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Kitāb asfār al-asrār: o livro dos mistérios de Ṣalībā ibn Yūḥannā

Ṣalībā ibn Yūḥannā al-Mawṣilī foi um sacerdote medieval da Igreja do Oriente nascido em
Mosul no final do século XIII. Autor de obras em língua árabe, sobressaindo o Asfar al-Asrar o
“Livro dos Mistérios” um volumoso compêndio no qual ele faz apelo à unidade dos cristãos .
Na segunda premissa do livro II: “Por que os Orientais são denominados nestoriano” o autor
demonstrará que a Igreja do Oriente, apesar de não haver participado a partir de Éfeso I em 431
dos concílios ecumênicos da cristandade ocidental (bizantina e latina), é uma Igreja
autenticamente apostólica cuja fé remete à karozutha, aTvzvRk, ao kerigma dos apóstolos1.
Em seguida ele explica sobre o equivoco dos Orientais serem denominados “nestorianos” e
também como os siro-orientais interpretaram os conflitos entre Cirilo e Nestório e suas
respectivas doutrinas cristológicas. Ṣalībā afirma que após estes dois primeiros concílios da
cristandade sua Igreja “não houve necessidade de reunir um concilio já que estes só ocorre
quando tem necessidade de restaurar quando algo é corrompido, ou para excomungar um
transgressor, ou para organizar coisas novas, mas nós erámos como diz o Evangelho : ‘os sãos
não precisam de médico’ ”2. Entretanto tal afirmação contradiz os fatos quando sabemos de
sínodos orientais como os de Selêucia-Ctesifont, 410; Bēṯ Lapaṭ, 483; Beth Edrai, 485;
Catholicos Acácio, 486 e Catholicos Ishuyab I, 585, os quais tiveram por objetivo reafirmar a
cristologia antioquena e/ou tratar de questões litúrgicas e disciplinares da Igreja. Ṣalībā também
demonstra a “universalidade” da Igreja do Oriente com significativo rol de nomes de Santos
Padres inseridos nos dísticos da Liturgia Eucarística, muitos destes comuns às igrejas ocidentais
e orientais como: Ignácio, Policarpo, Atanásio, Alexandre (estes dois alexandrinos pré-
efesianos), Basílio, Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo, Ambrósio e um certo Apliuano 3;
outros mais restritos ao contexto antioqueno como: Mileto, Eustáquio e os autênticos difisitas
antioquinos: Teodoro de Mopsuéstia, Diodoro de Tarso 4 e Nestório. Ṣalībā considerava a
terminologia “nestoriana” inadequada e incoerente para denominar a Igreja do Oriente e
explica: “porque somos denominados nestoriano, que nos taxas com o nome de Nestório,
patriarca de Constantinopla, um grego enquanto somos sírios, uma pessoa que ele [os orientais]
nunca viram, nem chegou em suas regiões[...]. Se aqueles que disseram essas palavras estavam
certos: a que distância os orientais estão de Nestório! A língua dele não é deles, e entre os dois
há um mar imenso. Aqueles que tem intelecto sabem que Alexandria está mais próxima de
Bagdá do que de Constantinopla: estas duas cidades estão na mesma região conhecimento,
sociabilidade e concordância com o próximo são melhores e mais dignos do que com os
distantes. E se fossem diferentes, teriam mudado com o que ele dizia e seguiriam sua opinião” 5.

1
A pregação foi inicialmente transmitida por São Tomé, um dos Doze, e por Adai e Mari, ambos
pertencentes ao grupo dos Setenta e Dois discípulos do Senhor. Cf. Lc 10, 1.
Cf. At 2, 8-10; 1Pd 5,13
2
Ṣalībā ibn Yūḥannā al-Mawṣilī I libri dei misteri (Kitāb asfār al-asrār).Introduzione, traduzione, note e
indici di Gianmaria Gianazza. PCA 12. Roma: Aracne Editrice, 2017; p. 102.
3
Por “Apliuano” o tradutor e comentarista da obra, Gianmaria Gianazza, na nota 8 da p. 103, diante da
dificuldade de identificar o nome correto em uma obscura grafia árabe, cogitou diversos padres da Igreja
com nomes semelhantes, mas deixou de sugerir o muito provável nome de Flaviano de Constantinopla,
patriarca diofisita deposto de sua sede, logo após o controvertido Concilio de Éfeso II (449), por iniciativa
do intransigente Dióscoro de Alexandria. Os sequazes deste espancaram violentamente Flaviano que,
muito ferido, faleceu três dias depois no caminho para o exílio. In Di Berardino, Angelo. Dicionário
Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petropolis: Vozes, 2002; p. 583.
4
Nesta mesma versão italiana da obra de Ṣalībā encontra-se transcrito “Teodosio”, mas o tradutor e
comentarista Gianazza, entre vários possíveis nomes, sugere com propriedade o nome de Diodoro de
Tarso. Cf. Nota 10 da página 103 da supramencionada obra de Ṣalībā ibn Yūḥannā al-Mawṣilī.
5
Ṣalībā ibn Yūḥannā al-Mawṣilī. Op. cit. p. 109.
Realmente esta denominação não é coerente com os fatos, pois sabemos que a Igreja do Oriente
muito antes de Nestório era uma igreja de cristologia difisita, pois esta era a corrente original da
Escola de Antioquia à qual a Igreja Persa esteve vinculada desde seus primórdios e
posteriormente, nos séculos IV e V, considerável parte de seu clero foi formado em Edessa na
então denominada “Escola dos Persas” 6, um centro difusor da teologia antioquena e da
cristologia de Teodoro de Mopsuéstia. Além do mais tem lógica a critica de Ṣalībā a
denominação “nestoriana” para a Igreja do Oriente, pois diferentemente da Igreja Maronita que
nasceu como uma comunidade liderada por São Maron ou a Jacobita cuja hierarquia foi
organizada por Jacob bar Hebraeus, fazem jus ao nome, enquanto Nestório não foi um bispo da
Igreja do Oriente e nem colaborou diretamente em sua organização. Mas por outro lado,
contradizendo Ṣalībā, pelos vários motivos que apresentamos em meu artigo nº I do Kitāb asfār
al-asrār: o livro dos mistérios de Ṣalībā ibn Yūḥannā, Nestório não era um grego, mas um sírio
antioqueno ocupando uma cátedra bizantina7, ainda mais vale ressaltar que uma teologia difisita
propriamente nestoriana foi assumida oficialmente pela Igreja do Oriente a partir do século VII
com Babai o Grande8, portanto ainda que o termo "Nestoriano" foi amplamente estereotipado e
usado “frequentemente de forma enganosa e incorreta para classificar como herético quem
mantivesse uma posição diofisita estrita” 9, como muito bem evidenciou Sebastian Brock, daí a
objeção de Ṣalībā a esta denominação. De nossa parte também, devido estes condicionamentos
históricos, devemos ter o bom propósito de evitar este termo, mas em seu sentido genuíno
poderíamos dizer que “cristológicamente” a Igreja do Oriente é Nestoriana. Quanto aos relatos
de Ṣalībā referente às controvérsias cristológicas entre Cirilo e Nestório condiz com a realidade
dos fatos (apenas alguns detalhes são equivocados) e escreve: “quando Cirilo [era] patriarca de
Alexandria, compôs um credo, segundo sua opinião e redação, chamando-lhe os ‘Doze
Capítulos’ e o enviou a Nestório para que o aprovasse e retificasse” 10. Refere-se aqui aos doze
anátemas que se encontram anexos no final da terceira carta de Cirilo a Nestório. Os quais
foram compostos pelo patriarca de Alexandria e seu clero em um sínodo local em 430 e
posteriormente ratificado em Éfeso em 431. Assim os Doze Capítulos não fizeram parte do
inicio, mas do final de uma longa e terrível controvérsia e foram aprovados em um concilio que
deveria ter sido ecumênico no sentido autêntico da palavra, mas parcial, pois ocorreu sob a
liderança de Cirilo antes que os padres orientais (patriarca de Antioquia e seu episcopado) e o
próprio Nestório estivessem presentes. Portanto Ṣalībā afirma que a resistência de sua Igreja em
aceitar Éfeso está no fato de não reconhecerem a “ecumenicidade” deste concilio e que “aquilo
que não vem do Evangelho ou transmitido pelos Apóstolos é algo convencional que não é lícito
aceitar. E isto por vários motivos: o primeiro porque a afirmação mencionada [por Cirilo]
conduz a crer em uma única natureza, enquanto nós cremos em duas naturezas; em seguida
porque os Doze Capítulos mencionados não podem nem mesmo ser a mesma formula de fé que
professamos”11.

6
Flemming, J. Akten der ephesinischen Synode vom Jahre 449 (1917). Apud.Becker, Adam H. “Edessa,
School of,”. In Brock, Sebastian P. et alii (Eds). The Gorgias Encyclopedic Dictionary of the Syriac
Heritage (GEDSH). Piscataway: Gorgias Press, 2011; p. 191.
7
Gonçalves Araújo Jr., Adalberto. Kitāb asfār al-asrār: o livro dos mistérios de Ṣalībā ibn Yūḥannā. In
Pontificio Istituto Orientale. [Ta056] Patrologia siriaca e arabo-cristiana. Compito 1; pp. 2-3.
8
Labout, Jérôme. Les Christianisme dans l’empire perse sous la dynastie sassanide (224-632). Paris:
Libraerie Victor Lecoffre, 1904; p. 285.
9
Brock, S. P. (1996). "The 'Nestorian' Church: a lamentable misnomer". Bulletin of the John Rylands
Library. 1996;78(3);p. 34.
10
Ṣalībā ibn Yūḥannā al-Mawṣilī. Op. cit. p. 106.
11
Ibid. p. 108.

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