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Camila Rocha e Esther Solano (Org.

AS DIREITAS NAS
REDES E NAS RUAS:
a crise política no Brasil

1ª edição

Expressão Popular

São Paulo – 2019


Copyright © 2019, by Editora Expressão Popular

Revisão: Nilton Viana, Lia Urbini e Milena Varallo


Projeto gráfico e diagramação: ZAP Design
Capa: Fernando Bertolo
Impressão e acabamento: Cromosete

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ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: setembro de 2019

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


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Sumário

Introdução .....................................................................................................7
Camila Rocha e Esther Solano

CICLOS DE PROTESTOS E CRISE POLÍTICA

A trajetória discursiva das manifestações


de rua no Brasil (2013-2015).........................................................................15
Céli Regina Jardim Pinto

Corrupção, legitimidade democrática e protestos:


o boom da direita na política nacional?..........................................................55
Helcimara Telles

2016: O ano da polarização?..........................................................................91


Esther Solano, Pablo Ortellado e Márcio Moretto Ribeiro

DIREITAS NAS REDES E NAS RUAS

“Imposto é roubo!” A formação de um contrapúblico ultraliberal


e os protestos pró-impeachment de Dilma Rousseff......................................123
Camila Rocha

A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores


de opinião dos manifestantes de direita brasileiros.....................................175
Débora Messenberg

O IMPEACHMENT NAS REDES E NA GRANDE MÍDIA

O sentimento político em redes sociais: big data, algoritmos


e as emoções nos tuítes sobre o impeachment de Dilma Rousseff................217
Fábio Malini, Patrick Ciarelli e Jean Medeiros
Manifestações e votos ao impeachment de Dilma Rousseff
na primeira página de jornais brasileiros......................................................247
Camila Becker, Camila Cesar, Débora Gallas Steigleder e Maria Helena Weber

A dramaticidade na narrativa do impeachment


de Dilma Rousseff no Jornal Nacional........................................................277
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

Sobre as organizadoras..................................................................................297

Sobre as autoras e os autores.........................................................................299


Introdução
Camila Rocha e Esther Solano

D urante os últimos anos, ruas e redes brasileiras têm


sido tomadas por cores que não eram habituais no
cenário de protestos. O repertório antipetista verde-amarelo,
impulsionado pela retórica lavajatista, foi uma avalanche no
espaço público, mas para interpretar a história precisamos de
um período de reflexão que muitas vezes nos é negado pela
hiperaceleração atual. Hoje, quatro anos depois das primei-
ras manifestações pró-impeachment, temos a possibilidade de
analisar o acontecido com maior perspectiva.
Independentemente de nossas posturas ideológicas e
interpretações, esse período de manifestações que se inicia
em 2014 deve ser entendido pela academia e pela sociedade
em todos os seus significados. Dessa forma, procuramos
reunir nesta coletânea artigos que utilizassem diferentes
métodos de pesquisa e abordagens teóricas para analisar o
ciclo de protestos que culminou com o impeachment de Dil-
Introdução

ma Rousseff com a intenção de oferecer um bom panorama


do que foi produzido sobre o tema na academia durante os
últimos anos. Para tanto, contamos com a colaboração de
pesquisadoras e pesquisadores de diversas origens institucio-
nais e provenientes de diferentes campos disciplinares, como
a Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política, a Comu-
nicação Social e as Ciências da Computação. Nós optamos
por publicar todos os textos em seu formato original, sem
realizar ao final qualquer tipo de conclusão que procurasse
lhes conferir alguma direção interpretativa específica, com
a pretensão explícita de reter a pluralidade de perspectivas
que perpassa as diferentes produções reunidas aqui, a qual
consideramos de importância fundamental para o desen-
volvimento do debate público dentro e fora da academia. A
despeito disso, acreditamos que a leitura conjunta dos textos
permite verificar a existência de instigantes convergências
empíricas e analíticas que podem ser exploradas em inves-
tigações futuras.
Os artigos foram divididos em três seções considerando o
enfoque principal de cada um: 1) Ciclos de protestos e crise
política; 2) Direitas nas ruas e nas redes; 3) O impeachment
nas redes e na grande mídia. A primeira parte reúne textos
que procuram compreender mais detidamente a dinâmica
dos ciclos de protestos e se inicia com o artigo “A trajetória
discursiva das manifestações de rua no Brasil (2013-2015)”,
no qual Céli Regina Jardim Pinto, a partir da teoria do dis-
curso desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,
considera que em meio às manifestações de rua que ocor-
reram no Brasil desde 2013 teria existido um deslocamento
discursivo em uma direção conservadora tendo em vista
três momentos fundamentais: as manifestações de junho

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Camila Rocha e E st h e r Sol a no (O rg.)

de 2013, as manifestações relacionadas à Copa do Mundo


de Futebol de 2014 e as manifestações pelo impeachment de
Dilma Rousseff em março de 2015. No artigo seguinte,
“Corrupção, legitimidade democrática e protestos: o boom
da direita na política nacional?”, Helcimara Telles, com base
em pesquisas de opinião no acompanhamento de redes
sociais, considerando sobretudo o caso da cidade de Belo
Horizonte, reflete sobre as relações entre a mobilização do
tema da corrupção e os protestos chamados por grupos de
oposição ao governo de Dilma Rousseff e procura explicar
tanto o crescimento das direitas no país quanto a influência
da grande mídia na organização dos protestos.
Partindo do entendimento que os protestos pró-im­
peachment ocorreram em meio a um processo de crescente
polarização política nas redes e nas ruas, Esther Solano, Pablo
Ortellado e Márcio Moretto Ribeiro, com base em pesquisas
de opinião conduzidas na cidade de São Paulo durante esses
protestos, e no acompanhamento do Facebook por meio da
análise de grafos, procuram compreender como se deu tal
dinâmica em “2016: o ano da polarização?”.
Os artigos que compõem a segunda seção, “Direitas
nas redes e nas ruas”, dão atenção especial aos intelectuais­,
lideranças e grupos de ativistas que demandavam pelo
impeachment­ nas ruas e nas redes. Assim, em “‘Imposto é
roubo!’ A formação de um contrapúblico ultraliberal e os
protestos pró-impeachment de Dilma Rousseff”, Camila Ro-
cha, a partir de uma reconstrução histórica realizada com
dados oriundos de pesquisa de campo com lideranças e
membros de organizações civis, aponta para a influência de
um contrapúblico ultraliberal surgido na internet por volta
de 2006 na consolidação de grupos e movimentos que foram

9
Introdução

fundamentais para a articulação dos primeiros protestos pró-


-impeachment ainda em 2014. Com o intuito de aprofundar o
entendimento acerca das formas de engajamento dos sujeitos
que circulam no chamado “universo liberal”, calcado na
defesa de ideias associadas à defesa do livre-mercado e do
Estado mínimo, Débora Messenberg, por sua vez, procura
compreender como os discursos formulados por jornalis-
tas, movimentos e lideranças políticas alinhados à direita
circularam entre os manifestantes pró-impeachment em “A
direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de
opinião dos manifestantes de direita brasileiros” por meio de
uma abordagem multimétodos que reúne dados oriundos de
levantamentos de postagens e textos publicados por diversos
formadores de opinião e de dois grupos focais constituídos
por apoiadores e participantes dos protestos.
Finalmente, os artigos que compõem a terceira e última
seção, “O impeachment nas redes e na grande mídia”, se de-
bruçam especialmente sobre como o evento do impeachment
em si foi abordado nas redes sociais e nos grandes veículos
de mídia. Em “O sentimento político em redes sociais: big
data, algoritmos e as emoções nos tuítes sobre o impeach­
ment de Dilma Rousseff”, Fábio Malini, Patrick Ciarelli
e Jean Medeiros realizam uma revisão sobre a análise de
sentimentos em megadados do Twitter e constroem uma
metodologia que combina a classificação humana de textos
com aplicação de algoritmos genéticos de análise de textos,
no intuito de estudar sentimentos genéricos (baseado na
polarização positivo/negativo) e sentimentos específicos
(alegria, raiva, medo, antecipação, desgosto, tristeza, sur-
presa e confiança) mobilizados em dois momentos espe-
cíficos: o dia 15 de março de 2015, quando os protestos

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Camila Rocha e E st h e r Sol a no (O rg.)

pró-impeachment atingem um pico de mobilização, e o dia


27 de agosto de 2016, quando ocorre o impeachment da então
presidenta Dilma Rousseff. No que se refere ao tratamento
dispensado ao impeachment nos veículos da grande mídia,
em “A dramaticidade na narrativa do impeachment de Dilma
Rousseff no Jornal Nacional”, Genira Chagas Correia e
Carla Montuori Fernandes abordam a cobertura da edi-
ção do Jornal Nacional na semana que antecedeu a votação
do processo de impeachment na Câmara dos Deputados a
partir de um mapeamento das matérias jornalísticas sobre
o tema; para tanto, se baseiam em um tipo de enquadra-
mento classificado como lúdico dramático com metáforas
de jogos e na metodologia da análise de conteúdo de Lau-
rence Bardin. Já Camila Becker, Camila Cesar, Débora
Gallas Steigleder e Maria Helena Weber refletem sobre as
estratégias editoriais de três jornais tidos como referência
no país, O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, e
analisam o enquadramento dos acontecimentos relativos
ao processo de impeachment nas primeiras páginas desses
veículos em quatro momentos específicos: as manifestações
sociais pró-impeachment (14/3/16) e contra o impeachment
(19/3/16), a votação do encaminhamento do processo da
Câmara Federal ao Senado (17/4/16), e os resultados da
decisão final (18/4/16).
Gostaríamos de registrar nossos agradecimentos ao
professor Marcos Nicolau, editor da revista Culturas Mi­
diáticas, à professora Margarida Kunsch, editora da Revista
Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, ao professor
Bruno Konder Comparato, editor da revista Lua Nova, ao
Embaixador Rubens Barbosa, responsável pela revista Inte­
resse Nacional, à Christine Alvarez, responsável pela Liinc em

11
Introdução

Revista, e às equipes editoriais da revista Sociedade e Estado


e da Revista Análise da Fundação Friedrich Ebert Brasil por
autorizarem a republicação dos artigos originalmente divul-
gados nos respectivos periódicos, sem isso não seria possível
organizar a presente coletânea.

Boa leitura!

12
Ciclos de protestos
e crise política
A trajetória discursiva das
manifestações de rua no Brasil
(2013-2015)1
Céli R egina Jardim Pinto

E ntre 2013 e 2015, o Brasil vivenciou um conjunto signi-


ficativo de manifestações que levou milhares de pessoas
às ruas de suas principais cidades. Neste artigo, analisaremos
a trajetória discursiva dessas manifestações percorrendo três
momentos distintos e fundamentais: 1) as manifestações
de junho de 2013; 2) as manifestações relacionadas à Copa
do Mundo de Futebol em 2014; e 3) as manifestações pelo
impeachment da presidenta Dilma Rousseff em março de
2015. Pretendemos demonstrar que, no decorrer de cerca
de dois anos, houve um deslocamento discursivo em uma
direção conservadora.
Desde a luta pela redemocratização do país, no início
da década de 1980, as ruas tinham sido ocupadas majori-
tariamente por grupos identificados com posições políticas
de centro-esquerda e de esquerda. Porém, a partir de 2013

1
Artigo publicado originalmente na revista Lua Nova n.100, em 2017.
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

e mais acentuadamente em 2014 e 2015, os manifestantes


tenderam cada vez mais a se identificar com posições políticas
de centro e de direita.
É mister assumirmos as dificuldades inerentes à identifica-
ção de posições de esquerda, centro e direita no cenário da atual
política brasileira. Mesmo com essa ressalva, não cometemos
um erro grosseiro em afirmar que o Partido dos Trabalhado-
res (PT), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e alguns
pequenos partidos mais radicalizados, como Partido Socialista
dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL), tanto se autoidentificam quanto são identi-
ficados pelas oposições como de esquerda ou centro-esquerda,
enquanto as oposições, mesmo sem se autodefinirem, podem
ser identificadas como pertencendo ao espectro político e
centro ou centro-direita e mesmo de direita, caso de alguns
grupos minoritários. Se, grosso modo, essa divisão corresponde
às grandes tendências da política contemporânea nacional, não
podemos, entretanto, afirmar que todas as políticas levadas a
efeito pelo PT no governo tiveram a marca da esquerda, assim
como estamos longe de afirmar que todas as pessoas que foram
às ruas em 2015 eram de direita.
A hipótese sobre essa trajetória é de que as bases do
discurso tendencialmente de direita de 2015 foram dadas
nas manifestações de 2013, e que o ponto de inflexão desse
processo ocorreu no momento preciso do jogo que marcava
a abertura da Copa do Mundo de Futebol de 2014, inaugu-
rando o estádio Itaquerão, na cidade de São Paulo, no dia
12 de junho.
Para levar a efeito nosso objetivo, nos valemos da teoria
do discurso desenvolvida por Ernesto Laclau, cujas principais
teses encontram-se nas obras Hegemonia e estratégia socialista,

16
Céli Regina Jardim Pinto

esta escrita com Chantal Mouffe e publicada em 1985, e


Razão populista, de 2013.
Sem o propósito de reconstituir a história dos eventos e
sim de descrever sua trajetória discursiva para buscarmos en-
tender as alterações ocorridas no discurso político-ideológico
do período, este artigo abordará inicialmente os conceitos
utilizados na análise, para, em seguida, debruçar-se sobre
cada um dos três momentos das manifestações que reuniram
de dezenas a centenas de milhares de pessoas em diversos
cantos do país. A seleção dos dois primeiros momentos se
justifica pela motivação que mobilizou as pessoas a irem
às ruas, e a do terceiro momento se deu por sua dimensão
simbólica.
O primeiro se inicia com uma manifestação em fevereiro
de 2013 contra o aumento da passagem do transporte coletivo
na cidade de Porto Alegre (RS), liderada por um grupo que
se organizou à época, chamado Bloco de Lutas. No mês de
junho, as manifestações tomaram vulto, principalmente
nas grandes cidades. Segundo fontes jornalísticas, mais de
1 milhão de pessoas estiveram nas ruas nesse mês.2
2
A natureza das manifestações de 2013 dificulta a precisão dos dados desses
eventos. Obtivemos a informação de que houve manifestações em 228
cidades brasileiras (<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-
-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm>; acesso em: 20 out. 2015). Quanto
ao número, o jornal Folha de S.Paulo afirma: “Em junho de 2013 – mês
marcado por uma onda de enormes protestos pelo país –, as manifestações
de rua passaram de cerca de 2.000 para mais de 1 milhão de pessoas em
duas semanas.” (<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1602961-
-protestos-de-junho-de-2013-atrairam-1-milhao-no-auge.shtml>; acesso
em: 20 out. 2015). O blog do Observatório da Imprensa dá os seguintes
números: “O dia 17 de junho de 2013 destaca-se em todo esse processo
pela significação dos atos realizados em vários pontos do Brasil. A adesão
iniciada no dia 13 ganhou dimensão verdadeiramente nacional e levou às
ruas centenas de milhares de pessoas, espalhadas por cidades como São

17
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

Em 2014 – o segundo momento em pauta –, as manifes-


tações giraram em torno da Copa do Mundo de Futebol e se
estenderam por todo o primeiro semestre. Destacaremos exem-
plos de mobilização nacional às vésperas da Copa, e também
do que ocorreu nos meses de junho-julho durante o evento.
Essas manifestações tiveram lugar nas cidades onde havia jogos,
mas não juntaram um número expressivo de pessoas como nas
manifestações de 2013; além do mais, protestos contra a Copa
estavam sendo severamente reprimidos pela polícia.3
O terceiro momento das manifestações aconteceu
precisamente no dia 15 de março de 2015, em todo o país,
com o tema específico do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff. As manifestações do dia 15 foram as maiores em
número de pessoas presentes até então. Segundo o Instituto
Datafolha, só na cidade de São Paulo havia 210 mil pessoas
nas ruas. O cálculo geral em todo o país chegou a 2 milhões.4

Paulo (65 mil), Brasília (5 mil), Rio de Janeiro (100 mil), Belo Horizonte
(30 mil), Fortaleza (50 mil), Vitória (20 mil), Curitiba (10 mil), entre outras,
além de municípios de vários Estados da Federação. Outros protestos foram
realizados posteriormente, incluindo uma grande mobilização nacional no
dia 20, onde 1,25 milhão de pessoas, de acordo com matéria do Portal G1,
participaram de protestos em várias cidades.” (<http://observatoriodaim-
prensa.com.br/jornal-de-debates/_ed755_um_ensaio_sobre_o_mes_de_ ju-
nho_de_2013>; acesso em: 20 out. 2015).
3
O site de notícias G1 deu os seguintes números sobre as manifestações
convocadas para dia o 15 de maio de 2014: “Nesta quinta-feira (15) houve
protestos contra a Copa do Mundo em 12 cidades do Brasil. Em Porto Ale-
gre, Salvador, Maceió, João Pessoa, Fortaleza, Palmas, Sorocaba e Bauru,
as manifestações reuniram, cada uma, entre 50 e 300 pessoas, segundo as
autoridades. Em Brasília, Belo Horizonte e Rio, o número variou entre 600
e 1 milhão e 300 mil pessoas. Em São Paulo, houve vários protestos nesta
quinta-feira, o maior deles com cinco mil pessoas, segundo a PM.” (<http://
g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/05/doze-cidades-do-brasil-tem-
-protestos-contra-copa-do-mundo.html>; acesso em: 20 out. 2015).
4
“Cerca de 2 milhões de pessoas foram às ruas para protestar contra o gover-
no federal e contra a corrupção neste domingo (15) em todos os Estados do
país, além do Distrito Federal, segundo cálculos da Polícia Militar de cada

18
Céli Regina Jardim Pinto

Os exemplos de cada um dos momentos tratados neste


artigo foram recolhidos de notícias de jornais, revistas, sites,
blogs e páginas do Facebook de grupos participantes. As ma-
nifestações que ocorreram no Brasil nos anos 2013, 2014 e
2015, assim como as de 2011 no restante do mundo, tiveram
as redes sociais como um elemento novo de organização e
convocação. Muito se tem escrito sobre essas manifestações
como um fenômeno decorrente da existência das redes so-
ciais (Castells, 2012; Zizek, 2011). Neste artigo, essa questão
não será abordada pelo fato de o tema em discussão – a tra-
jetória discursiva das manifestações – não estar diretamente
relacionado com as formas de adesão aos eventos. Reconhe-
cemos, porém, que tal como aconteceram, os eventos, são
em grande medida decorrência da popularização das redes
sociais e dos aplicativos em celulares. Entretanto, não nos
parece razoável derivar daí os discursos que produziram:
assim como geraram as consignas “não vai ter Copa” e “fora
Dilma”, as redes sociais poderiam ter gerado consignas como
“tudo pela Copa” e “todos com Dilma”.

Sobre os conceitos utilizados para


a análise do discurso das manifestações
A perspectiva teórica desenvolvida por Ernesto Laclau
contém uma chave analítica que permite uma intervenção
qualificada nas manifestações de rua no Brasil nos anos
2013-2015, do ponto de vista de uma construção discursiva
que sofreu significativa alteração ao longo do processo, de
modo a podermos dizer que as manifestações começaram

Estado.” (<http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/03/15/
protestos-contra-governo-e-corrupcao-reunem-mais-de-2-milhoes-pelo-
-brasil-dizem-pms.htm>; acesso em: 20 out. 2015).

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A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

coloridas de esquerda e chegaram a 2015 com fortes tons


de direita. Os conceitos utilizados na análise são: discurso,
articulação, cadeia de equivalência, antagonismo, significante
vazio, significante flutuante, povo e liderança.
Laclau entende que não faz sentido a distinção entre dis-
cursivo e não discursivo, tudo é significado por meio de um
processo de articulação, e nada pode ser dito, entendido ou
reconhecido fora dele. Ele é muito contundente em afirmar
que negar essa distinção não tem nada a ver com o idealismo,
ao contrário, é retirar das ideias sua distinção em relação ao
material. Daí que o conceito de articulação, que ele chama de
prática articulatória, adquire centralidade: o sentido se consti-
tui por meio da articulação entre significantes que não trazem
implícito nenhum sentido necessário. Um exemplo clássico
seria a noção de democracia, que adquire sentido diverso nos
discursos de direita dos militares nos golpes na América Latina
na segunda metade do século XX, nas chamadas democra-
cias liberais e nas experiências socialistas do Leste Europeu e
mesmo da China. Em cada um desses cenários, a democracia
é significada a partir da articulação de diferentes significantes.
A problemática geral da discursividade ganha contornos
mais específicos quando se trata de analisar discursos políti-
cos. Diferente do discurso religioso ou do discurso científico,
que se legitimam por reivindicar a verdade pela fé ou pelos
paradigmas, o discurso político disputa espaço de verdade
em uma contínua contenda com seus opositores, no interior
da arena política. E nele a prática articulatória é muito mais
facilmente identificável, pois, ao buscar fixar sentido, torna
explícito o embate entre diferentes posicionalidades.
Se não há um sentido primeiro, anterior ao discurso,
todo sentido contém uma natureza precária e se encontra

20
Céli Regina Jardim Pinto

em uma luta constante para se afastar dessa precariedade.


No caso do discurso político, uma prática fundamental é
a constituição de cadeias de equivalência que constroem
sentidos, minimizando as diferenças e as simbolizando por
meio do que Laclau chama de significante vazio.
A existência da equivalência pressupõe a existência de
diferenças; duas coisas só se tornam equivalentes se forem
diferentes. Por exemplo, corrupção e desemprego só podem
ser equivalentes dentro de uma prática articulatória; fora
dela, não há por que afirmar que essas duas condições se
equivalham, que uma existe devido à outra. Segundo La-
clau (2005), há momentos mais institucionalizados em que
as diferenças tendem a ser mais marcadas, e momentos de
ruptura ou crise em que as diferenças tendem a ser minimi-
zadas, tornando-se mais facilmente equivalentes. Em várias
fases de sua obra (Laclau; Mouffe, 1985; Laclau, 1996, 2005,
2014), o autor aponta que demandas de classes populares ou
de trabalhadores podem ser articuladas em um discurso de
diferenças no qual se esgotam em si mesmas, por exemplo,
uma luta por aumento salarial atendida. De forma distinta,
podem ser articuladas em uma cadeia de equivalência em
que a luta por aumento salarial se articula à luta contra uma
política fiscal, contra a corrupção, contra o desemprego etc.
Essa cadeia de equivalência se estabelece em relação a um
outsider, o outro antagônico:5 um movimento político popu-

5
O conceito de antagonismo é central no trabalho de Laclau. Contrapon-
do-se ao conceito de dialética, ele explica: “Antagonism is a relation be-
tween inimical forcers, so that negativity becomes an internal component
of such a relationship. Each force negates the identity of the other” [An-
tagonismo é a relação entre forças nocivas, de modo que a negatividade se
torna um componente interno de tal relação. Cada força nega a identidade
da outra] (Laclau, 2014, p. 43).

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A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

lar, ao enfrentar um poder dominante, articula demandas


diferenciadas como equivalentes e antagônicas a esse poder
(aquele que não permite que eu seja eu completamente).
Da lógica da equivalência derivam-se dois conceitos
importantes para a análise do discurso: significante vazio e
significante flutuante. A disputa entre forças políticas pela
hegemonia é um momento privilegiado de construção de
cadeias de equivalência. Por exemplo, em 1983, no Brasil,
quando houve um grande movimento popular pela volta das
eleições diretas para presidente da República, a campanha
denominada “Diretas Já” articulou um conjunto de sentidos:
“diretas já” também significava fim da corrupção, fim da in-
flação, fim do desemprego, respeito pelos direitos humanos.
Para Laclau, a campanha “Diretas Já” se constituiria em um
significante vazio.
Como sabemos, a identidade popular precisa ser condensada
em torno de alguns ‘siginificantes vazios’ (palavras, imagens)
que se referem à cadeia de equivalência como uma totalida-
de. Quanto mais extensa a cadeia, menos esses significantes
serão ligados às suas demandas particularistas originais. Isso
quer dizer que a função de representar a relativa ‘universa-
lidade’ da cadeia prevalecerá sobre a função de expressar a
reivindicação particular que constitui o sustentáculo mate-
rial dessa função. Em outras palavras, a identidade popular
torna-se cada vez mais plena de um ponto de vista extensivo,
pois representa uma cadeia de demandas cada vez maior;
torna-se, porém intensivamente mais pobre, pois precisa
despojar-se de conteúdos particularistas a fim de abarcar
demandas sociais heterogêneas. Isto é, a identidade popular
funciona como um significante que tende a ser vazio. (La-
clau, 2005, p. 153-154)

O significante vazio, portanto, não o é porque não te-


nha significado, mas exatamente porque contém todos os

22
Céli Regina Jardim Pinto

significados­. Dessa forma, não se distancia de outro conceito


importante no aporte teórico de Laclau: o de significante
flutuante. Tomemos, por exemplo, o combate à corrupção,
que, por sua popularidade em um cenário político específico,
se descola da cadeia de equivalência e se torna um signifi-
cante flutuante, à disposição de discursos que o disputam. A
princípio, não há uma filiação ideológica nesse combate. Um
significante flutuante pode ser articulado com uma posição
de esquerda, tornando-se equivalente a governo popular,
antiburguês, Estado forte, partidos das classes populares. No
entanto, em um momento de publicidade de casos de cor-
rupção de um governo identificado como popular, criam-se
condições para que o combate à corrupção seja articulado a
posições de centro-direita, tornando-se equivalente a, por
exemplo, Estado mínimo, mercado e liberalismo econômico.
Laclau (2005) exemplifica o aparecimento do significante
flutuante indicando como uma demanda popular pode dei-
xar uma cadeia de equivalência progressista para se articular
a um discurso conservador:
[...] neste caso, as mesmas demandas democráticas sofrem
a pressão estrutural dos projetos hegemônicos rivais. [...] A
questão é que seu significado é indeterminado entre frontei-
ras alternativas de equivalências. Denominarei ‘significantes
flutuantes’ esses significantes cujo sentido está, assim, ‘sus-
penso’. (Laclau, 2005, p. 197-198)

Os conceitos de significante vazio e significante flutuante


são particularmente importantes para a análise proposta nes-
te artigo, uma vez que, nas manifestações de 2013, há intensa
circulação de discursos que se fragmentam em significantes
flutuantes ao longo do processo e que se rearticularão em
dois projetos opostos nas eleições presidenciais de 2014.

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A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

Ainda para a análise da trajetória discursiva das manifes-


tações de 2013-2015 são importantes as categorias de povo e
liderança. O conceito de povo não tem nenhuma relação com
o conceito de população, massa ou multidão; pode-se dizer
que é um significante vazio, a unificação de uma pluralidade
de identidades em certo momento de luta. Não existe um
povo anterior às demandas da cadeia de equivalência; o povo
é uma construção que se renova na luta pela hegemonia. Ao
discutir a questão democrática, Laclau (2005, p. 215) afirma:
Os significantes vazios só podem desempenhar seu papel se
significam uma cadeia de equivalência e só o fazem consti-
tuindo um povo. Em outras palavras: a democracia só pode
fundar-se na existência de um sujeito democrático, cuja
emergência depende da articulação vertical entre demandas
equivalências. Um conjunto de demandas equivalências arti-
culadas por um significante vazio é o que constitui um povo.

Finalmente, a noção de líder, que se confunde com o


próprio povo, representa a unidade simbólica da cadeia de
equivalência em um momento transcendente singular: “a
identificação da unidade do grupo como o nome do líder”
(Laclau, 2005, p. 230).

Primeiro momento das manifestações:


as jornadas de junho de 2013
As manifestações em 2013 começaram no mês de feve-
reiro na cidade de Porto Alegre, foram lideradas pelo grupo
Bloco de Lutas, e tinham como pauta serem contrárias ao
aumento das passagens do transporte urbano.6 Entretanto,

6
O Bloco de Lutas pelo Transporte Urbano foi constituído em 2013, reunia
um conjunto diferenciado de movimentos e grupos que atuavam na cidade
[de Porto Alegre], nele havia uma forte tendência anarquista e partidos de

24
Céli Regina Jardim Pinto

as que se alastram pelo país com a mesma demanda não


estavam diretamente ligadas aos acontecimentos de Porto
Alegre, elas foram chamadas pelo Movimento Passe Livre
(MPL)7 surgido em São Paulo. As manifestações tomaram
um rumo diferente do que previa as convocações do MPL
e se tornaram eventos contra a corrupção, os políticos, os
partidos políticos, o governo, os serviços públicos. Os parti-
cipantes eram jovens, alguns pertenciam a grupos organiza-
dos, mas a maioria chegou às ruas pelas redes sociais, como

esquerda que se colocavam em oposição ao governo do PT. Josep Segarra


(2015, p. 27) trabalhando com a ocupação da Câmara Municipal de Porto
Alegre ocorrida em julho de 2013 pelo Bloco de Lutas assim define o grupo:
“Bloco de Lutas estava formado, no momento da Ocupação da Câmara de
Vereadores de Porto Alegre (10-18 de julho de 2013), por diversas organi-
zações políticas esquerdistas e pessoas autônomas. Entre os coletivos anar-
quistas e libertários, se encontravam a FAG (Federação Anarquista Gaúcha),
o Assentamento Urbano Utopia e Luta e o Moinho Negro. Havia também
militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e de partidos à esquerda do
PT: PSOL (Partido Socialismo e Liberdade, com diversas das suas corren-
tes: Vamos à Luta, Alicerce, Juntos, CST), PSTU (Partido Socialista dos
Trabalhadores Unificados) e PCB (Partido Comunista Brasileiro)”.
7
Em sua página oficial na internet, o MPL assim se define: “O Movimento
Passe Livre (MPL) é um movimento social autônomo, apartidário, horizon-
tal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito
para o conjunto da população e fora da iniciativa privada. O MPL é um
grupo de pessoas comuns que se juntam há quase uma década para discutir
e lutar por outro projeto de transporte para a cidade. Estamos presentes em
várias cidades do Brasil e lutamos pela democratização efetiva do acesso ao
espaço urbano e seus serviços a partir da Tarifa Zero! O MPL foi batizado
na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em janeiro de 2005, em Porto Ale-
gre. Mas, antes disso, há seis anos, já existia a Campanha pelo Passe Livre
em Florianópolis. Fatos históricos importantes na origem e na atuação
do MPL são a Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e as Revoltas da Catraca
(Florianópolis, 2004 e 2005). Em 2006, o MPL realizou seu 3º Encontro
Nacional, com a participação de mais de 10 cidades brasileiras, na Escola
Nacional Florestan Fernandes, do MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra). Em 2013, impulsionado pela revogação do aumento
em mais de 100 cidades, ocorreu o 4º Encontro Nacional” <mpl.org.br>;
acesso em: 29 set. 2015).

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A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

indivíduos em grupos de amigos e sem militância política


anterior em partidos ou movimentos sociais.
Pela proximidade temporal, se tendeu a associar essas
manifestações com o que havia acontecido na Europa em
2011, principalmente na Espanha. Há pontos de conver-
gência na juventude dos participantes e na forma quase
espontânea como a maioria das manifestações tomou corpo.
Palavras de ordem dos cartazes das manifestações de 2013,
como “eles não me representam”, referindo-se aos políticos
tradicionais, já haviam aparecido na Plaza del Sol em Madri
em 2011. Mas as semelhanças se esgotam aí. Nos anos das
respectivas manifestações, Espanha e Brasil viviam situações
opostas em termos econômicos. Enquanto grande parte dos
jovens espanhóis estava desempregada, o Brasil vivia um
momento de quase pleno emprego. A crise econômica que
assolava a Espanha não havia chegado ao Brasil. Essa era a
principal razão de os jovens terem saído às ruas naquele país.8
Se há uma característica capaz de definir as manifestações
de rua de 2013 no Brasil é a diversidade de pessoas que delas
participavam e que se revela em uma flagrante fragmentação
discursiva. Estavam nas ruas: o Movimento Passe Livre em
São Paulo, próximo ao PT; os Black Blocs, com performan-
ces violentas de ação direta, autodenominando-se anarquis-
tas; bancários e professores das redes estaduais, reivindicando
melhores salários; jovens de classe média posicionando-se
contra a corrupção, partidos políticos e o governo Dilma;

8
Em 2013, o Brasil tinha uma taxa de desemprego de 5,4% e o desempre-
go entre os jovens era de 13,7% (fonte: <www.ibge.br>). Já a Espanha
tinha uma taxa de desemprego de 26,03%, destes 53,7% eram de jovens
(<http://www.jornaldenegocios.pt/economia/europa/detalhe/espanha_fe-
chou_2013_com_desemprego_nos_26.html>; acesso em: 10 jan. 2016).

26
Céli Regina Jardim Pinto

médicos revoltados com os programas de saúde do governo


para o atendimento à população carente; grupos minoritários
clamando pela volta dos militares; jornalistas da TV Globo
defendendo o direito do “cidadão de bem” se manifestar.9
Para evidenciar a diversidade discursiva das manifesta-
ções de 2013, tomaremos a fala de três atores: o Movimento
Passe Livre em São Paulo, os Black Blocs, e o restante, a
maioria fragmentada.

O Movimento Passe Livre


Em junho de 2013, o Movimento Passe Livre (MPL) teve
enorme êxito em chamar para as ruas da cidade de São Paulo
um grande contingente de pessoas para se manifestar contra
o aumento de 20 centavos de real na passagem de ônibus.
O comportamento dos militantes do MPL expressou-se de
forma muito linear: convocaram o povo a ir às ruas, foram
ouvidos pelo prefeito, que, mesmo se opondo ao movimento,
determinou a suspensão do aumento da passagem, aten-
dendo assim à reivindicação do MPL. Seus integrantes se
autoidentificavam como apartidários, descrentes das atuais­

9
A presença da mídia como um ator ativo nas manifestações nesses dois anos
ainda necessita ser analisada. Foge do alcance deste artigo fazê-lo, mesmo
assim não se pode deixar de pontuar a atuação da Rede Globo de televisão,
tanto em sua versão de TV aberta como no seu canal pago de notícias, em
campanha declarada a favor das manifestações, principalmente em 2013
e 2015. No primeiro ano, a emissora construiu um discurso que dividia
os manifestantes entre vândalos, aqueles que eram violentos e portavam
palavras de ordem contra os jornalistas da emissora, e os “cidadãos de
bem”, que tinham o direito de se manifestar. Quanto mais as manifestações
adquiriam uma postura antigoverno federal, mais a Rede Globo cobria os
eventos, chegando a mudar sua grade de programação e o horário de sua
mais importante atração, a chamada “novela das 9”. Também em 2015, a
posição da rede foi francamente a favor dos protestos, fazendo cobertura
completa das manifestações pró-impeachment da presidenta da República.

27
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

instituições políticas e sem interesses pela vida política par-


tidária, como afirmavam:
Acreditamos em uma nova forma de se fazer política e não
nos organizamos para eleições. Pressionamos o governo por
políticas públicas, mas defendemos na nossa prática cotidiana
que existe política além do voto. No entanto, é preciso deixar
claro que ser ‘apartidário’ não significa ser ‘antipartidário’.
Militantes de partidos políticos são totalmente bem-vindos
para colaborar na luta por passe livre. (blog MPL, grifo no
original)10

Mesmo se identificando como apartidário, o movimen-


to foi sempre associado a partidos e posições à esquerda, o
que possivelmente provocou sua retirada das ruas quando
as reivindicações se ampliaram e se tornaram visivelmente
contra o governo do PT. As palavras de um militante do
MPL atestam isso:
Interessava tanto à direita quanto à esquerda dar um golpe
em nossa pauta. Quando se tem um único tema e pessoas
nas ruas é mais fácil pressionar e conseguir uma vitória. In-
teressava para vários setores dizer que a luta não era somente
pelos 20 centavos. Colocam um monte de coisas no mesmo
saco e não se conquista nada. Para nós o movimento era sim
pelos 20 centavos. Interessava para vários setores dizer que a
luta não era somente por 20 centavos. (Capelo, 2013)

O MPL era o movimento mais organizado nas ruas em


junho de 2013, com o discurso mais popular e orgânico;
justificou sua saída com o argumento de estar em meio a
um fogo cruzado entre grupos de esquerda e de direta. E
realmente estava: de um lado, o prefeito de São Paulo, do
PT, partido próximo do MPL, e partidos de esquerda que

10
<http://tarifazero.org/mpl/>; acesso em: 10 ago. 2013.

28
Céli Regina Jardim Pinto

faziam oposição ao PT; de outro lado, um discurso antipo-


lítica emergia, investindo contra as bandeiras de partido, e
estava claramente à direita no espectro político.
O MPL se colocava nas manifestações com uma dife-
rença: uma demanda que, atendida, não se relacionava mais
com nenhuma outra demanda. Apesar de defender a política
além do voto, seus integrantes não se articularam, durante as
manifestações, com partidos mais à esquerda ou com grupos
anarquistas que defendiam a democracia direta. O MPL teve
força de mobilização, mas sua posicionalidade de demanda
democrática não articulada a nenhuma outra demanda im-
pediu qualquer processo que permitisse o surgimento de
uma cadeia de equivalência entre as diversas demandas que
circulavam nas manifestações e a luta contra o aumento da
passagem do transporte urbano. Ao contrário, o MPL se po-
sicionou com uma demanda particular e se retirou das ruas
assim que atendido. Quando o membro do MPL declarou
que havia interesse dos dois lados (esquerda e direita) de
associá-lo a outras lutas, estava falando da luta política por
construção de cadeias de equivalência, que enfraqueceria o
sentido de sua questão específica para torná-la equivalente
a outras questões que circulavam nas manifestações.

Os Black Blocs
Com a retirada do MPL, houve notório vazio discursivo.
A esquerda partidária, representada pelo PSOL e PSTU,
não se manifestou; a radicalização ficou por conta dos Black
Blocs, que se apresentavam não como um grupo ou movi-
mento, mas como uma tática de manifestação para atacar os
símbolos do capitalismo. Vestidos de preto, com os rostos
cobertos para não serem identificados pela polícia, os Black

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A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

Blocs apareceram pela primeira vez na Alemanha, em 1980,


por ocasião de uma visita de Ronald Reagan, então presiden-
te dos Estados Unidos. Carreiro (2014), ao introduzir seu
trabalho sobre o ativismo dos Black Blocs nas redes sociais,
em 2013, no Brasil, assim os identifica:
Uma vez que as táticas específicas e os rumos de atuação
podem variar de acordo com cada contexto, o fator de adap-
tação é importante para entender o fenômeno. No entanto,
mantém-se a ideia de destruição de símbolos do capitalismo.
Em Seattle, por exemplo, durante a realização da Conferên-
cia da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1999,
os Black Blocs tiveram como alvo principal as lojas Starbucks
– maior rede de cafeterias do mundo e com sede na cidade.
Já no Brasil, em 2013, as agências bancárias e concessionárias
de automóveis foram os mais atingidos. (p. 245).

Em entrevista a uma revista semanal sob codinome


Roberto (2013), um membro dos Black Blocs, participante
das manifestações de junho de 2013, reafirmou a ideia de
violência simbólica presente na atuação internacional:
Nossa sociedade é permeada por símbolos. Participar no
Black Blocs é usá-los para quebrar preconceitos, não so-
mente o alvo atacado, mas a ideia de vandalismo. Não há
violência, mas performance. Eu não me sinto representado
pelos partidos. E não sou a favor da democracia represen-
tativa, mas da democracia direta. Não é depredação pelo
simples prazer de quebrar coisas, mas atacar símbolos que
estão representados lá.

Os Black Blocs foram duramente reprimidos pela


polícia e classificados como vândalos pela mídia, que
repetidamente traçava uma divisória entre os violentos
(os vândalos) e os cidadãos democráticos, estes, sim, se
manifestavam legitimamente na visão da mídia. Em que

30
Céli Regina Jardim Pinto

pese a clara diferença dos Black Blocs se comparados com


os integrantes do MPL, no cenário das manifestações, a
atuação dos dois grupos teve uma semelhança, que se revela
de importância para entender a trajetória discursiva que
as manifestações tomaram. Se o MPL deliberadamente
recusou qualquer possibilidade de se tornar um elo em
uma cadeia de equivalência, que o poderia levar inclusive
à posição de um significante vazio, os Black Blocs também
tinham um discurso que se impunha pela diferença, pela
impossibilidade de construir equivalência com os demais
atores nas ruas. Seu discurso era a luta contra o capitalismo
e seus símbolos, suas ações eram de enfrentamento físico
com as forças policiais. Não havia demanda como no caso
do MPL, mas uma performance, que os isolava de qualquer
outro grupo ou manifestantes individuais.
Não se pode afirmar que não havia outros grupos or-
ganizados nas manifestações de 2013; existiu até uma im-
prensa alternativa, a Ninja, que teve protagonismo durante
o período, mas foram grupos também fechados, com menor
exposição que o MPL e os Black Blocs. O quadro que se
apresentava era o de discursos autocontidos, que não se
comunicavam com os outros significantes que circulavam
nas manifestações. O que restava, portanto, era uma maioria
fragmentada de manifestantes, e esse é o fenômeno novo.

A maioria fragmentada
A maioria das centenas de milhares de pessoas que foram
às ruas em junho de 2013 não pertencia a nenhum grupo
organizado, eram indivíduos indignados com a corrupção,
com os políticos, e identificavam no governo a culpa pelo
que chamavam de caos na saúde, na educação e na segurança.

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Uma pesquisa realizada durante as manifestações do


dia 20 de junho em seis Estados e no Distrito Federal, pelo
maior instituto de pesquisa brasileiro,11 oferece dados im-
portantes sobre quem estava nas ruas: os manifestantes se
dividiam igualmente entre homens e mulheres; 63% deles
tinham entre 14 e 29 anos; 92% tinham o Ensino Médio
completo, estavam na universidade ou tinham o Ensino
Superior completo, estes últimos perfaziam 43% dos entre-
vistados.12 Quanto à relação com a política, 96% não eram
filiados a partidos e 86% não eram filiados a sindicatos,
entidades de classe ou entidades estudantis. Mesmo levan-
do em consideração certo nível de incerteza desse tipo de
pesquisa realizado em manifestações, os números são muito
indicativos de quem estava nas ruas: eram, em sua maioria,
jovens, altamente escolarizados e sem experiência político-
-partidária ou associativa.13
Essa maioria portava cartazes feitos à mão, que criticavam
a política e os políticos, pediam mais recursos para a saúde e
a educação, mas vinham de setores menos populares do que
aqueles aos quais pertenciam os costumeiros usuários desses
11
A pesquisa foi feita nas capitais de sete estados (SP, RJ, MG, RS, PE,
CE, BA) e em Brasília na quinta-feira, dia 20. Foram entrevistados 2002
manifestantes com 14 anos ou mais, com margem de erro de 2 pontos
percentuais­para mais ou para menos; <http://g1.globo.com/brasil/noti-
cia/2013/06/veja-integra-da-pesquisa-do-ibope-sobre-os-manifestantes>
acesso em: 20 jan. 2016.
12
A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD; <www.ibge.br>)
de 2012 aponta que 12% dos brasileiros têm o ensino superior completo.
13
Toda a vez que este artigo se referir à classe média, estará tratando de
camadas intermediárias da população brasileira com ocupação no setor
de serviços na esfera privada e de funcionalismo público na esfera estatal.
Quando citamos a classe média alta, refere-se a uma parcela dessa classe
média composta de profissionais liberais, executivos, comerciantes de mé-
dio porte, entre outros que detêm ganhos compatíveis com o 1% mais rico
da população, sem, entretanto, pertencer à burguesia.

32
Céli Regina Jardim Pinto

serviços públicos. Essas demandas não eram marcadas ideo­


logicamente; eram, entretanto, contra a política; exemplos
de cartazes trazidos pelos manifestantes são ilustrativos: “o
povo unido não precisa de partido”; “ou para a roubalheira
ou paramos o Brasil”; “meu partido é meu país”; “saímos
do Facebook”; “desculpe o transtorno, estamos mudando
o Brasil”; “o gigante acordou”; “ato médico”;14 “cura gay”;15
“mensalão na cadeia”, “voto aberto”.16
As jornadas de junho de 2013 não tiveram o principal
protagonista das campanhas políticas de rua no Brasil desde
a primeira eleição direta para presidente do país pós-ditadura,
em 1989: o militante/eleitor do PT. Os 12 anos de governo
petista desgastaram o discurso dos militantes pelo próprio
fato de ser poder, pelas alianças que foram feitas para gover-
nar, pela frustração da ausência de políticas mais à esquerda
e, não menos importante, pelos escândalos de corrupção
que vieram a público a partir de 2005, conhecido como
“mensalão”.17
O discurso que organizava a esquerda já não tinha mais
força para articular amplas parcelas da sociedade, como
ocorrera nas campanhas presidenciais de Luiz Inácio Lula
da Silva. As diferenças ressurgiam e rompiam com as equi-

14
O ato médico referia-se a uma lei, aprovada posteriormente, que definia as
prerrogativas dos médicos, que provocou muita discussão entre os profissio-
nais não médicos da área da saúde. Nas manifestações, os cartazes estavam
nas mãos de pessoas que defendiam as prerrogativas dos médicos.
15
Projeto que estava na Câmara de Deputados, nunca aprovado, que sus-
pendia a decisão do Conselho Federal de Psicologia de proibir qualquer
tratamento para curar a homossexualidade.
16
<http://g1.globo.com/brasil/fotos/2013>; acesso em: 10 jan. 2015.
17
Ficou conhecida como mensalão a investigação sobre suposto pagamento
em dinheiro, o que era feito pelo PT aos deputados dos partidos aliados no
Congresso Nacional para aprovar seus projetos de governo.

33
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

valências que o sustentava, e disso resultaram dois efeitos:


a desmobilização e a fragmentação dos setores de esquerda
do espectro político.
Não foi feita uma pesquisa para identificar em quem
esses manifestantes haviam votado nas últimas eleições
presidenciais. É bastante provável que a maioria não tenha
votado nem em Lula nem em Dilma Rousseff. Mesmo
antes de 2014, os candidatos da oposição tiveram um de-
sempenho considerável nas eleições presidenciais que o PT
ganhou. Mas não se pode excluir a possibilidade de que
nas manifestações houvesse eleitores do PT arrependidos,
principalmente devido aos escândalos de corrupção. Por
essas características, as manifestações de 2013 produziram a
matéria-prima que gestou a construção dos novos discursos
revelados nas manifestações de 2014.
Laclau (2005) é muito enfático quando fala em constru-
ção de discursos políticos em diferentes demandas que se
articulam. Se analisarmos as manifestações de 2013 no que
concerne a essa massa fragmentada, podemos identificar
um conjunto de demandas, tais como educação, saúde, se-
gurança, fim da corrupção. Mas esses itens são, na verdade,
mais consignas do que demandas, pois Laclau, quando fala
em demandas, pensa em demandas sociais que constituem
sujeitos sociais e políticos com propostas. A questão da saú-
de nas manifestações muitas vezes era o discurso de jovens
médicos contrários às políticas públicas, que caminhavam
na direção de maior e melhor atendimento médico para as
camadas mais pobres da população. Não se viu nas ruas
nenhuma manifestação de estudantes de escolas públicas, ou
de pais e professores se colocando na defesa de uma escola
pública, por exemplo.

34
Céli Regina Jardim Pinto

Em 2013, a popularidade da presidenta da República


caiu de 65% de ótimo e bom em março, mês de início das
manifestações, para 30% em junho. De julho de 2013 a de-
zembro de 2014, a popularidade não oscilou abruptamente,
ficando sempre entre 30% e 40%, o que aconteceu após esta
data.18 Esses são dados importantes a considerar, as mani-
festações ocorreram não porque havia um governo com
baixa popularidade, mas o contrário, a baixa popularidade
foi consequência das manifestações, ou, melhor ainda, da
incapacidade do governo de reagir a elas por meio de um
discurso popular (historicamente o discurso do PT) que
desse sentido ao próprio governo.
As manifestações de 2013 resistem a caracterizações
precisas. É um momento muito peculiar em que as dife-
renças são mais fortes do que a equivalências. Mesmo que,
em alguns momentos, se pudessem identificar palavras de
ordem muito semelhantes em todos os lugares, como as
que afirmavam o descrédito nos políticos e nos partidos,
elas tinham sentidos muito diversos nas mãos e bocas de
diferentes portadores.

Segundo momento das manifestações:


a Copa do Mundo de Futebol de 2014
Na introdução deste artigo, mencionamos o jogo inau-
gural da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, no dia 12
de junho de 2014, como um ponto de inflexão no discurso
das manifestações que ocorreram no país entre 2013 e 2015.
Para chegarmos a esse evento específico e entendermos a sua
importância no processo, devemos antes voltar o olhar para

18
<http://datafolha.folha.uol.com.br>; acesso em: 20 jan. 2016.

35
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o conjunto de manifestações ocorridas nos primeiros meses


de 2014, contrárias à Copa.
No popular país do futebol, houve uma grande mo-
bilização contra o evento, liderada por grupos ligados a
partidos de esquerda e movimentos sociais urbanos. Ao
contrário do que o governo e a imprensa imaginavam, a
Copa não empolgou os brasileiros em geral, tendo contri-
buído para isso os altos preços dos ingressos, que excluía
a maioria da população de assistir aos jogos nos estádios, e
a pouca credibilidade da seleção do país. Além do mais, a
forma autoritária e “imperial” com que as autoridades da
Federação Internacional de Futebol (Fifa) se referiam às
obras dos estádios e à preparação do evento causou gran-
de repúdio por parte da população, que passou a chamar
a Copa nas redes sociais sarcasticamente pelo seu nome
oficial: a “Copa do Mundo da Fifa”.19
É nesse clima que as manifestações contra a Copa do
Mundo chegaram às ruas. Há possíveis linhas de compara-
ção com os eventos acontecidos em 2013, mas há também
distinções fundamentais. Não foram manifestações com
grande número de pessoas, mas foram organizadas a partir
de blogs e páginas do Facebook e tiveram participação de
partidos à esquerda do PT. Os organizadores formaram
pelo menos três grupos bem delimitados: os “não vai ter
Copa”, o “Comitê Popular da Copa” e o “Comitê Popular
dos atingidos pela Copa”. Os conteúdos tendiam a repetir os
de 2013: corrupção, saúde, educação, segurança, descrença
nos partidos e nos políticos. No entanto, as semelhanças
19
Esse repúdio não tem nada a ver com os escândalos de corrupção que
depuseram a direção da Fifa em 2015. Os acontecimentos no Brasil são
anteriores.

36
Céli Regina Jardim Pinto

param aí. Diferentemente, em 2014 havia um conteúdo com


potencialidade de se tornar um significante vazio: a Copa do
Mundo. Ela significava corrupção, os gastos desnecessários, a
incompetência, o desgoverno. A Copa do Mundo tornou-se
sinônimo de governo Dilma. Ao contrário de 2013, agora
havia um discurso articulado, que construía equivalências.
Mas o que havia de mais original é que esse conjunto de
articulações se associava a duas posturas ideológicas opostas.
De um lado, estavam os manifestantes anti-PT, que
associavam o partido ao comunismo, à Cuba; o Facebook
dos “não vai ter Copa” denunciava o programa social do
governo, o Bolsa Família, como o maior arrecadador de
votos do partido e dava espaço para o conservador deputa-
do e pastor pentecostal Marco Feliciano. Os manifestantes
ligados a esse movimento demandavam serviços públicos
“padrão Fifa”, atribuindo razão à Federação Internacional de
Futebol em suas reclamações sobre a qualidade das obras no
país. De outro lado, havia manifestantes que pertenciam a
movimentos sociais e partidos de esquerda. Uma liderança
do “Comitê Popular dos atingidos pela Copa”, de São Paulo,
em entrevista à época, afirmou:
Queremos garantir a liberdade de manifestação, que está
muito ameaçada com projetos de lei, reforço na segurança, nas
polícias militares e no Exército, que já estão a postos para coi-
bir protestos na Copa. Queremos o direito à manifestação para
então poder reivindicar o direito à moradia, ao trabalho am-
bulante, o fim da exploração sexual de crianças e mulheres.20

O processo de construção discursiva é muito particular


nesse momento, demandas aparentemente fragmentadas se

20
<www.comitepopularesp.wordpress.com>, acesso em: 14 dez. 2014.

37
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organizavam em uma cadeia equivalente: moradia, trabalho


ambulante, fim da exploração sexual de crianças e mulheres
apareciam como um lado da luta contra o governo federal,
que reprimia o movimento das ruas. Esse também foi um
momento de violência, com quebra de vitrines de agências
bancárias e enfrentamento com a polícia. Novamente, a
palavra da liderança é explicativa:
Essa violência, que não é contra pessoas, é uma resposta à
violência cotidiana do Estado contra a população. A violência
é nos deixar em ônibus e metrôs lotados, com uma qualidade
péssima de serviço, filas na saúde pública, péssimas condi-
ções de educação, ter milhões de pessoas despejadas de suas
casas para dar lugar a obras da Copa, sem alternativa de mo-
radia [e destaca:] sem contar a violência contra a população
de rua, que está sendo expulsa do centro da cidade para não
ser vista pelos turistas.21

O discurso aqui inverte o sentido da violência articu-


lando-a às condições de vida da população. A violência era
o transporte público, a educação, as pessoas deslocadas com
as obras da Copa, a cidade “limpa” para os turistas. Houve,
portanto, discursos antigoverno, mas que estavam em clara
oposição às manifestações dos grupos conservadores. Em
termos de número, nenhuma das manifestações de 2014
contra a Copa foi de grande proporção, mas elas tiveram
um papel importante na trajetória discursiva que está sendo
analisada neste artigo.
Em meio a essas posições ideologicamente opostas havia
um vácuo discursivo importante: o governo Dilma, o ter-
ceiro do Partido dos Trabalhadores, havia perdido a possibi-
lidade de se significar discursivamente, em outras palavras,
21
<www.comitepopularesp.wordpress.com>, acesso em: 14 dez. 2014.

38
Céli Regina Jardim Pinto

de dar sentido às suas próprias ações. O que se identificou


em 2013 recrudesceu um ano depois. Isso não ocorreu de
um momento para o outro, foi-se gestando ao longo de 12
anos. O PT, partido de grande militância, havia sido capaz
de articular as demandas populares democráticas do país por
um longo período. Lula tinha sido candidato à presidência
da República cinco vezes, tendo ganhado as duas últimas
eleições. Mas, desde a primeira campanha, quando chegou
ao segundo turno contra Fernando Collor de Mello, em
1992, se construiu como candidato sobre um discurso de
mudança que incorporava setores populares e largas faixas
das camadas médias da população.
Não pretendemos neste artigo nos aprofundar nas ra-
zões do esgarçamento do discurso do PT, mesmo assim é
importante, para a análise da trajetória discursiva dos anos
em pauta, apontar, ainda que rapidamente, três razões que
contribuíram para esse cenário.
A mais óbvia dessas razões foram os três mandatos do PT
na presidência da República, que provocou um sentimento
de decepção nos militantes, os quais viram frustradas suas
expectativas de mudanças mais radicais, impossibilitadas
pelos acordos que o governo fora obrigado a fazer com par-
tidos centristas para montar uma sempre potencialmente
instável maioria no Congresso Nacional.22 Também como
governo, o partido teve de fazer acordos com os setores do

22
O presidencialismo de coalizão – no caso do sistema político partidário
brasileiro – torna o partido vitorioso refém de acordos e alianças com os
demais partidos para ter condições de governar, o que diminui muito as
possibilidades de levar adiante políticas exclusivas do partido e os anseios
de sua militância. No caso do PT, isso se tornou ainda mais difícil, pois
mesmo os partidos de centro tenderam a lhe fazer oposição ou cobraram
altos preços pelo apoio.

39
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

mercado financeiro e da indústria, acordos estes pouco pa-


latáveis à militância. O desgaste em ser governo é natural,
mas aumentou à medida que o partido foi perdendo o apoio
dos militantes.
A segunda razão foi o afastamento dos governos, tanto
de Lula quanto de Dilma, das bases dos movimentos sociais.
Eles apostaram em políticas públicas sociais que provocaram
mudanças significativas na vida das classes populares, mas
não incluíram politicamente essas classes. O eleitor do PT
passou a ser um cliente do governo, um cliente de suas po-
líticas públicas. Uma vez tendo tornado-se cliente, o eleitor
deixou de ter uma relação política com a política e isso foi
marcante quando não se via nas manifestações nenhuma
posição explícita de apoio ao governo e/ou ao partido. As
duas eleições de Dilma Rousseff mostram essa característica,
de que Dilma vendia uma proposta que fora comprada por
uma clientela.23
A terceira razão do esgarçamento do discurso petista
foram os escândalos de corrupção que vieram a público em
2005, popularmente chamados de “mensalão” e já referidos
neste artigo. O governo liderado pelo PT fora acusado de
conseguir maioria no Congresso Nacional pagando uma
mesada a um conjunto de deputados da base aliada. O escân-
dalo começou com a denúncia de um deputado que recebia
propina como líder de seu partido e chegou ao ministro
mais importante do governo e à cúpula do próprio partido.
O julgamento se estendeu até dezembro de 2012, quando o
Supremo Tribunal Federal condenou à prisão os deputados

23
Para uma análise detalhada da primeira campanha eleitoral de Dilma Rous-
seff em 2010, ver Pinto (2012).

40
Céli Regina Jardim Pinto

envolvidos e dois dos principais líderes e fundadores do


Partido dos Trabalhadores.24 Em março de 2014, um novo
escândalo de corrupção ocupou o noticiário, propinas de
milhões de dólares levaram à prisão ex-diretores da Petro-
bras, políticos e empreiteiros. Os escândalos bateram de
frente com a história do PT, de defesa da ética na política, e
afastaram ainda mais seus militantes e eleitores.
Esse é o cenário de um vácuo discursivo, pois o que se
fragmentava era a hegemonia do PT construída por longos
anos por meio do discurso, que incluía militantes e eleitores
fiéis. Não perdeu seus eleitores como consequência imediata,
tanto que Dilma Rousseff foi eleita e reeleita em meio a gran-
des escândalos de corrupção, mas perdeu sua capacidade de
dar sentido à vida política, às causas políticas. E como tinha
ocupado esse espaço por longo tempo e interpelado parcelas
significativas da sociedade brasileira e, praticamente, todo
o espectro da esquerda, a crise do discurso petista deve ser
computada como uma importante razão da fragmentação
discursiva em 2013 e os primeiros ensaios de reorganização
discursiva durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014.
Não é o caso de afirmar que esses novos discursos inter-
pelaram a massa de eleitores do PT, não temos elementos
para isso. Porém, a crise do discurso petista possibilitou um
vazio discursivo e uma miríade de significantes flutuantes
à disposição para serem articulados em novas cadeias de
equivalência.
Essas são as condições de emergência do evento de abertu-
ra da Copa do Mundo de Futebol, na cidade de São Paulo, no
24
Foram condenados nessa oportunidade o ex-deputado José Dirceu, funda-
dor do PT, ex-presidente do partido e chefe da Casa Civil do governo Lula
e o deputado José Genuíno, então presidente do PT.

41
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

dia 12 de junho de 2014. A grande vaia sofrida pela presidenta


da República ao ter seu nome anunciado foi o momento inau-
gural do discurso conservador, fundamentalmente antipetista,
que tomou fôlego a partir de então, dando sentido às mani-
festações por seu impeachment em março de 2015. Esse fluxo
de discurso conservador surgiu em um momento que havia
um discurso radical de esquerda circulando, que interpelava
grupos específicos e minoritários, como vimos anteriormente.
Entretanto, não havia o grande articulador do povo, o discurso
que simbolizava o líder. O discurso petista, que, por longos
anos, havia ocupado esse espaço, estava em crise. Esse foi o
caldo de cultura que propiciou a liderança difusa de grupos
nas redes sociais, que começaram a articular um novo discurso
conservador com apelo popular.
Considerar o jogo do dia 12 de junho o momento inau-
gural desse discurso conservador não implica dizer que antes
já não houvesse um forte sentimento anti-PT e antipresi-
denta da República, nem tampouco, de outra forma, que o
PT, apesar da crise discursiva, tivesse sido abandonado por
seus eleitores. A novidade em 2014 é que o campo da centro-
-esquerda estava desorganizado e o campo da centro-direita
tomava a dianteira, sendo capaz de, a partir da exploração de
um sentimento anti-Dilma, construir um discurso popular
pautado por palavras de baixo calão, panelaços nas janelas
de prédios de classe média, xingamentos machistas contra a
presidenta e até uso pornográfico de sua imagem.25 É mister

25
Não cabe no escopo deste artigo analisar a forma como a presidenta Dilma
Rousseff foi qualificada por seus opositores, mesmo assim é importante
pontuar que sua desqualificação esteve sempre a todo momento associada
à sua condição de mulher, expressando um forte machismo arraigado na
sociedade brasileira.

42
Céli Regina Jardim Pinto

chamar a atenção que esse discurso com apelo popular não


foi levado a efeito pelas classes populares indignadas, mas
por setores da alta classe média, pelo menos em 2014. No
estádio de futebol, o Itaquerão, as vaias foram puxadas pelos
ocupantes dos setores VIPs, cujo ingresso custou, ao câmbio
da época, 450 dólares.26 Os panelaços, que se seguiram a cada
aparição da presidenta ou de programas do PT veiculados em
rede nacional de televisão, também aconteciam nos bairros
de classe média nas principais cidades do país. Apesar de esse
discurso beneficiar a oposição, no caso o Partido da Social
Democracia Brasileira ( PSDB), não se pode afirmar que esse
era o discurso do partido, que nunca se colocou abertamente
na liderança desse novo cenário político.
Após a Copa do Mundo, o Brasil entrou em campanha
eleitoral para a presidência da República. O que interessa
para os propósitos deste artigo é, especificamente, o segun-
do turno das eleições presidenciais de 2014, quando Dilma
Rousseff teve como adversário Aécio Neves, do PSDB. O
que se viu foi os apoiadores de Dilma em casa e um novo tipo
de militante político nas ruas – um militante conservador, de
classe média alta, com uma campanha agressiva anti-Dilma
e anti-PT. As pesquisas eleitorais davam empate técnico e
o que se ouviu nas ruas foi a voz do estádio do Itaquerão.
Ao contrário das manifestações anteriores, as vaias no
estádio não foram contra todos os políticos, contra a Fifa,
contra a corrupção, mas dirigidas, especificamente, à pre-
sidenta da República, que pleiteava a reeleição. Houve um
importante deslocamento no discurso das manifestações, a
26
Os xingamentos contra a presidenta foram contundentes, mas localizados,
ecoaram da área VIP (uma das mais caras) e de outras partes do estádio
naquele dia. (<http://www1.folha.uol.com.br>; acesso em: 4 jan. 2016).

43
A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

fragmentação discursiva encontra o significante vazio, Dilma


Rousseff, capaz de articular em uma cadeia de equivalên-
cia todos os conteúdos que significavam dispersamente os
problemas do país.
Em 2014, a campanha para as eleições presidenciais e
a reeleição de Dilma Rousseff no segundo turno por uma
diferença de 3,28% dos votos (TSE, 2015) não apontavam
rearticulação do discurso de centro-esquerda, mas o con-
trário, o fortalecimento do discurso de centro-direita, que,
durante as eleições e, principalmente, durante a campanha
para o segundo turno, tomou as ruas dos bairros de classe
média e média alta de todo o país. A surpresa desse cenário
é que Dilma Rousseff ganhou as eleições sem a tradicional
militância e apoiadores do PT nas ruas, que sempre ha-
viam aparecido como o grande sujeito político das vitórias
petistas. De forma diversa, o discurso das ruas estava sendo
construído pelos apoiadores de seu adversário, Aécio Neves,
do PSDB. O eleitor de Dilma em 2014 havia sido eleitor
anteriormente de Lula e de Dilma em 2010, entretanto, já
não era o militante, mas o cliente, que, naquele momento,
defendia a continuidade de políticas sociais estruturantes,
que haviam melhorado a vida de significativa parcela da
população brasileira.27

27
Sobre as políticas sociais dos governos Lula e do primeiro mandato de
Dilma Rousseff, ver Kerstenetzky (2009). Scalon mostra as alterações
ocorridas no período: “Entre 2002 e 2009, a participação da ‘Classe C’ – que
vem sendo chamada de nova classe média –, no recorte estudado, passou
de 45,4% para 54,2%. A ‘Classe A & B’ correspondia a 13% do recorte, em
2002, passando para 17%, em 2009. A ‘Classe D’, que, em 2002, respondia
por 15,5% do recorte, em 2009 cai para 12,2%. Por fim, a ‘Classe E’ apre-
sentou uma substantiva diminuição, indo de 26,1%, em 2002, para 16,5%,
em 2009. Desse modo, percebemos uma melhora na distribuição de renda,
com os grupos de menor renda diminuindo sua participação e os grupos

44
Céli Regina Jardim Pinto

Não cabe no escopo deste artigo analisar as eleições


presidenciais de 2014. As manifestações da classe média alta
nas principais cidades do país na semana imediatamente
anterior ao dia da eleição do segundo turno estão a merecer
um estudo acurado; para os nossos propósitos, é necessário
apenas pontuar que naquele momento se fortificava o discur-
so inaugurado no estádio de futebol por ocasião da abertura
da Copa. Tendo sido Dilma Rousseff vencedora das eleições,
de pronto se iniciou a campanha por seu impeachment, que
tomou as ruas em março de 2015.

Terceiro momento das manifestações:


as jornadas de março de 2015
O segundo turno das eleições presidenciais deixou o
país profundamente dividido e com as forças de oposição
que haviam votado em Aécio Neves inconformadas com a
derrota por uma pequena margem de votos. Após as eleições,
o discurso anti-Dilma tomou imediatamente o impeachment
como seu conteúdo central.
Dilma Rousseff venceu as eleições, mas não venceu o
discurso. Quem falava em nome do Brasil, quem dizia o que
era o país, o que iria acontecer, era a oposição partidária e
alguns grupos organizados nas redes sociais. A popularidade
da presidenta caiu nos três meses posteriores à eleição de
forma vertiginosa: em dezembro, Dilma tinha 42% de ótimo
e bom na avaliação de seu governo e 24% de péssimos; em
março, caiu para 13% de ótimo e bom e 60% de péssimo.
Essa variação não decorreu de alguma medida drástica que a

de renda média e alta intensificando sua presença. Devemos destacar a


notável queda da participação da ‘Classe E’ e também o correlato aumento
da ‘Classe C’ (Scalon; Salata, 2012, p. 136).

45
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presidenta tivesse tomado nos primeiros meses de governo,


mas sim da incapacidade do governo de dar sentido à sua pró-
pria existência. Se forem comparados os dados dessa pesquisa
com os dados eleitorais, há proximidade na percentagem de
votos para Rousseff no segundo turno, 48,36%, e os 42% de
ótimos em dezembro. Dos dados, é possível inferir que, em
três meses, significativo número de seus eleitores mudou de
opinião sobre a presidenta.28
Uma explicação plausível para esse fenômeno deve ser
buscada na desagregação discursiva já em curso desde 2013.
O que não impediu, porém, que o tradicional eleitor do
PT e os clientes do governo votassem em Dilma Rousseff­,
por ideologia ou por cálculo de custo-benefício. Mas a
vitória eleitoral não proporcionou a articulação de um
discurso de governo capaz de dar sentido à política do país.
O recrudescimento do discurso oposicionista, fortemente
determinado pelas acusações de corrupção contra políticos
do governo, resultou na popularização de postagens nas
redes sociais de textos conservadores, antipetistas e de acu-
sações e impropérios à presidenta e pessoa Dilma Rousseff
bastante agressivos. O governo chegou às manifestações
de março de 2015 com o país totalmente significado pelas
oposições. O apoio popular a Dilma estava restrito ao nú-
cleo dos militantes do PT.
Quando das manifestações de março, já estavam or-
ganizados vários grupos nas redes sociais para lutar pelo
impeachment da presidenta; eles foram responsáveis pelas
convocações, contando com o apoio das principais redes
nacionais de televisão. Segundo o jornal Folha de S.Paulo,

28
<http://www1.folha.uol.com.br>; acesso em: 10 jan. 2016.

46
Céli Regina Jardim Pinto

1 milhão de pessoas esteve nas ruas no dia 15 de março.29


Esses eventos apresentaram três características marcantes:
a primeira é o fato de que a maioria das pessoas estavam
vestidas com camisetas amarelas da seleção de futebol do
Brasil;30 a segunda foi a mudança do local das manifesta-
ções, nas diversas cidades em que elas ocorreram. As ma-
nifestações populares em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto
Alegre, desde quando contra a ditadura militar, aconteciam
nos centros históricos (centro velho) dessas cidades: Praça
da Sé em São Paulo; Cinelândia no Rio de Janeiro e Largo
da Prefeitura em Porto Alegre. As manifestações de março
de 2015 deslocaram as concentrações para bairros de classe
média alta: Avenida Paulista em São Paulo, Copacabana no
Rio de Janeiro, Moinhos de Ventos em Porto Alegre, para
citar apenas alguns exemplos em grandes capitais. Esse
deslocamento não é um detalhe, espelha o tipo de pessoas
esperado nas manifestações. O deslocamento no domingo
(dia das manifestações) dos moradores da periferia para os
bairros onde as manifestações ocorreriam seria de grande
dificuldade. Isso não implica dizer que havia a intenção de
não ter setores populares nas manifestações, mas sim que
não era para eles que estavam dirigidas as convocações. Em
2013, as manifestações nessas três cidades ocorreram nos
centros velhos, o deslocamento geográfico seguiu o deslo-
camento discursivo.
As manifestações de março de 2015, ao contrário do que
aconteceu nos dois anos anteriores, tinham um mote ao re-

29
Ver nota de rodapé n. 2.
30
Desde 1954, a seleção brasileira tem como uniforme a camiseta amarela
apelidada de canarinho. A histórica identificação entre a seleção e o povo
brasileiro tornou o uniforme sinônimo da expressão de patriotismo.

47
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dor do qual se articulava o discurso: “impeachment de Dilma


Rousseff”; toda e qualquer outra questão era decorrente dessa
questão central. Desapareceram a fragmentação discursiva,
os temas sociais, políticos e econômicos. Também desapa-
receram das ruas todos os grupos alinhados à esquerda do
governo, como os anarquistas, os Black Blocs, os partidos
políticos e movimentos sociais populares.
O discurso articulou-se em uma forte cadeia de equi-
valência onde três elos o organizavam, Dilma-PT-cor-
rupção, e se antagonizavam ao Brasil representado pelos
manifestantes vestidos de amarelo. Se, em 2013, poderia
ser identificado um antipartidarismo, mesmo em grupos
identificados com posições à esquerda, como o Movimento
Passe Livre, que se declarava antipartidário, em 2015 o ce-
nário foi distinto, houve grande centralidade no discurso
anti-PT. O PT foi caracterizado como corrupto e sinônimo
de Dilma. Houve um deslocamento discursivo importan-
te: após 12 anos de governo petista em nível nacional, de
inúmeras prefeituras e estados governados desde 1990, o
partido reapareceu como um perigo comunista. Nas ma-
nifestações em todo o Brasil, lia-se nos cartazes: “a nossa
bandeira jamais será vermelha”; “chega de doutrinação
marxista”; “basta de Paulo Freire”, “O Brasil não será uma
Cuba”; “O PT é o câncer do Brasil”.
Nas redes sociais, havia muitos grupos chamando à
manifestação de 15 de março; três foram particularmente
fortes pelo número de seguidores e por terem vida fora do
tempo das manifestações: o movimento Vem pra Rua, o
“Movimento Brasil Livre” e os Revoltados On-line. Os
cartazes publicados nas páginas de Facebook desses grupos
são exemplares das articulações que construíam o discurso

48
Céli Regina Jardim Pinto

que se gestava. No Vem pra Rua, o centro do cartaz trazia


uma foto de Maduro, presidente da Venezuela, e o texto era o
seguinte: “Na Venezuela, já era! Assembleia Nacional da Ve-
nezuela dá plenos poderes para Maduro legislar por decreto,
transformando-o em ditador, mas no Brasil só depende de
você, dia 15 de março vem pra rua!”. O “Movimento Brasil
Livre” convocava em sua página com as seguintes consignas:
“sem bolivarianismo, nem militarismo”. Havia também, nas
manifestações, faixas pedindo intervenção militar; elas eram
de duas naturezas: faixas de indivíduos ou pequenos grupos,
algumas inclusive em inglês: “we want militar intervention now”,
e faixas profissionalmente produzidas por um movimento
chamado “SOS Forças Armadas”, 31 que numericamente era
pouco expressivo, mas que atualizava o espaço político das
Forças Armadas. Na página do Facebook dos Revoltados
On-line, lia-se: “chegou a hora de colocar o lixo pra fora!
fora PT – fora Dilma – convidem seus amigos! Juntos somos
mais fortes e com Deus na nossa frente somos imbatíveis!
Chegou a hora de colocar o lixo pra fora”.32
Esse foi um novo momento discursivo que canalizou as
insatisfações fragmentadas que apareciam desde 2013; era
ideologicamente muito bem cortado, recolheu um signifi-
cante flutuante poderoso – a corrupção –, que carregava em
si todos os outros problemas: educação, segurança, saúde.
A corrupção tornou-se equivalente a PT e governo Dilma,
e a presidenta torna-se, a partir então, o novo significante
vazio da política brasileira.

31
Informações sobre esse grupo encontram-se na página do Facebook: SOS
forças Armadas – comunidade (acesso em: 10 jan. 2016).
32
Facebook, Revoltados On-line; acesso em: 10 jan. 2016.

49
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Além das Forças Armadas, outro conteúdo atualizado


foi o anticomunismo. A maioria das pessoas que estava
nas ruas não havia vivido as campanhas anticomunistas no
Brasil que dominavam o discurso dos partidos de direita e
das Forças Armadas na década de 1950, e que foram funda-
mentais para angariar apoio popular para o golpe militar de
1964. Em 2015, o anticomunismo renasceu facilitado com
a identificação do governo da Venezuela como comunista e
a associação desse país com o Partido dos Trabalhadores e
com os governos de Lula e Dilma.
Na trajetória que foi analisada, partiu-se de 2013, quando
havia como passado recente dois discursos políticos arti-
culados, o discurso do PT e o discurso do PSDB. Mesmo
considerando as importantes vitórias do PSDB no estado de
São Paulo e nas eleições nacionais, elegendo duas vezes o
presidente da República (1994 e 1998), foi o PT que sempre
teve a liderança das ruas, com seus grandes comícios e sua
militância nas campanhas eleitorais. Foi o discurso petista
que se fragmentou ao longo dos anos de governo. Foi da
fragmentação desse discurso que floresceram os significantes
flutuantes rearticulados ao longo dos dois anos de manifes-
tações de que este artigo se ocupa.

À guisa de conclusão
É difícil afirmar que as pessoas que estiveram nas ma-
nifestações de 2013 ao redor do país voltaram às ruas em
2015 para pedir o impeachment da presidenta Dilma. Cer-
tamente, não foram os grupos radicalizados de esquerda,
os eleitores históricos do PT que estiveram nas ruas para
pressionar o governo, que voltaram dois anos depois. Mas
havia uma massa de pessoas em 2013 que não pertencia

50
Céli Regina Jardim Pinto

a nenhum desses grupos, eram cidadãos comuns, jovens


que não encontravam mais na militância de partidos razão
para a participação política, e que haviam ido para as ruas
indignados principalmente com os escândalos de corrupção.
Possivelmente, muitas dessas pessoas foram interpeladas
pelo discurso com tendências claramente conservadoras,
anti-PT, anticomunista e a favor do impeachment dos gru-
pos que se criaram nas redes sociais. Mas é muito provável
que a maioria dos participantes de 2015 seja de novatos em
manifestações de rua.
Pois bem, sejam eles novos ou velhos manifestantes, o
importante a reter, a título de conclusão, é que a novidade
nas ruas de 2015 em relação a 2013 era um novo discurso
articulado dando sentido à política. Na trajetória que o
produziu, desapareceram vestígios de luta por direitos, por
melhores salários, por melhores serviços públicos, por passe
livre nos transportes públicos, ou por performances simbó-
licas contra o capitalismo. As grandes manifestações foram
lideradas por moradores de bairros nobres, de classe média
e média alta, antipetistas, muito dispostos a bater panelas e
usar uma linguagem vulgar para se referir à presidenta da
República e lutar por seu impeachment.
Este artigo não teve qualquer objetivo de prever ações
futuras, de descrever um processo terminado com suas
consequências. O objetivo foi descrever uma trajetória que,
em dois anos, trouxe para o protagonismo das manifesta-
ções um sujeito novo para as ruas, considerando o tempo
de democracia brasileira pós-1985: o sujeito tendencial-
mente de direita do espectro político, constituindo-se em
um discurso com apelo popular, a partir de enunciadores
de classe média.

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A t r a j e t ór i a di s c u r si va da s m a n i f e s taç õ e s d e rua no Br a si l (2 013 -2 015)

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www.datafolha.folha.com

52
Céli Regina Jardim Pinto

www.folha.uol.com.br
www.g1.globo.com
www.g1.globo.com/jornal-nacional/noticia
www.ibge.br
www.jornaldenegocios.pt
www.mpl.org.br/
http://tarifazero.org/mpl/
www.noticias.uol.com.br
www.observatoriodaimprensa.com.br
www.tse.gov.br
www.uol.com.br

Páginas do Facebook acessadas


Revoltados On-line – comunidade: <https://web.facebook.com/
revoltadoson-line/>
SOS Forças Armadas – comunidade: <https://web.facebook.com/SOS-
-For%C3%A7as-Armadas-831565736880647/?fref=ts>

53
Corrupção, legitimidade
democrática e protestos: o boom da
direita na política nacional?1
Helcimara Telles

Introdução
A corrupção política tem sido objeto de inúmeros debates
no país, especialmente a partir do mensalão, cujo julgamento
dos envolvidos coincidiu com o período das eleições para
prefeitos de 2012. O tópico adquiriu ainda maior visibili-
dade a partir das manifestações de junho de 2013, ocasião
em que multidões saíram às ruas para protestar, com um
cardápio diversificado de demandas. A questão central do
movimento, iniciado em São Paulo, foi a melhoria dos
serviços públicos. Contudo, na cobertura realizada pelos
meios de comunicação, os principais pretextos geradores
da convocação para a manifestação – a mobilidade urbana
e as tarifas dos transportes públicos – foram se tornando
invisíveis e, gradualmente, substituídos por outras pautas.
A corrupção foi enquadrada pelas mídias como a referência
1
Artigo publicado originalmente na revista Interesse Nacional, ano 8, n. 30
em 2017.
C or ru pç ão, l e gi t i m i da de de mo cr át ic a e prot e stos:
o b o om da di r e i ta na p ol í t ic a naciona l?

fundamental desse movimento. Desde então, ela tem sido


intensamente debatida na esfera pública, especialmente du-
rante os protestos contra a realização da Copa do Mundo e,
com maior ênfase, pelos candidatos que disputaram o cargo
de presidente na campanha eleitoral de 2014.
A corrupção pode ser definida como o uso ilegal do
poder público em benefício particular, com o objetivo de
transferir renda pública ou privada de maneira ilícita para
determinados indivíduos ou grupos ligados por interesse
comuns. Os fatores causais da corrupção podem ser pessoais
e institucionais – resultantes das características dos gover-
nantes ou das normas que regulam o sistema político, as
instituições, os partidos e as eleições. A corrupção política
força o setor público a realizar investimentos em projetos
financeiramente mais proveitosos para alguns grupos, que
conseguem diferenciais competitivos ilegítimos para as suas
iniciativas.
Os regimes democráticos, por serem mais transparentes,
são menos permeáveis às práticas ilícitas, uma vez que neles
são maiores as possibilidades de o Estado se articular por meio
de procedimentos universais e de ser controlado e fiscalizado
pela sociedade civil e por órgãos autônomos. Em regimes nos
quais as estruturas governamentais são mais fechadas, a inci-
dência de corrupção no poder público tende a ser maior em
função da limitada accountability horizontal e vertical. Como a
divulgação dos casos de corrupção nos regimes autoritários é
quase inexistente ou nula – em função da censura à imprensa
ou pela insuficiência de investigação –, a percepção da cor-
rupção acaba por ser reduzida à opinião pública.
A despeito de sua presumida relevância para determinar
atitudes e mobilizar a ação política, apenas recentemente as

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H e l c i m a r a Te l l e s

pesquisas acadêmicas brasileiras se debruçaram sobre o im-


pacto da corrupção nas atitudes políticas, na decisão de voto
e na legitimidade democrática. A partir dessas observações,
o objetivo deste ensaio será o de realizar algumas reflexões
sobre as relações entre a corrupção e os recentes protestos
chamados pelos grupos de oposição ao governo federal do
PT. Este artigo assinalará as novidades, bem como aquilo que
é permanente nas percepções políticas dos participantes dos
protestos. E examinará, ainda, em que medida o juízo sobre
os partidos políticos, as instituições e os programas do atual
governo afetam a adesão desses manifestantes à democracia
e podem oferecer indícios de uma expansão do pensamento
conservador no país.
Em seguida, o artigo explicará as razões que permitiram
que a família ideológica de direita crescesse no país, a partir
da combinação entre campanhas personalistas baseadas em
valências, piora dos indicadores econômicos, a reduzida
institucionalização do sistema partidário e o crescimento
do antipetismo. O ensaio discutirá, ainda, o papel da mídia
na organização desses protestos, argumentando que as in-
fluências dos meios de comunicação são limitadas, uma vez
que, mais que organizar os protestos, a cobertura da mídia
apenas ecoa, porque parcelas da opinião pública focada nos
setores médios está predisposta a assumir posições ideoló-
gicas de direita.

Corrupção e protestos pós-eleitorais:


a direita vai às ruas
Existem evidências de que o pensamento de direita, o
antipartidarismo reativo, o antipetismo e a ambiguidade em
relação ao apoio à democracia se encontram disseminados

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C or ru pç ão, l e gi t i m i da de de mo cr át ic a e prot e stos:
o b o om da di r e i ta na p ol í t ic a naciona l?

entre os manifestantes contra o governo e que parcelas das


camadas médias estão atentas e sensíveis às propostas ideo­
lógicas de direita. O posicionamento à direita se expressa
numa forte atitude contra as políticas públicas de inclusão
social promovidas pelos governos Lula e Dilma. As opiniões
e as atitudes políticas do público que compareceu aos pro-
testos contra a presidenta Dilma, em 12 de abril, em Belo
Horizonte, foram pesquisadas por meio de um survey.2 Os
dados que serão apresentados cobrem apenas essa cidade
e não destacam todos os temas associados à direita. Ainda
assim, será possível verificar a agenda referente à economia,
à moral, além da questão dos direitos sociais.
A principal diferença entre direita e esquerda reside em
concepções distintas entre, de um lado, a ação individual
e a escolha voluntária – destacadas pela direita –, e a ação
coletiva, preferida pela esquerda. De uma forma geral, as
correntes da direita querem
repensar e propor novos parâmetros para as sociedades capi-
talistas avançadas frente à crise do Estado de bem-estar, seja
através da justificativa teórica do anti-igualitarismo, seja de
propostas de cortes nas políticas de bem-estar social. (Alves,
2000, p. 189)

Os temas que marcam as diferenças entre a direita e a


esquerda giram em torno de intervenção estatal na economia
e do comportamento social dos indivíduos.
A direita tem uma concepção não intervencionista na
economia, desejando reduzir o Estado de bem-estar e, por

2
A metodologia e os resultados aqui citados podem ser verificados na página
do Grupo Opinião Pública: <https://drive.google.com/file/d/0B1_d2uNS-
-ZSvLURXdTdISTNLY3M/view?pli=1>.

58
H e l c i m a r a Te l l e s

este motivo, aceitando um mercado sem regulação. No en-


tanto, o tema da pobreza é central, uma vez que para a direita
o aumento da eficiência econômica e a geração da riqueza é
prioritário, se for necessário escolher entre isto e a redistri-
buição de riqueza a favor dos mais pobres. A pobreza é um
problema individual, cada um deve buscar melhorar sua
renda por meio de trabalho e existe o combate às políticas
de cotas e à ação afirmativa. (Almeida, 2001, s/p)

Outra proxy é a intervenção do Estado no comporta-


mento social: a direita aceita mais intervenção. Por isso,
acolhe menos a descriminalização do aborto e da maconha,
a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo e
considera a religião como importante para a vida das pessoas.
No Brasil, os quadros políticos à direita geralmente não
se assumem como tal e tendem a se apresentar como libe-
rais, com o objetivo de se distanciarem de uma velha direita,
associada ao período militar. Falar de uma direita no país
não significa a referência a um projeto de organização insti-
tucional na forma de um partido conservador, ao contrário,
a direita brasileira nunca conseguiu se instituir com êxito
em um único partido. Ela é fragmentada e seus quadros
disputam eleições proporcionais em múltiplas legendas. A
direita se organiza na temporada pós-eleitoral para coordenar
as suas ações, a partir da formação de bancadas legislativas
que fazem lobbies por interesses específicos, como a bancada
ruralista, a bancada da bala, a bancada evangélica.
Em Belo Horizonte e no restante do país, os protestos
de 12 de abril foram convocados principalmente por três
grupos com face pública nas redes sociais: o Vem pra Rua, o
“Movimento Brasil Livre” o Revoltados On-line. Eles foram
mais exitosos nas capitais paulista e mineira, territórios da

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C or ru pç ão, l e gi t i m i da de de mo cr át ic a e prot e stos:
o b o om da di r e i ta na p ol í t ic a naciona l?

oposição nas eleições presidenciais de 2014. Uma primeira


questão a ser destacada é o forte antipetismo nas mensagens
compartilhadas, inclusive nos espaços off-line. Outra novida-
de é a organização não institucional desses grupos, que não
se encontraram liderada por “políticos tradicionais”.
Os manifestantes eram, em sua maioria, indivíduos
brancos, com alto grau de escolaridade, renda média superior
a cinco salários-mínimos, muito interessados na política e
que usam, especialmente, a internet para se informar sobre
a política. Eles foram convocados a participar por meio das
redes sociais. Apesar de a maior parte desconhecer quem
eram os líderes das manifestações, eles compartilhavam os
conteúdos dos grupos que atuam on-line. Além disso, de-
monstraram pouca confiança nos meios de comunicação.3
Esse público afirmou que se manifestava pela indignação
com a corrupção (36%), mas também pela insatisfação com a
política (18%) e para pedir a saída da presidenta Dilma e do
PT (16%). Contudo, mais do que a corrupção, o tema que
mais os conectou foi o antipetismo. Para eles, os principais
males do Brasil são atribuídos aos governantes identificados
como petistas, sendo que 91% declararam que o PT fez um
grande mal ao país e 82% deram nota zero ao PT. O anti-
petismo também pode ser encontrado no julgamento que
fazem dos seus quadros: 81% consideram que Lula é um dos
principais malfeitores do país, 82% concordam que Dilma
também é uma das malfeitoras e 24% afirmaram que Jair
Bolsonaro poderia ser um bom presidente para o Brasil. Para

3
A partir desta pesquisa, o Grupo Opinião Pública e o Centro de Conver-
gências em Novas Mídias, ambos da Universidade de Minas Gerais, produ-
ziram um vídeo destacando os principais achados da pesquisa. O filme pode
ser acessado em: <https://www.youtube.com/watch?v=H80gq1pZBNs>.

60
H e l c i m a r a Te l l e s

completar o posicionamento político, quase a totalidade dos


que protestavam eram constituídos por eleitores do candi-
dato derrotado à presidente pelo PSDB, Aécio Neves (81%).
Para os participantes dos protestos, o principal problema
do país é a corrupção. E, apesar de se pronunciarem insatis-
feitos com a piora da economia e com a política, esses temas
não estão no centro de suas preocupações e motivações para
os protestos: o Congresso Nacional, a reforma política e a
economia não alcançam, juntos, 4% das citações sobre os
principais problemas do país. E o petismo se associa à cor-
rupção, quando analisadas as administrações mais corruptas
do país, desde o governo militar. Dos manifestantes, 80% ci-
taram o governo de Dilma ou Lula como os mais corruptos;
somente 2,8% mencionaram os governos militares, e 1,7%
mencionou a administração de Fernando Henrique Cardoso.
Eles foram às ruas também para pedir pela saída da
presidenta Dilma, e estão dispostos a retirá-la do poder, seja
pelo uso de medidas legais seja ilegais, como a cassação, o
impeachment e, mesmo, pela intervenção militar. Em relação à
conjuntura, eles percebem a economia com contornos ruins,
mas se observam menos impactados pela piora da economia
na esfera da vida pessoal. Obviamente, são muito pessimistas
em relação à administração da presidenta, ainda que quase
1/3 considere que a agenda do governo se assemelhe ao pro-
grama de governo que foi proposto pelo candidato do PSDB.
Eles foram convidados a se situar em uma escala ideo-
lógica de esquerda-direita. Antes de passar aos dados sobre
essa posição ideológica dos manifestantes, é importante
revelar o perfil médio dos eleitores da cidade. Belo Hori-
zonte sempre foi governada por partidos de centro-esquerda
e o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialista

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Brasileiro (PSB) se revezaram na prefeitura desde 1993.


Contudo, se observou em pesquisas anteriores que a maioria
do eleitorado da capital se posicionava no centro (50%), em
seguida, à direita (25%) e, por último, à esquerda (14%). O
Índice de Incentivos Capitalistas mostrava que os eleitores
identificados com partidos à esquerda estavam mais de
acordo com a reforma agrária e com o apoio ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Já os eleitores
do PSDB eram os que mais aderiam tanto à manutenção
do status quo do regime da propriedade privada quanto aos
valores políticos democráticos (Telles; Storni, 2011).
Já a distribuição dos manifestantes os situou ao centro
(47%) e à direita (39%) e, nesse campo, 7,7% se colocaram na
extrema-direita. A distribuição à direita entre os manifestantes
é maior do que a encontrada na população da capital mineira
(25%), e ela pode ser constatada pelos outros dados coletados
sobre a percepção da economia, do mercado e dos direitos.
Eles prezam a liberdade individual e econômica, avaliam que
os impostos cobrados são muito altos e estão de acordo que
o direito à propriedade é fundamental para a sociedade e ja-
mais deve ser ameaçado, o que os leva a serem desfavoráveis
ao MST, que quer a redistribuição da propriedade fundiária.
Completa esse perfil a crença que a única justiça perfeita é a
feita por Deus, e se mostram contrários à retirada de símbolos
religiosos e crucifixos dos espaços públicos.
O perfil ideológico de direita é acrescido de outros
subsídios ao redor dos direitos sociais. Apesar de a maioria
concordar com a proposta de que reduzir a diferença en-
tre as pessoas deve ser a prioridade de qualquer governo,
comprovaram elevada resistência aos programas relativos à
igualdade e expansão dos direitos das minorias.

62
H e l c i m a r a Te l l e s

A maior parte discorda das políticas governamentais de


inclusão social, como o Bolsa Família (77,8%). Eles opinam
que pessoas assistidas por programas sociais podem “se tor-
nar mais preguiçosas”. Já 37% dos que protestavam alegaram
que minorias, como negros, mulheres e homossexuais, têm
direitos demais no Brasil, e as cotas raciais são contestadas
pela maioria, pois 70,1% declararam que elas deveriam ser
eliminadas. A presença de médicos cubanos nos programas
de atenção à saúde primária também é reprovada por 70,7%.
Em relação às classes sociais, o grupo demonstrou uma
percepção hierarquizada do conhecimento produzido pelas
camadas populares e pela concordância com a superioridade
política de seu território em relação a outros espaços: a maior
parte (75,6%) declarou que os pobres são desinformados na
tomada de suas decisões políticas e que os nordestinos têm
menos consciência do voto do que os moradores de outras
regiões do país (59,3%).
Todavia, aceitam as políticas de punição e têm uma com-
preensão de segurança pública que castiga os infratores com
métodos que não passam pela socialização. Eles se dividem
em relação à pena de morte, mas a maior parte não é favo-
rável à legalização do aborto. Existe uma elevada aceitação
do tema da redução da maioridade penal e do direito dos
cidadãos ao porte de armas. A política de drogas também
deve ser proibitiva, pois são desfavoráveis à liberação do
consumo da maconha. No entanto, os manifestantes acei-
tam majoritariamente a união entre as pessoas do mesmo
sexo e possuem um conceito um pouco mais liberal sobre
a constituição da família.
Na América Latina, o maior nível de satisfação com
o desempenho do governo aumenta a crença de que os

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C or ru pç ão, l e gi t i m i da de de mo cr át ic a e prot e stos:
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partidos representam eleitores (Corral, 2010). A percepção


mais positiva sobre a eficácia do governo tende igualmente
a aumentar a intensidade do partidarismo (Moreno, 2015).
Esses manifestantes têm péssima avaliação do governo do
PT e, consequentemente, de sua eficácia, o que pode expli-
car o antipetismo e o antipartidarismo, visíveis nesse grupo.
Isso porque 42% não têm simpatia por qualquer legenda e
nota-se o profundo desencanto com os partidos políticos em
geral. Eles afirmam, em sua maioria, que alguns ou todos
os partidos deveriam ser eliminados, para que novos sejam
criados, indicando uma negação às legendas atuais. O PSDB
alcançou, em uma escala de 0-10, notas muito mais positi-
vas que o PT e o PMDB, mas as avaliações desses partidos
foram, em geral, bastantes negativas.
A insatisfação com os partidos se traduz numa espécie
de democracia na qual cidadãos desconfiados dos agentes
institucionais têm consciência de seus direitos políticos. Os
protestantes eram majoritariamente favoráveis ao direito
às manifestações públicas, quando autorizadas. Contudo,
idealizam que podem ser representados exclusivamente por
governos nos quais tenham dado o seu voto. A noção de
direitos políticos, no entanto, não transcende para o âmbito
do direito à justiça social, pois, como observado, há forte
desagrado com políticas inclusivas para os mais pobres.
Estudos realizados pelo Programa Nacional das Nações
Unidas (PNUD) em 2004, em 18 países da América Latina,
revelaram que a preferência dos cidadãos pela democracia
é relativamente baixa na região. Grande parte dos latino-
-americanos prefere o desenvolvimento à democracia e,
inclusive, retiraria seu apoio a um governo democrático se
ele fosse incapaz de resolver os seus problemas econômicos.

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H e l c i m a r a Te l l e s

A partir de dados do Índice de Adesão à Democracia (IAD),


a pesquisa encontrou três grupos que se distribuem de modo
diferente no Mercosul e no Chile, nos países andinos e na
América Central e no México: os democratas, os autoritários
e os ambivalentes.
Os indivíduos de perfil autoritário opinam que atingir
o desenvolvimento do país é uma meta mais importante
do que a de preservar a democracia e não acreditam que a
democracia seja indispensável para atingir esse objetivo. Eles
se inclinam a preferir a substituição de qualquer tipo de de-
mocracia por outro sistema de governo. Os ambivalentes são
pessoas com opiniões ambíguas. Eles, em geral, expressam
conceitos delegatórios da democracia; concordam com a
democracia, mas julgam que podem ser apropriadas decisões
não democráticas, se tal caso for exigido pelas circunstâncias.
A princípio, a estimativa negativa sobre os partidos pa-
recia não influenciar o apoio à democracia, pois os mani-
festantes declararam que eram desfavoráveis à possibilidade
de o presidente fechar o Congresso Nacional, censurar a
imprensa, interferir nos sindicatos e impedir greves. Con-
tudo, ao serem perguntados sobre a intervenção das Forças
Armadas, metade afirmou que “os militares podem ser
chamados a tomar o poder, em caso de desordem no país”.
De acordo com o modelo proposto pelo Índice de Adesão
à Democracia, feito pela pesquisa do PNUD, pelo menos
50% desses manifestantes podem ser classificados como
ambivalentes, pois em algumas condições eles podem aceitar
regimes não democráticos. A preferência dos ambivalentes
por uma liderança de base democrática, mas com traços que,
embora autoritários, introduzam a eficácia na sua gestão,
pode ser eventualmente capitalizada pelos adversários da

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democracia. Outro traço que aponta para a imprecisão em


relação à democracia é o forte anticomunismo, que remonta à
Guerra Fria e que já foi distinção dos grupos ideologicamente
de direita, no período que precedeu à articulação do golpe
militar no Brasil: os manifestantes acreditam que o país está a
caminho de uma venezuelização e cada vez mais parecido com
o regime cubano. A preferência dos ambivalentes por uma
liderança de base democrática, mas com traços que, embora
autoritários, introduzam a eficácia na sua gestão pode ser
eventualmente capitalizada pelos adversários da democracia.
As seções a seguir apresentarão uma discussão sobre as
razões que permitiram a relevância do tema do combate à
corrupção na política brasileira e quais as razões para que ele
tenha se tornado capaz de mobilizar grupos insatisfeitos com
a política. O argumento é o de que a corrupção, atualmente,
é uma valência que agrupa indivíduos posicionados à direita
do espectro ideológico, que se expressam no antipetismo.

A corrupção nas campanhas eleitorais


A corrupção não é indicador de identidade ideológica,
tampouco se constitui numa clivagem que reparta os eleito-
res em dimensões políticas díspares. A condenação da cor-
rupção pode ser interpretada como uma valência. Valências
são entendidas como questões neutras e sobre as quais existe
consenso, como a paz, o desenvolvimento econômico etc.
Os partidos e os cidadãos, distribuídos em qualquer ponto
de uma escala política, garantem ser contrários à corrupção.
Durante as eleições, os representados não necessariamente
se posicionam em uma escala unilinear da direita à esquer-
da; assim, os partidos procuram valências que agreguem os
votantes (Stokes, 1963). E é pela razão de os debates políti-

66
H e l c i m a r a Te l l e s

cos serem esvaziados de ideologia que as valências, como o


combate à corrupção, adquirem força política. Elas passam a
ser centrais nas campanhas eleitorais, ocupam o lugar antes
reservado aos conteúdos programáticos e podem definir os
resultados das eleições.
Em sociedades com alta volatilidade eleitoral, reduzidos
vínculos entre partidos e eleitores e elevado número de
independentes, como no caso da brasileira, candidatos que
conseguem se integrar positivamente a uma valência, seja
por seus atributos funcionais seja pelos pessoais, têm maiores
chances de êxito eleitoral. A oportunidade de vitória depen-
deria, então, menos da ocorrência de proposições políticas
diferenciadoras entre os partidos, e mais das suas associa-
ções a uma questão conjuntural apoiada pela maioria da
opinião pública. A ‘política de valências’ necessita desenhar
um personagem-símbolo, portador de qualidades, como a
integridade e a competência, que solucionem um problema
específico. Por isso, nesse modelo, o personalismo é uma
heurística mais importante que a preferência partidária. A
personalidade alegórica ativa o voto e aciona a participação
não convencional.
O personalismo e o uso de valências têm sido frequentes
nas últimas campanhas presidenciais brasileiras. O prestígio de
Lula foi a principal valência em 2010 e o seu capital político foi
pleiteado, inclusive pelos opositores que competiam por um
imaginário popular desejoso de um nome que representasse
o “terceiro mandato” de Lula. O prestígio do ex-presidente
foi mobilizado no horário gratuito de propaganda eleitoral
(HGPE) para ativar o eleitor lulista e convertê-lo em apoiador
da candidata petista. O concorrente que se associasse positi-
vamente ao ex-presidente aumentaria potencialmente suas

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chances de vitória, em função da alta confiança depositada


nele pelo eleitorado e, também, porque aquelas eleições se
constituí­ram sob o signo da manutenção do status quo – o con-
tinuísmo do governo (Telles; Pires, 2014; Telles; Ruiz, 2011).
O apelo personalista, o destaque do apoio de Lula e a supres-
são de citações das siglas partidárias condicionaram a vitória
de Dilma Rousseff (PT), eleita sob denúncias dos grupos de
oposição que, como ocorrido em eleições anteriores, desta-
caram nas campanhas o tema da corrupção, vinculando-a,
sobretudo, ao partido do governo – o PT (Telles; Ruiz, 2011).
A relevância das valências e de uma persona que a re-
presentasse não foi diferente nas eleições de 2014. Com
a economia crescendo em ritmo mais lento, foram au-
mentadas a incerteza e as expectativas pessimistas sobre
o futuro. Associados a esses fatores, o desgaste provocado
por 12 anos de mandato executivo pelo mesmo partido – o
PT –, a cobertura negativa da mídia que, no período de
pré-campanha, constantemente responsabilizava a esfera
federal pelas obras incompletas e superfaturadas feitas para
a Copa do Mundo, e a ausência de Lula como incumbente
facilitaram que a corrupção política adquirisse o estatuto de
principal valência organizadora dos debates propostos pelos
candidatos oposicionistas. Integrada à redução da maiori-
dade penal, a denúncia de corrupção governamental foi a
principal mensagem exibida pelos candidatos do Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB). Em seus programas
diários no horário eleitoral, nas redes sociais e nos debates,
o candidato Aécio Neves verbalizou a seguinte fórmula para
o combate à corrupção: “Fora PT!”, o que condicionava a
extinção da corrupção ao afastamento desse partido dos
cargos representativos proporcionais e majoritários.

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De um lado, Dilma valeu-se do forte capital político de


Lula para se eleger presidente em 2010, quando conquistou
seu primeiro mandato. Em sua campanha para a reeleição, ela
mostrou a necessidade de continuar o mandato para avançar
os “governos de Lula e Dilma”, optando pela personalização
da agenda política. Mas, em função do forte componente
antipetista disseminado pela campanha de seu principal
adversário, a mensagem da candidata foi, no segundo tur-
no, adquirindo contornos mais políticos. Ela foi obrigada a
introduzir pautas mais à esquerda, como a justiça, a igual-
dade e a inclusão social, uma vez que a polarização política
passou a exigir posicionamentos mais ideológicos, capazes
de distingui-la do seu principal concorrente.
Da parte do PSDB, as mensagens foram alinhadas,
nas diversas eleições presidenciais disputadas, em torno da
suposta corrupção na administração federal, com poucos
debates sobre as políticas públicas. Todavia, em 2014, unido
ao tema da corrupção, o partido optou por destacar o antipe-
tismo, que passou a ser um elemento central em suas peças e
spots de campanha. Para se distinguir do PT – caracterizado
como elemento exógeno e perturbador da ordem e dos in-
teresses nacionais –, optou-se pelo uso de uma linguagem
nacionalista na qual transbordavam imagens e declarações
que asseguravam que a missão da nova presidência a ser eleita
seria a de “devolver o Brasil aos brasileiros”.
O candidato Aécio tentou ser o personagem simbólico
do combate à “corrupção promovida pelo PT”, e garantia
que ele seria capaz de ‘livrar o país dos políticos corruptos’.
Ele pretendia associar o PT à corrupção e, ao ativar o anti-
petismo, colocar-se como o personagem-simbólico repre-
sentante da ética. Por isso, as suas atividades de campanhas

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convocavam os cidadãos a se mobilizarem em defesa da


“libertação do Brasil”. Diferentemente do ocorrido em 2010,
a corrupção e o antipetismo ecoaram na opinião pública e
deram ao PSDB o seu melhor resultado na série histórica das
eleições presidenciais, após a vitória de Fernando Henrique
Cardoso, em 1998.
Como observado, nas eleições presidenciais não foram
reforçadas as agendas programáticas. Contudo, se nelas
tivesse sido expresso mais comumente o conflito político e
ideológico entre as candidaturas, poderia ter ocorrido um
maior fortalecimento do alinhamento partidário, pois, “se os
conflitos são reduzidos, a importância emocional e avaliativa
deste alinhamento partidário tenderá a ser menos relevan-
te” (Antunes, 2008, p. 54). Mas, ao contrário de fortalecer
as legendas, os políticos se valeram cada vez mais de uma
comunicação política centrada em seus atributos pessoais e
funcionais para atrair eleitores.

Corrupção e percepção da economia


O tema da corrupção e a investigação de políticos envol-
vidos em atos ilícitos na administração pública estenderam-
-se para fora da temporada eleitoral. A desconfiança no
sistema político e a suspeita sobre a legitimidade das eleições
foram intensificadas, após as eleições, pelas lideranças do
PSDB, que passaram a fazer inúmeras declarações públicas
e a propor ações na Justiça que questionavam a segurança
das urnas eletrônicas. O PSDB solicitou à Justiça Eleitoral
a auditoria das urnas, colocando sob dúvida o processo
eleitoral e os seus resultados. Além disso, encetaram uma in-
tensa campanha pelo impeachment da presidenta recém-eleita,
com o argumento de que ela estaria envolvida em casos de

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H e l c i m a r a Te l l e s

improbidade administrativa, ocorridos especificamente na


estatal Petrobras.
As decisões e as percepções do eleitorado são suscetíveis
às questões levantadas durante as campanhas políticas. Assim,
em janeiro de 2015, os principais problemas do país, citados
espontaneamente pelos brasileiros, estavam ligados à saúde
(26%) e à corrupção (21%).4 Mas, quando comparada ao re-
gistrado em dezembro de 2014, a indicação da saúde caiu 17
pontos percentuais e a dos que mencionaram corrupção cres-
ceu 12 pontos percentuais (era de 9%). A população passou a
acreditar que os casos de corrupção que envolvem os políticos
e funcionários vinculados à Petrobras colocavam em risco a
estatal e os negócios brasileiros e, para 52% da população, a
presidente Dilma sabia da corrupção na empresa petroleira e
permitiu que ocorresse. Concomitante ao tema da corrupção
na Petrobras, a popularidade da presidenta em seu primeiro
mês de mandato caiu para somente 23% de aprovação, uma
queda brusca, comparando-se ao mês anterior de dezembro,
quando a sua avaliação positiva alcançava 42%.
A baixa popularidade da mandatária foi acompanhada de
uma expectativa bastante negativa em relação aos indicadores
econômicos do país, como a inflação e o desemprego. Do
total da população adulta, 81% imaginavam que a inflação
aumentaria, e o crescimento do desemprego era esperado
por 62%. A maioria (57%) dos brasileiros acreditava que o
poder de compra dos salários diminuiria nos meses seguintes
e 55% entendiam que a situação econômica do país pioraria,

4
Instituto Datafolha, janeiro de 2015. Disponível em: <http://datafolha.
folha.uol.com.br/opiniaopublica/2015/02/1587329-aprovacao-a-governo-
-dilma-rousseff-cai-e-reprovacao-a-petista-dispara.shtml>. Acesso em: 1
de jun. 2015.

71
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o b o om da di r e i ta na p ol í t ic a naciona l?

valor este que era o dobro do registrado em dezembro de


2014 (Instituto Datafolha).
A retração econômica tende a dilatar a insatisfação popu-
lar, dando vazão à intolerância à corrupção, pois os cidadãos
se inclinam a responsabilizar a piora de sua situação pessoal
aos desvios de recursos públicos promovidos pelo poder
público. Em circunstâncias nas quais há uma retração – au-
têntica ou acreditada – do PIB, os eleitores procuram expli-
cações para o baixo crescimento e podem associar a falta de
investimentos do Estado em serviços públicos – que é onde
inicialmente se cortam os gastos em períodos de crise – à
recorrência de corrupção por parte dos funcionários públicos
e dos políticos. A perspectiva de agravamento do quadro
econômico provocou mais dúvidas em relação à competên-
cia do gestor público eleito e foi um fator facilitador para a
disseminação da crença de que o governo federal, a pessoa
do governante e seu partido eram corruptos.
O destaque da corrupção foi intensificado nos meses
seguintes ao término das eleições presidenciais e, atualmen-
te, além de ser a principal agenda dos grupos de oposição
ao governo federal à época, é assunto dos mais frequentes
nas coberturas das mídias tradicionais e das alternativas.
A exposição permanente desse foco nos enunciados dos
líderes oposicionistas e na mídia alargou os sentimentos
dos cidadãos de que o sistema político é o reino da falsifica-
ção e da prebenda. Se, de um lado, a piora dos indicadores
econômicos produz mais intolerância à corrupção, por sua
vez, a ampliação da percepção sobre corrupção se configura
como um dos principais motivos para a elevada desconfiança
dos cidadãos em relação aos atores do sistema político e das
instituições representativas – os partidos políticos, a classe

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H e l c i m a r a Te l l e s

política e o Congresso Nacional. Nesse quadro, que combina


perspectiva de crise econômica, em que a própria legitimi-
dade do processo decisório passou a ser questionado pelos
líderes da oposição, associado ao intenso volume de notícias
que transformaram a corrupção em um escândalo político
midiático, a preferência partidária no país foi drasticamente
reduzida a tão somente 25% em janeiro de 2015 (Instituto
Datafolha).

Corrupção, antipartidarismo reativo e outsiders


A legitimidade das democracias ocidentais estabelecidas
é cada vez mais dependente do seu desempenho econômico
(Klingemann; Fuchs, 1995), e outros estudos concentraram-
-se mais especificamente sobre a eficácia percebida. Muitos
autores sustentam que as avaliações do “desempenho da
demo­cracia” são fortemente contaminadas pelo partidaris-
mo. Os cidadãos que apoiam o partido do governo tendem a
ser substancialmente mais positivos nas suas avaliações sobre
“o desempenho da democracia”, com a situação política em
geral e com a condição da economia, enquanto os apoiadores
do partido da oposição tendem a ser mais negativos em todas
as três dessas avaliações. Em contraste, atitudes de desafeto
político são extremamente duráveis e são empiricamente
distintas de apoio democrático e satisfação com o desempe-
nho da democracia (Mattes et al., 2015).
Nas últimas pesquisas realizadas para aferir a opinião
pública brasileira, os partidos passaram a ser mais questio-
nados em relação às suas funções essenciais, como canali-
zadores ou intermediadores dos interesses das sociedades
e como agentes capacitados para transformar as demandas
sociais em estratégias políticas eficientes. As disputas atuais

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C or ru pç ão, l e gi t i m i da de de mo cr át ic a e prot e stos:
o b o om da di r e i ta na p ol í t ic a naciona l?

ocorrem mais entre pessoas do que entre partidos, e os


representantes eleitos se sentem livres em seu mandato,
resultando em separação entre a elite política e os represen-
tados. Vale dizer que, em janeiro de 2015, 75% dos brasileiros
afirmaram não possuir vínculos com os partidos políticos.
Pode-se observar nesses valores indícios de crescimento de
um sentimento antipartidário. Os partidos são importantes
como organizações de mediação política, mas a democracia
representativa tem sido posta em dúvida no Brasil, fazendo
com que os cidadãos se interroguem sobre a relevância das
organizações partidárias e a sua centralidade.
E, da insatisfação com a política e com a economia por
grande parte dos brasileiros, emerge o antipartidarismo
reativo. Esse significa uma posição crítica adotada pelos
cidadãos, como resposta ao descontentamento com as
elites partidárias. Os partidos políticos fazem promessas e
aumentam as expectativas que os eleitores têm da política.
Mas eles não são capazes de cumprir seus compromissos
declarados. Uma vez que as declarações dos partidos e das
elites não são preenchidas, aumenta-se o desagrado com o
sistema político. O antipartidarismo reativo é produto do
gap entre as inconsistências das promessas dos partidos e
a alta expectativa que os cidadãos têm sobre a eficácia das
instituições e das elites políticas.
Estudando o sul da Europa, Torcal, Montero e Gunther
(2007) descobriram que, na Espanha, no final dos anos 1980
e 1990, surgiu um número grande de casos de escândalos de
corrupção que afetaram setores do governo e líderes partidá-
rios, assim como na Grécia que, até metade dos anos 1990, foi
movida por escândalos e propostas demagógicas dos líderes.
Também a Itália passou por décadas de instabilidade gover-

74
H e l c i m a r a Te l l e s

namental e de imobilismo político em função da ocorrência


de corrupção. Nesses países, a reação à crise política foi o
surgimento do antipartidarismo e o consequente descrédi-
to nas instituições e na democracia. Esse antipartidarismo
foi explicado como uma resposta ao fracasso dos partidos,
envolvidos em casos de corrupção, mas que antes elevaram
as perspectivas dos eleitores ao ponto de não conseguirem
desempenhar seus compromissos.
O antipartidarismo reativo e o desagrado com o funcio-
namento das instituições podem motivar o surgimento de
políticos outsiders, que são candidatos com estilos e discursos
antipartidários, que aspiram à presidência e que participam
das eleições sem o apoio de um importante partido nacional
em que tenham desenvolvido suas carreiras políticas fora dos
tradicionais canais partidários (Crespo; Garrido, 2008). Os
outsiders podem chegar ao poder com menos obstáculos em
função da baixa institucionalização do sistema partidário
e da reduzida identificação com os partidos. Um sistema
institucionalizado possui regularidade da competição par-
tidária, estabilidade nas conexões entre partidos e eleitores
e a aceitação dos partidos como organizações legítimas.
Como foi destacado por Berglund et al. (2005, p. 107, apud
Moreno, 2015),
como a força da identificação partidária está relacionada à
estabilidade do apoio partidário, tanto em nível individual
quanto em nível associativo, a evolução do nível de identi-
ficação partidária é um indicador da estabilidade do sistema
de partidos.

E, quando os sistemas não são estáveis em função do


antipartidarismo, os outsiders podem organizar a opinião
pública ao redor de um tema que lhes seja sensível.

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C or ru pç ão, l e gi t i m i da de de mo cr át ic a e prot e stos:
o b o om da di r e i ta na p ol í t ic a naciona l?

No sistema presidencial, como o brasileiro, o apoio am-


plo que é necessário ser obtido pelos candidatos pode fazer
com que as ideologias sejam desfeitas e que os líderes se
sustentem em bases clientelistas e personalistas. Para obter
a maioria dos votos, são levados a selecionar as valências em
suas campanhas. Desse modo, quando o uso de valências,
como a corrupção, ocupam o lugar da política, e os partidos
passam a ser apresentados como ilegítimos, pode ser insta-
lado o antipartidarismo reativo. No Brasil, está se dissemi-
nando a ideia de que a corrupção é um atributo das elites
partidárias e, por essa razão, elas são ineficazes e ilegítimas
para exercerem as funções governativa e representativa. E,
com isso, a institucionalização do sistema partidário é enfra-
quecida, abrindo-se lacunas para o nascimento de outsiders
e de lideranças neopopulistas.
Os outsiders podem assumir um subtipo de populis-
mo, denominado “populismo eleitoral”, que organiza suas
clientelas fora dos partidos e das associações a partir de seus
atributos pessoais e de promessas de benefícios coletivos ou
individuais. Além de antipolítica, a mensagem neopopulista é
polarizadora, antiplural e intolerante, e nela prevalece a lógica
do “nós contra eles”. No neopopulismo latino-americano,
nota-se a presença de um discurso polarizador que
objetiva destruir o opositor com sua lógica antiplural e into-
lerante, uma vez que este transforma a competição, natural
da política, em uma luta entre combatentes fora da arena
eleitoral. (Carneiro, 2009, p. 58)

O partidarismo e a legitimidade do processo decisório


por meio das eleições foram postos à prova durante e após
as eleições de 2014, sobretudo nas redes sociais. As novas
tecnologias, ao permitirem um enorme número de cidadãos

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H e l c i m a r a Te l l e s

interligados, facilitam a participação política não conven-


cional. Mas, por meio delas, podem ser reforçados tanto
a mobilização cívica quanto o antipartidarismo daqueles
cidadãos que são interessados, porém insatisfeitos com a
política. Os usuários da internet que possuem muita atenção
política, mas que têm pouco engajamento cívico e desencanto
com as instituições, podem ser atraídos por outsiders, que,
ao se comportarem como ‘novos líderes’, negam o papel
das instituições e robustecem o descrédito com a política,
sobretudo em democracias com características delegativas,
como a brasileira.
A estratégia informal de grupos de oposição foi a de ar-
ticular os segmentos insatisfeitos com a política por meio da
internet – que são locais virtuais frequentados por indivíduos
de maior escolaridade, mas com predisposição negativa em
relação ao governo federal. Esses grupos, que se apresentam
como apartidários (ou mesmo contrário aos partidos) e sem
líderes, usaram o Twitter e o WhatsApp para noticiarem fatos
e boatos desfavoráveis ao governo e aos políticos. E foram
criados, no Facebook, perfis como o Vem Pra Rua, o Mo-
vimento Brasil Livre (MBL) e o Revoltados On-line, grupos
que se especializaram na divulgação de casos de corrupção,
conferidos unicamente à esfera política e, sobretudo, ao PT.
Eles também questionaram a credibilidade daquelas pesqui-
sas eleitorais que indicavam a vitória da candidata petista
e a segurança das urnas eletrônicas, antes mesmo do final
do processo eleitoral. Posteriormente, passaram a protestar
sobre a legitimidade dos resultados das urnas.
A consequência dessa articulação virtual foi o aumento
da percepção da corrupção, a mobilização de usuários das
redes para o antipartidarismo reativo e para a organização

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de protestos pela saída da presidenta eleita. De modo que o


antipartidarismo das mensagens compartilhadas facilitou a
emergência de lideranças com marcas neopopulistas, porta-
doras de preleções salvacionistas dirigidas aos grupos mais
insatisfeitos, como os setores de classe média. Elas dispensam
as intermediações e se comunicam diretamente com o “seu
povo” por meio de mídias alternativas, com um discurso
polarizado entre corruptos versus éticos, fomentando a into-
lerância e pregando o combate contra os políticos, sobretudo
dos quadros vinculados ao PT.

Corrupção e efeitos de mídia


As indagações sobre os efeitos políticos da corrupção
são diversas e um ponto atualmente bastante debatido é
sobre a capacidade da mídia brasileira em produzir atitudes
negativas na opinião pública em relação aos atores políticos,
ao dar visibilidade a casos de corrupção (Telles et al., 2014;
Meneguello, 2011; Moisés, 2010; Coimbra, 2010). A questão
consensual nesta discussão é a de que a mídia é a principal
fonte de informação dos brasileiros.5 A primeira hipótese
para verificar o papel da mídia sobre as atitudes é a de que a
mídia seleciona temas e sugere como eles devem ser inter-
pretados. O julgamento que os eleitores fazem da política
decorre não somente dos discursos emitidos pelos partidos
e por seus líderes, pois a imprensa tem um papel importante

5
A literatura procura saber em que medida a percepção da corrupção pode se
expandir na sociedade a partir do volume de casos expostos nos meios de
comunicação. Em seguida, se a ampliação da percepção pode fazer variar –
aumentar ou reduzir –, a tolerância à corrupção. Finalmente, se a percepção e
intolerância à corrupção têm implicações sobre a legitimidade da democracia.
Mas, existem hipóteses alternativas sobre o papel da mídia em relação a sua
capacidade de fomentar o antipartidarismo e reduzir a adesão à democracia.

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na formação da opinião pública, na medida em que vincula


uma agenda e interage com a vida cotidiana das pessoas.
Para avaliar a política, o cidadão necessita de informa-
ções e estas são obtidas, sobretudo, pelas notícias sobre po-
lítica veiculadas nos meios de comunicação. As impressões
constituídas servem para o cidadão formar opiniões sobre as
habilidades dos políticos, decidir seu voto e mesmo julgar
o sistema político e os partidos. Desse modo, a avaliação
da política seria volátil e dependeria da agenda da mídia,
pois a relevância dos problemas nacionais depende da ex-
posição aos noticiários. A mídia, portanto, poderia alterar
o interesse dos eleitores ao repercutir na forma como o
presidente atuará e em como ele será conceituado, pois os
meios de comunicação poderiam modificar os critérios
utilizados pelos eleitores no julgamento do desempenho
do presidente, dos partidos e dos sistemas políticos.
No entanto, essa hipótese pode ser ponderada. Os sujei-
tos não são atores isolados e com memória limitada, não são
apenas consumidores de informações e atribuem responsa-
bilidade ao governo e aos partidos políticos de acordo com
as suas predisposições. Os efeitos da mídia sobre a percepção
e a tolerância à corrupção não são homogêneos nem agem
sobre todo o eleitorado de igual modo. O tema da corrupção
sempre esteve presente nas campanhas on-line e off-line, mas
o seu enquadramento atingiu de modos diferentes, e em
momentos distintos, o eleitorado, pois a avaliação depende
também de conceitos prévios sobre os atores políticos. Para
ilustrar os diversos efeitos da mídia sobre a opinião pública,
abordarei os casos das eleições para presidente, em 2010, de
prefeito, em 2012, e a avaliação do governo da presidenta
Dilma, durante o seu primeiro mandato (2013).

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Nas eleições para presidente, o tema da corrupção circulou


tanto na TV quanto nos blogs e nas mídias digitais. A corrupção
foi associada ao PT em todas as campanhas presidenciais, pelos
opositores – o caso do “Dossiê dos Aloprados” (2006), o men-
salão (2006), o Caso Erenicegate (2010), a Petrobras (2014).
Mundim (2014) argumenta que a cobertura da imprensa foi
capaz de ter um impacto negativo na candidatura do PT, nas
eleições de 2006, e afastou partes da base eleitoral de Lula. Ele
demonstrou que “a cobertura política da imprensa foi uma das
responsáveis por levar muitos eleitores das classes média e alta,
mais escolarizados e moradores das regiões mais prósperas,
a apoiarem candidatos de oposição” (Mundim, 2014, p. 97).
Todavia, a emissão de tais conteúdos pode ter alterado a opi-
nião e realinhado o eleitorado, mas, até 2014, não havia sido
capaz de alterar substantivamente os resultados agregados, em
diversas ocasiões, e a organizar a opinião pública para protestar
contra a corrupção no governo federal.
Durante as eleições de 2010, apesar da intensa publi-
cidade das campanhas sobre o suposto caso de corrupção
envolvendo a Casa Civil, as pesquisas indicavam que a
candidata Dilma era percebida como a mais honesta por
40,4% dos eleitores, superando José Serra (PSDB) nesse
quesito (31,7%). Igualmente, 49,9% afirmaram que a petista
era a mais preparada para reduzir a corrupção no Brasil, e o
modo como a candidata combateria a corrupção e puniria
os corruptos aumentava em 38% as chances de voto nessa
candidata.6 Menos de 1% do eleitorado declarou se recordar
de notícias negativas relacionadas aos casos de corrupção

6
Pesquisa Eleições Presidenciais 2010 – Ipespe e Grupo Opinião Pública
(UFMG).

80
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que envolviam a candidata. Os recalls das campanhas diziam


respeito ao tema da saúde, com a corrupção sendo pouco
lembrada.
Por meio do Observatório das Eleições, desenvolvido
pela Universidade Federal de Minas Gerais,7 puderam ser
monitoradas as fontes da internet em 14 capitais, durante
as eleições para prefeito em 2012. Ao verificar a circulação
da informação sobre o tema da corrupção nos portais de
notícia, comparando-o com a ocorrência nas redes sociais
on-line, pôde ser notado que nas eleições para prefeitos das
capitais, a corrupção foi enquadrada como um escândalo
político midiático, concentrado no caso do mensalão e no
personagem “José Dirceu”.
Em Belo Horizonte, capital mais detidamente anali-
sada, a corrupção surge na internet somente após o início
do horário eleitoral. A menção à corrupção, no período de
pré-campanha para prefeito, em 2012, era escasso, mas as
referências ao tema nos portais digitais aumentaram no
decorrer da campanha e alcançaram seu ápice em 12 de
outubro, durante o desfecho do “caso Mensalão”, quando
são intensificados os debates entre os ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF). Não obstante, a cobertura realizada
nas mídias digitais teve efeito mínimo sobre os usuários da
internet e houve reduzida ativação de votos contra o candida-
to do PT de Belo Horizonte, o ex-ministro Patrus Ananias.
Por que isso ocorreu? Em primeiro lugar, porque o tema da
corrupção não era considerado um dos maiores problemas
da cidade nem das demais capitais. A saúde, a educação e a
segurança pública eram as questões mais relevantes naquele

7
<http://observatorio.inweb.org.br/>.

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momento para o eleitorado.8 Em segundo lugar, tratou-se


de um perfil de usuários da internet mais disponíveis a
aderir à candidatura do candidato petista: os eleitores que
acompanhavam a política, principalmente pela internet,
eram mais independentes das informações disponibilizadas
pela denominada mídia tradicional e mais próximos ao PT.9
A despeito de a corrupção ser transformada num es-
cândalo político midiático, Dilma e Patrus, ambos do PT,
mantiveram boa votação e os eleitores não os percebiam
como desonestos nessas eleições. A mídia nem sempre
possui grande impacto na relevância atribuída aos temas e
no entendimento que os indivíduos possuem sobre diversas
questões. Telles et al. (2014) constataram que o consumo de
notícias nem sempre é um componente importante para
alterar as percepções do governo. A reprovação à presidenta
era maior entre os eleitores que usavam internet, que são
também os mais escolarizados. A maioria daqueles que
apoiavam o governo Dilma Rousseff apresentavam baixa
escolaridade e baixa renda, e estavam expostos mais frequen-
temente à televisão, ao passo que os opositores estavam mais
presentes na internet.10 Patrus teve os seus resultados pouco

8
Pesquisa Ibope em 2 de outubro de 2012. Área em que a população está
enfrentando os maiores problemas: saúde (73%), segurança pública (53%),
educação (48%), corrupção (9%). A partir de survey realizado na capital mi-
neira, a análise das chances de riscos revela que o voto no candidato Patrus
Ananias (PT) foi consideravelmente favorecido pelo acesso à internet como
meio de informações para eleições e o acesso às mídias on-line garantia sete
vezes mais chances de voto para Patrus que outros veículos (Telles et al.,
2013).
9
Pesquisa Eleições Municipais 2012. Ipespe e Grupo Opinião Pública
(UFMG).
10
A análise utilizou dados do Estudo Brasileiro de Mídia, realizado pela
Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom). Tal pesquisa, com
18.300 entrevistados, apresentou o mais abrangente levantamento sobre

82
H e l c i m a r a Te l l e s

influenciados pela divulgação de casos de corrupção, entre os


eleitores de BH que usavam mais a internet, pois eles eram
mais autônomos e de esquerda; ao passo que Dilma sofreu
maior reprovação de seu governo porque, no panorama na-
cional, as pessoas que usam a internet são mais críticas a ele.
O enquadramento da corrupção nos meios de comu-
nicação e a sua presença nas campanhas não produziram
consequências análogas. Os eleitores não são meros consu-
midores passivos de notícias, e se a corrupção foi atribuí­
da aos políticos e ao partido do governo, ela nem sempre
modificou as atitudes políticas. No entanto, atualmente, a
corrupção é um tema capaz de agrupar cidadãos que saíram
às ruas protestando e exigindo a saída da presidenta. A ex-
plicação para a competência que a questão da corrupção teve
para organizar os protestos reside menos na exposição desse
assunto nos meios de comunicação e mais no crescimento de
um perfil ideológico de direita, desejoso de uma referência
negativa no governo, representação que está presente entre
os manifestantes que foram às ruas em 12 de abril.

Conclusões: uma nova direita


organizada por outsiders?
A principal particularidade desse grupo de manifes-
tantes analisados é, além da crítica aos casos de corrupção,
o profundo sentimento contrário ao PT, aos seus líderes e
às agendas de inclusão social.11 O que mudou entre 2010 e

hábitos de uso dos meios de comunicação pela população brasileira com


idade eleitoral.
11
A posição política negativa dos manifestantes em relação ao governo federal,
aos partidos políticos e o antipetismo, bem como a ambiguidade em relação
à democracia, pode ser ainda corroborada pelas pesquisas realizadas pela
Fundação Perseu Abramo e pelos pesquisadores Jairo Pimentel (USP) e

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2014? Por que apenas presentemente o tema de corrupção


passa a alterar as atitudes dos eleitores, a ser associada como
um atributo natural do petismo, e a organizar as ruas? Em
primeiro lugar, a explicação para os protestos pela saída da
presidenta e o antipetismo não decorrem somente da cober-
tura que a mídia faz de casos de corrupção que envolvem
o PT. De fato, há parcelas do antipetismo que podem ser
explicadas como uma reação da opinião pública aos casos
de corrupção dos quadros do PT, amplamente divulgados
pela mídia. Mas tal sentimento contrário ao PT não tem sua
origem simplesmente da narrativa feita pela mídia sobre os
casos de atos ilícitos praticados pelo partido.
Um ponto importante diz respeito ao papel que as
mídias têm na formação da opinião pública. A distribuição
desigual do público se reflete na agenda da mídia; como
todo produto, as notícias também são pensadas para apra-
zer os seus consumidores. Dessa forma, não é a simples
adesão a um veículo que altera a percepção dos cidadãos
sobre o governo e a política, pois esses, ao compararem os
fatos narrados com a sua realidade, podem simplesmente
descartar o noticiário (Idem). Contudo, os efeitos de mídia
existem, mas influenciam de modo diferente os eleitores,
que não são homogêneos. A cobertura política negativa da
corrupção tem tido maior peso para alterar as atitudes das
classes médias, pois alguns fatores como as políticas sociais
e a sensação de bem-estar econômico puderam funcionar
como elementos de resistência à cobertura da imprensa em
outros setores da população.

Pablo Ortellado (USP), na cidade de São Paulo, durante os eventos de 15


de março e de 12 de abril.

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Em relação aos protestos, trata-se do fato de que a mídia,


mais do que agendar uma pauta, dá visibilidade e voz às dis-
posições, crescentes na opinião pública, de um pensamento
ideologicamente à direita. As notícias são geradas para se-
rem consumidas, e pode-se dizer que já existe um mercado
político no país à procura de um porta-voz que expresse a
ideologia de direita que se traduz pelo antipetismo.
O antipetismo e o antipartidarismo – encontrados entre
os manifestantes – não procedem simplesmente de uma rea­
ção à corrupção. Eles são do mesmo modo provenientes da
divergência dos participantes dos protestos com os projetos
das políticas de redistribuição de investimentos aos grupos
mais pobres. O antipetismo se conforma também como
resistência de parcelas de cidadãos às políticas de intervenção
do Estado para a promoção de maior igualdade, inclusão
social, redistribuição de rendas e expansão dos direitos das
minorias, agenciadas pelo governo federal. O filósofo Renato
Janine Ribeiro (2014) sustenta que, desde as manifestações
de 2013, foram abertas outras agendas democráticas que, se
concluídas, poderão consumar o aperfeiçoamento da demo­
cracia brasileira. No entanto, a terceira agenda proposta pelo
autor, a de inclusão social, iniciada em 2003, parece que não
é compartilhada pelos manifestantes que foram às ruas em
abril de 2015.
Um ponto importante é o papel das redes sociais e dos
outsiders nos protestos. A direita encontra nas redes sociais
um espaço para expandir sua clientela. Essa família ideológica
renovou suas estratégias: migraram para os espaços on-line
– onde se localizam setores de alta escolaridade e que desa-
provam o governo – e neles disseminaram intensamente o
tema da corrupção, tratando-a como um escândalo político

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midiático, concentrado sobre o PT e seus políticos. E, como


mostrado, os eleitores que foram às ruas protestar obtiveram
informações sobre os eventos em perfis das redes coorde-
nados por líderes outsiders que compartilhavam mensagens
intolerantes e polarizadas.
Os protestos demonstram que novas representações
ideológicas emergem, os grupos de direita têm aprendido a
ter visibilidade nas ruas e o PT se distanciou delas. Como
também alegado por Eliane Brum (2015), em artigo publica-
do no Jornal El País, o espantoso não é a direita ir às ruas, é a
esquerda sair delas. Ou seja, uma direita que, embora tendo
votado em Aécio Neves, apresentou um forte antipartida-
rismo e tomou um espaço desproporcional nas ruas, graças
à contrariedade deles com as acertadas políticas públicas
de justiça social, graças também aos equívocos políticos do
governo e da esquerda. Pelo perfil dos manifestantes traçado
nesta pesquisa, pode-se concluir que estamos diante de um
fenômeno no qual os grupos de direita moderada e radical
tomaram as ruas, e a sua coesão reside no forte antipetismo,
seja pela corrupção denunciada nesse partido, seja pelas
próprias políticas exitosas de inclusão social, que geram
resistências ideológicas a estas.
Os partidos políticos têm se distanciado da sociedade e
se equivocado na comunicação com os seus representados.
E, se a crítica da sociedade é neste momento dirigida ao
grupo que governa, a frustração com os partidos políticos
parece produzir desafeto com a política institucional. Tal
fenômeno é revelado pela perda de confiança nas instituições
representativas e na própria classe política. Em um contexto
de crise de representatividade e de piora dos indicadores
econômicos, podem emergir lideranças outsiders, com discur-

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H e l c i m a r a Te l l e s

sos mais radicalizados à direita, prometendo mais “eficácia


e ética” na gestão pública e organizando a opinião pública
por fora das instituições partidárias. Embora afirmem acei-
tar os procedimentos democráticos, devido à ambiguidade
desses manifestantes em acolher a democracia, um político
com características dessa envergadura pode encontrar apoio
nesse grupo, que possui pouco engajamento cívico e frágeis
vínculos partidários.
Nos protestos de 2015, a proposta de uma ausência de
mediação – a relação virtual entre líderes e os cidadãos –, o
predomínio de uma “lógica da opinião” e a criação de uma
popularidade acima das estruturas partidárias colocam na
agenda política a pauta sobre o que fazer com as organizações
partidárias e nos levam a interrogar se uma democracia im-
provisada somente pelas ruas, baseada na opinião pública e
que não reconhece a legitimidade dos resultados das decisões
processadas pela maioria em eleições livres e transparentes,
é efetivamente uma democracia desejável.

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89
2016: o ano da polarização?1
Esther Solano
Pablo Ortellado
M árcio Moretto Ribeiro

J unho de 2013 marcou um ponto de inflexão na história


brasileira. Nas ruas convergiram grupos autonomistas,
como o Movimento Passe Livre (MPL), a esquerda clássica
brasileira nas figuras de sindicatos, movimentos tradicionais
ou partidos políticos e pessoas que já utilizavam a estética
nacionalista nas suas reivindicações. Em contrapartida, na
multiplicidade das pautas mobilizadas já se encontravam
a petição por serviços públicos de qualidade, a questão da
moralidade da política e o tema anticorrupção. Entre junho
de 2013 e meados de 2016, enquanto a esquerda brasileira
não conseguia dar resposta apropriada a essas insatisfações,
movimentos identificados como de direita liberal – como o
Movimento Brasil Livre (MBL) ou Vem pra Rua – cana-
lizaram esse sentimento de frustração e descontentamento
cidadão contra o sistema político no seu conjunto num
1
Artigo publicado originalmente na Revista Análise da Fundação Friedrich
Ebert Brasil, n. 22, em 2017.
2 016: o ano da polarização?

forte sentimento antipetista, começando dessa forma uma


dinâmica de polarização nas redes e nas ruas cujo centro
simbólico era o PT: uma parte da sociedade mobilizada fazia
do petismo o alvo de suas críticas, pedindo o impeachment
da presidenta, e outro setor mobilizado respondia a eles
mobilizando a narrativa do golpe e defendendo a norma-
lidade institucional e democrática. Nesse cenário, grupos
como o MBL utilizaram um discurso populista de direita
com grandes significantes aglutinadores como antipetismo ou
corrupção para comunicar e mobilizar grandes segmentos da
população, moralizando ainda mais o debate em torno do
tema da corrupção e potencializando pautas conservadoras.
Uma direita brasileira liberal, a favor de reformas econô-
micas e sociais de corte neoliberal,2 que em vez de colocar
no centro da agenda a pauta sobre as medidas econômicas
liberais, utiliza as estratégias do populismo, a moralização da
política e a exaltação do Poder Judiciário que deve “limpar
o Brasil” para convocar a população às ruas.
Nesse sentido, nos interessa estudar melhor como
funciona essa dinâmica nítida de polarização em 2016, pre-
sente nas manifestações e nas redes sociais. Um fenômeno
relacional, em que a própria identidade se define a partir do
oposto, da negação da identidade alheia. Por um lado, os
manifestantes verde-amarelos exigindo o impeachment, para
os quais o PT é o partido mais corrupto do Brasil, e que
definem sua identidade de direita ou conservadora não sobre
pautas programáticas e sim sobre um antipetismo, conceito
que os une e que coaduna sua identidade. Por outro, os
2
Proposta de Emenda Constitucional, aprovada em 13 de dezembro de 2016,
que determina um teto para os gastos públicos por um período de 20 anos
a partir de janeiro de 2017.

92
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

manifestantes que se identificam com o campo progressista,


com críticas ou não ao papel do petismo e sua dimensão
histórica, que defendem que o impeachment seria um golpe
e, portanto, uma agressão antidemocrática. Entre eles, um
grande grupo minimiza a importância da participação do PT
nos esquemas de corrupção, defendendo o discurso de que
o partido seria vítima de uma confluência de forças entre
elites, imprensa e Poder Judiciário. No centro das narrativas,
para ambos os lados, o PT.
Durante os anos 2015 e 2016, realizamos uma série de
estudos sobre as manifestações pró e anti-impeachment na
cidade de São Paulo.3 Continuando com esse trabalho, os
dados e a reflexão aqui apresentados se estruturam em três
blocos de pesquisa que buscam entender com mais deta-
lhe esse ciclo de mobilizações cujo centro simbólico foi a
figura do PT. As perguntas que tentamos responder são as
seguintes:
– A polarização relativa à questão do impeachment e o
petismo atinge todos os grupos sociais mobilizados
ou temos outras dinâmicas de manifestações que não
se encaixam no modelo da polarização?
– Como se organiza o atual debate político no Face-
book? Ele é um debate polarizado que tem também
no seu centro a discussão sobre o papel do PT?
– Que impacto têm as pautas e narrativas políticas
dinamizadas pelos grupos mais organizados na con-
figuração da identidade política da sociedade como
um todo? Os debates atuais de maior visibilidade

3
Resultados completos de todas as pesquisas, incluindo as atuais: <http://
gpopai.usp.br/pesquisa/>.

93
2 016: o ano da polarização?

sobre medidas liberais econômicas, conservadorismo,


punitivismo, políticas sociais, discurso evangélico,
narrativas golpe-impeachment têm ressonância na so-
ciedade não mobilizada?

Os jovens mobilizados fora da polarização


Hipótese: os jovens mobilizados não se encaixam exatamente no
perfil da polarização ‘vermelhos” versus “verde-amarelos” presente
nas manifestações anti e pró-impeachment.
Durante as pesquisas os protestos anti-Dilma (12 de abril
de 2015 e 16 de agosto de 2015) e anti-impeachment (31 de
março de 2016), aplicamos uma série de questionários para
entender melhor o perfil socioeconômico e a identidade
política dos manifestantes. Um dado que chamou a atenção
foi que a idade média dos manifestantes presentes era de 44
anos para os anti-Dilma, com presença de 6,30% e 4,70%
de jovens entre 16 e 20 anos em cada um dos protestos, e 40
para os anti-impeachment, com 7,90% de jovens entre 16 e 20
anos. A pouca presença de jovens nos levou a questionar se
a mobilização em torno da figura do PT, com consequente
polarização, seria uma questão que define melhor uma faixa
etária mais adulta.
A explicação mais coerente desse fenômeno é que o PT
se colocou no centro da construção da simbologia partidária
e política para toda uma geração, inclusive para configurar
uma identidade política antipetista. A maioria dos mais jo-
vens, porém, estão fora dessa disputa simbólica, o PT já não
é o centro de sua organização como atores políticos. Jovens
e adolescentes estão nas ruas por diversas pautas, porém,
muitos deles fora do debate do impeachment e sem entrar
na dinâmica da polarização dos protestos de 2015 e 2016.

94
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

Como esses jovens pensam a dinâmica petismo-antipetismo


e como eles se colocam nesse debate?
Em maio de 2016, a cidade de São Paulo foi palco de duas
mobilizações que pediam a ampliação de direitos: no dia 14,
a marcha que pedia a legalização da maconha e, no dia 19, a
passeata dos secundaristas que se opunha aos cortes para a
educação do governo do estado de São Paulo. A pesquisa foi
conduzida durante essas duas manifestações. Na primeira,
foram aplicados 557 questionários e a margem de erro é de
4,2%; na segunda, foram aplicados 509 questionários e a
margem é de 4,3%.
Nos questionários, reapresentamos questões que já ha-
víamos aplicado a manifestantes anti-Dilma e manifestantes
anti-impeachment – nosso objetivo era entender de que maneira
o perfil dos manifestantes desses dois movimentos (secunda-
ristas e ativistas a favor da legalização da maconha) divergia
ou convergia com os dos dois grupos que já havíamos estu-
dado. Supomos, ainda, que o PT não é mais o organizador
central do debate político para a geração mais nova engajada
em lutas progressistas que se configuram cada vez mais em
organizações autonomistas desvinculadas da lógica partidária.

Caracterização socioeconômica
Os dois grupos estudados apresentaram um perfil seme-
lhante entre si e distinto dos grupos anti-impeachment e anti-
-Dilma. A idade média tanto da marcha da maconha quanto
dos secundaristas é de pouco mais de 20 anos, com 84,7% e
89,9% dos manifestantes abaixo dos 30 anos; 36,4 e 33,6% são
negros e pardos; e 41,3% e 46% têm renda familiar de até três
salários-mínimos. Como parâmetro de comparação, o perfil
do manifestante do ato anti-impeachment de 31 de março é de

95
2 016: o ano da polarização?

31,3% de manifestantes com até 30 anos, 34,9% de negros e


pardos e 23,8% com renda familiar de até três salários-mínimos.

Confiança nas instituições


Tanto os manifestantes que defendem a legalização da
maconha quanto os estudantes secundaristas apresentam
descrença generalizada nas instituições, mas, em relação
aos outros dois grupos estudados (anti-impeachment e anti-
-Dilma), a intensidade dessa descrença tem um perfil misto.
Com relação a partidos políticos, eles têm 70,6% e 58,7% de
desconfiança e 28,4% e 39,7% de pouca confiança – um perfil
parecido com os manifestantes anti-Dilma que estudamos
em 15 de abril de 2015 (73,2% de desconfiança e 25,2% de
pouca confiança). Já com relação à imprensa, eles têm 62,8%
e 68,6% de desconfiança e 35,9% e 30,6% de pouca confiança
– perfil semelhante aos manifestantes anti-impeachment de 31
de março (85,4% de desconfiança e 13,6% de pouca confian-
ça). Em resumo, enquanto esses movimentos de jovens têm
desconfiança intensa e generalizada tanto em partidos quanto
na imprensa, os anti-impeachment têm menos desconfiança dos
partidos e os anti-Dilma menos desconfiança na imprensa.

Comportamento eleitoral e participação na crise política


A pouca idade dos dois grupos fez com que uma parcela
significativa não tivesse votado nas últimas eleições presi-
denciais, mas entre os que votaram, a maioria votou nos
candidatos de esquerda, Dilma Rousseff (29,2% na marcha
da maconha e 30,3% entre os secundaristas) e Luciana Genro
(20,7% e 31,8%), com expressivo número de votos nulos em
terceiro lugar (13,6% e 11,8%). Com relação à participação
nas marchas pró e anti-impeachment, houve diferença notá-

96
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

vel nos dois grupos. Enquanto os manifestantes da marcha


da maconha se distribuíram entre os que foram à marcha
pró-impeachment (14,2%), os que foram às marchas anti-
-impeachment (27,8%) e os que foram à manifestação pedindo
o fora todos (13,3%), os secundaristas tiveram um perfil mais
contrário ao impeachment, com apenas 5,1% participando de
manifestação pró-impeachment, consideráveis 45,8% partici-
pando de atos anti-impeachment e 13,9% pedindo o fora todos.
Embora secundaristas tenham participado em grande
número de atos anti-impeachment, eles não parecem ter se
engajado no debate polarizado que opunha de um lado, a
tese de que o PT era essencialmente corrupto e, de outro,
que ele tinha trazido grandes ganhos sociais para o país.
Tanto os participantes da marcha da maconha quanto os
secundaristas mostraram grande adesão às duas afirmações:
89,4% e 87,2% concordaram totalmente ou em parte que “o
PT é um partido corrupto”, mas, ao mesmo tempo, 90,2% e
96,4% concordaram totalmente ou em parte que “conquistas
do governo do PT como o Bolsa Família, o Fies e o Minha
Casa Minha Vida melhoraram a vida dos brasileiros”.

Autonomia dos movimentos


Finalmente, investigamos em que medida participantes
da marcha da maconha e da manifestação dos secundaristas
concordavam com teses geralmente associadas ao autono-
mismo; sendo que 41,1% e 64% não concordaram e 33,2%
e 25,9% concordaram apenas em parte que “não há grandes
diferenças entre governos de esquerda e governos de di-
reita”. No entanto, 68% e 62,3% concordaram totalmente
que “movimentos sociais deveriam ser independentes de
partidos políticos.”

97
2 016: o ano da polarização?

Principais observações
Os protestos estudados são formados por uma
geração mais nova que não se define na identidade
política polarizada impeachment-golpe cujo centro
organizador é a figura do PT. Esses jovens têm des-
confiança generalizada tanto nos partidos quanto na
imprensa, a maioria votou em partidos de esquerda na
eleição para presidente (divididos entre o PT e PSOL)
e se colocam contrários ao impeachment. Os secunda-
ristas se mobilizaram bastante contra o impedimento:
45,8% dos secundaristas participaram de algum ato
anti-impeachment e 27,8% dos presentes na marcha
da maconha. Apesar da rejeição ao impeachment e à
mobilização, sobretudo por estudantes, esses grupos
parecem não se encaixar na lógica da polarização
nem aderem totalmente à narrativa PT corrupto
versus PT vítima. Quase 90% de ambos presentes nos
protestos concorda total ou parcialmente com a ideia
de que o PT é corrupto, mas por outro lado mais de
90% afirmam que as políticas do PT melhoraram a
vida dos brasileiros. Existe um reconhecimento da
importância do petismo para o país, mas também
se adere à ideia de que o PT se transformou num
partido corrupto.
Finalmente, mais de 60% concordaram total-
mente com a afirmação de que os movimentos
sociais deveriam ser autônomos de partidos políti-
cos, prezando a autonomia dos movimentos frente
à lógica partidária.

98
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

– Os jovens mobilizados são contrários ao impeachment.


– Não aderem à lógica binária PT corrupto versus PT
vítima.
– Acreditam que o PT melhorou a vida dos brasilei-
ros, mas também que se transformou num partido
corrupto.
– Acreditam que os movimentos sociais devem ser
independentes dos partidos políticos.

A polarização no Facebook: o PT no centro do debate


Hipótese: o PT organiza a polarização no debate político nas
redes sociais entre aqueles com um forte sentimento antipetista e
aqueles que se opõem a ele mesmo, os antiantipetistas
Nas pesquisas com aplicação de questionário nas ma-
nifestações pró e anti-impeachment que realizamos nos dias
12 de abril de 2015 e 31 de março de 2016, ficou bastante
claro que o Facebook é a plataforma preferencial das pessoas
mobilizadas ao se informarem sobre política. No dia 12
de abril 47,30% dos manifestantes afirmaram se informar
muito sobre política no Facebook (56,20% por sites de
jornais e TV e 26,60% por WhastApp). Para o dia 31 de
março, os dados são muito similares, com 56,70% dizendo
se informar muito pelo Facebook com relação à política.
Postagens de uma enorme quantidade de páginas são lidas
pelos manifestantes e por outros usuários que disputam o
discurso político nas redes sociais. Neste estudo, buscamos
identificar como estão organizados os usuários politica-
mente engajados do Facebook. Partimos da hipótese de
que tais usuários se organizam nas redes sociais em torno
de certas páginas formando comunidades de leitores que
compartilham valores comuns.

99
2 016: o ano da polarização?

Seleção das páginas e coleta dos dados


A plataforma do Facebook permite que usuários e em-
presas criem páginas para promoção de conteúdos. Além
de promovê-los, uma página pode expressar afinidade com
outras por meio de uma curtida, formando assim uma rede
de páginas. Fazendo uma busca em prioridade nessa rede
(priorizando as páginas com mais curtidas de usuários), co-
letamos 66 mil páginas brasileiras de categorias relacionadas
à política (organization, cause, politician etc.). Esse conjunto
corresponde a todas as páginas com mais de 8 mil curtidas
de usuários dentro da componente principal.
A estrutura das redes das páginas forma agrupamentos
(clusters) que indicam aproximação entre elas a partir da afi-
nidade indicada pela própria página ou, mais precisamente,
por seu administrador. Analisando essa estrutura de clusters,
verificamos que as páginas se organizam em torno de gran-
des temas. O maior agrupamento, que corresponde a 14,7
mil páginas ou 22,25% da coleta, inclui as que tratam de
política em um sentido amplo: páginas de mídia, de políticos,
partidos etc. Os outros agrupamentos foram descartados por
tratarem de temas fora do escopo da pesquisa, como frases
para perfil, cristianismo, feminino, veículos e anime.
Desse conjunto foram selecionadas aquelas com maior
número de curtidas de usuários, aquelas com maior número
de curtidas de outras páginas e aquelas mais relevantes na
rede (considerando a métrica PageRank de relevância). Por
fim, eliminamos manualmente as que não tratavam de po-
lítica em âmbito nacional. Terminamos a seleção com um
conjunto de 400 páginas.
Coletamos uma amostra de postagens desse conjunto
durante o mês de março de 2016. A amostragem intercalou

100
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

dias da semana, dois períodos (manhã, tarde ou noite) em


cada dia da semana espalhados por todo o mês. A amostra
contém 6,2 mil postagens. Por fim, coletamos as curtidas
em cada uma dessas postagens. No total, consideramos 11,3
milhões de curtidas de 3,8 milhões de usuários distintos.

Construção do grafo
Um grafo é uma estrutura matemática formada por nós
e arestas que ligam os nós. Estes podem possuir atributos
e as arestas podem ser ou não direcionadas, e também
podem possuir atributos como seu peso. Os nós no grafo
que construímos representam páginas no Facebook, seu
principal atributo é o número de usuários que curtiu
alguma das postagens da amostra. No diagrama isso é
representado pelo tamanho dos nós. O peso de uma aresta
ligando duas páginas representa o número de usuários que
curtiram postagens de ambas páginas ao mesmo tempo
dividido pela união desses conjuntos. Matematicamente,
se representarmos por A e B os conjuntos de usuários que
curtiram alguma postagem da primeira e da segunda pági-
na, respectivamente, o peso da aresta pode ser representado
pela seguinte fórmula (A∩B)/(A∪B).

Nos diagramas, as arestas muito leves foram omitidas


e o peso das arestas aproxima os nós. Assim, páginas com
maior número de leitores em comum estão mais próximas
no grafo e comunidades de leitores formam agrupamentos
no diagrama. Formalmente, a modularidade de um grafo or-
ganizado em agrupamentos corresponde à diferença entre
a razão entre o número de arestas internas e externas aos
agrupamentos e a mesma razão em um grafo aleatório. Nos
diagramas, os agrupamentos estão coloridos com cores di-
ferentes e buscam otimizar o grau de modularidade usando
o algoritmo de Louvain.

101
2 016: o ano da polarização?

Numa análise grosseira, observamos que as 400 páginas


de conteúdo político selecionadas se organizam em dois gran-
des blocos bastante distantes entre si, indicando uma grande
polarização; a que se observa nas manifestações contra o PT
e contra o impeachment também se observa na rede social. Um
dos polos agrega páginas como Amigos da Rota, NOVO 30,
Vem Pra Rua, Aécio Neves e Conversa com os Brasileiros.
Esse polo é organizado pelas páginas com um discurso for-
temente antipetista; outro contém páginas como PT, Blog da
Dilma Rousseff, Lula, Jean Wyllys e Feminismo Sem Dema-
gogia. Esse polo se organiza em torno de páginas associadas ao
PT, mas, principalmente, em oposição às páginas antipetistas.
Poucas estão entre os dois polos, algumas exceções são a de
Marina Silva, do deputado federal Silas Câmara e das ONGs
ambientalistas Greenpeace e SOS Mata Atlântica.
É interessante observar que essa polarização no espaço
virtual se organiza em torno da figura do PT, que aparece
no centro da dinâmica política da rede social: de um lado,
as páginas com forte conteúdo antipetista, de outro, as que
se opõem a esse discurso, as antiantipetistas (já que nesse
grupo encontramos não só páginas petistas como páginas
autodenominadas de esquerda que criticam o PT “pela es-
querda”, mas se organizam contrariamente ao impeachment
e à narrativa antipetista).
Outro dado relevante quando comparamos os dois polos
é que o antipetista tem páginas que aparecem como gran-
des organizadoras hegemônicas do debate, com um grande
número de curtidas, como a do MBL, Bolsonaro, o Vem
pra Rua. Já no antiantipetista, existe uma dispersão maior,
não havendo páginas que centralizem tanto a atuação da
rede social.

102
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

Uma análise mais fina de cada um dos polos indica como


eles se organizam internamente. O antipetista se organiza em
quatro agrupamentos principais. No centro, em vermelho, as
páginas mais ativas são as anticorrupção e antipetistas como
o Movimento Brasil Livre, Movimento Contra a Corrupção
e Vem Pra Rua. Os grupos em torno dessas páginas foram
os protagonistas das manifestações pelo impeachment da pre-
sidenta Dilma Rousseff. No topo temos dois agrupamentos
menores, em verde as páginas que promovem o liberalismo
econômico e o Estado mínimo como a do Partido Novo e
a Socialista de iPhone e, bem próximo, um agrupamento
conservador, de azul, marcado principalmente por páginas
que enaltecem a polícia, como Amigos da Rota e Eu nasci
para ser polícia. Por fim, em rosa, as páginas dos partidos e
políticos que defenderam o impeachment da presidenta Dilma,
Ana Amélia Lemos, Geraldo Alckmin e Conversa com os
Brasileiros.
A análise mais fina do polo antiantipetista indica a orga-
nização em três clusters. O principal, que contém as páginas
com mais usuários ativos, está pintado em vermelho. Esse
agrupamento contém as páginas dos principais políticos
que fizeram oposição ao impeachment de Dilma, como Gleisi
Hoffmann, Lindbergh Farias e Jandira Feghali. Em azul,
estão as páginas de grupos identitários de defesa de direitos
das mulheres, LGBT e negros, como Feminismo Sem De-

103
2 016: o ano da polarização?

magogia, Empodere Duas Mulheres e Cartazes & Tirinhas


LGBT. Por fim, um pouco marginalizado no cluster, em ver-
de, uma enorme quantidade de páginas com menos usuários
ativos, de movimentos autônomos por ampliação de direitos
sociais como o Passe Livre São Paulo, ambientalistas como
a WWF-Brasil e de estilo de vida, como Infância Livre de
Consumismo.

104
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

Principais observações
O tipo de análise estrutural das páginas do Facebook
usado parece adequado para a identificação de comu-
nidade de usuários que se informam pelas mesmas
páginas. A disputa em torno do papel histórico do PT
organizou o campo de disputa do discurso político no
Facebook polarizando os usuários entre antipetistas e
antiantipetistas. Essa dinâmica birrelacional pode ser
analisada de maneira mais fina indicando a forma como
cada polo se organiza internamente. Essa análise mais
fina indica a complexidade dos grupos que ficaram
subordinados à disputa em torno do PT. De um lado,
as páginas que puxaram os atos pelo impeachment orga-
nizam o campo, grupos liberais, grupos conservadores
e políticos tradicionais que eram oposição disputam
essas três comunidades. Do outro lado, as páginas
associadas ao PT organizam o campo impondo seu
discurso sobre grupos identitários, novos movimentos
sociais e ambientalistas, ou seja, mesmo os grupos que
se identificam como sendo à esquerda do PT e que
não compartilham um discurso petista se agrupam na
polarização contra os grupos antipetistas. Nas páginas
políticas do Facebook, o PT é um grande organizador
do debate e o centro da polarização.
– O Facebook é uma importante ferramenta de infor-
mação política.
– As páginas políticas do Facebook estão altamente
polarizadas.
– O PT é o centro desta polarização virtual, é o orga-
nizador do debate político na rede social.

105
2 016: o ano da polarização?

– Os usuários de páginas políticas se dividem numa


relação de oposição entre os antipetistas e os que
rejeitam esse sentimento de antipetismo (defensores
do PT e críticos do partido, mas desde posições de
esquerda).

Paulistano é conservador, mas não concorda com


o discurso econômico liberal. A narrativa do golpe
divide a população
Hipótese: não há uma correspondência exata entre a opi­
nião da sociedade paulistana mais ampla, e frequentemente não
mobilizada, com o discurso das elites de ativistas engajados no
debate político
A polarização sobre a figura do PT é evidente nas
manifestações dos anos 2015 e 2016 e nas redes sociais,
mas não devemos esquecer que a maior parte da sociedade
brasileira não estava presente nesses protestos e tampouco
está presente no debate político do Facebook, cujo per-
fil majoritário é urbano, classe média e jovem. A ampla
maioria da sociedade brasileira, portanto, permanece fora
do radar das pesquisas. Buscamos responder agora se há
correspondência entre a opinião da sociedade paulistana
mais ampla, e frequentemente não mobilizada, com o
discurso das elites de ativistas engajados no debate po-
lítico. Por exemplo, o liberalismo econômico que prega
o MBL tem aceitação na população? E a narrativa golpe
versus impeachment? Os valores evangélicos (ex. condena
o aborto), os punitivos (ex. maior tempo de cadeia) ou
os mais progressistas (ex. política de cotas) que são mais
mobilizados no debate político das guerras culturais so-

106
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

bre pautas com alto conteúdo moral têm penetração na


população não mobilizada? Quais são, afinal, os valores
que definem a identidade política do paulistano?
Nos dias 15 e 22 de outubro de 2016 realizamos uma pes­
quisa investigando a opinião dos paulistanos sobre uma série
de assuntos que animam a polarização política nas redes
sociais. Aplicamos um questionário a 1.058 paulistanos com
cotas de sexo e idade e abordagens distribuídas pelas dez
macrorregiões da cidade. O questionário buscou relacionar
características demográficas (sexo, idade, escolaridade e ren-
da), o grau de engajamento e mobilização das pessoas, suas
identidades políticas e a adesão a afirmações que extraímos
do debate político no Facebook.
Essa pesquisa dá sequência a outras que realizamos in-
vestigando a opinião política de populações mobilizadas em
protestos anti-Dilma, anti-impeachment e dos movimentos
de estudantes secundaristas e pela legalização da maconha.
Extraímos as afirmações ideológicas que orientam nosso
estudo do debate político no Facebook (apresentado anterior-
mente) e buscamos ver se há correspondência entre a opinião
da sociedade paulistana mais ampla, e frequentemente não
mobilizada, com o discurso das elites de ativistas engajados
no debate político digital dividido em grupos que identifi-
camos como liberais, conservadores, evangélicos, sociais,
identitários e novos direitos, ambientalistas, pró-impeachment
e antigolpe.
Em primeiro lugar, queríamos medir a autoidentifica-
ção política dos paulistanos no espectro esquerda/direita e
conservador/não conservador. A distribuição da autoiden-
tificação ficou assim:

107
2 016: o ano da polarização?

Tabela 1 – Identidade esquerda/direita


Esquerda 12,5%
Centro-esquerda 3,7%
Centro 2,0%
Centro-direita 4,8%
Direita 8,3%
Nada disso 54,3%
Não sabe 14,3%

Tabela 2 – Identidade conservador/não conservador


Muito conservador 31,6%
Um pouco conservador 36,6%
Nada conservador 19,1%
Não sei 11,7%

É interessante verificar que a maioria das pessoas não se


identifica com a dicotomia clássica esquerda-direita, quase
70% dos entrevistados não adere a essa nomenclatura política.
A autoidentificação varia bastante conforme certas caracte-
rísticas demográficas. Quanto maior a escolaridade, quanto
maior a renda e quanto mais jovem, mais se é de esquerda
e não conservador.
O questionário verificou também o engajamento em
discussões políticas e a participação em protestos durante
esse último ciclo de mobilizações. Os resultados mostram
que 15% participaram dos protestos de 2013, número que
se divide depois entre aqueles que foram às ruas a pedir o
impeachment da presidenta e aqueles que se posicionaram
contrariamente a este:

108
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

Tabela 3 – Participação em protestos


Sim Não
Participou de alguma manifestação no último ano 16,8% 83,2%
Participou de manifestações em 2013, contra aumento da 15,4% 84,6%
passagem e outras coisas
Participou de manifestações a favor do impeachment da presi- 7,6% 92,4%
denta Dilma
Participou de manifestações contra o impeachment da presidenta 6,7% 93,3%
Dilma

Por outra parte também queríamos perguntar se as redes


sociais são uma fonte de informação, discussão e engaja-
mento político entre os paulistanos. Nas manifestações pró
e anti-impeachment, havíamos comprovado que uma média
de 50% dos participantes afirmavam se informar muito
politicamente pelo Facebook, evidenciando, dessa forma,
a importância da rede social nos paulistanos mobilizados.
Quando perguntamos ao geral da população (na sua maioria
não mobilizada), cai para 27,7% o número dos entrevistados
que utilizam internet (incluindo sites e rede social) como
fonte de informação política.

Tabela 4 – Informação e engajamento no debate político


Muito Pouco Nada
Você costuma se informar sobre política em sites 27,7% 38,4% 34,0%
na internet e nas redes sociais?
Você costuma se informar sobre política lendo 23,8% 43,7% 32,6%
jornais ou revistas?
Você costuma discutir política com amigos ou 29,8% 35,2% 35,1%
familiares?
Você costuma discutir política nas redes sociais 11,4% 19,3% 69,3%
como Whatsapp ou Facebook?

Por fim, investigamos a concordância das pessoas com


afirmações extraídas de páginas políticas no Facebook que
estão pautando o debate político nacional e mobilização social:

109
2 016: o ano da polarização?

Tabela 5 – Conservadoras
Concorda Não concorda Não sabe
Precisamos punir os criminosos 73,8% 19% 7,2%
com mais tempo de cadeia
O cidadão de bem deve ter o direito 29,7% 64% 6,3%
de portar arma
Se não precisasse trabalhar, toda 38,3% 59,3% 2,5%
mulher devia ficar em casa cuidando
da família

Tabela 6 – Liberais
Concorda Não concorda Não sabe
O governo deveria diminuir o nú- 50,6% 41,3% 8,1%
mero de funcionários públicos
Num momento de crise o governo 9,1% 88,8% 2,1%
precisa cortar gastos em saúde e
educação
As empresas estatais como os Cor- 30,2% 53,1% 16,7%
reios e o Banco do Brasil deveriam
ser privatizadas
As empresas privadas são mais efi- 53,4% 29,5% 17,1%
cientes que as empresas públicas

Tabela 7 – Evangélicas
Concorda Não concorda Não sabe
Fazer aborto é pecado 64% 29,8% 6,2%
Só pode ser considerada família a 39,8% 56,9% 3,3%
união de um homem e uma mulher

Tabela 8 – Sociais
Concorda Não concorda Não sabe
Quem começou a trabalhar cedo, 83,8% 11,3% 4,8%
deve poder se aposentar cedo, sem
limite de idade
O bolsa-família é necessário para 54,1% 36,8% 9,2%
reduzir a desigualdade
Todo mundo deveria trabalhar com 83,1% 13,5% 3,4%
carteira assinada

110
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

Tabela 9 – Identitárias e novos direitos


Concorda Não concorda Não sabe
Deveria ser permitido que qual- 39,3% 55,5% 5,3%
quer adulto fumasse maconha, se
quisesse
A mulher deve ter o direito de se 86,5% 11% 2,6%
vestir como quiser, sem ser inco-
modada
É preciso cotas para que negros e 46% 47,7% 6,2%
pobres consigam entrar na universi-
dade pública

Tabela 10 – Ambientais e estilo de vida


Concorda Não concorda Não sabe
As terras dos índios devem ser 94,5% 1,9% 3,6%
respeitadas pelos fazendeiros
É importante comer alimentos 90,6% 4,4% 4,9%
orgânicos

Tabela 11 – Antigolpe
Concorda Não concorda Não sabe
O PT é vítima de uma perseguição 26,4% 55,5% 18,1%
da imprensa e do juiz Sérgio Moro
O impeachment da presidente Dilma 41,1% 44,2% 14,7%
foi um golpe

Tabela 12 – Pró-impeachment
Concorda Não concorda Não sabe
O PT se apropriou do governo para 45,3% 34,9% 19,8%
roubar
Todos os partidos são corruptos, 36,4% 48,1% 15,5%
mas o PT é pior

Quais são as conclusões mais relevantes que podemos


extrair desses dados? Vê-se que o paulistano médio adere a
um consenso punitivo (73,8% concorda que devemos punir
os criminosos com mais tempo de cadeia), mas condena
o livre porte de armas (contrariamente às tentativas de
alguns membros do Congresso de acabar com o Estatuto

111
2 016: o ano da polarização?

do Desarmamento­), condena também o aborto (mas re-


conhece o direito da mulher se vestir como quiser sem ser
importunada), defende os direitos sociais e os direitos dos
índios sobre as suas terras. É de grande relevância notar
que quando questionados sobre pautas relativas a cortes
orçamentários, reforma previdenciária, obrigatoriedade de
carteira assinada, existe um consenso generalizado que não
aceita as pautas liberalizantes de flexibilização de trabalho
ou ajuste fiscal que corte drasticamente os gastos estatais
em serviços públicos. Cabe destacar que, no relativo a essas
perguntas, existe uma certa variação com a renda, sendo
os mais ricos mais concordantes em algumas pautas com
o Estado liberal.

Tabela 13 –Todo mundo deveria


trabalhar com carteira assinada
até de R$ 1.760 de R$ 2.640 de R$ 4.400 de R$ 8.800 acima de
R$ 1.760 a R$ 2.640 a R$ 4.400 a R$ 8.800 a R$ 17.600 R$ 17.600
Concorda 90,7% 88,5% 80,7% 74,3% 65,3% 63,2%

Tabela 14 – O governo deveria diminuir o número de


funcionários públicos
até de R$ 1.760 de R$ 2.640 de R$ 4.400 de R$ 8.800 acima de
R$ 1.760 a R$ 2.640 a R$ 4.400 a R$ 8.800 a R$ 17.600 R$ 17.600
Concorda 43,7% 48,1% 54,1% 57,0% 40,8% 73,7%

As variações por cortes demográficos são muito re-


levantes. Pautas mobilizadas por grupos conservadores
e evangélicos, como a família heteronormativa (apenas
entre homem e mulher), o papel da mulher na família e
a legalização da maconha variam muito com a renda, a
escolaridade e a idade: os jovens, os mais instruídos e os
mais escolarizados concordam muito mais com o direito

112
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

de fumar maconha, que a mulher não deve apenas ficar em


casa e que gays também constituem família. Por exemplo,
diante da afirmação “Só pode ser considerada família a
união de um homem e uma mulher”, os entrevistados de
16 a 24 anos concordam em 24,2% e este índice vai au-
mentando até a última faixa de 54 a 90 com uma aprovação
de 55,5%. Uma grande variação resulta nos grupos de
diferenciados por renda. As pautas religiosas, aquelas que
mobilizam politicamente a bancada evangélica, destacando
o papel da família cristã e as restrições dos direitos femi-
ninos, se configuram como muito importantes na coesão
da identidade dos grupos mais pobres.

Tabela 15 – Se não precisasse trabalhar, toda mulher


deveria ficar em casa cuidando da família
até de R$ 1.760 de R$ 2.640 de R$ 4.400 de R$ 8.800 acima de
R$ 1.760 a R$ 2.640 a R$ 4.400 a R$ 8.800 a R$ 17.600 R$ 17.600
Concorda 42,8% 40,9% 43,3% 29,6% 8,2% 15,8%

Tabela 16 – Fazer aborto é pecado


até de R$ 1.760 de R$ 2.640 de R$ 4.400 de R$ 8.800 acima de
R$ 1.760 a R$ 2.640 a R$ 4.400 a R$ 8.800 a R$ 17.600 R$ 17.600
Concorda 74,6% 69,7% 66,3% 49,2% 28,6% 21,1%

Tabela 17 – Só pode ser considerada família


a união de um homem e uma mulher
de R$ 1.760 de R$ 2.640 de R$ 4.400 de R$ 8.800 acima de R$
até R$ 1.760 a R$ 2.640 a R$ 4.400 a R$ 8.800 a R$ 17.600 17.600
Concorda 46,0% 40,4% 44,4% 28,5% 18,4% 15,8%

É interessante perceber, porém, que existem questões que


dividem a opinião pública, como as cotas, a importância do
Bolsa Família para reduzir a desigualdade ou a liberalização
do uso de maconha, debates sobre os quais não existe con-

113
2 016: o ano da polarização?

senso. Outra questão que também divide opiniões é o debate


impeachment/golpe. A narrativa do golpe divide absolutamente
a opinião pública, 41,1% concorda frente a 44,2%, porém
a narrativa da vitimização do PT nas mãos do juiz Sérgio
Moro e da imprensa só é aceita por 26,4% dos entrevistados,
o que significa que uma parte considerável dos que aderem
à narrativa do golpe não aderem à narrativa da vitimização
petista. Finalmente, 45,3% dos entrevistados afirmam que
o PT se apropriou do governo para roubar.
Nós também relacionamos a adesão às afirmações às iden-
tidades políticas (espectro esquerda/direita e conservador/não
conservador) e descobrimos algumas coisas: os paulistanos
que se dizem de direita não tem muita consistência ideológi-
ca, sendo seu traço mais marcante a adesão ao discurso pró-
-impeachment (o PT é o partido mais corrupto e se apropriou
do governo para roubar), como também é marcante sua não
adesão às pautas liberais na economia. Já os de esquerda pare-
cem mais coerentes, concordando com as afirmações sociais
e aquelas dos movimentos identitários e de novos direitos.
Os paulistanos que se definem de esquerda defendem mais
as políticas que protegem mulheres, negros e homossexuais,
e os que se definem de direita têm como traço mais forte o
antipetismo. Por fim, a identidade conservadora é amplamente
disseminada, mas parece vazia, pouco relacionada com po-
sições específicas, inclusive as conservadoras; já a identidade
não conservadora é muito mais coerente. Para a tabela abaixo,
construímos um índice que vai de -100 a 100, sendo o -100
o desacordo com todas as afirmações de um determinado
conjunto e 100 a concordância com todas elas.
O antipetismo (o PT como partido mais corrupto
de Brasil, a rejeição à vitimização petista, a defesa do

114
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

impeachment­) tanto nas manifestações verde-amarelas, num


dos polos do Facebook polarizado, quanto na sociedade
não mobilizada que se define de direita, é o elemento de
coesão central. A narrativa impeachment/golpe em torno da
qual se configurou o debate nas manifestações do ciclo
2015-2016 e na rede social não cria consenso na sociedade
não mobilizada.

Tabela 18 – Relação entre afirmações ideológicas e a


identidade política esquerda/direita (índice -100 a 100)
Direita Centro- Centro Centro- Esquerda Nada
-direita -esquerda disso
Conservadora 23,0 12,0 7,9 13,7 -40,2 2,0
Evangélica 17,2 5,0 2,4 -20,5 -51,5 15,3
Liberal 26,4 29,3 20,6 15,4 -29,5 2,2
Pró-impeachment 32,8 8,0 16,7 -29,5 -71,0 4,2
Ambiental/ 84,5 96,0 88,1 88,5 93,9 89,2
Estilo de vida
Social 43,3 42,7 46,0 52,1 58,5 51,7
Identitária/ 5,4 4,7 19,0 35,0 58,3 13,5
novos direitos
Antigolpe -56,3 -53,0 -61,9 -5,1 59,5 -26,2

Tabela 19 – Relação entre afirmações


ideológicas e a identidade política conservador/não
conservador (índice -100 a 100)
Muito Um pouco Nada
conservador conservador conservador
Conservadora 19,5 -1,7 -37,2
Evangélica 36,8 0,9 -44,7
Liberal 13,4 1,0 -14,4
Pró-impeachment 15,9 -3,0 -37,7
Ambiental/ 88,2 90,4 91,2
Estilo de vida
Social 53.9 50,8 50,1
Identitária/ 3,1 16,7 51,9
novos direitos
Antigolpe -28,4 -25,4 13,6

115
2 016: o ano da polarização?

Em primeiro lugar, queríamos medir a autoidentifica-


ção política dos paulistanos no espectro esquerda/direita e
conservador/não conservador. A distribuição da autoiden-
tificação ficou assim:

Principais observações
Há poucos consensos entre os paulistanos, entre
eles a defesa de direitos sociais, e a negação do dis-
curso liberal econômico e do punitivismo. Os temas
do impeachment/golpe dividem a população que majo-
ritariamente nega o discurso da vitimização petista.
As pessoas que assumem a identidade política de
direita e conservadora não concordam de maneira
muito marcada com as afirmações de nenhum dos
campos políticos que identificamos nas redes sociais
(liberal, conservador, social, evangélico, identitário e
novos direitos). Seu traço mais marcante é apenas o
antipetismo que aparece como organizador político
entre esse grupo social. Já as pessoas que assumem a
identidade política de esquerda e não conservadora
têm uma opinião mais ou menos coerente, concor-
dando com as afirmações extraídas do debate no cam-
po social, identitário e de novos direitos e rejeitando
aquelas dos campos liberal, evangélico e conservador.
Entre os mais pobres, as pautas evangélicas têm uma
grande penetração, principalmente questões relativas
à família cristã e o papel da mulher.
– O paulistano, mesmo aquele que se define como de
direita ou conservador, não concorda com as medidas
liberais na economia que o governo Temer defende,

116
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

assim como alguns grupos organizadores das mani-


festações pelo impeachment, como MBL ou Vem pra
Rua, que se identificam como liberais.
– O punitivismo é um consenso na sociedade paulistana.
– O debate impeachment-golpe divide a população, mas
a narrativa do PT vítima é majoritariamente rejeitada.
– O antipetismo organiza a identidade política dos
paulistanos que se definem de direita.
– Os valores religiosos mobilizados politicamente pela
bancada evangélica encontram mais apoio entre os
mais pobres e menos escolarizados.

Resumo final das três pesquisas


O furacão político que foi junho de 2013 e seus desdo-
bramentos, à esquerda e à direita, gerou um nível muito alto
de debate e mobilização: cerca de um quarto dos paulistanos
discute muito política com amigos ou familiares e mais ou
menos o mesmo percentual já participou de algum protesto,
seja em junho de 2013, seja contra ou a favor do impeachment.
No entanto, como já identificamos em outros estudos,4 esse
amplo debate político está muito amparado em fontes de
informação de baixa qualidade que dominam nosso cenário
polarizado. O surgimento dos grupos organizados de direita
liberal como MBL ou Vem pra Rua faz com que o debate
da insatisfação política se canalize no antipetismo, o que vai
configurando uma dinâmica polarizadora nas redes e nas
ruas, entre as pessoas que frequentemente se informam, dis-
cutem e se mobilizam por questões políticas. Uma estratégia

4
Monitor do debate político no meio digital: <https://www.facebook.com/
monitordodebatepolitico/?fref=ts>.

117
2 016: o ano da polarização?

populista de direita tem no antipetismo e na luta contra a


corrupção seus grandes significantes. A população brasileira
mais jovem não está totalmente inserida nessa dinâmica de
polarização, porque não tem no PT um centro simbólico
organizador da vida política, como a geração anterior, com
média etária de 40 anos, que é a tipicamente mobilizada em
torno desse tema. Os mais jovens ficam mais à margem da
identificação com as narrativas de vitimização petista versus
“o PT é o partido mais corrupto de Brasil”.
Finalmente, essa polarização que marca absolutamente
o debate político dos dois últimos anos não tem uma réplica
exata na população não mobilizada. A população que não
tem consenso sobre se foi golpe ou impeachment, mas que
não acredita no discurso da vitimização do PT, tampouco
compartilha o consenso liberal econômico atual dos grupos
organizadores dos protestos pró-impeachment e o governo
Temer, e cujos cidadãos de menor renda se identificam
com valores que a bancada evangélica mobiliza numa clara
penetração de questões morais-religiosas na política nesses
grupos. Porém, o antipetismo se coloca como o valor que ar-
ticula a identidade daqueles que se definem como de direita,
mostrando que, como conceito, tem uma grande capacidade
de criar consenso entre aqueles que não se identificam com
a esquerda ou com o progressismo.

2017: do antipetismo à antipolítica?


Com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff o an-
tipetismo teve uma grande vitória. Michel Temer assume o
comando do país com um discurso de liberalização econô-
mica que, como vimos, não é compartilhado pela maioria
dos paulistanos (dado provavelmente extrapolável ao resto do

118
E st h e r S ol a no, Pa b l o O rt e l l a d o e Márcio Moretto Ribeiro

país). Porém, múltiplos escândalos de corrupção – a maioria


ligado à Lava Jato – continuam aparecendo e abrangem um
grande espectro da classe política, envolvendo não só figuras
petistas como também de outros partidos, principalmente
peemedebistas e tucanos. Como já tínhamos observado nas
manifestações pró-impeachment, a confiança desses manifes-
tantes no PSDB e no PMDB, assim como nos seus principais
expoentes, não era alta.5

Tabela 20 – Manifestações pró-impeachment: confiança nos


partidos políticos (%)
PT PSDB PMDB Rede PSOL
Não respondeu/ nenhum 0,20 0,20 0,20 0,70 0,20
Confia muito 0,20 11,00 1,40 2,60 1,90
Confia pouco 3,70 41,20 16,30 14,00 16,10
Não confia 96,00 47,60 81,80 61,10 77,10
Não conhece 0,00 0,00 0,40 21,50 4,70

Por trás de um antipetismo evidente nas ruas, e muito


explorado pelos grupos que convocaram os protestos, esses
manifestantes que se definiam como majoritariamente de
direita e centro-direita escondiam um sentimento de frus-
tração com a classe política de forma geral. Alguém poderia
pensar que, já que o alvo fundamental dessas manifestações
era o PT, os que estavam lá presentes confiariam expressiva-
mente nos políticos peemedebistas, que assumiriam o poder
depois do impeachment, ou nos tucanos, já que a maioria
dos presentes afirmou ser votante do PSDB tanto em nível
federal quanto estadual.6 Os dados contradizem essa hipó-

5
Dados da manifestação de 12 de abril de 2015: <http://gpopai.usp.br/pes-
quisa/120415/>.
6
Segundo o Datafolha, 82% dos entrevistados presentes na manifestação de
16 de agosto de 2015 se declararam eleitores de Aécio Neves (PSDB).

119
2 016: o ano da polarização?

tese, demonstrando um claro sentimento de desconfiança


geral. Só 11% dos entrevistados nas manifestações a favor
do impeachment confiam muito no PSDB e 1,4% no PMDB.
Enquanto aos representantes partidários, aquele que conta
com a maior confiança é Geraldo Alckmin, com 29,1% de
alta confiança nele, número que cai a 22,6% para Aécio Neves
e 3,2% para Eduardo Cunha, levando em consideração que
esses dados são prévios à maioria das denúncias de corrupção
envolvendo peemedebistas e tucanos que vieram à público
posteriormente ao impeachment.
Com a saída de Dilma Rousseff, o PT está em clara crise,
perdendo sua hegemonia política e social, derrotado dramati-
camente nas eleições municipais de 2016, com os escândalos
de corrupção apontando sucessivamente aos mais diversos
partidos fora da órbita petista. O sentimento antipetista que
antes impregnava politicamente grandes grupos sociais no
país foi dando passo à expressão de um sentimento antipolí-
tico, de negação da política tradicional (nenhum político presta)
em detrimento do “novo-político” ou o “político-gestor” que
tem seu exemplo mais evidente no sucesso eleitoral de João
Doria em São Paulo, ou até de Marcelo Crivella no Rio de
Janeiro. Será importante observar como esse sentimento de
negação da política tradicional vai evoluir e como se refle-
tirá na perda de confiança na democracia para um grande
espectro da sociedade brasileira.

120
Direitas nas redes e nas ruas
“Imposto é roubo!” A formação
de um contrapúblico ultraliberal
e os protestos pró-impeachment
de Dilma Rousseff
Camila Rocha

Introdução
“Imposto é roubo!”. “Menos Marx mais Mises”. “Não
existe almoço grátis”. “Esquerda caviar”. Esses e outros motes
e palavras de ordem passaram a se tornar mais conhecidos nos
últimos anos por conta de um novo fenômeno que teve início
em fóruns e comunidades virtuais há mais de dez anos: a for-
mação de um contrapúblico ultraliberal.1 Ainda que a defesa
do Estado mínimo e do direito de propriedade normalmente
seja associada a grupos de interesse e a partidos políticos que
dispensam militantes de base, à medida que o Partido dos Tra-
balhadores prolongava sua permanência no governo federal, e
a internet se popularizava rapidamente entre as classes média e
alta, jovens universitários, economistas e profissionais liberais
passaram a se reunir em fóruns e comunidades virtuais para
traduzir e compartilhar textos, discutir longamente conceitos e
1
A definição do termo “ultraliberal” será realizada de modo mais detalhado
na primeira seção deste artigo.
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

teorias abstratas, formar grupos de estudo, e criar laços e uma


identidade comum em torno da defesa radical da liberdade
de mercado como fundamento último para a organização da
economia e da sociedade.
Sentindo-se pouco representados/as em ambientes aca-
dêmicos, na mídia tradicional e na política institucional,
os/as defensores/as radicais do livre mercado encontraram
na internet um refúgio a partir do qual, com o apoio orga­
nizacional e financeiro de uma rede preexistente de organi-
zações, passaram a se organizar na sociedade civil, fomentar
ações coletivas nas ruas e lançar candidaturas políticas com
o intuito de, em suas próprias palavras, ganhar corações e
mentes e disputar hegemonia com os/as esquerdistas. Ain-
da que a organização paulatina de uma militância de base
a partir da constituição de um contrapúblico ultraliberal
formado a partir da internet tenha sido fundamental para
explicar acontecimentos políticos da maior importância que
ocorreram em anos recentes, como a convocação dos pri-
meiros protestos pró-impeachment de Dilma Rousseff ainda
em 2014 e a formação do Movimento Brasil Livre (MBL),
a literatura existente sobre tais fenômenos se ocupou até
o presente em analisar os ciclos de protestos anti-petistas/
pró-impeachment em si (Tatagiba; Trindade; Teixeira, 2015;
Telles, 2016; Alonso, 2017; Pinto, 2017; Solano; Ortellado;
Moretto, 2017; Messemberg, 2017), mas não os atores e
eventos específicos que lhes deram origem a partir de uma
perspectiva histórica mais ampla e processual.
Minha intenção é preencher essa lacuna explicativa a
partir de uma reconstrução histórica que vai do surgimento
de um contrapúblico ultraliberal na internet, especialmente
a partir de comunidades existentes no Orkut entre os anos

124
Camila Rocha

2005 e 2006, passando pela estruturação institucional de


uma militância de base que veio a desempenhar um papel
decisivo nos primeiros protestos pró-impeachment ainda
em 2014. Tal reconstrução é realizada aqui a partir de uma
triangulação de dados empíricos: entrevistas em profundi-
dade coletadas entre 2015 e 2018 com lideranças e militan-
tes ligados ao que defino como contrapúblico ultraliberal;
postagens originais relacionadas aos eventos apontados pelos
entrevistados nas redes sociais Orkut e Facebook; bem como
notícias de jornais e revistas que também pudessem confir-
mar o relato dos entrevistados. Nesse sentido, as entrevistas
não são utilizadas aqui como a única fonte empírica para
a reconstrução histórica realizada – na medida em que as
informações relacionadas especificamente ao processo histó-
rico foram confirmadas com a utilização de fontes externas
–, mas são importantes na medida em que apontam uma
percepção compartilhada de marginalização em relação a
públicos dominantes por parte dos atores aqui analisados,
daí a centralidade conferida nesse artigo às falas.
A hipótese principal que orienta o argumento que preten-
do desenvolver é a de que três fatores foram fundamentais para
explicar a formação desse contrapúblico e o seu sucesso em
organizar uma militância de base que convocou e dirigiu os
primeiros protestos pró-impeachment: 1. a presença precoce em
fóruns e redes sociais virtuais de jovens universitários e profis-
sionais liberais das classes média e alta que possuíam interesse
pelo liberalismo econômico; 2. a preexistência de uma rede
de think tanks2 liberais no país que pudesse oferecer suporte
2
Existem muitas definições possíveis para o que são e fazem os think tanks
no caso específico dos think tanks abordados aqui, nacionais e estrangeiros
(TT), é possível classificá-los como think tanks de advocacy político, ou

125
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

organizacional e financeiro à militância em formação; 3. mu-


danças na estrutura de oportunidades políticas relacionadas a
dois eventos políticos no país: as revoltas de junho de 2013 e
a reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Além disso, também
pretendo fazer uma contribuição à literatura de esfera pública
e ação coletiva ao apontar como o conceito de contrapúblico
pode ser frutífero para compreender a expressão de atores que
não são oprimidos socialmente, mas que se percebem margi-
nalizados da esfera pública a partir das críticas realizadas por
Michael Warner (2002) e Freya Thimsem (2017) à ideia de
que a identidade subalterna dos membros seria a característica
definidora dos contrapúblicos.
Tendo isso em vista, primeiramente realizarei uma breve
exposição acerca da difusão do liberalismo econômico a par-
tir da qual discutirei os conceitos e a metodologia adotados
aqui, depois realizarei uma reconstrução da trajetória da
militância ultraliberal desde a constituição de um contra-
público no Orkut entre 2005 e 2006 até sua participação
nos primeiros protestos pró-impeachment de Dilma Rous-
seff dividida em três seções que remetem aos três fatores
que sustentam a hipótese central, que orienta este capítulo,
mencionada acima.

seja, que atuam com o objetivo principal de disseminar ideários políticos


procurando influenciar a opinião pública. Para tanto, “utilizam-se mais
de estratégias públicas de disseminação de ideias, fazendo amplas par-
cerias com veículos de comunicação de massa. Trabalham no campo da
disseminação de argumentos ideológicos, mais do que científicos, mas se
utilizam de especialistas renomados, no campo acadêmico ou gerencial,
para dar credibilidade às colocações; articulam-se em rede – diversos
membros-chave de alguns TTs de advocacy político compõem os conselhos
de outros TTs – para disseminar ideários que defendem em comum. E são
financiados exclusivamente por recursos privados, de pessoas jurídicas ou
físicas” (Hauck, 2015, p. 171).

126
Camila Rocha

Liberalismos e esfera pública no Brasil


O liberalismo é uma das mais vastas tradições de pen-
samento político e econômico e abrange formulações das
mais diversas. No Brasil, a difusão do liberalismo eco-
nômico precedeu a do liberalismo político, considerando
que a publicação da obra Observações sobre o comércio franco
no Brasil de Visconde de Cairu foi publicada em 1808 e a
ideia moderna de liberdade política passou a circular no
país apenas a partir de 1822 (Lynch, 2007). O liberalismo
econômico que foi divulgado não apenas no Brasil mas
em vários países no século XIX, também conhecido como
laissez-faire, passou a ser questionado da metade para o final
daquele século por vários autores liberais e experimentou
uma decadência aguda após a crise de 1929. Em 1938, em
uma reunião celebratória da obra do publicista estadunidense
Walter Lippman, que ocorreu em Paris, vários intelectuais
procuraram realizar um esforço para reabilitar o laissez-faire
sob novas bases, o que resultou na formação de duas novas
correntes: o ordoliberalismo alemão, que, ao contrário do
laissez-faire, compreende que o funcionamento do mercado é
imperfeito e que o Estado deve atuar para corrigir suas falhas,
e o neoliberalismo, que defende que o Estado deve criar um
aparato jurídico-legal que fomente o bom funcionamento
do livre-mercado (Dardot; Laval, 2016).
Os neoliberais, intelectualmente liderados pelos econo-
mistas Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, passaram
a atuar política e academicamente para difundir suas ideias
se valendo não apenas de suas posições nas universidades,
mas também de organizações conhecidas como think tanks
(Cocket, 1993; Stedman Jones, 2007). Ao final da década de
1960, passaram a ser fundados advocacy think tanks (Weaver,

127
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

1989), cujo objetivo principal era atuar politicamente para


influenciar o “clima de opinião” e facilitar a proposição e/ou
a adoção de políticas liberalizantes (Rich, 2005). Passados
poucos anos do surgimento de tais organizações, começaram
a ser implementadas políticas de inspiração neoliberal para
combater a inflação durante o governo democrata de Jimmy
Carter (1977-1981), nos EUA, e do governo trabalhista de
James Callaghan (1976-1979), na Inglaterra; na década de
1980, os governos de Augusto Pinochet, Ronald Reagan e
Margareth Thatcher se tornaram modelares no que tange à
adoção mais ampla do neoliberalismo. Os primeiros foram
influenciados diretamente pela Escola de Chicago, capitanea­
da por Milton Friedman, (Valdés, 1995; Doherty, 2007), e o
último por F. Von Hayek e pelo Institute of Economic Affairs,
fundado em 1955 sob orientação do economista austríaco
(Desai, 1994; Cocket, 1993).
Existe um relativo consenso na literatura de que a difusão
e a implementação de reformas neoliberais foram adotadas
nos mais diversos países contra a vontade da maior parte das
populações e até mesmo de seus políticos. Em economias
emergentes, com exceção da adesão precoce em contextos
ditatoriais no Chile e na Argentina, as reformas teriam sido
implementadas principalmente por conta de interações entre
pressões de órgãos internacionais e dinâmicas políticas e
econômicas internas (Melo; Costa, 1995; Cruz, 2007), do
pragmatismo de lideranças populistas (Weyland, 2003), e
da existência de graves crises cuja solução seria a adoção de
uma “terapia de choque”, como descreve a jornalista Naomi­
Klein em A doutrina do choque, publicado em 2007. Em eco-
nomias centrais, como os Estados Unidos e a Inglaterra, a
adesão ao neoliberalismo teria sido sustentada ideologica-

128
Camila Rocha

mente por conta de sua combinação com outros elementos


ideológicos relacionados, por exemplo, ao nacionalismo,
considerando a ameaça de inimigos internos e externos, e
ao conservadorismo moral (Hall, 1988), amálgama que foi
nomeado por David Harvey (2008) e outros intelectuais
como “neoconservadorismo”.
Ainda na década de 1980, o termo neoliberalismo, que
até então era relativamente neutro, acabou ganhando uma
carga normativa negativa ao se tornar um slogan anticapita-
lista amplamente conhecido, tendo em vista o surgimento
de movimentos sociais e atores que contestavam as reformas
neoliberais (Boas; Morse, 2009). Isso acabou reforçando
uma tendência já existente de que tecnocracias, intelectuais e
demais atores defendessem a adoção de reformas neoliberais
com base em apelos de caráter técnico em detrimento de
considerações de ordem filosófica ou moral, o que aparece de
modo exemplar na atuação dos Chicago Boys no Chile (Val-
dés, 1995; Fischer, 2010), e procurassem se autodenominar
simplesmente como “liberais”, como o fizeram Friedman
e Hayek (Doherty, 2007). No entanto, tal autodenomina-
ção, para além de ser uma tentativa de contornar o rótulo
pejorativo de neoliberal, também pode apontar para uma
intenção de sinalizar uma vinculação a uma rede de mili-
tância internacional muito mais ampla e que compreende
diversas tendências que se percebem como uma continuação
da tradição liberal clássica.
Essa militância internacional, de acordo com Bryan
Doherty (2007), abrangeria anarco-capitalistas, objetivistas
– corrente inspirada na obra da romancista Ayn Rand, minar-
quistas, que defendem que o Estado deva administrar apenas
setores considerados “essenciais” –, liberais clássicos e, claro,

129
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

os neoliberais, os quais são percebidos pela própria militância


como estando vinculados principalmente à Escola de Chica-
go.3 Todas essas correntes, a despeito de eventuais disputas
ideológicas internas, se compreendem como continuidade
de uma mesma tradição que remontaria ao liberalismo do
século XIX e às obras de autores como Frédéric Bastiat,
Herbert Spencer, Stuart Mill, Alexis de Tocqueville, John
Locke, entre outros. Contudo, as vertentes mais radicais,
anarco-capitalistas, objetivistas e minarquistas, acabaram
permanecendo muito menos conhecidas do grande público
em comparação com o neoliberalismo, que conquistou uma
ampla exposição a partir dos anos 1980, tanto que autores
como Pierre Dardot e Christian Laval (2016), ao contrário
de Doherty, compreendem o neoliberalismo como uma
vertente à parte das correntes radicais, apontando que não
seria possível discriminá-las apenas com base no grau de
radicalidade das ideias propostas.
Neste artigo, adoto uma posição mais próxima àquela de-
fendida por Doherty ao considerar que a diferença principal
entre o neoliberalismo e as vertentes mais radicais do libe-
ralismo recairia na forma de justificar a adoção de políticas
públicas liberalizantes no âmbito do debate público. Assim,
ainda que os/as neoliberais possam eventualmente partir de
bases morais e filosóficas comuns àquelas dos anarco-capi-
talistas, minarquistas e objetivistas, a defesa de suas pautas
é feita com base em argumentos de eficiência econômica
amparados em um conhecimento de tipo técnico-científico,

3
Aqui as ideias, pessoas e organizações relacionadas a essa rede internacional
de militância serão adjetivadas como pró-mercado de forma mais genérica,
ou como liberais/neoliberais e ultraliberais/libertarianos quando for preciso
destacar suas diferenças internas.

130
Camila Rocha

ao contrário do que fazem os membros das vertentes mais


radicais, que se valem de princípios de ordem moral para
sustentar a superioridade da lógica de livre-mercado.
A defesa explícita e radical da primazia da lógica de livre-
-mercado a partir de valores morais era praticamente ine-
xistente no debate público brasileiro até pouco tempo atrás.
Prova disso é que as principais obras de autores e autoras que
realizam tal defesa não estavam disponíveis em livrarias e
bibliotecas universitárias do país e nem mesmo haviam sido
traduzidas para o português até a década de 1990, época em
que as discussões a respeito das reformas neoliberais já se
encontravam razoavelmente avançadas no debate público.
Foi apenas a partir dos anos 2000 que argumentos em prol
da defesa moral da liberdade de mercado passaram a circular
em fóruns e sites de internet no Brasil, e, entre os anos 2005 e
2006, em comunidades especializadas criadas na rede social
Orkut, dinâmica que considerarei aqui como o surgimento
de um contrapúblico.
O conceito de contrapúblico foi desenvolvido original-
mente para apontar problemas na teorização feita por Jürgen
Habermas a respeito do processo de constituição da esfera
pública e de seus potenciais democráticos. Segundo seus/
suas críticos/as, o argumento de Habermas estaria baseado
em uma descrição equivocada de um público unificado e
de normas discursivas estreitas e excludentes que descon-
sideraria a existência de públicos alternativos formados
por grupos oprimidos, denominados de contrapúblicos
(Thimsen, 2017). No entanto, esse conceito logo acabou se
tornando indistinto do que Nancy Fraser (1990) denominou
por contrapúblicos subalternos: arenas discursivas paralelas
nas quais membros de grupos que partilham um status su-

131
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

bordinado na estrutura social inventam e circulam discursos


de oposição, sem que fosse realizada uma teorização mais
elaborada acerca daquilo que de fato seria característico dos
contrapúblicos em comparação aos públicos4 para além da
condição subalterna5 de seus membros (Warner, 2002).
Tendo isso em vista, tentativas de refinar teoricamente o con-
ceito de contrapúblico passaram a ser realizadas apostando
em definições alternativas de contrapublicidade a partir de
referenciais tecnológicos, performativos e linguísticos, mas
a mudança mais significativa na redefinição dessa categoria
foi o abandono da ideia de que o atributo central dos con-
trapúblicos seria a condição subalterna de seus membros
(Thimsen, 2017), e nesse sentido se destaca a contribuição
de Michael Warner (2002).
De acordo com a definição proposta por Warner (2002),
um contrapúblico seria necessariamente imbuído de uma
consciência a respeito de seu status subordinado frente a um

4
A referência a “públicos” ou “públicos dominantes” no plural sinaliza o
entendimento de que em vez de pensar em uma esfera pública unificada
seria mais adequado falar de uma multiplicidade de esferas públicas – mais
ou menos locais, mais ou menos integradas, mais ou menos oficiais e
institucionalizadas, e mais ou menos digitalizadas. Inclusive, é importante
ressaltar que a digitalização não deve ser entendida como sendo um pro-
cesso uniforme e unidirecional que está transformando uma esfera pública
anteriormente não digital, mas sim como um processo complexo e multi-
facetado que transforma e gera uma variedade de públicos diferentes que
estão interconectados e se cruzam de maneiras que complicam a divisão
digital versus não digital (Celikates, 2015).
5
O termo subalterno, oriundo do projeto “Estudos Subalternos” desenvol-
vido por intelectuais indianos/as influenciados/as pelos escritos de Antonio
Gramsci­, passou posteriormente a significar a pertença a um grupo que pos-
sui um status subordinado na estrutura social, o que implica em sua exclusão
junto à comunidade política e na falta de acesso a direitos institucionalizados
(Thomas, 2018). Nancy Fraser em seu artigo escrito em 1990, por exemplo,
se remete a mulheres, trabalhadores/as, gays, lésbicas e pessoas não brancas,
mas atualmente outros grupos poderiam ser incluídos nesse rol.

132
Camila Rocha

horizonte cultural dominante. Seus membros, a despeito de


serem subalternos ou não, partilhariam identidades, interesses
e discursos tão conflitivos com o horizonte cultural domi-
nante que correriam o risco de enfrentarem reações hostis
caso fossem expressos sem reservas em públicos dominantes,
cujos discursos e modos de vida seriam tidos irrefletidamente
como corretos, normais e universais. Dessa forma, poderiam
então ser considerados como contrapúblicos fundamentalistas
cristãos/cristãs e os apoiadores e apoiadoras de Donald Trump
nos Estados Unidos (Thimsen, 2017), e, como pretendo ar-
gumentar a seguir, os/as ultraliberais no caso do Brasil.
Para marcar sua diferença com a defesa do neoliberalis-
mo, os/as brasileiros/as que defendem a primazia da lógica
de mercado de modo radical com base em argumentos
morais passaram a se autodenominar como “libertários/
as”, uma tradução aproximada do termo inglês libertarians.
Como historicamente o termo libertário costuma ser asso-
ciado ao anarquismo de matriz socialista, o novo sentido
“não pegou” e o adjetivo acabou ficando restrito a um
uso interno da própria militância. Porém, à medida que o
contrapúblico formado na internet começava a ficar mais
conhecido e disputar seu espaço junto a públicos dominan-
tes, seus membros e suas ideias, normalmente relacionadas
à Escola Austríaca de Economia e à obra de Ludwig Von
Mises, passaram a ser qualificados como “ultraliberais”. A
despeito de seu caráter genérico, o termo acabou servindo
bem ao propósito de ressaltar a radicalidade dos/das ultra-
liberais frente ao neoliberalismo,6 e até mesmo destacados
6
O uso precoce do termo ultraliberal para descrever o fenômeno analisado
aqui pode ser verificado em uma reportagem de O Estado de S. Paulo de
2009: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,partido-nascido-no-

133
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

membros do próprio contrapúblico acabaram aprovando a


nova nomeação,7 daí minha opção em utilizá-lo aqui para
nomear o contrapúblico surgido nos anos 2000.
Meu primeiro contato com membros do contrapúblico
ultraliberal ocorreu no segundo semestre de 2015, quando
passei a frequentar o Instituto Liberal no Rio de Janeiro com
o intuito de fazer uma pesquisa documental para minha tese
de doutorado sobre a atuação de think tanks pró-mercado bra-
sileiros. Durante os anos 1980 e 1990 no Brasil, haviam sido
fundados vários think tanks que procuravam traduzir e/ou
divulgar para o grande público as principais obras de autores
e autoras alinhados à militância pró-mercado internacional,
no entanto, o alcance da divulgação de tais obras era restrito
a uma pequena elite formada principalmente por acadêmicos
e empresários. Após a eleição de Fernando Henrique Car-
doso, as atividades dos institutos tiveram seu raio de alcance
ainda mais reduzido, pois a maior parte de seus financiadores
decidiu que não havia mais necessidade de colaborar com a

-orkut-prega-o-ultraliberalismo,405536>. (acessado em: 16 de maio de


2018). Posteriormente, passou a ser utilizado por comentaristas <https://
veja.abril.com.br/blog/reinaldo/uma-visao-ainda-mais-liberal>. (acessa-
do em: 16 de maio de 2018); <https://www.eco.unicamp.br/index.php/
noticias/344-fragmentacao-da-direita-economica-entre-ultraliberais-e-
-neoliberais> (acessado em: 16 de maio de 2018), críticos à direita, <http://
www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2017/10/1928937-
-estado-dos-liberais-bolsonaristas-deve-ser-a-um-so-tempo-minimo-e-
-maximo.shtml> (acessado em: 16 de maio de 2018); e à esquerda, <https://
oglobo.globo.com/brasil/nao-sou-favoravel-posicoes-ultraliberais-diz-
-barbosa-22629071> (acessado em: 16 de maio de 2018).
7
Recentemente, o termo passou a ser assumido por membros do contrapú-
blico internamente, <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2612>
(acessado em: 16 de maio de 2018), e por seus aliados em públicos dominan-
tes, <https://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/o-8220-capitalismo-
-ultraliberal-8221-e-culpado-pela-miseria-do-pais-existe-ultraliberalismo-
-no-brasil/> (acessado em: 16 de maio de 2018).

134
Camila Rocha

difusão de um ideário pró-mercado, uma vez que o governo


já havia adotado em grande medida tal orientação (Rocha,
2017). A queda nas doações fez com que o principal think
tank pró-mercado da época, o Instituto Liberal, fundado em
1983, experimentasse um declínio acentuado. No início dos
anos 2000, o Instituto já havia encerrado as atividades de
sete de suas oito filiais espalhadas pelo Brasil,8 e em 2015 sua
sede já havia sido transferida para um pequeno conjunto de
salas alugado em um prédio localizado no centro da cidade
do Rio de Janeiro, entre um cinema antigo e uma loja de
artigos eróticos, e que, ironicamente, abrigava uma série de
sindicatos dos mais variados.
Por conta do contato diário que tive com membros do
Instituto Liberal durante quatro meses, pude perceber que
além de serem militantes muito engajados/as e que me
lembravam muito os/as militantes de esquerda que conheci
durante a graduação em Ciências Sociais, todos partilhavam
exatamente a percepção de um status subordinado em relação
a um horizonte cultural dominante da qual fala Michael
Warner. Era frequente o sentimento de marginalidade em
relação a públicos dominantes, especialmente nos acadêmi-
cos, nos quais os limites do debate à direita eram percebidos
como sendo a defesa de um neoliberalismo de terceira via
peessedebista, sinônimo de “esquerdismo” na visão dos
membros do Instituto.
Com o intuito de compreender como se deu o processo
de formação desse contrapúblico ultraliberal e a estrutura-
ção de uma militância de base que atua em prol da defesa

8
A oitava, no Rio Grande do Sul, permaneceu em atividade, porém mudou
seu nome para Instituto Liberdade.

135
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

radical do livre-mercado, resolvi passar a realizar entrevistas


em profundidade com militantes e lideranças por meio da
técnica bola de neve procurando englobar pessoas de diversas
regiões do Brasil que circulassem ao redor das organizações
tidas como mais importantes pelos/as próprios/as militantes.9
Além disso, também reuni informações existentes em redes
sociais que possibilitassem confirmar o processo de criação
de um contrapúblico ultraliberal na internet e compreender
como seus/suas participantes obtinham suporte financeiro e
organizacional junto a think tanks e redes de contato previa-
mente existentes dando continuidade a iniciativas passadas
de difusão do ideário pró-mercado no Brasil empreendidas
por intelectuais e empresários.
A realização de entrevistas em profundidade foi funda-
mental para compreender como os/as militantes e lideranças
se percebiam parte de uma mesma coletividade, organizada
nos anos 2000 na forma de um contrapúblico, construíam
laços e uma identidade coletiva em torno da defesa radical
do livre-mercado e partilhavam um sentimento de perten-
cimento a uma mesma coletividade que acabou por gerar a
coesão necessária para que passassem a se organizar de modo
institucionalizado e a promover ações coletivas que acabaram
fazendo com que a militância liberal desempenhasse um
papel crucial na organização dos primeiros protestos pró-
-impeachment e no surgimento de uma nova direita no país.

9
Entre 2015 e 2018, foram realizadas, por mim, mais de 20 entrevistas em
profundidade com militantes e lideranças diretamente ligados à dinâmica
política ensejada a partir da formação do contrapúblico ultraliberal, porém
figuram no Anexo 1 apenas os/as entrevistados/as que são efetivamente
mencionados/as neste artigo.

136
Camila Rocha

A formação de um contrapúblico ultraliberal


A formação de um contrapúblico ultraliberal no Brasil
está relacionada ao primeiro fator apontado na introdução
deste capítulo: a presença precoce de jovens universitários
e profissionais liberais das classes média e alta em fóruns e
redes sociais digitais que possuíam interesse pelo liberalismo
econômico. No início dos anos 2000, existiam na internet
alguns poucos blogs e listas de e-mails nos quais circulavam
argumentos em defesa da maior liberdade de mercado,
porém, eram, até então, iniciativas esparsas e que possuíam
um alcance bastante estreito por conta das dificuldades en-
frentadas pelas organizações pró-mercado existentes no país
na época.10 Tal cenário começou a mudar a partir de 2004
com a criação da rede social Orkut. Voltado inicialmente
para o público estadunidense, o Orkut se popularizou tão
rapidamente entre usuários/as brasileiros/as que, em janeiro
de 2006, cerca de 75% do total dos/das usuários/as eram do
Brasil (Fragoso, 2006), sinalizando um engajamento precoce
dos/das brasileiros/as em comparação a pessoas de outras
nacionalidades em redes sociais desse tipo. No entanto,
o número recorde de brasileiros/as não significava que o
acesso ao Orkut fosse homogêneo junto à população como
um todo, ao contrário, entre os anos 2005 e 2007, auge do
Orkut no Brasil, o acesso à internet no país era bastante
restrito a uma elite formada sobretudo por adolescentes e
jovens adultos com alta escolaridade, oriundos das classes A
10
No Anexo II, é possível verificar as organizações civis pró-mercado exis-
tentes no Brasil desde a fundação do Instituto Liberal em 1983 até hoje.
Essa lista foi elaborada levando em consideração documentos históricos
e demais informações recolhidas junto ao Instituto Liberal, ao Instituto
Atlântico, ao Instituto de Estudos Empresariais e à Rede Liberdade, bem
como às próprias entrevistas realizadas por mim.

137
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

e B, localizados principalmente nas regiões Sul e Sudeste,


que possuíam computadores em casa e/ou frequentavam
centros de acesso públicos pagos (lan houses e internet cafés),11
e utilizavam a rede principalmente para se comunicar, buscar
informações e como fonte de lazer, atividades que justamente
eram proporcionadas de forma unificada pelo Orkut.
No Orkut era possível a criação de comunidades sobre
assuntos dos mais diversos em que os/as internautas criavam
tópicos de conversação por meio dos quais interagiam entre
si. A ferramenta logo foi apropriada por jovens universitários/as
e profissionais liberais entusiastas do liberalismo econômico,
alguns dos quais já possuíam blogs, participavam de listas de
e-mails, frequentavam fóruns de discussão na internet, tradu-
ziam textos do inglês e procuravam encontrar outras pessoas
que pensassem de modo parecido por meio da criação e/ou
participação em comunidades variadas:
Em 2005 eu estava no segundo semestre de economia, e
tinha uma disciplina chamada ‘Evolução dos Movimentos
Sociais’, que era basicamente Marxismo I e Marxismo II, aí
eu peguei um seminário de neoliberalismo pra fazer, e na bi-
bliografia complementar tinha um livro do Hayek, Caminho
da Servidão, e aquilo ali mudou o meu rumo, e eu comecei
a querer me aprofundar um pouco mais. Aí, na época do
Orkut, eu comecei a entrar em comunidades sobre libera-
lismo e (ficava) trocando ideia com a galera, o povo trocava
material... Tinha muita gente, na época, que estava traduzin-
do coisas que não existiam no Brasil, muitos artigos. E aí eu
comecei a trocar informações e leituras no Orkut. E nesse
grupinho do Orkut, nessas comunidades, eu acabei entrando

11
Estas e outras informações mais detalhadas a respeito do acesso à internet no
Brasil neste período foram publicadas pelo Comitê Gestor da internet no Brasil
e podem ser consultadas em: <http://www.cetic.br/media/docs/publicacoes/10/
pal2007ofid-11.pdf>.

138
Camila Rocha

em contato com alguns meninos de Fortaleza, aí a gente


montou um grupo de estudos (na Universidade Federal do
Ceará) em 2008, o Dragão do Mar. (Cibele Bastos, Ceará)

Assim como Cibele Bastos, outros integrantes das comu-


nidades de Orkut eram estudantes universitários que haviam
tido um contato inicial com o liberalismo econômico por
meio de cursos oferecidos em suas respectivas universidades,
mas, ao desejarem se aprofundar no tema, não encontravam
textos traduzidos do inglês para o português, como também
aponta o paulistano Filipe Celeti:
No último ano de faculdade eu comecei a descobrir esse uni-
verso novo que, de certo modo, não dava as caras aqui no Brasil.
A maioria dos textos eram em inglês, então era difícil de ter
acesso à informação. E aquele momento (2005-2006) era um
momento que, pelo interesse das pessoas, começaram a ocor-
rer vários movimentos de tradução de obra por conta própria,
várias pessoas montaram blogs para traduzir textos pequenos,
artigos. Então fervilhava um pouco essa necessidade de divulgar
aquelas ideias, que a gente não tinha em língua portuguesa, e
foi isso que aglutinou as pessoas, ‘olha, vamos divulgar essas
ideias, que a gente precisa disso’, ainda mais com o Orkut, você
digitava o nome do autor que você encontrou, e você tinha co-
munidade lá com vinte, trinta pessoas, a maioria não eram de
pessoas do Brasil, (mas) os brasileiros foram tentando invadir
esses espaços também pra poder dialogar. Então o Orkut, com
as comunidades, possibilitou o encontro das pessoas, a troca de
informações e se promoveu um grande debate também sobre
as ideias. (Filipe Celeti, São Paulo)

Também era comum entre os frequentadores do Orkut


o desejo de participar de atividades relacionadas à política
estudantil, e no final dos anos 2000 estes passaram a inte-
grar chapas para disputar centros acadêmicos e diretórios
estudantis em suas respectivas universidades, como indica

139
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

Lourival de Souza, na época estudante da Universidade


Federal do Maranhão:
O Orkut começou a crescer, nessa época você começa a
conhecer a turminha das antigas, as comunidades do Olavo
de Carvalho, comunidade Liberalismo. Eu não cheguei nem
a participar da comunidade Olavo de Carvalho, eu participei
da Comunidade Liberalismo, a primeira, eu sou raiz. Mas no
Orkut eu não discutia tanto política porque eu achava muito
enfadonho e como sou meio à moda antiga – eu preferia nos
corredores, olho no olho, falar com o pessoal – eu fui eleito
para o DCE da Universidade Federal do Maranhão em 2010.
(Lourival de Souza, Maranhão)

Ainda que os jovens universitários formassem a maior


parte dos frequentadores das comunidades de Orkut, exis-
tiam também profissionais liberais que eram entusiastas
das discussões ali existentes e que, anos depois, passaram
a escrever colunas para jornais e revistas e publicar livros
sobre o assunto. Nesse sentido, é bastante ilustrativo o caso
do economista Rodrigo Constantino:
Eu criava uns grupos de e-mail mesmo e mandava polêmi-
cas ou coisas que eu queria combater que eu tinha lido no
jornal. Então eu tinha essa necessidade de ficar debatendo,
mas não tinha muito feedback dos meus amigos. E aí, quando
eu descobri o Orkut e essas comunidades onde todo mundo
passava o dia debatendo, para mim isso foi uma mão na roda,
e realmente tinha debates intermináveis lá. Foi uma época
marcante. E eu adorava esse bate-boca, essa polêmica toda,
eu adorava. E ao mesmo tempo, isso ia me treinando em
termos de debate. Foi um aprendizado de vida mesmo no
Orkut, eu tinha tesão em debater, eu tinha tesão em defender
as ideias que eu acreditava, que era o liberalismo, e eu fui
encontrando eco, eu fui encontrando gente disposta a deba-
ter, gente disposta a publicar o que eu escrevi, e aí foi indo,
uma bola de neve. (Rodrigo Constantino, Rio de Janeiro)

140
Camila Rocha

A formação de grupos de estudo universitários e de cha-


pas políticas para disputar centros e diretórios acadêmicos foi
ganhando uma sustentabilidade maior à medida que novas
organizações, mais conectadas com o tipo de engajamento
que vinha surgindo no Orkut, foram sendo fundadas. Hé-
lio Beltrão e Rodrigo Constantino, ativos participantes dos
debates que ocorriam nas comunidades do Orkut e que já
possuíam contato com personagens importantes da rede de
organizações pró-mercado previamente existente,12 partici-
param da fundação do Instituto Millenium em 2005.13 No
entanto, o Instituto Millenium, assim como as organizações
civis que haviam sido fundadas com propósito similar no
passado, parecia não atender os anseios das pessoas que
frequentavam as comunidades do Orkut, afinal, nas pala-
vras do carioca Bernardo Santoro, outro ativo frequentador
dos debates existentes na rede, “[...] a gente foi discutindo
12
Hélio Beltrão é filho do ex-ministro de mesmo nome que costumava
frequentar os círculos formados em torno do Instituto Liberal do Rio
de Janeiro, como atestou em entrevista Arthur Chagas Diniz, que fora
vice-presidente do Instituto por vinte anos. Já Constantino trabalhara no
mercado financeiro sob a chefia de Paulo Guedes, economista que obteve
seu PhD em economia na Universidade de Chicago e que nos anos 1990
redigiu em colaboração com outros colegas, entre os quais Paulo Rabello
de Castro, fundador do Instituto Atlântico, um programa de governo para
o Partido da Frente Liberal, atual Democratas, e que se tornou ministro da
economia do governo Bolsonaro (2019- ).
13
Inicialmente pensado para ser uma filial do Instituto de Estudos Empre-
sariais, o Instituto Millenium foi fundado por um grupo de acadêmicos,
executivos e profissionais liberais, entre os quais estavam Denis Rosenfield,
Patrícia Carlos de Andrade, Gustavo Franco, Paulo Guedes, Hélio Beltrão
e Rodrigo Constantino, que se preocupavam em difundir o liberalismo
econômico para públicos mais amplos com o auxílio de grandes veículos
de mídia. Batizada em 2005 de Instituto de Estudos da Realidade Nacional,
a organização foi oficialmente lançada em 2006, no Fórum da Liberdade,
com o nome de Instituto Millenium e contando com o financiamento de
vários grupos empresariais, como o Grupo Abril, Organizações Globo,
Grupo Ultra, Grupo Gerdau, Grupo Évora, entre outros (Silveira, 2013).

141
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

e alguém virou e rapidamente viu que todo mundo ali era


muito radical, todo mundo ali era mais libertário do que
liberal propriamente dito”.
Era justamente essa radicalidade que passou a fazer com
que as pessoas que frequentavam as comunidades do Orkut,
ao não encontrarem representatividade em públicos domi-
nantes, passassem a formar um contrapúblico ultraliberal, o
qual começou a tomar corpo a partir do esforço empreen­
dido por seus membros para fundar novas organizações
que pudessem melhor representá-los. Para Hélio Beltrão,
era necessário haver um horizonte utópico para que fosse
possível conquistar mais pessoas para as causas que defendia,
e, nesse sentido, a ideia de que a adoção da lógica de mer-
cado é sempre a melhor solução para quaisquer problemas
sociais ou econômicos porque é moralmente superior seria
muito mais simples e facilmente compreendida por qualquer
pessoa do que as discussões excessivamente técnicas, e nem
sempre coerentes, realizadas por intelectuais e tecnocratas
neoliberais. Imbuído de tal propósito, no dia 2 de junho de
2006, Beltrão criou uma das principais comunidades para a
discussão do liberalismo econômico no Orkut, a comuni-
dade “Liberalismo (verdadeiro)”, com a intenção de buscar
pessoas para fundar um novo think tank inspirado no Mises
Institute estadunidense.14 Em 2007, apenas um ano depois
da criação da comunidade virtual, com o apoio dos irmãos

14
Fundado em 1982 por Llewellyn H. Rockwell Jr., com o apoio de Margit
von Mises, Murray N. Rothbard, Henry Hazlitt e Ron Paul, o Mises Ins-
titute defende uma ordem baseada na propriedade privada e na economia
capitalista de livre-mercado que rejeita a tributação, a degradação monetária
e o monopólio estatal coercivo dos serviços de proteção. Para mais infor-
mações, ver <https://mises.org/about-mises/what-is-the-mises-Institute>.

142
Camila Rocha

Cristiano e Fernando Chiocca,15 nasceu o Instituto Mises


Brasil (IMB), o primeiro think tank ultraliberal do país que
passou a ser presidido por Hélio Beltrão. Em seus primeiros
anos, o IMB não possuía sede, nem funcionários/as con-
tratados/as, era apenas uma página na internet alimentada
pela avidez dos/das frequentadores/as das comunidades do
Orkut em propagar suas ideias para públicos mais amplos, o
que era excelente na visão de Beltrão, pois evitaria o risco da
organização se tornar um cabide de empregos para pessoas
que não acreditavam de fato nas causas defendidas.
De acordo com o fundador e presidente do Instituto Mi-
ses Brasil, existiriam duas grandes correntes ideológicas que
atualmente disputariam a hegemonia na sociedade brasileira:
a social-democracia e o neoliberalismo. A primeira expres-
saria os posicionamentos de economistas como Luíz Carlos
Bresser-Pereira e Luiz Gonzaga Belluzzo, que defenderiam
políticas como a existência de empresas estatais diversas, políti­
ca industrializante, imposição de tarifas de importação, política
cambiais ativas, bancos estatais como o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco
do Brasil e Caixa Econômica Federal, eleição de “campeões
nacionais”, aposentadoria pública, seguro-desemprego, leis
trabalhistas e políticas de distribuição de renda. Já a segunda
seria defendida por economistas como Marcos Lisboa, Armí-
nio Fraga, Pérsio Arida e Samuel Pessoa.
O ultraliberalismo se diferenciaria do neoliberalismo por
defender a abolição de uma série de políticas e instituições

15
Passados alguns anos da fundação do IMB, os irmãos Chiocca deixaram
de fazer parte do Instituto principalmente por motivos ideológicos e estra-
tégicos e decidiram fundar sua própria organização em 2015, o Instituto
Rothbard.

143
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

advogadas pelos/as neoliberais, como o monopólio da moe­


da, o Banco Central, uma política monetária ativa, órgãos
de defesa da concorrência (antitruste), agências reguladoras
estatais, investimentos estatais em infraestrutura essencial,
como estradas e portos, educação e saúde básicas públicas,
políticas de renda mínima, imposto regressivo, monopólio
do espectro magnético e de rios e lagos, harmonização das
leis e impostos entre os Estados. Além disso, os/as ultrali-
berais não se preocupam apenas com questões econômicas,
mas também costumam defender ativamente pautas liberali-
zantes no plano dos costumes, como a liberação do porte de
armas para cidadãos comuns, do aborto, união homoafetiva,
de substâncias ilícitas como a maconha, patentes e direitos
autorais, entre outras, porém, sem a existência de qualquer
regulação estatal.16
Ao mesmo tempo em que o Instituto Mises Brasil estava
sendo criado, outra iniciativa começava a tomar corpo nas
comunidades do Orkut, a formação de um partido ultralibe-
ral brasileiro inspirado no Libertarian Party estadunidense,17
cujo nome, Líber, remetia à abreviação de “libertário”:
Partido Libertário Brasileiro – Ajudem a fundar
Alex – 12 de fevereiro de 2007
Para aqueles que não sabem, está em andamento o projeto
de criação de um partido político que nos represente. A pri-

16
Nesse sentido é importante lembrar que existiam discordâncias entre as
pessoas que circulavam no contrapúblico ultraliberal, pois havia quem se
autodefinisse como libertários/as de esquerda, conhecidos/as como left-libs,
e pessoas que já eram e/ou se tornaram posteriormente conservadoras em
termos de costumes, algumas das quais passaram a defender a adoção da
monarquia no Brasil.
17
Fundado em 1971 por David Nolan no Estado do Colorado, EUA, o
Libertarian Party defende uma versão radical de liberalismo econômico, o
libertarianismo.

144
Camila Rocha

meira etapa para a fundação dessa nova agremiação política


é conseguir 101 fundadores em 9 estados. Até o momento
em que esta mensagem foi postada, estão faltando 35 no-
mes. Pare de reclamar dos esquerdistas e parta para a ação!
Participe! (Postagem retirada da comunidade do Orkut
“Liberalismo [verdadeiro]”)

Em 2009, o Líber possuía um site oficial, um programa,


contas no Twitter e no Facebook e 500 membros que pa-
gavam uma anuidade de 100 reais para o partido, porém,
enfrentava imensas dificuldades para reunir as quinhentas
mil assinaturas necessárias para sua oficialização, como bem
aponta uma de suas integrantes, Cibele Bastos:
Nesse grupinho do Orkut, nessas comunidades, eu acabei
entrando em contato com alguns meninos de Fortaleza, aí
a gente montou um grupo de estudos em 2008 e se juntou
mais uma pessoa, o Maris, que era mais ligado ao cunho
político. Ele participou da Fundação do Partido Libertário
e aí a gente começou a ser uma célula do Líber lá em For-
taleza. Eu lembro que a gente sempre tinha umas reuniões
estratégicas pra coletar assinatura pra oficialização do par-
tido. A gente passou de 2008 até 2012 naquele trabalho de
formiguinha, fazendo inscrição no Orkut, tentando captar
gente para os grupos de estudo. A gente não tinha dinheiro,
né, era um bando de estudante que fazia a coisa do próprio
bolso. (Cibele Bastos, Ceará)

Como o surgimento do Líber ocorreu a partir do Orkut e


seus membros eram, em sua maioria, estudantes universitários
e profissionais liberais que não possuíam os meios materiais
e a expertise necessários para fundar um partido, ainda que
existissem núcleos distribuídos por várias capitais do país, a
iniciativa não prosperou. Além disso, de acordo com o então
presidente do Líber, o mineiro Juliano Torres, que na época
era estudante de jornalismo e publicidade e se definia como

145
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

anarco-capitalista, a militância ainda não se sentia confortável


em atuar politicamente em outros partidos:
Alguns poucos tentaram entrar no DEM, mas ficaram menos
de um mês. Não tem liberdade. Seus estatutos são muito fe-
chados. Eles garantem o poder a certos grupos. O modelo dos
partidos é muito centralizado no diretório nacional. Nós po-
deríamos ser expulsos. Quando a gente defende alguma ideia
contrária ao programa do partido, a comissão de ética pode
expulsar. E eu creio que nos expulsariam. Os nossos meios
são moderados, mas os fins são radicais. (Juliano Torres em
entrevista para o Estado de S. Paulo em 20 de julho de 2009)18

A institucionalização do contrapúblico ultraliberal


A despeito da oficialização do Líber ter fracassado, o
grupo que orbitava em torno da tentativa de registrar o
partido teve uma importância fundamental para a des-
centralização e a capilarização da militância ultraliberal no
Brasil. As pessoas reunidas em torno do projeto do Líber
não só passaram a ter uma atuação muito ativa na internet
via canais de Youtube, nas redes sociais e em páginas dedi-
cadas à divulgação de suas ideias, agregando cada vez mais
gente para suas causas, mas também passaram a circular
e participar de organizações pró-mercado brasileiras mais
antigas, como o Instituto Liberal, o Instituto de Estudos
Empresariais e suas filiais, posteriormente nomeadas como
Instituto de Formação de Líderes,19 organizações estrangeiras

18
Disponível em <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,partido-
-nascido-no-orkut-prega-o-ultraliberalismo,405536>, (acessado em: 16
de maio de 2018).
19
Para mais informações sobre as organizações pró-mercado brasileiras que
foram fundadas nas décadas de 1980 e 1990, cf. Gross, 2002; Casimiro,
2011; Rocha, 2017.

146
Camila Rocha

como a Fundação Friedrich Naumann,20 a Foundation for


Economic Freedom, a Atlas Network e o Cato Institute,21
e pelo Fórum da Liberdade, evento anual organizado pelo
Instituto de Estudos Empresariais.
A preexistência de uma rede de think tanks liberais no
país que pudesse oferecer suportes organizacionais e finan-
ceiros à militância em formação foi fundamental para sua
institucionalização e continuidade. Foi por meio dessa rede
que a militância do Orkut, até então sem grande experiência
política prévia e sem recursos financeiros para além daqueles
dos próprios militantes, pôde realizar contatos com empre-
sários, organizações e lideranças estabelecidas há mais tempo
dentro e fora do Brasil que poderiam não apenas contribuir
financeiramente com as iniciativas propostas pelos militantes,
mas principalmente com sua formação por meio de cursos,
palestras, intercâmbios e demais programas de formação
patrocinados por think tanks liberais nacionais e estrangeiros.

20
Desde 1992 a Fundação Friedrich Naumann, organização alemã fundada
em 1958 para divulgar o liberalismo econômico, mantém um escritório
em São Paulo a partir do qual atua em conjunto com os principais think
tanks liberais brasileiros, como o Instituto Liberal, o Instituto de Estudos
Empresariais e o Instituto Millenium, promovendo e financiando atividades
para a difusão do ideário pró-mercado na sociedade civil. Ver em <http://
brasil.fnst.org/>.
21
As organizações Foundation For Economic Freedom, Atlas Network e
Cato Institute, ao lado de outras instituições similares, integram a rede
estadunidense ligada à militância libertariana internacional descrita por
Bryan Doherty. Atualmente o Cato atua em conjunto com a Atlas Network,
fundada em 1981 nos Estados Unidos com o objetivo de articular mais
de quatrocentos think tanks pró-mercado espalhados pelo mundo (Rocha,
2015), e figura como o oitavo think tank mais importante dos Estados Uni-
dos de acordo com o índice Global To Go Think Tanks 2014 desenvolvido
pela Universidade da Pensilvânia. A atuação dessas e outras organizações
é descrita de forma bastante detalhada no livro Radicals for Capitalism: a
freewheeling history of the modern American libertarian movement, publicado por
Doherty em 2007.

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“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

Nesse sentido, é particularmente ilustrativo o caso de


Bernardo Santoro, que foi responsável, em conjunto com
Rodrigo Constantino, pela reestruturação do Instituto Libe-
ral do Rio de Janeiro, e de Fábio Ostermann, que teve uma
atuação fundamental na estruturação de organizações-chave
para a militância ultraliberal como o Instituto Ordem Livre e
o Estudantes pela Liberdade (EPL), além de ter atuado junto
ao Instituto Liberdade e ao Instituto de Estudos Empresa-
riais, do qual atualmente é associado honorário:
Em 2012 eu fui convidado pra ser o diretor de relações insti-
tucionais do Instituto Liberal do Rio de Janeiro, o IL estava
morrendo e eu era um cara que conhecia todo mundo em
todo o Brasil do ponto de vista do mundo liberal. Eu co-
nhecia todo mundo do Instituto de Estudos Empresariais,
do Instituto de Formação de Líderes, da Fundação Friedrich
Naumann, das tentativas de partidos liberais em formação,
Partido Novo,22 Partido Federalista,23 Líber, eu era presidente
do Líber na época... Meu primeiro evento como presidente
foi um evento da Fundação Friedrich Naumann que reuniu
tudo o que era instituto liberal no Brasil pra gente bater um
papo, fazer um workshop de como levantar dinheiro e tal, e aí
eu fui como representante do Instituto Liberal e apresentei um

22
O Partido Novo, cuja principal liderança é João Amoêdo, ex-executivo
do mercado financeiro, foi fundado em fevereiro de 2011 e obteve seu
registro oficial em novembro de 2015. O partido defende uma plataforma
liberalizante baseada em uma maior autonomia e liberdade do indivíduo e
na redução das áreas de atuação do Estado. Para maiores informações, ver
<https://novo.org.br/partido/quem-somos/>.
23
Em 1996, Thomas Korontai, liderança do Movimento Federalista de
Curitiba, passou a envidar esforços para fundar o Partido Federalista, o
qual foi registrado em um cartório de títulos em 1999, mas ainda não foi
oficializado junto ao Tribunal Superior Eleitoral. O Partido Federalista tem
como objetivo principal “a redução das ingerências do Poder Central sobre
a vida das pessoas e sobre as estruturas autonômicas estaduais e municipais,
independentemente do regime ou do sistema de governo”. Para maiores
informações, ver <http://www.federalista.org.br/index.php>.

148
Camila Rocha

projeto de reestruturação do Instituto Liberal. Todo mundo


achou aquilo o máximo mas ninguém deu nenhum centavo.
Posteriormente eu apresentei aquele projeto pra empresários
locais do Rio de Janeiro, e inclusive pro Rodrigo Constantino,
ele gostou, depois teve outro evento liberal no Rio Grande do
Sul e ele levou o projeto, conversou com mais umas pessoas
e ele virou pra mim e falou: ‘Bernardo, o projeto tá aprovado,
temos verba’. Aí eu larguei o meu emprego, eu era concursado
como assessor jurídico da Agência de Fomento do Estado
do Rio de Janeiro, e fui pro Instituto. [Depois] um grande
amigo meu, que também conhecia todo mundo, passou a ser
o novo diretor de relações institucionais, o Fábio Ostermann.
(Bernardo Santoro, Rio de Janeiro)
Eu sempre ficava na internet procurando coisas, e em 2007
surgiu o site do Ordem Livre, que era o programa de difusão
das ideias liberais em língua portuguesa do Cato. Daí eu
fui, na metade do ano 2008, pra dois seminários, um do
Cato e outro da FEE, Foundation for Economic Education,
e conheci um pessoal que tava começando a se organizar lá
nos EUA que se intitulavam Students for Liberty. Na minha
volta, eu tive um contato mais aprofundado com o Students
for Liberty e fui estagiário do Ordem Livre por dois meses
e meio num programa de estágio chamado Koch Summer
Fellow Program.24 No final de 2009 foram criadas duas

24
A atuação dos libertarianos, David e Charles G. Koch, bilionários do ramo
de petróleo, junto às principais organizações pró-mercado dos Estados Uni-
dos e ao Partido Republicano é pública e notória. (Doherty, 2007; Moraes,
2015; Skocpol; Hertel-Fernandez, 2016). Charles Koch financiou e ajudou
a estruturar diversos think tanks pró-mercado em seu país principalmente
durante os anos 1970 e 1980, entre os quais o Cato Institute, criado em 1977
em conjunto com o ativista libertariano Ed Crane e que foi integrado por
Murray Rothbard, conhecido intelectual libertariano, e Sam Husbands Jr.,
empresário que participou do governo Reagan. Atualmente, o Cato atua
em conjunto com a Atlas Network, fundada em 1981 nos Estados Unidos
com o objetivo de articular mais de quatrocentos think tanks pró-mercado
espalhados pelo mundo (Rocha, 2015), e figura como o oitavo think tank
mais importante dos Estados Unidos de acordo com o índice Global To
Go Think Tanks 2014 desenvolvido pela Universidade da Pensilvânia. Para
maiores informações sobre a atuação dos irmãos Koch, cf. Doherty (2007).

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e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

organizações, uma mais ideológica, que seria o Estudantes


pela Liberdade (EPL), e outra mais acadêmica, que seria
o núcleo em extensão de Economia, Direito e Políticas
Públicas (Nedep), que existe até hoje (na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul). Em janeiro de 2012 eu fui
participar do primeiro seminário de verão do Ordem Livre.
Nesse seminário os participantes foram divididos em grupos
temáticos, um grupo ia falar sobre formas de desenvolver o
pensamento liberal na academia, outro sobre como desen-
volver na imprensa, outro na política por meio dos partidos
políticos, e outro ativismo estudantil. Eu fui para o grupo de
ativismo estudantil, junto comigo estavam o Juliano Torres e
o Pedro Menezes, e eu falei ‘o EPL é uma ideia legal, só que
precisa de gente pra tocar, vocês estão dispostos a tocar?’ e o
Juliano, que tinha recém-saído da presidência do Líber, re-
solveu liderar isso aí e eu fiquei como presidente do conselho
consultivo. Na época eu estava no final da minha diretoria
do IEE e acabei sendo convidado pelo Ordem Livre pra ser
o gerente de operações aqui no Brasil. (Fábio Osterman,
Rio Grande do Sul)

O Instituto Ordem Livre, criado oficialmente em 2009,


abrigava um projeto chamado “Liberdade na Estrada”, que
contava com financiamento do Grupo Localiza,25 e promo-
via palestras com intelectuais em universidades espalhadas
por diversas localidades do Brasil, sendo que em suas cinco
primeiras edições esteve presente em quase 50 universidades
distribuídas em mais de 30 cidades diferentes.
Na mesma época, com a fundação do EPL, organização
que passou a ser presidida pelo então presidente do Líber, Ju-

25
O mineiro Salim Mattar, proprietário do Grupo Localiza, e a família Ling,
proprietária da Holding Évora, são tidos pela militância ultraliberal como os
principais financiadores de suas atividades. Tanto Mattar quanto a família
Ling vem apoiando do ponto de vista financeiro e organizacional a difusão
do neoliberalismo no país desde a década de 1980; para mais informações,
cf. Gross (2003), Casimiro (2011) e Rocha (2017).

150
Camila Rocha

liano Torres, a circulação das ideias pró-mercado nos meios


universitários se tornou mais institucionalizada. Desde sua
fundação, o EPL realizou 650 eventos em universidades
públicas e privadas e criou cerca de 200 grupos de estudo,
sendo que no ano de 2014 o EPL já contava com 600 li-
deranças voluntárias,26 como Luan Sperandio, do Espírito
Santo, que passou a coordenar as atividades da organização
em seu estado:
Em meados de 2010 eu fui lendo vários livros assim, prin-
cipalmente do Luiz Felipe Pondé, e, posteriormente, eu
participei do Fórum da Liberdade e Democracia em Vitória
em outubro de 2013. E quem estava palestrando eram o
Paulo Guedes e o Rodrigo Constantino. E as falas deles
sobre liberdade econômica, acho que fizeram muito sentido
pra mim, que já estava num processo aí de me tornar liberal.
Nesse evento eu comprei alguns livros do Instituto Mises
Brasil, e comecei a estudar. No primeiro semestre de 2014 eu
passei a escrever para o Instituto Liberal, de forma frequente,
e, em meados de agosto, a rede Estudantes pela Liberdade
estava tentando se articular aqui e a gente acabou criando o
grupo Domingos Martins, que é o maior grupo de estudos
liberais aqui do Estado do Espírito Santo. (Luan Sperandio,
Espírito Santo)

De 2010 a 2013, o crescimento do número de organiza-


ções pró-mercado, combinado com popularidade cada vez
maior obtida por intelectuais de direita27 na mídia, após o

26
Informações contidas no site <http://www.epl.org.br/sobre/> (acessado em:
2 de fevereiro de 2018).
27
Aqui compreende-se que a distinção principal entre esquerda e direita
se dá em relação ao modo como é concebida a relação entre igualdade e
desigualdade. Para quem é de esquerda a igualdade seria a regra e a desi-
gualdade uma exceção que necessitaria de justificação e vice-versa (Bobbio,
2011), o que não implica que a direita seja contrária a qualquer forma de
igualdade, uma vez que, com base em uma longa tradição liberal em favor

151
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e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

escândalo do mensalão em 2005 (Chaloub; Perlatto, 2015),


possibilitou a expansão das ideias ultraliberais para um pú-
blico cada vez mais amplo. Nesse sentido, merece destaque
a atuação de Rodrigo Constantino, que, com auxílio de
contatos estabelecidos no Instituto Millenium e da parti-
cipação ativa em várias edições do Fórum da Liberdade, se
firmou como autor de livros e colunista de jornais e revistas
de grande circulação, ao lado de nomes como Luiz Felipe
Pondé e Reinaldo Azevedo, e começou a se tornar reconhe-
cido entre setores mais amplos da população:
De experiência de lançamento de livro, palestra, eu posso
falar uma coisa, o público é o mais abrangente possível. Tem
garotos de dezesseis anos que vêm falar comigo às vezes
com a mão tremendo porque o cara é fã, ‘ah, tira uma foto
comigo’, o cara fica nervoso. Eu até brinco, ‘está nervoso por
quê? Relaxa aí, sou só eu, o Rodrigo, amigo do Facebook’.
Até senhoras, várias senhorinhas que adoram: ‘continua na
luta. Eu gosto muito do que você fala’. Então, (o público) vai
de adolescente, até senhora. (Mas) se eu tivesse que chutar,
eu diria que homens de trinta anos de idade com curso
superior é o grosso do meu perfil. O feedback que eu recebo
muito, que é o que mais me anima a continuar na militância
liberal, é de que graças a mim eles abriram os olhos para o
fato de que eram vítimas do esquerdismo. Eu recebo bastan-
te esse feedback, que é a melhor prova de que está servindo
para alguma coisa. Porque uma preocupação que eu tenho
também é não ficar pregando para os que já são convertidos,
quer dizer, atrair um público que não necessariamente é
liberal. Então esse feedback é um dos que eu mais gosto de
receber e recebo bastante, felizmente: ‘Graças a você, cara,

de direitos e liberdades individuais, a direita seria favorável à igualdade de


oportunidades, mas se oporia a mudanças sociais que tivessem como efeito
uma ordem social-econômica mais igualitária, como defende a esquerda
(Noel; Thérien, 2008).

152
Camila Rocha

eu abri meus olhos. Continua na luta’. Isso é muito bacana.


(Rodrigo Constantino, Rio de Janeiro)

Com o passar dos anos, à medida que o ultraliberalismo


passou a circular para além dos limites do Orkut e a agregar
mais defensores/as, foi se cristalizando entre os/as militantes
uma identidade coletiva, nos termos propostos por Alberto
Melucci (1995), em torno da defesa radical e moral do livre-
-mercado, mas também no que diz respeito a se perceberem
como “vítimas do esquerdismo”, nas palavras de Constantino.
A maioria dos/as militantes, especialmente os/as que cursavam
cursos universitários da área de humanas, ambientes percebidos
como sendo dominados culturalmente pela esquerda, afirma-
vam que havia pouco ou nenhum espaço para manifestações
ideológicas divergentes na academia e que com frequência se
sentiam isolados/as e silenciados/as, o que reforçava ainda mais
uma noção de pertencimento ao contrapúblico ultraliberal:
Na faculdade a gente formou um grupo de cinco amigos,
e uma característica era muito clara, dos cinco, quatro não
eram marxistas. Logo em seguida, eu conheci o Bernardo
(Santoro), o Rodrigo Constantino, pelos textos na internet
conheci o Olavo de Carvalho também, e aí foi quando a
minha visão de mundo meio que abriu. As pessoas não se
sentem representadas e passam a se afastar, é um grupo de
pessoas que é silenciada no processo de tomada de decisões,
o movimento estudantil não se preocupa em trazer elas pra
dentro, prefere que estejam fora da tomada de decisões por-
que são divergentes. A gente conseguia discutir e promover
debate, mas a gente desarticulou, embora tivesse um grupo
de apoiadores grande, ativamente tinham cinco caras. (Fer-
nando Fernandes, Rio de Janeiro)

A percepção de que a maior parte dos colegas e profes-


sores de faculdade seria de esquerda, que não possuiriam

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“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

abertura para um debate franco acerca de questões políticas e


econômicas e que quando confrontados reagiriam de forma
hostil vai ao encontro da definição de Warner (2002) sobre a
percepção de integrantes de um contrapúblico. Os entrevis-
tados descreviam tais reações de desprezo e hostilidade com
bastante frequência, as quais eventualmente geravam tensões,
frustrações e afastamentos entre colegas e amigos, e até mesmo
professores e alunos, como relatou Luan Sperandio, então
estudante da Universidade Federal do Espírito Santo:
É muito difícil ser liberal no Brasil porque o discurso de
intolerância existe, é muito forte. As pessoas te veem com
bastante preconceito, sem nunca terem conversado com
você, as pessoas não estão preocupadas em debater. Existe
um mito muito forte de que na Academia você pode discutir
ideias, na semana passada um professor que eu tive aula dois
anos atrás em 2014, petista, socialista, defende Cuba, falava
mal do Aécio em todas as aulas, e eu sempre o respeitei
academicamente, me excluiu das redes sociais. É muito
triste você ver isso. Tem muitos amigos de infância que me
excluíram e eu sinceramente não sei por que, porque por
mais que a pessoa discorde de mim, por mais socialista que
ela seja, eu não enxergo ela como uma pessoa que defende
ideologia, eu enxergo ela como um indivíduo que merece
respeito como tal. Eu estou em uma universidade federal e
estudar lá é muito difícil, porque você só está lá querendo
aprender, estudar, debater ideias, mas as pessoas não enxer-
gam assim, elas acham que você não deveria estar lá porque
você discorda delas. (Luan Sperandio, Espírito Santo)

Tendo em vista a sensação compartilhada de silencia-


mento, palavra que foi utilizada por diferentes entrevistados
para descrever suas experiências na universidade, os espaços
de debate formados por grupos de estudos e intercâmbio
de ideias dentro e fora das redes sociais eram tidos pelos

154
Camila Rocha

militantes não apenas como espaços para discussão, mas


também como espaços de acolhimento e suporte, em que
os integrantes não apenas se sentiam livres para se expressar,
mas também se identificavam positivamente uns com os
outros, como aponta a carioca Rafaela de Paula:
Eu fui fazer comunicação social e jornalismo em uma fa-
culdade que apesar de ser particular era extremamente de
esquerda. Na minha primeira aula eu já senti um choque
enorme, eu passei por situações de professores me silen-
ciando. No começo eu me senti muito sozinha, foi muito
difícil porque eu não tinha ninguém pra conversar comigo
a respeito, e foi quando eu comecei a pesquisar os grupos e
acabei me encontrando com pessoas que fizeram com que
isso fizesse ainda mais sentido pra mim, porque nas facul-
dades essa presença da esquerda tá muito forte, acho que a
gente tem que realmente se reunir mais, falar mais, e não
é só questão de lutar pra ter um espaço, é importante você
lutar pra ter um espaço sem ter que tirar o espaço do outro
de falar. (Rafaela de Paula, Rio de Janeiro)

Para além dos contatos, financiamento e maiores possi-


bilidade de formação oferecida para a militância ultraliberal
pelos think tanks liberais já existentes, a formação de laços
afetivos a partir da formação de uma identidade coletiva
também foi decisivo para reforçar o pertencimento ao con-
trapúblico ultraliberal e para a permanência das organizações
e grupos de militantes que foram sendo formados com o
tempo, como expõem Gabriel Menegale e Felipe Celetti:
Quando eu fui para a conferência nacional do EPL, em 2013,
em Belo Horizonte, uma coisa que para mim ficou muito
clara foi a sensação de família que existe ou que existia den-
tro do movimento. Por causa de uma ideologia em comum
de um grupo de malucos que começou esse negócio em uma
comunidade do Orkut, você entra num carro aleatório, e as

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“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

pessoas te tratando bem, todo mundo trocando ideias: ‘como


é que você faz lá no seu estado?’ ‘o que que você faz aqui e
tal?’ Então, assim, eu senti essa percepção de família e achei
o máximo. (Gabriel Menegale, Minas Gerais)
Hoje, dez anos depois, eu ainda encontro uns amigos no
bar pra falar de política ou tiro um final de semana pra
participar de um evento também. A gente queria ver outras
pessoas, pra gente não se sentir sozinho no mundo, é um
pouco isso, tem outros iguais, eu pertenço a um grupo, eu
não sou isolado, esse pertencimento é muito importante.
(Filipe Celeti, São Paulo)

Junho de 2013, a reeleição de Dilma Rousseff


e os protestos pró-impeachment
Ainda que ao final dos anos 2000 o ultraliberalismo
tenha ganhado maior visibilidade à medida que se insti-
tucionalizava com o apoio de organizações mais antigas, o
sentimento de isolamento da militância permanecia, afinal,
na época o lulismo28 parecia ser um projeto político triun-
fante. Se durante as primeiras décadas da Nova República
a implementação de reformas de orientação neoliberal en-
frentou uma resistência importante organizada por grupos
e movimentos de esquerda em conjunto com o PT, a gui-
nada neodesenvolvimentista do governo, iniciada em 2006
com a nomeação de Guido Mantega para o Ministério da
Fazenda, sustentada por uma gigantesca coalizão política e

28
O lulismo é um fenômeno político que consistia em um reformismo fraco
baseado na arbitragem do conflito social e político realizado pelo então
presidente Lula e que combinava medidas que ao mesmo tempo benefi-
ciariam os mais pobres, por meio de políticas de transferência de renda, e o
grande capital, por meio da manutenção de políticas econômicas ortodoxas
(Singer, 2012), modus operandi que teria sido herdado, em alguma medida,
por Dilma Rousseff.

156
Camila Rocha

aprofundada durante o primeiro governo de Dilma Rousseff,


não havia ainda encontrado resistências políticas semelhan-
tes às experimentadas pelos tucanos durante a década de
1990. Um diagnóstico realizado à época apontava que, por
conta do aparente sucesso do projeto político-econômico
empreendido pelo governo, diferenciações ideológicas e
programáticas substantivas teriam deixado de existir no
sistema político (Nobre, 2013). Assim, foi apenas a partir de
mudanças ocorridas na estrutura de oportunidades políticas,
relacionadas à emergência das revoltas de junho de 2013 e à
reeleição de Dilma Rousseff em 2014, que os membros do
contrapúblico ultraliberal puderam ter sucesso em alcançar
um público mais amplo e vir a dirigir os primeiros protestos
pró-impeachment ainda em 2014.
As revoltas de junho de 2013 irromperam em meio a um
cenário de estabilidade econômica e política. Iniciadas pelo
Movimento Passe Livre na cidade de São Paulo, as mani-
festações se alastraram pelo país inteiro e logo passaram a
reunir milhões de pessoas nas ruas em torno de pautas mais
diversas e fazendo uso de repertórios variados (Alonso; Mis-
che, 2016), indicando um transbordamento societário, ou
seja, “quando o protesto se difunde dos setores mobilizados
para outras partes da sociedade” (Bringel, Pleyers, 2015, p. 18)
e apontando para a rejeição de vários aspectos do sistema
político (Nobre, 2013; Gerbaudo, 2017). Entre as muitas
pessoas e grupos que resolveram sair às ruas estavam os/as
militantes reunidos/as pelo Líber,29 que já vinham fazendo
seus próprios protestos de rua e participando de manifesta-
29
Ver em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1296722-gru-
po-politico-protesta-contra-modelo-de-concessoes-de-transporte-publico.
shtml> (acessado em: 2 de abril de 2019).

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e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

ções maiores como a Marcha da Maconha/Liberdade que


ocorreu em São Paulo em 2011, como relatam Felipe Celetti
e Joel Fonseca:
A militância que eu tive foi Líber. Foi participar de mani-
festação aqui, a gente fez bastante barulho em São Paulo.
A gente participou quando proibiu a Marcha da Maconha
e mudaram o nome pra Marcha pela Liberdade, a gente foi
lá com os nossos cartazes. A gente fazia muita manifestação
no impostômetro também, quando ia bater os recordes a
gente estava sempre. A gente sempre apoiou aquele dia da
Liberdade dos Impostos, a gente fazia (protesto) no posto
de gasolina, que vende gasolina com o preço que seria se
não fossem os impostos, e a gente participou lá em junho,
que teve as manifestações pelos vinte centavos. Quase teve
briga, a gente juntou umas cem pessoas ali, então quando
chegou o pessoal pra pedir transporte público a gente estava
no Masp gritando pra ter liberdade nos transportes, acabar
com os contratos, e ter mais empresas prestando serviços
pra baratear. Então, de certo modo, houve um confronto
ali, um princípio de briga, que não aconteceu. Quem fazia
e organizava era o Líber, o Líber que chamava o pessoal pra
rua. (Filipe Celeti, São Paulo)
Em 2013 a gente conseguiu organizar, durante as passeatas
de julho, uma manifestação libertária também ali. Enquanto
a passeata estava passando pela Paulista, a gente estava con-
centrado no vão do Masp. A passeata grande começou pela
questão da tarifa do transporte público e a gente defendia a
liberdade de concorrência, de livre concorrência e de com-
petição dentro do transporte público, inclusive de carros,
antes de existir o Uber. Depois o Uber surgiu, essa coisa
de motorista privado que oferece transporte, mas era legal
que a ideia já existia ali, sem nenhum aplicativo, já estava
presente ali. Esse foi um momento muito rico, o momento
que teve um grande otimismo ali também com relação até
ao próprio projeto do partido. O Líber foi um período mui-
to legal, eu gostei de ter me dedicado àquilo. Eu fui quem
ajudou a organizar realmente essa manifestação que a gente

158
Camila Rocha

teve lá no Masp, eu e mais algumas outras pessoas. (Joel


Fonseca, São Paulo)

Foi justamente em meio às revoltas de junho de 2013


que surgiu a ideia de reunir a militância liberal em um mo-
vimento mais amplo e que não se restringisse às limitações
existentes pelas organizações criadas até então, o qual rece-
beu o nome de Movimento Brasil Livre (MBL):
Eu estava discutindo com o Juliano (Torres) a seguinte ideia,
criar um movimento focado exclusivamente em ativismo e
juntar pessoas que apoiam a causa da liberdade para mobi-
lizar, para fazer protestos, petições, manifestações, esse tipo
de coisa que a mídia gosta e que teria uma possibilidade de
alavancar as ideias liberais. Tinha visto muito liberal por aí a
fim de fazer alguma coisa, mas as atuais instituições acabam
não permitindo a participação ativa de tanta gente, pelo fato
de que cada organização tem o seu conselho. O Ordem Livre
e o Estudantes Pela Liberdade (EPL) não poderiam fazer
isso, pois não era seu foco, nem de outras instituições liberais
como o Líber, que era um partido em formação na época e
não devia se meter também para evitar acusações de partida-
rização. Tinha gente querendo participar e a gente precisava
encontrar uma maneira de canalizar esse entusiasmo, daí a
partir daí a gente passou a tocar isso em 16 e 17 de junho de
2013. (Fábio Ostermann, Rio Grande do Sul)

Por meio do então incipiente MBL, os/as militantes


conseguiram se organizar melhor para participar das várias
manifestações que ocorreram naquele mês de junho em
todo o território nacional. Porém, ao fim do ano, a página
do movimento no Facebook, que contava com cerca de 20
mil curtidas, acabou sendo abandonada por seus fundadores
que passaram a dedicar seu tempo para outras atividades. Foi
apenas no ano de 2014 que a militância ultraliberal, que já
circulava em uma rede descentralizada e capilarizada de gru-

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e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

pos e organizações que abrangia todo o território nacional


(Ver Anexo II), começou a ganhar alguma visibilidade no
cenário político nacional com a candidatura de Paulo Batista
à deputado estadual pelo Estado de São Paulo.
Batista é um pequeno empresário do ramo imobiliário e
que foi durante dez anos diácono de uma igreja local e cujo
pai havia sido vereador na cidade de Valinhos no interior do
estado de São Paulo. Inspirado pela experiência política do
pai, Paulo, que passou a se considerar liberal por volta de
2006 a partir de leituras que realizou para um curso superior
de marketing, decidiu se candidatar sem qualquer auxílio de
entidades religiosas, as quais, segundo ele, possuíam práticas
políticas com as quais não concordava, e logo encontrou
refúgio no Partido Republicano Progressista, sigla que lhe
oferecia a possibilidade de se candidatar de forma indepen-
dente. Foi a partir dos esforços de campanha iniciados no
ano de 2012 em um escritório de advocacia da cidade de
Vinhedo, a sete quilômetros de distância de Valinhos, que
Paulo entrou em contato com militantes organizados em
um movimento em formação chamado Renovação Liberal,
integrado por vários membros do Líber e capitaneado por
Renan Santos, membro da juventude do PSDB que havia
atuado no movimento estudantil da Faculdade de Direito
da USP e participado ativamente das manifestações de 2013
defendendo a PEC 37. Renan apresentou a Paulo seu irmão
Alexandre Santos, dono de uma produtora de vídeo de São
Paulo chamada ANC, e Marcelo Faria, um militante libe-
ral que Renan conheceu durante junho de 2013 e que em
2014 passou a presidir o Instituto Liberal de São Paulo. A
partir da produtora de vídeo de Alexandre e das ideias dos
militantes que se engajaram na campanha, foi criada uma

160
Camila Rocha

campanha virtual para as eleições de 2014 em que Paulo


Batista aparecia em vídeos curtos como um super-herói
ultraliberal que lançava raios “privatizadores” em cidades
comunistas, e a candidatura, a despeito de ser oficialmente
abrigada pelo PRP, era tida por seus organizadores como
pertencendo ao Líber:
O grupo era o Líber, com a parte de informação, ideias,
liberalismo, libertarianismo; Paulo Batista, Rubens e Jefer-
son, com a parte de organização de estratégia, parte jurídica,
posicionamento político com o partido; e o Renan foi buscar
o Marcelo pra saber como tratar isso, de forma midiática,
e aí o Renan falou, ‘olha, o meu irmão, o Alexandre, tem
uma produtora, a ANC, que tal a gente juntar o escritório
do Rubens, o Líber, o Marcelo e a ANC?’. Perfeito. Eu saí
defendendo a sigla do Partido Republicano, mas eu utilizei
o logo e o broche do Líber. O Líber teve um candidato, foi
o Paulo Batista. E aí fizemos um vídeo de trinta segundos
que viralizou e nós tivemos mais de um milhão de acesso em
três dias e do dia pra noite eu virei uma celebridade. (Paulo
Batista, São Paulo)

Além dos vídeos, os/as militantes unidos na campanha


do raio privatizador passaram a fazer vários protestos e de-
monstrações públicas na cidade de São Paulo a partir dos
quais outros/as militantes e grupos se aproximavam:
O primeiro ato que nós fizemos foi um protesto na porta
da Venezuela. Nós levamos um caminhão de pallets de
papel higiênico na frente da Embaixada e fizemos um
protesto lá, contra a Venezuela. Deu polícia, deu Folha de
S.Paulo, deu uma galera de um Partido chamado Novo,
que era tão novo que eu não conhecia, apareceram lá e
falaram, ‘a gente ama o seu trabalho’, tanto que eu aju-
dei a pegar pra eles mais trezentas assinaturas depois. A
campanha era uma aventura por dia! Eu fui confrontar
o pessoal do PSTU e PCO ali no centro da cidade, com

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e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

megafone, quase apanhei, eu entrei dentro do comitê


principal do PT, e do PCdoB, pra levar uma carta convite
pra eles fornecerem papel higiênico para a Venezuela. Nós
levamos um bote na porta do Consulado de Cuba. Eu ia
pular de paraquedas na USP – e o paraquedas era preto
e amarelo, a cor do anarco-capitalismo – no dia, graças a
Deus, choveu. Várias pessoas colaboraram nas ideias, por
exemplo, na USP foi o Renan, da Venezuela foi o Marcelo
do ILISP, a ideia de Cuba foi o pessoal do Líber, e depois
desse primeiro evento da Venezuela veio uma peça a mais,
me apresentaram o Pedro, da banda Bonde do Rolê, e o
Pedro foi muito importante pra campanha, ele foi muito
importante para o Movimento Liberal, porque o Pedro é
um artista e ele tem uma visão totalmente diferenciada
da visão do resto do pessoal. (Paulo Batista, São Paulo)

Batista, apesar de ter despontado como um fenômeno


da internet e ter sido entrevistado no talk show do humorista
Danilo Gentili transmitido pelo SBT, recebeu dezessete mil
votos e não foi eleito. No entanto, sua campanha conseguiu
agregar em 2014 boa parte da militância e das organiza-
ções ultraliberais em atividade no país, as quais, durante as
eleições, também somaram esforços para derrotar a candi-
datura de Dilma Rousseff apoiando de modo pragmático
o candidato do PSDB, Aécio Neves, no segundo turno da
eleição. A derrota de Dilma Rousseff era dada como certa
pela oposição e a quebra de expectativas que ocorreu com
o anúncio de sua vitória foi de tal monta que logo se levan-
tou a suspeita de uma possível fraude e reações inflamadas
começaram a surgir por parte dos/as antipetistas mais fer-
renhos/as, criando um clima propício para quem quisesse
protestar contra a situação de alguma forma. Sem hesitar, o
grupo organizado em torno de Paulo Batista, acostumado a
promover protestos e demonstrações de tom mais agressivo

162
Camila Rocha

contra a esquerda,30 aproveitou a ocasião para chamar uma


manifestação pró-impeachment, pauta que na época era per-
cebida como sendo muito radical e contraproducente pelos
adversários do PT31 e pelas lideranças do Movimento Vem
pra Rua, que havia realizado três protestos contra a corrupção
e o PT em outubro de 2014.32
Apenas seis dias após a vitória da petista, Paulo Batista
convocou, a partir de sua página do Facebook, o primei-
ro protesto pró-impeachment de Dilma Rousseff que teve
100 mil confirmações on-line e recebeu apoio de Olavo de
Carvalho,33 lido e ouvido por nove em cada dez militan-

30
“Eu e o Renan (Santos) ficávamos brigando, diante de alguns projetos, o
Renan muito mais atirado do que eu, sempre muito mais atirado, mais
agressivo. Pra ele não bastava só eu estar com o megafone, ele queria que
eu colocasse o dedo na cara. Coisa que às vezes não eram necessárias, não
é meu perfil. Em alguns momentos eu fui obrigado a adotar (um tom mais
agressivo), porque a situação me colocou nessa condição. Tinha dez pessoas
na minha frente, eu sozinho, o Renan e o Pedro. Se eu não tomasse uma
postura de liderança, e fosse pra cima, nós três iríamos apanhar. Então eu
tive que quebrar os meus paradigmas pessoais, as vezes, pra me defender e
para defender eles.” (Paulo Batista, São Paulo)
31
Ver em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/11/1542090-vice-presi-
dente-do-psdb-diz-que-partido-nao-incentiva-atos-contra-dilma.shtml>.
32
“Obviamente, a repercussão do ato foi extremamente nociva. Criou-se uma
ideia de que os eleitores do Aécio não sabiam perder. Os apoiadores do PT
nadaram de braçada diante dessa postura dos manifestantes. Nós assistía-
mos incrédulos a tudo isso. O que esses movimentos estão fazendo?, nos
perguntávamos. O pior foi que a imprensa colocou todos os movimentos,
participantes ou não, no mesmo balaio. Como se nós, que havíamos feito
um movimento bonito e pacífico antes da votação do segundo turno, tivés-
semos agora feito tudo aquilo. [...] Resolvemos fazer algo para deixar claro
que não concordávamos com a postura daqueles manifestantes.” Trecho
retirado do livro Vem pra Rua, de Rogério Chequer e Collin Butterfield
publicado pela Editora Matrix em 2016 (p. 78).
33
A popularidade dos livros e das produções audiovisuais de Olavo de
Carvalho entre os/as militantes liberais e conservadores/as brasileiros/as
foi afirmada espontaneamente em muitas entrevistas que realizei (Anexo
I). Quando atuava como jornalista no Brasil, Olavo de Carvalho trocava
cartas com os membros do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e circulava

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“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

tes de direita brasileiros/as. De acordo com a imprensa, o


protesto teria reunido cerca de 2,5 mil pessoas munidas de
bandeiras do Brasil e cartazes com dizeres como “Fora PT”,
“Fora Dilma” e “Fora corruptos”,34 além de outros grupos
e movimentos que não faziam parte das redes da militância
liberal e se juntaram à iniciativa, como o Revoltados On-line,
o recém-eleito deputado federal Eduardo Bolsonaro, o cantor
Lobão, grupos antipetistas e grupos que defendiam a volta da
ditadura militar. Quinze dias após o primeiro protesto, foi
convocada uma segunda manifestação na Avenida Paulista
pelo grupo Revoltados On-line para o dia 15 de novembro,
e a militância liberal organizada em torno da campanha do
“raio privatizador” decidiu ressuscitar o Movimento Brasil
Livre criado por Fábio Ostermann durante as manifestações
de junho de 2013 em substituição ao Renovação Liberal, cujo
nome “não havia colado”.
Após o segundo protesto se seguiram ainda mais três
eventos similares até que, no dia 15 de março de 2015, o
MBL em conjunto com o Vem pra Rua e o Revoltados On-
-line convocaram uma manifestação que teria reunido um
milhão de pessoas na Avenida Paulista, segundo a Polícia
Militar, e 250 mil segundo o Instituto Datafolha. A aposta
se provou certeira na medida em que a insatisfação com a
reeleição de Dilma aumentou ainda mais com as denúncias

nas redes liberais da época, inclusive, chegou a afirmar que conheceu a


obra do economista Ludwig Von Mises por meio de Donald Stewart, em-
presário fundador do IL-RJ. Ver em <https://www.mises.org.br/FileUp.
aspx?id=274>.
34
<http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ato-por-impeachment-de-
dilma-reune-2-5-mil-em-sao-paulo,1586653>; <http://www1.folha.uol.
com.br/poder/2014/11/1542047-ato-em-sao-paulo-pede-impeachment-de-
dilma-e-intervencao-militar.shtml>

164
Camila Rocha

de casos de corrupção ventilados pela Operação Lava-Jato,


expostos diuturnamente pelos grandes veículos de mídia, e
resultou em uma pressão social que jogou ainda mais água
no moinho da crise política em curso, até que, em agosto
de 2016, Dilma foi de fato impedida.

Considerações finais
A popularização da internet vem provocando nos últimos
anos um aumento expressivo no surgimento de contrapú-
blicos à esquerda e à direita (Downey; Fenton, 2003). Esse
aumento aponta ao mesmo tempo para uma democratiza-
ção da esfera pública, na medida em que permite que mais
pessoas possam participar e influenciar o debate público,
mas também pode ter efeitos deletérios na medida em
que aumenta a fragmentação dos públicos (Sustein, 2017),
facilita a formação do chamado “efeito bolha”, processo de
retroalimentação de certas ideias pelos usuários da internet
por filtros de busca e algoritmos (Pariser, 2011), e, eventual­
mente, pode conduzir a processos de radicalização política
(Downey; Fenton, 2003).
No que tange à formação de contrapúblicos digitais
localizados à direita no espectro político a literatura especia-
lizada chamou a atenção para os mais variados casos, entre
os quais é possível destacar: os formados por pessoas contra
a imigração ilegal (Gring-Pemble, 2012); por céticos em re-
lação à mudança climática (Kaiser; Puschmann, 2017); por
evangélicos conservadores contrários à universalidade dos
direitos humanos (McIvor, 2018); e por apoiadores e apoia-
doras da candidatura de Donald Trump para a presidência
dos Estados Unidos (Thimsen, 2018). O surgimento de tais
contrapúblicos vem sendo influente na ascensão de lideran-

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“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

ças políticas que passaram a atuar em dinâmicas políticas


relevantes não apenas na Europa e nos Estados Unidos, mas
também no Brasil, como procurei apontar neste capítulo.
Busquei demonstrar aqui como a presença precoce em
fóruns e redes sociais virtuais de jovens universitários e pro-
fissionais interessados pelo liberalismo econômico deu início
à formação de um contrapúblico ultraliberal, porém, também
busquei destacar como seus integrantes puderam impactar
a política nacional de forma relevante. Isso teria ocorrido
devido à formação de uma identidade coletiva por parte de
seus membros e à preexistência de uma rede de think tanks
liberais no país que pode oferecer um apoio organizacional
e financeiro, fatores que permitiram a institucionalização e
a permanência no tempo de tal contrapúblico, o qual, em
virtude de mudanças na estrutura de oportunidades políti-
cas relacionadas às revoltas de junho de 2013 e à reeleição
de Dilma Rousseff em 2014, pôde então convocar e liderar
os primeiros protestos pró-impeachment de Dilma Rousseff
em 2014.
Nesse sentido, ainda que as denúncias de corrupção que
envolviam políticos e lideranças petistas, desde o chamado
“mensalão” até os mais recentes escândalos de corrupção
relacionados à Operação Lava-Jato, tenham sido importantes
no sentido de criar um inimigo em comum para grupos di-
versos da sociedade civil que participaram das manifestações
lideradas por movimentos e lideranças de direita (Telles,
2016), e apoiadas por jornalistas e intelectuais de oposição
ao governo (Chaloub; Perlatto, 2015; Messenberg, 2017), é
importante destacar o papel desempenhado pelos militantes
ligados a este contrapúblico, os quais possuíam uma agenda
para além do antipetismo e que, após as eleições de 2018,

166
Camila Rocha

passou a estar representada em grande medida pela equipe


econômica reunida em torno do 38o presidente da República.

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ANEXO I – Entrevistas
Arthur Chagas Diniz foi vice-presidente do Instituto Liberal por
mais de vinte anos. É formado em Engenharia Civil e Eletrônica
pela Escola Nacional de Engenharia, tendo trabalhado na Compa-
nhia Siderúrgica Nacional (CSN) entre 1960 e 1964, no Ministério
do Planejamento (1965-1967) e no Jornal do Brasil (1987-1988). En-
trevista realizada no dia 11 de dezembro de 2015 no Rio de Janeiro
em conjunto com o jornalista Lucas Berlanza.

170
Camila Rocha

Bernardo Santoro é bacharel em direito e mestre em Teoria e Filo-


sofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Atuou como professor universitário na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro e na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi
vice-presidente do Líber, diretor executivo do Instituto Liberal
(2012-2016), coordenador do Centro Mackenzie para Liberdade
Econômica (2016-2017), e filiado e colaborador ativo do Partido
Social Cristão (PSC) até assumir, no mês de setembro de 2017, o
cargo de secretário geral do Partido patriota. Entrevista realizada
no Rio de Janeiro no dia 6 de outubro de 2015.

Cibele Bastos é economista formada pela Universidade Federal do


Ceará. Foi fundadora do grupo de estudos “Dragão do Mar” na
mesma universidade e atuou profissionalmente no Instituto Liberal
do Rio de Janeiro e no Instituto Liberal do Nordeste (Ilin) entre os
anos de 2015 e 2018, tendo colaborado ativamente na campanha
a vereador da cidade de Fortaleza pelo LIVRES do advogado Ro-
drigo Saraiva Marinho, presidente do ILIN, coordenador da Rede
Liberdade, e filiado ao Partido Novo em 2018. Entrevista realizada
no dia 15 de dezembro de 2015 no Rio de Janeiro.

Fábio Ostermann é formado em Direito pela Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde fundou o Núcleo de Ex-
tensão em Direito, Economia e Políticas Públicas (Nedep). Foi
Fellow na Atlas Network (Washington, DC), diretor executivo
do Instituto Liberdade, diretor de formação e conselheiro fiscal
do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), cofundador da rede
Estudantes pela Liberdade, tendo sido o primeiro presidente de
seu Conselho Consultivo, diretor executivo do Instituto Ordem
Livre, fundador e coordenador nacional do Movimento Brasil Li-
vre (MBL). É professor (licenciado) da Faculdade Campos Salles,
associado honorário do IEE, membro do Grupo Pensar+ e líder
estadual do Livres no Rio Grande do Sul. Entrevista realizada no
dia 30 de março de 2016 em São Paulo.

Fernando Fernandes é bacharel em direito e mestrando em Filosofia


Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, formado
em Política e Estratégia pela Associação dos Diplomados da Es-

171
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

cola Superior de Guerra. Colunista do Instituto Liberal do Rio de


Janeiro, foi candidato a vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo
Partido Social Cristão (PSC) em 2016 e em 2017 assumiu o cargo
de segundo vice-presidente do Partido Patriota, no Rio de Janeiro.
Entrevista realizada via Skype no dia 10 de julho de 2016.

Filipe Celeti é bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade


Presbiteriana Mackenzie e mestre em Educação, Arte e História da
Cultura pela mesma instituição. Professor da Faculdade Sumaré,
foi coordenador do Líber em São Paulo, tutor no Instituto de For-
mação de Líderes de São Paulo e é membro do Livres, pelo qual
foi candidato a vereador em São Paulo no ano de 2016. Entrevista
realizada no dia 18 de abril de 2016 em São Paulo.

Gabriel Menegale é ex-conselheiro executivo do Estudantes pela


Liberdade e ex-assessor do Instituto Liberal. Atualmente, cursa a
graduação de Comunicação Social com habilitação em Publicidade
e Propaganda pelo Ibmec-RJ. Entrevista realizada via Skype em
janeiro de 2017.

Hélio Beltrão é graduado em finanças, possui MBA pela Universidade


de Columbia, em Nova York. Foi executivo do Banco Garantia,
Mídia Investimentos e da Sextante Investimentos. É fundador e
membro do conselho consultivo do Instituto Millenium e fundador-
-presidente do Instituto Mises Brasil. Também é membro do con-
selho de administração do Grupo Ultra, da Le Lis Blanc, da Artesia
Investimentos, do conselho consultivo da Ediouro Publicações e da
companhia do setor de educação corporativa Lab SS (Affero Lab a
partir de 2014). Entrevista realizada em abril de 2017 em São Paulo.

Joel Pinheiro da Fonseca é economista formado pelo Insper, bacharel


e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Foi membro
do Líber em São Paulo, editor da Revista Dicta&Contradicta e atual­
mente é colunista do jornal Folha de S.Paulo e da Revista Exame.
Entrevista realizada em maio de 2017 em São Paulo.

Lourival de Souza foi estudante de engenharia na Universidade Federal


do Maranhão, onde foi membro do Diretório Central dos Estudantes

172
Camila Rocha

em 2010. É fundador e presidente do Instituto Expresso Liberdade,


colaborador da Associação Cultural São Thomas More, graduado
em gestão financeira, tem experiência no mercado de investimentos
e educação, é mestrando em Economia Política pelo Swiss Manage-
ment Center e ex-presidente da Federação Maranhense de Empresas
Juniores. Entrevista realizada via Skype em abril de 2017.

Luan Sperandio é graduando em Direito pela Universidade Federal


do Espírito Santo e faz MBA em Liderança e Desenvolvimento
Humano na Fucape Business School. Escreveu artigos para o
Instituto Liberal do Rio de Janeiro e criou o grupo de Estudos Do-
mingos Martins no Espírito Santo. Atualmente é vice-presidente
da Federação Capixaba de Jovens Empreendedores e é editor do
Instituto Mercado Popular. Entrevista realizada no dia 8 de feve-
reiro de 2017 via Skype.

Paulo Batista é um empresário do ramo imobiliário que atua no inte-


rior do Estado de São Paulo e foi candidato à deputado estadual em
2014 pelo Partido Republicano Progressista (PRP) com a campanha
virtual que ficou conhecida como “Raio Privatizador”. Atualmente,
é membro do Livres. Entrevista realizada no dia 21 de setembro de
2017 em São Paulo em conjunto com Elizabeth McKenna, douto-
randa em Ciência Política pela Universidade de Berkeley.

Rafaela de Paula foi estudante de comunicação e coordenadora do


Núcleo de Pesquisa Libertária sobre a Cultura Brasileira do Grupo
de Estudos Quintino Bocaiúva, formado em conjunto com Cibele
Bastos e Edson Chinchilla em 2015 no Rio de Janeiro. Entrevista
realizada em novembro de 2015 em São Paulo.

Rodrigo Constantino é economista e colunista brasileiro. É graduado


pela PUC-RJ e possui MBA em Finanças pelo Ibmec. Foi colunista
da revista Veja, escreveu regularmente para os jornais Valor Econô­
mico e O Globo e foi autor de vários livros, entre os quais Privatize
já! e Esquerda caviar. Foi membro fundador do Instituto Millenium
em 2005 e, atualmente, é presidente do Conselho Deliberativo
do Instituto Liberal do Rio de Janeiro. Entrevista realizada em
dezembro de 2016 via Skype.

173
“Imposto é roubo!” A f o r m aç ão d e u m c o n t r a p ú b l i c o u lt r a l i b e r a l
e os protestos pró-impe achment de Dilm a Rousseff

Anexo II – Organizações e movimentos liberais do Brasil


Organizações e movimentos Fundação/ Localização
reestruturação
Instituto Liberal 1983/2013 Rio de Janeiro – RJ
Instituto de Estudos Empresariais 1984 Porto Alegre – RS
Instituto Liberal do RS/Instituto 1986/2004 Porto Alegre – RS
Liberdade
Instituto Atlântico 1992 Rio de Janeiro – RJ
Fundação Friedrich Naumann Brasil 1992 São Paulo – SP
Centro de Ética e Economia Interdis- 2002 Rio de Janeiro – RJ
ciplinar
Movimento Viva Brasil 2004 São Paulo – SP
Instituto de Estudos da Realidade 2005/2006 Rio de Janeiro – RJ
Nacional/Instituto Millenium
Movimento Endireita Brasil 2006 São Paulo – SP
Instituto Mises Brasil 2007 São Paulo – SP
Instituto Ordem Livre 2007 Virtual
Estudantes pela Liberdade/Students 2009/2014 Belo Horizonte – BH/
for Liberty Brazil Virtual
Instituto de Formação de Líderes Belo 2011 Belo Horizonte – BH
Horizonte
Instituto de Formação de Líderes São 2011 São Paulo – SP
Paulo
Instituto de Formação de Líderes Rio 2011 Rio de Janeiro – RJ
de Janeiro
Instituto Líderes do Amanhã 2011 Vitória – ES
Expresso da Liberdade 2012 São Luís – MA
Instituto Liberal do Nordeste 2013 Fortaleza – CE
Instituto Carl Menger 2013 Brasília – DF
Clube Farroupilha 2013 Santa Maria – RS
Instituto Mercado Popular 2013 Virtual
Movimento Renovação Liberal/Movi- 2013/2014 São Paulo – SP
mento Brasil Livre
Clube Ajuricaba 2014 Manaus – AM
Instituto Liberal do Centro-Oeste 2014 Virtual
Movimento Liberal Acorda Brasil 2014 Virtual
Instituto Liberal de São Paulo 2014 Virtual
Instituto Atlantos 2015 Porto Alegre – RS
Instituto Rothbard 2015 Virtual
Instituto Democracia e Liberdade 2015 Curitiba – PR
Instituto Liberal de Minas Gerais 2015 Virtual
Instituto Liberal de Alagoas 2015 Maceió – AL
Rede Liberdade 2016 Virtual
Instituto Liberdade e Justiça 2016 Goiânia – GO
Vox Brasilis 2016 Virtual

174
A direita que saiu do armário: a
cosmovisão dos formadores de
opinião dos manifestantes de
direita brasileiros1
Débora Messenberg

As manifestações que levaram centenas de milhares de


pessoas às ruas nas principais cidades brasileiras durante os
meses de março, abril e agosto de 2015, trouxeram à luz o
ativismo de certos tipos de atores sociais, que há décadas
não participavam de forma tão intensa na arena pública. Tais
manifestações revelaram a presença privilegiada de grupos
de perfil conservador, que a despeito de suas clivagens in-
ternas em termos de tonalidades ideológicas, expuseram
publicamente convicções de cunho segregador e autoritário.
Diversas pesquisas vêm sendo desenvolvidas na direção
da caracterização desses manifestantes, de seus perfis ideo­
lógicos, bem como das organizações e instituições sociais
que lhes dão suporte (Ortellado, 2015; Telles, 2015; Tatagi-
ba, 2015). Entretanto, pouco ainda se tem clareza sobre as
configurações simbólico-discursivas que orientam cognitiva
1
Artigo publicado originalmente na revista Sociedade e Estado, vol. 32, n. 3,
em 2017.
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

e normativamente a ação de tais atores sociais. É no sentido


de trazer contribuição para esse debate que o presente tra-
balho apresenta os resultados de investigação, que procurou
compreender a cosmovisão (Weltanschauung)2 dos principais
formadores de opinião dos manifestantes que foram às ruas,
ao longo do ano 2015, para protestar contra a corrupção no
país, se opor de maneira frontal ao Partidos dos Trabalha-
dores (PT) e as suas políticas sociais e de direitos, além de
exigir o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Parte-se do pressuposto que os ativistas que foram às
ruas nos dias 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto de
2015 encontram-se posicionados ideologicamente no que
se convencionou chamar de à direita do espectro político.
Direita e esquerda são conceitos polissêmicos e para alguns
analistas pouco úteis para a compreensão da vida política nas
sociedades contemporâneas. Entretanto, e contrários a essa
presunção, nos colocamos entre aqueles que defendem não
só a atualidade e a funcionalidade desses conceitos como a
sua centralidade para o entendimento da vida cotidiana e
para a construção de identidades no agir político.
Dentre os principais defensores da manutenção inter-
pretativa da díade esquerda e direita, encontramos Norberto
Bobbio. Em seu já clássico ensaio Direita e esquerda: razões e
significados de uma distinção política (1995), Bobbio propõe uma
2
A noção de cosmovisão (Weltanschauung) aqui adotada fundamenta-se no
sentido weberiano, o qual a relaciona aos valores ou princípios culturais
que embasam as concepções do universo e filosofias de vida de uma
sociedade ou grupo. Além disso, como aponta Weber: “[...] cosmovisões
nunca podem ser o resultado de um avanço do conhecimento empírico,
e que, portanto, os ideais supremos que nos movem com a máxima força
possível, existem, em todas as épocas, na forma de uma luta com outros
ideais que são, para outras pessoas, tão sagrados como o são para nós
outros (Weber, 1992, p. 113).

176
Débora Messenberg

série de princípios que, segundo ele, encontram-se claramen-


te presentes e são distintivos das ideologias de esquerda e
de direita. Embora saliente que a direita e a esquerda não se
apresentam concretamente na política como blocos homo-
gêneos e/ou coerentes, argumenta que se pode admitir de
forma ampla que a esquerda se orienta essencialmente para
a promoção da igualdade entre os homens e para a mudança
da ordem social, enquanto a direita concebe a desigualdade
como algo intrínseco à humanidade e mantém o apego
às tradições e à preservação do ordenamento societário.
Anexam-se a esses princípios outros valores observáveis
nos países industrializados e que recobrem algumas ideias
recorrentes.
Na esquerda, dá-se o primado do igualitarismo sobre os
direitos da propriedade e do livre comércio; o racionalismo;
o laicismo; a crítica das limitações ético-religiosas; a inexis-
tência de conceitos absolutos de bem e mal; o desprezo à
oligarquia; a preservação do meio ambiente e os interesses
dos trabalhadores, que devem prevalecer sobre a necessidade
de crescimento econômico; o antifascismo; e a identificação
permanente com as classes inferiores da sociedade.
A direita, como aponta Bobbio (1995), move-se por ou-
tros ideais que envolvem: o individualismo; a supremacia
da propriedade privada e da livre iniciativa; a intuição; a
primazia do sagrado; a valorização da ordem e da tradição; o
elogio da nobreza e do heroísmo; a intolerância à diversidade
étnica, cultural e sexual; o militarismo e a defesa da segu-
rança nacional; o crescimento econômico em detrimento da
preservação ambiental e dos interesses imediatos dos traba-
lhadores; o anticomunismo; e a identificação permanente
com as classes superiores da sociedade.

177
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

Observa-se, assim, que para além do campo político,


as cosmovisões da esquerda e da direita constituem e se
espraiam no “campo metapolítico das relações sociais quo-
tidianas e da luta cultural” (Pierucci, 1990, p. 11). São, por-
tanto, quadros de referência a partir dos quais os indivíduos
interpretam e interagem com o mundo, estabelecendo sig-
nificados à sua existência e explicando a “ordem das coisas”.
No campo ideológico da direita, foco central da presen-
te investigação, há um núcleo fundante em seu programa
historicamente construído: o conservantismo. Como bem
esclarece Pierucci (1990, p. 10),
o conservantismo é antes de mais nada uma proposta de so-
ciabilidade. [...] é uma combinação de práticas (de distinção,
hierarquização, desprezo, humilhação, intolerância, agressão,
profilaxia, segregação), de discursos espontâneos e discursos
doutrinários abrangendo a esfera pública e a vida privada, de
soluções políticas e econômicas mas também de restauração
moral, de racionalizações e afetos, princípios e estereótipos,
fantasmas e preconceitos girando em torno ou nascendo em
raio de uma obsessão identitária, isto é, de uma necessidade
sempre autorreferida de preservação à outrance de um ‘eu’ ou
um ‘nós’ ameaçado [...]”

Procedimentos metodológicos
Para realização do trabalho adotou-se uma estratégia me-
todológica pautada em pesquisa multimétodos, a qual incluiu,
em um primeiro momento, a identificação dos principais
movimentos sociais que deram suporte logístico e ideológico
às manifestações, suas lideranças e outros formadores de opi-
nião centrais que as promoveram e as incentivaram em seus
respectivos campos de atuação: as redes sociais, o midiático e
o parlamentar. A pesquisa selecionou e analisou, em função

178
Débora Messenberg

de sua importância e capacidade de reverberação de seus


conteúdos, os posicionamentos dos seguintes atores sociais:

Movimentos sociais:
Movimento Brasil Livre (MBL), Vem pra rua e Re-
voltados On-line
Líderes desses movimentos:
Kim Kataguiri, Fernando Holiday, Rogério Chequer,
Marcello Reis e Beatriz Kicis
Jornalistas:
Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Rachel Shehe-
razade, Felipe Moura Brasil e Rodrigo Constantino
Deputados federais:
Jair Bolsonaro e Marco Feliciano

Na etapa seguinte, realizou-se o levantamento das pos-


tagens emitidas por esses atores sociais em suas páginas no
Facebook, ao longo do ano de 2015, além de matérias de
suas autorias publicadas em blogs, jornais e revistas, assim
como vídeos de suas entrevistas e hangouts disponíveis no
YouTube. O Netvizz,3 software de coleta de dados de redes
sociais, projetado especificamente para a extração e análise
de dados do Facebook, foi o selecionado para o levantamento
das informações compartilhadas pelos formadores de opi-
nião investigados em suas páginas públicas do Facebook. Tal
processo resultou na coleta e análise de um total de 18.923
publicações, assim distribuídas: Movimento Brasil Livre
(MBL), 4.996 postagens; Vem Pra Rua, 1.723 postagens;

3
Para maiores informações sobre o software Netvizz, acesse: <https://wiki.
digitalmethods.net/Dmi/ToolNetvizz>.

179
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

Fernando Holiday, 1.159 postagens; Kim Kataguiri, 1.051


postagens; Olavo de Carvalho, 2.175 postagens; Reinaldo
Azevedo, 1.882 postagens; Felipe Moura Brasil, 1.563 posta-
gens, Rachel Sheherazade, 548 postagens; Marco Feliciano,
2.178 postagens e Jair Bolsonaro, 318 postagens. O uso desse
software somente não foi possível no levantamento de dados
relativos àqueles atores que, por não apresentarem durante
o ano de 2015 páginas públicas na rede social, tiveram as
respectivas postagens no Facebook coletadas a partir de suas
páginas pessoais. Esses foram, especialmente, os casos de:
Rodrigo Constantino, 686 postagens; Rogério Chequer, 171
postagens; Marcelo Reis, 152 postagens e Revoltados On-
-line, 135 postagens.4 Há que se esclarecer que, conforme
a data na qual se realiza o levantamento das informações, o
número final de postagens nas páginas pessoais do Facebook
pode apresentar alguma alteração, em virtude da possibi-
lidade de retirada de certas mensagens e de acordo com a
vontade particular do responsável por ela. Isso, porém, não
trouxe distorções significativas para o presente trabalho, na
medida em que o foco da investigação encontra-se dirigido
para a análise qualitativa dos conteúdos emitidos, assim como
o número das postagens coletadas e analisadas é deveras
substancial, mesmo em relação às páginas pessoais.
Como último procedimento metodológico, organiza-
ram-se dois grupos focais, compostos por francos apoiadores
e participantes das manifestações de direita em 2015, no in-
tuito de se verificar a maneira pela qual a cosmovisão desses
formadores de opinião foi efetivamente compartilhada por
4
As postagens do movimento Revoltados On-line foram suspensas algumas
vezes ao longo do ano de 2015, devido à não adesão dos administradores
da página aos termos de compromisso exigidos pelo Facebook.

180
Débora Messenberg

tais manifestantes e como ela influenciou as suas participa-


ções nos referidos protestos. Para garantir maior qualidade e
fidedignidade às informações coletadas, procurou-se assegu-
rar certa diversidade em termos de gênero, faixa etária, renda,
nível educacional e profissão entre os participantes dos dois
grupos. A técnica de pesquisa dos grupos focais revelou-se
uma combinação produtiva entre observação participante
e entrevistas em profundidade. Mostrou-se, também, um
recurso promissor para a compreensão do processo de
construção das percepções, atitudes e representações desses
grupos sociais (Veiga; Gondim, 2001). Pretendeu-se, assim,
reagregar o espaço crítico dentro do qual se desenvolveu o
fenômeno em análise. Em vez de definir e tentar explicar os
atores por meio de atributos estáveis, tencionou-se mostrar
de que modo “os atores elaboram discursos sobre sua própria
ação” (Boltanski, 2000, p. 55).
Na interpretação dos dados coletados, optou-se pela siste-
matização de determinados campos semânticos, constituídos
por certas ideias-força, que se apresentam de forma regular
e repetitiva no discurso desses agentes sociais. Deve-se es-
clarecer que o discurso é aqui compreendido na perspectiva
de Maingueneau (1993, p. 50), ou seja:
bem menos do que um ponto de vista, (o discurso) é uma
organização de restrições que regulam uma atividade espe-
cífica. Sua enunciação não é uma cena ilusória onde seriam
ditos conteúdos elaborados em outro lugar, mas um dispo-
sitivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos
que aí se reconhecem.

Ou, como nos lembra Gill (2002.), a linguagem é tanto


construtiva quanto construída. Isso significa que nenhuma
linguagem é neutra, ao contrário, o discurso é parte essencial

181
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

da construção da vida social. As formas como as pessoas


concebem a realidade são, então, histórica e culturalmente
específicas. Compreendemos o mundo não por sua nature-
za essencial, mas pelos processos sociais. Tendo em vista o
aspecto prático de todo discurso, os atores sociais estão con-
tinuamente orientando-se pelo “contexto interpretativo” no
qual estão inseridos, e estão construindo seus discursos para
se ajustarem a ele. Reconhecer a importância do contexto na
formulação dos argumentos não significa percebê-los como
falácias deliberadas, pois a formulação de qualquer discurso
implica estabelecer uma versão do mundo diante de versões
competitivas.

Quem são os formadores de opinião dos


manifestantes de direita brasileiros?
Identificam-se como formadores de opinião lideranças
reconhecidas por suas audiências às quais
se transfere a responsabilidade de organizar cognitivamente
uma grande quantidade de informações sobre um mundo
complexo, auxiliando o cidadão a adquirir e demonstrar a com-
petência mínima que lhe exige a política. (Aldé, 2004, p. 46)

São os emissores legitimados pelo meio social receptor,


por serem distinguidos como dotados de opinião autoriza-
da, identificados como agentes com grande competência
interpretativa da realidade concreta e acesso privilegiado às
informações consideradas relevantes. São eles, portanto, os
pautadores dos interesses e das prioridades informacionais de
sua audiência e intérpretes de sua vida cotidiana e da política.
No mundo contemporâneo, os meios de comunicação
de massas e as redes digitais constituem-se nos espaços pri-

182
Débora Messenberg

vilegiados para a construção dos enquadramentos,5 os quais as


pessoas recorrem para organizar e selecionar suas atitudes
políticas. Tais enquadramentos são produzidos de forma
interativa, isto é, são resultados de um processo de mão
dupla entre os emissores e os receptores da informação, o
qual envolve tanto a repetição de padrões interpretativos
e compreensivos de forma seletiva e manipulatória quan-
to a de valores e símbolos dominantes no senso comum;
que são assim retroalimentados e/ou reformados de forma
dinâmica.
Para fins deste estudo, focaremos na discussão dos
principais enquadramentos elaborados pelos mais influentes
formadores de opinião dos manifestantes de direita bra-
sileiros (movimentos sociais, jornalistas e políticos). Tais
estruturas cognitivas, ao serem veiculadas pela mídia e redes
sociais, configuram-se em campos semânticos, compostos
por ideias-força, que são adotados por esse público como
“chaves de leitura” para a interpretação da conjuntura política
nacional e orientadores de suas ações políticas.
De início, cabe traçar a identificação dos atores sociais
selecionados como formadores de opinião dos manifestantes
de direita brasileiros. À frente e em relação aos movimentos
sociais, destacam-se: o Movimento Brasil Livre (MBL), o
Vem Pra Rua, e o Revoltados On-line.

5
A noção de enquadramento é aqui tomada no sentido goffmaniano (Goff-
man, 2012), ou seja, como “estruturas cognitivas, que organizam o pen-
samento, são compostas de crenças, atitudes, valores e preferências, bem
como de regras a respeito de como ligar diferentes ideias. São esquemas
que ‘dirigem atenção para a informação relevante, guiam sua interpre-
tação e avaliação, fornecem inferências quando a informação é falha ou
ambígua, e facilitam sua retenção’ (Fiske; Kinder, citados por Entman,
1989; apud Aldé, 2004, p. 47).

183
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

O MBL, em sua página no Facebook6, apresenta-se como


“uma entidade sem fins lucrativos que visa mobilizar cida-
dãos em favor de uma sociedade mais livre, justa e próspera.
Defendemos a Democracia, a República, a Liberdade de
Expressão e de Imprensa, o Livre Mercado, a Redução do
Estado e a Redução da Burocracia”. A primeira postagem do
Movimento Brasil Livre no Facebook foi no mês de junho
de 2013 e, em 15 de março de 2015, a página contava com
cerca de 65,5 mil fãs. Os coordenadores nacionais de maior
visibilidade do MBL são os universitários paulistas Kim
Kataguiri e Fernando Holiday.
A página do movimento Vem Pra Rua Brasil no Face-
book7 foi criada em outubro de 2014, poucos dias antes do
segundo turno das eleições presidenciais. Em sua autode-
finição na rede, o movimento conclama os seguidores a vir
para rua e “manifestar sua indignação conosco”. “Nossa
bandeira é a DEMOCRACIA, a ÉTICA NA POLÍTICA
e um ESTADO EFICIENTE e DESINCHADO”. No
dia 15 de março de 2015, a página exibia aproximadamente
331 mil fãs. O coordenador nacional do Vem Pra Rua é o
empresário paulista Rogério Chequer.
O movimento Revoltados On-line8 apresenta-se, desde
agosto de 2010, como uma comunidade no Facebook. Na
rede descreve-se como: “uma ORGANIZAÇÃO DE INI-
CIATIVA POPULAR DE COMBATE aos corruPTos do
PODER”. Em 15 de março de 2015, o Revoltados On-line
contava com cerca de 707 mil fãs. O fundador do movimen-
to é o administrador de empresas paulista Marcello Reis,
6
Disponível em: <www.facebook.com/mblivre>.
7
Disponível em: <www.facebook.com/VemPraRuaBrasil.org>.
8
Disponível em: <www.facebook.com/revoltadosonline>.

184
Débora Messenberg

e tem ainda, como figura de destaque, a procuradora do


Distrito Federal, Beatriz Kicis. O movimento exibe em suas
postagens no Facebook, como seus ícones, o Deputado Jair
Bolsonaro (PSC-RJ), o qual é carinhosamente chamado por
“Bolsomito”, e o jornalista Olavo de Carvalho, reverenciado
enquanto o “oráculo” ou “professor”.
No que diz respeito à caracterização dos líderes dos
movimentos acima apontados, convém preliminarmente
salientar o intenso intercâmbio de postagens entre esses ato-
res nas redes sociais. Isso revela uma evidente proximidade
ideológica entre eles, embora sejam observadas diferenças
significativas em termos da sofisticação intelectual, níveis
de agressividade e o teor conspiratório em seus discursos.
Kim Patroca Kataguiri nasceu em 1996, na cidade de Sal-
to (SP). Atualmente, mora em Santo André (SP), local para
onde se mudou quando foi aprovado no curso de economia
da Universidade Federal do ABC. O curso foi abandonado
logo no primeiro ano, por ter ele julgado que:
lá ensinam Marx e Keynes e ignoram os pensadores li-
berais, como Milton Friedman, Friedrich Hayek, Carl
Menger e Ludwig von Mises. Tem professor que nem
conhece esses caras.9

Sua página no Facebook contava, em outubro de 2016,


com mais de 318 mil curtidas, onde ele se apresentava
como Coordenador Nacional do MBL, colunista da Folha
de S.Paulo, do Huffpost Brasil e comentarista político da
rádio ABC.

9
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2015-03-12/
roqueiro-e-ativista-na-web-lider-anti-dilma-defende-privatizar-saude-e-
-educacao.html>.

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A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

Fernando Silva Bispo (Fernando Holiday) nasceu em


1996, na cidade de São Paulo (SP), e apresenta-se em sua
página no Facebook como Coordenador Nacional do Movi-
mento Brasil Livre e vereador eleito pela cidade de São Paulo,
com 48.055 votos. Ostentava, na rede, em outubro de 2016,
mais de 171 mil curtidas de sua página. Foi aprovado para
o curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), mas não chegou a cursá-lo. Em novembro de
2015, da tribuna da Câmara dos Deputados, resumiu assim
seu currículo pessoal e suas crenças:
a esquerda que governou este país só sabe reclamar, só sabe
se vitimizar. Eu quero dizer aqui, que eu, como negro, como
pobre, como homossexual, não me vitimizo. Eu venho aqui,
eu vou a qualquer lugar, porque eu quero lutar, eu quero
alcançar o meu sucesso, não me rastejar atrás do Estado.10

Rogério Chequer nasceu em 1968, na cidade de São


Paulo (SP). É um empresário que se descreve, em sua página
no Facebook (2.023 seguidores em outubro de 2016), como
trabalhador da State of the Art Presentation (Soap), definida
por ele “como empresa de soluções de comunicação em
momentos decisivos”.11 Chequer é formado em engenharia
de produção pela Escola Politécnica da Universidade de São
Paulo (Poli-USP) e se retrata como o único porta-voz do
movimento Vem Pra Rua. Contudo, em março de 2015,
em suas palavras, o Vem Pra Rua já contava com o apoio
direto de 2.500 pessoas, coordenadas por cerca de 150 líderes
espalhados pelas diversas capitais do país, que cuidavam di-

10
Disponível em: <https://youtu.be/QpmfMK6D_m4>.
11
Disponível em: <http://istoe.com.br/409231_O.S+MOVIMENTOS+D
E+RUA+VIERAM+PARA+FICAR+/>.

186
Débora Messenberg

retamente da administração e comunicação do movimento.


“Não somos uma empresa, somos um grupo de pessoas que
tem um propósito em comum. Temos líderes de todos os
tipos e de todas as classes sociais”.12
Marcello Cristiano Reis, nascido em 1974, na cidade de
São Paulo (SP), é administrador de empresas e fundador
do movimento Revoltados On-line. Reis era seguido, em
outubro de 2016, em sua página no Facebook, por cerca de
308 mil pessoas. Lá se encontravam registrados, de forma
insistente, os seguintes lemas: “GUERRA entre o BEM
e o MAL”, “só temos Deus na nossa FRENTE” e “NÃO
VAMOS DESISTIR DO BRASIL”. De acordo com ele, o
Revoltados On-line financiava-se basicamente a partir da
venda de “kits pró-impeachment”, compostos por camisetas
com mensagens a escolher; entre as mais emblemáticas: “Im­
peachment já”, “Fora Dilma e leve o PT junto com você”, “100%
anticomunismo”, “Deus, Família, e Liberdade”, “Keep Calm and
say no to communism in Latin America”, “Fraude: impeachment
já”, além de um boné com a logomarca do movimento e
cinco adesivos com os dizeres “Fora Dilma”.
Beatriz Kicis Torrents de Sordi, nascida em 1961, na
cidade de Resende (RJ), outra figura de destaque no mo-
vimento Revoltados On-line, é formada em Direito pela
Universidade de Brasília (UnB), procuradora aposentada do
Ministério Público Federal do Distrito Federal e exibia, em
outubro de 2016, mais de 43 mil curtidas em sua página no
Facebook. Na mesma rede, Kicis retrata-se como:
uma cidadã brasileira, advogada, procuradora do Distrito
Federal, mãe de 2 filhos, e que tem se dedicado à atividade

12
Disponível em: <https://youtu.be/oZAn4KthDJ4>.

187
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

política apartidária, na luta incansável contra o Foro de São


Paulo, organização criminosa fundada por Lula e Fidel
Castro nos anos 90. Ao tomar conhecimento deste Foro de
SP e seu projeto de implantação do comunismo na América
Latina e, ao perceber que a grande mídia silencia sobre esse
tema e tantos outros, decidiu que era sua obrigação de cidadã
compartilhar essas informações com os demais brasileiros.
Essa página é um espaço para essa missão. 13

Olavo Luiz Pimentel de Carvalho nasceu em Campinas


(SP), no ano de 1947. Não possui formação universitária,
mas se define como filósofo, ensaísta e escritor brasileiro.
Em sua página no Facebook, seguida em outubro de 2016
por 288.689 pessoas, exibe a seguinte apresentação: “apenas
um véio lôco. Lôco o bastante para ser sincero”. Considerado
como o mestre e o grande inspirador da nova geração de
direita na rede, Carvalho escreve e edita, desde 2002, o site
Mídia sem Máscara. Nele concentra suas matérias, em geral
polêmicas, sobre o que define como um combate incansá-
vel ao comunismo internacional, aos grupos de esquerda
e aos meios intelectuais e midiáticos brasileiros. Responde
pessoalmente aos comentários em sua página no Facebook,
possui mais de 6 mil seguidores em seu canal no Youtube e
participa quinzenalmente de hangouts. Carvalho publicou 21
livros e estampa uma enorme produção de artigos, ensaios
e palestras. Mora, desde 2005, em Richmond, no Estado
da Virgínia (EUA), onde mantém fortes vínculos de finan-
ciamento com o Independent Republican Institute (IRI),
vinculado ao Partido Republicano estadunidense e com a
Atlas Network.14
13
Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/biakicisoficial>.
14
A Atlas Network, anteriormente conhecida como o Atlas Economic
Research Foundation, é uma organização sem fins lucrativos sediada

188
Débora Messenberg

José Reinaldo de Azevedo e Silva, nascido em 1961 em


Dois Córregos (SP), formado em jornalismo pela Uni-
versidade Metodista de São Paulo (UMSP), ostentava, em
outubro de 2016, mais de 301 mil curtidas de sua página
no Facebook. Expõe na rede como sua citação preferida,
a seguinte frase: “escreve o que quer, ainda que não quei-
ram”. É colunista do jornal Folha de S.Paulo, sendo também
comentarista e analista político da Rede TV. De março de
2014 até maio de 2017, comandou diariamente o programa
Os pingos nos is, na rádio Jovem Pan e administrava um blog
hospedado no site da revista Veja, que exibia, em média,
cerca de 150 mil acessos diários. Publicou cinco livros nos
últimos anos, assim intitulados: Contra o consenso (2005), O
país dos petralhas (2008), Máximas de um país mínimo (2009),
O país dos petralhas 2 (2012) e Objeções de um rottweiller amoroso
(2014); cujas temáticas envolvem uma crítica ácida à política
brasileira, dirigidas especialmente aos governos do PT, assim
como aos ambientes acadêmicos e jornalísticos nacionais.
Rachel Sheherazade Barbosa, nascida em 1973, em João
Pessoa (PB), é jornalista e radialista formada em Comuni-
cação Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Atualmente, ancora o Jornal da Manhã, na Rádio Jovem Pan, e
o telejornal SBT Brasil, no SBT. Em sua página no Facebook
constavam, em outubro de 2016, mais de 2 milhões e 400
mil curtidas. Sheherazade é louvada por seus seguidores nas

nos Estados Unidos. O grupo tem como missão declarada: “fortalecer


o movimento da liberdade em todo o mundo por meio da identificação,
formação e apoio a indivíduos com potencial para fundar e desenvolver
organizações independentes eficazes”. Em 2015, a Atlas Network se
posicionava no 57º lugar entre as Top Think Tanks dos EUA. Cf. McGann,
James G. 2015 Global Go To Think Tank Index Report. University of
Pennsylvania.

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de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

redes sociais, em virtude de sua disposição em se colocar como


protetora contumaz da moral cristã e dos valores tradicionais
da família brasileira; além de reconhecerem nela uma crítica
feroz aos defensores dos direitos humanos no Brasil e aos
partidos e governos de esquerda. Do lado de seus oponen-
tes, a jornalista é acusada de “desafiar o código de ética dos
jornalistas, incitar a intolerância e o crime contra minorias
sociais”.15 Em 2015, lançou o livro intitulado O Brasil tem
cura, no qual a autora pretende fazer “uma radiografia, sem
máscaras, da nossa pátria” e “indicar soluções para os proble-
mas que adoecem o país”. Em suas palavras: “o país só será
passado a limpo se cada brasileiro fizer a sua parte e passar a
agir com integridade inegociável, ensinando essa postura às
futuras gerações” (Sheherazade, 2015, contracapa).
Felipe Moura Brasil é um jornalista carioca, nascido em
1981, e que atua como colunista no site O antagonista, criado
em 2015 pelos jornalistas Diogo Mainardi e Mário Sabino.
Comanda ainda na rádio Jovem Pan e, em substituição ao
jornalista Reinaldo Azevedo, o programa diário Os pingos nos
is. Entre os anos de 2013 e 2017, escreveu uma das colunas
mais lidas da revista Veja, atuando também como comenta-
rista no programa Estúdio Veja. Foi o organizador do livro O
mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (2013), uma
coletânea de 193 textos de autoria de Olavo de Carvalho,
cuja vendagem já ultrapassou a soma de 120 mil cópias.
Sua página no Facebook registrava, em outubro de 2016,
mais de 200 mil seguidores. Os principais conteúdos de
suas matérias, publicadas ao longo do período considerado,

15
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/sob-
pressao-sbt-barra-comentarios-rachel-sheherazade-4060.html>.

190
Débora Messenberg

recaem sistematicamente numa crítica incisiva ao governo


Dilma, em denúncias de corrupção envolvendo o Partido
dos Trabalhadores, assim como ampla defesa e divulgação
das mobilizações favoráveis ao impeachment.
Rodrigo Constantino dos Santos nasceu no Rio de
Janeiro (RJ), em 1976, e estudou economia na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). É atual­
mente o presidente do Instituto Liberal, organização sem
fins lucrativos fundada em 1983 pelo empresário Donald
Stewart Jr., com o objetivo de difundir os valores liberais da
livre iniciativa; da propriedade privada e da responsabilidade
individual. É ainda um dos idealizadores do Instituto Mil-
lenium (Imil), entidade igualmente autodenominada como
sem fins lucrativos e sem vinculação político-partidária;
constituída por intelectuais e empresários que a retratam
como um think tank que
promove valores e princípios que garantem uma sociedade
livre, com liberdade individual, direito de propriedade,
economia de mercado, democracia representativa, Estado de
Direito e limites institucionais à ação do governo.16

Constantino era seguido, em outubro de 2016, por


145.521 pessoas no Facebook, onde se apresenta com a se-
guinte citação: “um soldado incansável na luta pela liberdade,
sem medo da patrulha e do politicamente correto”.
Jair Messias Bolsonaro, nascido em Campinas (SP), em
1955, descreve-se em sua página no Facebook como capi-
tão do Exército Brasileiro e deputado federal mais votado
do Estado do RJ, com 464.565 votos. Bolsonaro exibia, em

16
Disponível em: <http://www.institutomillenium.org.br/institucional/
quem-somos/>.

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outubro de 2016, mais de 3 milhões e 350 mil curtidas em


sua página. Encontra-se em sua sétima legislatura na Câmara
dos Deputados. Elegeu-se pelo Partido Progressista (PP) em
sua última disputa eleitoral, mas atualmente está filiado ao
Partido Social Liberal (PSL). Bolsonaro afirma, em seu site
pessoal, que suas bandeiras estão solidamente fincadas na
defesa da família e do Estado brasileiro. No atual mandato,
“destaca-se na luta pela proibição do chamado ‘Kit Gay’
(cartilhas destinadas às escolas do ensino fundamental) com
forte viés de apologia ao homossexualismo e pela redução da
maioridade penal”.17 Em virtude de seu grande carisma frente
ao eleitorado, Bolsonaro conseguiu eleger seus três filhos do
primeiro casamento para mandatos parlamentares: Carlos
Bolsonaro (vereador do PSC-RJ), Flávio Bolsonaro (depu-
tado Estadual do PSC-RJ) e Eduardo Bolsonaro (deputado
federal de PSC-SP). Juntos escrevem um blog denominado
“A Família Bolsonaro”,18 no qual divulgam suas atividades
parlamentares, criticam diretamente os partidos e políticos
de esquerda, além de se apresentarem como a alternativa da
direita para dar “um novo rumo para o Brasil”.
Marco Antônio Feliciano nasceu em 1972, na cidade de
Orlândia (SP). Em sua página no Facebook, na qual cons-
tavam, em outubro de 2016, mais de 3 milhões e 900 mil
curtidas, descreve-se como o presidente da Igreja Assembleia
de Deus Catedral do Avivamento, conferencista interna-
cional, escritor, cantor e deputado federal. Encontra-se no
seu segundo mandato na Câmara dos Deputados, tendo
sido eleito pelo PSC-SP. Nas últimas eleições, Feliciano

17
Disponível em:<http://www.bolsonaro.com.br/>.
18
Disponível em: <http://familiabolsonaro.blogspot.com.br>.

192
Débora Messenberg

foi o terceiro candidato a deputado mais votado do estado


de São Paulo e o que conseguiu maior número de votos da
bancada evangélica (398.087 votos). Feliciano reconhece-se
como um defensor férreo do ideário tradicional da moral
cristã, principalmente ao que se refere a sua luta pessoal para
a aprovação do projeto de “cura gay” e a sua oposição à prá-
tica do aborto, ao controle da natalidade, à união civil entre
pessoas do mesmo sexo e à ideologia de gênero nas escolas.
Em suas palavras: “É preciso salvar a família brasileira!”.19
Além de pastor, Feliciano é empresário, autor de 18 livros
e produtor de DVDs com mensagens de autoajuda, que já
venderam mais de 600 mil cópias.
Feita a caracterização geral dos perfis dos formadores de
opinião aqui selecionados, cumpre agora elucidar os enquadra­
mentos formulados por esses atores sociais, os quais, após serem
difundidos pela mídia e redes sociais, acabam por funcionar
como quadros de referência que permitem aos seus seguidores
dar coerência às suas opiniões, escolhas e ações.

Os campos semânticos e as
ideias-força em discussão
A atual cosmovisão da direita no Brasil, compreendida
como um universo multidimensional, o qual abarca dife-
rentes tonalidades ideológicas e emissões discursivas, exige
esforço e cuidado redobrados do pesquisador para a sua
decifração. Isso porque não se trata de um universo mental
com contornos claros, nem fronteiras e limites bem defi-
nidos. Ao contrário, como nos esclarece Pierucci (1987), as
diferentes posições e alinhamentos da direita

19
Disponível em: <https://youtu.be/UCA8Z1qDqbM>.

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não são peças de um quebra-cabeça que podem ir se encai-


xando como subconjuntos independentes, formando um
todo harmonioso e confinado. Elas se interpenetram, rea-
gem uma sobre a outra, se misturam às vezes, se fagocitam
sempre, aqui se enriquecem, ali se anulam, aqui aparecem
e ali se escondem, feito massas estelares, distintas, mas nem
por isso menos nebulosas. (Pierucci, 1987, p. 40)

Não obstante, segundo o autor, é possível acompanhar a


formação dessas constelações de sentido a partir do inventá-
rio das ideias-força que se repetem e sustentam o discurso
dos sujeitos investigados, acabando por configurar certos
campos semânticos. Esse foi, como já assinalado, o procedi-
mento metodológico adotado neste trabalho, o qual resultou
na descoberta de três campos semânticos centrais no discurso
dos formadores de opinião dos manifestantes de direita nas
grandes mobilizações de 2015, e que se fundam em torno
de algumas ideias-força. O Quadro 1 abaixo é elucidativo
para esta discussão.

Quadro 1
Campos semânticos
Antipetismo Conservadorismo Princípios
moral neoliberais
Ideias-força Ideias-força Ideias-força
Impeachment (Fora Família tradicional Estado mínimo
PT, Fora Dilma, Fora
Lula)
Corrupção Resgate da fé cristã Eficiência do mercado
(privatização)
Crise econômica Patriotismo Livre iniciativa (empre-
endedorismo)
Bolivarianismo Anticomunismo Meritocracia
Combate à criminalidade/ Corte de políticas
aumento da violência sociais
Oposição às cotas raciais
Fonte: elaborado pela autora.

194
Débora Messenberg

O antipetismo é o campo semântico a reunir o maior nú-


mero de emissões discursivas dos formadores de opinião aqui
analisados, tanto nas suas postagens no Facebook, durante o ano
2015, quanto em seus sites, blogs, participações em entrevistas e
hangouts. O Partido dos Trabalhadores (PT) é, na visão desses
atores sociais, o grande responsável por todas as mazelas que
atingem o país. Ao PT é atribuída a responsabilidade tanto da
crise econômica que nos assola mais diretamente nos últimos
três anos quanto ao que é reconhecido por eles como um dos
principais, senão o principal problema do país: a corrupção. O
combate à corrupção, entendida como uma valência no mundo
contemporâneo, assume no discurso desses agentes a condição
sinonímica de combate ao PT. Expressões como “Petrolão”,
“Petralhas” “Quadrilha do PT” abundam nos discursos desses
formadores de opinião, consolidando a certeza, entre os seus
seguidores, de que a corrupção, apesar de ser reconhecida como
prática longeva na vida pública brasileira, foi erigida pelo PT
como “prática de governo”. A simbiose discursiva construída
entre o PT e as noções de corrupção e crise foram também
captadas em pesquisa realizada por Telles (2015), em Belo
Horizonte, no dia 12 de abril de 2015, junto aos manifestantes.
Segundo a autora, mais do que protestarem contra a corrupção
no país (36% admitiram estar nas ruas por esse motivo), o tema
que mais uniu os manifestantes foi o antipetismo.
Para eles, os principais males do Brasil são atribuídos aos
governantes identificados como petistas. 91% declararam
que o PT fez um grande mal ao país e 82% deram nota
0 ao PT. O antipetismo também pode ser encontrado no
julgamento que fazem dos seus quadros: 81% consideram
que Lula é um dos principais malfeitores do país, 82%
concordam que Dilma também é uma das malfeitoras...
(Telles, 2015a, p. 3)

195
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Com uma perspectiva econômica tão desastrosa, o Brasil


não vai escapar do rebaixamento. Perderemos em breve
o selo de bom pagador, e, com isso, os investidores que
ainda acreditam na nossa economia. Haverá uma fuga de
investimentos que deverá piorar ainda mais a situação do
país. Esse é o retrato da economia brasileira, sem filtro
nem maquiagem fiscal. A verdade é que, sem pedaladas,
a presidente não consegue entregar um orçamento posi-
tivo. Esse, meus caros, é o resultado da incompetência,
dos gastos descontrolados, é o preço do vale tudo para
vencer a última eleição. Essa é a consequência de 12 anos
de desgoverno do PT. Esse é o preço de eleger uma frau-
de, chamada Dilma Rousseff. É um preço alto a ser pago,
principalmente quando sabemos que ônus é dividido
entre todos os brasileiros: os que votaram e os que repu-
diaram a ‘presidenta-incompetenta.’ Eu não mereço este
governo! (Rachel Sheherazade, postagem no Facebook
em 2/9/2015)
Você, brasileiro que não mete a mão na carteira e nem no
bolso de ninguém que vive com o suor do seu rosto, você
que oferece aos seus filhos apenas aquilo que o seu trabalho
pode comprar, você que tem senso de moral, você que tem
decência que não vive pendurado nas tetas públicas, que tem
nojo desta corja que se apoderou do país, você pode chamar
os petistas de ladrões... porque quem quer fazer as coisas
vai atrás e consegue, não fica pendurado reclamando... os
judeus eram as vítimas, os petistas são os algozes. (Reinaldo
Azevedo, postagem no Facebook em 22/10/2015)
DILMA, LULA E QUADRILHA DO PT VÃO PRA
CUBA QUE TE PARIU... (Revoltados On-line, postagem
no Facebook em 16/09/2015)
Não chamem a Dilma de presidente, nem de presidenta,
nem de presidanta: vc é uma vagabunda, usurpadora, ladra,
bandida... que tá ocupando cargo indevidamente, sai daí!
Seu Lula, a mesma coisa! Por que concedê-lo a dignidade
de ex-presidente se todo mundo sabe que ele é apenas um
ladrão? E que está trabalhando para poderes estrangeiros,
tá trabalhando para Cuba, tá trabalhando pra Venezuela,

196
Débora Messenberg

tá trabalhando para Angola, não para o Brasil... até quando


vamos aceitar isso? (Olavo de Carvalho)20

As emissões discursivas acima selecionadas ilustram bem


a conexão de sentidos entre as ideias-força que sustentam
o antipetismo. Mais do que isso, revelam a virulência com
que tais discursos foram proferidos e o seu caráter fascista.21
A eleição de “bodes expiatórios” é um dos mais tradicionais
mecanismos políticos para amenizar o ódio e as frustrações
de parcelas da sociedade que se veem ameaçadas diante da-
quilo que sentem como agressões ao mesmo tempo difusas
e brutais ao seu mundo. Como nos ensina Girardet (1987),
a demonização de um grupo social real ou imaginário é um
dos pilares do “mito do complô”, que assume função social
explicativa das mais importantes no universo da política.
Ao reduzir a uma única causalidade os acontecimentos
desconcertantes e incômodos, finda por lhes restituir a inte-
ligibilidade, minimizando a terrível angústia provocada pelo
desconhecido. A personificação do mal (petistas, comunistas,
imigrantes, judeus) permite, assim, o seu fácil reconheci-
mento e, por conseguinte, a vigilância e o combate. Ademais,
encontrando-se encarnado, o mal reafirma a identidade dos
20
Disponível em: <https://youtu.be/wnzhrr1RIT4>.
21
O conceito de neofascismo aqui empregado é compreendido nos termos
definidos por Umberto Eco (1995) como “Ur-Fascismo ou Fascismo
eterno”. Trata-se de uma “nebulosa” com características peculiares, mas
que não constituem um sistema, podem muitas vezes contradizerem-se
entre si e estão também presentes em outras formas de despotismo, são
elas: 1) culto da tradição; 2) recusa da modernidade; 3) culto da ação pela
ação; 4) não aceitação de críticas; 5) medo da diferença, 6) apelo às classes
médias frustradas; 7) obsessão pelo complô; 8) sentimento de humilha-
ção pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo; 9) princípio da guerra
permanente; 10) elitismo; 11) culto do heroísmo; 12) desdém pelas mu-
lheres e condenação de hábitos sexuais não conformistas; 13) “populismo
qualitativo”; 14) “Novilíngua”.

197
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

grupos sociais que se consideram majoritários e apresenta-se


como a antítese da “normalidade”. Desse modo, fornecendo
resposta ao que não se compreende ou ao que não se aceita
na história e exercendo papel importante na reafirmação de
identidades sociais, o mito do complô termina funcionando
como instrumento poderoso para a exclusão dos diferentes
e justificador de fracassos.
O apelo ao mito do complô encontra-se ainda claramente
presente no discurso de certos formadores de opinião, ali-
nhados ao que se poderia admitir como de extrema direita
(Olavo de Carvalho, Beatriz Kicis, Marcello Reis, Rachel
Sheherazade, Bolsonaro, Feliciano e o Movimento Revolta-
dos On-line) e, principalmente, ao que se refere à ideia-força
do “bolivarianismo”.
Desde que, em 1999, após a promulgação de uma nova
Constituição, o presidente venezuelano Hugo Chávez
declarou o seu país uma “República Bolivariana”, conven-
cionou-se chamar de bolivarianos os governos de esquerda
na América Latina que questionaram o neoliberalismo e
o Consenso de Washington. De forma semelhante, tal
retórica foi utilizada para caracterizar as presidências de
Rafael Correa no Equador e a de Evo Morales na Bolívia.
Embora os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de
Dilma Rousseff nunca tenham aderido formalmente a
posicionamentos análogos, foram frequentes as acusações
de que estariam “transformando o Brasil numa Venezuela”,
por parte dos políticos da oposição e de setores da mídia e da
opinião pública. Para os formadores de opinião da extrema
direita aqui analisados, há notória articulação entre a ideia
de bolivarianismo e o comunismo, principalmente por
intermédio de uma organização denominada Foro de São

198
Débora Messenberg

Paulo.22 O Foro de São Paulo assume, particularmente nos


discursos de Olavo de Carvalho, Beatriz Kicis, Marcello
Reis e Bolsonaro, a hipérbole retórica da “personificação
do mal”, a qual se aproxima de forma característica aos
delírios de perseguição.
A função do Brasil é ser o celeiro do movimento comunista.
O Foro de São Paulo é a maior organização política que já
existiu no continente, tem 200 partidos, organizações de
narcotraficantes, as Farc, sequestradores, o MIR chileno,
Fernandinho Beira-Mar. (Olavo de Carvalho)23
O Foro de Brasília entrou com um projeto de lei no Con-
gresso para que a foice e o martelo sejam proibidos, da
mesma forma que os símbolos nazistas são para qualquer
forma de manifestação. Tem que acabar com o símbolo,
eles são perniciosos e se eles ficarem ali, eles ressurgem. O
comunismo é uma doença que cega e inebria os sentidos...
(Beatriz Kicis, postagem no Facebook em 26/12/2015)
Os cidadãos argentinos deram o seu recado quanto aos males
produzidos ao longo de anos de bolivarianismo... Esperamos
que, em 2018, o Brasil, também nas urnas, dê um fim ao
mal que assola nossa nação, em detrimento do Foro de São
Paulo... criado por Lula (PT) e Fidel Castro para garantir a
manutenção do ideal fracassado que é o socialismo, utili-

22
O Foro de São Paulo (FSP) é uma organização criada em 1990, a partir de
um seminário internacional promovido pelo Partido dos Trabalhadores
(PT), no qual estiveram presentes partidos e organizações da América
Latina e Caribe, para discutir alternativas às políticas neoliberais domi-
nantes no continente e promover a integração latino-americana no âmbito
econômico, político e cultural. A primeira reunião do Foro foi realizada
em São Paulo e, desde então, tem acontecido a cada um ou dois anos, em
diferentes cidades da América Latina. Atualmente, mais de 100 partidos
e organizações políticas participam dos encontros. As posições políticas
variam dentro de um largo espectro, que inclui partidos social-democratas,
extrema-esquerda, organizações comunitárias, sindicais e sociais ligadas à
esquerda católica, grupos étnicos e ambientalistas, organizações nacionalis-
tas e partidos comunistas (Disponível em: < http://forodesaopaulo.org>).
23
Disponível em: <https://youtu.be/wnzhrr1RIT4>

199
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

zando o suor de seus cidadãos pagadores de impostos para


se garantirem no poder. ForaForoDeSãoPaulo (Bolsonaro,
postagem no Facebook em 7/12/2015)

A narrativa mítica do complô – ainda que mantenha vín-


culos com dados factuais, inerente a toda construção mito-
lógica – estabelece uma verdadeira transformação qualitativa
da realidade, já que, na maioria das vezes, não só ultrapassa
qualquer ordem cronológica como abdica da relativização
dos fatos e situações históricas. Aqui, novamente e de forma
mais visível, o hiato entre o substrato histórico dos fatos e a
sua leitura mítica atinge amplitude considerável. O fascista
crê, firmemente, que esteja em marcha uma conspiração,
empunhada por uma sociedade secreta, cujos contornos não
estão, e nem precisam ser, muito esclarecidos. Os supostos
inimigos podem ser desde organizações, partidos, a grupos
específicos: os comunistas, os negros, os gays, as feministas e
todos aqueles que não compartilham de seu universo mental.
Sua visão de mundo é maniqueísta e encontra-se dividida
entre os que representam “o bem” e os que representam “o
mau”. Essa é, portanto, uma interpretação “despolitizada” da
realidade, na medida em que opera o deslocamento para o
plano moral, daquilo que é produto da ação humana e não da
ordem da natureza. Tende, por isso, a desconectar as falas do
movimento histórico no qual se originam (Barthes, 1989).
Estaria-se, assim, na presença de indivíduos e movimentos
sociais que alimentam fobias e preocupações generalizadas,
acirrando discursos que incitam a violência e a intolerância.
Mostram-se fartamente preconceituosos, ratificando que as
diferenças entre “nós” e “eles” são de fundo e irreconciliáveis.
Arregimentam igualmente públicos, que, desorientados em
meio a uma crise que, além de econômica e política, é tam-

200
Débora Messenberg

bém cultural, se sentem ameaçados pelo desmoronamento


de seu mundo, sendo facilmente cooptados para a defesa de
causas anti-igualitárias e soluções despóticas.
O moralismo é outro campo semântico fértil explorado
por esses formadores de opinião, e envolve ideias de cunho
claramente conservador. O conservadorismo é aqui entendido
como uma forma de resistência às transformações promovidas
pela sociedade moderna (expansão dos direitos individuais,
secularização e cosmopolitismo) e uma reafirmação dos pi-
lares da sociedade tradicional: a família, a religião e a nação
(Hirschman, 1992). Tal tríade está fortemente entrelaçada
no discurso dos formadores de opinião da direita, apesar de
apresentar graus de centralidade e radicalismo distintos. Os
elementos discursivos que com maior frequência se relacio-
nam à ideia-chave de “família tradicional” são os seguintes:
oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; ao abor-
to; à ideologia de gênero nas escolas; à expansão do feminismo
e à concordância com a “cura gay”. Os conteúdos centrais da
ideia-força “resgate da fé cristã” envolvem emissões que invo-
cam a entrega dos destinos individuais e coletivos “nas mãos
de Deus”, a profusão de mensagens de Salmos e Provérbios
bíblicos, além da crítica ao que denominam de “cristofobia”,
atribuída à esquerda. Por último, e ao que se refere a leitura
do “patriotismo” no discurso desses atores sociais, convém
destacar o seu vínculo umbilical à ideia do “anticomunismo”
(guerra permanente a esse inimigo comum); louvações às
forças armadas e incentivos à adoração dos símbolos nacionais,
com destaque para o hino e a bandeira.
Segundo os idiotas, todo homofóbico seria um gay enrusti-
do, logo, se um gay se olhar no espelho é capaz de se matar
e ainda entrar para a estatística de homofobia. Os ativistas

201
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

são uns afetados. Finalizo deixando meus respeitos aos gays


que não colocam sua sexualidade acima da competência e
se valorizam pelo que produzem ou por seus valores, não
por fazer sexo com a ‘orelha!’ (Bolsonaro, postagem no
Facebook em 2/7/2015)
Compete a mim como pai, a você como mãe educar os seus
filhos... criar os seus filhos, assistir aos seus filhos... o Estado
não pode se intrometer na minha vida familiar. Não deixe
que o movimento LGBT interfira nisso! Isto é uma questão
de foro íntimo, de pais e mães... NÃO À IDEOLOGIA DE
GÊNERO! (Marco Feliciano)24
Sua contribuição financeira ajudará para continuarmos nesta
GUERRA entre o BEM e o MAL, não temos ninguém por
trás de nós... partido ou político, só temos Deus na nossa
FRENTE... e muita disposição para ver um futuro melhor
para a nossa nação... Nossos filhos e netos nos agradecerão,
e muito, se deixarmos a omissão e partirmos para a ação!
Porque juntos somos mais FORTES! E com Deus somos
IMBATÍVEIS! (Marcello Reis, postagem no Facebook em
22/9/2015)
Dalrymple (psiquiatra) considera desumano e sensacionalis-
ta isentar a mulher totalmente de culpa ou responsabilidade
quando ela é vítima recorrente de agressões. Ele conheceu
várias e perguntava por que não abandonavam os parceiros
agressores. As respostas variavam, mas sempre em torno
de uma vitimização que trazia algum gozo a elas. (Rodrigo
Constantino, postagem no Facebook em 22/4/2015)

As emissões discursivas presentes no campo semântico


“conservadorismo moral” envolvem de forma extremada
conteúdos de natureza homofóbica, sexista, racista e xenófo-
ba. Tais intolerâncias se repetem da mesma forma, como não
poderia deixar de ser, nas duas outras ideias-força desveladas
na pesquisa: o superdimensionamento da criminalidade e da

24
Disponível em: <https://youtu.be/U,CA8Z1qDqbM>.

202
Débora Messenberg

violência no país e a oposição às cotas raciais. Desdobram-


-se, a partir da primeira, questões relacionadas ao apoio à
redução da maioridade penal, ao recrudescimento das penas
judiciais, à truculência das ações policiais e as críticas à po-
lítica de direitos humanos, à justiça brasileira e à política do
desarmamento. Com relação às cotas raciais, a conexão com
outra ideia-força também presente no discurso desses atores
é imediatamente observada. Isto é, há a percepção unânime
de que as cotas raciais ferem o princípio da meritocracia e
acirram o racismo no país.
Os marginais ditos ‘de menor’ sabem aproveitar bem a
janela de impunidade do ECA, que se fecha aos 18 anos.
Respondendo como adultos, não teriam mais o séquito de
patéticos ativistas dos direitos desumanos querendo aparecer,
advogados de rapina em busca de fama instantânea para pro-
mover suas bancas, sem falar nos demagógicos políticos de
esquerda que costumam, nessas horas, vociferar o bolorento
mantra da ‘coitadização’ dos criminosos, principalmente, dos
menores. Na lógica enviesada dos defensores de bandidos,
assassinos, ladrões, traficantes, sequestradores e estuprado-
res não passam de vítimas da sociedade, como se a pobreza
fosse desculpa para o crime, salvo conduto para o criminoso.
E se eles são as vítimas, quem seriam os algozes? Nós? Eu
não aceito essa culpa! (Rachel Sheherazade – postagem no
Facebook em 28/5/2015)
Mas, assim como criminosos e psicopatas não seguem leis,
esquerdistas dispensam a realidade e criam suas próprias
relações de causa e efeito [...]. O único efeito do desarma-
mento, ao contrário, seria deixar o caminho aberto para as
próximas – para Farc, PCC, Comando Vermelho, ADA,
atiradores escolares etc. Sem prender bandidos, sem vigiar
fronteiras, sem combater o tráfico, sem investir em cadeias
e manicômios, o governo já nos trouxe a ‘pacificação’. Ago-
ra, só pede que entreguemos nossas armas. (Felipe Moura
Brasil, 14/4/2015)

203
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

Todo negro que é contra esse vitimismo que são as cotas


raciais deve ser atacado e deve ser perseguido. O movimento
negro, hoje, no Brasil, faz um verdadeiro trabalho de capitão
do mato, perseguindo todos aqueles que não concordam
com as suas ideias, que destoam de seu discurso. As cotas
raciais acabam por reforçar o racismo. Na verdade somos
todos iguais, temos as mesmas capacidades e não precisamos
de um privilégio ou de outro. (Fernando Holiday)25

A incapacidade desses agentes em lidar com a heteroge-


neidade, seja ela de cunho étnico, seja religioso, econômico,
político ou ideológico, revela, como nos lembra Hannah
Arendt, que
o ‘estranho’ é um símbolo assustador pelo fato da diferen-
ça em si, da individualidade em si, e evoca essa esfera [da
vida privada] onde o homem não pode atuar nem mudar e
na qual tem, portanto, uma definida tendência a destruir.
(Arendt, 1989, p. 335)

Medo e impotência diante do incompreensível num con-


texto de grande frustração social – aí se encontra o cadinho
para a experiência totalitária.
Alia-se a intolerância à diferença, a revolta particular da
classe média brasileira em ter que dividir os espaços sociais
habitualmente monopolizados por ela e o medo da perda de
seus privilégios. Nos últimos treze anos, ocorreram mudan-
ças significativas no padrão de consumo das camadas mais
pobres de nossa sociedade. Mais de 20 milhões de pessoas
ultrapassaram a linha da pobreza, houve aumentos reais e
contínuos no salário-mínimo e os programas de transferên-
cia de renda, como o Bolsa Família e de inclusão social, como

25
Disponível em: <https://w w w.youtube.com/watch?v=nlJ _St4tt7A
&feature=share>.

204
Débora Messenberg

as ações afirmativas, produziram transformações concretas


nos padrões de integração e exclusão sociais no país (Avritzer,
2016). Um novo segmento social com capacidade de consu-
mo de bens duráveis e não duráveis passou a ocupar espaços
e a dividir o uso de serviços, nunca antes compartilhados
pela classe média nacional com outras camadas mais pobres
da população (aeroportos, shoppings, universidades e planos
de saúde). Mais do que dividir espaços, as manifestações de
ódio da classe média brasileira, durante os protestos de 2015,
expressavam o seu pânico em perder privilégios seculares.
Privilégios, esses, que obviamente não são vistos como tais,
mas enquanto resultado natural de um processo justo de
concorrência e mérito (Souza, 2015).
A introdução das cotas raciais nas universidades públicas
e em outros concursos produziu, em especial, um efeito
duplamente elucidativo no dimensionamento dessa revolta.
As cotas não só reduziram os espaços sociais que antes eram
concebidos como reservas de mercado para classe média
como colocaram em xeque a validade prática e normativa
dos mecanismos meritocráticos, que são fundantes para a
organização da cosmovisão dessa classe (Cavalcante, 2015).
A meritocracia é, como nos ensina Bourdieu (2007), uma
ideologia que serve de base ao consenso social e político das
sociedades capitalistas, justamente por ocultar a produção
social dos desempenhos diferenciais entre os indivíduos,
transmutando-os em “qualidades inatas”. É, pois, fonte
basilar para a naturalização das desigualdades e legitimação
da hierarquia social. Encontra-se, assim, claramente arti-
culada às críticas relacionadas às cotas sociais e justifica o
“sucesso” das classes médias nas disputas por bens materiais
e simbólicos.

205
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

Como se observa no Quadro 1, a meritocracia é uma das


ideias-força presentes no campo semântico “princípios neolibe-
rais”, o qual similarmente apresenta outras “chaves de leitura”,
a saber: Estado mínimo; eficiência do mercado; livre iniciativa
e corte de políticas sociais. Em verdade, tais concepções pro-
fessam de maneira articulada a defesa inconteste da economia
de mercado sob a égide do neoliberalismo. O neoliberalismo é
aqui compreendido à luz da tese de Dardot; Laval (2016) como
uma “racionalidade”, antes do que uma ideologia ou política
econômica. Uma racionalidade de nosso “cosmo social”, que
tende a estruturar e a organizar não apenas a ação dos governan-
tes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade
neoliberal tem como característica principal a generalização
da concorrência como norma de conduta e da empresa como
modelo de subjetivação. (Dardot; Laval, 2016, p. 17)

O neoliberalismo é, nessa perspectiva, um “sistema


normativo” que abarca discursos e práticas que expandem
a lógica do capital a todas as esferas e relações sociais.
No âmbito do discurso dos formadores de opinião,
verificam-se níveis de complexidade e sofisticação diversos
nas discussões acerca dos princípios neoliberais apontados,
revelando certo desconcerto entre um maior domínio
intelectual sobre o tema e a simulação de adesão a partir
da repetição de “chavões” clássicos do ideário liberal. Não
obstante, a lógica da concorrência e o modelo de empresa,
como normas de conduta e subjetivação, encontram-se cla-
ramente expressos em suas emissões discursivas. A exaltação
da livre iniciativa, a certeza da capacidade empreendedora
dos indivíduos e a total desconfiança em relação ao Estado
como administrador dos negócios públicos são indicadores
da introjeção desta “razão do mundo” (Dardot; Laval, 2016).

206
Débora Messenberg

O que nós precisamos nas esferas municipais, estaduais e


federal é de pessoas que digam de forma muito clara que
o Estado somente atrapalha a vida do cidadão. É você que
faz a sua vida melhorar, é você que consegue alcançar o
sucesso. Mas, para isso, você precisa ter um caminho livre,
um caminho livre de pedras, de buracos causados pelo
Estado. Precisa estar livre do peso que você carrega nas
costas, com a burocracia e com os impostos... Acredito que
quando tivermos finalmente este caminho livre, quando
o brasileiro puder correr atrás de seu sucesso, sem peso
nas costas e sem buracos na estrada, nós conseguiremos
ter um país desenvolvido e um país mais justo para todos.
(Fernando Holiday)26
O MBL defende que mais dinheiro e mais poder fique nas
mãos das pessoas, dos cidadãos e das comunidades e menos
nas mãos dos políticos. Como seria isso? Significa diminuir
impostos, diminuir o número de empresas estatais, tirar
a gestão pública de escolas e hospitais, profissionalizar a
gestão para um atendimento melhor e para que os políticos
não tenham margem para indicação desse tipo de cargos
para corrupção, como aconteceu no escândalo da Petrobras.
(Kim Kataguiri)27
O Movimento Vem Pra Rua tem três pilares: a defesa dos
preceitos democráticos, a ética na política e o Estado desin-
chado e eficiente... não somos a favor de nenhuma forma de
golpe, de nenhuma forma de intervenção militar e nada que
não seja constitucional. As coisas têm que acontecer dentro
da lei e vão acontecer dentro de princípios republicanos. É o
que defendemos. (Rogério Chequer)28

Observa-se, nos discursos dos formadores de opinião


e em particular naqueles que defendem com veemência os
princípios neoliberais (Kim Kataguiri, Fernando Holiday,

26
Disponível em: <https://w w w.youtube.com/watch?v=nlJ _St4tt7A
&feature=share>
27
Disponível em: <https://youtu.be/OWvaF56u2jU>.
28
Disponível em: <http://webcache.googleusercontent.com/search?>.

207
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

Rogério Chequer e Rodrigo Constantino), certa regularidade


de formas e conteúdos que indicam uma produção discursiva
claramente padronizada. Suspeita-se que a unidade desses
conteúdos venha a ser obra da atuação massiva dos thinks tanks
de direita no Brasil, nos últimos anos e, em especial, da Atlas
Network. De acordo com Rocha (2015), o objetivo principal
dos thinks tanks “ativistas” de direita na América Latina é o
de difundir o ideário liberal de maneira expansiva, de modo
a facilitar a proposição de políticas públicas alinhadas à “de-
fesa do livre mercado” e a aprovação desta pelas instâncias
estatais. Estar alinhado à “defesa do livre mercado” significa
fundamentalmente: “pressionar pela adoção de medidas que
incentivem a abertura de mercados, os cortes de gastos do
Estado e a privatização de empresas estatais” (Rocha, 2015, p.
270). Merece ainda destaque o fato de que atualmente prati-
camente todos os mais importantes think tanks de direita do
mundo fazem parte da rede constituída pela Atlas Network
(Rocha, 2015). Na América Latina e nos últimos dez anos,
mais do que dobrou o número de think thanks ligados à Atlas
Network, e entre eles se encontram: o Instituto Millenium,
que tem Rodrigo Constantino como um de seus fundadores,
o MBL e o Vem Pra Rua, ainda que ambos os movimentos
não reconheçam formalmente tal filiação.29
Interessante examinar, no discurso desses agentes sociais,
a convivência de elementos claramente contraditórios aos
princípios neoliberais que defendem. São ferozes partidários
do Estado mínimo, porém pressionam de todas as formas
o Estado a criar situações de concorrência e a incentivar

29
Disponível em: <http://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/.
WApss1Jly3A.email>.

208
Débora Messenberg

modelos de comportamento que direcionem a conduta dos


indivíduos no sentido de transformá-los em consumidores
e empreendedores. Propagandeiam a defesa do livre merca-
do numa economia global, mas recorrem constantemente
ao discurso de salvação da pátria. Pregam a livre iniciativa,
embora não reconheçam direitos individuais básicos. Enfim,
há que se admitir, como apontam Dardot; Laval (2016), que
o neoliberalismo, na sua forma atual, apresenta-se como
uma “razão do mundo” de natureza antidemocrática. Seu
antidemocratismo denuncia-se, quando se constata que ele
é reconhecido na contemporaneidade como a única verdade
e alternativa possível para o desenvolvimento das nações.
Outrossim, encontra-se ainda presente na submissão de
todos a um regime de concorrência universal em que
as formas de gestão na empresa, o desemprego e a precarie-
dade, a dívida e a avaliação apresentam-se como poderosas
alavancas de disputa interindividual e definem novos modos
de subjetivação. A polarização entre os que desistem e os que
são bem-sucedidos mina qualquer solidariedade e cidadania
expandida. (Dardot; Laval, 2016, p. 9)

Considerações finais
A apreensão da cosmovisão (Weltanschauung) dos princi-
pais formadores de opinião que deram suporte ideológico e
coordenaram a ação dos manifestantes de direita no Brasil,
em 2015, coloca-se como um desafio intelectual de indiscutí-
vel relevância e atualidade. O desvelamento e a compreensão
dos conteúdos centrais que envolvem as emissões discursivas
desses agentes sociais revelam-se não só importantes para o
reconhecimento do caráter ativo e reflexivo desses sujeitos
como produtores de sentido mas, principalmente, para a

209
A dir eita que sa iu do a r m á r io: a cosmov isão dos for m a dor es
de opini ão dos m a nifesta ntes de dir eita br a sileiros

identificação dos enquadramentos que orientaram grande parte


da população brasileira a se localizar no espaço político, ao
longo do período considerado.
O artigo acaba também por se inserir num plano de aná-
lise ainda pouco explorado, o qual aponta para a exacerbação
de posicionamentos fascistas em nosso país. Longe de ser
uma particularidade brasileira, esse fenômeno vem se de-
senrolando em outras partes do planeta. Para Dardot; Laval
(2016), o recrudescimento dos movimentos conservadores
e mesmo os de caráter fascista tem sua raiz nas transforma-
ções subjetivas provocadas pela hegemonia neoliberal, no
sentido do fortalecimento do egoísmo social e da recusa à
redistribuição e à solidariedade.
Para Fraser (2017), o avanço dos movimentos e dos
governos de direita no mundo sinalizam, em verdade, um
colapso da hegemonia neoliberal. Os motins eleitorais
expressos na vitória de Donald Trump nas eleições esta-
dunidenses, o voto Brexit no Reino Unido e o crescimento
do apoio à Frente Nacional na França, compartilham entre
si a rejeição de grande parte do eleitorado desses países “à
letal combinação de austeridade, livre comércio, dívida
predatória e trabalho precário e mal remunerado que ca-
racterizam o capitalismo financeirizado contemporâneo”
(Fraser, 2017). Segundo a autora, tais insubordinações
indicam, sobretudo, a déblacle de um tipo particular de
neoliberalismo, aquele que floresceu durante os últimos
governos democratas estadunidenses. É o “neoliberalismo
progressista”, o qual mesclou formas perversas de finan-
ceirização com certos ideais de emancipação (feminismo,
antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBTQ). É
essa aliança complexa que os eleitores estadunidenses, as-

210
Débora Messenberg

sim como de outros países, passaram a rejeitar. Em outros


termos e por estarem combinados, o repúdio aos efeitos
perversos da globalização acabou por defenestrar o libera-
lismo cosmopolita identificado com ela.
Finalmente, a expansão dos movimentos de direita e
até mesmo fascistas no mundo, e em particular no Brasil,
nos conduz a estarmos atentos, como nos lembra Foucault
(1993, p. 12), ao fato
de que o fascismo está em todos nós, assombrando nossos
espíritos e nossas condutas cotidianas [...] nos fazendo amar
o poder e a desejar esta coisa que nos domina e nos explora.

As polarizações políticas assistidas nos últimos anos na


vida política brasileira e acirradas pelo aprofundamento da
crise econômica são exemplos ilustrativos dessa predição
foucaultiana. Elas acabam por inviabilizar o diálogo de-
mocrático, ao aprofundar a distância entre “nós” e “eles” e
impedir a construção de canais de mediação que possibilitem
a convivência respeitosa entre contrários. Eis aí o caldo cul-
tural ideal para o agravamento de experiências autoritárias
e a procura por saídas despóticas.

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213
O impeachment nas redes
e na grande mídia
O sentimento político em redes
sociais: big data, algoritmos e
as emoções nos tuítes sobre o
impeachment de Dilma Rousseff1
Fábio M alini
Patrick Ciarelli
Jean Medeiros

Big data e análise de sentimento nas


redes sociais: debate teórico
Há consenso (embora a crítica ainda seja incipiente): é
intensa a transposição de informações pessoais e institu-
cionais para bancos de dados digitais. Com uma enorme
parcela da população utilizando diariamente as redes so-
ciais, e consequentemente deixando rastros, e a disponibi-
lidade cada vez maior de tecnologias para reter, agrupar e
processar esses dados, aqueles que possuem acesso a esse
manancial de dados prontamente passaram a utilizar tais
ferramentas para apoiar os mais diversos processos de to-
mada de decisão. Para Tufekci (2014), big data não se trata
apenas de uma quantidade maior de dados, mas de uma
grande mudança na natureza destes e sua possibilidade de
agregação a outros.

1
Artigo publicado originalmente na Liinc em Revista, vol.13, n. 2, 2017.
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

De acordo com Diebold (2012), a origem da utilização


do termo big data, ligando-o conscientemente ao fenômeno
que hoje descreve, deu-se em meados dos anos 1990, em
seminários e até mesmo anúncios publicitários da empresa
americana Silicon Graphics (SGI). No entanto, apenas em
2000 identifica-se o primeiro artigo acadêmico sobre big data,
intitulado “‘Big data’ dynamic factor models for macroe-
conomic measurement and forecasting”, produzido por ele
próprio, no campo da econometria. Para Boellstorff (2013),
a consolidação do termo big data, porém, se deu apenas por
volta de 2008. Embora seja um período curto de tempo, o
fenômeno já influencia fortemente os setores da tecnologia, o
meio acadêmico, o público, o privado, o militar, entre outros,
e movimenta muito dinheiro em torno de si.
Diebold (2012) apresenta big data não apenas como um
termo altamente disseminado, mas como um fenômeno contí-
nuo, e até então inabalável, e uma disciplina que emerge. Para
Boyd e Crawford (2011), o valor do big data não está em seu
tamanho, mas nas relações entre seus dados. A agregação dos
dados traz a configuração em rede para a análise, e dois tipos
de formação de redes podem surgir a partir desses dados: as
“redes articuladas”, resultantes da lista de contatos (amigos,
seguidores etc.) dos usuários; e as “redes de comportamento”,
derivadas dos padrões de comunicação (marcações na mesma
foto, envio de e-mail, presença no mesmo lugar etc.).
Dentro dos estudos em ciências sociais a partir de big data,
uma grande vertente é a análise de redes sociais, a partir de
fontes denominadas social data. Esses são os dados extraídos
das mídias sociais num formato legível para computadores,
sendo complementado por metadata, de modo a fornecer
não apenas o conteúdo, mas o contexto do dado. Metadata é

218
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

a inclusão de certos elementos de dado de apoio em relação


a um dado específico, como informação sobre localização,
engajamento e links (Boellstorff, 2013).
Este trabalho busca compreender o caráter emocional
inscrito no social data, a saber: tuítes publicados em dois
momentos distintos da jornada em prol do impeachment de
Dilma Rousseff. O primeiro data da eclosão das manifesta-
ções antipetistas, no dia 15 de março de 2015. O segundo,
do dia 27 de agosto de 2016, quando a presidenta é deposta
do cargo. A partir desse caso, buscamos demonstrar uma
experiência metodológica de análise de sentimento no
Twitter, a fim de demonstrar como a produção política
discursiva dos sujeitos em rede poderá, cada vez mais, ser
objeto de “algoritmos emocionais” cujo principal objetivo
será identificar os sentimentos que permeiam o debate no
espaço público virtualizado.
O campo da análise computacional de sentimento passou
a ser um desafio para entender o comportamento emocional
coletivo inscrito na cornucópia de mensagens – posts, tuítes,
updates etc. – de perfis on-line. O termo “análise de senti-
mento” (sentiment analysis) possui diferentes sinônimos na
literatura científica, tais como opinion mining, opinion extrac­
tion, sentiment mining, subjectivity analysis. “O papel da análise
de sentimento cresceu significativamente com a rápida
difusão das redes sociais, microblogs e fóruns” (Kolchyna et
al., 2016, p. 2). As opiniões expressas pela demonstração de
sentimentos passaram a ser úteis para tomada de decisões,
e isso não é só verdade para os indivíduos, mas também é
verdade para as organizações (Liu, 2010).
Existem diversas abordagens sobre a forma como os
sentimentos devem ser detectados e/ou processados. As

219
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

quatro maneiras mais viáveis de identificar e analisar sen-


timentos são: 1) por meio de sentimentos específicos, ou
seja, identificação de sentimentos preestabelecidos para o
corpora em questão, geralmente pensados de acordo com o
tema coletado (por exemplo, analisar o medo em contextos
de difusão de notícias sobre violência, ou o empoderamento
em quadros de ativismo on-line); 2) os sentimentos gené-
ricos, os quais também são preestabelecidos para análises
comparativas, porém, se inserem no termo genérico por se
enquadrar em qualquer corpora, por exemplo, alegria, raiva,
medo, empoderamento, desgosto, surpresa, confiança etc.; 3)
polaridades, nas quais se pode perceber, por meio da soma
de pontuações de palavras entre positivo e negativo, qual é
a polaridade das frases, mensagens ou perfis analisados; e
4) emoticons e/ou emojis, os quais se dividem entre positivos
e negativos ou entre sentimentos genéricos.
O primeiro visa especificar em que perspectiva os dados
são analisados. Por exemplo, se a análise está em um data
set sobre o movimento Occupy, busca-se compreender, pelo
seu conteúdo, o sentimento favorável ou contrário ao mo-
vimento, ou se um conjunto de usuários apoia ou recusa as
causas. Para tanto, o analista deve organizar um conjunto
de palavras que sirvam de filtro para melhor enquadrar os
sentimentos num conjunto de termos assertivos. Tecnica-
mente, esse conjunto de palavras denomina-se dicionário.
Assim, o sintagma “Nós somos os 99%” estará no dicionário
dos favoráveis ao movimento. E o termo “vandalismo”, no
dos contrários.
No segundo caso, o objetivo metodológico é podermos
encontrar sentimentos genéricos, como alegria, raiva, ódio,
amor, excitação, antecipação, medo, confiança etc. Para isso,

220
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

é necessária uma classificação mais profunda das palavras


no conjunto ou em um banco de dados pronto, dando mais
assertividade emocional às palavras, isto é, correlacionando
as possibilidades de sentimentos que elas podem representar.
Essa maneira pode ser mais complexa, porém, viável. E feita a
partir de uma tarefa manual supervisionada de indexação das
palavras às emoções. E pode ser simplificada, por exemplo,
ao convertermos as palavras à sua forma canônica, facilitando
encontrá-las no banco de dados. De qualquer modo, a presen-
ça dos gatekeepers é importante para qualificar a etiquetagem
que, posteriormente, o algoritmo executará em todo data set.
No terceiro caso, o foco é na frase, mas o cálculo ainda
é sobre a palavra. É um método automatizado em que a
polaridade (positivo/negativo) de uma frase pode ser calcu-
lada por ranking: 1 (um) para palavras positivas e -1 (menos
um) para palavras negativas, ou pode variar, dependendo do
quão positiva/negativa é a palavra. Dessa forma, define-se a
po­larida­de de cada frase a partir da soma das pontuações de
po­larida­de de cada palavra.
Por último, não podemos subestimar o uso de emoticons
e emojis em redes sociais. É muito comum para os usuários
empregarem essa funcionalidade de texto em mensagens,
postagens, perfis etc., já que é a forma menos complexa para
expressar sentimentos. Dessa forma, faz-se necessário cons-
truir as bases de dados ou, até mesmo, encontrar bancos já
construídos, para identificar sentimentos representados por
um emoticon ou emoji. A desvantagem é o volume baixo de
emojis ou emoticons em mensagens de redes sociais (Araújo
et al., 2013, p. 2).
Há ainda novos processos metodológicos testados. Por
exemplo, Kauer (2016) trata os sentimentos por dois métodos,

221
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

baseando-os por meio da identificação de aspectos e de atribui-


ção de polaridade. O primeiro método condiz com uma forma
que mistura a utilização de ferramentas de processamento
de linguagem natural com algoritmos de aprendizagem de
máquina. Para a segunda maneira, o autor se utiliza de um
motor de busca em que se comparam os termos analisados
com textos cujas classes de sentimento já são conhecidas.
A primeira forma é feita mediante a extração da categoria
da opinião, extração do alvo da opinião e atribuição da po-
laridade do sentimento. Esse método divide a frase em uma
trinca, que contém: a categoria, na qual representa a entidade
e os aspectos encontrados na frase; o alvo da opinião, e caso
não houver, considera-se nulo; e, por fim, o sentimento atri-
buído à opinião, sendo ele uma polaridade positiva, negativa
ou neutra, que condiz com o segundo método levantado
pelo autor.
A atribuição de polaridade de sentimento é feita por in-
termédio de um mecanismo de aprendizagem de máquina:
para cada palavra analisada, um banco é construído a partir
das associações aplicadas a elas. Se uma ou mais das palavras
da afirmação se configurarem em positivas ou negativas, será
atribuído às demais palavras da sentença a mesma polaridade
encontrada nela(s). Assim, o algoritmo vai aprendendo com
a máquina como classificar as palavras e as frases.
Já no trabalho realizado por Toret (2015) e Oscar Marín
Miró, do coletivo Outliers, a análise de sentimentos de tuítes
das mobilizações nas praças espanholas (15M) é enquadrada
a partir de sentimentos genéricos, tais como: empoderamen-
to, indignação, medo e felicidade. Eles extraíram esses senti-
mentos a partir do que definiram de contexto semântico, isto
é, os tuítes indexados com as hashtags 15M no Twitter. Para
cada emoção, geraram uma lista de expressões, sendo neces-

222
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

sário revisá-las para que não gerassem ruídos em função de


uma ou de outra expressão não estar dentro do contexto. E
assim foram capazes de criar três conceitos: “carga emocio-
nal” (fração global de tuítes indexado como emocional em
relação ao total de tuítes) e “viralidade emocional” (fração
de tuítes que são retuítes, indexados como “emocionais”
em relação ao total dentro de uma janela temporal). Com
isso foram capazes de comparar tuítes comuns e tuítes do
15M, descobrindo que o segundo tem uma carga emocional
dobrada. Isso prova uma grande força de carga emocional no
processo de mobilização social nas ruas.

A combinação entre alta e ampla ativação emocional de


milhares de pessoas (nós) e uma alta coesão de vocabulário
(sintonia de discurso e pensamento a respeito do que ocorre)
ativa uma inteligência comum e uma criatividade expandida
que permite a produção acelerada de linguagem comum, de
um corpo conectado (Toret, 2015, p. 81).
Um outro trabalho importante de se ressaltar é o dos
autores Bollen, Huina e Pepe (2011). Eles articularam a ideia
de sentimentos à de humor (mood), a partir da psicometria
definida pela escala de classificação Profile of mood states, que de-
fine os seguintes estados de ânimo: tensão, depressão, fadiga,
vigor, raiva e confusão. Os dados para a análise foram todos os
tuítes postados no segundo semestre de 2008. A fase empírica
final consistiu em comparar os tuítes coletados com aqueles
associados a grandes eventos da mídia tradicional e demais
culturas populares. O objetivo consistiu em identificar uma
relação entre as emoções expressas pelos usuários em mensa-
gens do seu cotidiano e as comparar com aquelas mensagens
que circulam sobre grandes eventos sociais e econômicos.
Em seus resultados, Bollen, Huina e Pepe (2011) pu-
deram concluir que o período coletado mostrou-se tumul-

223
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

tuado, com variações bruscas de emoções entre eventos. E


podem-se notar picos de emoções, como tensão no dia das
eleições presidenciais dos EUA e no Dia de Ação de Graças,
em que o vigor teve um aumento exponencial.
Nós concluímos que eventos sociais, políticos, culturais
e econômicos estão correlacionados significativamente,
mesmo se há atrasos nas flutuações de níveis de humor
público ao longo de uma gama de diferentes dimensões do
humor. Para concluir, nós trazemos a seguinte contribuição
metodológica: defendemos que a análise de sentimentos de
um corpora de texto-minuto (tais como os tuítes) é eficiente
obtida através de uma abordagem sintática, baseado no ter-
mo que não requer nenhum treinamento ou aprendizagem
de máquina. (Bollen; Huina; Pepe, 2011, p. 4)

Os autores aplicam uma crítica ao método de machine


learning no âmbito do seu método enraizado em uma pes-
quisa empírica psicométrica já fundamentada. Eles admi-
tem que o método de aprendizagem de máquina tem um
rendimento ótimo para uma grande quantidade de dados.
Porém, as mensagens do microblog (como o Twitter) em
questão podem trazer desafios específicos para esse tipo de
abordagem, argumentando-se que a análise de sentimento
em redes sociais flutua em função de instantes emocionais
(trending topics, por exemplo), sendo mais eficiente compreen­
der tais flutuações a partir de técnica de análise sintáticas,
permitindo a análise do sentimento dentro da esfera social
que cada um dos perfis se encontra.

Algoritmos e modos de cartografar sentimentos


A análise empírica neste trabalho foi aplicada em dois
momentos do processo de impeachment: 15 de março de
2015, dia do primeiro grande ato pró-impeachment, e no dia

224
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

27 de agosto de 2016, quando o processo é finalizado no


plenário do Senado, varrendo a análise de tuítes (data set)
contendo os termos “impeachment”, “Fora Dilma” e “Fora
PT”. Esses dados foram extraídos diretamente da API do
Twitter.
O segundo passo, o processamento dos dados coletados,
foi o mais complexo e consistiu em três etapas: 1) criação
do léxico de cada conjunto de dados; 2) validação do léxico
formado de forma a abranger o maior número de tuítes e
que retorne resultados mais precisos; 3) após a criação e va-
lidação do léxico, utilizá-lo sobre os data sets para realizar as
análises de sentimentos genéricos, sentimentos específicos
e polaridades.
Um exemplo estatístico retirado do léxico criado a partir
dos dois data sets pode ser visto abaixo nas Tabelas 1 e 2. Os
graus de cada palavra e hashtag variam entre -1 e 1, sendo -1
contra o impeachment e 1 a favor do impeachment. Tais graus
foram levantados de forma humana, ou seja, classificando-se
os tuítes, um por um, em que as palavras foram encontradas.

Tabela 1 – As palavras e hashtags mais


recorrentes do dia 15 de março de 2015
Ordem Palavras (15/3/2015) Grau Hashtags (15/03/2015) Grau
1 Dilma 1.00 impeachmentdilma 0.94
2 Impeachment 0.81 foradilma 0.98
3 Brasil 1.00 forapt 0.95
4 Pt 1.00 impeachment 0.96
5 Rua 0.88 vemprarua15demarço 1.00
6 Manifestação 1.00 vemprarua 1.00
7 Pedindo 1.00 vaiadilma 1.00
8 Brasília 0.86 vemprarua15demarço 1.00
9 Melhor 1.00 imaginaseadilma 1.00
10 País 1.00 tchaudilma 1.00
Fonte: elaborada pelos autores.

225
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

Tabela 2 – As palavras e hashtags mais


recorrentes do dia 27 de agosto de 2016
Ordem Palavras (27/8/2015) Grau Hashtags (27/8/2015) Grau
1 Impeachment -0.04 impeachment 0.29
2 Dilma 0.43 golpe -1.00
3 Venezuela -0.24 senadovotenão -1.00
4 Janaína -0.37 geraldoprado -1.00
5 Julgamento -0.09 jn 1.00
6 Processo -0.14 foratemer -1.00
7 Golpe -0.40 jornalnacional 1.00
8 Pt 0.38 julgamentodedilma -0.50
9 Janaina -0.07 eutoposdvcommafia 0.00
10 Brasil -0.13 brasilreprovadilma 1.00
Fonte: elaborada pelos autores.

Pode-se perceber nas tabelas valores diferenciados em


ambos os dias coletados. Em um primeiro momento, no
dia 15 de março de 2015, na Tabela 1, podemos ver uma
prevalência forte do movimento contrário ao governo Dilma,
no qual quase todas as palavras e hashtags mais recorrentes
têm um grau bastante elevado, senão máximo, a favor do
impeachment. Já no dia 27 de agosto de 2016, dia em que se
consolidou o processo de impedimento, vemos uma tabela
mais controversa, porém, tendendo para uma polaridade
contrária ao impeachment.
Neste trabalho, as análises de sentimentos genéricos e
de polaridade foram realizadas usando o Emolex, proposto
em Mohammad e Turney (2013). O Emolex é uma grande
base de dados de termos em inglês associados a emoções por
meio de anotações manuais. Ela é focada sobre as emoções de
alegria, tristeza, raiva, medo, confiança, desgosto, surpresa e
antecipação, defendidas por muitos como as emoções básicas
do ser humano (Plutchik, 1980). A partir dessas emoções, fo-
ram também elaboradas as polaridades de positivo, negativo

226
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

e neutro. Os termos para o Emolex foram cuidadosamente


escolhidos para incluir as palavras mais frequentes da língua
inglesa, como substantivos, verbos, adjetivos e advérbios.
A análise das anotações foi extensiva, buscando responder
questões como: o quanto uma palavra pode estar associada
a um sentimento e quantas emoções podem estar associa-
das a um mesmo termo (Mohammad; Turney, 2013). Por
exemplo, na base de dados, a palavra “unhappy” (infeliz, em
português) está associada aos sentimentos de raiva, desgosto
e tristeza (Ribeiro et al., 2016).
Neste trabalho, foi usada a ferramenta desenvolvida em
Ribeiro et al. (2016), que utiliza o Emolex para a análise de
sentimentos. Porém, esse dicionário foi traduzido para o
português, para assim realizar a análise de sentimentos dos
tuítes coletados. Um passo importante antes da utilização
do Emolex foi reduzir cada palavra presente nos comentários
dos tuítes para a sua forma canônica, ou seja, a forma como
ela aparece no dicionário. Para isso foi utilizado o software
Cogroo (Centro de Competência em Software Livre, 2017).
De modo complementar, uma segunda etapa da nossa
metodologia foi verificar se os comentários dos tuítes eram
favoráveis ou contrários ao impeachment, o que chamamos
aqui de análise de sentimentos específicos. Para isso, um
novo dicionário de palavras foi elaborado usando um algorit-
mo de otimização muito utilizado em ciência da computação
e engenharias, chamado de algoritmo genético (Houck;
Joines; Kay, 1995).
O algoritmo genético busca encontrar de forma heu-
rística a melhor solução para um problema, sendo muito
utilizado para resolver problemas cuja resolução seja difícil
ou até mesmo impossível por meios analíticos. O algoritmo

227
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

genético parte do princípio de que existe uma população


inicial de indivíduos, e estes são representados pelos seus
cromossomos genéticos, em que cada indivíduo corresponde
a uma possível solução do problema a ser resolvido. Em um
passo seguinte, ocorre a operação de avaliação, que mede
de alguma forma a capacidade do indivíduo de resolver o
problema (Houck; Joines; Kay, 1995).
Um exemplo simples de como o algoritmo genético fun-
ciona é mostrado a seguir. Imagine que seja desejado encontrar
o valor máximo da função f (x1,x2) = - x12 - x 22 + 1, onde
os valores de x1 e x 2 devem ser determinados. Por ser um
problema simples, sabe-se que o valor máximo da função é
1. O algoritmo inicialmente gerará aleatoriamente a primeira
geração de indivíduos, como mostrado nas duas colunas mais
à esquerda da Tabela 3. Cada linha é um indivíduo, composto
por dois valores, x1 e x2, onde cada um corresponde ao gene
do indivíduo. A terceira coluna mostra a avaliação de cada
indivíduo, onde o quarto indivíduo foi o melhor avaliado.
Baseado nesse resultado, a seleção dos indivíduos é feita: por
exemplo, o segundo, quarto e o quinto indivíduos.
As três colunas mais à direita na Tabela 3 mostram os indi-
víduos gerados a partir dos indivíduos selecionados na primeira
geração. Por exemplo, o primeiro e segundo indivíduos foram
obtidos por meio do cruzamento de genes do segundo e quinto
indivíduos da primeira geração. O quinto in­divíduo foi obtido
do cruzamento entre o segundo e quarto in­divíduos da pri-
meira geração. No entanto, o segundo gene dele foi alterado
por mutação de -1 para -0,5. Como pode ser observado na
avaliação da segunda geração, o segundo indivíduo encontrou
o valor máximo para a função. Portanto, a solução do problema
é x1 = 0 e x2 = 0.

228
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

Tabela 3 – Exemplo de funcionamento de algoritmo genético


1ª geração 2ª geração
x1 x2 Avaliação x1 x2 Avaliação
1 1 -1 1 -1 -1
0 -1 0 0 0 1
-1 -1 -1 1 0,5 -0,25
0,5 0,5 0,5 0,5 0 0,75
1 0 0 0,5 -0,5 0,5
1 0,5 -0,25 0 0,5 0,75

Explicado o procedimento básico de funcionamento do


algoritmo genético, a seguinte metodologia foi aplicada para a
criação do dicionário de palavras para análise de sentimentos
específicos:
a) Inicialmente, um conjunto de tuítes foi selecionado
de cada data set e foi realizada anotação manual sobre
o sentimento expresso em cada comentário.
b) A partir das anotações, as palavras presentes em cada
tuíte foram analisadas, buscando encontrar as palavras
mais associadas a cada sentimento. Para esse fim, foi
utilizado um algoritmo genético proposto em Houck,
Joines e Kay (1995). Ele foi aplicado para ponderar
cada termo de acordo com a sua relevância para cada
sentimento. Os valores associados para cada termo
estão dentro do intervalo [-1 1], em intervalos de 0,1,
sendo os de valor negativo associados a palavras contra
o impeachment e os de valor positivo a palavras favorá-
veis. O valor -1 indica alta associação com o posicio-
namento contrário, enquanto 1 indica alta associação
com favorável. O valor zero indica que a palavra não
é relevante para nenhum dos dois posicionamentos.
c) Para avaliar a qualidade da solução de cada indivíduo,
foi realizado o seguinte procedimento. Para cada tuíte

229
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

anotado manualmente, é realizada a soma das palavras


de acordo com os valores associados pelo algoritmo
genético. Por exemplo, na frase “impeachment já fora-
-dilma”, se o algoritmo forneceu os valores impea­
chment = 0,5, já = 0 e foradilma = -1, o resultado é
-0,5, sendo associado a opinião contrária ao impeach­
ment. Porém, se os valores forem impeachment = 0,3, já
= 0 e foradilma = 1, o resultado é 1,3, sendo a frase
associada a favorável ao impeachment e, portanto, mais
apropriado ao contexto da frase.
d) A melhor solução encontrada pelo algoritmo genético
sobre os dados anotados é utilizada para analisar o
resto dos tuítes nos data sets.
Eventualmente pode aparecer a condição neutra na análi-
se, o que pode significar uma de duas situações: 1) nenhum
termo do dicionário foi encontrado no comentário do tuíte;
2) os termos contrários e favoráveis acabaram se anulan-
do, tornando difícil identificar qual foi o posicionamento
expresso no comentário. Em ambos os casos, assume-se a
situação neutra, pois não é possível identificar claramente o
posicionamento.

O impeachment de Dilma Rousseff:


medição de sentimento em análises textuais
Antes de aplicar qualquer método de análise sobre os
data sets, inicialmente foram realizadas algumas etapas de
pré-processamento. A primeira etapa foi a remoção de re-
tuítes, por considerar que o uso desse artefato normalmente
pode ser contaminado pela atuação de robôs e militantes,
inflacionando a popularidade de uma determinada mensa-
gem. Após essa etapa, o data set do dia 15 de março de 2015

230
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

possuía 31.296 tuítes, enquanto que o data set do dia 27 de


agosto de 2016 possuía 7.500 tuítes. A etapa seguinte foi
aplicar o Cogroo para obter a forma canônica das palavras e
assim poder aplicar a metodologia proposta neste trabalho.
Inicialmente foi aplicado o Emolex sobre os dois data
sets para análise de sentimentos genéricos e de polaridade.
O Gráfico 1 ilustra os resultados dos sentimentos gené-
ricos sobre os dois data sets, em que cada posição no eixo
horizontal é equivalente a um dos oito sentimentos, e no
eixo vertical é apresentado o percentual de tuítes dos data
sets que apresentaram determinado sentimento. Os valores
estão em porcentagem para tornar comparável a análise dos
dois data sets.

Gráfico 1 – Análise de sentimentos genéricos

Fonte: elaborado pelos autores.

Como pode ser observado no Gráfico 1, os tuítes do dia


15 de março apresentaram em maior destaque os sentimen-
tos de antecipação, medo e raiva, ao passo que nos tuítes

231
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

do dia 27 de agosto há predominância dos sentimentos de


confiança, antecipação e raiva. Observa-se que certos sen-
timentos são pouco expressivos nas bases de dados, como
surpresa e alegria. Em 2015, o tom maior da emoção no
Twitter expressa um sentimento de ansiedade, um desejo
de antecipação do futuro amparado na vontade de fazer cair
o governo Dilma, revelando um padrão emocional que ar-
ticula a mensagem de rua a uma pressão por qualquer tipo
de mudança social. Por mais que muitos discursos apontem
o ódio como um modus operandi dos protestos anti-Dilma,
na verdade, a predominância foi a ânsia pela deposição da
presidenta, o que pode revelar um padrão emocional de
conflito quando mobilizações ocorrem contra instituições.
Já, em 2016, a confiança na derrota da presidenta, num
clima de “crônica da morte anunciada”, estimulou uma
certeza no impeachment ao mesmo tempo em que uma raiva
acumulada se expressava ali, num jogo ambíguo em que a
raiva e a comemoração confiante pela derrota coabitavam a
conversação virtual.
O Gráfico 2 ilustra os resultados da análise de polaridade
e possui estrutura similar ao do Gráfico 1. Pode-se observar
que no data set do dia 15 de março há uma maior predomi-
nância de neutralidade, enquanto as polaridades negativa e
positiva estão equilibradas. Por outro lado, no dataset do dia
27 de agosto existe uma menor quantidade de tuítes neutros.
Importante destacar que, embora o Emolex apresente um
grande potencial para a análise de sentimentos em textos,
em especial para textos curtos iguais aos de tuítes, ele não
foi capaz de analisar de forma conclusiva todos os tuítes. Por
exemplo, no dataset de 15 de março, houve 10.284 tuítes,
cerca de 32% dos data sets, que ficaram com sentimentos

232
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

indefinidos, pois não havia palavras nos tuítes presentes


no dicionário do Emolex. O mesmo foi observado para o
data set de 27 de agosto, porém em menor quantidade: 500
tuítes (cerca de 6% do data set). Esses resultados não foram
apresentados nos Gráficos 1 e 2 para não distorcer a análise
dos resultados. Trabalhos futuros podem ser guiados no
intuito de enriquecer o dicionário de palavras do Emolex,
de forma a torná-lo mais abrangente.

Gráfico 2 – Análise de polaridade

Fonte: elaborado pelos autores.

Vimos que o Gráfico 1 revelou que o sentimento pre-


dominante, em 2015, quando o impeachment se apresenta
como uma reivindicação das ruas, é o da antecipação. Por
antecipação, é preciso entender o comportamento emocional
da audiência em imaginar uma previsibilidade conclusiva de
um fato. Nesse sentido, o desejo de se fazer inevitável a queda
da Dilma foi o mecanismo mais forte desse comportamento

233
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

naquele período. Essa análise traz a possibilidade de fundar


uma hipótese para futuros trabalhos: movimentos políticos
de rua forjam a antecipação de uma irredutibilidade de sua
causa, como um modo de fazer com que ela seja encarada,
no espaço público, como uma inevitabilidade. Assim, no
caso das manifestações do dia 15 de março, no Twitter, o
inevitável seria a saída da presidenta Dilma. O modo de
exclamar essa inevitabilidade era propagar continuamente a
antecipação de enunciados endereçados à ideia que o governo
Dilma estava em seus últimos momentos.
Chama também a atenção que os sentimentos de raiva e
medo sejam as emoções mais propagadas depois da antecipa-
ção. Esse é um dado importante para compreender como os
discursos dos haters inflam a dinâmica política de conversação,
criando uma tendência para a comunicação política, a multi-
plicação de postagens cujo valor esteja na divisão da opinião.
Mesmo sendo um movimento vitorioso nas ruas e no parla-
mento, a intensidade de emoções mais negativas demonstra
o papel fundador do estilo dos hater, em pauta na dinâmica
institucional que marcou o impeachment de Dilma, que acabou
sendo, no dia 27 de setembro, o objeto muito maior de uma
confiança (como observado no Gráfico 2), de uma certeza,
de uma inevitabilidade contida nas estratégias dos perfis que
militaram nas ruas e nas redes contra o governo de Dilma.
A análise a seguir foi realizada a partir do dicionário formado
pela metodologia apresentada neste trabalho. O Gráfico 3
exibe os resultados obtidos e possui estrutura similar a dos
gráficos anteriores. Observa-se que a maior parte dos tuítes do
dia 15 de março (cerca de 67%) são favoráveis ao impeachment, e
uma margem bem reduzida é contrária. Em contrapartida, no
dia 27 de agosto há uma predominância de tuítes contrários ao
impeachment, embora exista um equilíbrio maior entre os tuítes

234
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

contrários e favoráveis. O resultado obtido sobre os data sets é


compatível com os resultados obtidos nas anotações manuais,
já que nas anotações foi obtida uma grande concentração de
tuítes favoráveis no dia 27 de agosto e um cenário mais equi-
librado do que no dia 15 de março. Em ambos os data sets, o
percentual de neutralidade foi baixo. Essa mudança no clima
das redes revelou-se como uma dinâmica importante para os
próximos estudos, já que o domínio do termo impeachment foi
modificado. Se ele era uma palavra hegemonizada pelos mo-
vimentos conservadores de rua desde 2015, diante da certeza
do impedimento ser uma operação política institucional para
neutralizar a ação da presidenta Dilma em dar prosseguimento
às investigações contra os partidos envolvidos em escândalos
de corrupção, um conjunto de manifestações da sociedade
passou a contextualizar o impeachment como um golpe parla-
mentar. Isso desde o 17 de abril, quando a Câmara vota pelo
afastamento da presidenta, por meio de articulação política do
então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (posteriormente
preso por corrupção).

As redes políticas, antes dominadas por uma polarização


entre os favoráveis e os contrários ao impedimento da presi-
denta Dilma, foram rompidas por uma saraivada de críticas ao
sistema político brasileiro no Twitter. Na época, a intensidade
de “ao vivo” na cobertura televisiva gerou um efeito reverso
à intenção dos executivos das TVs. No lugar de gerar ondas
massivas de mobilização social pró-impeachment nas ruas,
acabou por gerar um esvaziamento delas e também uma alta
indignação nas redes contra o apodrecimento da representação
política da Câmara dos Deputados. Alimentou um imaginário
crítico, ajudando a estimular postagens que denunciavam
como uma maioria parlamentar completamente desqualifi-
cada e despreparada votava um assunto tão importante num
regime democrático, um afastamento presidencial. A “onda”
contra a Câmara apenas começou: escrachos contra deputa-

235
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

dos, visualizações de processos de corrupção, alto impacto


na imprensa internacional (em alguns casos, chamando-os
de palhaços e corruptos), campanhas e correntes em redes
sociais e mobilizações de rua. Isso não vai parar. Com a TV
aberta, o imaginário contra o impedimento alcançou setores
mais populares, que, longe da certeza sobre o golpe, reforçam
o mantra do “é tudo corrupto contra uma presidenta idônea,
mas com um governo fraco”. Assim, ao chegar ao seu clí-
max, quando Senado dá o tiro de misericórdia, afastando a
presidenta, a onda anti-impeachment, pelo menos no Twitter,
expressava-se em rota de colisão com a decisão do Congresso,
que, blindado contra qualquer manifestação popular, daria a
continuidade ao pacto para “estancar a sangria da Lava Jato”,
como manifestou o senador Romero Jucá.

Gráfico 3 – Análise de sentimentos específicos

Fonte: elaborado pelos autores.

Os Gráficos 4 e 5 cruzam as informações ilustradas


anteriormente nos Gráficos 1 e 3. Em cada um, para cada

236
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

sentimento é mostrada a divisão obtida por sentimentos es-


pecíficos de contrário, neutro e a favor. Os resultados obtidos
para os dias 15 de março de 2015 e 27 de agosto de 2016 são
ilustrados nos Gráficos 4 e 5, respectivamente. As tabelas são
importantes para se analisar, mais minuciosamente, a com-
plexidade de emoções em cada período de estudo. No dia 15
de março (Gráfico 4), como já salientamos, o comportamento
dos perfis foi mais intensamente relacionado ao sentimento
de antecipação, medo e raiva, no que tange aos tuítes a favor
do impeachment. O mesmo comportamento notou-se entre os
tuítes contrários ao impeachment. Esse indicador demonstra
que a polarização política refletia, naquele momento, uma
relação de ódio mútuo entre os atores políticos, engajando
os atores dentro de campos de indignação distintos. Para a
oposição a Dilma, a indignação passava por um contexto
pós-eleitoral, quando ela vence Aécio por uma diferença
de 2% dos votos. As manifestações populares de março
eram formadas por 80% de eleitores de Aécio, ou seja, uma
base oposicionista que não aceitava os rumos do país, já em
processo de crise financeira e ajuste fiscal instalados. Em
contrapartida, a base social governista se indignava contra
as ruas, por elas não conterem pautas sociais explícitas,
mantendo toda a energia na derrubada da presidenta. Por
isso ridicularizavam as manifestações, vistas como resultan-
te de um comportamento autoritário de não aceitação das
derrotas nas urnas e pela defesa irrestrita da agenda de uma
elite empresarial, também alvo de investigações de corrup-
ção na Lava Jato. Enquanto a manifestação oposicionista
era taxada de “Marcha dos Coxinhas”, “CarnaCoxinhas”,
“Patos Verde-Amarelos”; os protestos de defesa do governo
Dilma eram nomeados de “Passeata do Pão com Mortadela”,

237
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

“Marcha dos Petralhas” etc. O clima hostil já contaminava


o quadro político brasileiro, mergulhado no domínio das
pautas-bomba, aceleradas por Eduardo Cunha.

Gráfico 4 – Análise de sentimentos genéricos


e específicos para o dia 15 de março

Fonte: elaborado pelos autores.

Quando do impedimento de Dilma, ambos os lados já


produziam textos cujo comportamento emocional tendia
para a confiança na derrocada do governo petista. Mas
são os contrários ao impeachment que hegemonizam o tom
emocional do período. Como demonstra o Gráfico 5 (refor-
çando o método empregado na Gráfico 1), os favoráveis ao
impeachment explicitavam suas certezas da morte anunciada
do governo do PT. No teatro do golpe parlamentar, toda
uma dinâmica farsesca de ritos e ditos contrastava com o
ato final: a inocência de Dilma aprovada pelos senadores,
que concluíram que houve crime de responsabilidade fis-
cal, mas não havia criminoso a se condenar. O excesso de

238
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

confiança de golpistas e golpeados é, no polo das audiên-


cias participativas do Twitter, retrato também da apatia de
segmentos da sociedade brasileira diante de um Congresso
cujos parlamentares lutavam pela sua própria sobrevivência
jurídica, afinal, em sua maioria, estavam (e ainda estão) en-
volvidos em maracutaias e atos de corrupção. É claro que
entre os contrários ao impeachment, o sentimento de medo
passou a se explicitar ainda mais, dado que o governo que
o apoiava – e o projeto político que ele simbolizava – estava
para acabar, dando vazão a um regime de governabilidade
baseado na destruição de direitos sociais recém-adquiridos.
É interessante como o sentimento de neutralidade pratica-
mente desaparece nos textos desse período, demonstrando
que os lados são devidamente formados, que é algo comum
em pautas legislativas, quando não há mediação possível
senão o contra e o a favor a um projeto de lei.

Gráfico 5 – Análise de sentimentos genéricos


e específicos para o dia 27 de agosto

Fonte: elaborado pelos autores.

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O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

Conclusão
Nosso objetivo foi demonstrar um trabalho que se
remete à testagem de uma metodologia que possa analisar
como, em momentos políticos distintos, o ânimo social se
revela distinto, em função das polaridades dos sentimentos
inscritos em mensagens no Twitter. E como diferentes téc-
nicas algorítmicas de análise de sentimento apontam para a
modulação das emoções da atenção on-line, implicando no
desenvolvimento de estratégias de comunicação e marketing
para dar ênfase a determinados comportamentos sociais,
com o objetivo de possibilitar que decisões possam ser to-
madas, ações realizadas e opiniões consumadas.
Um caminho futuro contempla enriquecer o dicionário
do Emolex, de forma a torná-lo mais abrangente e mais vol-
tado a textos escritos em português brasileiro, pois embora o
dicionário tenha sido traduzido do inglês para o português,
sabe-se que diferentes povos podem expressar de forma
diferente os sentimentos por meio de textos, e isso pode re-
duzir a assertividade do dicionário para a língua portuguesa.
O comportamento político contaminado pelo sentimento
de raiva e medo confirmou nossa hipótese de que o êxito
das manifestações ligadas ao impeachment de Dilma estava
relacionado à eficácia de trolagens e ofensas compartilhadas
em torno do alvo dos protestos (no caso, a própria presiden-
ta). A política transformada em ação de haters/lovers será a
tônica dos movimentos seguintes, focados mais em destruir
a reputação de políticos do que em enaltecer suas conquistas.
A trolagem ofensiva como mecanismo de pressão política
se conjugará com as demonstrações de certezas, já que a
percepção preditiva (sentimento de antecipação) se consoli-
dou como principal emoção dessa época. Isso implica dizer

240
Fá b io M a l i n i , Pat r ic k Ci a r e l l i e Jean Medeiros

que o futuro, nesse período, estava já previsto, sem grandes


embaraços, apesar de nele haver também o medo de como
vai se suceder – o que chamamos de ansiedade. Isso também
implica questionar se os modos de mediação são possíveis
em processos políticos baseados no empoderamento popular
a partir do comportamento de raiva e medo. É óbvio que
há também uma certa visão moralista em torno do ódio,
uma vez que ele é mais comumente lido como uma emoção
desmedida, quase irracional. Contudo, o comportamento
de indignação passa por esse sentimento. E, em certa me-
dida, a métrica do êxito de movimentos de massas precisa
levar em consideração se é o ódio o motor das dinâmicas
da indignação ou a crítica, a ironia, o deboche, o escárnio e
a franqueza. São fronteiras difíceis de cartografar, mas que
vale estar em trabalhos que lidam com a explosão de raiva
em cenários políticos.
Este artigo demonstra que se fará necessária, nos anos
que seguem, uma articulação cada vez mais intensa entre
Ciências Sociais e Ciências da Computação – o que está se
convencionando chamar de Ciências Sociais Computacio-
nais –, à medida que o trato da hiperinformação em plata-
formas de redes de relacionamento e mídias sociais produz
uma “flodagem” incontrolável, que leva o pesquisador a um
limite cognitivo, ou seja, à impossibilidade de ver a olho nu
todas as conversações geradas nas plataformas, ao mesmo
tempo que a presença de um conjunto de dados repetidos
em pesados data sets permite-nos averiguar que essa infor-
mação carrega uma variedade de sentimentos que podem
ser modelados e classificados para fins de entendimento da
opinião pública distribuída on-line. Não há análise social
por meio de big data que não possa se deslocar para o small

241
O sentim ento político em r edes soci a is: big data , a lgor itmos
e as emoções nos tuítes sobr e o impe achment de Dilm a Rousseff

data, à medida que, mesmo num aluvião de conversas, as


plataformas estimulam métricas que garantem que o com-
portamento possa ser reproduzido, por intermédio de RTs,
compartilhamentos, matches, likes, favoritação, subscrições,
enfim, um conjunto de rastros relacionais que permitem às
Ciências Sociais continuar seu fluxo de entendimento sobre
os padrões societais que estabelecemos, agora digitalmente.

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245
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246
Manifestações e votos
ao impeachment de Dilma
Rousseff na primeira página
de jornais brasileiros1
Camila Becker
Camila Cesar
Débora Gallas Steigleder
M aria Helena Weber

Introdução
O Brasil vivencia uma das mais complexas crises políti-
cas, demarcada pelo processo de impeachment da presidenta
Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), reeleita
em 2014 com mandato até 2018 e destituída,2 em 31/8/16,
pelo Senado Federal. Essa crise tem sido sustentada por ten-
táculos que insinuam uma nova ordem política, econômica e
jurídica que atinge a sociedade. A imprensa registra a disputa
de autoridade e legitimidade entre os poderes estatais, ma-
nifestações de rua, a luta contra a corrupção3 e os conceitos
e procedimentos políticos e jurídicos sobre o impeachment.

1
Artigo publicado originalmente na revista Latinoamericana de Ciencias de La
Comunicación, vol. 13 n. 24, 2016.
2
O impeachment a retirou da função, mas não lhe retirou o direito de elegi-
bilidade.
3
Principalmente por meio da Operação Lava Jato articulada pela Polícia
Federal, na qual o juiz Sérgio Moro é o principal e polêmico ator. Desvela
a rede de corrupção que associa empresas, políticos, governo e a Petrobras.
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

Alvo de disputas conceituais e simbólicas, a legitimidade do


ato e da pena imposta aparece na pergunta: “impeachment”
ou “golpe”? De um lado, a justificativa para o impedimento
(para preservar a democracia), e, do outro, a denúncia de
golpe que coloca em risco a ordem democrática.
A imprensa brasileira é protagonista no debate nacional e
cada vez mais se impõem as análises relacionadas ao ethos do
jornalismo capazes de acionar a sua responsabilidade, na me-
diação de verdades e realidades enquanto locus privilegiado­
de visibilidade e referência de democracia.
Com um pequeno recorte empírico, este texto visa con-
tribuir à reflexão sobre as estratégias editoriais em quatro
momentos de caráter deliberativo identificadas em 12 capas
de jornais brasileiros de referência: O Globo (GLO), Folha
de S.Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo (OESP). Especifica-
mente, as manifestações sociais pró-impeachment (14/3/16) e
contra o impeachment (19/3/16); a votação do encaminhamen-
to do processo da Câmara Federal ao Senado (17/4/16) e os
resultados à decisão final, no dia 18/4/16. As premissas dessa
abordagem residem na compreensão de que o impeachment­é
tema de interesse público e mobiliza um debate nacional, no
qual a imprensa tem responsabilidade sobre a formação da
opinião, devido à sua função social e poder de visibilidade.
O tema é mobilizador dos poderes nacionais e da vida da
sociedade.
A construção teórica do texto está vinculada a referências
que relacionam interesse público, comunicação, jornalis-
mo, ética e noticiabilidade em relação ao impeachment como
acontecimento público. Utiliza-se a análise de conteúdo e o
enquadramento como aporte teórico-metodológico. Nessa
base, são classificados os conteúdos de cada jornal e o respec-

248
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

tivo enquadramento na primeira página considerando que,


no debate instaurado, a imprensa participa com o poder que
lhe é atribuído como um dos atores principais da democracia.
Este artigo inicia com a contextualização do processo de
impeachment e, em seguida, o classifica como um aconteci-
mento público abordado nas primeiras páginas e analisado
a partir do conceito de enquadramento.

Democracia e impeachment
O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff
permite refletir a intervenção midiática na (des)construção
de reputações e verdades, assim como identificar o poder do
jornalismo sobre a opinião pública e o poder de mobilização
da sociedade. Diferente do presidente também cassado Fer-
nando Collor de Mello,4 que não possuía bases partidárias
e sociais, mas apoio das elites empresariais, a presidenta
Dilma pertence ao PT, que governou o país a partir de 2003,
estruturado sobre sólida base e organizações sociais, tendo
implementado políticas públicas decisivas à inclusão social e
à cidadania. Essa situação mantém ativa a mobilização social
e a disputa sobre o projeto político-econômico adotado.
O processo de impeachment teve início nas acirradas
eleições de 2014 entre PT e PSDB5 que disputaram pro-
jetos políticos, índices de desenvolvimento e acusações de
corrupção. Após a vitória de Dilma (51,64% dos votos), o
candidato derrotado Aécio Neves (48,36%) liderou diferentes
4
Primeiro presidente eleito por voto direto após 21 anos de regime militar,
renunciou pouco antes de ser cassado. Foi absolvido pelo STF e está cum-
prindo o segundo mandato como senador. Votou a favor do impeachment.
5
PSDB e PT vêm disputando as eleições à presidência da República há 22
anos, sendo que, desde 2002, o PT tem sido vitorioso elegendo Luiz Inácio
Lula da Silva e Dilma Rousseff.

249
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

ações visando a criminalização da chapa vencedora. Final-


mente, a Câmara Federal6 acolheu, em setembro de 2015,
a acusação formal sobre o crime de responsabilidade fiscal
(as “pedaladas fiscais”) associada discursivamente a críticas
sobre a paralisia econômica do país, à postura pessoal de
Dilma e sua suposta ligação com o esquema de corrupção
denunciado pela Operação Lava-Jato.
Essa situação foi seguida por centenas de manifestações
nas ruas, pró e contra impeachment, nutrindo o debate sobre
os limites da crise política brasileira. Argumentos políticos,
jurídicos e econômicos foram exaustivamente apresentados a
favor e contra a governabilidade da presidenta. Acontecimen-
tos, discursos, delações de acusados pela Lava-Jato e disputas
entre os poderes da República aceleraram o processo.
Com a aprovação na Câmara Federal por 367 a 137 vo-
tos, em 17/4/16 (um dos acontecimentos aqui analisados), o
processo de impeachment foi instaurado e afastou a presidenta
Dilma por 180 dias. Depois disso, ele foi encaminhado ao
Senado Federal, onde o impedimento definitivo ocorreu
com a votação dos senadores em 31/8/16. Com 60 votos a
favor e 21 contrários à destituição, Michel Temer assumiu
a presidência da República.
A polarização política do país foi exposta nas manifestações
de rua, dos políticos e nos media. A hostilidade manifesta em
relação à cobertura da imprensa, porém, revela o mal-estar
da população contra o impeachment, classificando o tom das
versões divulgadas como simplificadoras da complexidade
política reduzida a disputas maniqueístas entre corruptos e

6
O então presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha (PMDB), que
acolheu a denúncia, foi cassado em seu cargo e mandato no dia 12/9/2016.

250
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

guardiões da moral. Trata-se de uma capacidade associada


ao poder simbólico, definido por Lima (2016, p. 10), que
intervém “no curso dos acontecimentos”, influencia ações
e crenças e até mesmo se autoriza a criar acontecimentos
“através da produção e transmissão de formas simbólicas”.
Isso porque, historicamente, os meios de comunicação se
tornaram detentores de um importante papel de socialização
e de mediação política face a pouca credibilidade dos partidos
enquanto instrumentos de canalização de mobilização e de
participação política (Baquero, 2001).
Esses acontecimentos demarcados como políticos podem
perfeitamente ser entendidos como a disputa de um projeto
econômico, o que amplia a complexidade do debate. Como
afirma Boaventura de Sousa Santos (2014), na apresentação
de sua obra O direito dos oprimidos:
O poder capitalista é hoje um poder totalitário montado
num pedestal global donde comanda os cordéis das socie-
dades nacionais e suas esferas públicas, a que chamamos
democracia por inércia ou por não sabermos que outro nome
lhe dar. (Santos, 2014, p. 14)

Ao analisar a melhoria da qualidade das democracias a


partir de “quatro teorias democráticas”, Fishkin (2015, p. 233)
assinala a importância da opinião do povo e alerta: “quando
o ‘consentimento dos governados’ é alcançado por meio de
opiniões ‘superficiais’, o povo não sabe ou não compreende
com o que está consentindo”. A formação de opinião e mo-
bilização social estão diretamente associadas à confiabilidade
nas informações emitidas pelas instituições públicas e pela
imprensa, estruturas constitutivas da democracia. Quéré
(2005a) chama essas estruturas, constituídas por pessoas ou
instituições, de “dispositivos de confiança” das sociedades

251
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

democráticas, onde os media ocupam um espaço privilegiado.


Apesar das transformações da ecologia informacional impul-
sionadas pelas novas mídias nos últimos anos, o conteúdo
proveniente dos meios convencionais ainda é a principal
fonte provedora de informação, possuindo, portanto, uma
“posição central nas disputas pela construção simbólica do
mundo social e definição das preferências” (Miguel; Biroli,
2011, p. 82).

Debate público e imprensa


Nesse debate, importa a reflexão sobre o papel da visibi-
lidade mediática, considerando o jornalismo como uma das
dimensões fundamentais da comunicação pública devido a
sua importância na formatação das percepções públicas sobre
a política e sobre o governo. Em torno do impeachment e suas
consequências, persistem manifestações que caracterizam a
comunicação pública, porquanto pressupõe a relação entre
Estado, governo e sociedade civil. Ao assumirmos a comu-
nicação pública como indicador da qualidade das demo-
cracias, privilegiamos os estudos sobre o debate sustentado
por temas e decisões de interesse público que dependem da
visibilidade e enquadramentos da imprensa. Versões e po-
deres são disputados pelo Estado, sociedade e imprensa, em
redes de comunicação pública, como afirma Weber (2007,
p. 4), capazes de tensionar e deliberar no espaço público. Os
princípios normativos da comunicação pública balizam ainda
as expectativas em relação a uma prática comunicacional
baseada nos valores da liberdade e igualdade de participação.
A imprensa ocupa um lugar de complexidade nas de-
mocracias. Além de protagonista do debate público, tam-
bém realiza a mediação simbólica com atribuição de voz e

252
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

visibilidade que contribuem (ou não) para o tensionamento


dos limites entre interesses públicos (relativos à vontade
coletiva) e privados (mobilizados por questões de mercado
e particulares). São esses limites que colocam em xeque o
potencial democrático dos meios de comunicação (Esteves,
2003, p. 61).
Nesse sentido, cabe ressaltar a importância do jornalismo
enquanto instituição social responsável pela produção das
narrativas pelas quais indivíduos experimentam diferentes
realidades, além de construir procedimentos, critérios de
seleção e construção da notícia que permitem traçar os
contornos dessa “mundanidade” (Gomes, 2009). O debate
público que ocorre na esfera de visibilidade pública não
prescinde, portanto, do discurso jornalístico.
As mobilizações, ações e os debates sociais, políticos,
mediáticos e jurídicos desencadeados pelo processo de
impeachment­permitem compreender um acontecimento em
seu sentido hermenêutico, investido de um poder de ruptura
da ordem vigente, em que são revelados campos problemá-
ticos. Como afirma Quéré (2005b), o acontecimento exerce
um poder de revelação de outras formas de interpretar, expe-
rienciar o mundo, como um “novo horizonte de possíveis”
em relação ao futuro e ao passado. A afetação individual e
coletiva provocada pelo acontecimento é essencial para en-
tendermos as dimensões do processo de impeachment para
a democracia brasileira e, também, como revelador de um
campo problemático, como o da corrupção (política e social).
Esse trabalho trata do acontecimento público impeachment
de Dilma Rousseff, mobilizador de interesses públicos e
privados, com a participação efetiva dos media que realizam
a apropriação desse acontecimento, mobilizam atores sociais

253
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

e acionam uma cadeia de sentidos propostos à audiência. No


jornalismo, o acontecimento é a matéria-prima do seu prin-
cipal produto, a notícia, capaz de instaurar debates públicos.
Por isso, a análise do processo de construção jornalística do
acontecimento impeachment é realizada a partir da apropriação
e reescrita do fato com as linguagens/estratégias do campo.
As formas de enquadramento do jornalismo obedecem
aos critérios de noticiabilidade, à ética profissional e à sua
função social.
A rotina produtiva da imprensa aponta o interesse pú-
blico e a ética profissional como dimensões nevrálgicas na
problematização da narrativa jornalística e essenciais para o
reconhecimento e aplicação dos critérios de noticiabilidade,
definidos por Traquina (2013, p. 61) como “o conjunto de
critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer
um tratamento jornalístico, isto é, possuir um valor como
notícia”, embora sua aplicação possa ser afetada pela política
editorial da empresa que orientará a seleção e o tratamento
dos acontecimentos. Sobre isso, Neveu (2001, p. 85, tradução
nossa) afirma que
a capacidade do jornalismo de hierarquizar e problematizar
os acontecimentos e os assuntos mais importantes aponta a
capacidade central de sua influência sobre a opinião pública.

Interesse público é a noção-chave do jornalismo e consis-


te na vigilância de que o interesse da esfera civil será levado
em conta na decisão política. Gomes (2009, p. 79) afirma que
o jornalismo deve servir ao público e colocar à sua disposição
“os repertórios informativos necessários para que ele possa
influenciar a decisão política e a gestão do Estado”. Ainda
que o interesse público seja um componente indissociável,

254
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

o modelo empresarial da imprensa conforma o jornalismo


para atender à demanda do mercado e da audiência e, assim,
defende interesses políticos e econômicos.
Em meio a esses tensionamentos, a ética estabelece os
limites do compromisso do jornalismo com a verdade.
Cornu (1998) compara o dilema do jornalista em busca
da verdade dos fatos àquele enfrentado pelo historiador.
O estatuto social do jornalismo garante a sua competência
para divulgar aquilo que devemos saber sobre o mundo. A
construção deste “recorte da realidade” se daria com base na
veracidade dos fatos, na adequada seleção dos elementos da
narrativa e na justa escolha diante da infinidade de eventos
(Miguel, 2003). Esses critérios assegurariam a qualidade das
informações entregues ao público. Diante disso, o processo
de impeachment de Dilma Rousseff é tratado neste artigo
como um acontecimento público capaz de gerar debate
com a participação ativa da imprensa na orientação sobre a
percepção dos temas em discussão.

O enquadramento das
manifestações e do impeachment
O conceito de enquadramento tem por base os frames,
como “quadros da experiência social” (Goffman, 2012),
entendidos como dispositivos metodológicos para analisar
fenômenos sociais e os indivíduos envolvidos em processos
de interação. Os quadros servem como esquemas de inter-
pretação que constroem uma ideia organizadora central e
atribuem sentido aos acontecimentos, sugerindo um tema
(Traquina, 2013); são compreendidos como “marcos inter-
pretativos mais gerais construídos socialmente que permitem
às pessoas fazer sentido dos eventos e das situações sociais”

255
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

(Porto, 2002, p. 4), e a análise desses enquadramentos con-


cebe os meios de comunicação e os produtos jornalísticos (a
notícia) em uma perspectiva ativa sobre informação e trans-
formadora dela. A abordagem complementa assim a teoria
do agendamento (Mccombs; Shaw, 1972), sendo utilizada
em diversas pesquisas sobre os media e a política na intenção
de identificar estratégias textuais e representações contidas
nas coberturas jornalísticas.
Essa perspectiva orientou a análise de 12 capas dos jornais
de referência brasileiros – Folha de S.Paulo (FSP), O Estado de
S. Paulo (OESP) e O Globo (GLO) –, e o enquadramento rea-
lizado em quatro acontecimentos indicativos de deliberações
(manifestações e votos). A premissa é que esses enquadra-
mentos sustentam o debate público na disputa de verdades
na construção da realidade política, visto que o destaque
na primeira página incide, com mais rapidez, na primeira
formação e formulação de opinião. Especificamente, tem-se:
Acontecimento 1 – Repercussão das manifestações pró-
-impeachment (14/3/16);
Acontecimento 2 – Repercussão das manifestações contra
impeachment (19/3/16);
Acontecimento 3 – Expectativa da votação do impeach­
ment (17/4/16);
Acontecimento 4 – Repercussão do resultado da votação
na Câmara Federal (18/4/16).
A abordagem privilegia a identificação dos discursos
predominantes a partir das imagens e títulos que situam
estrategicamente o acontecimento e permitem identificar
o protagonismo destes jornais no debate instaurado, con-
siderando a construção de visibilidade e legitimidade dos
eventos relacionados.

256
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Os procedimentos metodológicos obedecem à classi-


ficação prevista pelas técnicas da análise de conteúdo, de
imagens, títulos e textos da primeira página de cada jornal
apresentadas nas Figuras 1, 3 e 5 e classificadas nos Quadros
2, 4 e 6, combinadas por tipo de acontecimento.

Acontecimento 1 – Manifestações pró-impeachment (14/3/16)


As manifestações acompanharam todo o processo de
impeachment, contra e a favor. No dia 14 de março, os jor-
nais publicaram a sua síntese sobre as ruas, com a devida
valoração de fatos e atores políticos, a partir de uma imagem
que se impôs.
Figura 1 – A primeira página dos jornais sobre as
manifestações pró-impeachment de 13/3/2016.

Fonte: http://oglobo.globo.com; http://acervo.estadao.com.br; http://acervo.folha.uol.com.br.


Acesso abril/16

As capas dos jornais analisados estão decodificadas


no Quadro 1.
O evento do dia 13/3/16 está nas estratégias visuais das
capas baseadas nos três ângulos da mesma foto que registra
milhares de pessoas na Avenida Paulista, em São Paulo,
na mobilização pró-impeachment. A foto representa o que
aconteceu em todas as capitais e grandes cidades do país.

257
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

QUADRO 1 – Enquadramentos na primeira página das


manifestações pró-impeachment de 13/3/16
Jornais O Globo O Estado de Folha de S.Paulo
Enqua- 14/3/16 S.Paulo 14/3/16
dramentos 14/3/16
Manchete BRASIL VAI ÀS RUAS 13/03/2016 ATO ANTI-DILMA
principal CONTRA DILMA E LULA E É O MAIOR DA
A FAVOR DE MORO HISTÓRIA

Cartola – Maior manifestação


da história

Linha de apoio – Protesto


pacífico reuniu 3,6 milhões
de pessoas em 326 cidades de
todos os estados no Distrito
Federal
Manchetes 1) Líderes de oposição são 1) 500 mil manifes-
Secundárias hostilizados tantes foram à Avenida
2) Insatisfação cresce também Paulista, calcula
no Nordeste DataFolha
3) Temporal causa destruição e 2) Juiz Sérgio Moro, da
deixa cinco mortos no Rio operação Lava Jato, é
4) Flu empata com Botafogo: saudado como herói
1x1 3) Em nota lacônica,
governo federal elogia
Artigos de opinião/assinados: caráter pacífico
5) Uma rua cheia de brasileiros 4) Povo e políticos
em coro contra a corrupção devem convergir para
6) Protestos dão respaldo para impeachment
processo de impeachment 5) Multidão a inchaço
7) Dilma assiste impassível à do poder presidencial
liquefação do seu governos sob PT
8) Moro, hoje, é o representan- 6) Desfecho está pró-
te de fato das ruas ximo, pode não passar
9) O Brasil renunciou a Dilma. de julho
Cabe ao Congresso formalizar 7) Pedem a saída de
o ato. Dilma, mas toleram
Cunha
8) PT hoje continua
sendo uma seita, a seita
da Jararaca
9) Ato pode acelerar
impeachment, diz vice-
-líder do PMDB

258
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Imagem Manifestantes ocupam total- Manifestantes Manifestantes na


Principal mente a Av.Paulista tomam as ruas Avenida Paulista
A cor verde-amarela sobressai de São Paulo
Sobressaem boneco inflável de Visão aérea
Lula presidiário e o pato mostra pato
amarelo, amarelo da
marca da FIES FIESP e faixas
verde-amarelo
Imagens Foto 1 - manifestante segura Ilustração, sob o título
Secundárias cartaz “As maiores concentra-
“Nós somos Moro” ções já medidas” lista
as maiores manifes-
Foto 2 – manifestantes mos- tações política e não-
tram maquete de apto tríplex, -políticas já ocorridas
cuja propriedade indicaria no país. Um mapa do
corrupção de Lula:”Triplex, Brasil aponta locais em
você pagou essa obra” que houve manifesta-
ções no dia 13/03
Fonte: elaborado pelas autoras.

No discurso do jornal GLO, expresso na manche-


te “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de
Moro”, as manifestações pelo afastamento indicam o
desejo nacional de todo o país e promove o juiz Moro.
Da mesma forma, a capa de OESP concentra o título à
data “13/3/2016”, mostra a ocorrência de um momento
histórico para o Brasil e nada mais precisa ser dito, escrito
ou explicado: o registro fotográfico do acontecimento é
forte o suficiente e fala por si.
As capas concentram a retórica maniqueísta do “nós”
contra “eles”, reforçada pela antagonização dos atores em uma
narrativa sobre a luta do bem contra o mal. Exemplo disso é
o emprego frequente do adjetivo “brasileiros” para se referir
aos manifestantes favoráveis ao impeachment e a construção
de um discurso consensual em torno da condenação pública
dos líderes petistas, isto é, dos inimigos do povo, em opo-
sição ao juiz Moro, tratado como o grande aliado do povo

259
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

brasileiro. Esse enquadramento, que “sequestra” a dimensão


pública do debate, ganha reforço no destaque ao número de
pessoas presentes no protesto que, mais do que mera infor-
mação, quer indicar a vontade soberana do povo para o fim
do governo de Dilma Rousseff. A FSP propõe a relação entre
a maior manifestação e a pequenez da presidenta.
A primeira página de GLO funciona como arcabouço
do quadro interpretativo que justifica o acontecimento.
Identifica-se nas chamadas da capa um esforço desses jor-
nais em torno da idoneidade do processo de impeachment e
da culpabilização e desgaste da imagem do governo petista.
Apenas OESP mostra a eloquência das ruas e deixa aberta
a interpretação, como um silêncio.

Acontecimento 2 – Manifestações contra o impeachment (19/3/16)


No dia 19 de março, os jornais publicaram na sua pri-
meira página o seu entendimento sobre as ruas contra o
impeachment­. Nesta cobertura é possível identificar a valora-
ção de fatos e atores políticos, conforme a Figura 2.
Figura 2 – A primeira página dos jornais sobre as
manifestações contra o impeachment de 18/3/2016.

Fonte: http://oglobo.globo.com; http://acervo.estadao.com.br; http://acervo.folha.uol.com.br.


Acesso abril/16

260
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Assim como as manifestações do dia 13 de março, a


imagem da rua repleta é o destaque da capa e serve como
comparação à grandiosidade da mobilização do dia 13/3. As
capas dos jornais analisados estão decodificadas no Quadro
2, no qual é possível identificar os enquadramentos:

Quadro 2 – Enquadramentos na primeira página das


manifestações contra o impeachment de 18/3/16
Jornais O Globo O Estado de S.Paulo Folha de S.Paulo
Enqua- 19/3/16 19/3/16 19/3/16
dramentos
Manchete ALIADOS DE DILMA E LULA STF SUSPENDE ATO PRÓ-
principal FAZEM MANIFESTAÇÃO EM POSSE DE LULA E -GOVERNO
TODOS OS ESTADOS MANTÉM INVES- REÚNE 95 MIL
TIGAÇÃO COM NA PAULISTA,
Cartola – Lava Jato no Planalto MORO CALCULA
DATAFOLHA
Linha de apoio – PT reúne 275 mil, Linha de apoio –
7% do público dos protestos do Gilmar Mendes acatou Linha de apoio -
domingo pelo impeachment o pedido de PSDB e Presente
PPS, que alegavam que no evento, Lula
o ex-presidente virou adota discurso
ministro para ganhar conciliador; no
foro privilegiado domingo (13), 500
mil pediram saída
de Dilma

261
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

Manchetes 1) Gilmar Mendes suspende no- 1) Janot diz que grava- 1) Ministro do STF
Secundárias meação de Lula e devolve inquérito ção de conversa é legal devolve caso de
a Moro 2) Juiz não deve buscar Lula a Moro
2) Grampo foi legal, afirma Janot “holofote”, afirma Teori 2) Equipe da PF
3) Por 26 a 2, OAB apoia impeachment 3) Câmara faz sessão será trocada se
4) Blindagem contra a prisão e inicia prazo para houver cheiro de
5) Editorial: IMPEACHMENT é impeachment vazamento
uma saída institucional da crise 4) PF acha na casa de 3) Janot chancelou
6) Um dândi na confeitaria petista laudo da Ode- a divulgação das
7) Iggy Pop em plena formaliza brecht sobre Atibaia escutas de Lula
8) Antropologia da dívida 5) Último suspeito de 4) OAB vai apoiar
ataque à Paris é preso impeachment da
Chamadas para artigos assinados na Bélgica presidente Dilma
1) O pior dos diálogos foi Lula inter- 6) TCU quer banir Rousseff
ferir na atuação da Receita Federal ministro de funções Chamadas para
2) O processo histórico em curso públicas artigos assinados
não é favorável ao PT e a Lula 7) Matarazzo deixa 5) Justiça e impren-
3) Temer se guarda pra quando o PSDB e critica gover- sa parecem colocar
carnaval chegar nador lenha na fogueira”
4) Mudar mentalidades pode ser o 8) SP tem 900 grávidas 6) Não há cortes
legado da Lava-Jato com suspeita de zika tão expostas a testes
5) Incontinência verbal de Lula como o supremo
atenta contra o bom gosto 7) Paralelo que
6) STJ já validou “grampo acidental”, ação petista faz
como o de Dilma. com Berlusconi
7) Como nos deixamos enganar é falso
dessa maneira?
8) Campeonato nacional de tiro no
pé agita o país
9) Estou me sentindo fora de moda:
nunca fui grampeada
10) Nova geração não se resigna com
vícios do passado
11) O juiz Moro e os procuradores
rasgaram a Constituição
12) Moro iniciou a maior reforma
política das últimas décadas
13) Reagir é proteger o povo de atos
de regimes de exceção

262
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Imagem Manifestação contra o impeachment Manifestantes na Manifestação


principal na Av. Paulista no dia 18/03. Av.Paulista no dia contra impeachment
Legenda – Na Paulista. A mais 18/03. na Av. Paulista.
conhecida avenida de São Paulo teve Legenda – A manifes- Foto na vertical,
11 quarteirões tomados por petistas, tação contra o impeach­ mostra a extensão
contra 23 no domingo. ment de Dilma Rousseff da passeata.
reuniu 80 mil pessoas
na Avenida Paulista, se-
gundo a Polícia Militar.
Para os organizadores,
foram 350 mil.
Imagens Charge – ilustração reproduz uma Lula, vestido de verme-
secundárias fila de políticos citados em delações e lho, com microfone e
envolvidos na Lava- Jato. protegendo o rosto
Legenda – No primeiro
pronunciamento desde
que assumiu o cargo
de ministro da Casa
Civil, Lula disse que vai
para o governo “ajudar
e não para brigar”.Ele
afirmou que voltará a
ser o “Lulinha paz e
amor” e gritou “não vai
ter golpe”.
Fonte: elaborado pelas autoras.

As edições do dia 19 de março propõem a dúvida ao leitor


ao apresentar o registro da rua contra o impeachment e cercá-
-lo de chamadas que desqualificam esta atitude. No jornal
GLO, de 10 matérias com chamadas de capa, 8 referem-se
ao processo justificado de destituição da presidenta Dilma,
assim como na FSP, todas as 8 matérias anunciadas na capa.
O tom dos conteúdos nas capas indica apoio à ideia do
impeachment, respaldada pelo suposto consenso popular de
que essas mobilizações constituem um marco histórico para
a vida política do país. Percebe-se que FSP, GLO e OESP
adotam a mesma estratégia para re-presentar as manifesta-
ções contrárias ao processo: apesar de estampar uma foto na

263
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

primeira página, o ato é apenas periférico à disputa entre o


governo e a justiça. A “vitória” do juiz Moro para prosseguir
com as investigações sobre Lula, mesmo após a polêmica do
vazamento das escutas, é assim destacada na FSP e no OESP.
O binarismo que sustenta o discurso nas capas dos três jor-
nais se articula em torno da rivalidade entre PT/Lula (ao qual
se associam os temas ligados à crise política e à corrupção) e
o Judiciário, na figura do juiz Moro e posicionamentos do
STF e OAB. O tom das capas corrobora, assim, a legitimação
do processo de impeachment e a descredibilização da figura de
liderança do ex-presidente Lula e do governo do PT.
Comparando-se o enquadramento àquele das manifesta-
ções do dia 13, fica evidente a escolha por uma antagonização
dos atores e o enaltecimento dos atos pró-impeachment. Quan-
do representam aqueles que participam das marchas contrá-
rias ao processo de impedimento, como “Aliados de Dilma
e Lula” – a exemplo de GLO –, reduzem a problemática das
manifestações a uma polarização em relação ao apoio ou não
de um governo, enquanto a questão estava no caráter legal e
constitucional da abertura do processo de destituição. Os qua-
dros jornalísticos em torno das mobilizações contra e a favor
propõem um suposto consenso em torno da judicialização do
impeachment respaldado pela opinião pública. Esse argumento
apoia-se na comparação sobre a superioridade do número
de manifestantes pró-impeachment (13/3) em relação ao 18/3.

Acontecimento 3 – Expectativas sobre a votação (17/4/16)


O dia 17 de abril foi um domingo especial: dia de trabalho
na Câmara Federal e de ler as expectativas da imprensa sobre
o encaminhamento do impeachment que foi apresentado como
um jogo, à exceção do GLO, conforme Figura 3.

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C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Figura 3: A primeira página dos jornais no dia de votação


do processo de impeachment, na Câmara Federal.

Fonte: http://oglobo.globo.com; http://acervo.estadao.com.br;


http://acervo.folha.uol.com.br. Acesso abril/16

O encaminhamento do processo foi destaque na impren-


sa nacional e internacional. As capas dos jornais analisados
estão decodificadas no Quadro 3, no qual é possível identi-
ficar os enquadramentos:

Quadro 3 – Enquadramentos sobre o encaminhamento do


processo de impeachment, na Câmara Federal
Jornais O Globo O Estado de S.Paulo Folha de S.Paulo
Enqua- 17/4/16 17/4/16 17/4/16
dramentos
Manchete DILMA E TEMER O DESTINO DE DIL- COM MAIORIA CON-
principal NEGOCIAM PESSOAL- MA E DO BRASIL NAS TRÁRIA A DILMA,
MENTE CADA VOTO MÃOS DA CÂMARA CÂMARA VOTA HOJE
IMPEACHMENT
Cartola – A guerra do Linha de apoio - Placar do
impeachment Impeachment feito pelo Es- Linha de apoio - À beira
tado indicava à 0h30 que de decisão, os dois lados
Linha de apoio -Câmara co- a oposição tinha os votos afirmam ter apoio para
meça hoje a discutir destino necessários para aprovar o vencer. Manifestantes
da presidente 24 anos depois andamento do processo; realizam atos pró e
do afastamento de Collor e ontem, Temer acusou contra deposição. Temer
13 anos após o PT chegar Dilma de usar “mentira rebate presidente sobre
ao poder rasteira” ao afirmar que ele cortes sociais. “É mentira
cortaria programas sociais rasteira”

265
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

Manchetes 1) Editorial: Não vai ter 1) Grupo de 8 deputados Chamadas para artigos
Secundárias mesmo golpe veteranos prepara, há um assinados
2 )Para tirar dúvidas sobre o ano, o impeachment
processo 2) Dilma considera que 1) Leia “Decisão da
3) O declínio da presidente seu maior erro foi demorar Câmara”, a respeito de
incidental a reagir votação que resolverá
4) Notas de um longínquo 3) Manifestações pro e sobre a abertura do
1992 contra governo acontecem processo de impeachment
5) Dois futuros para um em todo país e dos desafios que se
mesmo país 4)Um dia decisivo apresentam ao país
6) Campo de batalha 2) Se Câmara respeitar a
7) Nomeação “extra” no Constituição, não haverá
Diário Oficial impeachment
3) Presidente Dilma foi
omissa ou conivente, o
Chamadas para artigos que seria ainda pior
assinados 4) 7 pecados da presi-
8) Tudo indica que começa dente
transição que deveria ter 5) 23 colunistas da Folha
ocorrido em 2014 expõem os desafios do
9) 17 de abril é um dia país
inesquecível para Dilma, 6) Plano governista de
Lula e FHC fritar o PMD está no cen-
10) O ex-senador Gim tro da atual crise
Argello já negocia delação 7) Brasil é historicamente
premiada inapto para viver sob
11) A soma das tempestades regime democrático
que atingiram Dilma 8) Seguindo-se todos os
12) O dia seguinte projeta ritos formais, falar em
enigma sobre o país golpe será inaceitável
13) Quem vier a assumir já 9) Sem junho de 2013,
entra devendo destino do governo teria
14) Um dia de derrota para sido diferente?
um pais dividido ao meio
15) Para sempre, a imagem
de Cunha no espelho
16) Temer seria o 3° presi-
dente do PMDB que não era
cabeça de chapa

266
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Imagem Foto do Plenário da Câmara Foto-montagem: do Tabela com os nomes de


principal dos deputados, onde ocorre- rosto da presidenta Dilma todos os deputados e seus
rá a votação. Roussef com o nome prováveis votos sobre o
de todos os deputados a impeachment..
votarem pelo impeachment.
Os nomes e o número de
votos são escritos em azul,
se a favor, e em vermelho,
se contra o impechament.
O texto cobre o rosto da
presidenta, como imagem
de fundo.
A foto ocupa a capa inteira.
Imagens Charge – Imagem do juiz
secundárias Sérgio Moro vestido de
Super-Homem seguido de
uma tormenta em forma de
mapa do Brasil.
Fonte: elaborado pelas autoras.

No OESP, um “placar do impeachment” foi montado


sobre a imagem do rosto da presidenta Dilma Rousseff,
identificando os nomes dos deputados favoráveis e contrários
em azul e vermelho e o provável número de votos. Como
resultado de uma partida de futebol, o jornal endossou a
polarização política, incitou o binarismo e simplificou o
acontecimento.
No jornal GLO, o título “Campo de batalha”, abaixo da
foto principal, que mostra o plenário da Câmara sendo prepa-
rado para a votação, assim como a cartola “A guerra do Impea­
chment” e a manchete “Dilma e Temer negociam pessoalmente
cada voto” evidenciam, mais uma vez, o enquadramento de
conflito e a antagonização entre os que apoiam e os que negam
a legitimidade do procedimento. A atmosfera de expectativa
é traduzida pela comparação entre Dilma e Collor. Nas cha-
madas de capa, noções negativas como mentira, desespero e
desafetos são associadas à Dilma, como a declaração do então

267
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

vice-presidente classificando como “mentiras rasteiras” os


rumores sobre o fim do Bolsa Família, caso ele assumisse;
sobre a nomeação de novos ministérios e autarquias por estar
à “caça” de votos contrários ao impeachment; e à sua persona-
lidade “centralizadora, desconfiada e avessa a negociar com
políticos”, como a descreve uma das chamadas.
Ficam evidentes a personalização e a simplificação do
acontecimento, destituído de sua complexidade social, ju-
rídica e política. Um outro elemento interessante a destacar
no GLO desse dia é a charge de Chico Caruso, que alude
ao ditado “quem está na chuva é para se molhar”, e que o
juiz Moro é mais poderoso que o ex-presidente Lula, pois é
capaz de “protegê-lo” (mesmo que necessite prendê-lo). A
jocosidade da imagem contém uma mensagem moralizante
pelo jogo entre herói e bandido.
A estratégia de culpabilização de Dilma Rousseff é os-
tensivamente empregada em OESP, que destaca um suposto
arrependimento da presidenta por não ter agido antes (face
à crise). É possível deduzir, então, que é a responsável pelos
problemas que assolam o governo e o Brasil. Outra vez, as
“mentiras rasteiras” são destaque de capa e contribuem para
atacar a índole de Dilma. Os artigos apontam, também, para
os “pecados”, a “soberba” da presidenta como justificativas
à ruína política e econômica do país mal administrado “por
preguiça”. A capa personaliza a crise e a reduz à moralidade.

Acontecimento 4 – Repercussão da votação (18/4/16)


Nas capas de 18 de abril de 2016, houve a repercussão
da votação que aprovou o encaminhamento do processo
de impeachment ao Senado e afastou a presidenta Dilma.
Fato que repercutiu na imprensa nacional e internacional,

268
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

surpresa com os embates e as justificativas religiosas,


passionais e agressivas durante a votação. Às declara-
ções, somou-se o impacto visual de milhares de pessoas
separadas por muro, na Esplanada dos Ministérios, para
evitar confrontos. Os jornais se ativeram a publicar os
resultados, conforme mostra a Figura 4. Era o dia de es-
crever impeachment, mostrar a alegria da vitória e publicar
as expectativas sobre o país.
Figura 4: A primeira página dos jornais no dia seguinte à
votação que autoriza o processo de impeachment.

Fonte: http://oglobo.globo.com; http://acervo.estadao.com.br;


http://acervo.folha.uol.com.br. Acesso abril/16

As capas podem ser divididas entre OESP e FSP, de um


lado, que usam a palavra ‘impeachment’ como balizadora, mais
jornalística do que a sentença proferida por GLO. Os enquadra-
mentos das primeiras páginas estão classificados no Quadro 4:
As primeiras páginas foram preenchidas com a votação
e dão sinais de alívio e otimismo com o avanço do processo.
Ressaltam os textos dos articulistas, como em GLO e FSP,
que exemplificam os quadros interpretativos oferecidos pelas
capas dos jornais neste dia.

269
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

Quadro 3 – Enquadramentos do resultado da votação na


Câmara Federal sobre encaminhamento do processo de
impeachment
Jornais O Globo O Estado de S.Paulo Folha de S.Paulo
18/4/16 18/4/16 18/4/16
Enqua-
dramentos
Manchete PERTO DO FIM IMPEACHMENT IMPEACHMENT!
principal AVANÇA
Cartola - Batalha no Congresso Cartola - Sim 367 x
Cartola - Edição 137 Não (7 absten-
Linha de Apoio - Por 367 votos, Especial ções e 2 ausências)
25 a mais que o necessário,
Câmara aprova autorização Linhas de apoio – 367 Linha de apoio –
para processo de impeachment da deputados votaram a Câmara autoriza
presidente Dilma favor e 146, contra; processo contra a
Dilma promete “lutar presidente Dilma
até o fim” mas Planal- Rousseff; Planalto diz
to vê situação dramá- que lutará até o fim, e
tica; Oposição tenta Temer fala em “gran-
antecipar decisão do de responsabilidade”
Senado, prevista para
dia 11; Milhares vão
às ruas em 23 Estados
do País

270
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Manchetes Chamadas para artigos 1) Temer começa


Secundárias assinados a definir eventual
1) Editorial: Um passo para o ministério
impeachment
2) Resta tentar o recomeço Chamadas para
3) Caminho será árduo artigos assinados
4) Não dá para ter pena 2) IMPEACHMENT
5) A República de joelhos é punição exemplar
6) Os inimigos de Temer para fraude fiscal
7) Prevaleceu a Lei de Ibsen 3) Petista colheu o
8) Com quem Temer conta? que plantou; clima era
9) Temer não terá direito de de vingança
errar 4) Durante semanas,
10) Uma derrota da esquerda país terá governo pela
11) O ocaso do ciclo mágico metade
12) Impedimento começou 5) Vice é presa frágil
no PT por estar mais perto
13) O início do processo da Lava Jato
14) Dilma perdeu suas chances 6) Vexames na vota-
15) Um presidente no limbo ção pedem reformas
16) O quarto turno de Temer 7) Deputados votam
17) Faltou o ritual da sedução por Israel, maços,
18) Tudo depende da cabeça de netos, corretores e...
Lula 8)Não ter defensores
19) O governo não foi para tudo no exterior é culpa do
20) A exclusão da diferença próprio governo
21) É bom manter o Temer vivo
22) Uma fratura exposta
23) Pode haver retrocesso ético
24) O país vê suas entranhas
Imagem Imagem de deputados, no Ple- Imagem que ocupa Deputados come-
principal nário, após o anúncio do voto quase toda a página moram a aprovação
decisivo do deputado Bruno mostra deputados do processo de
Araújo, favorável ao impeachmentem comemoração no impeachment na Cã-
, carregado pelos colegas e Plenário, celulares, mara dos Deputados;
outros seguram cartazes com a filmando e fotogra- os parlamentares
frase “Tchau, querida”. fando. Outros em seguram cartazes
volta da mesa diretora com os dizeres
Legenda: - Comemoração: ao redor do presidente “Tchau, querida” nas
O deputado Bruno Araújo Eduardo Cunha, sob cores verde e amarela.
(PSDB-PE), que deu o voto chuva de papel picado. Alguns também
342, é festejado por colegas Os parlamentares em- seguram bandeiras de
de oposição no plenário. Pela punham bandeiras do estados.
segunda vez desde a redemo- Brasil e cartazes com
cratização, a Câmara autoriza o os dizeres “Tchau, Legenda – Deputados
impeachment de um presidente querida” e “IMPE­ comemoram voto
da República ACHMENT já” em decisivo a favor do
verde e amarelo impeachment da presi-
dente Dilma

271
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

Imagens Charge mostra a silhueta de Michel Temer sorri


secundárias Michel Temer com um rabo diante da votação
de raposa pela televisão, junto a
aliados.

Legenda - O vice Mi-


chel Temer (PMDB)
e aliados acompa-
nham a votação no
Palácio do Jaburu

As imagens são o maior destaque e retratam os depu-


tados de oposição eufóricos em votação decisiva a favor do
impeachment­. OESP estampa somente manchete, linhas de
apoio em fonte reduzida e a fotografia da sessão, sob chuva de
papel picado. O enquadramento da comemoração é ratificado
pela foto, sugerindo que os políticos representaram os bra-
sileiros (todos) favoráveis à aprovação do encaminhamento
do processo de afastamento da presidenta.
Buscando justificar a possível destituição de Dilma
Rousseff e legitimar o apoio popular à medida, a capa da
FSP é idêntica àquela de 30 de setembro de 1992, referente
ao impeachment do então presidente Collor. Com a manchete
“Impeachment!” ratifica, assim, sua opinião sobre a igualdade
dos dois governantes, ignorando diferenças e argumentos
jurídicos. A edição valoriza o vice Michel Temer (tranquilo
e sorridente com apoiadores), preparado para assumir o go-
verno. Especialmente, nas chamadas dos articulistas, a FSP
insiste na culpa de Dilma pela situação de baixa popularidade
e pela crise que culminou na aprovação do impedimento. A
oposição entre esses dois atores ilustra o grau de interferên-
cia simbólica na construção e cristalização de uma versão
“correta” da realidade e, como tal, orientadora de percepções
e opiniões sobre o acontecimento.

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C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

Com a manchete “Impeachment avança”, o jornal OESP


aposta no enfraquecimento de Dilma e na força da oposição,
capaz de articular a vitória no Senado. É a capa mais sinteti-
zada e valoriza a euforia dos deputados federais. A manchete
do GLO, “Perto do Fim”, justifica o clima festivo da foto.
Os textos das linhas de apoio reforçam a ideia de alívio e
comemoração. Ao mesmo tempo, indica o desejo “das ruas”
para justificar o placar da votação, transmutando assim um
problema de natureza societal (pública) em uma preocupação
societária (privada). Essa posição é reiteradamente apresen-
tada nos media como desejo da maioria. O jornal considera
certo o afastamento da presidenta, a presidência de Michel
Temer e classifica Dilma (sem apoio) e o PT (desacreditado)
como perdedores da guerra contra o juiz Moro e contra
o PMDB. Afirma que a Câmara apenas sacramentou tal
derrota. O contraditório na capa fica por conta da charge
que retrata o vice Temer com um rabo de raposa, animal de
esperteza única e como tal citado em Maquiavel.

Considerações finais
A sucinta análise das primeiras páginas dos jornais, ape-
sar da minuciosa descrição dos enquadramentos, permite
mostrar uma cobertura que desqualifica a política, minimiza
questões de interesse público vinculadas ao impeachment, na-
turaliza o conflito e superficializa as informações. O embate
político é reducionista quanto às implicações do impeachment
e à mobilização das ruas, concentrado na personalização de
problemas políticos, em Dilma Rousseff, não oferece in-
formações que possam alimentar o debate público. Embora
as imagens possam ser compreendidas como adequadas, as
manchetes e textos sublinham o sentenciamento em torno

273
M a nifestações e votos ao impe achment de Dilm a Rousseff
na pr i m eir a página de jor na is br a sil eiros

da presidenta e do seu partido, já condenados antes mesmo


do fim do processo.
As primeiras páginas demonstram, também, o maniqueís­
mo entre os atores relacionados ao governo (presidenta,
ex-presidente e partido) e aqueles nos quais se deposita a
esperança de soluções morais, políticas e econômicas, como
juiz Moro, STJ e Legislativo. As controvérsias em torno de
políticos implicados nas denúncias de corrupção e os argu-
mentos contrários ao impeachment não possuem espaço no
jornal. Ao contrário, são muitas as referências a um futuro
governo, à saída imediata da presidenta, sendo Michel Temer
a alternativa competente para o país.
Sobre as manifestações sociais, especialmente a FSP e
OESP apresentam os “protestos verde-amarelos” (favoráveis
ao impeachment) como pacíficos e representantes oficiais dos
brasileiros, enquanto os “protestos vermelhos” (contrários
ao impeachment) fazem parte dos problemas políticos do país.
Com relação ao interesse público previsto no exercício
da atividade jornalística, pode-se afirmar, portanto, que os
jornais analisados nem sempre traduziram a complexidade
dos acontecimentos em suas capas. O enquadramento pro-
moveu o antagonismo e negligenciou o caráter democrático
das controvérsias em prol de um ângulo que valorizou o
conflito e a polarização, fortalecendo uma visão simplista
de suas implicações para a vida política do país.
De maneira geral, identifica-se a personalização das
disputas em uma narrativa superficial e fragmentada, sem
contraditórios que valorizariam o debate. As primeiras
páginas indicam distanciamento desse viés e muitos são os
indícios da sua posição favorável ao impeachment justificado
pela mudança econômica do país. Tendo em vista ainda o

274
C a m i l a B e c k e r , C a m i l a C e s a r , D é b o r a G a l l a s St e i g l e d e r e M a r i a H el ena Weber

lugar essencial da informação no processo instituído pelas


redes da comunicação pública, atenta-se para a função da im-
prensa na construção do espaço público para que isso ocorra.
Os achados das primeiras páginas indicam caminhos
para analisar o posicionamento e a contribuição da imprensa
brasileira, na sua função pública de vigiar a democracia, a
partir do acontecimento impeachment. A síntese dos fatos
oferecidos pelos jornais de referência sugere distância da
perspectiva normativa do debate público, na medida em que
sugere apenas um tipo de posicionamento e argumentação.

Referências
BAQUERO, Marcello. Cultura política participativa e desconsolidação
democrática: reflexões sobre o Brasil contemporâneo. Perspectiva,
São Paulo, v. 15, n. 4, p. 98-104, Dec. 2001.
CORNU, Daniel. Journalisme et la vérité. In: Autres Temps. Cahiers
d’éthique sociale et politique. n. 58, 1998. p. 13-27.
ESTEVES, João Pissarra. Espaço público e democracia. Lisboa: Edições
Colibri, 2003.
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276
A dramaticidade na narrativa do
impeachment de Dilma Rousseff
no Jornal Nacional1
Genira Chagas Correia
Carla Montuori Fernandes

Introdução
O desenvolvimento dos meios de comunicação no decor-
rer do século XX alterou o ambiente das práticas políticas.
O espaço midiático tornou-se não apenas um meio, mas o
local onde elas passaram a ocorrer. Ao assumir o papel de
mediadora das relações entre as esferas governamentais e
civis, a mídia deu visibilidade aos acontecimentos políticos
e alterou a noção de publicidade. Nesse campo, as antigas
práticas teatrais das representações políticas, ocorridas em
espaços públicos, passaram a ocupar um lugar privilegiado
nas coberturas jornalísticas, que as narram de maneira es-
petacular, sobretudo diante de cenários intempestivos.
Rubim (2003) alerta para o fato de que, em ambientes de
intensa repercussão, as redações buscam incorporar maior

1
Artigo publicado originalmente na revista Culturas Midiáticas, vol. 9 n. 2,
2016.
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

valor às notícias, e dessa forma elevar a circulação dos jornais,


tornando-os reféns do espetáculo. Debord (1997) considera
que “o exagero da mídia, cuja natureza, indiscutivelmente
boa, visto que serve para comunicar, pode às vezes chegar
a excessos [...]”. Como exemplo, no rol dos excessos midiá-
ticos, têm-se os desdobramentos da cobertura espetacular,
pelos meios de comunicação, do processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff (PT).
Desde o início de seu segundo mandato, em 2015, a então
presidenta convivia com ameaças de uma ação de impeach­
ment. Ele estaria baseado em denúncias de financiamento
de campanha com recursos amealhados por corrupção. As
acusações partiram de empreiteiros capturados pela Opera-
ção Lava Jato.2 Contudo, o processo de impedimento teve
início por suposto crime de responsabilidade, a partir de
um pedido protocolado na Câmara dos Deputados, em 17
de setembro de 2015, pelos juristas Miguel Reale Jr., Hélio
Bicudo e Janaina Pascal.
O reforço à tese de impeachment por crime de responsabi-
lidade veio com o anúncio da reprovação das contas públicas
de 2014 pelo Tribunal de Contas da União, em 7 de outubro
de 2015. Em 21 de outubro, os mesmos juristas apresen-
taram outro pedido de impeachment, apoiado em decretos
presidenciais que aumentavam as despesas do governo sem
a devida aprovação pelo Congresso. Os pedidos dos juristas
não foram os únicos, mas representavam os de maior apelo
político e serviram aos interesses do então presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB), que estava

2
Operação deflagrada pelo Ministério Público e pela Polícia Federal para
investigar esquema de corrupção e lavagem de dinheiro.

278
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

sendo julgado no Conselho de Ética da Casa por quebra de


decoro parlamentar.3
Diante do voto do deputado Sibá Machado (PT), pela
admissibilidade do pedido de cassação de Cunha, este re-
solveu deflagrar, supostamente como vingança, o processo
de impedimento de Dilma, em 2 de dezembro de 2015. A
título de antecedente político, é oportuno destacar que a
vitória nas urnas representava para a base aliada da presi-
denta a possibilidade de o Poder Executivo exercer maior
controle sobre a Lava Jato, com o cerceamento das ações do
Ministério Público e da Polícia Federal.
Mas a ampliação do número de envolvidos no esquema
de corrupção provocou uma fissura na coalizão governista.
Nesse contexto, prevaleceu um ambiente de batalha política
entre o Congresso Nacional e o Planalto. Liderados pelo
ex-deputado federal Eduardo Cunha (MDB), então presi-
dente da Câmara, e pelo senador Renan Calheiros (MDB),
presidente do Senado, congressistas passaram a impor uma
série de derrotas nas votações das emendas do governo,
transformando a abertura do impeachment em elemento de
chantagem e barganha política.
Além do enfraquecimento político da presidenta, no
âmbito do Congresso Nacional, outros fatores contribuíram
para que o andamento da ação do impeachment ganhasse
força. Contou também a crise econômica, motivo de insa-
tisfação de parcela da população e da classe empresarial. A
narrativa do processo de afastamento da presidenta oferece
a medida do quanto a política é um jogo. Nesse campo, os

3
Eduardo Cunha teve seu mandato de deputado federal cassado em 12 de
setembro de 2016.

279
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

meios de comunicação fazem o papel de agente, cuja ação


de produção de sentido, segundo Bourdieu (2011), é capaz
de transformar seu estado.
Nessa transformação, a mídia contribui para o for-
talecimento do capital político que, segundo o autor
(2011, p. 195), “está ligado à notoriedade, ao fato de
ser conhecido e reconhecido, notável”, sendo “o capital
político uma espécie de capital de reputação, um capital
simbólico ligado à maneira de ser conhecido”. Com seu
capital em desvantagem na cena política, Dilma viu seu
impeachment ganhar força após aprovação na Câmara dos
Deputados. Para ser mais assimilável, a narrativa jornalís-
tica construí­da em torno do impeachment ganhou técnicas
do universo da ficção, no qual:
O elemento que mais salta aos olhos na dramatização da po-
lítica pelo telejornalismo é, provavelmente, o enquadramento
de conflito como estrutura dramática. Essa estrutura supõe
que pessoas e grupos estão necessariamente em conflito
entre si, de forma que o narrador precisa identificar a matéria
desse conflito e isolar os antagonistas. Eventualmente, e só
eventualmente, há um antagonista, aquele que representa o
bem contra o mal, em geral o governo quando este tem o
apoio popular ou das elites, ou da oposição quando se trata
de um governo sem apoio. (Gomes, 2004, p. 347)

Na mesma vertente teórica, Motta (2007) aponta que


as notícias, em sua maioria, buscam o enquadramento do
conflito de maneira dramática, explorando as rupturas e os
embates. O autor endossa que o jornalismo político busca o
enquadramento dramático e as metáforas de jogos lúdicos,
elementos facilmente reconhecidos no imaginário popular.
Rothberg (2007, p. 15) corrobora a teoria do enquadramento
ao apontar que

280
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

enquadramentos de jogo, estratégico e episódico, podem


assumir a forma de uma variação conhecida como enqua-
dramento de conflito. Nesse caso, a ênfase da matéria recai
sobre o potencial de disputa em tese envolvido nos movi-
mentos dos políticos.

Nesse sentido, esse artigo busca verificar como o tema


impeachment foi enquadrado na edição do Jornal Nacional
dos dias 11 a 16 de abril de 2016. Pretende-se responder se
o noticiário recorreu à metáfora dos jogos na produção das
reportagens. O estudo traz como premissa que o principal
telejornal do Grupo Globo fez edições espelhadas na referida
metáfora, na qual enquadrou os fatos ocorridos na Câmara
dos Deputados na perspectiva de uma batalha, cujo trunfo
em questão era a presidência da República.
Ressalte-se que, na semana que antecedeu, a votação
o clima político foi marcado por significativa tensão e
forte polarização social, com manifestações pró e contra
o impeachment­. Como fundamento metodológico, o artigo
busca os preceitos da análise de conteúdo (Bardin, 2011) e
as categorias de enquadramento lúdico dramático tipo jogo,
definidas por Motta (2007).

Discussão teórica sobre


espetáculo-político midiático
Em boa parte da história, a política esteve ancorada na
representação teatral, na fabricação de reis, heróis e vilões.
Rubim (2003) relata que o ato de encenar é uma característica
intrínseca às sociedades humanas, que vislumbram na pro-
dução de espetáculos a possibilidade de seduzir o espectador.
Nas democracias contemporâneas, aponta Weber (2011),
o espetáculo ultrapassa a dimensão do político e incorpora

281
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

outros elementos associados aos meios de comunicação. A


transformação de um acontecimento público em espetáculo
político-midiático está relacionada ao ato de deslocar o espe-
táculo das ruas para os meios de comunicação, ajustando-o
às linguagens da propaganda e das narrativas teatrais.
Sua constituição prevê a participação de instituições
e sujeitos da política, de instâncias de produção midiá-
tica, de espaços de circulação de informação e opinião
e, fundamentalmente, da participação da sociedade, de
modo organizado ou espontâneo (Weber, 2011). A autora
esclarece que, no Brasil, são inúmeros os exemplos em que
cidadãos contribuíram, ao lado de organizações política
e de mídia, para a constituição de espetáculo midiático,
casos das Diretas Já, impeachment de Collor, certos am-
bientes eleitorais, celebrações de posses presidenciais etc.
(Weber, 2001, p. 13).
Na mesma vertente teórica, com a frase “a política se
encena”, Gomes (2004) aponta para a imbricação entre a
política institucional e as mídias. O autor faz uso da metáfora
do teatro ao citar que grande parte das ações políticas – das
decisões governamentais às questões partidárias e de campa-
nha – são representadas pelos meios de comunicação como
longas peças, encenadas em uma narrativa tão dramática e
espetacular quanto à ficção.
A produção do espetáculo midiático, segundo Gomes
(2004), se efetiva a partir de três subsistemas: da ruptura
das regularidades, da diversão e do drama. A ruptura da
regularidade evoca o poder da mídia de capturar a atenção
e, sempre que possível, a memória da plateia. A lógica da
ruptura se efetiva pela presença do inédito, do novo, de tudo
aquilo que choca e é capaz de gerar diversão:

282
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

Romper com a regularidade é apenas um passo importante


do processo lúdico, que encontra complemento na lógica da
diversão. Divertir-se é, literalmente, voltar-se do cotidiano
para o novo, para o diferente, o irregular, o extraordinário, o
aprazível. Pelo acionamento da diversão, a captura da atenção
e da memória certamente torna-se mais fácil e, possivelmen-
te, mais eficaz. (Gomes, 2004, p. 309).

Por meio de uma relação efêmera e veloz, sem qual-


quer possibilidade de aprofundar o conteúdo recebido, o
espetáculo político busca na dramatização a motivação para
prender a atenção do destinatário. Nos moldes das narrativas
ficcionais, tornam-se fundamentais às técnicas voltadas para
“a construção de enredos, de personagens e personalidades
e para produção de meios (audiovisuais e cenários) de re-
presentação” (Gomes, 2004, p. 310).
Nesse contexto, em que é relegada aos aparatos midiá­
ticos parte da responsabilidade por transformar a política
em uma narrativa espetacular, será emprestada a noção de
enquadramento lúdico dramático de Luiz Gonzaga Motta
(2007), com vistas a ampliar a discussão sobre os preceitos
que envolvem a produção jornalística.

O enquadramento narrativo dramático:


metodologia de análise
O conceito de enquadramento se consolidou a partir
de estudos voltados às teorias jornalísticas que analisam os
efeitos políticos da mídia na construção da agenda pública.
Com base no pressuposto de que os meios de comunicação
de massa funcionam como agenda temática e influenciam
a forma de pensar os acontecimentos políticos, o enquadra-
mento jornalístico envolve seleção e saliência:

283
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

Enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade


percebida e fazê-los mais salientes no texto comunicativo, de
modo a promover uma definição particular de um problema,
interpretação causal, avaliação moral e/ou um tratamento
recomendado para o item descrito. (Eatman, 1993, p. 52)

Motta denomina que o enquadramento predominante


no jornalismo é o frame narrativo. Com base nos estudos de
London (2005 apud Motta, 2007), que traz como argumento
o fato de os sujeitos possuírem experiências difusas e calei-
doscópicas dos acontecimentos, passíveis de compreensão
apenas por meio do agrupamento de itens com base na
similaridade, o enquadramento tornou-se um mecanismo
“inconsciente dos jornalistas para transmitir as ocorrências
selecionadas de forma compreensível, tornando as questões
políticas inteligíveis ao público” (Motta, 2007, p. 2).
Os frames estão inseridos na estrutura cultural da so-
ciedade, que se organiza de maneira narrativa. Na mesma
vertente, Martín-Barbero (1997) aponta que a recepção é
frequentemente mediada por práticas cotidianas inseridas
no contexto cultural e social do receptor. Assim, Motta
(2007) destaca que jornalistas se abastecem dessa cultura
para organizar e apresentar seus relatos, com vistas a facilitar
o diálogo com a recepção:
Realço aqui a reciprocidade para enfatizar que os enquadramen-
tos utilizados pelos jornalistas e receptores têm origens comuns
no mundo da vida, na cultura de ambos. Isso nos leva a inserir
a análise dos enquadramentos jornalísticos nos mapas culturais
da sociedade, que são utilizados na representação e apresentação
que instituem a realidade política. (Motta, 2007, p. 2)

Com o intuito de seduzir a atenção da audiência, o jor-


nalismo político estimula o conflito,

284
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

traz as personagens políticas para a arena, convoca-as em


acusações e respostas sucessivas. Se há oposições latentes
na política, o jornalismo as promove, se não as há, ele as
incita. Alimenta o confronto em sucessivas afirmações e
desmentidos das fontes, promove hostilidades, exacerba os
conflitos. (Motta, 2007, p. 9)

Assim, como forma de facilitar a compreensão dos confli-


tos da esfera política, as narrativas jornalísticas recorrem ao que
o autor denominou enquadramentos dramáticos lúdicos tipo
jogos, mapeados por ele nas categorias: guerra, jogo de xadrez,
jogos esportivos, corrida de cavalo/carro, quebra-cabeça e ciclo de herói.
No enquadramento tipo guerra, predominam termos
como disputa, combate, luta entre as forças do bem e do
mal, inimigo e aliado, negociação e acordo, derrota, vitória,
ataque e defesa, entre outros. Já no tipo jogo de xadrez e outras
modalidades de jogo de tabuleiro, predominam as temáticas
vinculadas a estratégias de um oponente sobre o outro, da
inteligência e da sabedoria das ações, das atuações estratégicas
e táticas na representação do mundo e das disputas políticas.
No enquadramento jogos esportivos, prevalecem menções a
jogos de campo, times, equipes e interesses antagônicos a
respeito das regras do jogo.
Corrida de cavalo ou de carro faz menção à velocidade –
rapidez de quem chega primeiro, ultrapassa os adversários,
supera os obstáculos. No enquadramento quebra-cabeça, pre-
valece o ideal do impasse, do encaixe de peças, combinação
de partes, estratagemas, temas que se assemelham a labirinto,
revelações. Por fim, no enquadramento ciclo do herói, próprio
das narrativas ficcionais, predominam temáticas com men-
ção a aventura de um herói e seu ciclo de lutas, aventuras,
sacrifícios, honras, bravuras, provas, tentações, recuperações.

285
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

Para mapear a cobertura do Jornal Nacional no processo


de impeachment da presidente Dilma na Câmara dos Depu-
tados, recorremos ao enquadramento lúdico dramático com
metáforas de jogos e à metodologia da análise de conteúdo
de Bardin (2011).
Dividida em três etapas, a primeira fase da análise de
conteúdo, nomeada de pré-análise, refere-se à organização
do material propriamente dito, com a escolha dos docu-
mentos submetidos à análise, a formulação dos objetivos e a
elaboração dos indicadores que fundamentam a interpretação
final. Assim, foi realizada uma seleção de matérias jornalís-
ticas veiculadas nas referidas edições do Jornal Nacional, cujo
destaque é a temática do impeachment.
Em seguida, buscou-se identificar como o Jornal Na­
cional traduziu o clima político de votação do impeachment.
Após a transcrição dos vídeos foi possível selecionar os
enquadramentos lúdicos dramáticos que serviram como
indicadores da análise, sendo guerra, jogo de xadrez, jogos
esportivos e corrida de cavalo ou de carro os mais adequados.
Como segunda etapa, fez-se a exploração do material,
levando em consideração as categorias definidas na pré-
-análise. Por fim, na terceira fase, os resultados serão
interpretados à luz do contexto político.

O enquadramento lúdico dramático


nas reportagens do Jornal Nacional
A análise do enquadramento lúdico dramático baseado
na metáfora de jogos considerou dezoito reportagens vei-
culadas no Jornal Nacional, na semana anterior à votação do
impeachment, conforme aponta a tabela abaixo.

286
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

Tabela das reportagens – Jornal Nacional –


11 a 16 de abril de 2016
Chamada da reportagem Enquadramento Palavras
11/04 – Comissão aprova relatório Guerra e corrida de Favor (10x), contra
a favor do impeachment da cavalo (4x), defesa (5x),
presidente Dilma vitória (5x), derrota
11/04 – Por descuido, Temer envia Guerra Munição, embates,
a grupo discurso sobre impeachment aliados
11/04 – Impeachment: segurança Guerra, corrida de Favor, contra,
é reforçada dentro e fora do cavalo/carro e jogos contrários, lados
Congresso de xadrez opostos, defensores,
confronto, grande
arena.
11/04 – Manifestantes contra o Guerra Contra (3x)
impeachment se reúnem no Centro
do Rio
12/04 – Sem citar nomes, Dilma Guerra e corrida de Derrota (3x),
acusa Temer e Cunha de traição e cavalo comemoração (2x),
conspiração favor (5x), contra (3x),
ganhar (2x)
12/04 – Cunha anuncia que Guerra Contra, favor
votação do impeachment será no
domingo (17)
13/04 – Ordem de chamada para Guerra, jogos de Vitoriosa, perder,
a votação do impeachment será por xadrez e corrida de derrotar, Contra (3x),
região cavalo favor, pacto (2x),
carta fora do baralho
(3x), vencedores e
vencidos, perder,
regra do jogo, contra
(2x), batalha
14/04 – STF analisa ações do Guerra, jogos de Aliados, defesa, regra
governo e de aliados de Dilma xadrez (2x), contra
sobre impeachment
14/04 – Batalha por votos sobre Guerra, corrida Batalha (2x), contra
impeachment é acirrada entre de cavalo e jogos (6x), favor, pró,
deputados esportivos já ganhou, placar,
disputa, apoio
15/04 – STF rejeita pedidos para Corrida de cavalo e Derrota (2x),
alterar ou sustar a votação de jogos de xadrez derrotado, empate,
domingo ganhar, vencidos

287
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

15/04 – Plenário da Câmara tem Guerra e jogos Favor, contra (2x),


primeiro dia de discussões sobre esportivos ganha, mão grande,
impeachment tapetão, defender
15/04 – Brasília tem segurança Guerra Favor, contra (3x),
reforçada para votação do confrontos, disputa
impeachment na Câmara
16/04 – Nas redes sociais, Dilma Guerra Ataca, atacar, atacou,
ataca defensores do impeachment defende, defender,
inimigo, tiroteio
16/04 – Governo e oposição Guerra, jogo de Negociação, disputa
intensificam a disputa por votos xadrez e jogos (3x), ganhar (3x),
esportivos arena, estratégia,
mexer as peças,
campo, placar final,
campeonato, partida
final, técnico, bater
pênalti, vitória,
estratégia, jogo,
trunfo, queda de
braço
16/04 – Câmara tem discursos Guerra e corrida de Ganhando, contra e a
sobre impeachment pelo 2º dia cavalo/carro favor, disputam
seguido
16/04 – Manifestantes entram em Guerra Conflito, confrontam,
conflito em frente a hotel de Lula atacaram, favor e
contra
16/04 – Manifestações acontecem Guerra Favor e contra (2x)
na noite deste sábado (16) pelo país
16/04 – Impeachment transforma Guerra Dividida (5x), dois
Brasília em uma cidade dividida lados (4x), lados
opostos
Fonte: elaborado pelas autoras.

No primeiro momento, buscou-se uma abordagem


quantitativa para indicar as menções a termos que reme-
tem ao contexto do enquadramento lúdico dramático. No
enquadramento tipo guerra, ao longo dos textos ocorreram
cinco menções das palavras “atacar/ataca/atacou/atacaram” e
oito de “defender/defesa”; duas de “conflito” e “lados opos-
tos”; “dois lados” foram citados quatro vezes; “contrários”
e “confrontos” apenas uma. Há uma menção às palavras

288
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

“inimigo” e “tiroteio”. A expressão “dividida” foi citada seis


vezes; “contra” recebeu 34 citações, a “favor/pró” obtiveram
25 menções e “disputa/disputam” foram citadas sete vezes.
O termo “batalha” apareceu em três momentos; a palavra
“aliados” duas e “embates” e “munição” apenas uma vez cada.
Em jogos esportivos, foram mencionadas as expressões
“campo”, “grande arena”, “placar final”, “partida final”, “téc-
nico”, “bater pênalti”, “mão grande”, “tapetão”, “defender”,
“empate” e “campeonato de futebol”. Em jogo de xadrez, foi
possível mapear os termos “jogo”, “carta fora do baralho”,
“estratégia”, “trunfo”, “mexer as peças”, “queda de braço” e
“regra do jogo”. Por fim, para corrida de cavalo constatou-se
seis menções da palavra “vitória”; três dos termos “vencer/
vencedores/vencidos”; oito para “ganhar/ganhando/já ga-
nhou”, duas citações de “comemoração”, duas de “perder” e
oito das palavras “derrotar/derrota/derrotado”.
Para a análise, em função da amplitude da amostra,
optou-se por aprofundar a leitura das reportagens nas quais
se identificou mais de um enquadramento lúdico dramático.
A reportagem “Comissão aprova relatório a favor do im­
peachment da presidente Dilma” obteve os enquadramentos
guerra e corrida de cavalo. Importante destacar que toda tensão
entre a oposição e o governo foi narrada de forma a amplificar
os ânimos exaltados do Congresso Nacional, sendo possível
enquadrá-la no tipo guerra. O enquadramento corrida de cavalo
reflete a vitória da ala oposicionista, que consegue aprovar o
relatório e comemora com vitória a primeira fase do processo
que visava afastar Dilma.
A matéria “Por descuido, Temer envia a grupo discurso
sobre impeachment” também traz o enquadramento tipo
guerra. A reportagem mostra que o WhatsApp enviado

289
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

pelo então vice-presidente a um grupo de deputados, com


demonstração do discurso que estava preparando em caso
de aprovação do impeachment, acirrou os ânimos. Conforme
apontou a matéria, o discurso “deu mais munição para o
embate entre os aliados e os que criticam o governo”.
Com os enquadramentos guerra, corrida de cavalo/carro
e jogos de xadrez, a reportagem “Impeachment: segurança
é reforçada dentro e fora do Congresso” reproduz a ani-
mosidade nos arredores da Esplanada dos Ministérios na
semana anterior a votação. A narrativa aponta que a polícia
preparava um esquema para separar em dois grandes gru-
pos os favoráveis e os contrários ao afastamento. A matéria
reproduz o que seria uma grande arena, com um muro
de metal de dois metros de altura entre os manifestantes.
Na reportagem “Sem citar nomes, Dilma acusa Temer
e Cunha de traição e conspiração”, sobre a aprovação do
relatório favorável ao afastamento dela, prevaleceu o en-
quadramento tipo guerra. O texto fala dos bastidores das
negociações entre os deputados na conquista dos votos. No
duelo também prevalecem as marcas do enquadramento
corrida de cavalo, pelo emprego dos termos “comemoração”
e “ganhar a disputa”, como se percebe no discurso do ex-
-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Celso Pan-
sera: “E vamos ganhar de novo. Vamos ganhar de novo.
E espero que respeitem. E espero que dessa vez respeitem
o resultado”.
Na mesma reportagem, a entrevista de Dilma à re-
pórter da TV Globo enquadra-se no tipo jogo de xadrez,
conforme segue: “Olha, querida, se eu perder, eu estou
fora do baralho”. Sobre a entrevista, o deputado Roberto
Freire (PPS) rebateu a afirmação: “É um sinal de que está

290
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

aceitando a regra do jogo. Então, estão avançando. Pelo


menos estão começando a admitir que é democrático”.
Mais adiante, a reportagem recorre ao enquadramento
corrida de cavalo, em que os termos “vencer” e “batalha”
ganham destaque na voz da então presidente: “Vamos
vencer essa batalha, essa batalha contra o golpe, contra o
impeachment sem base legal”.
A reportagem “Batalha por votos sobre impeachment é
acirrada entre deputados” enquadra-se em jogos esportivos,
além de guerra e corrida de cavalo. Além disso, termos habitual-
mente usados em esportes, como “placar” e “regra do jogo”,
aparecem nas entrevistas e nas narrativas jornalísticas, que
tratam do duelo entre os deputados contrários e favoráveis
ao afastamento e da euforia pelos resultados em torno da
suposta derrota ou vitória do governo.
O enquadramento jogos esportivos pontuou a reportagem
“Plenário da Câmara tem primeiro dia de discussões sobre
impeachment”. Entre os discursos contrários ao afastamento
da petista, o deputado Paulo Teixeira (PT) aponta que o
processo de impeachment não é legítimo, por ser encabeçado
por setores políticos que não ganharam a eleição e pretendem
“tirar na mão grande, no tapetão”. A expressão faz apologia
aos jogos de futebol, quando um time que não venceu em
campo recorre à justiça para rever o resultado.
Na reportagem “Nas redes sociais, Dilma ataca defen-
sores do impeachment”, predominou o enquadramento tipo
guerra, com apenas uma terminologia dos jogos de xadrez para
narrar as trocas de acusações entre Dilma e Temer, após um
pronunciamento da presidente pela internet, no qual ela
mencionou que o processo de impeachment não tinha bases
legais e apontou os riscos do processo à população.

291
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

A mesma reportagem indicou que o então vice-presiden-


te Michel Temer e seus aliados responderam às acusações e
se defenderam dos ataques de Dilma ao indicar que, após o
afastamento dela, pretendiam ampliar os programas sociais.
Importante notar que os termos “ataque” e “defesa” foram
inseridos nas narrativas jornalísticas dos pronunciamentos
de Dilma e de Temer, ressaltando um ambiente de duelo.
Os enquadramentos guerra, jogo de xadrez e jogos esportivos
marcaram a reportagem “Governo e oposição intensificam a
disputa por votos”, a qual buscou reproduzir as negociações
que ocorriam nos bastidores da política. O enquadramento
jogos esportivos apareceu mais de uma vez em sintonia com
uma partida de futebol, sobretudo na reprodução da entre-
vista do deputado Federal Thiago Peixoto (PSD-GO). A
reportagem deu voz ao deputado, que reassumiu o mandato
do qual havia sido licenciado somente para votar pelo im­
peachment. Aqui, a menção à estratégia de jogos esportivos está
presente na própria fala do deputado:
Nesta arena, uma das estratégias dos dois lados nos últimos
dias foi a de mexer as peças. Alguns suplentes tiveram que
sair. É do jogo e nem puderam reclamar. Eles não são donos
do mandato. E titulares entraram em campo, assumiram as
vagas para registrar o voto no placar final.

Na sequência, o discurso do deputado Federal Raul


Jungmann (PPS-PE) fez novas referências a jogos de fute-
bol, ao apontar sua frustração, como suplente, em ceder seu
lugar ao titular:
É como se você tivesse na partida final do campeonato e, aos
89 minutos, sofresse um pênalti. O técnico te tira e outro
vai bater o pênalti da vitória e do campeonato. É triste? É.
Mas é legítimo.

292
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

Ao fim da reportagem, o deputado federal Darcísio


Perondi (PMDB-RS) reitera o ambiente de competição,
ao afirmar que o jogo termina quando acaba a votação, por
entender que o governo ainda tinha um trunfo para negociar
com o Congresso – a liberação de emendas parlamentares
individuais. Ao retomar metáforas de jogos de futebol, as
reportagens recuperam o impulso da competição, que “é
próprio também da política, está enraizado na cultura e o
leitor depreende facilmente as relações de enfrentamentos,
alianças, vitórias e derrotas” (Motta, 2007, p. 10).
A matéria “Câmara tem discursos sobre impeachment pelo
2º dia seguido” reproduziu o ambiente de debates do ple-
nário. Ela se apropria dos componentes do enquadramento
tipo guerra ao retratar um cenário de competição, no qual os
parlamentares se revezavam em discursos contra e a favor. O
blefe de cantar vitória, presente nos discursos de oposição e
governo, enquadra-se no tipo corrida de cavalo/carro.
Outra menção ao enquadramento tipo guerra pontuou a
reportagem “Manifestações acontecem na noite deste sábado
(16) pelo país”, para evidenciar atos contrários e favoráveis
ao impeachment em inúmeras localidades. Na mesma linha,
a matéria “Impeachment transforma Brasília em uma cidade
dividida” mostra que a capital federal foi planejada para
ser palco de manifestações sociais, sendo que desde a sua
construção, pela primeira vez estava dividida entre grupos
em lados opostos.
No âmbito interpretativo, nota-se que a estratégia comu-
nicativa do Jornal Nacional foi a de amplificar o ambiente de
tensão que havia no Congresso Nacional e nas casas pala-
cianas às vésperas de votação do impeachment na Câmara dos
Deputados. Os fatos foram narrados de modo a enquadrá-

293
A dr a m atici da de na na r r ati va do i m pe ach m en t de
Dilm a Rousseff (PT) no jornal nacional

-los em uma perspectiva competitiva, de forma a prender a


atenção da audiência para os temas pautados.
Nas referidas edições, a ação política na qual teve ori-
gem todo o processo de impeachment ficou no passado. Os
personagens entrevistados estavam em clima de disputa.
Rothberg (2007, p. 15) descreve ambientes semelhantes no
qual se pautou o telejornal da seguinte forma:
[...] a ênfase jornalística se dá sobre as consequências dos
supostos choques entre opções diferentes para a dinâmica de
poder dentro dos partidos, do parlamento, e para a ascensão
ou declínio do próprio político, aliados e adversários.

Considerações finais
A cobertura da votação do impeachment da presidente
Dilma na Câmara dos Deputados foi construída pelo Jornal
Nacional a partir do embate entre o governo e a oposição,
tendo o conflito como elemento estruturador das narrativas.
As disputas políticas travadas na Câmara dos Deputados fo-
ram representadas por metáforas comumente reconhecidas
no cotidiano, tal como aponta Motta (2007), para quem as
disputas pelo poder tornam-se metáforas para a vida.
As terminologias retiradas da cultura dos jogos – estraté-
gias, disputas, vencedores, ganhadores etc. – alimentaram o
enredo da cobertura política do telejornal. Ao tentar repro-
duzir tal embate, o noticioso acabou por mostrar o drama
da política nacional. Distante de seus objetivos, longe da
política, mas em busca do poder pelo poder.

Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.
BOURDIEU, Pierra. O campo político. Revista Brasileira de Ciência
Política, v. 1, n. 5, p. 193-216, jan./jul. 2011.

294
Genira Chagas Correia e Carla Montuori Fernandes

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do


espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
ENTMAN, R. M. Framing: Toward Clarification of a Fractured Pa-
radigm. Journal of Communication, v. 43, n. 4 p. 8-51, 1993.
GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa.
São Paulo: Paulus, 2004.
MARTÍN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura
e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
ROTHBERG, Danilo. Enquadramento e metodologia da crítica da
mídia. SBPJor Associação Brasileira de Pesquisadores em Jor-
nalismo 5º Encontro Nacional de Pesquisadores de Jornalismo,
Universidade Federal de Sergipe, 15 a 17 de novembro de 2007.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Enquadramentos lúdico-dramáticos no jor-
nalismo: mapas culturais para organizar conflitos políticos. Revista
Intexto, Porto Alegre, v. 2, n. 17, p. 1-25, jul./dez. 2007.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. Espetáculo, política e mídia. In:
França, V., Weber, M. H., Paiva, R., Sovik, L. (Orgs). Estudos de
Comunicação. Porto Alegre: Estudos de Comunicação, 2003.
WEBER, Maria Helena. Espaço público e acontecimento: do aconte-
cimento público ao espetáculo político-midiático. Caleidoscópio –
Revista de Comunicação e Cultura, n. 10, 2011, Edições Universitárias
Lusófonas. n. 10. Ano 11.

295
Sobre as organizadoras

Camila Rocha é doutora em Ciência Política pela


Universidade de São Paulo, membro do Grupo de Trabalho
Derechas Contemporáneas: dictaduras y democracias do Conselho
Latino-Americano de Ciências Sociais, do Instituto Nacio-
nal de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados
Unidos, e uma das coordenadoras da Rede Direitas, História
e Memória.

Esther Solano é doutora em Ciências Sociais pela


Universidad Complutense de Madri, professora da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios da Universida-
de Federal de São Paulo, do Mestrado Interuniversitário
Internacional de Estudos Contemporâneos de América
Latina da Universidad Complutense de Madrid e pesqui-
sadora associada ao Laboratório de Análises Interdisci-
plinares e Análise da Sociedade da Universidade Federal
de São Paulo.
Sobre as autoras e os autores

Camila Becker é mestre em Comunicação e Informação


pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e In-
formação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Camila Cesar é doutoranda no Programa Ciência da In-


formação na Université Sorbonne Nouvelle em cotutela
com o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Carla Montuori Fernandes possui graduação em Socio-


logia pela Universidade da Cidade de São Paulo e Proces-
samento de Dados pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie.
É especialista em Comunicação Jornalística pela Fundação
Cásper Líbero e em Administração Mercadológica pela
Fundação Armando Alvares Penteado. É mestre em Comu-
nicação pela Universidade Paulista e doutora em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
As dir eitas nas r edes e nas ruas

Possui pós-doutorado em Ciências Sociais com ênfase em


Comunicação Política pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Atualmente, é pesquisadora do Núcleo de Es-
tudos em Arte, Mídia e Política da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e professora titular do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação e Cultura das Mídias da
Universidade Paulista.

Céli Regina Jardim Pinto possui Licenciatura em História


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado
em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul e doutorado em Governo pela University of Essex.
Atualmente, é professora titular da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Foi visiting scholar na Universidade
da Califórnia em Los Angeles, na Universidade Livre de
Berlin e na Universidade de Oxford. Foi visiting professor na
Universidade da Califórnia em Los Angeles e na Universi-
dade da República e proferiu palestras na Universidade de
Princeton e na London School of Economics.

Débora Gallas Steigleder é jornalista, mestra e doutoranda


em Comunicação e Informação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.

Débora Messenberg é bacharel em Ciências Sociais com


habilitação em Sociologia pela Universidade de Brasília,
mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, dou-
tora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Possui
pós-doutorado pela Universidade de Brasília e Estágio Sê-
nior no Latin American Centre da University of Oxford.
Atualmente, é professora Associada I da Universidade de

300
Camila Rocha e E st h e r Sol a no (O rg.)

Brasília e membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de


Sociologia-SBS (2009-2011).

Fábio Malini é doutor em Comunicação pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro e professor associado I no Depar-
tamento de Comunicação Social da Universidade Federal
do Espírito Santo, onde coordena o Laboratório de Pesquisa
sobre Imagem e Cultura.

Genira Chagas Correia possui graduação em Comuni-


cação Social pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, é mestre em Comunicação e Semiótica e doutora
em Ciências Sociais também pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. É pesquisadora associada do Núcleo
de Estudos em Arte, Mídia e Política do Programa de Pós-
-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Coordena a área de Comunicação
do Centro de Documentação e Memória da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Helcimara Telles é doutora em Ciência Política pela


Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral na
Universidad de Salamanca e na Universidad Complutense
de Madrid. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Opinião
Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral,
grupo multidisciplinar da Universidade Federal de Minas
Gerais, coordenadora do Grupo de Investigação Comunica-
ção Política e Comportamento Eleitoral, junto à Associação
Latino Americana de Ciência Política, membro da junta
diretiva da Associação Latino-Americana de Investigadores
em Campanhas Eleitorais e pesquisadora do Comparative

301
As dir eitas nas r edes e nas ruas

National Electoral Project. É autora de publicações nacionais


e internacionais na área de opinião pública, comportamento
eleitoral e partidos políticos. Atualmente, é professora do
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais.

Jean Medeiros é mestre em Comunicação e Territoriali-


dades pela Universidade Federal do Espírito Santo e douto-
rando em Política Científica e Tecnológica na Universidade
Estadual de Campinas.

Márcio Moretto Ribeiro é professor doutor da Escola de


Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
Paulo. Doutorado em Ciência da Computação pelo Insti-
tuto de Matemática e Estatística da USP. Pós-doutorado no
Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da
Universidade de Campinas. Associado ao Grupo de Políticas
Públicas de Acesso à Informação.

Maria Helena Weber é docente na Universidade Federal


do Rio Grande do Sul. Doutora em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do
Núcleo de Pesquisa em Comunicação Pública e Política e
do Observatório de Comunicação Pública (2015). Pesquisa-
dora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico
e Tecnológico. Trabalhos mais relevantes: Comunicação e
espetáculos da política (2000) e Comunicação pública e política –
pesquisa e práticas comunicação (2017), organizado com Marja
Coelho e Carlos Locatelli.

302
Camila Rocha e E st h e r Sol a no (O rg.)

Pablo Ortellado é professor doutor da Escola de Artes,


Ciên­cias e Humanidades da Universidade de São Paulo.
Possui doutorado em Filosofia pela Universidade Federal
de São Paulo e pós-doutorado pelo Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. Coordenador do Grupo de Políticas
Públicas de Acesso à Informação.

Patrick Ciarelli é doutor em Engenharia Elétrica pela


Universidade Federal do Espírito Santo e professor do De-
partamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal
do Espírito Santo.

303

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