Você está na página 1de 6

198 RESENHAS

pois tanto recobre a maneira como são três entradas, uma mais geral, que pro-
designados pela sociedade, como o mo- blematiza o estatuto e o lugar da reli-
do como o grupo sob questionamento gião na modernidade à luz dos casos
se reconhece. No entanto, para o autor, francês e brasileiro, e outras duas mais
isto não elimina os mecanismos de re- concretas, servindo tanto para interes-
gulação do Estado em relação a ele e a sar os estudiosos do fenômeno “new
essa modalidade de religião, mas ape- age” quanto para engrossar a vasta e
nas expressa outra configuração de que recente lista de trabalhos sobre a “Igre-
a regulação se reveste. A ausência de ja Universal do Reino de Deus”. No pri-
uma legislação geral de regulação das meiro caso, acrescenta a um tema em
religiões pelo Estado brasileiro faz com geral associado a pós-modernidade, um
que todas as iniciativas de monitora- viés voltado para clivagens em um “cam-
mento e controle institucional – iniciati- po minado”, para retomar uma imagem
vas que envolvem atores dos campos de Patricia Birman; e, no segundo, acres-
intelectual, jurídico, religioso e jornalís- centa um olhar diferenciado aos esque-
tico – se realizem nos terrenos específi- mas que vêem a IURD amplificando
cos das diversas conjunturas e modali- certas características de um chamado
dades. Nesse sentido, nem os intelec- neopentecostalismo, preferindo tomá-la
tuais, repercutindo uma agenda estabe- como um caso emblemático que des-
lecida pelo campo social e midiático, al- perta distintas percepções sobre a regu-
cançam um distanciamento da proble- lação do “religioso” no Brasil atual.
mática em que estão inseridos. Ao seu Após finalizar uma densa leitura, fi-
modo acadêmico, mantêm afinidades e ca uma questão ecoando: afora a abor-
participam das mesmas preocupações dagem empreendida por Giumbelli de
de outros campos quanto à necessidade mapeamento da dinâmica do “campo
de enquadramento do fenômeno (:312). de controvérsias” e de sua recolocação
Quanto à questão da regulação do no quadro da problemática entre reli-
religioso pela sociedade moderna, en- gião e modernidade, uma apreciação
quanto na França há coordenação, no mais substantiva e direta dos aspectos
Brasil há dispersão, para lembrar a clás- em jogo (mesmo que, e principalmente,
sica visão gramsciana da “guerra de acadêmica) conseguirá escapar ao cír-
posição” e “guerra de guerrilha”. Com culo inclusivo desse campo?
isso, a IURD multiplica suas pendências
em várias esferas da sociedade, multi-
plicando também sua visibilidade e pa- L’ESTOILE, Benoît de, NEIBURG, Fede-
recendo “estar em toda parte!” rico e SIGAUD, Lygia (orgs.). 2002. An-
O livro resulta em um tratado com tropologia, Impérios e Estados nacio-
suas 456 páginas compactadas e acom- nais. Rio de Janeiro: Relume Dumará/
panhadas por uma profusão de notas FAPERJ. 295 pp.
que indicam esmero e rigor no trabalho
e conectam a argumentação do autor
com múltiplas obras de referência. Em- Heloisa Pontes
bora seja leitura para um público mais Departamento de Antropologia da Unicamp
“interno” ao tema, sua narrativa, por via
da reconstituição de uma seqüência de Faz algum tempo que a expressão ‘et-
conjunturas e fatos, é envolvente e es- nografia do pensamento’ parece ter per-
clarecedora. Pode ser lido a partir de dido a sua conotação herética – tributá-
RESENHAS 199

ria da idéia algo intranqüila de que ‘so- dêmica. Lygia Sigaud, Federico Nei-
mos todos nativos’ – para se transformar burg e Benoît de L’Estoile, os organiza-
em uma das rotinas de trabalho mais fe- dores dessa mais que bem-vinda cole-
cundas da antropologia contemporâ- tânea, fazem parte desse grupo de an-
nea. Cunhada por Clifford Geertz há tropólogos interessados em desvendar
vinte anos, em seu ensaio “The way we as condições sociais, culturais, intelec-
think now”, ela permitiu a uma parcela tuais, políticas e institucionais que es-
de antropólogos intrigados com os cons- tão na base da constituição da antropo-
trangimentos que perpassam a produ- logia e de sua atualização em cenários
ção do pensamento (e não só dos ‘ou- nacionais ou imperiais diversos.
tros’) a legitimidade intelectual neces- Somando esforços ao que já vem
sária para trazerem para dentro da sua sendo feito no Brasil no campo da socio-
disciplina objetos até então refratários a logia dos intelectuais e da história das
uma abordagem mais etnográfica. Não ciências sociais – ainda que nem sem-
por qualquer característica intrínseca a pre reconhecendo explicitamente o dé-
esses objetos, mas em virtude da de- bito intelectual em relação a esses tra-
marcação das sempre arbitrárias e con- balhos –, os organizadores lançam luzes
tingentes fronteiras disciplinares entre novas na área. No capítulo introdutório,
a antropologia, a sociologia e a história. tornam público o partido teórico e ana-
Assim, se concepções mais alargadas lítico que dá sustentação ao livro. Em
do fazer antropológico, como as enun- primeiro lugar, a idéia de que a com-
ciadas por Merleau-Ponty, entendiam a preensão sociológica da relação dos an-
antropologia não como um recorte ou tropólogos e, por tabela, da antropolo-
campo de investigação particular, mas, gia com o Estado e com os seus círculos
fundamentalmente, como uma maneira dirigentes exige uma abordagem com-
de pensar que se impõe quando o obje- parativa e histórica. Sem isso não é pos-
to é ‘outro’, o certo, porém, é que havia sível pensar o impensado da disciplina
domínios nos quais os antropólogos não nesse domínio, aprisionada que está às
se aventuravam. Entre eles, o da produ- categorias nativas, isto é, dos próprios
ção cultural das elites ‘ocidentais’ e de antropólogos, no uso recorrente e reite-
seus cientistas. rativo que fazem de pressupostos mo-
Verdadeira lufada de ar fresco para rais, assentados ora na denúncia, ora no
muitos, a idéia da etnografia do pensa- engajamento, quando confrontados com
mento parecia, para outros, arrombar a dimensão política que informa, reco-
portas abertas, visto serem seus pressu- bre ou recorta as práticas mundanas e,
postos teóricos e desdobramentos me- em alguns casos, epistemológicas de
todológicos elementares para os prati- sua disciplina. Longe, portanto, de ma-
cantes da sociologia da cultura e do co- nifestações contingentes ou ocasionais,
nhecimento, como bem mostram os tra- esse tipo de relação precisa ser enten-
balhos de Raymond Williams, Norbert dido, segundo os organizadores, a par-
Elias e Pierre Bourdieu – para citar uma tir do seu caráter estrutural, dada a mú-
trinca de primeira linha na área. Quere- tua implicação entre a prática científica
las disciplinares à parte, vale a pena su- e a formação e o funcionamento dos Es-
blinhar, no entanto, o vigor dessa em- tados nacionais ou imperiais. Trata-se,
preitada quando conduzida por antro- portanto, de analisar as condições de
pólogos dispostos a escarafunchar os in- produção da antropologia (e das ciên-
terstícios da produção científica e aca- cias sociais em geral) em relação ao
200 RESENHAS

campo interno dos seus praticantes e enxergá-las como nacionais ou metro-


aos dispositivos específicos acionados politanas. Isto é, como “menores” em
pelos Estados na criação e na manuten- escala e em conteúdo, no caso das pri-
ção das instituições nas quais os antro- meiras, e “maiores”, em escala e ambi-
pólogos atuam. ção teórica, no caso das segundas, tidas
O conjunto de casos analisados no como sinônimos de antropologias inter-
livro evidencia a relação de dependên- nacionais. Nacional e metropolitano,
cia mútua entre a ação política, a elabo- como termos historicamente circunscri-
ração e implementação de políticas es- tos à dinâmica própria do sistema de in-
tatais por parte dos agentes da adminis- terdependência entre os Estados nacio-
tração e a produção de conhecimento nais, dizem respeito também, como mos-
sobre as populações administradas. Es- tram os organizadores, ao escopo e ao
trutural e estruturante, a relação entre alcance possível de questões persegui-
os saberes antropológicos e a constru- das pela antropologia.
ção do Estado vai sendo pinçada pelos Inspirando-se em Norbert Elias,
organizadores por meio de um tríplice mostram como influências intelectuais
eixo analítico. Em primeiro lugar, pela deixam de aparecer como um problema
apreensão da natureza das unidades derivado apenas (o que está longe de
políticas em questão (Estados nacionais ser pouco) do maior ou menor alcance
ou imperiais) e de suas implicações na de idéias e paradigmas e passam a ser
definição intelectual e na formatação entendidas também como resultado da
institucional da antropologia. Em se- articulação entre os saberes e a nature-
gundo, pelo exame da articulação entre za política dos Estados no interior dos
a constituição e o desenvolvimento das quais eles se sedimentam. Com essa
tradições antropológicas nacionais, em discussão, o capítulo introdutório do li-
sua interface com os modelos estatais vro contribui para romper com vários
de gestão de populações sob seu escru- dos esquemas habituais de pensamen-
tínio analítico, e a questão crucial das to, que, internalizados sob a forma de
assimetrias de poder de ordem diversa juízos de valor (de denúncias ou enga-
que pontuam a circulação internacional jamento, no plano da política, de repu-
de teorias e paradigmas da disciplina. tações, chancelas ou mazelas, no âmbi-
Em terceiro, pela investigação das posi- to intelectual e científico), tendem a lan-
ções desfrutadas por cada unidade polí- çar para fora da história, sob a forma de
tica no espaço internacional, com o pro- categorias essencializadas, tudo aquilo
pósito de entender como as transforma- que só pode ser apreendido em relação.
ções produzidas ao longo do tempo no Hora de mudar de registro: ciência
sistema de interdependência entre os do concreto, a antropologia, bem sabem
Estados nacionais reverberam na agen- os organizadores, não pode prescindir
da intelectual das antropologias em tela. do trabalho etnográfico, sob pena de
Assim é que, sem perder de vista a ver desmanchar no ar o sólido esquema
especificidade das diversas antropolo- analítico construído para potencializá-
gias enfocadas no livro (brasileira, me- lo. Um dos pontos altos do livro, o segun-
xicana, sul-africana, francesa, norte- do capítulo, de autoria de Adam Kuper,
americana e portuguesa), estas, quando faz uma antropologia da antropologia
iluminadas pelo tripé analítico sinteti- sul-africana, mapeando as duas escolas
zado acima, não se deixam encapsular que a dividiram. Uma, de feitio cultura-
pela dicotomia simplista que tende a lista, empenhada na captação da diver-
RESENHAS 201

sidade étnica, ligava-se ao apartheid e mos ‘nacional’, ‘colonial’ e ‘imperial alu-


às universidades de língua africâner. A dem aqui à constituição simultânea de
outra, uma ramificação local da antro- saberes coloniais e a uma série de estu-
pologia social britânica, subordinada no dos sobre a cultura portuguesa no inte-
plano interno, mas vitoriosa quanto à rior dos quais a antropologia teria um
sua internacionalização, opunha-se à papel destacado.
política governamental e interessava- O mesmo ocorreria no México, só
se, sobretudo, pelos debates centrados que no âmbito nacional, como revela
na estrutura e nas transformações so- Cláudio Lomnitz ao examinar o lugar
ciais. Cultura e estrutura adquirem, ali, ocupado pelo conhecimento antropoló-
sinais antagônicos. Não só em virtude gico sobre populações indígenas, na
de proposições internas ao campo con- teoria e na prática do nacionalismo me-
ceitual da disciplina, mas, fundamen- xicano. Contrapondo-se à leitura da
talmente, como mostra Kuper, em razão história da antropologia mexicana, que
do áspero confronto político que fazia se repetiria em um ciclo interminável
com que todos os contenciosos estives- de incorporação pelo Estado, Lomnitz
sem necessariamente marcados pela propõe-se explicar as origens, a evolu-
política do Estado. O que estava em ção histórica e o que ele entende como
pauta eram maneiras distintas de quali- atual esgotamento da tradição mexica-
ficar a especificidade da sociedade sul- na, em razão do seu confinamento a
africana, a natureza dos seus problemas uma antropologia nacional. Antonio
e a “engenharia” social mais adequada Carlos de Souza Lima, por sua vez, pro-
para resolvê-los. Nesse contexto, nomes cura entender como se articularam, no
e partes tornam-se categorias classifi- caso brasileiro, as tradições de saber de
catórias intrigantes, trocas intelectuais gestão do índio, especialmente aquela
se transformam em alianças políticas e fornecida pelo indigenismo mexicano,
termos que, a princípio, soam caros aos e os saberes antropológicos que se fir-
antropólogos, como diversidade cultu- maram a partir da institucionalização
ral e étnica, se enrijecem sob clivagens acadêmica e universitária da antropolo-
políticas. gia social no país. Diferentemente do
O mesmo conjunto amplo de ques- que ocorreu no México, o indigenismo
tões será perseguido, com resultados brasileiro, considerado como saber de
analíticos distintos, pelos demais traba- Estado aplicado à gestão das socieda-
lhos da coletânea. Benoît de L’Estoile, des indígenas, afastou-se definitivamen-
sustentando a idéia da existência de te da antropologia social.
uma afinidade entre racionalidade ad- Se o caso da antropologia brasileira
ministrativa e racionalidade científica, serve como um bom contraponto empí-
ilumina as relações entre o Estado colo- rico ao da antropologia mexicana, o
nial e o desenvolvimento dos saberes exemplo norte-americano parece ser o
sobre as populações indígenas, a partir mais cristalino para entendermos as
do caso da África sob dominação fran- mútuas implicações entre a delimitação
cesa, entre 1920 e 1950. Omar Ribeiro de novos objetos de investigação, a am-
Thomas mostra como, em Portugal, não pliação das fronteiras geográficas para
é possível separar rigidamente uma an- o desenvolvimento dos trabalhos de
tropologia que tinha como objeto a na- campo dos antropólogos, a construção
ção daquela que tinha como objeto pre- de uma nova agenda política por parte
ferencial o império. Mesclados, os ter- do Estado e a sua crescente hegemonia
202 RESENHAS

no sistema de interdependência das na- crescente participação de antropólogos


ções. Assim, Federico Neiburg e Marcio latino-americanos no campo das orga-
Goldman mostram como, restrita, de nizações não-governamentais e em
início, a temas, questões e objetos loca- agências nacionais e internacionais de
lizados dentro de suas fronteiras nacio- desenvolvimento. João Pacheco de Oli-
nais (índios, negros, imigrantes, peque- veira analisa os riscos, os desafios e os
nas comunidades rurais e grandes cida- paradoxos enfrentados pelos antropólo-
des), a antropologia norte-americana, gos quando são chamados por agências
ao mesmo tempo que inventa um novo do Estado a intervirem como peritos em
objeto teórico, os estudos sobre o “cará- questões ligadas à definição de grupos
ter nacional”, conhece, no contexto da étnicos e à delimitação das bases terri-
Segunda Guerra, um novo domínio de toriais das sociedades indígenas. Por
aplicação para eles: a política externa. fim, Alba Bensa apresenta uma sugesti-
Os Estados Unidos deixam de ser o ‘- va reflexão sobre os resultados da cola-
campo’ privilegiado dos antropólogos boração entre um antropólogo (ele pró-
em um movimento inverso ao que se ob- prio) e um arquiteto de vanguarda, com
servava no mesmo período no México. renome internacional (Renzo Piano),
A internacionalização da antropolo- empenhados ambos em responder com
gia norte-americana funciona como um suas respectivas linguagens – antropo-
espelho invertido para a antropologia lógica e relativista, em um caso, arqui-
francesa, que, apesar da força intelec- tetônica e estética, no outro – aos desa-
tual e da reconhecida influência de fios postos pelo espinhoso e fascinante
seus protagonistas mais brilhantes, ten- trabalho de “traduzir” a cultura kanak
de cada vez mais a ser empurrada para (Nova Caledônia) e suas concepções de
a periferia dos debates. De uma antro- mundo nas formas plásticas que seriam
pologia metropolitana, responsável pe- impressas no traçado do Centro Cultural
la criação e atualização de algumas das Tijabou, uma realização da política cul-
vertentes teóricas mais vigorosas, ela tural do movimento nacionalista kanak.
parece, hoje, seguir as trilhas das cha- Nesse pensar a antropologia em re-
madas antropologias nacionais. Cons- lação a demandas políticas de ordem
trangida a redirecionar o foco de seus variada e aos contextos nacionais ou
interesses para dentro das fronteiras imperiais que a conformam em chaves
francesas, é forçada a enfrentar velhos diversas reside o mérito maior desse li-
fantasmas, como nos mostra Florence vro inteligente e bem armado. No en-
Weber, pondo a nu um período comple- tanto, conforme vamos nos inteirando
xo da história intelectual francesa, o go- das agendas intelectuais e dos vários
verno de Vichy, durante o qual a etno- formatos institucionais que a disciplina
logia fincou bandeiras para demarcar a recebeu nos diversos cenários analisa-
sua diferença em relação aos folcloris- dos, somos tentados a pôr também em
tas e regionalistas. questão a própria noção do que seja an-
O restante do livro analisa o impac- tropologia.
to e os desdobramentos de novas de- A leitura em conjunto das várias an-
mandas políticas promovidas pela so- tropologias da antropologia apresenta-
ciedade civil ou pelo Estado na criação das no livro em tela, quando postas em
de novos mercados de trabalho e de in- relação pela excelente visada compara-
tervenção para os antropólogos. Jorge tiva de seus organizadores, tem o estra-
Pantaleón examina as implicações da nho efeito de produzir algo como a en-
RESENHAS 203

ciclopédia chinesa de Borges. Não por- das ciências sociais. Se nunca fora atri-
que ela nos conduza à impossibilidade buída agência às crianças, não é porque
de pensá-la, mas porque nos leva a du- estas fossem meros reprodutores da so-
vidar que seja necessário ainda man- ciedade adulta, mas porque havia um
ter uma única nomenclatura para uma completo desconhecimento das especi-
prática intelectual tão diversa como a ficidades do mundo infantil. Nesse sen-
dela. Em face das gritantes diferenças tido, o livro filia-se explicitamente a um
teóricas, empíricas e institucionais que projeto intelectual em termos do qual as
explicam sua trajetória e atualização – crianças devem ser tratadas como sujei-
e que são tão bem analisadas no livro –, tos sociais completos e interlocutores le-
será que as continuidades ainda são gítimos do pesquisador. A constituição
fortes o suficiente para continuarmos a deste paradigma esteve associada à
insistir na sua identidade disciplinar? proliferação dos estudos sobre crianças
O que há de comum, por exemplo, en- em contextos urbanos, industriais e glo-
tre a antropologia portuguesa no pe- balizados, principalmente na Europa
ríodo do salazarismo – praticada nas (:12-15); procurando estendê-lo, este li-
horas vagas por médicos, biólogos, mis- vro fornece uma porta de entrada aos
sionários, administradores e até mes- estudos sobre crianças em contextos in-
mo militares que se diziam antropólo- dígenas (embora os capítulos bibliográ-
gos – e aquela que, sendo um desdo- ficos da segunda parte falem também
bramento da escola sociológica france- de outros contextos). A primeira parte
sa, de corte universitário e acadêmico, da coletânea é composta por sete arti-
apartou o folclore de seu horizonte? O gos, todos baseados em pesquisa de
que afinal é isto que teimamos em con- campo em sociedades indígenas (Xa-
tinuar a chamar de antropologia no vante, Kaiapó-Xikrin, Guarani, Kaiowá,
singular? Asurini) e orientados pelo projeto de
constituição de uma antropologia da
criança ou da infância.
LOPES DA SILVA, Aracy, NUNES, Ange- Em sete ricos flashes etnográficos,
la e MACEDO, Ana Vera (orgs.). 2002. recolhidos em um longo trabalho de
Crianças indígenas: ensaios antropo- campo (de 1971 a 1995) entre os A’uw?
lógicos. São Paulo: Global. 280 pp. (ou Xavante e Xerente), Aracy Lopes da
Silva discute os processos de aprendi-
zagem, transmissão e expressão do co-
Flávia Pires nhecimento, onde a corporalidade se
Doutoranda, PPGAS/MN/UFRJ revela como um dos mecanismos cen-
trais. Ao dizer, no segundo flash: “Há
O livro Crianças indígenas: ensaios an- sempre o que aprender, e durante a vi-
tropológicos é uma tentativa de romper da toda se aprende” (:43), Aracy contri-
com mais um dos tantos “centrismos” bui para os estudos em que a cultura é
que assombram a antropologia. Se as vista como algo em perene constituição.
crianças foram por tanto tempo tratadas Afinal, não são apenas as crianças que
como adultos em miniatura, isso não se aprendem, mas todos os sujeitos sociais,
deveu a uma característica própria da inclusive os adultos e idosos, como a
infância, mas sim a uma postura “adul- autora bem mostra nesse flash sobre a
tocêntrica”, nas palavras de Angela Nu- experiência corporal em contextos ri-
nes, predominante ao longo da história tuais. O flash número quatro, sobre co-

Você também pode gostar