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Tradução

MARCIA HELOISA

Ilustrações
RAMON RODRIGUES

Volume 1
ELEONORA

1841

Sub conservatione formae


specificae salva anima.1
— Raymond Lully —

Venho de uma raça notória por sua imaginação vigorosa e arden-


te temperamento passional. Muitos já me tomaram por louco; mas
a questão permanece sem resposta, se a loucura representa ou não
uma inteligência superior — se muito do que é glorioso, se tudo o que
é profundo não advém de uma doença do pensamento, de tempera-
mentos mentais exaltados em detrimento do intelecto comum. Àque-
les que sonham de dia, é dado a conhecer muito do que escapa aos que
sonham apenas à noite. Em suas visões cinzentas, obtêm vislumbres

1 Em latim no original: “Sob cuidados de um certo tipo, a alma está salva”.


da eternidade e, despertando, vibram ao descobrir que estiveram no
limiar de um grande segredo. Aos poucos, aprendem algo da sabedo-
ria, o que é bom, e mais do mero conhecimento, o que é ruim. Pe-
netram, contudo, sem leme e sem bússola, no vasto oceano de “luz
inefável” e, como nas aventuras do geógrafo Núbio, agressi sunt mare
tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.2
Digamos, então, que sou louco. Admito, pelo menos, que existem
duas condições distintas de minha existência mental — a do raciocí-
nio lúcido, incontestável, relativa à lembrança dos acontecimentos
que formam a primeira época de minha vida, e a da sombra e da dú-
vida, correspondente ao meu presente e às recordações do que com-
põem a segunda grande era de minha existência. Assim, acreditem
em meu relato sobre o primeiro período; sobre o que posso vir a con-
tar a respeito do período posterior, deem o crédito que os convir ou
duvidem de tudo; ou, se não puderem duvidar, façam como Édipo
diante do enigma.
Ela, a quem amei na juventude e cujas recordações agora escrevo,
de maneira calma e distinta, era a filha única da única irmã de minha
mãe, há muito falecida. Eleonora era o nome de minha prima. Sempre
estivemos juntos, sob um sol tropical, no Vale da Relva Multicor. Ne-
nhum passo errante jamais penetrou esse vale; encontrava-se eleva-
do e protegido entre uma cadeia de portentosas colinas que, ao redor,
impediam que a luz do sol penetrasse em seus mais doces e recônditos
recantos. Nenhum caminho em sua vizinhança era percorrido e, para
alcançar nossa feliz morada, era preciso desbastar com força a folha-
gem de milhares de árvores e esmagar as glórias de inúmeras flores
olentes. Assim, vivíamos sós, desconhecendo o mundo fora do vale —
eu, minha prima e sua mãe.
Das regiões obscuras além das montanhas, na extremidade mais
alta de nossos protegidos domínios, corria um rio estreito e profun-
do, cujo brilho só não era maior do que o dos olhos de Eleonora;
ondulando furtivo em enredados meandros, desembocava em uma

2 Em latim no original: “Rumaram para o Mar da Escuridão para que pudesse ser explorado”.
garganta obscurecida, entre colinas ainda mais sombrias do que as
que lhe davam origem. Nós o chamávamos de “rio Silente”, pois pare-
cia fluir em silêncio. Nenhum murmúrio brotava de seu leito e corria
tão manso que as pedrinhas brancas como pérolas que adorávamos
contemplar, alojadas em suas profundezas, jamais se moviam, para
sempre luzidias e gloriosas.
A margem do rio, e dos diversos riachos deslumbrantes que desli-
zavam oblíquos para seu canal, assim como os espaços que se esten-
diam das margens até suas entranhas, alcançando o leito de pedri-
nhas no fundo. Tais locais, assim como a superfície do vale, do rio às
montanhas que o circundavam, eram recobertos por uma relva verde
e macia, espessa, curta e de simetria perfeita, com perfume de bauni-
lha, salpicada em toda a extensão com botões de ouro amarelos, mar-
garidas brancas, violetas púrpuras e abróteas vermelhas — e, em sua
exorbitante beleza, proclamava em altas vozes, em nossos corações,
o amor e a glória de Deus.
Aqui e ali, nos bosques espraiados na relva, como uma floresta de
sonhos, brotavam árvores fantásticas cujos troncos altos e esguios
curvavam-se graciosos em direção à luz que perscrutava o centro do
vale ao meio-dia. Faíscas vívidas de ébano e prata cintilavam alterna-
damente na casca de seus troncos, que só não eram mais macios do
que as faces de Eleonora; assim, não fossem as enormes folhas lustro-
sas que espalhavam as copas em linhas compridas e trêmulas, flertan-
do com os Zéfiros, as árvores poderiam ser tomadas por serpentes gi-
gantes da Síria prestando homenagem ao soberano Sol.
Durante quinze anos, vagamos de mãos dadas por esse vale, Eleo-
nora e eu, até que o Amor entrou em nossos corações. Certa tarde, ao
fim do terceiro lustro de sua vida e no quarto da minha, nós nos sen-
tamos, cerrados em um abraço, sob as árvores que pareciam serpen-
tes, fitando nas águas do rio Silente o reflexo de nossas imagens. Não
pronunciamos uma palavra sequer até o fim daquele doce dia e, mes-
mo no dia seguinte, nossas palavras soaram trêmulas e escassas. Re-
movêramos o deus Eros daquela vaga e sentíamos que ele acendera em
nosso âmago as almas ardentes de nossos antepassados. Os ardores
que haviam por séculos distinguido nossa raça acudiram em profu-
são com todas as fantasias pelas quais tornaram-se igualmente no-
tórios e, juntos, sopraram um êxtase delirante sobre o Vale da Relva
Multicor. Uma mudança recaiu sobre todas as coisas. Flores estranhas
e brilhantes, em forma de estrelas, reluziam em árvores até então sem
flores. O gramado se tornou mais verde e quando, uma por uma, as
margaridas brancas encolheram, floriram em seu lugar dezenas e de-
zenas de abróteas vermelhas. A vida brotava em nossos caminhos; os
flamingos, até então jamais vistos, na companhia de aves fulgurantes,
exibiam sua plumagem carmim diante de nossos olhos. Peixes dou-
rados e prateados frequentavam o rio de onde vinha, aos poucos, um
murmúrio que se transformava em uma melodia mais divinal do que
a harpa eólica — perdendo em doçura apenas para a voz de Eleonora.
Uma nuvem volumosa, que há muito contemplávamos nas regiões de
Hesper, de lá flutuou, majestosa, em vermelho e dourado, pairando
pacífica sobre nós e descendo mais e mais a cada dia, até encostar as
extremidades nos cumes das montanhas, transformando em magnifi-
cência suas sombras e nos encapsulando, como se para sempre, em um
cárcere mágico de esplendor e glória.
Eleonora tinha a beleza de um serafim, mas era uma donzela tão
ingênua e inocente quanto a vida breve que desfrutara entre as flo-
res. Não empregava artimanha alguma para disfarçar o amor fervoro-
so que pulsava em seu coração e examinava comigo os recantos mais
recônditos enquanto passeávamos juntos no Vale da Relva Multicor,
comentando as mudanças extraordinárias que nele se passavam.
Por fim, tendo discorrido um dia, aos prantos, sobre a derradeira
mudança infeliz da qual nenhum ser humano pode escapar, desde en-
tão, ocupou-se somente desse lamentável tema, encaixando-o em to-
das as nossas conversas — como, nas canções do bardo de Schiraz, as
mesmas imagens se repetem, à exaustão, em cada impressionante va-
riação de frase.
Ela deve ter percebido o dedo da Morte tocando-lhe o peito — com-
preendendo que, como tudo que é efêmero, fora feita perfeita apenas
para morrer. No entanto, os temores do túmulo para ela jaziam em uma
consideração que me revelou, em certa tarde crepuscular, às margens
do rio Silente. Ela sofria ao pensar que, após sepultá-la no Vale da Relva
Multicor, eu fosse abandonar para sempre suas alegres paragens, trans-
ferindo o amor que a ela dedicava tão fervorosamente a outra donzela do
mundo exterior e cotidiano. Atirei-me às pressas, ali mesmo, aos pés de
Eleonora, jurando a ela e aos Céus que jamais me casaria com qualquer
filha da Terra — que não seria, de modo algum, à sua estimada memória
ou à recordação da afeição devota com a qual me abençoara. Convoquei
o Poderoso Rei do Universo a testemunhar a solenidade piedosa de meu
juramento. E a maldição que invoquei, em nome Dele e dela, uma santa
no Paraíso, caso traísse minha promessa, envolvia um castigo de tama-
nho horror que sequer ouso relatar aqui. Os olhos brilhantes de Eleono-
ra reluziram ainda mais com minhas palavras; ela suspirou como se um
fardo mortal tivesse sido removido de seu peito; tremeu e chorou amar-
gamente, mas aceitou o juramento (pois o que era, senão uma criança?),
que apaziguou a perspectiva de seu leito de morte. Disse-me, alguns dias
depois, ao morrer em paz, que, graças ao que eu tinha feito para confor-
tar seu espírito, ela continuaria a me proteger mesmo depois de morta.
Afirmou que, se fosse permitido, voltaria em forma visível para guardar-
-me todas as noites; mas, se tal feito estivesse, de fato, acima do poder
das almas no Paraíso, que me daria, ao menos, indicações frequentes de
sua presença; suspirando em meu rosto junto com os ventos vespertinos
ou preenchendo o ar que eu respirava com o perfume do turíbulo dos
anjos. E, com essas palavras a pairar nos lábios, extinguiu-se sua inocen-
te existência, colocando fim à primeira época de minha vida.
Até aqui, meu relato foi fidedigno. Porém, à medida que atravesso
a barreira na estrada no Tempo, constituída pela morte de minha ama-
da, e prossigo rumo à segunda era de minha vida, sinto que uma sombra
me obscurece a mente e já não confio na perfeita sanidade de minhas
lembranças. Contudo, deixem-me seguir adiante. Os anos se arrastaram
pesadamente e permaneci no Vale da Relva Multicor, onde uma segun-
da mudança ocorrera em todas as coisas. As flores estreladas murcha-
ram nos caules das árvores e nunca mais floresceram. O verde do gra-
mado desbotou e, uma por uma, as abróteas carmim evanesceram; em
seu lugar, surgiram violetas escuras que se retorciam inquietas, sempre
cobertas de sereno. E a Vida desapareceu de nossos caminhos; os fla-
mingos não mais exibiam a plumagem vermelha diante de nossos olhos,
tendo fugido do vale para as colinas, junto com todas as aves fulguran-
tes que haviam chegado em sua companhia. Os peixes dourados e pra-
teados nadaram para longe de nosso domínio e nunca mais adornaram
o doce riacho. E a melodia mais suave do que uma harpa eólica, mais di-
vinal do que qualquer outro som, exceto a voz de Eleonora, fenecera aos
poucos em murmúrios mortiços até que o rio, por fim, regressou à abso-
luta solenidade de seu silêncio original. Finalmente, a nuvem volumosa
ergueu-se no céu e, abandonando os cumes das montanhas à escuridão
de outrora, regressou às regiões de Hesper, levando consigo todas as in-
contáveis glórias esplendorosas do Vale da Relva Multicor.
No entanto, as promessas de Eleonora não foram esquecidas, pois
eu escutava os sons dos turíbulos angelicais se movendo e torrentes
de perfume celestial inundavam o vale; nas horas solitárias, quando
meu coração disparava, os ventos que me banhavam a fronte acudiam-
-me repletos de suspiros e murmúrios indistintos que inundavam o ar
da noite. Certa vez — ah, apenas uma única vez! —, despertei de um
sono, semelhante à modorra da morte, sentindo o toque de lábios in-
visíveis junto aos meus.
Todavia, o vácuo em meu peito recusava-se a ser preenchido. Ansiava
pelo amor que outrora o enchera até transbordar. Por fim, o vale me tra-
zia dor por causa das lembranças de Eleonora e acabei por deixá-lo para
sempre, indo em busca das vaidades e turbulentos triunfos mundanos.

Vi-me em uma cidade estranha, onde todas as coisas serviam para apa-
gar da memória os doces sonhos que eu nutrira por tanto tempo no
Vale da Relva Multicor. Uma corte majestosa, com pompa e riqueza,
o som estridente das armas e a beleza radiante das mulheres atordo-
aram e inebriaram meu cérebro. Entretanto, minha alma permanecia
fiel ao juramento e ainda recebia os indícios da presença de Eleonora
nas horas silenciosas da noite. De repente, as manifestações cessaram;
o mundo escureceu diante de meus olhos e fiquei perplexo perante os
pensamentos que me consumiam — as terríveis tentações que pertur-
bavam; pois, vinda de uma terra distante e desconhecida para a alegre
corte do rei a quem eu servia, surgiu uma donzela cuja beleza levou
meu coração infiel a capitular de imediato — diante dela me prostrei
sem protesto, na adoração mais ardente e abjeta. O que, de fato, se-
ria a paixão dedicada à jovem menina do vale comparada ao fervor, ao
delírio, ao êxtase da adoração que me fazia verter a alma inteira em
lágrimas, jogado aos pés da etérea Ermengarde? Ah, Ermengarde, ra-
diante serafim! E, assim, não me sobrava mais espaço para outra. Ah,
Ermengarde, anjo divinal! E, fitando as profundezas de seus olhos, só
pensava neles — e nela.
Casei-me. Não temi a maldição que invocara e tampouco fui aco-
metido por sua amargura. E uma vez — apenas uma vez, no silêncio
da noite, ouvi pela treliça da janela os suaves suspiros que haviam me
abandonado e, em seguida, uma voz familiar e doce me disse:
— Durma em paz! Pois o Espírito do Amor reinou e, abrigando em
seu apaixonado coração esta que se chama Ermengarde, está absolvi-
do, por razões que lhe serão reveladas no Céu, das promessas feitas
à Eleonora!

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