Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
FEDERAL
FLUMINENSE
PROGRAMA
DE
PÓS-‐GRADUAÇÃO
EM
SOCIOLOGIA
E
DIREITO
CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS
E
URBANOS
TERRITÓRIO
MINADO
NITERÓI
2014
2
TERRITÓRIO MINADO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.
Niterói, 2014
3
428
f.
Orientação
do
Prof.
Dr.
Wilson
Madeira
Filho
Tese
(Doutorado
em
Ciências
Jurídicas
e
Sociais)
–
Universidade
Federal
Fluminense,
2004.
1.
Interdisciplinaridade.
2.
Justiça
Ambiental.
3.
Conflitos
sócio-‐ambientais.
I.
Dissertação
(Mestrado).
II.
Título
4
TERRITÓRIO MINADO
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________________
Prof. Dr. Wilson Madeira Filho (PPGSD – UFF)
________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marta de Azevedo Irving (UFRJ)
________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª May Waddington Telles Ribeiro (UFPI)
________________________________________________________________
Dr.ª Alba Simon (SEA)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Lobão (PPGSD – UFF)
Niterói, 2014
5
In memoriam
Ao meu pai, que me deu a vida e deu a vida pela educação de seus filhos.
No curso da redação deste trabalho ele partiu em uma “conjunção astral”.
Dedico este trabalho ao meu filho que ainda não nasceu, concebido um mês
após o falecimento de meu pai, para me ajudar a entender a vida.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Esta tese estabelece uma análise dos dissídios entre diferentes grupos de interesses que
recaem sobre os territórios de duas Unidades de Conservação na Amazônia brasileira: a
Reserva Biológica do Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, localizadas no
Estado do Pará. Oriundos das políticas governamentais de desenvolvimento e de conservação
experimentadas durante o regime militar e no início da transição democrática, esses espaços
territoriais protegidos guardam fortes embates assimétricos que envolvem populações
tradicionais, mineração da bauxita, grandes corporações, cientistas de diversas instituições e
entidades governamentais ligadas à gestão ambiental. Uma área peculiarmente marcada pela
intensidade das forças que colidem ao buscar determinar quais práticas devem prevalecer no
uso e ocupação desses territórios, ultrapassando sobremaneira os marcos legais que os regem.
A região em que a pesquisa se debruça situa-se entre os maiores contínuos de áreas protegidas
do país, onde se localiza uma das maiores mineradoras de bauxita do mundo e a primeira
Terra Quilombola titulada no Brasil. Sustentado em pesquisa de campo que buscou conjugar
concomitantemente a análise documental, os relatos orais dos diversos atores e as vivências in
situ, o estudo objetivou percorrer a historicidade e a interatividade entre os grupos de
interesses que vão compor aquela realidade e a integração dos mesmos a uma vasta rede
sócio-técnica que ultrapassa as fronteiras nacionais. A pesquisa está estruturada em três partes
e doze capítulos em que são apresentados o percurso e o desenvolvimento dos trabalhos, a
base epistemológica e metodológica, e a rede de interações estabelecida pelos atores que
configura a sócio-natureza em questão. O estudo resulta em uma densa narrativa que
apresenta as múltiplas estratégias utilizadas para dar legitimação às práticas dos segmentos
enfocados, as conexões que perfazem e reconfiguram os territórios e a distância que marca os
resultados dos diferentes projetos idealizados e a realidade mapeada na pesquisa.
ABSTRACT
This thesis provides an analysis of the conflicts between different interest groups that fall on
the territories of two protected areas in the Brazilian Amazon: the Biological Reserve of Rio
Trombetas and Saracá-Taquera National Forest, located in the State of Pará. Arising from
government policy development and conservation experienced during the military regime and
the beginning of the democratic transition, these protected spaces keep strong asymmetric
territorial clashes involving traditional populations, bauxite mining, large corporations,
scientists from various institutions and government-related entities environmental
management. An area peculiarly marked by the intensity of the forces that seek to collide
determine which practices should prevail on the use and occupation of these territories,
greatly exceeding the legal frameworks governing. The region in which the research focuses
is among the largest continuous protected areas of the country, home to one of the largest
mining bauxite in the world and the first Quilombo Territory titled in Brazil. Sustained in
field research that sought simultaneously combine document analysis, the oral reports of the
various actors and experiences in situ, the study aimed to go historicity and interactivity
among interest groups that will make up that reality and their integration to a wide socio-
technical network that transcends national boundaries. The research is divided into three parts
and twelve chapters in which are presented the course and development of the work, the
epistemological and methodological basis, and the network of interactions established by the
actors who sets the socio-nature in question. The study results in a dense narrative that
presents multiple strategies used to give legitimacy to the practices of the focused segments,
which make up the connections that reconfigure the territories and the distance that marks the
results of the different idealized projects and reality mapped in the survey.
LISTA DE FOTOS
Foto 03: Entrada da Reserva Biológica - Flutuante. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2011...........................................................................................................................................46
Foto 05: Preparo de tartarugas jovens. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012..........53
Foto 07: Cachoeira Porteira – BR163. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013..........60
Foto 08: Tabuleiros do Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012........103
Foto 10: Mineração Rio do Norte. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012................215
Foto 11: Torre do Linhão no Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2013.........................................................................................................................................217
Foto 12: Descoberta da bauxita pela Alcan na década de 1960. MRN, 2013......................242
Foto 15: Colocação da bandeira indicando o controle do Governo sobre a área em setembro
de 1976. IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976................................................................................273
Foto 19: Família do lago do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011...............313
Foto 22: Altar da Comunidade do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.......385
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 01: Diário de Campo – Brega 45. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2010...........................................................................................................................................82
Ilustração 02: Jean-Pierre Chabloz, 1942. In. Jornal da Unicamp, nº 542, Campinas. 15 de
outubro de 2012......................................................................................................................191
Ilustração 04: Panfletos dos Seminários sobre as barragens na Cachoeira Porteira, 1989 e
1981.........................................................................................................................................396
14
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 3: Comparativo entre o número de filhotes contabilizados de 1986 até 2003 no Rio
Trombetas e Santarém. MMA/ICMBio 2011.........................................................................338
LISTA DE MAPAS
Mapa 01: Diário de Campo – Rota da Pesquisa. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2013...........................................................................................................................................30
Mapa 02: Diário de Campo – esboço do trajeto. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2010...........................................................................................................................................39
Mapa 06: Projeto Trombetas – mapa das reservas. Greig (1977) reproduzido por Machado,
2007.........................................................................................................................................242
Mapa 09: Mapa dos territórios quilombolas incidentes sobre as UCs. MMA/ICMBio,
2011.........................................................................................................................................310
Mapa 10: Zoneamento da FLONA-ST. Fonte: Plano de Manejo da Floresta Nacional Saracá-
Taquera, 2001.........................................................................................................................361
Mapa 11: Mapa geral das novas áreas propostas de inclusão na zona de mineração da
FLONA-ST. MRN, 2011…………………………………………………………………….361
LISTA DE TABELAS
Tabela 01:Fonte: Publicador Paraense – Belém, ano I, nº 64, de 24 de dezembro de 1849, p.1,
reproduzido por BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural.
(2009:124)...............................................................................................................................177
Tabela 05: Descrição das técnicas de pesca, utilizadas pelas comunidades quilombolas do
Rio Trombetas. Fonte: Luciana S. Melo, 2012.......................................................................305
Tabela 6: Descrição das técnicas de caça utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio
Trombetas. Fonte: Luciana S. Melo, 2012..............................................................................305
ABREVIATURAS UTILIZADAS
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................23
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................31
2 O PARAÍSO E O LIMBO.....................................................................................................36
1 TRÊS MATRIZES...............................................................................................................104
1.1 Estruturalismo-construtivista...........................................................................................105
1.2 Rizoma e Multiplicidade...................................................................................................110
1.3 Multiterritorialidade.........................................................................................................117
1. O PROGRESSO E A ORDEM...........................................................................................174
1.1. Breves passagens na fabricação da Amazônia brasileira.................................................176
1.2. Integrar e desintegrar: o avanço do progresso e a construção da ordem..........................186
1.3. “Amazônia: de última página do Gênesis ao preâmbulo do mundo futuro”...................195
2. OS PLATÔS DE BAUXITA..............................................................................................215
2.1. A máquina minerária........................................................................................................215
2.2. Para além dos territórios e das leis...................................................................................225
22
3. A CONSERVAÇÃO E ORDEM........................................................................................253
3.1. A segregação do espaço e os estoques para a ciência......................................................259
3.2. A edificação da governança ambiental no Rio Trombetas..............................................273
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................415
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................427
23
APRESENTAÇÃO
serão avistadas casas suspensas de madeira e palha, espaçadas, podendo marcar as horas do
percurso após o flutuante. Focando o olhar percebe-se a peculiaridade étnica dessas
comunidades, que, diferente das demais ao longo do trajeto, seus habitantes são
predominantemente negros. Cerca de cinco horas após o ingresso nas unidades de
conservação, outra base de fiscalização se avista, com uma pequena balsa e uma escadaria em
terra que leva a um grupo de casas onde, geralmente, se alojam os pesquisadores. Neste
momento se iniciam grandes extensões de areia sobre o rio, chamadas de tabuleiros, estes, em
outros tempos, representaram o maior berçário conhecido da tartaruga-da-Amazônia. Essas
grandes praias seguem acompanhando a paisagem por mais algumas horas até que paredões
de pedra passam a compor o cenário e, ao longe, soará forte a turbulência das águas. Pouco
depois uma grande cachoeira será avistada e impossibilitará a continuação do percurso no
barco. Adiante, somente de canoa. Chega-se aos limites da Reserva em uma comunidade
chamada Cachoeira Porteira. Índios, negros e ribeirinhos são avistados no vilarejo, uma
estrada o corta rumo ao infinito, a BR-163, e pouco acima da cachoeira está a comunidade
indígena de Tawanan. Neste recanto, que paira um projeto insepulto de uma hidroelétrica, se
finda o traço longitudinal do percurso desta pesquisa.
A breve descrição tem como escopo ilustrar a intensidade das relações imbrincadas
nesses territórios em que a pesquisa se debruça. Multinacionais mineradoras, indígenas,
quilombolas, governo, ONGs, cientistas, ribeirinhos e o que mais se liga das florestas, das
águas e dos solos compõem essa sócio-natureza. As diferentes simetrias que caracterizam os
distintos atores recria uma contenda territorial peculiar que abrange desde a inviabilização de
modos de vida de determinados grupos, disputas na acessibilidade dos recursos do ambiente,
até os modelos de desenvolvimento nacional e de conservação da sociobiodiversidade. Todos
confrontam os sentidos e as qualificações possíveis para essas áreas, as conexões e os
agenciamentos que podem ser estabelecidos.
O estudo versa sobre os “conflitos socioambientais” em espaços territoriais
especialmente protegidos na Amazônia brasileira; mais especificamente em duas unidades de
conservação, consideradas de importância nacional tanto para a preservação da
biodiversidade, quanto para o uso sustentável dos recursos naturais: a Reserva Biológica do
Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, situadas na mesorregião do Baixo
Amazonas, microrregião de Óbidos, em uma região conhecida como Alto Trombetas no
município de Oriximiná. Os imbróglios e os próprios espaços empenhados na análise
originaram-se a partir das políticas de desenvolvimento e de conservação experimentadas no
regime militar, que empenhou uma nova colonização do espaço amazônico para integrá-lo a
25
enfocada; o segundo narra os trabalhos de campo realizados com base nos diários de campo,
neste momento sem dar voz aos múltiplos atores, apenas descrevendo a experiência; e o
terceiro capítulo busca uma apresentação do município de Oriximiná contextualizada com a
complexidade de sua vastidão territorial.
Parte II
No início da pesquisa adotei enquanto viés de análise, sem pretensões de uma pureza
teórica, a perspectiva estruturalista-construtivista, pela sua ampla utilização na sociologia da
questão ambiental no estabelecimento de um “campo próprio dos conflitos socioambientais”.
Neste primeiro momento tracei hipóteses que focavam os posicionamentos ocupados pelos
diferentes atores em conflito, com seus respectivos “capitais” empenhados na “luta cognitiva
e classificatória” pelas mudanças de posições pleiteadas no “campo”. No caso, o que
representa a própria ocupação e utilização do território: quais práticas são mais legítimas,
mais justas, mais sustentáveis etc. Nesse sentido, o objetivo geral da tese, neste primeiro
momento, foi compreender e explicitar as contradições e as discrepâncias de poder no uso
desses territórios associadas à uma perspectiva de justiça. Em síntese, a partir de um modelo
sistêmico em que os elementos da realidade poderiam ser inseridos, para que se
compreendesse as “estruturas profundas” que determinam a realidade e o movimento dos
atores, que não são perceptíveis apenas empiricamente, pois representam “forças sociais
ocultas”.
A constante necessidade de amputar aspectos da realidade percebidos enquanto
relevantes, mas que não eram comportados pela moldura, me levou a uma mudança de
perspectiva, induzida também por afinidades filosóficas anteriores. Com essa mudança, todos
os artigos escritos na fase exploratória da pesquisa, que compuseram grande parte do “projeto
de qualificação”, tiveram que ser abandonados ou refeitos. A transição empenhada se
apresentou não apenas como uma “troca de paradigma”, mas como uma mudança na “forma
de ver o mundo”. Esse momento foi aproveitado na segunda parte da tese com o intuito tanto
de elucidar essa transição, quanto de empenhar diferentes perspectivas epistemológicas que,
ao configurarem ontologias e metafísicas muito distintas sobre o que é o “social”, marcam
diferentes possibilidades de leitura para os conflitos socioambientais.
Essa segunda parte também é subdividida em três capítulos. O quarto capítulo
apresenta sucintamente as três matrizes teóricas que influenciaram o desenvolvimento da
pesquisa. No quinto capítulo é apresentada toda uma base conceitual que aporta diferentes
compreensões da questão ambiental e dos conflitos sobre os recursos, dentro de algumas
concepções, destacando-se a do estruturalismo-construtivista. O sexto capítulo trata a
27
conjugados para a análise, podem falhar, todos configuram percepções. Quaisquer suposições
adicionais valorativas, que serão apenas suposições, tomaram como norte a ideia de uma
democracia ampla, que visa apreender a pluralidade dos seres. As linhas e os nós que atam a
rede narrada, que dão os caminhos deste mapa, são portas abertas para novas pesquisas ou
para intervenções ou ações. Contudo, condizente à filosofia que inspira o trabalho, aspira-se
que eventuais ações não venham de modelos pré-concebidos, mas que brotem diretamente
destes solos.
30
Mapa 01: Diário de Campo – Rota da Pesquisa. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2013.
31
1 INTRODUÇÃO
propriedade, com base na ideia de uso comum. Criam-se percepções ainda não harmonizáveis
em nossa tradição jurídica privatista.
A presente pesquisa foca essa realidade severamente marcada pelos processos de
disputa sobre os recursos ambientais – acesso, controle e exploração – em um território de
grande riqueza e sobre um viés que retrata um marco indispensável na inteligibilidade das
sociedades contemporâneas: a sustentabilidade dos modelos de desenvolvimento e a
distribuição de poder sobre os recursos naturais. Esse vasto campo amazônico, no qual a
investigação se empenha, antagoniza a barbárie civilizatória do desenvolvimento, o
enclausuramento impositivo das políticas conservacionistas e a luta por reconhecimento dos
velhos povos de lá, imbricadas entre o discurso da defesa da tradicionalidade identitária e as
novas ambições materiais, abduzidos pela sociedade de consumo.
O mundo de contrastes circunscreve-se nas linhas de um dos maiores municípios do
planeta em espaço territorial e no seu entorno: Oriximiná, localizado na calha norte do Estado
do Pará, na região oeste. O município, instalado em 1934, situa-se na mesorregião Baixo
Amazonas e microrregião de Óbidos (01º 46` 00" S e 55º 51` 30" W.Gr.), faz divisa ao norte
com o Suriname e com a Guiana Francesa, ao leste com o municípios de Óbidos, ao oeste
com o município de Faro e o estado de Roraima e ao sul com os municípios de Juriti e Terra
Santa. Conforme o IBGE (2010) possui uma população urbana estimada de 40.147 e rural de
26.674. Com um território de 107.602,99 Km², o município encontra-se em área de particular
beleza, com seus grandes rios, lagos, praias, igarapés e toda a complexidade e opulência da
floresta amazônica.
Desde meados da década de 1970, acompanhando as referidas políticas
governamentais que focavam implementar grandes empreendimentos na Amazônia, norteados
pelos ideais desenvolvimentistas hegemônicos e pelo mito dos “territórios vazios”, o
município de Oriximiná assistiu a uma forte modernização e dinamização de sua economia.
Ao longo da bacia do Rio Trombetas, principal rio da região que nasce na fronteira do
Suriname e da Guiana Francesa, desaguando no Amazonas, foram experimentados enormes
projetos para apropriação dos recursos minerais e do potencial hidroelétrico, visando tornar a
área um novo polo de desenvolvimento. Empenharam-se nessa colonização do território
empresas como a ELETRONORTE, ALCAN, ALCOA Mineração S.A., Mineração Rio do
Norte – MRN, Andrade Gutierrez, Jarí, Petrobrás, Engerio, entre outras, incentivadas,
subsidiadas e apoiadas pelo Estado brasileiro. Dentre estas empresas, a que efetivamente se
consolidou na região foi a MRN, constituída em 1974 por empresas nacionais e
internacionais, possuindo como acionistas a Vale do Rio Doce (40%), BHP Billiton Metais
33
(14,8%), Rio Tinto - Alcan (12%), Companhia Brasileira de Alumínio – CBA (10%), Alcoa
Alumínio S.A. (8,58%), Norsk Hydro (5%), Alcoa World Alumina (5%) e Alcoa AWA
(4,62%).
A MRN atua na mineração e beneficiamento primário da bauxita, iniciando sua
produção com 3,3 milhões de toneladas anuais e atualmente produzindo cerca de 18,1 milhões
de toneladas por ano de bauxita, matéria prima do alumínio. Para acomodar seus funcionários,
pesquisadores, diretores e todo pessoal de suporte, foi criada uma sede urbana para a empresa,
denominada de Porto Trombetas, com mais de 6.000 habitantes e com uma infraestrutura
social muito superior à do próprio município de Oriximiná. Uma “cidade” fechada, recolhida
sobre si mesma, a qual surpreende pelo rigor e disciplina, controlando quem entra e quem sai,
possuindo “hora de recolher” dos bares e restaurantes, exibindo escolas, hospitais,
laboratórios, áreas de lazer, comércio etc.
Concomitante aos projetos de desenvolvimento experimentados na região, revelando
quão antagônicas foram tais políticas públicas, criaram-se duas unidades de conservação de
importância nacional nos arredores de Oriximiná e municípios vizinhos: A Reserva Biológica
do Rio Trombetas, com cerca de 408.000 ha, criada em 1979 pelo Decreto Federal nº 84.018
de 21 de setembro do mesmo ano; e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, com 429.600 ha,
criada no final de 1989 pelo Decreto Federal 98.704 de 27 de dezembro de 1989, abrangendo
três municípios: Oriximiná, Faro e Terra Santa – ambas são atualmente disciplinadas pelo
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei 9985/2000. De um lado, o
desenvolvimentismo predatório da mineração, da hidroelétrica, da abertura de estradas; e de
outro, a conservação segregacionista e excludente da reserva biológica e da floresta nacional,
unidades de conservação que demarcam o campo preciso desta pesquisa.
Os impactos ambientais e sociais das grandes empresas que por lá passaram são de
complexa mensuração, pois não apenas modificam os modos de vida das populações e dos
ecossistemas, mas recriam em âmbito local toda uma rede de atores e relações de poder que,
por fim, mudam a dinâmica do ambiente (sócio-natural) completamente. A criação das duas
unidades de conservação está intimamente ligada ao modelo de apropriação do ambiente que
se instaurou. Apesar de operar como uma garantia de proteção da biodiversidade e dos
recursos naturais daqueles territórios, as unidades foram sobrepostas aos territórios de
populações tradicionais ferindo profundamente outra riqueza que a região de Oriximiná
guardava: os modos de vida de populações tradicionais, sobretudo os remanescentes de
quilombos que há cerca de duzentos anos habitam o vale do Rio Trombetas, exatamente na
área que passou a ser abrangida pelas unidades e pela mineração.
34
2 O PARAÍSO E O LIMBO
Impressões do lado de cá
Descrevo, sabendo que a palavras não abrangeriam o que de fato gostaria de dizer, o que
sobre os meus olhos se impõe e os meus sentimentos inunda. Entorpecido com tanta vida,
viva, cores, vida sobre vida, morte e vida. Da textura fina das meninas de pele cobre, das
águas cálidas sobre a areia clara, o horizonte dos rios ultrapassa a distância dos olhos e se
perde no oceano doce onde o sol se esconde.
Do mundo os contrastes afloram, da beleza que se rouba, da terra que se estupra, do bicho
que se come na fome dos gostos dos homens, dos seres milenares que vão ao chão para
tornarem-se nossos objetos. Experimento! Nunca sei muito bem onde se encaixa o que digo e
acredito. Apenas vivo para sentir que existo junto a isso.
Moderados sentimentos, cada conversa, cada palavra, revelam que os sentidos se modificam
a cada instante na repetição da tradição de anteontem. Milenar! As pessoas dos rios me
disseram sobre o tempo, a imensa escultura dos nossos saberes, passa percebido sobre tudo
em volta, onde estou e sou.
Queria fazer sentir em cada um, parte de cada um, de tudo que existe, mas se sinto, por que
me sinto só? Essa busca do medo maior fazia controlar tudo e daí se expandir para o infinito,
dentro e fora das nossas ambições e desejos de conseguir ter alguém! Ou tudo?
Saudades.
Abril de 2010
cerca de uma hora no pequeno aeroporto até que a situação se resolvesse após conversa com
representante da área de comunicação da empresa, Sr. Pedro Ribeiro, prosseguindo então para
o hotel em que nos alojamos. O breve acontecimento guardou em si uma inusitada situação:
como poderia ser necessário autorização para ingressar em um distrito? Considerando que
éramos na maioria profissionais do Direito, e como tal, tínhamos para nós enquanto
fundamental e constitucionalmente previsto o direito de ir e vir, em se tratando de espaços
públicos sem aparentes restrições. O pequeno distrito de Oriximiná, Porto Trombetas, a
company town, chamou-nos a atenção por sua peculiar condição de uma “cidade enclave”,
recolhida em si, controlada, disciplinada e normatizada pela Mineração Rio do Norte, que o
criou e que o mantém, dando a razão de sua existência.
Ordem, disciplina e controle são termos que retratam bem a realidade do pequeno
distrito, a lógica operacional das grandes empresas como a MRN e a busca obstinada da
modernidade em suas múltiplas expressões. São termos que guardam peculiar importância na
inteligibilidade do contexto da presente pesquisa. A pequena cidade industrial, incrustrada na
densa floresta amazônica, está conectada às grandes minas de bauxita e desemboca no Rio
Trombetas, onde opera o seu “shiploader” (carregador de navios). Diariamente navios
transcontinentais chegam ao Porto de Trombetas para se abastecerem do minério e o levar a
diversos lugares do mundo. A bauxita ali comercializada, minério com baixo valor agregado,
é levada para diferentes locais para ser transformada no leve metal chamado alumínio.
O contraste sobre os olhos não se dá apenas com a imagem dos imensos navios sendo
carregados na cidade industrial frente àquele rio e floresta tão exaltantes, ou das grandes
minas manchando a floresta de vermelho nas fotos de satélite ou nos sobrevoos, mas também
no choque entre os que ali há muito vivem na absorção da nova ordem, na conjugação entre
exploração minerária e preservação ambiental, na relação entre multinacionais e o governo
brasileiro. Contraste, contradição e paradoxo são termos também substanciais para elucubrar
o círculo imaginário que recai sobre aqueles territórios delimitando a abrangência desta
pesquisa, que muitas vezes o ultrapassa, quando da possibilidade de conduzir-se no fluxo de
seus múltiplos rizomas. Da dialética que desconstrói para reconstruir, da ambivalência que
valora o que se antagoniza, para a multiplicidade e polivalência dialógica das redes e
interações que se multiplicam e se desvelam na medida em que se penetra nos seus fios
conectores e atinge seus nós.
Neste momento, além de apresentar o desenvolvimento do estudo e suas nuanças,
tenho o intuito de aproximar o leitor da realidade vivida ao longo de três anos na execução
desta pesquisa, sobretudo no que tange aos trabalhos realizados naquela região. Sem
38
pretensão de abarcar todas as vivências, são narradas algumas passagens, com base nos
diários de campo, que contribuíram de maneira mais substancial na formação dos
entendimentos expostos na tese sobre a realidade delineada.
A origem da pesquisa está atrelada à mencionada disciplina ofertada pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito – PPGSD/UFF, sob responsabilidade do professor
Wilson Madeira Filho, orientador desta pesquisa. Nessa oportunidade pude conhecer Porto
Trombetas e Oriximiná em que, durante quinze dias do mês de abril de 2010, com o referido
grupo, foram levantados dados sobre a realidade político-institucional do município,
principalmente no que se refere a meio ambiente, saúde, educação e suas populações
tradicionais.
No município de Oriximiná, nos estabelecemos na Unidade Avançada José Veríssimo,
campus avançado da Universidade Federal Fluminense – UAJV/UFF, em que gozávamos de
boa infraestrutura, com acomodações condignas, refeitório e ambiente adequado para
trabalhar. Esse primeiro contato acarretou na mudança do tema de minha tese, anteriormente
voltada para o desdobramento de conflitos socioambientais em instâncias colegiadas de
deliberação coletiva da gestão ambiental. Foi também o ponto de partida para este estudo e a
particular beleza daquela região, em toda sua complexidade, fonte de sua inspiração.
Trabalhávamos concomitantemente um projeto para implantação de um Centro de
Assistência Judiciária em Oriximiná – CAJUFF Amazônia, visando a prestação de assistência
judicial gratuita para hipossuficientes no município, propondo a instalação do mesmo na
própria UAJV/UFF. Este trabalho foi conduzido paralelamente ao longo da pesquisa.
Nesse campo, de caráter exploratório, foi possível delimitar a pesquisa e problematizar
o tema que trata dos conflitos socioambientais e das disputas de poder sobre o território
(interior e entorno) de duas Unidades de Conservação Federais: a Floresta Nacional Saracá-
Taquera – FLONA-ST e a Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO-RT. Na ocasião,
organizamos uma expedição para conhecermos as áreas, fretamos um barco com condutor,
auxiliar e uma cozinheira, aportando todos os insumos necessários para os trabalhos. Foi
firmada uma importante parceria com estudantes de geografia da UFF, que ali desenvolviam
um projeto de extensão sobre segurança alimentar, em que, um nos acompanhou na
expedição, facilitando o ingresso nas comunidades que já conhecia. Após registro da pesquisa
no SISBIO/ICMBIO, foi possível visitar as duas unidades e algumas comunidades que ali
residem (Abuí, Paraná do Abuí, Moura, Boa Vista, Mãe-Cué, Último Quilombo e Nova
Esperança). Foram realizadas entrevistas coletivas, Diagnósticos Rápido-Participativos,
conversas com autoridades públicas e vivências importantes. Muito material foi coletado, de
39
Estudos de Impacto Ambiental aos Planos de Manejo, dando início também ao eixo
documental da pesquisa.
Mapa 02: Diário de Campo – esboço do trajeto. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.
Dezembro de 2010
Julho de 2011
Foto 03: Entrada da Reserva Biológica - Flutuante. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.
Em julho de 2011 foi realizada a terceira ida a campo. Nesta etapa, foi possível um
estreitamento dos laços com lideranças comunitárias, novas vivências, diversas entrevistas e o
levantamento documental de parte significativa da história da organização político-
institucional dos povos tradicionais de Oriximiná. Houve um maior estreitamento das relações
com a MRN, agendando previamente as visitas e entrevistas para início do próximo ano.
Também foi possível identificar os atores sociais que se apresentam como peça-chave para a
pesquisa e que foram entrevistados posteriormente.
Em uma visita à Paróquia de Santo Antônio em Oriximiná, pude realizar o
levantamento da história da mobilização política dos remanescentes de quilombo e da
organização dos trabalhadores rurais de Oriximiná. De um lado a mobilização associativista,
que tem como marco a Associação dos Remanescente de quilombo de Oriximiná – ARQMO
e, do outro, a organização sindical com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
de Oriximiná – STTRO, ambos intimamente ligados ao movimento pastoral da Igreja
Católica. Foi possível aferir que no final da década de 1980, se iniciara um trabalho articulado
pelas linhas da Pastoral de Direitos Humanos (ligada à Pastoral da Terra), por parte de padres
presbíteros, franciscanos e verbitas, de conscientização sobre direitos e articulações políticas
direcionadas aos trabalhadores rurais e tradicionais de Oriximiná. Quase que
concomitantemente, outras organizações deram apoio, no que diz respeito aos remanescentes
de quilombo, para que se estruturassem politicamente. Neste caso, a Comissão Pró-Índio de
47
São Paulo teve forte participação. Um momento histórico em que a visibilidade dos
tradicionais e seu capital político cresceu sobremaneira naquela região.
Acompanhando uma equipe da UFF coordenada pela professora Adriana Russi
Tavares de Mello – que realizava o levantamento dos diferentes artesanatos produzidos por
aqueles povos tradicionais, por meio de um projeto de educação patrimonial – pude me
aproximar de um importante funcionário da MRN, no que diz respeito às relações da empresa
com as comunidades. Evandro Soares Silva, assistente de Relações Comunitárias da MRN,
nos apresentava, em um local chamado Casa da Memória em Porto Trombetas, a história da
MRN, sua produção e seus projetos com as comunidades, principalmente quilombolas. Após
a apresentação tive oportunidade de conversar com o referido funcionário a respeito das
relações da mineradora com as comunidades, aproveitando para reproduzir algumas de suas
queixas a respeito do insucesso dos projetos experimentados, sobretudo em relação à
continuidade dos fomentos para o prosseguimento dos mesmos. Os projetos variados, melhor
detalhados em parte especifica da tese, são de piscicultura, apicultura, agricultura familiar,
artesanatos de barro entre outros. Alguns projetos prosperaram em algumas comunidades,
mas na grande maioria das áreas visitadas fracassaram. A resposta que obtive não foi
diferente do que já ouvira em Oriximiná, verbalizado por autoridades públicas ligadas à
prefeitura municipal e mesmo por pessoas da UAJV/UFF, que atribuíam esse insucesso à
incapacidade administrativa dos próprios tradicionais, mas geralmente colocado de uma
forma preconceituosa, relacionando seus modos de vida à falta de vontade de trabalhar, à
preguiça – termo escutado de maneira recorrente nas conversas com pessoas em Oriximiná,
que revelavam um preconceito muito vívido na área urbana sobre os modos de vida
tradicionais. Por sua vez, o então chefe das unidades de conservação, Carlos Augusto
Pinheiro, relacionava o fracasso dos projetos sociais da MRN à sua inobservância aos modos
de vida tradicionais. Dizia que a empresa tratava os quilombolas e ribeirinhos ali como se os
mesmos fossem empreendedores e empregava uma lógica muito distinta de seus modos de
vida na operacionalização dos projetos, enquanto se tratava de povos extrativistas.
Outro desdobramento deste campo foi uma vivência de cinco dias na comunidade da
Cachoeira Porteira, uma das primeiras áreas a abrigar remanescentes de quilombo e que se
liga diretamente à história deste povo na região. Além de entrevistas com as lideranças
comunitárias que remontaram os conflitos e a história local, foi possível acompanhar os
modos de vida dessa comunidade, muito singular por abrigar não apenas quilombolas, mas
remanescentes dos projetos de desenvolvimento experimentados ali por várias empresas
principalmente a partir da década de 1970. Alguns dos antigos funcionários e pessoas
48
Novembro de 2011
Em novembro de 2011 foi realizado campo em São Paulo com fins de conhecer a
Comissão Pró-Índio - CPISP, Organização Não Governamental que desempenhou papel
importante na articulação política dos remanescentes de quilombo de Oriximiná e na
demarcação de seus territórios. Neste campo foi possível realizar entrevista com Lúcia
Andrade, constantemente citada por diversos personagens entrevistados durante a pesquisa, e
obter material sobre as questões fundiárias relativas aos territórios e a novos conflitos que se
avistavam no horizonte a partir de novos empreendimentos na região.
Lucia Andrade foi referida seguidamente, seja pelas comunidades tradicionais, seja
por representantes do governo ou da mineração, sua inserção naquela realidade foi
indubitavelmente muito marcante. Na sede da CPISP, após troca de e-mails e agendamento
prévio, pude conhecer pessoalmente a equipe que ali estava presente e realizar longa conversa
gravada com ela, cumprindo importante etapa da pesquisa no que tange à remontar a ascensão
política dos remanescentes de quilombo e a atuação de organizações exógenas na construção
daquela realidade.
pode ser mais fácil ou mais complicada e eles explicavam que cada caça (paca, anta,
queixada, macacos etc.) tinha uma melhor temporada, em que a mesma estava mais “gorda”.
Na comunidade do Abuí me alimentei basicamente de farinha e peixes, um dia trouxeram
uma caça, uma ave chamada mutum, que foi repartida por toda a família. Me surpreendia a
facilidade de obtenção do alimento. Pude acompanhar dois irmãos, entre oito e onze anos, que
após sua avó pedir a eles para pescar, em menos de uma hora, com um casco de madeira e
uma pequena malhadeira, retornaram com peixes para toda a família, cerca de dez pessoas.
Em outro desdobramento deste campo, na Base do Tabuleiro, acompanhei a ação dos
agentes do ICMBio na fiscalização das praias de desova das Tartarugas da Amazônia na
REBIO. Já havia entrevistado parte deles em outras oportunidades; neste sentido, ali focava
mais o acompanhamento dos trabalhos. Apesar do período de desova ter passado à época,
uma fiscalização mais acirrada se estendia por mais de um mês pela razão dos quelônios
permanecerem nas praias mesmo após a eclosão dos ovos, sendo esse cuidado considerado
necessário. O controle constante dos barcos que passam pela base, nesta época também se
agrava, proibindo que no turno da noite os mesmos subam o rio, obrigando-os a parar. Ouvia
muitas queixas a esse respeito nas entrevistas com alguns tradicionais, essa situação lhes
gerava certa revolta, pois muitas vezes tinham que esperar amanhecer nos barcos para
retornarem aos seus lares. Como o argumento que lhes externam é que o barulho dos barcos
prejudica as tartarugas e, no entanto, os próprios agentes circulam a noite com lanchas que
produzem igual ruído, os mesmos não deixavam de questionar qual a razão de lhes cercearem
o direito de ir e vir.
Naquela ocasião, ao contrário do que ocorreu em 2010, em que houve até disparos de
arma de fogo por parte de pescadores de quelônios direcionados aos agentes, a fiscalização
corria de forma mais amena. Para a realização dos trabalhos, foi montado um acampamento
no tabuleiro principal, próximo à base, em que os agentes se revezavam entre os que ali
pernoitariam ou não. Pude pernoitar um dia e vivenciar este trabalho naquela imensa praia,
entre o céu espelhado no rio e a sonora floresta. Outro trabalho consistia em uma ação de
busca direta utilizando uma lancha de quarenta cavalos, em que os agentes por meio de um
instrumento feito de vários grandes anzóis fixos em uma base de metal amarrada numa longa
linha, faziam busca ativa de malhadeiras de quelônios naquela parte do Rio Trombetas e nos
lagos próximos da base (Jacaré e Leonardo). Nesta noite, apesar de não encontrarmos
nenhuma malhadeira, foi possível flagrar dois comunitários do Paraná do Abuí pescando a
tartaruga. Camuflados na vegetação da beira do rio, os pescadores foram abordados pelos
agentes, também das comunidades, de maneira educada. Maneco, um dos agentes, pede para
52
aproximar o barco apontando uma forte lanterna na direção dos mesmos. Aborda-lhes
explicando que tal prática não era ali permitida e pedindo a compreensão deles em relação ao
trabalho que estava sendo desenvolvido. Por fim solicita que entreguem seus materiais de
pesca e os libera para seguirem para suas casas, noite adentro naquele rio. Não houve
momentos de maiores tensões, senão o medo da minha parte de os pescadores estarem
armados e ocorrer algum acidente.
Nesta mesma época, acompanhando a equipe do ICMBio no cadastro dos
comunitários para o “acordo da castanha” no centro comunitário do Abuí, pude conhecer
pessoalmente o pescador em questão. Um senhor com mais de setenta anos de idade que me
explicou sobre a tradição da pesca dos quelônios. Foi bastante simpático na conversa; por sua
vez, o filho dele, conhecido pescador de quelônios e reincidente infrator, foi mais hostil ao me
ver conversando, interrompendo a conversa e retirando seu pai de onde estava.
Sigo os trabalhos visitando a comunidade da Tapagem, mais antiga comunidade ali,
colhendo relatos de suas lideranças e moradores, posteriormente descendo para outra
comunidade que se desdobrou desta, chamada Sagrado Coração, ambas em área da FLONA.
Um pouco mais abaixo, visito a comunidade da Mãe Cué, em que tive um pouco mais de
dificuldade na recepção, tendo que dormir num barracão afastado e não conseguindo comida
durante um dia, o que já havia ocorrido em outras ocasiões (me alimentei de granola e leite
em pó que sempre levava comigo). Nesta comunidade realizei uma entrevista coletiva que
revelava quanto estava vivo o ressentimento gerado pelas práticas governamentais dos tempos
anteriores. Posteriormente visito a comunidade do Curuça e do Juquerizinho, na FLONA e na
REBIO respectivamente.
As vivências possibilitavam aferir também como as comunidades se distinguem em
termos de estrutura, organização política ou mesmo em suas práticas. A história do
surgimento desses locais, os recursos financeiros que receberam, o fato de a comunidade estar
dentro ou fora da REBIO ou em terra titulada, os recursos naturais que estão próximos e como
são utilizados... diversos e distintos fatores corroboram as peculiaridades de cada uma. Apesar
da proximidade entre muitas das comunidades e da relação de parentesco entre seus membros,
os percursos pelo rio não são tão simples, principalmente para aqueles que não dispõem de
recursos financeiros para adquirir combustível. Mesmo com muitas pessoas possuindo sua
“rabeta”, os contatos entre as comunidades são mais esporádicos e casuais. Obviamente essa
“tecnologia” revoluciona não apenas o transporte ali, mas as próprias conexões que aquela
socionatureza vai estabelecer com aquele mundo ao redor.
53
Foto 05: Preparo de tartarugas jovens. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.
Na comphany town acompanhei o trabalho e o dia a dia dentro do escritório do
ICMBio e um pouco da vida no pequeno distrito. Hospedei-me no alojamento do Pioneiro,
local destinado ao pessoal da própria entidade e aos pesquisadores das unidades de
conservação. O escritório, situado em Porto Trombeta na “Praça da Feirinha” – única área
54
acessível ao público geral – desde sempre foi mantido pela MRN, assim como a maior parte
dos programas desenvolvidos nas duas unidades de conservação. Convênios entre governo e
empresa estipulam os fomentos aos programas e os repasses de recursos que vão dar origem
aos planos de manejo, pesquisas, ações de conservação etc. Perscrutar sobre a autonomia do
órgão em sua atuação requer pensar, de um lado, que toda a operacionalidade do mesmo está
atrelada aos fomentos da mineração, e, de outro lado, que o ICMBio é composto de pessoas
que não necessariamente coadunam com a lógica da empresa. Isso diz muito e é muito do que
queremos dizer para sairmos de uma perspectiva analítica de fluxos uníssonos e lineares que
estabelecem uma inteligibilidade do mundo a partir de uma secção, privilegiando os aspectos
de análise que a reafirmam. Não sobrepujando o poder do capital e sua força em imprimir sua
lógica na compreensão dessa realidade, apenas sendo sensível às muitas minas incrustradas no
território, que constantemente são acionadas e imprimem também sua dinâmica, um desvio
vetorial, novas conexões, transformações ideológicas, inversões argumentativas.
Do início da pesquisa de campo ao seu término, assisti constante reconfiguração no
corpo técnico do ICMBio. No ano de 2010 o chefe da unidade havia sido substituído, o
anterior passou a chefiar outra unidade de conservação no nordeste e novos funcionários
haviam sido ali alocados. No ano seguinte outras pessoas haviam saído, transferidas para
outras unidades, reduzindo bastante o corpo de funcionários. Em 2012, novamente ocorreram
mudanças significativas, com substituição de pessoas. Por outro lado, também havia aqueles
que estavam ali desde a criação das unidades e ali se mantiveram. A saída de algumas dessas
pessoas me foi relatada por um funcionário como consequência da forte influência da
mineração. No caso relatado, a razão teria menos relação com alguma obstaculizacão à prática
da mineração propriamente do que por não se adequar à rigorosa dinâmica do distrito.
Porto Trombetas, dentro de sua peculiar organização, é um belo local com suas praças,
jardins e arborização. É conectado à grande floresta e possui uma infraestrutura mais
completa do que a de Oriximiná, ao menos em equipamentos urbanos. Caminhando por suas
ruas é possível avistar diferentes exemplares da fauna amazônica cruzando os caminhos, mais
facilmente do que nas comunidades tradicionais onde estes compõem parte da alimentação.
Tudo parece contrastar com o deserto vermelho das grandes minas que dali não se vê. Visito
as áreas de trabalho da empresa tanto as administrativas e de produção, como o horto, o centro
de reabilitação de animais, hospital, entre outros locais. Busco sempre dialogar com as
pessoas discretamente, conversar sobre a pacata vida ali e seus trabalhos.
Após acompanhar os trabalhos no escritório do ICMBio, combino com um
funcionário, que me auxiliava sobremaneira na pesquisa, de jantarmos em um restaurante em
55
Porto Trombetas. Ali conversávamos sobre assuntos diversos, dentre eles a vida no distrito.
Relatou-me que os dois funcionários do ICMBio que haviam saído neste ano, cederam às
pressões da empresa, indo trabalhar em outras unidades de conservação. Ele mesmo
comentava sentir-se constantemente vigiado, às vezes dizia mesmo ter a sensação de estar
sendo seguido – outras pessoas reproduziam esse comentário também. Falava que a vida ali
era extremamente monótona, regrada e sem muitas opções para se divertir. No ano seguinte
este funcionário foi transferido passando a chefiar outra unidade de conservação também na
Amazônia.
Apesar de estar muito próximo das áreas de mineração, não consegui visitar as minas
que estavam sendo exploradas e nem as áreas em processo de recuperação. As conversas com
responsáveis por departamentos estrategicamente importantes para a pesquisa se deram
sempre de maneira informal, sem entrevistas gravadas, salvo anotações em diário de campo.
Conversei com Milena Moreira, a gerente de Meio Ambiente da MRN, que me apresentou a
nova metodologia de recuperação das áreas degradadas, segundo a mesma, proveniente do
Laboratório de Restauração Ambiental Sistêmica da UFSC e da Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz da USP, a “metodologia de nucleação” que visa formar
microhabitats, seria a mais avançada que havia. Perguntei sobre as áreas em processo de
regeneração, que não estavam obtendo resultados satisfatórios, e sobre as políticas ambientais
da empresa. Milena ressaltava a assídua preocupação da empresa com a questão ambiental,
sempre investindo em tecnologia de ponta e contratando profissionais que eram referência
nacional para a execução dos trabalhos, muitos de universidades federais do sudeste e sul do
país.
Conversei brevemente também com Ademar Cavalcanti, Gerente de Saúde,
Segurança, Meio Ambiente e Relações Comunitárias, cargo importante na empresa, o qual se
subordinam quase todos os departamentos da mesma. Falava-me da falsa imagem que as
pessoas tinham sobre a empresa ser altamente lucrativa, dizendo que em alguns anos a mesma
chegou a operar no vermelho, que a mineradora sofre todos os riscos inerentes às oscilações
do mercado, do capital dos investidores, acionistas, custos da produção, entre outros.
Conversávamos sobre os valores de uma indenização para o governo dos produtos florestais
não-madeireiros no Platô Monte Branco. Cavalcanti peremptoriamente afirmava que o valor
econômico da bauxita era muito superior ao da floresta, que os recursos gerados ali traziam
desenvolvimento para todo o país e que o principal problema da FLONA era a invasão de
fazendeiros para criação de gado. A referida indenização era decorrente de uma determinação
do escritório local do ICMBio, que exigiu um inventário das espécies não-madeireiras como
56
condição da liberação da licença para extrair bauxita no local. A questão gerou conflito entre
o ICMBio na instância local e a empresa, que, com seu poder político, conseguiu obter a
licença em âmbito federal no ICMBio em Brasília. O Ministério Público Federal ingressou
com uma ação e obteve decisão judicial determinando que se interrompesse o desmatamento
de 267 ha de floresta, correspondente a uma parte do platô, no processo nº 3080-
52.2011.4.01.3902. O imbróglio girava em torno não apenas da interrupção do cronograma da
empresa e as implicações daí decorrentes; mas, dependendo da metodologia adotada para a
avaliação dos produtos florestais, os mesmos poderiam torna-se economicamente mais
vantajosos do que a exploração da bauxita, ou seja, a floresta poderia valer mais em pé do que
minerar o solo e o subsolo para extrair bauxita.
Em Oriximiná, no dia 19 de janeiro de 2012, pego um barco chamado Silva Moda que
prestava o serviço de transporte para os quilombolas, trazendo-os e os levando da cidade para
suas respectivas comunidades rio acima. O destino era novamente a comunidade da Tapagem,
desta vez, para presenciar a festa tradicional do santo padroeiro da mesma, São Sebastião.
Embarquei por volta das quatro horas da tarde, pois sabia que o barco ficaria bem cheio. Não
imaginava o quanto, pois além dos quilombolas e outras pessoas que viviam em Oriximiná,
foram levados também os equipamentos de som e bebidas para a festa. As redes se
sobrepunham umas sobre as outras em quatro andares, fiquei ao longo da viagem com o corpo
tocando os coletes salva-vidas, dispostos horizontalmente no teto. Imóvel como uma crisálida
por cerca de dezoito horas, a imagem ali contrastava a festividade do barco, seu alto som e
foguetórios, com silêncio da noite naquele rio entre a floresta. Jovens ficavam sobre o teto do
barco, bebiam e dançavam o “tecno-brega”, numa algazarra que parecia dilatar cada minuto
dentro do barco. Chegamos ao amanhecer, vários barcos das outras comunidades já se
encontravam aportados.
A festa, com duração de duas noites, reunia pessoas de todas as comunidades ao redor,
nesta ocasião havia também outros pesquisadores, inclusive um casal francês. Sigo realizando
conversas com os comunitários, perguntando sobre a tradição da festa e as mudanças na
mesma. Os mais velhos me relatavam que antigamente a música era tocada na tradição do
“pau-e-corda”, com violas, violões, tambores e instrumentos que eram por eles produzidos.
Relatam que isso se perdeu e que os jovens não querem mais saber disso. Hoje é o som
eletrônico do tecno-brega que anima a festividade, tocado por músicos profissionais, muitos
oriundos das próprias comunidades. As mudanças na tradição exaltam a força dos inevitáveis
intercâmbios culturais e a assimilação da cultura de massas. Por outro lado, permanece ainda
a tradição da “ladainha”, com tambores e rezas cantadas ao longo de todo o Sírio de São
57
Outubro de 2012
Em outubro de 2012 foi realizada nova expedição com fins de dar continuidade ao
projeto do Centro de Assistência Judiciaria da Universidade Federal Fluminense na Amazônia
- CAJUFF. O campo se desdobrou em três momentos: O primeiro, em Santarém, visitamos a
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, a subseção da Ordem dos Advogados –
OAB e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, buscando firmar
parcerias para o projeto. Nesta oportunidade estiveram presentes professores e alunos da
graduação, mestrado e doutorado. Com relação a pesquisa, foi possível no contato com o
INCRA, superintendência de Santarém, gravar entrevista com o responsável pelas
demarcações e titularizações de territórios quilombolas, Raimundo Guilherme Pereira Feitosa.
Além das explicações sobre a atividade do INCRA na regularização dos territórios
quilombolas, obtive informações sobre os trabalhos desenvolvidos na região alvo da pesquisa.
Neste momento estava ocorrendo a realização de laudo antropológico com fins de propor
titulação de áreas quilombolas em sobreposição às unidades de conservação. Indaguei sobre a
questão legal que assegura rigidez para alterar ou desafetar unidades de conservação, como
estas questões seriam dirimidas e sobre as articulações institucionais com o ICMBio. Foi
relatado que o governo estaria reconhecendo uma “dívida” com esses povos, sendo esta a
razão destes trabalhos. Com relação às articulações institucionais, como se depreendera em
outras ocasiões, são sempre muito limitadas e restritas às questões pontuais. O aparato
59
conservação e pesquisa por toda a Amazônia. Richard Vogt nos concede uma longa entrevista
e explica sobre os seus trabalhos na reserva, mostra-nos os equipamentos de alta tecnologia
que utiliza e nos fala sobre as dificuldades enfrentadas na conservação dos quelônios
aquáticos da Amazônia.
Foto 07: Cachoeira Porteira – BR163. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013.
que possuem maior poder aquisitivo. Apesar de não serem os únicos, os principais
consumidores são as pessoas da elite do município, que, em alguns casos, possuem criatórios
legais ou não em suas fazendas, tanto de peixes quanto de quelônios.
O barqueiro, que trabalhava com fretes, tinha grande vivência em toda região e
conhecia muito das relações que ali se estabeleciam. Relatava que antigos agentes
governamentais extraíam peixes da reserva para as “pessoas importantes” do município, bem
como filhotes de tartaruga para os criatórios (práticas que supostamente se mantém). Falava
também da corrupção dentro do município, da manutenção do poder pelo prefeito que se
reveza nas eleições com seus aliados há cerca de trinta anos. Peço informações de como obter
uma tartaruga no município, com fins de conhecer como se dá o comércio, ver o real valor de
venda e as condições de vida de quem vende.
Por indicação, consigo me aproximar de um comerciante no porto de Oriximiná.
Talvez por desconfiança, a pessoa me diz que no momento não teria uma tartaruga para me
vender, mas que poderia obter um animal no valor de duzentos e cinquenta Reais, no final do
mês. Não objetivava realizar entrevista, logo me apresentei como um estudante de fora que
queria experimentar a tartaruga, junto com outros estudantes. Não cheguei a conhecer o local
que vive, nem tampouco onde armazena os animais, a conversa foi breve e não retornei para
efetuar o “negócio”.
Em um segundo momento deste campo, volto a Porto Trombetas para seguir junto aos
agentes do ICMBio para a Base do Tabuleiro, onde teria disponível um barco para a
realização dos trabalhos com as comunidades. Sigo para Cachoeira Porteira com objetivo de
obter informações sobre um conflito territorial que se dava entre índios e quilombolas naquela
região. Consigo nova entrevista com o coordenador da comunidade, Ivanildo Carmo de
Souza, que me informa sobre os acontecimentos e as medidas governamentais que estavam
sendo tomadas. O conflito basicamente se dava pela realização de novos aldeamentos em
áreas utilizadas pelos quilombolas ou demarcadas para os mesmos e a consequente disputa
pelos recursos dali. Naquele momento a situação já caminhava para sua resolução consensual.
Na ocasião desta conversa, solicito apoio para conhecer os trabalhos nos castanhais
próximos dali. A Associação dos Remanescentes de Quilombo de Cachoeira Porteira –
AMOCREQ, presidida pelo Ivanildo, nos sede transporte até o quilometro vinte e três da
rodovia federal BR-163 para que conhecêssemos o castanhal que havia ali próximo, cerca de
dez quilômetros floresta adentro. O nosso guia, nascido em 1952 no Piauí, era um antigo
funcionário da ELETRONORTE que trabalhava como telegrafista e ali permaneceu. Caçador
e extrativista de castanha, Edward de Souza Araujo – Seu Diva – assumira “integralmente” os
62
modos de vida local, com cerca de quarenta anos ali vivendo. Estabelecemo-nos em um
pequeno barraco de lona plástica e estacas de madeira a vinte e três quilômetros da
comunidade. Ali pernoitamos e logo cedo partimos para os castanhais, dentro da REBIO,
onde caminhamos o dia inteiro percorrendo cerca de vinte quilômetros no total. Nos
castanhais a floresta se torna mais homogênea diante da repetição daquelas imensas árvores,
testemunhas seculares de toda a vida ali e que compõem sociedades humanas desde tempos
muito remotos. Hoje é a principal atividade econômica da maioria das comunidades ali e
conecta-se aos grandes centros nas prateleiras dos supermercados, como um valioso alimento.
No trajeto foi explicado como se dava o processo de extrativismo, como coletam, onde
depositam os ouriços, como limpam e transportam; um trabalho bastante árduo. Pernoitamos
mais um dia no barraco e retornamos ao amanhecer para a comunidade, no mesmo veículo
que nos levara. Seu Diva relatava como as empresas ali chegaram e depois partiram, nos
mostrava algumas áreas que seriam submersas com a represa e que foram destinadas a
extração de madeira para a MRN. Parte dessas áreas visitadas simplesmente não se
regeneraram, permanecendo o solo descoberto há mais de vinte anos.
De volta a comunidade conheço um rapaz que estava vendendo por quarenta Reais
tartarugas-da-Amazônia, segundo o mesmo, de tamanho médio (não as vi). Destaca-se como
em uma comunidade o valor do animal é muitas vezes inferior ao que é vendido no município
de Oriximiná, que por sua vez, é muitas vezes inferior aos grandes centros como Manaus e
Belém.
Noutro momento deste campo, acompanho o trabalho dos pesquisadores com as
tartarugas-da-Amazônia na Base do Tabuleiro. Richard Vogt e Virginia Bernardes
monitoravam algumas matrizes por rádio-telemetria, as que permaneciam na região após a
desova e nascimento dos filhotes. Também estavam instalando receptores sonoros para a
captação da vocalização desses quelônios, na busca de ampliar o conhecimento sobre a
ecologia desses animais.
No acompanhamento dos trabalhos, quase diariamente, muitas conversas sobre os
conflitos ali se desenrolaram, marcando bem a interpretação dos pesquisadores sobre a frágil
situação desta espécie ameaçada de extinção e sobre o jogo de poder que recai sobre esses
espaços territoriais. Richard Vogt, americano, mas com traços germânicos e mexicanos
advindos do seu país, é o mais antigo pesquisador da REBIO e seu entorno, inicia seus
trabalhos na década de 1980 e desde então segue ali pesquisando. Virgínea, fez mestrado no
INPA, encaminhava-se para o doutorado e estava trabalhando como pesquisadora do projeto
63
Março de 2013
Na primeira semana de março de 2013 foi realizado em Brasília o último campo desta
pesquisa. Acompanhando um evento do Ministério do Meio Ambiente pude estabelecer um
estreito contato com funcionários do departamento de unidades de conservação. Entretanto as
ocupações com atividades internas e a pouca disponibilidade de tempo, não viabilizaram
entrevistas com os mesmos, senão breves conversas que não trouxeram dados novos. Por sua
vez, no IBAMA, pude entrevistar um antigo funcionário que participou da criação da Reserva
Biológica do Rio Trombetas. Assim como Beto Guerreiro – mais antigo funcionário do
ICMBio em Porto Trombetas e o mais envolvido com a criação da REBIO, sendo inclusive
um dos autores dos estudos que a embasou – João Carlos Nedel também não entendia haver
uma relação direta da MRN com a criação da REBIO. Afirmou que esta desde o princípio
tinha como foco a preservação dos quelônios. Entretanto, achava uma estranha coincidência o
fato da mesma ter sido criada no mesmo ano em que iniciam as operações comerciais da
mineradora e em uma área contígua à mesma. Por sua vez, quanto à FLONA, afirmou (assim
como Beto Guerreiro) que a mesma foi criada em um ato vertical empenhado pelo Presidente
da República na época, após uma reunião com os presidentes do IBAMA e da MRN. Nedel
fora convocado para realizar os estudos que justificariam sua criação, com a unidade já criada.
Considerações “preliminares”
ordem que é impressa tem incrustrada em suas fissuras aquilo que a modifica também.
Violência física, psicológica e moral, arbitrariedades, controle do corpo e da cultura, estão ao
lado de negociação, sedução, receptividade e permeabilidade. Há uma real desproporção entre
as trocas estratificadas. Provavelmente se adotarmos qualquer parâmetro de justiça, isso se
salientaria. Mas analisar essa realidade numa perspectiva dicotômica/dualista sob a lógica de
uma “unidade-pivô que funda um conjunto de relações biunívocas”, reduzindo-a aos grupos
de interesse ou às suas relações quantificáveis, não foi o caminho adotado para entender a
dinâmica desses conflitos territoriais.
Penetrar essa densa rede, requer pensar que ela conecta os acionistas globais das
maiores mineradoras do mundo às jazidas de bauxita daquele solo. Provavelmente ávidos por
crescimento e lucro e completamente alienados daquela realidade, ou senão, informados por
meio de um material “filtrado”, publicitário ou sobre o controle da própria empresa. Requer
pensar nas relações dos governos com as corporações e na permeabilidade destes e daquelas
para com os interesses das peculiares pessoas locais. Requer pensar na opulência da ciência e
da técnica nas reconfigurações do ambiente, na mobilização das forças, dos seres e dos
elementos naturais que vão compor o coletivo hibridizado. Pensar a “Ciência” em seu poder
de legitimar os discursos, dar os certos e errados, direcionar os caminhos.
Pode-se dizer que há um disciplinamento territorial que favorece o bom andamento
dos negócios do capital, na mesma medida em que este disciplinamento territorial lhe é
profundamente antagônico; e, ato contínuo, dentro de sua lógica requer outros
disciplinamentos para outros grupos de interesses que também vão conflitar. Nessas relações
todos se modificam – mineração, conservação, tradição. O Estado subserviente aos interesses
do capital, assume também o papel de incorporar outros interesses que lhe impõem uma
posição ambígua, que não se encerra e não se determina a priori.
Não há mineração de bauxita sem a extensa rede que lhe dá suporte, assim como não
há o território quilombola desconectado desta rede. A bauxita que sai de lá pode fazer parte
do computador que redigiu este trabalho ou da bicicleta em que me exercito, das peças do
carro, utensílios domésticos, aeronaves etc. suas conexões são múltiplas e indivisíveis da
própria sociedade. O processo que transforma aquelas pedrinhas avermelhadas nos objetos
que utilizamos, demanda muita tecnologia, maquinário, a supressão de milhões de árvores,
destruição de culturas, decisões políticas, organização do trabalho etc. Esse processo
integrado costuma não fazer parte do campo de visão das pessoas de uma forma geral, pelo
menos não em sua multiplicidade, mesmo nas pesquisas. Segmentamos o conhecimento tanto
quanto possível e este do interesse, da justiça, da moral, da política, do poder. Cada item tem
66
destinadas às águas das fortes e intermitentes chuvas. O grande matadouro frente ao porto
parecia coberto com um manto negro de tantos urubus, uma cena também marcante. Essas
aves necrófagas eram muito comuns pela cidade, talvez pelo alto consumo de carnes e pelos
hábitos de deixar restos de alimentos pelas ruas em latões de lixo destampados. Cheguei a
cruzar, por duas vezes, com carapaças de Tartaruga-da-Amazônia e de outro quelônio em
calçadas de ruas mais afastadas. Razão de muitos conflitos entre governo e tradicionais na
Reserva Biológica, esses animais são amplamente consumidos no município. Lá o mais
consumido não é um peru para a ceia do natal ou uma leitoa para comemoração de um
casamento, a tartaruga-da-Amazônia é o animal preferido nas datas comemorativas, servida
em pratos diversos como guisados, assados, sarapatéis etc. Pude contatar dois pontos de venda
e distribuição de quelônios, traficados da reserva e arredores, que atendiam ao consumo
interno e também aos centros urbanos maiores.
Em dias que me restava menos tempo, sem poder empreender longas caminhadas,
subia até praça do cemitério próximo da UAJV para ver o sol se esconder no mar das águas
brancas1 que formam o encontro do Trombetas com o Sapucuá. Muitas conversas, muitos
casos e trocas de experiências me auxiliavam a compreender aquela realidade. Nalgumas
noites saia para as casas noturnas da cidade onde se escutava muito Technobrega e se dançava
muito, uma cultura bastante massificada por todo o Norte. Casos de violência não eram raros,
constantemente se noticiavam brigas entre pessoas envolvendo armas brancas nesses bailes.
Em uma ocasião um estudante de medicina da UFF chegou a ser agredido com um terçado,
protegendo sua face com o braço e consequentemente levando uma série de pontos para
costurar as feridas. Foi um caso isolado que coincidiu com um dos campos da pesquisa. O
município apresentava-se peculiar e complexo tanto em sua história quanto na sua vida
política cotidiana.
1
“Águas brancas” é um termo local utilizado para classificar as águas dos rios quando são mais turvas, ocre ou
barrentas, em contraposição às “águas pretas” que são mais cristalinas, esverdeadas, cobre ou azuladas.
2
PARÓQUIA DE SANTO ANTÔNIO. Histórico da Paróquia de Santo Antônio. In. Caminhando Libertando:
Anuário da Prelazia de Óbidos. 1957-1982. p.1. Disponível em: http://www.oriximina.org/noticias.html.
Acesso em: 18 de março de 2013.
69
3
IBGE. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/para/oriximina.pdf
4
HIBERT, Peter Paul. A Cerâmica Arqueológica da região de Oriximiná. Instituto de Antropologia e Etnologia
do Pará. In. Publicação Nº 9, Belém. Pará. 1955.
5
NEVES, Eduardo. Amazônia ano 1000: na Amazônia de 1000 anos atrás, civilizações experimentam o
florescimento cultural. In. National Geographic. Nº 122, maio de 2010.
6
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da Amazônia
brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f.
70
7
PNUD. Ranking decrescente do IDH-M dos municípios do Brasil. Atlas do Desenvolvimento Humano.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (2010). Disponível em:
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-‐IDHM-‐Municipios-‐2010.aspx. Acesso em março de 2013.
71
transformações, seja por imposição, seja por sedução, a rede sociotécnica do ocidente se
amplia ali, amarrando bem suas conexões e fincando as suas bandeiras, integralizando
territórios à uma ordem própria e seletiva. Sob o sofisma de uma “terra sem homens” a
chegada de projetos como os da Mineração Rio do Norte, Andrade Gutierrez, ENGE-RIO,
ELETRONORTE entre outros, vão reconfigurar toda a lógica espacial e imprimir uma
racionalidade específica e homogeneizadora do território dentro da ambivalência dos projetos
modernizantes. De um lado alguns benefícios advindos dos repasses de recursos aos citadinos
e comunitários, ligados a infraestrutura, tecnologias, trocas comerciais e assistências
governamentais, de outro, enriquecimento sem parâmetros de grupos minoritários que se
ligam direta ou indiretamente ao grande capital, perda de recursos naturais, degradação
ambiental e supressão de direitos. Por sua vez, a democratização do país e a Constituição
Federal de 1988 reconfiguraram gradativamente a lógica anterior, contrabalançando a
unilateralidade dos interesses considerados, inserindo novas pretensões e novos atores, mas
dentro da mesma lógica expansionista do coletivo que vai agregando mais coisas, se
ampliando e hierarquizando.
A oposição de diferentes “racionalidades” de uso, significação e ocupação do
território, somada à grande riqueza de recursos naturais e culturais, faz daquela região uma
terra de extremos. Grandes projetos de desenvolvimento ligados à ideologia hegemônica, com
madeireiras, mineradoras, agroindústria e hidroelétricas, se contrapõem aos espaços
tradicionalmente utilizados. As práticas tradicionais também foram transformadas pelos
projetos conservacionistas que, historicamente, antes de serem consonantes às práticas mais
sustentáveis, como se presumiria, aliam-se à dinâmica daqueles que possuem melhores
condições de acesso e formalização de seus interesses à lógica governamental. Entretanto,
essa realidade gradativamente vem se modificando. As mudanças políticas, a atuação de
agentes externos, as novas concepções do ambientalismo, as mudanças legais que recaíram
sobre as Unidades de Conservação com a Lei 9985/2000, por sua vez, proporcionam um
momento histórico de inversão de interesses e (des)legitimação de práticas.
Cabe ressaltar que a dinâmica dos tradicionais dentro dos inevitáveis intercâmbios
culturais se modificam e, ainda para aqueles mais resguardados, não podemos adjetivar suas
práticas como sustentáveis a priori, como muito se romantiza. A continuidade de práticas ou
modos de vida (hábitos alimentares, trocas econômicas, ocupação de áreas, abertura de
roçados) podem não se sustentar por lapsos temporais mais delongados, pela intensidade das
deveriam ser integrados à nova dinâmica industrial por meio do pleno emprego e com modernização de suas
práticas extrativistas.
73
práticas dos próprios tradicionais ou pelo aumento do seu contingente populacional, sejam
eles indígenas, quilombolas ou ribeirinhos. Nesse sentido, isentar suas práticas da
necessidade de algum controle estatal, por mais paradoxal que seja dentro da história aqui
narrada, pode tornar mais difícil a sobrevivência e continuidade das comunidades tradicionais
em seus territórios. Territórios estes sob constante ameaça das próprias políticas
desenvolvimentistas do governo e dos “invasores” que podem ser: a) grupos organizados
externos como geleiras, madeireiras, mineradoras; b) grupos ou indivíduos menos
organizados como fazendeiros, grileiros, garimpeiros; c) ou mesmo pessoas internas da
própria comunidade que extraem recursos em grande quantidade para fins comerciais
tornando-os escassos para os demais ou gerando outros problemas.
A exponencial ordenação e normatização territorial que recaiu sobre Oriximiná – nas
estacas e recortes que marcam as linhas imaginárias dos seus diferentes espaços – recriou um
imenso território em disputa, “palmo a palmo”, por distintos grupos, com diferentes
significados para a terra. O município corresponde ao maior contínuo de áreas protegidas do
mundo com três Unidades de Conservação estaduais: Floresta Estadual do Trombetas,
Floresta Estadual de Faro e Estação Ecológica do Grão Pará; duas Unidades de Conservação
federais: Floresta Nacional Saracá-Taquera e Reserva Biológica do Rio Trombetas; três
Terras Indígenas: Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera e Tumucumaque; e, cinco Terras
Quilombolas tituladas: Boa Vista, Água Fria, Trombetas, Erepecuru e Alto Trombetas. Além
de outras demarcações pleiteadas por quilombolas ou indígenas. Isso significa regras de uso e
significações relativamente variadas para extensos pedaços de terra, muitas vezes já
habitados/utilizados, que pressupõe rígido controle sobre o manto legitimador dos ideais de
sustentabilidade e proteção sociocultural. No outro extremo terras são demandadas por
fazendeiros, pecuaristas e sojicultores, que também exercem fortes influências políticas.
Contudo, em termos de influência, todos se apresentam incomparáveis perto da mineração de
bauxita que parece flutuar num mundo aparte, acima de tudo isso.
Com as adversidades geradas pelos distintos modos de utilização do território e a
inserção de novos atores sociais surge a consciência dos conflitos, a politização dos grupos de
interesse e a luta material e simbólica por cada espaço daquela terra. A discrepância de forças
é o que muitas vezes perturba os sentimentos de justiça, pois dentre as muitas facetas,
algumas correspondem a uma “sociedade” com o Estado com repercussões diretas nos
processos decisórios políticos e jurídicos, sobretudo os interesses minerários e energéticos. As
decisões sobre a utilização dos recursos são tomadas em instâncias que ultrapassam as esferas
locais (ou mesmo nacionais) repercutindo na ordenação territorial sempre favorável a estes
74
população, pela força dos grandes grupos econômicos – o Defensor Público torna-se uma
figura emblemática pelo seu esforço e história9.
Entretanto, no que diz respeito aos espaços territoriais recortados, correspondentes às
duas unidades de conservação federais, todos os litígios que se desdobram em seus limites são
tratados pela Justiça Federal e pela Procuradoria da República. Nesse sentido, os principais
casos enfocados que envolvem a Reserva Biológica, a mineração da bauxita na Floresta
Nacional e as comunidades quilombolas, tiveram como primeira instância o foro judicial do
município de Santarém e não de Oriximiná, que não possui Justiça Federal. O que certamente
não diminui a importância da Justiça Estadual e seu necessário e urgente fortalecimento no
município.
Conforme afirma o Sr. Josielson dos Santos Costa, Coordenador Social da Paróquia de
Santo Antônio, nas cidades paraenses onde operam os grandes projetos de mineração, o papel
jurisdicional do Estado é quase inexistente. Como se toda uma região fosse entregue pelo
próprio Estado ao jugo dos protagonistas da mineração. Prioritariamente a ordenação do
território seria para atender à estabilidade e manutenção dos bons negócios dos mesmos10.
Essa “simbiose” entre mineradora e Estado, que trato mais profundamente adiante, em
Oriximiná se materializa de maneiras muito diversas como, p. ex., nos veículos, equipamentos
e recursos doados pela MRN e utilizados pelo poder judiciário, legislativo e executivo locais,
além dos repasses tributários e suas aplicações. Na realidade de Oriximiná essa relação é
significativamente estável, principalmente se comparada a outras realidades como foi a de
Carajás. Aqui a “violência” é sutil, se apresenta pela regra e pelo controle sistemático, pelo
disciplinamento frio, sem explosões, sem descontroles perceptíveis à primeira vista. Talvez,
por isso, ainda mais penetrante, ainda mais extensiva.
Uma conveniente distância é mantida entre a MRN, situada no distrito de Porto
Trombetas, e a realidade política e econômica que se apresenta em Oriximiná, não obstante a
onipresença material da empresa em praticamente tudo. Não me refiro às cinco horas de barco
9
MADEIRA FILHO, Wilson; ALCÁNTARA, Leonardo Alejandro Gomide; VERAS, Cristiana Vianna;
AZEVEDO, Thais Maria Lutterback Saporetti; TERRA, Alessandra Dale Giacomin; SANTOS, Camila Oliveira;
NASCIMENTO, Marina Marçal do. Nas mãos de Deus: a atuação da defensoria pública do estado do Pará no
município de Oriximiná junto às comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas. In: II Seminário
Interdisciplinar em Sociologia e Direito: resumos e artigos. Niterói: PPGSD-UFF/PROEX-UFF, Niterói,
outubro de 2012, GT 10, p. 1-23.
10
COSTA, Josielson dos Santos. Relato sobre o papel da igreja na organização política das comunidades
quilombolas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e a Thaís M. L. S. Azevedo.
Oriximiná. 21 de julho de 2011. Esse ponto apresentando pela entrevista enseja uma pesquisa de
aprofundamento: aferir a operacionalidade do judiciário nos municípios em que atuam os grandes
empreendimentos de mineração. Aqui segue enquanto sugestão, pois não se trata propriamente do foco desta
análise.
76
ou uma hora de lancha para chegar no distrito, ao mesmo tempo em que a empresa está por
trás de várias ações governamentais, seja financiando ou influindo politicamente conforme
sua conveniência, a mesma segue blindada pelo próprio Estado, que lhe faculta essas vestes
de imparcialidade. Conforme salientou em conversa, Evandro Soares Silva, assistente de
Relações Comunitárias da MRN, a empresa cumpre a lei e paga todos os seus tributos, o que
o município faz com o recurso não está na esfera de responsabilidade da mesma. Será? O
“poder sobre o poder” fica salientado nos dizeres de João Bosco Almeida, advogado,
fundador da Associação Comercial de Oriximiná e da Fundação Ferreira de Almeida:
A vila de Porto Trombetas era o templo sagrado e estratégico do
governo militar e empresas estrangeiras, onde se instalava a
Mineração Rio do Norte SA – MRN, empresa mito e sucesso de
administração para os seus acionistas. Porto Trombetas era
indecifrável e inacessível nessa época da pós-ditadura. Dizem que até
o prefeito do município tinha que pedir licença para desembarcar.
Assim se nutria a sociedade agora mais civil que via a nova república
de Tancredo e Sarney surgir. Após longa madrugada, aportavam na
vila de Porto Trombetas os teimosos empresários de Oriximiná,
devidamente conduzidos para o café da manhã na Casa de Hóspedes
da MRN. Crachás e Credenciamento não era compatíveis com a
liberdade democrática nem com a mudez e rudimentares técnicas
comercias dos oriximinaenses. Foi a primeira vez que uma delegação
de oriximinaenses conseguiu ser recebida em Porto Trombetas pelos
seus próprios méritos, isto é, sem favor político[...].
Depois da apresentação, um passeio pela área industrial e mina fez os
empresários oriximinaenses virem pela primeira vez as enormes
máquinas assustadoras a escavar o solo e extrair as riquezas,
originariamente em prazo estimado para quatro séculos. Hoje tarefa
ajustada para pouco mais de quatro décadas, tal o esforço exigido pelo
mercado mundial do alumínio.11
11
ALMEIDA, João Bosco. Kondurilândia: Ideias e registros na gênese da nova unidade federativa no oeste do
Pará. Fundação Ferreira de Almeida. Oriximiná. 2001. p. 69
77
Outros afirmavam que aqueles que estavam no poder ou diretamente ligados a ele, há mais de
vinte anos se revezando no município, tornaram-se milionários, adquiriram muitas cabeças de
gado e largas porções de terras na região. Latifundiários – em geral brancos e pessoas de fora
– no poder ou diretamente ligados a ele, segundo os entrevistados mais engajados
politicamente, não é uma realidade exclusiva de Oriximiná, levando-se em conta outras
realidades paraenses.
Não foi possível no curso da pesquisa uma conversa direta com o chefe do executivo,
apesar das muitas tentativas. Mesmo quando raramente conseguia um agendamento prévio,
sem horário definido, o atendimento no gabinete do prefeito era extremamente concorrido,
sempre havia uma fila imensa que não compatibilizava com o meu horário ou não chegava ao
seu término no final do expediente, não me possibilitando ser atendido. A fila era composta
por pessoas carentes da cidade e das diversas comunidades interioranas. Por curiosidade
puxava assunto para saber o que tratariam com o prefeito e obtinha respostas quase
constantes: estavam ali para pedir ou materiais de construção, ou combustível, ou
medicamentos, ou um gerador para a comunidade, ou arrumar o barco que estragou, entre
outros favorecimentos. Os cabrestos, os currais e os recursos que asseguravam a manutenção
do povo gado a um só tempo.
Durante todo o curso deste trabalho, que se iniciou em 2009, o prefeito municipal foi o
político do Partido Verde, Luiz Gonzaga Viana Filho, que se reelegera ao seu quarto mandato
na mesma época em que eu realizava o campo em outubro de 2012. Em meados de 2013 uma
série de protestos e manifestações nas redes sociais pediam a cassação do prefeito, com
inúmeras irregularidades expostas nos meios de comunicação. Nepotismo, desvio de recursos
públicos, enriquecimento ilícito, entre outras irregularidades foram avençadas pelas redes
sociais e pela imprensa. Consultando o Tribunal de Contas da União encontro uma decisão
obrigando o prefeito e uma empresa a ele ligada a devolver aos cofres públicos R$ 1.546.827,
3612, relativo ao seu primeiro mandato e ainda sem decisão final. Na Justiça Eleitoral
inicialmente seu nome constava dentre os políticos impugnados pelo “Ficha Limpa”, mas o
mesmo conseguiu contornar a situação, se reeleger e seguir no mandato até o final da
pesquisa.
Em nota divulgada pelo “Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de
Minerais Não Ferrosos do Oeste do Pará - STIEMNFOPA” e notícia divulgada no “Jornal de
12
Tribunal de Contas da União. (10/09/2009 15:32) TCU condena ex-prefeito de Oriximiná (PA). Disponível
em: http://portal2.tcu.gov.br/portal
/page/portal/TCU/
imprensa/
noticias/detalhes_noticias?
noticia=1771906. Acesso em março de 2013.
78
13
STIEMNFOPA. Trabalhadores da MRN organizam protesto contra fraude no transporte público. Oriximiná.
Disponível em http://www.stiemnfo.org.br/noticias.php?id=16538. Acesso em 18 de agosto de 2013
14
ABREU, F. Sant’Anna. Sindicato organiza frente contra a corrupção do transporte público em Oriximiná. In:
Jornal de Santarém e do Baixo Amazonas. Caderno 1 – Plantão, 15 a 25 de julho de 2013. p. 3. Santarém. 2013.
Disponível em: http://www.calameo.com/books/001507549fead079a393e. Acesso em 2 de agosto de 2013.
79
Valer-se do próprio Estado como blindagem para assegurar seus interesses e proteger-
se de ataques externos, ocultando-se, é uma estratégia muito bem sucedida: práticas que
dificilmente se legitimariam do ponto de vista legal e moral, ganham as vestes da legitimidade
estatal e do “interesse público”. A relação com município é menos do que a ponta do iceberg,
conforme se avança, percebe-se que a influência da MRN se amplia ainda mais nas instâncias
superiores, contrario senso.
Oriximiná, cuja economia está atrelada à exploração mineral, não se restringe a esta,
tendo em vista tanta riqueza natural. As madeireiras e os pecuaristas também ganham
importância neste cenário, sendo usual “medir” a riqueza dos munícipes pelas suas terras e
gado. Por sua vez, pecuária, agricultura e exploração madeireira são atividades geralmente
relacionadas às pessoas de lá e não a grupos transnacionais como é a mineração. Nesse
complexo a percepção que se tem ao dialogar com a população local é de que os mesmos são
conscientes politicamente da realidade local, principalmente quando se trata dos grupos
tradicionais, mas não somente. A importância da Igreja na organização política das
populações rurais e tradicionais merece destaque sendo melhor tratada um pouco mais
adiante. Em algumas passagens da entrevista com o Coordenador Social da Paróquia de Santo
Antônio é possível estabelecer algumas conexões entre os diferentes grupos de poder e
elucidar um pouco mais aquela realidade política. Pergunto:
*Deixa eu dar um pulo no tempo. O município recebe hoje uma
quantia muito significativa de recursos devido aos royalties da
mineração e pra quem vem de fora, eu não sei qual é a monta, mas eu
sei que é significativa, em torno de alguns milhões [...] pra quem vem
de fora a gente vê uma administração que tem carências que poucos
recursos poderiam resolver. Ou seja, seriam deficiências da
administração política pública e de outro lado você vê filas de
pessoas na prefeitura pedindo coisas. Há uma política assistencialista
forte, mas assistencialista no sentido de paternalista, pelo meu ponto
de vista, e, ao mesmo tempo, com deficiências significativas que
políticas públicas simples poderiam resolver. Como você vê a
administração hoje aqui no município, fazendo um paralelo com o
passado? Você vê a continuidade de uma lógica?
– É... já ouviram a história do cachorro? Do cachorro e da coleira?
Mudam os cachorros, mas a coleira é a mesma. Então, na década de
70 no município houve uma reunião dos pecuaristas e deliberaram
que o município seria um polo exportador de carne. Devido aos
grandes empreendimentos planejados pra cá, certo? Então logo em
seguida, sai ali da região de Macapá, chega a Jari, em seguida chega
a Mineração Rio do Norte. Então estava no projeto a Mineração Rio
do Norte, a barragem do Trombetas e a ALCOA em Juriti. A pesquisa
de Juriti saiu em 77. Então mais tarde falaram pra gente da Rio Tinto.
Mas pelo menos essas duas empresas já estavam garantidas aqui na
80
Oriximiná o preso mais velho tem 23 anos. Entendeu? Um menor mata a mando de alguém e com 2, 3 dias tá
solto. E exemplos aqui em Oriximiná não falta. Demora mais às vezes aí no Centro de Acolhimento por não ter
promotor às vezes logo pra sentenciar ele, se ele fica aí, se libera ou se vai pra Santarém. Então como eu to te
falando, é só olhar os municípios onde tem mineração que vocês vão ver as deficiências do judiciário em todas
as instâncias.
82
Ilustração 01: Diário de Campo – Brega 45. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.
Ano de 2010 – primeiro campo – saímos eu, Wilson Madeira e Ivan Pimentel de Porto
Trombetas por volta das onze da noite, as meninas pesquisadoras quedaram-se na Casa de
Hóspedes. Já havíamos acertado, ali mesmo no porto, com um barqueiro que nos conduziria e
aguardaria o nosso retorno da comunidade denominada Vila Paraíso, ou Brega 45. Cerca de
vinte minutos navegando e chegávamos às palafitas iluminadas, cheia de música, de bebidas e
de dança. A pujança e excitação pela oportunidade de uma pesquisa tão extraordinária para
mim se misturava ao medo do desconhecido, de estar na beira de um rio no coração da
Amazônia, em uma vilazinha onde as damas prestam serviços sexuais para os operários do
grande empreendimento minerário. Subimos as escadinhas de madeira e, transitando por uma
passarela suspensa, podíamos escolher em qual daqueles pequenos cabarés tomaríamos
discretamente uma cerveja e iniciaríamos o nosso trabalho. Poucas passadas e uma senhora
83
nos recebe educadamente e nos serve em uma mesa, ao nosso lado meninas se exibiam com
danças sensuais, aguardando que nos manifestássemos. Wilson acena e elas se aproximam e
se sentam na mesa, nos apresentamos e iniciamos ali breve conversa. Escolho uma das
meninas, a mais nova, que me conduz para o seu quarto anexado aos outros da grande
palafita, como um cortiço todo de madeira. Ali uma pequena estante, um radinho, sua cama
que ocupava 70% do quarto e um armário onde guardava seus pertences. Me assento na cama,
me apresento e apresento o meu trabalho, já havia combinado pagá-la (seu tempo) por uma
breve entrevista. Ela me conta: “completei 19 anos tem dois meses [tinha minhas dúvidas] e
sou de Santarém [...] estou aqui para levantar um dinheiro, minha prima trabalha aqui, ela
que me chamou, mas ela não está aqui agora não, está lá pra Santarém”. Me diz também que
sua família não sabia que estava ali e que logo retornaria e voltaria a estudar. “Aqui dá pra
fazer um bom dinheiro, as vezes, quando vem os estrangeiro, tiro até quatrocentos dólares na
semana”. Parte desse dinheiro ficava com a “casa”, que ela não se queixou do tratamento.
Provavelmente ela não vivia a mesma realidade de outras meninas ali, pois era jovem e
bonita, de pele cobre, claramente com ascendentes indígenas. Me contou que era praxe ali
cobrar US$ 60,00 por estrangeiro e o mesmo valor em Reais para os brasileiros, e que atendia
o “povo da mineração” em geral, das empreiteiras e dos navios. Disse que não gostava dos
orientais, se queixava: “a gente não entende nada do que eles falam [...] e eles são muito
bruto com a gente” ... Por ali já apareceram gregos, americanos, canadenses, franceses, gente
do mundo todo que atravessa os oceanos, penetra nos grandes rios e vai lá pegar o mineral
avermelhado. Essas moças, cujos brios se ofuscam nas sombras dos preconceitos, são
proibidas em Porto Trombetas, circundam na Praça da Feirinha... sempre as via por lá, mas
não são beneficiárias de nenhum projeto da mineração, provavelmente as mais invisíveis de
todos. Isso por prestar esse antigo serviço que ali amansa a solidão dos marinheiros e
operários da máquina minerária. É só mais um povo a ela conectado, cuja existência e
subsistência estão atreladas à própria MRN, ali tão perto e tão diferente dos quilombolas do
Boa Vista, dos ribeirinhos do Lago Batata e dos indígenas do Mapuera.16
16
Poucos dias depois retornamos com as pesquisadoras Thaís Azevedo, Carolina Thibes, Denise Vidal, Jamile
Souza, Alessandra Terra. As meninas realizaram ampla abordagem no local, estabelecendo descontraídos
diálogos com as meretrizes, se banhando no Rio Trombetas, brincando e ao mesmo tempo recolhendo
importantes informações. No campo realizado em outubro de 2012 também retornamos ao Brega 45 e deixamos
um pesquisador, Eduardo castelo Branco e Silva, enquanto o resto da equipe seguiu para a aldeia-mãe Mapuera.
Eduardo Silva realizou o seu mestrado sobre o Brega 45, tomando como lastro as experiências vivenciadas no
outro campo. Os dois renderam artigos:
a) MADEIRA FILHO, Wilson; ALCÁNTARA, Leonardo Alejandro Gomide; PIMENTEL, Ivan Ignácio;
VIDAL, Denise da Silva; AZEVEDO, Thais Maria Lutterback Saporetti; THIBES, Carolina Weiler; SOUZA,
Jamille Nedeiros de; TERRA, Alessandra Dale Giacomin. Vila Parais: invisibilidade das prostitutas do Brega 45,
84
A história sobre o povo do Lago Batata narrada no compendio analisado nos próximos
capítulos17 não se alinha com as informações obtidas em um campo que realizei no mesmo.
Além de não mencionar quais foram os impactos vivenciados pelas pessoas ali, a narrativa
que enfatiza a alegria e a satisfação daquele povo ribeirinho, oculta as vozes ressentidas e as
transformações que vieram com a chegada da MRN. Partindo de entrevistas coletivas, por
meio de Diagnóstico Rápido Participativo - DRP com duas famílias, merecem destaque
alguns pontos aferidos nas histórias orais coletadas.
Converso com a família de Dona Domingas Alzira Pires18, 45 anos, e com a família de
Domingos de Souza19, 76 anos. Antes da chegada da MRN poucas famílias viviam no Lago
Batata, segundo os relatos, apenas duas e uma na área em que se erigiu Porto Trombetas. Foi
com a chegada da mineração que várias famílias se instalaram neste lago. Famílias “doutras
paragens, vinha por causa da concorrência de trabalho” [sic] e foram se instalando ao longo
do Batata. Com a deposição do rejeito de bauxita no lago, dentre as ações da empresa,
ganhava destaque nas falas, a remoção das famílias que ali haviam se instalado, pouco após a
contaminação. Outra ação mencionada tratava da realização de poços artesianos para as
comunidades afetadas mais acima, como Boa Vista e Moura, segundo os relatos. As famílias
retiradas do Lago Batata foram alocadas do outro lado do Rio Trombetas, “numa paragem
que chama de Bacabal” [sic], mas muitas se dispersaram e foram para outras “paragens”,
como o caso de Dona Domingas, que foi para o Juqueri Grande, abaixo da Cachoeira Porteira.
Segundo os entrevistados, a indenização que foi paga pela MRN não “dava pra nada”,
disseram que todos ali foram retirados e nas casas que restaram “colocaram fogo”. Conforme
Domingos de Souza, morador mais antigo do lago que chegou antes da mineração, com a
indenização que recebeu conseguiu comprar apenas uma “canoa velha [...] não dava pra
nada”. Mencionou que a “mineração falou que ia ajudar, mas não ajudou nada, eles
esqueceram”. Do local para onde foi removido, assim como grande parte das pessoas em
conjunto de prostíbulos no entorno da Mineradora Rio Norte, às margens do Rio Trombetas, em Oriximiná (PA).
In: Confluências, v. 13, n.1. Niterói: PPGSD-UFF, novembro de 2012, p.73-81.
b) MADEIRA FILHO, Wilson; SILVA, Eduardo Castelo Branco e; PINAUD, Deborah Zambrotti; TERRA,
Alessandra Dale Giacomin; LOUZADA, Ana Beatriz. Retorno à Vila Paraíso: memórias, processos de
territorialização e gestão de espaços de prostituição no Brega 45, no Rio Trombetas, em Oriximiná (PA). In:
Confluências, v. 14, n.1. Niterói: PPGSD-UFF, dezembro de 2012, p.218-236.
17
MOURÃO, Isaura. Um pouco de história, seu povo. In. BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De Assis, ROLAND,
F. Lago Batata: impacto e recuperação de um ecossistema amazônico. Rio de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000. p.
17-25.
18
PIRES, Domingas A.; et al. Entrevista Coletiva na comunidade do Lago Batata: família de Dona Domingas.
Entrevista realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de
2012. Oriximiná, 2012.
19
SOUZA, Domingos; et al. Entrevista Coletiva com o ancião do Lago Batata e seus familiares. Entrevista
realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de 2012.
Oriximiná, 2012.
85
igual situação, ficou menos de três anos e retornou para o Batata: “aqui tem muitos igarapés,
é mais bonito, é a vida da gente”. Dona Domingas afirma que as pessoas ali se opuseram à
remoção: “eles reclamava mas não adiantava nada, tinha que sair, tinha que perder tudo”
[sic]. Por sua vez, com relação a contaminação do lago, os comunitários que participaram da
entrevista, assim como Seu Domingos, davam mais ênfase à poluição visual: “a água ficou
feia e ainda tá feia, fica tudo vermelho quando a água baixa, tudo sujo da lama da bauxita, e
também é ruim, pode causar doença, dá coceira” [sic]. Disseram, nas duas entrevistas, não ter
assistido os trabalhos para recuperação do lago, não detinham conhecimento sobre o que foi
feito nesse sentido, para os mesmos, apenas pararam de lançar os rejeitos, mas não “retiraram
a lama vermelha, quando a água baixa fica tudo feio lá pra cima”. Ou seja, os grupos
familiares entrevistados não fizeram parte do processo de recuperação do lago.
A população do Batata, no tempo da pesquisa com 120 famílias, retira parte de sua
renda da agricultura, comercializando a produção de farinha de mandioca, beiju, jerimum,
melancia entre outros produtos na Praça da Feirinha, onde conseguem escoar, segundo os
entrevistados, tudo o que produzem. A outra fonte de renda, principalmente para os
“maridos”, se dá com os trabalhos para as empresas terceirizadas da MRN, conforme os
mesmos se referem: “as empreiteiras”. Pergunto se são empregados ou apenas prestam o
serviço e obtenho como resposta que são empregados. O esposo de Dona Rosana (que estava
junto com a Dona Domingas na entrevista), por exemplo, trabalha para a Cattani – a polêmica
empresa supra mencionada que tornou-se a concessionária do maculado transporte público de
Oriximiná para os trabalhadores da MRN até as suas minas. Conforme os relatos, nenhum
morador do lago estava trabalhando direto para a MRN, mas para as terceirizadas, que por sua
vez, empregavam muitas pessoas de lá.
Seu Domingos inicia a entrevista dizendo que antes da chegada da MRN não havia
“motor” (a rabeta para canoa), não havia comércio, para comprar qualquer coisa que
necessitasse tinha que ir remando até Oriximiná... uma jornada de três dias. Relata a chegada
da mineração, os acampamentos de pesquisa, as explosões nos platôs, as explosões na água
que a “branquejavam de tanto peixe que boiava”, o rejeito despejado no lago, no igarapé
Caranã... falou daquilo que provavelmente marcou seus olhos, sua história, dentro de sua
percepção de mundo. Seu Domingos afirmou que as coisas melhoraram muito com a chegada
da mineração, agora ele tem um motor, ou pode pegar um barco para Oriximiná, tem sempre
um regatão para escoar os produtos, tem acesso ao hospital de Porto Trombetas em caso de
emergência, tem gerador a diesel e tem ajuda da prefeitura. Seu Domingos não associa a
diminuição do pescado à contaminação das águas, diz que quando chegou o comércio (junto
86
com a MRN), é que se começou a pescar em demasia, de forma predatória. Foi a atuação dos
“invasores” (aqueles que pescam ou caçam para comercialização) que ocasionou a escassez
dos peixes e também dos “bichos-de-casco” e da caça. “Foi a invasão [...] antes não tinha
pra quem vendê, era só a gente aqui, despois começou tudo” ... [sic]. Fala da chegada do
“IBAMA”, segundo ele, se não fosse a entidade, já não haveria mais nada. Esse
posicionamento também obtive de entrevistados quilombolas.
Os programas sociais e ambientais da MRN são bastante diversificados podendo ser
divididos em voluntários e decorrentes de condicionantes dos licenciamentos ambientais20 – o
que corresponde a grande maioria dos projetos. Além dos projetos ambientais mencionados
sobre reflorestamento, manejo de fauna e de sítios arqueológicos, relacionado às operações
nas minas e todos gozando de parcerias com instituições de pesquisa como EMBRAPA, UFV,
UFPA, UFRJ, UFSC, ZOOFIT, UFG, UFJF, UFA, INPA etc., existem os projetos voltados
para as comunidades do entorno da mineração21. As ações socioambientais tem perceptível
repercussão na vida dos povos tradicionais na área de influência da empresa, perfazem
conexões peculiares da mesma com as comunidades, criam laços, influências, acessos,
oportunidades, recursos e dependências. Em praticamente todas as comunidades que visitei,
senão todas, parte da infraestrutura, como os barracões comunitários, foi construída com
recursos da mineração e, pelo menos um projeto de desenvolvimento social, também havia
sido realizado. Com fins ilustrativos elenco os principais projetos da empresa e,
posteriormente, comento aqueles em que tive oportunidade de vivência de campo e/ou coleta
de relatos por parte de comunitários e/ou autoridades públicas.
Como condicionante dos licenciamentos ambientais foi criado o Programa de
Educação Socioambiental – PES em 2010. Este programa se subdivide em doze projetos (em
alguns casos incorporando projetos anteriores) com aplicação e participação comunitária.
Transformar realidades, desenvolver conhecimentos, capacidades, O resultado dos projetos
variavam conforme a comunidade, prosperando em algumas e fracassando em outras.
20
Condicionantes, conforme o próprio nome, são ações que devem ser realizadas para a manutenção e validade
das licenças ambientais.
21
Separado por regiões segue um breve panorama das comunidades: 1. Sapucuá – Casinha, Amim, Ascenção,
Cunuri, Ajará, Leiro, Maceno, Castanhal, Macedônia, Vila Ribeiro, Amapá, São Braz, Boa Nova, Saracá
(realizei trabalhos de campo na Casinha, Castanhal, São Braz e Boa Nova); 2. Médio Trombetas – Sacuri, Boa
Vista, Nova Sacuri, Jacupá, Camixá, Tapixaua, Curupira, Axipicá, Varjão, Samaúma, Bacabal, Acari, Batata,
Flechal, Vila Paraiso e Muçurá (realizei campo na Boa Vista, Vila Paraiso, Batata e Flechal); 3. Alto
Trombetas – Moura, Último Quilombo, Nova Esperança, Palhal, Juqueri Grande, Jamari, Curuça, Juquerizinho,
Mãe Cué, Sagrado Coração, Tapagem, Paraná do Abuí, Abuí e Cachoeira Porteira (somente o Palhal e o Juqueri
Grande não foram trabalhados).
87
Um projeto que pude vivenciar e que talvez seja o mais complexo de todos é o
“Manejo de Copaíbas”. Conforme mencionado, grande parte desses projetos decorrem de
condicionantes ambientais, nesse sentido, visam “compensar” alguns dos impactos causados
pela atividade de mineração ou trazer algum benefício direto para as comunidades
impactadas. Este projeto está relacionado ao Platô Monte Branco, de substancial importância
para a MRN, que no curso da pesquisa estava na eminência da supressão de milhares de
copaibeiras, fonte de renda das mencionadas comunidades do Jamari e do Curuça, no
território da Floresta Nacional. O projeto visa a produção e manejo de mudas de copaíba pelos
comunitários, em nome da “preservação da espécie” e como forma de gerar “autonomia” para
os produtores locais – ressalvo: como compensação pelo extermínio de umas das áreas de
maior concentração da espécie de toda a região e pela extinção do principal modo de
subsistência das referidas comunidades. As mudas são plantadas em estruturas criadas nas
próprias comunidades, Jamari e Curuça, com sementes coletadas pelos comunitários e
insumos cedidos pela MRN (saquinhos e adubo), toda a mão-de-obra fica por conta das
comunidades e as mudas são adquiridas pela MRN pelo valor de R$ 1,50, com dois anos de
idade, que segundo os comunitários, não “compensa” o trabalho. É só imaginar ter que regar
milhares de mudinhas quase todos dia sem ter água encanada, como é o caso do Jamari, tendo
que pegar água do rio. Conforme representante do Curuça e do Jamari, sobre o projeto do
inventário e viveiro de mudas respectivamente:
23
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
91
Curuça
- Tá sendo estudado e a gente não sabe. Aí fizeram um projeto. Esse
projeto que o Jonas tá fazendo com a gente e a gente já passou pra
você, né. Tá fazendo um inventário a redor. A gente tá trabalhando
com ele, mas de 2 em 2 meses. Então, dentro de uma comunidade, de
2 em 2 meses é pra ir 5 pessoas. 5 daqui e 5 do Jamari. São 10
pessoas que nós trabalhamo. Aí o que acontece, chega um mês todo
mundo quer ir porque precisa de ganhar um dinheirinho. Aí tu não
pode levar 10, só é 5 que eles pediram. Aí, poxa, fica aquela coisa... E
aqui tá a prova bem aqui, olha depois a gente vai lá. Fizeram esse
projeto, a gente ajuntou as sementes pra produzir, pra plantar em
2013. É pra plantar lá no platô, no Monte Branco e aqui na área da
comunidade pra fazer uma área pra plantar um pouco. Mas só que
esse trabalho que a gente faz aqui é de graça, não pagam nada,
entendeu? Ninguém ganha nada por isso, a gente tá trabalhando
mesmo só porque um dia quer ver, se ficar, talvez os filhos e os netos
da gente consiga alcançar esse período aí. Então a gente vai plantar
na situação, a gente tá trabalhando, tem uma base aí de 5 mil pé, e
muda aí de copaíba. Só que esse trabalho que a gente faz, que eles
pediram pra gente fazer, vai ser levado pra lá, vai ser levado pra cá,
mas eles não pagam nadinha. Nada, nada, nada.24
Jamari
- A gente conversamo com ela, perguntamo o que ela podia ajudar.
Porque antes, quando eu fui numa comunidade bem próxima dela que
é Boa Vista, ela deu a maior assistência. Agora quando chega com
nós por aqui ela não dá a mínima atenção e nem fala de indenização
nada não. O que ela diz pra nós é que ela vai tirar, mas vai repor. Vai
plantar mais do que tinha. Se ela vai derrubar 5 mil, ela diz que vai
plantar 20.000. Aí com 10 anos nós já tamo utilizando lá, mas isso
não é verdade. Não vai acontecer isso. A gente já fizemo umas
pesquisas, já fizemo trabalho com eles lá. Já derrubaram copaibeira,
já tiraram medida... já fizeram pesquisa do corpo dela toda pra ver
que marca era aquela, quanto que aquilo reproduzia e a gente vê que
não dá certo, que nós temo uns plantio agora da copaíba, que é pra
plantar aqui no Jamari e levar um pouco lá pro platô também, mas
ele morre e eu acho que não dá certo.25
24
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
25
JAMARI. Uso comunitário do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 09 de janeiro de 2012
92
é a própria MRN que economiza na produção e no plantio das mudas – sua obrigação –
utilizando-se dos quilombolas que não percebem remuneração direta (salário) pelo trabalho.
Outro projeto polêmico é a “Compra de sementes florestais” que se dá diretamente de
algumas comunidades no entorno do Lago Sapucuá. Esse projeto tem sua origem atrelada ao
início da exploração da bauxita no Platô Almeidas com 876,2 ha, o primeiro projeto da MRN
a ter uma audiência pública no processo de licenciamento por determinação do IBAMA a
pedido da população. Foram duas audiências públicas, a primeira em 28 de março e a segunda
em 21 de maio, ambas em 2002. Na primeira audiência conforme representação encaminhada
ao Ministério Público Federal, assinada por oito organizações26, os interessados comunitários
e suas organizações representativas obtiveram o RIMA, às vésperas da audiência, com 41
páginas sendo-lhes ocultado 75% do relatório original com 203 páginas. Apontando na
mesma representação:
Que a Audiência Pública conduzida pelo IBAMA não obedeceu os
trâmites da RESOLUÇÃO CONAMA Nº 009/1987. O local de
realização foi a Câmara Municipal de Oriximiná que comporta 150
pessoas e compareceram aproximadamente 500 pessoas. A maioria
ficou fora das discussões; o intermediador impediu a participação
popular ao exigir que os questionamentos fossem feitos por escrito,
mesmo sabendo que as pessoas participantes eram pessoas humildes
de pouca escrita; não se permitiu interlocução entre o público e o
representante da mineradora; o intermediador ainda, dirigiu a palavra
de maneira áspera, dizendo que a opinião dos representantes não iria
interferir na aprovação do projeto da mineradora, parecendo jogo de
carta marcada.27
mandioca, conforme os relatos. Mencionam, também, sobre outros projetos que foram
ofertados como o de piscicultura, criação de galinhas, agroflorestal etc. No caso da compra de
sementes os comunitários se queixavam que, com o aumento do número de famílias vendendo
sementes e as mesmas sendo adquiridas também de outras localidades, a renda, que no início
do projeto “compensou” o recurso dos castanhais, não o fazia mais. Reclamavam também da
inconstância dos pedidos que, por vezes, eram requeridas sementes fora da estação das
mesmas. Não houve nenhuma indenização direta para os comunitários pela perda de suas
áreas de trabalho. Segundo Dona Maria Expedita, que participou do DRP, aquela região,
dentre outras cabeceiras, pertenciam ao Sr. Luiz Gonzaga Viana, pai do Luiz Gonzaga Viana
Filho, o prefeito de Oriximiná, diz que ali haviam muitos castanhais que “eram a coisa mais
linda”, lamentando a perda.
Segundo o inventário florestal do EIA/RIMA os castanhais do Platô Almeidas
ocupavam cerca de 450 ha, possuindo mais de 1.150 árvores contabilizadas, com uma média
de 32,4 metros de altura. Segundo um analista ambiental do ICMBio que resguardo a fonte,
após vistoria do IBAMA na área foram identificadas omissões sobre o número de castanheiras
(para reduzir a indenização). Na representação ao Ministério Público as associações
apontaram 3000 castanheiras e mais madeiras-de-lei que foram omitidas. Além de não constar
no EIA/RIMA os impactos relacionados ao uso comunitário e sustentável da floresta na
unidade de conservação. Como compensação ambiental por essa perda a empresa foi obrigada
a investir em 2002 em outro projeto: o “Banco de Germoplasma de Castanheira-do-Brasil”. O
projeto voltado para o inventário, para a futura recuperação dos castanhais suprimidos e para
o manejo dos castanhais remanescentes nas encostas do platô, até 2012 havia plantado 1,3 mil
mudas da Bertholletia excelsa. Um desdobramento deste projeto é o “Manejo dos castanhais”
nas encostas do Platô Almeidas (área não minerada) com envolvimento dos comunitários de
Boa Nova e Saracá, também com inventários e plantios, o projeto incide sobre nove
castanhais: Veado Pequeno, Veado Grande, Josefa, Tauri, Viana, Pedras, Moreira, Paiol e
Severino. Cada pedaço de terra, cada cabeceira, cada castanhal, cada igapó, cada igarapé,
cada espaço na floresta parece ter nome próprio, cada pedaço de terra ou de água perfaz
territórios.
Outros projetos sociais da empresa também merecem menção, enquanto conexões da
mesma com as populações tradicionais do seu entorno. Dentre esses projetos, o relacionado
ao “Apoio à Educação Formal” (que não tive contato) se subdivide em inúmeros subprojetos
com foco tanto Oriximiná, como Terra Santa e Faro. Existem projetos também específicos
para comunicação externa e interna da empresa. O jornal Konduri, disponível no sítio
94
titulação da terra de Boa Vista, que os quilombolas levaram a proposta da “terra coletiva”,
quando solicitaram auxilio da organização, inclusive pela experiência da mesma com as terras
indígenas, que se assemelham ao modelo proposto. Contudo, na mesma entrevista, também
ressalta que os quilombolas da Boa Vista já tinham um acordo prévio com a MRN, expõe:
[...]Então, a gente chegou em 1989 a convite da Paróquia de
Oriximiná. A gente tinha naquela época uma campanha muito grande
contra as hidrelétricas... para discutir esse modelo energético. A
gente estava com um trabalho grande no Xingú, estava começando na
Amazônia e também discutindo a Cachoeira Porteira. Foi por causa
da hidrelétrica de Cachoeira Porteira que a Paróquia de Oriximiná
nos convidou.... Na mesma época teria um encontro “raízes negras”
na comunidade de Jauari, era o segunda na região e o primeiro em
Oriximiná. E aí nós fomos lá para falar das hidrelétricas e, nesse
meio tempo, a discussão da titulação começou a aparecer... E assim,
era muito recente que tinha sido aprovada a Constituição... E é
interessante, porque assim, esse direito está na Constituição,
construído a partir de uma luta direta do movimento negro urbano,
não teve um envolvimento dos quilombolas nesse período. Mas os
quilombolas de lá já tomavam conhecimento da existência desse
artigo, mas ninguém sabia como colocar em prática, porque é um
artigo super curto... E aí o que eles pediram: “olha a gente quer terra
coletiva, vocês têm experiência em trabalhar na demarcação de terra
indígena que é coletiva também, vocês não querem ajudar a gente a
pensar como vai ser isso?” Então, foi por esse viés da área coletiva...
e o que começou como uma ajuda mais pontual acabou virando um
programa da Comissão Pró-Índio com quilombos. O que hoje é um
programa com atuação nacional e local, lá em Oriximiná. Então, foi
nesse sentido... e pra gente fez sentido também, porque esse viés do
direito à terra coletiva era o nosso mote na questão indígena. Então a
gente achou muito interessante e achamos que uma coisa reforça a
outra inclusive.
*Tudo é muito novo... era muito novo na época, né. Vocês tiveram
participação com relação à titulação de Boa Vista?
- É então, a gente participou de todos esses processos.
*Todas as titulações?
- É, todas as titulações [...] E a luta pela terra sempre foi um viés
muito forte e a gente pensou junto, inclusive essa estratégia da Boa
Vista, de começar com uma terra que fosse mais simples, né... porque
tinha uma discussão se começava com as terras das unidades de
conservação, onde o conflito era mais forte naquele momento. Nossa
estratégia foi uma sugestão que foi acatada de: “olha, é tudo muito
novo, vamos começar com uma menor, mas simples.” Na época foi
muito interessante porque a Mineração Rio do Norte era favorável,
porque resolvia também uma questão, porque, assim, é... a mineração
já tinha ocupado áreas que antigamente os quilombolas utilizavam da
Boa Vista, mas já tinha um acordo lá. A Boa Vista não queria aquela
área, a relação deles, como você deve já conhecer, é bem diferente
com a mineração. Então se chegou nesse... se pensou e se teve uma
96
31
ANDRADE, Lúcia. A participação da Comissão Pró-Índio na organização política dos remanescentes de
quilombo de Oriximiná. São Paulo, 03 de novembro de 2011.
32
FEREIRA, José Cândido. Organização Social e regimes de propriedade numa comunidade quilombola
paraense. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2013. p. 123
33
O que levantou amplos debates jurídicos pois não se sabia se estaria criando uma usucapião sui generis ou
uma modalidade de território protegido para grupos étnicos e tradicionais, sob regime particular de terra. Em
toda sorte como não havia regulamentação questionou-se a necessidade de previsão legal para respaldar os atos
do
Estado,
com base no princípio da legalidade. Outra corrente entendia a necessidade de aplicação imediata
artigo 68 da ADCT como forma de assegurar o Direito Fundamental à sobrevivência desses grupos, cujas terras,
mais do que bem patrimonial, constituem elemento integrante de sua própria identidade coletiva. Sem seus
territórios seriam absorvidos pela sociedade envolvente e perderiam sua peculiaridade identitária e étnica. Nesse
sentido gozaria de aplicabilidade imediata, enquanto extensão de direito fundamental, com base no princípio da
dignidade da pessoa humana.
97
34
Artigo 17 do Decreto nº 4.887/2003 que revogou o Decreto
nº
3.912/2001
35
Para conhecer o assentamento coletivo ver a obra: AZEVEDO, T. M. L. S. Estatização do Puxirum: Uso
coletivo da terra no Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas, em Oriximiná (PA). 2012.
Dissertação. (Mestrado em Sociologia e Direito) – PPGSD. UFF. Niterói, 2012.
36
Informações constantes do sítio da empresa.
98
Apresentar os fatos fragmentados sem possibilidade de “ligar uma coisa a outra” é o que
possibilita maquiar as “conexões necessárias”, como p. ex., o projeto “germoplasma da
castanha” que está ligado ao extermínio dos castanhais no platô Almeidas; ou o projeto
“manejo de copaibeiras” que se liga ao extermínio no platô Monte Branco, ambos em uma
unidade de conservação para o uso sustentável dos recursos florestais e fonte de subsistência
de povos tradicionais. O que traduz (translada, se conecta, faz acontecer, desencadeia) se
oculta pela purificação publicitária.
Ao longo de sua história a MRN amplia sobremaneira seu capital e sua produção. Sua
chegada representa a chegada do Governo Federal na região e todo um disciplinamento
territorial peculiar com as unidades de conservação, sobretudo a Floresta Nacional Saracá-
Taquera diretamente atrelada a ela. E, com obrigação que se impôs de considerar novos
interesses, os assentamentos coletivos e os territórios quilombolas vêm dar vez a uma nova
realidade e movimento político àquelas terras, obrigando adaptações por parte de seus atores e
redimensionamento às controvérsias. Se pegarmos os balanços da empresa de 2012, seu
faturamento bruto se deu na ordem de R$ 1.034.562 bilhões, com recolhimento de R$
116.045 milhões em tributos, logo lucro líquido de R$917.139 milhões. A empresa, ligada à
SUDAM conforme o delineamento histórico, desde sua origem, é favorecida com benefício
fiscal de redução parcial do Imposto de Renda. A Lei Complementar nº 87 e 1996, “Lei
Kandir”, também beneficia a empresa com isenções no imposto estadual do ICMS, para
produção destinada à exportação. Em 2012 MRN investiu cerca de R$ 310.7 milhões em suas
atividades e ações operacionais. Destes, R$ 190,4 milhões foram destinados à abertura de
novas minas, R$ 44.8 milhões para projetos especiais como melhoria no sistema de
peneiramento e linha de transmissão; R$ 17.1 milhões em equipamentos de mineração; R$
11.1 milhões em correias transportadoras; R$ 7.0 milhões em ferrovia; para os projetos
socioambientais, segurança e saúde foram destinados R$ 13.9 milhões; R$ 5.1 milhões em
pesquisas geológicas e R$ 21.3 milhões em projetos de infraestrutura, atualização tecnológica,
modernização e continuidade operacional37. A empresa está crescendo ininterruptamente
desde sua criação, em vias de se tornar a maior do planeta no setor, com implicações de
diversas ordens, dentre elas, a que mais translada interesses são os recursos financeiros que
gera. O município de Oriximiná oscila de 30% a 50% de sua receita atrelada à atividade
mineral, sua principal fonte de recursos, com uma média de 1,2 milhões de reais por mês,
gradativamente ampliados na medida em que se aumentou a atividade minerária (a CFEM
37
MRN. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-‐DOE-‐2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
99
decorre do lucro da venda do mineral). Desde 2010 Oriximiná divide parte do recurso da
CFEM com o município de Terra Santa, quando se inicia a exploração do Platô Bela Cruz,
situado entre os dois municípios. O recurso arrecadado com CFEM manteve-se com uma
média entre 22 e 26 milhões de Reais de 2004 até 2009, no ano de 2010 cai para R$
18.596.174,68 e, em 2013, o município arrecadou R$7.941.190,2438.
Os argumentos que sustentam historicamente os grandes empreendimentos como a
MRN se ligam ao ideal de desenvolvimento, hoje com o adjetivo obrigatório de “sustentável”.
Nesta seara, o que se esperaria em cumprimento às promessas que legitimam esse ideal, é que,
nos locais onde se instalaram estes projetos, assistir-se-ia efetivas melhoras nas condições de
vida das pessoas. Dois estudos se debruçam nesta análise especificamente no município de
Oriximiná: “Royalties da Mineração: Instrumentos de promoção do desenvolvimento
sustentável de regiões mineradoras na Amazônia Oriental”39 e “Adequação de um município
minerador aos objetivos de desenvolvimento do milênio das Nações Unidas”40. O primeiro
analisa os Royalties da mineração de uma forma geral, apresentando como o Brasil é um dos
países que possui as menores alíquotas, partindo para a arrecadação municipal, o investimento
do recurso no município, o despreparo para o futuro por parte das autoridades e os resultados
para sociedade de uma forma geral, em síntese:
Em Oriximiná, no período 91/95, os royalties apresentaram, em
média, 30% da receita municipal. Nesse mesmo período o número de
funcionários da prefeitura aumentou de 1.250 para 2.330 e a relação
funcionário por habitante dobrou de 0,03 para 0,06. Como
consequência, os gastos com o funcionalismo passaram de 46% em
1991 para 62% do orçamento em 1995, infringindo a legislação que
estabelece um teto máximo de 60% para gastos com funcionalismo.
Em 1991, o município de Oriximiná provavelmente utilizou o
dinheiro dos royalties para pagamento de funcionários pois a receita
municipal sem royalties (US$3.385) foi insuficiente para cobrir os
gastos com o funcionalismo (US$ 3.570). Nos outros casos, não é
possível afirmar que os royalties foram utilizados para pagamento de
salário nem descartar essa hipótese. Infelizmente, a contabilidade
pública municipal não permite examinar com exatidão o destino dos
royalties. Os gastos de Oriximiná em investimentos em infraestrutura
e setores produtivos foram muito pequenos. Esses gastos
corresponderam a apenas 2,45% e 4,25% do total do orçamento
municipal em 1991 e 1995 respectivamente, embora os royalties
tenham representado 34 e 30% do total do orçamento.
38
DNPM. Arrecadação da CFEM por substância.
39
SILVA, Maria A. R. Royalties da Mineração: Instrumentos de promoção do desenvolvimento sustentável de
regiões mineradoras na Amazônia Oriental. Belém: IMAZON, 2012. Disponível em:
http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/viewFile/15/12. Acesso em: junho de 2013.
40
LIMA, M. H. R.; FERNANDES, F. R. C.; TEIXEIRA, N. S. Adequação de um município minerador aos
objetivos de desenvolvimento do milênio das Nações Unidas. Rio de Janeiro: CETEM.2009.
100
41
SILVA, Maria A. R. Op. Cit. p. 1 - 13
101
Conforme a linha que narramos, até então, a ordem espacial de Oriximiná e região
ganha novos contornos com a descoberta da bauxita e a chegada das empresas mineradoras
junto ao governo. A Reserva Biológica do Rio Trombetas de 1979 e a Floresta Nacional
Saracá-Taquera de 1989, representam os primeiros disciplinamentos territoriais mais rígidos,
do ponto de vista legal, para a região. Essas “políticas de conservação” territorial, que dão os
limites em que a pesquisa se empenha, não somente repercutiram em uma ordem severa sobre
os modos de vida dos habitantes humanos daquelas florestas, mas legitimaram, em nome de
um interesse universal de “proteção da natureza”, ações violentas por parte dos agentes
estatais para com eles – um excepcional controle sobre saberes e corpos. Essas ações foram se
transformando tanto com relação aos tradicionais como com relação à empresa,
estabelecendo-se hoje uma relação que se aproxima mais de uma “parceria” entre governo e
tradicionais. Mas no fluxo da história, não apenas pelo sincronismo de sua implementação, as
políticas de desenvolvimento e de conservação, também perfazem um liame na configuração
de uma ordem territorial “desejada” na hierarquia dos interesses em jogo que, conforme
42
LIMA, M. H. R.; FERNANDES, F. R. C.; TEIXEIRA, N. S. op. cit. p. 1- 11
102
PARTE II
DO CAMPO ATÉ AS REDES, DA SOCIEDADE À NATUREZA
Foto 08: Tabuleiros do Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2012.
104
1 TRÊS MATRIZES
Neste momento da caminhada o olhar se volta para aqueles que acuram nossas
percepções sobre aquilo que estamos estudando: os teóricos, suas ideias e práticas perpetradas
nas páginas dos livros. Como analisar um “conflito ambiental”? Ou, ampliando um pouco o
termo, como descrever as controvérsias sobre as diferentes formas e propostas de uso e
apropriação do que chamamos de “natureza”?
Essa parte da tese, subdividida em três capítulos, tem como escopo apresentar
brevemente algumas percepções teórico-metodológicas que influenciaram e auxiliaram na
confecção da mesma. Sem pretensão de realizar longas explanações – de maneira introdutória
– são abordados os pontos centrais de inteligibilidade e aplicação das teorias no contexto da
pesquisa. As discussões empenhadas se afunilam em dois pontos-de-vista teóricos,
substancialmente divergentes em suas ontologias e metafisicas, sobretudo nas concepções
sobre o que é “natureza” e o que é “sociedade”.
A proposta aqui não é a elaboração de um quadro comparativo em que se aloca, lado-
a-lado, as diferentes perspectivas que se empenham num mesmo foco. Também não se
pretendeu estabelecer uma relação de superioridade/inferioridade de uma perspectiva em
relação a outra para este tipo de análise. No ponto de vista do qual observo, é o contexto do
campo e a posição pessoal do pesquisador – sua criatividade, disponibilidade e sensibilidade –
que deve conduzir a escolha de sua “metodologia” de observação/experimentação. No caso
em tela, entendo, a realidade da pesquisa é autoexplicativa nos “porquês” de uma mudança
analítica no curso dos trabalhos. E é exatamente esta a função da presente parte da pesquisa:
mostrar de antemão seus fundamentos, contradições, confusões, fusões e distanciamentos.
105
Apresentar, ao mesmo tempo, algumas matrizes acadêmicas em torno da questão num plano
de abstração mais nítido (sic) e os (des)caminhos adotados no curso do trabalho. Isso, além de
previamente apresentar conceitos que não precisam ser retomados ao longo do texto,
aproxima o leitor da análise empenhada.
As duas perspectivas convergem na necessidade de uma base empírica e que se dá
com o foco em “objetos quentes”, em movimento, objetos que estão em controvérsias. De um
lado as compreensões sobre conflitos na especificidade das disputas territoriais e sobre
recursos ditos naturais, que antagonizam “sujeitos de interesses” num “campo de lutas”; do
outro, o que cinde à própria visão recortada com base nas estruturas e nos sujeitos para uma
percepção que privilegia as multiplicidades e agenciamentos que se extraem da realidade
vivida. Sem sujeitos e sem objetos em planos de distinção, sem estrutura e sem mecanismos
em planos de determinação da realidade. Por uma vertente, a realidade é explicada dentro de
um quadro, um pano-de-fundo, um papel-parede a priori. Na outra vertente nada se explica
apenas se descreve e a descrição deve se explicar por si. Como diz o poema de Machado43:
“caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”.
1.1 Estruturalismo-construtivista
Esta primeira matriz tem como objetivo subsidiar o debate empenhado no próximo
capítulo. Perpassando questões generalizadas sobre o que se compreende como “questão
ambiental”, passando-se à sua integralização nos contextos histórico-culturais, a abordagem
seguirá por uma breve análise de concepções que situam a problemática do meio ambiente
dentro das disputas sobre os recursos naturais territorializados. Trata-se também, no campo da
ecologia dos saberes, de lidar com ferramentas epistemológicas, a um só tempo colonizatórias
e reterritorializantes. Neste sentido a dimensão universalizável da questão ambiental passa a
ser rechaçada, percebendo esta enquanto “causas parcelares”, situadas no espaço e no tempo
de realidades contingentes, que podem atingir maior ou menor potencial de “universalização”,
conforme são inseridas nas esferas políticas em sentido amplo. Nesse víeis, que rejeita
parcialmente o reducionismo objetivista, cria-se um “campo” próprio para os conflitos
ambientais, propondo uma análise sustentada em um “estruturalismo-construtivista” que aqui
43
Tomado esse pequeno recorte na citação de Vandenbergue. VANDENBERGUE, Frédéric. Construção e
crítica na nova sociologia francesa. Trad. Ana Liési Thurler. Brasília: Sociedade e Estado. Vol. 21. Nº 2.
Maio/Agosto. 2005
106
usos sociais. Quanto mais nítida é essa estrutura que se salienta no plano consciente, mais
oculta é a estrutura profunda que dá razão a ela. A diferença entre culturas é explicitada nos
modelos conscientes que criam uma distância que obstaculiza uma identificação imediata
entre os membros pertencentes de cada qual (linguagem, valores morais, hábitos diferentes, p.
ex.). A garantia da objetividade na etnologia se dá na própria distância entre o observador e o
observado que não se identificam pelas suas divergências culturais. Ao mesmo tempo a
distância não representa uma estranheza completa, que inviabiliza qualquer interlocução, mas
um terreno de comunicação, de reciprocidade, uma intersecção de duas subjetividades, um
lugar comum na própria diferença, o que faz recusar a antinomia entre sujeito e objeto, são
dois sujeitos. De um lado há um conjunto de manifestações empiricamente percebidas, que
são as relações sociais visíveis, o fato social que é apreendido de maneira totalizante no
movimento único das suas propriedades (dentro dos elementos elegidos enquanto
significantes); do outro lado a experiência subjetiva e a razão imaterial/intangível que é
estabelecida teoricamente, revelando as estruturas sociais invisíveis45. Dois mundos apartados
com tráfegos distintos, o da natureza e o da cultura que, não obstante a razão lógica
pertencente a cada um dos membros da segunda, a operacionalidade da mesma é
condicionada pela estrutura.
A rigidez do estruturalismo de Lévi-Strauss, que determina a realidade independente
da consciência e da vontade dos agentes, anulando-os, é transformado na proposta de
Bourdieu. O sujeito banido pela estrutura rígida, continua inserido na estrutura e por ela
determinado, mas também é força estruturante, a constrói, nessas relações flexibilizando-a
enquanto dinâmica, enquanto cambiável46. As estruturas sociais são interiorizadas no
indivíduo, no contexto de um “campo social”, dentro de sua história e de suas idiossincrasias.
Grosso modo, a cultura moral (estrutura normativa e orientadora da conduta) cotidiana, na
dinâmica de sua absorção e aprendizagem do indivíduo, operando inconscientemente seu
esquema de ação, percepção e reflexão. A “hibridização” dessa “estrutura social” com o
“indivíduo” é designada habitus.
O habitus que conduz a maneira de perceber, valorizar, julgar, interpretar e agir, é o
que entremeia sociedade e indivíduo, o que se interioriza da estrutura social e se exterioriza na
ação individual dentro do grupo. Retira a liberdade do sujeito, produto de uma “estrutura
45
LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia. In. Os Pensadores: Lévi-Strauss. A noção de
estrutura em etnologia; Raça e História; Totemismo Hoje. Trad. E. P. Graeff, I. Canelas e M. B. Corrie. São
Paulo: Abril Cultural. 1980.
46
THIRY-CHERQUES, Hermano R. Bourdieu: a teoria na prática. In RAP. Rio de Janeiro 40(1):27-55,
Jan./Fev. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n1/v40n1a03.pdf. Acesso em: 02/11/2012
108
47
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989. p. 12
109
dominam o domínio do Estado, constituindo seu ponto de vista no ponto de vista universal
pelo Estado.”48 Nesse sentido, legitimam e conformam a hierarquia do campo que opera
como uma estrutura que constrange os agentes estruturados em posições, mantendo uma
estabilidade temporal (campo de forças), mas que também é palco da ação desses agentes para
conquistar posições/postos (campo de lutas), na medida que se adquire ou se perde o capital
exigido em cada campo.
O esquema que leva à análise empírica é sistêmico. Deriva do
princípio de que a dinâmica social se dá no interior de um /campo/,
um segmento do social, cujos / agentes/, indivíduos e grupos têm
/disposições/ específicas, a que ele denomina / habitus/. O campo é
delimitado pelos valores ou formas de /capital/ que lhe dão
sustentação. A dinâmica social no interior de cada campo é regida
pelas lutas em que os agentes procuram manter ou alterar as relações
de força e a distribuição das formas de capital específico. Nessas lutas
são levadas a efeito /estratégias/ não- conscientes, que se fundam no
/habitus/ individual e dos grupos em conflito. Os determinantes das
condutas individual e coletiva são as /posições/ particulares de todo
/agente/ na estrutura de relações. De forma que, em cada campo, o
/habitus/, socialmente constituído por embates entre indivíduos e
grupos, determina as posições e o conjunto de posições determina o
/habitus/.49
Como os campos são de certa maneira arbitrados pela análise (uma estratégia
epistemológica e não necessariamente uma existência real), são segmentações ou reduções da
realidade social. Na realidade complexa é inegável que eles estão em constante interação e
interpenetração. Como a percepção é sistêmica (tem um in put e um out put), o campo se
auto-referencia e as penetrações inter-sobre-campos serão refratadas pela lógica interna de
cada um. As penetrações são sempre possíveis pelo fato dos campos possuírem homologia
estrutural, mas absorvem o “externo” traduzido em suas regras internas. A mediação dessas
influências externas se dá pela estrutura interna do campo que, por sua vez, não impedem
condicionamentos de um campo sobre outro, por contaminações mais profundas, ainda que
reproduzidas por meio de uma “expressão simbólica”50. Como é o caso da economia que
influencia a política, o direito, a educação, a ciência etc.
Essa perspectiva teórico-metodológica possibilita uma moldura (com base na teoria
das estruturas) a ser preenchida com dados empíricos do campo, do comportamento dos
48
“[…]la doxa est un point de vue particulier, le point de vue des dominants, qui se présente et s’impose comme
point de vue universel; le point de vue de ceux qui dominent en dominent l’Etat et qui ont contitué leur point de
vue en point de vue universel en faisant l’État”. BOURDIEU, P. Raisons pratiques: sur la thèorie de l’action.
Paris: Seuil, 1994 p. 129
49
THIRY-CHERQUES, Hermano R. Op cit. p. 31
50
id. Ibid. p. 41
110
agentes, das instituições etc. (que influenciam na estrutura dando-lhe o víeis construtivista),
compondo um quadro de análise sistemática do objeto (entre o objetivismo e subjetivismo).
Esse “modelo analítico”, que tem grande valia para as perspectivas críticas e atualiza
sobremaneira as heranças marxistas das mesmas, tem significativa recepção e influência na
sociologia da questão ambiental que foca os conflitos sobre recursos e territórios51,
empenhadas num primeiro momento desta pesquisa. Por esta lente, temos de um lado os
sujeitos, ainda quando adjetivados de “agentes” pela sua liberdade limitada e condicionada, e
do outro lado os objetos, que vão da própria sociedade objetiva fragmentada nos campos
como um “fato social” inspirado em Durkheim, ou das coisas em si (recursos naturais no
caso), reificadas na composição da realidade social e não representativas na constituição da
mesma, classicamente restrita e explicada pela própria sociedade (fenômenos sociais
explicados por fenômenos sociais).
Essa breve descrição teve como propósito introduzir as discussões sobre conflitos
socioambientais empenhadas no próximo capítulo, conforme mencionado, que influenciaram
o primeiro momento da pesquisa tanto na identificação dos agentes sociais, quanto na
compreensão da distribuição do poder sobre aqueles territórios e seus recursos.
O que foi vivenciado no campo da pesquisa, os dados que foram sendo obtidos, a
realidade que foi se revelando em sua complexidade, reivindicou uma postura que levasse em
consideração outros muitos elementos que a configuram, não os hierarquizando dentro da
constituição da mesma. Houve um abandono parcial da estrutura – não na negativa de sua
existência – mas na identificação de que sob esta perspectiva se recobraria um recorte que, de
um lado, conduziria a um enquadramento dos elementos de análise que sempre a reafirmasse,
e de outro, daria voz somente àqueles sobredeterminados pela própria estrutura (em posições
inferiores como os tradicionais p. ex.) e subavaliaria a posição de muitos outros “actantes”
que compõem aquela realidade. Nesse contexto a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
na estruturação de um pensamento “rizomático” foi de grande inspiração.
51
Nesse sentido podemos apontar alguns autores como: Acselrad, H. “As práticas espaciais e o campo dos
conflitos ambientais”, In: Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich
Böll, pp. 13-35.; Carneiro, E. J. “Política ambiental e a ideologia do desenvolvimento sustentável”, in: ZHOURI
ET ALII (org.), A insustentável leveza da política ambiental, Belo Horizonte: Autêntica, pp. 27-47.; Zhouri, A.
& Laschefski, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: Um Novo Campo de Investigação. In: Zhouri, A.;
Laschefski, K. (org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010; entre
outros.
111
consistência), por sua vez “definem-se pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segunda a qual elas mudam de natureza ao se conectarem a outras”.
O quarto princípio é o da ruptura assignificante em que apresenta o rizoma enquanto
“linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado,
significado, atribuído etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais
ele foge sem parar”. Essa linha de fuga é uma ruptura, mas essa ruptura também é o rizoma,
ele foge fazendo outras ligações, sobre outras ligações, sobre outros rizomas, impedindo
dualismos e dicotomias, mesmo rudimentares como bem e mau.
O quinto e o sexto princípios tratam da cartografia e da decalcomania. “Um rizoma
não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo”, a estrutura profunda e o
eixo genético fazem decalques reprodutíveis ao infinito. O rizoma faz um mapa inteiramente
voltado para uma experimentação ancorada no real. O decalque remete à uma presumida
competência que traduz o mapa em imagem (transforma o rizoma em raízes ou radículas),
organizou, significou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos próprios de
significância e de subjetivação (reproduz a si mesmo enquanto crê reproduzir outra coisa – é
sempre o imitador que cria o seu modelo e o atrai). O mapa é aberto, é conectável em todas as
suas dimensões, demonstrável, reversível suscetível de receber modificações constantemente.
O decalque seria como uma fotografia, nas palavras dos autores, um rádio que começaria a
eleger e isolar o que ele tem a intensão de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, de
colorantes ou outros procedimentos de coação52.
Essa perspectiva compreende a realidade como um conjunto de forças que se
encontram e se afetam/transformam, forças em constante afecção, sem início nem fim, em
múltiplas direções, sempre um processo. O encontro das forças produzem transformações,
forças de diferentes signos se encontrando, uma afetando a outra e assim reciprocamente e
sequencialmente em encontros que causam um processo e que se designam como “síntese
disjuntiva”, o que dá existência as coisas. O social é uma sequência de sínteses disjuntivas.
A realidade não é inteligível por um plano de significação, mesmo onde ela se
externaliza53, pois sempre que assim feito, implica em “criar” uma ordem, uma autoridade,
52
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo. Editora 34,
2011. pp. 22-48
53
As forças em afecção – intensio – geram transformações que se tornam visíveis – extensio – , externas (como
um encontro de placas tectónicas geram um terremoto ou o vento sobre a agua gera uma onda) e assim possíveis
de serem apreendidas, configurando parte também da realidade, que por sua vez será tomada, explicada,
significada, quantificada, decalcada, vindo a compor toda uma inteligibilidade e hierarquia e, por fim, uma
ordem social. Levando em consideração essa “dupla-articulação – dupla-pinça – double-bind”, a realidade não
pode ser nem composta pelo significante, nem pelo significado, uma vez que o que se têm é o que está
“estratificado”. “Do mesmo modo que os signos só designam uma certa formalização da expressão num
113
uma hierarquia, um comando. A oposição entre formas de “perceber a realidade” são dadas
pelas metáforas botânicas “rizoma” e “arvore-raiz”: de um lado, faz alusão a um tipo de caule
que se espalha subterraneamente, como uma grande rede emergindo em certos pontos; do
outro, o tronco rígido que se erige e se ramifica sucessivamente, formando suas extremidades.
Ultrapassando sobremaneira a sugestão metafórica, as duas percepções coexistem e a
perspectiva do rizoma não se apresenta como uma oposição – mais uma vez binária – às
outras formas de pensamento, mas muda sobremaneira o ângulo de visão sobre a realidade,
dando-lhe outro movimento e pluralidade. A multiplicidade inerente ao rizoma, não é a
simples identificação da complexidade caótica e aleatória a qual é preciso ordenar, ou da
identificação da ambivalência ou sobredeterminação dos fenômenos, ou ainda de uma
realidade natural múltipla vista de cima por uma realidade espiritual una. “É preciso fazer o
múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões que se dispõe, sempre n - 1”54. Para
fazer o múltiplo é necessário estar subtraído dele (excluir o Uno), o que equivale a pensar a
realidade (cartografá-la) enquanto encontros e agenciamentos múltiplos, heterogêneos, de
diversas ordens, experimentados, não hierarquizados e sem dicotomizá-la, sem corpo nem
alma separados.
Ao mesmo tempo em que contrapõe o pensamento centralizador e hierarquizador da
árvore-raiz, apreendendo outra “visão de mundo”, o rizoma – que conecta um ponto qualquer
a outro ponto qualquer, que são traços de naturezas muito variadas, que são linhas (o ponto
em movimento é uma linha) – pode apresentar “nós de arborescência”, formar “bulbos”,
hierarquias, despotismos, microfascismos; bem como a raiz pode criar rizomas, “empuxos
rizomáticos”, linhas de fuga, desterritorializações. Há tangenciamentos entre eles, há
transposições, se transpassam. Essa perspectiva filosófica não pode ser tratada como uma
simples oposição de “modelos”. Enquanto a árvore-raiz seria um modelo que produz
“decalques” em realidades estruturadas/recortadas/objetivadas/significadas/subjetivadas, o
rizoma é um processo que esboça mapas com linhas que ligam coisas diversas em
geografias/platôs/planos de consistência.
A ordem epistemológica do Estado, da Ciência, do Ocidente está estruturada no
modelo árvore-raiz, mas essa ordem pode ser pensada como apenas um plano de existência
determinado grupo de estratos, a própria significância só designa um certo regime dentre outros nessa
formalização particular”. DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São
Paulo. Editora 34. 2011 p. 108
54
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo. Editora 34. 2011
p. 23
114
que faz a leitura dos pontos em que o rizoma se exterioriza55, local onde este se torna visível e
então é cristalizado/sobrecodificado por este modelo, que lhe impõe uma organização e
produz uma ordem. Por sua vez qualquer dimensão da sociedade faz rizoma, ou seja, não para
de se conectar à “cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às
artes, às ciências, às lutas sociais”, é uma manifestação da vida, da matéria, da energia, da
cultura... Se desterritorializa e se reterritorializa em um constante devir. Há necessariamente
uma dimensão “molar” (externa, dura, macro) e uma molecular (interna, flexível, micro) em
dupla articulação na sociedade56. “O plano de consistência é a abolição de qualquer metáfora;
tudo o que consiste é Real. São elétrons em pessoa, buracos negros verdadeiros, organitos em
realidade, sequência de signos autêntica”57. Substitui unidades por dimensões, por “direções
movediças”, por “um meio pelo qual ele cresce e transborda”, sem começo nem fim. Um
rizoma é substancialmente distinto58 de um “eixo genético” ou de uma “estrutura profunda”.
Um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual
se organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes,
como uma sequência de base decomponível em constituintes
imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa
outra dimensão, transformacional e subjetiva59.
Esse deslocamento epistemológico não apenas possibilita sua leitura nas muitas
ciências, como obriga ser lido por múltiplas ciências, fundindo-as na inteligibilidade que
busca dos encontros, conexões, agenciamentos e contextos que configuram a (sua percepção
de) realidade. Isso permite anular a grande divisão entre sociedade e natureza, posto que a
sociedade passa a ser explicada pela multiplicidade de “encontros” que a constituem, não
mais por si mesma, o que ganha peculiar aplicabilidade no método desenvolvido por Bruno
Latour60, Michel Callon61 e John Law62, tratado no último capítulo desta segunda parte. Esse
55
Extensio e intensio/ molar e molecular são como duas faces da mesma moeda, o molar é a
representação/exteriorização do molecular conglomerado. A sociedade é molar e molecular ao mesmo tempo,
uma face representável pelo nosso aparato cognitivo, exterior (uma instituição p. ex.), e outra interior, molecular,
intensiva e subterrânea, sendo a síntese de um conjunto de forças de diferentes signos (não-visível).
56
Importante ressaltar que a dupla molar e molecular não se trata de uma dicotomia, mas de uma existência que
se articula duplamente, se coproduzem, se contém, se co-transformam. Suponhamos que o rizoma tenha fluxos e
florescimentos, partes flexíveis (forças - intensio) e partes rígidas (afecções - extensio), partes que estão em
movimento e partes que se cristalizam, a primeira corresponderia à molecular e a segunda à molar. A ideia de
molar e molecular também não podem ser consideradas apenas uma mudança de perspectiva micro e macro, de
escala ou dimensão, dinâmica e estática, mas também da natureza do sistema de referências considerado.
57
Id. Ibid. p. 110
58
“O sistema dos estratos, portanto, nada tinha a ver com significante-significado, nem com infraestrutura-
superestrutura, nem com matéria-espírito. Tais oposições eram maneiras de reduzir a um todos os estratos, ou
então de fechar o sistema sobre si, isolando-o do plano de consistência como desestratificação.” Id. Ibid. p.112
59
Id. Ibid. p. 29
60
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005.
115
objetivos, nem a mesma forma de lutar das classes. Contudo, dentro delas são “talhadas as
classes” que perfazem uma noção molar, cristalizada dentro das massas (organizada,
dicotomizada). Por sua vez dentro das classes as massas vão constantemente vazar, encontrar
suas linhas de fuga, desterritorializar-se em massas novamente. Podemos avançar um pouco
mais dizendo que dentro da classe os interesses serão percebidos enquanto homogêneos,
“comuns”, podendo ser organizados e pautados, nesse sentido são molares (duros). Em
oposição, dentro das próprias classes, percebido na microfísica, indivíduos vão ter interesses
difusos, variados, divergentes, que, mais tempo/menos tempo, formarão uma forma de
“vazamento” da ordem da classe, compondo “massas” novamente, tornando-se moleculares
(moles). Isso é irrefreável, inelutável e incontrolável ad eternum dentro de qualquer ordem.
Uma ordem molar será tanto mais forte quanto maior for sua correspondência na
“molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos elementares. [...] uma
grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos
medos [...]”64. A questão é que, por mais que o segmento molar (macropolítico,
macroeconômico, macropoder etc.) esteja organizado para e adaptado às linhas moleculares
ou “fluxos de quanta”65 (dentro da micropolítica, microeconomia, micropoder), não se detém
um controle sobre estes, sempre vão haver fendas, trincas, vazamentos, linhas de fuga em que
os fluxos vão gerar suas modificações moleculares no que é molar (e depois se cristalizar
novamente em outra molaridade, sempre em movimento). Nesse sentido a afirmativa marxista
de que uma sociedade se define por suas contradições é equivocada, parte-se somente da
grande escala (do pensamento biunívoco arborescente da visão que só apreende o que é
molar). As sociedades se definem mais pelas suas linhas de fuga, pelas desterritorializações,
pelas suas fissuras, pelo seus fluxos de quanta.
Os “centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência,
muito mais do que por sua zona de potência”66. Cada segmento molar tem o seu centro de
poder e este tem neste “segmento duro” sua zona de potência; mas todo centro de poder tem
também sua difusão num tecido microfísico (zona indiscernível), que o segmento duro tenta
moldar através de agenciamentos que vão adaptar as variações de massa e fluxo através de
traduções ou conversões em função do segmento dominante e dos segmentos dominados (p.
ex. as classes). Entretanto, há uma terceira zona, a de impotência, que está relacionada com os
fluxos de quanta, onde não é possível controlar nem determinar, no máximo converter
64
Id. Ibid. p. 102
65
Em alusão aos “movimentos quânticos” da mecânica quântica utilizada tanto na física quanto na química.
66
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo. Editora 34.
2012. p. 105.
117
(sempre parcialmente dentro da segunda zona). Como a microtextura (segunda zona) oscila
entre a primeira e a terceira zonas – entre a ordem e o que a desconstrói – a impotência é que
traduz a potência do centro de poder, sua capacidade de traduzir os fluxos moleculares em sua
ordem, fazê-la ser desejada. No exemplo de classes podemos falar de medo, segurança,
estabilidade, o que seduz e assim agrega, faz aderir...
É ela [capacidade de se adaptar aos fluxos moleculares da segunda
zona] – e não o masoquismo – que explica que um oprimido possa
sempre ocupar um lugar ativo num sistema de opressão: os operários
dos países ricos participando ativamente da exploração do terceiro
mundo, do armamento das ditaduras, da poluição da atmosfera.67
1.3 Multiterritorialidade
epistemológica etc. e todas elas a uma geografia. É inerente aos agenciamentos uma
territorialidade, eles descontroem territórios e os recriam num processo constante de múltipla
agregação que está sempre produzindo, sempre criando. Este processo é designado enquanto
“processo maquínico” ou simplesmente máquina, exatamente por agenciar diversos
elementos, funcionar na soma de suas forças e compor/construir/criar realidades (o que existe
é uma mecanosfera).
O agenciamento possui dois eixos em dupla articulação que o traduz enquanto um
processo de desterritorialização (linhas de fuga, momentos moleculares, forças e funções em
afecção) e de territorialização (componentes discursivos, momentos molares, sistemas
semióticos, significantes-significação) simultaneamente. Percebe-se que o sentido de território
é muito ampliado, indo do psicológico, social, animal etc., sempre num plano de existência
real, do que de fato se conecta, existe e se transforma. Obviamente nem tudo pode ser
apreendido por qualquer análise que seja, mas composto num mapa que traça os
agenciamentos identificados, sempre podendo ser refeito, ampliado, corrigido etc. Essa
percepção explicita uma visão “geográfica” desta filosofia, apreendida e aplicada de maneira
muito própria por Rogério Haesbaert, em sua “teoria da multerritorialidade”. Essa concepção
de território e territorialidade também foi influente na análise empenhada nesta pesquisa,
pelos territórios que percorre. “Muito mais do que uma coisa ou objeto, o território é um ato,
uma ação, uma real-ação, um movimento (de territorialização e desterritorialização), um
ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle.69”
Haesbaert parte de uma crítica às formas mais correntes do uso do termo
“desterritorialização”, apontando que estas perspectivas repercutem num sentido de promover
e legitimar a ótica parcial do modelo hegemônico neoliberalista, que prega o fim do Estado e
das fronteiras para a livre atuação das forças de mercado:
Assim, o que “desterritorializa”, de fato, na maioria das vezes, é
justamente esse afastamento ou fragilização do Estado e a
consequente onipotência de uma economia “flexível”, “fictícia”,
especulativa e/ou “deslocalizada”. Aí não são os grandes empresários
que estão “desterritorializados” – ao contrário, são eles que tem a
liberdade de escolher a (multi)territorialidade que mais lhes convém,
mais flexível e mutante, é verdade, mas justamente por isso ainda
mais prodigiosa70.
Perpassando de forma adensada diferentes perspectivas sobre territorialidade e
concepções sobre território, Haesbaert se empenha numa análise sobre as teorias da
69
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 127
70
Id. Ibid. p. 367
119
71
SENNETT, Richard. A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad.
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999
72
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
73
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 149
120
outro lado, o ausente, o sem-lugar, o sem acesso. Pode-se falar do surgimento de um espaço
imaterial, virtual ao mesmo tempo em que se pode falar de um uso ainda mais acirrado e
disciplinado do espaço e dos recursos materiais. A tecnologia que encurta as distâncias e
redefine a noção de tempo, tudo é instantâneo e imediato, decisões tomadas de longe, de fora,
mas com efeitos locais reais; e informações sincronicamente compartilhadas por todo o globo,
“aniquilando o espaço pelo tempo”. O território é instável e fluído, amanhã pode mudar, o
capital segue para onde for mais atrativo, para as melhores oportunidades, não há fronteiras,
pelo menos não muito rígidas. De um lado o local que perde sua identidade frente ao global
pelos mecanismos de “desencaixe”, com um “alongamento” espaço-temporal
(sobredeterminação); de outro lado o global que se encolhe, fica comprimido até reproduzir-
se no nível local, com a “compressão” do espaço-tempo. Os territórios se imbricam e se
justapõem, ora fronteiras são flexibilizadas ora são enrijecidas e as identidades culturais,
sempre atreladas a um território, se chocam, hibridizam-se e transformam-se.
Esse contexto fomenta os discursos sobre desterritorialização, partindo de diferentes
vieses, mas na grande maioria atrelados a uma visão linear e inevitável de um mundo “sem
fronteiras” ou sem territórios, com base em dicotomias como espaço-tempo, sociedade-
natureza, local-global, sujeito universal, cultura global etc. O deslocamento perceptivo de
Haesbaert se dá com a compreensão de que as mudanças compõem um “processo” que resulta
em novas perspectivas territoriais e não na abolição dos territórios. Para cada
desterritorialização, há uma reterritorialização, ora suplantando espaços e criando outros
novos, ora os hibridizando, mas dando outro plano de extensão e de controle. É um processo
sincrético, múltiplo, multiterritorial. Por uma perspectiva ideal-típica weberiana o autor
sintetiza três modalidades de organização espaço-territorial:
[...] os território-zona, mais tradicionais, forjados no domínio da
lógica zonal, com áreas e limites (“fronteiras”) relativamente bem
demarcados e com grupos mais “enraizados”, onde a organização em
rede adquire papel mais secundário; os territórios-rede, configurados
sobretudo na topologia ou lógica das redes, ou seja, são espacialmente
descontínuos, dinâmicos (com diversos graus de mobilidade) e mais
suscetíveis a sobreposições; e aquilo que denominamos
“aglomerados”, mais indefinidos, muitas vezes mesclas confusas de
territórios-zona e territórios-rede, onde fica muito difícil identificar
uma lógica coerente e/ou uma cartografia espacialmente bem
definida.74
74
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 306
121
Entretanto, não quer dizer que na perspectiva do autor não se adote axiomas, ou
pressupostos, ou mesmo crie polarizações. As mesmas estão presentes em vários momentos,
quase sempre inevitáveis, mas aportadas como sempre relacionais e suscetíveis de
reavaliações. Na perspectiva de Haesbert a “estrutura” se mantém como pano-de-fundo, nas
construções do poder e nas relações simbólicas principalmente, bem como percebe-se um
significativo empenho do autor em salientar as “especificidades humanas” de territorialidade,
para manter o humano em uma posição diferenciada, dicotomizada. Nesta feita, a filosofia
Deleuze-Guatttariana é parcialmente adotada, o que é afirmado pelo próprio autor.
75
Id. Ibid. p. 369
122
atingiria de forma mais ou menos homogênea toda a humanidade. Tratadas por um matiz
essencialmente economicista a questão tende a ser compreendida em sua resolução ou
mitigação por processos de conscientização, proteção de espaços territoriais e de
desenvolvimento de tecnologias que possibilitariam contornar a situação agônica que
enclausura a sociedade como um todo.
Alier78 aponta três momentos do “ambientalismo” como ramificações de um tronco
único: “o culto ao silvestre”, o “evangelho da ecoeficiência” e o “ecologismo dos pobres”.
Apesar de guardarem vários pontos em comum, sobretudo por se apresentarem contrários ao
modelo de produção da sociedade capitalista, cada qual tem seu viés que o distingue
nitidamente: o primeiro tem como característica fundamental a segregação de espaços
territoriais para a conservação e preservação de espécies ameaçadas de extinção; o segundo
compreende a saída para a crise a partir de investimento em tecnologias verdes, adaptando o
sistema atual aos novos problemas; por fim, o terceiro reivindica justiça na distribuição dos
recursos e dos ônus da degradação, configurando movimentos por justiça ambiental e dando
um matiz cultural para a questão. As duas primeiras linhas, que “eventualmente dormem
juntas”79, tratam a questão ambiental de forma mais fragmentária, técnica e, não raras as
vezes, associada à uma forma de manutenção/adaptação do modelo hegemônico.
Apesar da importância da compreensão, reduzir as questões ambientais
exclusivamente à problemática das quantidades de matéria e energia, é percebido como algo
impossibilita apreendê-las em sua real complexidade na dinâmica das sociedades. Dentro
desse contexto algumas vertentes teóricas buscam compreender essas questões de maneira
mais integrativa e conjuntiva, percebendo as inter-relações entre sociedade e meio ambiente,
ou seja, entre os elementos que constituem o meio e seus sentidos culturais e históricos,
apontando para a interconexão explícita dos processos sociais e ecológicos. Nesse sentido, as
formas de uso, apropriação e ocupação do território e dos seus elementos constitutivos pelos
diferentes segmentos e formas sociais é dotada de distintos fins, sentidos e significados.
Os modelos e práticas sociais se ligam diretamente às representações simbólicas que
atribuem diferentes significados aos elementos ambientais e à distribuição de poder sobre os
mesmos, dentro de um contexto histórico-social. A partir dessa relação Acselrad expõe que
disputas figuram: no campo dos significados, legitimando ou deslegitimando práticas sócio-
78
ALIER, Juan Martínes. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagem de valoração. São Paulo:
Editora Contexto, 2005.
79
Nessa perspectiva o “culto ao silvestre” e o “credo da ecoeficiencia” eventualmente dormem juntos. Assim
vemos a associação entre a Shell e a WWF para o plantio de eucaliptos ao redor do mundo com base no
argumento de que isso diminuirá a pressão sobre os bosques naturais e, presumivelmente, promoverá também o
aumento na absorção do carbono. Id. Ibid. p. 33
124
culturais de apropriação da base material; nas relações atreladas aos recursos e sua
acessibilidade e deterioração (questões de justiça ambiental); e nas competições sobre a
distribuição de poder sobre esses elementos.80
Há uma dimensão política e conflitiva intrinsecamente ligada às questões ambientais
que não se resume a uma convergência consensual necessária da ideia de crise e da
construção de uma consciência universal da mesma.
Nesse viés – sensível às diferentes práticas, significados e modelos culturais de
apropriação do ambiente – percebe-se uma realidade permeada por conflitos socioambientais.
Os impactos gerados por determinados usos, o poder exercido sobre determinado recurso, o
status designado para determinada área, os riscos de uma dada atividade, entre outras
situações que se reproduzem diuturnamente nas sociedades, muitas vezes, perfazem o que se
convencionou designar como “conflitos ambientais” ou “socioambientais”. Vale dizer, as
disputas entre os grupos sociais derivadas dos distintos tipos de relação que eles mantém com
seu meio natural, engloba três dimensões: o mundo biofísico, o mundo humano-social e o
relacionamento dinâmico e interdependente de ambos81, o ambiental e o social se conectam
(ainda que dentro de um modelo epistemológico que os dicotomiza).
O processo de disputa sobre os elementos ambientais, pelo seu controle (distribuição
de poder e designação de sentidos), acesso (distribuição social dos recursos) e exploração
(formas de uso, apropriação e ocupação), é um ponto marcante e indissociável da
compreensão das sociedades contemporâneas.
Diante dessa realidade crescem mundialmente as discussões sobre instituições
regulatórias e políticas, assim como de tecnologias para resolução de conflitos ambientais82. E
nesse sentido uma questão se perfaz: o que significa resolver um conflito? Seria cessá-lo ou
mitigá-lo? Negociá-lo ou arbitrá-lo? A resolução de um conflito ambiental deve se pautar
exclusivamente numa discussão técnica, ou incluir a dimensão da justiça e da ética? O
conflito deve ser resolvido em si, ou deve-se confrontar e transformar o processo que lhe deu
origem?
As práticas sociais institucionalizadas que visam dirimir conflitos de qualquer
natureza – grosseiramente – tendem, inicialmente, a uma harmonização ou conciliação entre
80
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
81
LITTLE, Paul E. Os Conflitos Socioambientais: Um Campo de Estudo e de Ação Política. In: BURSZTYN,
Marcel (org.) A Difícil Sustentabilidade: Política Energética e Conflitos Ambientais. Brasília: Garamond
Universitária, 2000. p.p. 107 - 122
82
ACSELRAD, Henri, H., BEZERRA, G.N. “Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de
conflitos ambientais na América Latina” apres. Seminário Nacional Desenvolvimento e Conflitos Ambientais,
Belo Horizonte, 2008. http://www.ufmg.br/conflitosambientais/ acesso em 28/02/2009 [disponível em pdf]
125
ambientais são bens de interesse comum, perspectiva essa que vem redimensionar o conceito
de propriedade privada com implicações significativas em sua fruição. Esta fica submetida à
explorabilidade limitada (certos bens ou espaços não são passíveis de utilização) e
condicionada (deve-se demonstrar que o uso não será nocivo para receber outorga do poder
público). A fruição passa a estar atrelada à função socioambiental da propriedade e as
questões ambientais passam a envolver (direta ou indiretamente) a sociedade como um todo –
caráter difuso.84
Apesar de gozar de um arcabouço teórico e legislativo amplo, que dialoga com outras
disciplinas inclusive não jurídicas, e de reformular vários conceitos jurídicos tradicionais, o
Direito Ambiental é uma disciplina relativamente marginalizada, que vem ganhando
importância gradual na atualidade. Seu conteúdo legislativo encontra grande descompasso
com a realidade, e o poder judiciário em si, é consideravelmente despreparado para lidar com
as questões ambientais que lhes são apresentadas85. A inaptidão técnica e a extrema
morosidade são apontados como fatores de esvaziamento do judiciário para dirimir as lides
ambientais. Estas, por sua vez, recairiam ainda mais para uma instrumentalização
contratualista e privada, flexibilizando o teor de indisponibilidade e de “bens de uso comum”
dos elementos ambientais.
Por sua vez, é importante salientar que o acesso à justiça é bastante ampliado no
Direito Ambiental. Instrumentos como a Ação Civil Pública (Lei 7347 de 24-07-85) e a Ação
Popular (Lei 4717 de 29-06-65), além de serem instrumentos processuais específicos de tutela
do interesse coletivo, ampliam o rol de legitimados ativos para a impetração da ação,
possibilitando-a às associações civis e aos cidadãos respectivamente. Não obstante tratar-se de
instrumentos de exercício profundo da cidadania, tanto a Ação Civil Pública quanto a Ação
Popular não são amplamente utilizados pela sociedade civil.
O Ministério Público, que utiliza amplamente a Ação Civil Pública, pode-se dizer,
desempenha um papel importante na resolução de conflitos ambientais. Este possui como
função precípua, além de fiscalizar a lei e promover a justiça, defender os direitos
massificados da sociedade (função preventiva e repressiva). Dispondo de uma série de
instrumentos de atuação, o Ministério Público pode figurar tanto como “demandista”, atuando
frente ao Poder Judiciário que se incumbe da resolução dos conflitos, através da Ação Civil
84
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In.
CANOTILHO, J. J. G.; MORATO LEITE, José R. (org.), Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2007.
85
NAVIA, J. M. B. Limiti e promesse del diritto ambientale in America Latina. In: Rivista Giuridica
dell´Ambiente. N. 3 vol.4. Milano: Giuffrè editore, 2003.
127
Pública, do Inquérito Civil e Criminal p. ex.; ou assumir um papel “resolutivo”, lançando mão
dos procedimentos administrativos e firmando Termos de Ajustamento de Conduta, e a partir
daí, resolvendo os embates86.
A resolução de conflitos através de Termos de Ajustamento de Condutas pelo
Ministério Público ou Termos de Compromisso (legitimados para alguns órgãos ambientais)
se dá mediante um compromisso firmado para “ajustar” a conduta do agente que está em
desacordo com a lei. Figurando como título executivo extrajudicial, esses instrumentos evitam
a burocracia do processo judicial, são mais flexíveis e negociados, podendo ser assistidos por
outras instituições (órgãos públicos, universidades, associações etc.) que lhes dão mais
legitimidade. Entretanto, apresentam inúmeras deficiências decorrentes do não cumprimento
dos acordos firmados, principalmente devido à ausência ou insuficiência de fiscalização.
O terceiro enfoque trata dos instrumentos administrativos de co-gestão política do
meio ambiente. Espaços onde se constroem e se decidem políticas socioambientais, planos de
desenvolvimento, normatizações, controle de atividades, qualificação de territórios etc. Há
cerca de quatro décadas, quando as políticas ambientais deixaram de ser tratadas
implicitamente em outros setores (constituindo um campo próprio), se inicia o processo de
construção desses instrumentos de gestão ambiental, que ao longo do tempo, foram ganhando
materialidade na realidade social brasileira.
Sob a influência da Conferência das Nações Unidades sobre Meio Ambiente Humano
de 1972, realizada na cidade de Estocolmo, o Governo Federal, na excepcionalidade do
Regime Militar e em meio a obras colossais e desastrosas, descontrolada exploração dos
recursos naturais, favorecimentos e expansão das fronteiras agrícolas, teve o início do que se
designa como “política ambiental explícita do governo”87. Precisamente no final de 1973 com
a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente - SEMA, instituída pelo Decreto n°
73.030, em 30 de outubro de 1973.
Contudo, já antes da criação da SEMA, começaram a se institucionalizar órgãos em
alguns estados do Brasil, que passaram a tratar o Meio Ambiente como um setor específico de
políticas públicas. Em junho de 1973 criou-se a Companhia de Tecnologia de Saneamento
Básico e de Controle da Poluição das Águas – CETESPE (Lei 118/73 SP). E, em outubro de
1973, foi criado na Bahia o primeiro conselho de meio ambiente do país, o Conselho Estadual
de Proteção Ambiental – CEPRAM (Lei 3163/73 BA).
86
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
87
ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio
da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
128
Segundo Lemos88, surge pela primeira vez um colegiado de Meio Ambiente com
poderes deliberativos no Estado do Rio de Janeiro. Em Minas Gerais, outra importante
inovação se deu com a criação da Comissão de Política Ambiental - COPAM (instituído em
29 de abril de 1977 que, a partir de 1988, passou a ser Conselho Estadual de Política
Ambiental, mantendo a sigla COPAM). Um órgão colegiado normativo e deliberativo que,
pela primeira vez, incluía a participação da sociedade civil de forma mais ampla, com
representantes de entidades ambientalistas, fomentando um maior controle social das políticas
públicas de meio ambiente do estado89.
Em 1981, com a edição da Política Nacional de Meio Ambiente, fica instituído o
Sistema nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), que se estabelece como uma rede
articulada de órgãos interativos que atuam nos três níveis da federação. Esse amplo modelo de
gestão – que incorpora os órgãos ambientais federais, estaduais e municipais – veio se
constituindo por tripartições em sua estrutura, com órgãos centrais (mais diretamente ligados
ao governo – chefe do executivo), órgãos executivos (executam as políticas, aplicam
penalidades, fiscalizam, transigem etc.) e órgãos decisórios (conselhos e comitês que
comportam múltiplos segmentos representativos). As representações, principalmente dos
órgãos colegiados, também vêm se organizando por mecanismos tripartites – Estado,
Mercado e Sociedade. Esse processo se deu acompanhando uma crescente mentalidade
democrática e participativa, consagrando a participação social nos processos decisórios e
configurando uma gestão descentralizada sobre os territórios.
Foi a partir dos modelos experimentados na Bahia, no Rio de Janeiro, em Santa
Catarina, em São Paulo e em Minas Gerais (posteriormente disseminados pelo país) e de seus
aperfeiçoamentos, que o Governo Federal se inspira para criar o Conselho Nacional de Meio
Ambiente (CONAMA) em 1981, comportando amplos segmentos representativos. Também
na década de 1980 aponta-se o grande momento do surgimento dos conselhos de meio
ambiente no âmbito municipal, concomitantemente ao surgimento de inúmeras associações
ambientalistas90.
88
LEMOS, Haroldo Mattos de. O sistema nacional de meio ambiente e o conselho nacional de meio ambiente no
Brasil: seu impacto na qualidade de vida. In: Diálogos de Política Social e Ambiental: Aprendendo com os
Conselhos Ambientais Brasileiros. Banco Interamericano de Desenvolvimento/Ministério do Meio Ambiente do
Brasil. Brasília: BID/MMA, 2002, 1ª edição. p.p. 31-82
89
RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. Indicadores Ambientais: Avaliando a Política de Meio Ambiente no
Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Semad, 2006.
90
ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade: Delimitação e análise de embates sociais
no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) –
PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
129
91
ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade: Delimitação e análise de embates sociais
no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) –
PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
92
BOLTANSKI, L. L'amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l'action. Paris:
Métailié, 1990.
131
93
HERCULANO, Selene C. Sociologia Ambiental: origens, enfoques metodológicos e objetos. In. Revista
Mundo e Vida: alternativas em estudos ambientais. n. 1. Niterói, 2000.
94
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
95
LITTLE, Paul E. Os Conflitos Socioambientais: Um Campo de Estudo e de Ação Política. In: BURSZTYN,
Marcel (org.) A Difícil Sustentabilidade: Política Energética e Conflitos Ambientais. Brasília: Garamond
Universitária, 2000. p.p. 107 - 122
132
naturais; segundo, conflitos em torno dos impactos sociais e ambientais gerados pela ação
humana; e terceiro, conflitos em torno dos usos dos conhecimentos ambientais. O tratamento
e entendimento dos conflitos devem considerar a pluralidade, o multiculturalismo e a
complexidade da sociedade atual.
No campo dos conflitos sociais, ganha substancial importância: a) a reflexão sobre os
atores sociais, a construção de suas identidades e solidariedades (constituição de movimentos
sociais); e b) o fenômeno da ação coletiva, referenciada por orientações e relações sociais.
Nesse sentido, conforme aponta Melucci96, deve-se entender o sujeito coletivo da ação não
como uma estrutura definida e homogênea (integrada em suas demandas) e nem reduzidos ao
“momento histórico”, mas de forma complexa, heterogênea em seus significados,
organizações e formas de ação. Essa perspectiva conduz à compreensão de um fenômeno de
ação coletiva, não de forma global ou como resposta a uma crise do sistema (patologia
social), mas como um objeto construído por uma análise que o decompõe segundo o sistema
de relações sociais ao qual a ação faz referência e às orientações que tal ação assume. É,
sobretudo, um conflito expresso na luta entre atores pelo controle de recursos essenciais de
interesse comum97. Essa percepção (sobre conflitos sociais em geral), remonta à necessidade
de uma análise empírica, onde a compreensão de um conflito ou formação de movimento
social, em sua real dimensão, só é possível partindo da análise de casos concretos.
Para a caracterização do “ambiental” como um campo específico de construção e
manifestação dos conflitos, Acselrad98 parte de um “estruturalismo construtivista” onde: a) as
posições no espaço social, em que os agentes sociais se distribuem segundo princípios de
diferenciação, conflitando pela posse das espécies de poder/capital específicos, formam os
“campos de forças relativas”; e b) as categorias vigentes de construção simbólica do mundo,
historicamente produzidas pela ação coletiva, são mutáveis; podem ser deslegitimadas pelas
lutas simbólicas (“desinventadas”), onde, nessa luta pela distribuição do poder, há uma
“valorização/desvalorização relativa dos diferentes tipos de capital”, portanto uma luta
classificatória e cognitiva. Desta forma, a designação sobre o que é ou não ambientalmente
benigno vai redistribuir o poder sobre os recursos territorializados. Isso se dá pela
legitimação/deslegitimação das práticas de apropriação dos recursos ou da localização em que
96
MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente - Movimentos sociais nas sociedades complexas. Trad. Maria do
Carmo Alves do Bomfim. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001
97
Id. Ibid.
98
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004.
133
esses se encontram, tornando a luta por recursos ambientais, simultaneamente, uma luta por
sentidos culturais e o meio ambiente uma construção variável no tempo e no espaço.
Nesse sentido, a emergência da questão ambiental tem no argumento ambiental (nas
justificações ecologizadas) o ponto de integração das distintas “ordens de justificação”. Ou
seja, a lógica dos discursos pertinentes à questão ambiental, ao contrário de uma causa
universal ecológica, trata de causas parcelares que podem ser universalizadas através de
valores compartilháveis que justificam os atos no plano do interesse comum. Dessa forma
uma gama variada de atores sociais integra o campo de forças da luta que visa classificar a
representação legítima da natureza e distribuir o poder sobre os recursos territorializados.
Assim, lhe dão diversos significados como, por exemplo, o de reservatório de recursos,
paisagem de consumo estético, reprodução de grupos socioculturais etc. Utilizando-se de
diferentes estratégias discursivas de legitimação que expõem, dentre uma diversidade de
vertentes, direitos de propriedade e direitos de uso, argumentações científicas sobre riscos,
vocação de determinadas áreas e seus usos etc. Dentro dessa disputa argumentativa e de
legitimidade, as representações dominantes podem sofrer inflexões no plano discursivo,
reconfigurando o poder relativo dos atores no campo das práticas.
Os conflitos ambientais têm origem, concebendo a sociedade como uma rede
espacialmente interativa de atividades que formam “acordos” de mútuos benefícios
(simbióticos), quando há o rompimento desses “acordos”. A atividade de um determinado
grupo compromete a manutenção das atividades de outro grupo, por meio de “impactos
indesejáveis” transmitidos por meios físicos (solo, água, ar ou sistemas vivos)
comprometendo a continuidade das formas sociais de apropriação, uso ou significação do
meio. O conflito é gerado a partir do momento que o grupo afetado denuncia a ruptura do
“acordo simbiótico”99, partindo da perspectiva de que a sociedade se constitui de uma forma
geral de relações de mútuos benefícios que podem ser rompidos gerando o benefício.
O quadro analítico proposto por Acserald aponta para uma remissão necessária dos
conflitos ambientais a quatro dimensões constitutivas: 1ª- A apropriação material dos recursos
do território: campo por excelência onde se desenrolam disputas sociais, econômicas e
políticas pela apropriação dos diferentes tipos de capital natural e também, pela mudança e
conservação da estrutura de distribuição de poder. Nessa vertente os agentes possuem
dotações diferenciadas de capital material e capacidade distinta de terem acesso a esses
99
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
134
capitais (acesso aos recursos vivos, água, terra fértil etc.). 2ª - Apropriação simbólica dos
recursos do território: a luta para impor as categorias simbólicas que legitimam ou não a
distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital. Aí se percebe embates entre
diferentes formas de apropriação do território pela afirmação de seus respectivos caracteres
como: “ambientalmente correto”, “sustentável”, “compatível com a vocação do meio”,
“produtivo”, “competitivo” etc. 3ª - A durabilidade da atividade no que se refere à
possibilidade de continuidade dos modos de apropriação material: a condição de existência da
base material que determinadas formas sociais dependem para sua subsistência e integridade
pode ser afetada por atividades que comprometem essa durabilidade. No plano argumentativo
esse pode ser um critério de legitimação/deslegitimação de uma determinada atividade, a ser
acionado no campo representativo do meio ambiente pelos sujeitos do conflito. 4ª - A
interatividade, onde “os conflitos ambientais opõem atores sociais que desenvolvem ou
propugnam distintas formas técnicas, sociais, culturais e simbólicas de apropriação dos
elementos materiais de um mesmo território ou de territórios conexos”. Há uma interação de
atividades em que uma transmite impactos indesejados para a outra, onde essa “interação” é
de difícil mensuração (incerteza cognitiva) e, portanto “suposta e sustentada na autoridade da
própria denúncia.” 100
Por uma perspectiva crítica das relações de poder sobre os recursos ambientais e seus
significados, da desigual distribuição dos custos socioambientais de certas práticas e sua
alocação territorial, que prejudica grupos cuja voz muitas vezes não redunda nas esferas de
decisão, impõe considerar a dimensão da (in)justiça ambiental. Uma definição esclarecedora
sobre o tema é apresentada por Herculano, Acselrad e Pádua101 (2004) como: “o mecanismo
pelo qual sociedades desiguais, destinam maior carga dos danos ambientais do
desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais descriminados, aos povos
étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”
(definição de injustiça ambiental).
Para o enfoque da pesquisa a desconsideração se dá também em outro nível, quando
espaços territoriais há muito habitados possuem recursos que interessam a grandes grupos
econômicos e os mesmos sobrepõem seus interesses, dominando o espaço com o aval do
poder público. E, ainda, a dominação se dá aliada a uma política ambiental segregacionista
que endossa a separação entre espaços humanos e naturais, colocando, na realidade em foco,
100
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
101
ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Fundação Ford. 2004.
135
muito mais uma estratégia política de controle e dominação do que de conservação ambiental
propriamente. A multiplicidade de formas de uso da área foco da pesquisa traduz uma
multiplicidade de territorialidades e uma complexa dinâmica de poder em que relações
estreitas entre poder econômico e Estado revelam práticas antagônicas que vão do
esvaziamento do poder estatal ao controle minucioso de práticas, da liberalização absoluta a
um compartilhamento íntimo do espaço físico.
A crítica vem dar voz aos dominados (no caso os subtraídos de seus recursos ou
territórios etc.) dando-lhes maior visibilidade e uma inserção possível de rearranjar as
estruturas, uma vez que identifica o “capital” de legitimação do campo em questão (o dos
conflitos ambientais), e denuncia a “injustiça” na distribuição do poder (do acesso aos marcos
decisórios e do discurso legitimador do desenvolvimento e da sustentabilidade). No caso da
pesquisa os quilombolas não tem acesso ao discurso técnico-científico do desenvolvimento
sustentável e nem condições de formalizar processos perante o órgão ambiental para legitimar
suas práticas. Por sua vez suas práticas são menos impactantes do que as da mineradora e
mais condizente do ponto de vista legal com as finalidades de uma das unidades de
conservação em questão, a FLONA. Evocando a questão da sustentabilidade e da legalidade e
inserindo-as nas esferas públicas, por agentes externos via de regra, poder-se-ia reconfigurar a
distribuição do poder ali, distribuí-lo melhor ou subverte-lo.
Por essa perspectiva – ou poderíamos dizer perspectivas, já que não foi apresentada
uma linha única, mas algumas linhas próximas – o “social” se conecta ao “natural” por uma
socialização do que se compreende como “ambiental”. Agora ele está alocado no polo
“cultura” e não mais exclusivamente nas questões relativas à matéria e energia, polo
“natureza”. Mantém-se a divisão, a dicotomia, muda-se o polo: o ambiental é socialmente
construído. Em outro ângulo, a análise remete às forças sociais estruturadas que fornecem o
poder hierarquizado do campo (pelo sistema econômico, capital, multinacionais, relações de
mercado, governo etc.). Esse “pano de fundo” dá o formato do quadro em que os elementos
obtidos em campo devem ser inseridos demonstrando as dimensões constitutivas do conflito
e, assumpta positione, denunciar as injustiças. O caráter normativo de orientação e a herança
marxista da crítica tornam-se forças vivas na análise. Por sua vez, nem tudo cabe na moldura
sem ultrapassar suas bordas e descaracterizar a imagem que se quer mostrar. O que fazer com
esses elementos sobressalentes? Desviar o olhar, aparar as arestas ou simplesmente ignorá-
los? Haverão sempre delitescências. Conforme mencionado, algumas questões levaram a uma
mudança de perspectiva metodológica no curso do campo.
136
3.1 Nem mais cultura e nem mais natureza: sobre a Antropologia Simétrica
Segregar, do latim segregare, aduz em sua etimologia o significado de apartar,
separar, colocar de lado. Com o seu radical grex/gregis, mais precisamente, apartar do
rebanho. Por uma conotação possível o termo exprime uma tática muito afim à visão de
mundo moderna, dentro de sua instrumentalização e apreensão do conhecimento e de suas
estratégias de desenvolvimento. O termo, assim como separar ou disjungir, guarda a
ambivalência de se remeter tanto ao que é posto para fora quanto ao que permanece dentro, ao
que se considera e inclui quanto ao que se desconsidera e exclui. Cria dicotomias. A simples
palavra apresenta-se como insigne ponto de partida na compreensão da crítica e do raciocínio
norteadores do estudo em tela.
Na clássica divisão de Descartes um res cogitans, ser que compartilha sua
racionalidade diretamente com o Cosmos, é capaz de apreender a operacionalidade e a
natureza dos demais seres, todos res extensa102. Descartes entendia que o conhecimento
estava mais próximo das vivências e experiências do que das obras edificadas pelos velhos
sábios ou instituições. Estabelecia uma base empírica forte em seu método, em que: 1. só
poderia ser aceito como verdadeiro aquilo que por suas evidências não poderia ser posto em
dúvida; 2. dividir/fragmentar para resolver o objeto em análise tanto quanto possível; 3.
organizar o conhecimento em gradações, dos objetos mais simples aos mais complexos,
supondo sempre relações de causa e efeito; e 4. estabelecer enumerações e divisões para não
omitir nada. Seu método, ainda hoje, influencia qualquer tipo de ciência, mesmo as que se
intitulam não-modernas. Entretanto, na sua concepção – consagrada na célebre frase cogito
ergo sum – a existência se dá independente da matéria, pois a alma se distingue por completo
do corpo. A razão (espelho da perfeição de Deus), distingue o humano, sensível, subjetivo,
dos demais seres, mecânicos, autômatos, objetivos103.
A inteligibilidade do mundo pela civilização ocidental moderna se consagrou por
instrumentos metodológicos que buscam fragmentar, separar, reduzir, simplificar e ordenar a
102
DESCARTES, R. As paixões da alma. In. Os Pensadores. Discurso do Método; Meditações; Objeções e
respostas; As paixões da alma; Cartas. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 214
- 294
103
DESCARTES, R. O método. In. Os Pensadores. Discurso do Método; Meditações; Objeções e respostas; As
paixões da alma; Cartas. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 25 -71
137
104
MORIN, Edgar.
Ciência com Consciência: Edição revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre
e Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003
105
Latour aponta como marco da descrença nas promessas modernas, de emancipação humana e domínio da
natureza, o ano de 1989. De um lado o “fim” do socialismo com a queda do muro de Berlim: “Ao tentar acabar
com a exploração do homem pelo homem, o socialismo multiplicou-a indefinidamente. Estranha dialética esta
que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após ter ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em larga
escala. O recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome da qual a vanguarda do proletariado
reinava, volta a ser um povo; as elites com seus longos dentes, que pareciam ser desnecessárias, voltam com toda
força para retomar, nos bancos, nos comércios e nas fábricas, seu antigo trabalho de exploração.”; do outro lado,
as primeiras conferências sobre o estado global do planeta apontando o fim da possibilidade de conquista
ilimitada da natureza e a impossibilidade de crescimento eterno: “Ao tentar desviar a exploração do homem pelo
homem para uma exploração da natureza pelo homem, o capitalismo multiplicou indefinidamente as duas. O
recalcado retorna e retorna em dobro: as multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos milhões na
miséria; as naturezas que deveriam ser dominadas de forma absoluta, nos dominam de forma igualmente global,
ameaçando a todos. Estranha dialética esta que faz do escravo dominado o mestre e dono do homem e que
subitamente nos informa que inventamos os ecocídeos e ao mesmo tempo as fomes em larga escala”. LATOUR,
Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 13 - 14
106
Id, Ibid. p. 19. Vai utilizar o termo para trata a separação entre o mundo social e o mundo natural como algo
análogo à separação do executivo do judiciário, p. ex..
138
Estado, possibilitando aos homens regerem suas próprias leis, criarem seu “contrato social”.
Curiosamente, o Deus moderno suprimido pode ser evocado no caso de conflito entre a
sociedade e a natureza, como entidade transcendente, com duplo papel, ao mesmo tempo
impotente e juiz soberano. Ele está agora alocado no foro íntimo, na religião individual, sem
intervir nem na política e nem na ciência, mas garantindo a paz aos espíritos humanos.
Entretanto, a modernidade não se resume a alguns pensadores e suas filosofias, nem
tampouco aos vários outros pensadores, práticas e instituições que se somam no processo de
sua “construção”. Aqui não temos a pretensão de exaurir o que se pode entender por
modernidade e sua peculiar ordenação do mundo. Entretanto, nos é necessário entender um
pouco da “constituição” moderna, na percepção de Bruno Latour, para compreendermos uma
das bases metodológicas que mais influenciaram no trabalho. Conforme Latour, “nosso meio
de transporte é a noção de tradução ou rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais
histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne
destas histórias confusas”107.
Diferente do pensamento de Deuleze e Guattari, em que o labirinto rizomático se dá
sem a possibilidade de um fio de Ariadne, sem começo nem final, Latour, ao acompanhar as
redes sociotécnicas, possibilita arbitrar por recortes – p. ex., o surgimento de uma nova
tecnologia e suas conexões – para dizer, conforme suas palavras, da “própria matéria da
sociedade”, de uma “nova forma que se conecta ao mesmo tempo à natureza das coisas e ao
contexto social, sem contudo reduzir-se nem a uma coisa nem a outra”108. Agora os rizomas
ganham uma ontologia e atores.
Sua percepção de modernidade estende-se um pouco além das críticas convencionais.
Um pouco além de pensar a modernidade revolucionária em contraposição ao passado
arcaico, com uma temporalidade outra que suplanta o passado com a flecha do tempo e suas
mudanças irreversíveis; da emancipação humana à dominação da natureza, das promessas do
socialismo às do capitalismo, ao declínio estrondoso de ambos os sonhos, desembocando no
descrédito e desconstrutivismo pós-moderno. Latour apresenta uma compreensão atrelada à
uma antropologia da sociedade moderna, valendo-se como referência do método etnográfico,
em que se estuda “sem crises e sem crítica o tecido inteiriço das naturezas-culturas” em se
tratando de povos tradicionais (liga-se política, divindades, práticas alimentares,
conhecimentos, seres-vivos etc. na composição social). Por sua vez, a antropologia mantém-
se centrada na cultura, mantém a divisão, a assimetria, neste sentido precisa ser “repensada”.
107
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 9
108
Id. Ibid. p. 11
139
Para o autor, se é possível fazer uma antropologia da sociedade moderna, é preciso alterar a
definição de mundo moderno, assim como a prática da própria antropologia.
Um ponto de partida no seu pensamento desloca o olhar para compreender como o
tecido social moderno é formado por “seres híbridos”. Ou seja, a sociedade moderna mobiliza
e recruta uma diversidade de seres e forças de diversas ordens na sua constituição que não
podem ser pensadas nem mais como “naturais” e nem mais como “culturais” puramente. A
interação, dependência e utilização do que se compreende como natureza é ampliada
incomensuravelmente na sociedade moderna em que o trabalho de “purificação” – que vai
dividir o social do natural – não dá mais conta de fazê-lo, a partir da proliferação dos híbridos
(utilizar um objeto de alumínio nos liga às comunidades quilombolas, aos acionistas
multinacionais da mineradora, às decisões governamentais, às estratégias industriais, às
políticas de conservação, às copaibeiras, castanheiras, tartarugas-da-amazônia etc.) . O
paradoxo entendido por Latour é que, quanto mais os híbridos são proibidos na constituição
moderna, mais eles se inserem, mais eles estão presentes (e na realidade sempre estiveram
presentes compondo o social, por mais que negligenciados). Em sua hipótese a palavra
“moderno” designa dois conjuntos de práticas distintas cuja eficiência depende de mantê-las
separadas uma da outra:
O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, mistura entre
gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura.
O segundo cria por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente
distintas, a dos humanos de um lado, e a dos não humanos de outro.
[...] O primeiro, por exemplo, conectaria em uma cadeia contínua a
química da alta atmosfera, as estratégias científicas e industriais, as
preocupações dos chefes de Estado, as angústias dos ecologistas; o
segundo estabeleceria uma partição entre um mundo natural que
sempre esteve aqui, uma sociedade com interesses e questões
previsíveis e estáveis, e um discurso independente tanto da referência
quanto da sociedade.
109
[...] Quando se toma a decisão de estudar um laboratório, colocando entre parênteses ao mesmo tempo nossas
crenças sobre a ciência e nossas crenças sobre a sociedade, só estamos prolongando o programa formulado por
David Bloor (1976, trad. franc.1982) [...] a ideia original de Bloor era encorajar os historiadores e sociólogos que
140
ainda hesitavam de passar de uma história e uma sociologia dos cientistas para uma história e uma sociologia das
ciências. Bloor chamava de “programa fraco” a ideia de que era suficiente cercar a “dimensão cognitiva” das
ciências com uns poucos “fatores sociais” para ter o direito de ser chamado de historiador e sociólogo. O
“programa forte” exigia, ao contrário, que se investisse na fortaleza, no núcleo, no santo dos santos, no conteúdo
– pouco importa qual seja a metáfora. Segundo ele, nem um estudo merecia levar o nome de sociologia ou
história das ciências se não levasse em conta tanto o contexto social quanto o conteúdo científico, e isso também
nas ciências teóricas como a matemática (Bloor, 1976).
[...] A doutrina de Bloor é límpida mesmo quando exige basicamente o abandono de toda filosofia da ciência: ou
as explicações sociais, econômicas são usadas para explicar porque um cientista enganou-se, e então elas não
tem valor, ou devem ser empregadas simetricamente, de modo a explicar porque esse cientista errou e aquele
outro acertou. Fazer sociologia para compreender por que os franceses acreditam na astrologia, mas não pra
compreender por que eles acreditam na astronomia, isso é assimétrico. Fazer sociologia para entender o medo
que os franceses tem do átomo, mas não faze-lo para a descoberta do átomo pelos físicos nucleares, isso é
assimétrico (Latour, 1985). Ou bem é possível fazer uma antropologia do verdadeiro, assim como do falso, do
científico, como do pré-científico, do central, como do periférico, do presente, como do passado, ou então é
absolutamente inútil dedicar-se à antropologia, que nunca passaria de um meio perverso de desprezar os
vencidos, dando a impressão de respeitá-los, como o mui ilustre O pensamento selvagem, de Levi-Strauss
(1962). LATUOR, Bruno. WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: A produção dos fatos científicos. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1997. pp. 22, 23.
110
A expressão Caixa-preta é utilizada na cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se
revela complexo demais. Em seu lugar é desenhado uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber
nada, senão o que nela entra e o que dela sai. LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e
engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000. p. 14
141
cidadãos etc.). Um simples artigo científico emprega diversas “mãos” em sua construção, não
importa se possui um único autor, apresentará aliados que agregam e reafirmam os
argumentos, é uma construção coletiva (basta ver suas referências e os
conhecimentos/descobertas que se somam). Se possuirmos maior adesão ao nosso “suposto
enunciado”, mais ele for citado, utilizado, incorporado e fortalecido em diversos contextos,
quanto mais ele suportar os ataques de seus adversários, refutações e tentativas de torna-lo
mero “artefato”, mais se consolidará, mais se tornará fato.
O destino de um projeto depende das alianças que ele permite e dos
interesses que mobiliza, por isso que nenhum critério, nenhum
algoritmo pode proporcionar um sucesso a priori. Ao invés de
decisões racionais, devemos falar da agregação de interesses que são
ou não capazes de produzir. Inovação é a arte do interesse para um
número crescente de aliados que fazem você mais forte111
O fato representa uma “estabilidade” e não a natureza em si. “[...] devemos abster-nos
de invocar a realidade exterior ou o caráter operacional que a ciência produz para explicar a
estabilização dos fatos, porque esta estabilidade e esta operacionalidade são consequência, e
não a causa da atividade científica”112. Seguindo o nosso exemplo, por sua vez, de um lado,
devemos considerar a necessária expansão de nosso suposto enunciado para que ele não se
estagne no tempo e no espaço (se transforme apenas em sonho/fantasia de um cientista), do
outro devemos considerar aqui um controle necessário para que ele não se altere
substancialmente, se desconfigure na medida que vai formando suas conexões. Nesse sentido
duas ações concomitantes são imprescindíveis: alistar as outras pessoas/interesses e tornar
previsíveis suas ações (controlar o comportamento delas). Para atingir esse sucesso é
necessário operar um processo de tradução ou translação de interesses:
Além de seu significado linguístico de tradução (transposição de uma
língua para outra), também tem um significado geométrico
(transposição de um lugar para outro). Transladar interesses significa,
ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e
canalizar as pessoas para direções diferentes. [...] Os resultados de tais
translações são um movimento lento de um lugar para outro. A
principal vantagem dessa mobilização lenta é que problemas de
111
Akrich, M., Callon, M. et Latour, B., 1988, A quoi tient le succès des innovations? 1 : L’art de
l’intéressement, Gérer et comprendre, Annales des Mines, 11, pp.4-17. 1988. p. 17. Disponível em:
http://halshs.archives-‐ouvertes.fr/docs/00/08/17/41/PDF/SuccesInnovation.pdf, Acesso em 12/04/2013. No
original: Que le sort d'un projet dépende des alliances qu'il permet et des intérêts qu'il mobilise, explique
pourquoi aucun critère, aucun algorithme ne permettent d'assurer a priori le succès. Plutôt que de rationalité des
décisions, il faut parler de l'agrégation d'intérêts qu'elles sont ou non capables de produire. L'innovation c'est l'art
d'intéresser un nombre croissant d'alliés qui vous rendent de plus en plus fort.
112
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000 p. 203 - Foi devido a estabilização do “enunciado” que ele se tornou “fato” e não por ter se revelado fato
que se estabilizou.
142
Desta forma, uma grande expansão da rede exigirá sempre uma maior heterogeneidade
da mesma (empresas, políticos, militares, consumidores, matéria-prima, equipamentos,
máquinas etc.) e centros mais dominadores e mais formalistas para se “manterem coesos e
conservar seu império”. A tecnociência só funciona eficazmente fora do “laboratório”, i. e.,
suas previsões podem ser confirmadas, até aonde estende suas redes: “fatos e máquinas são
como trens, eletricidade, bytes ou legumes congelados: podem ir para qualquer lugar desde
que a trilha por eles percorrida não seja interrompida de modo algum”116, e não por inércia
própria, por dizer o que é o real/natureza.
Pensar a tecnociência é pensar um “empreendimento demiúrgico” que se estende na
medida que alicia interesses múltiplos e que ao mesmo tempo é rara e frágil, totalmente
dependente das conexões que estabelece, e que só pode ser percebida na presença do
que/quem se alia a ela (se não reproduziremos o mito de que ela representa a natureza). É a
mais forte Política que se vale da condição de apolítica/isenta/neutra, operando como
demiurgo trabalhador da construção do mundo material e intelectual. Se quisermos saber qual
o seu poder, basta-nos olhar para o lado e perceber os “objetos” que nos cercam e do que são
compostos (e que estão atrelados a nossa existência como tal); se quisermos saber sua
fragilidade, basta olhar para como tudo isso está concentrado em centros, ao mesmo tempo
diluído em pontos, em laços “vitais”. Daí vem o seu poder, ter as características de uma rede,
ter seus recursos concentrados em poucos locais (nos centros, laçadas e nós), interligados
como fios/malhas que realizam conexões que se estendem por toda parte.
É devido à burocracia que as redes avançam mais – pela administração, pelo
gerenciamento – estão em operações financeiras, subvenções, aparatos legais, envolvem
115
Id. Ibid. p. 399
116
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 407
144
Para chegar aos seus preceitos Latour acompanha os cientistas nas produções de seus
“fatos”, no interior do laboratório, no cotidiano, nas relações em que um chefe de pesquisa
estabelece com empresas, políticos e outros cientistas para conseguir recursos, equipamentos,
instrumentos, status etc. Foca na relação e no trabalho da equipe técnica e de pesquisadores de
segundo escalão que não aparecem com seus nomes nos feitos, foca nos instrumentos
utilizados, no material manipulado, nas bactérias no meio de cultura etc. Chega a conclusão
de que a ciência é uma construção sociológica. Ela não se caracteriza pela objetividade,
racionalidade ou pela veracidade de suas descobertas119 e sim pela rede que compõe. Mas,
conforme dito, a sociedade também está entre parênteses (em suspeição), assim como a ideia
de natureza.
117
id. Ibid. p. 417
118
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 417
119
É importante frisar que Latour não está questionando a eficiência e veracidade das descobertas científicas. O
autor diria: se quer testar se a gravidade de Newton é uma reles “construção social” se jogue do décimo quinto
andar de um prédio. A questão é que a ideia de “construção social” e mesmo do “social” é diferente do uso
habitual das ciências sociais. O fato de ser socialmente construído não quer dizer que é um artifício/subjetivo em
contraposição ao que é natural/objetivo. Como Thatcher, Latour vai dizer que “não existe essa tal de sociedade”,
mas por razões completamente diferentes, por entender que sociedade diz respeito a “associação”, mas estas
associações não se limitam à humanos, longe disso, são heterogêneas. Ao contrário dos sociólogos da sociedade
(em contraposição aos sociólogos das associações) a sociedade não pode ser explicada por si mesma, auto-
referenciada, como na tradição positivista. E isso serve da mesma forma e pelas mesmas razões para as ciências
da natureza e para epistemologia.
145
O primeiro princípio de simetria não mais divide a ideologia da ciência, uma vez que
coloca a “natureza entre parênteses”, o peso das explicações agora é sustentado no polo
sociedade (construtivista para a natureza, realista para a sociedade). Por sua vez, esse
princípio mantém uma assimetria. Se as práticas modernas revelam que natureza e sociedade
são imanentes, a partir do trabalho de “mediação/tradução” a tecnociência transforma os
elementos da “natureza” em seres híbridos de um lado, do outro o trabalho de “purificação”,
faz sociedade e natureza transcendentes, separando os humanos dos não-humanos. Ou seja,
após essa clivagem o que estava unido se separa em sujeitos e objetos, deduz-se, sem muita
dificuldade, que a ideia de sociedade também é uma construção. Se formos construtivistas
para um devemos sê-lo para o outro, se formos realistas para um devemos sê-lo para o outro
também. Neste sentido é necessário um segundo princípio de simetria: o princípio de simetria
generalizada.
Quando se diz que “a ciência é uma construção sociológica”, não se refere a sociedade
dos sociólogos (que pode ser explicada por si mesma), mas a uma sócio-lógica, que é
construída por associações heterogêneas que envolvem tanto humanos quanto não-humanos.
A principal dificuldade ao se mapear o sistema de associações
heterogêneas está em não fazer nenhuma suposição adicional sobre
sua realidade. [...] Uma metáfora ajudaria a dar ao observador
liberdade suficiente para mapear as associações sem distorcê-las
classificando-as em “boas” ou “más”: a sócio-lógica é muito
semelhante aos mapas rodoviários; todos os caminhos vão a algum
lugar, sejam eles trilhas estradas vicinais, rodovias ou autopistas, mas
nem todos vão para o mesmo lugar, suportam o mesmo tráfego,
custam o mesmo preço de abertura e manutenção. Dizer que uma
afirmação é “absurda” ou um conhecimento é “acurado” não tem mais
sentido do que chamar de “ilógica” uma trilha de contrabandistas e
“lógica” uma autopista. As únicas coisas que queremos saber sobre
essas vias sócio-lógicas é onde elas levam, quantas pessoas as
percorrem com que tipo de veículo, e que facilidades oferecem para a
viagem; e não se estão certas ou erradas.120
O princípio de simetria generalizada é uma “posição” que permite olhar tanto para o
trabalho de mediação/tradução quanto para o de purificação simultaneamente, olhar ao
mesmo tempo como se dá a atribuição de propriedades não-humanas e de propriedades
humanas aos seres existentes. Esse ponto mediano possibilita explicar natureza e sociedade
conjuntamente, partindo dos quase-sujeitos e dos quase-objetos de Michel Serres (híbridos de
natureza e cultura). Essa é a grande ruptura com a visão moderna uma vez que essa
120
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 336
146
constituição que divide humanos e não-humanos (sociedade e natureza) nunca existiu de fato,
a proliferação dos híbridos (embriões congelados, aquecimento global, organismos
geneticamente modificados, áreas protegidas etc.) revelou isso, mas os híbridos sempre
existiram (em todas as “culturas”) e nunca foram assumidos enquanto tal, por isso “jamais
fomos modernos”.
O grande questionamento que ampara as alegações de Latour partem da própria
antropologia, impedida de estudar o ocidente enquanto uma cultura como as demais. Por que
o Ocidente e somente ele não é apenas uma cultura como as demais? Essa percepção é o que
deve ser rompido na perspectiva do autor. A resposta se liga à própria Grande Divisão entre
humanos e não-humanos. Enquanto o ocidente faz uma distinção plena entre natureza e
cultura, a natureza é externa à sociedade e revelada/mobilizada pela ciência, nas outras
sociedades tem-se apenas representações simbólicas da natureza, projeções de categorias
sociais sobre a mesma.
A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão
exterior: apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza
e a cultura, entre a ciência e a sociedade, enquanto todos os outros
sejam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem
separar de fato aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é
signo do que é coisa, o que vem da natureza como ela realmente é
daquilo que suas culturas requerem. Não importa o que eles fizerem,
por mais adaptados, regrados e funcionais que possam ser,
permanecerão eternamente cegos por esta confusão, prisioneiros tanto
do social quanto da linguagem. Não importa o que nós façamos, por
mais criminosos e imperialistas que sejamos, escapamos da prisão do
social e da linguagem e temos acesso às próprias coisas através de
uma porta de saída providencial, a do conhecimento científico. A
partição anterior dos não-humanos define uma segunda partição, desta
vez externa, através da qual os modernos são separados dos pré-
modernos. Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as
coisas são quase coextensivos. Na nossa sociedade ninguém deve
poder misturar as preocupações sociais e o acesso às coisas em si.121
I. Relativismo absoluto – culturas sem hierarquia e sem contato, todas incomensuráveis e com
a natureza fora do jogo, totalmente à parte; II. Relativismo Cultural – A natureza está
presente, mas do lado de fora das culturas, sendo que todas possuem um ponto de vista mais
ou menos preciso sobre essa; III. Universalismo particular – uma das culturas (a ocidental),
possui um acesso privilegiado à natureza que a separa das outras.
Na percepção da antropologia simétrica, todos os coletivos (termo utilizado para se
diferenciar da sociedade dos sociólogos – homens-entre-si – e dos epistemólogos – coisas em
si) constituem naturezas e culturas, o que as distingue é a dimensão da mobilização da
natureza na constituição. Ou seja, o tamanho dessa mobilização, quantos elementos exteriores
passam a compor o interior, quais pontos serão atados/interligados. O que vai compor o
“social” e o que vai ser “externo” a ele.
A solução surge ao mesmo tempo em que o artefato das culturas se
dissolve. Todas as naturezas culturas são similares por construírem ao
mesmo tempo os seres humanos, divinos e não humanos. Nenhuma
delas vive num mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente
impostos a uma natureza exterior que apenas nós conhecemos.
Nenhuma delas e sobretudo não a nossa, vive em um mundo de
coisas. Todas distribuem aquilo que receberá uma carga de símbolos e
aquilo que não receberá (Claiverie, 1990). Se existe uma coisa que
todos fazemos da mesma forma é construir ao mesmo tempo nossos
coletivos humanos e não-humanos que os cercam. Alguns mobilizam
para construir seus coletivos ancestrais, leões, estrelas fixas e o sangue
coagulado dos sacrifícios; para construir os nossos, nós mobilizamos a
genética, a zoologia, a cosmologia e a hematologia.122
122
Id. Ibid. p. 104
148
deve ser mais do que uma “causalidade natural” também, deve-se identificar efetivamente um
papel ativo da associação do não-humano em questão; II. A direção que a explicação irá
tomar – o social não pode ser mantido “estável” quando da descrição de uma associação
(continuará sendo apenas social pelo social), nenhuma “força social oculta” deve direcionar a
explicação ou ser mantida nela (tudo deve poder ser demonstrado); III. Qual o objetivo do
estudo: se é, de um lado, dispersar/desconstruir o social ou, de outro, remonta-lo, buscar as
associações – a TAR não deve ser concebida como o desconstrutivismo pós-moderno e nem
como uma simples crítica das “Grandes Narrativas” – eurocêntricas ou hegemônicas – seu
foco é “verificar quais são as novas instituições, procedimentos e conceitos capazes de coletar
e reconectar o social”124.
O que a TAR busca, conforme dito, é modificar todo o repertório da crítica
abandonando simultaneamente o uso da natureza e o uso da sociedade. Sair do tríplice
repertório que só opera em separado: naturalização, socialização e desconstrução. A
sociologia do social busca – em oposição a sociologia das associações da TAR ou sua
“associologia” – por trás dos fenômenos sociais, as “forças sociais” que os revelam
(fetichismo, mercado, estrutura, simbolismo etc.), que, por sua vez, são forças
“transcendentais” no sentido de não possuírem uma conexão material com o fenômeno
descrito. A proposta da TAR seria exatamente eliminar esse “vento de éter” e, desvelando as
múltiplas e heterogêneas conexões que perfazem um fenômeno social, dar-lhe materialidade e
empiria tão rigorosa quanto qualquer ciência natural e seus laboratórios. Parte de uma recusa
peremptória de se construir o objeto como um sistema invisível de relações que
sobredeterminam e explicam a ação. Conforme Latour:
Se eles [os sociólogos convencionais] literalmente não substituem
algum fenômeno por uma força social, o que as explicações sociais
querem dizer quando dizem que há alguma força "por trás das
aparências ilusórias", que constitui a 'coisa real', de que deuses, artes,
direito, mercados, psicologia e crenças são "realmente" feitas? O que é
uma entidade que desempenha o papel principal sem fazer nada? Que
tipo de ausência/presença é essa? Para mim, isso parece ainda mais
misterioso do que o dogma da Santíssima Trindade, e eu não fico
tranquilo enquanto é esse o mistério que é suposto para explicar toda a
religião, direito, arte, política, economia, impérios, ou simplesmente
tudo, incluindo a Santíssima Trindade! 125
124
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 11
125
Id. Ibid. p. 103. No original:
If they don’t literally replace some phenomenon by some social force, what do
social explainers mean when they say that there is some force ‘behind the illusory appearances’ that constitutes
the ‘real stuff’ out of which gods, arts, law, markets, psychology, and beliefs are ‘really’ made? What is an entity
that plays the main part without doing anything? What sort of absence/presence is this? To me, this looks even
150
Sob este preceito é o social que deve ser explicado e não dar uma explicação prévia
por estar “atrás”, há nítidas inversões de causalidade. O que se busca são “traduções” entre
mediadores que podem gerar associações rastreáveis. O Termo tradução ganha peculiar
especificidade dentro da técnica como aquilo que induz aos mediadores a coexistência.
Por sua vez a noção de “rede” não se assemelha a ideia de uma superfície de
interconexões estáveis que simplesmente fluem informações – algo como em cibernética ou a
World Wide Web. A rede se define pelos seus agenciamentos internos e não pelos seus limites
externos. Assim como a noção de rizoma de Deleuze e Guattari, as redes são como linhas que
formam agenciamentos em todos os lados e direções. São abertas e operam em uma
multiplicidade, com circulações, fluxos e conexões que transformam, criam mudanças e
formam nós (a parte que se constitui/cristaliza). A rede não é um objeto a ser descrito neste
sentido, ela não está “parada”, mas no movimento que é dado pelos atores, que estão sempre
agindo, deixando traços, “construindo o mundo sócio-lógico”.
Ator-rede define a co-existência de ambos em uma circulação de mútua construção e
simultaneidade. Dois lados de uma moeda, micro e macro, global e local. Entretanto a rede
não se reduz a um ator, pois perfaz um conjunto heterogêneo de vários atores, animados e
inanimados, agenciados, mas que pode se desintegrar, mudar os componentes, as alianças, se
redefinir.
O ator é um “alvo em movimento”, pode ser representado por um vasto conjunto de
entidades, não apenas humanos, mas animais, máquinas, objetos etc. Nesse sentido, por
comportar também os não-humanos, recebe também o nome de actante. Qualquer coisa que
está produzindo efeito no mundo e pode ser “lido” pelos traços que deixa, que se define pelo
que faz, pelo seu desempenho, é um actante. Atua em razão de muitos outros e representa a
fonte de incerteza sobre a origem da ação. A ação é sentida como um nó, um laço, “um
conglomerado de vários conjuntos de agenciamentos a serem lentamente desembaraçados”.
O envolvimento dos não-humanos não significa uma afirmação vazia de que os
objetos fazem as coisas acontecerem no lugar dos humanos. Mas uma forma de explorar tudo
que participa da ação e que o analista deve estar preparado para olhar, pois é a única forma
concreta de explicar a durabilidade e a extensão das interações sociais.
Se sociólogos tivessem o privilégio de observar com mais cuidado os
babuínos e reparar sua "estrutura social" constantemente em
more mysterious than the dogma of the Holy Trinity, and I am not reassured when it is this mystery that is
supposed to explain the whole of religion, law, art, politics, economics, empires, or just plain everything—
including the Holy Trinity!
151
“coisas”, mesmo que elas sejam mudas, há sempre quem as represente (Pasteur representa as
bactérias, Bourdieu os dominados, Einstein a relatividade, um líder sindical os sindicalizados,
um entomólogo os insetos etc.). Mesmo os que falam (humanos), quando não conseguem
falar todos ao mesmo tempo, elegem seus representantes. Em todos os casos os porta-vozes e
os representantes podem trair: um cientista pode estar completamente equivocado ao
pronunciar as qualidades de seu objeto de pesquisa, um político pode estar representando seus
próprios interesses ou interesses de outros que não os que o elegeram, assim por diante.
Assim, a rede é uma expressão para verificar a quantidade de energia,
movimento e especificidade que os nossos próprios relatórios são
capazes de captar. Rede é um conceito, não é uma coisa lá fora. É uma
ferramenta para ajudar a descrever algo, não o que está sendo descrito.
Ele tem a mesma relação com o assunto em questão como uma grade
de perspectiva tem para uma pintura em perspectiva, único ponto
tradicional: desenhadas pela primeira vez, as linhas podem permitir
projetar um objeto tridimensional em um pedaço de linho, mas elas
não são o que vai ser pintado, só o que possibilita ao pintor dar a
impressão de profundidade antes de serem apagadas. Da mesma
maneira, uma rede não é o que é representado no texto, mas o que
prepara o texto para levar a retransmissão de agentes como
mediadores. A consequência é que você pode dar conta com o ator-
rede de temas que em nada têm a forma de uma rede: de uma sinfonia,
uma peça de legislação, uma pedra da lua, uma gravura. Por outro
lado, você pode muito bem escrever sobre as redes técnicas: televisão,
e-mails, satélites, força de vendas - sem qualquer ponto explicado pela
teoria ator-rede.127.
A TAR é uma técnica, um instrumento de descrição da sócio-realidade que ressuscita
a heterogeneidade do socius, perdida com a purificação moderna e convenientemente
percebida somente em sua dimensão humana. As consequências de sua aplicação é a
descrição sistemática, minuciosa, fria e apolítica, na identificação ponto-a-ponto, dos
agenciamentos que formam o coletivo em expansão. Apenas o que é fisicamente rastreável e
empiricamente demonstrável pode ser levado em consideração. Mas vai além, ela vai dar voz
aos objetos mudos, aos humanos, animais, vegetais e todos os outros seres que vão compor o
127
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 131. No original:
So, network is an expression to check how much energy, movement, and specificity
our own reports are able to capture. Network is a concept, not a thing out there. It is a tool to help describe
something, not what is being described. It has the same relationship with the topic at hand as a perspective grid
to a traditional single point perspective painting: drawn first, the lines might allow one to project a three-
dimensional object onto a flat piece of linen; but they are not what is to be painted, only what has allowed the
painter to give the impression of depth before they are erased. In the same way, a network is not what is
represented in the text, but what readies the text to take the relay of actors as mediators. The consequence is that
you can provide an actor-network account of topics which have in no way the shape of a network—a symphony,
a piece of legislation, a rock from the moon, an engraving. Conversely, you may well write about technical net-
works—television, e-mails, satellites, salesforce—without at any point providing an actor-network account.
153
coletivo. Nesse sentido guarda uma peculiar filosofia política: a democracia das coisas.
Perspectiva esta, que muito tem a ver com o que compreendemos como questão ambiental.
sobre o mundo, compreendido como natural, regido pela estrita causalidade, e apartado do
social, humanamente construído.
A tradição cultural do ocidente sempre compreendeu o humano em uma posição
diferenciada em relação a tudo mais que existe. Da herança hebraica à greco-romana, da
formação da moral judaico-cristã, perpassando a baixa e alta idade-média, ao renascimento, a
disputa hierárquica de preeminência se alternou entre uma entidade criadora superior e o
próprio humano, relegando tudo mais a um plano inferior e segregado. Ainda que
evocássemos a dualidade da apreensão e compreensão do mundo que flutuou entre o exterior
e o interior, entre o que se apresenta externamente no mundo e o que se compreende
internamente no humano, entre a natureza suja e imperfeita à natureza magnífica, reveladora
de Deus, toda matéria é percebida pelo humano para servi-lo e controlada por autoridades
inquestionáveis/irresistíveis. No florescer da modernidade as dicotomias ganham contornos
mais nítidos: racional-irracional, mente-corpo, matéria-energia, sociedade-natureza, emoção-
razão, sujeito-objeto. Com o despertar do novo guia do saber humano revelador das novas
verdades, a Ciência moderna, a capacidade de modificar o ambiente aumentou
exponencialmente, assim como a capacidade de domesticar o mundo material - e subjugar
quase tudo que se pode manipular, reduzir, experimentar, classificar, ordenar, sistematizar etc.
- ao interesse humano (ao menos de certo número de humanos) se consolida. Conforme
empreendido anteriormente, “jamais fomos modernos”, é difícil dimensionar a ilusão, mas
importante reconhecer seus feitos formidáveis.
Essa visão de controle sobre o natural e o mesmo natural dissociado do social,
também, de certa forma, compõe o debate dos ambientalistas (amplamente considerados) em
suas reivindicações – uma herança explícita. Quando acusam o modelo de sociedade (sistema
social) de ser predatório, desarmônico com o ambiente/natureza, ou recriam um humano
desintegrado da “natureza”, não-natural, patológico, cancerígeno, viral, ou que, a partir de seu
desenvolvimento econômico, sua superpopulação, ameaça a vida do planeta, compromete-se a
estabilidade dos ecossistemas, fortalece-se a imagem de uma natureza idílica, enquanto, no
plano fático de uma ecologia política a ser construída, percebe-se uma conotação muito
restrita dessa natureza, pois não inclui o humano como sua manifestação, ao mesmo tempo
reafirmando sê-lo algo que foi de alguma forma separado, que precisa se reencontrar e que
detém as ferramentas para tanto. Parte-se de uma estrutura de valoração que define certo-
errado, bem-mal, racional-irracional como coisas alheias a uma concepção mais ampla e
complexa de natureza. Uma questão se perfaz: como integrar sociedade e natureza partindo de
155
sua dissociação? Ou melhor, seria necessário uma “humanização” da natureza para que a
mesma pudesse ser incorporada/valorada na vida política? Ou uma naturalização do humano?
Não obstante as múltiplas conotações de natureza e as múltiplas soluções empreitadas
para dirimir a ideia de crise ambiental, a proposta “ousada” por Bruno Latour, em sua obra
“Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia”, estabelece um campo conceitual
diferenciado para a ecologia política ao escancarar suas limitações, e, ao mesmo tempo,
propõe-se uma nova constituição político-social, sob bases de sua epistemologia reformadora
que integraria sociedade e natureza, humanos e não-humanos, em um mesmo patamar político
que dissolve tanto a ideia de natureza quanto a de sociedade. Conforme dito, não existe
natureza e nem cultura, mas naturezas-culturas.
129
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.
130
Latour estabelece uma distinção entre ciências (no plural e em minúsculo) da Ciência (singular e em
maiúsculo) em que, a primeira se aproxima dos múltiplos saberes humanamente construídos e temporalmente
alterados; a segunda é a “politização das ciências pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via política
ordinária, fazendo pesar sobre ela a ameaça de uma natureza indiscutível”, algo como uma poderosa instituição
que dita as verdades do mundo. p.26
156
serem as sombras dos objetos que se projetam sobre as paredes dentro da caverna. Somente
aquele que consegue transcender para um conhecimento racional, organizado e sistemático,
ou seja, se libertar da caverna, atinge a real verdade do mundo (a essência/natureza das
coisas) – esse representaria o papel do filósofo, que se distingue dos demais.
Para explicar a concepção ocidental de vida pública utilizando-se dessa alegoria,
Latour substitui o filósofo pela autoridade científica, posta como capaz de apreender as
verdades objetivas do mundo, a “natureza” das coisas, e trazer luzes a ordem social obscura.
Entretanto, na alegoria de Platão, o detentor do verdadeiro conhecimento, o filósofo (o que se
liberta da caverna), ao retornar para iluminar os demais com a verdade, é acusado de deturpar
a ordem que vige e punido por isso. Hoje, na percepção de Latour, o cientista goza de uma
ampla via de acesso ao “mundo social obscuro do subjetivismo” e pode apresentar “as coisas
tais com elas são”, distinguindo-as das representações (subjetivas) que se fazem delas. Isso
operaria na vida política como uma forma de encerrar todo tipo de embate social: a Ciência
seria a autoridade que valida os discursos, legisla objetivamente e julga, por estar acima e em
outro plano, de toda a política humana. Ao contrário do destino do filósofo de Platão no mito
da caverna, que é morto pela ordem social, o sábio contemporâneo (o cientista, o pesquisador,
as instituições científicas etc.) vai ditar a ordem social.
Nesta relação, a Ciência engloba concomitantemente “saberes, política e natureza”, e
se apresenta como um liame entre dois mundos: o da realidade (a natureza) e o das
construções sociais (as crenças humanas sobre a natureza). Nessa “dupla ruptura”, que
remonta ao mito da caverna, entre o verdadeiro conhecimento (a realidade da natureza) e o
conhecimento vulgar (concernente a vida político-social), transitam os expertos, capazes de,
ao passar de um mundo para o outro, levar a luz para a política e dar fim aos embates com sua
voz de autoridade. Esse poder da Ciência, que remonta ao da Igreja medieval, segundo
Latour, é que faz da natureza um fator de imobilização do discurso público e neutraliza a
democracia.
O resultado dessa “dupla ruptura”, segundo Latour, organiza a vida pública em duas
câmaras: de um lado a sociedade humana, orientada por suas ficções, submergida em sua
própria ignorância, mas capaz de falar; de outro o mundo não-humano alheio às disputas e
ficções humanas, compostas dos objetos reais, o que define o que existe, mas que é muda.
Entre ambas, existem aqueles que podem transitar de uma para outra (os expertos) que
possuem o poder de fala e a autoridade capaz de pôr ordem na assembleia dos humanos uma
vez que podem “fazer o mundo mudo falar, dizer a verdade sem ser discutida, pôr fim aos
157
debates intermináveis por uma forma indiscutível de autoridade, que se limitaria as próprias
coisas”131.
Objetar-se contra tal autoridade é o mesmo que macular a confiabilidade da Ciência
em descrever os fenômenos do mundo, “confundindo questões cognitivas com questões
políticas”, lançando mão de um relativismo que será taxado de sofisma. Nesse sentido, para o
sucesso dessa constituição social bicameral, é necessário apartar Ciência do corpo social,
mantê-la intocada, pois uma vez tocada em sua credulidade, enquanto não detentora/tradutora
da realidade (natureza), mas mero representante de mais um poder social, o “truque” perderia
o efeito e a “natureza” não mais poderia ser evocada para silenciar a discussão pública. Para
Latour, a melhor forma de sair da caverna é não entrando nela, não cortando as inúmeras
relações que estabelecemos com a realidade e com as ciências, para aceitar uma autoridade
externa como iluminação, possível somente à instituição Ciência. Ou seja, entender que a
Ciência é tudo, menos neutra.
Com efeito, sabemos que, depois de Popper, Habermas, Khun, Morin entre outros
(groso modo), a Ciência, suas teorias e autoridade, não pode ser mais vista como espelho do
real, dissociada de uma construção social político-ideológica, mesmo às ciências mais duras,
que ditariam as leis da natureza, no máximo apresentam “verdades temporais”, cujos mesmos
fenômenos que descrevem serão explicados/concebidos de outra forma na medida em que as
teorias avançam e os paradigmas se modificam.
Para Popper um conhecimento para ser científico deve poder ser falseado, ou seja,
contradito, ter como ser provado em contrário. Neste sentido qualquer conhecimento
científico não representa o “real” em absoluto, senão uma verdade temporária, durável até
quando provada falsa. Apreende de forma heurística em seu falsificasionismo o jogo da
“verdade e erro” da ciência. “Penso que nos devemos habituar à ideia de que a ciência não
pode ser vista como um “corpo de conhecimentos”, mas sim como um sistema de hipóteses,
ou seja, um sistema de conjecturas ou antecipações que não admite, em princípio,
justificação, com o qual, entretanto, operamos enquanto puder sobrepujar os testes a que for
submetido – um sistema de hipóteses que não estamos em condições de declarar
‘verdadeiras’, ou ‘mais ou menos certas’ ou mesmo ‘prováveis’. 132
Para Habermas, não obstante a pretensão de certeza e imparcialidade inerente ao
conhecimento científico e tecnocrático, onde as tensões entre objetivismo e subjetivismo são
131
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.Id. Ibid. p. 34
132
POPPER, Karl. A Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. p.349
158
escancaradas, esta “consciência” não está isenta de sua historicidade. A ciência e a técnica
correspondem a uma ideologia cujo núcleo “é a eliminação da diferença entre a práxis e
téchne” representada por uma política de dominação contextualizada temporalmente na
perspectiva da sociedade industrial. 133
Para Kuhn a ciência normal se sustenta por paradigmas que são “o conjunto das
crenças, dos valores reconhecidos e das técnicas comuns aos membros de um determinado
grupo”. Ou seja, certa comunidade científica opera na sofisticação/aprofundamento dos
“paradigmas” que lhes proporciona todo um direcionamento da análise de um dado
fenômeno, cuja leitura é possível pelo paradigma, incorporando desde teorias, procedimentos,
técnicas, métodos, instrumentos, valores entre outras coisas, que vão se somando até o
momento em que o mesmo entra em colapso, não mais possibilitando a leitura do fenômeno
ou das controvérsias que surgem em torno das explicações. Neste momento surgem as crises
que podem repercutir na complete substituição do paradigma dando outra inteligibilidade ao
fenômeno e iniciando-se um novo processo que o autor compara às revoluções políticas,
enquanto mudanças na visão de mundo que se estabelecem pela adesão da comunidade
científica à nova visão. Por essa perspectiva a ciência normal não busca descobertas, lê apenas
o que pode ser lido pelo paradigma. As descobertas decorrem das crises, dos erros ou das
insuficiências do paragisma em explicar o fenômeno. 134
Na perspectiva epistemológica de Morin, que em vários momentos perfaz interseções
com pontos do pensamento de Latour e vice-versa, há uma ampliação da concepção de
paradigma de Kuhn, somando a noção de “mindscape” de Maruyama e de “epistême” de
Foucault, expandindo-a para todo o sistema cultural e noológico. Num paradigma está contido
“para todos os discursos realizados sobre seu domínio” as categorias-mestras de
inteligibilidade do mundo. Dessa forma, aqueles indivíduos inscritos culturalmente em
determinados paradigmas vão agir, pensar e conhecer carregando elementos deste paradigma.
Morin critica o reducionismo moderno da ciência e ao mesmo tempo o holismo que a mesma
atinge posteriormente, em sua perspectiva de complexidade: a realidade é complexa e requer
uma dupla recursividade do todo e da parte para uma melhor aproximação da mesma. As
dicotomias evocadas que traspassam a história e avançam no tempo, modelando a forma de
experimentar o mundo das sociedades ocidentais, são reflexos de um grande paradigma
subterrâneo que as engloba, o “paradigma da disjunção”. Nessa direção, duas concepções
133
HABERMAS, Jurgen . Técnica e Ciência enquanto “Ideologia”. Os Pensadores. Trad. Zeljko lopari ́c e
Andréa M. A. C.Lopari ́c . 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 337
134
KUHN, Thomas Samuel .A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
159
135
MORIN, Edgar. As Idéias: habitat, Vida, Costumes, Organização .In: O Método 4. Trad. Juremir Machado
da Silva. 4o Ed. Porto Alegre: Sulinas, 2005. p. 260 – 261; MORIN, Edgar. Ciência com Consciência: Edição
revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo:
160
Bertrand Brasil, 2003. p. 329 -331; ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade:
Delimitação e análise de embates sociais no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação
(Mestrado em Sociologia e Direito) – PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
161
mito da caverna) e todas as aspirações modernas. Por sua vez, a prática da ecologia política
inovaria em seus reveses (quando as coisas aparentemente não dão certo ou saem do seu
controle), o que na percepção do autor, sempre ocorre.
Ao ver ampliar a incerteza das conexões entre os seres, ao ver os desarranjos surgidos
das situações imprevisíveis, ao fazer emergir objetos eivados de incomensuráveis riscos, a
ecologia tornaria impossível o uso de qualquer noção de “natureza”, concebida como algo
uno, delimitável e estável. Nesse sentido a prática da ecologia política se caracterizaria pela
“multiplicação dos vínculos de risco”, o que na prática perturbaria “o ordenamento das classes
de seres, multiplicando as conexões imprevistas e variando brutalmente sua respectiva
importância”136. A crise ecológica, nesse sentido, seria uma crise não da natureza, mas da
objetividade.
Para uma melhor compreensão, dois pontos precisam ser elucidados. Primeiro, o que é
o ideal e a prática da ecologia política; segundo, a substituição dos ditos objetos sem risco
(limpos) da modernidade, pelos vínculos de risco e os objetos desordenados apresentados pela
ecologia política.
No que diz respeito ao ideal e a prática da ecologia política, Latour desenvolve duas
listas em que, na primeira, expõe a realidade da ecologia política e na segunda, os benefícios
que se extraem dessa realidade (num primeiro momento percebido como fraquezas). Pretendo
apresentá-las, sem enfrentá-las, de forma conjunta e simplificada: a) a natureza a qual a
ecologia política se refere está sempre associada aos humanos e a outros seres de forma
complexa (incluindo aparelhos, instituições, consumidores, fauna, flora etc.), não se trata de
uma natureza una, mas distribuída em seus contornos e com agentes redistribuídos; b) ao
proteger a natureza e colocá-la ao abrigo do homem, ela possibilita um controle ainda mais
sofisticado e invasivo da natureza pelo próprio homem, em benefício do próprio homem e não
da natureza em si desumanizada, por outro lado, “suspende nossas certezas concernentes ao
soberano bem dos homens e das coisas, dos fins e dos meios”; c) ela não saberia o que é um
sistema ecológico-político, sustentando inúmeras contradições científicas o que míngua ainda
mais as certezas e lhe beneficia de uma outra política da ciência; d) não consegue estabelecer
uma hierarquia regrada por elos cibernéticos, mas uma heterarquia, com uma multidão de
dispositivos experimentais que não formam uma ciência certa; e) pretende falar do todo, mas
se pauta a lugares, situações, biotopos, situações particulares e pontuais em suas ações, não
podendo ordenar uma hierarquia única de ações; e f) pretende despontar como poder real na
136
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 56-57
162
vida política, mas exerce papel marginal e não compreende bem nem sua política e nem sua
ecologia, tendo seus propósitos diferentes de sua prática, que após compreendida, lhe
proporcionaria a maturidade política137.
Quanto ao segundo ponto, os vínculos de risco se caracterizam por produzir novos
objetos, desordenados, diferentes daqueles modernos, “limpos”, com “contornos nítidos,
propriedades reconhecidas e essência bem definida”, cujos “pesquisadores, engenheiros,
administradores, empresários e técnicos, que concebiam, produziam e colocavam esses
objetos no mercado, tornavam-se invisíveis uma vez terminado o objeto”. Objetos que saiam
de um mundo (da técnica, da Ciência, da natureza, da certeza) para outro (dos fatores sociais e
dimensões políticas), em que seus impactos não repercutiriam sobre sua definição primeira,
sobre seus autores/produtores, mas encerrar-se-iam nos seus usuários (sociedade). Com a
proliferação dos vínculos de risco é somado aos “objetos limpos”, seus riscos associados, as
consequências de seus impactos são agregadas aos seus produtores, idealizadores,
consumidores, não se distinguindo mais o mundo social ou político do mundo da objetividade
e da rentabilidade. As consequências incomensuráveis passam a fazer parte do objeto, assim
como seus produtores passam a ser expostos numa rede de entrelaçamentos que não distingue
mais um universo independente do outro138. Poderíamos dizer que o princípio da precaução e
a “teoria do risco” na responsabilidade civil objetiva caracterizam bem esta mudança.
Como na prática a ecologia política vai “perturbar ao ordenamento das classes de
seres, multiplicando as conexões imprevistas e variando brutalmente sua respectiva
importância”, torna impossível, diante de uma multiplicidade de entendimentos sobre o que
tem prevalência, o que conta e o que não conta, o que deve ser percebido conjuntamente e o
que deve ser separado, uma concepção única de natureza ou de ordem social. Algo como se
imaginássemos, dentro de uma dada atividade social, um imbróglio que conjugasse ao mesmo
tempo: uma rodovia, um sapo, seres humanos, uma relação comercial, um peixe, capital
financeiro, um valor cultural, uma paisagem etc. Ou, no nosso caso, empresas multinacionais,
técnicas de mineração, unidades de conservação, comunidades quilombolas, agentes
governamentais, tartarugas, castanheiras, copaibeiras, bauxita, ONGs etc. Com a prática da
ecologia política, em tese, dentro desse imbróglio, na realização da tal atividade social,
poderiam todos concorrer em uma ordenação de prevalência, consideração, relevância ou
preeminência, sem ter como, em uma esfera pública, estabelecer, a partir de uma concepção
137
Id. Ibidem. p. 45-48
138
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.Id. p 48-53
163
139
O termo laicizar é justificado em menção a qual a “naturalização” sempre foi utilizada para combater a
religião, através dos objetos modernos da Ciência, mas a mesma continua toda impregnada da religião que
combateu.
164
caverna, pois, não obstante as construções sociais sobre a natureza, a mesma continuaria suas
manifestações independente das percepções humanas e, se não há acesso à natureza, estamos
condenados a escuridão da caverna, nenhum conhecimento real poderia ser apreendido, não
precisaríamos de sábios e nem de ciências – mas os mesmos continuariam. Há a necessidade
de reconhecer a história humana construída, mas, além disso, a história não construída de tudo
que existe externamente que segue independentemente das construções e representações
sociais, buscando intercessões de modo a fundi-las. Para tanto seria necessário agregar a
história infinitamente longa da natureza – matéria, energia, evolução da vida, manifestações
do universo etc. – dentro do que se conhece por meio das várias disciplinas científicas –
astronomia, química, física, biologia etc. – datadas a partir da história das ciências, formando
uma história conjunta.“[...] já não falamos mais do todo da natureza, mas daquilo que se
produz, se constrói, se decide, se define, em uma cidade sábia sobre ecologia, quase tão
complexa como a do mundo em que ela produz o conhecimento”140.
Ainda que a história das ciências no esforço de tornar cognoscível a natureza não
escape da realidade das representações sociais, à medida que se aproxima de uma exatidão (o
eterno jogo da verdade e do erro das ciências), se aproxima também do que a natureza
realmente é, mantendo-se como representação social, opera sob as duas perspectivas e reúne
as duas assembleias: a dos humanos e a das coisas. Esquivando-se das “evidencias enganosas
das ciências do homem” (construtivismo social, estruturalismo etc.), pode-se apreender o
papel e a “presença múltipla” dos não-humanos (multiplicidade dos seres – naturezas), bem
como distinguir o “trabalho político” que os apresentava sob a forma de uma natureza única
que impunha sua autoridade muda.
A ruptura absoluta que separa a sociedade da natureza (assembleia dos humanos e
assembleia das coisas), cuja transcendência só é possível aos sábios que tornam
compreensível a realidade dos objetos à sociedade, através da figura da natureza una, objetiva
– criando uma autoridade inquestionável; é substituída por um “coletivo em via de
expansão”, em que as propriedades tanto dos humanos quanto dos não humanos não são
garantidas (vínculos de risco – objetos desordenados), reconhecendo os não-humanos como
parte indissociável do social, “recrutados, mobilizados, socializados, domesticados para
engrossar a demografia do coletivo”
Na nova conjuntura, os sábios e as ciências não são abandonados, ao contrário,
assumem o papel de conexão/representação com o mundo exterior, através da mediação das
140
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 70
165
disciplinas científicas que unem a história social e natural. Mas ao contrário do esquema da
caverna, não para impor “um recurso decisivo a uma transcendência indiscutível” para
solucionar os problemas político-sociais, e sim para funcionar como problematização,
complicação, “não resolvendo definitivamente nenhuma das questões essenciais do coletivo”.
Ao apelar para a realidade exterior não se aparta o mundo social e nem o faz calar, como no
coletivo em duas câmaras (sociedade versus natureza), mas convoca uma multiplicidade de
novos seres para uma vida em comum, em que todos são atores (actantes) que funcionam em
rede – estabelecem interferências, associações, conexões, fluxos, circulações, alianças etc.
Conforme visto, a proposta conduz a um afastamento concomitante da natureza e da
cultura enquanto conceitos separadamente fechados, isolados e independentes, em que, na
proposta de Latour, a ideia de coletivo abarca ambos, fundindo-os. Parte da natureza não em
direção ao humano, mas em direção a “multiplicidade das naturezas” (pluriverso) em que “o
social” ganha conotação de associação, coleção, englobando seres humanos e não-humanos,
possibilitando seu ajuntamento, sua unificação, coleta, a partir da prática da ecologia política.
Existe, pois, uma outra via além do idealismo para abandonar a
natureza, uma outra via além dos sujeitos para abandonar os objetos,
uma outra via além da dialética, para “ultrapassar” a suposta
contradição entre sujeito e objeto. Para dizê-lo de modo mais brutal
ainda, graças à ecologia política, a Ciência não sequestra mais a
realidade exterior para criar uma corte de apelação de última instância,
ameaçando a vida pública com uma promessa de salvação pior do que
o mal. Tudo aquilo que as ciências humanas haviam imaginado sobre
o mundo social, para construir suas disciplinas longe das ciências
naturais, foi ao inferno da Caverna que elas tomaram emprestado.
Intimidadas pela Ciência, elas aceitaram o mais cominatório dos
diktats: “Sim, reconhecêssemos bem prazerosamente, confessavam
elas em coro, mais falamos de construção social, mais nos
distanciamos, de fato, da verdadeira verdade”. Ora, era preciso recusar
o Diktat e se reaproximar, contra a ameaça da Ciência, da realidade
produzida pelas ciências, afim de poder colocar, a novos custos, a
questão da composição do mundo comum. 141
A questão que se perfaz é como se daria a nova constituição, uma vez que a mesma
dilui as categorias dos sujeitos e dos objetos em suas pretensões? Partindo da perspectiva de
uma conotação de política como “composição progressiva de um mundo comum” a ser
compartilhado; e desconstruindo a noção de natureza que servia como pano de fundo para a
unificação dos seres e das culturas, que independente das particularidades havia uma
“essência” comum, as soluções propostas pelo mononaturalismo e pelo multiculturalismo
141
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 74
166
142
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 93
143
Id. Ibidem. p. 94-95
167
os humanos não existirem por si mesmos, mas através de uma longa cadeia de não-humanos,
sem os quais eles não saberiam fazer questão de liberdade.
O imaginário comum nos conduz a perceber que a relação de afastamento e
independência do homem com relação ao mundo “dito” natural, passou a ser questionada com
a emergência das questões ambientais, consagrando os movimentos ambientalistas, como a
ecologia política, como responsáveis pela inserção da natureza nas preocupações políticas. A
proposta de Latour vem desmitificar essa suposição com uma inversão de perspectiva que
acusa a natureza, em suas diversificadas concepções, de sempre estar presente na vida política
do ocidente, apresentando-se a partir de autoridades que a traduzem para o entendimento geral
como “a certeza” que serve de embargo para qualquer discussão política. O mérito da
ecologia política seria exatamente digerir essa percepção de natureza, da objetividade e
hierarquização, “pondo fim à natureza” e fazendo irromper uma percepção de mundo
carregada de incertezas, riscos e multiplicidades, possibilitando a constituição de uma nova
vida política que dissolveria a dicotomia sociedade e natureza.
O “prelúdio do novo tempo” antes de se dar pelo sucesso da ecologia política
enquanto movimento que se insere de fato na vida pública, o que não ocorre, vai ser dado
pelos seus desconcertos, na sua prática, que geram a penetração irreversível dos “vínculos de
risco” que desmantelam o projeto moderno de um mundo ordenado que apontaria para um
futuro promissor. O sentido teleológico da modernidade, bem como a autoridade da Ciência e
da técnica na busca da redenção humana ficam suspensas, questionadas com a multiplicidade
de incertezas.
Toda essa discussão não deixa de encampar as tradicionais críticas recorrentes da
modernidade no que tange ao modelo de inteligibilidade do mundo,
disjuntivo/fragmentário/divisor/simplificador, consagrado pela filosofia e ciência moderna.
Ao apresentar o sujeito cognoscente e a realidade do mundo objetivo por uma indissolúvel
conjunção entre ambos, o autor nos remete ao entendimento de que o sujeito está presente nos
objetos que conhece, ao mesmo tempo em que esses se inscrevem no espírito humano em uma
relação de dupla-via. A realidade objetiva é uma construção subjetiva que jaz no mundo
objetivo. Apesar de realmente inovadora, a diluição das dicotomias de sua proposta
epistemológica, com as devidas ressalvas, se acercam das propostas da teoria da
complexidade de Edgar Morin, buscando uma interligação de saberes e a hibridização dos
seres dicotomizados/antagonizados pelo pensamento moderno. Mas há diferenças cruciais e
um método “facilmente aplicável”, efetivamente empírico e epistemologicamente progressivo
pelas possibilidades que abre.
168
Conversões
PARTE III
O VALE DO RIO TROMBETAS
1 O PROGRESSO E A ORDEM
Vou ao porto de Manaus digladiar por uma passagem para Oriximiná, sabia, pelas
experiências anteriores, que no final do ano todos viajam. A multidão desesperada faz o
momento dos cambistas especuladores. Não havia mais passagens aéreas e, por “nau”,
somente para Óbidos ou Santarém. Como não podia aguardar até a próxima semana, segui
para Óbidos. No translado conheço duas francesas que vieram se aventurar no Brasil,
disseram vir conhecer a “natureza”, a Amazônia, maior floresta tropical do mundo – “essa
imensa reserva ecológica do planeta”. A companhia das turistas estrangeiras e os longos
diálogos desentendidos que travávamos, abreviavam as trinta horas de viagem percorridas
pelo Rio Amazonas. A paisagem contínua, por vezes, era interrompida pelos pequenos
povoados ribeirinhos, criações de gado e cidadelas. No navio, muito Technobrega, pessoas
bebendo e um verdadeiro emaranhado de redes que aconchegavam as centenas de pessoas que
ali viajavam. Chegando em Óbidos consigo no mesmo dia um barco para Oriximiná.
Necessitando aguardar algumas horas, aproveito o entretempo para conversar com pessoas
dali. Os olhos se confundem diante da tamanha complexidade daquela região.
176
Perscrutar essa realidade e compreender sua pluralidade requer vasculhar como se deu
seu complexo ordenamento territorial. A Amazônia dos seringueiros, babaçueiros, açaizeiros,
dos muitos índios, dos ribeirinhos, dos quilombolas; a Amazônia dos patrões, dos regatões,
dos fazendeiros, das elites falidas; a Amazônia periferia nacional ameaçada pela cobiça
internacional; a Amazônia futuro do país com incomensuráveis recursos – o biológico, o
madeireiro, o mineral; a Amazônia último reduto da vida, da manutenção do equilíbrio
térmico do planeta, da natureza para conservação; a Amazônia dos grandes projetos
governamentais de desenvolvimento, das empreiteiras, das hidroelétricas, das monoculturas,
da pecuária extensiva, das mineradoras multinacionais; a Amazônia atrasada, terra sem lei à
Amazônia voz de seu povo, ainda quando educados e representados pelos que vem de fora.
Não há uma Amazônia, são muitas “Amazônias”, como já consagrara Carlos Walter Porto
Gonçalves144, que também nos conta essa história, ponto de suma importância para traçarmos
as linhas de nossa jornada.
brasiliensis, vai exercer grande influência nas delimitações territoriais amazônicas. Isso se
deu sob o jugo dos que faziam conectar o produto de sua seiva, o látex transformado em
borracha, à toda rede sociotécnica de produção da Segunda Revolução Industrial em meados
do século XIX, sem maiores considerações aos povoados que ali há muito existiam. Nesse
sentido o que se compreende como Amazônia está atrelado ao marco científico da
abrangência das Heveas147 e o surto econômico de sua exploração contribuiu sobremaneira na
delimitação das fronteiras nacionais que ali se estabeleceram.
A borracha passa a ser parte indissociável de diversos componentes das máquinas da
indústria, dos fios de transmissão de energia e de telecomunicações, dos calçados, de roupas,
dos pneumáticos que vão reconfigurar os veículos, o transporte e a indústria automobilística.
Enfim, essa “planta” passa a estar presente em toda a “sociedade ocidental” e dar-lhe outra
abrangência com o seu agenciamento. Partindo do conhecimento dos índios e apresentada aos
europeus com a colonização, a borracha gradativamente vai encontrando “funções sócio-
lógicas”, até atingir maior envergadura comercial e disseminação com a “descoberta” da
borracha vulcanizada em 1839/1843148.
Assim como outros períodos de exploração de commodities amazônicas, o látex vai
propiciar um grande fluxo migratório contribuindo para configurar a pluralidade de grupos
humanos que vão habitar a região. Esses fluxos migratórios se deram subindo o Rio Tapajós,
o Xingo, o Madeira, posteriormente atingindo o Solimões, o Purus e o Juruá, chegando ao
Acre (Aquyri) em 1877149. Cerca de 300 a 500 mil migrantes nordestinos entre 1860 e 1912150
vão para os seringais tornarem-se “servos por dívida”, como ilustra Euclides da Cunha:
De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão opulento, se não o
freguês jungido à gleba das “estradas”, o seringueiro realiza uma
tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se [...]
Repitamos: o sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a
qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para
escravizar-se.
Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota
fazenda de São Paulo, paternalmente assistido pelos nossos poderes
públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo
147
GONÇALVES, C. W. P. op. Cit. p. 18
148
Essa descoberta está associada ao inventor estadunidense Charles Goodyear em 1839, que por acaso mistura a
borracha natural com enxofre em uma chapa quente, adquirindo outra consistência ao material – elasticidade e
resistência às variações de temperatura. O inglês Thomas Hancock em 1843, consegue efetuar o mesmo processo
obtendo primeiramente a patente e dando maior disseminação comercial ao produto. Contudo, mesmo antes
desta técnica já haviam diversas aplicações para borracha, como calçados, colchões, peças industriais, roupas
etc.
149
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
150
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001. p. 86
178
151
CUNHA, Euclides da, 1866-1909. Um paraíso perdido : reunião de ensaios amazônicos / Euclides da Cunha ;
seleção e coordenação de Hildon Rocha. -- Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. 393 p. --
(Coleção Brasil 500 anos) p.127 e 144
152
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
153
SANTOS, R. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: Editora T.A. Queiroz, 1980.
179
154
Esse sistema em “rede”, extremamente espoliador e complexo por ter intermediários as vezes até mesmo
aviados/seringueiros, estabelecia numa peculiar cadência de conexões: a)
Floresta/seringueiras/seringueiros/víveres – a extração do látex/produção da borracha com a exploração do
trabalho estabelecida com a permuta dos produtos de outros locais (alimentícios, instrumentos de trabalho,
vestimenta etc.), não havendo, via de regra, pagamento em espécie ao seringueiro (haviam os contadores para
garantir que a dívida permanecesse); b) Rio/barco/regatão/seringalistas – a tecnologia do barco a vapor e o
“crédito” dos produtos de
subsistência proporcionavam o custeamento da viagem para os locais longínquos – o
seringalista ou o regatão (dono do barco e geralmente intermediário) obtinha a
borracha sem ter qualquer
custo
adicional; c) Urbe/casas-aviadoras/casas-exportadoras – venda da borracha para as casas
exportadoras em
Manaus ou Belém; d) Capital estrangeiro – o recebimento do crédito controlado pelo capital inglês ou norte-
americano nas casas exportadoras, percebido enquanto moeda, apenas pelas casas aviadoras e seus
intermediários diretos (coronéis, patrões, comerciantes, regatões).
155
O documentário “Nas Terras do Bem-Virá”, Brasil, 2007, 111min.- Direção: Alexandre Rampazzo, traz uma
análise muito bem amparada das condições atuais de trabalho e exploração dos recursos na Amazônia brasileira.
156
Que em muito ultrapassava o Tratado de Tordesilhas.
157
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
158
MEDEIROS, R. A. L. op. Cit. p. 52 - 59
180
argumenta a importância dessas terras em disputa com a Espanha. Gusmão opera a linguagem
dos tratados para assegurar a efetividade do Tratado de Madri (1750), mantendo as pretensões
da Coroa Portuguesa – ainda nas suas modificações com os Trados de El Pardo (1761) e
Santo Ildefonso (1777) – nas terras da América Meridional.
Os aldeamentos das missões religiosas vão surgindo em pontos estratégicos ao longo
do Rio Amazonas, na confluência com outros rios como o Tapajós, o Trombetas, o Rio Negro
e o Japurá. Posteriormente estes locais vão dar origem às cidades da região: Santarém,
Óbidos, Manaus e Tefé – respectivamente. Com a domesticação dos índios inicia o processo
de exploração econômica da Amazônia por meio do extrativismo de sua fauna e flora –
especiarias, plumas e peles principalmente – tendo em vista atender o mercado europeu. As
denominadas “drogas do sertão” e os produtos da fauna, não se apresentaram como um
grande atrativo mercantil pela própria dispersão das mercadorias valiosas e dificuldade de
acesso. Por sua vez, também os aldeamentos dos índios nem sempre eram bem sucedidos.
Enquanto conhecedores daquele ambiente, em alguns casos, os mesmos se libertavam e se
refugiavam da “espada e da cruz” portuguesas159, retomando seus hábitos em locais mais
afastados. Porém, junto com os portugueses e a rede sócio-técnico-biológica que avançava,
chegavam também as pestilências virais e bacterianas das quais os índios não tinham defesas.
As epidemias rapidamente se alastravam e ceifavam milhares de vidas em curto período de
tempo160.
Com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e do Maranhão em 1755,
sobre o governo do Primeiro Ministro Marques de Pombal, a Amazônia se integra mais
efetivamente à lógica mercantil. Nesse momento a empresa comunitária jesuítica, fundada na
mão-de-obra servil dos índios amansados, sucumbe diante da empresa colonial,
economicamente mais eficiente, com base na mão-de-obra escravista das diásporas africanas.
Os jesuítas são expulsos da região e as terras passam a ser doadas por cartas de sesmarias
àqueles colonos e soldados que se comprometessem a cultivá-las. A agricultura e pecuária são
ampliadas sendo cultivados cacau, café, algodão, arroz, fumo e anil, consolidando a elite
latifundiária que irá se estabelecer politicamente na região (muito mais ligada a Portugal do
que à elite do resto do país161). Neste período é introduzido o trabalho escravo com negros em
159
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
160
Nesse sentido ver RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras. 2010.
161
Mesmo por questões geográficas, era mais barato, mais fácil e mais perto se deslocar para Portugal do que
para o sudeste do Brasil, especificamente para o Rio de Janeiro onde se situava a elite brasileira à época.
Observações do autor:
1 Mário Meireles (1980: 192) nos informa que, em 1680, esses escravos eram vendidos ao preço de Rs
60$000 por “fôlego vivo” de Angola. As “peças de Guiné”, no mercado de São Luís e Belém, valiam Rs
120$000 a 130$000, enquanto o índio escravo era vendido a Rs 30$000 (SALLES, 1988: 14).
2 As crianças eram vendidas na África, pagando imposto de exportação, sendo agrupadas em diversas
categorias: “crias de pé”, definidas como aquelas que tivessem de quatro palmos para baixo e 181
faziam jus à metade do pagamento do imposto. As “crias de peito” eram isentas de impostos
(KLEIN, 1987: 55).
3 No Pará havia um intenso comércio de aluguel de escravos. Segundo nos relata Salles (1988: 170),
um negro de bom físico e gozando de boa saúde era mercadoria cara no Pará Colonial. Os
proprietários dos escravos cobravam a diária do aluguel em 300 réis, ou Rs 7$500 por mês, ou Rs
1756.89$000
Entreporeste
ano.ano
Comoe um
o de 1788
escravo estima-se
podia quepor
ser comprado foram comercializados
Rs 112$500 cerca
por “peça”, esse era28.657162
preçode
inteiramente amortizado em quinze meses de aluguel, ressarcindo assim o capital empatado (SALLES,
1988: 170). As mais caras eram as amas-de-leite que eram compradas a Rs 500$000 e rendiam,
escravos
quandonegros
alugadas,na 320região do sendo
réis por dia, Grão-Pará
o capital einvestido
Maranhão, contribuindo
amortizado para anos.
em cerca de quatro a formação
Havia, naquele tempo, um mercado regular de famulagem das famílias abastadas que podiam pagar
os pretosda
multiétnica de região
sala e dee,cozinha,
com asmucamas, aios emesmos,
fugas dos aias, amas,dando
pagens,origem
arrumadeiras, lavadeiras
às muitas e
comunidades
cozinheiras (SALLES, 1988: 171).
163
remanescentes de quilombo da Amazônia que passaram a viver nos “mocambos” .
POPULAÇÃO DOS ESCRAVOS NEGROS DO GRÃO-PARÁ EM 1849
162
A estimativa é dada por Herbert Klein, da Columbia University de New York, traduzido e publicado pelo
IBGE nas Estatísticas Históricas do Brasil apud BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural.
3ª edição. Manaus: Valer, 2009. p. 124
163
Esse momento nos é de substancial importância, pois a formação de um dos principais grupos de atores que
compõem a pesquisa tem aí a sua origem. Os negros que se refugiaram da escravidão nas fazendas de cacau das
regiões de Santarém e Óbidos, sobem o Rio Trombetas e se estabelecem acima das cachoeiras onde não podiam
ser recapturados. Esse ponto será aprofundado posteriormente.
164
ACEVEDO, A. & CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993. p.17
182
região. Essa participação vai repercutir em proteção por parte dos setores comerciais que se
beneficiavam com as trocas, dificultando as investiduras da ordem escravocrata165.
Na conquista de seus territórios e no domínio sobre os mesmos a relação com os
povos originários é apontada de maneira dúbia na literatura. Ora como relações amistosas, ora
como conflituosas em que os índios eram cada vez mais afastados. Inclusive há relatos sobre
relações de escravidão e sequestro de mulheres indígenas para procriação166. Por sua vez a
autonomia que atingiram sobre os territórios, o substancial contingente populacional que
formaram e as hibridizações culturais e genéticas com os indígenas, assumindo parte de seus
costumes, confluem nos estudos167.
Em 1772 a província do Grão-Pará é separado do Maranhão, posteriormente tornando-
se província do Império em 1823. É subdividido novamente nas províncias do Pará e do
Amazonas pela Lei 582 de 05 de setembro de 1850 que, por sua vez, tornam-se dois estados
federativos em 1889, com a República proclamada168.
Entre 1834 e 1840 uma violenta revolta se instaura na província do Grão-Pará
contribuindo para a afirmação indenitária daqueles povos, principalmente dos subjugados
pelas elites locais. A “cabanagem” explode com os braços dos índios, negros, caboclos e os
brancos renegados e afastados da vida pública. Resumidamente, o movimento toma a capital
Belém em 1835, executando em via pública o presidente provincial Bernardo Lobo de Souza,
o comandante das armas da província, Joaquim Silva Santiago e o capitão James Inglis e
colocando no poder o líder cabano Ten-Cel Félix Antônio Clemente Malcher. O poder sobre a
capital dura pouco sendo retomado no mesmo ano. Isso se dá pelas alianças militares
estabelecidas pelo império (Portugal, Inglaterra, França) e devido às divergências entre os
próprios cabanos, subdivididos em facções, sem uma unidade que permitisse a manutenção do
poder. Por sua vez, subsistindo como guerrilhas, o movimento vai ser liquidado apenas em
1840, levando dois terços da população masculina paraense, cerca de 40.000 homens, na
imensa maioria cabanos. A cabanagem se destaca pelo caráter de secessão que assume com a
proposta de se criar o país do Amazonas. Nesse processo há a participação dos negros dos
165
FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
166
HILBERT, Peter Paul. A cerâmica Arqueológica da Região de Oriximiná. P. Nº 9 Belém: Instituto de
Antropologia e Etnologia do Pará, 1955.
167
Nesse sentido: ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea,
1993.; ANDRADE, Lúcia M. M. de. Os Quilombos da Bacia do Trombetas: breve histórico. Revista de
Antropologia. Volume 38, nº 01, São Paulo, 1995, p.79-99.; e FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive
Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História
da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
168
STELLA, T. H. T. A integração econômica da Amazônia (1930-1980). Dissertação (Mestrado em Economia)
– Instituto de Economia. UNICAMP, Campinas, 2009.
183
tornaram mais “integrados” e dependentes das tecnologias “comuns”, não obstante estarem
marginalizados ou mesmo isolados. Além do mais, com exceção de poucas áreas como o
norte, as demais regiões guardam o estigma da dizimação de parte significativa dessa
diversidade sócio-natural (sobretudo dos indígenas), bem como o extermínio de parte
substantiva do próprio ambiente e dos saberes locais. Nesse sentido, o que o imenso
ecossistema amazônico pode oferecer em termos de subsistência para grupos sociais
tradicionais ou autóctones, tornou-se extremamente raro se comparado ao restante do país.
175
Considerando o termo aqui em sua concepção mais amplamente disseminada: enquanto políticas formuladas
levando-se em consideração os fatores geográficos como formas de se imprimir disciplina e poder sobre os
territórios e re-estruturar a realidade sócioeconômica.
187
ambivalência das propostas governamentais para a região, o que tanto integra quanto
desintegra, conforme o olhar pregresso nos revela.
Se a economia gomífera fez conectar a seiva daquela planta à toda produção técnico-
industrial do ocidente, fez estender também parte dessa rede sócio-técnica à região, sobretudo
nos centros urbanos Belém e Manaus. Trouxe iluminação às ruas, novos meios de transporte,
serviços variados. Trouxe a infraestrutura dos grandes centros, inclusive uma incipiente
indústria manufatureira e a reprodução do conhecimento científico com a Universidade de
Manaus, em 1912 (anterior Escola Livre de Manaus em 1909). Entretanto, estar sustentada em
uma economia primário-exportadora, com foco centrado em poucos produtos, basicamente a
borracha, escancarava a fragilidade dos laços que amarravam essa rede. A posição de
isolamento, a dilapidação tributária do governo central, as relações pré-capitalistas de
produção com o sistema de aviamento, as constantes transferências de recursos das elites para
o exterior e a predominância do capital mercantil, são apontados como fatores que inibiram a
acumulação primitiva do capital e consequente reprodução ampliada do mesmo, com o
reinvestimento na industrialização e diversificação econômica. Ou seja, apesar de auferir
imensos recursos, estes não promoveram o desenvolvimento do capitalismo industrial na
região, como ocorreu com o café no sudeste do país.
Com a “revolução” de Getúlio Vargas em 1930, inicia-se um novo período de
integração territorial no Brasil, com significativas mudanças em âmbito comercial e
produtivo. A exportação primária vai cedendo lugar para a industrialização e para o comércio
nacional interno, como uma bem-sucedida reação à crise de 1929 que atingiu globalmente os
países capitalistas. Com o fortalecimento do Estado e sua intervenção mais efetiva na
economia, a partir do Estado Novo em 1937, surgem políticas públicas que corroboram a
modernização do Estado brasileiro, tais quais: programas de colonização agrária e créditos
agrícolas e industriais pelo Banco do Brasil; instituem-se órgãos setoriais do governo para
tratar assuntos estratégicos, criam-se empresas estatais de grande porte e promove-se a
nacionalização de recursos minerais e o controle federal de produtos agrícolas – dentre eles o
cacau, o café e o açúcar. Integrar a região Norte através da institucionalização de políticas
estratégicas passa a ser uma das bandeiras desse governo. Pode-se depreender o matiz desse
direcionamento político em algumas passagens do pronunciamento presidencial intitulado de
Discurso do Rio Amazonas, proferido no Teatro Amazonas em 10 de outubro de 1940:
[...] Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta, foram as
nossas tarefas. E nessa luta, que já se estende por séculos, vamos
obtendo vitória sobre vitória. [...] Necessitais adensar o povoamento,
acrescer o rendimento das culturas, aparelhar os transportes. [...] Da
188
sua colonização. A missão era “preencher seus vazios” com a abertura de estradas e
identificação de locais propícios à implementação de campos de pouso, bases militares e
futuras cidades. A épica expedição foi liderada inicialmente pelo Coronel Flaviano de Mattos
Vanique e seu grupo de frente com 40 homens, cada um com “um fuzil, cinquenta balas e um
par de botas”. No seu avançar passou a ser liderada pelos irmãos Leonardo, Orlando e
Cláudio Villas-Bôas, após a desistência de Vanique que não queria lidar com os indígenas. A
epopeia percorrera mil e quinhentos quilômetros de picadas abertas e rios, desbravando o vale
do Araguaia e o sul da Amazônia177. A medida que avançava deixava para trás a marca do
“progresso”, com bases militares, criação de estradas, pistas de pouso e fundando dezenas de
vilas que posteriormente tornam-se cidades. Junto com as estradas chegam as fazendas, a
demarcação do território sob a lógica colonizadora da política à brasileira, privilegiando
sempre os “amigos do rei”. A mata vai cedendo lugar às plantações de grãos e criação de
gado, os povos nativos vão se hibridizando e sucumbindo nas doenças, nos trabalhos
espoliadores e na perda de seus habitats. Na ambiguidade dessas relações e na força política
dos Villas-Bôas e Darcy Ribeiro, foi criado a primeira terra indígena demarcada em 1961,
pelo então presidente Jânio Quadros. O Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do
Xingu), com 27 mil quilômetros quadrados, abriga catorze etnias representando um mosaico
linguístico com quatro grande famílias: Carib, Aruak, Tupi e Jê. Essa perspectiva política da
época entendia ser necessário o isolamento cultural dos indígenas, tanto quanto possível, para
assegurar sua subsistência, postergando ao máximo o inevitável contato com o homem
branco.
O pensamento geopolítico militar brasileiro no primeiro momento de Vargas tem
como expoente Mário Travassos com sua obra Projeção Continental do Brasil de 1938.
Preocupado com a integração e controle militar-econômico do continente sul-americano com
a liderança brasileira, sua análise subdivide-se em dois eixos de projeção estratégica:
Atlântico x Pacífico e Prata x Amazonas. Travassos percebia como desafio a essa integração
econômica sul-americana a forte influência norte-americana no continente. Em particular,
negativo aos interesses brasileiros, a influência dos EUA na bacia amazônica. Dentro dessa
perspectiva iniciam-se as projeções de fortalecimento político institucional através de redes de
177
VILLAS BÔAS, O.; VILLAS BÔAS, C. A Marcha para o Oeste: A epopeia da expedição Roncador-Xingu.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
190
Amazônia – Protegido pelo SEMTA”, “Mais pneus para a vitória”, “Mais borracha para a
vitória”, “Cada um no seu lugar – Brasil para a vitória”, entre outros slogans tresvariados,
propagandeados pelo governo que contratara até o artista suíço Jean-Pierre Chabloz180.
Ilustração 02: Jean-Pierre Chabloz, 1942. In. Jornal da Unicamp, nº 542, Campinas. 15 de outubro de 2012.
180
MORAES, A. C. A. Jean-Pierre Chabloz e a Campanha de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
(1943): cartaz e estudo preliminar em confronto. In. VI EHA – Encontro de História da Arte – Unicamp.
Campinas, 2010.
181
Obra literária, com onze contos, de 1908 de Alberto Rangel. Assim como Euclides da Cunha, que chefiou a
expedição para o auto Purús, Rangel parceiro de Euclides, em sua obra buscava retratar a vida do homem na
floresta amazônica e o trabalho duro nos seringais. O livro com seu “ardente verbalismo” desmitificava a ideia
de Eldorado que habitava o consciente popular de outras regiões do país na época.
182
STELLA, T. H. T. A integração econômica da Amazônia (1930-1980). Dissertação (Mestrado em Economia)
– Instituto de Economia. UNICAMP, Campinas, 2009. p. 76
192
183
No documento oficial do governo chamado “Operação Amazônia” de 1966, é relatado, página 40, que: “Não
se cumpre o dispositivo constitucional de vincular três por cento da recita tributária para programas de
valorização da Amazônia”.
184
O ex-presidente, então parlamentar, Arthur Bernardes liderou a campanha contra o Instiuto da Hiléia, dizendo
ser o mesmo uma proposta de internacionalização da Amazônia, destacando que o mesmo: “poderia adquirir,
possuir e levar bens, contratar e assumir obrigações, receber contribuições e donativos, movimentar fundos, criar
e gerir centros científicos e outros serviços em geral, executar atos legais necessários às finalidades”. O IIHA,
com conclave em Iquitos, Perú, reunia além dos países possuidores de territórios amazónicos, os que detinham
relações coloniais como França, Holanda, Inglaterra e também a Itália que não se enquadrava nos intereses
diretos. GOVERNO FEDERAL. Operação Amazônia, Brasília. 1966. p. 130
193
1950 o BCB vai ser renomeado enquanto Banco de Crédito da Amazônia – BCA, ampliando
o rol de operações bancárias para diversas atividades, não apenas a borracha.
O retorno democrático de Vargas em 1951 marcou o pensamento nacional-
desenvolvimentista, em certa medida, influenciado pela Comissão Econômica para a América
Latina e Caribe da ONU, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDE e pela doutrina
da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e seu diagnóstico de eliminar os “pontos de
estrangulamento” da economia nacional. Por sua política própria foi criada a Petrobrás em
1953, entre outras estatais, consideradas como grande obra do nacionalismo político-
econômico de Vargas a contragosto norte-americano185. Para a região amazônica suas
políticas buscavam a promoção de um desenvolvimento capitalista, mas sem desconstituir os
sistemas econômicos vigentes na época e suas relações de poder (considerando os interesses
das elites locais e a ordem social estabelecida). A Amazônia seguia como consumidora de
produtos de toda ordem e exportadora primária de produtos do extrativismo e da agricultura.
Neste período, em 1953, foi regulamentado o Plano de Valorização da Amazônia e
criada a Superintendência para a Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA, pela Lei
Federal 1806 de 1953186. Essa mesma Lei incorpora à Amazônia o Estado de Goiás, do
Maranhão e do Mato Grosso, que passou a se chamar Amazônia Legal. Aí estabelecidas suas
delimitações por razões geoeconômicas, como forma do governo planejar e promover o
desenvolvimento da região, não mais pela característica florestal do bioma.
Após Vargas, no período subsequente, a lógica do capitalismo industrial se aprofunda,
constituindo-se indústrias ainda mais pesadas, realizando-se empréstimos ainda mais
vultuosos, criando uma vinculação ainda mais estreita com a sócio-tecnologia do modelo
econômico ocidental – um alinhamento mais fiel como ocorreu no governo Dutra. Na mesma
medida em que se aprofunda o capitalismo industrial e sua fome de mobilizar uma imensa
diversidade de seres humanos e não-humanos, se aprofundam as desigualdades entre os
centros e as periferias, tanto na microescala quanto na macro. A Amazônia agora se torna uma
importante “fronteira de recursos” e deve ter continuada a política de integração já iniciada
por Vargas. Só que ampliada, criando-se novas conexões, conexões mais íntimas com a
própria rede sócio-técnica que se instaurara: por estradas.
185
SKIDMORE, T. E. Brasil de Getúlio Vargas à Castelo Branco (1930 – 1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1975.
186
A SPVEA tinha como objetivo: a) assegurar a ocupação da Amazônia em um sentido brasileiro; b) constituir
na Amazônia uma sociedade economicamente estável e progressista, capaz de, com seus próprios recursos,
prover a execução de suas tarefas sociais; c) desenvolver a Amazônia num sentido paralelo e complementar ao
da economia brasileira.
194
Mensagem da Amazônia
Prezado Compatriota:
1. Venha investir na Amazônia, nossas terras são férteis e tudo nelas é
abundante!
2. Leis federais, estaduais e municipais oferecem ao homem de empresa
brasileiro condições altamente favoráveis para participar do
programa de aceleração do desenvolvimento da região amazônica.
3. A SUPERINTENDENCIA DO DESENVOLVIMENTO DA
AMAZÔNIA (SUDAM) e o BANCO DA AMAZÔNIA S/A (BASA) estão
à sua disposição para ajudá-lo a investir num dos muitos projetos em
implantação: são empreendimentos industriais, agrícolas e pecuárias
disseminados na imensa extensão territorial que é a Amazônia
brasileira.
4. Venha, pois participar do desbravamento econômico da Planície
Verde, através da Operação Amazônia.
5. Seja mais BRASILEIRO conhecendo melhor a Amazônia e ajudando a
integrá-la definitivamente no patrimônio ativo nacional.
(Mensagem da Amazônia – Álbum Operação Amazônia, 1967)
em análise. Os incentivos se davam por ordens diversas. As atividades exercidas por pessoas
jurídicas que eram consideradas de interesse para o desenvolvimento da região, ficavam
isentas do imposto de renda em 50% para os que já haviam se instalado até a publicação da
lei, e 100% para os que se instalassem até o fim do exercício de 1971. Outros benefícios
tributários também eram atribuídos com relação à importação de equipamentos, desde que
não produzidos no Brasil. As deduções tributárias para investimentos diretos, outra forma de
incentivo, recaiam sobre o imposto de renda de qualquer empresa com registro no país.
Variavam entre 75%, para investimentos no FIDAM, à 50%, para projetos agropecuários,
industriais e de serviços básicos (energia, transporte, comunicações, colonização, turismo,
educação e saúde pública).
Como já comentado, o antigo Banco de Crédito da Amazônia – BCA foi transformado
no Banco da Amazônia S.A. – BASA. Com atribuições ampliadas em relação ao BCA, o
BASA tornou-se o depositário dos recursos provenientes das medidas fiscais do governo.
Essa instituição financeira pública, responsável pela execução creditícia da política do
Governo Federal na região, atuava executando os serviços bancários em geral, com linhas de
créditos e financiamentos para os projetos públicos e privados, conforme mencionado, e
também com negociações para obtenção de recursos externos com agências internacionais ou
estrangeiras.
Já nos primeiros anos do golpe militar, a política governamental experimentada
começa apresentar resultados para o Governo, com a ampliação do número de projetos e de
investimentos para a região. Com a criação da SUDAM e do BASA a “nova política” se
solidifica enquanto novo marco para as transformações posteriores. No discurso proferido
pelo então presidente Humberto Castello Branco no Teatro Amazonas em dezembro de 1966,
de maneira entusiástica, salientou-se a proeminência dos céleres resultados:
Não fizemos milagre que não fosse o do trabalho e o da honestidade.
E daí a verdadeira multiplicação dos pães a que temos assistido na
administração da Amazônia. Realmente, ao assumir o General Mário
Cavalcanti a direção da SPVEA em 1964, não encontrou sequer um
projeto aprovado para absorver os recursos oriundos do Imposto de
Renda. Hoje, há cerca de 40 projetos aprovados, com investimentos
previstos num montante de 73 milhões; além de mais 9 projetos em
fase de conclusão, num total aproximado de sete bilhões. Alguns
deles, como acontece com o da JUTEX, para fiação e tecelagem, da
SIDERAMA, para siderurgia, e da SABIM e INASA, para madeiras,
202
191
BRANCO, H. C. Solenidade de instalação da I Reunião de Incentivo ao Desenvolvimento da Amazônia. In:
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Operação Amazônia: discursos. Serviço de Documentação e Divulgação.
Belém. 1968. p. 39
192
ANDRADE, J. W. Solenidade de instalação do Conselho Deliberativo da SUDAM. In: GOVERNO
FEDERAL/SUDAM. Operação Amazônia: discursos. Serviço de Documentação e Divulgação. Belém. 1968. p.
133 - 134
203
193
O texto foi confeccionado pelos seguintes pesquisadores: dr.ª Catharina Vergolino Dias, dr.ª Clara Martins
Pandolfo, dr. Alfredo H. Higassi, dr. Antero d. D. P. Lopes, dr Benjamin M. da Silva, dr. Claudio J. Da Costa,
José R. M. Rodrigues e dr. Pedro L. A. da Silva.
194
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972 – 1974). Belém:
Ministério do Interior, 1971. p. 51
204
195
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministério do Interior, 1971. p. 65
205
Legal Florestal. A realidade que se sucedeu, como é de praxe, foi muito diversa do “mundo
bem organizado” idealizado nos projetos governamentais. O documento também menciona a
necessidade de se criar “Reservas Florestais de Renda” para “funcionarem como fontes
permanentes de suprimento de matéria-prima”196.
Por sua vez a fauna é apresentada como uma das principais fontes de alimento das
populações interioranas, o que se mantém provavelmente para grande parte da região, a
exemplo do que constatei na região vivenciada. Apesar da crítica ao modelo de exploração
predatória, na comercialização de peles principalmente, é vislumbrada a possibilidade de uma
“exploração racional” que influiria positivamente na balança comercial regional. Para ilustrar,
posso dizer que, conforme apurei, bem antes da criação das unidades de conservação no Rio
Trombetas, uma das práticas econômicas das populações quilombolas dali era a
comercialização de peles, principalmente de felinos, caçados pelos “gateiros”. No estudo
governamental, perscruta-se também sobre criação de parques e reservas com fins turísticos
como fonte de renda. Já com relação à pesca, criticam-se as práticas tradicionais aspirando-se
uma pesca industrializada, a piscicultura e a carcinocultura197.
As menções sobre os povos que vivem nos interiores da grande floresta são raríssimas
por todos os estudos analisados. Essas populações ainda não eram concebidas enquanto
“povos tradicionais” ou “quilombolas”, nesse sentido não gozavam de um estatuto jurídico
diferenciado para os seus modos de vida e seus territórios. As parcas referências os
descreviam enquanto míseros representantes do subdesenvolvimento da região, os espoliados
da patronagem e do aviamento. Para o governo esses povos deveriam ter seus modos de vida
integrados e seus sistemas produtivos racionalizados, adaptados à dinâmica do novo mundo
que chegava. O extrativismo, fonte principal de subsistência desses povos, era prática que
deveria ser extinta ou transformada na medida do possível, conforme mencionado. A postura
explicitada nas pesquisas governamentais para o desenvolvimento regional coadunam com as
políticas públicas experimentadas. Seus resultados, que não poderiam ser outros, ocasionaram
a invisibilidade desses povos por longo período. Sobrepujados pelos projetos econômico-
produtivos e concebidos como anônimos do subdesenvolvimento, quando os “interesses do
desenvolvimento” insidiam sobre seus territórios, esses povos estavam praticamente
desprovidos de quaisquer meios de defesa. Contudo, dentro de sua atuação dúbia, o Estado
desde aquela época tinha como foco a inclusão social dessas populações, indistintamente,
196
Id. Ibid. p. 66
197
Id. Ibid. pp. 69, 70 e 71
206
conforme muitas menções nas propostas de políticas públicas relacionadas à saúde, habitação,
educação etc.
É preciso que se dê ao seringueiro, ao castanheiro, ao madeireiro, ao
babaçueiro – que são milhares de humildes brasileiros – condições de
vida mais humanas, facilitando-lhes acesso a um nível social mais
elevado e mais condizente com o ritmo de progresso que
experimentam a região e o país.198
O extrativismo vegetal, por menos rentável que fosse aos olhos do governo, era fonte
de renda substancial para grande parte da população amazônica. Com uma gama variada de
produtos, a prática extrativista era percebida enquanto “degradante processo de espoliação
social”, atribuindo-se algum destaque econômico à extração da Borracha, da Castanha do
Pará, do Pau Rosa, do Babaçu e das madeiras em geral. Todas as práticas extrativistas tinham
como foco a realização de estudos para a racionalização do processo exploratório.
A Amazônia, para progredir e se desenvolver, tem necessidade de
modificar os seus postulados econômicos, através de uma forma de
atendimento razoável que, sem causar um colapso na economia
regional, com o abandono puro e simples dessas atividades,
abruptamente, possa entretanto proporcionar melhoria de padrão de
vida aos anônimos trabalhadores que, no recesso da mata, à margem
dos benefícios da civilização, ajudam a construir a grandeza do
Brasil.199
198
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministerio do Interior, 1971. p. 75
199
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministerio do Interior, 1971 p. 75
200
Id. Ibid. p. 83
207
estudos acerca da espécie vegetal e da produção dava-se por meio de convênio entre a
SUDAM e o Instituto de Tecnologia de Alimentos – ITAL, de Campinas/São Paulo.
Seguindo a lógica do desenvolvimento atrelada ao crescimento econômico, o estudo
indica como áreas prioritárias para o Plano Regional de Desenvolvimento aquelas que já
gozavam de melhor infraestrutura e adensamento populacional.
A ausência de uma rede urbana, bem estruturada na Amazônia, levou
a considerar-se as cidades que, pela sua população, pelas funções
administrativas, políticas, culturais, econômicas, de prestação de
serviços, desempenham um papel importante, não apenas quanto ao
município ao qual pertencem, mas principalmente, porque irradiam
suas influências a outras comunas.201
***
***
Com mais de 85.000 Km2 o Polo Trombetas, em sua área de abrangência, abarcou
parte dos municípios de Monte Alegre, Alenquer, Óbidos e Oriximiná. Com 60% dos solos
203
Id. Ibid. p. 13
204
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Síntese do POLAMAZONIA. Belém. 1975
209
bauxita é que fez estender para lá todo o ideário desenvolvimentista e estabelecer políticas
públicas e conexões reais sobre aquela região reconfigurando-a. Seccionou o arcaico e o
moderno, o produtivo e o improdutivo, o passado e o futuro. Fez jorrar milhões e milhões em
investimentos, solapar interesses dos grupos humanos mais frágeis, dizimar vastas extensões
de floresta e conectar a área com toda a ordem tecnológica, cientifica, social e econômica
relacionada, ao menos de forma incontestavelmente material, com qualquer um que usa
objetos de alumínio provenientes daquela região. A bauxita foi eleita o que era mais
importante naquela região acima de qualquer outra coisa humana ou não-humana. Por razões
de ordem cronológica esse primeiro ator seguirá a narrativa um pouco mais adiante,
apresentando o seu percurso de transformações sócio-lógicas.
Ainda no II PND as reservas de bauxita já eram estimadas em 2,6 bilhões de
toneladas. Enquanto a Transamazônica cortava o sul do Amazonas abrindo caminho para as
pastagens e monoculturas, ao norte emergiam complexos industriais, outras rodovias e ações
para proteger áreas representativas por sua fauna, flora ou outros atributos naturais.
O potencial energético da Amazônia em seus muitos rios considerados como um todo
era estimado em 62.000MW, com exceção do Amazonas que, por si só, representaria cerca de
150.000MW. Ao Rio Trombetas atribuía-se 16.000MW, possuindo um projeto de
hidroelétrica planejada para atender o beneficiamento da bauxita, estimando-se produção de
800MW na área da Cachoeira Porteira207. A hidroelétrica estava prevista juntamente com a
criação de um complexo industrial no Trombetas. A legislação permitia a participação direta
das grandes indústrias consumidoras nas obras de geração de energia, possibilitando um
ambiente favorável para os investidores que vão se instalar durante um breve e transformador
período na Cachoeira Porteira.
O projeto Trombetas visa a exploração da bauxita, cujas reservas
localizam-se nas proximidades da cidade de Oriximiná-Pará, às
margens do Rio Trombetas. O projeto será executado em duas etapas;
a primeira objetivando a exportação do minério lavado e seco e a
segunda a produção de alumina/alumínio; o prazo de maturação para
as duas será de cinco a sete anos, respectivamente. Os efeitos
esperados no quinquênio 1975-79 são os seguintes: produção anual de
cinco milhões de toneladas de bauxita lavada e seca. E um milhão de
toneladas de alumina. Prevê-se ainda, após a construção de Tucuruí,
em 1981, a produção de 640 mil toneladas anuais de alumínio
metálico208.
207
O projeto da hidroelétrica da Cachoeira Porteira, anos depois, vai ser um dos estopins para a organização
políca dos remanescentes de quilombo, assumindo grande importância nesta narrativa.
208
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimeto – Programa de Ação do Governo
Para a Amazônia. Belém, 1976.p. 73. Continua: Estima-se ainda a aplicação de Cr$ 960,5 milhões, sendo os
recursos oriundos da CVRD, de grupos privados e de financiamentos internos e externos, além de incentivos
212
212
PROST, Catherine. Forças Armadas, geopolítica e Amazônia. Paper do NAEA 156. Dezembro de 2000. p. 31
214
2 OS PLATÔS DE BAUXITA
Foto 10: Mineração Rio do Norte. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.
213
KOTSCHOUBEY, Basile et al. Caracterização e Gênese dos depósitos de bauxita da província bauxífera de
Paragominas, Noroeste da Bacia do Grajaú, Nordeste do Pará/oeste do Maranhão. Cap.XI. In. MARINI, O. J.;
RAMOS B. W.; QUIROZ, E. T. Caracterização de depósitos minerais em distritos mineiros da Amazônia.
Brasília: DNPM – CT/MINERAL – ADIMB, 2005.
216
Eu e Thaís Azevedo remávamos já com certa destreza e logo atingimos o pontal de areia do
outro lado, onde avistávamos ao longe a igrejinha adjacente à casinha branca. Atrás de nós o
lago ultrapassava a linha do nosso horizonte. A imagem que penetra as pupilas cristaliza-se na
alma, o tempo parou ali, como se tivéssemos cruzado um portal para ingressar nesse mundo
recôndito. No crepúsculo Dona Tereza ajeitava o fogão de lenha para fazer a comida, nesse
dia os carapanans estavam ouriçados, “carapanam, bicho covarde” dizia Dona Tereza, nem a
fumaça de óleo queimado do lampião os afastava. Seu Chico ajeitava a mesa para comermos e
preparava o combustível para ligar o gerador, lá pelas oito da noite. Tínhamos eletricidade
pelo menos até o final da novela, importante momento para eles, depois retornávamos aos
lampiões e as estórias da mata grande. Dormíamos todos no barracão, lá, curiosamente, os
mosquitos davam trégua.
Quando amanheceu seguimos com Seu Chico até um longo trecho recentemente
desmatado que cortou boa parte da propriedade coletiva PEAEX Sapucuá-Trombetas.
Estávamos próximo da divisa da Floresta Nacional Saracá-Taquera e, naquele lugar,
podíamos testemunhar a realização das obras do “Linhão de Tucuruí”. Projeto bilionário do
Governo Federal, destinado a percorrer 1.800 Km de floresta, por um circuito duplo na tensão
de 500 e 230 quilovolts (KV). O objetivo do projeto é levar a energia da Hidroelétrica de
Tucuruí até Manaus, atendendo alguns municípios do percurso. As torres erguidas só se
avistavam ao longe, algumas estão projetadas com até inéditos 280 metros de altura, ali
apenas grandes buracos, estruturas de concreto em andamento e restos de grandes árvores,
inclusive castanheiras que foram cortadas e que tanto chatearam Seu Chico. Desta vez os
contrastes parecem não caber nos olhos. Seu Chico se queixava que para as comunidades ali,
diretamente impactadas com o empreendimento não haveria “rebaixamento da transmissão”,
ou seja, eles não perceberiam energia elétrica nenhuma com o empreendimento, só as
limitações e prejuízos em suas terras (servidão de 40 metros de largura). No mesmo espaço
das mais sofisticadas linhas de transmissão do país, diversas famílias sem eletricidade, na
escuridão da noite e das políticas desenvolvimentistas. Diferente seria para a MRN em Porto
Trombetas, que obteve licença para uma linha de transmissão própria, com 98 Km partindo
dali e que irá mudar sua matriz energética (o que é possível, posto que uma das subestações
está prevista para o município de Oriximiná). Por determinação do IBAMA foi realizada
audiência pública. Os comunitários do assentamento coletivo brigavam por uma indenização,
segundo os mesmos, miserável.
217
Foto 11: Torre do Linhão no Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013.
O Pará é a segunda maior província mineral do país, logo depois de Minas Gerais,
respondendo por cerca de 35% da economia nacional neste setor. Abriga uma das maiores
reservas minerais do mundo, principalmente em bauxita e minério de ferro. Além de ser o
sexto maior exportador de minérios do Brasil, possui um dos maiores rebanhos bovinos, a
maior produção de pescado, encontra-se entre os primeiros produtores de abacaxi, açaí, coco,
cacau entre outras frutas. Quando a barragem de Belo Monte ficar pronta em Altamira – o
maior município do país em extensão territorial – o Pará provavelmente será a maior potência
hidroenergética do Brasil. O Estado é o décimo terceiro colocado dentre os PIBs nacionais e
cresce acima da média das outras unidades federativas. Seu crescimento econômico galopante
não condiz com a realidade de seu povo, com quase um terço vivendo no nível da miséria e a
maioria, como no restante do país, é pobre. Mas se comparado a outros tempos, esse índice
melhorou significativamente. As políticas governamentais, principalmente do Governo
Federal, atualmente se esforçam mais efetivamente para reduzir as desigualdades e incluir
economicamente os mais pobres. Sobretudo melhorar os índices e fazer com que as pessoas
possam comprar mais objetos, consumir mais... retirar da pobreza equivale a criar
consumidores, integrar ao sistema. O foco principal das políticas afirmativas não é agregar ou
preservar culturas, conhecimentos, experiências de vida, que pouco importam para os
indicadores e estatísticas.
Não obstante as desigualdades sociais persistirem, as políticas para o crescimento
econômico seguem a todo vapor, ainda na toada da velha receita do “crescer para depois
dividir”. Segundo a Federação das Indústrias do Estado do Pará – FIEPA, estão previstos para
os próximos anos mais de R$ 130 bilhões em investimentos públicos e privados, destes mais
de 50% vão para a indústria mineral214 e o restante para infraestrutura ou produção de energia
que também beneficiam o setor mineral. O setor contribuiu com 90% das exportações
paraenses que, por sua vez, contribui com bilhões de reais anualmente na balança comercial
brasileira, sendo o Pará um dos principais responsáveis pelo seu equilíbrio215.
214
Principalmente na região do Carajás onde a Cia Vale do Rio Doce pretende investir cerca de 20 bilhões no
projeto conhecido como S11D, com finalidades de aumentar o processamento do minério retirado pela empresa
na região. FIEPA. Guia Industrial Pará. Disponível em http://cadind.fiepa.org.br/oguia.php. Acesso em 20 de
outubro de 2013.
215
Conforme tabela em demonstrativo do DNPM é possível fazer uma estimativa da movimentação financeira
do setor minerário na balança comercial. DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL.
Economia Mineral do estado do Pará. Belém, 2012. Disponível em
http://www.dnpm.gov.br/mostra_arquivo.asp?
IDBanco
ArquivoArquivo
=6860. Acesso em 21 de outubro de
2013.
219
NCM*
DESCRIÇÃO VALOR
26011100 Min. De ferro não aglom. E seus 11.770.815.145
concentrados
26030090 Outros minérios de cobre e seus 853.845.822
concentrados
26020090 Outros minérios de manganês 280.458.651
25070010 Caulim 259.132.241
26060011 Bauxita não calcinada 199.932.321
75022000 Ligas de níquel em forma bruta 91.148.529
71081310 Ouro em barra, fios, perfis de sec. Mac., 82.088.088
bul. Dour.
26090000 Minério de estanho e seus concentrados 9.733.647
26110000 Minério de tungstênio e seus concentrados 554.169
TOTAL 13.547.708.613
São milhares de pessoas que empregam sua força de trabalho para fazer a máquina
minerária rodar, mas que sem a alta tecnologia, as imensas escavadeiras e caminhões, linhas
férreas, navios, muita energia, capital, combustível, decisões políticas e muitas outras forças
somadas, de nada servem. Desse contingente de empregados apenas 35% são paraenses e a
maior parte está alocada nos setores de lavra e beneficiamento em que o nível de escolaridade
necessário é o fundamental e o fundamental incompleto216.
Dentre as atividades econômicas minerárias do Pará as empresas ligadas à bauxita
movimentam um mercado bilionário e fazem da região um dos principais polos produtores do
mundo, oscilando entre o terceiro e o quarto lugar. Suas 2,7 bilhões de toneladas
correspondem a 75% das reservas brasileiras e estão entre as maiores do mundo217. Das
quinze maiores empresas paraenses, quatro são diretamente ligadas a esse minério, inclusive a
de maior economia: Hydro Alunorte, Alumínio Brasileiro – Albras, Mineração Rio do Norte –
MRN e Mineração Paragominas, respectivamente. O setor que recebeu aportes bilionários nas
216
ENRÍQUEZ, Maria A. Plano de Mineração do Estado do Pará. In. GOVERNO DO PARÁ. Relato da Sexta
Oficina: Mineração em Unidades de Conservação no Pará. Belém. 2012
217
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Relatório Técnico 22: Perfil da Mineração de Bauxita. Brasília:
Banco Mundial. 2009
220
218
[...]o saldo para os metais é de fortes perdas em 2013, com o alumínio acumulando queda nas cotações de
15% no ano. Segundo analistas, o cenário não deve mudar no ano que vem, já que não há sinais de mudanças na
China, com o país mantendo políticas de subsídio para a produção mesmo com margens negativas. "Como essa
dinâmica não muda, esse ciclo de baixa deve se estender para 2014 e 2015", diz Bruno Rezende, analista da
Tendências Consultoria. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ALUMÍNIO. Cotações do Alumínio primário
recuam em 2013. Disponível em: http://www.abal.org.br/noticias/lista-‐noticia/integra-‐noticia/?id=1183.
Acesso em dezembro de 2013.
219
A produção do alumínio é uma das atividades que mais consomem energia elétrica em sua cadeia de
produção, por isso a variação no preço da mesma influencia toda a cadeia. No Brasil a cotação para o setor está
em US$ 72/MWh, muito acima da média mundial registrada em US$ 40/MWh. ROCKMANN, R. Cautela com
preços baixos e energia cara. In. VALOR ECONÔMICO S.A.: Estados – Mineração lidera a economia: setor
estimula uma sólida cadeia produtiva. Rio de Janeiro. Novembro de 2013.
220
HYDRO. Projeto de alumina da CAP é adiado. 2013. Disponível em: http://www.hydro.com/pt/A-‐Hydro-‐
no-‐Brasil/Imprensa/Noticias/Projeto-‐de-‐alumina-‐da-‐CAP-‐e-‐adiado/. Acesso em outubro de 2012.
221
No sentido de que as próprias companhias mineradoras, concorrentes entre si, participam enquanto parceiras
nos projetos de produção em suas diversas etapas, desde a mineração da bauxita, à produção de alumina, ao
alumínio primário.
221
222
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste Final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 288
222
223
uma de alumínio. A tecnologia exigida em todas as etapas do processo, o custo de
produção e a demanda extrema de energia dão o porte dos atores envolvidos. O Brasil na
produção do alumínio tem destaque internacional tanto na produção quanto na tecnologia
empregada, mas os principais atores que movem esse processo não tem pátria, senão, talvez,
suas matrizes como destinação da maior monta dos dividendos da produção, porém essa trilha
não foi percorrida nesta pesquisa.
A mobilização de outros setores por meio do Estado na cadeia produtiva do alumínio
fica explicitado com o projeto da ALBRÁS – Alumínio Brasileiro S. A. (inicialmente com
capital nacional da CVRD, japonês da Nippon Amazon Aluminium Co. - NAAC e do BNDES,
hoje com a parte referente à CVRD transferida para a Hydro). A ALBRÁS provocou e
viabilizou a construção da Usina de Tucuruí, no Pará, entre 1975 e 1984. A empresa teve para
si criada a Usina de Tucuruí, mas a hidroelétrica, por sua vez, possibilitou a ALUMAR,
criada em 1984, composta pela ALCOA, BHB Billition e Rio Tinto-Alcan, situada em São
Luiz – MA224. Atualmente a construção da hidroelétrica de Belo Monte, orçada em cerca de
R$ 30 bilhões com 80% de investimentos públicos, planejada desde da década de 1980,
apresenta um quadro muito parecido com o desenvolvimentismo do regime militar na
sobreposição de interesses e na manutenção de relações estreitas entre as empreiteiras e
empresas eletrointensivas, principalmente do alumínio primário225. É a renovação dos votos
desse antigo casamento entre políticas governamentais e grandes empreendimentos. A
hidroeletricidade na proporção projetada em Belo Monte beneficia os setores que tem alta
demanda de energia e necessidade de que ela seja estável, contínua e ininterrupta por todas as
horas do dia, diferente das demandas domésticas e de empresas de menor impacto energético
que poderiam ser atendidas por fontes alternativas (eólica e solar)226. A transmissão dessa
energia para o sudeste do país também faz aquecer o setor da bauxita/alumínio que vão
compor parte dos materiais de transmissão (principalmente cabos) – tudo conectado.
223
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Relatório Técnico 22: Perfil da Mineração de Bauxita. Brasília:
Banco Mundial. 2009
224
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste Final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 289
225
FEARNSIDE, Philip M. Belo Monte: Resposta à Associação Brasileira do Alumínio. Instituto Nacional de
Pesquisa da Amazônia. 23 de fevereiro de 2012. Disponível em:
http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/Fearnside-‐Belo%20Monte-‐
Resposta%20a%20Assoc%20Bras%20de%20Aluminio.pdf. Acesso em: 16 de março de 2012.
226
BERMANN, C. & MARTINS, O.S. Sustentabilidade Energética no Brasil: Limites e Possibilidades para
uma Estratégia Energética Sustentável e Democrática. (Série Cadernos Temáticos No. 1) Projeto Brasil
Sustentável e Democrático, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Rio de
Janeiro, RJ. 2000. p.151.
223
227
VALE DO RIO DOCE. A Vale. Disponível em http://www.vale.com/PT/investors/company/fact-‐
sheet/Documents/factsheetp.pdf. Acesso em novembro de 2013.
228
Id. Vale conclui gestão de portfólio de ativos de alumínio. Disponível em:
http://www.vale.com/brasil/PT/investors/home-‐press-‐releases/press-‐releases/Paginas/vale-‐conclui-‐gestao-‐de-‐
portfolio-‐de-‐ativos-‐de-‐aluminio.aspx. Acesso em novembro de 2013
229
RIBEIRO, Ivo. Fatia da Vale na MRN terá disputa acirrada. In Valor Econômico. São Paulo. 29 de setembro
de 2013. Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/3282206/fatia-da-vale-na-mrn-tera-disputa-
acirrada#ixzz2mq3Ozg3k. Acesso em 10 de outubro de 2013.
224
(mercado interno230) e os 41% restantes foram destinados ao mercado externo, sendo 18%
para os EUA, 11% para o Canadá, 10% para Europa e 2% para a China. A MRN conta com
um quadro de empregados de cerca de 1.300 funcionários, destes 88% são da região Norte231.
Conforme buscou-se mapear há uma complexa rede que configura a mineração da
bauxita, quase sempre associada à produção do alumínio, sua principal destinação (o uso para
refratários é muito restrito e não está relacionado com a bauxita da Amazônia). Nessa rede
atuam poderosos grupos de interesses que se coligam para a viabilização de seus projetos.
Formam-se égides sobre égides, é inidentificável de onde originam as decisões e
reponsabilidades. Empresas que “competem no mercado entre si”, mas que aqui apresentam-
se unidas para concretização dos projetos de extração mineral na Amazônia brasileira. É só
ligar os pontos que as linhas se apresentam. O Estado assume o papel preponderante e
garantidor do processo (que detalharemos adiante com a atuação da MRN), na analogia
ecológica, uma relação simbiótica. Alguns iriam preferir dizer que o Estado é parasitado por
interesses externos em que assumimos a posição de eternos fornecedores de matéria prima ou
commodities, entregando nossos recursos ao capital estrangeiro que dilapidam nossas terras e
almas. Os dois lados da divisão internacional do trabalho, quem se enriquece e quem se
empobrece. “A pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas
transações” que só favorecem as perpétuas elites nacionais. Mas, nesse viés, deveríamos nos
prender a uma perspectiva de Estado idealizada que não se assenta em nenhum plano de
existência: o Estado é definitivamente peça fundamental no jogo e a dicotomia do interesse
público e privado é diluída pela própria realidade. A rede certamente se estende aos
indivíduos: governantes ou ligados a eles, alto empresariado, e mesmo aos “Senhores
Ausentes” de Bauman (elites globais), já que o velho modelo José Ermírio de Morais, que
mostra a cara, assume a responsabilidade e maquia o capital externo, não existe mais. Não
tive folego para avançar nessa direção. O lucro é o que faz conectar atuando sobre a nossa
fome, os nossos instintos mais primitivos, ele não determina, é determinado pela ciência e
técnica que faz possível o agenciamentos deste metal, que o faz parte indissociável da
sociedade no número infinito de conexões que passa a estabelecer e dependências que passa a
criar.
230
É importante ressaltar que tanto a Alunorte quanto a Alumar também são exportadoras de alumina, ou seja,
um percentual da bauxita que é processada aqui vai para fora da mesma forma, só que com uma etapa a mais de
beneficiamento. Exportam mais de 80% de sua produção, conforme disponível em seus sites.
231
MRN. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-‐DOE-‐2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
225
A mitologia do eldorado fez a força dos corações aventureiros dos povos ibéricos para
rasgarem o mundo atrás da fortuna dos metais e gemas. O conhecimento milenar da fundição,
que se liga até os dias de hoje à mais sofisticada metalurgia, proporcionou ferramentas,
extensões ou rizomas do nosso corpo, que deram outro poder a nós e as nossas sociedades. Se
uma tribo conhecer um machado de ferro, não mais utilizará um machado de pedra para cortar
uma árvore e, se ela não detiver a tecnologia para a fabricar a ferramenta, passa a estar
dependente de quem a possui. Se um grupo humano produz armas de metal torna-se quase
impossível para outro rival que não as detiver competir ou defender-se. Armas, germes e aço,
como diria Jared Diamond233, fizeram diferença para o povo europeu, selecionado na guerra e
na doença, imbuído de conhecimentos de muitas civilizações anteriores, para dominar as
terras ameríndias. “Tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste”234, os diferentes
ciclos do ouro, da prata, da esmeralda, do diamante ou outro mineral qualquer, abriram as
veias da América Latina que ainda sangram após todos esses séculos. Agora na técnica das
imensas máquinas, na força dos que detém o conhecimento para fazer armas de uranio ou para
nos seduzir e fazer que desejemos machados de ferro para cortar as árvores com que
construiremos nossas casas ou extrairemos a lenha para cosermos nosso alimento.
232
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às
plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 25
233
DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: o destino das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2007
234
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2010. Disponível em:
http://copyfight.noblogs.org/gallery/5220/Veias_Abertas_da_América_Latina(EduardoGaleano).pdf. Acesso
em outubro de 2010.
226
235
LOPEZ, Octavio J. Minería del Caribe y de América Central. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p.
125.
227
Constitucionais Transitórias – ADCT, dispôs sobre o assunto também nos artigos 43 e 44240.
Uma das grandes inovações e a de maior repercussão para a mineração foi o tratamento
exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: a) toda atividade
nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso
Nacional; b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a
pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção,
comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d) a responsabilidade
civil por danos nucleares independe da existência de culpa;
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XII - jazidas, minas, outros recursos minerais e
metalurgia;
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado. § 3º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em
conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros. § 4º - As cooperativas a que
se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e
jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21,
XXV, na forma da lei.
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o
aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições
específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. § 2º - É
assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. §
3º - A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as autorizações e concessões previstas neste
artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente.
§ 4º - Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de
capacidade reduzida.
Art. 177. Constituem monopólio da União: V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos
cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as
alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a
recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na
forma da lei.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.
240
Art. 43. Na data da promulgação da lei que disciplinar a pesquisa e a lavra de recursos e jazidas minerais, ou
no prazo de um ano, a contar da promulgação da Constituição, tornar-se-ão sem efeito as autorizações,
concessões e demais títulos atributivos de direitos minerários, caso os trabalhos de pesquisa ou de lavra não
hajam sido comprovadamente iniciados nos prazos legais ou estejam inativos.
Art. 44. As atuais empresas brasileiras titulares de autorização de pesquisa, concessão de lavra de recursos
minerais e de aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica em vigor terão quatro anos, a partir da
promulgação da Constituição, para cumprir os requisitos do art. 176, § 1º.
§ 1º - Ressalvadas as disposições de interesse nacional previstas no texto constitucional, as empresas brasileiras
ficarão dispensadas do cumprimento do disposto no art. 176, § 1º, desde que, no prazo de até quatro anos da data
da promulgação da Constituição, tenham o produto de sua lavra e beneficiamento destinado a industrialização no
território nacional, em seus próprios estabelecimentos ou em empresa industrial controladora ou controlada.
§ 2º - Ficarão também dispensadas do cumprimento do disposto no art. 176, § 1º, as empresas brasileiras titulares
de concessão de energia hidráulica para uso em seu processo de industrialização.
229
diferenciado ao meio ambiente e seus atributos que passam a ser “bens de uso comum do
povo”, ou seja, de interesse difuso, “res communis”, de caráter eminentemente público. A
obrigação de reparar o dano causado pela mineração, obrigação já dedutível da Política
Nacional de Meio Ambiente, Lei 6938 de 1981, é ineditamente explicitada na Constituição de
1988. Na mesma linha instituiu-se também uma tríplice responsabilização decorrente de dano
eventual ao meio ambiente: penal (inclusive figurando no polo ativo a pessoa jurídica –
mediante culpa lato senso), civil (responsabilidade objetiva com dever de indenizar e reparar
o dano) e administrativa (correspondente à transgressão de regra administrativa de tutela
ambiental, podendo ser responsabilidade objetiva ou subjetiva conforme a regra
administrativa transgredida).
O reconhecimento da importância da atividade minerária é notório na Constituição de
1988 enquanto atividade de “relevante interesse público”. Por sua vez, com exceção das
substâncias minerais protegidas (radioativas e hidrocarbonetos), a Constituição possibilitou ao
Poder Público autorizar e/ou conceder tanto a pesquisa quanto a lavra para particulares241.
Nesse caso, a grande diferença em relação aos momentos anteriores, está na rigidez do
controle ambiental da atividade pelo reconhecimento de que a mesma pode causar muito mais
prejuízos do que benefícios sem este controle. Aqui a legislação se conecta ampliando os
vínculos e fazendo emergir interesses.
§ 3º - As empresas brasileiras referidas no § 1º somente poderão ter autorizações de pesquisa e concessões de
lavra ou potenciais de energia hidráulica, desde que a energia e o produto da lavra sejam utilizados nos
respectivos processos industriais.
241
Com fins elucidativos segue um breve resumo do regime de concessão e autorização para lavra, baseado no
Código de Mineração em vigor (Decreto-lei 227/1967): 1. Requerimento de Pesquisa em área livre (equivale a
área sem requerimentos ou pesquisas anteriores conforme art. 18 do Código de Mineração). Apresenta-se os
documentos constantes do art. 16 dirigido ao Diretor Geral do Departamento Nacional de Produção Mineral -
DNPM, tais documentos devem ser preparados por geólogos ou engenheiros de minas, atendendo aos requisitos
será emitido Alvará publicado no Diário Oficial da União (ato compulsório). 2. Autorizada a pesquisa o acesso a
área poderá ser negociado com o proprietário ou pleiteado judicialmente, em que serão fixadas as rendas e
indenizações. Após autorizado, o Titular da pesquisa deve iniciá-la dentro de sessenta dias e manter um fluxo
constante de informações para o DNPM, previstos na Lei, até a apresentação do relatório final – Relatório dos
Trabalhos de Pesquisa (art. 22 e 30). 3. Após aprovação do relatório publicada no DOU, o titular tem o prazo de
um ano para requerer a concessão de lavra. Dará entrada então a uma série de documentos para a requisição
dirigidos ao Ministro de Minas e Energia com o Plano de Aproveitamento Económico da jazida. 4. Apresentando
a documentação concernente ao requerimento de lavra será analisada no DNPM e, estando bem instruída,
ensejará a Concessão pelo Ministro de Minas e Energia de uma Portaria, devendo atender aos requisitos do
Licenciamento Ambiental para o aproveitamento da jazida. Cabe ressaltar que também estão previstos os
regimes de a) Licenciamento (substancias de emprego imediato na construção civil) facultado exclusivamente ao
proprietário do solo ou a quem obtiver expressa autorização; b) Permissão de Lavra Garimpeira (substâncias
minerais garimpáveis); c) Extração (para órgão ou entes públicos de substancias utilizadas imediatamente na
construção civil de obras públicas.
230
242
Com exceção do quarto momento os demais encontram-se em: HERRMANN, Hildebrando. A mineração sob
a óptica legal. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da América Latina pela Mineração: Histórico
Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p. 171
231
pela Exploração dos Recursos Minerais – CFEM – que sofrerá reajustes, majorando-os em
geral. 243
A CFEM que substituiu o Imposto Único sobre Mineral - IUM, é uma tributação
específica que recai sobre a atividade de mineração (também recaem as outras tributações em
geral). As alíquotas agrupam as substâncias minerais em quatro grupos: 1. Minério de
alumínio, manganês, sal-gema e potássio – 3% sobre o produto comercializado; 2. Ferro,
fertilizante, carvão e demais substâncias – 2%; 3. Pedras preciosas, pedras coradas lapidáveis,
carbonatos e metais nobres – 0,2%; 4. Ouro – 1% quando extraído por empresas e isento para
garimpeiros. Os recursos são distribuídos da seguinte maneira: 12% para União (DNPM,
IBAMA e MCT), 23% para o Estado onde for extraída a substância e 65% para o município
produtor, conforme a Lei 7990 de 28 de dezembro de 1989. Os recursos do CEFEM por força
da lei, devem ser aplicados em melhorias locais comunitárias, de infraestrutura, qualidade
ambiental, educação, saúde etc. Apesar de existirem diferentes modelos para a cobrança de
Royalties pelo mundo, o Brasil é um dos países com as mais baixas alíquotas244, i. e. está
entre os que menos recebe tributo específico da atividade minerária.
Enquanto atividade causadora de significativa degradação a exploração de recursos
minerais é condicionada ao licenciamento ambiental, seja em âmbito municipal, estadual ou
federal. O licenciamento ambiental torna-se condição para a licença de lavra pelo
Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM. Esse procedimento administrativo sui
generis do direito ambiental, de caráter híbrido (não puramente vinculado e tampouco
discricionário), visa avaliar em todas as etapas do empreendimento (licença prévia, licença de
instalação e licença de operação) os impactos na sua área de influência e a forma como estes
serão controlados/mitigados/compensados, condicionando a expedição das licenças. O
licenciamento ambiental não é ato precário, mas as licenças possuem prazos de validade,
exigindo-se renovações quando vencidas, mas possuindo estabilidade temporal no tempo de
sua vigência. O licenciamento ambiental é precedido de estudos prévios que subsidiam os
tomadores de decisão para a concessão ou não da licença, amparada no “interesse social”.
Estes estudos visam quantificar e qualificar os impactos ambientais, bem como apresentar
globalmente o projeto, a tecnologia utilizada e os responsáveis técnicos, mas não vinculam a
licença. Dentre os diversos tipos de Avaliações de Impactos Ambientais, três são importantes
243
BRASIL. Projeto de Lei nº 5807 de 2013. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=1B5D111BB92060BD820BEF376F
D02721.node1?codteor=1101841&filename=PL+5807/2013
244
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Aspectos Tributários da Mineração Brasileira: Análise
comparativa de Royalties. Brasília, junho de 2009.
233
245
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Instrução Normativa Nº 05 de 02 de setembro de 2009. Disponível
em: http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/o-que-somos/in052009.pdf
246
O jusambientalista Paulo de Bessa Antunes entende ser ilegal a exigência de licenciamento ambiental para a
pesquisa: “Parece-me, portanto, que há uma evidente ilegalidade na exigência de licenciamento ambiental para
as atividades de pesquisa mineral” […]. ANTUNES, P. B. Direito Ambiental. 14ª edição. São Paulo: Atlas.
2012. p. 955. Devo, todavia, dizer que discordo peremptoriamente, a atividade de pesquisa é extremamente
impactante e pude constatar com os meus próprios olhos as estradas sendo abertas e inúmeras árvores sendo
derrubadas para as pesquisas da MRN no Platô Cruz Alta, além de toda a movimentação de lanchas e
mobilização dos pesquisadores e funcionários, com impactos visíveis próximos da comunidade de Mãe Cué,
inclusive sobre a mesma.
234
desenvolvimento. Na medida em que foi ampliando sua penetração social, não apenas no
campo legal, mas sobretudo no moral, foram se multiplicando os diferentes vínculos nos
processos produtivos e obrigando a consideração de fatores de risco inerentes às atividades. A
legitimação de uma atividade como a mineração, até a década de 1970 (ou 1980 para os
países do sul), sustentava-se em um modelo de responsabilidade social coorporativa, num
campo de relações limitado aos seus empregados, clientes, governos, proprietários e
concorrentes. Esse modelo ancorado no universo dos negócios, construía sua aceitação
pública tendo como base argumentativa e publicitária principalmente: os investimentos
realizados, os empregos gerados, o pagamento de impostos, o oferecimento de bens e
serviços, a transferência de tecnologias, a substituição de importações, a entrada de divisas e
as ações filantrópicas como criação de fundações, escolas, hospitais, infraestrutura etc. Esse
modelo de desenvolvimento, com a emergência da questão ambiental, se percebeu acuado e
obrigado a adaptar-se aos novos imperativos morais (legais, políticos, econômicos, sociais,
tecnológicos etc.) atrelados à ideia de crise ambiental, como condição sine qua non de
legitimação social. Esse deslocamento na indústria mineral corresponde à gradativa filiação
ao ideário do “desenvolvimento sustentável”, sacralizado no documento da “Comissão
Mundial da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” de 1987, conhecido como
“Nosso Futuro Comum” ou “Relatório de Brundtland” e nos processos de adaptação
tecnológica denominado “ecoeficiência”. Além da adequação legal brevemente explanada,
nesse “novo modelo” que também incorpora os pontos de legitimação do modelo anterior,
ligados à eficiência econômica, tem somada dois outros vieses de análise: o desempenho
ambiental e o desempenho social (impactos sobre os ecossistemas humanos e não-humanos),
considerados principalmente depois da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento de 1992 no Rio de janeiro. As partes interessadas, aqueles que devem ser
levados em consideração no processo produtivo, são significativamente ampliados. Estes – na
palavra inglesa que se tornou o jargão dos economistas – stakeholders passam a ser: as
organizações das comunidades locais, as ONGs socioambientais, os fornecedores, os
financiadores e outros grupos de interesses especiais, os consumidores, os acionistas, as
mídias, além dos anteriormente considerados. Nesse sentido, o controle se amplia para muito
além do Estado, como é o caso da mineração da bauxita, via de regra relacionada ao mercado
externo, sendo exercido internacionalmente por ONGs, exportadores, acionistas etc247. Nesse
247
BORGES, L. F. Política e Mineração na era da ecoeficiência. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p.
149 - 154
235
248
Nesse sentido ver as obras: VILLAS BÔAS, R. C. Indicadores de desenvolvimento sustentável para a
indústria extrativa mineral: guia prático. Rio de Janeiro: CETEM/MCT/CNPq/CYTED. 2009; VILLAS BÔAS,
H. C. A indústria extrativa mineral e a transição para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:
CETEM/MCT/CNPq. 2011; FERNANDES, F. R. C.; ENRÍQUEZ, M. A. R. S.; ALAMINO, R. C. J. Recursos
Minerais & Sustentabilidade Territorial. Volume I e II. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI. 2011.
236