restritivas entre si e aumenta a possibilidade de
uma coordenação de implementação de regimes.

Conclusão

O rápido desenvolvimento das fusões globais suscitou novos desafios aos responsá-
veis pela política da concorrência e à doutrina que se consciencializam que proble-
mas concorrenciais globais impõem soluções globais por parte do direito da concor-
rência.

O número de fusões com efeitos transfronteiras aumentou durante a última vaga nos
últimos anos da década de noventa e desde então a percentagem de fusões interna-
cionais em relação ao total das fusões tem-se mantido elevada. Adicionalmente,
empresas com posições dominantes nos mercados mundiais foram acusadas de abu-
sar do seu poder de mercado. O caso da Microsoft representa um processo exemplar.
Não obstante as ações anti concorrenciais terem uma dimensão global as políticas da
concorrência permanecem numa focalização nacional. A ausência de qualquer espé-

48
Uma interessante e rigorosa análise destes acordos é efetuada por MAHER DABBAH, Interna-
tional and Comparative Competition Law, capitulo 7.
49
Cfr. Regional Competition Law Agreements: An Important Step for Antitrust Enforcement.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 95

cie de regime internacional origina um número significativo de problemas graves de


que se dão aqui apenas alguns exemplos.

Conflitos entre diferentes países surgem conforme as autoridades nacionais da con-


corrência protegem principalmente os seus mercados internos sem tomarem em
consideração os efeitos da execução da sua política nas economias estrangeiras. Os
conflitos entre os Estados Unidos e a União Europeia nos casos Boeing/Mc Donnel
Douglas e GE/Honeywell constituem exemplos mais evidentes de um amplo nómero
de conflitos jurisdicionais

A proliferação de regimes supra citada amplia um outro aspeto da internacionaliza-


ção a (não) aplicação de regras de concorrência por parte de uma jurisdição pode
produzir efeitos sobre outra jurisdição quer tenha ou não adotado um regime de
concorrência. Essas externalidades podem ser significativas. Proibições de práticas
restritivas da concorrência em vigor numa dada jurisdição podem afetar a possibili-
dade ou a motivação de empresas estrangeiras entrarem ou expandirem-se num mer-
cado estrangeiro. Adicionalmente a (não) aplicação de proibições de práticas restriti-
vas da concorrência numa dada jurisdição pode também repercutir-se no com-
portamento de empresas multinacionais em outros mercados em que operam. A
externalidade pode ser positiva, Efeitos negativos podem ser suscitados pela não
aplicação das leis.

Para além destas externalidades, abundam outros problemas criados pela internacio-
nalização. Esses problemas incluem a duplicação de implementação de recursos por
jurisdições afetadas pela mesma medida restritiva da concorrência, elevados custos
regulatórios suportados pelas empresas reguladas, e dificuldades relacionadas com a
informação acumulada quando a prática restritiva ocorre em qualquer outra parte.
Estes aspetos da internacionalização das regras da concorrência produzem efeitos
sobre a forma de desenvolvimento e execução dos mecanismos legais para resolver
efetivamente questões de concorrência com uma dimensão transnacional.

Um consenso crescente sugere que o direito da concorrência internacional é o único


mecanismo que oferece uma solução efetiva para todos os problemas de práticas
restritivas internacionais. Contudo, de que forma e em que dimensão tais soluções
poderão ser adotadas é ainda uma questão em aberto.

Após a análise das atividades da OMC e da RIC concluímos que o trabalho destas
instituições tem um valor extremo e assim continua a ser ao prosseguirem a ideia da
internacionalização do direito da concorrência. Não obstante, é óbvio que é necessá-
rio no presente expandir a agenda dessas organizações, as capacidades institucionais
e os mecanismos para que o processo de internacionalização seja eficaz. Um cami-
nho crucial para que esta situação possa ocorrer é através da institucionalização de
96 MARIA DE FÁTIMA CABRITA MENDES

uma maior cooperação entre as diferentes organizações e apoio recíproco das insti-
tuições.

Na análise das várias abordagens do direito internacional da concorrência sublinha-


se a estratégia de instituição de um direito da concorrência global proposta por Ger-
ber.

Gerber delineia uma estratégia em que os Estados comprometem-se a percorrer um


caminho partilhado constituído por objetivos a curto e longo prazo, em conjunto
coma implementação de estratégias e planos. Esta abordagem constitui uma tentativa
de ultrapassar as diferenças de objetivos, capacidades institucionais e proibições
normativas entre as diferentes instituições criando um processo que não pressupõe
harmonização como ponto de partida mas pretende alcançá-la a longo prazo.

Este acordo será o único acordo funcional se determinados fatores determinantes


evoluírem num sentido favorável à implementação de um direito da concorrência
internacional.

Sugere-se que o início da harmonização se efetue por grupos regionais como acon-
tece já com a União Europeia. Posteriormente a tarefa estaria simplificada porque se
trataria de harmonizar o direito de um pequeno número de regiões.

Considera-se ainda que um início sólido rumo a um sistema transnacional seria dado
pelos Estados Unidos e pela União Europeia em tentarem acordar por tratado ou por
uma série de tratados um direito da concorrência comum, começando por matérias
que geram maior consenso como a legislação sobre cartéis.

São cinco os fatores, alguns deles ambivalentes. e que, consequentemente, suscitam


dúvidas quanto à viabilidade de alcance de uma solução baseada na adoção de direi-
to da concorrência internacional

A alteração ideológica de regulação subjacente às atividades empresariais em cone-


xão com a concorrência constitui um fator importante que poderá influenciar da
adoção de uma solução multilateral.

A proliferação das jurisdições que adotaram um regime de concorrência constitui


igualmente um fator que poderá influenciar a emergência do direito internacional da
concorrência

Um terceiro elemento central nesta análise é constituído pelo aumento dos níveis do
comércio e da interconexão dos mercados. Esta situação amplia o âmbito dos casos
com efeitos extraterritoriais e, consequentemente, regra geral origina uma maior
tendência para alcançar uma solução global.
PERSPETIVAS DO D IREITO INTERNACIONAL DA CONCORRÊNCIA 97

Um quarto fator é constituído pelas experiências de jurisdições com soluções alter-


nativas. Uma motivação relevante para a recetividade ao sistema de concorrência
internacional é a verificação de que a implementação unilateral extraterritorial do
direito da concorrência e os acordos bilaterais de cooperação facultam apenas uma
solução parcial aos problemas suscitados pelas práticas restritivas.

A dinâmica do poder internacional tem um papel importante na determinação da


possibilidade de determinar a possibilidade de alcançar soluções globais para o direi-
to da concorrência.

O medo da perda de soberania e do poder de veto pelos países mais importantes ao


nível do direito da concorrência diminui os incentivos para a adoção de uma solução
internacional.

Concluímos ser necessária a adoção de um direito da concorrência internacional


como abordagem alternativa à aplicação extraterritorial do direito nacional, dos
acordos bilaterais e da convergência das normas da concorrência.

Apenas os fatores ambivalentes que descrevemos podem obstar à adoção de um


direito internacional da concorrência.

Contudo um balanço da análise efetuada, aliada à adoção do conceito de acordo


multilateral de Gerber leva-nos a concluir que estão reunidas as condições para a
implementação a longo prazo de um direito internacional da concorrência.
Professores de Direito
GONÇALO SAMPAIO E MELLO *

Sumário: 1. Arthur Montenegro; 2. José Gabriel Pinto Coelho; 3. Luís Pinto Coelho;
4. Paulo Merêa; 5. Pedro Soares Martínez.

1. Arthur Montenegro

1. Arthur Pinto de Miranda Montenegro nasceu em Lisboa a 9 de Abril de 1871 no


seio de uma família de ascendência aristocrática. Seu pai, General de divisão, Depu-
tado às côrtes, Grã-cruz da Ordem de Aviz, provinha em linha varonil de Martinho
Pinto de Miranda Montenegro, fidalgo da Casa Real e administrador de diversos
vínculos em Castelo de Paiva e outros concelhos do norte do País. Aos 16 anos de
idade partiu rumo a Coimbra, onde veio a diplomar-se em Direito com elevadas
classificações, sendo o estudante mais laureado do seu curso. Em 1894 submeteu-se
a provas de Doutoramento sustentando um elenco de Theses ex Universo Jure e
redigindo uma dissertação intitulada Theoria da unidade e universalidade da Fal-
lencia. Doutor em Janeiro de 1895, nesse mesmo ano concorreu a uma vaga de Len-
te substituto juntamente com os seus antigos colegas Teixeira de Abreu e Afonso
Costa, ficando classificado em primeiro lugar entre os três candidatos. Remonta a
1897 a sua ascensão à cátedra, terminus a quo de uma carreira docente que tudo
indicava vir a ser longa, frutuosa e brilhante.

2. Uma vez despachado Lente substituto começou Arthur Montenegro a ministrar a


disciplina de Direito Romano, que por completo remodelou no que toca ao pro-
grama, conteúdo e métodos de ensino. Devem-se-lhe, efectivamente, três iniciativas

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 99-108.

* Professor, Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa.


100 GONÇALO SAMPAIO E MELLO

de relevante alcance pedagógico, a saber: eliminação do compêndio de Wal-


deck Institutiones Juris Civilis Heineccianae, obra que reinava em Coimbra como
livro de texto oficial desde os primórdios do século XIX; substituição do mesmo
compêndio por manuais de autores franceses como Cuq, Petit, Girard, obras litera-
riamente atraentes e dogmaticamente actualizadas; elaboração das suas próprias
Lições, que deu à estampa entre 1896 e 1898 pela «Casa França Amado». Nave-
gando numa linha histórico-sociológica, as Lições de Arthur Montenegro constituem
o primeiro compêndio de Direito Romano a ser redigido entre nós depois da Refor-
ma Pombalina, facto que desde logo lhe granjeou auréola de romanista. Trata-se de
livro que, na verdade, nenhum outro no seu género conseguiu ultrapassar, seja pelo
esmero literário seja pela riqueza do conteúdo, o qual inclui o estudo do Ius Roma-
num nas suas fontes e instituições privadas fundamentais – capacidade civil, família,
obrigações, propriedade e sucessões. Recuperando um atraso científico de décadas,
Portugal voltava a dispor de um compêndio de Direito Romano digno dos melhores
da literatura da época.

3. Homem de perfil «fino e elegante, ainda novo, barba à Guise, de sêda, e uma
cabeça de marfim com uma penugem doirada nas fontes e na nuca» (Teixeira de
Pascoaes), espírito culto, superiormente educado, orador de mérito, Arthur Monte-
negro adere ao Partido Progressista e resolve passar a Lisboa, onde a breve trecho se
embrenha na vida social e política da côrte. É então que o seu virtuosismo se distrai
para as altas situações do Estado: o Parlamento, a que pertence em diversas legisla-
turas entre 1892 e 1910; o Governo, onde chega a tomar conta da pasta da Justiça em
três gabinetes. No Parlamento profere discursos acerca da instrução pública, da ques-
tão ultramarina, da reforma da Justiça, da liberdade de imprensa, do orçamento do
Estado, do empréstimo contraído por D. Miguel. No Governo, onde dispõe da
«especial simpatia e protecção do chefe progressista José Luciano de Castro», inte-
gra os elencos ministeriais dos conselheiros Wenceslau de Lima, Veiga Beirão e do
próprio José Luciano. Afirma-se ainda como mestre de Direito do infante – e futuro
rei – D. Manuel II.

4. Após o advento da República decide Montenegro abandonar a política activa para


se dedicar exclusivamente ao Ensino. De regresso a Coimbra são-lhe distribuídas as
cadeiras de Direito Romano e Direito Constitucional Comparado, que efectivamente
rege. Em Setembro de 1913 integra os primeiros júris de recrutamento de professo-
res da nova «Faculdade de Estudos Sociaes e de Direito de Lisboa», escola acabada
de criar por Afonso Costa, ao tempo Presidente do Ministério. E quando, em
Dezembro desse mesmo ano, o conselho da nova escola lhe dirige convite para vir
leccionar nela, Arthur Montenegro dispõe-se a aceitar a oferta, “provisoriamente”
embora, ficando encarregado da disciplina de “História das Instituições do Direito
Romano”. Trata-se de matéria que quadra ao seu temperamento cultural e que irá
reger quase sem interrupções até 1941, quando se jubila. Três aspectos são dignos de
referência durante este período cronológico. O primeiro é o ingresso do lente no seio
PROFESSORES DE D IREITO 101

da Academia das Ciências de Lisboa, instituição ao serviço da qual proferiu rele-


vantes elogios e pareceres académicos (acerca de Veiga Beirão, Oliveira Guimarães,
Conde de Paçô Vieira, Fernando Emygdio da Silva, Rafael Garofalo, Juan Antonio
Buero, Pedro Pitta). O segundo é a publicação do livro de doutrina A conquista do
Direito na Sociedade Romana que, após haver alcançado louvor do Visconde de
Carnaxide, obtém duas tiragens editorais (1934, 1999). O terceiro aspecto que nos
importa aqui reter é a enfermidade que o atingiu e a pouco e pouco lhe foi roubando
a luz dos olhos até o conduzir a uma situação muito próxima da cegueira. Este últi-
mo será suficiente para justificar a escassa produção bibliográfica de Arthur Monte-
negro enquanto leccionou na Escola do Campo de Santana, sem embargo do apru-
mo, do esmero, da elegância com que sempre procurou desempenhar as suas
funções.

5. Professor em Lisboa durante quase três décadas, nunca Montenegro deixou de


estar nominalmente vinculado à Faculdade de Direito de Coimbra, instituição pela
qual veio a jubilar-se em Abril de 1941. Sócio efectivo do Instituto de Coimbra,
vogal do Conselho Superior da Instrucção Publica, membro do Tribunal Permanente
de Arbitragem de Haia, possuía diversas condecorações nacionais e estrangei-
ras, v.g. a Legião de Honra, a Ordem de Carlos III de Espanha e a Ordem de Leo-
poldo da Bélgica. Faleceu na Anadia em 24 de Setembro de 1941, sendo substituído
na cátedra coimbrã por Guilherme Braga da Cruz. Referências à vida e obra deste
lente ancien régime podem ser encontradas nos seguintes autores: Veiga Beirão,
«Parecer acerca da candidatura do Sr. Dr. Arthur Montenegro a Socio Effectivo»,
in Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, vol. VI, 1912;
Visconde de Carnaxide, «Parecer da secção de Sciencias Morais e Jurisprudencia
acerca duma obra inédita do Dr. Artur Montenegro», in Boletim da Segunda Clas-
se da Academia das Ciências de Lisboa, vol. XVI, 1926; Fernando Emygdio da
Silva, Conferências e mais Dizeres, vol. III, Lisboa, 1964; Guilherme Braga da
Cruz, A Revista de Legislação e de Jurisprudência. Esboço da sua História, vol. I,
Coimbra, 1975; Gonçalo Sampaio e Mello, Apontamentos para a história do ensino
do Direito Romano em Portugal, vol. I, Lisboa, 1991; Fernando Luso Soares, «Pre-
fácio» à 2ª edição da obra A conquista do Direito na Sociedade Romana de Arthur
Montenegro, Lisboa, 1999; José Artur Duarte Nogueira, Direito Romano. Relatório
sobre o programa, o conteúdo e os métodos de Ensino, Lisboa, 2000; Fernando
Moreira, «Montenegro, Artur Pinto de Miranda», in Dicionário Biográfico Parla-
mentar. 1834-1910, vol. II, Lisboa, 2005.

2. José Gabriel Pinto Coelho

José Gabriel Pinto Coelho nasceu em Lisboa a 18 de Março de 1886 no seio de uma
família de velhas tradições políticas e jurídicas. Filho de Domingos Pinto Coelho,
advogado de renome, membro da direcção do Partido Legitimista, senador, bastoná-
102 GONÇALO SAMPAIO E MELLO

rio da Ordem dos Advogados, era neto de Carlos Zeferino Pinto Coelho, grande
figura do século XIX como militante católico e monárquico – que Rafael Bordalo
Pinheiro imortalizou no Álbum das Glórias –, antigo deputado, desembargador da
Relação de Lisboa e chefe político do Partido Legitimista. Remonta a 1902 a sua
matrícula na Faculdade de Direito de Coimbra, onde foi colega de Luiz da Cunha
Gonçalves, Lobo d’Ávila Lima, Fernando Emygdio da Silva e António de Abran-
ches Ferrão, todos eles futuros doutores em Direito. Diplomado com a classificação
de “Muito Bom, 18 valores”, submeteu-se em 1909 a provas de Doutoramento, ten-
do redigido para o efeito um elenco de Theses ex Universo Jure e elaborado uma
dissertação intitulada Das clausulas accessorias dos Negocios Juridicos, que a breve
trecho redundou clássica. No ano seguinte concorreu a uma vaga de Lente substituto
da Faculdade, após o que ascendeu à categoria de Lente catedrático (decreto de 5 de
Março de 1910) na companhia de Lobo d’Ávila Lima. Contava 23 anos de idade.

2. Uma vez provido Lente de capelo, começou José Gabriel Pinto Coelho a minis-
trar a disciplina de “Sociologia Geral e Philosophia do Direito”, que foi o último
professor a reger antes da respectiva extinção, levada a efeito pela Reforma de 1911,
e da qual deixou lições compiladas por alunos. Transitou depois para diversas outras
matérias, a exemplo de Direito Civil (Obrigações, Reais, Família, Sucessões), Legis-
lação Civil Comparada, Pratica Extra-Judicial. Uma houve, todavia, que desde logo
intelectualmente o seduziu e no âmbito da qual veio a revelar-se «especialista con-
sumado». Tratou-se da cadeira de Direito Comercial, em que se fixou, publicou
vasta literatura e adquiriu renome. Comercialista era já, com efeito, quando em 1919
decidiu requerer a sua transferência para a Faculdade de Direito de Lisboa. Nascido
na capital, aqui casado com senhora de família aristocrática (neta dos Condes-Mar-
queses da Ribeira Grande), aqui residentes os seus pais e outros parentes de sangue,
natural era que Pinto Coelho, após um início de carreira brilhante, quisesse reverter
às suas raízes, trocando as margens do Mondego pelas do Tejo.

3. A transferência de José Gabriel Pinto Coelho para a Escola do Campo de Santana


operou-se mercê do decreto de 6 de Janeiro de 1919. Foi-lhe então distribuída a
regência da cadeira de Direito Internacional Privado, que manteve durante dois anos
lectivos completos. Percorreu também o juscivilismo (Obrigações, Reais, Família,
Sucessões, Noções Fundamentais), no âmbito do qual revelou a sua adesão à pan-
dectística germânica, pela via italiana. Entretanto, a predilecção científica do mestre
continuava a ser o Direito Comercial, cujo progresso dogmático ia acompanhando de
perto nas suas Lições, tendo representado o país no seio da Câmara de Comércio
Internacional e publicado doutrina em periódicos como Jornal do Fôro, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Revista da
Ordem dos Advogados, Gazeta dos Advogados da Relação de Luanda e, sobre-
tudo, Revista de Legislação e de Jurisprudência, de cujo corpo redactorial chegou a
ser o colaborador decano.
PROFESSORES DE D IREITO 103

4. Professor exigente, disciplinado e disciplinador, «jurista cem por cento, dos que
professam fiat justitia, pereat mundus» (Marcello Caetano), homem no qual con-
fluíam «a correcção, a verdade, a dignidade, o carácter» (Soares Martínez), José
Gabriel Pinto Coelho foi nomeado Director da Faculdade de Direito de Lisboa em
1936. Ascendeu depois a Vice-Reitor (1937-46) e a Reitor da Universidade de Lis-
boa (1946-56), perfazendo um mandato de quase duas décadas. Fora do domí-
nio universitário presidiu à direcção nacional da Liga Católica, colaborou nas
“Semanas Sociais Portuguesas” e foi procurador à Câmara Corporativa, organismo
de que chegou a ser eleito Vice-Presidente (na vaga de Manuel Rodrigues Júnior) e
Presidente (na vaga de Domingos Fezas Vital) e ao serviço do qual discutiu e relatou
numerosos pareceres em matéria jurídica, económica e social. Distinguido com a
Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, faleceu em Lisboa, dobrados os 90 anos de
idade, em 28 de Abril de 1978. Jaz sepultado no cemitério dos Prazeres.

3. Luís Pinto Coelho

1. Herdeiro de três gerações de políticos, jurisconsultos e homens de Letras, Luís da


Câmara Pinto Coelho nasceu em Coimbra a 3 de Junho de 1912. Filho de
José Gabriel Pinto Coelho, professor catedrático de Direito, reitor da Universidade
de Lisboa e presidente da Câmara Corporativa, era neto de Domingos Pinto Coelho,
senador e bastonário da Ordem dos Advogados e bisneto de Carlos Zeferino Pinto
Coelho, chefe político do Partido Legitimista e desembargador da Relação de Lis-
boa. De longe lhe vinham, por conseguinte, as rationes serminales que o terão feito
optar pelas letras jurídicas quando em 1929 decidiu matricular-se na Faculdade de
Direito de Lisboa, ao tempo ainda instalada no palacete dos Viscondes de Valmor,
sito no Campo dos Mártires da Pátria.

2. Aluno distinto desde a primeira hora, Luís Pinto Coelho foi «sebenteiro» dos
lentes Carneiro Pacheco e Barbosa de Magalhães, versou no 5.º ano o tema Do con-
curso de pessoas no Crime Culposo e, uma vez alcançada a Licenciatura, partiu para
Roma a fim de aperfeiçoar os seus conhecimentos no domínio do direito privado. Ali
conviveu com Francesco Carnelutti, cuja obra Metodologia del Diritto depois verteu
para a língua portuguesa e publicou duas Rassegna di Legislazione Portoghese no
«Istituto di Studi Legislativi». De regresso a Portugal, submeteu-se a Doutoramento
em Ciências Histórico-Jurídicas apresentando para o efeito a tese intitulada Da
Compropriedade no Direito Português (1939), após o que ascendeu a Professor
Extraordinário (1943) e a Professor Catedrático (1944) mediante concurso de provas
públicas. Remonta a este mesmo ano a tradução a que meteu ombros de um outro
jurista italiano, Guido Gonella, cuja obra Bases de uma Ordem Internacional a
Livraria Sá da Costa daria à estampa com prefácio do Cardeal Cerejeira.
104 GONÇALO SAMPAIO E MELLO

3. Conquistada a láurea doutoral, foram entregues a Luís Pinto Coelho a disciplina


de Direitos Reais e, logo de seguida, diversas outras, que efectivamente leccionou –
Introdução ao Estudo do Direito, Direito Civil (Teoria Geral e Noções Fundamen-
tais), Direito Internacional Privado, História do Direito Romano, Direito Corpora-
tivo. Politicamente integrado nas fileiras do Estado Novo, foi deputado à Assembleia
Nacional, governador-civil de Castelo Branco, dirigente da Mocidade Portuguesa,
consultor jurídico do Ministério da Economia, membro da comissão redactora do
Código Civil, mas ainda encontrou vagar para publicar doutrina em periódicos
como O Direito, Revista da Ordem dos Advogados, Revista de Direito e de Estudos
Sociais, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Boletim do
Ministério da Justiça, etc.

4. Homem distinto, culto, superiormente educado, de «impecável correcção no trato


público e privado», expositor fluente e elegante, desde cedo Pinto Coelho se sentiu
também atraído para a esfera das relações internacionais. Ao serviço do Governo
português esteve em Roma (1938), Salamanca (1946), Berlim (1952), Genebra
(1955-56), Nova Delhi (1957), até que em 1961 foi nomeado para o cargo de
Embaixador de Portugal em Espanha, onde alcançou posição de grande prestígio e se
manteve até 1968. O seu encontro e posterior casamento, em 2 as núpcias, com Kathe-
rine Talbot, femme fatale de nacionalidade americana, empurra-lo-ia porém à con-
tre-coeur para a América do Sul: Brasil (conselheiro cultural entre 1970 e 1972),
Argentina e Paraguai (embaixador entre 1972 e 1974). Não mais haveria de regressar
ao desempenho de funções públicas na Europa.

5. Distinguido entre nós com a Ordem de Cristo, a Ordem do Infante D. Henrique e a


Ordem da Instrução Pública, e em Espanha com a Ordem de Cisneros e a Ordem de
Isabel A Católica, residiu neste último país até pouco antes de falecer, no dia 4 de
Julho de 1995. Do seu 1º casamento com Maria da Madre de Deus Braamcamp Frei-
re, filha dos Barões de Almeirim, deixou vasta descendência, de entre a qual avulta o
Pintor do mesmo nome.

4. Paulo Merêa

Homem de Letras, jurista, historiador, poeta, musicólogo, linguista, «Nestor der


portugiesischen Rechtsgeschichte» (Hans Thieme), Manuel Paulo Merêa nasceu em
Lisboa a 2 de Setembro de 1889. Filho de um crítico de arte e professor do Conser-
vatório Nacional frequentou o Liceu do Carmo, onde conviveu com Damião Peres e
Fidelino de Figueiredo, após o que pretendeu matricular-se no Curso Superior de
Letras a fim de realizar a sua vocação intelectual, que era a Filologia. Desaconse-
lhado de o fazer – o futuro entre nós, em termos de saídas profissionais, não sorria
então aos filólogos –, partiu rumo a Coimbra para cursar Direito, tendo tido a fortuna
de encontrar pela frente um dos melhores cursos de que há memória nos fastos da
PROFESSORES DE D IREITO 105

Lusa-Atenas. Colega de António Sardinha, Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz,


Luís Cabral de Moncada, Armando Marques Guedes, Veiga Simões, sabe-se que
militou no grupo dos «Esotéricos» sob o criptónimo de Rabelais, reagiu contra o
positivismo triunfante através da conferência Idealismo e Direito e publicou um
estudo pioneiro acerca das origens do Feudalismo, acabando por vir a diplomar-se
em 1912 com a informação final, rara, de “Muito Bom, 19 valores”.

2. Uma vez obtida a carta de curso, Paulo Merêa submete-se a provas para docente
da Faculdade elaborando para o efeito a tese Evolução dos Regimes Matrimoniais,
que publica. Assistente em Março de 1914, ascende em Setembro do mesmo ano à
categoria de Professor Extraordinário (mediante proposta de Marnoco e Souza), em
Fevereiro de 1915 à categoria de Professor Ordinário – vulgo Catedrático – e em
Fevereiro de 1918 à categoria de doutor do Grupo de “História do Direito e Legisla-
ção Civil Comparada” (mediante proposta de José Alberto dos Reis). Fica então
titular da disciplina de História do Direito Português, que irá fazer ascender a um
nível científico-pedagógico nunca antes atingido entre nós nem superado em outras
latitudes. Possuindo «genial intuição, espírito artístico e poderoso talento constru-
tivo, servidos por uma força literária espontaneamente sugestiva» (Almeida Costa),
Paulo Merêa dominava o Direito, a Filosofia Política, a História, a Literatura, a Filo-
logia, a Paleografia, a Diplomática, conhecia sete línguas vivas e mortas – espanhol,
francês, inglês, italiano, alemão, latim, árabe –, e era escritor infatigável, autor de
uma bibliografia que irá reunir mais de trezentos títulos. Entre 1920 e 1924, a convi-
te de António de Vasconcellos, ministra aulas na Faculdade de Letras de Coimbra,
onde inspira discípulos como Paulo Quintela, Sílvio Lima, Costa Pimpão, Paiva
Boléo, Torquato de Sousa Soares, Manuel Lopes de Almeida, Vitorino Nemésio. Em
1924 surge eleito sócio da Academia das Ciências de Lisboa mediante parecer rela-
tado pelo Visconde de Carnaxide. Em 1937 está entre os membros fundadores da
Academia Portuguesa da História, sendo-lhe cometida a tarefa de orientar a publica-
ção da colectânea Documentos Medievais Portugueses. Notável é de igual modo o
papel que assume na revisão estilística e gramatical do projecto do novo Código
Civil, a que mete ombros a instâncias do Ministério da Justiça. E porque para além
de bibliógrafo é também bibliólogo e bibliófilo, contam-se por dezenas as resenhas
que teceu à obra de investigadores estrangeiros. Carl Schmitt, Leo Strauss, Edoardo
Volterra, Marc Bloch, Sánchez-Albornoz, Giulio Vismara, Émile Lousse, Juan
Beneyto, Álvaro d’Ors, Piero Rasi, García-Gallo, incluem-se neste rol.

3. Temperamento nervoso, emotivo, vibrátil, denunciando agitada vida interior, «ser


hamletiano» que questões de ordem ética e metafísica perturbavam, espírito amante
da música – Bach, Schubert, Beethoven –, Paulo Merêa leccionou as disciplinas de
História do Direito Português, História de Portugal, História do Direito Privado,
História das Instituições do Direito Romano, Direito Constitucional Comparado,
Legislação Civil Comparada, recebeu o grau de doutor honoris causa pela Universi-
dade de Coimbra e pela Universidade de Santiago de Compostela viu-se distinguido
106 GONÇALO SAMPAIO E MELLO

com a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada, a Grã-Cruz da Ordem de Cristo


e o Grande Prémio Nacional de Cultura. «Homem simples, de uma humildade que
só o enobrecia», afirmou-se como o maior historiador do direito português de todos
os tempos. Aposentado pela Faculdade de Direito de Lisboa, escola onde leccionou
entre 1924 e 1931, veio a falecer, carregado de anos, em 5 de Janeiro de 1977. Parte
substancial da sua obra de doutrina encontra-se reunida em volume pela Imprensa
Nacional-Casa da Moeda (4 tomos, 2004-2007).

5. Pedro Soares Martínez

1. Jurisconsulto, economista, consultor financeiro, historiador e filósofo da política,


Pedro Mário Soares Martínez nasceu em Lisboa a 21 de Novembro de 1925. Licen-
ciado em Ciências Jurídicas (1947) e em Ciências Político-Económicas (1949) pela
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aí obteve a láurea doutoral em
1953 mediante a apresentação da tese intitulada Da Personalidade Tributária. Data
de 1950 o seu contrato como 2.º Assistente da mesma Faculdade, instituição a que
permanece ligado e da qual foi, sucessiva, alternada ou concomitantemente, 1.º
Assistente, Professor Extraordinário, Professor Catedrático, Professor Secretário,
Professor Bibliotecário e Director, para além de haver atingido, por direito de anti-
guidade, a categoria de Professor Decano da Universidade de Lisboa. Dotado de
vastos recursos oratórios, leccionou todas as disciplinas do Grupo de Ciências Jurí-
dico-Económicas, sua área de especialidade, e ainda outras ao mesmo alheias (Eco-
nomia Política, Finanças, Direito Fiscal, Direito Corporativo, Direito do Trabalho,
Direito Internacional Público, História Diplomática, História das Relações Interna-
cionais e Filosofia do Direito), tendo deixado lições impressas ou policopiadas em
diversas delas, com destaque para os compêndios de Direito Fiscal e de Economia
Política, que têm colhido larga aceitação entre o público leitor e para os tratados
de História Diplomática de Portugal, Filosofia do Direito e A República Portuguesa
e as Relações Internacionais, que a Academia Portuguesa da História galardoou
(«Prémio Dr. P. M. Laranjo Coelho», «Prémio 3.º Marquês de São Payo» e «Prémio
Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão»). Entre 1948 e 1956 pertenceu Soares
Martínez aos quadros do Ministério dos Negócios Estrangeiros, tendo chefiado inte-
rinamente o serviço de Cifra e uma secção do serviço do Pacto do Atlântico. Mem-
bro da Comissão de Reforma Fiscal – na qual curou, especialmente, da reforma do
Imposto Profissional e do Imposto de Capitais –, do «Institut International de Finan-
ces Publiques», com sede em Bruxelas e da Comissão de Questões Fiscais da Câma-
ra de Comércio Internacional, foi ainda Procurador à Câmara Corporativa e vogal do
respectivo Conselho da Presidência (1961-1969), tendo desempenhado papel de
relevo no debate e elaboração dos numerosos pareceres que em tal período se relata-
ram em matéria económica, financeira e social. Chamado ao Governo, por Oliveira
Salazar, para sobraçar a pasta da Saúde e Assistência (1962-63), à sua gerência fica-
ram a dever-se a inspiração e promulgação de diplomas fundamentais para a defesa
PROFESSORES DE D IREITO 107

da saúde pública em Portugal, tendo também representado o país internacionalmente


no seio da Organização Mundial de Saúde (Estocolmo e Genebra). Escritor de estofo
e doutrinador de singular craveira mercê da riqueza e diversidade dos domínios
explorados, elevam-se a mais de três centenas e meia os títulos que compõem a sua
bibliografia, redigida toda ela em linguagem que transluz a vasta cultura do autor
(não apenas técnico-científica mas também histórica, filosófica, literária e política), a
sua capacidade de investigação e inovação pessoais e uma elegância formal que é
timbre de todos os seus escritos. Memorialista de mérito, tem vindo a traçar o perfil
biográfico de representativas figuras da vida social portuguesa e estrangeira, quer
ligadas ao mundo do Direito (Paulo Cunha, Marcello Caetano, João Lumbrales, Ruy
Ulrich, Galvão Telles, Saldanha Sanches, Sousa Franco), quer ligadas ao mundo da
Literatura, da Política, da Sociedade (Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Egas Moniz,
Pedro Calmon, Gilberto Freyre, Ortega y Gasset, Fraga Iribarne), quer pertencentes
já aos fastos da história pretérita (a exemplo de Afonso X, Miguel de Cervantes,
Francisco de Miranda, Jean-Étiènne Portalis, D. Maria Bárbara de Bragança, Vis-
conde de Santarém, D. Manuel II). Coleccionador de fino gosto e largo conhecimen-
to estético, bibliófilo e bibliógrafo, detentor de escolhido acervo de antiguidades e
objectos de Arte, causeur de grande interesse e poder de sugestão, espírito cuja con-
duta se norteia pelo doutrinarismo e pelo prudencialismo sem jamais resvalar para os
domínios do contorcionismo e da subserviência, afirmou-se Pedro Soares Martínez
como um dos melhores professores de Direito da sua geração e um dos grandes da
Escola em cujo seio teve o privilégio de aprender, ensinar e investigar. Católico e
monárquico mercê da formação humana que recebeu e soube depois aprimorar,
perfilhou sempre, no campo do pensamento, concepções chegadas ao essencialismo
transcendentalista, ao tradicionalismo legitimista, ao jusnaturalismo de matriz clássi-
ca, ao corporativismo de associação e ao personalismo ou humanismo cristão.

2. Antigo Ministro de Estado, Procurador à Câmara Corporativa e Director da


Faculdade de Direito de Lisboa, após o advento da Revolução de 25 de Abril de
1974 viu-se Pedro Soares Martínez ferido de incapacidade eleitoral activa e passiva
e submetido a «processo de saneamento», o qual culminou em 1975 com a aplicação
da pena de demissão dos quadros do ensino superior. Era então titular da pasta da
Educação e Cultura o Major José Emílio da Silva e Primeiro-Ministro o Brigadeiro
Vasco dos Santos Gonçalves. Oficialmente impedido de leccionar, partiu rumo a
Espanha, onde se exilou mas, regressando ao país, interpôs recurso contra a medida
que lhe havia sido aplicada, tendo obtido ganho de causa e voltado às suas antigas
funções a partir de 1978.

3. À data em que se traçam estas linhas pertence Pedro Soares Martínez às seguintes
instituições e desempenha, ou já desempenhou, os seguintes cargos e dignidades:
Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;
Professor Ordinário jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Católica Por-
tuguesa; Sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa (onde sucedeu a José
108 GONÇALO SAMPAIO E MELLO

Caeiro da Matta); Académico de número da Academia Portuguesa da História (onde


sucedeu a Victor Braga Paixão); Sócio correspondente do «Instituto Historico e
Geographico Brasileiro» (onde sucedeu a Martinho Nobre de Mello); Membro da
Sociedade de Geografia de Lisboa (a cuja Comissão de Economia já presidiu); Sócio
do Grémio Literário (cujo Conselho Literário já integrou); Sócio honorário da Asso-
ciação Jurídica de Braga; Sócio de “categoria A” do Círculo Eça de Queiroz; Mem-
bro da «Real Academia de la Historia» de Madrid; Membro da «Association Henri
Capitant» de Paris; Sócio do «Instituto de Estudios del Estado» de Buenos Aires;
Membro da «Academia Nacional de la Historia» da Venezuela; Sócio do «Instituto
de Direito Tributário» de São Paulo; Grã-Cruz e membro do Conselho da Lugar-
Tenência Portuguesa da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém; Comen-
dador e membro do Conselho da Delegação Portuguesa da Ordem de S. Maurício e
S. Lázaro da Casa de Sabóia; Cavaleiro iure sanguinis da Ordem Constantiniana de
S. Jorge; Cavaleiro gratia magistrale e Presidente do Conselho Fiscal da Assembleia
dos Cavaleiros Portugueses da Ordem Soberana Militar de Malta; Comendador da
Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Retratos a óleo de Pedro
Soares Martínez encontram-se expostos na Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa (da autoria de Luís Guimarães, 1999) e na casa de raiz seiscentista que habita
em Lisboa num dos bairros mais carismáticos da cidade (da autoria de Isaac Seruya
Torres, 1960). Referências à vida e obra deste mestre de Direito podem ser encon-
tradas na colectânea Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares
Martínez, que contou com a colaboração de cerca de 70 personalidades nacionais e
estrangeiras (2 vols., Coimbra, Almedina, 2000).
Princípios Fundamentais da Constituição
de Timor Leste: Uma Anotação ao Poema «Pátria»,
de Xanana Gusmão?
PAULO FERREIRA DA CUNHA *

PÁTRIA
Pátria é, pois, o sol que deu o ser
Drama, poema, tempo e o espaço
Das gerações que passam, forte laço
E as verdades que estamos a viver.
Pátria é sepultura, é sofrer
De quem marca coa vida um novo passo.
Ao povo, uma Pátria é, num traço simples,
Independência até morrer!
Do trabalho o berço, paz, tormento.
Pátria é a vida, orgulho, a aliança
Da alegria, do amor, do sentimento.
Pátria: é tradição, passado e herança!
O som da bala é: Pátria do momento!
Pátria é do futuro a esperança!
Pátria... é do futuro a esperança!

Kai Rala Xanana Gusmão

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 109-116.

* Professor Catedrático, Faculdade de Direito, Universidade do Porto.


110 PAULO FERREIRA DA CUNHA

Pátria é, pois, o sol que deu o ser1

O sol, como se sabe, é um símbolo universal e polissémico. Politicamente é o


símbolo da soberania, outrora identificada com o monarca e até com a divindade.
Símbolo imperial, mas de imperium, não de imperador. Assim, como é evidente,
começa-se pelo princípio primeiro (como, na China, no sonho fecundador solar
da mãe do imperador Wu, dos Han; a Bíblia assimila metaforicamente a divin-
dade, o sol e o escudo – que é defesa e soberania): o princípio que dá vida, que dá
ser a Timor-Leste independente.

Além de no n.º 1 do art. 1.º da Constituição se referir a soberania e a independên-


cia (inter alia) do Estado, assinala-se esse sol que deu o ser de forma mais explí-
cita num número que não tem grande paralelo em direito comparado: dizendo-se
logo no n.º 2 que

“O Dia 28 de Novembro de 1975 é o dia da proclamação da Inde-


pendência da República Democrática de Timor-Leste”.

O primeiro objectivo do Estado (art. 6.º a)) não pode assim deixar de ser defender
e garantir a soberania do País. E é muito importante e superiormente subtil que a
Constituição não identifique o País com o Estado, e a este subordine, expressa-
mente e com muita clareza, à Constituição e às lei (art. 2.º, 2), insistindo mesmo
que

“As leis e os demais actos do Estado e do poder local só são váli-


dos se forem conformes com a Constituição.” (art. 2.º, 3).

Com a incapacidade agelástica2 dos Akaki Akakiévitch, de Gogol 3 (que, por uma
lei de bronze, povoam todas as burocracias), é muito importante que um Estado
nascente se não autocompraza no estatalismo e explicitamente subordine a cria-
tura ao criador, ao sol da Pátria, que dá o ser e não se confunde com o Estado, e
muito menos com as suas vicissitudes.

O art. 13.º regista as línguas oficiais, o 14.º considera os símbolos nacionais (ban-
deira, emblema e hino) e o 15.º descreve a bandeira. A polémica sobre o hino
daria pano para mangas no plano semiótico-ideológico. Significativamente a

1
Este ensaio tem como base, reelaborando-o, o texto de uma palestra, por ocasião da
comemoração do X aniversário da Constituição da República Democrática de Timor Leste,
feita por vídeo-conferência, em 8 de Maio de 2012. Nela participaram outros catedráticos de
Direito Constitucional de Universidades públicas portuguesas.
2
Cf. RORTY, Richard – Contingence, Irony, Solidarity, Cambridge Universtity Press, 1989.
3
GOGOL, Nicolai – O Capote, 1843.
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO DE TIMOR LESTE 111

melodia que constitucionalmente se deve executar em momentos oficiais também


se chama “Pátria, Pátria, Timor-Leste a nossa nação”, sendo sobretudo uma evo-
cação anticolonialista e anti-imperialista, o que também evoca o momento funda-
dor da nacionalidade. Remete-se porém para lei ordinária a aprovação de hino
definitivo e do emblema (art. 14, 2 e 166.º).

Não deixa de ser interessante que houve mudança de significado explícito das
cores na bandeira. Voltaremos certamente um dia ao problema, que parece novo.

Drama, poema, tempo e o espaço

Ao considerar a Pátria na encruzilhada das dimensões mais consabidas (tempo e


espaço) e das transdimensões dramática e poética, remete o autor para o real e o
ideal, para o princípio de realidade e para o princípio esperança (ou de utopismo,
como advogava Ernst Bloch 4). Pátria é drama e poema na luta, na resistência,
evocada desde logo no preâmbulo e na consagração constitucional da valorização
da resistência (art. 11.º) e da solidariedade da luta dos demais povos pela liberta-
ção nacional (art. 10.º, 1). Aquela valorização da resistência é questão de tempo
(e dir-se-ia, cum grano salis, que também “de arte”), porquanto não se trata ape-
nas da resistência mais imediata, mas de uma resistência “secular” contra a
“dominação estrangeira”, como diz o art. 11.º. Dizendo ainda o Preâmbulo:

“A elaboração e adopção da Constituição da República Democrá-


tica de Timor-Leste culmina a secular resistência do povo timo-
rense, intensificada com a invasão de 7 de Dezembro de 1975.”

Tempo e espaço são tratados nos limites da Constituição de forma quase habitual,
embora ciosa do que é timorense e numa perspectiva moderna, descentralizada.

O espaço é com efeito desde logo motivo da demarcação territorial (no art. 4, 1),
sem esquecer o enclave de Oe-cussi Ambeno e os ilhéus de Ataúro e Jaco. Reme-
te-se para lei a determinação da extensão e do limite das águas territoriais, assim
como da zona económica exclusiva e dos direitos do Estado timorense na zona
contígua e na plataforma continental (art. 4, 2). Mais habitual é a declaração do
n.º 3 de não alienação do território, ou parte dele, salvo rectificação de fronteiras.

E o art. 5.º desenvolve a descentralização como tête de chapitre de futura legisla-


ção.

4
BLOCH, Ernst — Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt, Suhrkamp, 1959, trad. cast. de Felipe
Gonzales Vicen, El Principio esperanza, Madrid, Aguilar, 1979, III vols., trad. fr. de Fran-
çoise Wuilmart, Le Principe espérance, Paris Gallimard, 1976, reimp. 1991.
112 PAULO FERREIRA DA CUNHA

O tempo vê-se em vários momentos, mas não é nos prazos que mais se revela,
antes no tempo que liga as pessoas, e que é o motivo do verso seguinte:

Das gerações que passam, forte laço


E as verdades que estamos a viver.

Para além de evocar a questão da nacionalidade ou cidadania (que é questão de


terra e de geração e gerações – art. 3.º), estes dois versos articulam-se com um
sentido mais profundo: a Pátria é traço-de-união, ponte entre gerações (e deve
garantir-se a equidade e a justiça intergeracional: é um ponto hoje de novo na
ribalta) e por ela se cria e se deve contextualizar o presente. A expressão “verda-
des” é muito forte. Não é um mero contexto, conjuntura. Quando se vivem verda-
des vivem-se, actualizam-se, dá-se vida a valores. E o entendimento da Pátria
como valor é grande acorde de patriotismo. Recordemos, com Johannes Hessem.5
que valores (mesmo os políticos) são estrelas com luz própria no firmamento da
ética. E não esqueçamos que a bandeira de Timor tem uma estrela: que expressa-
mente simboliza “a luz que guia” (art. 15, 1), e não, por exemplo, o internaciona-
lismo proletário ou mesmo a representação do céu, como outras estrelas em ban-
deiras.6

Tal como o sol, o símbolo da estrela está pelo mundo fora. A de cinco pontas,
como a timorense, é frequentemente representação do microcosmos humano
(como um estilizado cânone das proporções de Leonardo (o chamado “homem
vitruviano”), ou o Modulor de Le Corbusier. Ter-se ainda que simbolicamente o
Homem na bandeira é importante. E remete para um princípio ou megaprincípio
jurídico, infelizmente um pouco erodido pelo abuso e mau uso, até na jurispru-
dência, mas que continua na sua pureza a ser uma estrela guia: a dignidade da
pessoa humana,7 a qual, conjuntamente com a vontade popular, é base da Repú-
blica Democrática de Timor Leste (art. 1.º, 1).

5
HESSEN, Johannes — Filosofia dos Valores, tradução portuguesa de Luís Cabral de Mon-
cada, nova ed., Coimbra, Almedina, 2001.
6
Cf. o nosso Anti-Leviathã – Direito, Política e Sagrado, Porto Alegre, Sergio Fabris Editor,
2005, máx. p. 180 ss.
7
Cf., v.g., o nosso Direito Constitucional Geral, Lisboa, Quid Juris, 2006, pp. 247 ss. et
passim.
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO DE TIMOR LESTE 113

Pátria... é sepultura... é sofrer


De quem marca, co’a vida, um novo passo.

Ao contrário das constituições que festivamente inauguram uma nova era e até
esquecem os deveres, na febre de dar direitos esquecidos, Xanana Gusmão lem-
bra que os passos do sofrimento marcam as conquistas que a Pátria vai alcan-
çando. Não podemos deixar de citar Agostinho da Silva, profeta da lusofonia, que
advertiria para a reversibilidade das conquistas, e o sofrimento que se lhe segui-
ria:

“Só se deve cercar o palácio do Poder se houver decisão de o


tomar (...) se não, é um erro fazê-lo. As coisas voltam-se depois,
contra. Regride-se. Vão dar-se, como consequência, recuos graves
para os trabalhadores portugueses. Eles irão sofrer provações dolo-
rosíssimas. Muitas das suas regalias serão esvaziadas. O desem-
prego disparará em proporções inimagináveis. O que se jogou e se
perdeu aqui, é indizível. A democracia pode não resistir ao libera-
lismo selvagem, à corrupção generalizada, à exclusão massiva, à
miséria crescente, à neo-escravatura, ao neocolonialismo, ao neo-
feudalismo ao neoterrorismo que se perfilam, na fase agora ini-
ciada, no horizonte.”8

A Constituição timorense tem consciência (princípio de realidade) do mal e de


um mal que se não venceu definitivamente com a independência e a Constituição:
daí se afirmar, logo no Preâmbulo, que os constituintes

”Reafirmam solenemente a sua determinação em combater todas


as formas de tirania, opressão, dominação e segregação social, cul-
tural ou religiosa (...)”.

Afirmarão outras coisas, mas esta é a primeira que reafirmam.

Ao povo, uma Pátria é, num traço simples...


Independência até morrer!

Evidentemente que a primeira representação que, de forma sintética e imediata se


tem da Pátria é a da sua independência e continuidade nesse estado. A sensibili-
dade ao problema da primeira dimensão da cultura constitucional, que é a da
interiorização pelo povo da importância da Constituição e dos seus elementos

8
SILVA, Agostinho da Silva (oralmente) apud DACOSTA, Fernando — Nascido no Estado
Novo. Narrativa, Lisboa, Editorial Notícias, 2001, pp. 318-319.
114 PAULO FERREIRA DA CUNHA

mais essenciais não escapou nem ao poeta-político, nem aos constituintes, que
ainda no Preâmbulo se preocupam com a formação cívica do Povo:

“Plenamente conscientes da necessidade de se erigir uma cultura


democrática e institucional própria de um Estado de Direito (...)”.

Essa cultura democrática e institucional é a primeira dimensão, o grau um da


cultura constitucional. Tão importante para que uma Constituição seja querida,
amada, defendida, como as próprias muralhas da cidade – para usar um símile
clássico.

Do trabalho o berço, paz, tormento,


Pátria é a vida, orgulho, a aliança
Da alegria, do amor, do sentimento.

Estes três versos retratam uma Pátria mais quotidiana, feita do claroscuro da vida,
com paz e tormento, em que se recorta o trabalho, sem o qual não há riqueza.
Sabiamente o poeta não dá o salto seguinte, e não diz que o trabalho seja fonte de
toda a riqueza, como fazia o Programa de Gotha, motivo para a brilhante crítica
de Marx, logo a abrir o seu clássico texto. A Pátria é, pois, berço do trabalho, e
presume-se o resto. Não podemos deixar de lembrar a Constituição italiana, que
começa logo o seu artigo 1.º: “L'Italia è una Repubblica democratica, fondata sul
lavoro.”. Na Constituição timorense o trabalho é honrado e defendido no art. 50.º,
com contornos que voltam a ser atuais, na crise presente.9 Há uns tempos pode-
riam ser coisas consabidas, hoje é preciso que se digam e se apliquem:

Trabalhar é um direito e o dever, e há o direito a escolher livremente a profissão


(1). Há direito à segurança e higiene no trabalho, à remuneração, ao descanso e às
férias (2). É proibido o despedimento sem justa causa ou por motivos políticos,
religiosos e ideológicos (3). Mais original ainda parece ser a proibição do traba-
lho compulsivo (4) e a inclusão nesta sede da criação de cooperativas de produ-
ção e do apoio a empresas familiares com vista à criação (e manutenção) do
emprego.

Seguem-se outros artigos de defesa dos trabalhadores, como o direito à greve e


proibição do lock out (art. 51) e liberdade sindical (art. 52).

Orgulho nacional (não chauvinismo) naturalmente se espelha na constituição, e


legitimado pela resistência. É um sentimento que natural e justamente perpassa

9
Cf., por todos, o recente livro de FERREIRA, António Casimiro – Sociedade da
Austeridade e Direito de Trabalho de Exceção, Porto, Vida Económica, 2012.
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO DE TIMOR LESTE 115

todo o Preâmbulo. E nele vai envolvido o preito aos “mártires da Pátria”:

“Esta Constituição representa, finalmente, uma sentida homena-


gem a todos os mártires da Pátria”, diz ainda a dado passo o
Preâmbulo.

Aliança da alegria, do amor, do sentimento.

Quando os manuais de teoria do Estado normalmente de forma rápida e vaga


aludem aos laços comuns que formam a nação,10 são essas alegrias (com os tor-
mentos também, de que se falara antes), amores e sentimentos comuns que sedi-
mentam o ser conjunto, e o ser jubiloso. Porque a apagada e vil tristeza, de que
fala Camões, austera ou desbragada, não é nunca bom sinal para a saúde das
pátrias.

Xanana Gusmão parece tê-lo intuído admiravelmente, ao sublinhar no vínculo


patriótico o que é alegria, amor e sentimento, não tendo esquecido os males, mas
sublinhando o afirmativo, o positivo. Uma Pátria só se afirma pela positiva; pela
negativa e pelo negativismo negar-se-ia – diria certamente o sábio Monsieur de
La Palice.

Pátria... é tradição, passado e herança!


O som da bala é... Pátria de momento!
Pátria é do futuro a esperança!
Pátria ... é do futuro a esperança !

É essa precisamente a grande lição, que é de Esperança. Confiança na perenidade


desse laço: tradição, o que se transmite: passado e herança.

E o presente, ainda que possa ser de guerra ou de guerrilha para a libertação


(como o foi ainda há não tanto tempo assim nas contas largas do tempo longo),
ainda que a Pátria possa ser o “som da bala” num instante, ela está para além, e
projecta-se no futuro.

Passado, presente e futuro, pois, unidos: tradição, herança; presente que sempre
se pode simbolizar metaforicamente no som da bala, que é o ruído das coisas
contingentes e agónicas, e o futuro que é sempre esperança também. Quer o futu-
ro passado, quer o futuro a vir. E há a dimensão eutópia e utopista do futuro sem-
pre a vir – como o Preâmbulo concluindo diz:

10
Cf. o nosso livro Pensar o Estado, Lisboa, Quid Juris, 2009, p. 93 ss., et passim.
116 PAULO FERREIRA DA CUNHA

“tendo em vista a construção de um país justo e próspero e o


desenvolvimento de uma sociedade solidária e fraterna”.

Parece haver uma ambiguidade poética no final do poema, já que a Pátria será, no
futuro, e por isso se tem esperança nela. Mas, na verdade, as pátrias futuras só são
as que já são presente e passado. Aqui há certamente uma criadora ambiguidade
entre Pátria nação e Pátria Estado. Havia Pátria nação, com esperança na Pátria
Estado.

Logo no início do Preâmbulo se refere “A independência de Timor Leste”. Afi-


gura-se-nos que este Timor Leste é a Pátria no sentido de nação, a qual, ao dotar-
se de uma Constituição, passa a um específico tipo de Estado (já é Estado depois
da independência e antes da entrada em vigor da Constituição formal, mas ainda
de contornos não tão literalmente precisos), cuja forma é a de República demo-
crática. Mais especificamente, como diz o art. 1.º, 1:

“Estado de direito democrático, soberano, independente e unitário,


baseado na vontade popular e no respeito pela dignidade da pessoa
humana”.

Mas tem sentido que o poeta repita, com ligeira alteração, que Pátria é do futuro a
esperança. Porque, num primeiro momento, a Pátria Estado é esperança para um
futuro, e agora, neste momento que agora se vive, a Pátria timorense continua a
ser a esperança para o futuro, e o futuro da esperança, no Estado independente de
Timor Leste.
A Nulidade do Acto Administrativo
LUIZ CABRAL DE MONCADA *

Sumário: I Introdução; II A figura da nulidade; III A distinção entre a inexistência e


a nulidade; IV O critério da nulidade; V O regime da nulidade do acto administra-
tivo; VI A situação dos particulares; VII Os incontornáveis efeitos do acto nulo; VIII
A aproximação entre os regimes da nulidade e da anulabilidade; IX Conclusões.

I Introdução

A nulidade é um desvalor do acto administrativo e seguramente o mais polémico.


Coexiste com a anulabilidade e a inexistência do acto administrativo.

Cabe-lhe um regime jurídico específico que se distingue a montante do que é próprio


da inexistência e a jusante do que é próprio da anulabilidade do acto. Mas na separa-
ção das águas deparamos com zonas pouco claras. A distinção das figuras está cada
vez mais longe de ser simples e evidente e disso se ressente o regime jurídico que
lhes deve caber. O que se pretende com este estudo é contribuir para o esclareci-
mento das questões, e muitas são, levantadas.

A análise não deve perder de vista o contexto histórico em que a teoria das invalida-
des apareceu no direito administrativo. Como disciplina jurídica o direito adminis-
trativo é relativamente recente se comparado com outras e daí que tenha importado a
dogmática que se desenvolveu noutros ramos do direito, desde logo no direito pri-
vado. Mas esta importação não se fez sem custos e assimetrias. Com efeito, o direito
administrativo é todo ele marcado pela presença do interesse público definido pelo

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 117-138.

* Professor, ULHT & ISMAT.


118 LUIZ CABRAL DE MONCADA

legislador e arvorado a uma posição superior ao interesse privado pois que beneficia
da autoridade que lhe confere a palavra da lei. A lei é o critério da conduta adminis-
trativa e as invalidades do direito administrativo decorrem da desconformidade da
conduta administrativa com a lei rectius, com o amplo «bloco» da legalidade que a
vincula e apenas secundariamente da desconformidade com os pressupostos que
devem orientar a formação e expressão da vontade constitutiva das relações jurídicas
administrativas. A teoria das invalidades originária do direito privado foi pensada
para relações marcadas pela igualdade entre as partes intervenientes no negócio
jurídico e valorizando a formação e a expressão da vontade e não se transpõe sem
dificuldades para relações desiguais marcadas pela autoridade legítima da Adminis-
tração da lei decorrente e vocacionadas para a intervenção unilateral, autoritária e
até, por vezes, executória, na esfera privada e para a conformação do todo social e
económico. O telos das invalidades não é o mesmo num ramo do direito votado à
protecção da vontade das partes intervenientes numa relação jurídica tendencial-
mente igualitária e num ramo do direito marcado pela predominância do interesse
público legal na relação jurídica e marcado pela desigualdade.

Por outro lado, no contexto actual de um direito administrativo dirigido para a con-
formação económica e social, dominado pela figura da prestação, gerado descentra-
lizadamente, cada vez menos unilateral e cada vez mais igualitário, plural e partici-
pado, as figuras da invalidade que eram coevas do seu nascimento servem com difi-
culdade nas condições actuais. A rigidez do regime jurídico das invalidades admi-
nistrativas adaptava-se bem a uma conjuntura em que a Administração actuava
pouco mas quando o fazia era pela via unilateral e executória, maxime policial, e de
modo agressivo da esfera jurídica do particular súbdito, com consequências gravosas
do ponto de vista dos direitos e interesses dos cidadãos. Ora, hoje a Administração
entra em relações muito mais complexas com os particulares a tender para uma cada
vez mais nítida paridade a pedir adequada tutela e de que resultam até efeitos atendí-
veis exteriores aos que afectam as entidades directamente intervenientes. O regime
jurídico das invalidades deve ser assim construído de modo diversificado e os res-
pectivos efeitos devem ser equacionados numa perspectiva abrangente que se não
fica pela simples consideração da relação entre as entidades directamente visadas.

O ponto de vista da doutrina tradicional era este; a nulidade do acto compreendia os


casos mais graves de desconformidade da actividade administrativa com a lei e a
disciplina que se lhe assacava era a mais pesada. A necessidade desta disciplina
arrimava-se à natureza agressiva da actividade administrativa própria do período
liberal, como se disse. Nestas condições, uma rígida disciplina da nulidade permitia
fulminar os actos mais acentuadamente gravosos dos particulares. O regime da nuli-
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 119

dade do acto era, ao fim e ao cabo, o da inexistência.1 Para a anulabilidade ficavam


as invalidades mais leves, as mais frequentes, aliás.

Ora, o tradicional dualismo no regime jurídico das invalidades do acto administra-


tivo assente na distinção radical entre nulidade e anulabilidade não serve o direito
administrativo actual. Este necessita de uma dogmática própria em matéria de inva-
lidades permeável a regimes jurídicos elásticos compatíveis com a vastidão das
questões suscitadas, sempre despertos para a complexidade dos problemas práticos a
decidir e dos valores e interesses a levar em conta.

Assim sendo, o regime jurídico da nulidade do acto administrativo (e do contrato


administrativo) nem sempre pode ser aplicado à letra. Impõem-se distinções em
nome da valia de determinados princípios gerais de direito quais sejam a boa-fé, a
tutela da confiança, o peso de conspícuos interesses públicos, como os ambientais, e
dos direitos e interesses privados, a exigir a estabilidade do acto administrativo, a
protecção de terceiros, etc…, mediante uma adequada ponderação das soluções a dar
pela Administração e pelos tribunais administrativos.

O regime geral da anulabilidade do acto adapta-se perfeitamente a estas necessidades


mas o tradicional regime geral da nulidade do acto administrativo nem sempre pois
que foi pensado para situações diferentes das que hoje ocorrem e por isso não é o
mais adequado.

Por outro lado, a nulidade deve ser avaliada em função do tipo legal de acto admi-
nistrativo que se considere. O regime respectivo não pode ser o mesmo para um acto
lesivo dos direitos do cidadão ou para um acto vantajoso, para um acto meramente
certificativo ou para um parecer, para um acto preparatório ou integrativo da eficácia
ou para uma decisão final. Do mesmo modo, os elementos do acto não relevam
todos da mesma maneira nos vários tipos legais de actos. Nuns relavam mais os
vícios relacionados com os sujeitos, noutros com a forma e com o procedimento,
noutros ainda com o conteúdo ou com o fim legal do acto.

A nulidade não tem de deixar de se apresentar dentro de um regime jurídico unitário


e homogéneo mas este deve dar mostras da elasticidade suficiente para permitir
soluções diferenciadas de acordo com critérios de ponderação, como se verá.

1
Nas palavras de Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Coimbra,
1984, p. 512, a nulidade é equiparada nos seus efeitos à inexistência jurídica do acto (it. nos-
so), muito embora o A. distinga nas páginas anteriores entre a inexistência e a nulidade num
plano abstracto. No mesmo sentido, Marcelo Rebelo de Sousa, O Regime do Acto administrati-
vo, Revista de Direito e Justiça, VI, 1992, p. 44.
120 LUIZ CABRAL DE MONCADA

Claro está que na avaliação do regime da nulidade não se pode cortar com o passado.
Este é determinante na nossa pré-compreeensão das coisas e, portanto, critério da
verdade hermenêutica. Deve partir-se da teoria clássica das invalidades do acto jurí-
dico mas adaptando-a às necessidades actuais do direito administrativo. O contrário
seria insistir na incoerência dos regimes jurídicos perante as necessidades da prática
e dos interesses em jogo, tudo em nome de um geometrismo indesejável porque
cego. Não se deve nestas matérias ceder à «jurisprudência dos conceitos» com a
consequência dela própria que é o famigerado «método da inversão» que consiste
em deduzir as soluções para a realidade apenas de noções abstractas tudo fazendo
para nestas a encaixar, como se a diversidade do «mundo da vida» se arrimasse
apenas à legalidade abstracta do entendimento.

Importa dizer que os problemas postos pela adequação do regime da nulidade às


necessidades estão equacionados. E ninguém poderá ter a pretensão de dizer a este
respeito novidades. A solução passará sempre pela remissão para o juiz em função
das necessidades postas pelo caso concreto, a pedir distinções. Estamos perante um
conflito entre os valores axiais da ordem jurídica, de um lado a certeza da legalidade
naquilo que esta tem de mais sagrado e pelo outro a defesa de situações atendíveis a
requerer a ponderação dos direitos e interesses dos lesados e de terceiros. Nesta
matéria mal vão as soluções gerais e homogéneas. Não há outro remédio senão con-
fiar no papel pretoriano do juiz e esperar do bom senso dos agentes da Administra-
ção atitude semelhante.

O papel do legislador, sempre responsável pelo regime da nulidade que engendra,


deve ser, neste complexo contexto, seguro mas maleável ao mesmo tempo. Ao juiz,
como intérprete autêntico do direito, caberá sempre a última palavra. E, portanto,
não há aqui muito a dizer senão confiar na prudência. E sobre aquilo de que não se
pode falar, distantes do caso concreto como estamos, o melhor é calar.

II A figura da nulidade

1. Enquanto desvalor máximo do acto administrativo a nulidade deve assentar na


compreensão material das razões que a exigem. Tais elas são que justificam a apli-
cação de um regime que prevê a impugnabilidade da figura a todo o tempo, o seu
conhecimento oficioso, a insusceptibilidade de sanação dos vícios que a corporizam
e a amplíssima legitimidade activa para o pedido da sua declaração pelo tribunal.

Tal regime jurídico há-de ser justificado pela especial gravidade da invalidade que a
desencadeou, seja ela substancial seja formal.

A primeira nota é, portanto, esta; a nulidade resulta de uma especial gravidade dos
vícios do acto praticado, a tal ponto que a ordem jurídica não pode tolerar que lhe
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 121

sejam imputáveis quaisquer efeitos, mesmo que provisórios.2 O princípio da legali-


dade da actividade administrativa prevalece em absoluto sobre quaisquer outras
considerações. A tal ponto assim é que a figura da simples anulabilidade do acto não
seria curial porque a respectiva impugnação depende sempre de um prazo legal findo
o qual se forma «caso decidido» e a legitimidade para a mesma não é universal. O
regime jurídico da anulabilidade do acto cede à estabilidade das situações constituí-
das, o que seria insuportável na nulidade, tal a ofensa cometida.

A nulidade resulta assim de considerações relativas à natureza anómala do acto pra-


ticado, manifestada através da gravidade especial do vício que o inquina, a tal ponto
que a ordem jurídica o fulmina com quanta força pode para ele apresentando um
regime jurídico especialmente gravoso.

A nulidade baseia-se em considerações materiais sobre a natureza verdadeiramente


anómala do acto praticado, independentemente da qualificação dos vícios que a
suscitam, sejam eles substanciais ou formais, e isto pela simples razão de que por
vezes a qualificação do vício de um acto administrativo como formal (ou procedi-
mental) é apenas isso mesmo, uma qualificação obedecendo às exigências de uma
determinada dogmática e não a última palavra sobre a verdadeira natureza do des-
valor em causa. Mas o assunto não pode ser aqui abordado.

2. Claro está que as situações de gravidade especial do vício que inquina o acto são,
por definição, relativamente escassas, pelo que a nulidade não pode ser a regra. Mais
vulgar é forçosamente a anulabilidade do acto. Mas a nulidade também não tem que
ser a excepção.

A gravidade especial do vício do acto não é seguramente a situação mais comum.


Gravidade especial e natureza excepcional não se equivalem. Mas claro está que
coincidem parcialmente. A questão não é puramente dogmática dependendo da con-
duta da Administração. O mais que se pode dizer é que se a Administração for atenta
à lei e diligente raramente praticará actos nulos.

3. Em conformidade, o regime jurídico da nulidade fulmina um acto, não uma mera


impostura, cuja invalidade é facilmente reconhecível por todos e assim impede que
possa ser sanado pela Administração ou pelo decurso do tempo, atenua a obediência
que lhe devem os funcionários, permite aos particulares opor-lhe um direito de resis-
tência passiva, possibilita o seu conhecimento a título principal ou incidental pelo
tribunal e a sua invocação por qualquer interessado, para além da sua declaração
oficiosa, assim o distinguindo da mera anulabilidade do acto.

2
Vai neste sentido o Acórdão do STA de 17/2/2004, proc. 1572/02.
122 LUIZ CABRAL DE MONCADA

4. O legislador estabelece no nº 1 do art. 133º do Código do Procedimento Adminis-


trativo (CPA) que são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais.
Os elementos do acto são os respectivos pressupostos legais ou seja, um conjunto de
invariáveis estruturais de que a lei faz depender o acto. Sem eles não existe acto
administrativo ou melhor, não existe uma decisão tomada pela Administração de que
seja legítimo inferir alcance jurídico, tal é a anomalia patente.

Naquela conformidade, o legislador escolheu um critério material da nulidade «por


natureza». Os exemplos que dela apresenta nas várias alíneas do nº 2 do mesmo art.
são apenas isso mesmo, exemplos, quando muito tipos, que concretizam aquele
critério legal substancial da nulidade, mas sem a pretensão de o esgotar completa-
mente.3

Independentemente disso, o referido nº 1 do art. 133º dá ao legislador a possibilidade


de cominar expressamente a nulidade para certas invalidades em especial. É natural
que assim seja pois que o legislador europeu e nacional deve beneficiar da possibili-
dade de prever aquele vício do acto para situações que considere especialmente
graves, independentemente da natureza do vício do acto praticado. 4 Estamos agora
perante uma nulidade «por determinação da lei» ou contingente. E o legislador por-
tuguês não foi peco na utilização desta possibilidade como o demonstram o direito
do urbanismo e do ambiente.

Agora não foi necessariamente a natureza particularmente grave do vício do acto que
determinou a qualificação legal. Mas também nada impede que o tenha sido. A von-
tade do legislador é soberana. Só se exige, pelo que ao legislador nacional toca, que
a indicação legislativa seja expressa, o que retira liberdade interpretativa ao juiz, à
Administração e ao particular.

A liberdade de o legislador cominar a nulidade expressamente para determinados


vícios do acto tem de ser entendida como a resposta às exigências do interesse públi-
co que justifica aquela invalidade e a prova a contrario está na respectiva oscilação,
ocorrendo até casos de transformação da nulidade em simples anulabilidade, preci-
samente por o interesse público passar a bastar-se com uma invalidade mais suave.5

5. Note-se que a liberdade legislativa de cominar com a nulidade determinados actos


em homenagem a necessidades conjunturais tem inúmeras vantagens. Permite, desde

3
Assim José Carlos Vieira de Andrade, A Nulidade Administrativa, essa desconhecida, Estudos
em Homenagem ao Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, p. 766.
4
É o caso dos actos administrativos de fomento económico, desde logo os subsídios, que contra-
riem as normas europeias da concorrência.
5
Sobre o tema, Pedro Gonçalves e Fernanda Paula de Oliveira, A Nulidade dos Actos Adminis-
trativos de Gestão Urbanística, CEDOUA, Ano II, 1. 99, p. 33 e ss.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 123

logo, uma adaptação às circunstâncias que o citério da nulidade «por natureza» nem
sempre facilitaria.

Assim se compreende, p. ex., que o vício do desvio de poder quando lhe presidem
interesses meramente privados em vez de interesses públicos diferentes daqueles que
o legislador teve em vista ao atribuir o poder discricionário, poderia e deveria ser
fulminado com a nulidade em vez de com a simples anulabilidade.6 O mesmo se
diga de uma pena disciplinar aplicada sem audiência prévia do arguido, coisa que
continua a acontecer. Queremos confiar em que muitos tribunais não terão dúvidas
em declarar a nulidade do acto de aplicação da pena mas, à cautela, seria bom que a
lei a consagrasse expressamente.

III A distinção entre a inexistência e a nulidade

1. Sendo os alicerces da nulidade parcialmente materiais, como se viu, e boas razões


há para que sejam, levanta-se um problema de difícil resolução e que consiste na
distinção entre a nulidade do acto e a inexistência.

A questão agrava-se se a nulidade não está sempre, como entre nós, taxativamente
fixada na lei. Sendo assim, há que separar a inexistência da nulidade com base em
critérios materiais. Se a nulidade fosse sempre a consequência de uma decisão legis-
lativa avulsa tudo seria mais fácil de resolver mas como não é coloca-se com perti-
nência o problema daquela distinção.

Assim sendo, poderíamos supor que a inexistência ficaria reservada para as patolo-
gias mais graves e a nulidade para as menos graves. Mas esta tese não colhe. A figu-
ra da inexistência não compreende sequer uma aparência de acto administrativo, tão
evidente é a patologia de que padece. O acto pressupõe uma determinada estrutura
delimitada por certas invariáveis que são precisamente os seus referidos elementos
essenciais, como ficou escrito. Ora, na inexistência nem sequer deparamos com a
estrutura do acto administrativo de tal modo que não é possível identificar uma deci-
são administrativa porque não estão presentes os elementos indispensáveis relativa-
mente aos sujeitos, ao objecto, ao conteúdo, ao fim, à forma escrita e às for-
malidades a observar. Não estão presentes aqueles elementos invariáveis, próprios
da estrutura do acto administrativo e que identificam os requisitos da pertença
(membership) à ordem jurídica, necessários para que o acto integre um comando
enunciador de uma regra de dever-ser, para empregar linguagem hartiana, de natu-
reza substancial, organizatória e teleológica.7

6
Sobre o tema J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., nota 28, referindo doutrina nacional conforme.
7
Sobre o tema, Pedro Moniz Lopes, Princípio da Boa-Fé e Decisão Administrativa, Coimbra,
2011, p. 145.
124 LUIZ CABRAL DE MONCADA

Claro está que como o CPA não nos fornece um conceito preciso de inexistência
nada impede que a jurisprudência vá consolidando o que por tal se deva entender.8

Pelo contrário, na nulidade esses elementos estruturais estão presentes pelo que
existe um acto administrativo apesar de tudo identificável como tal mas apresen-
tando-se eivado de anomalia tamanha que se justifica um regime particularmente
gravoso para a invalidade que lhe cabe. A estrutura é a do acto administrativo embo-
ra lhe faltem um ou mais elementos essenciais ou fira de tal modo a ordem jurídica
que esta exige uma sanção especialmente pesada. Estamos perante qualquer coisa
com estrutura de acto administrativo muito embora eivado de anomalias imperdoá-
veis e facilmente detectáveis.

Mas o problema não acaba aqui. Pelo contrário, começa. É que o regime tradicional
da nulidade é de tal modo radical que pouco ou nada fica para a inexistência. De
maneira que das duas uma; ou se logra um regime da nulidade do acto mais mode-
rado que a permita distinguir da inexistência ou se atribuem em geral à nulidade os
efeitos próprios da inexistência.

Supomos que a melhor solução é a primeira. A inexistência fica reservada para as


hipóteses mais anómalas e radicais de desconformidade com a lei quais sejam, a
total ausência de forma, a ininteligibilidade do pedido, a impossibilidade do objecto,
a insusceptibilidade de atribuir a conduta a uma entidade administrativa, etc… Em
todos estes casos não chegou sequer a existir um acto administrativo porque a ordem
jurídica não chegou a reconhecê-lo como tal. Da conduta não resultaram os requisi-
tos mínimos para que a ordem jurídica nela se revisse como acto administrativo. A
inexistência resulta desse critério objectivo que é a «natureza das coisas». Em con-
formidade, qualquer actuação administrativa inexistente não é sequer jurídica é uma
simples conduta material ou «via de facto», 9 incapaz de gerar efeitos jurídicos e se é
declarável a todo o tempo por qualquer tribunal ou pela Administração é apenas por
razões de segurança do particular lesado e não por imperativo dogmático.

A vantagem desta separação de águas, já de si turvas, é a de nos deixar as mãos


livres para construir uma figura moderada da nulidade compatível com a considera-
ção dos efeitos gerados pelo acto administrativo em nome dos princípios gerais rele-
vantes, designadamente a tutela da confiança e os interesses de terceiros, cardiais no

8
Cfr. as sentenças referidas por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha,
Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed. revista, Coimbra,
2007, p. 294 e 295.
9
Assim, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Cód igo do
Procedimento Administrativo, 2ª ed., actualizada, revista e aumentada, Coimbra, 1997, p. 638.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 125

contexto de uma actividade administrativa intervencionista e conformadora, princí-


pios esses que não poderiam ser convocados no caso da pura e simples inexistência.

É que a inexistência não consente rectificação, revogação, conversão nem reforma


do acto.

A noção moderada de nulidade não enjeita necessariamente um critério geral da


nulidade «por natureza» mas é compatível com diversas posições, à medida das
exigências próprias da aplicação do direito pela Administração e pelo juiz.

Numa posição oposta, a doutrina tradicional motivada pelo compreensível desejo de


erradicar os maiores atropelos à legalidade, aproximou muito a nulidade do acto da
inexistência, como se disse, considerando que a melhor maneira de tratar os vícios
mais graves do acto era imputar-lhes o regime da inexistência assim perdendo de
vista que o regime da inexistência não pode deixar de ser predicado de uma situação
em que nem sequer há acto administrativo a que imputar vícios com as respectivas
consequências, sejam elas quais forem.

2. Esta última solução não satisfaz hoje. Necessitamos de uma figura de invalidade
com o regime próprio da nulidade do acto mas que permita ao mesmo tempo nuan-
ces assim abrindo a porta à consideração de determinados valores jurídicos funda-
mentais que a inexistência não permitiria considerar.

Mas a rigidez do regime da nulidade é inconveniente em determinadas situações,


como se verá.

3. A distinção entre a inexistência e a nulidade do acto tem, portanto, uma vantagem


assinalável que é a de colocar a nulidade na situação que lhe convém, a da invali-
dade do acto administrativo, a distinguir da patologia de um não acto, compatível
com um tratamento menos radical do que o da inexistência mas mais vigoroso do
que o da anulabilidade. Esta posição é a que serve a nulidade. Seja como for, está
aberta a porta para a desejável ponderação de bens jurídicos na disciplina da nuli-
dade permitindo soluções diferenciadas.

Note-se que a nulidade não fica assim numa posição intermédia entre a inexistência
e a anulabilidade. Não. A nulidade é a mais grave patologia do acto administrativo e
se o regime respectivo se aproxima do da inexistência é por mera conveniência gra-
ciosa ou contenciosa que isso acontece ou seja, porque sendo a nulidade o vício mais
grave do acto administrativo, tem de se lhe aplicar um regime tão pesado que se
aproxima do regime do não acto, precisamente por ser inconveniente outro menos
grave.
126 LUIZ CABRAL DE MONCADA

O terreno continua a ser escorregadio. A partir daqui há várias soluções possíveis; o


legislador pode apresentar um critério geral da nulidade «por natureza» assacando-
lhe uma disciplina uniforme, pode enveredar por casos específicos de nulidade rele-
vando de uma mesma disciplina ou com soluções diferenciadas ou pode, mantendo o
critério geral, aceitar soluções distintas à medida da ponderação legislativa e judicial.

Por nós preferimos a última solução que é, aliás, a do CPA, como se viu.

4. Apesar de não fazermos da inexistência do acto uma espécie da sua invalidade


mas sim o atributo de um não acto, isso não prejudica que o particular afectado por
uma aparência de acto não possa pedir ao tribunal administrativo a declaração da
respectiva inexistência, tal como prevê o nº 1 do art. 50º do Código do Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA). Compreensíveis razões de segurança o podem
aconselhar. Mas esta via processual não tem implicações substantivas ou seja, não
nos obriga a fazer do acto inexistente aquilo que ele não é; um acto administrativo.

E o mesmo se diga da possibilidade que o particular tem de pedir uma indemnização


em acção administrativa comum para se ressarcir dos efeitos indesejáveis da inexis-
tência. É que a conduta que lhe deu azo integra a função administrativa pelo que está
justificada a competência contenciosa dos tribunais administrativos, mas não é um
acto administrativo.

IV O critério da nulidade

1. Colocada a nulidade no terreno da invalidade do acto administrativo que lhe con-


vém, vamos agora averiguar do critério da nulidade «por natureza».

O que dizer do critério da falta dos elementos essenciais do acto administrativo?


Compreende ele todos os casos de nulidade?

O critério legal necessita de ser interpretado em termos hábeis. Dentro dos elementos
essenciais do acto, cuja falta importa nulidade, temos de incluir considerações mate-
riais sob pena de o critério em causa ser incompleto. É que há actos cuja subsistência
na ordem jurídica é de tal modo insuportável de uma perspectiva substancial que a
nulidade surge como a invalidade adequada. É o caso dos actos administrativos que
ferem o conteúdo essencial de um direito fundamental, como se conhecem vários.

O critério da nulidade não é, portanto, uniforme e não pode olhar apenas para dentro
do acto administrativo apreciado nas suas componentes estruturais. Deve olhar-se
para fora e apreciar o acto administrativo no contexto das decisões e dos compromis-
sos axiais da ordem jurídica no seu todo. É a esta luz que devem ser considerados os
referidos elementos essenciais do acto cuja falta gera nulidade.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 127

Urge, portanto, interpretar a fórmula legal da nulidade do acto medida pela falta dos
referidos elementos nela incluindo considerandos materiais, sob pena de incomple-
tude. A alínea d) do nº 2 do art. 133º do CPA ao considerar nulos os actos que ofen-
dam o conteúdo essencial de um direito fundamental acolhe este entendimento.

2. Aquela chamada de atenção justifica-se contra a tentação de uma interpretação


apenas formalista do referido preceito do nº 1 do art. 133º do CPA ao dizer-nos que
o acto é nulo quando lhe falte qualquer dos elementos essenciais.

Ao mesmo tempo, a noção de elementos essenciais do acto cuja falta gera nulidade
deve ser vista numa perspectiva ampla tendo como pano de fundo a ordem jurídica
no seu todo, como ficou escrito. A violação dos preceitos axiais da ordem jurídica
gera sempre nulidade do acto por lhe faltar um elemento essencial daquela reportado
ao respectivo conteúdo pois que o acto pode ser completamente correcto à face da lei
e, no entanto, violar preceitos constitucionais relativos à efectividade dos direitos,
liberdades e garantias, p. ex., o que reclama a nulidade.10

O critério da nulidade dever ser, portanto, interpretado também em termos mate-


riais.11

3. Independentemente do critério geral da nulidade do acto administrativo por natu-


reza, permite o CPA que lei especial comine a nulidade para certos actos, como se
viu, com as vantagens inerentes à solução que também já foram referidas.

V O regime da nulidade do acto administrativo

1. Como dissemos, preferimos a solução, pelo que respeita à configuração dogmática


da nulidade, que parte de uma noção geral com tratamento homogéneo mas que
admite, não obstante, diversas graduações perante o caso concreto em função da
ponderação a fazer pelo juiz e pela Administração.

Tudo isto requer uma previsão legal do regime da nulidade que, não facilitando no
essencial, deixe as mãos livres ao juiz e à Administração para uma ponderação no
caso concreto das valores e interesses a respeitar de acordo com soluções material-
mente adequadas.

10
Só se o preceito constitucional violado fosse directamente aplicável é que o acto administrativo
teria na norma constitucional o seu conteúdo predeterminado, o que não é corrente.
11
Em sentido próximo, Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo: temas
nucleares, Coimbra, 2012, p. 196, aderindo a uma tese substantiva alicerçada na essencialidade
(it. no original) do desvalor do acto nulo.
128 LUIZ CABRAL DE MONCADA

2. Importa saber se o tratamento legislativo do regime da nulidade faz eco destas


exigências. De um ponto de vista prático importa mais o regime do que a posição a
assumir quanto à questão da cláusula geral ou da taxatividade da nulidade do acto
administrativo.

Passamos agora para o plano do direito positivo. Estará ele à altura do que dele se
espera?

De acordo com o nº 1 do art. 134º do CPA, o acto nulo não produz quaisquer efeitos.

Esta asserção quer dizer que do acto nulo não resultam efeitos e que, consequente-
mente, ele não vincula ninguém, Administração e particulares, mesmo antes de ter
sido declarado como tal pelo tribunal ou pela Administração. Daí também se infere
que o acto nulo não é revogável porque não haveria efeitos a revogar.

Mas, claro está que na prática as coisas não se passam assim. Voltaremos ao assunto.

3. A enumeração legal dos casos de nulidade tem a vantagem de clarificar a ocorrên-


cia respectiva. Assim se configuram situações de nulidade em que estamos próximos
da certeza. Serão os casos dos actos estranhos às atribuições dos ministérios ou das
pessoas colectivas referidas no artigo 2º em que o seu autor se integre, de acordo
com a alínea a) do nº 2 do art. 133º, dos actos cujo objecto seja impossível, ininteli-
gível ou constitua um crime, nos termos da alínea c) dos actos praticados sob coac-
ção, conforme reza a alínea e), dos actos que careçam em absoluto de forma legal,
visados pela alínea f), das deliberações dos órgãos colegiais que forem tomadas
tumultuosamente ou com inobservância do quórum ou da maioria legalmente exi-
gida, ao que diz a alínea g), dos actos que ofendam os casos julgados, como assevera
a alínea h) e dos actos consequentes de actos administrativos anteriormente anula-
dos ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na
manutenção do acto consequente, como confirma a alínea i).

Mas não há a mesma certeza pelo que toca aos actos que ofendam o conteúdo essen-
cial de um direito fundamental previstos na alínea d) do mesmo artigo e a que acres-
centaríamos a nulidade do acto que ofenda o mesmo conteúdo de um direito resul-
tante do direito europeu. Muito pelo contrário. No exemplo dado, entendemos que
um acto disciplinar praticado sem essa formalidade essencial que é a audiência pré-
via é pura e simplesmente nulo por violação de um direito fundamental com chan-
cela constitucional mas nada nos espante que haja quem assim não entende. Seja
como for, nada dispensa um cuidado trabalho jurisprudencial de densificação do que
seja o conteúdo essencial de um direito fundamental e que a qui não pode ser sequer
encetado. Mas persiste a incerteza referida no número anterior.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 129

4. Apesar de apoiarmos a solução que dá ao legislador a possibilidade de fixar


casuisticamente determinados casos de invalidade mais grave do acto administrativo
deparamos com situações pouco claras cuja qualificação dentro da invalidade é
polémica. E resta saber se algum dia o legislador o poderá fazer, tendo em atenção
que não lhe cabe tomar posição sobre os problemas doutrinários que tal qualificação
implicaria.

É o caso dos actos administrativos que violentem normas europeias e dos actos
administrativos inconstitucionais.

Pelo que toca aos primeiros, a desconformidade do acto administrativo com o direito
europeu não produz necessariamente a nulidade do acto apenas gerando a obrigação
de a Administração e o juiz nacionais o desaplicarem com consequências muito mais
suaves e que não passam obviamente pela remoção dos respectivos efeitos.12

Poderia pôr-se a questão de saber se a Administração não está vinculada a um dever


de revogação de actos administrativos desconformes com o direito europeu com
fundamento na respectiva invalidade, neste caso, na nulidade, solução que defende-
mos, mas o tema não pode ser aqui desenvolvido

Pelo que aos segundos toca, a inconstitucionalidade do acto é uma forma agravada
de invalidade que deve qualificar-se como nulidade e o respectivo conhecimento
caberá ao Tribunal Constitucional se o acto tiver forma normativa e aos tribunais
administrativos nos outros casos desde que possa conceber-se uma violação directa
do texto constitucional pelo acto em causa o que ocorrerá se a norma constitucional
reunir as condições para poder ser fonte directa de actos administrativos. 13

5 Os efeitos do acto nulo resultam claramente da referida presunção de legalidade do


acto administrativo e da supremacia hierárquica dos escalões superiores da Admi-
nistração. É isto o que se verifica na prática e qualquer incerteza joga a favor da
Administração. Daqui se infere que a declaração da nulidade do acto oficiosa ou
pelo tribunal é muito frequentemente indispensável.

Dizer que os actos nulos não produzem efeitos 14 é um corolário da noção de nuli-
dade mas, como pura abstracção que é, não atende às realidades, como já se tinha
dito. Ora, o bom-senso aconselha-nos a olhar para as realidades mesmo que isso

12
Sobre o tema, Miguel Prata Roque, Direito Processual Administrativo Europeu, Coimbra, 2011,
p. 483 e ss.
13
Sobre o tema, Dinamene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitucional, Delimitação do
Conceito e Subsídio para um Contencioso Constitucional dos Actos Administrativos, Coimbra,
2010, p. 207 e ss.
14
Efeitos putativos lhes chamam Mário Esteves de Oliveira e outros, ob. cit., p. 654.
130 LUIZ CABRAL DE MONCADA

tenha consequências demolidoras no plano dogmático. É que se admitirmos, como


devemos admitir, que do acto nulo resultam frequentemente efeitos o regime da
nulidade aproxima-se muito do da anulabilidade pois que tais efeitos por inválidos
devem ser destruídos em consequência de sentença judicial ou de decisão adminis-
trativa ou então mantidos em obediência a determinados valores.

Perante isto de nada vale dizer que os efeitos do acto nulo não são jurídicos mas
meramente materiais, assim permitindo salvar a pureza da construção dogmática da
nulidade não lhe imputando efeitos jurídicos. Só que, mais uma vez, continuamos no
plano puramente abstracto da metafísica. É que do ponto de vista do particular lesa-
do a situação é rigorosamente idêntica; sejam os efeitos do acto jurídicos ou não eles
lá estão. Suponhamos que o membro de uma corporação profissional foi expulso ou
suspenso do exercício da sua actividade na sequência de uma decisão disciplinar
tomada sem audiência prévia. Poderá o lesado continuar a sua actividade profissio-
nal como se nada fosse? Se entendermos que o acto é nulo, não há dúvida que sim.
No entanto, os actos administrativos beneficiam de uma presunção de legalidade que
o lesado terá de contrariar pelo que continuam a produzir efeitos jurídicos até que
seja declarada a respectiva nulidade pelo tribunal ou pela Administração. No mesmo
sentido vai a incerteza quanto à consequência do vício de que padece o acto. Será o
acto nulo ou apenas anulável? Desta situação de incerteza beneficia também a
Administração o que vai a favor da produtividade dos efeitos do acto. Certamente
que ninguém pretenderá que o membro de uma corporação profissional expulso ou
suspenso sem audiência prévia não tem nada a recear porque o acto é nulo. E, no
entanto, os clientes já debandaram, o seu prestígio ficou afectado e deixou de poder
pagar o telemóvel. Ficam muito caras as abstracções.

Note-se ainda que o simples facto de o membro da corporação afectado por um acto
nulo poder pedir uma indemnização à Administração com fundamento em responsa-
bilidade civil por facto ilícito já evidencia à saciedade que daquele resultaram efeitos
que urge reparar.

Daqui se conclui que, ao fim e ao cabo, o regime da nulidade aproxima-se frequen-


temente do da anulabilidade pelo menos quando deparamos com efeitos jurídicos do
acto nulo que é imperioso erradicar ou compensar. A tarefa do apagamento daqueles
efeitos cabe aos tribunais ou à Administração consoante a nulidade seja declarada
judicial ou oficiosamente.

6. De acordo com o nº 2 do art. 134º do CPA, a nulidade é invocável a todo o tempo.


Se o acto é insuportavelmente inválido e se esta invalidade é manifesta e evidente,
como é suposto ser, não há qualquer justificação para que ele possa consolidar-se na
ordem jurídica pelo simples decurso do tempo pelo que a nulidade respectiva deve
poder ser invocada e declarada a todo o tempo, assim reintegrando a ordem jurídica.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 131

Nesta conformidade, a possibilidade da declaração da nulidade a todo o tempo não


pode deixar de ser a regra.

No entanto, é facilmente compreensível que esta lógica nem sempre vinga se dermos
atenção à realidade. Situações há em que se justifica que a nulidade apenas possa ser
invocada dentro de certo prazo, em vista dos efeitos jurídicos que o decurso do tem-
po consolidou na esfera dos cidadãos por ele afectados. A tutela da confiança dos
mesmos interessados na estabilidade de uma situação constitutiva de direitos ou que
lhes seja favorável é um valor a ter em conta na limitação do tempo dentro do qual a
nulidade pode ser invocada pelos detentores de interesses opostos ou pelo Ministério
Público.

O direito positivo já deu mostras de sensibilidade a estas considerações e precisa-


mente em sectores em que a presença de direitos e interesses privados dignos de nota
a aconselhava. No âmbito do urbanismo, p. ex., a possibilidade da declaração da
nulidade a todo o tempo seria insuportável à face da adequada tutela dos interesses
constituídos dos particulares designadamente quando a construção já está de pé e
habitada.15 É preferível esta solução à admissibilidade de uma declaração judicial da
nulidade a todo o tempo mas que se veria depois prejudicada pela alegação da
impossibilidade da execução da sentença, como tantas vezes sucedeu.

7. A nulidade pode ser declarada por qualquer tribunal ou oficiosamente pela Admi-
nistração. É este o regime geral justificável pela gravidade do vício em causa. É
indispensável que o leque das entidades competentes para declarar a nulidade seja
assim o mais alargado possível. O legislador não pode deixar de o consagrar como
regime geral.

Mas, mais uma vez, a ponderação das realidades pode aconselhar moderação.
Seriam assim justificáveis situações em que a nulidade só pudesse ser declarada
pelos tribunais e, dentro deles, apenas pelos administrativos.

Assim sendo, a impossibilidade de a nulidade ser declarada pela Administração pode


justificar-se relativamente a vícios de natureza formal a ela imputáveis de modo a
evitar que a Administração possa lançar mão de um vício de forma se a manutenção
do acto deixou de lhe convir em detrimento do particular e assim erradicar o venire
contra factum proprium.16 O mesmo se poderá justificar para casos em que a nuli-

15
O nº 4 do art. 69º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16/12 que aprova o Regime Jurídico da Urbani-
zação e da Edificação (RJUE), várias vezes alterado, prevê um prazo de 10 anos, sob pena de
caducidade, para que a Administração possa declarar oficiosamente a nulidade de actos urba-
nísticos e para que o MP possa instaurar a correspondente acção judicial.
16
Nestes temos, J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 783 em nota. O Autor acrescenta ainda (nota
53) um caso em que a declaração da nulidade de um acto administrativo pela Administração
não é possível por resultar da aplicação ao caso de uma lei inconstitucional, tendo em vista a
132 LUIZ CABRAL DE MONCADA

dade não é evidente como sucede quando o acto afecta o conteúdo essencial de um
direito subjectivo. Justifica-se nestes casos uma reserva de jurisdição.

Noutros casos a Administração apenas poderia desaplicar o acto nulo sem o poder
declarar como tal, ficando a declaração respectiva reservada ao tribunal.

8. A nulidade não é sanável. A natureza particularmente grave do vício em causa o


justifica que do acto por ele afectado nada possa restar. Esta é e deve ser a regra
geral. Mas, mais uma vez, a consideração de interesses públicos e privados dignos
de nota pode recomendar soluções mais hábeis.

Releva aqui sobremaneira a distinção entre os actos favoráveis e desfavoráveis aos


particulares. Nos primeiros casos a sanação do acto nulo poderia ter consequências
indesejáveis, designadamente se o vício em causa for de natureza formal ou proce-
dimental e mais ainda se o pedido da declaração da nulidade do acto já deu entrada
no tribunal. É que as exigências formais existem sobretudo para protecção do parti-
cular e possibilitar à Administração sanar um vício de forma já invocado em tribunal
pelo particular seria desvalorizar a sua tutela judicial e os valores que com ela se
pretende resguardar. Mas se o acto for desfavorável ao particular nada impede a
convalidação do mesmo pela Administração.

9. Os actos nulos não podem ser convertidos noutros. Esta regra geral justifica-se
pelas mesmas razões do regime genérico das nulidades. Esta é um vício tão grave
que não seria curial admitir que do acto por ele afectado pudesse ficar algo de apro-
veitável.

Mas a protecção do interesse público e dos particulares pode pedir uma solução mais
moderada.

Se o legislador admitiu no nº 3 do art. 285º do Código dos Contratos Públicos (CCP)


que os contratos administrativos afectados de nulidade, mesmo aqueles cujo objecto
incide sobre o exercício de poderes públicos ou sejam substitutivos de actos admi-
nistrativos, possam ser convertidos noutros em homenagem à estabilidade da «coisa
contratada», porque não admitir o mesmo para os actos administrativos? Agora não é
o regime do acto que deve ser invocado a favor do contrato mas sim o inverso em
nome de razões materiais.

A possibilidade de converter um acto nulo noutro poderia ser utilizada para dar abri-
go a interesses e valores dignos de consideração. Só no caso concreto seria possível

competência reservada do Tribunal Constitucional para aquela declaração, muito embora a


competência deste Tribunal para o conhecimento de um acto administrativo apenas ocorra
quando o acto assume forma normativa.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 133

ajuizar. Mas a hipótese não deveria ser afastada pelo que nada há contra a sua previ-
são legal.

10. A aceitação de um regime da nulidade moderado não pode ser feita sem benefí-
cio de inventário. O mesmo é dizer que deve ser o legislador a identificar, pelo
menos em geral, as situações em que tal é possível. O elenco destas situações em que
a ponderação dos interesses relevantes, designadamente a tutela da confiança e a
boa-fé dos particulares, a primeira mais objectiva do que a segunda, justifica atenua-
ções do regime geral da nulidade deve ficar para normas especiais, de natureza
obviamente legislativa, derrogatórias do regime geral. Mas nada impede que o legis-
lador confie aos tribunais a concretização daquele regime moderado da nulidade.

VI A situação dos particulares

1. Perante um acto nulo em que posição ficam os particulares por ele afectados? Já
se sabe que não se pode evitar cinicamente a questão com o argumento meramente
formal de que do acto nulo não resultam efeitos e que, portanto, o particular não tem
nada a temer.

Relativamente ao funcionário público a questão é de solução mais simples; no âmbi-


to das relações hierárquicas e perante um acto nulo prevalece o dever de obediência
ou o da (reintegração da) legalidade? Se entendermos que o segundo prevalece, a
obediência não é devida mas isso implica atribuir à Administração, designadamente
aos seus escalões inferiores, uma prerrogativa de avaliação da legalidade do acto de
que eles não dispõem e que geraria ampla incerteza na aplicação do direito e uma
situação próxima do colapso nas relações internas. Sendo assim, deve entender-se
que a legalidade apenas prevalece em casos contados ou seja, se o acto adminis-
trativo coenvolver a prática de um crime, prevalecendo a obediência se não for esse
o caso. 17

O funcionário está sujeito ao dever de obediência a um acto nulo só devendo dele


demarcar-se se o acto corporizar a prática de um crime. Neste caso, existe mesmo
um dever de desobediência do funcionário. Fora daí prevalece a obediência em nome
da estabilidade no funcionamento dos serviços públicos.

Mas relativamente ao particular a questão é muito mais complicada. O particular


está, as mais das vezes, desarmado: não sabe se o acto é ou não nulo e fica impres-
sionado com a autoridade da Administração e com a presunção de legalidade de que
os seus actos beneficiam.

17
Neste sentido Mário Esteves de Oliveira e outros, ob. cit., p. 652.
134 LUIZ CABRAL DE MONCADA

Que pode então fazer? Certamente que pode lançar mão dos meios graciosos pedin-
do a revogação do acto com fundamento em nulidade e dos meios contenciosos
pedindo a declaração da respectiva nulidade. Mas e até lá?

Os particulares não gozam de qualquer poder de desaplicação dos actos administra-


tivos que reputem nulos não se considerando por eles vinculados se assim o entende-
rem. Estão sujeitos a um dever de obediência a um comando de autoridade e contra-
riar este dever é muito arriscado podendo originar sanções de diversa ordem, risco a
que o particular não quererá sujeitar-se.

A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra no seu art. 21º um direito


de resistência dos cidadãos a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades
e garantias, norma que parece suficientemente ampla para nela caberem as ofensas
causadas por muitos actos administrativos nulos agressivos da esfera jurídica dos
particulares.18 Mas é bom de ver que o legislador teve o cuidado de não concretizar
suficientemente esta norma para que ela não pudesse servir de obstáculo aos actos
nulos que é como quem diz, aos seus efeitos desfavoráveis aos particulares, o que
configura uma verdadeira omissão constitucional.

VII Os incontornáveis efeitos do acto nulo

1. Que do acto nulo resultam efeitos e jurídicos, não apenas de facto, reconhecem-
no, bem vistas as coisas, várias normas procedimentais e processuais dispersas pelo
CPA e pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

O reconhecimento dos efeitos do acto nulo resulta, em geral, do já referido direito de


resistência e ainda da norma do nº 3 do art. 134º do CPA. Aí se consagra a possibili-
dade geral de atribuição de efeitos a situações de facto decorrentes de actos nulos
por força do simples decurso do tempo e de harmonia com os princípios gerais de
direito.19

18
Sobre o tema, J.J. Gomes Canotillho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
anotada, artigos 1 a 107, I, 4ª ed. revista, Coimbra, 2007, p. 421 para quem quando a resistência
for activa está sujeita ao princípio da proporcionalidade. No mesmo sentido, Jorge Miranda e
Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa anotada, I, Coimbra, 2005, p. 208. Maria
da Assunção Esteves, a Constitucionalização do Direito de Resistência, Lisboa, 1989, p. 236 e
ss, aponta muito bem que este direito se exerce quer contra actos executórios quer contra actos
de execução e que a sua consagração constitucional expressa desvaloriza o dogma do privilégio
da execução prévia da Administração.
19
Mário Esteves de Oliveira e outros, ibidem, p. 655, dizem-nos a propósito (it nosso) que a
consideração dos efeitos em causa demonstra-nos quão falaciosa é, do ponto de vista jurídico-
prático, a ideia de que o acto nulo não produz efeitos.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 135

A redacção não é feliz. A referência aos efeitos de facto visa «tapar o sol com a
peneira» ou seja, evitar a constatação dos efeitos jurídicos do acto nulo transmu-
tando-os em efeitos de facto de modo a resguardar a pureza de uma construção abs-
tracta, já denunciada. Mais grave é a admissibilidade apenas dos efeitos decorrentes
do decurso do tempo afastando outros não relacionados com ele. Não se compreende
por que razão é que apenas esse facto natural que é o decurso do tempo justifica a
manutenção dos efeitos do acto nulo até porque a lei ao remeter para os referidos
princípios gerais de direito a fim de manter os mesmos efeitos convoca muitas
outras considerações, desde logo as ligadas à boa-fé do beneficiários do acto nulo, à
tutela da sua confiança, ao não locupletamento à custa alheia e até ao próprio inte-
resse público.20

O reconhecimento expresso dos efeitos do acto nulo resulta também do CPA a pro-
pósito do regime geral da nulidade dos actos consequentes ao acto anulado.

A alínea i) do nº 2 do art. 133º do CPA estabelece a regra da nulidade dos actos


consequentes ao acto anulado, salvo se existirem contra-interessados com interesse
legítimo na manutenção do acto consequente.

A norma vale para os actos consequentes ao acto anulado pelo tribunal ou revogado
com fundamento na sua anulabilidade. E se a norma assim dispõe é porque afinal
dos actos nulos sempre resultavam bons efeitos para os particulares.

2. O relevo dos efeitos do acto nulo resulta também do CPTA ao admitir, ao menos
de modo implícito, a suspensão da eficácia do acto nulo.

Ao pedir a título cautelar a suspensão dos efeitos do acto o particular pode alegar
que ele é nulo assim corporizando o fumus boni juris cuja prova lhe cabe e o tribunal
não deve recusar a apreciação do pedido com base no facto de do acto nulo não
resultarem efeitos que se possam suspender.21

A prova dos efeitos do acto nulo resulta ainda da possibilidade de o lesado interpor
um pedido de indemnização em acção administrativa comum com fundamento nos
danos decorrentes de acto nulo.

O dano pode resultar dos efeitos produzidos pelo acto nulo e o tribunal não deve
afastar a indemnização com o fundamento nos termos do qual do acto nulo não

20
Como muito bem indicam Mário Esteves de Oliveira e outros, ibidem.
21
Como notam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário, cit., p.
660, o provimento do pedido cautelar não pode ter por base apenas a nulidade e a consequente
ausência de efeitos do acto administrativo. O CPTA exige um complexo juízo judicial que não
pode ser afastado apenas com aquele fundamento.
136 LUIZ CABRAL DE MONCADA

resultam efeitos e, portanto, danos. A prova respectiva cabe ao lesado autor na acção
e o tribunal deve aceitá-la se convincente.

Bem vistas as coisas, a próprio pedido de declaração judicial da nulidade do acto


nulo só faz sentido se admitirmos que dele podem resultar efeitos maxime jurídicos.
Na mesma linha de entendimento se percebe que o particular possa pedir ao tribunal
a condenação da Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o
acto nulo não tivesse sido praticado, ao abrigo da alínea a) do nº 2 do art. 4º do
CPTA. Na verdade, o particular não se satisfaz as mais das vezes com a mera decla-
ração judicial da nulidade. Quer mais; quer apagar os efeitos produzidos.

3. Num modelo de justiça administrativa de feição acentuadamente subjectivista,


como é o caso do nosso actual modelo, deve reconhecer-se ao lesado a possibilidade
de uma efectiva tutela contra o acto nulo. Esta passa não apenas pela declaração
judicial ou oficiosa da nulidade mas principalmente pela condenação da Administra-
ção a indemnizar e a repor a situação existente antes da prática do acto nulo, nos
termos da alínea j) do nº 2 do art. 2º do CPTA, ambas corporizando pedidos na acção
administrativa comum.

No mesmo sentido vai a norma do nº 3 do art. 173º do CPTA que veio introduzir
uma regra processual que serve de complemento em sede de execução de sentença
de anulação de actos administrativos à referida norma da alínea i) do nº 2 do art.
133º do CPA. Lá se diz que os beneficiários de actos consequentes ao acto anulado
que, recorde-se, são nulos, praticados há mais de um ano e que desconheciam sem
culpa a precariedade da sua situação têm direito a ser indemnizados pelos danos
que sofram em consequência da anulação.

Verificando-se aquele condicionalismo a situação dos titulares de interesses legíti-


mos de boa-fé prevalece sobre a do interessado na anulação do acto e isto por home-
nagem aos efeitos favoráveis do acto consequente nulo, estando o beneficiário de
boa-fé.

E mais se diz no referido nº 3 do art. 173º que a situação dos referidos beneficiários
não pode ser posta em causa se os danos forem de difícil ou impossível reparação e
for manifesta a desproporção existente entre o seu interesses na manutenção da
situação e o interesse na execução da sentença anulatória.22 Neste caso o princípio
da proporcionalidade exige que os interessados possam conservar a respectiva situa-

22
Salvo se o contra-interessado no acto consequente é também o contra-interessado no acto
anulado ou revogado, como indicam Mário Esteves de Oliveira e outros, Código, cit., p. 651.
A NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO 137

ção jurídica favorável,23 apesar da nulidade, o que dá origem a uma situação de cau-
sa legítima de inexecução daquela sentença anulatória por impossibilidade jurídica
de satisfação da pretensão do interessado na execução da mesma sentença. E tudo
isto em nome de quê? Dos efeitos favoráveis do acto nulo.

VIII A «aproximação» entre os regimes da nulidade e da anulabilidade

1. Quanto mais moderado ou temperado é o regime da nulidade, à medida da consi-


deração de determinados valores que caracterizam a ordem jurídica, mais o respec-
tivo regime se assemelha ao da anulabilidade, muito embora esta asserção careça de
um esclarecimento adiante prestado. A consagração de um prazo, maior ou menor,
para a invocação da nulidade nos tribunais ou para a Administração revogar o acto, a
consideração de efeitos que não devem ser retroactivamente destruídos em nome da
boa-fé ou da tutela da confiança, a possibilidade eventual da sanação de atos nulos, a
reserva da competência dos tribunais administrativos para a respectiva declaração,
etc… fazem da nulidade uma espécie da invalidade cada vez mais aberta à pondera-
ção dos respectivos efeitos, chamem-lhes jurídicos ou de facto e, nessa medida, cada
vez mais próxima da anulabilidade. Julgamos que é esta a boa direcção.

2. A «aproximação» entre os dois regimes não significa que os vícios do acto gera-
dores da nulidade sejam, a final, menos graves ou menos evidentes do que se pen-
sava e se assemelhem aos que geram apenas anulabilidade do acto. Não é isso que se
verifica. Os vícios geradores da nulidade são obviamente mais graves do que os
outros apenas sucedendo que os efeitos da nulidade do acto são branqueados em
atenção a outros valores com protecção constitucional e legal, como se viu. Não é,
em rigor, a nulidade que se aproxima da anulabilidade mas sim o relevo de determi-
nados valores que exige uma ponderação do regime da nulidade do acto administra-
tivo. A referida «aproximação» não é das figuras dogmáticas da nulidade e da anula-
bilidade mas apenas a dos respectivos regimes jurídicos.

3. A atenuação do regime da nulidade que defendemos é a consequência, em síntese,


de uma contenda não entre princípios gerais e normas mas sim apenas entre princí-
pios gerais, devendo a norma legal deixar, como se viu, a ponderação final das solu-
ções ao critério do juiz e da Administração.

IX Conclusões

23
Assim nos Acórdãos do STA, 1ª Secção, de 17/1/1993 e de 22/2/1994. De acordo com o pri-
meiro, a nulidade dos actos consequentes apenas deve compreender o acto que seja estritamente
necessário atingir para reconstruir a situação hipotética, devendo os restantes actos manter-se.
138 LUIZ CABRAL DE MONCADA

A rigidez do regime tradicional da nulidade nem sempre se justifica nas condições


do moderno Estado Social intervencionista. Necessário se torna um regime mais
moderado que contemple a possibilidade de ressalvar efeitos favoráveis aos benefi-
ciários da actividade administrativa e a terceiros em nome dos valores juridicamente
atendíveis da boa-fé e da tutela da confiança, entre outros.

Assim sendo, a nulidade deve apartar-se da figura da inexistência, reservada esta


para as situações mais anómalas em que não estamos perante um acto jurídico com
pretensões a sê-lo. A cuidadosa distinção entre as duas figuras permite atribuir à
nulidade um regime jurídico mais bem temperado e mais suave.

Nada impede que a lei apresente um conceito geral de nulidade «por natureza»,
como sucede entre nós, mas sem que isso prejudique a possibilidade de o legislador
imputar a nulidade a situações que considere adequadas à medida da evolução das
conjunturas e dos interesses públicos. A maleabilidade do legislador é indispensável.

A final o regime da nulidade, para ser distinto do da inexistência, aproxima-se, por


vezes, do da anulabilidade e disso não resulta qualquer prejuízo dogmático, justifi-
cado como está pela atenção aos valores relevantes e às realidades, de acordo com o
prudente critério do legislador e do juiz.
Administração Pública Electrónica e Directiva dos
Serviços: Aplicação ao Sector do Turismo
VIRGÍLIO MACHADO *

Sumário: I. Introdução. Os conceitos. II. A Administração Pública Electrónica na


Directiva 2006/123/CEE. III. A Administração Pública Electrónica na legislação
turística nacional. III. 1. Generalidades. O balcão único electrónico. III. 2. O Registo
Nacional de Turismo. III. 3. O Registo Nacional dos Empreendimentos Turísticos.
III. 4. O Registo Nacional dos Agentes de Animação Turística. III. 5. O Registo
Nacional das Agências de Viagens e Turismo. IV. Conclusões.

I. Introdução. Os conceitos.

Segundo Vidigal (2005), a Administração Pública Electrónica caracteriza-se pela


utilização de tecnologias de informação e comunicação para melhorar a eficiência e
eficácia da gestão pública e incrementando substantivamente, seja a transparência do
sector público, seja a transparência do cidadão nas suas relações com o Estado.

Segundo o mesmo Autor, o Estado deve reorganizar-se de forma a constituir uma


autoridade reguladora dos relacionamentos horizontais entre organismos públicos,
ajudando a identificar e optimizar processos e quebrando as respectivas barreiras
jurídicas, culturais, institucionais, políticas e territoriais.

A Administração Pública Electrónica e a sua necessária construção jurídica são,


pois, instrumentos de uma política pública reguladora, de um sistema de governação
portador de valores, princípios que são orientados para a mobilização não só do

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 139-159.

* Professor Auxiliar, ISMAT.


140 VIRGÍLIO MACHADO

Estado, como também das empresas e dos cidadãos em geral e tendo em vista objec-
tivos de melhoria numa condição administrativa, social ou económica, pelo que
também se podem considerar como instrumentos de Poder.

O Direito é aqui entendido como tecnologia de organização das relações humanas,


económicas e sociais, como sistema de governação ou padrão regulador que constrói
prioritariamente condutas, relações, que asseguram, enquanto arquitectura jurídica
de sistema, a coordenação dos comportamentos dos indivíduos, suas organizações e
interacções entre si e com o Estado (Douglas, 2004).

A supressão de entraves jurídicos à criação de um mercado interno dos serviços,


com maior simplificação administrativa aos prestadores de serviços ao acesso e
exercício da sua actividade económica, em conjugação com mais transparência na
informação e confiança aos consumidores, são instrumentos desejados pela Directiva
2006/123/CE, de 12 de Dezembro de 2006, do Parlamento Europeu e do Conselho,
adiante designada por Directiva, com objectivos de alcançar, designadamente, maior
convergência dos comportamentos das economias, criação de empresas e de empre-
go, mais e melhor escolha de serviços com acrescida qualidade a preços mais baixos
aos consumidores.

Segundo Portocarrero (2002), simplificação é um conceito multiusos, polivalente,


com o qual se visa, basicamente, aliviar o Estado do peso das regras, competências e
funções supérfluas. Trata-se de um caminho, um processo com uma certa fluidez de
contornos (susceptíveis de tratamento autónomo por cada ordenamento jurídico
interno dos Estados), mas que encontram alguns pontos comuns de sistema, tais
como:

a) Mecanismos simplificados de acção que garantam uma maior racionalidade da


intervenção administrativa e consequente afirmação do princípio da eficiência,
com consagração nos princípios constitucionais (eficiência do sector público e
racionalização dos meios a utilizar pelos serviços administrativos (artºs 81º alí-
nea e) e 267º nº 5 da C.R.P.);
b) A atribuição de um valor jurídico positivo à pretensão do particular pelo silên-
cio da Administração, garantindo, por um lado, maior descongestionamento da
actividade administrativa, também desejada constitucionalmente; (desburocra-
tização- art.º 267º nº 2 da C.R.P.), por outro, uma maior confiança na participa-
ção dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhe disserem
respeito (art.º 267º nº 5 da C.R.P);
c) Por último, um retraimento dos controlos da Administração em que a interven-
ção administrativa prévia (autorização) é substituída por uma comunicação
prévia ou um simples registo numa plataforma informática acessível, reforçan-
do, sejam os direitos subjectivos dos cidadãos e empresas ao acesso à activida-
de económica, sejam os mecanismos de uma Administração Pública aberta,
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 141

acessível e transparente, com reforço dos princípios constitucionais da liberda-


de de iniciativa económica privada e de acesso aos arquivos e registos adminis-
trativos (art.ºs 61º nº 1 e 268º nº 2 da C.R.P.).

Entre os serviços abrangidos pela Directiva encontra-se o Turismo, entendido no


Considerando 33 como serviço prestado directamente aos consumidores, incluindo
os serviços de guias turísticos, serviços de lazer, centros desportivos, parques de
atracções, seja implicando tais serviços uma proximidade entre prestador e destinatá-
rio e/ou que impliquem uma deslocação do destinatário ou prestador, seja ainda
serviços que possam ser fornecidos à distância, inclusive, através da Internet.

A Directiva reforça ainda no Considerando 102 a importância, no sector do Turismo,


do reforço da obrigação de transparência e de informação baseada em critérios com-
paráveis quanto à qualidade dos serviços oferecidos e prestados aos destinatários dos
serviços, sejam para uso profissional (ex: turismo de negócios), sejam para fins não
profissionais (ex: turismo de lazer), utilizando como exemplo a hotelaria em que é
frequente a utilização de sistemas de classificação.

Não é despiciendo o recurso ao Turismo, como exemplo de uma actividade relevante


para os objectivos da Directiva. Na verdade, sendo este um sector múltiplo e com-
plexo que abrange vários serviços (ex: transportes, agências de viagens, animação
turística, hotelaria), cada um deles com relações distintas com a Administração
Pública, a cadeia de valor do mesmo terá de mover-se segundo princípios de eficiên-
cia (Machado, 2010).

A eficiência é aqui entendida, enquanto meio ou processo das instituições ou organi-


zações, neste caso, as empresas e a Administração Pública, atingirem máximos bene-
fícios com menor dispêndio de recursos, com recurso a tecnologias de informação e
comunicação, todas sustentadas num sistema jurídico de governação que induzam ao
comportamento efectivo pelos destinatários dos resultados desejados pelo legislador
(ex: maior facilidade na criação de empresas, melhoria dos níveis de qualidade dos
serviços e de obrigação de transparência de informação junto dos consumidores).

Importa, pois, padronizar que variáveis jurídicas poderão ser utilizadas para constru-
ção do aludido sistema de governação. No quadro da Directiva apontamos como
fundamental a variável da transferibilidade.

Transferibilidade significa comerciabilidade do direito, a simplicidade ou baixo


custo na sua transferência a favor de outro titular, com determinação exacta dos seus
custos e limites, incluindo a potencialidade de ser transformado num equivalente ou
sucedâneo, a fim de permitir a sua troca e/ou fácil acessibilidade (Scott e Coustalin,
1995, cit. por Machado, 2010).
142 VIRGÍLIO MACHADO

A transferibilidade implica a necessidade de se estabelecerem equivalentes, denomi-


nadores, comparabilidades para se transferirem recursos (ex: bens, serviços, infor-
mação), através de padrões comuns de troca (ex: taxas de câmbio, arbitragem volun-
tária, registos e bases de dados públicos acessíveis).

Esta variável constitui um motor significativo na eficiência do Direito para reforço


das transacções entre sujeitos económicos de diferentes ordens jurídicas, alargando o
seu espaço de intervenção para acesso à actividade económica (direito de estabele-
cimento), e também de exercício dessa actividade com menores constrangimentos
administrativos (liberdade na prestação de serviços, circulação de capitais),pelo que
realiza alguns objetivos fundamentais da União Europeia, como a construção do
mercado interno (art.º 14º nº 2 do TFUE) e o direito de estabelecimento e livre pres-
tação de serviços no mercado interno (artºs 43º e 49º do Tratado de Funcionamento
da União Europeia – TFUE),como publicados no JOUE nº C 83 de 30.03.2010 e
acessíveis em http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/index.htm.

Reforçam-se, pois, os direitos subjectivos de particulares e organizações à liberdade


de acesso e exercício de actividades económicas. O uso de tecnologias de comunica-
ção e informação à distância impulsionou decisivamente a necessidade desta variá-
vel de eficiência jurídica.

O Turismo e a Administração Pública são sistemas complexos abrangendo compo-


nentes multissectoriais de diferente significado e relevância. Qualquer incremento de
uma variável de eficiência num sistema implica reacção contraposta de outra variá-
vel, pois os termos Direito e Regulação (entendidos enquanto conjunto de regras e
instrumentos de políticas públicas) relacionam-se com o facto de manterem em equi-
líbrio e assegurarem o funcionamento correcto de um sistema complexo (Norel,
2004).

Assim, para se compreender uma Administração Pública Electrónica no sector do


Turismo é necessário compreender outra variável jurídica fundamental de eficiência.
A mesma denomina-se exclusividade que se contrapõe, enquanto reacção, à variável
de transferibilidade.

Podemos definir a variável jurídica de exclusividade como a certeza, a segurança de


que terceiros não irão perturbar o seu exercício, pela possibilidade de exclusão a
terceiros que lhe é conferida pela sua especificidade, que garante ao seu titular uni-
dade nos proveitos e nos correspondentes custos da sua detenção, uso e transferibili-
dade (Scott, 1988, cit. por Machado, 2010).

A exclusividade expressa valor, qual seja, a garantia da sua não interferência por
terceiros, que acções de terceiros não poderão perturbar o uso e o valor do direito,
sem compensação adequada. Apresenta-se como uma técnica de adjudicação vincu-
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 143

lativa pelo Direito de um determinado faculdade ou poder a um sujeito ou organiza-


ção para prosseguir fins especiais e específicos para o acesso e exercício a uma
determinada actividade, o que lhe garante eficiência para o exercício desse poder.

Como se verificará, a arquitectura jurídica do sistema de governação previsto na


Directiva, no que à Administração Pública Electrónica diz respeito, baseia-se num
equilíbrio fundamental entre as variáveis da exclusividade e transferibilidade.
Enquanto sistema, também deverão existir variáveis de eficiência jurídica que asse-
gurem alguma durabilidade, pela perenidade das estruturas, pela normalização dos
processos (Giotart & Balfet, 2007) para que, independentemente da volatilidade
política e dos Governos que entram e saem, a referida Administração seja uma estru-
tura permanente que assegure continuidade e estabilidade sem necessidade de ruptu-
ras para a sociedade.

Estes aspectos serão abordados na análise ao sistema de Administração Pública


Electrónica na Directiva e, de seguida, ao sistema nacional correspondente no que
toca aos vários serviços previstos no sector do Turismo. É o que faremos de seguida.

II. A Administração Pública Electrónica na Directiva 2006/123/CEE.

O capítulo II da Directiva (artºs 5º a 8º) merece nossa especial atenção. Sob o título
“Simplificação Administrativa”, nele se contém algumas disposições fundamentais
para a comprovação da nossa pergunta de investigação, em concreto, se o Direito
tem uma ordem inteligível com a Administração Pública Electrónica, aprofundando
mais, de acordo com as considerações introdutórias, se nesta é detectável um equilí-
brio entre variáveis jurídicas opostas, ambas conduzidas por princípios de eficiência.

A variável de transferibilidade é logo introduzida no art.º 5º nº 2 ao se prever que a


Comissão possa introduzir formulários normalizados a nível comunitário equivalen-
tes a título de certificados, atestados ou outros documentos exigidos pela Adminis-
tração a um prestador de serviços para acesso à actividade, só excepcionalmente
permitindo, por motivos de interesse geral, que tais documentos tenham de ser apre-
sentados sob a forma de original, cópia ou tradução autenticada, quando os mesmos
forem obtidos noutro Estado-Membro (art.º 5º nº 3).

No art.º 7º nº 1 sob a epígrafe “Direito à informação”, a Directiva enuncia uma série


de obrigações de informação que impendem sobre os Estados-Membros, a saber:

a) Requisitos aplicáveis aos prestadores estabelecidos no seu território, em espe-


cial, os que digam respeito a procedimentos e formalidades a cumprir para ace-
der às actividades de serviços e ao seu exercício;
144 VIRGÍLIO MACHADO

b) Endereço e contactos das autoridades competentes que permitam que estas


últimas sejam directamente contactadas, incluindo os das autoridades compe-
tentes em matéria de exercício das actividades de serviços;
c) Meios e condições de acesso aos registos e bases de dados públicos relativos
aos prestadores e aos serviços.

Estas obrigações devem ser prestadas de forma clara e inequívoca aos prestadores de
serviços e seus destinatários, com facilidade à distância e por via electrónica e ainda
devem ser actualizadas (art.º 7º nº 3). O reforço da componente electrónica é enfati-
zado no art.º 8º nº 1, ao se prever que todos os procedimentos e formalidades relati-
vos ao acesso a uma actividade de serviços e ao seu exercício possam ser facilmente
efectuados à distância e por via electrónica, dela se excluindo apenas a inspecção das
instalações onde o serviço é fornecido, o exame físico das capacidades do prestador
dos serviços e do pessoal responsável ou dos equipamentos utilizados (art.º 8º nº 2).

Assim, o objectivo de simplificação administrativa está correlacionado, consoante


Considerando 52 da Directiva, com a consolidação do mercado interno, a necessida-
de de assegurar o direito de estabelecimento e livre prestação de serviços nesse mer-
cado por parte de qualquer operador comunitário, sem barreiras de acesso, constran-
gimentos ou controlos administrativos à “entrada” nesse mercado, condicionando
qualquer intervenção dos Estados nessa matéria, a título subsidiário e excepcional,
nomeadamente, ligada a razões de ordem e segurança públicas (art.º 5º nº 3).

Seria suposto pensar que os Estados deveriam manter a liberdade, a faculdade, a


competência de criar os instrumentos tecnológicos necessários ao cumprimento da
simplificação administrativa dos regimes de autorização ou requisitos exigidos aos
prestadores de serviços. Aliás, conforme Considerando 60 da Directiva, a mesma
não deveria interferir nos regimes de autorização e ao âmbito territorial de uma auto-
rização, e na repartição das competências regionais ou locais dos Estados-Membros,
incluindo os governos regionais ou locais.

Todavia, não foi essa a opção do legislador comunitário. O art.º 6º nº 1 prevê expres-
samente, na senda do Considerando 48 da Directiva, que cada prestador de serviços
deve ter um interlocutor único (balcões únicos), através do qual possa cumprir todos
os procedimentos e formalidades por cada Estado-membro relativas a:

a) Todos os procedimentos e formalidades que sejam necessários para o acesso às


respectivas actividades de serviços, em especial, as declarações, as notificações
ou os pedidos necessários para obter autorização das autoridades competentes,
incluindo os pedidos de inscrição nos registos, nas listas, nas bases de dados ou
nas ordens ou associações profissionais;
b) Os pedidos de autorização necessários para o exercício das respectivas activi-
dades de serviços.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 145

Mais enuncia o art.º 8º nº 1 que todos os procedimentos e formalidades necessárias


ao acesso e exercício da actividade pelos prestadores de serviços devem ser feitos
por via electrónica, através do balcão único. Este, segundo art.º 7º nº 4, deve respon-
der a qualquer pedido de informação ou assistência solicitado pelos prestadores de
serviços ou seus consumidores, incentivando-se a que essa informação e assistência
possam ser disponibilizadas noutras línguas comunitárias (art.º 7º nº 5).

O Considerando 48 da Directiva refere que, quando forem competentes várias auto-


ridades a nível regional ou local, uma delas pode desempenhar o papel de balcão
único e de coordenador. Os balcões únicos podem ser constituídos não só por autori-
dades administrativas, mas também por câmaras de comércio ou por associações
profissionais, ordens profissionais ou entidades privadas a que um Estado-Membro
tenha decidido confiar essa função, pelo que a actividade da Administração Pública
electrónica, no espirito da Directiva, pode ser exercida por entidades privadas.

Os balcões únicos estão vocacionados para desempenhar um papel importante de


assistência ao prestador, quer como autoridade directamente competente para emitir
os actos necessários ao acesso a uma actividade de serviço, quer como intermediário
entre o prestador e essas autoridades directamente competentes.

Verifica-se, não obstante, a directiva não prejudicar a repartição de competências


substantivas entre autoridades nacionais, regionais e locais (art.º 6º nº 2), o certo é
que instrumentalmente os Estados devem atingir, enquanto obrigação de resultado
imposta pela directiva comunitária (art.º 288º do TFUE) e em sede de Administração
Pública Electrónica, a criação de um balcão único de serviços.

Aqui entronca uma resposta fundamental à nossa pergunta de investigação: a ordem


inteligível do Direito na Administração Pública Electrónica Comunitária relativa aos
serviços no mercado interno baseia-se num equilíbrio de acção e reacção entre
variáveis opostas de eficiência: por um lado, a variável de acessibilidade electrónica
à criação ou reforço de direitos subjectivos de acesso e exercício às actividades eco-
nómicas de prestação de serviços por parte de particulares e empresas, a que desig-
namos transferibilidade; por outro, a variável de concentração num organismo único
e específico da Administração, com detenção dos custos e respectivos proveitos, das
atribuições e funcionalidades necessárias à referida acessibilidade, o denominado
balcão único electrónico, a que designamos exclusividade.

A localização sistemática na Directiva da variável da exclusividade (balcão único


electrónico) no art.º 6º e da variável da transferibilidade (direito à informação) no
art.º 7º reforça a nossa convicção que o referido equilíbrio é uma ordem inteligível
desejada pelo legislador comunitário.
146 VIRGÍLIO MACHADO

A interoperabilidade dos sistemas de informação e dos procedimentos por via elec-


trónica no art.º 8º nº 3 entre Estados, enquanto regra de execução a operar pela
Comissão assenta no mesmo princípio: para assegurar migração de dados em tecno-
logias de informação, comunicação e assistência aos prestadores de serviços quanto
aos requisitos de acesso e exercício da sua actividade é eficiente e fundamental asse-
gurar que tais sistemas sejam confiados, em termos de responsabilidade, a organiza-
ções especializadas e únicas que coordenam os conhecimentos necessários para tais
funções

Algumas notas finais, em sede de análise da Directiva e que são importantes para as
considerações do próximo subcapítulo são as seguintes:

a) A previsão no Considerando 49 de que o balcão único electrónico poderá


cobrar uma taxa que deverá ser proporcional ao custo dos procedimentos e
formalidades a que se refere, sem prejuízo dos balcões únicos poderem cobrar
outras taxas (ex: taxas dos organismos de fiscalização);
b) O direito à informação previsto no art.º 7º também prevê a obrigação dos Esta-
dos informarem, por via do balcão único electrónico, vias de recurso geralmen-
te acessíveis em caso de litígio entre as autoridades competentes e o prestador
ou destinatário do serviço, ou entre um prestador e um destinatário ou entre
prestadores (nº 1 alínea d)) e endereço e contactos das associações ou organiza-
ções, juntos dos quais os prestadores ou destinatários possam obter uma assis-
tência prática (nº 1 alínea e)) e ainda que respondam com brevidade a qualquer
pedido de informação ou assistência dos prestadores de serviços ou destinatá-
rios (art.º 7º nº 4);
c) A obrigação de informação por parte do prestador de serviço em informar o
balcão único electrónico de alterações específicas como a criação de filiais ou
qualquer alteração da sua situação que implique que as condições de concessão
da sua autorização deixem de estar preenchidas (art.º 11º nº 3 alíneas a) e b));
d) A previsão de mecanismos de cooperação administrativa no capítulo VI (art.ºs
28º a 36º) entre Estados no sentido de assistência mútua a pedidos de informa-
ção, verificações, inspecções e inquéritos (art.ºs 28º e 29º) e fiscalizações em
casos de deslocação temporária do prestador de serviço para outros Estados
(artºs 30º e 31º),com mecanismos de alerta entre os mesmos para actividades de
serviços que prejudiquem gravemente a saúde e segurança de pessoas ou o
ambiente (art.º 32º) ou que prejudiquem a honorabilidade do prestador (art.º
33º),tudo através de sistemas electrónicos de intercâmbio de informação (art.º
34º).

Estas alíneas são também reveladoras do projecto de sistema de governação electró-


nica previsto na Directiva numa perspectiva de acção/reacção. Se é certo que a sim-
plificação administrativa numa perspectiva ex-ante aligeira ou diminui as barreiras
administrativas à entrada no mercado dos prestadores de serviços, não é menos ver-
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 147

dade que a fiscalização ex-post por via electrónica sai reforçada, com obrigações de
informação por parte dos prestadores de serviços, de pagamento de taxas e de meca-
nismos de alerta, controlo e supervisão das informações prestadas pelas autoridades
competentes. Veremos se o legislador nacional, na aplicação ao sector do Turismo,
cumpriu este sistema de governação projectado pela Directiva.

III. A Administração Pública Electrónica na legislação turística nacional.

III.1. Generalidades. O balcão único electrónico.

O art.º 1º nº 2 do D.L 92/2010,de 26 de Julho, transpõe a Directiva relativa aos ser-


viços no mercado interno para o Direito Português. No seu art.º 6º enquadra-se o
funcionamento do balcão único electrónico sob a epígrafe “balcão único e desmate-
rialização de procedimentos”, que permite a qualquer prestador ou destinatário de
serviços, de todos os Estados, o acesso por via electrónica às autoridades administra-
tivas competentes.

Prevê-se que o sítio na Internet adequado para o funcionamento do balcão único


electrónico seria o Portal da Empresa (art.º 6º nº 2), todavia, a Agência para a
Modernização Administrativa, I. P., concebeu e preparou os requisitos funcionais e
tecnológicos necessários à implementação de uma plataforma de atendimento eletró-
nico multicanal, onde se inclui o «Balcão do empreendedor», previsto no Decreto -
Lei n.º 48/2011, de 1 de Abril, dotada dos mecanismos necessários para dar resposta
às exigências do Decreto -Lei n.º 92/2010.

A implementação operacional e plena produção de efeitos do Balcão do Empreende-


dor foi recentemente diferida por mais um ano pelo D.L. nº 141/2012,de 11de Julho
e até 1 de Abril de 2013.

Segundo o art.º 6º nº 3 do D.L. 92/2010, o balcão único electrónico disponibiliza aos


prestadores e aos destinatários de serviços de todos os Estados, pelo menos em por-
tuguês, inglês e castelhano, informação clara, inequívoca e actualizada sobre:

a) Os requisitos aplicáveis à prestação de serviços, nomeadamente os respeitantes


aos procedimentos e formalidades de condições de acesso à actividade e res-
pectivo exercício;
b) Os endereços e os contactos das autoridades administrativas competentes;
c) Os meios e as condições de acesso às bases de dados públicas, designadamente,
de registos e notariado;
d) Os meios de reacção judiciais ou extrajudiciais de resolução de litígios entre
prestadores de serviços, entre as autoridades administrativas competentes e os
prestadores de serviços ou entre um prestador e o destinatário do serviço;
148 VIRGÍLIO MACHADO

e) Os endereços e os contactos de quaisquer entidades que prestem assistência a


prestadores ou a destinatários;
f) Lista exemplificativa dos documentos que as autoridades administrativas com-
petentes aceitam em substituição dos documentos legalmente exigidos, para
acesso e/ou exercício da actividade;
g) Lista dos documentos que devem ser apresentados sob a forma original, autên-
tica, autenticada, cópia ou tradução certificadas ou com reconhecimento de
letra e assinatura, ou só de assinatura, fundamentada em imperiosa razão de
interesse público ou por lei comunitária.

Segundo art.º 6º nº 4 do D.L. 92/2010, o balcão único electrónico disponibiliza ainda


aos prestadores e destinatários de serviços de todos os Estados a possibilidade de
cumprimento directo e imediato de todos os actos e formalidades necessários para
aceder e exercer uma actividade de serviços, incluindo meios de pagamento electró-
nico, bem como o acompanhamento e consulta dos respectivos procedimentos.

Acrescenta o nº 5 da mesma disposição legal que todos os pedidos, comunicações e


notificações entre os prestadores de serviços e outros intervenientes nos procedimen-
tos, incluindo as autoridades administrativas competentes, devem poder ser efectua-
dos por meios electrónicos, através do balcão único electrónico.

No anexo ao diploma, é apresentada uma lista exemplificativa das actividades de


serviços abrangidas pelo D.L. 92/2010,destacando-se pelo seu interesse para o
Turismo, as agências de viagens de turismo, a animação turística e de operadores
marítimo-turísticos, promoção e organização de campos de férias e restaurantes e
bares.

No que diz respeito ao Turismo, é de referir que a desmaterialização dos procedi-


mentos e formalidades, tendo em vista a obtenção de uma autorização administrativa
para o acesso e exercício da actividade, já se encontrava prevista normativamente
muito antes do D.L. 92/2010.

Assim, por exemplo, nas agências de viagens, o art.º 64º -A do regime jurídico das
agências de viagens e turismo, introduzido pelo D.L. 263/2007,de 20 de Julho, já
previa que as comunicações e requerimentos entre prestador de serviços e autoridade
administrativa se processassem por via informática.

Igualmente, a autorização para o exercício da actividade de agentes de animação


turística e de operadores marítimo- turísticos já carecia de uma mera inscrição num
registo público electrónico, denominado RNAAT (Registo Nacional de Agentes de
Animação Turística) disponibilizado pela autoridade administrativa competente, o
Turismo de Portugal I.P., em sítio na internet em que se previa a desmaterialização
de todos os procedimentos (artºs 11º a 19º do D.L. 108/2009, de 15 de Maio, que
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 149

aprovou o regime jurídico do funcionamento das empresas de animação turística e


dos operadores marítimo-turísticos).

Ainda o D.L. 39/2008, de 7 de Março, que aprovou o actual regime jurídico dos
empreendimentos turísticos, no seu preâmbulo, previu desde logo o cumprimento
das medidas do programa de simplificação administrativa (Simplex 2007),com agili-
zação dos procedimentos de licenciamento dos empreendimentos turísticos e que a
tramitação dos mesmos fosse feita através de sistema informático (art.º 74º nº 1 do
D.L. 39/2008).

Neste diploma, prevê-se a obrigação da autoridade turística nacional, o Turismo de


Portugal, I.P., de disponibilização, num seu sítio da internet, do Registo Nacional
dos Empreendimentos Turísticos (RNET), contendo relação actualizada, designada-
mente, do nome, classificação e título de abertura válido dos empreendimentos turís-
ticos (art.º 40º nº 1 do D.L.39/2008).

Simplificação administrativa já estava prevista normativamente. Com a vantagem do


acesso e exercício destes serviços serem tramitados informaticamente junto de uma
única autoridade administrativa competente, o Turismo de Portugal, I.P., de acordo
com as atribuições previstas no seu estatuto orgânico de acompanhamento da evolu-
ção e o desenvolvimento da oferta turística nacional, designadamente, através do
registo e classificação de empreendimentos e atividades turísticas (art.º 3º nº 2 alínea
i) do D.L. 129/2012, de 22 de Junho).

III.2. O Registo Nacional de Turismo.

Chegados a este ponto, importa recolocar um ponto de ordem na nossa pergunta de


investigação: no Direito do Turismo nacional existe uma ordem inteligível com a
Administração Pública Electrónica? Conforme com a ordem identificada na Directi-
va dos Serviços 2006/123/CE? Mais se questiona se o Turismo de Portugal, I.P.,
enquanto autoridade administrativa competente nos serviços do Turismo, dispõe das
habilitações normativas para actuar como balcão único electrónico, em conformida-
de com as obrigações de resultado previstas na referida Directiva.

As perspectivas pareciam, à partida, promissoras. Como vimos, a simplificação


administrativa chegou aos serviços no Turismo muito antes da transposição da
Directiva pelo D.L. 92/2010,de 26 de Julho.

Mais. Já desde o D.L. 191/2009,de 17 de Agosto, que aprovou o regime jurídico das
políticas públicas no Turismo se previa no artigo 15.º que a informação ao turista
evoluísse para o funcionamento em rede através da criação de uma rede nacional de
informação turística, que garantisse a qualidade e um nível homogéneo da informa-
150 VIRGÍLIO MACHADO

ção prestada ao turista, independentemente do ponto em que seja solicitada, e na


qual se privilegie a maior interacção possível com os turistas. Relembre-se que a
Directiva previa no art.º 7º que o direito à informação era acessível não só aos pres-
tadores dos serviços, como também aos destinatários desses serviços.

O referido D.L. 191/2009 ainda previa no art.º 16º nº 4 que caberia à autoridade
turística nacional a criação, o desenvolvimento e a manutenção de um registo nacio-
nal de turismo que centralize e disponibilize toda a informação relativa aos
empreendimentos e empresas do turismo em operação no País.

Dir-se-ia que estariam criadas todas as condições para que o Turismo de Portugal,
I.P. funcionasse como balcão único electrónico para autorização de acesso e controlo
electrónico dos serviços no Turismo em conformidade com as obrigações jurídicas
de resultado previstas nos artºs 6º e 7º da Directiva e em articulação informática com
o Portal de Empresa previsto no D.L. 92/2010 (art.º 6º nº 2).

Cumpre aferir se tal efectivamente aconteceu e se tais obrigações foram cumpridas


pelo legislador português. Como veremos, a resposta é negativa. É o que nos cumpre
fundamentar no desenvolvimento deste artigo.

Como nota prévia, dir-se-á que existe um atraso considerável do Estado Português
na implementação da Directiva. Esta, no seu art.º 44º, previa que as disposições
legislativas, regulamentares e administrativas deviam ser transpostas pelos Estados
até 28 de Dezembro de 2009. O D.L. 92/2010 data de Julho de 2010 e a sua imple-
mentação operacional, através do “Balcão do Empreendedor” foi adiada por mais
um ano pelo D.L. 141/2012, de 11 de Julho e até 1 de Abril de 2013.

Este atraso provoca, à partida, um risco relevante para o sector do Turismo. Na ver-
dade, a regulação das suas diversas actividades (ex: agências de viagens, empreen-
dimentos turísticos, animação turística), à medida que é realizada no tempo, fruto da
necessária actualização à evolução das condições sociais e económicas, pode não
seguir a preocupação uniformizadora de resultado prevista pela Directiva em sede de
Administração Pública Electrónica.

Sendo decorridos quase 6 anos desde a publicação da Directiva, poderia existir risco
de falha sistémica e incumprimento do seu modelo de governação pela legislação
sectorial nacional em particular, no sector do Turismo que apresenta regulação de
diversos serviços. Podemos, efectivamente, afirmar, que tal risco se concretizou.

Como primeira demonstração, verifica-se o regime contido na Portaria 1087/2010,de


22 de Outubro, que regulamenta o Registo Nacional de Turismo. Este tem como
missão a centralização e disponibilização no Turismo de Portugal, I.P. de toda a
informação relativa aos empreendimentos e empresas de turismo a operar em Portu-
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 151

gal (art.º 2º nº 2), na sequência das preocupações contidas no preâmbulo do diploma


de ter este registo, e, passamos a citar (…) uma função agregadora relativamente a
todos os registos de constituição obrigatória (….), constituindo um importante ele-
mento de consulta estatística e de aferição da legalidade do seu funcionamento.

Abrangendo, simultaneamente, o RNET (Registo Nacional dos Empreendimentos


Turísticos),o RNAAT (Registo Nacional dos Agentes de Animação Turística) e o
RNAVT (Registo Nacional de Agências de Viagens de Turismo), pelo seu art.º 2º nº
2, dir-se-ia que residiria neste instrumento a concretização normativa do balcão
único electrónico nos serviços do Turismo e o cumprimento dos objectivos de resul-
tado previstos na Directiva.

Não foi essa, todavia, a orientação do legislador na Portaria 1087/2010. O registo de


cada uma daquelas actividades é remetido para os regimes jurídicos que disciplinam,
respectivamente, cada actividade (art.º 3º), o que sucede integralmente para o registo
das empresas de animação turística e operadores marítimo-turísticos (RNAAT) e
registo das agências de viagens (RNAVT) (art.º 5º).

A inscrição no RNET é enquadrada normativamente. A mesma é realizada no prazo


de 30 dias após a data de um título válido de abertura ao público, sendo as informa-
ções prestadas da responsabilidade dos proprietários e exploradores de empreendi-
mentos turísticos (art.º 4º nº 1 e nº 2). Acrescente-se que pela inscrição no RNET
não é devida qualquer taxa (art.º 4º nº 7).

Este serviço registral assume a natureza meramente informativa como simples publi-
cação ex-post de factos ou direitos; concluindo-se pela sua não inserção no âmbito
de um procedimento administrativo prévio de acesso ou exercício de actividade da
prestação de serviços, pelo que não corresponde ao âmbito dos objectivos previstos
pela Directiva.

A existência de algum facto justificador da alteração dos elementos que constam do


Registo, deve ser comunicada a este no prazo de 30 dias (art.º 8º) por todos os agen-
tes económicos que integrem o RNT, contudo, o legislador não prevê qualquer tutela
sancionatória específica da violação desta norma, pelo que a aferição da legalidade
do funcionamento é feita ou por iniciativa do agente económico que comunica o
encerramento do empreendimento ou do estabelecimento turístico (art.º 9º alínea a))
ou oficiosamente, sempre que se verifique a caducidade das autorizações de abertura
ou utilização para fins turísticos (art.º 9º alínea b)).

Dir-se-á que o legislador nacional, no regime regulamentador do Registo Nacional


de Turismo, passou à margem do regime jurídico do balcão único electrónico dos
serviços previsto na Directiva, das suas funcionalidades e modelo de governação.
Este baseia-se unicamente na variável da transferibilidade, acesso, depósito e publi-
152 VIRGÍLIO MACHADO

cação de informação pelos empresários turísticos num registo de uma entidade


pública, sem sanções específicas pela não inscrição no Registo e também pela não
comunicação de qualquer alteração que determinasse o cancelamento da inscrição
nesse Registo.

Pergunta-se como o Registo Nacional de Turismo pode ser um elemento aferidor da


legalidade do funcionamento de empresas turísticas sem determinações obrigatórias,
seja para inscrição, seja para obrigação de actualização das informações prestadas,
acompanhadas de uma tutela sancionatória de controlo?

Perdida a oportunidade da Portaria 1087/2010 constituir, no Turismo, a referência


principal do balcão único electrónico dos serviços prevista na Directiva, resta-nos a
análise das disposições sectoriais na matéria. Atendendo a que o Registo Nacional de
Turismo abrange as actividades dos empreendimentos turísticos, empresas de ani-
mação turística e operadores marítimo-turísticos e agências de viagens e turismo,
vamos referir-nos por esta ordem aos seus respectivos regimes jurídicos de acesso e
exercício da actividade, tendo em atenção a pergunta de investigação e a detecção de
uma ordem jurídica inteligível na relação com a Administração Pública Electrónica.

III.3. O Registo Nacional dos Empreendimentos Turisticos.

O regime jurídico dos empreendimentos turísticos é regulado pelo D.L. 39/2008,de 7


de Março, entretanto actualizado pelo D.L. nº 228/2009,de 14 de Setembro. Antes,
portanto, da já referida Portaria 1087/2010,de 23 de Outubro. E ainda dentro do
tempo imposto, já referido, de 28 de Dezembro de 2009, para a transposição da
Directiva.

É entendível, pois, nestes diplomas, a ausência de referência a um balcão único elec-


trónico de serviços. É prevista a tramitação dos procedimentos por via informática
(desmaterialização), em articulação com o sistema informático do regime jurídico da
urbanização e edificação (art.º 74º nº 1), por via do necessário respeito, na constru-
ção e instalação de empreendimentos turísticos, pelos regimes jurídicos, designada-
mente, do urbanismo, ambiente, ordenamento do território, segurança contra riscos
de incêndio, higiene e saúde que constituem valorações distintas do livre acesso
económico à actividade de prestação de serviços e atribuição de outras entidades
públicas, que não da Administração Turística, pelo que não iremos aprofundar a
temática da instalação dos empreendimentos turísticos.

Quanto à classificação dos empreendimentos turísticos, em geral, da competência do


Turismo de Portugal, I.P. (art.º 36º nº 1),o regime jurídico prevê que esta autoridade
administrativa disponibilize no seu sítio da internet, o Registo Nacional dos
Empreendimentos Turisticos constituído pela relação actualizada dos empreendi-
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 153

mentos com título de abertura válido onde constam o nome, classificação, capacida-
de e localização do empreendimento, identificação da entidade exploradora e perío-
dos de funcionamento (art.º 40º nº 1).

Sobre a qualificação deste Registo como balcão único electrónico dos serviços con-
forme previsto na Directiva, remetemos para as considerações negativas, atrás
expendidas, sobre a sua regulamentação constante da já referida Portaria 1083/2010.

Acresce, à semelhança dessa Portaria, que o art.º 40º nº 2 do D.L. 39/2008 contem-
pla a obrigação das entidades exploradoras de comunicarem ao Turismo de Portugal,
I.P. quaisquer factos que constituam alteração dos elementos constantes do Registo
no prazo de 10 dias sobre a sua verificação (ex: desclassificação do empreendimen-
to, caducidade de autorização de utilização),contudo, sem tutela sancionatória espe-
cífica, pois o art.º 67º nº 1 do mesmo diploma não prevê qualquer contra-ordenação
para a violação dessa obrigação.

Ainda que à data de aprovação do actual regime jurídico dos empreendimentos turís-
ticos, o Estado não estava obrigado ao cumprimento da Directiva, verifica-se um
afastamento do modelo de governação nela previsto e que impõe que o Estado exija
ao prestador de serviços que informe qualquer alteração da sua situação em termos
de acesso ou exercício de actividade por via do balcão único electrónico (art.º 11º nº
3 alínea b) da Directiva).

Conclui-se que o actual regime jurídico dos empreendimentos turísticos não cumpre
as exigências do balcão único electrónico e do seu modelo de governação contidas
na Directiva, pelo que se sugere a sua rápida revisão ou alteração, bem como da
Portaria 1083/2010,que a regulamenta, em especial, do regime do RNET e do Regis-
to Nacional do Turismo, que o inclui.

III.4. O Registo Nacional dos Agentes de Animação Turística.

O regime jurídico das empresas de animação turística e dos operadores marítimo-


turísticos consta do D.L. 108/2009,de 15 de Maio. O exercício da actividade destas
empresas depende, no que à temática de investigação diz respeito, de inscrição no
RNAAT (Registo Nacional dos Agentes de Animação Turística), que integra os
operadores com título válido para o exercício da actividade (art.º 9º nº 1), organizado
pelo Turismo de Portugal, I.P., através de formulário electrónico disponibilizado no
seu sítio da Internet (art.º 11º nº 1 e nº 2).

O procedimento prevê comunicações automáticas desmaterializadas (recibo de


recepção de comunicação para o endereço electrónico remetente- art.º 12º nº 1) e a
designação de um gestor de processo a quem cabe assegurar o desenvolvimento da
154 VIRGÍLIO MACHADO

tramitação processual, acompanhando, nomeadamente, a instrução do processo, o


cumprimento dos prazos e a prestação de informação e esclarecimentos ao requeren-
te (art.º 12º nº 2).

A ultrapassagem dos prazos de decisão pela Administração tem um valor jurídico


positivo, desde que, entre outros requisitos, o requerente pague as taxas devidas e
apresente uma declaração prévia de início de actividade, pelo qual se responsabiliza
pelo cumprimento dos requisitos adequados ao exercício da respectiva actividade
(art.º 17º nº 2 alínea c)).

A tramitação dos procedimentos (ex: requerimentos, consultas, decisões) deverá ser


realizada por forma desmaterializada, por meio de integração e garantia de interope-
racionalidade dos respectivos sistemas de informação (art.º 19º nº 1 e nº 2), sendo
atribuído um número único de referência a cada processo e que é mantido no decur-
so do mesmo, válido para todas as entidades intervenientes (art.º 19º nº 2 e nº 3).

Pela inscrição no registo, são devidas taxas (art.º 16º nº 1 e nº 2), podendo o registo
ser oficiosamente cancelado por despacho do presidente do Turismo de Portugal,
I.P., sempre que, designadamente, deixe de se verificar requisitos legais para a sua
admissão (art.º 18º nº 2 alínea a). Qualquer facto que suscite alteração dos elementos
constantes do Registo deve ser comunicado ao Turismo de Portugal, I.P. no prazo de
30 dias após a respectiva ocorrência (art.º 10º nº 1).

O exercício de actividades de animação turística sem que a empresa se encontre


registada e a não comunicação de factos que constituam alteração dos elementos
constantes do RNAAT, constituem motivos de contra-ordenação punida com coima
de 300 € a 3.740 € ou de 500 € a 15.000 €, consoante o infrator seja pessoa singular
ou pessoa colectiva (art.º 31º nº 1 alíneas a); e) e nº 2).

O regime jurídico das empresas de animação turística e dos operadores marítimo-


turísticos, pelo RNAAT, aproxima-se mais das exigências comunitárias, seja porque
funciona como balcão único electrónico para acesso da actividade a essas empresas,
cumprindo funções de informação e assistência, conforme artºs 7º nº 1 alíneas a), b)
e c) da Directiva, seja porque tal registo é elemento de controlo pela Administração
do exercício da actividade das empresas, impondo a estas obrigações de informação
actualizada para manutenção no registo, com tutela sancionatória, assim se cumprin-
do também o art.º 11º nº 3 alínea b) da referida Directiva e de cancelamento oficioso
do registo, por violação de normas legais pela empresa.

Por cumprir, verifica-se ainda a necessidade de disponibilização de informação no


RNAAT das obrigações constantes do art.º 7º nº 1 alíneas d) e e) da Directiva, a
saber, as vias de recurso geralmente acessíveis em caso de litígio entre as autorida-
des competentes, os prestadores de serviços e os destinatários e endereço e contacto
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 155

de associações ou organizações distintas das autoridades competentes, junto das


quais os prestadores de serviços ou os destinatários possam obter uma assistência
prática. Não está também cumprido o disposto no art.º 7º nº 4 da Directiva que obri-
ga o balcão único electrónico a responder a qualquer pedido de informação e assis-
tência sobre aquelas obrigações.

Como balanço da análise do regime jurídico das empresas de animação turística,


verifica-se uma aproximação mais forte deste regime à ordem inteligível com o
Direito em termos de Administração Pública Electrónica, que já se tinha detectado
na Directiva.

As indicações do registo específico, número único de processo, gestor único de pro-


cesso demonstram que o legislador se preocupou com a variável da exclusividade
para poder contrabalançar eficientemente com as obrigações de transferibilidade que
impedem sobre a Administração, designadamente, de informação electrónica sobre
requisitos de acesso e exercício à actividade aos particulares, e atribuição, cumpridos
certos prazos e pagas as taxas correspondentes, de valor positivo ao pedido, pelos
particulares, de acesso e exercício de actividades económicas.

III.5. O Registo Nacional das Agências de Viagens e Turismo.

O regime jurídico das agências de viagens e turismo consta do D.L. 61/2011,de 6 de


Maio. No seu preâmbulo, refere-se expressamente a necessidade de aplicação a este
sector de actividade do regime constante da Directiva, com o reforço de mecanismos
de desburocratização, procedimentos mais rápidos e desmaterializados, acesso mais
fácil ao exercício da actividade, tendo em vista atingir maior competitividade no
mercado dos serviços, crescimento económico e criação de emprego.

O diploma simplifica o acesso e exercício da actividade das agências de viagens e


turismo ao abolir o licenciamento como requisito de acesso, que, acompanhada do
comprovativo da prestação das garantias e taxas exigidas, permite o início imediato
da actividade, sem necessidade de autorização por parte da Administração Pública
(art.º 6º nº 1).

A mera comunicação prévia é obrigatoriamente efectuada por via electrónica, por


formulário electrónico disponível no RNAVT (art.º 7º nº 1), instruída com documen-
tos de identificação da empresa (que podem ser referenciados por um endereço no
sitio da internet onde podem ser consultados), subscrição de seguros e fundos de
garantia e um pagamento de uma taxa no valor de 1.500 € (art.º 7º nº 2 e 8º nº 4).

A recepção da comunicação prévia gera automaticamente, por via electrónica, um


recibo de recepção e a designação de um gestor de processo a que compete acompa-
156 VIRGÍLIO MACHADO

nhar a instrução dos procedimentos, o cumprimento dos prazos e a prestação de


informações e esclarecimentos ao requerente (art.º 7º nº 4). Efectuada regularmente a
comunicação prévia e paga a taxa, a empresa pode iniciar a sua actividade (art.º 7º nº
6).

A tramitação dos procedimentos e comunicações é realizada de forma desmateriali-


zada, conforme prevê o art.º 45º, que dispõe ainda que o RNAVT é acessível através
do balcão único electrónico a que se refere o art.º 6º do D.L 92/2010 e disponível no
Portal da Empresa, no Portal do Cidadão e no Portal do Turismo de Portugal, I.P.
(art.º 45º).

O RNAVT deverá conter um conjunto de informações relativas à actividade da


empresa (nome, firma, sede, número de matricula na conservatória do registo
comercial, localização dos estabelecimentos, marcas, montante de garantias presta-
das-art.º 8º nº 2) e qualquer facto que constitua alteração aos elementos constantes
do registo deve ser comunicada ao RNAVT, no prazo de 60 dias após a referida
verificação (art.º 8º nº 3).

No RNAVT publicitar -se- á (a letra da lei é esta mesmo- art.º 9º) todas e quaisquer
situações de irregularidade verificadas no exercício da actividade das agências de
viagens e turismo, tais como, insolvência, cessação da actividade por um período
superior a 90 dias sem justificação atendível, incumprimento de obrigações de pres-
tação de garantias (artºs 31º e 35º) e ainda verificação de irregularidades graves na
gestão da empresa ou incumprimento grave perante fornecedores ou consumidores,
de modo a por em risco os interesses destes ou as condições normais do funciona-
mento do mercado.

Reter-nos-emos, adiante, na interpretação desta norma e o que ela significa na ordem


inteligível com o Direito que procuramos detectar, seja por referência à legislação
comunitária, seja por referência ao Direito do Turismo interno.

Dir-se-á que o RNAVT, enquadrado normativamente por legislação recente, cumpre


as exigências comunitárias de simplificação administrativa no acesso e exercício da
actividade de agência de viagens e turismo e corresponde ao modelo de governação
previsto na Directiva como balcão único electrónico.

Verifica-se, todavia, incumprimento do regime da Directiva. O legislador continua a


replicar no RNAVT algumas insuficiências que constatámos na Portaria 1083/2010 e
no modelo do RNT. Na verdade, a obrigação de comunicação, por parte do particu-
lar, de qualquer alteração nos elementos constantes do registo (art.º 8º nº 3) carece
de tutela sancionatória específica. O art.º 40º que rege as contra-ordenações não
prevê nenhuma sanção para a omissão dessa obrigação de informação.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 157

Pergunta-se como o RNAVT poderá constituir instrumento de monitorização e


acompanhamento da evolução do sector das agências de viagens? E para melhor
fiscalização das entidades públicas competentes, conforme consta do preâmbulo do
D.L. 61/2011? Se não impõe eficazmente ao particular nenhuma sanção ou tutela à
obrigação sinalagmática deste de, não só aceder, mas manter-se em condições de
autorização de exercício da actividade, para poder continuar inscrito numa situação
registral que o beneficia em termos de aceitação e confiança no mercado e junto dos
consumidores?

Assim, o art.º 11º nº 3 alínea b) da Directiva que prevê que o Estado-Membro exija
ao prestador de serviços que comunique, através do balcão único electrónico, qual-
quer alteração da sua situação de autorização para o exercício da actividade, encon-
tra-se por cumprir.

À semelhança do que vimos para o regime das empresas de animação turística, o


RNAVT não cumpre as exigências constantes do art.º 7º nº 1 alíneas d) e e) da
Directiva e no nº 4 do mesmo artigo, quanto a resposta a pedidos de informação ou
assistência que extravasem do procedimento para acesso à actividade.

Verifica-se, assim, uma tendência do legislador turístico nacional para a não consa-
gração de variáveis de eficiência jurídica que reforcem direitos ou deveres de assis-
tência, monitorização, acompanhamento, controlo, informação de actualização de
factos ou qualidades, pelo que saem enfraquecidas estruturas que assegurem alguma
durabilidade, perenidade, normalização aos processos e actividades de uma “Admi-
nistração Pública Electrónica”.

Dir-se-á que o legislador se preocupou em utilizar este instrumento para garantir


maior facilidade ao particular para que este pague mais rapidamente o acesso a uma
actividade económica, do que a assistir-lhe a dúvidas e dificuldades no seu exercício
em caso de litígios ou reclamações. Neste ponto, sem afectar a ordem inteligível de
balanço entre as variáveis da transferibilidade e exclusividade (mais acesso à infor-
mação através de um balcão único electrónico), Portugal afasta-se do modelo de
governação previsto na Directiva, porque não consagra variáveis de eficiência jurídi-
ca sistémica que assegurem duração e estabilidade administrativa.

E esta conclusão sai reforçada do “insólito” art.º 9º do D.L 61/2011 que prometemos
atrás analisar e com que concluímos a análise do sistema jurídico nacional. Este
normativo manda “publicitar” (entenda-se, dar a conhecer, transmitir para o domínio
do conhecimento público) factos e qualidades sujeitas a conceitos indeterminados,
tais como, “justificação atendível”; “irregularidades graves”; “condições normais do
funcionamento do mercado” ou “por em risco” (vejam-se as alíneas b) e e) do art.º
9º).
158 VIRGÍLIO MACHADO

Esta técnica jurídica afigura-se-nos problemática. As situações registrais devem


conviver com alguma estabilidade e segurança jurídica, porque atestam ou certificam
estados e qualidades. O domínio dos conceitos indeterminados convive melhor com
decisões de políticas públicas, alta administração ou poderes discricionários e não
com registos públicos.

Por exemplo, o “por em risco” (art.º 9º alínea e) significa algo com que nos devemos
preocupar, no plano preventivo e suspensivo, com necessária medida cautelar que
vise evitar ou agravar um prejuízo. A sua configuração no plano registral significa
que o Estado, através do Turismo de Portugal, I.P. e pela via electrónica do RNAVT,
pode intervir oficiosamente para defender preventivamente o mercado e os consumi-
dores perante actos graves de gestão de agências de viagens e turismo.

IV. Conclusões.

A configuração do registo electrónico como instrumento de polícia administrativa,


em bom rigor, preventiva, apesar de se poder conter nas atribuições do Turismo de
Portugal I.P., na qualidade de autoridade turística nacional (art.º 19º nº 2 do D.L.
129/2012,de 22 de Junho), não vai no sentido da simplificação administrativa e
maior responsabilização dos agentes económicos pela actividade que desenvolvem,
conforme preocupações do preâmbulo do D.L.61/2011.

Tal regime também se afasta-se dos objectivos da Directiva no seu art.º 7º nº 2, que
obriga os Estados a assegurar a prestação de informações estáveis e normalizadas
(ex: circulares), sob a forma como os requisitos de acesso e exercício da actividade
devem ser interpretados, através dos balcões únicos electrónicos, aos prestadores de
serviços e consumidores. Pergunta-se como pode ser interpretada com estabilidade e
segurança jurídicas, através de circulares, uma “irregularidade grave” ou uma gestão
“que ponha em risco” os interesses dos consumidores ou as “condições normais” de
funcionamento do mercado.

Conclui-se pelo difícil convívio do legislador nacional com variáveis de estabilidade


e normalização procedimental electrónica que assegurem uma eficiência sistémica,
colocando-se, nalguns casos (RNAVT), a Administração Pública Turística Electró-
nica ao serviço de interesses voláteis de natureza política, conjuntural ou de alta
administração e como instrumento de polícia administrativa preventivo das condi-
ções normais de funcionamento do mercado, o que configura uma inversão substan-
cial dos objectivos de Administração Pública Electrónica prosseguidos pela Directi-
va 2006/123/CE.

Na legislação turística nacional, o regime jurídico das empresas de animação turísti-


ca e o seu sistema de registo público electrónico (RNAAT), é o que melhor transpõe
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ELECTRÓNICA E DIRECTIVA DOS SERVIÇOS 159

o sistema de governação constante da Directiva relativa aos serviços no mercado


interno, com equilíbrio mais eficiente entre simplificação administrativa e acessibili-
dade de informação e constituição de direitos subjectivos de acesso às actividades
económicas de prestação de serviços e necessária exclusividade de funcionalidades e
competências de controlo ex-post das actividades económicas exercidas, garantindo
mais padronização, normalização e correspondência de procedimentos sistémica
entre Administração Pública, empresas e consumidores.

Bibliografia:

Douglas, Mary (2004). Como pensam as instituições, 1ª edição, Instituto Piaget,


Lisboa.
Giotart, Jean-Pierre & Balfet, Michel (2007). Management du Tourisme – Terri-
toires, systèmes de production et stratégies, 2ª edição, Pearson Education
France, Paris.
Machado, Virgílio (2010). Direito e Turismo como instrumentos de poder – Os Ter-
ritórios Turísticos, 1ª edição, Editorial Novembro, Santo Tirso.
Norel, Philippe (2004). A Invenção do Mercado, 1ª edição, Instituto Piaget, Lisboa.
Portocarrero, Marta (2002). Modelos de Simplificação Administrativa, 1ª edição,
Publicações Universidade Católica, Porto.
Vidigal, Luis (2005). O que é a Administração Pública Electrónica, em Sistemas de
Informação Organizacionais, pp. 527-552, 1ª edição, Edições Sílabo, Lisboa.
O Código de Procedimento Administrativo
e a atividade de polícia
HENRIQUE DIAS DA SILVA *

Sumário: Introdução; a polícia no quadro dos poderes do Estado; as funções do


Estado e a atividade administrativa de polícia; a atividade administrativa e a ativi-
dade administrativa de polícia; a Polícia no quadro dos serviços públicos; a atividade
administrativa de polícia e os atos administrativos; a atividade administrativa de
polícia e as operações materiais administrativas; operações materiais administrativas
e as medidas de polícia; medidas de polícia e medidas especiais de polícia; o regime
procedimental aplicável às medidas de polícia e às medidas especiais de polícia; as
medidas de polícia e o âmbito do procedimento administrativo; nota conclusiva
final; Bibliografia.

Introdução

O ponto de partida deste trabalho consiste nas relações entre a atividade da polícia e
o Código do Procedimento Administrativo, procurando saber se aquela atividade se
encontra subordinada às regras procedimentais contidas no Código do Procedimento
Administrativo, excluindo obviamente do âmbito deste estudo a atividade de polícia
criminal desenvolvida pelos órgãos e autoridades de polícia criminal.1

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 161-198.

* Docente, ISMAT.
1
A que se referem as alíneas c) e d) do artigo 1.º do Código de Processo Penal e que pautam a
sua atuação pelas regras contidas neste diploma.
162 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Esta questão é suscitada pela própria regra relativa ao âmbito do Código do Proce-
dimento Administrativo onde se afirma a sua aplicabilidade a toda a “…atividade
administrativa de gestão pública…”. Esta regra é de tal modo abrangente que legí-
tima a nossa interrogação inicial quanto à aplicabilidade do Código do Procedimento
administrativo à atividade de polícia.

Na prossecução deste nosso objetivo temos de convocar quer as normas administra-


tivas organizacionais respeitantes aos serviços de polícia, quer as normas adminis-
trativas relacionais que incidem sobre as relações entre a polícia e os cidadãos.

Seguindo esta abordagem o nosso percurso envolve, sempre relacionando estas


matérias com a temática da atividade de polícia, os poderes do Estado, as funções do
Estado, incidindo sobre a função administrativa do Estado, os serviços públicos e
entre estes os serviços de polícia. Segue-se a atividade administrativa onde se integra
a polícia, que será analisada nas suas diversas vertentes, onde se incluem os atos de
polícia, as medidas de polícia, as medidas especiais de polícia e as operações mate-
riais de polícia, com o eventual confronto entre a atividade de polícia e os direitos
fundamentais, será ainda referido o âmbito de aplicação do Código de Procedimento
Administrativo, concluindo-se com uma tentativa de resposta à questão da aplicabi-
lidade do procedimento administrativo à atividade de polícia.

A Polícia no quadro dos poderes de Estado

No quadro dos poderes do Estado, a Polícia integra-se, como parte da Administração


Pública, no poder executivo do Estado. Abrangendo o poder executivo do Estado,
além do poder político,2 parte do poder administrativo já que a outra parte pertence a
entidades públicas menores, designadamente às regiões autónomas, às autarquias
locais e às associações públicas.3

A doutrina prefere então falar de poder administrativo como “o sistema de órgãos do


Estado e de entidades públicas menores que se caracteriza pela faculdade de, com
base na lei e sob o controlo dos órgãos competentes, estabelecer normas jurídicas e
tomar decisões em termos obrigatórios para os respetivos destinatários, estando-lhe
confiado o monopólio do uso legítimo da força pública (militar ou policial), a fim de
assegurar a execução coativa quer das suas próprias normas e decisões, quer das
normas e decisões dos outros poderes do Estado (leis e sentenças)”.4

2
O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração
pública nos termos do artigo 182.º da Constituição da República.
3
Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2011, pág. 23.
4
Idem, op. cit. pág. 24.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 163

É neste poder administrativo que a polícia se enquadra, particularmente na parte


relativa ao uso da força pública.

As funções do Estado e a Atividade Administrativa de Polícia

Outra abordagem possível a este assunto é a de observar a atividade administrativa


de polícia do ângulo das funções do Estado.

Entre as funções do Estado temos a função política e a função jurisdicional. Dentro


da função política temos as funções: legislativa, política stricto sensu e administra-
tiva.5

A função administrativa “…desenvolvida no interesse geral da coletividade, com


vista à satisfação regular e contínua das necessidades coletivas de segurança, cul-
tura e bem-estar, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as
formas mais convenientes”.6 Visa-se, em suma, “…a prossecução do interesse públi-
co, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” como
se determina no n.º 1 do artigo 266.º da nossa Lei Fundamental.

Claro que a atividade de polícia da Administração Pública não se confunde com a


função administrativa do Estado mas como é de todo evidente, integra-se nessa fun-
ção.7

Nem sempre assim foi, no século XVIII a polícia abrangia “… toda a ação do Prín-
cipe dirigida a promover o bem-estar e a comodidade dos vassalos…”, surgindo o
regime de polícia como “…um processo governativo eminentemente discricionário,
subtraído à lei e regido pelas vicissitudes e circunstâncias do bem comum e da segu-
rança pública…”.8

Esta situação altera-se com o advento do Estado de Direito que impôs como princí-
pio a obediência e a sujeição à lei para todas as atividades desenvolvidas pelos pode-
res públicos, designadamente a atividade de polícia.

5
Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pág.
346 e segs.
6
Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, I volume, 3.ª Edição, Almedina,
Coimbra, 2006, págs. 36 e 37.
7
Marcello CAETANO, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Editora Forense,
Rio de Janeiro, 1977, pág. 41
8
Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª Edição, Livraria Alme-
dina, Coimbra, 1980, págs. 1145 e 1147.
164 HENRIQUE D IAS DA SILVA

No início dos anos setenta Marcello Caetano definia polícia “Como o modo de atuar
da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades
individuais suscetiveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que
se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram preve-
nir”.9

Sendo a referida segurança interna, traduzida na manutenção da ordem pública, na


“…segurança de pessoas e bens, e na prevenção e repressão de danos de bens
sociais” é um dos fins do Estado, ao lado da justiça e do bem-estar.10

Há inclusive quem refira a existência de um Direito Constitucional de Segurança


como uma “disciplina constitucional autónoma”.11

Esta função administrativa é uma atividade pública de natureza secundária, pois


integra um segundo nível da definição do interesse público em virtude de o primeiro
nível pertencer à função legislativa.12 Ou, dito de outro modo, as funções administra-
tivas são funções secundárias por serem exercidas em cumprimento e de acordo com
as normas jurídicas aprovadas pela função legislativa.13

É neste quadro, que a doutrina afirma que a função administrativa é instrumental da


função política, está subordinada à função legislativa e é controlada pela função
jurisdicional.14

Na função administrativa do Estado avulta a atividade administrativa de polícia que


a Constituição da República, na sua organização sistemática, incluí no Parte III –
Organização do Poder Político, Título IX – Administração Pública, artigo 272.º sob
a epígrafe “Polícia”.15

9
Idem, pág. 1150
10
Jorge Bacelar de GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Volume I, 4.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2012, págs. 144 e 145.
11
Jorge Bacelar de GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Volume I, 4.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2012, págs. 34 e 38.
12
Jorge Bacelar de GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Volume II, 4.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2012, pág. 1229.
13
Filipa Urbano GALVÃO, Manuel Fontaine CAMPOS e Catarina Santos BOTELHO, Introdu-
ção ao Direito Público, Edições Almedina, Coimbra, 2012, pág. 88.
14
João CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 8.ª Edição, Âncora Editora, Lisboa,
2005, pág. 39.
15
As forças de segurança onde incluí a polícia de segurança são referidas pela Constituição nou-
tras normas designadamente: na alínea i) do artigo 163.º relativo ao acompanhamento pela
Assembleia da República de contingente de forças de segurança no estrangeiro; na alínea u) do
artigo 164.º relativo à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República
relativamente ao regime das forças de segurança; o n.º 3 do artigo 227.º relativo à manutenção
da tranquilidade pública e à proteção das comunidades locais pelas polícias municipais; o artigo
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 165

De notar que as normas e os princípios contidos nesta disposição são considerados


aplicáveis a todos os tipos de polícia, quer à polícia administrativa stricto sensu,
quer à polícia de segurança e à polícia judiciária.16

A Polícia no quadro dos serviços públicos

Numa perspetiva estrutural da Administração Pública uma das modalidades dos


serviços administrativos17 são os serviços de polícia, que se integram na espécie de
serviços principais18 e na subespécie de serviços operacionais19 pois exercem fiscali-
zação sobre as atividades dos particulares passíveis de por em risco os interesses
públicos que a Administração deve proteger.20

São exemplos destes serviços de polícia a Guarda Nacional Republicana e a Polícia


de Segurança Pública, que pertencem ao Ministério da Administração Interna,
“…que tem por missão a formulação, coordenação, execução e avaliação das políti-
cas de segurança interna, do controlo de fronteiras, de proteção e socorro, de segu-
rança rodoviária e de administração eleitoral”.21

O Ministério da Administração Interna, insere-se na categoria dos ministérios de


soberania, ou seja daqueles a quem está “…confiado o exercício das principais fun-
ções de soberania do Estado”.22

Assim, nos termos do artigo 4.º da Lei Orgânica do Ministério da Administração


Interna,23 sob a epígrafe “Administração direta do Estado” integram-se neste Minis-

270.º relativo à possibilidade de a lei proceder à limitação de determinados direitos fundamen-


tais de militares e agentes das forças de segurança.
16
J.J. Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, “Constituição da República Anotada”, Volume
II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 858, nota I ao artigo 278.º.
17
Os serviços administrativos são organizações de pessoas e de meios materiais criadas para
realizar as atribuições das pessoas coletivas públicas. Veja-se Diogo Freitas do AMARAL,
Curso de Direito Administrativo, Volume I, 3.ª Edição, Edições Almedina, Coimbra, 2006, pág.
792, Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Volume I, 10.º Edição, Coimbra,
1980, pág. 337,
18
A doutrina distingue numa perspetiva estrutural os serviços em principais que são aqueles que
desenvolvem as “…atividades correspondentes às atribuições da pessoa coletiva a que perten-
cem” e os serviços auxiliares são os que realizam atividades “secundárias ou instrumentais” ver
Diogo Freitas do AMARAL, idem, pág. 796.
19
Cfr. n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 203/2006, de 27 de Outubro
20
Idem, op. cit, pág. 997.
21
Nos termos do n.º 1 do artigo 14.º da Lei Orgânica do Governo aprovada pelo Decreto-Lei n.º
86-A/2011, de 12 de Julho.
22
Idem, op. cit. pág. 279. Sobre a taxonomia dos serviços veja-se João CAUPERS, Introdução à
Ciência da Administração Pública, Âncora Editora, Lisboa, 2002, págs. 73 e segs.
166 HENRIQUE D IAS DA SILVA

tério os seguintes serviços centrais de natureza operacional: as forças de segurança, o


Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Autoridade Nacional de Proteção Civil, a
Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e a Unidade de Tecnologias de
Informações de Segurança.24

Em síntese, podemos concluir que esta classificação da polícia como serviço princi-
pal e operacional incluído num ministério de “soberania” espelha a importância que
a polícia ocupa no nosso ordenamento jurídico.

A Atividade Administrativa e a Atividade Administrativa de Polícia

Sérvulo Correia define polícia em sentido funcional como “... a atividade da Admi-
nistração Pública que consiste na emissão de regulamentos e na prática de atos
administrativos e materiais que controlam condutas perigosas dos particulares com o
fim de evitar que estas venham ou continuem a lesar bens sociais cuja defesa pre-
ventiva através de atos de autoridade seja consentida pela ordem jurídica”.25

Neste sentido a segurança pública, a salubridade pública, o respeito pelo ambiente


“…constituem bens jurídico-coletivos protegidos por normas de polícia e passíveis
de defesa através de medidas de polícia”.26

Alguns publicistas afirmam mesmo a existência de um ramo de direito, o “Direito da


Segurança”, integrando o conjunto dos princípios e das normas maioritariamente de
Direito Público, aplicáveis na prossecução da segurança em cada uma das suas ver-
tentes, designadamente à segurança interna.27

Esta atividade tem como sujeitos ativos órgãos ou agentes da Administração Públi-
ca28 e por sujeitos passivos destinatários particulares que podem ser indiferente-
mente pessoas singulares ou coletivas.

23
Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 203/2006, de 27 de Outubro.
24
Esta última criada no âmbito do Ministério da Administração Interna pelo Decreto-Lei n.º
121/2009, de 21 de Maio.
25
Sérvulo CORREIA, Polícia, in: “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, Volume VI,
Lisboa, 1994, pág. 394, 2.ª coluna;
26
Pedro LOMBA, Sobre a Teoria das Medidas de Polícia Administrativa, in: “Estudos de Direito
de Polícia”, I Volume, AAVV, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lis-
boa, 2003, págs. 193 e 194.
27
Jorge Bacelar de GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Volume I, 4.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2012, pág. 55.
28
Sobre o sentido orgânico ou institucional da polícia veja-se Manuel Monteiro Guedes
VALENTE, Teoria Geral do Direito Policial, 3.ª Edição, Edições Almedina, Coimbra, 2012,
págs. 61 a 65 e CASTRO, Catarina Sarmento, A questão das Polícias Municipais, Coimbra
Editora, Coimbra, 2003, págs. 32 a 35.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 167

Contudo, este último entendimento parece ser limitativo ou ficar aquém da realidade
pois uma pessoa coletiva pública pode ser destinatário de um ato de polícia, tal suce-
derá, por exemplo, se um órgão ou agente de uma autarquia for alvo de uma medida
de polícia.29

As formas de exercício destes poderes de polícia administrativa são os seguintes:


regulamento de polícia e ato concreto que pode assumir a forma de ato jurídico que
habitualmente tem a natureza de ato administrativo, ou de ato material que implica
frequentemente o uso de coerção (Quadro IV).

Note-se que o uso da coerção decorre do privilégio da execução prévia ou do “poder


de execução coerciva das decisões administrativas” particularmente importante no
setor da polícia30 e entre nós consagrado no n.º 2 do artigo 149.º do Código do Pro-
cedimento Administrativo.

Nas palavras de Marcelo Caetano “A polícia é atuação de autoridade, pois pressupõe


um poder condicionante de atividades alheias, garantido pela coação sob a forma
característica da Administração, isto é, por execução prévia”.31

É igualmente de referir que a doutrina clássica considera que a polícia em sentido


funcional se caracteriza por três aspetos distintos:

 O primeiro é relativo à delimitação dos fins ou interesses a prosseguir, utili-


zando conceitos como ordem pública e segurança pública;
 O segundo elemento caracterizador é o conteúdo da atividade que se traduz em
efeitos limitativos da conduta dos particulares.

E, por último, como terceiro aspeto, temos a neutralização dos perigos para a socie-
dade, o que abrange não apenas as ações policiais preventivas, mas também as ações
destinadas a evitar a continuação e o alastramento de perigos concretos.32

29
Note-se que o Código do Procedimento Administrativo enferma do mesmo problema, conside-
rando que os sujeitos da relação procedimental são por um lado, os órgãos da Administração
Pública e, por outro lado, os particulares interessados (Cfr. os artigos 13.º e 52.º do Código do
Procedimento Administrativo), ora, nada impede que um órgão da Administração seja sujeito a
uma atividade administrativa de polícia.
30
Diogo Freitas do AMARAL, O Poder de Execução Coerciva das Decisões Administrativas,
Almedina, Coimbra, 2011, pág. 394.
31
Marcello CAETANO, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Editora Forense,
Rio de Janeiro, 1977, pág. 340.
32
Sérvulo CORREIA, Polícia, in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VI,
Lisboa, 1994, pág. 403, 1.ª coluna;
168 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Atualmente e quanto ao primeiro ponto atrás referido… temos uma tendência para
considerar bens suscetíveis de proteção especial todos aqueles que o ordenamento
jurídico proteja e que possam ser afetados por condutas perigosas dos particulares.

Quando ao segundo ponto deve dizer-se que, presentemente, o efeito limitador de


direitos individuais não é “... elemento caracterizador do conceito jurídico de polícia
em sentido funcional”. Agora, os atos de polícia nem sempre são limitativos, pois
certos atos de polícia podem ser tidos como de administração de prestação. Será o
que sucede quando a polícia verifica a integridade das portas de uma casa de um
cidadão em férias. Ou seja, em situações em que a polícia desempenha uma ativida-
de de vigilância geral.

Por último, e quanto à terceira característica clássica da atividade de polícia que é a


neutralização do perigo deve dizer-se que esta atividade administrativa se encontra
agora subordinada a uma bateria de princípios e de critérios de atuação entre as quais
se destacam:
a) Princípio da proibição do excesso;
b) Princípio da Necessidade
c) Princípio da Indispensabilidade
d) Princípio da Subsidiariedade
e) Princípio da Proporcionalidade.33

É ainda de deferir que este princípio da proporcionalidade, “…que é um dos mais


importantes limites ao exercício do poder discricionário…” surgiu originariamente
no direito de polícia,34 o seu estudo será abordado na parte relativa ao confronto
entre a polícia e os direitos fundamentais.

A Atividade de Polícia e os Direitos Fundamentais

A atividade de polícia pode caraterizar-se pelos seus objetivos designadamente de


“proteção de situações jurídicas subjetivas merecedoras de tutela”,35 e nos termos da
própria Constituição, da legalidade democrática e da segurança interna. Enquanto
por atividade policial se entende a atividade administrativa desenvolvida pela polícia
em sentido orgânico.36 Por sua vez, deve considerar-se que esta polícia em sentido

33
Idem, págs. 403 e 404.
34
António Francisco de SOUSA, “Direito Administrativo”, Prefácio, Lisboa, 2009, pág. 408.
35
Vitalino CANAS, A Atividade de polícia e a atividade policial como atividades limitadoras de
comportamentos e de posições jurídicas subjetivas, in: “Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Sérvulo Correia”, Volume II, Coimbra Editora, 2010, pág. 1253.
36
Idem, op. e loc. cit.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 169

orgânico compreende todos os serviços da Administração cuja atuação se traduz de


modo predominante ou exclusivo numa atividade de polícia.37

A nossa Lei Fundamental, depois de consagrar no n.º 2 do artigo 266.º o princípio


geral da subordinação da atividade administrativa à Constituição, impõe expressa-
mente, no n.º 3 do artigo 272.º, que a prevenção de crimes só pode fazer-se com
respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Esta questão é particularmente delicada pois a atividade de polícia é suscetível de ter


consequências negativas sobre os direitos, liberdades e garantias.

Neste domínio das restrições aos direitos fundamentais, liberdades e garantias impe-
ra o princípio da reserva de lei, pelo que as restrições aos direitos fundamentais
“…só podem ser efetuadas por lei, por lei parlamentar ou decreto-lei devidamente
autorizado” como se determina na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constitui-
ção.38 Aliás, este princípio aplica-se também às “medidas de polícia” que, nos ter-
mos do n.º 2 do artigo 272.º da Lei Fundamental, são as previstas na lei.39

Por consubstanciarem certas intervenções restritivas de direitos fundamentais as


“medidas de polícia” estão sujeitas, nos termos do n.º 2 do artigo 272.º da Constitui-
ção, ao princípio da tipicidade, “ainda que nem sempre os tipos daí resultantes
tenham de ser rigorosamente fechados”.40

Desta tipicidade decorre a “proibição ou a limitação rigorosa do poder discricionário


concedido por lei à Administração”.41 Considerando a doutrina que as leis restritivas
devem estabelecer com precisão os pressupostos de fato e de direito e os efeitos
correspondentes às diferentes modalidades de decisões não podendo conceder à
Administração o poder de livremente decidir.

Esta limitação ao poder discricionário da Administração é de grande relevância no


exercício de poderes coativos ou sancionatórios, designadamente no âmbito da polí-
cia administrativa e de segurança. Podendo nestes casos a atuação da Administração
ser controlada jurisdicionalmente “…com base nos princípios constitucionais da
proporcionalidade, igualdade, imparcialidade e boa-fé”.42

37
Idem, op. cit. pág. 1271.
38
Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I,
2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 356, nota VII ao artigo 18.º da autoria de Jorge Miranda e de
Jorge Pereira da Silva.
39
Idem, pág. 357, nota XXXI ao artigo 272.º.
40
Idem, pág. 358 e 359, nota XXXII ao artigo 272.º.
41
Idem, pág. 360 e 361, nota XXXIII ao artigo 272.º.
42
Idem, op. e loc. cit.
170 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Sendo neste domínio das restrições aos direitos, liberdade e garantias, em virtude da
reserva total de lei, vedado o recurso a conceitos indeterminados, ou pelo menos,
necessária uma particular contenção no seu uso43 o que será precisamente o caso das
medidas de polícia.

As leis que aprovem medidas de polícia encontram-se igualmente sujeitas ao princí-


pio da proporcionalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição,
segundo o qual a Administração deve provocar com a sua atuação a menor lesão que
for possível de interesses dos interesses dos administrados desde que compatível
com a prossecução do interesse público em causa.44

É de realçar que este princípio da proporcionalidade é uma das regras que se


impõem externamente ao próprio Estado, a partir do conceito doutrinário de Estado
de Direito45 acolhido expressamente no artigo 2.º da nossa Lei Fundamental.

Este princípio é tão importante que Jorge Miranda, citando Michel Villey, ensina
que “Direito é proporção”.46

O Direito Fundamental à Proteção da Polícia

A atuação policial tem como objetivo garantir os direitos do cidadão. Numa análise
recente considera-se que à polícia cabe não apenas a defesa da comunidade, numa
fundamentação objetivista da sua atividade, como também uma atividade de prote-
ção do individuo numa fundamentação subjetivista que por um lado assenta, e por
outro tem como consequência a existência de um direito fundamental do cidadão à
proteção da polícia.47

43
Idem, op. e loc. cit.
44
João CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 8.ª Edição, Editora Âncora, Lisboa,
2005, págs. 82 e 83. Este princípio constitucional foi concretizado no n.º 2 do artigo 5.º do
Código do Procedimento Administrativo, sendo também designado pela doutrina como princí-
pio da intervenção mínima ou princípio da proibição de excesso, cfr. António Francisco de
SOUSA, Código do Procedimento Administrativo Anotado e Comentado, 2.ª Edição, Quid
Juris, Lisboa, 2010, pág. 46, nota 13 ao artigo 5.º e J.J. Gomes CANOTILHO, e Vital
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra
Editora, 2007, pág. 392, nota XII ao artigo 18.º.
45
Jorge Bacelar de GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Volume II, 4.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2011, págs.792 e 797
46
Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional-Direitos Fundamentais, Tomo IV, 5.ª
edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 312
47
Jorge Silva SAMPAIO, O dever de proteção policial de direitos, liberdades e garantias,
Coimbra Editora – Grupo Wolters Kluwer, Coimbra, 2012, págs. 179 e 180.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 171

Deste modo, a doutrina considera que existe atualmente um verdadeiro direito indi-
vidual à proteção da polícia, com a natureza de direito fundamental, privilegiando
uma conceção de polícia que zela não apenas pela manutenção da ordem pública,
mas também pelos direitos dos cidadãos.48

Este direito dos cidadãos a uma atuação da polícia configura-se como um direito
subjetivo público à atuação policial ou, noutra terminologia, um direito fundamental
à intervenção policial. Trata-se, neste caso, não de um direito fundamental que obri-
ga o Estado a uma abstenção, mas de um direito fundamental que impõe ao Estado
uma atuação positiva.

Tal direito fundamental à intervenção policial é judicializavel, ou seja pode ser invo-
cado em Tribunal pelo menos no que respeita à sua identificação e existência, embo-
ra não quanto ao modo como a Administração, neste caso a polícia, efetivam esse
direito. Por conseguinte, a abstenção da polícia nos casos em que se impunha para
assegurar um direito do cidadão constituí a violação de um direito fundamental.49

Neste sentido considera-se possível que o cidadão, titular deste direito fundamental à
proteção policial, possa, utilizando a ação de condenação da administração à prática
do ato legalmente devido prevista no n.º 4 do artigo 268.º da nossa Lei Fundamental
e nos artigos 66.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
pedir a condenação do órgão de polícia à proteção policial devida.

O titular do direito fundamental à proteção policial tem direito a requerer uma inti-
mação para proteção de direitos, liberdades e garantias. Esta garantia contenciosa de
carácter urgente existe em cumprimento da norma constante do n.º 5 do artigo 20.º
da Constituição da República e encontra-se regulada nos artigos 109.º e seguintes do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos. A intimação do Tribunal pode
impor à Administração a adoção de uma conduta positiva – a intervenção policial –
que se “…revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um
direito de liberdade, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o
decretamento provisório de uma providência cautelar”.50

Por último, este direito fundamental à intervenção da polícia é também relevante no


que respeita à responsabilidade civil da Administração por omissão. O Regime da
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado,51 no n.º 1 do seu artigo 7.º sob a

48
Idem, op. cit. pág. 180.
49
Idem, op. cit. págs. 196 e 197.
50
Idem, op. cit. pág. 211.
51
A responsabilidade das entidades públicas encontra-se prevista no artigo 21.º da Constituição
da República tendo o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais
Entidades Públicas foi aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, posteriormente alte-
rado pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho
172 HENRIQUE D IAS DA SILVA

epígrafe “Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas coletivas de direi-


to público” prevê a possibilidade de o Estado ser responsabilizado por “…danos que
resultem de … omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus
órgãos funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa
desse exercício”.

Entende a doutrina que a “Administração de polícia” pode ser condenada devido a


omissões de proteção a que se encontre adstrita.52

O princípio da proporcionalidade tem três vetores ou subprincípios: o subprincípio


da adequação, o subprincípio da necessidade e o subprincípio da proporcionalidade
em sentido estrito.

O subprincípio da adequação assenta na existência de uma causalidade positiva entre


o meio utilizado e a finalidade a atingir,53 sendo a providência adequada se for apta
para obter o resultado desejado pela norma.54

O subprincípio da necessidade “…assume-se como um princípio comparativo…”


que se baseia no confronto entre a solução escolhida e as outras soluções “… hipo-
teticamente disponíveis…” para alcançar o objetivo pretendido na lei,55 em suma a
medida adotada é necessária se não existir outra que seja menos lesiva.56

Em terceiro lugar, temos o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou


da justa medida segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º
634/93), que procede a uma ponderação entre o bem ou o direito que se sacrifica e o
bem ou direito que se protege, sendo determinante nesta ponderação a ordem de
valores constitucionais.57

Por fim, deve entender-se que o princípio da proporcionalidade, previsto no n.º 2 do


artigo 272.º da Constituição, assume uma dimensão mais exigente ao dispor no sen-
tido de que as medidas de polícia não devem “… ser utilizadas para além do estrita-
mente necessário”. Tal decorre quer da particular natureza da atividade de polícia

52
Jorge Silva SAMPAIO, op. cit. pág. 212.
53
Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I,
2.ª Edição, Coimbra Editora, op. e loc. cit. pág. 373, nota XLII ao artigo 18.º
54
Jorge Bacelar de GOUVEIA, op. e loc. cit. pág. 842.
55
Jorge MIRANDA, op. e loc. cit. págs. 374 e 375, nota XLII ao artigo 18.º refere ainda que este
subprincípio da necessidade se pode aferir no plano “material” atendendo à importância da
posição dos direitos afetados, “espacial” que respeita ao âmbito territorial de aplicação da
medida, “temporal” pois a medida pode ser temporária ou de duração indefinida, “pessoal” pre-
ferindo-se as decisões que afetem um grupo de destinatários reduzido.
56
Jorge Bacelar de GOUVEIA, op. e loc. cit. pág. 842
57
Jorge MIRANDA, op. e loc. cit. págs. 376 e segs, notas XLIV e XLV ao artigo 18.º
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 173

que afetará de modo incisivo os direitos fundamentais à liberdade e à integridade


física, quer do próprio texto legal onde se limita a utilização das medidas de polícia
ao estritamente necessário.

A atividade administrativa de polícia e os atos administrativos

São excluídos do âmbito de aplicação do Código do Procedimento Administrativo os


procedimentos preparatórios internos da Administração, as declarações juridica-
mente irrelevantes e a prática de atos materiais.58 Observemos agora as restantes
situações.

Segundo a doutrina, o ato administrativo impositivo contém uma ordem ou proibi-


ção impondo ao seu destinatário um determinado comportamento, sendo exemplos
deste tipo de atos administrativos impositivos “…a generalidade dos atos de polícia,
como a proibição de circulação num determinado troço de estrada, a ordem de dis-
persão após o encerramento de uma reunião ou manifestação realizada em lugar
público ou aberto ao público, uma ordem dada pelo agente policial ao automobilista
para que desça de seu automóvel e abra o porta bagagens para nele ser efetuada uma
busca, a ordem de encerramento de um estabelecimento comercial…por falta de
condições de segurança ou de salubridade”.59

Para Freitas do Amaral atos administrativos gerais “…são aqueles que se aplicam
de imediato a um grupo inorgânico de cidadãos, todos bem determinados, ou deter-
mináveis no local”, e dá-nos o seguinte exemplo: “…juntam-se vinte pessoas a ver
uma determinada montra, numa rua da Baixa de Lisboa. Vem um agente da polícia e
diz ‘todos têm de dispersar!’. Trata-se de uma ordem policial dada a vinte pessoas,
mas sabe-se perfeitamente a quem se aplica”.60

Tal decorre, designadamente do “privilégio da execução prévia”, que caracteriza o


nosso sistema administrativo de tipo executivo. A Administração tem dois poderes
especiais, o primeiro é “…o poder de definir unilateralmente o direito no caso con-
creto” sem que seja necessário recorrer aos tribunais, em segundo lugar pode execu-
tar esse “…direito por via administrativa sem qualquer intervenção prévia do tribu-
nal. É o poder administrativo na sua máxima pujança: é o plenitudo potestatis”.61

58
António Francisco de SOUSA, “Direito Administrativo”, Prefácio, Lisboa, 2009, pág. 442, no
referido texto doutrinal referem-se as declarações juridicamente relevantes todavia pensamos
que este ilustre professor se referia às “declarações juridicamente irrelevantes”.
59
António Francisco de SOUSA, “Direito Administrativo”, Prefácio, Lisboa, 2009, pág. 521 e
522.
60
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 258.
61
Idem, págs. 31 e 32.
174 HENRIQUE D IAS DA SILVA

A causa deste duplo poder da Administração face aos particulares funda-se em


“…razões de segurança nacional (guerra) ou de manutenção da ordem pública (polí-
cia), ou de urgente necessidade pública (bombeiros no combate a incêndios).62

Todavia, este não é o único entendimento possível, há quem considere que as


“ordens policiais” se afastam em diversos aspetos do regime jurídico aplicável aos
atos administrativos, “caracterizando-se por uma relativa informalidade e desproce-
dimentalização”.63

A atividade administrativa de polícia e as operações materiais administrativas

Freitas do Amaral considera as operações materiais administrativas como


“…quaisquer tipos de atuação física levada a cabo pela Administração pública, para
em seu nome ou por sua conta, conservar ou modificar uma dada situação de facto
no mundo real”.64 Apresentando como exemplos intervenções policiais, designada-
mente a identificação de um indivíduo pela polícia.

A doutrina considera os serviços de polícia como “os serviços operacionais que


exercem fiscalização sobre as atividades dos particulares suscetíveis de pôr em risco
os interesses públicos que à Administração compete defender”.65 Integrando os diri-
gentes máximos destes serviços na categoria de órgãos de Estado dependentes do
Governo.66

As operações materiais administrativas que se incluem no âmbito da atividade admi-


nistrativa de gestão pública, “…efetuadas no exercício de poderes públicos ou no
cumprimento de deveres públicos…” e que impliquem o exercício de poderes de
execução coerciva, realizadas designadamente pela GNR, PSP, SEF e ASAE são
designadas por operações materiais coativas.67

62
Idem, pág. 32
63
João RAPOSO, Breves Considerações Acerca do Regime Jurídico das Ordens Policiais, in:
Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Edições Almedina, Coimbra,
2010, págs. 1210 e 1220.
64
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 659.
65
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, I volume, 3.ª Edição, Almedi-
na, Coimbra, 2006, pág. 797.
66
Idem, pág. 240, onde se consideram o Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana e os
diretores da Polícia Judiciária, da Polícia de Segurança Pública, do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras como órgãos do Estado.
67
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 662.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 175

Este era, aliás, o entendimento de Marcelo Caetano que dizia existirem, atos de polí-
cia, sem carácter de ato jurídico e que, por conseguinte não podiam ser considerados
atos administrativos, designando aqueles por operações de polícia, constituídas pelas
intervenções dos agentes policiais exigidas pelas circunstâncias do momento.68

Operações materiais administrativas e as medidas de polícia

As medidas de polícia69 são operações materiais da administração sujeitas aos dois


princípios fundamentais contidos respetivamente nas alíneas a) e b) do artigo 266.º
da Constituição: o princípio da prossecução do interesse público e o princípio da
legalidade em sentido amplo.70

Estas medidas de polícia como operações materiais administrativas estão sujeitas a


dois regimes, o regime jurídico substantivo e um regime jurídico procedimental.

O regime jurídico das operações materiais administrativas e, por conseguinte das


medidas de polícia, decorre daqueles princípios constitucionais e pode ser apresen-
tado do seguinte modo:
 As medidas de polícia, como operações materiais administrativas “…devem
sempre assentar numa habilitação legal prévia e desenvolver-se em obediência à
lei e ao direito, respeitando também os atos ou contratos que devam ser tidos em
conta…” com exceção das situações de estado de necessidade, a que alude o n.º
2 do artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo;
 As medidas de polícia apenas podem ser decididas e realizadas por “…órgãos
ou agentes legalmente competentes para o efeito”;
 As medidas de polícia, de acordo com o princípio da separação de poderes con-
sagrado no artigo 111.º da Constituição da República, não podem interferir na
resolução de conflitos entre particulares que careçam de intervenção do poder
judicial;
 Estas medidas de polícia estão igualmente sujeitas ao princípio da proporciona-
lidade como impõem o n.º 2 do artigo 266.º e, em especial, o n.º 2 do artigo
272.º da nossa Lei Fundamental;

68
Marcello CAETANO, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Editora Forense,
Rio de Janeiro, 1977, pág. 355.
69
Há também quem refira a existência de ordens de polícia de que seriam exemplos no âmbito do
direito de manifestação, da ordem de alteração do trajeto, da ordem de distanciamento relat i-
vamente a certas instalações, todas previstas no Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de Agosto, ver
João RAPOSO, O Regime Jurídico das Medidas de Polícia, in: “Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento”, Volume I, Edição da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Coimbra Editora, Lisboa, 2006, pág. 701.
70
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 664 e 665.
176 HENRIQUE D IAS DA SILVA

 As medidas de polícia “…só podem ser objeto de coação direta sobre os indiví-
duos obrigados nos casos expressamente previstos na lei, e sempre com obser-
vância dos direitos fundamentais consagrados na Constituição e do respeito
devido à pessoa humana”, como se encontra previsto no n.º 3 do artigo 153.º do
Código do Procedimento Administrativo;
 Por último, as medidas de polícia devem respeitar as normas técnicas e as regras
de prudência comum, como decorre, designadamente, do n.º 1 do artigo 9.º do
Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das
demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.71

Estas operações materiais da Administração pública podem realizar-se no quadro de


um procedimento administrativo executivo, com o objetivo de promover a execução
coerciva de um ato administrativo, no âmbito dos artigos 149.º a 157.º do Código do
Procedimento Administrativo.

Porém, noutras situações, segundo Freitas do Amaral, a Administração pública está


“…habilitada a efetuar as operações materiais exigidas pelo dever legal de prosse-
guir os seus fins de interesse público, sem que para tanto possa ou tenha de adotar
qualquer procedimento administrativo”.72

Para Gomes Canotilho, estes atos de polícia estão submetidos ao princípio da tipici-
dade legal o que implica que estes atos de polícia tenham fundamento necessário na
lei, que sejam medidas ou procedimentos individualizados e com conteúdo suficien-
temente definido na lei.73

Todavia, não nos parece possível a aplicação do princípio da tipicidade às medidas


de polícia nos mesmos termos em que o princípio da tipicidade é aplicável aos cri-
mes. Para defender os direitos dos cidadãos, para evitar a prática de crimes a polícia
pode ter de adotar comportamentos não previstos na lei, desde que respeitem os
referidos princípios da proporcionalidade, da necessidade, da adequação, e da proi-
bição de excesso.

Assim, a ação “discricionária” da polícia estaria contida por dois limites, o da pró-
pria competência da polícia, que tem poderes (e o dever) para garantir os direitos dos
cidadãos e o da subordinação da sua atuação àqueles princípios da proporcionali-
dade, da necessidade, da adequação, e da proibição de excesso.

71
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 664 e 665.
72
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 667.
73
J.J. Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Volume II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 860, nota VI ao artigo 272.º.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 177

Há também quem distinga as medidas de polícia das “operações materiais de polí-


cia” que obedecem a regras de técnica policial.

Ainda no que respeita à atividade da polícia é importante proceder a uma análise do


ponto da perspetiva da vinculação e da discricionariedade.

Em certos casos, a lei regula pormenorizadamente a atuação da Administração, for-


necendo indicações precisas quanto ao tempo, ao modo e ao conteúdo do ato nou-
tros, como é o caso dos atos de polícia tal não sucede, pois a polícia tem de fazer o
que for necessário, obviamente respeitando a forma mais exigente do princípio da
proporcionalidade, para evitar a prática de crimes.

Há neste ponto que ter em atenção que a discricionariedade do poder administrativo


se encontra atualmente limitada pelos princípios da atividade administrativa – lega-
lidade, igualdade, proporcionalidade, imparcialidade, boa-fé e justiça – consagrados
no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição da República e por outros princípios acolhi-
dos no artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo onde se destacam os
princípios da celeridade, da economia e da eficiência.74

Outra limitação à discricionariedade do ato de polícia encontra-se como adiante se


dará conta na existência de um direito fundamental à intervenção policial.

Estas “operações materiais de polícia” são suscetíveis de atingir diretamente direitos


fundamentais como o direito à integridade física ou o direito à liberdade, pelo que
necessitam do devido enquadramento jurídico,75 pesem embora os esforços da dou-
trina na densificação do princípio da proporcionalidade e da proibição de excesso.76

De notar, que os meios coercivos a utilizar pela polícia são apenas os previstos na
lei, não tendo a polícia a possibilidade de utilizar quaisquer outros.77

Afigura-se-nos assim mais adequado, aos interesses em causa, a submissão de polí-


cia a uma cláusula geral que fixando a missão da polícia na defesa dos direitos do

74
António Francisco de Sousa, Código do Procedimento Administrativo – Anotado e Comentado,
2.ª Edição, Quid Juris, pág. 81, nota 7 ao artigo 10.º
75
João RAPOSO, Autoridade e discricionariedade: a conciliação impossível? in: Estudos Jurídi-
cos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Volume II,
Coimbra Editora, 2006, págs. 410 e 411.
76
Vitalino CANAS, A Atividade de Polícia e a Proibição de Excesso: As Forças e Serviços de
Segurança em Particular, in: Estudos de Direito e Segurança, Coordenadores Jorge Bacelar
Gouveia e Rui Pereira, Edições Almedina, Coimbra, 2007, págs. 445 e segs.
77
Miguel Nogueira de BRITO, Direito de Polícia, in: Tratado de Direito Administrativo Especial,
Volume I, Edições Almedina, Coimbra, 2009, pág. 270. Este é o texto doutrinal mais importan-
te publicado até ao presente sobre a matéria do Direito de Polícia.
178 HENRIQUE D IAS DA SILVA

cidadão, lhe atribuísse competência para prosseguir essa finalidade, pautado a sua
atuação pelo referido princípio da proporcionalidade.

Em suma, a polícia encontra-se submetida, na sua atuação, ao princípio da legali-


dade.78

Estão nesta situação as “Medidas policiais de ação direta”, contempladas na legisla-


ção aplicável às forças e aos serviços de segurança,79 nomeadamente à Guarda
Nacional Republicana, à Polícia de Segurança Pública, à Polícia Judiciária, ao Ser-
viço de Estrangeiros e Fronteiras,80 bem como na Lei de Segurança Interna.

A doutrina procede ainda à distinção entre forças e serviços de segurança com base
em razões formais e nos princípios da territorialidade, da reserva de lei e da unidade
de organização.

Neste sentido são forças de segurança as polícias que têm competência para todo o
território nacional como sucede com a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de
Segurança Pública, característica que não é partilhada pela Polícia Marítima, consi-
derada como “polícia administrativa especial para a orla marítima”.81

Contudo, este critério não é suficiente, como nos diz Guedes Valente, pois a Autori-
dade de Segurança Alimentar e Económica que é um serviço com poderes de polícia,
tem competência para todo o território nacional, mas não é uma força de segurança.
Há que somar a este um critério de natureza formal que é a própria classificação
legal na respetiva lei orgânica.82

Concluído este breve enquadramento doutrinal da atividade administrativa de polícia


e das medidas de polícia integradas nas operações materiais da Administração refe-
rem-se, de seguida as medidas de polícia previstas na Lei de Segurança Interna.

78
Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora,
Coimbra, 2007, pág. 651, nota II ao artigo 272.º.
79
A Lei 53/2008, de 29 de Agosto, considera que exercem funções de segurança a Guarda Nacio-
nal Republicana; a Polícia de Segurança Pública; a Polícia Judiciária; o Serviço de Estrangeiros
e Fronteiras; o Serviço de Informações de Segurança; os órgãos da Autoridade Marítima
Nacional e os órgãos do Sistema da Autoridade Aeronáutica.
80
Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II volume, 2.ª Edição, Almedi-
na, Coimbra, 2011, pág. 668.
81
Pedro José Lopes CLEMENTE, A Polícia em Portugal, INA-Instituto Nacional de Administra-
ção, Oeiras, 2006, pág. 49.
82
Manuel Monteiro Guedes VALENTE, “Teoria Geral do Direito Policial”, 3.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2012, pág. 51.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 179

Medidas de Polícia e Medidas Especiais de Polícia

A Constituição no seu artigo 272.º sob a epígrafe “Polícia” estabelece no seu n.º 2
que “As medidas de Polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para
além do estritamente necessário”.

As medidas de polícia atuam sobre um perigo de maneira a prevenir ou evitar um


dano, partilhando algumas das suas características com as medidas de segurança. A
doutrina distingue entre medidas de segurança e medidas de polícia considerando
que as primeiras estão jurisdicionalizadas e pertencem aos tribunais, enquanto as
segundas são de natureza administrativa e competem a órgãos da administração.83

Na concretização deste preceito constitucional a Lei de Segurança Interna (Lei n.º


53/2008, de 31 de Agosto), nos seus artigos 28.º e 29.º, indica-nos 4 medidas de
polícia e as medidas especiais de polícia.

São medidas de polícia previstas na Lei de Segurança Interna:


 A identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar
público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial;
 A interdição temporária de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte
a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea;
 A evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte;
 Considerando a lei também como medida de polícia a remoção de objetos, veí-
culos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que
impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em
condições de segurança.

São medidas especiais de polícia previstas na Lei de Segurança Interna:


 A realização, em viatura, lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância
policial, de buscas e revistas para detetar a presença de armas, substâncias ou
engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proibidos ou suscetíveis de possi-
bilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no territó-
rio nacional ou privadas da sua liberdade;
 A apreensão temporária de armas, munições, explosivos e substâncias ou obje-
tos proibidos, perigosos ou sujeitos a licenciamento administrativo prévio;
 A realização de ações de fiscalização em estabelecimentos e outros locais públi-
cos ou abertos ao público;
 As ações de vistoria ou instalação de equipamentos de segurança;
 O encerramento temporário de paióis, depósitos ou fábricas de armamento ou
explosivos e respetivos componentes;

83
Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª Edição, Livraria Alme-
dina, Coimbra, 1980, pág. 1169.
180 HENRIQUE D IAS DA SILVA

 A revogação ou suspensão de autorizações aos titulares dos estabelecimentos


referidos na alínea anterior;
 O encerramento temporário de estabelecimentos destinados à venda de armas ou
explosivos;
 A cessação da atividade de empresas, grupos, organizações ou associações que
se dediquem ao terrorismo ou à criminalidade violenta ou altamente organizada;
 A inibição da difusão a partir de sistemas de radiocomunicações, públicos ou
privados, e o isolamento eletromagnético ou o barramento do serviço telefónico
em determinados espaços.

Temos também medidas de polícia no âmbito do direito de manifestação. O direito


de manifestação é um direito fundamental expressamente consagrado no n.º 2 do
artigo 45.º da Constituição e tem a estrutura essencial de direito de liberdade,84 sen-
do também considerado como um direito fundamental de liberdade comunicacio-
nal.85

Este direito de manifestação foi “regulado”86 pelo Decreto-Lei n.º 406/94, de 29 de


Agosto, onde se identificam os quatro atos administrativos típicos qualificados como
medidas de polícia das manifestações:87
 A interdição de manifestação (n.ºs. 1 e 2 do artigo 1.º e n.º 2 do artigo 3.º);
 A interrupção de manifestação (artigo 5.º);
 A ordem de alteração de trajeto (artigo 6.º);
 A ordem de distanciamento relativamente a instalações especialmente protegi-
das (artigo 13.º).

O que distingue os atos de polícia das medidas especiais de polícia é o facto de os


primeiros não estarem dependentes de qualquer intervenção prévia ou posterior das
autoridades judiciais enquanto que as medidas especiais de polícia tem de ser, nos

84
Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I,
2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 946, nota VIII ao artigo 45.º da autoria de Jorge Miranda.
85
J.J. Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, “Constituição da República Anotada”, Volume I,
4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 858, nota I ao artigo 45.º.
86
A regulação deste direito de manifestação é anterior à entrada em vigor da Constituição como
se deduz pela identificação do diploma que foi publicado para dar cumprimento ao Programa
do Movimento das Forças Armadas, B, n.º 5, alínea b).
87
Sérvulo CORREIA, O Direito de Manifestação – Âmbito de Proteção e Restrições, Edições
Almedina, Coimbra, 2006, pág. 66. Em sentido contrário, perfilhando o entendimento de que a
lei portuguesa não regula expressamente a intervenção policial no âmbito de manifestações,
veja-se António Francisco de SOUSA, Direito de Reunião e de Manifestação, Editora Quid
Juris, Lisboa, 2009, pág.161 e, do mesmo autor, Para uma Lei de Atuação Policial em Portu-
gal, in: “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva”, Livraria
Almedina, Coimbra, 2004, pág. 59.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 181

termos do artigo 33.º da Lei de Segurança Interna, comunicadas ao tribunal no mais


curto prazo, que não pode exceder quarenta e oito horas.88

Vejamos agora as leis relativas à organização das polícias com interesse para esta
matéria das medidas de polícia.

A Lei 53/2007, de 31 de Agosto, que contém a Lei Orgânica da Polícia de Segu-


rança Pública, apenas menciona no seu artigo 12.º as medidas de polícia
“…legalmente previstas…”, abstendo-se de proceder a qualquer densificação das
mesmas.

Todavia, este diploma tem importância ao distinguir, nos seus artigos 10.º e 11.º,
“autoridades de polícia” de autoridades de “polícia criminal”, separação que nos
permite diferenciar a polícia administrativa da polícia criminal.

A Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana,89 aprovada pela Lei 63/2007, de


6 de Novembro, também se limita no seu artigo 14.º a mencionar as medidas de
polícia “…legalmente previstas…”, abstendo-se de qualquer indicação dobre a natu-
reza e o conteúdo das mesmas.

Porém, nos seus artigos 11.º a 13.º a Lei Orgânica desta força de segurança distingue
as “autoridades de Polícia” das “autoridades de polícia criminal” e das “autoridades
de polícia tributária”, o que nos permite concluir que ao lado da atividade de polícia
existe uma atividade de polícia especial que pode designadamente assumir a vertente
de polícia criminal ou de polícia tributária.

A lei orgânica do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, aprovada pelo Decreto-Lei


n.º 252/2000, de 16 de Outubro, apenas contém uma referência a “…órgão de polícia
criminal…” no n.º 2 do seu artigo 1.º.

A Lei 37/2008, de 6 de Agosto, que aprovou a lei orgânica da Polícia Judiciária, é


omissa em matéria de “medidas de polícia” ou “autoridades de polícia”, centrando-
se apenas na vertente relativa à autoridade de polícia criminal.

Curiosamente, no artigo 11.º da lei orgânica da Polícia Judiciária, sob a epígrafe


“autoridades de polícia criminal”, depois de se designarem o diretor nacional; os

88
João RAPOSO, O Regime Jurídico das Medidas de Polícia, in: “Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento”, Volume I, Edição da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Coimbra Editora, Lisboa, 2006, pág. 697.
89
O facto de esta polícia ser constituída por militares não retira “… o carácter civil à missão que
desempenha …” Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª Edição,
Livraria Almedina, Coimbra, 1980, pág. 1159.
182 HENRIQUE D IAS DA SILVA

diretores nacionais-adjuntos; os diretores das unidades nacionais; os diretores das


unidades territoriais; os subdiretores das unidades territoriais; os assessores de inves-
tigação criminal; os coordenadores superiores de investigação criminal; os coorde-
nadores de investigação criminal e os inspetores – chefes como autoridades de polí-
cia criminal, determina-se que o pessoal de investigação criminal não referenciado
no número anterior pode, com observância das disposições legais, proceder à identi-
ficação de qualquer pessoa.90

E, mais importante, no texto legal não há qualquer referência a “…suspeito da prá-


tica de um crime”, o que parece subtrair esta medida, pelo menos neste caso, do
âmbito dos órgãos de polícia criminal, para a colocar no âmbito dos órgãos de polí-
cia.

Ora, a identificação é uma medida de polícia91 que pode ser determinada por qual-
quer órgão de polícia, não se compreende por isso a sua inclusão numa disposição
relativa a autoridades de polícia criminal.

Na Polícia Marítima – integrada na Autoridade Marítima Nacional – conforme


previsto no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 44/2002, de 2 de Março, são consideradas
autoridades de polícia e autoridades de polícia criminal os órgãos de comando pró-
prio.

O “sistema de autoridade de aeronáutica” prevê para o pessoal de investigação do


Instituto Nacional de Aviação Civil – INAC, o exercíciode poderesde autoridade,

90
Importa também ter em consideração a Polícia Judiciária Militar, cuja lei orgânica foi aprovada
pelo Decreto-Lei n.º 200/2001, de 13 de Julho, que nos termos do artigo 1.º deste diploma é
“…um corpo superior de polícia criminal…”.
91
A identificação pode ser uma simples medida de polícia, submetida ao regime das operações
materiais coativas no âmbito da atividade administrativa. O parecer do Conselho Consultivo da
Procuradoria Geral da República, DR, II Série de 11-01-2008, concluiu: “1. A Lei n.º 5/95, de
21 de Fevereiro, foi tacitamente revogada pelo artigo 250.º do Código de Processo Penal, na
redação da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto; 2. A identificação por órgãos de polícia criminal -
de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância poli-
cial, sobre quem recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de
extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território
nacional ou de haver contra si mandado de detenção - e, bem assim, a possibilidade de condu-
ção e permanência do identificando em posto policial obedecem ao disposto no artigo 250.º do
Código de Processo Penal; 3. A obrigação de identificação perante autoridade competente é
uma medida de polícia e a sua aplicação está subordinada aos pressupostos e limites que condi-
cionam a atividade de polícia, com relevo para o princípio da proibição do excesso; 4. Em con-
formidade com este princípio, a permanência de suspeito em posto policial para efeito de iden-
tificação deve, nos termos da lei (artigo 250.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), restringir-se
ao «tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas”. Ou
uma medida de polícia criminal se se tratar daquela que se encontra prevista no artigo 250.º do
Código de Processo Penal.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 183

nos termos do artigo 25º dos Estatutos deste instituto que foram aprovados pelo
Decreto-Lei n.º 133/98, de 15 de Maio (alterado pelo Decreto-Lei n.º 145/2002, de
21 de Maio e pelo Decreto-Lei n.º 250/2003, de 11 de Outubro). A referida reforma
confere ao pessoal deste instituto que desempenha funções de investigação o poder
de identificar.

Fora do quadro da Lei de Segurança Interna é ainda de referir a Autoridade de


Segurança Alimentar e Económica cuja lei orgânica foi aprovada pelo Decreto-Lei
n.º 194/2012, de 23 de Agosto. No artigo 15.º deste texto legal são consideradas
autoridades de polícia criminal: o inspetor - geral; os subinspetores-gerais; os inspe-
tores-diretores; os inspetores-chefes e os chefes de equipas multidisciplinares.

É igualmente de mencionar as Polícias Municipais reguladas pela Lei n.º 19/2004,


de 20 de Maio. A estas polícias “…cabe em especial fiscalizar, na área da sua juris-
dição, o cumprimento das leis e dos regulamentos que disciplinem matérias relativas
às atribuições das autarquias e à competência dos seus órgãos”.92

Esta Lei n.º 19/2004 optou por se referir a “funções de polícia” em vez de proceder à
indicação dos órgãos ou autoridades de polícia.

Todavia, o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 28/2008,93 DR, II Série de


12-08-2008, concluiu designadamente que “6.ª Os órgãos de polícia municipal
podem proceder à revista de segurança no momento da detenção de suspeitos de
crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, desde que existam
razões para crer que as pessoas visadas ocultam armas ou outros objetos com os
quais possam praticar atos de violência, artigos 251.º, n.º 1, alínea b), e 174.º, n.º 5,
alínea c), do Código de Processo Penal (CPP); 7.ª Os agentes de polícia municipal
podem exigir a identificação dos infratores quando necessário ao exercício das suas
funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes
(artigos 14.º, n.º 2, da Lei n.º 19/2004, e 49.º do regime geral das contraordenações,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro; 8.ª O não acatamento dessa
ordem pode integrar a prática do crime de desobediência previsto e punido pelos
artigos 14.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2004, 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 40/2000, de 17 de
Março, e 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal”.

Esta referência à possibilidade de proceder à identificação de qualquer cidadão –


desde que no exercício de funções da sua competência – confere aos agentes da
polícia municipal a qualidade de órgãos de polícia.

92
Catarina Sarmento e CASTRO, “A questão das Polícias Municipais”, Coimbra Editora, Coim-
bra, 2003, pág. 405.
93
Publicado na II.ª Série do Diário da República, de 12 de Agosto de 2008.
184 HENRIQUE D IAS DA SILVA

De qualquer modo, a nossa melhor doutrina considera que a identificação é uma


medida de polícia diferente “…quanto aos fundamentos e pressupostos e quanto à
natureza…” da identificação prevista no artigo 250.º do Código do Processo Penal.94

Por último, temos o Corpo da Guarda Prisional, qualificado como força de segu-
rança pela lei no artigo 16.º da Lei Orgânica da Direção-Geral dos Serviços Prisio-
nais contida no Decreto-Lei n.º 125/2007, de 27 de Abril.95

Este corpo especial da Administração Pública tem uma “missão policial especí-
fica…” que o coloca no âmbito da polícia, assim pela missão que tem o Corpo da
Guarda Prisional estamos perante uma polícia em sentido orgânico, pelos atos e atos
operativos que pratica é uma polícia em sentido material.96

Também noutros diplomas que não estes relativos às forças e serviços de segurança
podemos encontrar medidas de polícia.

Em primeiro lugar temos a Lei n.º 8/97, de 12 de Abril, que criminaliza condutas
suscetiveis de criar perigo para a integridade física decorrentes do uso e porte de
armas e substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos no âmbito de realiza-
ções cívicas, políticas, religiosas, artísticas, culturais ou desportivas, e que no seu
artigo 5.º prevê a realização de revistas e buscas de segurança nos estabelecimentos
de ensino.

Noutro domínio, a Lei n.º 16/2004, de 21 de Fevereiro, relativa à violência associada


ao desporto, contempla no artigo 12.º a realização de revistas pessoais de prevenção
e segurança aos espetadores, incluindo o tateamento para evitar a introdução no
recinto desportivo de objetos ou substancias proibidos ou suscetíveis de possibilitar
atos de violência.97

94
Manuel Monteiro Guedes VALENTE, “Teoria Geral do Direito Policial”, 3.ª Edição, Edições
Almedina, Coimbra, 2012, págs. 293 e seguintes.
95
Foi seguramente por esquecimento que o legislador não incluiu o Corpo da Guarda Prisional
entre as forças e serviços que exercem funções de segurança interna, Manuel Monteiro Guedes
VALENTE, Natureza Jurídica do Corpo da Guarda Prisional, EDIUAL, Lisboa, 2008, pág.
180. Sobre esta problemática da qualificação das forças e serviços de segurança veja-se Vitali-
no CANAS, A Atividade de polícia e a atividade policial como atividades limitadoras de com-
portamentos e de posições jurídicas subjetivas, in: “Estudos em Homenagem ao Professor Dou-
tor Sérvulo Correia”, Volume II, Coimbra Editora, 2010, págs, 1272 e segs.
96
Idem, págs. 59 a 62
97
Curiosamente este diploma prevê que esses “atos de polícia” sejam realizados pelos chamados
assistentes de recintos desportivos que são vigilantes de segurança privada especializados.
Temos, por conseguinte, a atividade de polícia a ser realizada por privados.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 185

Em matéria de segurança aeroportuária o n.º 6 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º


35/2004, de 21 de Fevereiro, que regula o exercício da atividade de segurança pri-
vada, prevê a possibilidade de realização de revistas pessoais de prevenção.98

Por fim, o próprio Código de Processo Penal, na alínea b) do n.º 1 do artigo 251.º,
contem uma medida de segurança policial99 que é a revista de pessoas que tenham de
participar ou pretendam assistir a qualquer ato processual.

Embora de natureza estatutária qualitativamente diferente haverá que ter em atenção


os “Guardas dos Recursos Florestais”100 cuja atividade se encontra regulada no
Decreto-Lei n.º 9/2009, de 9 de Janeiro. Este diploma refere no primeiro parágrafo
do seu preâmbulo a “…competência em matéria de vigilância, fiscalização e poli-
ciamento dos guardas florestais auxiliares para as zonas de caça”.

Estes guardas dos recursos florestais são contratados por entidades privadas gestoras
ou concessionárias de zonas de caça ou de pesca, exercendo funções em matéria de
fiscalização ou de policiamento.

Entre os poderes destes guardas de recursos florestais encontra-se, de acordo com o


artigo 2.º do referido Decreto-Lei n.º 9/2009, o de verificar a identidade dos caçado-
res e dos pescadores, bem como dos recolectores de recursos silvestres designada-
mente cogumelos, plantas aromáticas e medicinais e o de verificar a posse dos
documentos exigíveis para o exercício da caça e da pesca.

98
Também por vigilantes de empresas de segurança privada, sendo a situação idêntica à referida
na nota anterior. O Despacho Conjunto dos Ministros da Administração Interna e das Obras
Públicas, Transportes e Habitação, publicado na II Série do Diário da República de 22 de maio
de 2004, no seu ponto 3 autoriza a ANA – Aeroportos de Portugal SA a subcontratar empresas
privadas para a operação dos sistemas de verificação da totalidade da bagagem de porão, dos
passageiros e respetiva bagagem de mão.
99
João RAPOSO, O Regime Jurídico das Medidas de Polícia, in: “Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento”, Volume I, Edição da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Coimbra Editora, Lisboa, 2006; pág. 699
atribuí a autoria desta qualificação a Paulo Manuel Pereira LUCAS, As medidas de polícia e a
atuação da polícia de segurança pública – Contributos para uma revisão do quadro normati-
vo, Lisboa, 2005, inédito, pág. 32.
100
Não confundir com o Corpo Nacional da Guarda Florestal que integrava a Direção-geral de
Florestas nos termos do artigo 3.º do Decreto-Regulamentar n.º 11/97, de 30 de Abril. Segundo
o artigo 30.º deste diploma competia ao Corpo Nacional da Guarda Florestal a execução das
ações de fiscalização nos domínios florestal, cinegético, aquícola nas águas interiores e de
outros recursos silvestres. Este Corpo Nacional da Guarda Florestal foi extinto pelo Decreto-
Lei n.º 22/2006, de 2 de Fevereiro, tendo sido o seu pessoal integrado no Serviço de Proteção
da Natureza e Ambiente (CEPNA) da Guarda Nacional Republicana.
186 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Os guardas de recursos florestais possuem “arma de serviço”, como se determina no


artigo 7.º daquele diploma numa aproximação aos membros das forças de segurança
e das polícias.

À semelhança do que sucede com outros que exercem funções policiais os guardas
de recursos florestais são “ajuramentados”101 nos termos previstos no artigo 9.º
daquele Decreto-Lei n.º 9/2009.102

De notar que o referido poder de “verificar a identidade” e de “verificar a posse de


documentos…” se aproxima do ato de identificação, já referido como um ato típico
de polícia, expressão que o legislador cuidadosamente evitou, talvez para impedir
que estes guardas viessem a ser considerados como órgãos de polícia.

De qualquer modo, ou consideramos que esta verificação de identidade se confunde


com o ato de identificação, ou temos de considerar esta “verificação de identidade”
como um novo ato de polícia!

Por último, e num registo completamente diferente temos a situação dos “Guardas
Noturnos”, atividade profissional sujeito a licenciamento da competência da Câma-
ra Municipal nos termos dos artigos 4.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 310/2002, de
18 de Dezembro, que regula o regime jurídico do licenciamento e fiscalização pelas
câmaras municipais de atividades diversas anteriormente cometidas aos governos
civis republicado pelo Decreto-Lei n.º 204/2012, de 28 de Agosto.

Também no caso dos guardas noturnos o nosso legislador evitou a utilização dos
vocábulos “vigilância” e “ronda”, expressões que seriam adequadas para descrever
as funções dos guardas noturnos, mas que revelariam o caráter policial das suas
funções, atendendo designadamente à sua missão que consiste em contribuir para a
segurança no período noturno.

Assim, na descrição dos deveres dos guardas noturnos contida no artigo 8.º do refe-
rido Decreto-Lei n.º º 310/2002, de 18 de Dezembro, a palavra segurança é apenas
utilizada na alínea c) onde se refere que o guarda noturno deve “Prestar o auxílio que
lhe for solicitado pelas forças e serviços de segurança e proteção civil”.

101
Por exemplo, os militares da Guarda Nacional Republicana prestam “juramento de fidelidade”
nos termos do artigo 4.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de Outubro.
102
Com a “transferência” das competências dos governadores civis operada pelo Decreto-Lei n.º
114/2011, de 30 de Novembro, o artigo 9.º daquele pelo Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de
Outubro, esta norma foi alterada no sentido de o juramento passar a ser prestado perante a
Autoridade Florestal Nacional criada pelo Decreto-Lei n.º 159/2008, de 8 de Agosto.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 187

Neste contexto, é comum afirmar-se que estes profissionais são auxiliares das forças
e serviços de segurança aprofundando a qualificação da função destes profissionais,
a jurisprudência chega mesmo a aludir à natureza “parapolicial” desta atividade de
guarda noturno.103

Todavia, não encontramos na lei aplicável aos guardas noturnos a referência a qual-
quer ato de polícia.

Perante este quadro legal, é possível tirar algumas conclusões:

Em primeiro lugar deve referir-se que apenas a Lei de Segurança Interna indica as
medidas de polícia e as medidas especiais de polícia, abstendo-se as várias leis orgâ-
nicas das forças e serviços de segurança de o fazer, limitando-se a mencionar as
medidas de polícia “…legalmente previstas…”.

Em segundo lugar, as leis orgânicas das forças e serviços de segurança referem a


existência de autoridades de polícia, autoridades de polícia criminal e autoridades de
polícia aduaneira. Decorrendo dos respetivos textos legais que estamos perante dife-
rentes competências.

Por conseguinte, podemos dizer que as autoridades de polícia podem ter a seguinte
classificação: autoridades de polícia geral104 e autoridades de polícia especial, e den-
tro destas, autoridades de polícia criminal e autoridades de polícia aduaneira, o que
pode ser representado no seguinte quadro sinóptico.

Autoridades de Polícia com poderes gerais


Autoridades de
Polícia Autoridades de Polícia Criminal
Autoridades de Polícia com
poderes especiais
Autoridades de Polícia Tributária

Por último, e no que respeita às medidas de polícia, não encontramos nas leis orgâ-
nicas das forças e serviços de segurança, bem como de outros serviços que exercem
funções de polícia, com algumas exceções supra referidas, a caracterização de outras
medidas de polícia ou medidas especiais de polícia diferentes das que estão contem-
pladas na lei de segurança interna.

103
É esta a expressão utilizada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 25/2011 (Processo n.º
120/10), de 12 de Janeiro, publicado na IIª Série do Diário da República de 23 de Fevereiro de
2011, pág. 9401, 2.ª coluna.
104
Veja-se, utilizando outra sistematização Manuel Monteiro Guedes VALENTE, “Teoria Geral
do Direito Policial”, 3.ª Edição, Edições Almedina, Coimbra, 2012, págs. 66 e seguintes.
188 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Tal limitação não é compatível com a função assinalada pela Constituição à polícia
de garantir a segurança interna.

Esta nossa afirmação baseia-se no facto de as medidas de polícia e as medidas espe-


ciais de polícia se resumirem a um pequeno número de modelos, muito aquém da
multiplicidade de atuações que a polícia tem de desenvolver para garantir a segu-
rança interna e os direitos dos cidadãos.

Após esta breve incursão no regime jurídico das medidas de polícia e nas medidas de
polícia, que integram – como dissemos – as operações materiais administrativas,
vejamos agora o regime procedimental a que se encontram sujeitas estas operações.

O regime procedimental aplicável às Medidas de Polícia e às Medidas Especiais


de Polícia

Em determinadas situações a Administração encontra-se habilitada a efetuar as ope-


rações materiais impostas pelo dever legal de prosseguir os seus fins de interesse
público “…sem que para tanto possa ou tenha de adotar qualquer procedimento
administrativo”.105

Suponhamos que um militar da Guarda Nacional Republicana apercebendo-se de


que um perigoso incêndio ladeia uma estrada corta o trânsito na mesma impedindo
que os cidadãos nela circulem de modo a salvaguardar as vidas e a fazenda destes.
Neste caso e noutros idênticos seria impossível cumprir as regras do procedimento
administrativo.

Ou, a situação em que um agente da Polícia de Segurança Pública, numa via pública,
impede um automobilista de imobilizar o seu veículo automóvel num local em que é
proibido parar.

Freitas do Amaral considera que estas operações materiais administrativas, não


sujeitas a um regime procedimental se reconduzem a três tipos principais: os casos
de atuação em estado de necessidade; as medidas policiais de ação direta e as opera-
ções de prestação de serviços públicos.106

105
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, pág. 667.
106
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, idem.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 189

Esta posição não recolhe a unanimidade da doutrina, havendo quem considere que
estes atos de coação direta, sem precedência de ato administrativo, são de admitir
apenas em caso de estado de necessidade.107

Interessam-nos agora as medidas policiais de ação direta, constituídas pelas referidas


medidas de polícia e medidas especiais de polícia, bem como pelas operações mate-
riais exigidas pelos fins de segurança e de proteção dos direitos do cidadão.

Estas medidas e restantes operações materiais não estão sujeitas – atendendo à natu-
reza das mesmas – a qualquer atividade procedimental.

No mesmo sentido, mas partindo de uma abordagem diferente deste problema


Cabral de Moncada,108 também se pronuncia no sentido da não aplicabilidade do
Código do Procedimento Administrativo aos atos e às medidas de polícia.

Segundo este autor, “…os atos materiais distinguem-se consoante pressuponham um


ato administrativo prévio que concretizem ou consoante materializem imediatamente
uma norma legislativa ou regulamentar … como sucede frequentemente com certos
atos de polícia de natureza repressiva ou seja de coação direta”.109

Considerando que estamos perante uma ação executiva da Administração, e que


“não é apenas em estado de necessidade que se dispensa o ato administrativo pré-
vio”, concluí pela incompletude da norma ínsita no n.º 1 do artigo 151.º do Código
do Procedimento Administrativo. 110

Na verdade, os atos ou medidas de polícia são tomados no momento sem qualquer


precedência de ato ou procedimento. Talvez por isso, a doutrina se refira a “inci-
dentes de polícia” ou a “ações de execução”.111

Posição que se adota sem esquecer os que afirmam o princípio da previedade do ato
administrativo ou da precedência do ato administrativo exequendo.112 De acordo
com este princípio os atos de execução só são válidos se existir um ato exequendo,

107
Marcelo Rebelo de SOUSA e André Salgado de MATOS, “Direito Administrativo Geral”,
Tomo III, Dom Quixote, Lisboa, 2007, págs. 382 e 383.
108
, Luís Cabral de MONCADA, “A Relação Jurídica Administrativa”, Coimbra Editora, Coimbra,
2009, págs. 406 e segs.
109
Ob. cit. pág. 397.
110
Ob. cit. pág. 406.
111
J.J. Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Volume II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006; nota IX ao artigo 272.º.
112
Mário Esteves de OLIVEIRA, Pedro Costa GONÇALVES e J. Pacheco de AMORIM, Código
do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1997,
pág. 721, nota III ao artigo 151.º.
190 HENRIQUE D IAS DA SILVA

ou seja, o ato administrativo tem na execução coativa a função que o título executivo
tem na ação executiva, nulla executio sine titulo.113

Assim, antes de arrombar a porta, ainda que em estado de necessidade, a polícia


deve ordenar a sua abertura, praticando previamente um ato administrativo, mesmo
que sob a forma oral.

Para estes autores, o princípio da previedade é tido como “…como base de legitima-
ção dos atos e operações de execução” e como princípio fundamental que admite as
exceções do estado de necessidade.114

Aquelas conclusões são, pelo menos aparentemente, contrárias ao comando legal


contido no n.º 1 do artigo 2.º do Código do Procedimento Administrativo, que prevê
a sua aplicação a toda a atividade administrativa de gestão pública.

Parece ser precisamente esta norma a causadora do nosso problema ao considerar o


procedimento administrativo “universalmente” aplicável à Administração.

A atividade de polícia e o âmbito do procedimento administrativo

O procedimento administrativo geral do Código do Procedimento Administrativo


aplica-se a toda a atividade de gestão pública da administração e, como se demons-
trou, a atividade de polícia bem como as medidas de polícia integram-se nessa ativi-
dade de gestão pública.

Nesta ordem de ideias, os princípios orientadores da atividade administrativa consa-


grados no Código do Procedimento Administrativo, designadamente os que respei-
tam ao envolvimento do cidadão nas questões públicas em geral, aplicam-se na ati-
vidade de polícia.115

Porém, a detalhada formalização procedimental aí descrita é inaplicável à atividade


de polícia pois a sua premência e a exigência de oportunidade não se compadecem
com aquele itinerário procedimental.

113
António Francisco de SOUSA, Direito Administrativo, Editora Prefácio, Lisboa, 2009, págs.
780 e 781.
114
António Francisco de SOUSA, Código do Procedimento Administrativo – Anotado e Comenta-
do, 2.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2010, pág. 495, nota 8 ao artigo 151.º.
115
António Francisco de SOUSA, Para uma Polícia do Século XX, in: Estudos em Comemoração
dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, 2001, pág.
363 e 364.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 191

Como se disse, não nos parece possível enquadrar esta matéria da atividade de polí-
cia no estado de necessidade previsto no n.º 2 do artigo 3.º do Código do Procedi-
mento Administrativo, atenta a excecionalidade e os demais requisitos deste instituto
jurídico. Ou seja, a atividade de polícia não tem na generalidade dos casos nem a
urgência, nem a excecionalidade exigidas pelo estado de necessidade. Pelo que, não
é viável, em todos estes casos, socorrer-nos do estado de necessidade por evidente
falta dos pressupostos de que depende a aplicação deste instituto jurídico.

Em suma, não seria curial abrigar a referida atividade de polícia neste instituto jurí-
dico do estado de necessidade.

Porém, o Código do Procedimento Administrativo para além de conter as normas


que preveem e regulação a sucessão de atos procedimentais e o próprio ato decisó-
rio, consagra um conjunto de princípios decorrentes dos próprios axiomas consagra-
dos na Constituição. Estão nessa situação os princípios da legalidade, da igualdade
da proporcionalidade, da imparcialidade, da boa-fé e da justiça, todos enunciados no
n.º 2 do artigo 266.º da nossa Lei Fundamental.

Além destes, o Código do Procedimento Administrativo contempla ainda os princí-


pios da participação, da decisão e da gratuitidade.

A atividade de polícia encontra-se submetida a estes princípios que devem orientar


toda a sua atividade nas suas relações com os cidadãos.

Esta questão assume especial importância se tivermos em atenção que a atividade de


policia envolve a pratica de “atos” ou operações que não estão previstas nem na Lei
de Segurança Interna nem nas leis orgânicas dos vários serviços e forças policiais,
pois cabe à polícia, designadamente à polícia de segurança, fazer o que for necessá-
rio para assegurar os direitos dos cidadãos e evitar a prática de crimes.

Verificada a impossibilidade de a lei prever – tipificando – todos os modos de atua-


ção da polícia cabe um papel determinante aos princípios que funcionam como cláu-
sulas gerais116 onde se pode abrigar legalmente a atividade de polícia e, simultanea-
mente, pautar o exercício dessa mesma atividade submetendo-a aos princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade, da boa-fé e da justiça.

Tudo isto, sem prejuízo de uma mais pormenorizada regulação pela lei, quer da
atividade, quer das medidas de polícia, bem como do regime jurídico do uso de

116
Pedro MACHETE, A Polícia na Constituição da República Portuguesa, in: “Homenagem da
Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles”, Volume I, Edi-
ções Almedina, Coimbra, 2007, pág. 1115.
192 HENRIQUE D IAS DA SILVA

meios coercivos, défice legal já assinalado pela doutrina portuguesa em diversos


textos.117

Quadro I (Freitas do Amaral)

Serviços de Apoio

Burocráticos Serviços Executivos

Serviços de Controlo
Serviços Principais
Serviços de Prestação Individual
Públicos118
Operacionais Serviços de Polícia

Serviços Técnicos

Auxiliares

Quadro II (Freitas do Amaral)

Regulamentos

Atos Administrativos
Actividade da
Administração Contratos Administrativos
Pode Consistir
em
119 Pressupõem uma Ato Administrativo
Operações Materiais da Prévio que Concretizam
Administração ou Atos
Materiais da Administração Materizalizam Imediatamente uma
Norma Legislativa ou Regulamentar

117
João RAPOSO, Autoridade e discricionariedade: a conciliação impossível?, in: Estudos Jurídi-
cos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Volume II,
Coimbra Editora, 2006 e António Francisco de SOUSA, Para uma Lei de Atuação Policial em
Portugal, in: “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva”,
Livraria Almedina, Coimbra, 2004.
118
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, págs. 797 e 798.
119
Tal decorre da doutrina expendida no “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição,
Almedina, Coimbra, 2011.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 193

Quadro III (Marcello Caetano)

Judiciária

Polícia de segurança
Geral
Polícia de sotumes

Polícia sanitaria
120
Polícia Polícia económica
Administrativa
Polícia dos transportes
Especial
Polícia de viação

Polícia do trabalho

Polícia marítima

Quadro IV (Sérvulo Correia)

Regulamento Administrativo de Polícia

Formas de exercício dos Ato Jurídico


poderes administrativos de (assume habitualmente a natureza de ato
121
polícia administrativo)
Ato concreto
Ato Material
(implica frequentemente o uso da coerção)

120
Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª Edição, Livraria Alme-
dina, Coimbra, 1980, págs. 1154 e 1155.
121
Sérvulo CORREIA, Polícia, in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VI,
Lisboa, 1994, pág. 395, 1.ª coluna.
194 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Quadro V (Miguel Nogueira de Brito)

Polícia Administrativa stricto sensu


Polícia Administrativa
122
Geral
Polícia Polícia de Segurança

Polícia Criminal

Quadro VI (Guedes Valente)

De Competência Guarda Nacional Republicana


Ampla Polícia de Segurança Pública
Forças de
Segurança
De Competência Polícia Marítima123
Organizações Especializada Corpo da Guarda Prisional124
de
Segurança
Polícia Judiciária
Polícia Judiciária Militar
Serviços de
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
Segurança
Serviço de Informações e Segurança
Sistema de Autoridade Aeronáutica

122
Miguel Nogueira de BRITO, Direito de Polícia, in: “Tratado de Direito Administrativo Espe-
cial”, Coordenadores Paulo OTERO e Pedro GONÇALVES, Volume I, Edições Almedina,
Coimbra, 2009, pág. 287.
123
Sobre a qualificação deste corpo como Força de Segurança veja-se Manuel Monteiro Guedes
VALENTE, Natureza Jurídica do Corpo da Guarda Prisional, EDIUAL, Lisboa, 2008, pág.65
e segs.
124
Conforme se prevê no artigo 16.º da Lei Orgânica dos Serviços Prisionais, contida no Decreto-
Lei n.º 125/2007, de 27 de Abril.
O CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 195

Quadro VII (Freitas do Amaral)

Atuação em estado de necessidade


Nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do Código do Procedimento
Administrativo, com preterição das regras procedimentais estabele-
cidas neste diploma, fundada no princípio geral de direito necessitas
non habet legem

Operações Materiais Medidas policiais de ação direta


Administrativas sem Estas medidas policiais de ação direta, incluem as medidas de polí-
procedimento125 cia e não são precedidas de ato administrativo, nem seguem as fases
de um procedimento administrativo escrito

Operações de prestação de serviços públicos


É a atividade dos serviços públicos designadamente de transportes
coletivos, distribuição de água, assistência hospitalar, que não é
precedida de atos administrativos

Quadro VIII

Conceito Material de Polícia


“…enquanto atividade administrativa dedicada à prevenção, isto é ao afas-
tamento de perigos para interesses legalmente protegidos”
Autoridades de Polícia
“São os órgãos das pessoas coletivas públicas com com-
Conceito petência para emanar regulamentos independentes em
Orgânico ou matéria de polícia administrativa geral e para determinar a
Conceito de
Institucional aplicação de medidas de polícia”
Polícia126
de Polícia Órgãos de Polícia
“dependem sempre de uma autoridade de polícia e podem
conter nas suas estruturas hierárquicas várias outras auto-
ridades de polícia de grau sucessivamente menor”127
Operações de prestação de serviços públicos
É a atividade desenvolvida por estes serviços que não revista natureza
policial

125
Diogo Freitas do AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, II volume, 2.ª Edição, Alme-
dina, Coimbra, 2011, págs. 667 e 668.
126
Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora,
Coimbra, 2007, págs. 656 e 657, notas 4 e 8 ao artigo 272.
127
Sérvulo CORREIA, Polícia, in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VI,
Lisboa, 1994, pág. 406.
196 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Bibliografia:

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Almedina, Coimbra, 2006;
Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II volume, 2.ª Edição,
Almedina, Coimbra, 2011;
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Comentado, 2.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2010;
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198 HENRIQUE D IAS DA SILVA

Manuel Monteiro Guedes VALENTE, Natureza Jurídica do Corpo da Guarda Pri-


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Manuel Monteiro Guedes VALENTE, Teoria Geral do Direito Policial, 3.ª Edição,
Edições Almedina, Coimbra, 2012.
Mercado Imobiliário em Portugal
FRANCISCO MOREIRA BRAGA *

Introdução

Uma particularidade muito própria da realidade portuguesa, que é a elevadíssima


percentagem de proprietários da sua própria habitação, cuja origem está no quase
desaparecimento do mercado de arrendamento motivado por decisões políticas que
enviesaram as mais elementares regras da livre iniciativa de que resultou o desinte-
resse dos investidores por este mercado, levou-nos a estudar e a caracterizar o mer-
cado da habitação em Portugal, sua evolução recente e perspetivas futuras, conclu-
sões que aliás não se afastam do propósito de posterior resolução do Conselho de
Ministros1 no sentido de uma dinamização do mercado de arrendamento.

Procuramos retratar o mercado de habitação em Portugal e a sua evolução recente, a


qual veio influenciar de forma decisiva as suas actuais características, assentes numa
notória distorção das regras de mercado no sector do arrendamento e da existência
de uma elevadíssima percentagem de proprietários da sua própria habitação.

Pretende-se com este trabalho, não um estudo exaustivo, mas caracterizar em traços
gerais o mercado de habitação em Portugal, bem como a evolução que o mesmo tem
sofrido no passado recente, resultado de decisões políticas e sua consequente tradu-

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 199-216.

* Docente, ISMAT; ex-Diretor de Risco de Crédito do Barclays Bank plc - Sucursal em Portugal;
Solicitador.

1
Resolução do Conselho de Ministros nº 20/2011, de 17 de Março, publicada no Diário da Repú-
blica, 1.ª série – N.º 58 – 23 de Março de 2011. Posteriormente veio a ser publicada a Lei
31/2012 de 14 de Agosto que entrou em vigor a 12 de Novembro de 2012 e que procede à revi-
são do regime jurídico do arrendamento urbano.
200 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

ção legislativa, da forma como as condições proporcionadas pelo sistema financeiro


português e respetivas opções em termos de política de crédito o têm vindo a condi-
cionar e influenciar e, mais recentemente, talvez de forma ainda não totalmente
consciente, da mudança de paradigma em curso no mercado de emprego que cada
vez mais levará, sobretudo os mais jovens, a ponderar as vantagens proporcionadas,
quando a opção é o arrendamento, no que à mobilidade diz respeito, em contraposi-
ção às limitações impostas pela opção por aquisição de habitação própria no que se
refere à disponibilidade para aceitação de ofertas de emprego em locais mais distan-
tes.

De referir ainda, que parte significativa do presente texto se baseia na experiência


profissional vivida pelo autor durante mais de duas décadas no seio do sistema ban-
cário português, nomeadamente no exercício de diversas funções diretivas no Bar-
clays Bank plc.

1. O congelamento das rendas e a degradação do parque habitacional

Há quem afirme existirem duas formas de destruir uma cidade, a primeira por via de
bombardeamento, a segunda por via do congelamento das rendas.

E se nem Lisboa nem o Porto foram sujeitas a bombardeamentos, foi precisamente


pela instabilidade social causada pelas grandes guerras ocorridas na Europa que
ambas foram sujeitas ao congelamento das rendas, como veio a confirmar o art.48º
da Lei 2030 de 22 de junho de 1948. Previa esta Lei a possibilidade de atualização
das rendas, que corresponderiam no máximo a um duodécimo do valor tributável dos
imóveis, excepto nas cidades de Lisboa e Porto, enquanto ao senhorio não se facul-
tasse a avaliação. Na verdade, não foram as rendas que foram congeladas, mas sim
as avaliações de imóveis que deixaram de ser levadas a cabo, o que implicou, na
prática, uma impossibilidade para os senhorios de procederem à atualização das
rendas.

Basta passearmo-nos pelas zonas históricas daquelas duas magníficas cidades para,
em ambas, nos ser dado constatar o grau de abandono e de degradação a que chega-
ram, e cujos esforços de recuperação por parte dos municípios não conseguem fazer
reduzir a frequência com que notícias de derrocadas de prédios e de famílias desalo-
jadas são disputadas pelas diferentes estações televisivas para os “diretos” de aber-
tura dos noticiários.

Não deixam de ser no mínimo peculiares, diversas disposições constantes no Decre-


to-Lei nº157/2006 de 8 de agosto,2 que aprova o regime jurídico das obras em pré-

2
Entretanto alterado pela Lei 30/2012 de 14 de agosto.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 201

dios arrendados, ao preverem a possibilidade de realização de obras coercivas por


parte dos municípios, ou mesmo por parte dos inquilinos, e respetivo ressarcimento
do seu custo através do recebimento das rendas. Não pela previsão dessa possibili-
dade em si mesma, que parece perfeitamente aceitável e pacífica, mesmo recomen-
dável, mas pelo facto de a legislação que recentemente tem vindo a lume, parecer
fazer crer, aos olhos dos cidadãos, serem os senhorios os responsáveis pelo estado de
degradação a que chegaram os imóveis de que são proprietários, sem que o próprio
Estado reconheça a sua quase exclusiva responsabilidade nessa matéria, pelo facto
de à custa do património dos senhorios, e por via legislativa, e ao longo de décadas,
a estes últimos ter sido imposto subsidiarem as rendas das habitações, não só dos
eventualmente mais desfavorecidos, mas da população em geral.

O congelamento das rendas prolongou-se ao longo dos anos, de décadas mesmo,


prevendo o Decreto-Lei nº47.334, de 25 de novembro de 1966, no seu art.10º a sus-
pensão das avaliações fiscais prescritas em 1948 para Lisboa e para o Porto, não sem
que, como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei nº321-B/90 de 15 de outubro, o
próprio Ministro da Justiça de então, tenha deixado de reconhecer as implicações
que tal opção teria na deterioração do património imobiliário ao declarar que “ (...)
como foi afirmado em 1966 pelo então Ministro da Justiça, em comunicação à
Assembleia Nacional, "da inalterabilidade das rendas, no mercado em permanente
evolução, há-de resultar por força a progressiva deterioração de uma parcela não
despicienda do património imobiliário nacional, fenómeno a que os poderes públi-
cos não devem assistir impassíveis".

Na senda da anterior legislação, também a revolução que ocorreu em 1974, e desta


feita, quiçá, influenciada pelas correntes ideológicas preponderantes à época, numa
torrente de sucessivos Decretos-Lei, de que Pinto Furtado3 destaca o DL 445/74, de
12 de setembro e que tentaram de alguma forma por cobro a diversos fenómenos
sociais que então se verificavam, não só manteve em Lisboa e Porto mas veio alargar
a todos os concelhos do país a suspensão das avaliações fiscais para atualização de
rendas.4

Apesar de mais recentemente, desde a publicação de diversas normas como o Decre-


to-Lei 148/81, de 4 de Junho e a Lei nº 46/85, de 20 de Setembro e, sobretudo, da
publicação do Regime do Arrendamento Urbano pelo Decreto-Lei 321-B/90 de 15
de Outubro, se ter permitido a celebração de contratos de arrendamento urbano de
renda livre, já no que se refere aos contratos vigentes à data da entrada em vigor da
lei nova, cujas rendas se encontravam e mantêm muito desfasadas relativamente ao

3
Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, pag. 231, Manual de Arrendamento Urbano, Volume I,
4ª Edição, 2007, Edições Almedina SA.
4 O que, tendo em linha de conta as taxas de inflação anuais à época (ver quadro III), facilmente
se depreende a rapidez e a dimensão da degradação do valor das rendas de casa.
202 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

que seria uma renda normal de mercado, apenas medidas muito tímidas foram ado-
tadas no que se refere à sua atualização. Neste contexto, como referem os seus auto-
res na nota prévia, “a Lei nº31/2012, de 14 de agosto (...) introduz profundas e signi-
ficativas alterações aos vários diplomas que, em conjunto, constituem o Regime
Jurídico do Arrendamento Urbano (...)”.5

A própria Lei 6/2006 de 27 de fevereiro que aprovou o NRAU – Novo Regime de


Arrendamento Urbano e revoga o RAU – Regime de Arrendamento Urbano, que
tinha como um dos seus objetivos mais publicitados a implementação de um sistema
de atualização das rendas antigas, em virtude da sua complexidade e da manutenção
de uma preocupação centrada nos baixos rendimentos dos arrendatários, uma vez
mais à custa do património dos senhorios, acabou por não produzir os efeitos alega-
damente pretendidos.

Considerando ser seu propósito a atualização das rendas mais antigas, mas prevendo
a própria lei, nos seus artigos nºs 37º e 38º, no caso de arrendatários com mais de 65
anos de idade - porventura a maioria do segmento das rendas mais baixas - de forma
cega e independentemente do rendimento auferido por estes, que esse mesmo
aumento seria processado de forma faseada ao longo de 10 anos e que a nova renda
não poderia nunca exceder o valor correspondente a 4% do valor patrimonial atuali-
zado, e isto apenas se o estado da habitação fosse classificado de bom ou de exce-
lente, poderemos concluir, pese embora a bondade da iniciativa, da timidez da solu-
ção apresentada.

Um breve exemplo de um caso concreto é disso uma prova. Aplicando a nova legis-
lação aprovada e seguindo todos os preceitos legais, que levaram o processo a arras-
tar-se por cerca de um ano, uma renda de €60,00 referente a um apartamento do tipo
T2, localizado na cidade da Amadora, foi possível ser atualizada para um novo valor
de €260,00 que, sendo sem dúvida em termos percentuais muito significativo, não
deixa de continuar a ser uma renda desfasada da realidade ditada pelo mercado.
Sucedeu que, pelo facto de a inquilina ter mais de 65 anos de idade, a referida renda
viria a ser paulatinamente atualizada, grosso modo ao ritmo de €20,00 por ano, ape-
nas vindo a atingir o seu novo valor ao fim de um período de 10 anos.

Claramente, como vem sucedendo desde há décadas, o Estado, uma vez mais, e
novamente à custa do património dos senhorios mantém um subsídio direto às famí-
lias com rendas mais antigas. Referimo-nos ao regime de salvaguarda para agrega-
dos familiares de baixos rendimentos, estatuído pelo art.35º da Lei 6/2006 de 27 de
fevereiro, já com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14 de agosto, que
mantém o conceito de baixos rendimentos para os agregados familiares, cujo RABC

5
Manteigas Martins, Carla Santos Freire, Carlos Nabais, José M. Raimundo, Novo Regime do
Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, Vida Económica, 2012.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 203

(Rendimento Anual Bruto Corrigido), seja inferior a cinco RMNA (Retribuição


Mínimas Nacionais Anuais).6

Convenhamos que, no atual panorama da economia portuguesa, estabelecer o con-


ceito de rendimento baixo a este nível, será no mínimo, pouco consistente com as
diversas medidas anunciadas pelo governo que prevê para 2013 cortes nas reformas
dos pensionistas do Estado, cujo valor exceda os €1.500,00 mensais.

Outro aspeto fortemente desmotivador da opção pelo investimento no mercado de


arrendamento tem sido a deficiente proteção jurídica oferecida aos senhorios, que,
mesmo perante arrendatários faltosos, através de um procedimento imperativo pre-
visto nos artigos 1079º a 1090º do Código Civil, os obrigava a aguardar pela ocor-
rência de mora superior a três meses no pagamento da renda para que lhes fosse
permitida a resolução do contrato, e que, mesmo após a comunicação ao inquilino
faltoso, teriam de aguardar novo período de três meses até poderem entrar com um
procedimento executivo para entrega de coisa certa referente ao arrendado e um
outro para pagamento de quantia certa referente às rendas vencidas e não pagas,
além do que, ainda assistia ao arrendatário faltoso o direito a invocar todo um con-
junto de situações previstas nos artigos 930º-A e seguintes do CPC, e aqui enxerta-
dos pela mesma Lei que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano que lhe
permitiriam, em certas circunstâncias, dilatar ainda mais os prazos acima referidos.7

6
O sítio https://www.portaldahabitacao.pt/pt/portal/legislacao/rmna.html informava, em consulta
efetuada a 29 de Dezembro de 2012 que em 2011, cinco RMNA correspondiam à quantia de
€33.950,00.
7
A Lei 31/2012, de 14 de agosto, veio introduzir alterações significativas aos Códigos Civil e do
Processo Civil sobre esta matéria. Como referem os autores na obra referida na anotação 5,
pag.123, “O nº 3 deste artigo (1083º CC) contém uma situação objetiva de incumprimento gra-
ve por parte do inquilino e que justifica a resolução do contrato de arrendamento, consistente na
mora quanto ao pagamento da renda por um prazo superior a dois meses, prazo que anterior-
mente à alteração introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, era de três meses.” Realçam
também os autores, entre outras, duas medidas introduzidas no Código Civil cujo objetivo será,
sem dúvida, agilizar o processo de resolução do contrato de arrendamento: “A redação introdu-
zida pelo nº 4 (art.1083º CC) cria um novo fundamento de resolução do contrato de arrenda-
mento e que consiste em o arrendatário se constituir em mora superior a 8 dias, no pagamento
da renda, por mais de quatro vezes seguidas ou interpoladas (ou seja, pelo menos 5 vezes)
durante 12 meses.” Na mesma obra (pag.124) referem-se os autores ao encurtamento de um
outro prazo importante ao sublinharem que “A alteração constante do nº 3 (art.1084º CC) reduz
de três meses para um mês o prazo de que o inquilino, a quem foi resolvido o contrato por mora
no pagamento da renda, dispõe para poder considerar sem efeito a resolução, através do paga-
mento das rendas em mora acrescidas de 50%.” De referir ainda o anúncio pelo governo, da
previsão da criação do denominado BNA (Balcão Nacional de Arrendamento) dentro do mes-
mo objetivo de agilização do processo de despejo de inquilinos incumpridores e da desjudiciali-
zação deste procedimento que ficará a cargo de agentes de execução e de notários.
204 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

Salvo melhor opinião, esta perspetiva de excessiva preocupação de protecionismo


dos arrendatários faltosos, contribui, não para a dinamização, que carece de urgên-
cia, de um verdadeiro mercado de arrendamento, mas para o prejuízo dos arrendatá-
rios cumpridores. Estes, em virtude da escassez de oferta de casas para arrendar,
quantas vezes são compelidos a pagar rendas de valor excessivo e aceitar práticas
ilegais por parte de senhorios sem escrúpulos que, aproveitando quantas vezes a
ignorância ou inexperiência dos inquilinos, se recusam a celebrar contratos e a emitir
recibos, chegando mesmo ao ponto de publicitar esta prática, o que, com a crescente
procura, nomeadamente por parte de comunidades imigrantes, se tem vindo a gene-
ralizar.8

Com este tipo de políticas se vem fomentando e mantendo a existência de uma ver-
dadeira “economia subterrânea” no mercado de arrendamento, onde se por um lado,
muitos senhorios deixam de declarar este tipo de rendimentos e de pagar os respeti-
vos impostos, por outro, ficam os inquilinos impossibilitados da dedução à coleta,
em sede de IRS, até ao respetivo limite, o valor das rendas pagas.9

Ainda no que se refere aos valores das rendas, vejamos a título ilustrativo o quadro
que abaixo se reproduz, segundo o qual nos é dado constatar a distorção existente no
mercado de arrendamento. Com efeito, ao adicionarmos, primeiro os dois escalões
de rendas mais baixas e seguidamente fazendo o mesmo exercício para os quatro
escalões menores, concluímos que, de acordo com o censo de 2001, cerca de 25%
das rendas existentes se situava abaixo dos €25 mensais e cerca de 50% abaixo dos
€60 mensais.

8
Sobre este tema, de referir as intenções já demonstradas pelo anterior executivo (do 1º Ministro
José Sócrates) em resolução do Conselho de Ministros já citada, segundo a qual se previa, por
parte do senhorio, o recurso a procedimento mais célere com vista ao despejo e restituição do
imóvel, em caso de não pagamento de rendas, o qual ficaria, contudo, reservado apenas a
senhorios que tivessem, quando da celebração de contratos de arrendamento, observado e cum-
prido, todos os preceitos legais nomeadamente o registo do contrato nos serviços de finanças.
De referir ainda na mesma resolução, a previsão de algumas medidas de carácter fiscal, nomea-
damente a fixação de uma taxa autónoma em sede de IRS para os rendimentos prediais seme-
lhante à taxa que em sede do mesmo imposto é aplicada em regra, às aplicações financeiras, o
que poderia também, por via do efeito fiscal, vir a incentivar o investimento no mercado do
arrendamento, para além de outras especialmente destinadas a incentivar a reabilitação urbana,
processo este, que como sabemos, reveste carácter urgente em zonas históricas das principais
cidades, podendo também ele contribuir para contrariar a desertificação que nas referidas zonas
é tantas vezes referida pelas autoridades locais.
9
O art. 85º do CIRS, na alínea a) do nº 1, prevê com referência aos rendimentos auferidos em
2012, a dedução à coleta até ao limite de €591,00 do valor das rendas pagas para habitação
permanente do sujeito passivo.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 205

Quadro I: Distribuição das rendas por escalões, censo 2001

Fonte: INE, censo 200110

No editorial da revista “A Propriedade Urbana” afirmava recentemente Luís Mene-


zes Leitão, (...) Neste ano em que passam cem anos sobre o iníquo sistema de con-
gelamento de rendas em Portugal, mais uma vez os proprietários urbanos foram
brindados com uma atualização de rendas perfeitamente irrisória, de 0,3%, quando
todos os custos com os seus imóveis subiram. Ora, enquanto se mantiver esta situa-
ção é inevitável que se continue a acentuar a degradação dos nossos imóveis e a
desertificação das nossas cidades.

2. De um mercado de arrendamento à massificação da propriedade da habita-


ção

Como vimos anteriormente, a conjugação de diversos acontecimentos como a


Segunda Grande Guerra que devastou a Europa e, mais recentemente, o processo
revolucionário que ocorreu em 1974 em Portugal, vieram condicionar algumas deci-

10
Inês Quental e Melo, (2009), pag.3, O Mercado de Arrendamento - Principais Oportunidades e
Fragilidades face ao Mercado de Habitação Própria – Dissertação para obtenção do Grau de
Mestre em Engenharia do Território pelo IST, Outubro 2009, acedido a 20 de Dezembro de
2010 em: https://dspace.ist.utl.pt/bitstream/2295/578160/1/dissertacao.pdf.
206 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

sões políticas com grande impacto no mercado de arrendamento, não só contri-


buindo fortemente para uma progressiva degradação do parque imobiliário já exis-
tente vocacionado para esse mercado, mas, mais do que isso, vieram desincentivar
potenciais investidores de entrar no mercado, contribuindo também para uma cada
vez maior escassez de oferta de casas para arrendar, e, ao mesmo tempo, originando
um incremento significativo, por falta de alternativas, na pressão do lado da procura
no mercado de aquisição de habitação própria assistindo-se, por essa via, a uma
transferência continuada e crescente da procura, de um mercado para o outro.

Como poderemos constatar no Quadro II abaixo, o número de alojamentos ocupados


por inquilinos (linha a verde) apresenta uma curva descendente contínua sendo em
1970 já idêntico o número de alojamentos familiares ocupados por inquilinos e por
proprietários (linha a vermelho), tendência que se veio a acentuar drasticamente nos
anos seguintes.

Quadro II: Alojamentos familiares por ocupantes (proprietários e inquilinos)

4000000
3500000
Alojamentos
3000000 familiares clássicos
2500000 Total
2000000
1500000 Alojamentos
1000000 familiares clássicos
500000 Ocupantes
proprietários
0
1960 1970 1981 1991 2001

Fonte: PORDATA – INE, X Recenseamento Geral da População;


I a IV Recenseamentos Gerais da Habitação.

Apesar de ter sido no ano de 1999 que se atingiu o pico do número de prédios urba-
nos vendidos (vide Quadro IV) e desde aí termos vindo a assistir a uma curva des-
cendente deste tipo de transações (em 2008 venderam-se sensivelmente menos
100.000 prédios urbanos que em 1999), podemos constatar que de acordo com o
censo realizado em 2001 (vide Quadro II), o desequilíbrio atingia já a enorme des-
proporção de quase 2,7 Milhões de proprietários para menos de 0,9 Milhões de
inquilinos enquanto quatro décadas antes, em 1960, esta proporção era de pouco
menos de 1 Milhão de proprietários para quase 1,6 Milhões de inquilinos, e certa-
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 207

mente, pelo conhecimento generalizado da evolução deste mercado, o censo de


201111 virá confirmar o agravamento desta disparidade.

Mas, como veremos no ponto seguinte, para além dos motivos explanados, outros
porém vieram influenciar a decisão pela opção de aquisição de habitação própria em
detrimento do arrendamento.

2.1 Influência dos níveis de inflação e de taxas de juro na opção pela aquisição
de habitação própria

Se no passado recente apontamos as reduzidas taxas de juro como sendo um dos


motivos para o maior recurso ao crédito e a consequente apetência pela aquisição de
habitação própria, não nos poderemos esquecer que taxas de juro baixas existem em
períodos de reduzida inflação, e que taxas de juro elevadas existem em períodos de
inflação elevada.

O fenómeno referido tem, como é por demais conhecido, implicações diretas quer na
evolução positiva do valor de um imóvel adquirido em períodos de grande inflação,
quer na evolução negativa do valor real do dinheiro que permaneça nos bancos em
aplicações financeiras nesses mesmos períodos, pelo que, como tentaremos expor
mais à frente, em ambas as situações, de inflação baixa ou elevada, poderá haver
razões lógicas conducentes à opção pela aquisição em detrimento do arrendamento.

No quadro abaixo reproduzido é-nos dado constatar o comportamento da taxa de


inflação em Portugal, que no final da primeira metade da década de oitenta do séc.
XX veio a atingir um valor próximo de 30%, o que revela bem a velocidade a que o
dinheiro parado no banco perdia o seu valor real ano após ano.

11
Os dados decorrentes dos resultados obtidos pelos Censos 2011, ainda não estavam disponíveis
à data em que este artigo foi escrito.
208 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

Quadro III: Taxa de inflação – Portugal

35
30
25
20
15 Taxa de inflação
10
5
0
1970
1973
1976
1979
1982
1985
1988
1991
1994
1997
2000
2003
2006
2009
-5

Fonte: PORDATA (dados INE).

A opção pela aquisição de habitação nesta época, se por um lado implicava a con-
tratação de empréstimos bancários a taxas de juro elevadíssimas e consequentemente
a prestações também elas de elevado valor, tinha por outro lado a grande vantagem
de permitir aos agregados familiares conseguir em poucos anos, uma redução signi-
ficativa do peso das despesas com a habitação no respetivo rendimento.

Com efeito, os incrementos salariais anuais nominais concedidos nos referidos anos,
tal como a taxa de inflação, ascendiam a valores da ordem dos 20% a 25%, o mesmo
é dizer, que num período relativamente curto, sobretudo na primeira metade da
década de oitenta, em alguns casos, os salários mais do que duplicavam em valor
nominal.

A opção pela aquisição de habitação própria era assim uma forma segura de garantir
um investimento num bem durável cujo valor real tendia a manter-se ou mesmo a
valorizar-se em contraposição com a manutenção de poupanças em dinheiro, cujo
valor real rapidamente se degradava. Numa primeira fase, o valor da prestação a
pagar pelo financiamento contraído poderia, em alguns casos, pelas elevadíssimas
taxas de juro praticadas, absorver 50% ou mais do orçamento de alguns agregados
familiares, mas, em face das elevadas taxas de inflação e das correspondentes atuali-
zações salariais, mantendo-se fixo o valor nominal inicial do capital mutuado, a
proporção da prestação pelo pagamento dos empréstimos no total do orçamento
familiar (a denominada taxa de esforço) rapidamente perdia peso, enquanto por
outro lado, simultaneamente, o valor real do imóvel adquirido se ia mantendo ou
mesmo incrementando.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 209

No entanto, se pela conjugação destes dois fatores, se afigurava a opção pela aquisi-
ção de habitação como a mais interessante, do ponto de vista financeiro, em épocas
de inflação elevada, não deveremos deixar de referir que o valor do encargo mensal
com a prestação dos empréstimos contraídos restringia significativamente o número
de agregados familiares com a capacidade necessária para o efeito.

Aos motivos acima expostos, acresce outro não menos importante que também con-
tribui para a evolução do preço dos imóveis. Se em época de taxas de inflação eleva-
das e consequentemente de altas taxas de juro, os promotores imobiliários teriam
uma menor margem de manobra, pois caso elevassem demasiado os preços de ven-
da, reduziriam o número de potenciais clientes pela relativamente reduzida capa-
cidade de endividamento, já o efeito nos preços do mercado imobiliário provocado
pela significativa redução das taxas de juro que, sobretudo a partir da segunda meta-
de da década de noventa, se veio a verificar, acabou por ser, diríamos, perverso,
como poderemos constatar no Quadro IV abaixo.

Quadro IV: Número de prédios urbanos vendidos e respectivo valor médio

300 000
250 000
200 000
Número de prédios
150 000 urbanos vendidos
100 000 Valor médio dos
50 000 prédios (Euros)

Fonte: Anuário Estatístico de Portugal 2009, INE, Edição 2010.

Deste quadro poderemos concluir que, no período em análise, o número máximo de


prédios urbanos vendidos em Portugal num só ano (linha a azul), que ascendeu a um
total de 284.241, foi atingido em 1999, precisamente um dos anos em que a inflação
apresentou um dos seus pontos mais baixos, de 2,3% (vide Quadro III), e que coin-
cidiu com a fase preparatória para a adesão de Portugal ao sistema monetário euro-
peu e à adoção da moeda única Europeia.
210 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

Mas podemos concluir igualmente que foi precisamente a partir desse momento, que
a grande pressão por parte da procura resultante da maior capacidade de endivida-
mento das famílias, decorrente das baixas taxas de juro, que o preço médio dos pré-
dios urbanos vendidos em Portugal (linha a verde) mais cresceu, tendo evoluído, em
termos médios nacionais, de pouco mais de €50,000 em 1998, para mais de
€100,000 em 2004, vindo a atingir um valor superior a €125,000 em 2008.

De realçar que este fenómeno se deu precisamente em período de reduzido nível de


inflação, sem a ocorrência de aumento do preço dos fatores de produção para os
construtores, nomeadamente o custo do financiamento que terá sido dos mais baixos
alguma vez alcançado, pelo que se afigura pertinente questionar o motivo deste
abrupto crescimento.

Pese embora a lei de mercado e a relação entre a oferta e a procura que não deverá
ser menosprezada, em nossa opinião o período de baixas taxas de juro acompanhado
por uma maior agressividade da generalidade dos bancos na oferta de crédito à habi-
tação com redução das suas margens de lucro, e a influência destes fatores no valor
médio das prestações pelos empréstimos hipotecários para aquisição de habitação
própria, vieram permitir que os promotores imobiliários, tomando em conta estes
dados, passassem a definir o nível de preços de venda das habitações em função da
capacidade de endividamento das famílias, isto é, do valor até ao qual as famílias
poderiam suportar a prestação do empréstimo bancário.

Como já acima referido (vide Quadro IV), o número máximo de prédios vendido
num só ano em Portugal, foi atingido em 1999 tendo a partir daí vindo a decair sem-
pre até aos dias de hoje, no entanto, apesar do cada vez menor número de prédios
vendido anualmente, o volume global do crédito concedido para habitação, como
poderemos observar no Quadro V abaixo, manteve-se sempre em linha ascendente
até 2007, passando de um pouco mais de 15,6 Mil Milhões de Euros em 1999 para
vir a atingir o total de mais de 22,6 Mil Milhões de Euros em 2007.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 211

Quadro V: Crédito hipotecário concedido a particulares

25 000 000

20 000 000

15 000 000

10 000 000 Série1

5 000 000

0
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Fonte: Anuário Estatístico de Portugal 2009, INE, Edição 2010.

O mesmo é dizer que as famílias se permitiram contrair empréstimos de valor cada


vez mais elevado, olhando, não ao nível de responsabilidades assumido, mas apenas
ao valor da prestação mensal que teriam de suportar, o que, como referido, foi apro-
veitado pelos promotores imobiliários, enquanto por sua vez, os bancos, indo ao
encontro dos ensejos dos seus clientes e simultaneamente com o objetivo de aumen-
tar os seus lucros no curto prazo, aceitaram que a qualidade do risco de crédito da
sua carteira se degradasse, chegando, em alguns casos, a financiar, não só o corres-
pondente ao valor total do imóvel, mas mesmo outros custos e despesas associados à
aquisição, como impostos, aquisição de mobiliário, política esta, cujos efeitos, no
denominado crédito mal parado, se vão verificando com cada vez maior acuidade.

2.2 O sector financeiro, o novo paradigma do mercado de trabalho, e a sua


influência no aumento da procura no mercado de arrendamento

Se o sistema financeiro, as baixas taxas de juro e as condições de crédito oferecidas


nos anos que se seguiram ao momento da fixação irreversível das taxas de câmbio
das moedas da zona euro, tiveram grande influência no acentuado crescimento do
mercado da habitação própria, este mesmo sistema financeiro tem também sido no
passado mais recente, sobretudo desde o eclodir da crise financeira que se iniciou em
2008, um dos grandes responsáveis pela acentuada quebra nas vendas de habitação
própria.
212 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

E desta feita, não pela existência de taxas de juro elevadas, dado que, apesar de a
Euribor a 6 meses, principal indexante utilizado no crédito à habitação, ter atingido
um máximo de 4,727% em 2008, este mesmo indexante voltou a cair até ao seu
valor mais baixo de sempre, para próximo de 1%, tanto em 2009 como em 2010
(vide Quadro VI).

Quadro VI: Taxas de juro médias anuais - Euribor 6 meses

2 Série1

0
1999 2000200120022003 2004200520062007 200820092010

Fonte: Global-rates.com – Taxas de juros Euribor histórico


(http://pt.global-rates.com/taxa-de-juros/euribor/euribor.aspx)

Os motivos terão sido diversos, por um lado o aumento do nível de risco de crédito
associado às operações de financiamento hipotecário e, por outro, pela dificuldade
por parte das instituições de crédito em obterem financiamento, elas próprias, para a
sua atividade.

Face a uma situação de crise que começou por ser financeira, com origem precisa-
mente no mercado de crédito à habitação nos EUA, mas que rapidamente se trans-
formou em crise económica e em crise social, os bancos, se por um lado passaram a
ter mais dificuldade em se financiarem, logo em disporem dos recursos necessários
para poderem financiar os seus clientes, por outro, em face da crise económica e da
maior probabilidade de os seus clientes poderem vir a encontrar-se em situação de
desemprego pela instabilidade económica que originou uma verdadeira crise social,
rapidamente se adaptaram a uma nova realidade apertando os critérios de análise de
risco “fechando a torneira do crédito” tanto a promotores imobiliários como a clien-
tes particulares potenciais compradores de habitação própria.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 213

Esta nova postura por parte dos bancos veio não só restringir o acesso ao crédito mas
simultaneamente torná-lo mais caro, não pelas taxas de juro mas pelos “spreads”12
praticados, provocando numa primeira fase uma quebra acentuada da procura no
mercado de aquisição de habitação e, subsequentemente, de forma progressiva, um
acréscimo da procura no mercado de arrendamento.

Em 6 de Julho de 2010, podia ler-se num despacho da Agência Lusa publicado no


Jornal Público “online” o seguinte título: O mercado de arrendamento em Lisboa
cresceu 40 por cento em 2009 em termos anuais, disse à Lusa o director do Confi-
dencial Imobiliário (CI), entidade que produz estatísticas sobre o mercado residen-
cial.

E mais à frente referia a mesma notícia que (...) o mercado de arrendamento tem
vindo a crescer, sobretudo por se constituir como uma resposta a uma necessidade
de rentabilizar um ativo que se tinha em mente vender”, (...) pelo que (...) o aumento
da oferta no mercado imobiliário teve como consequência a redução das rendas de
habitação.

Deparamo-nos então com uma nova realidade onde diversos fatores e os diversos
agentes económicos, condicionados pela conjuntura que teve origem numa crise
financeira mundial, se conjugam para que o mercado de arrendamento volte a ser,
para quem procura habitação, a sua primeira opção, e, para os promotores imobiliá-
rios, uma verdadeira solução de recurso, com vista à rentabilização dos seus ativos.

Estarão criadas as condições para o ressurgimento de um verdadeiro mercado de


arrendamento? Em nossa opinião estão de facto reunidas as condições, ditadas pelas
leis de mercado, o qual tende sempre a adaptar-se a cada nova situação que vai sur-
gindo.

A maior dificuldade no acesso ao crédito por parte de potenciais compradores, moti-


vada essencialmente por dois factores - menor capacidade por parte dos bancos no
financiamento da sua atividade e a maior instabilidade no emprego que incrementa o
risco de crédito e torna os bancos mais seletivos - tem vindo a contribuir para uma
forte restrição na concessão de crédito e, consequentemente, num significativo
decréscimo na procura pela aquisição de habitação própria junto dos promotores
imobiliários.

12
Termo anglo-saxónico muito utilizado no jargão bancário, que significa, grosso modo, a mar-
gem de lucro que o banco financiador adiciona à taxa de juro nominal à qual, o próprio banco
se poderá financiar no mercado monetário interbancário. De entre outras variáveis, o risco de
crédito associado à operação de financiamento tem ele próprio influência significativa no
“spread” a praticar pelo banco.
214 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

Por outro lado, os promotores imobiliários, para fazerem face aos compromissos
assumidos e tendo absoluta necessidade de rentabilizar os seus activos, em alterna-
tiva à venda, optam, cada vez mais, pela colocação dos seus imóveis no mercado de
arrendamento, fenómeno este que tem vindo, também ele, a contribuir progressiva-
mente para um aumento da oferta de casas para arrendar o que virá a contribuir para
balancear o mercado.

Pela exposição acima, poderíamos ser levados a concluir que esta nova tendência no
mercado da habitação existe apenas porque o mercado a impõe àqueles que procu-
ram uma habitação para viver. Mas será assim?

– Não estaremos no limiar, ou provavelmente mesmo já na presença, de um novo


paradigma do mercado do emprego em Portugal cujas características influenciarão,
também elas, a opção pelo arrendamento?

– Não deveremos considerar, em face da realidade atual e da denominada precarie-


dade do emprego ser a mobilidade uma vantagem competitiva no mercado de traba-
lho?

Provavelmente, um número significativo das famílias que neste momento optam por
arrendar, em alternativa a adquirir, ainda não terão esta perceção.

Face aos elevados custos iniciais com despesas de processo e de avaliação junto dos
bancos, imposto municipal de transacções e imposto do selo aplicáveis, escritura e
registos, a aquisição apenas é vantajosa quando possa ser encarada como um inves-
timento de longo prazo que permita diluir todos estes encargos ao longo dos anos da
sua duração.

Sucede que a realidade do mercado nos tem ditado novas regras, nos tem levado a
reequacionar os dogmas por que temos pautado o nosso raciocínio no que à habita-
ção diz respeito, e como tal, todas essas questões deverão ser questionadas. Conside-
rando a incerteza ditada pela conjuntura que atravessamos, cada vez será maior a
necessidade de estarmos mentalmente disponíveis e fisicamente preparados para a
mobilidade num mercado de emprego geograficamente disperso. Contudo, tal apenas
será possível para aqueles que não se tenham “amarrado” à âncora de uma casa pró-
pria, de um empréstimo e de uma hipoteca.

Embora não totalmente apreendidas, por muitas décadas de convivência com um


mercado habitacional distorcido por regras impostas pelo poder político, as vanta-
gens do arrendamento sobre a aquisição, sobretudo para as camadas mais jovens da
população na entrada para o mercado de trabalho, serão também elas, sem dúvida,
sobretudo no médio longo prazo, um dos fatores de maior peso a considerar numa
tendência crescente da procura no mercado de arrendamento.
MERCADO IMOBILIÁRIO EM PORTUGAL 215

Resta aguardar que o legislador, através de normas mais adequadas à realidade deste
importante setor da economia, reúna as condições e a vontade política necessárias
que permitam contribuir também para a sua dinamização.13

Conclusão

O estudo do mercado da habitação em Portugal no passado recente permite-nos


perceber as causas que levaram a uma distorção do equilíbrio entre o número de
proprietários e de arrendatários, distorção essa que resultou primordialmente de
medidas que levaram ao congelamento das rendas, primeiro nas cidades de Lisboa e
do Porto no final da década de 40 do século passado como consequência direta da
Segunda Grande Guerra Mundial que devastou a Europa entre 1939 e 1945, efeito
esse, que no período revolucionário que se sucedeu após 25 de Abril de 1974, se
estendeu ao resto do país.

Na realidade, o Estado, por via destas medidas, vem ao longo das últimas décadas
atribuindo à generalidade das famílias portuguesas titulares de contratos de arrenda-
mento do denominado tipo “vinculístico” 14, sem distinção do respectivo nível de
rendimentos, e à custa do património dos respectivos senhorios, um verdadeiro sub-
sídio de renda que resulta da conjugação de dois fenómenos, por um lado a imposi-
ção da renovação automática dos referidos contratos de arrendamento, independen-
temente do prazo convencionado pelas partes15 e, por outro, pelo já mencionado
congelamento das rendas, este último, que, em virtude de períodos alargados de
elevadas taxas de inflação ocorridos no passado, veio originar um acelerado pro-
cesso de desfasamento progressivo entre o valor normal de mercado para uma renda
de um determinado imóvel, e o valor efetivamente pago pelo arrendatário, do que
veio a resultar a incapacidade financeira por parte dos respectivos proprietários para
a manutenção dos imóveis, o que teve como consequência direta a visível atual
degradação a que chegou o parque habitacional nas zonas históricas das principais
cidades.

Os factos referidos, desmotivadores do investimento no mercado de arrendamento,


associado à promoção de medidas incentivadoras da concessão de crédito para aqui-

13
Foi entretanto publicada a Lei 31/2012 de 14 de Agosto que vem rever o Regime Jurídico do
Arrendamento Urbano já referida em anotações anteriores.
14
Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, pag.184, Manual de Arrendamento Urbano, Volume I,
4ª Edição, 2007, Edições Almedina SA.
15
A Lei 31/2012 de 14 de Agosto vem introduzir alterações significativas a este nível, prevendo-
se um período de transição (ou de salvaguarda para os inquilinos) pelo prazo de 5 anos, após o
que os contratos do chamado tipo vinculístico poderão transitar para o NRAU (Novo Regime
do Arrendamento Urbano).
216 FRANCISCO MOREIRA BRAGA

sição de habitação própria, vieram originar um crescimento acentuado da opção por


“adquirir em vez de arrendar”. Esta opção, que como acima mencionado, veio con-
tribuir para uma verdadeira massificação da habitação própria em Portugal, está já a
sofrer uma inflexão de sentido contrário decorrente de alterações profundas no sis-
tema financeiro com forte restrição à concessão de crédito no sector da promoção
imobiliária e na opção de colocar no mercado de arrendamento habitações cujo des-
tino inicial seria o da venda, o que tenderá, pelo aumento da oferta, a criar um equi-
líbrio de mercado no sentido do ajustamento do valor das rendas e, por último, pela
alteração de paradigma no mercado de emprego face ao que, a capacidade de mobi-
lidade passou a ser não só uma vantagem competitiva, mas uma verdadeira necessi-
dade.

Como pudemos constatar, o enquadramento histórico temporal caracterizado por


uma acelerada desvalorização da moeda e acentuada especulação imobiliária, que
condicionou num determinado sentido o espírito do legislador de então, sofreu pro-
fundas alterações sobretudo desde os anos que antecederam a adesão de Portugal à
moeda única Europeia e, mais recentemente, desde o estalar da crise financeira,
económica e social em 2008 cujo auge é ainda imprevisível no momento em que
escrevemos estas linhas. Assim assistimos no tempo presente a um mercado de habi-
tação depressivo, com sérias dificuldades de financiamento, e, em consequência, a
um decréscimo generalizado e progressivo dos preços dos imóveis.

Aguardamos agora, com expectativa, o efeito que se irá fazer sentir doravante, com
as significativas alterações ao Regime Jurídico do Arrendamento Urbano introduzi-
das com a publicação da Lei 31/2012 de 14 de Agosto e legislação complementar,
nomeadamente com o anunciado BNA (Balcão Nacional de Arrendamento).
Justiça e Comunicação Social
Entre a tensão e a tentação recíprocas
ANA PAULA PINTO LOURENÇO *

Parte I – Relação Justiça e Comunicação Social – O Contexto

I.1. Introdução

«C’est que le principe de la liberté de la presse


n’est pas moins essenciel, n’est pas moins sacré
que le príncipe du suffrage universel. Ce sont deux
côtés du même fait».

Victor Hugo, Assembleia Nacional de 11 de Se-


tembro de 1848

Os meios de comunicação social encontram-se indelevelmente ligados ao combate


pela liberdade e pluralismo que caracteriza os regimes democráticos, nos quais
assumem o imprescindível papel de veiculador de informação e de formador da
opinião pública, para que esta possa, de um modo consciente e esclarecido, cumprir
o seu desígnio de “árbitro no domínio do político”, como prescreve a democracia
participativa.

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 217-254.

* Docente universitária; Advogada. O presente texto não segue o Acordo Ortográfico d e 1990.
ap.pintolourenco@gmail.com
218 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

No séc. XVIII, referindo-se ao Antigo Regime vigente, Voltaire afirmava que “a


liberdade de escrever ou de falar impunemente demonstra, quer a extrema bondade
do Príncipe, quer a profunda escravatura do povo, porque não é permitido falar
senão àquele que nada pode”. Porém, nos tempos que se seguiram a esta afirmação,
os meios de comunicação social impuseram-se enquanto preciosos e incontroláveis
instrumentos de crítica política e social, de difusão das ideias democráticas e de
defesa dos direitos fundamentais contra o arbítrio do Estado.

Emergindo de uma época em que os Estados totalitários fundaram a sua força no


segredo, na restrição
1
da liberdade de expressão e de informação – através da imposi-
ção da censura, da funcionalização dos meios de comunicação e da manipulação
informacional – a comunidade clama pela transparência como pedra de toque da
democracia, entendendo ser o segredo inaceitável num Estado de Direito. Desta
forma, não é necessário ser-se muito observador ou arguto para se reconhecer que se
vive hoje num clima de exaltação do conhecimento e da exigência da plena acessibi-
lidade à informação.2 A sociedade actual vive uma obsessão pela transparência, pelo
que, à simples evocação de um qualquer segredo, logo se sente um “irreprimível
sentimento de repulsa”.3

A globalização informacional facultada pela internet e pela internacionalização de


redes de informação conduziu à vertigem da omnisciência.

O desenvolvimento tecnológico facilitou a divulgação de acontecimentos numa


quase simultaneidade entre facto e notícia e facilitou o acompanhamento da
evolução desses mesmos factos. A par, politólogos, filósofos e governantes
enfatizam a ideia de que a transparência é parte da democracia (a glasnost foi, sob
este ponto de vista, determinante). Conscientes da necessidade de transparência
como um dos factores fundamentais da democracia, os poderes públicos criaram
páginas oficiais. No entanto, uma deficiente assimilação do conceito e a facilidade
com que qualquer cidadão pode, hoje, fazer publicar sem qualquer critério de edição
conteúdos on line fez nascer a ideia de que tudo pode saber-se, provocando uma

1
Por vezes sob a capa paternalista de protecção da opinião pública, como na Constituição de
1933 em que, após afirmar no n.º 4.º do art. 8.º “a liberdade de expressão do pensamento sob
qualquer forma” como um direito e garantia individual dos cidadãos, vem, afinal, no § 2.º , ao
comprimir esta liberdade a determinar que “Leis especiais regularão o exercício da liberdade de
expressão do pensamento, de ensino, de reunião e de associação, devendo, quanto à primeira,
impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força
social e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos [...]”.
2
Num clima de “obsessão da vitrificação da realidade” caracterizadora da “sociedade da obses-
são da transparência”, na expressão feliz de COSTA, José Francisco de Faria, Direito Penal da
Comunicação, alguns escritos, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 95.
3
COSTA, Artur Rodrigues, “Segredo de Justiça e Comunicação Social”, Revista do Ministério
Público, ano 17, n.º 68, 1996, pp. 49-74.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 219

indesejável e acrítica expansão da esfera pública,4 para espaços que deviam manter-
se alheios dos olhares indiscretos do público: a privacidade e, nalguns casos, mesmo
a intimidade. Ora, apenas numa “comunidade ideal de comunicação” de “perfeição
moral”, poderia transcender-se “a materialidade da comunicação humana e finita”.5
Num contexto comunicacional com as contingências próprias da natureza humana,
nem informação, nem transparência podem assumir-se como realidades absolutas e
sem limites porquanto, ao contrário do que possa idealizar-se, uma sociedade onde
possa saber-se tudo não é uma sociedade democrática mas totalitária.6

Simultaneamente, a empresarialização dos órgãos de comunicação tornou inevitável


a consideração do lucro como um dos factores condicionantes da escolha do que
publicar, o que vale por dizer que o interesse manifestado pelo público se tornou,
para os órgãos de comunicação social, um factor não despiciendo na determinação
dos conteúdos. Neste contexto, ganhou particular relevo o interesse pela justiça,
assegurando os meios de comunicação social um papel de mediador privilegiado
entre o cidadão e as decisões dos tribunais, tornando acessível e entendível uma área
que, durante séculos, permaneceu sacralizada e incompreensível para os cidadãos,
apesar de, por força da Constituição, ser em nome destes que os tribunais aplicam a
justiça.

Porém, em virtude das diferentes características, finalidades e linguagens, estes dois


meios não têm tido um convívio fácil. É sobre a relação de recíproca tentação, mas
simultaneamente tensão, entre meios de comunicação e justiça penal que versará o
presente texto.

I.2. Justiça e Comunicação Social – A Tentação

Uma das áreas que tem vindo a suscitar um interesse crescente por parte do público é
a da actividade dos tribunais e, mais particularmente, o Direito Penal, talvez porque,
como afirma Luhmann, exista uma apetência da opinião pública pela apresentação
de conflitos, isto é, pelos assuntos em que seja possível identificar quem ocupa a

4
Hannah ARENDT, a propósito da absorção da esfera privada pela expansão da esfera pública
refere que “desde o advento da sociedade, desde a admissão das actividades caseiras e da eco-
nomia doméstica na esfera pública, a nova esfera tem-se caracterizado, principalmente, por uma
irresistível tendência para crescer, para devorar as esferas mais antigas do político e do privado,
bem como a esfera da intimidade”. A Condição Humana, Relógio d’Água, Lisboa, 2001, p. 60.
5
O conceito, bem como as definições, são de Wellmer, apud FERRY, Jean -Marc, Filosofia da
Comunicação, Fenda, Lisboa, 2001, p. 3.
6
Do mesmo modo, PEREIRA, José Pacheco, Liberdade de Informação – Segredo de Justiça,
Colóquio Parlamentar – Assembleia da República, Lisboa, 1992, p. 48, e MINC, Alain, Em
nome da Lei, Editorial Inquérito, Mem Martins, 2000, p. 144 ss. Valerá a pena, a este propósito,
recordar o Big Brother de Orwell.
220 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

posição «a favor» e «contra». Por essa razão, tem sido esta uma das áreas mais ape-
tecíveis pelos meios de comunicação social, embora esta não seja uma relação isenta
de perigos.

A referida empresarialização dos órgãos de comunicação social pode colocar em


causa a independência dos órgãos de comunicação social, porquanto, ao assumirem
lugar no mercado concorrencial, viram-se forçados a delinear uma estratégia comer-
cial assente no lucro, que passa necessariamente por conseguir um número suficiente
de consumidores que permita a sustentabilidade económica, o que representa alguns
perigos. Desde logo, porque a necessidade de garantir uma cada vez maior quota de
mercado pode conduzir a que os meios de comunicação social tendam a privilegiar o
interesse do público em detrimento do interesse público. Por outro lado, a necessi-
dade de sustentar economicamente a empresa, agravada pela crise da publicidade
enquanto fonte de receita principal, torna imperiosa a antecipação da publicação da
notícia face aos outros meios de comunicação social, uma vez que vende mais o que
primeiro divulgar a notícia. Esta urgência dificulta a confirmação dos factos, poden-
do traduzir-se numa actuação que viole os deveres profissionais de rigor, objectivi-
dade e verdade,7 criando na comunidade a ideia de que a realidade é o que se lê na
imprensa ou o que é transmitido nos serviços noticiosos. Por outro lado ainda, a
pressão para a produção de conteúdos a um ritmo cada vez mais veloz e com um
conteúdo mais apelativo, para captar novos públicos, condicionou o rigor das notí-
cias, transferindo para o público a triagem do que vale ou não vale a pena ser lido. A
propósito da informação pouco cuidada que, por vezes, é facultada aos destinatários,
na crença de que sejam capazes de distinguir o verdadeiro do falso, a mera suspeita
ou crença, da realidade, afirma Alain Minc, não sem ironia e desencanto, que se
sedimentou na sociedade mediática o paradigma de que “a opinião pública é inteli-
gente; sabe tudo, compreende tudo, prevê tudo» finalizando pelo desabafo que “pos-
tular a inteligência espontânea da opinião pública é a maneira contemporânea de
acreditar nos amanhãs que cantam”.8

Não é consensual na doutrina o significado de opinião pública. Tratar-se-á da cons-


ciência colectiva,9 que «corresponde ao maior número de pessoas, a que segundo as
sondagens é o ponto de vista do cidadão comum? Aquela que, prevalecendo sobre as
demais pelo número seja considerada, por essa razão, a opinião democrática, permi-
tindo, pela força da maioria, agir em seu nome? Segundo Luhman, a opinião pública
não poderá referir-se «ao que realmente acontece na(s) consciência(s) das pessoas
individuais ou de muitas pessoas, ou de todas, num momento particular no tempo,
não remetendo para o que as pessoas pensam, compreendem, o que atrai a sua aten-

7
Deveres profissionais e deontológicos estabelecidos no ponto 1. do Código Deontológico e art.
14.º do Estatuto dos Jornalistas.
8
MINC, Alain, Em Nome da Lei, p. 164.
9
BETTIOL, Giuseppe, Instituições de Processo Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1974, p. 193.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 221

ção ou do que conseguem lembrar-se», “o que corresponderia a um caos indescrití-


vel”.10 Para este autor, a opinião pública constituirá uma «rede de comunicação que
não força à participação», porque prescinde do sujeito porquanto, no que no respei-
tante aos meios de comunicação de massa, «o meio é a própria opinião pública», ao
qual a imprensa e o audiovisual dão forma. A opinião pública seria, assim, o produto
da determinação dos meios de comunicação social.

Este posicionamento reveste-se da maior importância porque levanta a hipótese de


os meios de comunicação social condicionarem a realidade e os interesses comunitá-
rios, uma vez que transmitem ideias através da formulação ou divulgação de opi-
niões, fomentam o debate, recolhem as informações, editam-nas, seleccionam as
notícias que consideram ser mais relevantes e que, pela difusão, irão constituir tema
de discussão social, aqui residindo um dos seus maiores poderes. Dos jograis que no
adro das igrejas davam eco aos crimes, passando pelas multidões que se aglomera-
vam junto ao patíbulo para presenciar o “espectáculo” das execuções, até à versão
moderna deste fenómeno consubstanciada nas séries televisivas e nos programas
dedicados à investigação criminal, aos relatos de crimes e aos processos judiciais, o
crime, o delito e a transgressão sempre atraíram o interesse popular. Esse potencial
comercial condiciona a escolha das peças jornalísticas, razão pela qual nenhum meio
de comunicação social prescinde hoje de noticiar crimes, sobretudo quando violentos
ou praticados por crianças ou jovens, por serem os que mais comovem e, logo, os
que mais vendem.

Por outro lado, os meios de comunicação propiciam aos poderes, através das notí-
cias, o contacto com a reacção às suas políticas. Como bem nota Innerarity, “os
meios de comunicação não nos informam sobre o que acontece, mas sim sobre o que
outros consideram ter o valor de acontecimento. Não observam acontecimentos,
observam observações» [...]. A construção da realidade pelos meios de comunicação
poupa aos políticos o contacto com a realidade. Em vez de observar o mundo, os
políticos observam como são observados pelos meios de comunicação”.11

O cuidado na escolha e modo de transmissão das notícias fica vincado pela circuns-
tância de a linguagem hiperbolizada da realidade criminal poder contribuir para o
aumento da sensação de insegurança – mesmo quando o aumento de publicidade
possa não corresponder a um aumento real de criminalidade, porque a realidade
passa a ser a aparência noticiada - forçando a agenda política, se não no combate ao

10
LUHMAN, Niklas, A Improbabilidade da Comunicação, 3.ª edição, Vega, Lda, Lisboa, 2000,
p. 69 e ss.
11
INNERARITY, Daniel, O Novo Espaço Público, Teorema, Lisboa, 2011.
222 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

crime, pelo menos nas promessas de combate ao crime, mantendo o tema na ribalta
das discussões.12

Não obstante, devem temer-se as intervenções estatais para “protecção da opinião


pública”, por redundarem quase sempre, não na regulação da actividade da comuni-
cação, mas na intervenção ideológica do Estado. Exemplo do que acaba de dizer-se,
é a Constituição de 1933 que, não obstante no art. 8.º enquadrar a liberdade de
expressão no elenco das liberdades fundamentais, admitia, no mesmo preceito, a
possibilidade da sua restrição por leis especiais, com o intuito de “impedir preven-
tiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força
social”, o que legitimou o estabelecimento da censura, uma vez que, nos termos do
art. 20º constituindo a opinião pública “elemento fundamental da política e adminis-
tração do país“, incumbiria “ao Estado defendê-la de todos os factores que a deso-
rientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum”.

Na senda do que se vem defendendo, pode afirmar-se que uma comunicação livre e
responsável constitui um elemento fundamental para o desenvolvimento pessoal e
interpessoal mas, igualmente, que tal apenas será possível quando seja possível
legitimar democraticamente a sua actuação, repudiando a censura, mas impondo
modos de a responsabilizar.

I.3. Justiça e Comunicação Social – A Mediação e os Perigos

“Vemos, assim, quão útil é a imprensa, que torna o


público, e não apenas alguns, depositário das san-
tas leis, e quanto ela dissipou aquele espírito tene-
broso de cabala e intriga que desaparece face às
luzes e às ciências aparentemente desprezadas mas
realmente temidas pelos sequazes desse espírito”.

Beccaria, Dos delitos e das penas

Ao interesse crescente que a comunidade – e por via reflexa os meios de comunica-


ção social – tem manifestado pelo Direito, e sobretudo pelo crime, corresponde o

12
No mesmo sentido, FUENTES OSORIO, Juan L., Los Medios de Comunicación y el Derecho
Penal, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, REPC 07-16 (2005), p. 16:3,
http://criminet.ugr.es/recpc/, e FERNANDES, José Manuel, Liberdade e Informação, Fundação
Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2011, e GERSÃO, Eliana, Comunicação Social e Repre-
sentações do Crime, Cadernos do Centro de Estudos Judiciários, n.º 20, 2002, p. VIII.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 223

interesse público da veiculação da actividade judiciária.13 Existem sérias vantagens


no conhecimento do processo pelo público. Por essa razão, nem mesmo nas épocas
em que o segredo caracterizava o processo o Estado prescindiu da publicidade, se
bem que restringida ao momento da execução da pena, de modo a concretizar as
finalidades de prevenção geral ou especial e para demonstrar o poder do Estado
sobre os cidadãos.

Hodiernamente, a publicidade do processo constitui uma garantia contra a arbitrarie-


dade do Estado, satisfaz o direito de acompanhar a aplicação da justiça pelo povo,
em nome de quem a justiça é administrada, e garante, por essa via, o apaziguamento
das tensões sociais geradas pela prática do crime, pelo convencimento da comunida-
de de que foi feita justiça e de que está em segurança, constituindo assim um modo
de a justiça se afirmar.

Se é facto que a Constituição da República Portuguesa14 garante o direito de acesso


aos tribunais [206.º CRP], igualmente expresso na Lei de Organização e Funciona-
mento dos Tribunais Judiciais [art.10.º], embora em ambos os casos restringindo-o
às audiências, como modo de cumprir as finalidades anteriormente referidas, tam-
bém é certo que o acesso directo pelos cidadãos se manifesta difícil, porquanto esse
contacto exigiria deslocações aos tribunais, tempo para acompanhar os trâmites
processuais e as audiências de julgamento. Neste contexto, o cidadão conta com o
papel de mediação desempenhado pelos meios de comunicação social, que possibi-
litam a construção de audiências directas com o judiciário, cenário com o qual nunca
contactaria directamente.15

Os media não são, no entanto, meros arautos dos factos; através de investigação
autónoma trazem a lume factos que não chegariam ao conhecimento público ou dos
tribunais e, pela sua presença e perseverança, evitam que determinados casos caiam
no esquecimento, servindo de voz colectiva, assumindo-se como verdadeiro poder e
constituindo um precioso instrumento na relação entre o judiciário e a comunidade e
no escrutínio da actividade judiciária.

Este papel de mediador, de intérprete e filtro dos factos, aumenta a responsabilidade


social dos media, uma vez que uma proximidade sem critério, uma constante e

13
GIDDENS, Anthony, Modernidade e Identidade Pessoal, Celta, Oeiras, 1997, pp. 21 e 22. Este
autor alerta, no entanto, para o perigo de esta intromissão poder conduzir a que a realidade
pareça ter menos existência concreta que a sua representação nos meios de comunicação.
14
Doravante, sempre identificada pela sigla CRP.
15
Esta importância é realçada por Anthony GIDDENS ao referir a construção, pelos meios de
comunicação, de audiências directas permitindo o acesso do indivíduo a cenários com os quais
poderá nunca contactar directamente, embora alerte para o perigo de esta intromissão ocasionar
que a realidade pareça ter menos existência concreta que a sua representação nos meios de
comunicação. Modernidade e Identidade Pessoal, pp. 76 e 24, respectivamente.
224 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

excessiva exposição e aproveitamento jornalístico dos “casos judiciários”, pode


representar perigos para os envolvidos e para a justiça. Assim sendo, deve a
divulgação jornalística revestir-se de um particular cuidado no modo como são
veiculadas as notícias, uma vez que através delas podem condicionar as
representações sociais do crime, criando “uma imagem hipertrofiada da realidade
criminal, causadora de medos infundados e de sentimentos de insegurança
excessivos”,16 bem como lesar irremediavelmente direitos como a honra e
reputação, a segurança, o bem-estar, a presunção de inocência, a reserva da vida
privada ou o direito à ressocialização.

A relação entre cidadão, tribunal e comunicação social poderá, assim, resumir-se na


seguinte afirmação de Mário Ferreira Monte: “a comunicação social tem o direito de
informar o cidadão sobre o que se passa no tribunal, o cidadão tem o direito de ser
informado pela comunicação social e o tribunal não pode impedir a comunicação
social de informar o cidadão, nem este de se informar por motu proprio”.17

I.4. Justiça e Comunicação Social – A Tensão

A relação entre a justiça e a comunicação social não tem sido fácil, o que se deve
em grande parte às específicas características e finalidades de cada um destes meios.
Entre a linguagem hermética utilizada no foro e o contraponto de uma linguagem
mais acessível empregue pelos meios de comunicação, a população tenderá a sentir-
se mais próxima desta segunda, porque mais compreensível.

Por outro lado, a justiça pretende a conciliação e a pacificação social, enquanto a


notícia vive do confronto e da indignação.18 Outra dificuldade de compatibilização
reside na circunstância de, na sua investigação, ao jornalismo não interessarem
apenas os factos constitutivos de crimes, mas também os comportamentos
socialmente recrimináveis, frequentemente assimilando uns aos outros. A
investigação judicial exige provas concretas. O jornalismo basta-se com a
probabilidade indiciária de factos de que tenha conhecimento.

16
GERSÃO, Eliana, nas conclusões do estudo elaborado pelo Centro de Estudos Judiciários
publicado sob o nome de Comunicação Social e Representações do Crime. Não obstante, a
autora entende que do estudo não se concluiu que os cidadãos, mesmo os de formação cultural
mais débil possam ser considerados “meros receptores passivos das mensagens da comunicação
social”, p. VII.
17
MONTE, Mário Ferreira, “O segredo de Justiça na Revisão do Código de Processo Penal:
Principais Repercussões na Comunicação Social”, Scientia Jurídica, n.º 280/282, Julho -
Dezembro de 1999, pp. 417-426.
18
GARAPON, Antoine, Bem Julgar, Ensaio sobre o Ritual Judiciário, Instituto Piaget, Lisboa,
1999, p. 278.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 225

Do mesmo modo, a concepção de tempo. A justiça exige serenidade, ponderação,


ritualidade garantística, tempo para apreciação dos factos, para para a recolha
cuidadosa da prova e sua apreciação, para a decisão. A notícia, por sua vez, exige
urgência e quase simultaneidade entre o acontecimento e a sua difusão, correndo,
nesta avidez de ser o primeiro a noticiar o evento, o risco de proceder a uma pouco
criteriosa recolha de informação e uma quase nula confirmação dessa informação.19

A notícia caracteriza-se por uma volatilidade que a sentença não pode aceitar.
Ciente de que na sua decisão estão envolvidos os bens mais preciosos do cidadão, a
justiça não pode prescindir do exercício do contraditório, de modo a aproximar-se
da verdade material. Em contraponto, aos media satisfaz a verdade formal, podendo
sustentar a notícia meros ruídos, conversas relatadas por interpostas pessoas, boatos
bem veiculados por fontes cuja idoneidade não se encontra muitas vezes assegurada
e cujos interesses nem sempre são muito claros. A possibilidade de o jornalista estar
a ser utilizado por fontes interessadas na manipulação da notícia constitui, de resto,
a única situação em que o Código Deontológico admite a revelação de fontes que
tenham solicitado o anonimato [ponto 6].

O acompanhamento jornalístico dos processos que, seja pelas pessoas envolvidas,


seja por se tratar de factos que causam maior indignação, se tornem mais mediáticos,
conduz frequentemente a uma constante, excessiva e, por vezes, pouco criteriosa
exposição das pessoas envolvidas, com sucessão de reportagens e entrevistas a
participantes processuais, fazendo do crime um espectáculo em episódios, numa
espécie de “circo mediático-judiciário”,20 que poderá conduzir à banalização da
realidade criminal, ao aumento da sensação de insegurança da comunidade e ao
afrouxamento da capacidade crítica do cidadão, à perda da noção de que para lá da
folha de papel do jornal ou do écran de televisão se encontram pessoas e não
personagens de ficção.
19
Isso mesmo afirmou José Manuel FERNANDES, no seu editorial de 2 de Junho de 2003 do
Jornal Público, de que era, à data, director, “Por definição, a imprensa reflecte o impulso
popular, e infantil, de querer tudo, já, imediatamente. Não só não tem paciência, como é
empurrada pelos mecanismos da concorrência desregrada a realizar permanentes corridas
contra o tempo, corridas onde se premeia mais aquele que “dá primeiro” uma determinada
informação do que aquele que a “dá melhor”. Continua, afirmando que, “Em muitas redacções
está fortemente arreigada a convicção de que “não se pode esconder nada”, que não divulgar
uma informação obtida de uma fonte anónima mas fiável é “censura” ou “auto-censura” e
raríssimos são os jornalistas que se mantêm fiéis ao princípio definido no “Washington Post”
durante a investigação do caso Watergate: é necessário que uma informação seja confirmada
por pelo menos três fontes independentes e sem relação entre elas para que possa ser publicada.
Infelizmente, muitos jornalistas preferem “disparar primeiro e perguntar depois”, sem olhar às
consequências.” [...] “devemos esperar – e exigir – que os jornalistas e os seus editores avaliem
ponderadamente se devem ou não divulgar uma informação e pesar se o interesse público dessa
notícia é suficiente para justificar os danos que ela pode provocar. Isto não é censura: é
responsabilidade”.
20
MINC, Alain, Em Nome da Lei.
226 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

Parte II – Justiça e Comunicação Social – Conflito entre Interesses e


Necessidade de Harminização

“A racionalidade ética é, pois, incompatível com


valores e limites definidos rigorosamente a priori;
é incompatível com uma lógica de consenso disci-
plinadora das diferenças e singularidades, assim
como é incompatível com a ausência de critérios
orientadores de intercompreensão e convivência
entre os homens [...]. Como instituir direitos sem
atropelar outros direitos? Estamos perigosamente
21
no reino das aporias, dos paradoxos”.

II.1. Liberdade de Expressão, de Informação e de Imprensa - Concretização


Conceptual

Sendo o homem um animal necessariamente gregário, a comunicação constitui uma


das mais básicas necessidades relacionais e a liberdade de expressão e informação a
mais lídima manifestação da liberdade individual, enquanto modo de manifestação
do pensamento. Com ela se relaciona, de igual modo, a liberdade de imprensa22 que,
segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, mais não será que uma qualificação da
liberdade de expressão e de informação. Através dela assegura-se que os meios de
comunicação social possam cumprir a sua função social de um modo livre e
pluralista23 o que implica, desde logo, a liberdade de expressão e de criação dos
jornalistas, a liberdade de investigação jornalística, o direito de acesso às fontes, o
direito de narração e de crónica, o sigilo profissional, entre outros. 24

21
MARCOS, Maria Lucília, Sujeito e Comunicação, Perspectiva Tensional da Alteridade, Cam-
po das Letras, Porto, 2001, p. 22.
22
A imprensa a que se refere o preceito constitucional, como se extrai da leitura integral do pre-
ceito, é um conceito amplo de imprensa, nele se incluindo a imprensa escrita, a rádio e a televi-
são. Pelo contrário, a Lei da Imprensa [Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro] adopta o sentido restrito,
referindo-se exclusivamente à imprensa escrita, sendo o regime da rádio e da televisão estabe-
lecidos, respectivamente, na Lei da Rádio [Lei 54/2010, de 24 de Dezembro] e na Lei da Tele-
visão [Lei n.º 8/2011, de 11 de Abril].
23
Lei da Televisão [art. 26.º, n.º1], Lei da Rádio [art. 29.º, n.º1]
24
Art. 38.º da CRP e art. 2.º da Lei da Imprensa.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 227

Nas palavras de Ortega Gutierrez,25 a Constituição Portuguesa é, no contexto ociden-


tal, a que maior número de normas dedica à liberdade de expressão e de informação
- nas suas três dimensões: direito de informar, direito de se informar e direito de ser
informado - e a única a elevar a liberdade de imprensa [art. 38.º] a preceito constitu-
cional, e a distingui-la da liberdade de expressão, de opinião e de informação [art.
37.º]. Estas liberdades vêm a encontrar concretização em vários instrumentos nor-
mativos, uns de carácter geral e outros de carácter específico, que regulam especial-
mente a actividade jornalísticas e dos meios de comunicação social.

A Constituição reconhece a liberdade de informação [art. 37.º, n.º1], enquanto


“direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela
imagem ou por qualquer outro meio”, proibindo impedimentos e discriminações ao
seu exercício, incluindo a censura. Estas proibições são enfatizadas pelo Estatuto dos
Jornalistas [art. 7º], pela Lei da Imprensa [art. 1.º], Lei da Rádio [art. 29.º] e pela Lei
da Televisão [art. 26.º], que contemplam a liberdade de criação dos jornalistas e
autonomia de programação e de informação dos operadores, consagrando-se
expressamente a proibição de a “Administração Pública ou qualquer órgão de
soberania, à excepção dos tribunais, impedir, condicionar ou impor a difusão de
quaisquer programas”. As infracções a estes direitos, quer porque impeçam o seu
exercício, quer porque lhes coloquem obstáculos, ficam submetidos aos princípios
gerais de direito criminal ou de ilícito de mera ordenação social [art. 37.º, n.º 3 da
CRP]. Os tribunais poderão impor limites a estes direitos, nos termos do art. 18.º, n.º
2 da CRP, de modo a salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos.
Nesse caso, haverá que proceder a uma “concordância prática” entre os direitos
colidentes – que não opere o total esvaziamento do conteúdo de nenhum deles,
segundo uma regra de adequação, de necessidade e de proporcionalidade.26 Nos
termos das leis que regulam actividade jornalística, tais restrições devem restringir-
se ao estritamente necessário, “de forma salvaguardar o rigor e a objectividade da
informação, a garantir os direitos ao bom-nome, à reserva da vida privada, à imagem

25
ORTEGA GUTIERREZ, David, Derecho a la Información Versus Derecho al Honor, Centro
de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 1999. Para uma perspectiva comparada, ver
pp. 23 a 45 para países europeus e pp. 149 a 162 para países da América Latina.
26
Para aprofundamento desta temática e da sua relação com o direito à honra, veja-se ORTEGA
GUTIERREZ, David, Derecho a la Informacion Versus al Honor; COSTA, José Francisco de
Faria, Direito Penal da Comunicação; SOUSA, Nuno e, Liberdade de imprensa, Almedina,
Coimbra, 1984; SARAZA JIMENA, Rafael, Libertad de Expression e Informacion Frente al
Honor, Intimidad y Propria Imagen, Aranzadi, Pamplona, 1995; e, sobretudo, ANDRADE,
Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, Coim-
bra, 1996. Sobre os limites dos direitos fundamentais, em geral, ANDRADE, Carlos Vieira de,
Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Almedina, Coimbra, 2012; CANOTILHO,
Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2013, e
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra,
2012.
228 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática”,27


para além de outros limites, v.g. no acesso às fontes, como, infra, se desenvolverá.

Também os instrumentos internacionais de Direitos Humanos que vigoram na ordem


interna admitem restrições, quando necessárias numa sociedade democrática, para a
segurança nacional, integridade nacional, segurança pública, defesa da ordem e
prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção de honra, reputa-
ção ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confiden-
ciais ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial [Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, no art.º 10.º, n.º 2 e art. 19.º do Pacto Internacio-
nal de Direitos Civis e Políticos], desde que tais restrições estejam expressamente
fixados na lei.28 De notar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem não
inscreve qualquer restrição passível de ser imposta à liberdade de opinião e expres-
são, não referindo, em nenhum dos seus preceitos, nem a liberdade de imprensa, nem
os meios de comunicação.

II.2. Princípio do Processo Aberto. O Acesso às Fontes e suas Restrições

Para que possa cumprir a sua função social e informar de um modo objectivo e rigo-
roso, a lei consagra o direito de acesso às fontes. Este direito compreende, quer o
direito de acesso a locais públicos (entrada e permanência nos tribunais e a assistên-
cia à prática de actos processuais), quer o direito de acesso a documentos (documen-
tos administrativos, nos termos da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos29
e acesso aos autos judiciais, nos termos dos artigos 86.º a 89.º do Código de Proces-
so Penal30 e que passarão a desenvolver-se).

O acesso às fontes na tripla vertente de acesso aos locais, assistência aos actos pro-
cessuais e de acesso aos autos encontra eco na lei processual, relacionando-se com
um dos princípios enformadores do processo, o princípio da publicidade. Este

27
Art. 3.º da Lei da Imprensa.
28
A decisão do TEDH mais paradigmática a este propósito é a que, em 1978, opôs o jornal Sun-
day Times ao Reino Unido, no caso que ficou conhecido como o caso da Talidomida.
http://www.iidh.ed.cr/comunidades/libertadexpresion/docs/le_europeo/tedhsundaytimes2.htm
29
Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos da Administração).
30
O presente trabalho cingir-se-á ao modo de acesso dos media a processos penais e às reservas
legais e deontológicas que com ele se relacionem. Não carecerá, por isso, de recorrer à Lei de
Acesso aos Documentos da Administração, porquanto este mesmo diploma determina [art. 6.º,
n.º2] a sujeição da matéria a segredo de justiça a legislação própria. Esta legislação é o Código
de Processo Penal. No entanto, é de todo o interesse o prescrito nos art. 1.º e art. 16.º do mesmo
diploma, que regula o acesso aos documentos administrativos independentemente da invocação
de qualquer motivo, e a possibilidade de reutilização dos documentos cuja autorização de aces-
so e reutilização tenha sido prestada, para fins diferentes do fim de serviço público para o qual
foram produzidos, o que pode constituir um precioso auxiliar da investigação jornalística.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 229

enquadra-se no direito a um processo aberto e se relaciona com vários direitos fun-


damentais, entre os quais com o asseguramento de «todas as garantias de defesa»
[art. 32.º da CRP], o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva [art.
20.º CRP], o direito à informação e o direito a um processo justo e equitativo.

Com o seu estabelecimento visa-se garantir ao arguido a possibilidade de uma defesa


tão ampla quanto possível pelo conhecimento atempado da prova produzida e da
acusação, permitir ao povo o acompanhamento da aplicação da justiça que em seu
nome é administrada [art. 202. CRP], garantindo maior protecção dos sujeitos pro-
cessuais através da controlabilidade da actuação do tribunal que a participação de
terceiros fomenta. É a este respeito ilustrativa a célebre afirmação proferida por
Mirabeau perante a Constituinte: “dêem-me um juiz corrupto, dêem-me um juiz
inapto, dêem-me um juiz meu inimigo, que eu aguento-o, desde que ele possa actuar
em público”. Por outro lado, o conhecimento da actuação do Tribunal e da funda-
mentação das sentenças31 confere à decisão um maior poder de convencimento,
possibilitando a confiança comunitária na validade da norma e o restabelecimento da
paz social.

A Constituição apenas consagra expressamente a publicidade das audiências [art.


206.º],32 que se encontra igualmente regulado no art, 321.º do CPP. No entanto, a
publicidade resulta implicitamente da estrutura acusatória do processo penal consti-
tucionalmente prescrita33 [art. 32.º, n.º5 CRP] e encontra-se pormenorizadamente
descrita no Código de Processo Penal [art. 86º e ss]. Na sua vertente subjectiva,
encontra ressonância no direito a um processo público estabelecido nalguns instru-
mentos de Direitos Humanos e na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais [art.
47.º].

Nos termos do n.º 2 do art. 86.º, a publicidade do processo implica o direito de


assistência pelo público em geral à realização de actos processuais [alínea a) e art.
87.º], o direito de crónica ou narração de actos processuais e de reprodução dos seus
termos pelos meios de comunicação social [alínea b) e art. 88.º] e o direito de con-
sulta ao auto, obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele
[alínea c) e artigos 89.º e 90.º]. Tendo como destinatários o «público em geral» e
«os meios de comunicação social», parece que a norma se dirige, sobretudo, à rela-
ção externa e, portanto, também aos jornalistas. Apenas a alínea c) parece dever ser
entendida na dupla vertente da publicidade interna e externa, a completar com as

31
ESTEVES, Maria Assunção, “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional Relativa ao Segredo
de Justiça”, O Processo Penal em Revisão, UAL, Lisboa, 1998, p. 123; SANTOS, Simas e
LEAL-HENRIQUES, Código de Processo Penal anotado, tomo I, Rei dos Livros, Lisboa,
1999, p. 452.
32
Art. 10.º da DUDH, PIDCP [art. 14.º], CEDH [art. 6.º].
33
Por todos, ver ARMENTA DEU, Teresa, Principio Acusatorio: Realidad y Utilización (lo que
es e lo que no), Separata da Revista de Derecho Procesal, n.º 2, Madrid, 1996.
230 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

regras do segredo [n.º 3 e 4 do art. 86.º e art. 89.º]. De todos estes, apenas o direito
de assistência e de acesso aos autos releva em sede de acesso às fontes e servirão, no
fundo, como direitos instrumentais face ao direito de narração ou de crónica.

A publicidade não é, no entanto, um princípio irrestringível, havendo no processo


momentos de opacidade, quer em virtude da determinação do segredo de justiça na
fase de inquérito, quer porque, independentemente do segredo de justiça, devam ser
preservados do conhecimento de terceiros certos elementos relativos à intimidade da
vida privada e familiar, entre outros.

O segredo de justiça constitui uma das excepções à publicidade do processo, tradu-


zindo-se na proibição que recai sobre qualquer pessoa de assistir à prática de actos a
que não tenha o direito ou dever de assistir, ou de deles tomar conhecimento [art.
86.º, n.º 8, a)], bem como a proibição de divulgar a ocorrência de acto processual ou
dos seus termos, mesmo que o conhecimento lhe tenha advindo de modo lícito e
independentemente do motivo que presidir a tal divulgação [alínea b) no mesmo
número e artigo] e prende-se com a necessidade de garantir a eficácia da investiga-
ção, a defesa dos interesses dos intervenientes e a tranquilidade do julgamento,34
compreendendo-se que tenham de manter-se ao abrigo do conhecimento dos sujeitos
processuais e terceiros alguns actos como os mandados de buscas, de revistas ou as
escutas telefónicas, sob pena de perturbação da produção da prova, e que fiquem
ocultos de terceiros alguns elementos que possam lesar direitos fundamentais dos
intervenientes.

O facto de a lei confinar o segredo de Justiça à fase de inquérito e apenas quando


requerido (a revisão de 2007 do CPP eliminou a obrigatoriedade de segredo nesta
fase), não significa que fora do seu âmbito todos os actos sejam públicos. De facto,
assim não é, podendo ser impostas restrições que a lei e a CRP contemplam.

Encontram-se vinculados ao segredo de justiça os sujeitos e participantes proces-


suais, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem tomado contacto
com o processo ou tiverem conhecido elementos a ele pertencentes.

34
Mais do que a imparcialidade das suas decisões, conforme Parecer da Procuradoria-Geral da
República n.º 121/80. A este propósito e para desenvolvimento ver, ainda, DIAS, Figueiredo,
Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, SILVA, Germano Marques da,
Curso de Processo Penal III, Verbo, Lisboa, 2000. Agostinho EIRAS acrescenta a necessidade
de repor a igualdade de forças como um quarto fundamento. Segundo este autor, o arguido “ao
praticar o crime, fê-lo de modo calculado, sub-repticiamente, colocando-se em situação de van-
tagem. Para repor a igualdade das forças em oposição, numa primeira fase, o Estado (tal como
o fez o arguido) actuará sob sigilo” este não é, no entanto, argumento que se mantenha válido
após a revisão de 2007, que aboliu a obrigatoriedade do segredo no inquérito, Segredo de Justi-
ça e Controlo de Dados Pessoais Informatizados, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 25.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 231

Um dos pontos cruciais que determinam a tensão entre meios de comunicação social
e meio judiciário reside precisamente na circunstância de a função desempenhada
pelos meios de comunicação social exigir o acesso a fontes de informação35 e de
esse acesso lhes poder ser negado, quer quando o inquérito se encontre em segredo
de justiça, quer fora dessa fase, para preservação de outros direitos e, nalguns casos,
se encontrar condicionado.36 Diana Andringa, reputada jornalista, a propósito da
incompreensão mútua entre justiça e meios de comunicação social no que respeita
aos segredos afirmou, na sua intervenção no Seminário Justiça e Comunicação
Social que decorreu em 1999, que “nós, jornalistas, achamos normalmente que, se o
segredo de justiça existe, é, como todos os segredos, para que o violemos. Os magis-
trados têm, naturalmente, opinião contrária”.37

II.2.1. Direito de Acesso a Locais Públicos e de Assistência a Actos Processuais38

Processualmente, o direito de assistência a actos processuais constitui uma emanação


do princípio da publicidade, que se dirige ao público em geral – logo, abrangendo os
jornalistas – e concretiza-se no direito de presenciar os actos, mas não de neles inter-
vir. Para os jornalistas, este direito articula-se com o direito de acesso às fontes e
com o direito de acesso e de permanência nos locais públicos, de que abaixo se cui-
dará.

O direito de acesso às fontes encontra-se consagrado na Constituição, bem como no


Estatuto dos Jornalistas e na Lei da Imprensa.39 Nos termos conjugados destes diplo-
mas, constitui uma das implicações da liberdade de imprensa e um dos direitos fun-
damentais dos jornalistas. Em virtude da necessidade deste acesso para o cumpri-
mento dos deveres de rigor e exactidão da notícia e da interpretação honesta e
comprovada dos factos, impostas pelo Código Deontológico dos Jornalistas, o mes-
mo instrumento impõe aos jornalistas o combate contra as restrições ao acesso às
fontes de informação, bem como a qualquer outra forma de limitação da liberdade de
expressão e direito de informar desde que, obviamente, ilegítimas, porque também o
direito de acesso às fontes pode ser legalmente restringido.

35
Sobre a delimitação normativo-material do conceito de fonte de informação, CANOTILHO,
Gomes, Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação ao art. 38.º, p. 23.
36
Nos termos do Código de Processo Penal e do Estatuto dos Jornalistas [art. 8.º, n.º 3]; Jorge
Miranda identifica o segredo de justiça como dever incindível da liberdade de informação, pre-
fácio do livro Direito da Comunicação Social II, de Brito CORREIA, Almedina, Coimbra,
2000, p. 11.
37
In Actas do Seminário Justiça e Comunicação Social, Ministério da Justiça, Lisboa, 1999.
38
Sempre que se omita a fonte, as normas referidas a propósito da publicidade, segredo, suas
implicações e reservas, respeitam aos artigos 86.º a 90.º do Código de Processo Penal.
39
Art. 38.º, n.º2 da CRP; art. 6.º, alínea b) do Estatuto dos Jornalistas; art. 22.º da Lei da Impren-
sa.
232 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

A proibição de acesso pode ser imposta ope legis ou ope judicis [art. 87.º].

Desde logo, na fase de inquérito, pode ser determinado o segredo de justiça pelo
Ministério Público, com a validação do juiz de instrução criminal, quando aquele
entenda que da publicidade possa advir prejuízo para a investigação. Do mesmo
modo, pode ser imposto o segredo por determinação judicial, a requerimento do
arguido, do assistente ou do ofendido, com fundamento no prejuízo para os seus
direitos.

Para além da fase de inquérito pode o juiz, oficiosamente ou a requerimento do


Ministério Público, do arguido ou do assistentes, decidir restringir a livre assistência
do público, ou que o acto ocorra total ou parcialmente com exclusão da publicidade
[art. 88.º, n.º 1], quando seja de “presumir que a publicidade causaria grave dano à
dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do acto”, ou para pro-
tecção das testemunhas40 e ofendidos,41 evitando a exposição pública e a dupla viti-
mização, bem como a estigmação de jovens agentes. Por determinação legal, os
actos relativos a processos por crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e
autodeterminação sexual decorrerão, por regra, com exclusão da publicidade.

Do mesmo modo, decorrerão com exclusão da publicidade as diligências que tenham


lugar fora do tribunal, como por exemplo as perícias – mesmo para o arguido e assis-
tente se o acto for susceptível de ofender o pudor – autópsias, inspecções e as
reconstituições, ainda que ocorram em lugares públicos [art. 150.º, n.º3].

A decisão que determine a exclusão ou restrição da publicidade, bem como a deter-


minação das pessoas admitidas a presenciar o acto, deve ser fundamentada e constar
da acta de audiência de julgamento, ou do auto dos demais actos processuais, e as
restrições devem manter-se apenas durante o tempo imprescindível para obstar aos
referidos danos. Ou seja, por serem desvios à regra da publicidade e, nesse sentido,
excepcionais, devem ser revogadas logo que cessem os motivos que lhes deram
causa.

40
Rec (2003)13, do Conselho da Europa, que recomenda que a identidade das testemunhas não
seja divulgada senão com o seu consentimento, ou quando o testemunho tenha sido prestado em
público, excepto quando coloque em risco a sua segurança, casos em que nunca deve ser tor -
nada pública. Quando assim for, a testemunha pode ser submetida ao programa de protecção
(Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, alterada pelas Leis n.º 29/2008, de 4 de Julho e n.º 42/2010, de 3
de Setembro, regulada pelo Decreto-Lei n.º 190/2003, de 3 de Setembro).
41
Rec (85)11, do Conselho da Europa, recomenda a protecção das vítimas contra a publicidade
que possa afectar a sua privacidade ou dignidade.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 233

II.2.1.1. A audiência de julgamento

De todos os actos do processo, a audiência de julgamento é o que tem maior vocação


pública e que cumpre, de modo mais amplo, as finalidades da publicidade, por ser o
que permite ao público conhecer a acusação (peça que, juntamente com o despacho
de pronúncia, quando exista, determina o objecto do processo e, portanto, do thema
probandum e do thema decidendum), e, através da leitura da sentença, aferir da jus-
tiça do caso concreto. Este convencimento será possível porque, na audiência, se
produzirá ou examinará toda a prova que será sustentará a decisão do tribunal de
absolver ou condenar. Neste último caso, fundamentará, de igual modo, a decisão da
escolha da pena a aplicar e da sua medida. Em virtude da sua relevância, a lei pro-
cessual penal comina com a nulidade e a restrição ou exclusão da publicidade fora
dos quadros legalmente admitidos.

Não obstante a consagração expressa da publicidade da audiência na Constituição e


em instrumentos internacionais de Direitos Humanos [art. 10.º da DUDH, art. 6.º da
CEDH, art. 14.º do PIDCP], este acto também pode ser objecto de limitações. À
excepção da DUDH que optou por não indicar quaisquer circunstâncias que possam
conduzir à decisão de restringir a publicidade, os demais instrumentos contemplam
essa possibilidade. Como fundamentos, estabelecem a salvaguarda da dignidade das
pessoas e da moral pública ou a garantia do normal funcionamento da audiência [art.
206.º CRP], “a bem da moralidade, da ordem ou da segurança nacional numa socie-
dade democrática”. Podem ainda fundamentar a decisão de restringir o acesso à sala
de audiências à imprensa ou ao público, durante a totalidade ou parte do processo, os
interesses dos menores, a protecção da vida privada das partes no processo, ou, na
medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, os interesses da justiça» [art.
10.º da CEDH e art. 14.º do PIDCP].

A lei processual penal estabelece regras de conduta dos sujeitos e participantes pro-
cessuais [art. 325.º e 326.º]. Do mesmo modo, determina os deveres de conduta das
pessoas que assistam à audiência [art. 324.º]: “devem comportar-se de modo a não
prejudicar a ordem e a regularidade dos trabalhos, a independência de critério e a
liberdade de acção dos participantes processuais e a respeitar a dignidade do lugar”,
cabendo-lhes, em especial, nomeadamente, acatar as determinações quanto à disci-
plina, manter-se em silêncio, escusando-se de manifestar sentimentos ou opiniões a
propósito do decurso da audiência.

A perturbação pode advir de ânimos exaltados do público ou de um número de


pessoas interessadas em assistir superior aos lugares disponíveis. Ao juiz presidente
cabe a direcção e disciplina da audiência pelo que, perante aquele cenário, deverá
“tomar todas as medidas preventivas, disciplinares e coactivas legalmente admissí-
veis, que se mostrem necessárias ou adequadas a fazer cessar os actos de perturba-
ção da audiência e a garantir a segurança de todos os participantes processuais”
234 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

[art.324.º]. Fora dos casos de graves situações locais idóneas a perturbar o desen-
volvimento do processo e que possam conduzir à deslocação do tribunal para outra
comarca [art. 37.º CPP], um dos modos de o tribunal poder dirimir a perturbação
processual que possa advir, é o de restringir ou excluir o público, mandando evacuar
a sala de audiências.

O Estatuto dos Jornalistas consagra o direito de acesso aos locais abertos ao público
e de neles permanecer desde que para fins de cobertura informativa [art.s 9.º e 10º],
sem outras limitações além das decorrentes da lei, bem como o direito de, em condi-
ções de igualdade, aceder aos locais que não sendo acessíveis ao público sejam aber-
tos à comunicação social. Nos princípios 12 e 13 da Rec (2003)13, Relativa à Infor-
mação Prestada pela Comunicação Social sobre os Processos Criminais,42 o Comité
de Ministros do Conselho da Europa, recomenda que os jornalistas sejam admitidos
nas audiências públicas, sem discriminação nem necessidade de prévia acreditação,
não devendo ser excluída a sua presença senão nos casos em que os demais cidadãos
o sejam. Complementarmente, recomenda que, excepto quando seja impraticável, os
Estados providenciem na sala de julgamentos número suficiente de lugares reserva-
dos aos jornalistas, sem que tal conduza à exclusão do público por falta de lugares.

Subjectivamente, o despacho que proibir a assistência aos actos deve dirigir-se a


todos quantos não tenham o dever ou o direito de a ele assistir,43 não se dirigindo a
pessoas determinadas.44 Porém, ainda que excluída a publicidade, o juiz pode autori-
zar a assistência de certas pessoas na sala, por razões atendíveis, nomeadamente,
profissionais e científicas,45 desde que o juiz o admita por despacho.

Serão as finalidades profissionais de cobertura jornalística prosseguidas pelos jorna-


listas passíveis de consubstanciar “razões atendíveis” neste contexto, permitindo o
juiz a sua manutenção na sala, quando a tutela de direitos fundamentais de terceiros
possam ser prejudicados pela divulgação dos elementos do processo? Faria sentido
permitir a presença dos jornalistas na sala, mas impor-lhes uma proibição de divul-
gação, quando o dever de ofício de informar exige a divulgação dos factos? Poder-
se-ia considerar permitir a permanência dos jornalistas na sala, - por exemplo, possi-

42
Disponível em https://wcd.coe.int/ViewDoc.jsp?id=51365.
43
Restringindo a lei a assistência e divulgação de actos, há que definir o que entende essa mesma
lei por acto processual. O conceito de acto processual adoptado pelo Código de Processo Penal
é um conceito lato, como se depreende do art. 85.º, considerando-se, como tal, não apenas os
dirigidos ou presididos por autoridades judiciárias, como os dirigidos ou presididos pelas auto-
ridades de polícia criminal ou por funcionários da justiça. Quanto às diversas classificações dos
actos processuais, por todos, SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal II, Ver-
bo, Lisboa, 2011, p.14, e FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Curso de Processo Penal I, Danú-
bio, Lisboa, 1981, pp. 24 e seguintes.
44
Excepto no caso de pessoas que, pelo seu comportamento, devam ser afastadas da sala.
45
Art. 87.º, n.º4 e 321.º, nº2 do CPP.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 235

bilitar a tomada de notas para uma publicação futura - mas impedi-los de narrar os
actos até determinado momento?

II.2.1.2. Direito preferencial de assistência dos jornalistas

Atendendo a que o direito de acesso às fontes se encontra estabelecido constitucio-


nalmente como um direito fundamental formal, a decisão judicial deve ponderar se a
restrição englobará também os jornalistas, nos casos em que esteja em causa apenas
a possibilidade de o número excessivo de assistentes, ou que a carga emocional do
público possa perturbar o normal decurso do acto, e não na necessidade de salva-
guardar outros direitos constitucionalmente protegidos.

Alguma doutrina tem entendido que o direito de informação encontra repercussão


no direito preferencial de tratamento que deve ser dado aos jornalistas nestas cir-
cunstâncias, o preferred right,46 justificando essa preferência pela função de garan-
tia desempenhada pela publicidade da audiência e pela função de mediador encar-
nada pelos meios de comunicação social. Aplaude-se esta solução,47 perfilhando-se
o entendimento que, havendo elevado número de pessoas para assistir a uma audiên-
cia entre os quais se encontrem jornalistas e pretendendo o tribunal excluir a publi-
cidade com fundamento na exiguidade do espaço, poderá o tribunal preferir a pre-
sença dos jornalistas relativamente a outros cidadãos, como meio de possibilitar a
mediação entre tribunal e comunidade, sem que tal decisão viole o princípio da
igualdade.

Sobre esta situação foi a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) 48
chamada a pronunciar-se, a propósito de um caso concreto49. No dia 10 de Janeiro
de 2002 decorria, no Tribunal Criminal de Lisboa, determinada audiência de julga-

46
Sentença do TEDH 26 Abril 1979 – caso Sunday Times (preferred position da liberdade de
expressão e de informação) e Acórdão TC Espanha de 1-6-82 a propósito do caso Diário 16;
COSTA, Artur Rodrigues da, “Publicidade do Julgamento Penal e Direito de Comunicar”,
Revista do Ministério Público, ano 15º, Janeiro-Março 1994, p. 58.
47
Solução interessante foi a encontrada no caso do julgamento do caso Casa Pia, em que o Tribu-
nal autorizou a presença de jornalistas acreditados, forçando a concertação entre os próprios
órgãos de comunicação social, e de um determinado número de populares, por ordem de priori-
dade na chegada ao tribunal. Num momento ulterior, no entanto, foi impedido o acesso ao
público, incluindo jornalistas, para protecção das vítimas dos abusos sexuais, menores, sendo
lido, no fim de cada sessão, um comunicado que se manteria arquivado no processo, para con-
sulta. Foi, igualmente, atribuída uma sala aos jornalistas.
48
Designação da entidade que antecedeu a ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação.
49
Deliberação da AACS aprovada em reunião plenária de 16 de Janeiro de 2002, relativa a queixa
apresentada por 50 jornalistas contra decisão de juíza do Tribunal Criminal de Lisboa de reali-
zar audiência de julgamento à porta fechada, deliberação disponível em www.aacs.pt
/bd/Deliberacoes/20020116a.htm.
236 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

mento. A Meritíssima Juíza Presidente do Colectivo considerou existir risco de


perturbação da audiência devido à sobrelotação da sala decidindo, nessa conformi-
dade, que a audiência decorreria à porta fechada, pelo que ordenou a evacuação da
sala e não consentiu na permanência dos jornalistas.

A AACS começa por recordar a recente elaboração legislativa do Conselho da


Europa com vista à elaboração de uma Recomendação50 e de uma Declaração a
respeito das informações relativas aos procedimentos criminais veiculadas através
dos meios de comunicação social e do consenso existente quanto “à necessidade de
garantir aos jornalistas a possibilidade “de relatar e fazer comentários sobre o fun-
cionamento do sistema judicial penal”, com a expressa obrigação, para as autorida-
des judiciárias, de fornecerem “regularmente” informações verdadeiras sobre os
processos penais e de assegurarem que os jornalistas sejam admitidos “sem discri-
minações e sem exigência de acreditação prévia aos actos públicos de julgamento”.

Para que tal seja possível e se necessário, acrescenta, deve ser reservado, “nas salas
de audiência, um número de lugares suficiente” para o efeito, sob pena de se violar
o direito dos cidadãos a serem informados com rigor, posto o que deliberou mani-
festar a sua discordância pela desproporcionalidade entre os valores que pretendeu
acautelar a decisão da Meritíssima Juíza e os direitos violados pela mesma decisão.
Na mesma deliberação, instou os juízes do Tribunal Criminal e o Ministério da
Justiça a providenciarem as condições logísticas necessárias para que os jornalistas
possam exercer o seu direito de informar.

Em declaração de voto, Sebastião Lima Rego enfatizou a necessidade de os tribu-


nais providenciarem “no sentido de que julgamentos à partida excepcionalmente
interessantes do ponto de vista mediático se realizem em condições de proporcionar
excepcionais facilidades aos jornalistas”.

De notar que as condutas dolosas de quem atente contra o direito de entrada ou per-
manência dos jornalistas em locais públicos, para fins de cobertura jornalística, cons-
titui crime punido com pena de prisão, ou de multa, nos termos do art. 19.º do Esta-
tuto dos Jornalistas. E que o Código Deontológico impõe, aos jornalistas, a denúncia
de quaisquer tentativas de condicionar a liberdade de informação.

II.2.1.3 A possibilidade de tomada de som ou imagem e de sua divulgação

O direito de assistência aos actos não confere aos jornalistas a possibilidade de utili-
zar todo e qualquer meio para a sua documentação. Não significa, desde logo, que
possam livremente captar som ou imagem.

50
Identificada, supra.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 237

Em atenção ao importante papel desempenhado pelos meios de comunicação social,


deve a lei dar-lhes a maior latitude de actuação possível,51 sem que com isto se pre-
tenda contemplar a admissibilidade de todo e qualquer meio técnico de reportagem.

A legislação portuguesa mostra-se, neste aspecto, mais restritiva que a Rec (2003)13
– que no seu art. 14.º apenas estabelece como pressuposto para a gravação que a lei
ou as autoridades judiciais o autorizem, ressalvando que a autorização não deverá ser
concedida quando represente um sério risco de indevida pressão sobre as vítimas,
testemunhas, sujeitos processuais, júri ou juízes – condicionando a possibilidade de
captação de som ou imagem ao concurso de autorização prestada pela entidade que
presidir ao acto e da não oposição da pessoa a que respeitem as gravações [art. 88.º,
n.º2, alínea b)].

Estas exigências impostas à actuação dos meios de comunicação podem ficar a


dever-se a uma plúrima ordem de razões, que se prendem com a dignidade das pes-
soas envolvidas, o direito de defesa, o direito à palavra e à imagem, a preservação da
ordem dos trabalhos e as finalidades e natureza do objecto dos processos. A presença
dos órgãos de comunicação na sala de audiência pode influenciar a actuação dos
intervenientes, intimidando as testemunhas, que poderão sentir-se pressionadas, com
prejuízo para a tranquilidade do depoimento e para a verdade processual, perturbar
os ofendidos, que se sentirão invadidos na sua intimidade, privacidade ou dor e con-
dicionar os arguidos, pela exposição a que são submetidos.

Algumas das razões que permitem a exclusão da assistência a um determinado acto,


podem também determinar a proibição de reprodução ou o registo de imagem ou
tomada de som. Um jornalista de investigação pode ser autorizado a permanecer na
sala onde decorre a audiência (por razões académicas ou para tomar notas do desen-
rolar do acto de modo a fundamentar a sua peça noticiosa), mas não a registar qual-
quer imagem ou som. Ou pode ser autorizado a esse registo para preparação de um
artigo, mas não ser autorizada a sua reprodução. Em todo o caso, entende-se não
poder ser permitida, por exemplo, a captação e divulgação de imagens de menores
vítimas ou agentes de crimes, pelas consequências que a publicidade pode causar no
desenvolvimento da sua personalidade, na dupla vitimização, na estigmatização ou
na sua ressocialização, consoante os casos.

O último requisito, a não oposição da pessoa visada, aditado pela revisão efectuada
pela Lei 59/98, veio fazer prevalecer os interesses individuais – direito à imagem e
direito à palavra - não apenas do arguido mas de qualquer interveniente processual
sobre o direito de informação, o qual se poderá alcançar por outros meios que não

51
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, p. 156.
238 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

exponham tão directamente aquelas pessoas, retirando ao arbítrio do juiz a decisão


sobre a exposição da imagem ou da palavra sem consentimento do visado.

Mas não são apenas interesses individuais que estão em causa, uma vez que a ver-
dade material depende em boa medida do modo sereno como decorra a audiência. A
presença dos meios de comunicação na sala, com câmaras, microfones, luzes e fla-
shes, pode condicionar de maneira irreversível os depoimentos dos vários interve-
nientes que poderão sentir-se pouco à-vontade para falar sobre os factos sabendo que
estão a ser gravados ou filmados.52

A captação indevida de imagem ou som e a sua reprodução encontram-se tipificadas


no Código Penal no art. 192.º como crime contra a devassa da vida privada.

II.2.2. O Acessos aos Autos, a Reprodução de Peças Processuais e suas Restri-


ções

O direito de acesso aos autos concretiza o princípio da publicidade processual em


termos gerais e o princípio de acesso às fontes, em particular. Nos termos da lei
processual [art. 86.º, n.º 2, alínea c)] consubstancia-se no direito de consulta de auto,
de obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele. Sendo exerci-
tável com diferente amplitude consoante se reporte à publicidade externa ou publici-
dade interna, oferece um regime mais rigoroso no que se reporta ao acesso por ter-
ceiros, encontrando-se regulado no art. 89.º no que respeita aos sujeitos processuais,
e no art. 90.º, quanto a terceiros, nos quais se incluem os jornalistas quando não
sejam arguidos ou assistentes.

A primeira restrição ao acesso relaciona-se com a imposição do segredo de justiça na


fase de inquérito [86.º, n.º 8, alínea a) in fine], que proíbe a tomada de conhecimento
do conteúdo de acto processual a que não se tenha o direito ou o dever de assistir, se
bem que, quando necessidades de investigação o imponham, possam ser dados a
conhecer a certas pessoas elementos do processo, quando tal se manifestar conve-
niente ao esclarecimento da verdade ou indispensável ao exercício de direitos pelos
interessados.

A lei não identifica quem sejam essas “certas pessoas” a quem pode dar-se conheci-
mento do conteúdo de actos mas, atendendo à finalidade, poderão perspectivar-se

52
Também Teresa Beleza se pronunciou neste sentido aquando dos trabalhos de revisão com o
Código de Processo Penal de 1998. A propósito dos inconvenientes da presença dos meios de
comunicação, CHIAVARRIO, Mario, “O Impacto das Novas Tecnologias: os Direitos do Indi-
víduo e o Interesse Social no Processo Penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7,
n.º 3, 1997.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 239

participantes processuais (seja exemplo a acareação, em que sejam reproduzidas a


sujeitos processuais ou participantes declarações que não as suas), ou terceiros (v.g.
peritos ou outros técnicos que auxiliem o Ministério Público na sua actividade de
investigação) [art. 86.º, n.º 9 e 146.º, n.º 4].

Em qualquer caso, a autorização possibilita o conhecimento, mas não a divulgação,


uma vez que aqueles a quem seja dado tal conhecimento se mantêm adstritos ao
segredo de justiça que os impede de divulgação o conhecimento que deste modo
adquiram. Assim, deve entender-se que tal faculdade não abrange os jornalistas, o
mesmo não se podendo dizer a propósito de uma outra abertura do processo, ainda
que em segredo e que se prende com a possibilidade de serem prestados esclareci-
mentos públicos pela autoridade judiciária, quando necessários ao restabelecimento
da verdade e desde que tal não prejudique a investigação. Neste caso, os esclareci-
mentos poderão ser dirigidos à comunicação social. Pense-se, por exemplo, na
necessidade de minorar os efeitos perniciosos que notícias infundadas possam ter na
honra e reputação dos visados - sejam participantes processuais ou não (por exem-
plo, para informar se determinada pessoa é, ou não, arguido de um processo) - na
segurança ou na tranquilidade pública.

Não sendo declarado o segredo de justiça, quem queira consultar os autos, obter
cópia, extracto ou certidão do mesmo ou de parte dele, pode fazê-lo, contanto que o
requeira, alegue e prove a existência de interesse legítimo53 nessa consulta (conceito
que a lei não define, cabendo à jurisprudência a sua determinação no caso concreto),
e seja para tal autorizado pela autoridade judiciária competente. Desta norma se
extrai a regra de que o processo não passa a ser livremente acessível pelo público
quando findo o segredo, ficando a publicidade condicionada à autorização da com-
petente entidade judiciária. É a qualidade do interesse que importa, e não a qualidade
do sujeito requerente, pelo que esta regra se aplica a todos, podendo o jornalista
alegar, como interesse legítimo, a necessidade de acesso para cumprir os deveres
profissionais e os direito à informação da comunidade.

Da conjugação do art. 90.º, n.º 2, com o art. 88.º, n.º 2, alínea a), in fine, resulta que
autorização de consulta e autorização de revelação do acto são distintas e indepen-
dentes, pelo que os meios de comunicação social incorrerão num crime de desobe-
diência [art. 88.º, n.º2, a) CPP e art. 348.º do CP] se procederem à reprodução de
peças processuais ou de documentos incorporados no processo até à sentença de
primeira instância. A não ser que para tal tenham sido autorizados pela autoridade
judiciária competente.

53
Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Março de 2001, CJ, tomo II, p. 125.
240 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

II.3. Divulgação de Ocorrência de Actos Processuais ou seus Termos

Encontrando-se o processo em segredo de justiça, e ainda que uma pessoa tenha


tomado licitamente conhecimento da ocorrência do acto ou dos seus termos, por
exemplo, por nele ter participado ou por lhe ter sido comunicado nos termos do n.º 5
do art. 86.º, essa pessoa mantém-se vinculada à proibição de o divulgar, uma vez que
a assistência a acto, a tomada de conhecimento e divulgação não dependem umas
das outras. O que se proíbe é tanto a divulgação da ocorrência de acto, como a
divulgação dos seus termos.

Por divulgação proibida entende-se, neste contexto, a publicação, a transmissão, o


dar a conhecer ao público54 os actos ou documentos cobertos pelo segredo mas, de
igual modo, a revelação indevida, ainda que a particulares, independentemente do
direito ou dever de o divulgador assistir ao acto e mesmo que a pessoa a quem se
revele esteja obrigada ao sigilo profissional.

Uma vez que o que se encontra sujeito a segredo de justiça são os actos processuais,
e não os factos, os jornalistas não estão impedidos de empreender uma investigação
autónoma, paralela, que poderá desenvolver-se com menor constrangimento e maior
participação e abertura por parte dos inquiridos, o que pode representar uma vanta-
gem para a investigação jornalística, ou uma desvantagem, uma vez que a pressão do
tempo poderá fazer aceitar relatos que, embora possam ter sido testemunhados,
sejam relatados numa lógica de construção pouco, ou nada, compatível com a fac-
tualidade.

O facto de o receptor da informação já suspeitar do seu teor ou dela ter conhecimen-


to, não legitima a sua transmissão, sendo esta conduta passível de responsabilização
do emissor por violação do segredo de justiça.55

Recentemente, confrontados com as atrás referenciadas dificuldades de acesso ao


processo, alguns jornalistas requereram ao juiz a sua constituição de assistente,56 isto

54
Parecer n.º 23/94 de 26-02-95, da PGR, apud SANTOS, Simas e LEAL-HENRIQUES, Código
de Processo Penal Anotado, tomo I, p. 453.
55
Isso mesmo concluiu o Provedor de Justiça na Recomendação n.º 43/A/00 relativa ao processo
R-1291/99 (A5). Tendo os jornalistas solicitado informações à Directoria Geral da Polícia Jud i-
ciária, veio esta a confirmar a identidade de um dos arguidos do processo, acrescentando que
tinha sido remetido o processo ao Ministério Público com proposta de acusação. O Provedor de
Justiça entendeu que esta informação, nos moldes precisos em que foi facultada, viola o art.
86.º, n.º 8, alínea b), que proíbe a divulgação de ocorrência de teor de acto que se encontre em
segredo de justiça e remeteu para a leitura do Parecer n.º 121/80, no qual se refere que a presta-
ção de esclarecimentos não deve, em caso algum, permitir a identificação das pessoas envolvi-
das no processo.
56
Art. 68.º e ss do CPP.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 241

é, requereram a assunção da qualidade de sujeito processual que o CPP identifica


como auxiliar do Ministério Público.

Os jornalistas não eram ofendidos nos processos em causa, mas tal não consubstan-
cia qualquer ilegalidade, porquanto a lei processual permite que qualquer cidadão
requeira ao juiz a sua constituição como assistente nos casos estabelecidos no art.
68.º, n.º 1, alínea e), por se tratar de violação a interesses supra-individuais e de
interesse público. A questão está em que a assunção dessa qualidade permitiu um
acesso privilegiado ao processo, uma vez que as regras de acesso aos autos são mais
flexíveis quando aos sujeitos processuais, do que relativamente a terceiros.

A propósito de um caso concreto de um jornalista do Público, o Provedor dos leito-


res daquele jornal, José Queiróz, afirmou, a 15 de Agosto último, que “o jornalista e
a direcção assumiram o compromisso de que a posição de assistente será exclusiva-
mente usada para fins profissionais, sem qualquer intervenção no processo, e terão
de o respeitar integralmente, em nome da credibilidade do jornal». Destas palavras
parece resultar uma desvalorização da função processual que a assunção daquela
qualidade requer, porquanto não pode esquecer-se que “os assistentes têm a posição
de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua inter-
venção no processo”, competindo-lhes, entre outras actividades, oferecer ou requerer
provas, deduzir acusação independentemente da do Ministério Público, interpor
recurso [art.69.º]. Parece patente que, no caso em concreto, nenhuma destas finalida-
des eram pretendidas pelo assistente, pelo que a assunção daquela qualidade parece
ter tido como finalidade um acesso privilegiado ao processo.57

O Código Deontológico [ponto 4] determina que o jornalista utilize meios leais para
obtenção de informação, imagens ou documentos e [ponto 10] impõe que o jornalista
recuse funções, tarefas ou benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de
independência e a sua integridade profissional. Parece, in casu, e atentas aquelas
normas, que o estatuto de assistente não será compatível com a função de jornalista,
atendendo ao acesso privilegiado que os sujeitos processuais têm, face a que o não
seja.

A propósito desta situação se pronunciou, igualmente, o Conselho Deontológico do


Sindicato dos Jornalistas através de Comunicado emitido em 15 de Setembro de
2010, que se acompanha, e que “considera que o recurso ao estatuto de assistente em
processos judiciais por parte dos jornalistas questiona o exercício profissional e os
princípios éticos e deontológicos”, por um lado, porque cria uma desigualdade de

57
Por assumir uma posição de sujeito processual, a lei sanciona a inactividade no momento de
determinar o valor das custas judiciais a pagar, que poderão ser determinadas, a final, entre 1 e
10 UC [art. 519.º do CPP e 8.º do Regulamento das Custas Judiciais].
242 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

acesso às fontes entre jornalistas e, por outro, porque afecta o estatuto de indepen-
dência do jornalista, argumentos que se perfilham.

Não pode acompanhar-se, no entanto, o argumento esgrimido por aquele mesmo


Conselho, quando afirma que tal conduta viole o ponto 10 do Código Deontológico
que estipula que “o jornalista não deve noticiar assuntos em que tenha interesse” por
se entender que, nestes casos, o jornalista não se constitui assistente no processo por
ter “interesse no assunto” em questão mas por, através deste expediente, obter acesso
privilegiado à informação processual.

Ao nível da cobertura jornalística pelos media não pode deixar de referir-se a inter-
venção de auto-regulação, nomeadamente a declaração de Princípios e Acordo de
Órgãos de Comunicação Social, assinada em 23 de Novembro de 2003 por alguns
órgãos de comunicação social sob a iniciativa da extinta Alta Autoridade para a
Comunicação Social58 na qual os signatários expõem os princípios a que pretendem
submeter-se neste contexto, manifestando o seu entendimento de que deve ser-lhes
facultado acesso às informações possíveis por parte das autoridades judiciais e dos
serviços policiais, devendo ter-se em linha de conta as diferenças de cada órgão de
comunicação social, mas “com a indispensabilidade de uma ralação objectivamente
não selectiva e não discriminatória”.

II.4. Crónica ou Narração dos Actos Processuais e suas Restrições

“Toda a pretensão jurídica deve possuir a possibilidade


de ser publicada”

Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos

A assistência aos autos, a consulta e a obtenção de cópias por parte dos jornalistas
tem um fito: servir de base às peças noticiosas que venham a ser elaboradas, para
transmissão dos factos ao público, através da narração ou crónica. Uma vez que a
actividade dos meios de comunicação social potencia a divulgação e, por isso,

58
Declaração assinada pela Capital, Correio da Manhã, Diário de Coimbra, Expresso, Jornal de
Notícias, NTV, O Independente, O Primeiro de Janeiro, Público, Rádio Comercial, Rádio
Renascença, RDP, RTP, Semanário, SIC, SIC Notícias, Tal & Qual, TSF, TVI, 24 Horas e
Visão e parece ter tido resultados positivos, na opinião da AACS, assumida por Comunicado de
14 de Janeiro de 2004. http://www.erc.pt/documentos/legislacaosite/DeclaracaodePrincipiose
AcordodeOCSrelativosacoberturadeProcessosJudiciaispelosmedia.pdf
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 243

amplia a possibilidade de lesão de outros valores que mereçam tutela, o CPP reser-
vou, quanto à matéria, um artigo específico [o art. 88º].

Acompanhando a definição de Michel Polvani,59 direito de crónica significa “a nar-


ração objectiva dos factos divulgada por meio da imprensa diária ou periódica, da
transmissão radiofónica ou televisiva, ou de outros meios de comunicação de massa,
sem finalidade científica mas apenas de informação”, que cabe aos meios de comu-
nicação social, de modo a permitir-lhes cumprir o seu dever de informação, exr-
cendo os direitos que lhes são constitucionalmente reconhecidos da liberdade de
imprensa, de expressão e de informação.

Nos termos deste artigo, é permitida a narração circunstanciada do teor de actos que
não se encontrem em segredo de justiça - isto é, o direito de relatar ao público, por
meio da imprensa, os factos do quotidiano, seja qual for a forma que adopte, palavra,
fotografia ou ilustração - , mas não a reprodução de peças processuais ou documen-
tos incorporados em processo, até à sentença de 1.ª instância, salvo quando obtidos
mediante certidão autorizada [art. 88.º, n.º2, alínea a)]. Exceptua-se, no entanto, a
narração destes actos até à decisão de publicidade da audiência quando o juiz, ofi-
ciosamente ou a requerimento, tiver proibido essa narração com fundamento de que
a publicidade possa causar grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou
ao normal decurso do acto [art. 88.º, n.º3 e 87.º, n.º2].

Publicidade e liberdade de narração ou publicação não são realidades coincidentes.


Ser público o acto não significa, como se viu, que possa ser livremente filmado,
gravado ou que possa ser, sem autorização, reproduzido nos meios de comunicação
social. Por outro lado, a proibição de narração não impede que seja permitida a con-
sulta de auto e a obtenção de cópia ou certidão [art. 90.º, n.º2].

II.3.1 Reserva da vida privada

O direito de crónica ou narração implica que o conhecimento possa ser levado para
além do núcleo constituído pelas pessoas presentes no acto, pelo que se encontra
condicionado, desde logo, à possibilidade de ao acto assistir qualquer pessoa. Por
outro lado, mesmo que o processo não se encontre em segredo de justiça, não podem
ser acedidos, nem divulgados, os elementos relativos à reserva da vida privada que

59
Sobre o direito de crónica afirma Nuno e Sousa, que “o direito de crónica liga -se especialmente
com a actividade jornalística: direito de relatar ao público, por meio da imprensa, os factos do
quotidiano (escrita, fotografias, desenhos). O direito positivo pode limitar o direito de crónica
em várias direcções: verdade, reputação, segredo, bons costumes. O principal limite lógico é a
verdade» e deixa um importante alerta para o tema em apreço: “convém sempre distinguir a
narração da interpretação dos factos”, A liberdade de Imprensa, p. 260.
244 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

não constituam meios de prova [art.86.º, n.º 3], os quais devem ser devolvidos ou
destruídos.

A doutrina alemã desenvolveu uma teoria, entretanto aceite por outros foros incluin-
do o português, que permite distinguir, na vida de cada um, três esferas a convocar
diferentes graus de protecção. A esfera da intimidade, constituindo uma área impe-
netrável e de limites absolutos que nem os interesses superiores da comunidade
permitem ultrapassar, sendo inadmissível a exceptio veritatis como justificadora do
facto; a esfera da vida privada, de protecção mais relativa, permitindo-se a divulga-
ção em casos restritos mas em que “a devassa só será admissível na medida da rele-
vância ou significatividade sistémico-social do evento e na medida estritamente
necessária para a actualizar”;60 a esfera social, dos comportamentos praticados em
público, devendo ter-se em consideração a possibilidade de ocorrência de factos
privados em público, 61 isto é, não podendo considerar-se que em público não exista
reserva da vida privada.

A circunstância de os actos processuais serem praticados numa esfera social, ou de


serem parte de um processo, ou ainda de serem de conhecimento alargado, não per-
mite, sem mais, a sua completa e ilimitada divulgação, pela conjugação que deve
fazer-se com outros direitos, como o direito à imagem e o direito à palavra.

O direito de reserva da vida privada consiste no direito de preservação da vida pri-


vada e familiar relativamente a estranhos62 e o direito à não divulgação de informa-
ções sobre a vida de outrem quando essa pessoa o não consinta,63 o que justifica, por
exemplo, a nível processual, que determinados elementos se mantenham reservados
e que outros possam publicitar-se, tendo como critérios de decisão da possibilidade
de desocultação, entre outros, a notoriedade da pessoa, a relevância dos factos e o
seu interesse público, o cargo ou função desempenhado pelo visado, a exposição
pública dos factos que tenham permitido com a sua actuação anterior, ou a circuns-
tância de o facto em causa se ter desenrolado em público. No entanto, a exposição
deve sempre obedecer a critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade.

60
ANDRADE, Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 97.
61
PINTO, Paulo Mota, “Direito à Reserva da Intimidade Sobre a Vida Privada”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. 69, 1993, p. 532.
62
Por essa razão lhes chama Paulo Dá MESQUITA “direitos/deveres de opacidade”, “O Segredo
do Inquérito Penal – uma leitura jurídico-constitucional”, Direito e Justiça, vol. XVI, Tomo 2,
2000, p. 49.
63
CANOTILHO, Gomes, e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anotação ao art. 26.º, p. 181. Para um aprofundamento do
conteúdo do direito de reserva sobre a intimidade da vida privada, PINTO, Paulo Mota,
“Direito à Reserva da Intimidade Sobre a Vida Privada”, pp. 524 ss, COSTA JR., Paulo, O
direito de estar só - tutela penal da intimidade, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007, e
RIGAUX, François, “L’élaboration d’un “right of privacy” par la jurisprudence américaine”,
Révue Internationale de Droit Comparé, vol. 32, n.º 4, 1980, pp. 701-730.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 245

É ainda a protecção da reserva da vida privada que justifica a determinação legal de


destruição dos registos de escutas telefónicas que o juiz entenda não serem relevan-
tes para a prova, ficando todos os participantes nas operações obrigados ao segredo
relativamente aos elementos que, em virtude delas, tenham conhecido [art. 188.º, n.º
3, 2.ª parte] e a proibição de publicação das demais, excepto quando os intervenien-
tes nisso expressamente consintam [art. 88.º, n.º 4].

II.3.2. Direito à Honra

Questão que pode colocar-se é a de saber qual o valor que deve prevalecer, em
determinadas circunstâncias, em que à publicidade exigida pelos meios de comuni-
cação e pelo público, enquanto meio de efectivar o direito de informação e a transpa-
rência processual, os sujeitos processuais contraponham a necessidade de defesa dos
respectivos direitos individuais à honra e ao bom nome, a implicar a não divulgação
de elementos, ou factos. Apenas perante o caso concreto poderá determinar-se qual
dos dois deve prevalecer, depois de proceder a um juízo de ponderação dos interes-
ses em conflito, tentando delimitar o interesse sem considerar as questões subjecti-
vas e atendendo às circunstâncias sociais do caso concreto.64 Deve considerar-se
definitivamente ultrapassado o entendimento segundo o qual a liberdade de imprensa
deveria recuar sempre que se verificasse a colisão com outro direito, “por mais
insignificante que ele fosse”.65 Este entendimento foi paradigmático na Alemanha
até 1958, data em que viria a alterar-se por via do pronunciamento do Tribunal
Constitucional Federal no Lüth-Urteil, que veio a influenciar o direito dos estados de
legislação próxima da alemã, como o português. Costa Andrade identifica, como
linhas-mestras desta jurisprudência que entretanto se cristalizou, o princípio do efei-
to-recíproco, pelo qual a relação entre a liberdade de imprensa e os valores con-
flituantes não será uma relação estática, com predeterminação de fronteiras fixas
entre si, e o princípio do efeito-de-irradiação dos princípios constitucionais que ilu-
minam as normas de direito penal ordinário que estabeleçam limites à liberdade de
imprensa.66

Mantém-se, assim, actual o que afirmava Figueiredo Dias, nos idos de 1988,67 quan-
do, já então, defendia que “quanto à face do princípio da publicidade que se relacio-

64
ESCUDERO MORATALLA, José Francisc, e FRÍGOLA VALLINA, Joaquín, Honor, Secreto
Profesional y Clausulas de Conciencia en los Medios de Comunicación. Límites y Aspectos
Jurídicos Civiles y Penales, Ediciones Revista General de Derecho, Valencia, 1998, p. 199,
p.37.
65
Herzog, citado por ANDRADE, Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa e inviolabilidade
pessoal, p. 46.
66
ANDRADE, Manuel da Costa, como na nota anterior, p. 47.
67
Direito Processual Penal, p. 155.
246 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

na com os meios de comunicação social, [...] o critério estará em dar a maior latitude
possível aos órgãos de informação, mas com um limite inultrapassável,68 o de que
daí não advenha sensível perigo para a consistência e eficácia do direito de defesa do
arguido ou da pretensão punitiva do Estado”.

Devem ter-se em atenção que a desconsideração da honra e da reputação, bom-nome


ou consideração social não exige a falsidade das informações, podendo advir da
veiculação de informações verdadeiras. Estas são igualmente perniciosas uma vez
que a publicação desses factos pode representar uma pena desmesurada para o seu
autor, constituindo uma estigmatização a acumular com a da sanção penal69 – que
Costa Andrade70 apelida de “efeito-de-pelourinho” – pelo que a divulgação, pelos
meios de comunicação social, de determinados factos e, sobretudo, a formulação de
juízos de valor, podem redundar, nas palavras do mesmo mestre, num “assassínio da
honra”, sobretudo quando se trate de personalidades, das “pessoas da história do
tempo”.71

II.3.3. Presunção de Inocência

«Vede um homem desses que andam perseguidos


de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o
estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o car-
cereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador,
come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o
a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está
sentenciado, já está comido. São piores que os
corvos. O triste que foi à forca, não o comem os
corvos senão depois de morto; e o que anda em
juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e
já está comido».

Padre António Vieira, Sermão aos Peixes

68
Itálico do autor.
69
RODRIGUES, José Narciso da Cunha, “Da Mediatização da Justiça”, Boletim da Ordem dos
Advogados, IV Congresso, p.15.
70
Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 55.
71
Expressões, ainda, de Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 370
e 371.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 247

Um dos interesses que pode estar em causa com a divulgação dos actos processuais é
a presunção de inocência, questionando-se se este princípio tem validade meramente
intraprocessual72 ou se, por outro lado, vigora com um sentido mais abrangente, a
nível da condição e tratamento do arguido em sociedade.73

A par dos autores que entendem a validade exclusiva deste princípio no seio do
processo,74 entendem outros75 que o princípio se repercute na realidade externa ao
processo porque, embora a segregação social ou reprovação moral possam ter lugar
independentemente da consideração do princípio, este é encarado, “antes do mais,
como um direito constitucional a ser tratado fora do processo ”como se fosse ino-
cente”.76

Parece ser este último o entendimento plasmado no Estatuto dos Jornalistas [art.
14.º, n.º 2, alínea c)], ao impor-lhes que se “abstenham de formular acusações sem
provas e respeitar a presunção de inocência”, sentido que é enfatizado pelo Código
Deontológico dos jornalistas [Ponto 7], ao referir que “o jornalista deve salvaguar-
dar a presunção de inocência dos arguidos até à sentença transitar em julgado”. Esta
mesma repercussão externa enfatiza Garapon ao referir que «é um dado adquirido
que qualquer indivíduo acusado injustamente tem tendência para se comportar de
modo diferente: encobre certos elementos de facto que teme poderem vir a virar-se
contra si, chega até a mentir visto que “nunca se sabe...”, e, no final, conforma-se
com a acusação. Em inglês chama-se a isto as afirmações de realização pessoal
(self-fulfilling prophecies).77 Mas, se assim é, se a opinião pública condiciona e
pressiona o comportamento das pessoas acusadas, então “olhá-las como se fossem

72
MESQUITA, Paulo Dá, “O Segredo do Inquérito”, p. 67, para quem a presunção da inocência
se relaciona, sobretudo, com a tramitação processual.
73
Sobre o tema, ver ainda DIAS, Figueiredo, “Os princípios estruturantes do processo e a revisão
de 1998 do Código de Processo Penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8. n.º 2,
Abril-Junho 1998, pp. 199-213, e BOLINA, Helena Magalhães, “Razão de ser, significado e
consequências do Princípio da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP)”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. 70, Coimbra, 1994, pp. 433-461.
74
MESQUITA, Paulo Dá, “O Segredo do Inquérito”, p. 67; CUNHA, Damião, “A participação
dos particulares no exercício da acção penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8,
n.º 4, 1998, p. 617.
75
MOURA, José Souto de, “A Questão da Presunção de Inocência do Arguido”, Revista do
Ministério Público, Ano 11.º, n.º 42, p. 41 , JARDIM, Vera, Justiça e Comunicação Social,
Ministério da Justiça, Lisboa, 1999, p. 12.
76
MOURA, Souto de, como na nota anterior, p. 47.
77
GARAPON, Antoine, Bem julgar, p. 278; ANDRADE, Manuel da Costa e DIAS, Jorge Figuei-
redo chamam-lhe “profecia-que-a-si-mesma-se-cumpre”, que tem na base o Teorema de Tho-
mas “if men define situation as real, they are real in their consequences”, teoria que se relaciona
com a do labeling approach segundo a qual, no dizer de Becker citado pelos referidos autores,
“tratar uma pessoa como se ela não fosse, afinal, mais do que um delinquente, tem o efeito de
uma profecia-que-a-si-mesma-se-cumpre”, Criminologia – O Homem Delinquente e a Socie-
dade Criminógena, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pp. 346 e 351, respectivamente.
248 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

inocentes será, porventura, a melhor das garantias”.78 A presunção de inocência é,


assim, uma noção de direito e não de facto.

Porque o julgamento judicial é distinto do julgamento social e ético dos comporta-


mentos, devem evitar-se afirmações que condicionem a opinião pública e que a leve
a interiorizar a ideia de que o arguido já tenha sido julgado e condenado, aquilo a
que os sistemas anglo-americanos apelidam de trial by newspaper, ou julgamentos
paralelos.79 Estes julgamentos, sendo completamente alheios ao contraditório e por
reportarem factos num momento incipiente do processo, podem divulgar factos que
não correspondem à verdade, prejudicando decisivamente a possibilidade de o
arguido retomar a sua vida normal, podendo gerar a convicção da culpabilidade do
agente e da sua não condenação, não pelo não cometimento do facto, mas pela falta
de provas, num “não há fumo sem fogo” tão ao gosto popular. Tal é tanto mais
importante quanto é certo que, como faz notar Laborinho Lúcio, 80 os meios de
comunicação deslocaram o foco de atenção do momento da sentença para um
momento anterior, o momento da acusação ou o da própria denúncia, com os peri-
gos que tal importa para a preservação dos direitos fundamentais do arguido. Do
mesmo modo, o destaque conferido pela imprensa à notícia da pendência de deter-
minado processo contra determinada pessoa, e as conjecturas que as colunas de
opinião desde logo elaboram sobre os factos que o originaram, ultrapassa sempre o
destaque dado à sentença, a qual pode ter lugar somente passados alguns anos,
durante os quais o julgamento do público e a condenação se fez e se sedimentou
com base em premissas nem sempre válidas ou verdadeiras. Ainda que venha a ser
absolvido, na memória popular perpetuar-se-á a condenação que não teve lugar, “a
informação não serve, então, os fins de controlo racional da justiça: antepõe, antes, à
justiça, o julgamento irracional do público”.81 Alain Minc refere-se a uma liturgia

78
Idem, ibidem.
79
Por juízos paralelos entenda-se “o conjunto de informações aparecidas ao longo de um período
de tempo nos meios de comunicação sobre o assunto sub judice (...) através das quais se efec-
tua, pelos ditos meios, uma valoração sobre a regularidade legal e ética do comportamento de
pessoas implicadas nos factos submetidos à dita valoração. Tal valoração converte-se, perante a
opinião pública, numa espécie de processo (juízo paralelo) no qual os diversos meios de comu-
nicação exercem o papel de fiscal e a de advogado defensor, assim como, muito frequente-
mente, de juiz”, ignorando a “possibilidade do processo vir a concluir-se com a afirmação de
que o acusado é inocente e, nessa situação, qualquer afirmação precipitada sobre a sua culpabi-
lidade representaria uma grave lesão dos seus interesses”; HASSEMER, Fundamentos del
Derecho Penal, apud BOLINA, Helena, “Razão de ser, significado e consequências do princí-
pio de presunção de inocência”, p. 436.
80
“A Reforma do Processo Penal: O Que Ficou por Rever?”, in O Processo Penal em Revisão –
comunicações, Universidade Autónoma de Lisboa, 1998, pp. 195 e ss.
81
ESTEVES, Assunção, “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de
Justiça”, in O Processo Penal em Revisão – comunicações, p. 131; no mesmo sentido de que o
conhecimento precoce pode constituir um perigo para a confiança na justiça, SILVA, Germano
Marques da, Curso de Processo Penal I, Verbo, Lisboa, 2010, p. 81; MINC, Alain, Em Nome
da Lei, p. 17.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 249

da cerimónia expiatória das sociedades modernas, traduzida no ritual penal, que o


autor identifica com o seguinte périplo: “rumores de imprensa, a culpabilidade esta-
belecida pela antecipação mediática, fotografias, investigação, fugas jornalísticas,
excitação, marcação a fogo, paulatino afundamento nas areias movediças, esqueci-
mento e indiferença quanto à decisão final”.

II.3.4. Direito ao anonimato

Tendo a pena finalidades de prevenção geral, o conhecimento de que foi feita justiça
mostra-se fundamental para a reposição da validade da norma e apaziguamento das
tensões sociais criadas com a prática do crime. No entanto, pretendendo-se, de igual
modo, cumprir finalidades de prevenção especial de ressocialização, factor não des-
piciendo que deve ser tomado em consideração é a circunstância de a divulgação
poder dificultar a reintegração do agente na sociedade, pela estigmatização a que
pode conduzir. Existiria, assim, uma espécie de direito ao anonimato ser conside-
rado. A prevenção geral não ficará, a maior parte das vezes, prejudicada, com a não
identificação do agente.

Na Alemanha, a propósito de situação semelhante, em que ao direito ao anonimato


se contrapunha a possibilidade de publicação da identidade do suspeito da autoria de
um facto desonroso sob julgamento quando feita sem o consentimento do visado,
perante a questão de saber até que ponto a liberdade de imprensa deve prevalecer
sobre o direito ao anonimato, pronunciou-se Koebel, citado por Costa Andrade, no
sentido de que “quanto menor for o significado de um acontecimento para a comuni-
dade, tanto mais o interesse pelo anonimato poderá impedir a publicação do
nome”.82 A resposta deverá conformar-se com o princípio da necessidade comunitá-
ria neste conhecimento, na proporcionalidade entre o conhecimento e a lesão do
direito ao anonimato e, de modo idêntico, na preservação do princípio da presunção
de inocência e no direito à ressocialização do delinquente. Deste modo, pode consi-
derar-se que a liberdade de imprensa confere um tratamento privilegiado aos seus
agentes83 quando a “narração possuir uma ressonância que ultrapasse o círculo estri-
to das pessoas envolvidas”84 desde que visando o interesse público.85

82
ANDRADE, Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, pp. 370 e
371.
83
ANDRADE, Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 316.
84
COSTA, José Francisco de Faria, Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. I, Coimbra
Editora, Coimbra, 1999, p. 617.
85
Foi a ponderação de interesses envolvidos, o que parece ter sido considerado pelo tribunal ao
não condenar o jornal Sol no caso das escutas que envolveram o primeiro-ministro José Sócra-
tes.
250 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

Pode ilustrar-se esta afirmação invocando o acórdão “Lebach” do T.C. alemão.86


Este tribunal, chamado a pronunciar-se sobre a pretensão de uma cadeia de televisão
de produzir um programa televisivo que narrava determinado crime de homicídio
ocorrido no país, no qual revelava a identidade do autor do crime, entretanto já con-
denado, decidiu da colisão entre o direito de personalidade desse cidadão e a liber-
dade de informar, proibindo a emissão. Na ponderação de valores efectuada, o tribu-
nal sopesou do mesmo lado da balança o interesse do acusado na sua reabilitação e o
interesse da sociedade em reabilitá-lo, com prejuízo, embora, do direito à informa-
ção.

Uma proibição absoluta, insusceptível de ser afastada por decisão judicial, é a que se
encontra plasmada no art.88º, n.º 2, alínea c), impedindo a publicação, quer directa,
quer indirectamente e por qualquer meio – o que inclui imagem, texto, som – da
identidade de vítimas de crimes de tráfico de pessoas, contra a liberdade e autode-
terminação sexual,87 a honra ou a reserva da vida privada , excepto quando a vítima
consentir expressamente, ou o crime for praticado através dos meios de comunicação
social [art. 88.º, n.º 2, alínea c)]. Caso em que se entende não fazer muito sentido
ocultar o que está na possibilidade de conhecimento de todos.

Conclusão

O contacto entre o sistema judicial e os órgãos de comunicação social, em virtude


das características específicas de cada um e das divergentes finalidades prossegui-
das, potencia os conflitos que terão de ser razoavelmente resolvidos por todos os
intervenientes de modo a que possa ser feita justiça e a comunidade possa, disso, ter
conhecimento.

Esta tensão e mútua incompreensão apenas se resolverá pela formação profissional e


sobretudo ética e deontológica, e pela sensibilização de cada interveniente para o
papel e função desempenhada pelo outro: do jornalista relativamente ao conheci-
mento das leis, dos procedimentos e da função dos magistrados e da Justiça e dos

86
Cfr. ESTEVES, Assunção, “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, p.130, ANDRADE,
Maneul da Costa, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 46.
87
Em Inglaterra, em virtude de algumas decisões recentes do Crown Prosecution Service em não
perseguir criminalmente algumas celebridades sobre os quais recaíam denúncias de terem prati-
cado crimes sexuais, suspeitas que vieram a manifestar-se infundadas, relançou-se a polémica
em torno da necessidade de uma lei sobre a privacidade em Inglaterra e a possibilidade da proi-
bição de identificar publicamente os suspeitos. A razão é a suposição de que tal divulgação
possa obstar ao fair trial, à igualdade de armas e à presunção de inocência, passando a protec-
ção da privacidade e da identidade a respeitar, não apenas à vítima mas igualmente aos preten-
sos agressores – www.timesonline.uk.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL 251

direitos fundamentais; dos magistrados relativamente à função social do jornalismo,


pelo conhecimento dos mecanismos de formação e divulgação da notícia.88

Passará, igualmente, pela capacidade de encontrar canais de comunicação entre cada


um destes meios que, permitindo a verdade e objectividade da notícia, não redundem
numa compressão desmesurada dos vários direitos e interesses a salvaguardar. Neste
sentido, talvez a criação de gabinetes de informação junto das várias instituições
judiciárias e policiais pudesse ser um contributo significativo para um melhor enten-
dimento, facultando-se aos jornalistas os elementos possíveis, com um linguagem
compreensível e explicativa, de modo a que estes possam cumprir a sua função de
mediação, de informadores e formadores da opinião pública. Do mesmo modo se
exigirá aos órgãos de comunicação social a especialização dos seus jornalistas numa
área de tamanho interesse comunitário.

Deixam-se de fora muitos outros tópicos que fundamentam os pontos de contacto


entre o sistema judicial e o meio mediático, por incompatível com o espaço de um
artigo de revista, nomeadamente a questão do sigilo dos jornalistas, o crime de vio-
lação do segredo de justiça pelos jornalistas ou o tratamento mediático de crianças
envolvidas em processos penais, seja como agentes, seja como testemunhas ou ofen-
didos.

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88
A este propósito veja-se a Declaração de Princípios e Acordo de órgãos de comunicação Social
relativo à Cobertura de Processos Judiciais, referidos supra.
252 ANA PAULA PINTO LOURENÇO

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Discorrendo sobre as terceira e quarta alterações
ao Código do Trabalho. A Lei 23/2012, de 25 de Junho.
A Lei 47/2012, de 29 de Agosto
ANTÓNIO AMADO *

Depois de muitos anos sem alterações legislativas relevantes em matéria de Direito


de Trabalho, assistimos em 2009, com a Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, a uma
remodelação extremamente substancial no pensamento legislativo laboral.

Não sendo aqui o momento oportuno para nos pronunciarmos sobre tais iniciáticas
alterações, uma vez que já o fizemos em sede própria e no momento ideal, surgem
agora em ordem sequencial, as terceira e quarta “ reformas”, se assim lhe quisermos
chamar, sobre matérias pertinentes, controversas e que no nosso entender, poderão
ainda vir a dar que falar, seja pela inovação unilateral não consentida, seja pela
inconstitucionalidade que das mesmas possa ressaltar na sua prática laboral, e, sobre
isso, sim, cabe tecer algumas considerações abrindo o livro das “dúvidas” aos alunos
de Direito e de Solicitadoria do ISMAT.

A nossa função enquanto docentes é a de, ministrando conhecimentos, abrir a mente


dos alunos para a compreensão jurídica de quaisquer alterações legislativas com que
diariamente possam vir a deparar-se, e questionando-as, compreender a sua natureza
e utilidade presente.

Nesse sentido, iremos discorrer um pouco sobre o que de novo surgiu em termos
legislativos, em matéria laboral, matéria essa de extrema importância para toda a
economia nacional, pois por ela passa a possibilidade de defesa do simples trabalha-

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 255-273.

* Master em Direito Comercial; Jurista da DSCJC – AT.


256 ANTÓNIO AMADO

dor, bem como a segurança de um mero empregador, na possibilidade de manter ou


eliminar um posto de trabalho, justificando a sua decisão em factores que, por vezes,
não correspondem à realidade laboral existente.

Paralelamente, serão levantadas questões constitucionais e/ou outras, que, de alguma


forma, poderão e deverão levar o leitor a, questionando, problematizar a verdadeira
génese que presidiu às alterações legislativas em causa e, face ao seu entendimento,
formular o seu próprio juízo de valor.

Nesse sentido é deveras importante trazer à colação e recordar a celebre frase de


alguém deveras importante para ser mencionado, pois é do conhecimento geral,
“Penso, logo existo”, pois só pensando e interpretando o que nos é dado como um
facto consumado é que podemos em plena consciência dizer que o aceitamos, ou
não, e, da forma que pudermos, lutarmos por mudar.

Esse é o desiderato a que nos propomos e que esperamos vir a alcançar.

A Lei 23/2012, de 25 de Junho

Assim, começando o nosso percurso analítico da lei e, atente-se, só da Lei, verifica-


mos que com a Lei 23/2012, de 25 de Junho, assistimos à terceira alteração ao Códi-
go do Trabalho (CT), alteração essa que entrou em vigor no dia 1 de Agosto de
2012, mas não na sua totalidade.

Na verdade, as alterações propostas em matéria de encerramento das empresas (nas


pontes) para férias e de eliminação de feriados, produzirão apenas efeitos a partir de
1 de Janeiro de 2013, tal como iremos ver mais à frente.

Como em todas as alterações legislativas que surgem ciclicamente, esta Lei foi pen-
sada e elaborada visando, entenda-se, no pensamento legislativo, a retoma do cres-
cimento económico e a criação sustentada de emprego. Neste sentido, e tal como foi
referido na exposição de motivos da respetiva Proposta de Lei, e que por motivos
óbvios nos escusamos de transcrever, as medidas consagradas envolvem importantes
aspetos da legislação laboral, designadamente em matéria de:

1. A organização do tempo de trabalho


a) Feriados
b) Férias
c) Faltas Injustificadas
d) Banco de horas individual e grupal
e) Regime de intervalo de descanso
f) Regime do trabalho suplementar
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 257

g) Regime do trabalho prestado em dia feriado

2. O Regime da Cessação do contrato de Trabalho por Motivos Objectivos


a) Harmonização de compensações
b) Despedimento por extinção do posto de trabalho
c) Despedimento por inadaptação ao posto de trabalho

3. O regime aplicável aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho


a) Descentralização
b) Contratação coletiva

4. A fiscalização das condições de trabalho e comunicações à Autoridade das Condi-


ções do Trabalho (ACT).

5. Outras alterações dignas de realce, plasmadas no diploma em análise

Analisemos então, faseadamente, cada um destes aspectos iniciais.

1. Organização do tempo de trabalho

Como primeiras matérias problemáticas, surgem, desde logo, na Organização do


tempo de trabalho: a subtracção de feriados, a alteração ao regime jurídico legal do
período de férias e das faltas injustificadas, o banco de horas individual e o banco
de horas grupal.

Ou seja, na primeira das alterações problemáticas incluem-se as alterações aos


períodos de «não trabalho»: férias, feriados e faltas e bem assim, os bancos de horas
individual e grupal.

Atentemos:

a) A lei procede à redução do catálogo legal de feriados, eliminando quatro feriados


obrigatórios, a saber:
- o feriado religioso do Corpo de Deus
- o feriado religioso do 1 de Novembro
- o feriados civil do 5 de Outubro
- e o feriado civil do 1 de Dezembro (alteração ao n.º 1 do art.º 234.º do CT).

Tal como referido inicialmente, esta redução faz parte das alterações que só se veri-
ficarão verdadeiramente a partir de 1 de Janeiro de 2013.
258 ANTÓNIO AMADO

No entanto, para o trabalhador “bónus pater família”, independentemente da sua


crença ou religião, poderá sempre ficar em dúvida a oportunidade e a eficácia desta
alteração. Será mesmo credível que a eliminação destes feriados do panorama nacio-
nal de trabalho resulte num acréscimo de produtividade nacional ou numa diminui-
ção do mesmo?

Vejamos, reduzir quatro feriados que, hipoteticamente até poderiam vir a ser coinci-
dentes com dias “não úteis”, poderá não fazer sentido, se a génese que suportou tal
decisão se cingiu apenas a um potencial e hipotético aumento de produtividade labo-
ral, e consequentemente um aumento do PIB nacional, o que, salvo melhor opinião,
e tal como já referimos, poderá ser questionável. Aliás, os feriados supra menciona-
dos sempre tiveram uma outra função nacional, nomeadamente a de incrementar o
comércio e movimentar a moeda, dada a possibilidade para alguns trabalhadores
poderem descansar uns dias seguidos sem grande prejuízo do tempo de férias normal
anual.

Mas, continuemos a nossa análise.

b) No que ao regime jurídico das férias diz respeito, podemos destacar quatro aspec-
tos essenciais que a seguir se transcrevem e para os quais se chama a especial aten-
ção, pois, salvo melhor opinião, poderão estar aqui em causa violações de natureza
legal, pelo carácter unilateral que revestem algumas delas, senão vejamos:

 i) A eliminação da majoração de até 3 dias de férias em função da assidui-


dade, revista pelos números 3 e 4 do artigo 238.ºdo CT, na redacção anterior à Lei
n.º 23/2012, passando o período anual de férias a ter uma duração de 22 dias úteis.

Até agora, os trabalhadores tinham direito a 22 dias garantidos de férias mas, con-
soante a assiduidade, esse período podia chegar a 25 dias. O corte aplica-se a partir
de 2013 porque as férias dizem respeito ao trabalho prestado no ano anterior. Esta
redução será imperativa nos casos em que as majorações foram acordadas após
Dezembro de 2003, tendo em conta que foi nessa altura que a regra dos três dias
extra foi criada. Neste sentido, o diploma prevê que as majorações ao período de
férias estabelecidas em contratos de trabalho ou em contratação colectiva já depois
de 1 de Dezembro de 2003 sejam reduzidas em montante equivalente até três dias.
Não questionando a relevância e a oportunidade de tal alteração, permitimo-nos
colocar-vos apenas uma questão: será esta alteração o presságio de uma contínua
aplicação ao privado, da máxima já explanada na administração publica de “não há
direitos adquiridos”?

Não terá tal medida um efeito imediato de quebra de assiduidade do trabalhador, por
não obter proveito ou compensação nenhuma em função da sua assiduidade?
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 259

 ii) A possibilidade de o empregador encerrar a empresa em dia que esteja


entre um feriado ocorrido à terça-feira ou à quinta-feira e um dia de descanso sema-
nal, sendo o referido dia de encerramento deduzido do total do período anual de
férias do trabalhador (alteração ao artigo 242.º do CT). Alternativamente, por deci-
são do empregador, o encerramento poderá ser igualmente compensado por presta-
ção de trabalho por parte do trabalhador.

Atente-se que esta alteração produz efeitos a partir do dia 1 de Janeiro de 2013,
devendo o empregador informar, até ao dia 15 de Dezembro de 2012, os trabalhado-
res abrangidos sobre o encerramento a efectuar no ano de 2013.

No entanto, o que aqui é relevante questionar é a possibilidade “unilateral”, ou não,


de ser apenas o empregador a decidir do encerramento da empresa entre feriados e
da sua eventual compensação por prestação de trabalho por parte do trabalhador.

A ser assim, será legítima a atribuição dessa possibilidade apenas ao empregador?

 iii) Mais, para efeitos de contabilização dos dias de férias, sempre que os dias
de descanso do trabalhador coincidam com dias úteis, são considerados como dias de
férias, em substituição daqueles, os sábados e os domingos que não sejam feriados.

Não criticando, permitimo-nos questionar o porquê desta alteração. Será para tentar
minimizar os danos colaterais das alterações anteriores? Ou será mesmo algo ques-
tionável a nível constitucional?

 iv) Por fim, não menos importante nesta área, mas mais complexo na sua
aplicabilidade, dada a natureza dos Instrumentos de Regulamentação colectiva de
trabalho com que vão mexer, surge a alteração legislativa que refere que as majora-
ções ao período anual de férias estabelecidas nos instrumentos de regulamentação
colectiva de trabalho ou contratos de trabalho posteriores a 1 de Dezembro de 2003
são reduzidas, automática e imperativamente, em montante equivalente até três dias.

Desde logo, para o mais inculto leitor, a primeira pergunta que se coloca é a de saber
até que ponto pode a lei eliminar o que o trabalhador já tem acordado há muito, por
meio de outras leis que lhe permitiram celebrar esses regulamentos.

Sabemos não se tratar de um problema de hierarquia de leis. Mas, mais uma vez, a
retoma do crescimento económico e a criação sustentada de emprego não pode servir
para justificar todo o tipo de alterações legislativas que vêem coarctar direitos dos
trabalhadores, quando as suas expectativas já são tão poucas no mercado de trabalho
existente.
260 ANTÓNIO AMADO

c) Ainda dentro deste primeiro capítulo, são introduzidas algumas modificações


quanto ao regime legal das faltas injustificadas, alterando-se o artigo 256.º do CT.
Na verdade, é estabelecido que, em caso de falta injustificada a um ou meio período
normal de trabalho diário, imediatamente anterior ou posterior a meio dia de des-
canso ou a feriado, o período de ausência a considerar para efeitos de perda de retri-
buição abrange os dias ou meios-dias de descanso ou feriados imediatamente ante-
riores ou posteriores ao dia da falta.

Ou seja, em termos práticos e concretos, quem faltar injustificadamente antes ou


depois de dia de descanso, perde o salário correspondente a todos esses dias. Por
exemplo, faltar em dia de “ponte” implica perder quatro dias de salário.

Verdade seja dita, tal alteração afigurasse-nos justificada pelo decurso das alterações
anteriormente mencionadas, pois surge como forma de prevenção ao absentismo
provocado pelo “hábito” inegável do trabalhador português em querer aliar o útil ao
agradável, ao tentar transformar uma situação de “ponte”, tornando-a num período
mínimo de “férias” não contabilizadas no período legal de férias a que tem direito.

d) Por fim, e no que respeita à organização do tempo de trabalho, a Lei n.º 23/2012
introduz o banco de horas individual e o banco de horas grupal, sendo que sobre os
mesmos iremos agora discorrer um pouco no sentido de aferir como funcionam,
quais as novas obrigações e direitos que dos mesmos advêm.

O regime de banco de horas, supostamente, poderá ser negociado directamente entre


a empresa e o trabalhador. Neste caso, o período normal de trabalho pode aumentar
até duas horas diárias, atingindo as 50 semanais. Mas as horas extra não podem
ultrapassar 150 por ano.

Mas vejamos ao pormenor:

- Assim, o banco de horas individual, previsto no novo artigo 208.º-A do Código do


Trabalho (CT), vem permitir que, por acordo entre empregador e trabalhador, o
período normal de trabalho seja aumentado até duas horas diárias e atinja 50 horas
semanais, com o limite de 150 horas por ano, sem ser considerado trabalho suple-
mentar.

O acordo pode ser celebrado mediante proposta escrita do empregador, presumindo-


se a aceitação por parte de trabalhador que a ela não se oponha, por escrito, nos 14
dias seguintes ao conhecimento da mesma e terá de regular os seguintes aspetos:
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 261

 i) A forma de compensação do trabalho prestado em acréscimo, que pode ser


feita mediante: redução equivalente do tempo de trabalho; aumento do período de
férias; ou, pagamento em dinheiro;

E aqui cabe perguntar: quem decide a forma de compensação? O empregador? O


trabalhador? De comum acordo?

Então a proposta não é apresentada pelo empregador? Haverá reuniões pré-nego-


ciais?

 ii) A antecedência com que o empregador deve comunicar ao trabalhador a


necessidade de prestação de trabalho;

 iii) O período em que deve ter lugar a redução do tempo de trabalho para
compensar trabalho prestado em acréscimo, bem como a antecedência com que
qualquer uma das partes deve informar a outra da utilização dessa redução.

O que o diploma também não diz é a forma de publicitar tal proposta do emprega-
dor, pois da forma utilizada pelo mesmo, dependerá o timing para o trabalhador se
poder opor ou não à mesma.

- Quanto ao banco de horas grupal, o artigo 208.º-B do CT vem permitir que este
regime seja instituído à generalidade dos trabalhadores de uma equipa ou secção, por
simples decisão do empregador, desde que:

 Uma maioria de 60% dos trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade


económica se encontre já abrangido por banco de horas previsto por instrumento de
regulamentação coletiva de trabalho, estendendo-se o respetivo regime aos restantes
trabalhadores abrangidos pela estrutura; ou,

 Uma maioria de 75% dos trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade


económica aceite a proposta do empregador para a implementação de banco de
horas grupal, ficando sujeitos a este regime a totalidade dos trabalhadores abrangi-
dos pela estrutura em causa.

Não obstante as prerrogativas dadas aos trabalhadores para a instituição deste banco
de horas grupal, não podemos deixar de chamar a atenção novamente para o facto de
este banco grupal poder vir a ser instituído por simples decisão do empregador e
simples proposta por ele elaborada. Vários sãos os princípios de direito fundamen-
tais que nos assaltam o pensamento quando nos questionamos nestes termos e os
configuramos como estando a ser violados, mas…
262 ANTÓNIO AMADO

No essencial, e neste subcapítulo há que esclarecer alguns aspectos:

Até ao presente momento, os bancos de horas só podiam ser definidos por contrata-
ção colectiva, embora com limites mais largos, sendo que agora este regime poderá
ser estendido. No caso dos bancos de horas individuais, o regime poderá abranger os
trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade económica se 75% dos seus traba-
lhadores aceitarem.

Já no caso de bancos de horas por contratação colectiva, aplicam-se as mesmas


regras que já hoje existem na adaptabilidade grupal. Assim, os IRCT que definam
bancos de horas poderão prever que o regime seja estendido ao conjunto dos traba-
lhadores de uma equipa ou secção quando, pelo menos, 60% dos trabalhadores dessa
estrutura sejam abrangidos. De qualquer extensão ficam fora os trabalhadores abran-
gidos por convenções que disponham em sentido contrário ou, no caso do banco de
horas por contratação colectiva, os que sejam representados por sindicato que se
tenha oposto à portaria de extensão que alarga o regime ao sector.

e) Relativamente ao regime do intervalo de descanso, previsto no artigo 213.º do


Código do Trabalho (CT), sofre uma alteração, que em nada é por nós questionável,
estabelecendo-se que, em caso de prestação de trabalho superior a 10 horas (banco
de horas, horário concentrado e adaptabilidade), o intervalo de descanso possa ter
lugar após seis horas de trabalho consecutivo. Prevê-se, ainda, neste âmbito e a nos-
so ver, bem, o deferimento tácito do requerimento de redução ou exclusão do inter-
valo de descanso que não seja decidido pela ACT no prazo de 30 dias;

f) Quase por último, neste primeiro capitulo e já no âmbito do regime de trabalho


suplementar, a Lei n.º 23/2012 prevê várias alterações, estipulando desde logo:

- Eliminação do descanso compensatório no caso de prestação de trabalho suple-


mentar em dia útil, em dia de descanso semanal complementar ou em dia feriado
(revogação do n.º 1 do art.º 229.º do CT);
- Redução para metade da retribuição paga a título de acréscimo pela prestação de
trabalho suplementar (alteração ao art.º 268.º do CT): 25%(contra os atuais 50%) na
primeira hora ou fracção desta e 37,5% (contra os atuais 70%) por hora ou fracção
subsequente, em caso de trabalho suplementar prestado em dia útil; e 50% (contra os
atuais 100%) por cada hora ou fracção, em caso de trabalho suplementar prestado
em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, ou em feriado.
- Eliminação do direito a descanso compensatório por trabalho suplementar prestado
em dia útil, em dia de descanso semanal complementar ou em feriado, equivalente a
25% do trabalho suplementar realizado, mantendo tal direito apenas nos casos de
prestação de trabalho suplementar impeditivo do gozo de descanso diário e em dia
de descanso semanal obrigatório.
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 263

g) A Lei n.º 23/2012 também reduz para metade do descanso compensatório ou do


acréscimo de retribuição devida por trabalho normal prestado em dia feriado em
empresa não obrigada a suspender o funcionamento nesse dia, o qual passa a corres-
ponder apenas a 50%da retribuição correspondente (alteração ao art.º 269.º do CT).
O efeito prático desta medida poderá ser perverso já que os trabalhadores não têm
qualquer estímulo para trabalhar num dia de feriado que apenas lhes será compen-
sado com meio descanso ou com meia retribuição.

Ou seja, em termos práticos, se quisermos resumir a redução do pagamento pelo


trabalho extraordinário sobre o qual discorremos nestes dois últimos números, pode-
ríamos dizer que no essencial, ele vai cair para metade. A primeira hora extra em dia
útil será paga com um acréscimo de 25% enquanto as seguintes passam a valer
37,5%. Nos dias de descanso semanal ou em feriado, o trabalhador passa a receber
mais 50%. Já o descanso compensatório remunerado desaparece, ainda que se man-
tenha o descanso diário e o semanal obrigatório.

Quer isto dizer que se mantém o descanso compensatório remunerado quando o


trabalho suplementar impede o funcionário de gozar o período de descanso diário ou
ainda quando este exerce funções em dia de descanso semanal obrigatório (geral-
mente, o domingo); nestes casos, o trabalhador continua a ter direito, respectiva-
mente, às horas ou ao dia de descanso em falta, remunerados.

Nas empresas que não são obrigadas a encerrar nos feriados, quem prestar trabalho
normal nesse dia passa a receber um acréscimo de 50% ou a usufruir de descanso
compensatório igual a metade das horas trabalhadas. E, atenção, todas estas mudan-
ças são imperativas.

A partir de 1 de Agosto de 2012 passaram a ser nulas todas as cláusulas de contratos


de trabalho ou de Instrumentos de Regulamentação Colectiva de Trabalho (IRCT) já
celebradas que dispunham sobre descanso compensatório em dia útil, dia de des-
canso complementar ou feriado. Por outro lado, são suspensas, por dois anos, as
cláusulas de contratos de trabalho ou de IRCT que definem valores mais elevados no
caso de horas extra ou, ainda, que dispõem sobre retribuição (ou descanso) de tra-
balho normal prestado em feriado nas empresas que não são obrigadas a encerrar
nesse dia.

Se essas cláusulas não forem entretanto alteradas, ao fim de dois anos o corte para
metade aplica-se aos montantes aí previstos. Mas, note-se, essa redução não pode
originar valores inferiores aos previstos no Código do Trabalho.
264 ANTÓNIO AMADO

2. O Regime da Cessação do contrato de Trabalho por Motivos Objetivos

A Lei 23/2012 procede a alterações relacionadas com a cessação do contrato de


trabalho por motivos objetivos (despedimento por extinção do posto de trabalho e
despedimento por inadaptação) e com as compensações devidas em caso de cessação
de contrato de trabalho.

Desde logo, e de forma genérica, prevê-se:


a) A harmonização entre as compensações devidas em caso de cessação de contratos
de trabalho anteriores e posteriores (celebrados ao abrigo da Lei n.º 53/2011, de 14
de Outubro) a 1 de Novembro de 2011, com as particularidades previstas no artigo
6.º da Lei 23/2012.

De acordo com a nova redação do artigo 366.º do Código do Trabalho (CT), é redu-
zido o montante das compensações devidas por cessação do contrato de trabalho, as
quais passam a corresponder a 20 dias de retribuição base e diuturnidades por cada
ano completo de antiguidade, de acordo com as regras de determinação seguintes:

i) O valor da retribuição base e diuturnidades a considerar para efeitos de


cálculo da compensação não pode ser superior a 20 vezes a retribuição mínima men-
sal garantida (RMMG);

ii) O montante global da compensação não pode ser superior a 12 vezes a


retribuição base mensal e diuturnidades do trabalhador ou a 240 vezes a RMMG;

iii) O valor diário de retribuição base e diuturnidades é o resultante da divi-


são por 30 da retribuição base e diuturnidades; e,

iv) Em caso de fração de ano, o montante da compensação é calculado pro-


porcionalmente.

É-nos dito também que “para salvaguardar as expectativas dos trabalhadores” relati-
vamente ao período decorrido até 31 de Outubro de 2012, o artigo 6.º da Lei n.º
23/2012 define que a compensação devida em caso de cessação de contrato cele-
brado antes de 1 de Novembro de 2011: em relação ao período de duração do con-
trato até 31 de Outubro de 2012, corresponderá a um mês de retribuição base e diu-
turnidades por cada ano completo de antiguidade, tal como previsto no artigo 366.º
do CT anterior à Lei n.º 23/2012; em relação ao período de duração do contrato
depois desta data, o montante da compensação já corresponderá ao previsto na nova
redação do artigo 366.º; sendo que, o montante total da compensação calculada não
poderá ser inferior a 3 meses de retribuição base e diuturnidades.
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 265

Por sua vez, o limite máximo da compensação não ultrapassará 12 vezes a retribui-
ção base mensal e diuturnidades do trabalhador ou 240 vezes a RMMG ou, ainda, o
valor calculado até 31 de Outubro de 2012 de acordo com o critério previsto no
antigo artigo 366º do CT, se este for igual ou superior.

Mas será mesmo assim? Será mesmo para salvaguardar as expectativas do trabalha-
dor?

Na verdade, as compensações por despedimento legal já desceram em Novembro de


2011 e vão voltar a cair em Novembro de 2012. Portanto, na prática, as mudanças só
se vão verificar a partir daí. Também é verdade que já existiam dois regimes em
vigor: quem começou a trabalhar depois de Novembro de 2011 só tem direito a 20
dias de retribuição base e diuturnidades por ano de casa e a compensação tem um
tecto de 12 salários. Já a remuneração que serve de base ao cálculo não pode ultra-
passar 20 salários mínimos (9.700 euros) o que significa que a compensação total
não pode exceder 116.400 euros. Isto aplica-se a contratos definitivos ou a prazo.
Por outro lado, quem foi contratado, sem termo, antes de Novembro de 2011, man-
tém o direito a um mês de retribuição base e diuturnidades por ano de casa. Não
existe tecto máximo e há um pagamento mínimo de três meses. Os contratos a prazo
anteriores a Novembro de 2011 têm direito a três ou dois dias de retribuição por cada
mês de contrato (até ao período da eventual renovação extraordinária, uma vez que a
partir daí aplica-se o novo regime).

Enfim, deixamos ao critério do leitor opinar sobre esta salvaguarda, na certeza


porém que do juízo de valor formulado sobre a aplicabilidade prática da mesma,
poderão surgir outras questões mais pertinentes e para cujo estudo e ponderação
posteriores vos remeto.

b) No que respeita ao despedimento por extinção do posto de trabalho, surge a alte-


ração do n.º 2 do artigo 368.º do Código do Trabalho (CT), de forma a eliminar a
ordem de critérios (de antiguidade no posto de trabalho, na categoria profissional, na
empresa e da classe inferior na categoria) que até hoje era obrigatoriamente obser-
vada pelo empregador na determinação do posto de trabalho a extinguir. A definição
de tais critérios passa a caber ao empregador, exigindo-se que os mesmos sejam
relevantes e não discriminatórios face aos objectivos subjacentes à extinção do posto
de trabalho.

Então o facto de uma pessoa ter dedicado 30 anos da sua vida a uma empresa deixa
de ser um factor na decisão de dispensa do mesmo? Poderá o legislador decidir tudo
em prol da retoma do crescimento e económico e criação sustentada de emprego? Ou
será apenas o alicerce para possibilitar a dispensa imediata a trabalhadores inadapta-
dos e com os quais não justifica gastar fundos em formação?
266 ANTÓNIO AMADO

Por outro lado, a apreciação da impossibilidade de subsistência da relação de tra-


balho, no caso de extinção de um posto, deixa de depender da inexistência de outro
posto compatível com a categoria profissional do trabalhador.

Assim, aparentemente, somos levados a concluir que a lei veio tornar mais permis-
sivo o despedimento sem qualquer necessidade de justificação por parte da entidade
patronal, senão o alegar a extinção do posto de trabalho

c) Por outro lado, admite-se o despedimento por inadaptação em situações em que


não tenha havido modificações no posto de trabalho, desde que cumpridos os requi-
sitos legalmente previstos (alterações aos artigos 374.º a 379.º do CT e artigo 5.º da
Lei 23/2012). Este despedimento passa a ser permitido desde que se verifique uma
modificação substancial da prestação realizada pelo trabalhador de que resultem,
nomeadamente, a redução continuada de produtividade ou de qualidade, avarias
repetidas nos meios afetos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde do
trabalhador, de outros trabalhadores ou de terceiros, determinados pelo modo do
exercício das funções e que, em face das circunstâncias, seja razoável prever que
tenham carácter definitivo.

Na verdade, o despedimento por inadaptação já podia ocorrer por redução conti-


nuada de produtividade ou qualidade, avarias repetidas ou riscos para a segurança e
saúde dos trabalhadores, por culpa do funcionário. Mas com as novas regras, cai um
requisito que era obrigatório: o despedimento deixa agora de depender da existência
de modificações prévias no posto de trabalho (como as que resultam de novas tec-
nologias ou de alterações nos processos de fabrico ou de comercialização).

A partir de agora, mesmo que não haja modificações no posto, o despedimento pode
avançar desde que se verifique "mudança substancial" da prestação do trabalhador e
esta se preveja definitiva. E aqui voltam a ser considerados os mesmos conceitos de
quebra de produtividade, avarias ou riscos para a segurança e saúde. A empresa tem,
neste caso, de informar o trabalhador da apreciação da actividade antes prestada,
demonstrando que houve alterações significativas. E, depois, tem de dar "ordens e
instruções" ao funcionário sobre a execução das tarefas, para o tentar corrigir.

Além disso, mantém-se a obrigação de a empresa prestar formação profissional e de


dar um período de adaptação de 30 dias. A necessidade de modificações prévias no
posto de trabalho também cai no caso de cargos de complexidade técnica ou direc-
ção - este grupo já estava sujeito a uma segunda modalidade de inadaptação, poden-
do o despedimento ocorrer sempre que há objectivos acordados e não cumpridos.
Mas, nesta situação específica, a alteração à lei só se aplica a metas que venham a
ser acordadas depois de Agosto.
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 267

Não esquecer no entanto, que a lei protege os trabalhadores com capacidade de tra-
balho reduzida, deficiência ou doença crónica das situações de inadaptação. Os tra-
balhadores que nos três meses anteriores tenham sido transferidos para o posto no
qual se verifica a inadaptação, só têm direito a voltar ao posto anterior se este não
estiver ocupado definitivamente.

Por outro lado, o trabalhador pode solicitar as diligências de prova ao empregador.


Além disso, nos casos em que não houve modificações no posto, o funcionário pode
denunciar o contrato (com direito à compensação) quando recebe a comunicação da
intenção de despedimento.

É ainda estabelecido um novo procedimento para a concretização do despedimento


de modo a acautelar a possibilidade de defesa do trabalhador, em moldes semelhan-
tes aos do despedimento colectivo e por extinção do posto de trabalho (nova redação
do artigo 375.º do CT).

3. O regime aplicável aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho

No âmbito dos Instrumentos de Regulamentação Coletiva de Trabalho (IRCT), são


implementadas:
- medidas de descentralização e de
- contratação colectiva;

Assim, são implementadas medidas de descentralização organizada, que se traduzem


na possibilidade de os contratos coletivos estabelecerem determinadas matérias, tais
como a mobilidade geográfica e funcional, a organização do tempo de trabalho e a
retribuição, contribuindo para uma melhor articulação entre os IRCT e para a pro-
moção da contratação coletiva.

Por outro lado, e ao nível da contratação colectiva, admite-se que nas empresas com
pelo menos 150 trabalhadores as associações sindicais possam conferir às estruturas
de representação coletiva dos trabalhadores os poderes para a celebração de conven-
ções coletivas.

Ou seja, quando estejam em causa empresas com, pelo menos, 150 funcionários, as
associações sindicais terão a possibilidade de delegar poder de negociação nas estru-
turas que representam os trabalhadores na empresa (como comissões de traba-
lhadores).Até agora, esta possibilidade só estava aberta no caso de empresas de
maior dimensão, com mais de 500 trabalhadores.
268 ANTÓNIO AMADO

4. A fiscalização das condições de trabalho e comunicações à Autoridade das


Condições do Trabalho (ACT)

No que concerne à fiscalização das condições de trabalho e comunicações à ACT,


com esta alteração legislativa, são adotadas as seguintes medidas:

i) Eliminação da obrigatoriedade do envio do regulamento de empresa (alte-


ração ao artigo 99.º do CT);

ii) Aligeiramento do conteúdo das comunicações antes do início da activi-


dade da empresa ou em caso de alteração (revogação do n.º 4 do artigo 127.º do CT);

iii) Deferimento tácito do requerimento de redução ou exclusão do intervalo


de descanso, por nós já mencionado anteriormente;

iv) Eliminação da obrigatoriedade do envio do mapa de horário de trabalho


(revogação do n.º 3 do artigo 216.º do CT);

v) Eliminação da obrigatoriedade do envio do acordo de isenção de horário


(revogação do n.º 3 do artigo 218.º do CT).´

5. Outras alterações dignas de realce, plasmadas no diploma em análise

Da leitura do diploma em apreço ressaltam ainda outras alterações que, de forma


sucinta e telegráfica, passamos a dar conta, visando facilitar assim a apreensão e
compreensão imediatas, por parte do leitor, para uma eventual aplicação prática das
mesmas.

Assim,

a) São modificados os prazos de celebração e de duração do contrato a termo de


muito curta duração, potenciando o recurso a este modelo contratual em detri-
mento do trabalho informal. Deste modo, procede-se ao alargamento do prazo inicial
de uma semana para 15 dias, permitindo-se que o contrato com o mesmo emprega-
dor tenha a duração, em cada ano civil, de 70 dias de trabalho

b) O regime do contrato de trabalho em comissão de serviço é alterado, possibili-


tando que, mediante instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, seja apli-
cado em caso de exercício de funções de chefia.

c) Verificam-se alterações no âmbito da instrução de processo disciplinar para des-


pedimento por facto imputável ao trabalhador (alterações aos artigos 356.º - obriga-
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 269

toriedade da instrução no âmbito do processo disciplinar relativo a despedimento por


facto imputável ao trabalhador - artº 358.º do CT);

d) Por fim, verificam-se alterações ao nível da suspensão ou redução da laboração


por motivos de crise empresarial (alterações aos artigos 298.º, 299.º, 300.º, 301.º,
303.º, 305.º e 307.º do CT e artigo 298.º-A aditado), vulgarmente designado como
lay-off, as quais têm em vista a agilização dos respetivos procedimentos, possibili-
tando as condições necessárias para que as empresas enfrentem situações transitórias
de dificuldades evitando despedimentos por motivos económicos.

Neste sentido, são adotadas várias medidas, entre as quais:


- a admissibilidade da prorrogação da suspensão ou redução de laboração;
- a proibição de cessação de contrato de trabalho durante a aplicação da mesma e nos
30 ou 60 dias seguintes, conforme o caso, sob pena de devolução dos apoios recebi-
dos;
- e, a atribuição de um apoio no valor de 30% do Indexante de Apoios Sociais (IAS),
ao empregador e ao trabalhador, em partes iguais, em caso de frequência pelo último
de formação profissional adequada ao desenvolvimento da sua qualificação profis-
sional ou à viabilização da empresa e à manutenção dos postos de trabalho.

Enfim, vejamos à laia de resumo o que ressalta de mais problemático do diploma em


análise.

As alterações à lei que agora entraram em vigor dão um passo na uniformização


entre regimes. Para já, o diploma em estudo diz que, a partir de Novembro deste ano,
as compensações serão iguais a 20 dias de retribuição base e diuturnidades por ano
de casa, para todos os trabalhadores (salvaguardando direitos adquiridos). Mas o
Governo já acordou com a ‘troika' que, nessa altura, a redução será feita para o valor
da média europeia e já se comprometeu a entregar a proposta no Parlamento até
Setembro. De acordo com o memorando, a média europeia deverá situar-se entre 8 e
12 dias mas o valor ainda não está fechado com os parceiros sociais. Enquanto o
Código não é novamente alterado, o diploma prevê que os trabalhadores contratados
até Novembro de 2011 continuem a ter direito a uma compensação igual a um mês
de retribuição base por ano de casa (ou igual a três ou dois dias por mês no caso de
contratos a termo) a aplicar ao período de trabalho prestado até 31 de Outubro de
2012; já no tempo de trabalho exercido a partir daí, deverá ser calculado 20 dias por
ano de antiguidade. È este o valor (20 dias) que será substituído pelo da média euro-
peia. A lei estabelece ainda o pagamento mínimo de três meses no caso de contratos
definitivos mais antigos. E uma vez que o diploma passa a instituir um tecto de 12
retribuições base também para contratos anteriores a Novembro de 2011, é preciso
distinguir duas situações. Para quem tiver mais de 12 anos de casa (e portanto, direi-
to a mais de 12 salários de compensação), o valor congela a 31 de Outubro de 2012.
270 ANTÓNIO AMADO

Ou seja, o montante a que o trabalhador teria direito nesse dia é o que ficará garan-
tido no dia em que for despedido, mesmo que isso aconteça anos mais tarde. O
mesmo acontece a quem tiver direito a uma compensação superior a 116.400 euros.
Já quem trabalha há menos tempo na mesma empresa, verá as duas parcelas do cál-
culo acumularem até atingirem o montante de 12 retribuições base. As novas regras
são imperativas sobre contratos de trabalho e IRCT já celebrados que prevejam valo-
res mais altos. As alterações prejudicam duplamente contratos a prazo anteriores a
Novembro de 2011 (os outros já estão ao abrigo das novas regras) porque a forma de
calcular o salário que serve de base à compensação também muda.

Enfim, tudo em prol da retoma do crescimento económico e da criação sustentada de


emprego.

A Lei 47/2012

Com a alteração da escolaridade obrigatória para o 12º ano de escolaridade o Código


do Trabalho teve de ser ajustado de modo a que se compatibiliza-se com a idade
mínima com que se pode concluir com sucesso a escolaridade, limitando-se assim
pela lei a entrada no mercado de trabalho.

A Lei n.º 47/2012, de 29 de agosto, que entrou em vigor no passado dia 3 de Setem-
bro, procede à quarta alteração ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º
7/2009, de 12 de Fevereiro, alterada pelas Leis 105/2009, de 14 de Setembro,
53/2011, de 14 de Outubro, e 23/2012, de 25 de Junho, e pretende adequá-lo à Lei
n.º 85/2009, de 27 de Agosto, que estabelece o regime da escolaridade obrigatória
para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a univer-
salidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade,
vindo agora definir as condições em que se admite acumular algum tipo de trabalho
com os estudos bem como as sanções aplicar caso a lei seja desrespeitada

Na verdade, esta alteração legislativa tem como principal objectivo adaptar o regime
da contratação de menores ao disposto na Lei n.° 85/2009, de 27 de Agosto, que ao
regular o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens em idade
escolar prevê que "a escolaridade obrigatória cessa com a obtenção do diploma de
curso conferente de nível secundário da educação ou independentemente da obten-
ção do diploma de qualquer ciclo ou nível de ensino, no momento do ano escolar em
que o aluno perfaça 18 anos".

Neste sentido e tendo em conta o acima exposto, determina o n.º 1 do artigo 2º deste
diploma que são consideradas em idade escolar as crianças e jovens com idades
compreendidas entre os 6 e os 18 anos.
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 271

Por sua vez, o n.º 4 do mesmo artigo determina que a escolaridade obrigatória cessa:
a) Com a obtenção do diploma de curso conferente de nível secundário da educação
ou;
b) Independentemente da obtenção do diploma de qualquer ciclo ou nível de ensino,
no momento do ano escolar em que o aluno perfaça 18 anos.

É neste âmbito que são alterados o artigo 3.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro e
os artigos 68.º, 69.º, 70.º e 82.º do Código do Trabalho (por sua vez aprovados pela
Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), tendo sido aditada à respectiva redacção, como
excepção à proibição da contratação de menores, a situação de estar matriculado e a
frequentar efectivamente o ensino secundário, já que até aqui essa excepção assen-
tava apenas na conclusão da escolaridade obrigatória. Ou seja, a possibilidade de
contratação de menor fica mais facilitada.

No essencial e se quisermos sumariar as linhas mestras do diploma em estudo, pode-


ríamos faze-lo da seguinte forma:

- Desde logo, verifica-se a manutenção da regra geral de os 16 anos serem a idade


mínima para prestação de actividade remunerada com autonomia ou de forma
dependente, o que, à partida, não levanta dúvidas nem é novidade;

- Por outro lado, o diploma contempla que a prestação de actividade de forma autó-
noma, por menor com idade inferior a dezasseis anos, só poderá ser efectuada se o
mesmo tiver concluído a escolaridade obrigatória ou se estiver matriculado e a fre-
quentar o nível secundário de educação e se se tratar de trabalhos leves, sendo este
ultimo requisito cumulativo com um dos anteriores;

- Manutenção da possibilidade já contemplada na lei, de prestação de trabalho


dependente por menor com idade inferior a 16 anos que tenha concluído a escolari-
dade obrigatória ou esteja matriculado e a frequentar o nível secundário de educação,
mas não possua qualificação profissional, ou por menor com pelo menos 16 anos de
idade mas que não tenha concluído a escolaridade obrigatória, não esteja matricu-
lado e a frequentar o nível secundário de educação ou não possua qualificação pro-
fissional, desde que frequente modalidade de educação ou formação que confira,
consoante o caso, a escolaridade obrigatória, qualificação profissional, ou ambas;

- O contrato de trabalho, celebrado por menor que não tenha completado 16 anos de
idade, não tenha concluído a escolaridade obrigatória ou não esteja matriculado e a
frequentar o nível secundário de educação só é válido mediante autorização escrita
dos seus representantes legais;

- O contrato de trabalho celebrado com menor que já tenha completado 16 anos e


tenha concluído a escolaridade obrigatória ou esteja matriculado e a frequentar o
272 ANTÓNIO AMADO

nível secundário de educação é válido, excepto se houver oposição escrita dos seus
representantes legais;

- Manutenção, e bem, da sanção acessória de privação de direito a subsídio ou bene-


fício outorgado por entidade ou serviço público, por período que pode ir até dois
anos e/ou as penas de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias (se pena mais gra-
vosa não for aplicável por via de outra disposição legal) em caso de contratação de
menores em violação das regras aplicáveis, e o agravamento para o dobro no caso de
o menor não ter completado a idade mínima de admissão, não ter concluído a escola-
ridade obrigatória ou não estar matriculado e a frequentar o nível secundário de
educação.

No essencial e resumindo, com a nova alteração legislativa é possível contratar para


a realização de uma actividade remunerada (desde que se trate de trabalhos leves)
prestada com autonomia, um menor com idade inferior a 16 anos. Para isso, basta ter
concluído a escolaridade obrigatória, ou estar matriculado e a frequentar o nível
secundário.

Caso o menor veja reunidas as condições obrigatórias para contratação, é necessário


que:

(i) O empregador comunique às autoridades laborais a admissão nos 8 dias subse-


quentes;
(ii) O menor desempenhe trabalhos leves que “consistam em tarefas simples e defi-
nidas que, pela sua natureza, pelos esforços físicos ou mentais exigidos ou pelas
condições específicas em que são realizadas não sejam susceptíveis de o prejudicar
no que respeita à integridade física, segurança e saúde, assiduidade escolar, partici-
pação em programas de orientação ou de formação, capacidade para beneficiar da
instrução ministrada, ou ainda ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral, inte-
lectual e cultural”;
(iii) O período normal de trabalho não seja superior a 7 horas diárias e 35 horas
semanais;
(iv) Exista autorização escrita dos representantes legais do menor.

No entanto, a grande novidade introduzida pela Lei n° 47/2012 consiste, essencial-


mente, na actual referência à "matrícula e frequência do nível secundário de educa-
ção" no que concerne à prestação de trabalho autónomo ou dependente por menor,
porque, quanto ao resto, o menor já se encontra devidamente salvaguardado nos seus
direitos.

Por exemplo, e sem querer discorrer sobre a totalidade do regime jurídico laboral
dos menores, estes beneficiam legalmente, de entre outros direitos, de dispensa rela-
tivamente à prestação de trabalho sob o regime de adaptabilidade, banco de horas ou
DISCORRENDO SOBRE AS TERCEIRA E QUARTA ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DO TRABALHO 273

horário concentrado sempre que tais regimes, de acordo com exames médicos reali-
zados previamente, sejam prejudiciais à respectiva saúde ou segurança no trabalho.

No entanto, e por forma a concluir este pequeno artigo permitam que vos deixe com
o pensamento, em baixo transcrito, uma vez que face às continuas alterações legisla-
tivas que se vão vislumbrando no panorama jurídico português, temos receio que o
“mais legislativo” possa vir a tornar-se no “ menos legislativo”, no que à protecção
dos menores diz respeito: “ O combate à utilização indevida de trabalho menor é
crucial por forma a evitar o abandono escolar, especialmente em tempos de crise.”
Não condenamos as contínuas alterações, apenas nos questionamos se as mesmas
não virão a tornar-se maléficas para os visados por abrirem demasiadas excepções à
excepção da menoridade.

Bibliografia

Proposta de Lei 46/XII – Procede à terceira revisão do Código do Trabalho, apro-


vado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.
Lei n.º 23/2012, de 25 de junho – Procede à terceira alteração ao Código do Traba-
lho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro
Declaração de Retificação n.º 38/2012, de 23 de Julho – Retifica a Lei n.º 23/2012,
de 25 de Junho
Lei 23/2012
Lei n.º 47/2012, de 29 de Agosto – Procede à quarta alteração ao Código do Traba-
lho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, por forma a adequá-lo à Lei n.º
85/2009, de 27 de agosto, que estabelece o regime da escolaridade obrigatória para
as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade
da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade

Obs:
V. Declaração de retificação n.º 38/2012, de 2012-07-23
[DR I série Nº.121/XII/1 2012.06.25]
2012-07-23 | Retificação à lei (Publicação DR)
[DR I série Nº.141/XII/1 2012.07.23, Declaração de retificação n.º 38/2012]
Ética, Deontologia e Fair Play no Desporto
CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL *

“A ética é a estética de dentro.”

Pierre Reverdy

Introdução

A presença do desporto no nosso quotidiano é inquestionável. Sabemos que a sua


articulação, e relação com o direito não é pacífica, e quando estamos a falar, por
exemplo de “ alta competição “ o desporto desenvolve-se a um ritmo muito maior,
importando por isso, algumas dificuldades na sua regulamentação.

O direito ao desporto é constitucionalmente garantido, vg. Artº 79 da C.R.P., en-


quanto corolário das tarefas incumbidas pelo Estado, logo é-lhe exigido a inserção
de medidas não só, quando estejam em causa direitos fundamentais, mas também na
adopção de medidas que o tutelem.1 Noutro plano, falemos no direito do desporto,2
que é hoje uma realidade do nosso sistema jurídico.

JURISMAT, Portimão, n.º 2, 2013, pp. 275-298.

* Docente do ISMAT.
1
Constituição da Republica Portuguesa, anotada, Jorge Miranda, Tomo I, Coimbra Editora,
Coimbra, 2005, pág. 149
2
Por mera cautela balizamos o início deste domínio nos finais do sec. XIX, princípios do sec.
XX, com a criação das primeiras associações desportivas. Curiosamente não podiamos deixar
de aqui citar o Decreto 1.728 de 5 de Janeiro de 1925, o qual embora não se debruce directa-
mente sobre o exercício da prática desportiva, realça a sua importância.
276 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

Abraçar o tema da ética, deontologia e Fair Play, implica afastar todos os receios
iniciais que a temática suscita, porque sabemos, que se trata de uma matéria dema-
siado aliciante, actual, e transversal na nossa cultura.

Nesta esteira, observando as actividades que se realizaram no ano de 2012, que foi
desportivamente muito rico, e sem olvidar outras, frisemos as mais mediáticas, o
“Euro 2012”, ao que se seguiu o expoente máximo de realização de provas desporti-
vas os “Jogos Olímpicos”,3 para além de todas as outras provas de várias modalida-
des, que todos nós, de modo directo, ou indirecto, acabámos por nelas participar,
pelo que, impunha-se uma reflexão sobre a ética desportiva .

A exigência da sociedade, dos adeptos, e dos clubes desportivos, no tocante à obten-


ção de vitórias, medalhas, louvores, etc, obriga os atletas a um esforço, e empenha-
mento que muitas vezes têm de se superar, ultrapassando as suas limitações físicas.

Neste domínio não nos esqueçamos também, da necessária credibilização dos clubes
e agentes desportivos, que nem sempre estão em consonância com a “ verdade des-
portiva” (“Honni soy qui mal y pense”), e a dignidade exigida, quer seja esta digni-
dade aferida pela conduta dos atletas, ou dos agentes que os promovem. E é tal a sua
violação, que hoje, é unanimemente aceite a necessidade de se regulamentar na
imposição de princípios éticos, e deontológicos de índole generalista, mas também
obrigatória e logicamente adaptadas a cada modalidade.

Interiormente, todos sabemos que princípios morais, de conduta, e éticos, cabe a


cada um exercê-los. Nunca serão de fácil aplicabilidade, se forem unicamente
impostos por via legislativa numa sociedade que não sabe transmitir educação, e
valores, lembremos assim a célebre frase de Pitágoras

Eduquem as crianças, que evitam de castigar os homens.

A ideia geral, desta necessidade de impor condutas levou a que a maioria dos gover-
nos, de todas as organizações internacionais e nacionais, e de todas as federações
criassem as condições necessárias para a estipulação de normas que abarcassem
condutas éticas, às quais, imprimiu-se a oficialidade necessária para que sejam res-
peitadas.

3
Os primeiros Jogos Olímpicos que se realizaram foram no ano 2500 AC na cidade de Olímpia,
na Grécia. Pensa-se que na sua origem, está a forma de agradecimento e louvor a Zeus, e para
os efeitos realizavam-se festas de cariz religioso e simultaneamente desportivo, de quatro em
quatro anos. A título de mera curiosidade, citemos, que estes jogos assumiam tanta importância
tal, que se os povos estivessem em guerra, paravam para nas Olimpíadas poderem participar.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 277

Sublinhe-se desde já, o pensamento olímpico, o qual, assenta na promoção da ética e


do fair-play. Na Carta Olímpica, que consagra os princípios fundamentais do Movi-
mento Olímpico, encontramos preconizado que o olimpismo propõe-se “criar um
estilo de vida baseado na alegria pelo esforço, o valor educativo de um bom exemplo
e respeito pelos princípios éticos universais”.4

Embora hoje em dia já existam Códigos Internacionais sobre a ética desportiva, não
se pode falar facilmente numa codificação desportiva, ou mesmo num projecto uni-
forme de direito desportivo. A matéria em si mesma, levar-nos-ia a profundas refle-
xões, o que não é objectivamente, a intenção deste artigo, mas sim centrar a atenção
na análise de três conceitos, que entendo serem cada um deles objecto de uma certa
independência finalística, logo induzindo um resultado próprio, logicamente de
características singulares, e das práticas mais comuns anti-desportistas, o doping e
finalizando uma brevíssima referencia à corrupção.

Ética, Deontologia ou Fair Play – Conceitos diferentes?

Qualquer comportamento humano acarreta um juízo de valor, no entanto quando o


pretendemos adjectivar, associa-lo automática ou inconscientemente a uma questão
ética, e consequentemente, bifurcamo-lo ou no bem, ou no mal.5

Impõe-se assim, começar pelo sentido da expressão “ ética”, da qual retiramos logo a
sua finalidade, ou seja, a materialização por parte do Homem de conduta moral dig-
nificante, a qual enraíza-se nos costumes e na moral.

É obrigatório recuarmos à Grécia antiga6 para falarmos de ética desportiva. Sabemos


que nos primórdios dos Jogos a ideia de competição estava indubitavelmente asso-
ciada à competição honesta e de justos vencedores.

Sem fugir do tema central, torna-se necessário referenciar-se, a verdade Aristotélica,


sobre a ética, que não a vinculou a um bem abstracto e único, mas antes, a uma plu-
ralidade de virtudes da vida. Ou seja, para Aristóteles, não lhe parecia suficiente
considerar a coragem e a prudência como únicas virtudes, por serem manifestações

4
Carta Olímpica – Comité Olímpico de Potugal, art. 2º, Janeiro de 2000.
5
“A ética foi, e continua a ser a marca distititiva que sobressai na competição desportiva... é a
expressão prática de um comportamento pautado por regras de conduta morais e ordeiras”, Ana
Celeste Carvalho, O Desporto e o Direito – prevenir, disciplinar e punir, ed. Livros Horizonte,
Lisboa, 2001, pág. 15.
6
“De facto, é no Oriente sumério, egipcio e hebraico que o pensamento ocidental encontra a sua
raiz daquilo que o irá encaminhar para uma autêntica sabedoria... a reflexão ética começa a
formar-se no ambito dos Sec. V e VI a.C com o aparecimento da Filosofia”, Luís Araújo, Ética
– uma introdução, ed. I.N.C.M., Lisboa, 2005, pág. 54.
278 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

do critério ideal do Bem. Nesta perspectiva, entendia que o Bem, seria tão amplo,
como absolutamente vazio e formal, não dizendo nada acerca do conteúdo moral de
cada situação, sendo portanto inútil para diferenciar um acto corajoso, de um covar-
de.7 Se nos debruçarmos um pouco sobre a filosofia Aristotélica, talvez vejamos
melhor aquilo que efectivamente se pretende, ao atribuirmos à ética desportiva um
espaço diferenciado. Quero com isto dizer, que a ética não se reconduz a uma ideia,
de só se incutir a verdade, mas acima de tudo, acentuar os valores morais, os quais
terão necessariamente um sentido lato e abrangente, e não um monismo valorativo.
A ética desportiva, tem de assentar a tónica nos valores humanos básicos de qual-
quer vivência em sociedade, ou seja, na valoração da educação, e na valoração de
princípios.8

Comummente, associamos ética à deontologia, mas numa análise mais profunda do


significado desta ultima, encontramos no Deontologismo, s.m. um sistema baseado
na noção de dever. 9 Sem nos divorciarmos do tema central, necessariamente temos
de referir, que a título de exemplo, em todas as nossas ordens profissionais10 encon-
tramos o uso da expressão deontologia indistintamente usado com a de ética. Como
sabemos, há inúmeras regras de ética que nos podem aparecer sob formas de jura-
mentos, muitas vezes também “formatadas” quase em orações, e outros rituais.

7
Aristóteles foi o primeiro filósofo a distinguir a ética da política, centrada a primeira na acção
voluntária e moral do indivíduo enquanto tal, e a segunda, nas vinculações deste com a comu-
nidade. Dotado de lógos, "palavra", isto é, de comunicação, o homem é um animal político,
inclinado a fazer parte de uma pólis, a "cidade" enquanto sociedade política. A cidade precede
assim a família, e até o indivíduo, porque responde a um impulso natural. Dos círculos em que
o homem se move, a família, a tribo, a pólis, só esta última constitui uma sociedade perfeita.
Daí serem políticas, de certo modo, todas as relações humanas. A pólis é o fim (talos) e a causa
final da associação humana. Uma forma especial de amizade, a concórdia, constitui seu ali-
cerce. Ética a Nicômaco Aristóteles Tradução: Pietro Nassetti
8
“... mas o ser humano é, como escreveu Aristóteles, um animal politico, por natureza a ética
não está separada da politica”, Luís Araújo, Ética – uma introdução, ob. cit., pag. 57.
9
Contemporaneamente sabe-se que é uma das teorias normativas, isto é, as escolhas são moral-
mente necessárias, proibidas ou permitidas. Foi Bentham, em 1834, que utilizou a expressão
para referir-se ao ramo da ética cujo objecto de estudo são os fundamentos do dever e das nor-
mas morais. De salientar ainda a deontologia Kantiana, que se fundamenta em dois conceitos
que lhe dão sustentação: a razão prática e a liberdade. Ainda na análise kantiana refira-se que a
perfeição moral só podia ser atingida por uma vontade livre. A deontologia também se refere ao
conjunto de princípios e regras de conduta – os deveres – inerentes a uma determinada profis-
são. Assim, em cada actividade profissional há uma deontologia própria que regula o seu exer-
cício, normalmente sob a denominação de Código de Ética.
10
O primeiro Código de Deontologia foi elaborado nos Estados Unidos da América na área
médica, pelo filósofo e médico Tomas Percival, em 1803, que publicou o Código de Ética
Médica. Ainda neste domínio, a título de mera curiosidade, cite-se que o Código de Hamurabi,
em 1780 a.C. já apresentava normas de conduta médica, e o mais conhecido o juramento de
Hipócrates. De referir, ainda o Juramento de Asaf, no sec. VII, que revela influências hipocráti-
cas nas suas orientações sobre a não administração de venenos ou abortivos na realização de
cirurgias, o não cometimento de adultério e o sigilo profissional.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 279

Quando falamos em regras deontológicas, quase sempre aparecem-nos sob a forma


de cumprimentos de deveres, materializados em deveres de conduta.

Ou seja, em termos gerais a ética assenta num comportamento moral individual,


conscientemente irrepreensível, o qual tem de se integrar em comportamentos de
coexistência em sociedade, e o deontologismo consubstancia-se em deveres de con-
duta.

No tocante à actividade desportiva, a qual assenta nos dias de hoje numa preocupa-
ção excessiva (diria, quase que única) no conceito de vitórias, esquecendo-se os seus
agentes, e a própria sociedade, que à vitória também pode estar associada a vergonha
e desonra, sem olvidar as perdas, designadamente de ordem individual, social, e até
patrimonial. É um dado adquirido que a ética, “consiste portanto, no conjunto de
valores morais existentes, e que condena todas as práticas anti-desportivas”.11 Neste
sentido e por isso, defendemos que a ética está intimamente ligada ao conceito mais
simples do ser humano, ou seja, à verdade como pilar do comportamento e formação
humana, e sob pena de nos repetirmos, a deontologia indicia o dever de cumpri-
mento de regras de conduta social, as quais não se esgotam nas normas impostas.

Internacionalmente tem existido uma crescente preocupação, no sentido de legislar


princípios éticos, de conteúdo moral, entre os quais, salientamos o Movimento
Olímpico. Não alheadas a normas comportamentais, as normas olímpicas encon-
tram-se definidas nos Princípios Fundamentais da Carta Olímpica, a qual, preconiza
no art.º 2 “que o olímpismo é uma filosofia de vida aliando o desporto com cultura e
educação, respeito pelos princípios éticos fundamentais universais.... o objectivo é
sempre o desporto ao serviço do homem , de favorecer o estabelecimento de uma
sociedade pacifica e acções a favor da paz”.

No âmbito governativo frisemos o Código de Ética Desportiva, elaborado na 7ª Confe-


rencia dos Ministros Europeus, que representou um passo para o desenvolvimento da
verdade no desporto. Reunidos em Rhodes, (1992), e nele foi estabelecido o seguinte:

1. O Código da Ética no desporto do Conselho da Europa para o


“Fair play no desporto” é uma declaração de intenção aceite pelos
Ministros europeus responsáveis pelo Desporto.
2. O Código parte do princípio que as considerações éticas que estão
na origem do fair play não são um elemento facultativo mas algo
essencial a toda a actividade desportiva, toda a política e toda a ges-
tão no domínio do desporto e que se aplicam a todos os níveis de
competência e de envolvimento da actividade desportiva, e tanto nas
actividades recreativas como no desporto de competição.

11
Ana Celeste Carvalho, O Desporto e o Direito, ob. cit., pág. 18.
280 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

3. O Código fornece um sólido quadro ético destinado a combater as


pressões exercidas pela sociedade moderna, pressões estas, que se
revelam ameaçadoras para os fundamentos tradicionais do desporto,
os quais assentam no fair play, no espírito desportivo e no movimento
voluntário.

AS INTENÇÕES DO CÓDIGO
4. O Código está essencialmente centrado no fair play nas crianças e
nos adolescentes, que serão os praticantes e vedetas do desporto de
amanhã. No entanto, o Código dirige-se às instituições e aos adultos
que têm uma influência directa ou indirecta sobre o envolvimento e a
participação dos jovens no desporto.
5. O Código engloba a noção do direito das crianças e dos adoles-
centes de praticar um desporto e dele tirar satisfação, e a noção da
responsabilidade das instituições e dos adultos como promotores do
fair play e garantes do respeito destes direitos.

Permitam-me realçar desde já, uma certa timidez na sua feitura, pela utilização da
expressão “... declaração de intenção ...”, embora a terminologia da sua qualificação
jurídica seja a de “Código”. Foi assim conforme nele é referido, intenção muito
profícua dos governos em criar um código, e daí talvez surgisse a possibilidade de se
proceder à introdução rigorosa de princípios vinculadores de critérios formais. Isto é,
a declaração de intenções certamente poderia integrar qualquer estudo preliminar
com o mesmo nome, quero dizer «Declaração de intenções», mas um código, certa-
mente que terá de ir mais longe.

Ainda nesta esteira, os princípios nele preceituados saltam de imediato para um


conceito mais abrangente, quotidianamente muito utilizado até utilizado noutras
vertentes, o qual merece uma especial atenção o – FAIR PLAY.

Diz o Código

DEFINIÇÃO DE FAIR PLAY:


6. O fair play significa muito mais do que o simples respeitar das
regras; mas cobre as noções de amizade, de respeito pelo outro, e de
espírito desportivo, um modo de pensar, e não simplesmente um com-
portamento. O conceito abrange a problemática da luta contra a
batota, a arte de usar a astúcia dentro do respeito das regras, o
doping, a violência (tanto física como verbal), a desigualdade de
oportunidades, a comercialização excessiva e a corrupção.
7. O fair play é um conceito positivo. O Código considera o desporto
como uma actividade sócio - cultural que enriquece a sociedade e a
amizade entre as nações, contanto que seja praticado legalmente. O
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 281

desporto é também considerado como uma actividade que, de for


exercida de maneira leal, permite ao indivíduo conhecer-se melhor,
exprimir-se e realizar-se; desenvolver-se plenamente, adquirir uma
arte e demonstrar as suas capacidades; o desporto permite uma inte-
racção social, é fonte de prazer e proporciona bem-estar e saúde. O
desporto, com o seu vasto leque de clubes e voluntários, oferece a
ocasião de envolver-se e de tomar responsabilidades na sociedade.
Além disso, o envolvimento responsável em certas actividades pode
contribuir para o desenvolvimento da sensibilidade para com o meio-
ambiente.”

Realcemos neste normativo do Código de Ética do Desporto, que integra a expressão


“ Fair Play”, a qual abarca em si mesma um conjunto extensíssimo de realidades.

Ou seja, da noção de “Fair Play” que nos é transmitida, retiramos a ideia de um


conjunto de condutas as quais abrangem, desde o comportamento educacional a
incutir em qualquer agente, à proibição das desigualdades no desporto, até à mate-
rialização de actos os quais poderão assumir uma gravidade extrema, designada-
mente a utilização de substâncias químicas que adulteram fisicamente qualquer atle-
ta humano, ou animal, vulgarmente denominado de doping.

Pretende-se com o Fair Play desportivo, mais do que respeitar regras, abarcar o saber
estar, o saber individual (mesmo em desportos colectivos), alimentar-se a interacção
social, preconizar-se acima de tudo um modo de estar.

Mas será, que sem uma política educacional forte, enraizada em valores referenciais
podemos impor políticas de desporto? Tenho dúvidas.

A ética desportiva, de modo algum poderá ser imposta a uma sociedade, ou desvin-
cular-se da ética da própria sociedade. Não afasto, pelo contrário alimento a ideia de
que por via de comportamentos éticos desportivos, devem os seus agentes incutir a
jovens e crianças, e mesmo a adultos valores educacionais.

Torna-se assim necessário, fazer crescer os nossos atletas com condutas de saber
estar, de saber viver, de saber respeitar, para depois de as interiorizar, sabe-las cum-
prir. Isto é, numa provocação intelectual, diríamos que, numa primeira fase estare-
mos perante regras éticas, na segunda teremos regras deontológicas, e por fim atingi-
remos o Fair Play.

No nosso sistema jurídico, conhecemos vários diplomas, os quais ilustram a preocu-


pação legislativa no tocante à ética desportiva, designadamente a Lei 39/2009 de 30
de Junho que estabelecia o “Regime Jurídico do Combate à violência, ao racismo, à
xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, de forma a possibilitar a
282 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

realização dos mesmos com segurança”; o Dec. Lei 248-B/ 2008 de 31 de Dezem-
bro, que veio regulamentar a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, e pela
Lei 5/2007, de 16 de Janeiro, que “ veio estabelecer um conjunto de orientações às
federações desportivas, as quais apontam para a necessidade de se proceder a uma
extensa reforma relativamente à organização e funcionamento destas organizações,
assente em novos princípios e valores, reflectindo acrescidas exigências éticas, para
que aquelas possam responder, com eficácia, aos novos desafios com que estão con-
frontadas”; e a Lei 19/2008 de 21 de Abril que aprova medidas de combate à corrup-
ção.

Objecto da nossa atenção, a Lei n. 5/2007, de 16 de Janeiro, que define as Bases da


Actividade Física e do Desporto cujo objecto e princípios gerais vêem estipulados no
Artigo 2º que preconiza os Princípios da Universalidade e da Igualdade, que a seguir
se transcreve:

1 - Todos têm direito à actividade física e desportiva, independente-


mente da sua ascendência, sexo, raça, etnia, língua, território de ori-
gem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica, condição social ou orientação sexual.
2 - A actividade física e o desporto devem contribuir para a promoção
de uma situação equilibrada e não discriminatória entre homens e
mulheres.

No tocante à ética, o normativo do artigo 3 deste diploma, realça o

Princípio da ética desportiva


1 - A actividade desportiva é desenvolvida em observância dos princí-
pios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva
e da formação integral de todos os participantes.
2 - Incumbe ao Estado adoptar as medidas tendentes a prevenir e a
punir as manifestações anti desportivas, designadamente a violência,
a dopagem, a corrupção, o racismo, a xenofobia e qualquer forma de
discriminação.
3 - São especialmente apoiados as iniciativas e os projectos, em favor
do espírito desportivo e da tolerância.

Ou seja, o desporto deve ser desenvolvido sob os princípios da ética, sob os princí-
pios da igualdade de todos os participantes, mas acima de tudo sob o espírito da
Verdade, sob pena de se descredibilizar.

No n.º 2 deste mesmo artigo, encontramos o dever que o Estado tem no sentido de
prevenir, e punir práticas que violem qualquer manifestação anti desportiva, desig-
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 283

nadamente, os princípios da lealdade, e da equidade, materializados nos conceitos de


violência, doping, corrupção, racismo e xenofobia.

Claro que o desenvolvimento da prática desportiva tem duas vertentes, uma que deve
ser incutida aos atletas do ponto de vista educacional e de sociedade, não nos esque-
çamos de que existe, até em cada modalidade, um multiculturalismo por parte dos
seus agentes, e a outra no tocante ao seu cumprimento de regras técnicas na quali-
dade de praticantes de cada modalidade. Isto é, os atletas só têm uma finalidade
ganhar, qualquer desporto é acima de tudo competição, e assim sendo, compete ao
atleta apresentar-se com uma disciplina mental rigorosa, para que possa ser um cum-
pridor do normativismo técnico a que está obrigado.

Abrindo um breve parêntesis, esta última matéria, leva-nos a uma questão técnica
complicada, que é a fronteira, em caso de infracção ou conflito de questões estrita-
mente desportivas. É conhecida a denominação jurídica de “Justiça desportiva”, a
qual é muitas vezes difícil e indefinida, isto é, em contraposição com matérias de
natureza técnica.12 Vejamos, a Lei 5/2007 no art. 18 º refere expressamente que:

1 - Os litígios emergentes dos actos e omissões dos órgãos das fede-


rações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício
dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso admi-
nistrativo, ficando sempre salvaguardados os efeitos desportivos
entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da
instância competente na ordem desportiva.

12
Durante mais de três décadas a jurisprudência dos tribunais comunitários e a prática decisória
da Comissão Europeia convergiram na conclusão de que o direito comunitário só se aplica ao
desporto na medida em que este constitua uma actividade económica. Consequente e correlati-
vamente, foi-se solidificando a premissa de que as “regras puramente desportivas”, destituídas
de carácter económico, ficam fora do escrutínio do direito comunitário. O referido percurso de
três décadas não foi, todavia, isento de um problema que ameaçou eternizar-se: a definição
daquilo que se deve entender por “regra puramente desportiva”. Na verdade, este conceito foi
sucessivamente densificado de múltiplas formas, não necessariamente coincidentes, no seio e
entre diversos “actores comunitários”. A Comissão Europeia começou por definir regra “pura-
mente desportiva” como a regra “limitada ao estritamente necessário para atingir o objectivo de
assegurar a incerteza dos resultados” (Van Miert, 1997, citado em Alexandre Mestre, “Meca-
Medina: O fim de um problema e o início de outro”, Revista da Associação Portuguesa de
Direito Desportivo, Crónica n.º 10, 2007). Depois, definiu-a como aquela “questão não econó-
mica, conexa com a natureza específica do desporto” (caso Mouscron, 1998). Por seu turno, o
Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (TPI), no famoso caso Meca-
Medina, entendeu que as “regras puramente desportivas” são aquelas “inerentes à organização e
ao bom desenrolar da competição desportiva e, enquanto tais, são alheias à actividade econó-
mica” (Meca-Medina, 2004). No mesmo aresto, o TPI avançou igualmente que estas regras
“por natureza escapam ao direito comunitário”, porque “não prosseguem qualquer objecto eco-
nómico”, antes um objecto “intimamente ligado ao desporto. – Alexandre Mestre, “Meca-
Medina”, ob. cit.
284 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

2 - Não são susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes


na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estri-
tamente desportivas.
3 - São questões estritamente desportivas as que tenham por funda-
mento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, enquan-
to questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamen-
tos e das regras de organização das respectivas competições.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, as decisões e delibe-
rações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no
âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da
xenofobia não são matérias estritamente desportivas.
5 - Os litígios relativos a questões estritamente desportivas podem ser
resolvidos por recurso à arbitragem ou mediação, dependendo de
prévia existência de compromisso arbitral escrito ou sujeição a dispo-
sição estatutária ou regulamentar das associações desportivas.13

Retiramos da legislação, que no caso de qualquer agente desportivo, violar normas


de natureza ética, comportamental e considerada tecnicamente desportiva, são os
órgãos disciplinares da federação da modalidade que lhe diz respeito, a iniciarem,
instruírem e aplicarem a sanção respectiva. Dentro destas infracções desportivas
temos de dividir ainda em dois tipos: as infracções de índole meramente desportiva,
por exemplo, julgamentos pelos árbitros, ou qualquer oficial no exercício das suas
funções federativas numa prova desportiva, e que pela sua natureza e função são
insusceptíveis de recurso, ex: uma falta não assinalada, e as que pela sua natureza e
função podem ser recorríveis.14 Neste domínio citemos alguns Acórdãos do Supremo
Tribunal Administrativo, que tem assumido uma jurisprudência unânime no sentido
de excluir a possibilidade de recurso fora das instâncias competentes da ordem des-
portiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas, conside-
rando assim estas últimas aquelas que tenham por fundamento normas de natureza
técnica ou de carácter disciplinar, cfr. Acórdão do S.T.A. sobre uma questão estrita-
mente desportiva.15

13
Toda a legislação desportiva, e de todas as modalidades encontra-se no site do Instituto Portu-
guês do Desporto e da Juventude IPDJ I.P. que é no nosso país a entidade que visa a execução
da política para as áreas do desporto e da juventude, em estreita colaboração com todos os entes
públicos e privados, designadamente com organismos desportivos, associações juvenis, estu-
dantis e autarquias locais. Tem como função principal a promoção e formação do desporto e da
juventude.
14
“A maioria das sanções disciplinares desportivas nascem desde logo no terreno de jogo, sendo a
maior parte delas (grossa fatia a dos “cartões” / admoestações...) isentas de qualquer contesta-
ção imediata possível, começando porém a produzir também os seus efeitos no momento ime-
diato em que se verifica”. Rui Alexandre Silva, “Da infracção disciplinar à sanção disciplinar
na regulamentação desportiva”, in O Desporto e o Direito, ob. cit., pág. 61.
15
Ac. do STA de 24-09-21010, Recurso Jurisdicional do Cons. Jurisdicional da Federação Portu-
guesa de Golfe, proc. n.º 0295/10.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 285

Ainda nesta matéria, o Regime Disciplinar das Federações Desportivas Lei 112/99
de 3 de Agosto, dispõe no artigo 1:

Regulamentos disciplinares - 1 - As federações desportivas titulares


do estatuto de utilidade pública desportiva devem dispor de regula-
mentos disciplinares com vista a sancionar a violação das regras de
jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas,
nomeadamente as relativas à ética desportiva. 2 - Para efeitos da pre-
sente lei, são consideradas normas de defesa da ética desportiva as
que visam sancionar a violência, a dopagem ou a corrupção, bem
como todas as manifestações de perversão do fenómeno desportivo.

Frisemos ainda a título de exemplo, a Federação Portuguesa de Futebol, que nos


seus estatutos, de acordo com a sua filiação na FIFA e na UEFA, compromete-se a
observar os princípios da lealdade, da integridade e do desportivismo de acordo com
as regras do Fair Play, que por sua vez nos remete para o Código de Conduta da
UEFA (criado em 2005).16 De todas as federações que foram objecto de pesquisa,
saliento duas que me pareceram mais explicitas, com objectivos desportivos comple-
tamente distintos, e neste âmbito exemplificativas no tocante ao Código de Conduta
para os seus atletas, a Federação Portuguesa de Rugby,17 e a Federação Equestre
Portuguesa.18

16
Durante a realização do Euro 2012, o Comité de Controlo e Disciplina julgará o processo
disciplinar instaurado à federação croata, por comportamentos racistas dos seus adeptos durante
o encontro com a Itália A filiada croata é acusada de “conduta imprópria” dos seus adeptos,
incluindo “símbolos e cânticos racistas”.
Da Federação Portuguesa de Rugby: 2.3 Ser honesto em todas as situações, nomeadamente nas
relações com todos os intervenientes da Academia do CAR, assim como com eventuais equipas
adversárias. // 2.4 Ser sempre solidário. // 2.5 Ter confiança e atitude positiva. // 2.10 Ter sem-
pre Fair Play, cumprindo as leis de jogo, aceitando as decisões do árbitro, respeitando-o assim
como o adversário. // 2.11 Ser responsável fora de campo, comportando-se como um despor-
tista, nomeadamente em relação ao consumo de álcool ou outra substâncias, ao tabaco e às
horas de sono. // 2.12 Manter hábitos de vida saudáveis e ter comportamento ético e desportista
que sejam exemplo da sua condição de cidadão/desportista e da modalidade.
17
Código de Conduta: 2.3. Ser honesto em todas as situações, nomeadamente nas relações com
todos os intervenientes da Academia do CAR, assim como com eventuais equipas adversárias.
// 2.4 Ser sempre solidário. // 2.5 Ter confiança e atitude positiva. // 2.10 Ter sempre Fair Play,
cumprindo as leis de jogo, aceitando as decisões do árbitro, respeitando-o assim como o adver-
sário. // 2.11 Ser responsável fora de campo, comportando-se como um desportista, nomeada-
mente em relação ao consumo de álcool ou outra substâncias, ao tabaco e às horas de sono. //
2.12 Manter hábitos de vida saudáveis e ter comportamento ético e desportista que sejam
exemplo da sua condição de cidadão/desportista e da modalidade.
18
PARA O BEM-ESTAR DO CAVALO: A Federação Equestre Internacional (FEI) exige que as
Federações Nacionais e todos os envolvidos no desporto equestre internacional sigam este
Código de Conduta e considerem que o bem-estar do cavalo deve ser prioritário em todas as
situações e estar acima de qualquer influência competitiva ou comercial. // 1. Em todas as eta-
286 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

É assim bem patente a preocupação de todas as federações na estipulação de normas,


as quais assumem, não só uma natureza comportamental, mas o seu não cumpri-
mento acarreta para o infractor medidas disciplinares a serem aplicadas pelos res-
pectivos conselhos de disciplina.19

A responsabilidade disciplinar nos termos da Lei 112/99, cfr. art.º 4 “é independente


da responsabilidade civil ou penal”.20 É pacifico que no caso de o atleta incorrer
numa infracção desportiva, por exemplo agressões físicas, verbais, uso de gestos
considerados socialmente obscenos, e o exercício de cargos por pessoas não habili-
tadas, a primeira sanção é a da invalidação, desqualificação e/ou eliminação da pro-
va consoante o regulamento desportivo da modalidade,21 mas de um acto do qual
resulte uma violação técnica, cite-se, a título de exemplo, de ética desportiva, de
violência, de dopagem ou de corrupção, bem como todas as manifestações de per-
versão do fenómeno desportivo, serão subjectiva e objectivamente objecto de uma
acção civil22 e/ou penal.23 A questão tem particular relevância nos casos por exemplo
de doping.24

pas de preparação e apresentação de cavalos de competição, o bem-estar do cavalo deve estar


acima de todas as outras exigências. Tal inclui boa gestão do cavalo, métodos de treino, ferra-
ção e arreios, e transporte. // 2. Cavalos e Atletas têm de estar em forma e saudáveis para serem
autorizados a competir. Têm de ser tomados em consideração factores tais como: uso de medi-
camentos, intervenções cirúrgicas que possam ameaçar o bem-estar ou segurança, gravidez das
éguas e o mau uso das ajudas. // 3. Os concursos não devem prejudicar o bem-estar do cavalo.
Tal implica uma atenção especial às pistas de competição, pisos, condições atmosféricas, está-
bulos, segurança das instalações e saúde do cavalo para viajar depois do concurso. // 4. Têm de
ser feitos todos os esforços para garantir aos cavalos cuidados adequados depois de cada com-
petição e que sejam bem tratados quando terminem as suas carreiras desportivas. Isto inclui tra-
tamento veterinário adequado, tratamento das lesões de competição, reforma e eutanásia.
19
Por exemplo, em Outubro de 2011, José Mourinho, treinador Real Madrid, foi suspenso por
dois jogos pelo incidente no jogo da Super Taça de Espanha, por decisão tomada pelo Comité
de Competição da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF). O incidente ocorreu nos
minutos finais do Barcelona -Real Madrid pela expulsão de um dos seus jogadores que gerou
uma confusão e as imagens de televisão mostraram José Mourinho a colocar um dedo no olho
direito do jogador Titto Vilanova, que respondeu com um empurrão.
20
Sobre a responsabilidade do atleta no caso de infracção será objecto de uma breve referência na
matéria do doping.
21
“Pela proibição de arbítrio, à qual está subjacente o respeito pelo pelo principio da igualdade,
de consagração constitucional art.º 13 n. 1 da C.R.P. Rui Alexandre Silva, “Da infracção disci-
plinar à sanção disciplinar na regulamentação desportiva”, ob. cit., pág. 78.
22
No âmbito da responsabilidade civil subjectiva, temos necessáriamente de referir o princípio da
culpa “A culpa é hoje entendida como um juízo como um facto que assenta no nexo existente
entre o facto e a vontade do autor”, como refere Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I
Vol., 10ª ed., ed. Almedina, Coimbra, 2000, pag. 566.
23
Conforme dispõe o art.º 13º do Código Penal português “Só é punível o facto praticado com
dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
24
Esta matéria é analisada seguidamente.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 287

Mas, tal como refere o Comité Internacional para o Fair Play “o espírito desportivo
não é uma noção que diz apenas respeito ao desporto, mas o próprio princípio de
toda a coexistência e de toda a cooperação entre os Homens. Todo o Homem deve-
ria ter a possibilidade de fazer desporto no quadro do espírito desportivo”.

Como nos diz Olímpio Bento “ Fundamentais no terreno da ética são também a
generosidade, a paciência e a interminável esperança que nos impulsiona em todos
os recomeços. De resto já Pierre de Coubertin nos aconselhava a ter paciência e
esperança, porque os dias da história são longos.

Em síntese, para um desporto com as marcas indeléveis da condição e do espírito


humanos não há garantias e critérios em que possamos confiar cega e automatica-
mente. Esse desporto para se concretizar tem que ser desejado; tem que ser querido
e desejado aquilo que o determina e perfaz. Tem que ser obra da inteligência, da
paixão, da vontade e acção éticas de instituições responsavelmente actuantes, que
sejam morais e merecedoras de confiança pelo seu compromisso e empenho na
consumação de um desporto pautado pelo bem e pelo belo, ao serviço da vida boa e
correcta e da humanização da humanidade. Cada um de nós é também uma institui-
ção!25

O ensaio de uma reflexão sobre a ética, deontologia e Fair Play desportivos, certa-
mente ficaria incompleta, ou mesmo esvaziada de conteúdo se não nos debruçásse-
mos um pouco sobre algumas práticas, que infelizmente traduzem comportamentos
anti-desportivos, designadamente, um dos mais mediáticos – o doping.26

A) Doping27

É do conhecimento comum que a utilização de substâncias químicas que aumentam,


ou disfarçam o rendimento do comportamento físico de qualquer atleta, é objecto de
medidas que lutam contra a sua utilização. Resta saber, se da sua proibição, e numa
análise mais profunda estarão só incorporadas normas éticas, deontológicas, de fair
Play, ou de qualquer outra natureza.

25
Jorge Olimpio Bento, “Do homo sportivus: entre a utopia e a preocupação”, in Povos e Cultu-
ras, ed. Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa – Universidade Cató-
lica, n.º 9, 2004, pág. 37.
26
O doping, é objecto de regulamentação internacional e nacional, não só no âmbito governamen-
tal, mas todas as federeções têm normas juridicas próprias sobre a matéria.
27
“Sem se encontrar ligada directamente ao desporto, a palavra doping surge pela primeira vez
em 1889 no dicionário inglés como prática de dar aos cavalos ópio ou outras drogas. É a partir
de 1933, que a palavra é aceite a nível internacional, ainda que, sempre considerada em termos
gerais anti-desportivos”, Sérgio Nuno Castanheira, O fenómeno do doping no desporto – O
atleta responsável e o irresponsavel, ed. Almedina, Coimbra, 2011, pág. 17.
288 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

A utilização de substancias dopantes,28 que não são só utilizadas para a vulgarmente


denominada alta competição , constitui um dos pilares fundamentais para a preser-
vação dos valores da honestidade , e verdade desportiva. Não estamos longe do
“Sindroma do Popeye”, como defende Sidónio Serpa,29 que se encontra no mundo
do desporto, em que os atletas, treinadores e demais operadores do desporto à seme-
lhança do famoso Obelix , pretendem ingerir uma poção “mágica”, que lhes permite
conseguir resultados físicos surpreendentes com vista a obter determinados resulta-
dos desportivos.

Saliento uma questão que certamente nos tem de deixar uma profunda reflexão a
qual transcrevo: “... Há uma questão central a partir da qual se organiza todo o pen-
samento desportivo – Qual o lugar do corpo, nos dias de hoje?”.30

O primeiro registo de um atleta que ingeriu químicos para aumentar a sua capaci-
dade física reporta a 1904 Thomas Hicks. Este atleta ganhou a maratona, e para o
efeito recorreu a grandes doses de conhaque e estricnina, para conseguir aguentar o
desgaste físico que a maratona exige.31 Sabemos no entanto, que a sua pratica
remonta aos primórdios dos Jogos Olímpicos gregos, no ano 750 a. C., que na altura
procedia-se à ingestão de carne e sangue para os atletas aumentarem a sua resistência
física. A título de curiosidade, a sua dosagem e qualidade variava consoante a moda-
lidade que praticavam, por exemplo, os saltadores comiam carne de cabra, os lança-
dores comiam carne de touro, e os lutadores carne de porco. Assim como, na Roma
antiga os atletas romanos tomavam drogas de efeito purificante, e os próprios cava-
los nas corridas ingeriam na ração o hidromel para aumentar a sua resistência.32

É quase unânime considerar que esta prática começou-se a desenvolver intensa-


mente, a partir do momento em que começaram a realizar-se grandes eventos des-
portivos por todo o mundo. No entanto, há mais de cinco mil anos, que na China se
usava uma planta Efedra pelas suas propriedades medicinais, sobretudo como fonte
energética, e melhoria da performance atlética. Bem como, é sobejamente conhecida

28
São designadamente: os estimulantes; narcóticos; canabinóides; agentes anabolizantes; hormo-
nas peptídicas; beta-2 agonistas; diuréticos e outros agentes mascarantes; glucocorticosteróides;
dopagem sanguínea; manipulação farmacológica, química e física; álcool; beta-bloqueantes.
29
Sidónio Serpa, Dopagem e Psicologia, ed. Bertrand, Centro de Estudos e Formação Desportivo,
Lisboa, 2002, págs. 11 a 17.
30
Paulo Cunha e Silva, “O corpo, laboratório da performance desportiva”, in Em Defesa do Des-
porto – mutações e valores em conflito, ed. Almedina, 2009, pág. 358-390.
31
Depois disso parece que por volta de 1936 os atletas da Alemanha Nazi já usavam os primeiros
esteróides à base de testosterona, e em 1954,houve alguns rumores que durante o campeonato
do Mundo de levantamento de pesos os desportistas soviéticos também se socorreram de tes-
tosterona.
32
António S. Ramos Gordillo, Dopage y Deporte, Antecedentes y Evolución, Universidad de las
Palmas de Gran Canaria, Las Palmas, 2000, págs. 22 a 25
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 289

na América latina o uso das folhas de Coca, cujo efeito, para além de ser muito esti-
mulante, diminui o cansaço físico.

Hoje em dia já é muito discutido, e considerado uma das grandes preocupações a


nível mundial o doping genético, sendo considerado um dos maiores desafios do
combate à dopagem, também é conhecido pelo doping invisível. O conceito surgiu
formalmente em 2003, na lista adoptada pela Agência Mundial Antidopagem, e há
até quem afirme que estamos perante o «doping do futuro».33

São inúmeros os casos de doping,34 a título de curiosidade as primeiras análises de


doping que se realizaram, no âmbito de provas desportivas internacionais, foram as
que se realizaram nas corridas de cães (galgos), e nos cavalos através da sua saliva.
Nos humanos muitos casos de doping tornaram-se famosos, sendo um dos mais
mediáticos o do ciclista norte-americano Lance Armstrong,35 que terá utilizado Eri-
tropoietina no primeiro Tour de France que ganhou em 1999. Sujeito a análises, com
base em amostras de urina congelada, recolhidas antes do início e durante a compe-
tição, todas deram um resultado negativo. De frisar, que na época os laboratórios não
dispunham de tecnologia disponível para detectar certos produtos químicos. Em
2006, Lance Armstrong volta a ser considerado inocente das acusações de doping, e
em 2011, surgiram novas acusações desta vez provocadas por dois dos seus colegas,
que fizeram parte da sua equipe dos USA, sendo um deles o veterano Tyler Hamil-
ton (melhor amigo da equipe de Armstrong), que resolveu contar tudo nas investiga-
ções conduzidas pelo FBI. Em Junho de 2012 a agência norte-americana antidopa-
gem – U. S Anti-Doping Agency /USADA – acusou formalmente Armstrong do
consumo de substâncias ilícitas, baseando-se em amostras sanguíneas de 2009 e
2010 e também com os testemunhos de outros ciclistas. Como se sabe, em 22 de
Outubro de 2012, a União Internacional do Ciclismo retirou as sete vitórias na Volta
à França em bicicleta, e decidiu também, que Lance Armstrong nunca mais poderá
voltar a participar em provas oficiais.

Em Portugal,36 houve um caso de realce, o do famoso ciclista Joaquim Agostinho,


cuja carreira recheada de vitórias e glórias, é estigmatizada pelos processos de

33
Sumariamente trata-se da preparação laboratorial de células humanas que permitem reacções
endógenas que ajudam a uma melhor performance física. Ou seja, a formação de uma substân-
cia dopante do próprio corpo. Como essa produção é fisiológica, não exigindo a ingestão ou
injecção de substâncias proibidas, o doping genético é invisível e indetectável, e há quem o
entenda como ainda mais eficaz.
34
Nos Jogos Olímpicos, desde que há registo de controle tem-se verificado um aumento do nume-
ro de atletas com resultados de análises positivos, ex: J.O. Atlanta (1996) 2; J.O. Sydney (2000)
10; J.O. Atenas (2004) 25; J.O. Pequim (2008) 21.
35
Lance Armstrong é muito admirado em todo o mundo, pelo facto de ter conseguido conquistar
por sete vezes consecutivas o Tour de France, após ter-se recuperado de uma doença do foro
oncológico, além da sua luta pelo apoio às vítimas da doença.
36
O primeiro controlo de doping foi realizado em 1968, na primeira volta a Portugal em bicicleta.
290 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

doping de que foi alvo. Não alheio às críticas que se lhe teceram na altura, as suas
quedas durante as provas, invulgarmente excessivas, geraram sempre as conclusões
obvias das suas análises, ou seja, das cinco vezes que foi decretado vencedor da
Volta à Portugal (entre 1969 e 1973) em duas foi anulado o título de vencedor pelo
resultado positivo de doping.

Antes de mais, sublinhe-se que a luta antidopagem, para além de defender o “espírito
desportivo”, pela verdade do desporto, e pela igualdade entre todos os participantes,
atende-se também a um valor jurídico que não pode ser esquecido, o da saúde dos
atletas.

O nosso regime jurídico adoptou estas preocupações conforme já referimos, pela


recente Lei 38/2012 de 28 de Agosto37 a qual preconiza, que o controle pode efec-
tuar-se a todos os praticantes desportivos, independentemente do seu consentimento,
mesmo fora da competição, e sem aviso prévio, de acordo com o art.º 31 n.º 1 e 2
(aina nesta matéria de notar que o controlo sem aviso prévio realiza-se sem o conhe-
cimento do atleta, e este será continuamente acompanhado desde o momento da
notificação até à recolha da análise, cf. art. 2º al. k). No caso “de menores de idade,
no acto de inscrição, a federação desportiva deve exigir a respectiva autorização a
quem exerce poder paternal ou detém a tutela sobre os mesmos a autorização para a
sua sujeição aos controlos de dopagem em competição e fora de competição”, como
o preconizado no n.º 3.

A verdade desportiva, é indubitavelmente a premissa fundamental de qualquer even-


to desportivo, (mas cada vez mais difícil de ser alcançada). Internacionalmente (e em
1999), foi criada a Agencia Mundial Antidopagem “WADA – World Anti-Doping
Agency”, que é uma agência internacional, que se rege por normas de direito priva-
do, da qual foram sócios fundadores e dela fazem parte governos e organizações
internacionais. Por se tratar de uma entidade de direito privado tem algumas dificul-
dades em impor o carácter vinculativo mesmo aos estados que a subscreveram.

Sumariamente, salientamos a finalidade tridimensional desta agência: a) cumpri-


mento do estipulado no código antidopagem; b) normas internacionais, e c) modelos
práticas, e soluções para as várias áreas do doping.

a) Código Antidopagem, aprovado em 20 de Fevereiro de 2003, cujos princípios


nele consagrados visam, cfr. Art.º 1º “proteger o direito fundamental dos praticantes
desportivos participarem em competições desportivas sem dopagem e promover

37
Aprovou a Lei Antidopagem no desporto, adoptando para a ordem juridica interna as regras
estabelecidas no Código Mundial Antidopagem, publicada no Diário da Républica, I Série, n.º
166 (e que veio revogar a Lei 27/2009 de 19 de Junho). Veja-se a nossa nota n. 39, sobre a evo-
lução legislativa no nosso país nesta matéria.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 291

assim a saúde, justiça e igualdade entre os praticantes desportivos de todo o mundo;


e a promoção da luta antidopagem através da harmonização universal dos principais
elementos ligados à luta antidopagem”. Pretende também uma uniformidade e de
forma a permitir flexibilidade na implementação dos princípios antidopagem. Assen-
ta e caracteriza os valores da: ética, fair-play, e honestidade; saúde; excelência na
performance; carácter e educação; divertimento e alegria; dedicação; respeito pelas
regras e normas; respeito pelos atletas, coragem e solidariedade.

b) Normas Internacionais: visam criar harmonização entre as Organizações Antido-


pagem responsáveis pelas componentes técnicas e operacionais específicas dos pro-
gramas antidopagem – estas normas internacionais têm um âmbito de aplicabilidade
obrigatória com vista à observância rigorosa do Código. Neste sentido enumeram
exaustivamente a lista de substâncias proibidas, os tipos de testes antidopagem, os
laboratórios autorizados para o efeito, as terapêuticas adequadas, e as medidas e
políticas de privacidade que devem ser observadas na feitura de qualquer análise.38

c) Os modelos práticas, e soluções para as várias áreas do doping elencam uma serie
de recomendações, e pareceres da WADA – Agencia Mundial Anti-Dopagem, no
sentido de recomendar a todos os governos que harmonizem as legislações, e proce-
dam a políticas uniformes e legislação.39

38
Porque o hipismo é o único desporto com animais citamos a título de exemplo o preconizado
pela sua federação internacional a este respeito “Doping and the inappropriate use of normal
medications present a serious threat to the integrity and reputation of our sport, because they
give athletes an unfair advantage and threaten the welfare of horses. Therefore, it is the respon-
sibility of the entire equine community: athletes, veterinarians, grooms, managers, coaches,
owners, officials, and our National Federations to join together to help combat doping and the
inappropriate use of medications through better education and increased vigilance. // Equestrian
sport is a unique case of a sport that involves animal and human athletes working together as a
team. The FEI’s Clean Sport Campaign is a coordinated effort at many levels to provide all our
stakeholders with the information and tools necessary to address the issue of doping and inap-
propriate medication usage head on. We hope the campaign will also serve as a call to action to
all to reaffirm their commitment to fair play and horse welfare. The concept of Clean Sport is
about much more than a new list of prohibited substances and a new rulebook. It’s also about
better judgment, professionalization of the officials that regulate our sport and consistency of
decisions.”
39
“São consideradas como violações das normas antidopagem: 2.1 A presença de uma Substância
Proibida, dos seus Metabolitos ou Marcadores, numa amostra recolhida a partir de um prati-
cante desportivo. 2.1.1 É um dever pessoal de cada praticante desportivo assegurar que não
introduz no seu organismo nenhuma Substância Proibida. Os praticantes desportivos são res-
ponsáveis por qualquer Substância Proibida, ou os seus Metabolitos ou Marcadores que sejam
encontrados nas suas Amostras orgânicas. Deste modo, não é necessário fazer prova da inten-
ção, culpa, negligência ou do Uso consciente por parte do Praticante desportivo de forma a
determinar a existência de uma violação das normas antidopagem nos termos do Artigo 2.1.
[Comentário: Para efeito das infracções às normas antidopagem que envolvam a presença de
uma Substância Proibida (ou dos seus Metabolitos ou Marcadores), o Código adopta a regra
da responsabilidade objectiva consagrada no CAMO e na grande maioria dos regulamentos
292 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

O nosso sistema, como já adiantamos estabeleceu estes princípios pelo regime jurí-
dico da luta contra a dopagem pela alteração legislativa a Lei 38/2012 de 28 de
Agosto.40 A presente Lei divide-se em seis Títulos: I – Disposições gerais, II – Auto-
ridade Antidopagem; III – Controle da dopagem; IV – Protecção de dados; V –
Regime sancionatório; VI – Disposições finais.

Desde logo, constituem deveres do praticante “... assegurar que não introduz ou é
introduzido no seu organismo qualquer substância proibida, ou que não existe recur-
so a qualquer método proibido”, conforme se estatui no art. 5º , o que nos leva a
uma outra consideração mais profunda, sobre o consentimento ou não do atleta.

Se é facilmente aceite que qualquer praticante desportivo, mesmo sendo menor pos-
sa ser responsabilizado no caso de lhe ser detectada na análise de doping pela qual-
quer substancia proibida, certo é, que inúmeras vezes, o atleta ou desconhece o que
lhe está a ser administrado, ou sabendo, vê-se numa posição que não tem alter-
nativa.41 Ou seja, preconizamos no nosso ordenamento a regra da AMA, de respon-
sabilizar o atleta mesmo por condutas de terceiros.

Sem ser objecto deste trabalho, não deixamos de aqui expressamente referenciar,
apenas para eventual, e futura reflexão o disposto no artigo 149.º do Código Penal
“Consentimento” 1 - Para efeito de consentimento a integridade física considera-se
livremente disponível. 2 - Para decidir se a ofensa ao corpo ou à saúde contraria os
bons costumes tomam-se em conta, nomeadamente, os motivos e os fins do agente
ou do ofendido, bem como os meios empregados e a amplitude previsível da ofensa.

antidopagem já existentes. Nos termos do princípio da responsabilidade objectiva, verifica-se


uma violação das normas antidopagem sempre que é encontrada uma Substância Proibida
numa Amostra orgânica de um Praticante desportivo. Existe uma violação desde que o prati-
cante desportivo tenha, de forma intencional ou não, utilizado uma Substância Proibida inde-
pendentemente desse facto ter ocorrido por negligência ou por qualquer outro tipo de falha. Se
a Amostra positiva tiver sido recolhida num controlo em competição, nesse caso os resultados
da Competição “em causa são automaticamente anulados (Artigo 9 (Invalidação Automática
de Resultados Individuais)). No entanto, o Praticante desportivo tem então a possibilidade de
evitar ou reduzir as sanções a aplicar se conseguir demonstrar que não cometeu qualquer vio-
lação ou qualquer violação significativa. (Artigo 10.5 – Eliminação ou Redução do Período de
Suspensão com Base em Circunstâncias Excepcionais).” – Transcrito directamente do Código
Anti-Dopagem.
40
Anteriormente o regime jurídico de prevenção e combate à dopagem era regulamentado pelo
DL 183/97 de 26 de Junho, alterado posteriormente pelas Leis n. 152/99, de 14 de Setembro, e
192/2002, de 25 de Setembro, e pela Lei 27/ 2009 de 19 de Junho era objecto de regulamenta-
ção pela Portaria 1123/2009 de 1 de Outubro.
41
“Se em muitas situações são os próprios desportistas que procuram as substâncias dopantes,
outras vezes apesar de terem conhecimento de as estarem a inserir são obrigados a consumi-
las... a verdade é que nem sempre o praticante é o principal responsável”, Sérgio Nuno Casta-
nheira, O fenómeno do doping no desporto, ob. cit., pág. 319.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 293

Obviamente que somos forçados a remeter da presente disposição para os art.º 38 e


39º também do Código Penal.

Neste ultimo ponto, temos ainda de distinguir os da inexistência de culpa ou de


negligência, ou seja, nos casos de o praticante desportivo não saber ou suspeitar, e
não poder saber ou suspeitar, mesmo actuando com a maior prudência; dos casos de
inexistência de culpa ou de negligência significativa, sendo estes últimos casos ana-
lisados no conjunto de circunstâncias, e tendo em conta os critérios de inexistência
de culpa ou de negligência, conforme nos referem as alíneas s) e t) do art.º 1.42

Cada praticante deve assim assegurar-se que não introduz, ou lhe é introduzido qual-
quer substância proibida, mas também, a responsabilidade pode ser afastada nos
casos de a substancia proibida, ou os seu marcadores ou metabolitos não excederem
os limites quantitativos estabelecidos.43

De acordo com o art. 12º e ss. da Lei 38/2012 de 28 de Agosto as federações des-
portivas são obrigadas a adoptar nos seus regulamentos o controle de dopagem, o
qual deve especificar as regras e orientações estabelecidas na presente lei, e da
ADoP,44 bem como a definição dos métodos a aplicar aos seus atletas, e sanções
disciplinares.

De salientar, a obrigatoriedade de serem instaurados os processos disciplinares aos


atletas que acusem nas análises “positivo”, é um imperativo de procedimento para as
federações desportivas de acordo com o art.º 37º. As análises resultam positivas
quando após a operação de dois controlos, guardadas em dois recipientes designados
como A e B, para exames laboratoriais (sendo realizado o exame laboratorial no
LAD, ou noutros laboratórios devidamente credenciados pela AMA). No caso de a
análise A acusar positivo (significa que nele foram encontradas substancias conside-
radas proibidas) a federação a que pertence o atleta será notificada pela ADoP para

42
Ora há um caso muito célebre e curioso nesta matéria, obviamente que nos referimos ao caso
Nuno Assis, cuja sentença do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), puniu Nuno Assis por
doping, aplicando-lhe uma pena de suspensão de um ano, contra a decisão do Conselho de Jus-
tiça da Federação Portuguesa de Futebol em 2006. A F.P.F. entendia que se teria de provar que
o (então) arguido teria ingerido voluntariamente a substância. Ainda sobre este processo a
salientar o Parecer da Procuradoria Geral da Republica de 2006.
43
Cfr. o preconizado nos artigos 5º e 6º n. 3 do diploma . De referir que a lista de susbtancias
proibidas nos humanos, é revista anualmente, e publicada no Diário da República. A última
Portaria que foi publicada n.º 1325/ 2010 de 30 de Dezembro, consta do D.R. 1ª Série, n.º 232 –
aprova a lista de susbtancias e métodos proibidos no âmbito do Código Mundial Anti-Dopa-
gem, para 2011.
44
A AdoP – Autoridade Antidopagem em Portugal – é uma organização nacional, com funções
de controle, de elaboração e aplicação do Programa Nacional Antidopagem, emitir pareceres,
estudar e propor medidas, emitir recomendações, etc., vg art.º 16, 17 e 18 º da Lei.
294 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

que o praticante tenha a possibilidade de requerer a realização da análise B (vulgar-


mente denominada de contra-análise). De notar que se no primeiro exame laborato-
rial, a análise A for positiva, ou depois da análise B também aparecer positiva, o
atleta é suspenso preventivamente, ou seja estamos perante uma presunção natural,45
até ser proferida a decisão final pelo respectivo órgão disciplinar. A suspensão inibe
o atleta de entrar em quaisquer provas desportivas, mas o período que entretanto ele
cumpre será descontado no período de suspensão que se lhe for aplicado, n.º 2 do
mesmo artigo 37. O procedimento disciplinar compete à AdoP (art.º 58º e 59º)
devendo as federações desportivas dispor de instâncias de recurso para as quais o
atleta poderá recorrer, não podendo o prazo ser superior a 120 dias desde a comuni-
cação à aplicação da sanção disciplinar.

Com base neste artigo, a aplicação da responsabilidade subjectiva46 do atleta é óbvia.


Ou seja, para se punir o praticante basta que a primeira análise A dê positiva. Ora,
desde logo sobressai à vista que se assume a culpa como pressuposto para a aplica-
ção da sanção disciplinar.47

Ainda nesta matéria, o tratamento de todos os dados e informações estão sujeitas ao


dever de confidencialidade, cuja violação é também objecto de infracção disciplinar.

No âmbito de um controlo em competição, ou violação das normas antidopagem o


resultado da prova do atleta é automaticamente inválido, como já foi referido ante-
riormente, incluindo as medalhas, prémios, ou pontos. No entanto, este normativo
pode não se aplicar no caso de se conseguir demonstrar que o atleta agiu sem con-
duta culposa ou negligente.

O regime sancionatório estabelecido na lei pode ainda ser considerado ilícito crimi-
nal, ilícito de mera ordenação social, disciplinar, conforme já foi referido. Em qual-
quer caso, o atleta que por motivos de saúde ingerir qualquer tipo de medicação
terapêutica terá de previamente informar, e obter uma autorização, para ser, no caso
de controle, justificável a presença que elementos químicos, dopantes ou não.

45
As presunções naturais são aquelas que reultam da experiência, como refere Rui Rangel, “trata-
se de um juízo de probabilidade em relação ao facto presumido”, O Ónus da Prova no Processo
Civil, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 246.
46
“A culpa é hoje como um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do
autor”, Antunes Varela, Das Obrigaçoes em Geral, Vol. I, ed. Coimbra, Coimbra, 2000, pág.
566.
47
“Não deixa de ser verdade que por qualquer razão o praticante não conseguir criar no espirito
do julgador essa dúvida insanável, ele será punido disciplinarmente sem se ter feito prova abso-
luta da sua culpa... No que ao regime disciplinar do doping diz respeito, todos os interesses em
jogo são dignos de salvaguarda, e não há dúvidas de que a consagração de uma presunção pode
levar a determinadas injustiças, nomeadadamente nos casos em que um praticante desportivo
inocente não consegue provar, by a balance of probability, a ausência de culpa”, Sérgio Nuno
Castanheira, O fenómeno do doping no desporto, ob. cit., págs. 257 e 260.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 295

Quanto ao ilícito criminal aplica-se, sumariando, a quem com intenção de violar as


normas antidopagem, estando também incluído o agente que proporcionar a outrem,
administrar ao atleta com ou sem o seu consentimento, qualquer substancia ou facul-
tar o recurso a um método proibido, ou quem produzir, fabricar ou puser à venda,
transportar, importar, exportar ou fizer transitar ilicitamente substancias e métodos
proibidos, é punido com uma pena de 6 meses a 5 anos. A tentativa é também puní-
vel.

O ilícito penal não exclui as pessoas colectivas e entidades equiparadas ligadas ao


desporto, sendo de denúncia obrigatória ao Ministério Público notícias dos crimes
previsto na Lei Antidopagem a todos os dirigentes e titulares de órgãos federati-
vos.48

Constitui ilícito de mera ordenação social (sumariamente) a obstrução, dilação, a


ocultação que impeçam ou perturbem a recolha de amostras, bem como a alteração,
falsificação, manipulação, adulteração do procedimento de controle. A notar ainda,
que constituem contra-ordenação a posse em competição de qualquer substancia ou
método proibido, dentro e fora da competição, ao atleta ou a qualquer membro de
apoio. Na determinação da medida da coima, esta oscilará entre os 34 UC e 98 UC,
consoante a verificação da gravidade da infracção.49

Como ultima referência nesta temática, todos sabemos que o doping embora seja
uma das grandes preocupações do poder politico, das organizações internacionais,
etc., e por mais célere que seja a tentativa de se criarem procedimentos de combate,
certo é que infelizmente não se consegue acompanhar a forma, a utilização das subs-
tancias e/ou métodos usados.

B) Corrupção

Por último, obviamente que teria de referenciar, embora sumariamente a temática da


corrupção. Desde já, intuitivamente não aceito que estejamos perante a expressão
comum de se considerar um fenómeno social, dado que, actualmente, todos conhe-
cemos as suas causas, e em meu entender, é inapropriada. Comecemos a falar objec-
tivamente desta prática de deslealdade e de falsidade da verdade desportiva.

48
Art. 44 e ss .
49
De acordo com os artigos 49º e ss. A instauração dos processos de contra-ordenação compete
também à AdoP, bem como as coimas. Das suas decisões caberá recurso para o Tribunal Arbi-
tral do Desporto. O processamento e a sua aplicação susbidiáriamente regem-se pelo DL
433/82 de 27 de Outubro, alterado pela Lei 109/2001 de 24 de Dezembro.
296 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

Nos dias de hoje, sabemos que não está divorciado da realidade desportiva, o fenó-
meno da corrupção, sobretudo na alta competição, e desporto profissional.

A problemática, acentuada e mediaticamente ligada ao futebol, a qual, todos sabe-


mos está associada ao seu fortíssimo crescimento nas últimas décadas. Foi magnifi-
camente ilustrada pelo Senhor Conselheiro Dr. Pinto Monteiro quando proferiu no
seu discurso sobre o tema que “a corrupção é tão antiga como as sociedades organi-
zadas. Se o combate à corrupção é difícil, mas não de todo impossível, mais difícil
se torna o combate à corrupção no desporto em Portugal”.

A Lei 50/2007 de 31 de Agosto50 veio de certa forma alterar o regime de responsabi-


lidade penal, de acordo com o art. 1º - Disposições Gerais “… o regime de responsa-
bilidade penal por comportamentos anti desportivos, contrários aos valores da
verdade, da lealdade e da correcção e susceptíveis de alterarem fraudulentamente
os resultados da competição”. Ou seja, para o legislador qualquer comportamento
desportivo que seja de algum modo falseado, será objecto de responsabilidade penal.
No entanto, após uma leitura mais atenta do diploma em análise deparamos que, só
o crime de corrupção passiva e activa, tráfego de influência e associação é conside-
rado penalmente relevante. Assim ter-se-á esquecido o legislador que, por exemplo,
o doping, também altera a verdade e a lealdade desportiva?

De denúncia obrigatória, de acordo com o artigo 6 – “Os titulares dos órgãos e os


funcionários das federações desportivas, ou das ligas profissionais, associações e
agrupamentos de clubes nelas filiados devem transmitir ao Ministério Público notí-
cia dos crimes previstos na presente lei de que tenham conhecimento no exercício
das suas funções e por causa delas”.

Esperamos, que por parte de todos os agentes desportivos, interiorizem a responsa-


bilidade de não ocultarem qualquer tipo de conduta a qual possa preencher o tipo
legal do crime de corrupção.

Para terminar cumpre-me referenciar, resumidamente o tribunal internacional do des-


porto, CAS / “Court of Arbitration for Sport” / TAS / Tribunal Arbitral do Desporto.

Foi um tribunal constituído para tentar colmatar uma lacuna que se sentia no âmbito
desportivo, e tem uma jurisdição ampla a todos os desportos. Constituído em 1984,
dele fazem parte actualmente oitenta e sete países, e a sua sede é em Nova Iorque
(E.U.A.), com uma delegação em Sidney.

50
Revogou o Decreto-Lei n.º 390/91, de 10 de Outubro, com excepção do art. 5, que foi poste-
riormente revogado pela Lei n.º 27/2009, de 19 de Junho.
ÉTICA, DEONTOLOGIA E FAIR PLAY NO DESPORTO 297

As suas funções principalmente são de: arbitragem, e mediação para as questões


processuais desportivas. Qualquer pessoa com capacidade jurídica plena, inclui
atletas, federações nacionais, e internacionais, organizadores, sponsors, e televisões
poderá intentar acções no TAS. Em média julga por ano 300 casos, e o custo de cada
processo é de 500 CHS. Das suas decisões há recurso para o Tribunal Federal Suíço,
mas só de matérias consideradas de violação de normas processuais, e de incompati-
bilidade pública.

Em matéria de regras processuais há quatro procedimentos: o procedimento consul-


tivo que é precedido por uma fase não contenciosa; o procedimento de mediação; o
procedimento de arbitragem; o procedimento de mediação, e no caso de não existir
acordo o mediador do TAS decidirá.51 Compete também ao TAS exercer as suas
funções de intermediário em questões suscitadas pelos árbitros.

Do TAS foi criado o “Conseil International de l’Arbitrage de Sport” (CIAS). O


CIAS constitui o órgão supremo do TAS, e tem por missão salvaguardar a sua inde-
pendência, assegurando também a administração e controle financeiro.

Em Portugal, há uma intenção de se criar o Tribunal Arbitral do Desporto, e para o


efeito o Conselho de Ministros em 3 de Maio de 2011 aprovou um ante-projeto de
proposta de lei que institui, sob a égide do Comité Olímpico de Portugal, o Tribunal
Arbitral do Desporto / TAD, com competência específica para administrar a jus-
tiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou
relacionados com a prática do desporto.52

51
Relembramos aqui o célebre caso de Carlos Queiroz imposto pela Autoridade Antidopagem de
Portugal, por “alegada” perturbação de uma acção de controlo de doping durante o estágio de
preparação para o Mundial 2010 da selecção portuguesa de futebol. Em causa esteve a pena de
seis meses de suspensão que lhe foi aplicada pela ADoP. Pelo seleccionador foi solicitado ao
TAS a suspensão desta decisão, cujos efeitos imediatos o impediam de exercer. O TAS deu
procedência aos argumentos de Carlos Queiroz no seu primeiro recurso, suspendendo os efeitos
da punição da ADoP.
52
Competirá ao Tribunal Arbitral do Desporto conhecer os litígios emergentes dos actos e omis-
sões das federações desportivas com utilidade pública desportiva, das ligas profissionais, de
outras entidades desportivas, bem como os casos de justiça desportiva laboral, por exemplo,
averiguar se um despedimento foi efectuado de forma lícita ou ilícita... Será um mecanismo de
arbitragem voluntária para os demais conflitos, designadamente conflitos de direito privado,
por exemplo, questões conexas com direitos de imagem, patrocínio desportivo, direitos de
transmissões televisivas.
298 CRISTINA ALVES BRAAMCAMP SOBRAL

Conclusão

É do conhecimento comum que o desporto é a actividade que mais aproxima pes-


soas, culturas, religiões, e povos. Por muito que qualquer governo legisle, e possa
criar politicas de prevenção, todos sabemos que a formação educacional de todos os
sujeitos envolvidos, in casu, nas praticas desportivas, é o único instrumento efecti-
vamente capaz de preconizar a verdade desportiva.

As condutas de ética baseadas num conjunto de valores morais e de princípios


devem nortear a conduta humana, e implicitamente da própria a sociedade. Adop-
tando o teor do discurso de Jacques Rogge, Presidente do Comité Olímpico Interna-
cional, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, os atletas e
demais agentes, devem honrar não pelas vitórias mas pela forma de competir, os
adversários têm de ser respeitados, devem respeitar os princípios olímpicos e rejeitar
qualquer prática de doping. Sendo qualquer atleta um modelo, ao agir de uma forma
correcta vai certamente inspirar as gerações futuras, em suma, “o carácter conta
muito mais do que as medalhas”.

É muito apropriada nesta temática a celebre frase de Montesquieu, “Que um Homem


tenha a força de ser sincero”.

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