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UNIVERSIDADE

 FEDERAL  FLUMINENSE  
PROGRAMA  DE  PÓS-­‐GRADUAÇÃO  EM  SOCIOLOGIA  E  DIREITO  
CONFLITOS  SOCIOAMBIENTAIS  E  URBANOS  
 

LEONARDO  ALEJANDRO  GOMIDE  ALCÁNTARA  


 

 
TERRITÓRIO  MINADO  

NITERÓI  
2014  
 
  2  

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

LEONARDO ALEJANDRO GOMIDE ALCÁNTARA

TERRITÓRIO MINADO

 
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Professor Doutor Wilson Madeira Filho

Niterói, 2014
  3  

ALCÁNTARA,  Leonardo  Alejandro  Gomide.  


 
  Território   Minado/   Leonardo   Alejandro   Gomide   Alcàntara,  
UFF/  Programa  de  Pós-­‐Graduação  em  Sociologia  e  Direito.  Niterói,  
2014.  

  428  f.  
   
  Orientação  do  Prof.  Dr.  Wilson  Madeira  Filho  
  Tese   (Doutorado   em   Ciências   Jurídicas   e   Sociais)   –  
Universidade  Federal  Fluminense,  2004.  
 
  1.   Interdisciplinaridade.   2.   Justiça   Ambiental.   3.  
Conflitos   sócio-­‐ambientais.     I.   Dissertação   (Mestrado).   II.  
Título  
  4  

LEONARDO ALEJANDRO GOMIDE ALCÁNTARA

TERRITÓRIO MINADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

Aprovada em 27 de março de 2014.

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________________________
Prof. Dr. Wilson Madeira Filho (PPGSD – UFF)

________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marta de Azevedo Irving (UFRJ)

________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª May Waddington Telles Ribeiro (UFPI)

________________________________________________________________
Dr.ª Alba Simon (SEA)

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Lobão (PPGSD – UFF)

Niterói, 2014

 
 
 
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In memoriam

Ao meu pai, que me deu a vida e deu a vida pela educação de seus filhos.
No curso da redação deste trabalho ele partiu em uma “conjunção astral”.

Lua e estrela a se alinhar


A brisa leve a me beijar o rosto
O carrossel dos seus sorrisos
Girando no gosto da memória
Sonorizando os risos que nos compõem
Fecho os olhos e encontro seus olhos
Negros como o espaço
De onde você me disse que viemos
Onde as estrelas te desenham
E me desenham menino nos seus braços
Vou refletir a sua luz
Assim como a das estrelas faz a lua
Essa angústia sem ter fim foi o desejo do último abraço que não dei
Perpetuadas saudades que se assentam no curso do tempo
Em frente, passo a passo, aguardo o nosso encontro
Meu amado
Homem do espaço
  6  

Dedico este trabalho ao meu filho que ainda não nasceu, concebido um mês
após o falecimento de meu pai, para me ajudar a entender a vida.

Eu já preparo o seu berço


Para quando o rebento rebentar
Meu pequeno germinal
Nesses tempos avassaladores
Todos os rios do mundo nasceram dos meus olhos
Todo peso do mundo verticalizou-se nos meus ombros
E agora... No peso da mão de uma criança
A alma esmagada se põe iluminada
Para fazer a cabeça se curvar sutilmente diante da vida
No respeito
E perceber estar
Dividido e subtraído
Somado e multiplicado
Para fazer a cabeça se erguer sutilmente para o espaço
E perguntar
Faz algum sentido?
E novamente agradecer por esse lindo anjo todo colorido te hospedar
Te gestar e te ser junto comigo
Que sou parte partida na saudade
Parte encontrada na esperança
Parte espera de você
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AGRADECIMENTOS

Esse é um trabalho de muitos, eu apenas o redigi.


Agradeço ao meu orientador, Wilson Madeira Filho, sem o seu profundo apoio essa
tese não existiria. Sem sua paciência e compreensão o trabalho não se encerraria. Esse
trabalho é fruto de sua liberdade de pensamento, de seus ensinamentos e, sobretudo, de sua
amizade.
Agradeço a equipe que acompanhou parte dessa pesquisa, meus amigos, Thaís, Ivan,
Jamile, Denise, Eduardo, Alessandra, Débora, Carol, Cristiane, Marina e Camila. Agradeço
também aos amigos da geografia, Caio, Cauã e Jonas.
Agradeço à Bianca Martins de Queiroz, futura mãe do meu filho, quem esteve comigo
nos momentos mais difíceis deste processo e que tanto me ajudou a construir esse trabalho.
Agradeço à minha mãe e aos meus irmãos que, mesmo com as nossas estruturas tão
abaladas, nos mantivemos fortes e unidos, lado a lado, nos apoiando reciprocamente uns nos
outros.
Agradeço às pessoas da Unidade Avançada José Veríssimo, especialmente ao
Carlinhos, à Mira, ao Paulinho e todos os demais funcionários que sempre dispensaram a
minha pessoa o mais respeitoso tratamento e o mais solidário apoio.
Agradeço aos funcionários do ICMBio, especialmente ao André, ao Nei, à Andréa, ao
Beto, ao Carlos Augusto, ao Copaíba, ao Coruja, ao Maneco, ao Rosimiro, ao Rutivaldo, ao
Gilmar, enfim, todos os demais que tive o prazer de conhecer e que muito contribuíram para o
trabalho. Afirmo aqui também meu agradecimento à instituição que sem o apoio logístico esse
trabalho nunca atingiria suas metas.
Agradeço aos funcionários do IBAMA que me concederam entrevista, em especial ao
Nedel e ao Vinente.
Agradeço aos pesquisadores que me auxiliaram na compreensão da realidade da
pesquisa e me concederam entrevistas. Em especial à Virgínea e ao Richard.
Agradeço aos quilombolas de Oriximiná, em especial aos moradores das comunidades
da Tapagem, do Jamari, do Abuí, do Paraná do Abuí, da Cachoeira Porteira, da Mãe Cué, do
Juquerizinho, do Curuça, do Moura, da Boa Vista, do Último Quilombo, da Nova Esperança e
do Sagrado.
Agradeço aos oriximinaenses que muito contribuíram para a pesquisa, em especial ao
Mário, ao Charlinho, ao Emerson, à Ormezinda, à Fátima e ao Carlos.
  8  

Agradeço aos comunitários das muitas comunidades do Lago Sapucuá que me


hospedaram e me proporcionaram ricas entrevistas e conversas, especialmente ao seu Chico e
Dona Tereza.
Agradeço aos funcionários da MRN que contribuíram com o trabalho.
Agradeço aos meus amigos que acompanharam alguns trabalhos, em especial ao
Lúcio, ao Léo e ao Fabiano.
Todas essas pessoas e muitas outras que não fiz menção direta são parte desse
trabalho.      
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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RESUMO

Esta tese estabelece uma análise dos dissídios entre diferentes grupos de interesses que
recaem sobre os territórios de duas Unidades de Conservação na Amazônia brasileira: a
Reserva Biológica do Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, localizadas no
Estado do Pará. Oriundos das políticas governamentais de desenvolvimento e de conservação
experimentadas durante o regime militar e no início da transição democrática, esses espaços
territoriais protegidos guardam fortes embates assimétricos que envolvem populações
tradicionais, mineração da bauxita, grandes corporações, cientistas de diversas instituições e
entidades governamentais ligadas à gestão ambiental. Uma área peculiarmente marcada pela
intensidade das forças que colidem ao buscar determinar quais práticas devem prevalecer no
uso e ocupação desses territórios, ultrapassando sobremaneira os marcos legais que os regem.
A região em que a pesquisa se debruça situa-se entre os maiores contínuos de áreas protegidas
do país, onde se localiza uma das maiores mineradoras de bauxita do mundo e a primeira
Terra Quilombola titulada no Brasil. Sustentado em pesquisa de campo que buscou conjugar
concomitantemente a análise documental, os relatos orais dos diversos atores e as vivências in
situ, o estudo objetivou percorrer a historicidade e a interatividade entre os grupos de
interesses que vão compor aquela realidade e a integração dos mesmos a uma vasta rede
sócio-técnica que ultrapassa as fronteiras nacionais. A pesquisa está estruturada em três partes
e doze capítulos em que são apresentados o percurso e o desenvolvimento dos trabalhos, a
base epistemológica e metodológica, e a rede de interações estabelecida pelos atores que
configura a sócio-natureza em questão. O estudo resulta em uma densa narrativa que
apresenta as múltiplas estratégias utilizadas para dar legitimação às práticas dos segmentos
enfocados, as conexões que perfazem e reconfiguram os territórios e a distância que marca os
resultados dos diferentes projetos idealizados e a realidade mapeada na pesquisa.

Palavras-chave: conflitos sócio-ambientais, Unidades de Conservação, populações


tradicionais, mineração, ecologia política.
  10  

ABSTRACT

This thesis provides an analysis of the conflicts between different interest groups that fall on
the territories of two protected areas in the Brazilian Amazon: the Biological Reserve of Rio
Trombetas and Saracá-Taquera National Forest, located in the State of Pará. Arising from
government policy development and conservation experienced during the military regime and
the beginning of the democratic transition, these protected spaces keep strong asymmetric
territorial clashes involving traditional populations, bauxite mining, large corporations,
scientists from various institutions and government-related entities environmental
management. An area peculiarly marked by the intensity of the forces that seek to collide
determine which practices should prevail on the use and occupation of these territories,
greatly exceeding the legal frameworks governing. The region in which the research focuses
is among the largest continuous protected areas of the country, home to one of the largest
mining bauxite in the world and the first Quilombo Territory titled in Brazil. Sustained in
field research that sought simultaneously combine document analysis, the oral reports of the
various actors and experiences in situ, the study aimed to go historicity and interactivity
among interest groups that will make up that reality and their integration to a wide socio-
technical network that transcends national boundaries. The research is divided into three parts
and twelve chapters in which are presented the course and development of the work, the
epistemological and methodological basis, and the network of interactions established by the
actors who sets the socio-nature in question. The study results in a dense narrative that
presents multiple strategies used to give legitimacy to the practices of the focused segments,
which make up the connections that reconfigure the territories and the distance that marks the
results of the different idealized projects and reality mapped in the survey.

Keywords: socio-environmental conflicts, Conservation Units, traditional populations,


mining, political ecology.
  11  

LISTA DE FOTOS

Foto 01: Carregador de navios. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.....................36

Foto 02: Soltura dos filhotes de tartaruga-da-Amazônia. Virgínea Bernardes, 2010.............41

Foto 03: Entrada da Reserva Biológica - Flutuante. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2011...........................................................................................................................................46

Foto 04: Festa na Tapagem. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012...........................49

Foto 05: Preparo de tartarugas jovens. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012..........53

Foto 06: Canoa de índio. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012...............................58

Foto 07: Cachoeira Porteira – BR163. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013..........60

Foto 08: Tabuleiros do Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012........103

Foto 09: Teatro Amazonas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012...........................175

Foto 10: Mineração Rio do Norte. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012................215

Foto 11: Torre do Linhão no Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2013.........................................................................................................................................217

Foto 12: Descoberta da bauxita pela Alcan na década de 1960. MRN, 2013......................242

Foto 13: Instalação de Porto Trombetas em 1974. MRN, 2013............................................246

Foto 14: Contaminação do Lago Batata. MRN, 2013...........................................................250

Foto 15: Colocação da bandeira indicando o controle do Governo sobre a área em setembro
de 1976. IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976................................................................................273

Foto 16 e 17: Marcação e soltura de tartarugas apreendidas em 1976.


IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976...............................................................................................288

Foto 18: A castanheira. Leonardo. Alejandro Gomide Alcántara, 2012...............................305

Foto 19: Família do lago do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011...............313

Foto 20: ICMBio/Auto de Infração 033651A/Ocorrência 05/2011.......................................327

Foto 21: Tabuleiros do Rio Trombetas. MMA/ICMBio, 2011..............................................328

Foto 22: Altar da Comunidade do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.......385

Foto 23: Ladainha. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.......................................391


  12  

Foto 24: Cemitério Quilombola da Tapagem. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,


2010.........................................................................................................................................401

Foto 25: Cachoeira Porteira. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.......................415


  13  

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 01: Diário de Campo – Brega 45. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2010...........................................................................................................................................82

Ilustração 02: Jean-Pierre Chabloz, 1942. In. Jornal da Unicamp, nº 542, Campinas. 15 de
outubro de 2012......................................................................................................................191

Ilustração 03: Mineração da Bauxita. MRN/RIMA do Platô Bacaba, 2007........................249

Ilustração 04: Panfletos dos Seminários sobre as barragens na Cachoeira Porteira, 1989 e
1981.........................................................................................................................................396
  14  

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio Trombetas.


MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE..................................................................................300

Gráfico 2: Número de filhotes de tartaruga contabilizados, REBIO do Rio Trombetas. Fonte:


MMA/ICMBio, 2011..............................................................................................................334

Gráfico 3: Comparativo entre o número de filhotes contabilizados de 1986 até 2003 no Rio
Trombetas e Santarém. MMA/ICMBio 2011.........................................................................338

Gráfico 4: Número de famílias no interior da FLONA-ST. MMA/ICMBio,


2011.........................................................................................................................................370

Gráfico 5: Proporção do desmatamento acumulado até 2009 por terra quilombola em


porcentagem de área. Fonte: CPISP, 2011.............................................................................409
  15  

LISTA DE MAPAS

Mapa 01: Diário de Campo – Rota da Pesquisa. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2013...........................................................................................................................................30

Mapa 02: Diário de Campo – esboço do trajeto. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2010...........................................................................................................................................39

Mapa 03: Landsat – Google Earth, 2013.................................................................................67

Mapa 04: Landsat – Google Earth, 2013...............................................................................173

Mapa 05: Porto Trombetas. Landsat – Google Earth, 2013.................................................239

Mapa 06: Projeto Trombetas – mapa das reservas. Greig (1977) reproduzido por Machado,
2007.........................................................................................................................................242

Mapa 07: Platôs de Bauxita. MRN, 2010..............................................................................247

Mapa 08: Floresta Nacional Saracá-Taquera e Reserva Biológica do Rio Trombetas.


MMA/ICMBIO, 2011.............................................................................................................268

Mapa 09: Mapa dos territórios quilombolas incidentes sobre as UCs. MMA/ICMBio,
2011.........................................................................................................................................310

Mapa 10: Zoneamento da FLONA-ST. Fonte: Plano de Manejo da Floresta Nacional Saracá-
Taquera, 2001.........................................................................................................................361

Mapa 11: Mapa geral das novas áreas propostas de inclusão na zona de mineração da
FLONA-ST. MRN, 2011…………………………………………………………………….361

Mapa 12: Mapa Falado da Comunidade da Casinha – Lago sapucuá. MMA/ICMBio,


2011.........................................................................................................................................366

Mapa 13: Zoneamento e Unidades de Manejo Florestal da FLONA-ST. MMA/SFB/ICMBio,


2012.........................................................................................................................................374

Mapa 14: Comunidades quilombolas no interior e entorno da FLONA-ST e na REBIO-RT.


MMA/ICMBio, 2011..............................................................................................................402
  16  

LISTA DE TABELAS

Tabela 01:Fonte: Publicador Paraense – Belém, ano I, nº 64, de 24 de dezembro de 1849, p.1,
reproduzido por BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural.
(2009:124)...............................................................................................................................177

Tabela 02: Pauta de Exportação Mineral do Pará. Fonte: SECEX/MDIC - em


US$.........................................................................................................................................214

Tabela 03: Exportações Brasileiras e Paraenses. Fonte: SECEX/MDIC - em


US$.........................................................................................................................................214

Tabela 04: Unidades de Conservação Consolidadas. Fonte: CNUC/MMA –


www.mma.gov.br/cadastro_uc Atualizada em: 30/08/2013...................................................260

Tabela 05: Descrição das técnicas de pesca, utilizadas pelas comunidades quilombolas do
Rio Trombetas. Fonte: Luciana S. Melo, 2012.......................................................................305

Tabela 6: Descrição das técnicas de caça utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio
Trombetas. Fonte: Luciana S. Melo, 2012..............................................................................305

Tabela 07: Processos Judiciais Referente à FLONA-ST e à REBIO na Procuradoria da


República do Munícipio de Santarém, 2011...........................................................................316
  17  

ABREVIATURAS UTILIZADAS

AACOSMO – Associação dos Agentes Comunitários de Saúde do Município de Oriximiná


ACOMTAGS – Associação das Comunidades da Gleba Trombetas e Gleba Sapucuá
ACORQAT – Associação Comunitária dos Remanescentes de Quilombo da Área Trombetas
ACPAMO – Associação Comunitária dos Pequenos Agricultores do Município de Oriximiná
ACPLASA - Associação Comunitária dos Produtores do Lago Sapucuá
ACRQVB – Associação dos Remanescentes de Quilombo de Boa Vista
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ALBRÁS – Alumínio Brasileiro S. A.
ALCAN – Aluminiun Company of Canada
ALCOA – Aluminium Company of America
AMTMO – Associação de Mulheres Trabalhadoras do Município de Oriximiná
ANM – Agência Nacional de Mineração
APA – Área de Proteção Ambiental
ARQMO – Associação de Remanescentes de Quilombos do Municípios de Oriximiná
ATAAV - Associação Terrasantense dos Agentes Ambientais Voluntários
BASA – Banco da Amazônia S.A.
BAUXISA – Bauxita Santa Rita
BCA – Banco de Crédito da Amazônia
BCB – Banco de Crédito da Borracha
BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento
CAETA – Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia
CAJUFF – Centro de Assistência Judiciária Universidade Federal Fluminense
CAP – Companhia de Alumina do Pará
CEBS – Comunidades Eclesiais de Base
CEDENPA – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará
CEPAM – Conservação da Biodiversidade Amazônica
CEPRAM – Conselho Estadual de Proteção Ambiental
CETESPE – Companhia de Tecnologia de Saneamento Básico e de Controle da Poluição das
Águas
CFEM – Compensação Financeira por Exploração Mineral
CFRO – Casa Familiar Rural de Orixminá
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
  18  

CIVAT – Comissão Interestadual dos Vales do Araguaia e Tocantins


CNAE – Comissão Nacional de Atividades Espaciais Brasileira
COCRITA – Comércio e Criação de Tartarugas Ltda
CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente
CNPM – Conselho Nacional de Política Mineral
CNPT – Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais
CPCB – Centro de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade
CPDH – Comissão Pastoral de Direitos Humanos
CPISP – Comissão Pró-Índio de São Paulo
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CPTPA – Comissão Pastoral da Terra
CSN – Companhia Siderúrgica Nacional
CUT – Central Única dos Trabalhadores
CVRD – Companhia Vale do Rio Doce
DESEC/BASA – Departamento de Estudos Econômicos do Banco da Amazônia S.A
DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral
DRP – Diagnóstico Rápido Participativo
EIA/RIMA – Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental
EMATER-PA – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FAO – Food and Agriculture Organization
FIDAM– Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia
FIEPA – Federação das Indústrias do Estado do Pará
FLONA – Floresta Nacional
FLONA-ST – Floresta Nacional Saracá-Taquera
FUNATURA – Fundação Pró-Natureza
GRI – Global Reporting Initiative
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IIHA – Instituto Internacional da Hileia Amazônica
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPA – Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia
  19  

IPEAM – Instituto de Previdência dos Servidores do Estado do Amazonas


IPHAM – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ITAL– Instituto de Tecnologia de Alimentos
ITERPA – Instituto de Terras do Pará
IUM – Imposto Único sobre Mineral
JABOR – Jardim Botânico do Rio de Janeiro
MECOR – Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais
MMA – Ministério do Meio Ambiente
MPEG - Museu Paraense Emílio Goeldi
MRN – Mineração Rio do Norte S/A
NASA – National Aeronautics and Space Administration
OIT – Organização Internacional do Trabalho
PEAEX – Projeto Estadual Agroextrativista
PES – Programa de Educação Socioambiental
PIB – Produto Interno Bruto
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PNMA – Política Nacional de Meio Ambiente
POLAMAZÔNIA – Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
PPGSD/UFF – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito/ Universidade Federal
Fluminense
PRAD – Projeto de Recuperação de Áreas Degradadas
PRD – Plano Regional de Desenvolvimento
PU - Plano de Utilização
RADAM – Projeto Radar na Amazônia
RDS – Reserva do Desenvolvimento Sustentável
REBIO – Reserva Biológica
REBIO-RT – Reserva Biológica do Rio Trombetas
RESEX – Reserva Extrativista
RLF – Reservas Legais Florestais
SAVA – Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico
SEMA – Secretaria Especial do Meio Ambiente
SEMTA – Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
SFB – Serviço Florestal Brasileiro
SIN – Sistema Interligado Nacional
  20  

SISNAMA – Sistema Nacional de Meio Ambiente


SIVAM/SIPAM – Sistema de Vigilância e Proteção da Amazônia
SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
SOPREN – Sociedade de Preservação dos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia
SPVEA – Superintendência para a Valorização Econômica da Amazônia
STIEMNFOPA – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Minerais Não
Ferrosos do Oeste do Pará
STTRO - Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Oriximiná
SUDAM - Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
SUDEPE – Superintendência de Pesca
SUDHEVEA – Superintendência da Borracha
TAC – Termo de Ajustamento de Conduta
TAMAR – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas
TAR – Teoria Ator Rede
TST – Tribunal Superior do Trabalho
UAJV/UFF - Unidade Avançada José Veríssimo/ Universidade Federal Fluminense
UC – Unidade de Conservação
ZOOFIT – Zoológico das Faculdades Integradas do Tapajós
  21  

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................23

PARTE I: DIÁRIO DE CAMPO..........................................................................................30

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................31

2 O PARAÍSO E O LIMBO.....................................................................................................36

3 EREZU’M-NÁ – A TERRA DE MUITAS PRAIAS...........................................................67


3.1 O marido da abelha ............................................................................................................68
3.2 O sentido do desenvolvimento............................................................................................82

PARTE II: DO CAMPO ATÉ AS REDES, DA SOCIEDADE À NATUREZA.............103

1 TRÊS MATRIZES...............................................................................................................104
1.1 Estruturalismo-construtivista...........................................................................................105
1.2 Rizoma e Multiplicidade...................................................................................................110
1.3 Multiterritorialidade.........................................................................................................117

2 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E JUSTIÇA AMBIENTAL.....................................122


2.1. Breve descrição sobre a questão ambiental e sobre os marcos institucionais
regulatórios.............................................................................................................................122
2.2. As especificidades dos Conflitos Ambientais por uma sociologia estruturalista-
construtivista...........................................................................................................................131

3 A DEMOCRACIA AMPLIADA – HUMANOS, SERES VIVOS E INANIMADOS:


QUANDO TODOS FALAM..................................................................................................136
3.1. Nem mais cultura e nem mais natureza: sobre a Antropologia Simétrica.......................136
3.2. Descrever, escrever, descrever, escrever: a perspectiva metodológica da Teoria Ator-
Rede........................................................................................................................................148
3.3. A Filosofia Política na Antropologia Simétrica...............................................................153
3.3.1. As concepções convencionais do ecologismo..............................................................153
3.3.2. O papel da natureza no discurso público......................................................................155
3.3.3. O coletivo em uma câmara...........................................................................................163

PARTE III: O VALE DO RIO TROMBETAS..................................................................173

1. O PROGRESSO E A ORDEM...........................................................................................174
1.1. Breves passagens na fabricação da Amazônia brasileira.................................................176
1.2. Integrar e desintegrar: o avanço do progresso e a construção da ordem..........................186
1.3. “Amazônia: de última página do Gênesis ao preâmbulo do mundo futuro”...................195

2. OS PLATÔS DE BAUXITA..............................................................................................215
2.1. A máquina minerária........................................................................................................215
2.2. Para além dos territórios e das leis...................................................................................225
  22  

2.3. Mil platôs de bauxita........................................................................................................237

3. A CONSERVAÇÃO E ORDEM........................................................................................253
3.1. A segregação do espaço e os estoques para a ciência......................................................259
3.2. A edificação da governança ambiental no Rio Trombetas..............................................273

4. A RESERVA BIOLÓGICA DO RIO TROMBETAS........................................................288


4.1. O mosaico das violências ................................................................................................311
4.2. A guerra das tartarugas....................................................................................................328

5. A FLORESTA NACIONAL SARACÁ-TAQUERA – FLONA – ST...............................352


5.1. Acima da lei.....................................................................................................................355
5.2. Manejando com os Planos...............................................................................................366
5.3. A concessão florestal.......................................................................................................370
5.4. Por que dar vez às florestas e aos seus povos?................................................................377

6. RECONHECIMENTO E TRADIÇÃO EM MOVIMENTO.............................................385


6.1. Os negros da floresta – a história contada por Dico........................................................385
6.2 Dos grilhões às redes........................................................................................................391
6.3. Demarcou, titulou e acabou?............................................................................................401

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................415

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................427
  23  

APRESENTAÇÃO

Adentrar neste estudo é como abrir um mapa e percorrer os caminhos traçados.


Pegando um barco do município paraense de Oriximiná, um dos maiores do mundo em
extensão territorial, segue-se pelo Rio Trombetas em direção às Guianas. Da embarcação em
pouco tempo não se avistará o município, ocultado em meio à densa floresta amazônica, e,
logo adiante, avistam-se erguidas imensas torres de transmissão de energia, cujos olhos não
alcançam de onde vieram, nem para onde vão. O chamado “linhão de Tucuruí-Macapá-
Manaus”. As águas de tonalidade ocre, opacas, já nas primeiras horas tornar-se-ão verdes,
translucidas, na medida em que o barco se afasta do Lago Sapucuá. O cenário em volta
representará as maiores extensões de floresta tropical do planeta, nas águas baixas, centenas
de praias vão compondo a paisagem e o olhar atento permitirá captar uma explosão de vida
em constante interação. Pequenas embarcações e poucos agrupamentos humanos vão
marcando o caminho, onde a acuidade do olhar vai reparar também as marcações no rio e as
boias sinalizadoras. Quando, no curso da viagem, se deparar com um ou mais navios
transcontinentais, esse momento vai representar, após cerca de cinco horas de percurso, uma
grande ruptura na simetria da paisagem, transfigurada pelas edificações industriais de grande
porte de um shipload. Neste mesmo local situa-se o distrito de Porto Trombetas, cujos olhos,
neste momento, avistará apenas uma praça em frente ao porto dessa “cidade” que abriga os
funcionários de uma das maiores mineradoras de bauxita do mundo: a Mineração Rio do
Norte - MRN. Ao lado esquerdo do rio, os platôs de onde se extrai a bauxita, acompanham o
trajeto fora do campo de visão. Seguindo o curso, em menos de vinte minutos, se avistará, ao
lado do distrito, a comunidade de Boa Vista, a primeira Terra Quilombola titulada no Brasil.
Ali se avistarão várias casinhas aglomeradas de alvenaria e telha de amianto, onde antes
existiam poucas casinhas de madeira cobertas com palha de ubim. Adiante, em menos de uma
hora, aparecerá uma casa flutuante com uma grande placa que anuncia que dali pra frente a
entrada é proibida, somente possível quando autorizada, marcando a presença do Governo
Federal. Agentes fiscais se revezam quinzenalmente neste flutuante por meio do qual o Estado
exerce suas políticas de conservação. De um lado do rio está a Reserva Biológica do Rio
Trombetas, do outro a Floresta Nacional Saracá-Taquera, duas unidades de conservação que
marcam com seus 849.036,86 hectares a agrimensura da pesquisa. Continuando o percurso, o
que já fora observado ao longo, várias pequenas entradas se abrem para imensos lagos onde
geralmente se assentam pequenos agrupamentos humanos. Nos dois lados do Rio Trombetas
  24  

serão avistadas casas suspensas de madeira e palha, espaçadas, podendo marcar as horas do
percurso após o flutuante. Focando o olhar percebe-se a peculiaridade étnica dessas
comunidades, que, diferente das demais ao longo do trajeto, seus habitantes são
predominantemente negros. Cerca de cinco horas após o ingresso nas unidades de
conservação, outra base de fiscalização se avista, com uma pequena balsa e uma escadaria em
terra que leva a um grupo de casas onde, geralmente, se alojam os pesquisadores. Neste
momento se iniciam grandes extensões de areia sobre o rio, chamadas de tabuleiros, estes, em
outros tempos, representaram o maior berçário conhecido da tartaruga-da-Amazônia. Essas
grandes praias seguem acompanhando a paisagem por mais algumas horas até que paredões
de pedra passam a compor o cenário e, ao longe, soará forte a turbulência das águas. Pouco
depois uma grande cachoeira será avistada e impossibilitará a continuação do percurso no
barco. Adiante, somente de canoa. Chega-se aos limites da Reserva em uma comunidade
chamada Cachoeira Porteira. Índios, negros e ribeirinhos são avistados no vilarejo, uma
estrada o corta rumo ao infinito, a BR-163, e pouco acima da cachoeira está a comunidade
indígena de Tawanan. Neste recanto, que paira um projeto insepulto de uma hidroelétrica, se
finda o traço longitudinal do percurso desta pesquisa.
A breve descrição tem como escopo ilustrar a intensidade das relações imbrincadas
nesses territórios em que a pesquisa se debruça. Multinacionais mineradoras, indígenas,
quilombolas, governo, ONGs, cientistas, ribeirinhos e o que mais se liga das florestas, das
águas e dos solos compõem essa sócio-natureza. As diferentes simetrias que caracterizam os
distintos atores recria uma contenda territorial peculiar que abrange desde a inviabilização de
modos de vida de determinados grupos, disputas na acessibilidade dos recursos do ambiente,
até os modelos de desenvolvimento nacional e de conservação da sociobiodiversidade. Todos
confrontam os sentidos e as qualificações possíveis para essas áreas, as conexões e os
agenciamentos que podem ser estabelecidos.
O estudo versa sobre os “conflitos socioambientais” em espaços territoriais
especialmente protegidos na Amazônia brasileira; mais especificamente em duas unidades de
conservação, consideradas de importância nacional tanto para a preservação da
biodiversidade, quanto para o uso sustentável dos recursos naturais: a Reserva Biológica do
Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, situadas na mesorregião do Baixo
Amazonas, microrregião de Óbidos, em uma região conhecida como Alto Trombetas no
município de Oriximiná. Os imbróglios e os próprios espaços empenhados na análise
originaram-se a partir das políticas de desenvolvimento e de conservação experimentadas no
regime militar, que empenhou uma nova colonização do espaço amazônico para integrá-lo a
  25  

um ideal de progresso. Compreender a distribuição e a configuração do poder que recai sobre


essa geografia multiterritorializada marca o objetivo da pesquisa.
Neste estudo os conflitos não são tomados como algo que cristaliza em polos opostos
grupos de interesses antagônicos, que se digladiam num campo de batalha em torno do que é
o mais justo, ou mais legítimo, ou tem força maior para se impor e a partir daí recriar o
território. O conflito é percebido como um encontro de diferentes forças que se transformam
em suas colisões dentro de uma realidade vivida e experimentada. Está em movimento
constante, o que se estende ou se retrai ou se coliga, não é compreendido aprioristicamente,
senão dentro dos traços que são deixados e que podem ser demonstrados. Esses traços
traduzem uma história de relações que pode ser narrada dentro de uma temporalidade. São
eles os caminhos deste mapa que, por sua vez, se subdivide em três partes, que correspondem
a diferentes momentos seccionados, não apenas nos assuntos, mas também nas velocidades,
todavia complementares na compreensão do todo da tese.
Parte I
A primeira parte do estudo visa apresentar como a pesquisa foi desenvolvida e
aproximar o leitor da realidade em que ela se assenta, neste momento, sem lançar mão de uma
discussão teórico-metodológica. Parte-se de uma seleção dos principais momentos grafados
em diários de campo, correspondentes à cerca de duzentos dias de vivências in situ,
sustentadas a partir de três eixos de investigação:
a) o primeiro diz respeito à base documental, em que foram utilizados pareceres, processos,
planos de manejo, laudos antropológicos, estudos de impacto ambiental, representações, notas
técnicas, normativas, entre outros documentos somados aos estudos acadêmico-literários das
pesquisas de áreas diversas que se empenharam na região de estudo ou que auxiliaram na
compreensão da mesma;
b) o segundo eixo se sustenta nas percepções dos diversos atores sobre os dissídios que os
envolve, neste momento a investigação se deu por meio de entrevistas gravadas e conversas
estabelecidas com representantes das comunidades tradicionais, agentes e autoridades
governamentais, funcionários da empresa, cientistas e representantes de movimentos sociais;
c) o terceiro eixo corresponde às vivências propriamente ditas, em que se buscou ir nos
diferentes locais para experimentar as diferentes realidades e contrastar, sempre que possível,
o que dizem os documentos, o que dizem as pessoas e o que se pode observar.
Os instrumentos utilizados para coleta de dados foram câmera fotográfica, filmadora,
gravador de voz e computador. Esta primeira parte está subdividida em três capítulos: o
primeiro introduz de maneira panorâmica a multiplicidade das políticas que recaem na região
  26  

enfocada; o segundo narra os trabalhos de campo realizados com base nos diários de campo,
neste momento sem dar voz aos múltiplos atores, apenas descrevendo a experiência; e o
terceiro capítulo busca uma apresentação do município de Oriximiná contextualizada com a
complexidade de sua vastidão territorial.
Parte II
No início da pesquisa adotei enquanto viés de análise, sem pretensões de uma pureza
teórica, a perspectiva estruturalista-construtivista, pela sua ampla utilização na sociologia da
questão ambiental no estabelecimento de um “campo próprio dos conflitos socioambientais”.
Neste primeiro momento tracei hipóteses que focavam os posicionamentos ocupados pelos
diferentes atores em conflito, com seus respectivos “capitais” empenhados na “luta cognitiva
e classificatória” pelas mudanças de posições pleiteadas no “campo”. No caso, o que
representa a própria ocupação e utilização do território: quais práticas são mais legítimas,
mais justas, mais sustentáveis etc. Nesse sentido, o objetivo geral da tese, neste primeiro
momento, foi compreender e explicitar as contradições e as discrepâncias de poder no uso
desses territórios associadas à uma perspectiva de justiça. Em síntese, a partir de um modelo
sistêmico em que os elementos da realidade poderiam ser inseridos, para que se
compreendesse as “estruturas profundas” que determinam a realidade e o movimento dos
atores, que não são perceptíveis apenas empiricamente, pois representam “forças sociais
ocultas”.
A constante necessidade de amputar aspectos da realidade percebidos enquanto
relevantes, mas que não eram comportados pela moldura, me levou a uma mudança de
perspectiva, induzida também por afinidades filosóficas anteriores. Com essa mudança, todos
os artigos escritos na fase exploratória da pesquisa, que compuseram grande parte do “projeto
de qualificação”, tiveram que ser abandonados ou refeitos. A transição empenhada se
apresentou não apenas como uma “troca de paradigma”, mas como uma mudança na “forma
de ver o mundo”. Esse momento foi aproveitado na segunda parte da tese com o intuito tanto
de elucidar essa transição, quanto de empenhar diferentes perspectivas epistemológicas que,
ao configurarem ontologias e metafísicas muito distintas sobre o que é o “social”, marcam
diferentes possibilidades de leitura para os conflitos socioambientais.
Essa segunda parte também é subdividida em três capítulos. O quarto capítulo
apresenta sucintamente as três matrizes teóricas que influenciaram o desenvolvimento da
pesquisa. No quinto capítulo é apresentada toda uma base conceitual que aporta diferentes
compreensões da questão ambiental e dos conflitos sobre os recursos, dentro de algumas
concepções, destacando-se a do estruturalismo-construtivista. O sexto capítulo trata a
  27  

perspectiva filosófica de maior influência e são esmiuçadas as problematizações, os


posicionamentos e o método de abordagem da pesquisa. Para efetuar sua análise a pesquisa
não ficou fidelizada a nenhum direcionamento exclusivo, marcando sua interdisciplinaridade,
mas se valeu do instrumental da teoria ator-rede, dos rizomas e da antropologia simétrica
enquanto orientações filosóficas. Sob esta perspectiva, a sociedade não é explicada pelas
“relações sociais”, mas compreendida dentro das associações que a compõem, dentro de uma
multiplicidade em que tudo que se encontra e transforma a realidade – quando possível de ser
observado no plano do real – deve ser computado, independente de ter origem humana ou
não. Os “atores sociais” passam a não ser apenas seres-humanos, mas qualquer coisa que
“cria” a realidade social, nesse sentido emprega-se também o termo actante. A divisão entre
cultura e natureza é rompida pelo abandono da noção usual de cultura e de natureza
simultaneamente, a dicotomia é fundida não pela relação de interdependência ente duas
entidades, mas de uma existência inseparável e irredutível a uma coisa ou à outra, o que se
busca explicar neste sexto capítulo que encerra a segunda parte tese.
Parte III
O que causa estranheza, num primeiro momento, é planificar o que é tradicionalmente
compreendido enquanto sociedade com aquilo que se designa como natureza, mitigando
completamente uma racionalidade transcendente na ação, arraigada na visão moderna de
mundo. Por sua vez, na prática, essa perspectiva opera de maneira simples, substancialmente
empírica, onde se descreve o que está se conectando e construindo a realidade. Passa a
considerar igualmente os seres vivos, não vivos e seres-humanos, sem recorrer a nenhuma
força invisível oculta para explicar o social, tudo deve poder ser demonstrado. É como contar
a história frisando como-uma-coisa-se-liga-a-outra. A perspectiva, que também não passa de
mais uma versão analítica da realidade, rompe de certa forma com a ciência paradigmática,
pois ao recusar um “modelo” de explicação, recusa a própria explicação, apenas se narra o
que se observa em associação e a realidade deve se auto-explicar. Por esse viés cada passo do
trabalho pode ser refeito, aprofundado, ampliado ou subtraído, está suscetível de receber
modificações constantes.
Esse norte filosófico operou também como uma “escusa epistemológica” para se
descrever tudo o que estava sendo vivenciado a partir dos três eixos de análise. Nesse sentido,
a terceira parte da tese corresponde às narrativas que descrevem as conexões entre os
diferentes atores e seus dissídios atrelados a um “modelo” de sociedade em expansão. Foram
produzidos seis capítulos que obedecem a uma cronologia e se apresentam por uma
  28  

homologia estrutural: primeiro é estabelecido um delineamento histórico-descritivo e depois


passa-se a analisar as interações e a rede de conexões que perfazem aquela realidade.
No sétimo capítulo são narradas como as políticas governamentais avançaram sobre o
norte do país, muitas vezes associadas à grandes grupos econômicos transnacionais,
enfatizando também as percepções destas políticas sobre os povos locais e seus modos de
vida. No oitavo capítulo é apresentado o agenciamento da bauxita de Oriximiná, traça-se todo
um histórico de conexões entre várias mineradoras e destas com o governo que, a partir daí,
viabilizaram o empreendimento que dá origem à MRN, busca-se também descrever a
reconfiguração territorial que representou a chegada do Projeto Trombetas na região. No nono
capítulo é narrada a ascensão e a penetração da questão ambiental nas políticas
governamentais, a consagração do modelo de conservação com base na segregação territorial
e o início da governança ambiental na área do estudo. No décimo capítulo é apresentada a
história de criação da Reserva Biológica do Rio Trombetas, os conflitos que se recriaram e
que ainda subsistem, e as incertezas que pairam sobre o destino deste espaço territorial
protegido e da espécie que ele visa conservar, a tartaruga-da-Amazônia. No décimo primeiro
capítulo é narrada a polêmica história da Floresta Nacional Saracá-Taquera, criada para
atender aos interesses da MRN em que se assiste o uso sustentável dos recursos florestais
exercido pelos remanescentes de quilombo e ribeirinhos, sendo sobrepostos à mineração da
bauxita, que efetua a supressão total da floresta, na unidade de conservação destinada à
exploração dos recursos florestais. Por fim, no décimo segundo capítulo é apresentada a
história de luta dos remanescentes de quilombo de Oriximiná, que estabeleceram conexões
com uma rede internacional de atores e, a partir daí, ganharam ampla visibilidade e força
política que está reconfigurando novamente o espaço territorial em análise, com as demandas
para a titulação dos territórios. Com exceção do sétimo capítulo todos os demais se sustentam
nos três eixos de análise e apresentam as perspectivas dos diferentes grupos de interesse,
dando voz a eles e focando também a interatividade entre os mesmos.
O estudo percorre uma vasta área por meio de uma cuidadosa narrativa que descreve
uma realidade muito singular em um momento muito singular. A ampla rede de interações
percorrida revelam nós que atam diferentes interesses e recriam realidades próprias. Abdicar
de recorrer às estruturas profundas, às genealogias, à razão transcendente, às forças sociais
ocultas, enquanto modelos de inteligibilidade dos conflitos sociais, se revelou de grande
utilidade para dar visibilidade aos nós, aos interesses e às realidades que envolvem as pessoas,
as ações e as responsabilidades. É importante salientar que tanto a pesquisa documental
empenhada, como os depoimentos colhidos, quanto as vivências realizadas, ainda quando
  29  

conjugados para a análise, podem falhar, todos configuram percepções. Quaisquer suposições
adicionais valorativas, que serão apenas suposições, tomaram como norte a ideia de uma
democracia ampla, que visa apreender a pluralidade dos seres. As linhas e os nós que atam a
rede narrada, que dão os caminhos deste mapa, são portas abertas para novas pesquisas ou
para intervenções ou ações. Contudo, condizente à filosofia que inspira o trabalho, aspira-se
que eventuais ações não venham de modelos pré-concebidos, mas que brotem diretamente
destes solos.

 
  30  

PARTE I – DIÁRIO DE CAMPO

Mapa 01: Diário de Campo – Rota da Pesquisa. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2013.
  31  

1 INTRODUÇÃO

Com toda a sua exuberância a Amazônia brasileira, a maior floresta tropical do


planeta, além de abrigar incomensurável biodiversidade, é um reduto sem precedentes de
recursos madeireiros, minerais, hídricos e energéticos que salta aos olhos do mundo como um
dilema que antagoniza ideais de conservação e de desenvolvimento, de soberania e de
internacionalização de espaços, apresentados por uma multiplicidade de discursos que vão do
local ao global. Mas, além das riquezas compreendidas como “naturais”, a Amazônia possui
também vasta diversidade “cultural” como uma terra de muitos e distintos povos que vão dos
seus índios, quilombolas e ribeirinhos aos colonos, fazendeiros e citadinos, apresentando
diversas formas e razões de uso e ocupação desse vasto território, já há muito, habitat
humano.
A multiplicação de projetos de ocupação das terras amazônicas por grandes
empreendimentos, de exploração de seus recursos e de desenvolvimento econômico, na
perspectiva de uma nova colonização, foram significativamente incentivados pelo governo
brasileiro no curso das décadas de 1960 e de 1970. O levante de uma bandeira de apropriação
territorial, a sedução de um progresso homogeneizador, a atuação de missionários religiosos,
ONGs, multinacionais e toda sorte de piratas, confrontados com as tradições culturais
daqueles que ali sempre estiveram, em suas múltiplas relações, constitui a complexa realidade
social desse grande bioma. Uma história que guarda o estigma de ter relegado à invisibilidade
grande parte dos que ali tradicionalmente subsistem e estabelecem uma peculiar relação com
seus territórios. Aqueles que vivem em comunidades com menor acesso aos marcos
decisórios da sociedade foram, muitas vezes, vitimados por madeireiras, fazendeiros,
grileiros, sojicultores, pecuaristas, políticas públicas de infraestrutura e de conservação,
missionários, mineradoras etc. Não obstante estabelecerem modos de vida integrados com
aquele ambiente, são constantemente deles expulsos ou retirados, ou têm seus modos de vida
inviabilizados. Habitantes de um mundo onde se recria a todo tempo uma realidade de
contrastes, de uma dinâmica cultural viva, intercambiante, de aspirações de progresso e
desenvolvimento concomitantes às de proteção socioambiental. Povos que vem se articulando
politicamente através de associações formalizadas ou não, mais e mais demandam a
demarcação de seus territórios, reivindicam maior influência no poder, reinauguram modos de
vida singulares e formalizam novas e velhas formas de lidar com o território e com a
  32  

propriedade, com base na ideia de uso comum. Criam-se percepções ainda não harmonizáveis
em nossa tradição jurídica privatista.
A presente pesquisa foca essa realidade severamente marcada pelos processos de
disputa sobre os recursos ambientais – acesso, controle e exploração – em um território de
grande riqueza e sobre um viés que retrata um marco indispensável na inteligibilidade das
sociedades contemporâneas: a sustentabilidade dos modelos de desenvolvimento e a
distribuição de poder sobre os recursos naturais. Esse vasto campo amazônico, no qual a
investigação se empenha, antagoniza a barbárie civilizatória do desenvolvimento, o
enclausuramento impositivo das políticas conservacionistas e a luta por reconhecimento dos
velhos povos de lá, imbricadas entre o discurso da defesa da tradicionalidade identitária e as
novas ambições materiais, abduzidos pela sociedade de consumo.
O mundo de contrastes circunscreve-se nas linhas de um dos maiores municípios do
planeta em espaço territorial e no seu entorno: Oriximiná, localizado na calha norte do Estado
do Pará, na região oeste. O município, instalado em 1934, situa-se na mesorregião Baixo
Amazonas e microrregião de Óbidos (01º 46` 00" S e 55º 51` 30" W.Gr.), faz divisa ao norte
com o Suriname e com a Guiana Francesa, ao leste com o municípios de Óbidos, ao oeste
com o município de Faro e o estado de Roraima e ao sul com os municípios de Juriti e Terra
Santa. Conforme o IBGE (2010) possui uma população urbana estimada de 40.147 e rural de
26.674. Com um território de 107.602,99 Km², o município encontra-se em área de particular
beleza, com seus grandes rios, lagos, praias, igarapés e toda a complexidade e opulência da
floresta amazônica.
Desde meados da década de 1970, acompanhando as referidas políticas
governamentais que focavam implementar grandes empreendimentos na Amazônia, norteados
pelos ideais desenvolvimentistas hegemônicos e pelo mito dos “territórios vazios”, o
município de Oriximiná assistiu a uma forte modernização e dinamização de sua economia.
Ao longo da bacia do Rio Trombetas, principal rio da região que nasce na fronteira do
Suriname e da Guiana Francesa, desaguando no Amazonas, foram experimentados enormes
projetos para apropriação dos recursos minerais e do potencial hidroelétrico, visando tornar a
área um novo polo de desenvolvimento. Empenharam-se nessa colonização do território
empresas como a ELETRONORTE, ALCAN, ALCOA Mineração S.A., Mineração Rio do
Norte – MRN, Andrade Gutierrez, Jarí, Petrobrás, Engerio, entre outras, incentivadas,
subsidiadas e apoiadas pelo Estado brasileiro. Dentre estas empresas, a que efetivamente se
consolidou na região foi a MRN, constituída em 1974 por empresas nacionais e
internacionais, possuindo como acionistas a Vale do Rio Doce (40%), BHP Billiton Metais
  33  

(14,8%), Rio Tinto - Alcan (12%), Companhia Brasileira de Alumínio – CBA (10%), Alcoa
Alumínio S.A. (8,58%), Norsk Hydro (5%), Alcoa World Alumina (5%) e Alcoa AWA
(4,62%).
A MRN atua na mineração e beneficiamento primário da bauxita, iniciando sua
produção com 3,3 milhões de toneladas anuais e atualmente produzindo cerca de 18,1 milhões
de toneladas por ano de bauxita, matéria prima do alumínio. Para acomodar seus funcionários,
pesquisadores, diretores e todo pessoal de suporte, foi criada uma sede urbana para a empresa,
denominada de Porto Trombetas, com mais de 6.000 habitantes e com uma infraestrutura
social muito superior à do próprio município de Oriximiná. Uma “cidade” fechada, recolhida
sobre si mesma, a qual surpreende pelo rigor e disciplina, controlando quem entra e quem sai,
possuindo “hora de recolher” dos bares e restaurantes, exibindo escolas, hospitais,
laboratórios, áreas de lazer, comércio etc.
Concomitante aos projetos de desenvolvimento experimentados na região, revelando
quão antagônicas foram tais políticas públicas, criaram-se duas unidades de conservação de
importância nacional nos arredores de Oriximiná e municípios vizinhos: A Reserva Biológica
do Rio Trombetas, com cerca de 408.000 ha, criada em 1979 pelo Decreto Federal nº 84.018
de 21 de setembro do mesmo ano; e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, com 429.600 ha,
criada no final de 1989 pelo Decreto Federal 98.704 de 27 de dezembro de 1989, abrangendo
três municípios: Oriximiná, Faro e Terra Santa – ambas são atualmente disciplinadas pelo
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei 9985/2000. De um lado, o
desenvolvimentismo predatório da mineração, da hidroelétrica, da abertura de estradas; e de
outro, a conservação segregacionista e excludente da reserva biológica e da floresta nacional,
unidades de conservação que demarcam o campo preciso desta pesquisa.
Os impactos ambientais e sociais das grandes empresas que por lá passaram são de
complexa mensuração, pois não apenas modificam os modos de vida das populações e dos
ecossistemas, mas recriam em âmbito local toda uma rede de atores e relações de poder que,
por fim, mudam a dinâmica do ambiente (sócio-natural) completamente. A criação das duas
unidades de conservação está intimamente ligada ao modelo de apropriação do ambiente que
se instaurou. Apesar de operar como uma garantia de proteção da biodiversidade e dos
recursos naturais daqueles territórios, as unidades foram sobrepostas aos territórios de
populações tradicionais ferindo profundamente outra riqueza que a região de Oriximiná
guardava: os modos de vida de populações tradicionais, sobretudo os remanescentes de
quilombos que há cerca de duzentos anos habitam o vale do Rio Trombetas, exatamente na
área que passou a ser abrangida pelas unidades e pela mineração.
  34  

As populações tradicionais da região, ribeirinhos, indígenas e quilombolas, excluídos


do processo de desenvolvimento e prejudicados pelas políticas de conservação, tiveram o seu
levante nas décadas de 1980 e 1990. Organizados, subvencionados, orientados e subsidiados
pelos movimentos pastorais da Igreja Católica de inspiração libertária e reativa e,
posteriormente, por organizações internacionais e nacionais, os tradicionais da região ganham
voz e cultura política, constituem associações formalizadas e real inserção nos espaços de
consulta e deliberação coletiva. Inovam a partir de suas próprias tradições ao terem suas terras
tituladas em regime coletivo de exploração, confrontando com o modelo de propriedade
privada, mais aceito na tradição política e jurídica brasileira. Por sua vez, percebem-se
ameaçados em suas culturas e práticas, confrontadas com o novo mundo penetrante e sedutor,
desejado, mais do que imposto, mas com um custo alto, impagável. Escancaram seus
contrastes internos ao enfrentarem a dinâmica de modernização do seu mundo, sofrem
problemas de regularização fundiária de seus territórios, invasão de fazendeiros e caçadores
em suas terras, repressão dos órgãos governamentais entre outros fatores que vão
transformando a forma como os mesmos lidam com seu ambiente.
Nesse contexto, junto às empresas e populações tradicionais a figura do Estado é
substancialmente importante para o estudo e, explicitamente, o que ostenta as maiores
contradições. Na esfera judicial pode-se eleger o termo “ausência” para definir
hiperbolicamente a situação. O constante revezamento de magistrados e promotores, que
nunca criam vínculo com a região, e o reconhecido esforço de um único defensor público para
o município de Oriximiná e vizinhos, traduz o papel menoscabo do Judiciário enquanto poder
incumbido de dirimir os conflitos sociais de toda ordem na região. Com uma ressalva: o papel
do Ministério Público Federal, presente no município de Santarém, apresenta-se com
considerável importância no desdobramento dos conflitos socioambientais pertinentes às duas
unidades de conservação. Na esfera pública municipal as gordas verbas provenientes dos
royalties da mineração fomentaram uma política e uma cultura assistencialista em que laços
de dependência mútua se concretizaram, através do combustível para alimentar os geradores e
embarcações, somadas à política de transferência de renda do governo federal, onde as
comunidades tradicionais tornam-se também, na prática, verdadeiros currais eleitorais. Na
esfera estadual, com atuação menos significativa na área do presente estudo (unidades de
conservação federais), tem-se como pertinente a análise dos processos de titularização de
terras e os processos de licenciamento para exploração de madeira nas áreas adjacentes. Por
fim, na esfera federal a atuação de órgãos como o antigo IBDF, o IBAMA e mais
recentemente o ICMBio, revelam as mudanças de postura governamental com relação às
  35  

populações tradicionais e polêmicas questões sobre autonomia e subordinação com relação


aos fortes poderes econômicos que atuam na área.
Recentemente os recursos madeireiros vêm despertando os olhares do respectivo setor
industrial para a região. Com a Lei 11.284/2006 que implementou uma nova política de
gestão de florestas públicas, dois importantes instrumentos foram criados para conter a
derrubada criminosa da floresta amazônica: o Manejo Florestal Sustentável e a Concessão
Florestal. Em 2010 foi licitada a Concessão Florestal na Floresta Nacional Saracá-Taquera.
Novos conflitos territoriais afloraram entre empresas, governo e tradicionais, sobretudo com
relação à demarcação de terras e áreas para escoamento dos produtos madeireiros, mesmo
antes de se iniciar a produção. Entretanto, questões mais graves relacionadas à exploração da
madeira e outros recursos florestais avistam-se no horizonte através do crescente número de
parcerias firmadas entre comunidades e empresas. As associações de comunitários, para as
quais suas terras são tituladas em regime coletivo, firmam contratos com empresas
madeireiras que se valem do Manejo Florestal Sustentável para mascarar a usurpação desses
recursos, por meio de pactos ilegais e desproporcionais.
O breve contexto marca a realidade em que a presente pesquisa se assenta. A análise
foca as conexões, agenciamentos e multiplicidades que constituem aquela densa rede sócio-
natural de interações. Neste sentido, não se propõe uma “descrição de fatos” com base em um
eixo “genético/genealógico” ou de uma “estrutura profunda” que determina a realidade.
Também não há pretensão de abarcar todas as interações que se multiplicam ou se cessam, ou
se encontram ou se desviam a todo instante. Parte-se de um esforço empírico a partir de
vivências, entrevistas, análise de documentos que buscam resultados que possam contribuir na
inteligibilidade dessa realidade que explicita contradições tão profundas nas políticas de
desenvolvimento, de conservação e da dinâmica das transformações culturais.
  36  

2 O PARAÍSO E O LIMBO

Impressões do lado de cá
Descrevo, sabendo que a palavras não abrangeriam o que de fato gostaria de dizer, o que
sobre os meus olhos se impõe e os meus sentimentos inunda. Entorpecido com tanta vida,
viva, cores, vida sobre vida, morte e vida. Da textura fina das meninas de pele cobre, das
águas cálidas sobre a areia clara, o horizonte dos rios ultrapassa a distância dos olhos e se
perde no oceano doce onde o sol se esconde.
Do mundo os contrastes afloram, da beleza que se rouba, da terra que se estupra, do bicho
que se come na fome dos gostos dos homens, dos seres milenares que vão ao chão para
tornarem-se nossos objetos. Experimento! Nunca sei muito bem onde se encaixa o que digo e
acredito. Apenas vivo para sentir que existo junto a isso.
Moderados sentimentos, cada conversa, cada palavra, revelam que os sentidos se modificam
a cada instante na repetição da tradição de anteontem. Milenar! As pessoas dos rios me
disseram sobre o tempo, a imensa escultura dos nossos saberes, passa percebido sobre tudo
em volta, onde estou e sou.
Queria fazer sentir em cada um, parte de cada um, de tudo que existe, mas se sinto, por que
me sinto só? Essa busca do medo maior fazia controlar tudo e daí se expandir para o infinito,
dentro e fora das nossas ambições e desejos de conseguir ter alguém! Ou tudo?
Saudades.

Abril de 2010

Foto 01: Carregador de navios. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.


Chegávamos ao aeroporto de Porto Trombetas por volta das oito horas da noite do dia
08 de abril de 2010. Éramos oito, dentre estudantes de graduação, mestrado, doutorado e o
professor que ministrava a disciplina de Prática de Pesquisa II, razão da viagem. Logo na
chegada nos deparamos com um acontecimento surpreendente: não podíamos ingressar na
“cidade”, devido a uma falha de comunicação. Não anunciamos nossa chegada na referida
data e o ingresso dependia de uma autorização prévia que não detínhamos. Aguardamos por
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cerca de uma hora no pequeno aeroporto até que a situação se resolvesse após conversa com
representante da área de comunicação da empresa, Sr. Pedro Ribeiro, prosseguindo então para
o hotel em que nos alojamos. O breve acontecimento guardou em si uma inusitada situação:
como poderia ser necessário autorização para ingressar em um distrito? Considerando que
éramos na maioria profissionais do Direito, e como tal, tínhamos para nós enquanto
fundamental e constitucionalmente previsto o direito de ir e vir, em se tratando de espaços
públicos sem aparentes restrições. O pequeno distrito de Oriximiná, Porto Trombetas, a
company town, chamou-nos a atenção por sua peculiar condição de uma “cidade enclave”,
recolhida em si, controlada, disciplinada e normatizada pela Mineração Rio do Norte, que o
criou e que o mantém, dando a razão de sua existência.
Ordem, disciplina e controle são termos que retratam bem a realidade do pequeno
distrito, a lógica operacional das grandes empresas como a MRN e a busca obstinada da
modernidade em suas múltiplas expressões. São termos que guardam peculiar importância na
inteligibilidade do contexto da presente pesquisa. A pequena cidade industrial, incrustrada na
densa floresta amazônica, está conectada às grandes minas de bauxita e desemboca no Rio
Trombetas, onde opera o seu “shiploader” (carregador de navios). Diariamente navios
transcontinentais chegam ao Porto de Trombetas para se abastecerem do minério e o levar a
diversos lugares do mundo. A bauxita ali comercializada, minério com baixo valor agregado,
é levada para diferentes locais para ser transformada no leve metal chamado alumínio.
O contraste sobre os olhos não se dá apenas com a imagem dos imensos navios sendo
carregados na cidade industrial frente àquele rio e floresta tão exaltantes, ou das grandes
minas manchando a floresta de vermelho nas fotos de satélite ou nos sobrevoos, mas também
no choque entre os que ali há muito vivem na absorção da nova ordem, na conjugação entre
exploração minerária e preservação ambiental, na relação entre multinacionais e o governo
brasileiro. Contraste, contradição e paradoxo são termos também substanciais para elucubrar
o círculo imaginário que recai sobre aqueles territórios delimitando a abrangência desta
pesquisa, que muitas vezes o ultrapassa, quando da possibilidade de conduzir-se no fluxo de
seus múltiplos rizomas. Da dialética que desconstrói para reconstruir, da ambivalência que
valora o que se antagoniza, para a multiplicidade e polivalência dialógica das redes e
interações que se multiplicam e se desvelam na medida em que se penetra nos seus fios
conectores e atinge seus nós.
Neste momento, além de apresentar o desenvolvimento do estudo e suas nuanças,
tenho o intuito de aproximar o leitor da realidade vivida ao longo de três anos na execução
desta pesquisa, sobretudo no que tange aos trabalhos realizados naquela região. Sem
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pretensão de abarcar todas as vivências, são narradas algumas passagens, com base nos
diários de campo, que contribuíram de maneira mais substancial na formação dos
entendimentos expostos na tese sobre a realidade delineada.
A origem da pesquisa está atrelada à mencionada disciplina ofertada pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito – PPGSD/UFF, sob responsabilidade do professor
Wilson Madeira Filho, orientador desta pesquisa. Nessa oportunidade pude conhecer Porto
Trombetas e Oriximiná em que, durante quinze dias do mês de abril de 2010, com o referido
grupo, foram levantados dados sobre a realidade político-institucional do município,
principalmente no que se refere a meio ambiente, saúde, educação e suas populações
tradicionais.
No município de Oriximiná, nos estabelecemos na Unidade Avançada José Veríssimo,
campus avançado da Universidade Federal Fluminense – UAJV/UFF, em que gozávamos de
boa infraestrutura, com acomodações condignas, refeitório e ambiente adequado para
trabalhar. Esse primeiro contato acarretou na mudança do tema de minha tese, anteriormente
voltada para o desdobramento de conflitos socioambientais em instâncias colegiadas de
deliberação coletiva da gestão ambiental. Foi também o ponto de partida para este estudo e a
particular beleza daquela região, em toda sua complexidade, fonte de sua inspiração.
Trabalhávamos concomitantemente um projeto para implantação de um Centro de
Assistência Judiciária em Oriximiná – CAJUFF Amazônia, visando a prestação de assistência
judicial gratuita para hipossuficientes no município, propondo a instalação do mesmo na
própria UAJV/UFF. Este trabalho foi conduzido paralelamente ao longo da pesquisa.
Nesse campo, de caráter exploratório, foi possível delimitar a pesquisa e problematizar
o tema que trata dos conflitos socioambientais e das disputas de poder sobre o território
(interior e entorno) de duas Unidades de Conservação Federais: a Floresta Nacional Saracá-
Taquera – FLONA-ST e a Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO-RT. Na ocasião,
organizamos uma expedição para conhecermos as áreas, fretamos um barco com condutor,
auxiliar e uma cozinheira, aportando todos os insumos necessários para os trabalhos. Foi
firmada uma importante parceria com estudantes de geografia da UFF, que ali desenvolviam
um projeto de extensão sobre segurança alimentar, em que, um nos acompanhou na
expedição, facilitando o ingresso nas comunidades que já conhecia. Após registro da pesquisa
no SISBIO/ICMBIO, foi possível visitar as duas unidades e algumas comunidades que ali
residem (Abuí, Paraná do Abuí, Moura, Boa Vista, Mãe-Cué, Último Quilombo e Nova
Esperança). Foram realizadas entrevistas coletivas, Diagnósticos Rápido-Participativos,
conversas com autoridades públicas e vivências importantes. Muito material foi coletado, de
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Estudos de Impacto Ambiental aos Planos de Manejo, dando início também ao eixo
documental da pesquisa.

Mapa 02: Diário de Campo – esboço do trajeto. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.

O deslumbre daquela paisagem acompanhava diuturnamente o trajeto, à época, as


águas inundavam os igapós – um mundo de água. O barco deslizava sobre o rio que parecia
um tapete, tamanha mansidão, tornando a viagem agradavelmente monótona pela paisagem
contínua. Palafitas quebravam essa continuidade verde surgindo em entremeio à densa
floresta, nossos destinos ali se apresentavam, em significativos intervalos de tempo. Marcava
os nossos olhos estrangeiros o contraste entre a abundância das riquezas amazônicas e a
simplicidade material daquele povo, a dita “precariedade” no estereótipo etnocêntrico
cunhado na visão dos que veem de outra realidade. Desembarcávamos sob olhares curiosos e
desconfiados, quase sempre éramos rodeados por crianças, que se desinibiam mais facilmente.
Buscávamos as lideranças comunitárias para que nos propiciassem uma reunião coletiva,
convocando os demais comunitários. Neste momento explorávamos as principais questões
daqueles povos na tentativa incipiente de compreender a realidade que se impunha. Além da
descrição de conflitos que muito me interessava, outro dois pontos me chamavam a atenção: a
fala que se repetia de que pesquisadores sempre por ali apareciam, mas que nunca retornavam
para que eles soubessem sobre o que pesquisavam; e o que reverteríamos para eles com os
nossos trabalhos.
Não obstante a pertinente queixa, as entrevistas coletivas e os diálogos com os
comunitários, estabelecidos na primeira vivência, fluíram adequadamente e foram
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substancialmente produtivos para esboçar o entendimento de um lado do conflito. Ali se


externava o profundo ressentimento oriundo da criação das Unidades de Conservação e
consequente policiamento realizado pelos agentes governamentais que recaia sobre seus
modos de vida. As estórias narradas remontavam principalmente a primeira década da
Reserva Biológica do Rio Trombetas e expunham a violência física e simbólica que a
conservação ambiental incidia sobre suas vidas: cultura e corpos. Nessa época os
acontecimentos se davam sob a égide do regime militar e seus resquícios ainda vívidos no
início da transição democrática.
Desse primeiro contato decorria a compreensão de que me empenhar neste trabalho
requereria retornar ali muitas vezes e viver aquela realidade intensamente para compreendê-
la. Para além de livros e recortes já empreendidos, deveria sentir na pele a realidade, os
modos de vida, as dificuldades inerentes à vida naquele lugar, os trabalhos da empresa, as
ações dos órgãos ambientais e o que mais se fizesse pertinente ou possível. Vindo de uma
realidade outra, estrangeira nas devidas proporções, mesmo com leituras acadêmicas que
relatavam sob seus distintos vieses aquele mundo, tudo era muito novo e requeria grande
empenho no campo para obter alguma profundidade. Ainda que na brevidade de meu tempo e
na certeza de que sempre haveria mais a se descobrir, mais a se aprender. A posição de
observador-participante, limitada pela parca disponibilidade de poucos e intercalados meses
para o campo ao longo dos anos, buscou ser compensada pela intensidade das vivências.
Aqui, também, fez-se necessário compreender a minha posição na própria pesquisa, pois
lidava a um só tempo com quatro grupos distintos de “atores humanos”: comunitários (os
remanescentes de quilombo, ribeirinhos e indígenas), os representantes da empresa
(Mineração Rio do Norte principalmente), os pesquisadores (sobretudo os ligados às ciências
biológicas) e os agentes governamentais (ligados aos órgãos ambientais). A minha posição
não esteve atrelada a nenhum grupo em particular, estava permeável aos posicionamentos de
cada um deles, sem, no entanto, hierarquiza-los dentro de uma perspectiva valorativa pré-
concebida. O papel de pesquisador buscou ser sensível aos diferentes enfoques na busca de
compreender em que plano se dava a legitimação das diferentes práticas e propostas de
uso/ocupação daqueles territórios e elucidar o matiz ideológico que as sustentava.
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Dezembro de 2010

Foto 02: Soltura dos filhotes de tartaruga-da-Amazônia. Virgínea Bernardes, 2010.

No segundo campo, realizado em dezembro de 2010, a pesquisa já havia avançado em


sua base teórica e alguns objetivos puderam ser pontuados, direcionando melhor a análise.
Empenhávamos nessa segunda empreitada apenas eu e uma colega, então aluna do mestrado,
que também direcionou seu trabalho para aquela região: Thais Maria Lutherback Saporetti
Azevedo, que desenvolveu pesquisa sobre os contornos sócio-jurídicos do Projeto Estadual
Agroextrativista Sapucuá-Trombetas (PEAEX – Portaria ITERPA nº 729) e sobre os modos
de vida das comunidades beneficiadas com o mesmo. A dissertação intitulada de Estatização
do Puxirum: uso coletivo da terra no Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas,
em Oriximiná (PA) – Niterói: PPGSD-UFF, 2012, tratou a territorialidade da Amazônia
naquela área em questão, nas relações individuo/sociedade em suas bases de solidariedade
social dentro de um território de uso comum para 32 comunidades. Território este criado a
partir de um projeto estatal que promoveu o assentamento de centenas de famílias que
exercem atividades de baixo impacto integradas à dinâmica daquele ambiente. O território, de
regime coletivo, é titulado para a Associação das Comunidades da Gleba Trombetas e Gleba
Sapucuá – ACOMTAGS.
Thaís Azevedo tornara-se companheira na pesquisa. No curso dos trabalhos, os
acompanhou até o encerramento de seu mestrado e, reciprocamente, teve os seus por mim
acompanhados. As temáticas estavam intimamente ligadas, pois os limites territoriais do
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PEAEX confrontam com a Floresta Nacional Saracá-Taquera e suas comunidades direta ou


indiretamente, estavam envolvidas em alguns conflitos focados nesta pesquisa. Outro ponto
importante foi o estreitamento das relações com atores institucionais que rendeu o apoio
logístico sem o qual o campo tornar-se-ia muito mais complexo e limitado. O Instituto
Nacional de Conservação da Biodiversidade – ICMBio no que tange às UCs e o Sindicato dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Oriximiná – STTRO com relação à PEAX, foram
muitas vezes imprescindíveis para a locomoção até as longínquas comunidades alvo da
pesquisa.
Em uma oportunidade, a convite do ICMBio, após longa entrevista com o chefe das
unidades de conservação à época, foi possível retornar à Reserva Biológica em um evento que
envolveu as comunidades quilombolas, pesquisadores, representantes do município e os
funcionários do ICMBio, enquanto organizadores. Tratava-se da “soltura de quelônios” e da
“reunião da castanha”, encontros anuais que discutem a proteção dos quelônios da Amazônia
e a coleta da castanha dentro da REBIO. O evento que durou três dias foi todo documentado e
proporcionou uma boa visão sobre os conflitos internos (entre os próprios tradicionais) e
externos (entre tradicionais, ICMBio e pesquisadores) no que tange à utilização dos recursos
na área protegida. Um melhor detalhamento dos mesmos se dá em parte própria da tese.
Seguimos junto aos comunitários quilombolas e ribeirinhos que viviam em Oriximiná
e outros convidados da cidade, entre estudantes e representantes da prefeitura. Pegamos o
barco Ana Cândida, do próprio ICMBio e rumamos em direção a Porto Trombetas e depois à
Reserva Biológica. Na Base do Tabuleiro nos juntamos aos pesquisadores e auxiliamos no
transporte dos milhares de filhotes de tartarugas (Podocnemis expansa), tracajás (P. unifilis) e
pitius (P. sextuberculata) – quelônios que seriam soltos e que foram retirados ainda ovos de
seus ninhos vindo a eclodir nos tanques da base. O evento reunia pessoas das diversas
comunidades quilombolas, principalmente crianças. Os cientistas explicavam sobre seu
trabalho, os instrumentos de alta tecnologia que utilizavam e um pouco sobre a ecologia das
tartarugas. Os representantes do governo expunham suas estratégias para conservação da
espécie e seus planos de parceria para com as comunidades. Os comunitários assistiam
compenetrados e vez ou outra perguntavam sobre o que lhes interessava. Na soltura, as
milhares de tartaruguinhas pretejavam a areia vermelha numa massa em movimento rumo ao
rio. As crianças interceptavam algumas delas para brincar numa cena que marcava os olhos. A
soltura de filhotes se repetiu no lago do Erepecu, também dentro da reserva.
Por sua vez, a reunião da castanha é também um evento anual que busca dar respaldo
jurídico ao ingresso no interior da REBIO para o extrativismo da castanha, por meio de um
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“termo de Compromisso” firmado entre os comunitários e o Governo. Neste evento foi


possível aferir a permeabilidade e disponibilidade dos agentes governamentais para com os
tradicionais no que diz respeito a compreender suas demandas e buscar efetivá-las,
concomitantemente assegurando um controle sobre o ingresso na reserva e regrando esse
ingresso, limitando o que pode ou não fazer, o que se pode ou não levar da floresta e quando e
como devem os comunitários ingressar para a prática do extrativismo. Ficou marcada aí, entre
vários outros eventos posteriormente vivenciados, as mudanças de postura do órgão ambiental
federal, atual ICMBio, que substituiu o IBAMA que por sua vez substituiu o IBDF, na gestão
desse território. A disciplina para o ingresso na área que corresponde à reserva antes era dada
pelos “patrões”, agora possibilitada pelo próprio governo, com uma distinção clara: todo a
produção extraída tornou-se de posse dos comunitários.
Outro momento importante foi uma visita a uma parte do assentamento da
ACOMTAGS, onde residem mais de trinta famílias de ribeirinhos na zona de amortecimento
da FLONA. Uma realidade também marcada por conflitos na demarcação do território e na
sobreposição de áreas. Assim como no caso dos quilombolas, o avanço do progresso
homogeneizador, as estratégias de conservação e o crescimento econômico redundaram em
significativas transformações nos modos de vida dos tradicionais e conflitos sobre as formas
de utilização dos territórios e seus recursos.
Guiados pelo presidente da ACOMTAGS, Emerson Carvalho, que nos acompanhou
durante todo este campo, navegamos em uma pequena lancha até a comunidade da “Casinha”,
onde conhecemos a Dona Teresa e Seu Chico. Ali pernoitamos e escutamos muitos causos
sobre a vida naqueles interiores. O Seu Chico demonstrava grande preocupação com os
recursos ambientais do Sapucuá, demonstrava-se bastante inteirado das questões de seu
território e era politicamente muito ativo, como líder dessa comunidade. Trabalhava
voluntariamente no “Projeto Pé de Pincha” em que nos arredores de sua casa possuía um
criatório de quelônios. Reclamava da falta de engajamento dos demais ali para com o projeto
e também das más práticas. Denunciava hábitos predatórios dos próprios comunitários que,
por vezes, roubavam até mesmo os quelônios que detinha em seu cativeiro.
Alimentar-se dos quelônios é uma tradição cultural muito arraigada em toda Amazônia
e a prática de se retirar matrizes no momento da postura faz parte dessa tradição, obtendo
ovos e carne ao mesmo tempo, ambos muito apreciados. Não obstante olhares externos
perfazerem julgamentos recriminatórios, principalmente quando se evoca a questão da
sustentabilidade e a confronta com tais práticas, a vivência cuida de prostrar as visões
romantizadas sobre os tradicionais, na mesma proporção que o faz com os ideais
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conservacionistas. Não há uma correlação necessária entre as práticas tradicionais e as


perspectivas idealizadas de sustentabilidade, assim como não há uma sustentabilidade a priori
nos seus modos de vida. O que não quer dizer que os mesmos não vivam integrados com seus
ambientes e que suas dinâmicas de vida não sejam extremamente distintas da sociedade de
consumo.
Num desdobramento deste campo, fomos a outra comunidade da ACONTAGS
chamada de Castanhal. Ali também coletamos dados, realizamos entrevistas e por fim nos
quedamos até o dia seguinte, como sempre, dormindo nas redes em espaços coletivos. No cair
da tarde, não havia alimento suficiente para nós três que viemos de fora, mais os cinco
presentes daquela família. O pai, Seu Eduardo, havia saído com um dos filhos para caçar
neste dia e apenas retornariam na manhã seguinte. Como não havia comida para os que ali
restaram, nos empenhamos em uma caçada nos arredores do imenso lago. Dois jovens
daquela família, eu como observador participante e Emerson, partimos num pequeno bote
cujo equilíbrio requeria cuidados até para respirar, e seguimos Sapucuá a dentro na busca do
alimento. Os instrumentos para a pesca/caçada, além do bote, consistiam em lanternas,
terçado e zagaia. Tínhamos como foco peixes, jacarés e eventualmente algum outro animal
pequeno que se pudesse capturar e transportar, posto que o barco mal nos comportava. A
caçada resultou no abatimento de três pequenos jacaretingas (Caiman crocodilus crocodilus),
um peixe chamado cujuba (Oxydoras niger) e uma ave saracura (Aramides sp.), parecida ou
igual as que existem no sudeste. Os jacarés eram fisgados com a zagaia e tinham suas cabeças
decepadas com o terçado, para não causar acidentes no barco, os outros animais não
requeriam tal golpe. Os animais abatidos foram suficientes para o jantar deste dia, em que
comemos o peixe, e o almoço do dia seguinte, em que nos alimentamos dos jacarés com
castanhas, e da ave. Fato curioso é que dos jacarés apenas as caudas foram aproveitadas, o
restante do corpo foi descartado. Indaguei sobre se o restante não era comestível, obtendo
como resposta que sim, mas o mais apreciado era o filé da calda. Como não faltou alimento o
resto não foi aproveitado. Logo mais chegou o Seu Eduardo afirmando que a caçada não fora
bem sucedida, conseguindo apenas um jabuti que se tornaria o alimento daquela noite, em que
já teríamos partido.
Neste mesmo período foi buscado uma aproximação com os funcionários da MRN.
Contudo não logrei o êxito esperado na busca desse maior estreitamento das relações com a
empresa mineradora que opera no interior da FLONA. A dificuldade de acesso aos dirigentes
e responsáveis técnicos, mesmo cumprindo formalidades de solicitações institucionais, fez-me
buscar diálogos com os funcionários de base, que também rendiam conversas interessantes,
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sem no entanto, gravar entrevistas. Um diálogo marcante se deu com um operador de


guindaste de uma empresa terceirizada pela MRN. O funcionário relatava que ganhava por
hora e que ficava a maior parte do tempo ocioso, pois nem sempre seus serviços eram
requisitados. Ao mesmo tempo não havia um momento certo para o mesmo, poderia ser a
qualquer hora, obrigando-o a ficar em Porto Trombetas durante toda a semana, mas recebendo
somente quando trabalhava operando o guindaste. Tal situação, ele externava, estava gerando
problemas com sua esposa que residia em Oriximiná, além de sentir-se injustiçado por não
receber, enquanto deveria estar sempre de prontidão. Outras conversas se deram com os
cooperados de Boa Vista, primeira comunidade quilombola titulada do Brasil, que possui uma
cooperativa que presta serviços à MRN - Cooperboa. Nestes diálogos, apesar de exercerem
trabalhos de baixa qualificação como faxineiros, jardineiros e serviços gerais, os cooperados
se diziam satisfeitos com seus trabalhos, que, por sua vez, transformam profundamente sua
cultura tradicional e ao mesmo tempo esquivam a empresa de encargos trabalhistas.
Esse campo tampouco avançou em relação aos posicionamentos políticos no
município de Oriximiná no que tange às unidades de conservação e seus impactos locais, bem
como sobre a aplicação dos Royalties advenientes da mineração. O acesso aos vereadores e ao
prefeito – com exceção de um vereador que não contribuiu muito – não foi conquistado ao
longo de toda a pesquisa, restando apenas o que se pôde aferir com documentos e observações
de campo. Por sua vez, os representantes do poder judiciário, Ministério Público e Defensoria
Pública foram bastante acessíveis, mas por serem geralmente substitutos e permanecerem
breve período no município, acabaram por contribuir muito pouco para a pesquisa. Senão pelo
o fato de demonstrarem a baixa importância do judiciário naquela realidade. Com exceção do
Defensor Público que exerce forte papel no município e região, sobretudo na defesa dos
interesses dos povos tradicionais, mesmo com uma vultuosidade de trabalho inconcebível
para uma só pessoa e em condições relativamente precárias.
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Julho de 2011

Foto 03: Entrada da Reserva Biológica - Flutuante. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.

Em julho de 2011 foi realizada a terceira ida a campo. Nesta etapa, foi possível um
estreitamento dos laços com lideranças comunitárias, novas vivências, diversas entrevistas e o
levantamento documental de parte significativa da história da organização político-
institucional dos povos tradicionais de Oriximiná. Houve um maior estreitamento das relações
com a MRN, agendando previamente as visitas e entrevistas para início do próximo ano.
Também foi possível identificar os atores sociais que se apresentam como peça-chave para a
pesquisa e que foram entrevistados posteriormente.
Em uma visita à Paróquia de Santo Antônio em Oriximiná, pude realizar o
levantamento da história da mobilização política dos remanescentes de quilombo e da
organização dos trabalhadores rurais de Oriximiná. De um lado a mobilização associativista,
que tem como marco a Associação dos Remanescente de quilombo de Oriximiná – ARQMO
e, do outro, a organização sindical com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
de Oriximiná – STTRO, ambos intimamente ligados ao movimento pastoral da Igreja
Católica. Foi possível aferir que no final da década de 1980, se iniciara um trabalho articulado
pelas linhas da Pastoral de Direitos Humanos (ligada à Pastoral da Terra), por parte de padres
presbíteros, franciscanos e verbitas, de conscientização sobre direitos e articulações políticas
direcionadas aos trabalhadores rurais e tradicionais de Oriximiná. Quase que
concomitantemente, outras organizações deram apoio, no que diz respeito aos remanescentes
de quilombo, para que se estruturassem politicamente. Neste caso, a Comissão Pró-Índio de
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São Paulo teve forte participação. Um momento histórico em que a visibilidade dos
tradicionais e seu capital político cresceu sobremaneira naquela região.
Acompanhando uma equipe da UFF coordenada pela professora Adriana Russi
Tavares de Mello – que realizava o levantamento dos diferentes artesanatos produzidos por
aqueles povos tradicionais, por meio de um projeto de educação patrimonial – pude me
aproximar de um importante funcionário da MRN, no que diz respeito às relações da empresa
com as comunidades. Evandro Soares Silva, assistente de Relações Comunitárias da MRN,
nos apresentava, em um local chamado Casa da Memória em Porto Trombetas, a história da
MRN, sua produção e seus projetos com as comunidades, principalmente quilombolas. Após
a apresentação tive oportunidade de conversar com o referido funcionário a respeito das
relações da mineradora com as comunidades, aproveitando para reproduzir algumas de suas
queixas a respeito do insucesso dos projetos experimentados, sobretudo em relação à
continuidade dos fomentos para o prosseguimento dos mesmos. Os projetos variados, melhor
detalhados em parte especifica da tese, são de piscicultura, apicultura, agricultura familiar,
artesanatos de barro entre outros. Alguns projetos prosperaram em algumas comunidades,
mas na grande maioria das áreas visitadas fracassaram. A resposta que obtive não foi
diferente do que já ouvira em Oriximiná, verbalizado por autoridades públicas ligadas à
prefeitura municipal e mesmo por pessoas da UAJV/UFF, que atribuíam esse insucesso à
incapacidade administrativa dos próprios tradicionais, mas geralmente colocado de uma
forma preconceituosa, relacionando seus modos de vida à falta de vontade de trabalhar, à
preguiça – termo escutado de maneira recorrente nas conversas com pessoas em Oriximiná,
que revelavam um preconceito muito vívido na área urbana sobre os modos de vida
tradicionais. Por sua vez, o então chefe das unidades de conservação, Carlos Augusto
Pinheiro, relacionava o fracasso dos projetos sociais da MRN à sua inobservância aos modos
de vida tradicionais. Dizia que a empresa tratava os quilombolas e ribeirinhos ali como se os
mesmos fossem empreendedores e empregava uma lógica muito distinta de seus modos de
vida na operacionalização dos projetos, enquanto se tratava de povos extrativistas.
Outro desdobramento deste campo foi uma vivência de cinco dias na comunidade da
Cachoeira Porteira, uma das primeiras áreas a abrigar remanescentes de quilombo e que se
liga diretamente à história deste povo na região. Além de entrevistas com as lideranças
comunitárias que remontaram os conflitos e a história local, foi possível acompanhar os
modos de vida dessa comunidade, muito singular por abrigar não apenas quilombolas, mas
remanescentes dos projetos de desenvolvimento experimentados ali por várias empresas
principalmente a partir da década de 1970. Alguns dos antigos funcionários e pessoas
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contratadas para os serviços ali desenvolvidos permaneceram no local e se estabeleceram


absorvendo os modos de vida daquela comunidade quilombola e também a reconfigurando.
Com uma infraestrutura muito distinta das demais comunidades, Cachoeira Porteira, possui
várias vias abertas e uma estrada que avança cerca de duzentos quilômetros floresta adentro,
hoje com cerca de sessenta quilômetros trafegáveis por veículos com tração. Muitas casas de
alvenaria, escola, centro comunitário (como as demais comunidades) e uma grande casa para
os indígenas, já que ali é ponto de passagem para várias aldeias e etnias tanto do Rio
Mapuera, quanto do Rio Cachorro e do próprio Rio Trombetas para o acesso à Oriximiná.
Veículos motorizados como caminhonete e motocicletas também compõem aquela realidade.
Resquícios dos grandes empreendimentos empenhados pela ELETRONORTE, Andrade
Gutierrez, MRN, ALCOA entre outras, ainda são visíveis como a pista de pouso e outras
ruínas sufocadas pelo avanço da floresta.
Nos hospedamos em um quarto numa casa de pessoas que vieram com as empresas e
que ali permaneceram com o abandono dos empreendimentos, seu Flor e Dona Ivanete, que
nos receberam por intermédio da Profª Adriana Russi. A rodovia federal, uma estradinha de
terra batida, em que se encontra a comunidade de Cachoeira Porteira, forma um peculiar
cenário com iluminação pública proveniente de gerador a diesel, postes de madeira e casas
dos dois lados, que brevemente se findam enquanto a estrada segue no horizonte. Cruzávamos
com pessoas carregando suas espingardas, um homem carregando sua caça – uma paca que
havia abatido na noite anterior – bicicletas circulando, muitas crianças e pessoas em seus
afazeres. Acompanho dois jovens na colheita da mandioca nos seus roçados. Eles colocam a
colheita em cestos chamados paneiros e em sequência as levam a um barracão de produção de
farinha. As mulheres retiram as cascas da mesma e em seguida as colocam na água para
adormecerem. Sigo acompanhando a feitura no dia seguinte, com a mandioca amolecida é
retirada a água e produzida uma massa que, por sua vez, é levada a um grande tacho para
queimar. Mexendo a massa sobre o fogo a farinha vai sendo produzida, as pessoas ali, homens
e mulheres, vão se revezando de tempo em tempo quem mexe a mesma. O processo dura
algumas horas, experimento ali essa feitura, mas a temperatura alta da proximidade do fogo
somada ao ambiente já muito quente, tornava o trabalho bastante árduo. A saída da
comunidade também se mostrou bastante problemática, pois por ser muito distante e possuir
transporte muito limitado, uma ou duas vezes por semana, os atrasos nunca se contabilizavam
em horas, mas em dias. Esse era um risco constante em vários locais da pesquisa.
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Novembro de 2011

Em novembro de 2011 foi realizado campo em São Paulo com fins de conhecer a
Comissão Pró-Índio - CPISP, Organização Não Governamental que desempenhou papel
importante na articulação política dos remanescentes de quilombo de Oriximiná e na
demarcação de seus territórios. Neste campo foi possível realizar entrevista com Lúcia
Andrade, constantemente citada por diversos personagens entrevistados durante a pesquisa, e
obter material sobre as questões fundiárias relativas aos territórios e a novos conflitos que se
avistavam no horizonte a partir de novos empreendimentos na região.
Lucia Andrade foi referida seguidamente, seja pelas comunidades tradicionais, seja
por representantes do governo ou da mineração, sua inserção naquela realidade foi
indubitavelmente muito marcante. Na sede da CPISP, após troca de e-mails e agendamento
prévio, pude conhecer pessoalmente a equipe que ali estava presente e realizar longa conversa
gravada com ela, cumprindo importante etapa da pesquisa no que tange à remontar a ascensão
política dos remanescentes de quilombo e a atuação de organizações exógenas na construção
daquela realidade.

Dezembro de 2011 e janeiro de 2012

Foto 04: Festa na Tapagem. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.


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Em dezembro de 2011 e janeiro de 2012 foi realizado um campo destinado à


realização de vivências junto às comunidades quilombolas, à mineração e ao governo.
Durante esses dois meses foi possível acompanhar os modos de vida dos tradicionais. Ainda
que de maneira breve, pude estabelecer uma rica convivência em algumas comunidades em
que a observação de seus modos de vida se dava de forma direta e participativa: comendo o
que eles comem, dormindo como eles dormem, indo aos roçados, auxiliando na produção da
farinha, visitando castanhais e mesmo acompanhando caçadas e pescarias. Neste mesmo
campo foi possível acompanhar também o trabalho dos fiscais do ICMBio, muitos
contratados das próprias comunidades, em suas relações institucionais e com seu próprio
povo.
Para este trabalho foi imprescindível a ajuda do ICMBio, que disponibilizou além da
infraestrutura constante da Base do Tabuleiro, com alimentação, dormitório e internet via
satélite – local que foi utilizado como base para a pesquisa – mas sobretudo no transporte. Foi
disponibilizado um casco de alumínio com um motor de cinco cavalos chamado de “rabeta”,
que possibilitou outra mobilidade e independência no acesso às comunidades. Como operar o
barco era atividade assaz simples e já conhecia os caminhos, não era necessário um auxiliar
para me conduzir até as respectivas áreas de trabalho. O combustível e os demais insumos
foram arcados com os recursos da bolsa de pesquisa.
A primeira comunidade a ser visitada foi o Abuí e o Paraná do Abuí, terras
quilombolas tituladas pelo Iterpa em 20 de novembro de 2003 com o nome de Alto Trombetas
e dimensões de 61.211,9600 ha. Permaneci no Abuí na casa do seu então coordenador o Sr.
Raimundo Printes do Carmo, que vivia com seus filhos e netos em uma pequena casa de
madeira com teto de palha em uma ilha no lago do Abuí. Fiquei em um barraco ao lado, local
em que produziam a farinha. Apesar de sempre levar algum alimento, deixava-o na casa em
que me hospedava e me alimentava com toda a família. A alimentação consistia, basicamente,
em farinha, raramente algum legume ou verdura, arroz e carne que sempre tinha, ora peixe,
ora caça ou algum animal de criação. Como já verbalizavam os técnicos do ICMBio e outros
pesquisadores, ali não havia carência de alimentos, apesar dos hábitos alimentares constar de
um cardápio pouco variado, a floresta garantia relativa fartura de produtos alimentícios, entre
frutas e caças variadas, mas principalmente peixes. Mencionavam que aquela realidade era
muito distinta, por exemplo, do sertão nordestino, o que estando no local se percebe
prontamente. Entretanto, essa “fartura” da floresta se dá de maneira sazonal, em épocas de
cheia é mais complicado pescar, com exceção de algumas espécies de peixes, o que faz mudar
um pouco a base da alimentação com relação às épocas de seca. Em outros momentos a caça
  51  

pode ser mais fácil ou mais complicada e eles explicavam que cada caça (paca, anta,
queixada, macacos etc.) tinha uma melhor temporada, em que a mesma estava mais “gorda”.
Na comunidade do Abuí me alimentei basicamente de farinha e peixes, um dia trouxeram
uma caça, uma ave chamada mutum, que foi repartida por toda a família. Me surpreendia a
facilidade de obtenção do alimento. Pude acompanhar dois irmãos, entre oito e onze anos, que
após sua avó pedir a eles para pescar, em menos de uma hora, com um casco de madeira e
uma pequena malhadeira, retornaram com peixes para toda a família, cerca de dez pessoas.
Em outro desdobramento deste campo, na Base do Tabuleiro, acompanhei a ação dos
agentes do ICMBio na fiscalização das praias de desova das Tartarugas da Amazônia na
REBIO. Já havia entrevistado parte deles em outras oportunidades; neste sentido, ali focava
mais o acompanhamento dos trabalhos. Apesar do período de desova ter passado à época,
uma fiscalização mais acirrada se estendia por mais de um mês pela razão dos quelônios
permanecerem nas praias mesmo após a eclosão dos ovos, sendo esse cuidado considerado
necessário. O controle constante dos barcos que passam pela base, nesta época também se
agrava, proibindo que no turno da noite os mesmos subam o rio, obrigando-os a parar. Ouvia
muitas queixas a esse respeito nas entrevistas com alguns tradicionais, essa situação lhes
gerava certa revolta, pois muitas vezes tinham que esperar amanhecer nos barcos para
retornarem aos seus lares. Como o argumento que lhes externam é que o barulho dos barcos
prejudica as tartarugas e, no entanto, os próprios agentes circulam a noite com lanchas que
produzem igual ruído, os mesmos não deixavam de questionar qual a razão de lhes cercearem
o direito de ir e vir.
Naquela ocasião, ao contrário do que ocorreu em 2010, em que houve até disparos de
arma de fogo por parte de pescadores de quelônios direcionados aos agentes, a fiscalização
corria de forma mais amena. Para a realização dos trabalhos, foi montado um acampamento
no tabuleiro principal, próximo à base, em que os agentes se revezavam entre os que ali
pernoitariam ou não. Pude pernoitar um dia e vivenciar este trabalho naquela imensa praia,
entre o céu espelhado no rio e a sonora floresta. Outro trabalho consistia em uma ação de
busca direta utilizando uma lancha de quarenta cavalos, em que os agentes por meio de um
instrumento feito de vários grandes anzóis fixos em uma base de metal amarrada numa longa
linha, faziam busca ativa de malhadeiras de quelônios naquela parte do Rio Trombetas e nos
lagos próximos da base (Jacaré e Leonardo). Nesta noite, apesar de não encontrarmos
nenhuma malhadeira, foi possível flagrar dois comunitários do Paraná do Abuí pescando a
tartaruga. Camuflados na vegetação da beira do rio, os pescadores foram abordados pelos
agentes, também das comunidades, de maneira educada. Maneco, um dos agentes, pede para
  52  

aproximar o barco apontando uma forte lanterna na direção dos mesmos. Aborda-lhes
explicando que tal prática não era ali permitida e pedindo a compreensão deles em relação ao
trabalho que estava sendo desenvolvido. Por fim solicita que entreguem seus materiais de
pesca e os libera para seguirem para suas casas, noite adentro naquele rio. Não houve
momentos de maiores tensões, senão o medo da minha parte de os pescadores estarem
armados e ocorrer algum acidente.
Nesta mesma época, acompanhando a equipe do ICMBio no cadastro dos
comunitários para o “acordo da castanha” no centro comunitário do Abuí, pude conhecer
pessoalmente o pescador em questão. Um senhor com mais de setenta anos de idade que me
explicou sobre a tradição da pesca dos quelônios. Foi bastante simpático na conversa; por sua
vez, o filho dele, conhecido pescador de quelônios e reincidente infrator, foi mais hostil ao me
ver conversando, interrompendo a conversa e retirando seu pai de onde estava.
Sigo os trabalhos visitando a comunidade da Tapagem, mais antiga comunidade ali,
colhendo relatos de suas lideranças e moradores, posteriormente descendo para outra
comunidade que se desdobrou desta, chamada Sagrado Coração, ambas em área da FLONA.
Um pouco mais abaixo, visito a comunidade da Mãe Cué, em que tive um pouco mais de
dificuldade na recepção, tendo que dormir num barracão afastado e não conseguindo comida
durante um dia, o que já havia ocorrido em outras ocasiões (me alimentei de granola e leite
em pó que sempre levava comigo). Nesta comunidade realizei uma entrevista coletiva que
revelava quanto estava vivo o ressentimento gerado pelas práticas governamentais dos tempos
anteriores. Posteriormente visito a comunidade do Curuça e do Juquerizinho, na FLONA e na
REBIO respectivamente.
As vivências possibilitavam aferir também como as comunidades se distinguem em
termos de estrutura, organização política ou mesmo em suas práticas. A história do
surgimento desses locais, os recursos financeiros que receberam, o fato de a comunidade estar
dentro ou fora da REBIO ou em terra titulada, os recursos naturais que estão próximos e como
são utilizados... diversos e distintos fatores corroboram as peculiaridades de cada uma. Apesar
da proximidade entre muitas das comunidades e da relação de parentesco entre seus membros,
os percursos pelo rio não são tão simples, principalmente para aqueles que não dispõem de
recursos financeiros para adquirir combustível. Mesmo com muitas pessoas possuindo sua
“rabeta”, os contatos entre as comunidades são mais esporádicos e casuais. Obviamente essa
“tecnologia” revoluciona não apenas o transporte ali, mas as próprias conexões que aquela
socionatureza vai estabelecer com aquele mundo ao redor.
  53  

A comunidade do Jamari, no interior da REBIO, vive um dos conflitos mais


importantes da análise desta pesquisa, tratado mais profundamente em parte própria da
mesma. Uma disputa no interior da FLONA antagoniza os interesses dos quilombolas dali
com os da MRN. A comunidade do Jamari, assim como a do Curuça na FLONA, tem como a
principal atividade econômica o extrativismo do óleo de copaíba. No entanto, as copaibeiras
(Copaifera sp.) de onde extraem o produto, se situam em um dos platôs destinado à
mineração, o Platô Monte Branco. Com as atividades mineiras já iniciadas, milhares de
copaíbas estão sendo derrubadas, dentro da unidade de conservação destinada ao uso
sustentável dos recursos florestais, extinguindo o principal meio de subsistência daquela
comunidade. Neste campo, algumas experiências importantes foram também vividas, para
além do conflito em si. Pude acompanhar a extração de uma fruta chamada bacaba e a pesca
da tartaruga para consumo de uma família da própria comunidade. O sacrifício dos animais
foi uma cena marcante, pois eram subtraídos de seus cascos ainda vivos, levando certo tempo
até morrerem, sendo consumidos por inteiro em um prato com sabor bem exótico. Nesta
estada abateram também um peixe-boi, que foi dividido com toda a comunidade. Segundo seu
caçador era o décimo primeiro daquela temporada, dizendo que ali eles eram muito
abundantes e que proporcionavam alimento para muitos de uma vez.

Foto 05: Preparo de tartarugas jovens. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.
Na comphany town acompanhei o trabalho e o dia a dia dentro do escritório do
ICMBio e um pouco da vida no pequeno distrito. Hospedei-me no alojamento do Pioneiro,
local destinado ao pessoal da própria entidade e aos pesquisadores das unidades de
conservação. O escritório, situado em Porto Trombeta na “Praça da Feirinha” – única área
  54  

acessível ao público geral – desde sempre foi mantido pela MRN, assim como a maior parte
dos programas desenvolvidos nas duas unidades de conservação. Convênios entre governo e
empresa estipulam os fomentos aos programas e os repasses de recursos que vão dar origem
aos planos de manejo, pesquisas, ações de conservação etc. Perscrutar sobre a autonomia do
órgão em sua atuação requer pensar, de um lado, que toda a operacionalidade do mesmo está
atrelada aos fomentos da mineração, e, de outro lado, que o ICMBio é composto de pessoas
que não necessariamente coadunam com a lógica da empresa. Isso diz muito e é muito do que
queremos dizer para sairmos de uma perspectiva analítica de fluxos uníssonos e lineares que
estabelecem uma inteligibilidade do mundo a partir de uma secção, privilegiando os aspectos
de análise que a reafirmam. Não sobrepujando o poder do capital e sua força em imprimir sua
lógica na compreensão dessa realidade, apenas sendo sensível às muitas minas incrustradas no
território, que constantemente são acionadas e imprimem também sua dinâmica, um desvio
vetorial, novas conexões, transformações ideológicas, inversões argumentativas.
Do início da pesquisa de campo ao seu término, assisti constante reconfiguração no
corpo técnico do ICMBio. No ano de 2010 o chefe da unidade havia sido substituído, o
anterior passou a chefiar outra unidade de conservação no nordeste e novos funcionários
haviam sido ali alocados. No ano seguinte outras pessoas haviam saído, transferidas para
outras unidades, reduzindo bastante o corpo de funcionários. Em 2012, novamente ocorreram
mudanças significativas, com substituição de pessoas. Por outro lado, também havia aqueles
que estavam ali desde a criação das unidades e ali se mantiveram. A saída de algumas dessas
pessoas me foi relatada por um funcionário como consequência da forte influência da
mineração. No caso relatado, a razão teria menos relação com alguma obstaculizacão à prática
da mineração propriamente do que por não se adequar à rigorosa dinâmica do distrito.
Porto Trombetas, dentro de sua peculiar organização, é um belo local com suas praças,
jardins e arborização. É conectado à grande floresta e possui uma infraestrutura mais
completa do que a de Oriximiná, ao menos em equipamentos urbanos. Caminhando por suas
ruas é possível avistar diferentes exemplares da fauna amazônica cruzando os caminhos, mais
facilmente do que nas comunidades tradicionais onde estes compõem parte da alimentação.
Tudo parece contrastar com o deserto vermelho das grandes minas que dali não se vê. Visito
as áreas de trabalho da empresa tanto as administrativas e de produção, como o horto, o centro
de reabilitação de animais, hospital, entre outros locais. Busco sempre dialogar com as
pessoas discretamente, conversar sobre a pacata vida ali e seus trabalhos.
Após acompanhar os trabalhos no escritório do ICMBio, combino com um
funcionário, que me auxiliava sobremaneira na pesquisa, de jantarmos em um restaurante em
  55  

Porto Trombetas. Ali conversávamos sobre assuntos diversos, dentre eles a vida no distrito.
Relatou-me que os dois funcionários do ICMBio que haviam saído neste ano, cederam às
pressões da empresa, indo trabalhar em outras unidades de conservação. Ele mesmo
comentava sentir-se constantemente vigiado, às vezes dizia mesmo ter a sensação de estar
sendo seguido – outras pessoas reproduziam esse comentário também. Falava que a vida ali
era extremamente monótona, regrada e sem muitas opções para se divertir. No ano seguinte
este funcionário foi transferido passando a chefiar outra unidade de conservação também na
Amazônia.
Apesar de estar muito próximo das áreas de mineração, não consegui visitar as minas
que estavam sendo exploradas e nem as áreas em processo de recuperação. As conversas com
responsáveis por departamentos estrategicamente importantes para a pesquisa se deram
sempre de maneira informal, sem entrevistas gravadas, salvo anotações em diário de campo.
Conversei com Milena Moreira, a gerente de Meio Ambiente da MRN, que me apresentou a
nova metodologia de recuperação das áreas degradadas, segundo a mesma, proveniente do
Laboratório de Restauração Ambiental Sistêmica da UFSC e da Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz da USP, a “metodologia de nucleação” que visa formar
microhabitats, seria a mais avançada que havia. Perguntei sobre as áreas em processo de
regeneração, que não estavam obtendo resultados satisfatórios, e sobre as políticas ambientais
da empresa. Milena ressaltava a assídua preocupação da empresa com a questão ambiental,
sempre investindo em tecnologia de ponta e contratando profissionais que eram referência
nacional para a execução dos trabalhos, muitos de universidades federais do sudeste e sul do
país.
Conversei brevemente também com Ademar Cavalcanti, Gerente de Saúde,
Segurança, Meio Ambiente e Relações Comunitárias, cargo importante na empresa, o qual se
subordinam quase todos os departamentos da mesma. Falava-me da falsa imagem que as
pessoas tinham sobre a empresa ser altamente lucrativa, dizendo que em alguns anos a mesma
chegou a operar no vermelho, que a mineradora sofre todos os riscos inerentes às oscilações
do mercado, do capital dos investidores, acionistas, custos da produção, entre outros.
Conversávamos sobre os valores de uma indenização para o governo dos produtos florestais
não-madeireiros no Platô Monte Branco. Cavalcanti peremptoriamente afirmava que o valor
econômico da bauxita era muito superior ao da floresta, que os recursos gerados ali traziam
desenvolvimento para todo o país e que o principal problema da FLONA era a invasão de
fazendeiros para criação de gado. A referida indenização era decorrente de uma determinação
do escritório local do ICMBio, que exigiu um inventário das espécies não-madeireiras como
  56  

condição da liberação da licença para extrair bauxita no local. A questão gerou conflito entre
o ICMBio na instância local e a empresa, que, com seu poder político, conseguiu obter a
licença em âmbito federal no ICMBio em Brasília. O Ministério Público Federal ingressou
com uma ação e obteve decisão judicial determinando que se interrompesse o desmatamento
de 267 ha de floresta, correspondente a uma parte do platô, no processo nº 3080-
52.2011.4.01.3902. O imbróglio girava em torno não apenas da interrupção do cronograma da
empresa e as implicações daí decorrentes; mas, dependendo da metodologia adotada para a
avaliação dos produtos florestais, os mesmos poderiam torna-se economicamente mais
vantajosos do que a exploração da bauxita, ou seja, a floresta poderia valer mais em pé do que
minerar o solo e o subsolo para extrair bauxita.
Em Oriximiná, no dia 19 de janeiro de 2012, pego um barco chamado Silva Moda que
prestava o serviço de transporte para os quilombolas, trazendo-os e os levando da cidade para
suas respectivas comunidades rio acima. O destino era novamente a comunidade da Tapagem,
desta vez, para presenciar a festa tradicional do santo padroeiro da mesma, São Sebastião.
Embarquei por volta das quatro horas da tarde, pois sabia que o barco ficaria bem cheio. Não
imaginava o quanto, pois além dos quilombolas e outras pessoas que viviam em Oriximiná,
foram levados também os equipamentos de som e bebidas para a festa. As redes se
sobrepunham umas sobre as outras em quatro andares, fiquei ao longo da viagem com o corpo
tocando os coletes salva-vidas, dispostos horizontalmente no teto. Imóvel como uma crisálida
por cerca de dezoito horas, a imagem ali contrastava a festividade do barco, seu alto som e
foguetórios, com silêncio da noite naquele rio entre a floresta. Jovens ficavam sobre o teto do
barco, bebiam e dançavam o “tecno-brega”, numa algazarra que parecia dilatar cada minuto
dentro do barco. Chegamos ao amanhecer, vários barcos das outras comunidades já se
encontravam aportados.
A festa, com duração de duas noites, reunia pessoas de todas as comunidades ao redor,
nesta ocasião havia também outros pesquisadores, inclusive um casal francês. Sigo realizando
conversas com os comunitários, perguntando sobre a tradição da festa e as mudanças na
mesma. Os mais velhos me relatavam que antigamente a música era tocada na tradição do
“pau-e-corda”, com violas, violões, tambores e instrumentos que eram por eles produzidos.
Relatam que isso se perdeu e que os jovens não querem mais saber disso. Hoje é o som
eletrônico do tecno-brega que anima a festividade, tocado por músicos profissionais, muitos
oriundos das próprias comunidades. As mudanças na tradição exaltam a força dos inevitáveis
intercâmbios culturais e a assimilação da cultura de massas. Por outro lado, permanece ainda
a tradição da “ladainha”, com tambores e rezas cantadas ao longo de todo o Sírio de São
  57  

Sebastião, findando-se na igrejinha da comunidade. Muitas pessoas seguram velas em suas


mãos, o lago enfeitado com milhares de barquinhos iluminados é cortado pelo barco que
transporta o santo, bandeiras e foguetes marcam a bela e rara cena de sua chegada. Jovens
com seus cabelos como de jogadores de futebol, homens, mulheres e idosos festejam sem
parar, bebendo e dançando muito.
Em Santarém foi possível realizar uma conversa com o Procurador da República
responsável na época pelas unidades de conservação federais em questão. Após breve relato
das atividades em curso me foi disponibilizado uma relação dos processos findos e em
andamento referentes às unidades que envolviam o Ministério Público Federal. A conversa
sobre conflitos no interior e entorno das unidades, mesmo muito breve, dimensionava o papel
da Procuradoria da República e suas limitações, assim como o poder das corporações.
Converso sobre a constitucionalidade da atividade de mineração em Floresta Nacional.
Questiono sobre a questão do Platô Monte Branco, em que uma atividade de uso sustentável
da floresta colide com outra que suprime toda a floresta, em área destinada ao uso sustentável
da mesma. O Promotor se posiciona dizendo que, diante do poder das mineradoras, seria mais
fácil ocorrer uma modificação na lei ou na unidade em questão, do que cessar a atividade de
mineração. Nesse sentido as energias eram direcionadas para questões e conflitos mais
pontuais, que detivessem um amparo legal mais preciso, como na análise das autuações do
órgão gestor das unidades, cumprimento de formalidades e condicionantes no processo de
licenciamento ambiental pelo IBAMA, reparação de danos, compensações, possíveis
irregularidades, necessidade de indenizações e abertura e acompanhamento das ações
judiciais daí decorrentes. O Ministério Público Federal sempre fora relatado como muito
atuante nas questões das unidades, inclusive, seus representantes foram conhecê-las e aos
povos que residem no interior das mesmas.
  58  

Outubro de 2012

Foto 06: Canoa de índio. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.

Em outubro de 2012 foi realizada nova expedição com fins de dar continuidade ao
projeto do Centro de Assistência Judiciaria da Universidade Federal Fluminense na Amazônia
- CAJUFF. O campo se desdobrou em três momentos: O primeiro, em Santarém, visitamos a
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, a subseção da Ordem dos Advogados –
OAB e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, buscando firmar
parcerias para o projeto. Nesta oportunidade estiveram presentes professores e alunos da
graduação, mestrado e doutorado. Com relação a pesquisa, foi possível no contato com o
INCRA, superintendência de Santarém, gravar entrevista com o responsável pelas
demarcações e titularizações de territórios quilombolas, Raimundo Guilherme Pereira Feitosa.
Além das explicações sobre a atividade do INCRA na regularização dos territórios
quilombolas, obtive informações sobre os trabalhos desenvolvidos na região alvo da pesquisa.
Neste momento estava ocorrendo a realização de laudo antropológico com fins de propor
titulação de áreas quilombolas em sobreposição às unidades de conservação. Indaguei sobre a
questão legal que assegura rigidez para alterar ou desafetar unidades de conservação, como
estas questões seriam dirimidas e sobre as articulações institucionais com o ICMBio. Foi
relatado que o governo estaria reconhecendo uma “dívida” com esses povos, sendo esta a
razão destes trabalhos. Com relação às articulações institucionais, como se depreendera em
outras ocasiões, são sempre muito limitadas e restritas às questões pontuais. O aparato
  59  

burocrático estatal, em seus múltiplos setores e fragmentações, guardam pouca sinergia


mesmo quando se trata de assuntos transversais.
No segundo momento deste campo, os trabalhos foram realizados em Oriximiná,
sobretudo com o Defensor Público, Mario Luiz Printes, em que tivemos a oportunidade de
acompanhar sua atuação e as relações com o Ministério Público e com a magistratura.
No terceiro momento, organizamos uma expedição contratando a mesma embarcação
e tripulação da primeira expedição em 2010. A mesma se iniciou no Lago do Sapucuá, em
que foi apresentada a dissertação de mestrado da pesquisadora Thaís Azevedo para as
comunidades do PEAX. Posteriormente, visitamos o emblemático “Lago Batata”, que serviu
de depósito para o rejeito da bauxita na primeira década de exploração comercial da mesma,
onde conversamos com os moradores locais sobre o feito e seus resquícios que ainda
perduram. Num segundo momento aportamos na Vila Paraíso, bem próximo a Porto
Trombetas, em que um dos pesquisadores, o estudante de mestrado Eduardo Castelo Branco e
Silva, ali permaneceu para realizar seus trabalhos. Nesta comunidade, também conhecida
como Brega 45, vivem algumas famílias e diversas mulheres que se prostituem para atender
tanto aos funcionários da MRN quanto aos tripulantes das embarcações que veem se abastecer
de bauxita. Seguimos viagem até aportarmos na comunidade da Cachoeira Porteira partindo,
no dia seguinte, para as comunidades indígenas do Rio Mapuera. Ficou marcada a dificuldade
de acesso às mesmas e a dificuldade de diálogo com os indígenas que, além de muito
fechados, falavam pouco português. Em sequência, no retorno deste campo no Mapuera,
foram revisitadas algumas comunidades quilombolas (Cachoeira Porteira, Moura, Último
Quilombo, Mãe Cué e Nova Esperança), em que, por estarmos em período eleitoral, foi
possível acompanhar como se dava o processo de votação das mesmas. Na comunidade
quilombola Mãe Cué presenciamos forte movimentação de barcos e funcionários da MRN
que realizavam os estudos e preparativos para iniciar a exploração da bauxita no Platô Cruz
Alta, utilizado também por essa comunidade. Nesta ocasião, conversamos com um ancião da
comunidade que já havíamos conhecido desde o primeiro campo, o “Tinga”, que nos relatou
como os tradicionais ali utilizavam aquela área em seus trabalhos extrativistas.
Ainda neste terceiro momento, visitamos a base Santa Rosa e a comunidade Último
Quilombo no Lago Erepecú. Detínhamos a informação de que Richard Carl Vogt, pesquisador
da Reserva Biológica do Rio Trombetas, ministrava ali um curso sobre ecologia de quelônios
para os seus alunos do INPA, e fomos em busca de uma entrevista. Ao chegarmos nos
deparamos com um iate de quatro andares em que Richard Vogt estava com seus alunos.
Segundo o mesmo, esse barco foi uma doação para a realização dos seus trabalhos de
  60  

conservação e pesquisa por toda a Amazônia. Richard Vogt nos concede uma longa entrevista
e explica sobre os seus trabalhos na reserva, mostra-nos os equipamentos de alta tecnologia
que utiliza e nos fala sobre as dificuldades enfrentadas na conservação dos quelônios
aquáticos da Amazônia.

Dezembro de 2012 e janeiro de 2013

Foto 07: Cachoeira Porteira – BR163. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013.

Em dezembro de 2012 e janeiro de 2013 foram realizados os últimos trabalhos de


campo na Amazônia para coleta de dados da pesquisa. O intuito deste campo era traçar a rota
de captura e comercialização das tartarugas-da-Amazônia extraídas da REBIO, acompanhar
os trabalhos dos pesquisadores e atualizar os dados obtidos sobre a MRN e a atuação
governamental.
Os trabalhos se iniciam em Oriximiná, onde consigo uma entrevista com um barqueiro
já conhecido, que em tempos passados havia realizado um transporte de tartarugas para
Manaus. Segundo o mesmo, no assoalho de um barco que transportava gado. O barqueiro, que
solicitou que não mencionasse seu nome, relatou-me que essa é uma forma de burlar a
fiscalização, utilizada até os dias de hoje. Conversávamos sobre o comércio e o consumo de
quelônios em Oriximiná, especialmente a tartaruga. Apesar de ser um hábito, uma tradição, a
espécie não é tão frequentemente ofertada e consumida, não faz parte da dieta normal da
população, sendo mais restrita aos dias festivos e ocasiões especiais. Como uma tartaruga de
tamanho médio chega a custar considerável quantia, esse hábito também é mais restrito aos
  61  

que possuem maior poder aquisitivo. Apesar de não serem os únicos, os principais
consumidores são as pessoas da elite do município, que, em alguns casos, possuem criatórios
legais ou não em suas fazendas, tanto de peixes quanto de quelônios.
O barqueiro, que trabalhava com fretes, tinha grande vivência em toda região e
conhecia muito das relações que ali se estabeleciam. Relatava que antigos agentes
governamentais extraíam peixes da reserva para as “pessoas importantes” do município, bem
como filhotes de tartaruga para os criatórios (práticas que supostamente se mantém). Falava
também da corrupção dentro do município, da manutenção do poder pelo prefeito que se
reveza nas eleições com seus aliados há cerca de trinta anos. Peço informações de como obter
uma tartaruga no município, com fins de conhecer como se dá o comércio, ver o real valor de
venda e as condições de vida de quem vende.
Por indicação, consigo me aproximar de um comerciante no porto de Oriximiná.
Talvez por desconfiança, a pessoa me diz que no momento não teria uma tartaruga para me
vender, mas que poderia obter um animal no valor de duzentos e cinquenta Reais, no final do
mês. Não objetivava realizar entrevista, logo me apresentei como um estudante de fora que
queria experimentar a tartaruga, junto com outros estudantes. Não cheguei a conhecer o local
que vive, nem tampouco onde armazena os animais, a conversa foi breve e não retornei para
efetuar o “negócio”.
Em um segundo momento deste campo, volto a Porto Trombetas para seguir junto aos
agentes do ICMBio para a Base do Tabuleiro, onde teria disponível um barco para a
realização dos trabalhos com as comunidades. Sigo para Cachoeira Porteira com objetivo de
obter informações sobre um conflito territorial que se dava entre índios e quilombolas naquela
região. Consigo nova entrevista com o coordenador da comunidade, Ivanildo Carmo de
Souza, que me informa sobre os acontecimentos e as medidas governamentais que estavam
sendo tomadas. O conflito basicamente se dava pela realização de novos aldeamentos em
áreas utilizadas pelos quilombolas ou demarcadas para os mesmos e a consequente disputa
pelos recursos dali. Naquele momento a situação já caminhava para sua resolução consensual.
Na ocasião desta conversa, solicito apoio para conhecer os trabalhos nos castanhais
próximos dali. A Associação dos Remanescentes de Quilombo de Cachoeira Porteira –
AMOCREQ, presidida pelo Ivanildo, nos sede transporte até o quilometro vinte e três da
rodovia federal BR-163 para que conhecêssemos o castanhal que havia ali próximo, cerca de
dez quilômetros floresta adentro. O nosso guia, nascido em 1952 no Piauí, era um antigo
funcionário da ELETRONORTE que trabalhava como telegrafista e ali permaneceu. Caçador
e extrativista de castanha, Edward de Souza Araujo – Seu Diva – assumira “integralmente” os
  62  

modos de vida local, com cerca de quarenta anos ali vivendo. Estabelecemo-nos em um
pequeno barraco de lona plástica e estacas de madeira a vinte e três quilômetros da
comunidade. Ali pernoitamos e logo cedo partimos para os castanhais, dentro da REBIO,
onde caminhamos o dia inteiro percorrendo cerca de vinte quilômetros no total. Nos
castanhais a floresta se torna mais homogênea diante da repetição daquelas imensas árvores,
testemunhas seculares de toda a vida ali e que compõem sociedades humanas desde tempos
muito remotos. Hoje é a principal atividade econômica da maioria das comunidades ali e
conecta-se aos grandes centros nas prateleiras dos supermercados, como um valioso alimento.
No trajeto foi explicado como se dava o processo de extrativismo, como coletam, onde
depositam os ouriços, como limpam e transportam; um trabalho bastante árduo. Pernoitamos
mais um dia no barraco e retornamos ao amanhecer para a comunidade, no mesmo veículo
que nos levara. Seu Diva relatava como as empresas ali chegaram e depois partiram, nos
mostrava algumas áreas que seriam submersas com a represa e que foram destinadas a
extração de madeira para a MRN. Parte dessas áreas visitadas simplesmente não se
regeneraram, permanecendo o solo descoberto há mais de vinte anos.
De volta a comunidade conheço um rapaz que estava vendendo por quarenta Reais
tartarugas-da-Amazônia, segundo o mesmo, de tamanho médio (não as vi). Destaca-se como
em uma comunidade o valor do animal é muitas vezes inferior ao que é vendido no município
de Oriximiná, que por sua vez, é muitas vezes inferior aos grandes centros como Manaus e
Belém.
Noutro momento deste campo, acompanho o trabalho dos pesquisadores com as
tartarugas-da-Amazônia na Base do Tabuleiro. Richard Vogt e Virginia Bernardes
monitoravam algumas matrizes por rádio-telemetria, as que permaneciam na região após a
desova e nascimento dos filhotes. Também estavam instalando receptores sonoros para a
captação da vocalização desses quelônios, na busca de ampliar o conhecimento sobre a
ecologia desses animais.
No acompanhamento dos trabalhos, quase diariamente, muitas conversas sobre os
conflitos ali se desenrolaram, marcando bem a interpretação dos pesquisadores sobre a frágil
situação desta espécie ameaçada de extinção e sobre o jogo de poder que recai sobre esses
espaços territoriais. Richard Vogt, americano, mas com traços germânicos e mexicanos
advindos do seu país, é o mais antigo pesquisador da REBIO e seu entorno, inicia seus
trabalhos na década de 1980 e desde então segue ali pesquisando. Virgínea, fez mestrado no
INPA, encaminhava-se para o doutorado e estava trabalhando como pesquisadora do projeto
  63  

financiado pela PETROBRAS, “Tartarugas-da-Amazônia: conservando para o futuro”,


coordenado pelo próprio Vogt.
Conversávamos sobre assuntos diversos, dentre os que chamavam mais a atenção para
a pesquisa estava a questão da acentuada e brusca queda no número de matrizes e a ausência
de explicação para a mesma. Várias hipóteses são cogitadas, do aumento exorbitante do
número de navios para abastecimento de bauxita à melhora na eficiência de captura pelos
pescadores com a chegada de novas tecnologias. A questão é trabalhada em parte da tese
expondo diferentes perspectivas dos atores entrevistados e documentos levantados. Vogt
menciona sobre uma pesquisa a ser financiada pela MRN sobre o impacto dos navios que, ao
longo dos anos, aumentaram seu trafego exponencialmente. Fora uma determinação do
próprio órgão ambiental, mas que até aquele momento não havia sido iniciada, quase treze
anos depois da queda brusca da espécie na reserva.
Não apenas os pesquisadores, mas tradicionais e mesmo funcionários do órgão
ambiental mencionavam sobre a possibilidade de muitos filhotes de quelônios e peixes terem
sido extraviados da reserva por agentes governamentais como uma prática “organizada”.
Outro ponto mencionado por Richard tratava do estranho desaparecimento de um dos
principais tabuleiros (praia) de desova das tartarugas, o Tabuleiro do Leonardo. Pouco após a
dragagem do Rio Trombetas para facilitar o tráfego dos navios até o Shipload da MRN, este
sofre uma redução significativa de suas dimensões. Segundo o pesquisador, os estudos na
época (1980) não apontaram uma correlação, mas ele entendia ser uma estranha coincidência
algo que ali estava a centenas de anos, simplesmente desaparecer naturalmente logo após a
implementação da grande obra.
Paralelamente ao acompanhamento dos trabalhos dos pesquisadores, visitei algumas
comunidades na busca de informações sobre a pesca dos quelônios exercida pelos
comunitários. Desta vez, não para o consumo próprio, o que já havia acompanhado, mas em
busca daqueles que exerciam a pesca tradicionalmente para o comércio. Essas pessoas já eram
conhecidas pelos agentes governamentais, muitos reincidentes infratores, o que tornava fácil
saber onde residiam. Entretanto, o acesso aos mesmos para tratar de assunto tão delicado, não
era simples, requerendo sempre uma aproximação muito cuidadosa e honesta. Por fim,
consegui apenas uma entrevista com um pescador tradicional do Paraná do Abuí, que por sua
vez, foi muito produtiva e esclarecedora. Neste ano ele havia aceitado o convite para trabalhar
no ICMBio.
  64  

Março de 2013
Na primeira semana de março de 2013 foi realizado em Brasília o último campo desta
pesquisa. Acompanhando um evento do Ministério do Meio Ambiente pude estabelecer um
estreito contato com funcionários do departamento de unidades de conservação. Entretanto as
ocupações com atividades internas e a pouca disponibilidade de tempo, não viabilizaram
entrevistas com os mesmos, senão breves conversas que não trouxeram dados novos. Por sua
vez, no IBAMA, pude entrevistar um antigo funcionário que participou da criação da Reserva
Biológica do Rio Trombetas. Assim como Beto Guerreiro – mais antigo funcionário do
ICMBio em Porto Trombetas e o mais envolvido com a criação da REBIO, sendo inclusive
um dos autores dos estudos que a embasou – João Carlos Nedel também não entendia haver
uma relação direta da MRN com a criação da REBIO. Afirmou que esta desde o princípio
tinha como foco a preservação dos quelônios. Entretanto, achava uma estranha coincidência o
fato da mesma ter sido criada no mesmo ano em que iniciam as operações comerciais da
mineradora e em uma área contígua à mesma. Por sua vez, quanto à FLONA, afirmou (assim
como Beto Guerreiro) que a mesma foi criada em um ato vertical empenhado pelo Presidente
da República na época, após uma reunião com os presidentes do IBAMA e da MRN. Nedel
fora convocado para realizar os estudos que justificariam sua criação, com a unidade já criada.

Considerações “preliminares”

Erodindo discursos e imagéticas dos conceitos e perspectivas sobre conservação


ambiental, desenvolvimento econômico, progresso social, populações tradicionais,
movimentos sociais, conflitos etc., as vivências do campo apresentam uma realidade que não
pode ser estancada, fragmentada e cristalizada no tempo. Cada segmentação implica em novas
comunicações e relações sempre cambiantes, cuja análise não pôde engessá-las ou percebê-las
estáticas. Uma realidade que se recria na medida em que se ampliam suas conexões, se
desterritorializa e reterritorializa com novas interações, nova ordem, segregações, exclusões e
inclusões. A lógica inerente ao sistema econômico capitalista em “recriar o mundo a sua
imagem e semelhança” está tão presente quanto a lógica do tradicional de cooperação e
solidariedade que, por sua vez se decompõe também em individualismo, hierarquia, desejos,
ambições ...
Há evidente e brutal discrepância de forças entre aqueles grupos que compõem os
interesses que recaem naqueles territórios. Numa fotografia momentânea poderíamos
prontamente hierarquiza-los. Mas as disputas antagônicas também acabam sendo trocas e a
  65  

ordem que é impressa tem incrustrada em suas fissuras aquilo que a modifica também.
Violência física, psicológica e moral, arbitrariedades, controle do corpo e da cultura, estão ao
lado de negociação, sedução, receptividade e permeabilidade. Há uma real desproporção entre
as trocas estratificadas. Provavelmente se adotarmos qualquer parâmetro de justiça, isso se
salientaria. Mas analisar essa realidade numa perspectiva dicotômica/dualista sob a lógica de
uma “unidade-pivô que funda um conjunto de relações biunívocas”, reduzindo-a aos grupos
de interesse ou às suas relações quantificáveis, não foi o caminho adotado para entender a
dinâmica desses conflitos territoriais.
Penetrar essa densa rede, requer pensar que ela conecta os acionistas globais das
maiores mineradoras do mundo às jazidas de bauxita daquele solo. Provavelmente ávidos por
crescimento e lucro e completamente alienados daquela realidade, ou senão, informados por
meio de um material “filtrado”, publicitário ou sobre o controle da própria empresa. Requer
pensar nas relações dos governos com as corporações e na permeabilidade destes e daquelas
para com os interesses das peculiares pessoas locais. Requer pensar na opulência da ciência e
da técnica nas reconfigurações do ambiente, na mobilização das forças, dos seres e dos
elementos naturais que vão compor o coletivo hibridizado. Pensar a “Ciência” em seu poder
de legitimar os discursos, dar os certos e errados, direcionar os caminhos.
Pode-se dizer que há um disciplinamento territorial que favorece o bom andamento
dos negócios do capital, na mesma medida em que este disciplinamento territorial lhe é
profundamente antagônico; e, ato contínuo, dentro de sua lógica requer outros
disciplinamentos para outros grupos de interesses que também vão conflitar. Nessas relações
todos se modificam – mineração, conservação, tradição. O Estado subserviente aos interesses
do capital, assume também o papel de incorporar outros interesses que lhe impõem uma
posição ambígua, que não se encerra e não se determina a priori.
Não há mineração de bauxita sem a extensa rede que lhe dá suporte, assim como não
há o território quilombola desconectado desta rede. A bauxita que sai de lá pode fazer parte
do computador que redigiu este trabalho ou da bicicleta em que me exercito, das peças do
carro, utensílios domésticos, aeronaves etc. suas conexões são múltiplas e indivisíveis da
própria sociedade. O processo que transforma aquelas pedrinhas avermelhadas nos objetos
que utilizamos, demanda muita tecnologia, maquinário, a supressão de milhões de árvores,
destruição de culturas, decisões políticas, organização do trabalho etc. Esse processo
integrado costuma não fazer parte do campo de visão das pessoas de uma forma geral, pelo
menos não em sua multiplicidade, mesmo nas pesquisas. Segmentamos o conhecimento tanto
quanto possível e este do interesse, da justiça, da moral, da política, do poder. Cada item tem
  66  

o seu compartimento próprio, individualizado e é apresentado a sua própria maneira,


geralmente atrelado a alguma autoria. De um lado, os que representam os objetos da ciência,
as coisas, do outro, os que representam os sujeitos de direito, os humanos, cada “grupo” em
seu próprio lado “entre si”. E no entanto tudo isso compõe a realidade indissociavelmente –
sociedade-natureza-mundo...
  67  

3 EREZU-M`NÁ – A TERRA DE MUITAS PRAIAS

Mapa 03: Landsat – Google Earth, 2013.

Se algo me confortava naquela cidade depois de um dia de trabalho sob o calor


equatorial era aproveitar as últimas horas de luminosidade no lago Iripixi, contemplando a
paisagem ou me banhando em suas águas mornas. Por vezes, quando dispunha de mais tempo
ia caminhando, perfazendo diferentes traçados observando a vida no município, suas praças
grandes, arquitetura e infraestrutura. É um município bem organizado, arborizado e bonito,
com muitas peculiaridades e grande potencial turístico. O imenso lago, nas épocas secas,
formava um mundo de praias de areia fina e clara que, mesmo caminhando horas a fio, não se
cumpria toda a extensão. Por vezes pegava um moto-taxi para chegar mais rápido nesses
locais, mas gostava mesmo era de ver as paisagens e as pessoas. Ademais eram constantes os
acidentes envolvendo motociclistas.
Ao caminhar pelas ruas me chamava a atenção as largas canaletas que dividiam as
calçadas. As vezes percebia esgoto doméstico correndo por elas, mas eram primordialmente
  68  

destinadas às águas das fortes e intermitentes chuvas. O grande matadouro frente ao porto
parecia coberto com um manto negro de tantos urubus, uma cena também marcante. Essas
aves necrófagas eram muito comuns pela cidade, talvez pelo alto consumo de carnes e pelos
hábitos de deixar restos de alimentos pelas ruas em latões de lixo destampados. Cheguei a
cruzar, por duas vezes, com carapaças de Tartaruga-da-Amazônia e de outro quelônio em
calçadas de ruas mais afastadas. Razão de muitos conflitos entre governo e tradicionais na
Reserva Biológica, esses animais são amplamente consumidos no município. Lá o mais
consumido não é um peru para a ceia do natal ou uma leitoa para comemoração de um
casamento, a tartaruga-da-Amazônia é o animal preferido nas datas comemorativas, servida
em pratos diversos como guisados, assados, sarapatéis etc. Pude contatar dois pontos de venda
e distribuição de quelônios, traficados da reserva e arredores, que atendiam ao consumo
interno e também aos centros urbanos maiores.
Em dias que me restava menos tempo, sem poder empreender longas caminhadas,
subia até praça do cemitério próximo da UAJV para ver o sol se esconder no mar das águas
brancas1 que formam o encontro do Trombetas com o Sapucuá. Muitas conversas, muitos
casos e trocas de experiências me auxiliavam a compreender aquela realidade. Nalgumas
noites saia para as casas noturnas da cidade onde se escutava muito Technobrega e se dançava
muito, uma cultura bastante massificada por todo o Norte. Casos de violência não eram raros,
constantemente se noticiavam brigas entre pessoas envolvendo armas brancas nesses bailes.
Em uma ocasião um estudante de medicina da UFF chegou a ser agredido com um terçado,
protegendo sua face com o braço e consequentemente levando uma série de pontos para
costurar as feridas. Foi um caso isolado que coincidiu com um dos campos da pesquisa. O
município apresentava-se peculiar e complexo tanto em sua história quanto na sua vida
política cotidiana.

3.1 O marido da abelha


A história do município de Oriximiná está atrelada ao clérigo de ascendência
indígena, natural de Faro, José Nicolino de Souza. O vigário de Óbidos no seu ímpeto de
penetrar os “vastíssimos desertos do Trombetas”2 e com propósitos de estender os territórios
da empresa pastoril, por meio de expedições de desbravamento, funda em 1877, a povoação

                                                                                                           
1
“Águas brancas” é um termo local utilizado para classificar as águas dos rios quando são mais turvas, ocre ou
barrentas, em contraposição às “águas pretas” que são mais cristalinas, esverdeadas, cobre ou azuladas.
2
PARÓQUIA DE SANTO ANTÔNIO. Histórico da Paróquia de Santo Antônio. In. Caminhando Libertando:
Anuário da Prelazia de Óbidos. 1957-1982. p.1. Disponível em: http://www.oriximina.org/noticias.html.
Acesso em: 18 de março de 2013.
  69  

Uruá-Tapera. Pouco depois o povoado é elevado à Freguesia de Uruá-Tapera pelo Presidente


da Província do Pará e Desembargador do Estado do Maranhão, Joaquim da Costa Barradas,
pela Lei nº 1288 de novembro de 1886. Em 1894 o mesmo foi elevado à Vila e em seguida à
Município pela Lei nº 174 de 09 de junho de 1894, passando a se chamar Oriximiná. Seis
anos após sua criação, em 1900, Oriximiná veio a ser extinto pela Lei 729 e teve seu território
dividido entre Óbidos e Faro. Apenas em 1934 Oriximiná é elevado novamente à categoria de
município pelo decreto estadual nº 1442, seguindo assim desde então3.
Se permitirmos a imaginação retroceder a um passado remoto, centenas ou mesmo
milhares de anos atrás, antes de nos depararmos com a soledade de um local indômito,
assistir-se-ia povoados, quiçá civilizações, habitando a região do vale do Rio Trombetas.
Artefatos, estatuetas e outras cerâmicas arqueológicas com geometrias sofisticadas dão
testemunho dos tempos anteriores, levados em grande parte para museus estrangeiros por Curt
Nimuendajú e imortalizados nos estudos de Peter Paul Hilbert4, que compôs muitas coleções
no Museu Paraense Emílio Goeldi. No curso da pesquisa me deparei algumas vezes com
artefatos arqueológicos na casa de quilombolas da Mãe Cué. Diziam que esses objetos eram
abundantes nas Terras Pretas de índio nas proximidades da comunidade, inclusive em áreas
pleiteadas para mineração, anteriormente por uma empresa chamada Santa Patrícia, hoje pela
Mineração Rio do Norte. A denominada Terra Preta é outro indício de que sociedades
sofisticadas habitavam a região, tratando-se de terrenos férteis e estáveis para cultivo,
tecnicamente criados pelos indígenas do passado e muito distinto dos pobres solos
equatorianos. Um amigo formado em geografia pela UFF, mestrando no INPA, estava
pesquisando esses sítios arqueológicos na Reserva Biológica do Rio Trombetas, onde de vez
em quando nos esbarrávamos. Os castanhais da Amazônia, por sua baixa variabilidade
genética, tem atribuída a sua dispersão pelas mãos humanas há cerca de 2000 anos, quando
começa o florescimento cultural da região5. Essas árvores magníficas, a Bertholletia excelsa,
principal fonte de subsistência dos quilombolas, são também testemunhas de uma Amazônia
“doméstica e habitat humano”, enquanto “florestas antropogênicas”6. As cerâmicas Konduris,
as terras preta de índio, os muitos sítios arqueológicos remontam a história de muitos grupos
humanos que ali habitaram, atestando a riqueza cultural da região. Nossa história poderia se

                                                                                                           
3
IBGE. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/para/oriximina.pdf
4
HIBERT, Peter Paul. A Cerâmica Arqueológica da região de Oriximiná. Instituto de Antropologia e Etnologia
do Pará. In. Publicação Nº 9, Belém. Pará. 1955.
5
NEVES, Eduardo. Amazônia ano 1000: na Amazônia de 1000 anos atrás, civilizações experimentam o
florescimento cultural. In. National Geographic. Nº 122, maio de 2010.
6
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da Amazônia
brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f.    
  70  

iniciar pelos Pauxis, ou os Pianacotós, os Cunurys, os Cherenas, os Paracoianas, os


Paracuatás, os Uaboys, os Uaracys, os Kayanas, os kaxuyanas, os HixKaryanás, os Tiriyós, os
Tixikyanas, os Tunayanas, os Xeréws, os Zo’és, os Waiwais, entre outros extintos ou que
ainda sobrevivem rumo a um futuro cada vez mais incerto dentro dos Territórios Indígenas.
Entretanto, na chegada dos grandes empreendimentos e das políticas governamentais em foco,
os grupos indígenas remanescentes já não mais habitavam a região. Apesar de circularem nas
áreas das Unidades de Conservação, não compõem efetivamente os conflitos em tela. Nas
décadas de 1950 e 1960 os destacamentos militares e missões religiosas os centralizaram nas
fronteiras entre Brasil, Guina e Suriname – territórios Kassawa, Kanashen e Kwamalá,
respectivamente.
As regiões encachoeiradas do alto Trombetas e de seu afluente Cuminá (ou
Erepecuru), antes mesmo da chegada do referido padre Nicolino, já era habitada pelos negros
fugidos que viviam nos grandes mocambos. Ao clérigo é atribuída a catequese dos negros
que por sua vez o conduzia, acompanhando suas expedições, pelos vastos sertões. A história
de Oriximiná está ligada à história dos Negros do Trombetas e esses ligados aos índios que ali
viviam no passado, como os Pinacotós, os Caribas, entre outros. Apesar da importância
histórica e do considerável número de comunidades e respectivo contingente populacional
(ainda que espraiado), aos olhos do regime militar, os quilombolas praticamente inexistiam,
passando a serem considerados bem posteriormente, por assim dizer, pelos novos contornos
políticos e “pelo seu próprio levante”.
Oriximiná, cuja etimologia da palavra é incerta - em tupi-guarani significa
literalmente: o marido da abelha¨ (zangão) - (uruçuí (orixi) + miná) = (abelha +
marido), é o segundo maior município do país em extensão territorial – cerca de 2,5 vezes o
Estado do Rio de Janeiro, maior do que países como a Grécia, Suíça ou Portugal, situando-se
entre os maiores do mundo. De cima avista-se uma imensidão verde com múltiplas
tonalidades, recortada por imensos cursos d’água, em entremeios, que compõem parte da
maior bacia hidrográfica do mundo. Com seus 66.821 habitantes, o município de Oriximiná
apresenta-se como um pequeno intervalo nessa imensidão verde de seus 107.603,292 Km2 de
território, situado na calha norte do estado do Pará, uma das áreas mais íntegras do estado em
sua bio-sócio-diversidade. Ocupando a 3631ª posição no ranking do IDH dos municípios do
país7, com um PIB total estimado em quase um bilhão de Reais, e per capta em R$16.982,09

                                                                                                           
7
PNUD. Ranking decrescente do IDH-M dos municípios do Brasil. Atlas do Desenvolvimento Humano.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (2010). Disponível em:
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-­‐IDHM-­‐Municipios-­‐2010.aspx. Acesso em março de 2013.
  71  

– uma quantia substancial frente aos muitos municípios brasileiros equiparados em


contingente populacional, não obstante a desigualdade ser proporcionalmente aviltante. A
parte urbana do município padece de problemas corriqueiros ligados à saneamento básico,
saúde, educação, infraestrutura entre outros, mesmo recebendo anualmente milhões de reais
em royalties advindos da exploração da bauxita pela MRN. Para a parte interiorana
rural/tradicional do município, entendo, não se pode aplicar os mesmos parâmetros para aferir
riqueza e pobreza, dada a dispersão e a heterogeneidade.
Com tamanha extensão territorial prodigalizam recursos naturais variados no
município. Mensurar dentro desta vastidão essa riqueza é tarefa de grande complexidade, há
muito empenhada por órgão governamentais, muitas vezes, com parcerias internacionais,
conforme visto. Os recursos minerais apresentam jazidas grandes de bauxita, fosfato, ouro,
diamantes entre outros minerais. Os recursos florestais são madeireiros com diversas espécies
nobres típicas do bioma amazônico, e não madeireiros, que abundam a floresta como a
copaíba, a bacaba, o breu, a castanha, o açaí e outras centenas de frutas, seivas e cipós. A
biodiversidade da fauna, tradicionalmente explorada na caça e na pesca, ainda é em parte
desconhecida pela ciência. Os distintos recursos com distintas valorações simbólicas e
econômicas, perfazem uma região extremamente rica e de acirrados conflitos. Entretanto,
dentre esses muitos recursos, é a bauxita que efetivamente vai reconfigurar toda a história
local, sendo um recurso que só possui valor significativo em grandes quantidades e que
demanda muita tecnologia e investimentos maciços para a extração, impossível para os povos
de lá.
A vista de cima muitas vezes oculta o que o olhar aproximado revela. A falsa ideia de
um vazio demográfico queda-se cindida pela pluralidade de pequenas comunidades
multiétnicas que subsistem com uma peculiar territorialidade cujas formas de uso e ocupação
do espaço se estende por quase toda aquela área. Territorialidade ininteligível aos nossos
modelos convencionais. São indígenas, ribeirinhos e quilombolas que dividem este espaço
com citadinos, empresas, projetos de desenvolvimento, de conservação ambiental e de
demarcações de suas terras.
A miopia aguda dos projetos governamentais experimentados nas décadas de setenta e
oitenta, tendo como carro chefe a extração da bauxita, desconsiderou parte daquelas pessoas
sobrepondo os interesses de modernização e dinamização da economia aos interesses e modos
de vida dos tradicionais que ali viviam durante esse período8. Nesse processo contínuo de
                                                                                                           
8
Conforme apurado nos documentos governamentais que serão trados na 3ª parte da tese, os tradicionais não
passavam de retratos do subdesenvolvimento local, não gozando de nenhum status diferenciado. Os mesmos
  72  

transformações, seja por imposição, seja por sedução, a rede sociotécnica do ocidente se
amplia ali, amarrando bem suas conexões e fincando as suas bandeiras, integralizando
territórios à uma ordem própria e seletiva. Sob o sofisma de uma “terra sem homens” a
chegada de projetos como os da Mineração Rio do Norte, Andrade Gutierrez, ENGE-RIO,
ELETRONORTE entre outros, vão reconfigurar toda a lógica espacial e imprimir uma
racionalidade específica e homogeneizadora do território dentro da ambivalência dos projetos
modernizantes. De um lado alguns benefícios advindos dos repasses de recursos aos citadinos
e comunitários, ligados a infraestrutura, tecnologias, trocas comerciais e assistências
governamentais, de outro, enriquecimento sem parâmetros de grupos minoritários que se
ligam direta ou indiretamente ao grande capital, perda de recursos naturais, degradação
ambiental e supressão de direitos. Por sua vez, a democratização do país e a Constituição
Federal de 1988 reconfiguraram gradativamente a lógica anterior, contrabalançando a
unilateralidade dos interesses considerados, inserindo novas pretensões e novos atores, mas
dentro da mesma lógica expansionista do coletivo que vai agregando mais coisas, se
ampliando e hierarquizando.
A oposição de diferentes “racionalidades” de uso, significação e ocupação do
território, somada à grande riqueza de recursos naturais e culturais, faz daquela região uma
terra de extremos. Grandes projetos de desenvolvimento ligados à ideologia hegemônica, com
madeireiras, mineradoras, agroindústria e hidroelétricas, se contrapõem aos espaços
tradicionalmente utilizados. As práticas tradicionais também foram transformadas pelos
projetos conservacionistas que, historicamente, antes de serem consonantes às práticas mais
sustentáveis, como se presumiria, aliam-se à dinâmica daqueles que possuem melhores
condições de acesso e formalização de seus interesses à lógica governamental. Entretanto,
essa realidade gradativamente vem se modificando. As mudanças políticas, a atuação de
agentes externos, as novas concepções do ambientalismo, as mudanças legais que recaíram
sobre as Unidades de Conservação com a Lei 9985/2000, por sua vez, proporcionam um
momento histórico de inversão de interesses e (des)legitimação de práticas.
Cabe ressaltar que a dinâmica dos tradicionais dentro dos inevitáveis intercâmbios
culturais se modificam e, ainda para aqueles mais resguardados, não podemos adjetivar suas
práticas como sustentáveis a priori, como muito se romantiza. A continuidade de práticas ou
modos de vida (hábitos alimentares, trocas econômicas, ocupação de áreas, abertura de
roçados) podem não se sustentar por lapsos temporais mais delongados, pela intensidade das
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
deveriam ser integrados à nova dinâmica industrial por meio do pleno emprego e com modernização de suas
práticas extrativistas.
  73  

práticas dos próprios tradicionais ou pelo aumento do seu contingente populacional, sejam
eles indígenas, quilombolas ou ribeirinhos. Nesse sentido, isentar suas práticas da
necessidade de algum controle estatal, por mais paradoxal que seja dentro da história aqui
narrada, pode tornar mais difícil a sobrevivência e continuidade das comunidades tradicionais
em seus territórios. Territórios estes sob constante ameaça das próprias políticas
desenvolvimentistas do governo e dos “invasores” que podem ser: a) grupos organizados
externos como geleiras, madeireiras, mineradoras; b) grupos ou indivíduos menos
organizados como fazendeiros, grileiros, garimpeiros; c) ou mesmo pessoas internas da
própria comunidade que extraem recursos em grande quantidade para fins comerciais
tornando-os escassos para os demais ou gerando outros problemas.
A exponencial ordenação e normatização territorial que recaiu sobre Oriximiná – nas
estacas e recortes que marcam as linhas imaginárias dos seus diferentes espaços – recriou um
imenso território em disputa, “palmo a palmo”, por distintos grupos, com diferentes
significados para a terra. O município corresponde ao maior contínuo de áreas protegidas do
mundo com três Unidades de Conservação estaduais: Floresta Estadual do Trombetas,
Floresta Estadual de Faro e Estação Ecológica do Grão Pará; duas Unidades de Conservação
federais: Floresta Nacional Saracá-Taquera e Reserva Biológica do Rio Trombetas; três
Terras Indígenas: Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera e Tumucumaque; e, cinco Terras
Quilombolas tituladas: Boa Vista, Água Fria, Trombetas, Erepecuru e Alto Trombetas. Além
de outras demarcações pleiteadas por quilombolas ou indígenas. Isso significa regras de uso e
significações relativamente variadas para extensos pedaços de terra, muitas vezes já
habitados/utilizados, que pressupõe rígido controle sobre o manto legitimador dos ideais de
sustentabilidade e proteção sociocultural. No outro extremo terras são demandadas por
fazendeiros, pecuaristas e sojicultores, que também exercem fortes influências políticas.
Contudo, em termos de influência, todos se apresentam incomparáveis perto da mineração de
bauxita que parece flutuar num mundo aparte, acima de tudo isso.
Com as adversidades geradas pelos distintos modos de utilização do território e a
inserção de novos atores sociais surge a consciência dos conflitos, a politização dos grupos de
interesse e a luta material e simbólica por cada espaço daquela terra. A discrepância de forças
é o que muitas vezes perturba os sentimentos de justiça, pois dentre as muitas facetas,
algumas correspondem a uma “sociedade” com o Estado com repercussões diretas nos
processos decisórios políticos e jurídicos, sobretudo os interesses minerários e energéticos. As
decisões sobre a utilização dos recursos são tomadas em instâncias que ultrapassam as esferas
locais (ou mesmo nacionais) repercutindo na ordenação territorial sempre favorável a estes
  74  

grupos, pensada milhares de quilômetros distante da realidade ali e muitas vezes


flexibilizando a própria lei que regulamenta o uso do território e de seus recursos. Outra
faceta corresponde ao próprio governo que, com suas políticas verticalmente aplicadas, de
desenvolvimento e ambientais, submetem as práticas culturais seculares ao crivo da lei,
muitas vezes criminalizando-as, compreendendo uma ingerência muito grande que atinge
sobretudo aqueles com menor acesso e capacidade de formalização de processos, bem como
capacidade de defesa reduzida. Ao mesmo tempo as políticas ambientais não são capazes de
impedir a degradação do ambiente e a perda gradativa dos recursos, decorrente
principalmente de invasores e projetos desenvolvimentistas, mas também das práticas
culturais predatórias. Uma terceira faceta que se apresenta, apesar da fragilidade decorrente de
serem historicamente excluídos pelas políticas anteriores, hoje ganham substancial força e voz
de combate, são os grupos étnicos como os indígenas e os quilombolas que gozam de porções
significativas de terras demarcadas e muitas outras sendo reivindicadas, com amplo apoio de
organizações nacionais e internacionais. O Estado gradativamente os conectou em suas
políticas. Em menor escala ali no campo do estudo, estão os ribeirinhos e os compreendidos
como “individuais” que possuem maior dificuldade de inserção de seus interesses, ora
conflitam com os outros grupos, que também, não raras as vezes, conflitam entre si.
Nesse contexto de contrastes e conflitos evocar o judiciário – a instância por
excelência para dirimir conflitos sociais – deveria ser algo recorrente, pois, além de avultarem
os problemas corriqueiros de ordem penal, civil e trabalhista, sobretudo na urbe, há a
peculiaridade de questões de ordem difusa e coletiva. Ocorre que, o judiciário no local é
extremante carente e insuficiente diante da envergadura dos problemas e questões que ali se
apresentam. Durante todo o curso da pesquisa assisti mudanças dos representantes do
Ministério Público e da magistratura, geralmente atuando substitutos no fórum de Oriximiná.
Isso repercute na ausência da formação de vínculos mais concretos dessas instituições com a
realidade local e mina a possibilidade de uma prestação adequada da função jurisdicional do
Estado. Nesse sentido um contingente populacional significativo não possui acesso à justiça,
não apenas pela deficiência estrutural da mesma, ou pela hipossuficiência econômica, mas
também pela defensoria pública também ser extremamente minguada. Com apenas um
representante diante de uma demanda extraordinária em muitos sentidos – pela diversidade
dos assuntos em pauta, pela extensão do território, pela diversidade etno-cultural da
  75  

população, pela força dos grandes grupos econômicos – o Defensor Público torna-se uma
figura emblemática pelo seu esforço e história9.
Entretanto, no que diz respeito aos espaços territoriais recortados, correspondentes às
duas unidades de conservação federais, todos os litígios que se desdobram em seus limites são
tratados pela Justiça Federal e pela Procuradoria da República. Nesse sentido, os principais
casos enfocados que envolvem a Reserva Biológica, a mineração da bauxita na Floresta
Nacional e as comunidades quilombolas, tiveram como primeira instância o foro judicial do
município de Santarém e não de Oriximiná, que não possui Justiça Federal. O que certamente
não diminui a importância da Justiça Estadual e seu necessário e urgente fortalecimento no
município.
Conforme afirma o Sr. Josielson dos Santos Costa, Coordenador Social da Paróquia de
Santo Antônio, nas cidades paraenses onde operam os grandes projetos de mineração, o papel
jurisdicional do Estado é quase inexistente. Como se toda uma região fosse entregue pelo
próprio Estado ao jugo dos protagonistas da mineração. Prioritariamente a ordenação do
território seria para atender à estabilidade e manutenção dos bons negócios dos mesmos10.
Essa “simbiose” entre mineradora e Estado, que trato mais profundamente adiante, em
Oriximiná se materializa de maneiras muito diversas como, p. ex., nos veículos, equipamentos
e recursos doados pela MRN e utilizados pelo poder judiciário, legislativo e executivo locais,
além dos repasses tributários e suas aplicações. Na realidade de Oriximiná essa relação é
significativamente estável, principalmente se comparada a outras realidades como foi a de
Carajás. Aqui a “violência” é sutil, se apresenta pela regra e pelo controle sistemático, pelo
disciplinamento frio, sem explosões, sem descontroles perceptíveis à primeira vista. Talvez,
por isso, ainda mais penetrante, ainda mais extensiva.
Uma conveniente distância é mantida entre a MRN, situada no distrito de Porto
Trombetas, e a realidade política e econômica que se apresenta em Oriximiná, não obstante a
onipresença material da empresa em praticamente tudo. Não me refiro às cinco horas de barco

                                                                                                           
9
MADEIRA FILHO, Wilson; ALCÁNTARA, Leonardo Alejandro Gomide; VERAS, Cristiana Vianna;
AZEVEDO, Thais Maria Lutterback Saporetti; TERRA, Alessandra Dale Giacomin; SANTOS, Camila Oliveira;
NASCIMENTO, Marina Marçal do. Nas mãos de Deus: a atuação da defensoria pública do estado do Pará no
município de Oriximiná junto às comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas. In: II Seminário
Interdisciplinar em Sociologia e Direito: resumos e artigos. Niterói: PPGSD-UFF/PROEX-UFF, Niterói,
outubro de 2012, GT 10, p. 1-23.
10
COSTA, Josielson dos Santos. Relato sobre o papel da igreja na organização política das comunidades
quilombolas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e a Thaís M. L. S. Azevedo.
Oriximiná. 21 de julho de 2011. Esse ponto apresentando pela entrevista enseja uma pesquisa de
aprofundamento: aferir a operacionalidade do judiciário nos municípios em que atuam os grandes
empreendimentos de mineração. Aqui segue enquanto sugestão, pois não se trata propriamente do foco desta
análise.
  76  

ou uma hora de lancha para chegar no distrito, ao mesmo tempo em que a empresa está por
trás de várias ações governamentais, seja financiando ou influindo politicamente conforme
sua conveniência, a mesma segue blindada pelo próprio Estado, que lhe faculta essas vestes
de imparcialidade. Conforme salientou em conversa, Evandro Soares Silva, assistente de
Relações Comunitárias da MRN, a empresa cumpre a lei e paga todos os seus tributos, o que
o município faz com o recurso não está na esfera de responsabilidade da mesma. Será? O
“poder sobre o poder” fica salientado nos dizeres de João Bosco Almeida, advogado,
fundador da Associação Comercial de Oriximiná e da Fundação Ferreira de Almeida:
A vila de Porto Trombetas era o templo sagrado e estratégico do
governo militar e empresas estrangeiras, onde se instalava a
Mineração Rio do Norte SA – MRN, empresa mito e sucesso de
administração para os seus acionistas. Porto Trombetas era
indecifrável e inacessível nessa época da pós-ditadura. Dizem que até
o prefeito do município tinha que pedir licença para desembarcar.
Assim se nutria a sociedade agora mais civil que via a nova república
de Tancredo e Sarney surgir. Após longa madrugada, aportavam na
vila de Porto Trombetas os teimosos empresários de Oriximiná,
devidamente conduzidos para o café da manhã na Casa de Hóspedes
da MRN. Crachás e Credenciamento não era compatíveis com a
liberdade democrática nem com a mudez e rudimentares técnicas
comercias dos oriximinaenses. Foi a primeira vez que uma delegação
de oriximinaenses conseguiu ser recebida em Porto Trombetas pelos
seus próprios méritos, isto é, sem favor político[...].
Depois da apresentação, um passeio pela área industrial e mina fez os
empresários oriximinaenses virem pela primeira vez as enormes
máquinas assustadoras a escavar o solo e extrair as riquezas,
originariamente em prazo estimado para quatro séculos. Hoje tarefa
ajustada para pouco mais de quatro décadas, tal o esforço exigido pelo
mercado mundial do alumínio.11

Nesse cenário de sobreposições de poderes, em que até o Chefe do Executivo local


tinha que pedir licença para ingressar no distrito de sua administração, a política municipal
exerce um papel marginal no disciplinamento territorial. Quanto mais pelas riquezas em jogo
e pelo “interesse nacional”. Nesse sentido, o município limita-se aos projetos de menor
envergadura, às ações dentro da urbe ou proximidades imediatas e às políticas
assistencialistas aos comunitários. Conforme alguns depoimentos de munícipes, os repasses
do CEFEM (royalties da mineração) – principal provento do município – sustentariam uma
política clientelista que se vale das relações de dependência das comunidades no que tange ao
transporte, ao combustível, enfim, toda sorte de carências que se vive nesses interiores.

                                                                                                           
11
ALMEIDA, João Bosco. Kondurilândia: Ideias e registros na gênese da nova unidade federativa no oeste do
Pará. Fundação Ferreira de Almeida. Oriximiná. 2001. p. 69
  77  

Outros afirmavam que aqueles que estavam no poder ou diretamente ligados a ele, há mais de
vinte anos se revezando no município, tornaram-se milionários, adquiriram muitas cabeças de
gado e largas porções de terras na região. Latifundiários – em geral brancos e pessoas de fora
– no poder ou diretamente ligados a ele, segundo os entrevistados mais engajados
politicamente, não é uma realidade exclusiva de Oriximiná, levando-se em conta outras
realidades paraenses.
Não foi possível no curso da pesquisa uma conversa direta com o chefe do executivo,
apesar das muitas tentativas. Mesmo quando raramente conseguia um agendamento prévio,
sem horário definido, o atendimento no gabinete do prefeito era extremamente concorrido,
sempre havia uma fila imensa que não compatibilizava com o meu horário ou não chegava ao
seu término no final do expediente, não me possibilitando ser atendido. A fila era composta
por pessoas carentes da cidade e das diversas comunidades interioranas. Por curiosidade
puxava assunto para saber o que tratariam com o prefeito e obtinha respostas quase
constantes: estavam ali para pedir ou materiais de construção, ou combustível, ou
medicamentos, ou um gerador para a comunidade, ou arrumar o barco que estragou, entre
outros favorecimentos. Os cabrestos, os currais e os recursos que asseguravam a manutenção
do povo gado a um só tempo.
Durante todo o curso deste trabalho, que se iniciou em 2009, o prefeito municipal foi o
político do Partido Verde, Luiz Gonzaga Viana Filho, que se reelegera ao seu quarto mandato
na mesma época em que eu realizava o campo em outubro de 2012. Em meados de 2013 uma
série de protestos e manifestações nas redes sociais pediam a cassação do prefeito, com
inúmeras irregularidades expostas nos meios de comunicação. Nepotismo, desvio de recursos
públicos, enriquecimento ilícito, entre outras irregularidades foram avençadas pelas redes
sociais e pela imprensa. Consultando o Tribunal de Contas da União encontro uma decisão
obrigando o prefeito e uma empresa a ele ligada a devolver aos cofres públicos R$ 1.546.827,
3612, relativo ao seu primeiro mandato e ainda sem decisão final. Na Justiça Eleitoral
inicialmente seu nome constava dentre os políticos impugnados pelo “Ficha Limpa”, mas o
mesmo conseguiu contornar a situação, se reeleger e seguir no mandato até o final da
pesquisa.
Em nota divulgada pelo “Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de
Minerais Não Ferrosos do Oeste do Pará - STIEMNFOPA” e notícia divulgada no “Jornal de

                                                                                                           
12
Tribunal de Contas da União. (10/09/2009 15:32) TCU condena ex-prefeito de Oriximiná (PA). Disponível
em: http://portal2.tcu.gov.br/portal  /page/portal/TCU/  imprensa/  noticias/detalhes_noticias?  
noticia=1771906. Acesso em março de 2013.
  78  

Santarém e Baixo Amazonas” do dia 19 de julho de 2013, é possível exemplificar a


complexidade das relações entre a política local e a mineração da bauxita pela MRN. O caso
trata de uma denúncia de fraude envolvendo o município de Oriximiná, a empresa Cattani
Transporte e Turismo S/A e a MRN. O município licita em 1998 e concede à empresa de
transporte citada (única concorrente), enquanto concessão de transporte público, o trajeto da
vila de Porto Trombetas até as minas de bauxita situadas nos Platôs Aviso, Saracá, entre
outros. A primeira questão que se levanta é: o que há de público no transporte dos
funcionários da MRN, alojados na Company Town, para os trabalhos nas minas de bauxita
exploradas pela própria empresa? A segunda questão é: quem e o que se ganha com essa
concessão? O primeiro ponto é prontamente dedutível, transportar os funcionários da empresa
para a realização dos trabalhos de mineração da mesma no coração da floresta amazônica,
distante de tudo e de todos, é de interesse exclusivo da própria empresa, não há nada de
público nesta relação. Ninguém, senão os próprios trabalhadores da empresa utilizam este
transporte ou podem utilizá-lo. Esse foi o entendimento apresentado pelo Laudo de Inspeção
Judicial e pelo Relatório do Ministério Público do Trabalho, realizados pelo Juiz Federal da
vara do trabalho de Óbidos, Sergio Polastro Ribeiro, e pela Procuradora Cíntia Nazaré Pantoja
Leão, respectivamente13. Com relação ao segundo ponto, fica mais evidente a associação
entre Estado e Mineração para atender aos interesses da última. A Súmula 90 do TST diz o
seguinte: “O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador,
até o local de trabalho de difícil acesso ou não servido por transporte regular público, e para
o seu retorno, é computável na jornada de trabalho”. As denominadas horas “in itineri”
também são asseguradas pelo artigo 58, § 2º da CLT. Ou seja, o conluio realizado para
simular a prestação de transporte público – inexistente em Oriximiná – possibilitou à empresa
MRN se isentar do pagamento das horas gastas pelos seus funcionários no deslocamento até
as minas – cerca de 70 minutos. As horas in itineri eram obrigatórias para empresa desde
1981, após decisão em primeira instância do Juiz Federal do Trabalho de Óbidos Jader Rabelo
de Souza14. Entretanto, o TRT 8º região em direção oposta ao laudo de inspeção judicial e ao
relatório do Ministério Público do Trabalho, reformou a sentença creditando a licitação
pública e isentando a empresa desta da obrigação trabalhista.

                                                                                                           
13
STIEMNFOPA. Trabalhadores da MRN organizam protesto contra fraude no transporte público. Oriximiná.
Disponível em http://www.stiemnfo.org.br/noticias.php?id=16538. Acesso em 18 de agosto de 2013
14
ABREU, F. Sant’Anna. Sindicato organiza frente contra a corrupção do transporte público em Oriximiná. In:
Jornal de Santarém e do Baixo Amazonas. Caderno 1 – Plantão, 15 a 25 de julho de 2013. p. 3. Santarém. 2013.
Disponível em: http://www.calameo.com/books/001507549fead079a393e. Acesso em 2 de agosto de 2013.
  79  

Valer-se do próprio Estado como blindagem para assegurar seus interesses e proteger-
se de ataques externos, ocultando-se, é uma estratégia muito bem sucedida: práticas que
dificilmente se legitimariam do ponto de vista legal e moral, ganham as vestes da legitimidade
estatal e do “interesse público”. A relação com município é menos do que a ponta do iceberg,
conforme se avança, percebe-se que a influência da MRN se amplia ainda mais nas instâncias
superiores, contrario senso.
Oriximiná, cuja economia está atrelada à exploração mineral, não se restringe a esta,
tendo em vista tanta riqueza natural. As madeireiras e os pecuaristas também ganham
importância neste cenário, sendo usual “medir” a riqueza dos munícipes pelas suas terras e
gado. Por sua vez, pecuária, agricultura e exploração madeireira são atividades geralmente
relacionadas às pessoas de lá e não a grupos transnacionais como é a mineração. Nesse
complexo a percepção que se tem ao dialogar com a população local é de que os mesmos são
conscientes politicamente da realidade local, principalmente quando se trata dos grupos
tradicionais, mas não somente. A importância da Igreja na organização política das
populações rurais e tradicionais merece destaque sendo melhor tratada um pouco mais
adiante. Em algumas passagens da entrevista com o Coordenador Social da Paróquia de Santo
Antônio é possível estabelecer algumas conexões entre os diferentes grupos de poder e
elucidar um pouco mais aquela realidade política. Pergunto:
*Deixa eu dar um pulo no tempo. O município recebe hoje uma
quantia muito significativa de recursos devido aos royalties da
mineração e pra quem vem de fora, eu não sei qual é a monta, mas eu
sei que é significativa, em torno de alguns milhões [...] pra quem vem
de fora a gente vê uma administração que tem carências que poucos
recursos poderiam resolver. Ou seja, seriam deficiências da
administração política pública e de outro lado você vê filas de
pessoas na prefeitura pedindo coisas. Há uma política assistencialista
forte, mas assistencialista no sentido de paternalista, pelo meu ponto
de vista, e, ao mesmo tempo, com deficiências significativas que
políticas públicas simples poderiam resolver. Como você vê a
administração hoje aqui no município, fazendo um paralelo com o
passado? Você vê a continuidade de uma lógica?
– É... já ouviram a história do cachorro? Do cachorro e da coleira?
Mudam os cachorros, mas a coleira é a mesma. Então, na década de
70 no município houve uma reunião dos pecuaristas e deliberaram
que o município seria um polo exportador de carne. Devido aos
grandes empreendimentos planejados pra cá, certo? Então logo em
seguida, sai ali da região de Macapá, chega a Jari, em seguida chega
a Mineração Rio do Norte. Então estava no projeto a Mineração Rio
do Norte, a barragem do Trombetas e a ALCOA em Juriti. A pesquisa
de Juriti saiu em 77. Então mais tarde falaram pra gente da Rio Tinto.
Mas pelo menos essas duas empresas já estavam garantidas aqui na
  80  

nossa região. Então os pecuaristas resolveram fazer isso e uma forma


de tranquilizar o povo é o assistencialismo. O primeiro prefeito que
começou a dar os passos ao assistencialismo foi o Altino Guimarães,
que nem casa ele tinha, mas todo dia ele dava comida pro povo. A
administração simplesmente copiou o processo fazendo algumas
infraestruturas. Então não houve muita mudança de 70 até hoje.
Muitas escolas hoje construídas com recursos do Estado e da União.
A Mineração Rio do Norte depois de 30 anos fez um convênio com o
MEC e com o estado pra construir a Universidade Federal que está
sobre um terreno sub judice, de repente, se o proprietário requerer,
pode demolir aquilo ali a qualquer momento. Então foi um erro, né.
Depois de 30 anos de mineração nós temos aqui o prédio. E quando a
gente anda aí pelo Brasil, as empresas fazem escola, hospital e dá o
apoio, né. E aqui, foi a primeira vez que a mineração faz um prédio
dessa magnitude. Tirada de outro apoio de royalties pra construção
de micro sistema, aqui na área do município nós temos outros apoios
além de carros, alguns novos e principalmente carros velhos pra cá,
para prefeitura, que eles doam. Tem uns três carros na SEMAGRE,
que são carros velhos, bem batidos, né, que a mineração doou. Temos
um na área da saúde que tá no setor de endemias...15
                                                                                                           
15
  COSTA, Josielson dos Santos. Relato sobre o papel da igreja na organização política das comunidades
quilombolas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e a Thaís M. L. S. Azevedo.
Oriximiná. 21 de julho de 2011. Segue nesta fala: Então, tem muitos veículos que eles usam bastante depois
jogam pra cá. É a lixeira, né. Então, questão de administração não mudou muita coisa e o assistencialismo é
forte. Então elege de vereador a governador aqui em Oriximiná. Pra ver uma das manobras mais irreais que
aconteceram e nós conseguimos derrubar a propaganda foi na construção da Praça do Centenário. Tínhamos aqui
um deputado que andava muito na região, o Priante, José Priante do PMDB que tinha um outdoor, a prefeitura
agradecendo o deputado José Priante por conseguir recursos pra construção da Praça do Centenário, mas bem ao
lado tinha uma placa da prefeitura falando que era um milhão de reais mas com recursos próprios do município.
Então nós fomos na rádio comunitária e fizemos as interrogações: ou era recurso próprio ou era verba de fora
que estava sendo aplicada para a construção da Praça do Centenário. Com dois dias depois tiram o outdoor e
colocaram outra informação lá. Então o que que sustenta essa máquina aqui? É esse assistencialismo. Daí da
prefeitura sai a telha, sai o cimento, sai o ferro, sai peça pra motosserra, qualquer qualidade. E aqui na Igreja eles
tem alguns impasses porque quando a prefeitura quer financiar alguma coisa pra cá os padres exigem uma
prestação de contas, certo. E hoje na atualidade tem uma creche no bairro de S. José Operário que tá dentro da
área da Igreja. E o prefeito prometeu, né, uma forma de convenio aí e queria murar toda a área da Igreja. No
entanto, construíram a creche mas não muraram. E agora o prefeito quer fazer novamente a ampliação da creche
do S. José e o padre já falou que só vai aceitar a ampliação depois que ele murar. E agora o prefeito está jogando
muitas pessoas contra a própria Igreja, contra o próprio vigário. Então como ele consegue isso? Com uma cesta
básica, paga uma passagem de Santarém pra Manaus... então não mudou muita coisa. Isso nós já estamos
correndo pros 28 anos de assistencialismo aqui. E no período eleitoral ele é muito mais forte. Quase todos os
moto-táxis trabalham e só o Ministério Público que não vê e os outros órgãos que não veem, os moto-táxis
carregando gente pra cima e pra baixo [com dinheiro público]. Se vocês fizerem uma pesquisa do Ministério
Público aonde tem área de mineração, vocês vão encontrar essa deficiência. Nos municípios que tem mineração
ou outro setor forte que equilibra a balança comercial desse estado ou do próprio município, vocês vão encontrar
deficiência no judiciário... todas as instâncias. Pra ver bem aqui, Uruá [?] um distrito muito novo, tem em torno
de 15 anos esse município, compreende? Não tem delegacia, não tem juiz, não tem promotor, não tem defensor e
é justamente onde, provavelmente, a Mineração Rio Tinto faça a base deles. Quem responde por esse município
[distrito]? O município de Óbidos que já tem uma outra deficiência. Então aqui no município o doutor Mário,
graças a Deus, que atende muitas vezes Óbidos mais Oriximiná, Terra Santa e Faro. E pra ele chegar até Faro e
Terra Santa tem que tirar do bolso dele. Como um dia desses conversávamos, é... uma questão já de sociologia
mesmo, né... em 64 se faz o código penal, desculpe 40 se faz o código penal... o que não fizeram de mudança,
não conseguiram alterar o código penal, muitas pessoas conseguiram alterar no ECA. Então você não precisa
fazer uma pesquisa muito alongada. É só você pegar de 64 a 92 que você vai ver uma população carcerária com
uma idade bem elevada, mas de 92 até agora você vai ver que a população carcerária mudou. Hoje aqui em
  81  

Os investimentos nacionais e internacionais para a exploração da bauxita dão novos


contornos e conexões para Oriximiná, muitas mudanças chegam com o agenciamento desse
“actante”. Uma rede que opera acima de qualquer outro interesse, se estabelece nesta vastidão
de terras onde se situam as maiores reservas de bauxita do Brasil. Regida pela lógica
expansionista do desenvolvimento, mas muito mais complexa do que simplesmente “a força
do capital”, a marcha adiante segue incorporando novos interesses e excluindo outros, criando
novos recortes territoriais e desconstruindo outros, agenciando coisas, pessoas, plantas,
animais e minerais no que a compõe.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
Oriximiná o preso mais velho tem 23 anos. Entendeu? Um menor mata a mando de alguém e com 2, 3 dias tá
solto. E exemplos aqui em Oriximiná não falta. Demora mais às vezes aí no Centro de Acolhimento por não ter
promotor às vezes logo pra sentenciar ele, se ele fica aí, se libera ou se vai pra Santarém. Então como eu to te
falando, é só olhar os municípios onde tem mineração que vocês vão ver as deficiências do judiciário em todas
as instâncias.  
  82  

3.2 O sentido do desenvolvimento

Ilustração 01: Diário de Campo – Brega 45. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.

Ano de 2010 – primeiro campo – saímos eu, Wilson Madeira e Ivan Pimentel de Porto
Trombetas por volta das onze da noite, as meninas pesquisadoras quedaram-se na Casa de
Hóspedes. Já havíamos acertado, ali mesmo no porto, com um barqueiro que nos conduziria e
aguardaria o nosso retorno da comunidade denominada Vila Paraíso, ou Brega 45. Cerca de
vinte minutos navegando e chegávamos às palafitas iluminadas, cheia de música, de bebidas e
de dança. A pujança e excitação pela oportunidade de uma pesquisa tão extraordinária para
mim se misturava ao medo do desconhecido, de estar na beira de um rio no coração da
Amazônia, em uma vilazinha onde as damas prestam serviços sexuais para os operários do
grande empreendimento minerário. Subimos as escadinhas de madeira e, transitando por uma
passarela suspensa, podíamos escolher em qual daqueles pequenos cabarés tomaríamos
discretamente uma cerveja e iniciaríamos o nosso trabalho. Poucas passadas e uma senhora
  83  

nos recebe educadamente e nos serve em uma mesa, ao nosso lado meninas se exibiam com
danças sensuais, aguardando que nos manifestássemos. Wilson acena e elas se aproximam e
se sentam na mesa, nos apresentamos e iniciamos ali breve conversa. Escolho uma das
meninas, a mais nova, que me conduz para o seu quarto anexado aos outros da grande
palafita, como um cortiço todo de madeira. Ali uma pequena estante, um radinho, sua cama
que ocupava 70% do quarto e um armário onde guardava seus pertences. Me assento na cama,
me apresento e apresento o meu trabalho, já havia combinado pagá-la (seu tempo) por uma
breve entrevista. Ela me conta: “completei 19 anos tem dois meses [tinha minhas dúvidas] e
sou de Santarém [...] estou aqui para levantar um dinheiro, minha prima trabalha aqui, ela
que me chamou, mas ela não está aqui agora não, está lá pra Santarém”. Me diz também que
sua família não sabia que estava ali e que logo retornaria e voltaria a estudar. “Aqui dá pra
fazer um bom dinheiro, as vezes, quando vem os estrangeiro, tiro até quatrocentos dólares na
semana”. Parte desse dinheiro ficava com a “casa”, que ela não se queixou do tratamento.
Provavelmente ela não vivia a mesma realidade de outras meninas ali, pois era jovem e
bonita, de pele cobre, claramente com ascendentes indígenas. Me contou que era praxe ali
cobrar US$ 60,00 por estrangeiro e o mesmo valor em Reais para os brasileiros, e que atendia
o “povo da mineração” em geral, das empreiteiras e dos navios. Disse que não gostava dos
orientais, se queixava: “a gente não entende nada do que eles falam [...] e eles são muito
bruto com a gente” ... Por ali já apareceram gregos, americanos, canadenses, franceses, gente
do mundo todo que atravessa os oceanos, penetra nos grandes rios e vai lá pegar o mineral
avermelhado. Essas moças, cujos brios se ofuscam nas sombras dos preconceitos, são
proibidas em Porto Trombetas, circundam na Praça da Feirinha... sempre as via por lá, mas
não são beneficiárias de nenhum projeto da mineração, provavelmente as mais invisíveis de
todos. Isso por prestar esse antigo serviço que ali amansa a solidão dos marinheiros e
operários da máquina minerária. É só mais um povo a ela conectado, cuja existência e
subsistência estão atreladas à própria MRN, ali tão perto e tão diferente dos quilombolas do
Boa Vista, dos ribeirinhos do Lago Batata e dos indígenas do Mapuera.16

                                                                                                           
16
Poucos dias depois retornamos com as pesquisadoras Thaís Azevedo, Carolina Thibes, Denise Vidal, Jamile
Souza, Alessandra Terra. As meninas realizaram ampla abordagem no local, estabelecendo descontraídos
diálogos com as meretrizes, se banhando no Rio Trombetas, brincando e ao mesmo tempo recolhendo
importantes informações. No campo realizado em outubro de 2012 também retornamos ao Brega 45 e deixamos
um pesquisador, Eduardo castelo Branco e Silva, enquanto o resto da equipe seguiu para a aldeia-mãe Mapuera.
Eduardo Silva realizou o seu mestrado sobre o Brega 45, tomando como lastro as experiências vivenciadas no
outro campo. Os dois renderam artigos:
a) MADEIRA FILHO, Wilson; ALCÁNTARA, Leonardo Alejandro Gomide; PIMENTEL, Ivan Ignácio;
VIDAL, Denise da Silva; AZEVEDO, Thais Maria Lutterback Saporetti; THIBES, Carolina Weiler; SOUZA,
Jamille Nedeiros de; TERRA, Alessandra Dale Giacomin. Vila Parais: invisibilidade das prostitutas do Brega 45,  
  84  

A história sobre o povo do Lago Batata narrada no compendio analisado nos próximos
capítulos17 não se alinha com as informações obtidas em um campo que realizei no mesmo.
Além de não mencionar quais foram os impactos vivenciados pelas pessoas ali, a narrativa
que enfatiza a alegria e a satisfação daquele povo ribeirinho, oculta as vozes ressentidas e as
transformações que vieram com a chegada da MRN. Partindo de entrevistas coletivas, por
meio de Diagnóstico Rápido Participativo - DRP com duas famílias, merecem destaque
alguns pontos aferidos nas histórias orais coletadas.
Converso com a família de Dona Domingas Alzira Pires18, 45 anos, e com a família de
Domingos de Souza19, 76 anos. Antes da chegada da MRN poucas famílias viviam no Lago
Batata, segundo os relatos, apenas duas e uma na área em que se erigiu Porto Trombetas. Foi
com a chegada da mineração que várias famílias se instalaram neste lago. Famílias “doutras
paragens, vinha por causa da concorrência de trabalho” [sic] e foram se instalando ao longo
do Batata. Com a deposição do rejeito de bauxita no lago, dentre as ações da empresa,
ganhava destaque nas falas, a remoção das famílias que ali haviam se instalado, pouco após a
contaminação. Outra ação mencionada tratava da realização de poços artesianos para as
comunidades afetadas mais acima, como Boa Vista e Moura, segundo os relatos. As famílias
retiradas do Lago Batata foram alocadas do outro lado do Rio Trombetas, “numa paragem
que chama de Bacabal” [sic], mas muitas se dispersaram e foram para outras “paragens”,
como o caso de Dona Domingas, que foi para o Juqueri Grande, abaixo da Cachoeira Porteira.
Segundo os entrevistados, a indenização que foi paga pela MRN não “dava pra nada”,
disseram que todos ali foram retirados e nas casas que restaram “colocaram fogo”. Conforme
Domingos de Souza, morador mais antigo do lago que chegou antes da mineração, com a
indenização que recebeu conseguiu comprar apenas uma “canoa velha [...] não dava pra
nada”. Mencionou que a “mineração falou que ia ajudar, mas não ajudou nada, eles
esqueceram”. Do local para onde foi removido, assim como grande parte das pessoas em
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
conjunto de prostíbulos no entorno da Mineradora Rio Norte, às margens do Rio Trombetas, em Oriximiná (PA).
In: Confluências, v. 13, n.1. Niterói: PPGSD-UFF, novembro de 2012, p.73-81.
b) MADEIRA FILHO, Wilson; SILVA, Eduardo Castelo Branco e; PINAUD, Deborah Zambrotti; TERRA,
Alessandra Dale Giacomin; LOUZADA, Ana Beatriz. Retorno à Vila Paraíso: memórias, processos de
territorialização e gestão de espaços de prostituição no Brega 45, no Rio Trombetas, em Oriximiná (PA). In:
Confluências, v. 14, n.1. Niterói: PPGSD-UFF, dezembro de 2012, p.218-236.
17
MOURÃO, Isaura. Um pouco de história, seu povo. In. BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De Assis, ROLAND,
F. Lago Batata: impacto e recuperação de um ecossistema amazônico. Rio de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000. p.
17-25.
18
PIRES, Domingas A.; et al. Entrevista Coletiva na comunidade do Lago Batata: família de Dona Domingas.
Entrevista realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de
2012. Oriximiná, 2012.
19
SOUZA, Domingos; et al. Entrevista Coletiva com o ancião do Lago Batata e seus familiares. Entrevista
realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de 2012.
Oriximiná, 2012.
  85  

igual situação, ficou menos de três anos e retornou para o Batata: “aqui tem muitos igarapés,
é mais bonito, é a vida da gente”. Dona Domingas afirma que as pessoas ali se opuseram à
remoção: “eles reclamava mas não adiantava nada, tinha que sair, tinha que perder tudo”
[sic]. Por sua vez, com relação a contaminação do lago, os comunitários que participaram da
entrevista, assim como Seu Domingos, davam mais ênfase à poluição visual: “a água ficou
feia e ainda tá feia, fica tudo vermelho quando a água baixa, tudo sujo da lama da bauxita, e
também é ruim, pode causar doença, dá coceira” [sic]. Disseram, nas duas entrevistas, não ter
assistido os trabalhos para recuperação do lago, não detinham conhecimento sobre o que foi
feito nesse sentido, para os mesmos, apenas pararam de lançar os rejeitos, mas não “retiraram
a lama vermelha, quando a água baixa fica tudo feio lá pra cima”. Ou seja, os grupos
familiares entrevistados não fizeram parte do processo de recuperação do lago.
A população do Batata, no tempo da pesquisa com 120 famílias, retira parte de sua
renda da agricultura, comercializando a produção de farinha de mandioca, beiju, jerimum,
melancia entre outros produtos na Praça da Feirinha, onde conseguem escoar, segundo os
entrevistados, tudo o que produzem. A outra fonte de renda, principalmente para os
“maridos”, se dá com os trabalhos para as empresas terceirizadas da MRN, conforme os
mesmos se referem: “as empreiteiras”. Pergunto se são empregados ou apenas prestam o
serviço e obtenho como resposta que são empregados. O esposo de Dona Rosana (que estava
junto com a Dona Domingas na entrevista), por exemplo, trabalha para a Cattani – a polêmica
empresa supra mencionada que tornou-se a concessionária do maculado transporte público de
Oriximiná para os trabalhadores da MRN até as suas minas. Conforme os relatos, nenhum
morador do lago estava trabalhando direto para a MRN, mas para as terceirizadas, que por sua
vez, empregavam muitas pessoas de lá.
Seu Domingos inicia a entrevista dizendo que antes da chegada da MRN não havia
“motor” (a rabeta para canoa), não havia comércio, para comprar qualquer coisa que
necessitasse tinha que ir remando até Oriximiná... uma jornada de três dias. Relata a chegada
da mineração, os acampamentos de pesquisa, as explosões nos platôs, as explosões na água
que a “branquejavam de tanto peixe que boiava”, o rejeito despejado no lago, no igarapé
Caranã... falou daquilo que provavelmente marcou seus olhos, sua história, dentro de sua
percepção de mundo. Seu Domingos afirmou que as coisas melhoraram muito com a chegada
da mineração, agora ele tem um motor, ou pode pegar um barco para Oriximiná, tem sempre
um regatão para escoar os produtos, tem acesso ao hospital de Porto Trombetas em caso de
emergência, tem gerador a diesel e tem ajuda da prefeitura. Seu Domingos não associa a
diminuição do pescado à contaminação das águas, diz que quando chegou o comércio (junto
  86  

com a MRN), é que se começou a pescar em demasia, de forma predatória. Foi a atuação dos
“invasores” (aqueles que pescam ou caçam para comercialização) que ocasionou a escassez
dos peixes e também dos “bichos-de-casco” e da caça. “Foi a invasão [...] antes não tinha
pra quem vendê, era só a gente aqui, despois começou tudo” ... [sic]. Fala da chegada do
“IBAMA”, segundo ele, se não fosse a entidade, já não haveria mais nada. Esse
posicionamento também obtive de entrevistados quilombolas.
Os programas sociais e ambientais da MRN são bastante diversificados podendo ser
divididos em voluntários e decorrentes de condicionantes dos licenciamentos ambientais20 – o
que corresponde a grande maioria dos projetos. Além dos projetos ambientais mencionados
sobre reflorestamento, manejo de fauna e de sítios arqueológicos, relacionado às operações
nas minas e todos gozando de parcerias com instituições de pesquisa como EMBRAPA, UFV,
UFPA, UFRJ, UFSC, ZOOFIT, UFG, UFJF, UFA, INPA etc., existem os projetos voltados
para as comunidades do entorno da mineração21. As ações socioambientais tem perceptível
repercussão na vida dos povos tradicionais na área de influência da empresa, perfazem
conexões peculiares da mesma com as comunidades, criam laços, influências, acessos,
oportunidades, recursos e dependências. Em praticamente todas as comunidades que visitei,
senão todas, parte da infraestrutura, como os barracões comunitários, foi construída com
recursos da mineração e, pelo menos um projeto de desenvolvimento social, também havia
sido realizado. Com fins ilustrativos elenco os principais projetos da empresa e,
posteriormente, comento aqueles em que tive oportunidade de vivência de campo e/ou coleta
de relatos por parte de comunitários e/ou autoridades públicas.
Como condicionante dos licenciamentos ambientais foi criado o Programa de
Educação Socioambiental – PES em 2010. Este programa se subdivide em doze projetos (em
alguns casos incorporando projetos anteriores) com aplicação e participação comunitária.
Transformar realidades, desenvolver conhecimentos, capacidades, O resultado dos projetos
variavam conforme a comunidade, prosperando em algumas e fracassando em outras.

                                                                                                           
20
Condicionantes, conforme o próprio nome, são ações que devem ser realizadas para a manutenção e validade
das licenças ambientais.
21
Separado por regiões segue um breve panorama das comunidades: 1. Sapucuá – Casinha, Amim, Ascenção,
Cunuri, Ajará, Leiro, Maceno, Castanhal, Macedônia, Vila Ribeiro, Amapá, São Braz, Boa Nova, Saracá
(realizei trabalhos de campo na Casinha, Castanhal, São Braz e Boa Nova); 2. Médio Trombetas – Sacuri, Boa
Vista, Nova Sacuri, Jacupá, Camixá, Tapixaua, Curupira, Axipicá, Varjão, Samaúma, Bacabal, Acari, Batata,
Flechal, Vila Paraiso e Muçurá (realizei campo na Boa Vista, Vila Paraiso, Batata e Flechal); 3. Alto
Trombetas – Moura, Último Quilombo, Nova Esperança, Palhal, Juqueri Grande, Jamari, Curuça, Juquerizinho,
Mãe Cué, Sagrado Coração, Tapagem, Paraná do Abuí, Abuí e Cachoeira Porteira (somente o Palhal e o Juqueri
Grande não foram trabalhados).
  87  

Um projeto que tive oportunidade de conhecer foi o de “Educação Ambiental e


Patrimonial”, realizado em parceria com o Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG.
Subdividido em diversas ações, o projeto visa fortalecer a identidade cultural comunitária
com a realização de cursos e oficinas, dentre estes, os de artesanato em barro, com a
exposição em diversas feiras os produtos fabricados pelas comunidades. No Lago do Moura
conheço as oficinas de trabalho, os artesãos, os fornos para a queima do barro e um barracão
para armazenar e expor as peças. Os próprios comunitários quilombolas nos explicavam (à
equipe do primeiro campo) a realização dos artesanatos: como coletavam a argila, as cinzas
de uma raiz que utilizavam para “dar liga”, o âmbar de uma planta (jutaicica) que utilizavam
para dar o verniz das peças, a queima do barro etc. Grande parte dos trabalhos eram
inspirados na cerâmica Konduri, a maioria das peças eram réplicas dos artefatos
arqueológicos, muitos encontrados por lá mesmo. Os quilombolas se diziam satisfeitos com o
projeto que, visualmente, estava bem organizado. Esse projeto está atrelado às compensações
ambientais decorrentes dos impactos sobre os sítios arqueológicos, dentre outros que
acarretam em perda cultural, como uma imposição também do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - IPHAM. Foi realizada uma pesquisa de mestrado sobre o
projeto, apresentando-o de uma forma geral, relatando um ponto interessante que foi a
dificuldade inicial de acesso à comunidade por parte do pessoal do MPEG. Os comunitários
achavam que os mesmos queriam lucrar com os artefatos arqueológicos encontrados por eles,
mas que, ao levarem representantes comunitários ao museu, compreenderam a seriedade dos
trabalhos. A pesquisa conclui que:
Ao longo de onze anos de existência, a parceria entre o MPEG e a
MRN, é possível constatar alguns ganhos significativos para essas
comunidades em termos de conhecimento, devidos as diversas ações
educativas as quais participaram e ganho em termos financeiros, pois
muitos têm uma fonte de renda a partir da confecção e venda de
objetos feitos em cerâmica22.

Os projetos de “Meliponicultura”, aplicados em Terra Santa, são derivados do PES e


assessoram os comunitários na criação de abelhas indígenas (sem ferrão) – não tive contato
com esse projeto. Já o “Projeto Mel” de 1996, foca as comunidades ribeirinhas de Oriximiná
que possuíam tradição na apicultura, o projeto atua assessorando tecnicamente e fornecendo
equipamentos para a criação de abelhas com ferrão (Apis sp). Tive oportunidade de conhecer
                                                                                                           
22
SANTOS, Alessandra L. L. Ações De Responsabilidade Socioambiental Em Parceria: O Caso Do Projeto
Educação Ambiental e Patrimonial Realizado nas Comunidades Boa Vista e Lago Moura – Porto Trombetas/PA.
2012. Dissertação. (Mestrado em Administração de Empresas). Universidade da Amazônia. Belém-Pará. 2012.
 
  88  

o mesmo na comunidade de Boa Vista e assistir na Exposição Agropecuária de Oriximiná de


2011, os comunitários expondo os seus produtos, apoiados ali pela MRN. No evento estavam
também expostos os produtos de outro projeto do PES, o de “Agricultura Familiar”,
desenvolvido em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Oriximiná – STRO e
com a Casa Familiar Rural de Orixminá – CFRO, o projeto oferece assistência técnica e
treinamento aos agricultores para a produção de orgânicos. Em ambos os casos, os
comunitários externavam satisfação com os projetos.
O projeto de “Microssistemas e Poços Artesianos” tem como objetivo fornecer água
potável para as famílias impactadas pelo Projeto Trombetas. Estive em contato com esse
projeto na comunidade de Boa Vista, onde os comunitários relatavam a necessidade desses
poços para o consumo de água depois da chegada da mineração, mas não foi possível no
curso da pesquisa aprofundar nesta questão. O projeto também é uma condicionante do PES.
Os projetos “Leme”, sobre segurança na navegação, o “Combate a Malária”, o
“Instituto Gaya de Defesa das Águas” e a “Associação Terrasantense dos Agentes Ambientais
Voluntários – ATAAV” são projetos que não tive oportunidade de conhecer, sequer por
relatos, somente pelo material publicitários da própria MRN. Já o projeto dos “Sistemas
Agroflorestais”, iniciado em 2005, com plantio de espécies frutíferas e instalação de casas de
farinha, pude estar em contato direto nas comunidades visitadas do Lago Sapucuá, onde a
então coordenadora da Comunidade de Boa Vista me relata sobre os resultados já atingido por
algumas famílias que colhiam os primeiros frutos. Esse projeto também está atrelado à
capacitação para o empreendedorismo cooperativista.
Me chamava a atenção um projeto que estive em contato em várias comunidades,
tanto no Sapucuá, quanto com os quilombolas do Trombetas, intitulado de “Desenvolvimento
da Piscicultura”. O projeto iniciado em 2002, também desenvolvido em Terra Santa e Faro,
beneficiava cerca de 200 famílias e oferecia a capacitação profissional, a infraestrutura
(doação de tanques-rede, alevinos e ração) e assessoria técnica aos beneficiários para a
produção de pescado (tambaqui – Colossoma macropomum). Em grande parte das áreas
visitadas o projeto não prosperava. As queixas, principalmente dos quilombolas, referiam-se a
falta de assistência por parte da MRN que, conforme os relatos, iniciava o projeto, mas não
dava a continuidade em tempo necessário para que o mesmo se sustentasse. Por sua vez, em
conversa informal com o assistente de Relações Comunitárias da MRN, Evandro Soares
Silva, o mesmo relata que a mineradora cumpre sua parte do combinado, que é fornecer a
ração apenas no primeiro ciclo de produção do pescado e que o fato deste e outros projetos
não prosperarem, estaria relacionado às dificuldades de organização e trabalho dos próprios
  89  

comunitários. Outrossim, Carlos Augusto de Alencar Pinheiro, que exerceu a chefia da


Floresta Nacional Saracá-Taquera e da Reserva Biológica do Rio Trombetas até 2010,
afirmava que a razão do fracasso de muitos projetos experimentados com as comunidades
quilombolas, não apenas os da MRN, mas de outras organizações e do próprio governo,
estava no fato de desconsiderarem a cultura dos mesmos. Para ele, os projetos, forma geral,
visavam transforma-los em empreendedores enquanto os mesmos eram extrativistas. Visavam
a geração de renda dentro de um contexto e de um mercado que não tem relação nenhuma
com a realidade deles e que, não raras as vezes, impactavam negativamente sobre seus modos
de vida. O coordenador da comunidade quilombola do Curuça-Mirim me apresenta a sua
percepção do projeto:
*De criação de peixe?
- É. Aí quando foi em 2008, a gente fez um projeto com eles de
piscicultura. E aí eles ajudaram, mas a ajuda que dão da piscicultura
é só pra tecer nome. Que o lucro não dá, é muito pouquinho.
*E o trabalho?
- Você trabalha de graça. Dá 3 tanque por exemplo, com 3 mil peixe.
Aí trabalha um ano e meio, 2 anos. Na hora que é de vender o cara
tem 30% fora da perca [sic] que ele tiver. Se tiver perca ela não vai
nem ter. Aí pra sustentar todo mundo? Porque olha, agora a gente
tinha 8 mil, eu comprei 3 mil e ela deu 5 mil com o projetozinho que
ela fez lá. Nós só vemo 3 mil. Fomo conferir agora deu 3 mil. Pra
dividir com todo mundo daqui a um ano e meio, o que é que o cara
vai fazer? Tem que comprar ração, tem que reformar tanque, que ele
só presta um ano e pouco. Uma tela dessa é 20,00 reais lá na loja,
pra cá vai sair por mil e poucos reais. Um tanque desse é 2.400,
2.600 reais, pro cara comprar.
*Ou seja, não é sustentável. O projeto não dá retorno.
- É muito pouco. Então ele daria se eles investisse bastante. Pra você
ter de mês em mês, pelo mínimo, você ter pra tirar. Mas aí como você
vai tirar? Se você só pode tirar peixe no outro ano?
*Mas em quanto tempo você acha que a prática ficaria sustentável
sem eles terem que colocar mais dinheiro aí? Você acha que
consegue? Se investir muito no início você acha que depois ela
consegue se sustentar ou eles vão ter sempre que ficar...
- Não, se investir bastante com projeto, um trem bom, ele dá pra
sustentar, entendeu? Mas tem que ter bastante. Por que? O tanque
rede ele só dá pra fazer uma coisa. Não dá pra fazer sustentar,
porque perde muito. Agora se a pessoa tivesse, como muitos fazem,
um criatório de barragem... de dois em dois meses ele tá colocando...
já é o suficiente pro cara tirar. Agora pouco do jeito que é investido
não tem condição.
*É só pra falar que faz alguma coisa.
- Só pra falar que faz. Pra eles tá muito bem. Porque se eles chegar
numa comunidade dessa, implantar um projetozinho desse como tá
  90  

sendo... olha, lá na comunidade a gente tá ajudando, é isso, é isso,


tem isso e tem aquilo. Mas na prática a realidade é outra. É difícil.
*E esse problema tem se repetido em todos os lugares?
- Em todos os lugares. O pessoal tá desistindo do lugar por causa
disso. Porque as vezes eles não dá condição, aí o trem para, né. Para
porque já tem muitas comunidade aí que já pararam. Porque eles
dão, as vezes três tanque no começo, aí dão três, quatro mil peixes
pequenininho.
*Quanto tempo leva pra crescer?
- Olha, pra ele tá normal leva dois anos. Aí eles dão ração por 15
meses. Aí desses 15 meses que acaba, você tem que vender, aí você já
tem que comprar de novo, né, pra sustentar. Então é uma coisa que se
eles ficasse ajudando nesse período, né... Porque hoje ninguém sabe
pra quanto tempo uma copaibeira se torna adulta. Tá tendo até um
estudo.23

Um projeto que pude vivenciar e que talvez seja o mais complexo de todos é o
“Manejo de Copaíbas”. Conforme mencionado, grande parte desses projetos decorrem de
condicionantes ambientais, nesse sentido, visam “compensar” alguns dos impactos causados
pela atividade de mineração ou trazer algum benefício direto para as comunidades
impactadas. Este projeto está relacionado ao Platô Monte Branco, de substancial importância
para a MRN, que no curso da pesquisa estava na eminência da supressão de milhares de
copaibeiras, fonte de renda das mencionadas comunidades do Jamari e do Curuça, no
território da Floresta Nacional. O projeto visa a produção e manejo de mudas de copaíba pelos
comunitários, em nome da “preservação da espécie” e como forma de gerar “autonomia” para
os produtores locais – ressalvo: como compensação pelo extermínio de umas das áreas de
maior concentração da espécie de toda a região e pela extinção do principal modo de
subsistência das referidas comunidades. As mudas são plantadas em estruturas criadas nas
próprias comunidades, Jamari e Curuça, com sementes coletadas pelos comunitários e
insumos cedidos pela MRN (saquinhos e adubo), toda a mão-de-obra fica por conta das
comunidades e as mudas são adquiridas pela MRN pelo valor de R$ 1,50, com dois anos de
idade, que segundo os comunitários, não “compensa” o trabalho. É só imaginar ter que regar
milhares de mudinhas quase todos dia sem ter água encanada, como é o caso do Jamari, tendo
que pegar água do rio. Conforme representante do Curuça e do Jamari, sobre o projeto do
inventário e viveiro de mudas respectivamente:

                                                                                                           
23
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
  91  

Curuça
- Tá sendo estudado e a gente não sabe. Aí fizeram um projeto. Esse
projeto que o Jonas tá fazendo com a gente e a gente já passou pra
você, né. Tá fazendo um inventário a redor. A gente tá trabalhando
com ele, mas de 2 em 2 meses. Então, dentro de uma comunidade, de
2 em 2 meses é pra ir 5 pessoas. 5 daqui e 5 do Jamari. São 10
pessoas que nós trabalhamo. Aí o que acontece, chega um mês todo
mundo quer ir porque precisa de ganhar um dinheirinho. Aí tu não
pode levar 10, só é 5 que eles pediram. Aí, poxa, fica aquela coisa... E
aqui tá a prova bem aqui, olha depois a gente vai lá. Fizeram esse
projeto, a gente ajuntou as sementes pra produzir, pra plantar em
2013. É pra plantar lá no platô, no Monte Branco e aqui na área da
comunidade pra fazer uma área pra plantar um pouco. Mas só que
esse trabalho que a gente faz aqui é de graça, não pagam nada,
entendeu? Ninguém ganha nada por isso, a gente tá trabalhando
mesmo só porque um dia quer ver, se ficar, talvez os filhos e os netos
da gente consiga alcançar esse período aí. Então a gente vai plantar
na situação, a gente tá trabalhando, tem uma base aí de 5 mil pé, e
muda aí de copaíba. Só que esse trabalho que a gente faz, que eles
pediram pra gente fazer, vai ser levado pra lá, vai ser levado pra cá,
mas eles não pagam nadinha. Nada, nada, nada.24
Jamari
- A gente conversamo com ela, perguntamo o que ela podia ajudar.
Porque antes, quando eu fui numa comunidade bem próxima dela que
é Boa Vista, ela deu a maior assistência. Agora quando chega com
nós por aqui ela não dá a mínima atenção e nem fala de indenização
nada não. O que ela diz pra nós é que ela vai tirar, mas vai repor. Vai
plantar mais do que tinha. Se ela vai derrubar 5 mil, ela diz que vai
plantar 20.000. Aí com 10 anos nós já tamo utilizando lá, mas isso
não é verdade. Não vai acontecer isso. A gente já fizemo umas
pesquisas, já fizemo trabalho com eles lá. Já derrubaram copaibeira,
já tiraram medida... já fizeram pesquisa do corpo dela toda pra ver
que marca era aquela, quanto que aquilo reproduzia e a gente vê que
não dá certo, que nós temo uns plantio agora da copaíba, que é pra
plantar aqui no Jamari e levar um pouco lá pro platô também, mas
ele morre e eu acho que não dá certo.25

Após conversa com os comunitários, quando retorno à Porto Trombetas questiono a


um Analista Ambiental do ICMBio sobre essa relação. O mesmo se posiciona dizendo
desconhecê-la e que a mesma deve ser revista, posto que as mudas são destinadas ao plantio
nas proximidades das comunidades e na restauração do platô como obrigação da MRN,
enquanto parte da compensação ambiental. Ou seja, quem está se beneficiando desta situação

                                                                                                           
24
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
25
JAMARI. Uso comunitário do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 09 de janeiro de 2012
  92  

é a própria MRN que economiza na produção e no plantio das mudas – sua obrigação –
utilizando-se dos quilombolas que não percebem remuneração direta (salário) pelo trabalho.
Outro projeto polêmico é a “Compra de sementes florestais” que se dá diretamente de
algumas comunidades no entorno do Lago Sapucuá. Esse projeto tem sua origem atrelada ao
início da exploração da bauxita no Platô Almeidas com 876,2 ha, o primeiro projeto da MRN
a ter uma audiência pública no processo de licenciamento por determinação do IBAMA a
pedido da população. Foram duas audiências públicas, a primeira em 28 de março e a segunda
em 21 de maio, ambas em 2002. Na primeira audiência conforme representação encaminhada
ao Ministério Público Federal, assinada por oito organizações26, os interessados comunitários
e suas organizações representativas obtiveram o RIMA, às vésperas da audiência, com 41
páginas sendo-lhes ocultado 75% do relatório original com 203 páginas. Apontando na
mesma representação:
Que a Audiência Pública conduzida pelo IBAMA não obedeceu os
trâmites da RESOLUÇÃO CONAMA Nº 009/1987. O local de
realização foi a Câmara Municipal de Oriximiná que comporta 150
pessoas e compareceram aproximadamente 500 pessoas. A maioria
ficou fora das discussões; o intermediador impediu a participação
popular ao exigir que os questionamentos fossem feitos por escrito,
mesmo sabendo que as pessoas participantes eram pessoas humildes
de pouca escrita; não se permitiu interlocução entre o público e o
representante da mineradora; o intermediador ainda, dirigiu a palavra
de maneira áspera, dizendo que a opinião dos representantes não iria
interferir na aprovação do projeto da mineradora, parecendo jogo de
carta marcada.27

Na segunda audiência pública, determinada pelo Ministério Público Federal, os


participantes comunitários se posicionaram favoravelmente à mineração do platô, segundo
alguns representantes da comunidade Boa Nova28, devido a proposta da MRN de adquirir
sementes florestais dos mesmos. Seria uma forma de compensar a perda da renda nos
castanhais do Platô, algo entre R$4.000,00 e R$7.000,00 que algumas famílias obtinham por
ano, como um “dinheiro livre”, já que a principal atividade era a produção da farinha de
                                                                                                           
26
Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Município de Oriximiná – STRO; Associação dos Remanescentes de
Quilombo do Município de Oriximiná – ARQMO; Associação de Mulheres Trabalhadoras do Município de
Oriximiná – AMTMO; Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Médio Lago Sapucuá – ACPLASA;
Comissão Pastoral de Direitos Humanos – Paróquia Santo Antônio; Associação dos Agentes Comunitários de
Saúde do Município de Oriximiná – AACOSMO; Associação Comunitária dos Remanescentes de Quilombo da
Área Trombetas – ACORQAT; Associação Comunitária dos Pequenos Agricultores do Município de Oriximiná
– ACPAMO.
27
SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE ORIXIMINÁ et al. Representação à Procuradoria
Geral da República de Santarém. Oriximiná, 02 de Abril de 2002.
28
SARMENTO, José Luiz; et al. Entrevista Coletiva com comunitários da Boa Nova, Lago Sapucua. Entrevista
realizada por Thaís L. S. Azevedo e Leonardo Alejandro Gomide Alcantara em 27 de julho de 2011. Oriximiná,
2011.  
  93  

mandioca, conforme os relatos. Mencionam, também, sobre outros projetos que foram
ofertados como o de piscicultura, criação de galinhas, agroflorestal etc. No caso da compra de
sementes os comunitários se queixavam que, com o aumento do número de famílias vendendo
sementes e as mesmas sendo adquiridas também de outras localidades, a renda, que no início
do projeto “compensou” o recurso dos castanhais, não o fazia mais. Reclamavam também da
inconstância dos pedidos que, por vezes, eram requeridas sementes fora da estação das
mesmas. Não houve nenhuma indenização direta para os comunitários pela perda de suas
áreas de trabalho. Segundo Dona Maria Expedita, que participou do DRP, aquela região,
dentre outras cabeceiras, pertenciam ao Sr. Luiz Gonzaga Viana, pai do Luiz Gonzaga Viana
Filho, o prefeito de Oriximiná, diz que ali haviam muitos castanhais que “eram a coisa mais
linda”, lamentando a perda.
Segundo o inventário florestal do EIA/RIMA os castanhais do Platô Almeidas
ocupavam cerca de 450 ha, possuindo mais de 1.150 árvores contabilizadas, com uma média
de 32,4 metros de altura. Segundo um analista ambiental do ICMBio que resguardo a fonte,
após vistoria do IBAMA na área foram identificadas omissões sobre o número de castanheiras
(para reduzir a indenização). Na representação ao Ministério Público as associações
apontaram 3000 castanheiras e mais madeiras-de-lei que foram omitidas. Além de não constar
no EIA/RIMA os impactos relacionados ao uso comunitário e sustentável da floresta na
unidade de conservação. Como compensação ambiental por essa perda a empresa foi obrigada
a investir em 2002 em outro projeto: o “Banco de Germoplasma de Castanheira-do-Brasil”. O
projeto voltado para o inventário, para a futura recuperação dos castanhais suprimidos e para
o manejo dos castanhais remanescentes nas encostas do platô, até 2012 havia plantado 1,3 mil
mudas da Bertholletia excelsa. Um desdobramento deste projeto é o “Manejo dos castanhais”
nas encostas do Platô Almeidas (área não minerada) com envolvimento dos comunitários de
Boa Nova e Saracá, também com inventários e plantios, o projeto incide sobre nove
castanhais: Veado Pequeno, Veado Grande, Josefa, Tauri, Viana, Pedras, Moreira, Paiol e
Severino. Cada pedaço de terra, cada cabeceira, cada castanhal, cada igapó, cada igarapé,
cada espaço na floresta parece ter nome próprio, cada pedaço de terra ou de água perfaz
territórios.
Outros projetos sociais da empresa também merecem menção, enquanto conexões da
mesma com as populações tradicionais do seu entorno. Dentre esses projetos, o relacionado
ao “Apoio à Educação Formal” (que não tive contato) se subdivide em inúmeros subprojetos
com foco tanto Oriximiná, como Terra Santa e Faro. Existem projetos também específicos
para comunicação externa e interna da empresa. O jornal Konduri, disponível no sítio
  94  

eletrônico da empresa, é direcionado para todas as comunidades da área de influência com


tiragens bimestrais. Há também o Programa de Rádio Estação MRN, com programas
semanais de dez minutos de duração. Esses projetos são voluntários e representam um dos
principais veículos de comunicação de massas das comunidades, divulgando as ações da
MRN.
O Projeto “Quilombo” leva atendimento médico e orientações de saúde às
comunidades quilombolas do Alto-Trombetas. O projeto opera por meio de um convênio
entre a MRN e a Fundação Esperança de Santarém, em que um barco equipado com recursos
médico-hospitalares e respectiva equipe de médicos e enfermeiros, realiza visitas
“divulgadas” enquanto mensais em 18 comunidades (contrapõem aos depoimentos dos
comunitários). No primeiro campo da pesquisa, junto à equipe do PPGSD, coincidiu deste
barco estar na comunidade do Moura na mesma data em que estávamos. Na ocasião, além de
conhecer pessoalmente o projeto, participo ativamente tomando a vacina contra a influenza
H1N1, que estava sendo aplicada nas comunidades devido a pandemia no início de 2010. Esse
projeto também faz parte das compensações ambientais.
Além das “ações socioambientais da empresa” tratadas acima29, uma questão que se
apresenta importante para a pesquisa foi o auxílio prestado pela MRN nas regularizações
fundiárias dos territórios tradicionais – quilombolas e ribeirinhos. Além das unidades de
conservação, FLONA e REBIO, os territórios quilombolas e os assentamentos coletivos
também guardam estreita relação com a MRN. Pode se dizer, com acontecimentos de
relevância histórica nacional. Converso com Ademar Cavalcanti30 em sua sala no escritório
central da MRN em Porto Trombetas – o mais importante funcionário da empresa que
consegui ter acesso – segundo o mesmo, partiu dele (da empresa) em uma reunião com
representantes do INCRA, a proposta de se titular o território quilombola de Boa Vista sobre
o regime jurídico de propriedade coletiva, até então inédito no Direito e apenas avençado
pelos tradicionais e rejeitado inicialmente pelo INCRA. Infelizmente não consegui acesso a
esses representantes do INCRA para aprofundar a questão e tampouco outra reunião com
Ademar Cavalcanti. Em outra ocasião, em um campo realizado em São Paulo na Comissão
Pró-Índio, Lúcia Andrade menciona, ao explicar o envolvimento da organização com a
                                                                                                           
29
Existem outros projetos de menor relevância para a pesquisa que não foram tratados na tese e outros dois, “Pé-
de-Pincha” e “Projeto Quelônios”, que abordo no capítulo sobre a REBIO-RT.
30
Ademar Cavalcanti é o Gerente de Saúde, Segurança, Meio Ambiente e Relações Comunitárias da MRN, o
“terceiro homem da empresa” e o que está sempre presente em Porto Trombetas. A entrevista não foi gravada,
apresentando-se mais como uma conversa amigável de aproximação, com o intuito de marcar outra conversa
posterior que seria gravada, mas que infelizmente não ocorreu. Contudo, foi possível tocar dois assuntos de
grande importância para a pesquisa: o Platô Monte Branco e os territórios tradicionais. Após a conversa
transcrevo seus pontos principais no diário de campo.      
  95  

titulação da terra de Boa Vista, que os quilombolas levaram a proposta da “terra coletiva”,
quando solicitaram auxilio da organização, inclusive pela experiência da mesma com as terras
indígenas, que se assemelham ao modelo proposto. Contudo, na mesma entrevista, também
ressalta que os quilombolas da Boa Vista já tinham um acordo prévio com a MRN, expõe:
[...]Então, a gente chegou em 1989 a convite da Paróquia de
Oriximiná. A gente tinha naquela época uma campanha muito grande
contra as hidrelétricas... para discutir esse modelo energético. A
gente estava com um trabalho grande no Xingú, estava começando na
Amazônia e também discutindo a Cachoeira Porteira. Foi por causa
da hidrelétrica de Cachoeira Porteira que a Paróquia de Oriximiná
nos convidou.... Na mesma época teria um encontro “raízes negras”
na comunidade de Jauari, era o segunda na região e o primeiro em
Oriximiná. E aí nós fomos lá para falar das hidrelétricas e, nesse
meio tempo, a discussão da titulação começou a aparecer... E assim,
era muito recente que tinha sido aprovada a Constituição... E é
interessante, porque assim, esse direito está na Constituição,
construído a partir de uma luta direta do movimento negro urbano,
não teve um envolvimento dos quilombolas nesse período. Mas os
quilombolas de lá já tomavam conhecimento da existência desse
artigo, mas ninguém sabia como colocar em prática, porque é um
artigo super curto... E aí o que eles pediram: “olha a gente quer terra
coletiva, vocês têm experiência em trabalhar na demarcação de terra
indígena que é coletiva também, vocês não querem ajudar a gente a
pensar como vai ser isso?” Então, foi por esse viés da área coletiva...
e o que começou como uma ajuda mais pontual acabou virando um
programa da Comissão Pró-Índio com quilombos. O que hoje é um
programa com atuação nacional e local, lá em Oriximiná. Então, foi
nesse sentido... e pra gente fez sentido também, porque esse viés do
direito à terra coletiva era o nosso mote na questão indígena. Então a
gente achou muito interessante e achamos que uma coisa reforça a
outra inclusive.
*Tudo é muito novo... era muito novo na época, né. Vocês tiveram
participação com relação à titulação de Boa Vista?
- É então, a gente participou de todos esses processos.
*Todas as titulações?
- É, todas as titulações [...] E a luta pela terra sempre foi um viés
muito forte e a gente pensou junto, inclusive essa estratégia da Boa
Vista, de começar com uma terra que fosse mais simples, né... porque
tinha uma discussão se começava com as terras das unidades de
conservação, onde o conflito era mais forte naquele momento. Nossa
estratégia foi uma sugestão que foi acatada de: “olha, é tudo muito
novo, vamos começar com uma menor, mas simples.” Na época foi
muito interessante porque a Mineração Rio do Norte era favorável,
porque resolvia também uma questão, porque, assim, é... a mineração
já tinha ocupado áreas que antigamente os quilombolas utilizavam da
Boa Vista, mas já tinha um acordo lá. A Boa Vista não queria aquela
área, a relação deles, como você deve já conhecer, é bem diferente
com a mineração. Então se chegou nesse... se pensou e se teve uma
  96  

estratégia que foi da autodemarcação, então... é... na Água Fria... é...


todas essas áreas: Boa Vista, Água Fria e até a área do Alto
Trombetas foi uma questão de autodemarcação, inclusive abrindo
pico mesmo, né [...] 31

Conforme se depreende, a MRN teve participação ativa junto à comunidade e ao


INCRA na titulação da Boa Vista no início da década de 1990, supostamente, apoiando um
novo modelo jurídico com a propriedade coletiva, adotado por uma provável convergência de
interesses – quilombolas e MRN, pois o INCRA, inicialmente, não havia aceitado a proposta
da propriedade coletiva. Tal afirmação contrasta com os dados de Ferreira32, em que o
“modelo coletivo” seria uma reivindicação exclusiva dos quilombolas e não oriunda de uma
articulação com a MRN e INCRA. Por sua vez, a equipe do INCRA recebia apoio logístico da
MRN e se instalava em Porto Trombetas. As documentações legais e taxas cartoriais da
titulação também foram pagas pela MRN. A comunidade de Boa Vista, com 1.125,0341 ha, é
o primeiro Território Quilombola titulado do Brasil, foi a primeira vez que se fez cumprir o
artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, a que gozou
de aplicação direta sem nenhum tipo de regulamentação do Estado33. O processo de titulação
de Boa Vista envolveu seis atores principais: o INCRA, que concedeu o título em 24 de
novembro de 1995; a Associação dos Remanescentes de Quilombo de Oriximiná – ARQMO
criada em 1989 e a Associação dos Remanescentes de Quilombo de Boa Vista – ACRQVB,
de 1994, para quem a terra foi titulada; a Igreja Católica/Comissão Pastoral da Terra - CPTP e
a Comissão Pró-Índio de São Paulo - CPISP, principais apoiadores dos quilombolas; e a
MRN, com ampla influência no caso (requer aprofundamento nas investigações). Enquanto
propriedade coletiva, apesar de diferente de uma Terra Indígena que é propriedade exclusiva
da União (inalienável, imprescritível e indisponível), o Território Quilombola, que é titulado
para uma associação, pro-indiviso, é uma área estável, com regras de uso, destinação própria e

                                                                                                           
31
ANDRADE, Lúcia. A participação da Comissão Pró-Índio na organização política dos remanescentes de
quilombo de Oriximiná. São Paulo, 03 de novembro de 2011.
32
FEREIRA, José Cândido. Organização Social e regimes de propriedade numa comunidade quilombola
paraense. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2013. p. 123
33
O que levantou amplos debates jurídicos pois não se sabia se estaria criando uma usucapião sui generis ou
uma modalidade de território protegido para grupos étnicos e tradicionais, sob regime particular de terra. Em
toda sorte como não havia regulamentação questionou-se a necessidade de previsão legal para respaldar os atos
do  Estado,   com base no princípio da legalidade. Outra corrente entendia a necessidade de aplicação imediata
artigo 68 da ADCT como forma de assegurar o Direito Fundamental à sobrevivência desses grupos, cujas terras,
mais do que bem patrimonial, constituem elemento integrante de sua própria identidade coletiva. Sem seus
territórios seriam absorvidos pela sociedade envolvente e perderiam sua peculiaridade identitária e étnica. Nesse
sentido gozaria de aplicabilidade imediata, enquanto extensão de direito fundamental, com base no princípio da
dignidade da pessoa humana.          
  97  

também caráter de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade34. Não goza da


mesma força jurídica de uma Terra Indígena, mas adquire outra ordem de estabilidade se
comparado às propriedades individuais, inclusive criando-se regras de uso internas. Essa
“estabilidade”, que dificulta modificações, entrada e instalação de pessoas alheias à
comunidade ou agentes externos que reconfigurem a ordem estabelecida – a própria
comunidade de Boa Vista sofre grande impacto populacional com a chegada da mineração –
possivelmente converge com as aspirações da MRN, ou a mesma, estrategicamente, faz somar
essas reivindicações com suas forças. Nessa mesma direção, atendendo as reinvindicações das
comunidades tradicionais ribeirinhas por seus territórios e, ao mesmo tempo, assegurando a
ordenação fundiária e estabilidade do entorno da mineração, se deu a titulação das terras da
Associação das Comunidades Tradicionais da Área da Gleba Sapucuá-Trombetas –
ACONTAGS. A MRN firma convênio com o INCRA e com o ITERPA, com STTRO e com
a própria ACONTAGS, fornecendo apoio logístico e financeiro no processo de assentamento
que vai originar o Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas - PEAEX35, também
sob modalidade coletiva (a MRN só apoiou assentamentos em modalidade coletiva36).
Outro ponto que merece destaque é a estratégia publicitária da empresa que, aportando
todas as suas ações e projetos, constrói uma imagem proativa e empenhada na promoção do
“desenvolvimento sustentável”, essencial para a sua reputação e, por conseguinte, para os
seus negócios. Apresentar suas premiações relacionadas à mineração, gestão empresarial,
responsabilidade social, saúde, recursos humanos e comunicação, bem como suas
qualificações como ISO 14.001 e OHSAS 18.001, também reforçam esta imagem. Enquanto
atividade de interesse público um dos seus pilares legais é a publicidade, neste sentido a
empresa tem obrigação legal de apresentar por auditores independentes seus balanços,
resultados e atividades. Com relação à esfera ambiental, a própria legislação impõe ampla
transparência, contudo, os relatórios anuais independentes, como o GRI, são facultativos, mas
adquiriram grande importância atualmente para a imagem internacional de empresas como a
MRN. A estratégia da MRN é valer-se de suas obrigações e apresentar o máximo possível
seus programas, enquanto compromisso socioambiental da empresa, fazendo com que suas
“feridas” se mostrem sempre “tratadas”. Por outro lado, omissões fazem parte tanto nas
pesquisas (como no caso das copaibeiras) quanto nas suas relações com o governo.

                                                                                                           
34
Artigo 17 do Decreto nº 4.887/2003 que revogou o Decreto  nº  3.912/2001  
35
Para conhecer o assentamento coletivo ver a obra: AZEVEDO, T. M. L. S. Estatização do Puxirum: Uso
coletivo da terra no Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas, em Oriximiná (PA). 2012.
Dissertação. (Mestrado em Sociologia e Direito) – PPGSD. UFF. Niterói, 2012.
36
Informações constantes do sítio da empresa.
  98  

Apresentar os fatos fragmentados sem possibilidade de “ligar uma coisa a outra” é o que
possibilita maquiar as “conexões necessárias”, como p. ex., o projeto “germoplasma da
castanha” que está ligado ao extermínio dos castanhais no platô Almeidas; ou o projeto
“manejo de copaibeiras” que se liga ao extermínio no platô Monte Branco, ambos em uma
unidade de conservação para o uso sustentável dos recursos florestais e fonte de subsistência
de povos tradicionais. O que traduz (translada, se conecta, faz acontecer, desencadeia) se
oculta pela purificação publicitária.
Ao longo de sua história a MRN amplia sobremaneira seu capital e sua produção. Sua
chegada representa a chegada do Governo Federal na região e todo um disciplinamento
territorial peculiar com as unidades de conservação, sobretudo a Floresta Nacional Saracá-
Taquera diretamente atrelada a ela. E, com obrigação que se impôs de considerar novos
interesses, os assentamentos coletivos e os territórios quilombolas vêm dar vez a uma nova
realidade e movimento político àquelas terras, obrigando adaptações por parte de seus atores e
redimensionamento às controvérsias. Se pegarmos os balanços da empresa de 2012, seu
faturamento bruto se deu na ordem de R$ 1.034.562 bilhões, com recolhimento de R$
116.045 milhões em tributos, logo lucro líquido de R$917.139 milhões. A empresa, ligada à
SUDAM conforme o delineamento histórico, desde sua origem, é favorecida com benefício
fiscal de redução parcial do Imposto de Renda. A Lei Complementar nº 87 e 1996, “Lei
Kandir”, também beneficia a empresa com isenções no imposto estadual do ICMS, para
produção destinada à exportação. Em 2012 MRN investiu cerca de R$ 310.7 milhões em suas
atividades e ações operacionais. Destes, R$ 190,4 milhões foram destinados à abertura de
novas minas, R$ 44.8 milhões para projetos especiais como melhoria no sistema de
peneiramento e linha de transmissão; R$ 17.1 milhões em equipamentos de mineração; R$
11.1 milhões em correias transportadoras; R$ 7.0 milhões em ferrovia; para os projetos
socioambientais, segurança e saúde foram destinados R$ 13.9 milhões; R$ 5.1 milhões em
pesquisas geológicas e R$ 21.3 milhões em projetos de infraestrutura, atualização tecnológica,
modernização e continuidade operacional37. A empresa está crescendo ininterruptamente
desde sua criação, em vias de se tornar a maior do planeta no setor, com implicações de
diversas ordens, dentre elas, a que mais translada interesses são os recursos financeiros que
gera. O município de Oriximiná oscila de 30% a 50% de sua receita atrelada à atividade
mineral, sua principal fonte de recursos, com uma média de 1,2 milhões de reais por mês,
gradativamente ampliados na medida em que se aumentou a atividade minerária (a CFEM
                                                                                                           
37
MRN. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-­‐DOE-­‐2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
  99  

decorre do lucro da venda do mineral). Desde 2010 Oriximiná divide parte do recurso da
CFEM com o município de Terra Santa, quando se inicia a exploração do Platô Bela Cruz,
situado entre os dois municípios. O recurso arrecadado com CFEM manteve-se com uma
média entre 22 e 26 milhões de Reais de 2004 até 2009, no ano de 2010 cai para R$
18.596.174,68 e, em 2013, o município arrecadou R$7.941.190,2438.
Os argumentos que sustentam historicamente os grandes empreendimentos como a
MRN se ligam ao ideal de desenvolvimento, hoje com o adjetivo obrigatório de “sustentável”.
Nesta seara, o que se esperaria em cumprimento às promessas que legitimam esse ideal, é que,
nos locais onde se instalaram estes projetos, assistir-se-ia efetivas melhoras nas condições de
vida das pessoas. Dois estudos se debruçam nesta análise especificamente no município de
Oriximiná: “Royalties da Mineração: Instrumentos de promoção do desenvolvimento
sustentável de regiões mineradoras na Amazônia Oriental”39 e “Adequação de um município
minerador aos objetivos de desenvolvimento do milênio das Nações Unidas”40. O primeiro
analisa os Royalties da mineração de uma forma geral, apresentando como o Brasil é um dos
países que possui as menores alíquotas, partindo para a arrecadação municipal, o investimento
do recurso no município, o despreparo para o futuro por parte das autoridades e os resultados
para sociedade de uma forma geral, em síntese:
Em Oriximiná, no período 91/95, os royalties apresentaram, em
média, 30% da receita municipal. Nesse mesmo período o número de
funcionários da prefeitura aumentou de 1.250 para 2.330 e a relação
funcionário por habitante dobrou de 0,03 para 0,06. Como
consequência, os gastos com o funcionalismo passaram de 46% em
1991 para 62% do orçamento em 1995, infringindo a legislação que
estabelece um teto máximo de 60% para gastos com funcionalismo.
Em 1991, o município de Oriximiná provavelmente utilizou o
dinheiro dos royalties para pagamento de funcionários pois a receita
municipal sem royalties (US$3.385) foi insuficiente para cobrir os
gastos com o funcionalismo (US$ 3.570). Nos outros casos, não é
possível afirmar que os royalties foram utilizados para pagamento de
salário nem descartar essa hipótese. Infelizmente, a contabilidade
pública municipal não permite examinar com exatidão o destino dos
royalties. Os gastos de Oriximiná em investimentos em infraestrutura
e setores produtivos foram muito pequenos. Esses gastos
corresponderam a apenas 2,45% e 4,25% do total do orçamento
municipal em 1991 e 1995 respectivamente, embora os royalties
tenham representado 34 e 30% do total do orçamento.
                                                                                                           
38
DNPM. Arrecadação da CFEM por substância.
39
SILVA, Maria A. R. Royalties da Mineração: Instrumentos de promoção do desenvolvimento sustentável de
regiões mineradoras na Amazônia Oriental. Belém: IMAZON, 2012. Disponível em:
http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/viewFile/15/12. Acesso em: junho de 2013.
40
LIMA, M. H. R.; FERNANDES, F. R. C.; TEIXEIRA, N. S. Adequação de um município minerador aos
objetivos de desenvolvimento do milênio das Nações Unidas. Rio de Janeiro: CETEM.2009.
  100  

[…] os municípios que se beneficiam dos provenientes da extração


mineral não possuem índices de desenvolvimento acima da média de
outros municípios paraenses. Era de se esperar que a riqueza trazida
depósitos minerais gerasse melhorias no bem-estar da população local.
Esse aumento de receita, entretanto, ainda não se converteu em
melhoria de bem-estar social. Indicadores de qualidade de vida como
fornecimento e consumo de energia, oferta adequada de água, de
saúde e de educação, ou estão abaixo, ou na média do Estado. No caso
da educação, por exemplo, Parauapebas e Oriximiná apresentam
índices de matrículas no segundo grau abaixo da média do Estado.
Baixos níveis de escolaridade se refletirão na baixa produtividade e
qualificação da mão-de-obra local e no despreparo para exercer em
sua plenitude a cidadania41.

Também partindo de indicadores objetivos, o segundo estudo estabelece uma análise


comparativa entre os compromissos assumidos para conquistar os “objetivos do milênio da
ONU”, em sua proposta de implementação até 2015, com os resultados dos 30 anos da
mineração da bauxita em Oriximiná. São analisados nove objetivos, vis a vis, com os
indicadores municipais, sendo eles: 1 – Reduzir pela metade a proporção da população com
renda inferior a um dólar por dia – resultados: 57,34% da população abaixo da linha da
pobreza em 2000; 2 – Reduzir pela metade a proporção da população que sofre de fome –
resultados: 11,7% de crianças menores de dois anos desnutridas em 1999 caiu para 5,7% em
2007; 
 3 – Garantir que todas as crianças, de ambos os sexos, terminem um ciclo completo
de ensino básico – resultados: para cada 100 meninas no ensino fundamental havia 106
meninos; 4 – Eliminar a disparidade entre os sexos no ensino primário e secundário, até
2005, e em todos os níveis de ensino, a mais tardar até 2015 – resultados: para cada 100
meninos no ensino médio em 2006, haviam 126 meninas; 5 – Reduzir em dois terços a
mortalidade de crianças menores de cinco anos – resultados: taxa bem mais elevada que a
média nacional, com 25,1 óbitos para cada mil crianças;
 6 – Reduzir em três quartos a taxa
de mortalidade materna – resultados: 37,78% das mulheres não realizaram consultas médicas
em 2006.
 7 – Deter a propagação do HIV/AIDS e começar a inverter a tendência atual; e 8
– Deter a incidência da malária e de outras doenças importantes e começado a inverter a
tendência atual – resultados: os programas contra doenças infecciosas e transmissíveis por
mosquitos resultaram numa taxa de mortalidade zero em 2006; 9 – Integrar os princípios do
desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter à perda de
recursos ambientais – resultados: as condições de saneamento e acesso à água não sofreram

                                                                                                           
41
SILVA, Maria A. R. Op. Cit. p. 1 - 13
  101  

melhorias, as taxas de desmatamento são altas, inclusive nas unidades de conservação, e em


2008 registram-se os primeiros aglomerados subnormais urbanos. O estudo conclui que:
Considerando que as estatísticas do município de Oriximiná, como um
todo, não apresentam uma situação tão perfeita como aquela que levou
a obtenção da ISO 14001 pelo Porto Trombetas, pode-se concluir que
essa localidade deve ser considerada um enclave dentro do município.
Em Porto Trombetas não existe fome nem miséria, todas as crianças
estão na escola e tem educação de qualidade, existe assistência de
saúde em todos os níveis, acesso a água potável e saneamento além de
cuidado ao meio ambiente. Por se tratar de uma localidade
considerada modelo fica ainda mais evidente o contraste com o
restante do município.
Atingir as metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio,
levando-se em conta o que mostra as estatísticas oficiais não é uma
tarefa fácil. Vimos que ainda falta muito para reduzir pela metade a
proporção da população com fome e com renda abaixo da linha de
pobreza, além disto, destaca-se o fato que o rendimento das escolas de
ensino fundamental do município apresentou um dos piores resultados
no IDEB, quando considerado o restante dos municípios do país. Cada
um dos objetivos foi analisado e concluímos que não estão dentro das
metas do Milênio, portanto, a atividade de mineração, apesar de ser
uma atividade econômica que atende as normas econômicas de
primeiro mundo e que foi desenvolvida com todo o cuidado
ambiental, ainda não trouxe para o município o esperado
desenvolvimento social.42

Conforme a linha que narramos, até então, a ordem espacial de Oriximiná e região
ganha novos contornos com a descoberta da bauxita e a chegada das empresas mineradoras
junto ao governo. A Reserva Biológica do Rio Trombetas de 1979 e a Floresta Nacional
Saracá-Taquera de 1989, representam os primeiros disciplinamentos territoriais mais rígidos,
do ponto de vista legal, para a região. Essas “políticas de conservação” territorial, que dão os
limites em que a pesquisa se empenha, não somente repercutiram em uma ordem severa sobre
os modos de vida dos habitantes humanos daquelas florestas, mas legitimaram, em nome de
um interesse universal de “proteção da natureza”, ações violentas por parte dos agentes
estatais para com eles – um excepcional controle sobre saberes e corpos. Essas ações foram se
transformando tanto com relação aos tradicionais como com relação à empresa,
estabelecendo-se hoje uma relação que se aproxima mais de uma “parceria” entre governo e
tradicionais. Mas no fluxo da história, não apenas pelo sincronismo de sua implementação, as
políticas de desenvolvimento e de conservação, também perfazem um liame na configuração
de uma ordem territorial “desejada” na hierarquia dos interesses em jogo que, conforme

                                                                                                           
42
LIMA, M. H. R.; FERNANDES, F. R. C.; TEIXEIRA, N. S. op. cit. p. 1- 11
  102  

mencionado, “a bauxita” ocupa o topo da cadeia. Contudo, com a gradativa ascensão da


questão ambiental (e dos direitos compreendidos como de 3ª geração) enquanto variável de
remissão necessária para a legitimação de qualquer política-ação, a “conservação” não mais
pôde ser utilizada enquanto “escudo” para os interesses da mineração (onde governo =
empresas), ao contrário, assistiu-se uma verdadeira multiplicação dos vínculos e dos
interesses em jogo com consequentes inversões (basta observar o atual tratamento aos
tradicionais, os licenciamentos ambientais, o início dos projetos narrados, os territórios
titulados e todo material publicitário da empresa a partir de 1990). Por sua vez, isso não
rompeu a hierarquia posta, dentro do que é mantido como mais ou menos importante (ou tem
mais poder para se fazer assim, estabelece mais conexões, converge mais interesses etc.), mas
forçou uma adaptação, uma permeabilização às conexões com novos atores, um movimento
de interpenetração daquilo que vai compondo aquela realidade, um “tentar” trazer para dentro,
agenciar. Não apenas a “conservação” das tartarugas-da-Amazônia, mas dos tradicionais e
seus modos de vida, da floresta e seus animais, do lago, dos igarapés etc. passaram a ser
“necessários”. Cada ser ali, vivo ou não, agora pode ser, “por si ou interposta pessoa”, uma
mina, pronta para ser acionada e corromper a ordem, ou para ser agenciada e aumentar a
composição social. Certo é que todos os “interesses” não podem “coexistir” por suas
diferentes temporalidades na dinâmica do que se faz crescer acelerada e irrefreavelmente. E
quando ganham voz, “por si ou interposta pessoa”, tornando-se de remissão necessária
conforme dito, ou se compensa ou se cede, sempre no limite do necessário, senão se rompe ou
se faz romper. Uma vez cedido será preciso ceder mais, uma vez compensado será necessário
compensar proporcional e equitativamente. O movimento faz o encontro e o encontro a
mudança e a mudança mais movimento, que não se prevê ao longe, não se controla em sua
microfísica, não se detém numa suposta racionalidade das ações.
Quo vadis?
  103  

PARTE II
DO CAMPO ATÉ AS REDES, DA SOCIEDADE À NATUREZA

Foto 08: Tabuleiros do Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2012.
  104  

1 TRÊS MATRIZES

Caminante, son tus huellas


el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.

Al andar se hace camino


y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver pisar.

Caminante no hay camino


sino estelas en la mar...
António Machado

Neste momento da caminhada o olhar se volta para aqueles que acuram nossas
percepções sobre aquilo que estamos estudando: os teóricos, suas ideias e práticas perpetradas
nas páginas dos livros. Como analisar um “conflito ambiental”? Ou, ampliando um pouco o
termo, como descrever as controvérsias sobre as diferentes formas e propostas de uso e
apropriação do que chamamos de “natureza”?
Essa parte da tese, subdividida em três capítulos, tem como escopo apresentar
brevemente algumas percepções teórico-metodológicas que influenciaram e auxiliaram na
confecção da mesma. Sem pretensão de realizar longas explanações – de maneira introdutória
– são abordados os pontos centrais de inteligibilidade e aplicação das teorias no contexto da
pesquisa. As discussões empenhadas se afunilam em dois pontos-de-vista teóricos,
substancialmente divergentes em suas ontologias e metafisicas, sobretudo nas concepções
sobre o que é “natureza” e o que é “sociedade”.
A proposta aqui não é a elaboração de um quadro comparativo em que se aloca, lado-
a-lado, as diferentes perspectivas que se empenham num mesmo foco. Também não se
pretendeu estabelecer uma relação de superioridade/inferioridade de uma perspectiva em
relação a outra para este tipo de análise. No ponto de vista do qual observo, é o contexto do
campo e a posição pessoal do pesquisador – sua criatividade, disponibilidade e sensibilidade –
que deve conduzir a escolha de sua “metodologia” de observação/experimentação. No caso
em tela, entendo, a realidade da pesquisa é autoexplicativa nos “porquês” de uma mudança
analítica no curso dos trabalhos. E é exatamente esta a função da presente parte da pesquisa:
mostrar de antemão seus fundamentos, contradições, confusões, fusões e distanciamentos.
  105  

Apresentar, ao mesmo tempo, algumas matrizes acadêmicas em torno da questão num plano
de abstração mais nítido (sic) e os (des)caminhos adotados no curso do trabalho. Isso, além de
previamente apresentar conceitos que não precisam ser retomados ao longo do texto,
aproxima o leitor da análise empenhada.
As duas perspectivas convergem na necessidade de uma base empírica e que se dá
com o foco em “objetos quentes”, em movimento, objetos que estão em controvérsias. De um
lado as compreensões sobre conflitos na especificidade das disputas territoriais e sobre
recursos ditos naturais, que antagonizam “sujeitos de interesses” num “campo de lutas”; do
outro, o que cinde à própria visão recortada com base nas estruturas e nos sujeitos para uma
percepção que privilegia as multiplicidades e agenciamentos que se extraem da realidade
vivida. Sem sujeitos e sem objetos em planos de distinção, sem estrutura e sem mecanismos
em planos de determinação da realidade. Por uma vertente, a realidade é explicada dentro de
um quadro, um pano-de-fundo, um papel-parede a priori. Na outra vertente nada se explica
apenas se descreve e a descrição deve se explicar por si. Como diz o poema de Machado43:
“caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”.

1.1 Estruturalismo-construtivista

Esta primeira matriz tem como objetivo subsidiar o debate empenhado no próximo
capítulo. Perpassando questões generalizadas sobre o que se compreende como “questão
ambiental”, passando-se à sua integralização nos contextos histórico-culturais, a abordagem
seguirá por uma breve análise de concepções que situam a problemática do meio ambiente
dentro das disputas sobre os recursos naturais territorializados. Trata-se também, no campo da
ecologia dos saberes, de lidar com ferramentas epistemológicas, a um só tempo colonizatórias
e reterritorializantes. Neste sentido a dimensão universalizável da questão ambiental passa a
ser rechaçada, percebendo esta enquanto “causas parcelares”, situadas no espaço e no tempo
de realidades contingentes, que podem atingir maior ou menor potencial de “universalização”,
conforme são inseridas nas esferas políticas em sentido amplo. Nesse víeis, que rejeita
parcialmente o reducionismo objetivista, cria-se um “campo” próprio para os conflitos
ambientais, propondo uma análise sustentada em um “estruturalismo-construtivista” que aqui

                                                                                                           
43
Tomado esse pequeno recorte na citação de Vandenbergue. VANDENBERGUE, Frédéric. Construção e
crítica na nova sociologia francesa. Trad. Ana Liési Thurler. Brasília: Sociedade e Estado. Vol. 21. Nº 2.
Maio/Agosto. 2005
  106  

introduzimos e que se mostrou, num primeiro momento, de grande valia na análise


empenhada.
Para iniciar a discussão cabe um aparte sobre a noção de estrutura em Lévi-Strauss. Na
perspectiva do antropólogo e filósofo francês a ideia de “estrutura” não representa a própria
realidade empírica, mas se origina dela, parte de uma construção teórica que toma a realidade
empírica para construir modelos aplicáveis a ela. Opõe-se ao empirismo na medida em que a
explicação de um fato em si, a descrição de um conflito social p. ex., não possui significado,
senão pelas estruturas profundas que lhe dá o sentido. Ou seja, o estruturalismo parte de
projeções teóricas que são criadas com base nas “relações sociais” existentes/factuais, em que
se incorpora aspectos julgados essenciais pro tempore dessas relações reais e, a partir daí, se
constroem os modelos que por sua vez tornam manifesta a estrutura social44.
A estrutura para Lévi-Strauss deve atender à algumas condições enquanto modelo
científico: a) ela deve se constituir de elementos tais que a modificação de um deles
repercutirá sobre todos os outros, i. e. estão organizados dentro de um conjunto de relações
interdependentes – é um sistema; b) todo modelo parte de um “grupo de transformações”
onde cada transformação representa um modelo de mesma família e, no conjunto das
transformações, perfaz-se um grupo de modelos; c) constatados os elementos dentro do
conjunto de transformações que perfazem os modelos, é possível prever como o “sistema”
reagirá se modificar algum de seus elementos, cujas propriedades relacionais estão adstritas
ao modelo; d) o modelo deve possibilitar compreender todos os fatos
observados/considerados, nesse sentido refere-se a uma totalidade. Na construção da estrutura
se tem como base oposições binárias em que as unidades da estrutura são despidas de sentido
em si, mas o adquire nas relações que se estabelecem entre as várias unidades que, por sua
vez, devem abranger, em sua descrição, a totalidade do campo estruturado. Compõem a
estrutura as menores unidades significativas na amplitude do estudo, mas aquilo que não é
pertinente é eliminado/desconsiderado. Esse sistema de relações é que constituem a
sociedade, como, por exemplo, um sistema de trocas econômicas, um sistema de comunicação
linguística, um sistema religioso etc. O sentido e o valor de cada elemento dentro do sistema
advêm da posição que ocupa em relação aos demais, identificado a partir das oposições
binárias. Os modelos se subdividem em conscientes e inconscientes. O primeiro se refere as
normas de uma forma geral, que existem em razão de uma função: perpetrar as crenças e os
                                                                                                           
44
 LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia. In. Os Pensadores: Lévi-Strauss. A noção de
estrutura em etnologia; Raça e História; Totemismo Hoje. Trad. E. P. Graeff, I. Canelas e M. B. Corrie. São
Paulo: Abril Cultural. 1980. p. 7
 
  107  

usos sociais. Quanto mais nítida é essa estrutura que se salienta no plano consciente, mais
oculta é a estrutura profunda que dá razão a ela. A diferença entre culturas é explicitada nos
modelos conscientes que criam uma distância que obstaculiza uma identificação imediata
entre os membros pertencentes de cada qual (linguagem, valores morais, hábitos diferentes, p.
ex.). A garantia da objetividade na etnologia se dá na própria distância entre o observador e o
observado que não se identificam pelas suas divergências culturais. Ao mesmo tempo a
distância não representa uma estranheza completa, que inviabiliza qualquer interlocução, mas
um terreno de comunicação, de reciprocidade, uma intersecção de duas subjetividades, um
lugar comum na própria diferença, o que faz recusar a antinomia entre sujeito e objeto, são
dois sujeitos. De um lado há um conjunto de manifestações empiricamente percebidas, que
são as relações sociais visíveis, o fato social que é apreendido de maneira totalizante no
movimento único das suas propriedades (dentro dos elementos elegidos enquanto
significantes); do outro lado a experiência subjetiva e a razão imaterial/intangível que é
estabelecida teoricamente, revelando as estruturas sociais invisíveis45. Dois mundos apartados
com tráfegos distintos, o da natureza e o da cultura que, não obstante a razão lógica
pertencente a cada um dos membros da segunda, a operacionalidade da mesma é
condicionada pela estrutura.
A rigidez do estruturalismo de Lévi-Strauss, que determina a realidade independente
da consciência e da vontade dos agentes, anulando-os, é transformado na proposta de
Bourdieu. O sujeito banido pela estrutura rígida, continua inserido na estrutura e por ela
determinado, mas também é força estruturante, a constrói, nessas relações flexibilizando-a
enquanto dinâmica, enquanto cambiável46. As estruturas sociais são interiorizadas no
indivíduo, no contexto de um “campo social”, dentro de sua história e de suas idiossincrasias.
Grosso modo, a cultura moral (estrutura normativa e orientadora da conduta) cotidiana, na
dinâmica de sua absorção e aprendizagem do indivíduo, operando inconscientemente seu
esquema de ação, percepção e reflexão. A “hibridização” dessa “estrutura social” com o
“indivíduo” é designada habitus.
O habitus que conduz a maneira de perceber, valorizar, julgar, interpretar e agir, é o
que entremeia sociedade e indivíduo, o que se interioriza da estrutura social e se exterioriza na
ação individual dentro do grupo. Retira a liberdade do sujeito, produto de uma “estrutura

                                                                                                           
45
LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia. In. Os Pensadores: Lévi-Strauss. A noção de
estrutura em etnologia; Raça e História; Totemismo Hoje. Trad. E. P. Graeff, I. Canelas e M. B. Corrie. São
Paulo: Abril Cultural. 1980.
46
THIRY-CHERQUES, Hermano R. Bourdieu: a teoria na prática. In RAP. Rio de Janeiro 40(1):27-55,
Jan./Fev. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n1/v40n1a03.pdf. Acesso em: 02/11/2012
  108  

profunda” que organiza suas práticas e representações, e o percebe enquanto “agente”


reestruturador, que, dentro de seu aprendizado e senso prático, reconfigura também o mundo
social em seus diversos campos.
A cada um dos microcosmos que constituem o social é designado o termo “campo”,
com graus de autonomia e lógica própria (sistêmico), sendo microcosmos diversificados
(educacional, político, econômico etc.). Estes campos estão relacionados ao processo de
diferenciação dos indivíduos e dos grupos que, por sua vez, detêm um mesmo habitus
estruturado e específico de cada campo. Os indivíduos e grupos hierarquizam seus interesses
na busca de posições dentro do campo, conforme dispõem/dominam um montante de
“capital” (econômico, intelectual, social, simbólico) requerido em cada microcosmo (p. ex. o
capital intelectual no campo acadêmico, o financeiro no empresarial, o social no político etc.).
Enquanto um processo de constante disputa/conflito, tanto para o posicionamento no campo
(monopólio do capital específico), quanto para o ingresso no mesmo (aquisição do capital
necessário e compartilhamento do habitus inerente), os agentes/grupos fazem uso de
estratégias para ocupar as posições, mantê-las e dominar as instituições que regem as suas
regras e distribuem o capital. Nesse sentido as relações de força dão a estrutura do campo, que
se reproduz por aqueles que estão em posições privilegiadas e lutam para mantê-la por meio
da violência simbólica contra os que tentam subverter a ordem.
A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos
princípios de hierarquização: as facções dominantes, cujo poder se
assenta no capital econômico, têm em vista impor a legitimidade da
sua dominação, quer por meio da própria produção simbólica, quer
por meio dos ideólogos conservadores os quais só verdadeiramente
servem os interesses dos dominantes por acréscimo, ameaçando
sempre desviar em seu proveito o poder de definição do mundo social
que detêm por delegação; a fração dominada (letrados ou <<
intelectuais>> e <<artistas>>, segundo a época) tende sempre a
colocar o capital específico a que ela deve a sua posição, no topo da
hierarquia dos princípios de hierarquização.47

A violência simbólica, constituída pela autoridade percebida enquanto legítima no


campo, por sua vez, opera pelas regras (nomos) e valores, ideologias, crenças (doxa)
naturalizados pelos agentes/grupos. A doxa e o nomos são consensuais, aceitos, aderidos de
forma ampla pelo grupo que compõem o campo específico, cristalizando o habitus, o que vale
e o que é válido. “[...] a doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes
que se apresenta e se impõe como um ponto de vista universal; ponto de vista daqueles que

                                                                                                           
47
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989. p. 12
  109  

dominam o domínio do Estado, constituindo seu ponto de vista no ponto de vista universal
pelo Estado.”48 Nesse sentido, legitimam e conformam a hierarquia do campo que opera
como uma estrutura que constrange os agentes estruturados em posições, mantendo uma
estabilidade temporal (campo de forças), mas que também é palco da ação desses agentes para
conquistar posições/postos (campo de lutas), na medida que se adquire ou se perde o capital
exigido em cada campo.
O esquema que leva à análise empírica é sistêmico. Deriva do
princípio de que a dinâmica social se dá no interior de um /campo/,
um segmento do social, cujos / agentes/, indivíduos e grupos têm
/disposições/ específicas, a que ele denomina / habitus/. O campo é
delimitado pelos valores ou formas de /capital/ que lhe dão
sustentação. A dinâmica social no interior de cada campo é regida
pelas lutas em que os agentes procuram manter ou alterar as relações
de força e a distribuição das formas de capital específico. Nessas lutas
são levadas a efeito /estratégias/ não- conscientes, que se fundam no
/habitus/ individual e dos grupos em conflito. Os determinantes das
condutas individual e coletiva são as /posições/ particulares de todo
/agente/ na estrutura de relações. De forma que, em cada campo, o
/habitus/, socialmente constituído por embates entre indivíduos e
grupos, determina as posições e o conjunto de posições determina o
/habitus/.49

Como os campos são de certa maneira arbitrados pela análise (uma estratégia
epistemológica e não necessariamente uma existência real), são segmentações ou reduções da
realidade social. Na realidade complexa é inegável que eles estão em constante interação e
interpenetração. Como a percepção é sistêmica (tem um in put e um out put), o campo se
auto-referencia e as penetrações inter-sobre-campos serão refratadas pela lógica interna de
cada um. As penetrações são sempre possíveis pelo fato dos campos possuírem homologia
estrutural, mas absorvem o “externo” traduzido em suas regras internas. A mediação dessas
influências externas se dá pela estrutura interna do campo que, por sua vez, não impedem
condicionamentos de um campo sobre outro, por contaminações mais profundas, ainda que
reproduzidas por meio de uma “expressão simbólica”50. Como é o caso da economia que
influencia a política, o direito, a educação, a ciência etc.
Essa perspectiva teórico-metodológica possibilita uma moldura (com base na teoria
das estruturas) a ser preenchida com dados empíricos do campo, do comportamento dos

                                                                                                           
48
“[…]la doxa est un point de vue particulier, le point de vue des dominants, qui se présente et s’impose comme
point de vue universel; le point de vue de ceux qui dominent en dominent l’Etat et qui ont contitué leur point de
vue en point de vue universel en faisant l’État”. BOURDIEU, P. Raisons pratiques: sur la thèorie de l’action.
Paris: Seuil, 1994 p. 129
49
THIRY-CHERQUES, Hermano R. Op cit. p. 31
50
 id. Ibid. p. 41
  110  

agentes, das instituições etc. (que influenciam na estrutura dando-lhe o víeis construtivista),
compondo um quadro de análise sistemática do objeto (entre o objetivismo e subjetivismo).
Esse “modelo analítico”, que tem grande valia para as perspectivas críticas e atualiza
sobremaneira as heranças marxistas das mesmas, tem significativa recepção e influência na
sociologia da questão ambiental que foca os conflitos sobre recursos e territórios51,
empenhadas num primeiro momento desta pesquisa. Por esta lente, temos de um lado os
sujeitos, ainda quando adjetivados de “agentes” pela sua liberdade limitada e condicionada, e
do outro lado os objetos, que vão da própria sociedade objetiva fragmentada nos campos
como um “fato social” inspirado em Durkheim, ou das coisas em si (recursos naturais no
caso), reificadas na composição da realidade social e não representativas na constituição da
mesma, classicamente restrita e explicada pela própria sociedade (fenômenos sociais
explicados por fenômenos sociais).
Essa breve descrição teve como propósito introduzir as discussões sobre conflitos
socioambientais empenhadas no próximo capítulo, conforme mencionado, que influenciaram
o primeiro momento da pesquisa tanto na identificação dos agentes sociais, quanto na
compreensão da distribuição do poder sobre aqueles territórios e seus recursos.

1.2 Rizoma e Multiplicidade

O que foi vivenciado no campo da pesquisa, os dados que foram sendo obtidos, a
realidade que foi se revelando em sua complexidade, reivindicou uma postura que levasse em
consideração outros muitos elementos que a configuram, não os hierarquizando dentro da
constituição da mesma. Houve um abandono parcial da estrutura – não na negativa de sua
existência – mas na identificação de que sob esta perspectiva se recobraria um recorte que, de
um lado, conduziria a um enquadramento dos elementos de análise que sempre a reafirmasse,
e de outro, daria voz somente àqueles sobredeterminados pela própria estrutura (em posições
inferiores como os tradicionais p. ex.) e subavaliaria a posição de muitos outros “actantes”
que compõem aquela realidade. Nesse contexto a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
na estruturação de um pensamento “rizomático” foi de grande inspiração.
                                                                                                           
51
  Nesse sentido podemos apontar alguns autores como: Acselrad, H. “As práticas espaciais e o campo dos
conflitos ambientais”, In: Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich
Böll, pp. 13-35.; Carneiro, E. J. “Política ambiental e a ideologia do desenvolvimento sustentável”, in: ZHOURI
ET ALII (org.), A insustentável leveza da política ambiental, Belo Horizonte: Autêntica, pp. 27-47.; Zhouri, A.
& Laschefski, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: Um Novo Campo de Investigação. In: Zhouri, A.;
Laschefski, K. (org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010; entre
outros.
  111  

Ao expor uma inovadora concepção de constante fluidez da existência de qualquer


coisa, em que tudo consiste em um vir-a-ser, um devir, um fluxo que segue e interrompe,
cessa e recomeça, coagula e liquefaz, tudo se territorializa e se desterritorializa,
diacronicamente ou sincronicamente, com mais ou menos tempo, multidimensionalmente,
conforme cada espaço, sempre em processo, Deleuze e Guattari apresentam uma abdicação
das “estruturas primeiras” e das “instâncias últimas” na percepção da realidade. Rompem a
visão moderna, os sujeitos e os objetos, os decalques, as fotografias, as unidades de medidas,
o poder significante, a subjetivação; abandonam o pensamento que se estrutura na lógica
binária, na dicotomização ou em uma unidade principal que se divide – o pivô que se
desmembra. O sistema epistemológico atrelado ao que os autores denominam de “árvore-raiz”
que se apresenta tanto na simples visão binária, ou na unidade que se divide em dois polos de
si mesma, ou ainda na unidade abortada que se multiplica; que se apresenta por uma lógica
valorativa, ou de um télos, de uma linearidade, de uma hierarquia, ou de uma gênese, de uma
genética, ora “raiz pivotante”, ora “raiz dicotômica”, ora “raiz fasciculada”, ora operando no
objeto, ora operando no sujeito, ora complementando um com o outro; é substituída pelo
sistema de pensamento que os autores designam como “rizoma”.
Os autores enumeram características aproximativas do rizoma em seis princípios, que
passamos a descrever brevemente no intuito de facilitar o entendimento desta introdução ao
pensamento dos autores. Os primeiros dois princípios tratam da “conexão e heterogeneidade”
inerente ao rizoma. Em um rizoma qualquer ponto se conecta a outros pontos, entretanto esses
pontos e linhas de conexão são de ordens diversas e não hierarquizadas, sobretudo
heterogêneas. Se pensarmos, p. ex., uma língua ou linguagem, não a ligaremos somente aos
locutores, auditores, cultura, percepções da linguística, mas a “cadeias biológicas, políticas,
econômicas”, outras línguas, centros de poder etc. a análise passa a ser efetuada por um
“descentramento sobre outras dimensões e outros registros” e captar os “agenciamentos”.
O terceiro princípio trata a “multiplicidade” enquanto um “substantivo”, sem sujeito e
sem objeto, “mas determinações, grandezas, dimensões”. A trama que se liga à marionete,
está ligada ao artista/operador, que está ligado a outra trama, a das suas fibras nervosas,
formando outra marionete e aí por diante... São dimensões que se conectam numa
multiplicidade e que mudam de natureza na proporção que aumentam as conexões (falávamos
da marionete, do artista, das reações químicas do seu cérebro, da cultura, do instinto, do
aprendizado etc.). Esse crescimento das dimensões na multiplicidade é o “agenciamento”.
Toda multiplicidade é plana, pois “preenchem e ocupam todas as suas dimensões” (plano de
  112  

consistência), por sua vez “definem-se pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segunda a qual elas mudam de natureza ao se conectarem a outras”.
O quarto princípio é o da ruptura assignificante em que apresenta o rizoma enquanto
“linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado,
significado, atribuído etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais
ele foge sem parar”. Essa linha de fuga é uma ruptura, mas essa ruptura também é o rizoma,
ele foge fazendo outras ligações, sobre outras ligações, sobre outros rizomas, impedindo
dualismos e dicotomias, mesmo rudimentares como bem e mau.
O quinto e o sexto princípios tratam da cartografia e da decalcomania. “Um rizoma
não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo”, a estrutura profunda e o
eixo genético fazem decalques reprodutíveis ao infinito. O rizoma faz um mapa inteiramente
voltado para uma experimentação ancorada no real. O decalque remete à uma presumida
competência que traduz o mapa em imagem (transforma o rizoma em raízes ou radículas),
organizou, significou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos próprios de
significância e de subjetivação (reproduz a si mesmo enquanto crê reproduzir outra coisa – é
sempre o imitador que cria o seu modelo e o atrai). O mapa é aberto, é conectável em todas as
suas dimensões, demonstrável, reversível suscetível de receber modificações constantemente.
O decalque seria como uma fotografia, nas palavras dos autores, um rádio que começaria a
eleger e isolar o que ele tem a intensão de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, de
colorantes ou outros procedimentos de coação52.
Essa perspectiva compreende a realidade como um conjunto de forças que se
encontram e se afetam/transformam, forças em constante afecção, sem início nem fim, em
múltiplas direções, sempre um processo. O encontro das forças produzem transformações,
forças de diferentes signos se encontrando, uma afetando a outra e assim reciprocamente e
sequencialmente em encontros que causam um processo e que se designam como “síntese
disjuntiva”, o que dá existência as coisas. O social é uma sequência de sínteses disjuntivas.
A realidade não é inteligível por um plano de significação, mesmo onde ela se
externaliza53, pois sempre que assim feito, implica em “criar” uma ordem, uma autoridade,
                                                                                                           
52
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo. Editora 34,
2011. pp. 22-48
53
As forças em afecção – intensio – geram transformações que se tornam visíveis – extensio – , externas (como
um encontro de placas tectónicas geram um terremoto ou o vento sobre a agua gera uma onda) e assim possíveis
de serem apreendidas, configurando parte também da realidade, que por sua vez será tomada, explicada,
significada, quantificada, decalcada, vindo a compor toda uma inteligibilidade e hierarquia e, por fim, uma
ordem social. Levando em consideração essa “dupla-articulação – dupla-pinça – double-bind”, a realidade não
pode ser nem composta pelo significante, nem pelo significado, uma vez que o que se têm é o que está
“estratificado”. “Do mesmo modo que os signos só designam uma certa formalização da expressão num
  113  

uma hierarquia, um comando. A oposição entre formas de “perceber a realidade” são dadas
pelas metáforas botânicas “rizoma” e “arvore-raiz”: de um lado, faz alusão a um tipo de caule
que se espalha subterraneamente, como uma grande rede emergindo em certos pontos; do
outro, o tronco rígido que se erige e se ramifica sucessivamente, formando suas extremidades.
Ultrapassando sobremaneira a sugestão metafórica, as duas percepções coexistem e a
perspectiva do rizoma não se apresenta como uma oposição – mais uma vez binária – às
outras formas de pensamento, mas muda sobremaneira o ângulo de visão sobre a realidade,
dando-lhe outro movimento e pluralidade. A multiplicidade inerente ao rizoma, não é a
simples identificação da complexidade caótica e aleatória a qual é preciso ordenar, ou da
identificação da ambivalência ou sobredeterminação dos fenômenos, ou ainda de uma
realidade natural múltipla vista de cima por uma realidade espiritual una. “É preciso fazer o
múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões que se dispõe, sempre n - 1”54. Para
fazer o múltiplo é necessário estar subtraído dele (excluir o Uno), o que equivale a pensar a
realidade (cartografá-la) enquanto encontros e agenciamentos múltiplos, heterogêneos, de
diversas ordens, experimentados, não hierarquizados e sem dicotomizá-la, sem corpo nem
alma separados.
Ao mesmo tempo em que contrapõe o pensamento centralizador e hierarquizador da
árvore-raiz, apreendendo outra “visão de mundo”, o rizoma – que conecta um ponto qualquer
a outro ponto qualquer, que são traços de naturezas muito variadas, que são linhas (o ponto
em movimento é uma linha) – pode apresentar “nós de arborescência”, formar “bulbos”,
hierarquias, despotismos, microfascismos; bem como a raiz pode criar rizomas, “empuxos
rizomáticos”, linhas de fuga, desterritorializações. Há tangenciamentos entre eles, há
transposições, se transpassam. Essa perspectiva filosófica não pode ser tratada como uma
simples oposição de “modelos”. Enquanto a árvore-raiz seria um modelo que produz
“decalques” em realidades estruturadas/recortadas/objetivadas/significadas/subjetivadas, o
rizoma é um processo que esboça mapas com linhas que ligam coisas diversas em
geografias/platôs/planos de consistência.
A ordem epistemológica do Estado, da Ciência, do Ocidente está estruturada no
modelo árvore-raiz, mas essa ordem pode ser pensada como apenas um plano de existência

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
determinado grupo de estratos, a própria significância só designa um certo regime dentre outros nessa
formalização particular”. DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São
Paulo. Editora 34. 2011 p. 108        
54
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo. Editora 34. 2011
p. 23
  114  

que faz a leitura dos pontos em que o rizoma se exterioriza55, local onde este se torna visível e
então é cristalizado/sobrecodificado por este modelo, que lhe impõe uma organização e
produz uma ordem. Por sua vez qualquer dimensão da sociedade faz rizoma, ou seja, não para
de se conectar à “cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às
artes, às ciências, às lutas sociais”, é uma manifestação da vida, da matéria, da energia, da
cultura... Se desterritorializa e se reterritorializa em um constante devir. Há necessariamente
uma dimensão “molar” (externa, dura, macro) e uma molecular (interna, flexível, micro) em
dupla articulação na sociedade56. “O plano de consistência é a abolição de qualquer metáfora;
tudo o que consiste é Real. São elétrons em pessoa, buracos negros verdadeiros, organitos em
realidade, sequência de signos autêntica”57. Substitui unidades por dimensões, por “direções
movediças”, por “um meio pelo qual ele cresce e transborda”, sem começo nem fim. Um
rizoma é substancialmente distinto58 de um “eixo genético” ou de uma “estrutura profunda”.
Um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual
se organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes,
como uma sequência de base decomponível em constituintes
imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa
outra dimensão, transformacional e subjetiva59.

Esse deslocamento epistemológico não apenas possibilita sua leitura nas muitas
ciências, como obriga ser lido por múltiplas ciências, fundindo-as na inteligibilidade que
busca dos encontros, conexões, agenciamentos e contextos que configuram a (sua percepção
de) realidade. Isso permite anular a grande divisão entre sociedade e natureza, posto que a
sociedade passa a ser explicada pela multiplicidade de “encontros” que a constituem, não
mais por si mesma, o que ganha peculiar aplicabilidade no método desenvolvido por Bruno
Latour60, Michel Callon61 e John Law62, tratado no último capítulo desta segunda parte. Esse

                                                                                                           
55
Extensio e intensio/ molar e molecular são como duas faces da mesma moeda, o molar é a
representação/exteriorização do molecular conglomerado. A sociedade é molar e molecular ao mesmo tempo,
uma face representável pelo nosso aparato cognitivo, exterior (uma instituição p. ex.), e outra interior, molecular,
intensiva e subterrânea, sendo a síntese de um conjunto de forças de diferentes signos (não-visível).
56
Importante ressaltar que a dupla molar e molecular não se trata de uma dicotomia, mas de uma existência que
se articula duplamente, se coproduzem, se contém, se co-transformam. Suponhamos que o rizoma tenha fluxos e
florescimentos, partes flexíveis (forças - intensio) e partes rígidas (afecções - extensio), partes que estão em
movimento e partes que se cristalizam, a primeira corresponderia à molecular e a segunda à molar. A ideia de
molar e molecular também não podem ser consideradas apenas uma mudança de perspectiva micro e macro, de
escala ou dimensão, dinâmica e estática, mas também da natureza do sistema de referências considerado.
57
Id. Ibid. p. 110
58
“O sistema dos estratos, portanto, nada tinha a ver com significante-significado, nem com infraestrutura-
superestrutura, nem com matéria-espírito. Tais oposições eram maneiras de reduzir a um todos os estratos, ou
então de fechar o sistema sobre si, isolando-o do plano de consistência como desestratificação.” Id. Ibid. p.112
59
Id. Ibid. p. 29
60
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005.
  115  

entendimento da sociedade traduz também uma filosofia política em Deleuze-Guattari e uma


abrangente leitura sobre territorialidade, ambas influentes nesta pesquisa.
Pensar a sociedade para os autores requer pensar a ideia de segmentaridade inerente
às sociedades. Primeiramente os tipos de segmentos: I. binários (classes sociais, homens e
mulheres, público e privado etc.), II. circulares (local de trabalho, jurisdição, cidade, país etc.)
e III. lineares (início e fim de processos – família, escola, faculdade etc.). Estamos sempre
segmentados e de formas distintas. Em segundo lugar é necessário dissolver as dicotomias
entre segmentaridade e centralização, primitivo e moderno, molar e molecular. O primitivo e
o moderno não estão numa divisão temporal do tipo evolutiva, a dupla-articulação faz com
que um esteja contido no outro, ou pronto para emergir ou sendo suprimido. O que os
distingue é a forma de segmentaridade: de um lado a flexível, mais presente nas sociedades
primitivas, de outro a rígida, consagrada nas sociedades modernas, ambas correspondentes às
três esferas de segmentação.
A segmentaridade flexível se caracteriza enquanto tal por apresentar uma
territorialidade mais itinerante, nômade, mutável, há uma maior multiplicidade em sua
organização, nesse sentido mais molecular, mais permeável às transformações rizomáticas,
por sua própria descentralização (uma comunidade ou uma tribo p. ex.). Por sua vez, a
segmentaridade rígida caracteriza-se por sua centralização, pela organização binária, tudo
converge a um centro, a uma autoridade, a uma ordem, é arborescente, tem um centro de
poder que se ramifica, nesse sentido mais molar (o Estado moderno p. ex.). Há núcleos de
arborescência na segmentaridade flexível como há um tecido flexível na segmentaridade
rígida:
Toda a sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados
pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e a outra
molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos
termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o
mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque
coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes figuras como
nos primitivos ou em nós – mas sempre uma pressupondo a outra. Em
suma tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo
macropolítica e micropolítica.63
Um exemplo muito elucidativo dos autores é o das classes e massas sociais. As massas
traduzem uma visão molecular, não possuem nem o movimento, nem a repartição, nem os
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
61
 CALLON, Michael et al. A quoi tient le succès des innovations? 1 : L’art de l’intéressement, Gérer et
comprendre, Annales des Mines, 11, pp.4-17. 1988.
62
LAW, John. Notes on the Theory of Actor-Network: Ordering, Strategy and Hetergeneity. In. Systems
Practice , Vol.5, nº. 4, 1992. Disponível em: http://link.springer.com/article/10.1007/BF01059830
63
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo. Editora 34.
2012. p. 99
  116  

objetivos, nem a mesma forma de lutar das classes. Contudo, dentro delas são “talhadas as
classes” que perfazem uma noção molar, cristalizada dentro das massas (organizada,
dicotomizada). Por sua vez dentro das classes as massas vão constantemente vazar, encontrar
suas linhas de fuga, desterritorializar-se em massas novamente. Podemos avançar um pouco
mais dizendo que dentro da classe os interesses serão percebidos enquanto homogêneos,
“comuns”, podendo ser organizados e pautados, nesse sentido são molares (duros). Em
oposição, dentro das próprias classes, percebido na microfísica, indivíduos vão ter interesses
difusos, variados, divergentes, que, mais tempo/menos tempo, formarão uma forma de
“vazamento” da ordem da classe, compondo “massas” novamente, tornando-se moleculares
(moles). Isso é irrefreável, inelutável e incontrolável ad eternum dentro de qualquer ordem.
Uma ordem molar será tanto mais forte quanto maior for sua correspondência na
“molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos elementares. [...] uma
grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos
medos [...]”64. A questão é que, por mais que o segmento molar (macropolítico,
macroeconômico, macropoder etc.) esteja organizado para e adaptado às linhas moleculares
ou “fluxos de quanta”65 (dentro da micropolítica, microeconomia, micropoder), não se detém
um controle sobre estes, sempre vão haver fendas, trincas, vazamentos, linhas de fuga em que
os fluxos vão gerar suas modificações moleculares no que é molar (e depois se cristalizar
novamente em outra molaridade, sempre em movimento). Nesse sentido a afirmativa marxista
de que uma sociedade se define por suas contradições é equivocada, parte-se somente da
grande escala (do pensamento biunívoco arborescente da visão que só apreende o que é
molar). As sociedades se definem mais pelas suas linhas de fuga, pelas desterritorializações,
pelas suas fissuras, pelo seus fluxos de quanta.
Os “centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência,
muito mais do que por sua zona de potência”66. Cada segmento molar tem o seu centro de
poder e este tem neste “segmento duro” sua zona de potência; mas todo centro de poder tem
também sua difusão num tecido microfísico (zona indiscernível), que o segmento duro tenta
moldar através de agenciamentos que vão adaptar as variações de massa e fluxo através de
traduções ou conversões em função do segmento dominante e dos segmentos dominados (p.
ex. as classes). Entretanto, há uma terceira zona, a de impotência, que está relacionada com os
fluxos de quanta, onde não é possível controlar nem determinar, no máximo converter
                                                                                                           
64
Id. Ibid. p. 102
65
Em alusão aos “movimentos quânticos” da mecânica quântica utilizada tanto na física quanto na química.
66
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo. Editora 34.
2012. p. 105.
  117  

(sempre parcialmente dentro da segunda zona). Como a microtextura (segunda zona) oscila
entre a primeira e a terceira zonas – entre a ordem e o que a desconstrói – a impotência é que
traduz a potência do centro de poder, sua capacidade de traduzir os fluxos moleculares em sua
ordem, fazê-la ser desejada. No exemplo de classes podemos falar de medo, segurança,
estabilidade, o que seduz e assim agrega, faz aderir...
É ela [capacidade de se adaptar aos fluxos moleculares da segunda
zona] – e não o masoquismo – que explica que um oprimido possa
sempre ocupar um lugar ativo num sistema de opressão: os operários
dos países ricos participando ativamente da exploração do terceiro
mundo, do armamento das ditaduras, da poluição da atmosfera.67

Não se trata de antagonismos, mas diferentes linhas que se misturam ou se distinguem,


que podem ser traçadas num mapa, mas não interpretadas, representadas ou simbolizadas. A
revolução vai ser sempre percebida por um arbitramento de “antes e depois” dentro das
características que se elegem como fundamentais, subavaliando os elementos microfísicos
que geraram as próprias mudanças e que vão dar sempre movimento. Por fim, para encerrar
essa introdução estendida, cabe-nos reafirmar que ela é base para o entendimento da discussão
empenhado no terceiro capítulo desta segunda parte, na perspectiva de uma “democracia
ampliada” de Bruno Latour, que a materializa de certa maneira em um método/instrumento de
análise que é a antropologia simétrica e a teoria ator-rede.

1.3 Multiterritorialidade

Sociedade, natureza e pensamentos são imanentes. Deleuze e Guattari marcam a


realidade vinculada às interações, conexões e agenciamentos que dão a existência, a
transformação e o movimento às coisas68. Saindo das homogeneidades e homologias
apreendidas pelo estruturalismo e pelo sistêmico, um agenciamento (aquilo que se pode
depreender na menor escala da existência real de algo) é necessariamente heterogêneo e em
múltiplas dimensões e naturezas. Um agenciamento liga a ordem social à biológica à
                                                                                                           
67
Id. Ibid. p. 116
68
Aqui me refiro a tudo e qualquer coisa, pessoas, plantas, planetas, computadores e bauxita etc. A existência
não se dá pelo Cosmo ou pelo Caos, mas por um Caosmo na perspectiva Deleuze-guattariana. Podemos dizer,
guardadas as devidas proporções, que essa perspectiva se aproxima sobremaneira da concepção de “Ordem,
desordem e organização” – exceto pela presença de uma ideia origem na teoria da complexidade – tratada em
Edgar Morin: “Assim ordem, desordem e organização se co-produziram simultânea e reciprocamente. Sob efeito
dos encontros aleatórios, as imposições originais produziram as inter-relações organizacionais. Mas pode-se
dizer que, sob feito das imposições originais e das potencialidades organizacionais, os movimentos
desordenados, desencadeando encontros aleatórios, produziram a ordem e a organização. Ha então um circuito
de co-produção mútua [...]”. MORIN, Edgar. O Método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2008. p.
76.
  118  

epistemológica etc. e todas elas a uma geografia. É inerente aos agenciamentos uma
territorialidade, eles descontroem territórios e os recriam num processo constante de múltipla
agregação que está sempre produzindo, sempre criando. Este processo é designado enquanto
“processo maquínico” ou simplesmente máquina, exatamente por agenciar diversos
elementos, funcionar na soma de suas forças e compor/construir/criar realidades (o que existe
é uma mecanosfera).
O agenciamento possui dois eixos em dupla articulação que o traduz enquanto um
processo de desterritorialização (linhas de fuga, momentos moleculares, forças e funções em
afecção) e de territorialização (componentes discursivos, momentos molares, sistemas
semióticos, significantes-significação) simultaneamente. Percebe-se que o sentido de território
é muito ampliado, indo do psicológico, social, animal etc., sempre num plano de existência
real, do que de fato se conecta, existe e se transforma. Obviamente nem tudo pode ser
apreendido por qualquer análise que seja, mas composto num mapa que traça os
agenciamentos identificados, sempre podendo ser refeito, ampliado, corrigido etc. Essa
percepção explicita uma visão “geográfica” desta filosofia, apreendida e aplicada de maneira
muito própria por Rogério Haesbaert, em sua “teoria da multerritorialidade”. Essa concepção
de território e territorialidade também foi influente na análise empenhada nesta pesquisa,
pelos territórios que percorre. “Muito mais do que uma coisa ou objeto, o território é um ato,
uma ação, uma real-ação, um movimento (de territorialização e desterritorialização), um
ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle.69”
Haesbaert parte de uma crítica às formas mais correntes do uso do termo
“desterritorialização”, apontando que estas perspectivas repercutem num sentido de promover
e legitimar a ótica parcial do modelo hegemônico neoliberalista, que prega o fim do Estado e
das fronteiras para a livre atuação das forças de mercado:
Assim, o que “desterritorializa”, de fato, na maioria das vezes, é
justamente esse afastamento ou fragilização do Estado e a
consequente onipotência de uma economia “flexível”, “fictícia”,
especulativa e/ou “deslocalizada”. Aí não são os grandes empresários
que estão “desterritorializados” – ao contrário, são eles que tem a
liberdade de escolher a (multi)territorialidade que mais lhes convém,
mais flexível e mutante, é verdade, mas justamente por isso ainda
mais prodigiosa70.
Perpassando de forma adensada diferentes perspectivas sobre territorialidade e
concepções sobre território, Haesbaert se empenha numa análise sobre as teorias da
                                                                                                           
69
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 127
70
Id. Ibid. p. 367
  119  

“desterriotrialização”, desde a “criação” do termo/conceito com Deleuze e Guattari, até as


distorções mais “convenientes” atreladas ao “fim dos territórios”. Aqui nos basta uma breve
síntese desta análise, dada pelo próprio autor, apenas para atingirmos sua proposta de
multiterritorialidade.
O capitalismo pós-industrial, informacional, pós-fordista, ou “flexível” (Sennett71, ou
conforme Bauman72), da “modernidade líquida”, dentre as muitas características, se apresenta
pela “força dos laços fracos”, por sua forte maleabilidade e adaptabilidade. Essa “nova
ordem” vai repercutir em uma contínua e acelerada reconfiguração das relações
comunicacionais, espaço-temporais, comerciais e políticas de todo o globo. Destes laços que
se expandem em velocidades sem paralelos, o foco nas suas relações com os “territórios”,
mais centrada nas transformações do Estado-Nação, mas não apenas, se apresenta como o
contexto de análise do autor. Neste cenário, em que os territórios podem ser alcançados e
abandonados conforme a conveniência dos investidores, que apresenta complexas
segregações e ordenações, onde a tecnologia abreviou o espaço e o tempo, Haesbaert aponta
“alguns pontos” que caracterizam a territorialidade inerente a esta época para em seguida
desconstruir a ideia de uma “desterritorialização”, percebida como desatrelada de uma
contínua “reterritorialização”.
No contexto da “pós-modernidade”, ora percebida como o que inaugura um novo
tempo, ora como o que exacerba a modernidade na crescente racionalização e seus mitos
sobre o domínio técnico do mundo, destaca-se o surgimento de uma economia virtual, de um
ciberespaço, de uma continuada homogeneização simbólica/cultural/estética/ambiental. Há
uma crescente padronização e mercantilização de todas as esferas sociais, bem como um
papel ambíguo no Estado que opera para assegurar a “fluidez” dos interesses privados e ao
mesmo tempo promove a inclusão de interesses públicos que colidem e complexificam a
lógica do sistema. O antagonismo entre uma “inclusão simbólica” que abrange os extratos
sociais mais marginalizados no compartilhamento dos mesmos anseios e ideais da sociedade
de consumo, ao mesmo tempo acompanhada de uma crescente segregação econômica que
aprofunda as desigualdades sociais73. Uma sociedade percebida pelos seus “opostos” e
“ambivalências” que inaugura novas formas de território principalmente quando focadas nas
relações de espaço-tempo. De um lado o sujeito universal, cosmopolita, de-todo-lugar, de

                                                                                                           
71
SENNETT, Richard. A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad.
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999
72
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
73
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 149
  120  

outro lado, o ausente, o sem-lugar, o sem acesso. Pode-se falar do surgimento de um espaço
imaterial, virtual ao mesmo tempo em que se pode falar de um uso ainda mais acirrado e
disciplinado do espaço e dos recursos materiais. A tecnologia que encurta as distâncias e
redefine a noção de tempo, tudo é instantâneo e imediato, decisões tomadas de longe, de fora,
mas com efeitos locais reais; e informações sincronicamente compartilhadas por todo o globo,
“aniquilando o espaço pelo tempo”. O território é instável e fluído, amanhã pode mudar, o
capital segue para onde for mais atrativo, para as melhores oportunidades, não há fronteiras,
pelo menos não muito rígidas. De um lado o local que perde sua identidade frente ao global
pelos mecanismos de “desencaixe”, com um “alongamento” espaço-temporal
(sobredeterminação); de outro lado o global que se encolhe, fica comprimido até reproduzir-
se no nível local, com a “compressão” do espaço-tempo. Os territórios se imbricam e se
justapõem, ora fronteiras são flexibilizadas ora são enrijecidas e as identidades culturais,
sempre atreladas a um território, se chocam, hibridizam-se e transformam-se.
Esse contexto fomenta os discursos sobre desterritorialização, partindo de diferentes
vieses, mas na grande maioria atrelados a uma visão linear e inevitável de um mundo “sem
fronteiras” ou sem territórios, com base em dicotomias como espaço-tempo, sociedade-
natureza, local-global, sujeito universal, cultura global etc. O deslocamento perceptivo de
Haesbaert se dá com a compreensão de que as mudanças compõem um “processo” que resulta
em novas perspectivas territoriais e não na abolição dos territórios. Para cada
desterritorialização, há uma reterritorialização, ora suplantando espaços e criando outros
novos, ora os hibridizando, mas dando outro plano de extensão e de controle. É um processo
sincrético, múltiplo, multiterritorial. Por uma perspectiva ideal-típica weberiana o autor
sintetiza três modalidades de organização espaço-territorial:
[...] os território-zona, mais tradicionais, forjados no domínio da
lógica zonal, com áreas e limites (“fronteiras”) relativamente bem
demarcados e com grupos mais “enraizados”, onde a organização em
rede adquire papel mais secundário; os territórios-rede, configurados
sobretudo na topologia ou lógica das redes, ou seja, são espacialmente
descontínuos, dinâmicos (com diversos graus de mobilidade) e mais
suscetíveis a sobreposições; e aquilo que denominamos
“aglomerados”, mais indefinidos, muitas vezes mesclas confusas de
territórios-zona e territórios-rede, onde fica muito difícil identificar
uma lógica coerente e/ou uma cartografia espacialmente bem
definida.74

                                                                                                           
74
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 306
  121  

A realidade aponta uma complexidade de des-re-territorializações formando uma


multiplicidade de territorialidades que conjuga diferentes forças, tempos, interesses, que
enrijece ou flexibiliza ordenações territoriais, que inclui ou que exclui grupos humanos e não-
humanos, que se configura na dinâmica dos macropoderes e dos micropoderes. Os territórios
se imbricam, sobrepõem-se, formam redes, fazem rizomas. A multiterritorialidade é o que
permite conectar os diversos territórios, físicos ou virtuais, com indistintos limites materiais e
imateriais, possuindo uma dimensão tecnológica (do ciberespaços, dos transportes, das trocas
informacionais) e simbólica (das significações, ordenações, valorações). Não é possível
adotar uma postura axiomática a priori, sem se debruçar sobre as realidades dos fenômenos,
os mesmos podem se dar como dominação ou emancipação. O que se trata, mais uma vez, é
uma tentativa de se perceber a realidade sem dicotomizá-la, sem estancar os processos e
valorizar previamente.
Apropriar-se do espaço é uma condição da vida, percebê-lo em suas múltiplas
interações que compõem a sociedade-natureza, obriga a cindir a hierarquia entre as coisas
existentes, vivas e não vivas, humanas e não humanas: pensar o mundo em sua imanência.
“Amor por tudo aquilo que existe” é muito provavelmente o que
deveria estar no centro de nossos processos de territorialização, pela
construção de territórios que não fossem simples territórios funcionais
de re-produção (exploração) econômica e dominação política, mas
efetivamente espaços de apropriação e identificação social, em cuja
transformação nos sentíssemos efetivamente identificados e
comprometidos75.

Entretanto, não quer dizer que na perspectiva do autor não se adote axiomas, ou
pressupostos, ou mesmo crie polarizações. As mesmas estão presentes em vários momentos,
quase sempre inevitáveis, mas aportadas como sempre relacionais e suscetíveis de
reavaliações. Na perspectiva de Haesbert a “estrutura” se mantém como pano-de-fundo, nas
construções do poder e nas relações simbólicas principalmente, bem como percebe-se um
significativo empenho do autor em salientar as “especificidades humanas” de territorialidade,
para manter o humano em uma posição diferenciada, dicotomizada. Nesta feita, a filosofia
Deleuze-Guatttariana é parcialmente adotada, o que é afirmado pelo próprio autor.

                                                                                                           
75
Id. Ibid. p. 369
  122  

2 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E JUSTIÇA AMBIENTAL

2.1 Breve descrição sobre a questão ambiental e sobre os marcos institucionais


regulatórios

Percebida de diversas formas e sob diversas vertentes a ideia de crise ambiental e


humanitária consubstanciadas pelos desníveis de ordem diversa nas relações entre sociedade-
ambiente, sociedade-sociedade e sociedade-indivíduo ganha uma penetração social
inquestionável, não apenas na esfera política, mas na educacional, na ética, na econômica, na
moral, na jurídica, na religiosa e na epistemológica. Consagrada por conferências, tratados,
convenções e acordos multilaterais entre Estados, na ampla difusão midiática, na
promulgação das leis domésticas, nas manifestações de grupos militantes etc. a questão da
disfunção entre as práticas sociais e a estabilidade ecossistêmica, que vai de escalas locais à
global, assumiu a forma de uma nova categoria de problemas humanos, não necessariamente
novos, mas agora compreendidos como “ambientais”.
Sob uma perspectiva amplamente difundida as questões ambientais, concebidas como
“crise civilizatória”, são comumente traduzidas e simplificas em uma relação quantitativa de
matéria e energia frente às formas de consumo e produção do modelo civilizatório
hegemônico. Dentro dessa problemática é percebido que a utilização dos elementos naturais,
dentro dos parâmetros tecnológicos estabelecidos, supera a capacidade de regeneração dos
mesmos, comprometendo, ao longo do tempo, sua continuidade. Por outro lado a absorção
dos resíduos das atividades humanas também não se mostra viável nessa dinâmica. O sistema
estaria esbarrando, nas várias direções, em limites. Dados apontam que a pressão exercida
sobre os sistemas naturais da Terra, diante do contingente populacional e do estilo de vida da
sociedade de consumo, excede aproximadamente 25% a capacidade de renovação desses
sistemas76. Apontam também que, nos últimos trinta anos a perda de biodiversidade supera
qualquer outro momento da história do homem e que o modo como geramos e consumimos
energia começa a mostrar sinais claros de irreversíveis alterações climáticas77 etc.
Esses e outros problemas que são objetivamente tratados pelos meios de comunicação
da sociedade, expõem um estado calamitoso e insustentável que pressupõe o
comprometimento dos modos de vida (ou da própria vida nas versões mais catastrofistas) que
                                                                                                           
76
HAILS, Chris et al. Relatório Planeta Vivo 2006. Gland – Suíça: World Wide Fund for Nature – WWF,
Zoological Society of London – ZSL e Global Footprint Network, 2006.
77
ALLEY, Richard et al. Intergovernmental Panel on Climate Change: Climate Change 2007: The Physical
Science Basis. Summary for Policymakers. Genova: WMO/ UNEP, 2007.
  123  

atingiria de forma mais ou menos homogênea toda a humanidade. Tratadas por um matiz
essencialmente economicista a questão tende a ser compreendida em sua resolução ou
mitigação por processos de conscientização, proteção de espaços territoriais e de
desenvolvimento de tecnologias que possibilitariam contornar a situação agônica que
enclausura a sociedade como um todo.
Alier78 aponta três momentos do “ambientalismo” como ramificações de um tronco
único: “o culto ao silvestre”, o “evangelho da ecoeficiência” e o “ecologismo dos pobres”.
Apesar de guardarem vários pontos em comum, sobretudo por se apresentarem contrários ao
modelo de produção da sociedade capitalista, cada qual tem seu viés que o distingue
nitidamente: o primeiro tem como característica fundamental a segregação de espaços
territoriais para a conservação e preservação de espécies ameaçadas de extinção; o segundo
compreende a saída para a crise a partir de investimento em tecnologias verdes, adaptando o
sistema atual aos novos problemas; por fim, o terceiro reivindica justiça na distribuição dos
recursos e dos ônus da degradação, configurando movimentos por justiça ambiental e dando
um matiz cultural para a questão. As duas primeiras linhas, que “eventualmente dormem
juntas”79, tratam a questão ambiental de forma mais fragmentária, técnica e, não raras as
vezes, associada à uma forma de manutenção/adaptação do modelo hegemônico.
Apesar da importância da compreensão, reduzir as questões ambientais
exclusivamente à problemática das quantidades de matéria e energia, é percebido como algo
impossibilita apreendê-las em sua real complexidade na dinâmica das sociedades. Dentro
desse contexto algumas vertentes teóricas buscam compreender essas questões de maneira
mais integrativa e conjuntiva, percebendo as inter-relações entre sociedade e meio ambiente,
ou seja, entre os elementos que constituem o meio e seus sentidos culturais e históricos,
apontando para a interconexão explícita dos processos sociais e ecológicos. Nesse sentido, as
formas de uso, apropriação e ocupação do território e dos seus elementos constitutivos pelos
diferentes segmentos e formas sociais é dotada de distintos fins, sentidos e significados.
Os modelos e práticas sociais se ligam diretamente às representações simbólicas que
atribuem diferentes significados aos elementos ambientais e à distribuição de poder sobre os
mesmos, dentro de um contexto histórico-social. A partir dessa relação Acselrad expõe que
disputas figuram: no campo dos significados, legitimando ou deslegitimando práticas sócio-
                                                                                                           
78
ALIER, Juan Martínes. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagem de valoração. São Paulo:
Editora Contexto, 2005.
79
Nessa perspectiva o “culto ao silvestre” e o “credo da ecoeficiencia” eventualmente dormem juntos. Assim
vemos a associação entre a Shell e a WWF para o plantio de eucaliptos ao redor do mundo com base no
argumento de que isso diminuirá a pressão sobre os bosques naturais e, presumivelmente, promoverá também o
aumento na absorção do carbono. Id. Ibid. p. 33
  124  

culturais de apropriação da base material; nas relações atreladas aos recursos e sua
acessibilidade e deterioração (questões de justiça ambiental); e nas competições sobre a
distribuição de poder sobre esses elementos.80
Há uma dimensão política e conflitiva intrinsecamente ligada às questões ambientais
que não se resume a uma convergência consensual necessária da ideia de crise e da
construção de uma consciência universal da mesma.
Nesse viés – sensível às diferentes práticas, significados e modelos culturais de
apropriação do ambiente – percebe-se uma realidade permeada por conflitos socioambientais.
Os impactos gerados por determinados usos, o poder exercido sobre determinado recurso, o
status designado para determinada área, os riscos de uma dada atividade, entre outras
situações que se reproduzem diuturnamente nas sociedades, muitas vezes, perfazem o que se
convencionou designar como “conflitos ambientais” ou “socioambientais”. Vale dizer, as
disputas entre os grupos sociais derivadas dos distintos tipos de relação que eles mantém com
seu meio natural, engloba três dimensões: o mundo biofísico, o mundo humano-social e o
relacionamento dinâmico e interdependente de ambos81, o ambiental e o social se conectam
(ainda que dentro de um modelo epistemológico que os dicotomiza).
O processo de disputa sobre os elementos ambientais, pelo seu controle (distribuição
de poder e designação de sentidos), acesso (distribuição social dos recursos) e exploração
(formas de uso, apropriação e ocupação), é um ponto marcante e indissociável da
compreensão das sociedades contemporâneas.
Diante dessa realidade crescem mundialmente as discussões sobre instituições
regulatórias e políticas, assim como de tecnologias para resolução de conflitos ambientais82. E
nesse sentido uma questão se perfaz: o que significa resolver um conflito? Seria cessá-lo ou
mitigá-lo? Negociá-lo ou arbitrá-lo? A resolução de um conflito ambiental deve se pautar
exclusivamente numa discussão técnica, ou incluir a dimensão da justiça e da ética? O
conflito deve ser resolvido em si, ou deve-se confrontar e transformar o processo que lhe deu
origem?
As práticas sociais institucionalizadas que visam dirimir conflitos de qualquer
natureza – grosseiramente – tendem, inicialmente, a uma harmonização ou conciliação entre
                                                                                                           
80
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
81
LITTLE, Paul E. Os Conflitos Socioambientais: Um Campo de Estudo e de Ação Política. In: BURSZTYN,
Marcel (org.) A Difícil Sustentabilidade: Política Energética e Conflitos Ambientais. Brasília: Garamond
Universitária, 2000. p.p. 107 - 122
82
ACSELRAD, Henri, H., BEZERRA, G.N. “Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de
conflitos ambientais na América Latina” apres. Seminário Nacional Desenvolvimento e Conflitos Ambientais,
Belo Horizonte, 2008. http://www.ufmg.br/conflitosambientais/ acesso em 28/02/2009 [disponível em pdf]
  125  

as partes. Caso essas “tentativas” se percebam frustradas, pode um terceiro imparcial ou um


colegiado fazer a mediação ou arbitrar uma posição mediante critérios e valores (p. ex. o
papel jurisdicional do Estado). Esse processo, via de regra, visa à estabilidade social (por fim
ao conflito ou resolve-lo), mas pode também transformar a realidade social. Considerando as
duas perspectivas, que não se antagonizam, mas se distinguem, poder-se-ia identificar, dentre
os instrumentos e espaços que lidam com “conflitos ambientais”, aqueles que assumem um
caráter mais “resolutivo” (resolvem o conflito em si) ou podem assumir um caráter mais
“transformador” (ultrapassa o conflito em si e os atores imediatamente envolvidos).
Destacam-se três enfoques:
O primeiro enfoque trata de modelos de análise e ação que visam resolver os conflitos
de forma mais direta e negocial, a partir dos próprios envolvidos ou a partir de terceiros
dotados de autoridade ou capacidade pericial para arbitrá-los. Trata-se de metodologias de
resolução negociada, não muito utilizadas no Estado brasileiro, pois o meio ambiente com
qualidade é um direito indisponível, mas bastante difundidas em alguns países. São exemplos
dessas tecnologias de resolução negociada de conflitos ambientais: a Negociação Direta, a
Conciliação, a Facilitação, a Mediação, a Arbitragem etc. Essa perspectiva negocial privatista
sofre acusações de despolitizar o conflito, retirando o debate da esfera pública e alocando-o
exclusivamente na esfera de conhecimento dos atores nele diretamente envolvidos. Por sua
vez é percebida como mais célere, menos burocrática e, com as devidas proporções, mais
eficiente do que o judiciário83.
Uma segunda perspectiva – instância por excelência para dirimir conflitos sociais –
trata-se do próprio judiciário. A emergência das questões ambientais, encampadas, sobretudo,
na década de 1970 pelo Brasil, faz surgir uma nova categoria de interesse juridicamente
tutelado: o meio ambiente, concebido em sua integralidade (diferentemente da forma
fragmentária como era tratado – p. ex. florestas, fauna, solos etc. anteriormente concebidos
sem manter relações entre si). Essa mudança conceitual tem como marco a Política Nacional
do Meio Ambiente, Lei 6938 de 31 de Agosto de 1981, que traz no seu texto um conceito para
Meio Ambiente e um tratamento sistêmico para seus elementos. Com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, se deu a elevação dos bens e da qualidade ambiental ao grau de
direito fundamental, assumindo – a qualidade ambiental – atribuições de irrenunciabilidade,
inalienabilidade e imprescritibilidade. Sendo o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”
um direito com titularidade difusa (dirige-se a toda a comunidade). Nesse sentido os bens
                                                                                                           
83
VIÉGAS, Rodrigo Nuñez. As resoluções de conflito ambiental na esfera pública brasileira: uma análise crítica.
In. Confluências, n. 9 v. 2, Niterói, 2007.
  126  

ambientais são bens de interesse comum, perspectiva essa que vem redimensionar o conceito
de propriedade privada com implicações significativas em sua fruição. Esta fica submetida à
explorabilidade limitada (certos bens ou espaços não são passíveis de utilização) e
condicionada (deve-se demonstrar que o uso não será nocivo para receber outorga do poder
público). A fruição passa a estar atrelada à função socioambiental da propriedade e as
questões ambientais passam a envolver (direta ou indiretamente) a sociedade como um todo –
caráter difuso.84
Apesar de gozar de um arcabouço teórico e legislativo amplo, que dialoga com outras
disciplinas inclusive não jurídicas, e de reformular vários conceitos jurídicos tradicionais, o
Direito Ambiental é uma disciplina relativamente marginalizada, que vem ganhando
importância gradual na atualidade. Seu conteúdo legislativo encontra grande descompasso
com a realidade, e o poder judiciário em si, é consideravelmente despreparado para lidar com
as questões ambientais que lhes são apresentadas85. A inaptidão técnica e a extrema
morosidade são apontados como fatores de esvaziamento do judiciário para dirimir as lides
ambientais. Estas, por sua vez, recairiam ainda mais para uma instrumentalização
contratualista e privada, flexibilizando o teor de indisponibilidade e de “bens de uso comum”
dos elementos ambientais.
Por sua vez, é importante salientar que o acesso à justiça é bastante ampliado no
Direito Ambiental. Instrumentos como a Ação Civil Pública (Lei 7347 de 24-07-85) e a Ação
Popular (Lei 4717 de 29-06-65), além de serem instrumentos processuais específicos de tutela
do interesse coletivo, ampliam o rol de legitimados ativos para a impetração da ação,
possibilitando-a às associações civis e aos cidadãos respectivamente. Não obstante tratar-se de
instrumentos de exercício profundo da cidadania, tanto a Ação Civil Pública quanto a Ação
Popular não são amplamente utilizados pela sociedade civil.
O Ministério Público, que utiliza amplamente a Ação Civil Pública, pode-se dizer,
desempenha um papel importante na resolução de conflitos ambientais. Este possui como
função precípua, além de fiscalizar a lei e promover a justiça, defender os direitos
massificados da sociedade (função preventiva e repressiva). Dispondo de uma série de
instrumentos de atuação, o Ministério Público pode figurar tanto como “demandista”, atuando
frente ao Poder Judiciário que se incumbe da resolução dos conflitos, através da Ação Civil

                                                                                                           
84
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In.
CANOTILHO, J. J. G.; MORATO LEITE, José R. (org.), Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2007.
85
NAVIA, J. M. B. Limiti e promesse del diritto ambientale in America Latina. In: Rivista Giuridica
dell´Ambiente. N. 3 vol.4. Milano: Giuffrè editore, 2003.
  127  

Pública, do Inquérito Civil e Criminal p. ex.; ou assumir um papel “resolutivo”, lançando mão
dos procedimentos administrativos e firmando Termos de Ajustamento de Conduta, e a partir
daí, resolvendo os embates86.
A resolução de conflitos através de Termos de Ajustamento de Condutas pelo
Ministério Público ou Termos de Compromisso (legitimados para alguns órgãos ambientais)
se dá mediante um compromisso firmado para “ajustar” a conduta do agente que está em
desacordo com a lei. Figurando como título executivo extrajudicial, esses instrumentos evitam
a burocracia do processo judicial, são mais flexíveis e negociados, podendo ser assistidos por
outras instituições (órgãos públicos, universidades, associações etc.) que lhes dão mais
legitimidade. Entretanto, apresentam inúmeras deficiências decorrentes do não cumprimento
dos acordos firmados, principalmente devido à ausência ou insuficiência de fiscalização.
O terceiro enfoque trata dos instrumentos administrativos de co-gestão política do
meio ambiente. Espaços onde se constroem e se decidem políticas socioambientais, planos de
desenvolvimento, normatizações, controle de atividades, qualificação de territórios etc. Há
cerca de quatro décadas, quando as políticas ambientais deixaram de ser tratadas
implicitamente em outros setores (constituindo um campo próprio), se inicia o processo de
construção desses instrumentos de gestão ambiental, que ao longo do tempo, foram ganhando
materialidade na realidade social brasileira.
Sob a influência da Conferência das Nações Unidades sobre Meio Ambiente Humano
de 1972, realizada na cidade de Estocolmo, o Governo Federal, na excepcionalidade do
Regime Militar e em meio a obras colossais e desastrosas, descontrolada exploração dos
recursos naturais, favorecimentos e expansão das fronteiras agrícolas, teve o início do que se
designa como “política ambiental explícita do governo”87. Precisamente no final de 1973 com
a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente - SEMA, instituída pelo Decreto n°
73.030, em 30 de outubro de 1973.
Contudo, já antes da criação da SEMA, começaram a se institucionalizar órgãos em
alguns estados do Brasil, que passaram a tratar o Meio Ambiente como um setor específico de
políticas públicas. Em junho de 1973 criou-se a Companhia de Tecnologia de Saneamento
Básico e de Controle da Poluição das Águas – CETESPE (Lei 118/73 SP). E, em outubro de
1973, foi criado na Bahia o primeiro conselho de meio ambiente do país, o Conselho Estadual
de Proteção Ambiental – CEPRAM (Lei 3163/73 BA).

                                                                                                           
86
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
87
ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio
da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
  128  

Segundo Lemos88, surge pela primeira vez um colegiado de Meio Ambiente com
poderes deliberativos no Estado do Rio de Janeiro. Em Minas Gerais, outra importante
inovação se deu com a criação da Comissão de Política Ambiental - COPAM (instituído em
29 de abril de 1977 que, a partir de 1988, passou a ser Conselho Estadual de Política
Ambiental, mantendo a sigla COPAM). Um órgão colegiado normativo e deliberativo que,
pela primeira vez, incluía a participação da sociedade civil de forma mais ampla, com
representantes de entidades ambientalistas, fomentando um maior controle social das políticas
públicas de meio ambiente do estado89.
Em 1981, com a edição da Política Nacional de Meio Ambiente, fica instituído o
Sistema nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), que se estabelece como uma rede
articulada de órgãos interativos que atuam nos três níveis da federação. Esse amplo modelo de
gestão – que incorpora os órgãos ambientais federais, estaduais e municipais – veio se
constituindo por tripartições em sua estrutura, com órgãos centrais (mais diretamente ligados
ao governo – chefe do executivo), órgãos executivos (executam as políticas, aplicam
penalidades, fiscalizam, transigem etc.) e órgãos decisórios (conselhos e comitês que
comportam múltiplos segmentos representativos). As representações, principalmente dos
órgãos colegiados, também vêm se organizando por mecanismos tripartites – Estado,
Mercado e Sociedade. Esse processo se deu acompanhando uma crescente mentalidade
democrática e participativa, consagrando a participação social nos processos decisórios e
configurando uma gestão descentralizada sobre os territórios.
Foi a partir dos modelos experimentados na Bahia, no Rio de Janeiro, em Santa
Catarina, em São Paulo e em Minas Gerais (posteriormente disseminados pelo país) e de seus
aperfeiçoamentos, que o Governo Federal se inspira para criar o Conselho Nacional de Meio
Ambiente (CONAMA) em 1981, comportando amplos segmentos representativos. Também
na década de 1980 aponta-se o grande momento do surgimento dos conselhos de meio
ambiente no âmbito municipal, concomitantemente ao surgimento de inúmeras associações
ambientalistas90.

                                                                                                           
88
LEMOS, Haroldo Mattos de. O sistema nacional de meio ambiente e o conselho nacional de meio ambiente no
Brasil: seu impacto na qualidade de vida. In: Diálogos de Política Social e Ambiental: Aprendendo com os
Conselhos Ambientais Brasileiros. Banco Interamericano de Desenvolvimento/Ministério do Meio Ambiente do
Brasil. Brasília: BID/MMA, 2002, 1ª edição. p.p. 31-82
89
RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. Indicadores Ambientais: Avaliando a Política de Meio Ambiente no
Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Semad, 2006.
90
ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade: Delimitação e análise de embates sociais
no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) –
PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
  129  

Gradativamente o modelo de gestão ambiental brasileiro, conforme exposto no breve


delineamento histórico, vai tomando forma e vão sendo instituídos, na federação, nos estados
e parte considerável dos municípios, seus órgãos constitutivos: Ministério, Secretarias,
Departamentos, Fundações, Autarquias, Agências e Conselhos.
Pode-se dizer que o modelo de gestão do ambiente compartilhada entre Estado e
sociedade civil, através de consultas, audiências públicas e dos colegiados ambientais em sua
maioria com caráter deliberativo e normativo, está amplamente difundido no Estado
brasileiro. Além das políticas de desenvolvimento ambiental e urbano, merecem destaque as
políticas de gestão de recursos hídricos e de unidades de conservação. A Política Nacional de
Recursos Hídricos (criada pela Lei 9433 de 08 de janeiro de 1997), além de criar o Conselho
Nacional de Recursos Hídricos e os conselhos estaduais, cria também os “comitês de bacia”.
Estes operam na delimitação geográfica de uma bacia hidrográfica ou sub-bacia, comportam
diversos segmentos participativos e são incumbidos de arbitrar conflitos relacionados a esse
recurso.
No que tange às unidades de conservação, tema central do presente estudo, a previsão
de “criar em todas as unidades da federação espaços territoriais a serem especialmente
protegidos cuja alteração só pode se dar mediante lei específica” é um instrumento da política
ambiental brasileira constitucionalmente assegurado. Regulamentado pelo Sistema Nacional
de Unidades de Conservação (criado pela Lei 9985 de 18 de julho de 2000), essa política
pública que destina áreas para conservação, outrora extremamente arbitrária e causadora de
inúmeros conflitos, acompanhou também um processo de democratização. A lei, além de
dispor sobre consulta pública e processos participativos para a criação de várias categorias de
unidades de conservação (mantendo o equívoco da desnecessidade para com as Reservas
Biológicas e Estações Ecológicas), dispõem também de “Conselhos de Unidades de
Conservação” para auxiliar a geri-las. Entretanto, a maior parte desses conselhos possuem
caráter meramente consultivo, o que os enfraquece substancialmente na possibilidade de se
promover um pacto político-sócio-ambiental mais equânime, visto que as discussões ali
empregadas e os resultados atingidos podem não materializar-se e as decisões reais serem
tomadas em outra instância.
Perscrutando a realidade brasileira, onde as desigualdades são características
marcantes da sociedade, promover entendimentos e convergências, ou ao menos o respeito
nas demandas entre os interesses de grupos díspares, não é uma tarefa fácil. Tradicionalmente
um conflito de interesses se resolve na imposição da vontade daquele que possui melhores
condições econômicas, em última instância através da força bruta, ainda que por meio de
  130  

ações ilegítimas de um Estado subserviente. Nessa realidade a implementação da gestão


ambiental compartilhada, com o advento de espaços públicos discursivos que possibilitam a
participação de uma diversidade de atores e o poder de decidir as questões que ali são levadas
representa a promoção de uma responsabilidade solidária, coletiva e democrática para
mediação e negociação dos conflitos. E isso se dá através do diálogo social e político que
favorece tanto o fortalecimento institucional, quanto a legitimidade dos atos públicos,
representando uma maneira distinta da forma tradicional de se dirimir conflitos na sociedade.
Aí reside parte substancial da importância desse modelo de gestão para dirimir conflitos de
natureza socioambiental91.
As três esferas mencionadas e as inúmeras arenas nas quais se desembocam são os
espaços em que os múltiplos atores sociais levam suas demandas e buscam legitimá-las, são o
locus em que os conflitos se publicizam e os discursos se constroem. Ora culminam em
negociações ou trocas em que o poder do dinheiro silencia demandas, ora cumpre-se a lei para
incluir ou excluir interesses legítimos ou não, ora pactua-se a consideração dos interesses
daqueles que historicamente tiveram sua voz suprimida e sua existência negada. Esses
espaços – reuniões entre empresas e comunitários, audiências públicas, reuniões de
colegiados, audiências judiciais, vistorias, debates técnicos, fiscalizações etc. – e os
documentos que originam, são indispensáveis na compreensão do desdobramento dos
conflitos socioambientais e, principalmente, na atuação dos atores sociais, na revelação de
suas estratégias, na construção de suas alianças e das elaborações argumentativas que visam
legitimar suas posições.
O fluxo das relações estabelecidas entre os diversos atores e instituições, as estratégias
utilizadas para legitimar ou fazer prevalecer interesses, a arte de transformar causas
particulares em questões públicas, requer que a análise leve em consideração as múltiplas
construções argumentativas que se desenvolvem. Assim, a vociferação das denúncias,
carregadas com sentimentos de injustiça, que são proferidas pelos grupos que dão
materialidade aos conflitos, requerem, conforme Boltanski,92 que se compreenda a medida de
sua satisfação concomitante a de sua aceitação pelo público na análise do caso específico.

                                                                                                           
91
ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade: Delimitação e análise de embates sociais
no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) –
PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
92
BOLTANSKI, L. L'amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l'action. Paris:
Métailié, 1990.
  131  

2.2 As especificidades dos Conflitos Ambientais por uma sociologia estruturalista-


construtivista

Emergindo a partir da década de 1970 como subdisciplina acadêmica específica, a


sociologia ambiental, outrora distribuída em distintas disciplinas (como ecologia humana,
sociologia rural, sociologia dos recursos naturais, dos movimentos sociais entre outras),
passou a integrar uma problemática fragmentada em diversos campos do conhecimento,
dentro do que se designa de “dimensão ambiental”93. Partindo, muitas vezes, da tentativa de
uma visão mais conjuntiva entre humano-sociedade-natureza, a questão se constrói sobre
variados enfoques (realistas, materialista-marxista, estruturalista, construtivista, pós-
materialista etc.) e se debruça sobre um amplo campo de objetos de estudo que englobam:
atitudes e valores, movimentos ecológicos, sociedade de risco, desenvolvimento sustentável,
políticas ambientais, conflitos ambientais, entre outros.
Na perspectiva adotada para a pesquisa, sobre o desdobramento dos conflitos
socioambientais nos espaços territoriais de duas unidades de conservação, faz-se necessária
uma compreensão do “ambiental” em suas diferentes construções argumentativas inseridas
nos processos discursivos. Isto não significa diminuir ou despir as especificidades da temática
ambiental em si, ou percebê-la como retradução ou readaptação de outras questões. A
“dimensão ambiental” pode ser percebida como uma forma mais acurada de se compreender
as questões humanas inter-relacionadas com sua base material e simbólica, que é o meio
ambiente. Por sua vez, essa perspectiva, direciona o entendimento sobre o meio ambiente
como um terreno contestado material e simbolicamente94. Ou seja, o que significa uma prática
ambientalmente sustentável para um determinado agente, pode não ser para outro; ou o
significado de um determinado elemento natural pode variar de um agrupamento humano em
relação a outro, ou para uma forma de utilização com relação a outra etc. Assim, a questão
ambiental é intrinsecamente conflitiva e a luta por recursos naturais é também uma luta por
sentidos culturais.
De forma heurística, Little95 oferece uma tipologia interpretativa para os conflitos
socioambientais: primeiro, o que seriam conflitos em torno do controle sobre recursos

                                                                                                           
93
HERCULANO, Selene C. Sociologia Ambiental: origens, enfoques metodológicos e objetos. In. Revista
Mundo e Vida: alternativas em estudos ambientais. n. 1. Niterói, 2000.
94
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
95
LITTLE, Paul E. Os Conflitos Socioambientais: Um Campo de Estudo e de Ação Política. In: BURSZTYN,
Marcel (org.) A Difícil Sustentabilidade: Política Energética e Conflitos Ambientais. Brasília: Garamond
Universitária, 2000. p.p. 107 - 122  
  132  

naturais; segundo, conflitos em torno dos impactos sociais e ambientais gerados pela ação
humana; e terceiro, conflitos em torno dos usos dos conhecimentos ambientais. O tratamento
e entendimento dos conflitos devem considerar a pluralidade, o multiculturalismo e a
complexidade da sociedade atual.
No campo dos conflitos sociais, ganha substancial importância: a) a reflexão sobre os
atores sociais, a construção de suas identidades e solidariedades (constituição de movimentos
sociais); e b) o fenômeno da ação coletiva, referenciada por orientações e relações sociais.
Nesse sentido, conforme aponta Melucci96, deve-se entender o sujeito coletivo da ação não
como uma estrutura definida e homogênea (integrada em suas demandas) e nem reduzidos ao
“momento histórico”, mas de forma complexa, heterogênea em seus significados,
organizações e formas de ação. Essa perspectiva conduz à compreensão de um fenômeno de
ação coletiva, não de forma global ou como resposta a uma crise do sistema (patologia
social), mas como um objeto construído por uma análise que o decompõe segundo o sistema
de relações sociais ao qual a ação faz referência e às orientações que tal ação assume. É,
sobretudo, um conflito expresso na luta entre atores pelo controle de recursos essenciais de
interesse comum97. Essa percepção (sobre conflitos sociais em geral), remonta à necessidade
de uma análise empírica, onde a compreensão de um conflito ou formação de movimento
social, em sua real dimensão, só é possível partindo da análise de casos concretos.
Para a caracterização do “ambiental” como um campo específico de construção e
manifestação dos conflitos, Acselrad98 parte de um “estruturalismo construtivista” onde: a) as
posições no espaço social, em que os agentes sociais se distribuem segundo princípios de
diferenciação, conflitando pela posse das espécies de poder/capital específicos, formam os
“campos de forças relativas”; e b) as categorias vigentes de construção simbólica do mundo,
historicamente produzidas pela ação coletiva, são mutáveis; podem ser deslegitimadas pelas
lutas simbólicas (“desinventadas”), onde, nessa luta pela distribuição do poder, há uma
“valorização/desvalorização relativa dos diferentes tipos de capital”, portanto uma luta
classificatória e cognitiva. Desta forma, a designação sobre o que é ou não ambientalmente
benigno vai redistribuir o poder sobre os recursos territorializados. Isso se dá pela
legitimação/deslegitimação das práticas de apropriação dos recursos ou da localização em que

                                                                                                           
96
MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente - Movimentos sociais nas sociedades complexas. Trad. Maria do
Carmo Alves do Bomfim. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001
97
Id. Ibid.
98
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004.
  133  

esses se encontram, tornando a luta por recursos ambientais, simultaneamente, uma luta por
sentidos culturais e o meio ambiente uma construção variável no tempo e no espaço.
Nesse sentido, a emergência da questão ambiental tem no argumento ambiental (nas
justificações ecologizadas) o ponto de integração das distintas “ordens de justificação”. Ou
seja, a lógica dos discursos pertinentes à questão ambiental, ao contrário de uma causa
universal ecológica, trata de causas parcelares que podem ser universalizadas através de
valores compartilháveis que justificam os atos no plano do interesse comum. Dessa forma
uma gama variada de atores sociais integra o campo de forças da luta que visa classificar a
representação legítima da natureza e distribuir o poder sobre os recursos territorializados.
Assim, lhe dão diversos significados como, por exemplo, o de reservatório de recursos,
paisagem de consumo estético, reprodução de grupos socioculturais etc. Utilizando-se de
diferentes estratégias discursivas de legitimação que expõem, dentre uma diversidade de
vertentes, direitos de propriedade e direitos de uso, argumentações científicas sobre riscos,
vocação de determinadas áreas e seus usos etc. Dentro dessa disputa argumentativa e de
legitimidade, as representações dominantes podem sofrer inflexões no plano discursivo,
reconfigurando o poder relativo dos atores no campo das práticas.
Os conflitos ambientais têm origem, concebendo a sociedade como uma rede
espacialmente interativa de atividades que formam “acordos” de mútuos benefícios
(simbióticos), quando há o rompimento desses “acordos”. A atividade de um determinado
grupo compromete a manutenção das atividades de outro grupo, por meio de “impactos
indesejáveis” transmitidos por meios físicos (solo, água, ar ou sistemas vivos)
comprometendo a continuidade das formas sociais de apropriação, uso ou significação do
meio. O conflito é gerado a partir do momento que o grupo afetado denuncia a ruptura do
“acordo simbiótico”99, partindo da perspectiva de que a sociedade se constitui de uma forma
geral de relações de mútuos benefícios que podem ser rompidos gerando o benefício.
O quadro analítico proposto por Acserald aponta para uma remissão necessária dos
conflitos ambientais a quatro dimensões constitutivas: 1ª- A apropriação material dos recursos
do território: campo por excelência onde se desenrolam disputas sociais, econômicas e
políticas pela apropriação dos diferentes tipos de capital natural e também, pela mudança e
conservação da estrutura de distribuição de poder. Nessa vertente os agentes possuem
dotações diferenciadas de capital material e capacidade distinta de terem acesso a esses

                                                                                                           
99
 ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
 
  134  

capitais (acesso aos recursos vivos, água, terra fértil etc.). 2ª - Apropriação simbólica dos
recursos do território: a luta para impor as categorias simbólicas que legitimam ou não a
distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital. Aí se percebe embates entre
diferentes formas de apropriação do território pela afirmação de seus respectivos caracteres
como: “ambientalmente correto”, “sustentável”, “compatível com a vocação do meio”,
“produtivo”, “competitivo” etc. 3ª - A durabilidade da atividade no que se refere à
possibilidade de continuidade dos modos de apropriação material: a condição de existência da
base material que determinadas formas sociais dependem para sua subsistência e integridade
pode ser afetada por atividades que comprometem essa durabilidade. No plano argumentativo
esse pode ser um critério de legitimação/deslegitimação de uma determinada atividade, a ser
acionado no campo representativo do meio ambiente pelos sujeitos do conflito. 4ª - A
interatividade, onde “os conflitos ambientais opõem atores sociais que desenvolvem ou
propugnam distintas formas técnicas, sociais, culturais e simbólicas de apropriação dos
elementos materiais de um mesmo território ou de territórios conexos”. Há uma interação de
atividades em que uma transmite impactos indesejados para a outra, onde essa “interação” é
de difícil mensuração (incerteza cognitiva) e, portanto “suposta e sustentada na autoridade da
própria denúncia.” 100
Por uma perspectiva crítica das relações de poder sobre os recursos ambientais e seus
significados, da desigual distribuição dos custos socioambientais de certas práticas e sua
alocação territorial, que prejudica grupos cuja voz muitas vezes não redunda nas esferas de
decisão, impõe considerar a dimensão da (in)justiça ambiental. Uma definição esclarecedora
sobre o tema é apresentada por Herculano, Acselrad e Pádua101 (2004) como: “o mecanismo
pelo qual sociedades desiguais, destinam maior carga dos danos ambientais do
desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais descriminados, aos povos
étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”
(definição de injustiça ambiental).
Para o enfoque da pesquisa a desconsideração se dá também em outro nível, quando
espaços territoriais há muito habitados possuem recursos que interessam a grandes grupos
econômicos e os mesmos sobrepõem seus interesses, dominando o espaço com o aval do
poder público. E, ainda, a dominação se dá aliada a uma política ambiental segregacionista
que endossa a separação entre espaços humanos e naturais, colocando, na realidade em foco,
                                                                                                           
100
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
101
ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Fundação Ford. 2004.
  135  

muito mais uma estratégia política de controle e dominação do que de conservação ambiental
propriamente. A multiplicidade de formas de uso da área foco da pesquisa traduz uma
multiplicidade de territorialidades e uma complexa dinâmica de poder em que relações
estreitas entre poder econômico e Estado revelam práticas antagônicas que vão do
esvaziamento do poder estatal ao controle minucioso de práticas, da liberalização absoluta a
um compartilhamento íntimo do espaço físico.
A crítica vem dar voz aos dominados (no caso os subtraídos de seus recursos ou
territórios etc.) dando-lhes maior visibilidade e uma inserção possível de rearranjar as
estruturas, uma vez que identifica o “capital” de legitimação do campo em questão (o dos
conflitos ambientais), e denuncia a “injustiça” na distribuição do poder (do acesso aos marcos
decisórios e do discurso legitimador do desenvolvimento e da sustentabilidade). No caso da
pesquisa os quilombolas não tem acesso ao discurso técnico-científico do desenvolvimento
sustentável e nem condições de formalizar processos perante o órgão ambiental para legitimar
suas práticas. Por sua vez suas práticas são menos impactantes do que as da mineradora e
mais condizente do ponto de vista legal com as finalidades de uma das unidades de
conservação em questão, a FLONA. Evocando a questão da sustentabilidade e da legalidade e
inserindo-as nas esferas públicas, por agentes externos via de regra, poder-se-ia reconfigurar a
distribuição do poder ali, distribuí-lo melhor ou subverte-lo.
Por essa perspectiva – ou poderíamos dizer perspectivas, já que não foi apresentada
uma linha única, mas algumas linhas próximas – o “social” se conecta ao “natural” por uma
socialização do que se compreende como “ambiental”. Agora ele está alocado no polo
“cultura” e não mais exclusivamente nas questões relativas à matéria e energia, polo
“natureza”. Mantém-se a divisão, a dicotomia, muda-se o polo: o ambiental é socialmente
construído. Em outro ângulo, a análise remete às forças sociais estruturadas que fornecem o
poder hierarquizado do campo (pelo sistema econômico, capital, multinacionais, relações de
mercado, governo etc.). Esse “pano de fundo” dá o formato do quadro em que os elementos
obtidos em campo devem ser inseridos demonstrando as dimensões constitutivas do conflito
e, assumpta positione, denunciar as injustiças. O caráter normativo de orientação e a herança
marxista da crítica tornam-se forças vivas na análise. Por sua vez, nem tudo cabe na moldura
sem ultrapassar suas bordas e descaracterizar a imagem que se quer mostrar. O que fazer com
esses elementos sobressalentes? Desviar o olhar, aparar as arestas ou simplesmente ignorá-
los? Haverão sempre delitescências. Conforme mencionado, algumas questões levaram a uma
mudança de perspectiva metodológica no curso do campo.
  136  

3 A DEMOCRACIA AMPLIADA – HUMANOS, SERES VIVOS E INANIMADOS:


QUANDO TODOS FALAM

3.1 Nem mais cultura e nem mais natureza: sobre a Antropologia Simétrica
 
Segregar, do latim segregare, aduz em sua etimologia o significado de apartar,
separar, colocar de lado. Com o seu radical grex/gregis, mais precisamente, apartar do
rebanho. Por uma conotação possível o termo exprime uma tática muito afim à visão de
mundo moderna, dentro de sua instrumentalização e apreensão do conhecimento e de suas
estratégias de desenvolvimento. O termo, assim como separar ou disjungir, guarda a
ambivalência de se remeter tanto ao que é posto para fora quanto ao que permanece dentro, ao
que se considera e inclui quanto ao que se desconsidera e exclui. Cria dicotomias. A simples
palavra apresenta-se como insigne ponto de partida na compreensão da crítica e do raciocínio
norteadores do estudo em tela.
Na clássica divisão de Descartes um res cogitans, ser que compartilha sua
racionalidade diretamente com o Cosmos, é capaz de apreender a operacionalidade e a
natureza dos demais seres, todos res extensa102. Descartes entendia que o conhecimento
estava mais próximo das vivências e experiências do que das obras edificadas pelos velhos
sábios ou instituições. Estabelecia uma base empírica forte em seu método, em que: 1. só
poderia ser aceito como verdadeiro aquilo que por suas evidências não poderia ser posto em
dúvida; 2. dividir/fragmentar para resolver o objeto em análise tanto quanto possível; 3.
organizar o conhecimento em gradações, dos objetos mais simples aos mais complexos,
supondo sempre relações de causa e efeito; e 4. estabelecer enumerações e divisões para não
omitir nada. Seu método, ainda hoje, influencia qualquer tipo de ciência, mesmo as que se
intitulam não-modernas. Entretanto, na sua concepção – consagrada na célebre frase cogito
ergo sum – a existência se dá independente da matéria, pois a alma se distingue por completo
do corpo. A razão (espelho da perfeição de Deus), distingue o humano, sensível, subjetivo,
dos demais seres, mecânicos, autômatos, objetivos103.
A inteligibilidade do mundo pela civilização ocidental moderna se consagrou por
instrumentos metodológicos que buscam fragmentar, separar, reduzir, simplificar e ordenar a
                                                                                                           
102
DESCARTES, R. As paixões da alma. In. Os Pensadores. Discurso do Método; Meditações; Objeções e
respostas; As paixões da alma; Cartas. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 214
- 294
103
DESCARTES, R. O método. In. Os Pensadores. Discurso do Método; Meditações; Objeções e respostas; As
paixões da alma; Cartas. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 25 -71
  137  

realidade para possibilitar a sua compreensão104. Pensar um mundo objetivo e um sujeito


cognoscente, capaz de apreender essa objetividade e a partir de suas formulações refletir o
que é a realidade, matematizá-la, quantifica-la e reproduzi-la num laboratório, configura a
perspectiva pela qual a ferramenta de conhecimento humano mais sofisticada se instaurou e
cunhou uma visão particular de mundo. Do outro lado, o ser social, racional, imerso em seus
valores e subjetividades, é um ser político, cuja inteligibilidade só é possível dentro de suas
próprias referências, e apresenta-se por uma ordem ontológica completamente distinta do
resto do mundo. Esta “Grande Divisão” representa o mundo moderno: de um lado os
humanos do outro lado os não-humanos.
Essa dualidade, sujeito e objeto, sociedade e natureza – artifício epistemológico que
possibilitou ao humano ocidental grandes progressos – encontra na contemporaneidade fortes
objeções105. Aparta um mundo compreendido como necessariamente comum dentro do
próprio avanço do conhecimento, em dois mundos cuja comunicação tornou-se cerceada,
possível somente a partir desse próprio artifício. Os cientistas fazem a gestão da Natureza e os
políticos fazem a gestão da sociedade, para este “acordo” Latour utiliza o termo
“constituição”.106
Apesar da estruturação de um pensamento biunívoco permear todo o manto cultural do
ocidente (céu e inferno, bem e mal, corpo e alma), a modernidade imprime uma verdadeira
guinada na percepção da realidade e nas forças produtivas da sociedade, assim como
apresenta uma nova dinâmica do tempo. Afasta Deus da explicação dos fenômenos naturais e
dá ao ser racional a capacidade de compreender as “leis” que regem a natureza. Do outro lado,
afasta-o também (as instituições que o representam) da ordenação social e da estruturação do

                                                                                                           
104
MORIN, Edgar.  Ciência com Consciência: Edição revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre
e Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003
105
Latour aponta como marco da descrença nas promessas modernas, de emancipação humana e domínio da
natureza, o ano de 1989. De um lado o “fim” do socialismo com a queda do muro de Berlim: “Ao tentar acabar
com a exploração do homem pelo homem, o socialismo multiplicou-a indefinidamente. Estranha dialética esta
que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após ter ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em larga
escala. O recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome da qual a vanguarda do proletariado
reinava, volta a ser um povo; as elites com seus longos dentes, que pareciam ser desnecessárias, voltam com toda
força para retomar, nos bancos, nos comércios e nas fábricas, seu antigo trabalho de exploração.”; do outro lado,
as primeiras conferências sobre o estado global do planeta apontando o fim da possibilidade de conquista
ilimitada da natureza e a impossibilidade de crescimento eterno: “Ao tentar desviar a exploração do homem pelo
homem para uma exploração da natureza pelo homem, o capitalismo multiplicou indefinidamente as duas. O
recalcado retorna e retorna em dobro: as multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos milhões na
miséria; as naturezas que deveriam ser dominadas de forma absoluta, nos dominam de forma igualmente global,
ameaçando a todos. Estranha dialética esta que faz do escravo dominado o mestre e dono do homem e que
subitamente nos informa que inventamos os ecocídeos e ao mesmo tempo as fomes em larga escala”. LATOUR,
Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 13 - 14
106
Id, Ibid. p. 19. Vai utilizar o termo para trata a separação entre o mundo social e o mundo natural como algo
análogo à separação do executivo do judiciário, p. ex..
  138  

Estado, possibilitando aos homens regerem suas próprias leis, criarem seu “contrato social”.
Curiosamente, o Deus moderno suprimido pode ser evocado no caso de conflito entre a
sociedade e a natureza, como entidade transcendente, com duplo papel, ao mesmo tempo
impotente e juiz soberano. Ele está agora alocado no foro íntimo, na religião individual, sem
intervir nem na política e nem na ciência, mas garantindo a paz aos espíritos humanos.
Entretanto, a modernidade não se resume a alguns pensadores e suas filosofias, nem
tampouco aos vários outros pensadores, práticas e instituições que se somam no processo de
sua “construção”. Aqui não temos a pretensão de exaurir o que se pode entender por
modernidade e sua peculiar ordenação do mundo. Entretanto, nos é necessário entender um
pouco da “constituição” moderna, na percepção de Bruno Latour, para compreendermos uma
das bases metodológicas que mais influenciaram no trabalho. Conforme Latour, “nosso meio
de transporte é a noção de tradução ou rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais
histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne
destas histórias confusas”107.
Diferente do pensamento de Deuleze e Guattari, em que o labirinto rizomático se dá
sem a possibilidade de um fio de Ariadne, sem começo nem final, Latour, ao acompanhar as
redes sociotécnicas, possibilita arbitrar por recortes – p. ex., o surgimento de uma nova
tecnologia e suas conexões – para dizer, conforme suas palavras, da “própria matéria da
sociedade”, de uma “nova forma que se conecta ao mesmo tempo à natureza das coisas e ao
contexto social, sem contudo reduzir-se nem a uma coisa nem a outra”108. Agora os rizomas
ganham uma ontologia e atores.
Sua percepção de modernidade estende-se um pouco além das críticas convencionais.
Um pouco além de pensar a modernidade revolucionária em contraposição ao passado
arcaico, com uma temporalidade outra que suplanta o passado com a flecha do tempo e suas
mudanças irreversíveis; da emancipação humana à dominação da natureza, das promessas do
socialismo às do capitalismo, ao declínio estrondoso de ambos os sonhos, desembocando no
descrédito e desconstrutivismo pós-moderno. Latour apresenta uma compreensão atrelada à
uma antropologia da sociedade moderna, valendo-se como referência do método etnográfico,
em que se estuda “sem crises e sem crítica o tecido inteiriço das naturezas-culturas” em se
tratando de povos tradicionais (liga-se política, divindades, práticas alimentares,
conhecimentos, seres-vivos etc. na composição social). Por sua vez, a antropologia mantém-
se centrada na cultura, mantém a divisão, a assimetria, neste sentido precisa ser “repensada”.
                                                                                                           
107
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 9
108
Id. Ibid. p. 11
  139  

Para o autor, se é possível fazer uma antropologia da sociedade moderna, é preciso alterar a
definição de mundo moderno, assim como a prática da própria antropologia.
Um ponto de partida no seu pensamento desloca o olhar para compreender como o
tecido social moderno é formado por “seres híbridos”. Ou seja, a sociedade moderna mobiliza
e recruta uma diversidade de seres e forças de diversas ordens na sua constituição que não
podem ser pensadas nem mais como “naturais” e nem mais como “culturais” puramente. A
interação, dependência e utilização do que se compreende como natureza é ampliada
incomensuravelmente na sociedade moderna em que o trabalho de “purificação” – que vai
dividir o social do natural – não dá mais conta de fazê-lo, a partir da proliferação dos híbridos
(utilizar um objeto de alumínio nos liga às comunidades quilombolas, aos acionistas
multinacionais da mineradora, às decisões governamentais, às estratégias industriais, às
políticas de conservação, às copaibeiras, castanheiras, tartarugas-da-amazônia etc.) . O
paradoxo entendido por Latour é que, quanto mais os híbridos são proibidos na constituição
moderna, mais eles se inserem, mais eles estão presentes (e na realidade sempre estiveram
presentes compondo o social, por mais que negligenciados). Em sua hipótese a palavra
“moderno” designa dois conjuntos de práticas distintas cuja eficiência depende de mantê-las
separadas uma da outra:
O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, mistura entre
gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura.
O segundo cria por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente
distintas, a dos humanos de um lado, e a dos não humanos de outro.
[...] O primeiro, por exemplo, conectaria em uma cadeia contínua a
química da alta atmosfera, as estratégias científicas e industriais, as
preocupações dos chefes de Estado, as angústias dos ecologistas; o
segundo estabeleceria uma partição entre um mundo natural que
sempre esteve aqui, uma sociedade com interesses e questões
previsíveis e estáveis, e um discurso independente tanto da referência
quanto da sociedade.

O autor ampara sua hipótese na própria prática da ciência e da técnica – a matéria


intelectual e produtiva da modernidade – que avoca para si a legitimidade de representação do
mundo natural. Colocando em suspeição nossas crenças sobre “ciência” e nossas crenças
sobre “sociedade”, estudando a ciência em ação, busca-se romper as perspectivas (da
sociologia do conhecimento e da epistemologia) que mantém intactas a separação entre
conteúdo científico e contexto social. Seu “primeiro princípio de simetria”109 obriga a analisar

                                                                                                           
109
[...] Quando se toma a decisão de estudar um laboratório, colocando entre parênteses ao mesmo tempo nossas
crenças sobre a ciência e nossas crenças sobre a sociedade, só estamos prolongando o programa formulado por
David Bloor (1976, trad. franc.1982) [...] a ideia original de Bloor era encorajar os historiadores e sociólogos que
  140  

concomitantemente tanto o contexto social quanto o conteúdo científico, não distinguindo a


“ciência que prospera/sancionada” da “ciência refutada/proscrita”, uma vez que não haveria
diferença essencial entre verdade e erro. Na tradição moderna ideologia e ciências são
imiscíveis, uma representa a crença e a outra a verdade, o sujeito/contexto social e o
objeto/natureza revelado/manipulada. O princípio de simetria ao analisar a ciência em ação,
descrevendo-a tal qual um antropólogo descreveria uma sociedade primitiva, atentando-se
para como os fatos são construídos, o cotidiano dos cientistas, os seus contextos sociais, seus
múltiplos agenciamentos, “força a conservar apenas as causas” que poderiam servir tanto
para os vencedores quanto para os perdedores da ciência, explicando porque alguns ganham e
outros perdem. O interior do laboratório e o seu exterior estão conectados e se
retroalimentam.
A produção de uma “verdade científica”, a construção de fatos e máquinas, só é
possível através de um processo coletivo que mobiliza um grande número de aliados e
interesses, i. e., por meio da construção de uma grande rede de atores que a possibilita. A
suposta universalização da ciência nada mais é do que a dimensão e estabilidade da rede que a
sustenta, sem a qual ela não existe. Para transformar uma suposta proposição/enunciado (uma
descoberta cientifica qualquer p. ex.) em fato, em uma “caixa-preta”110 que ninguém mais
questiona como se chegou lá ou como de fato ela opera – só se acrescentam ou se retiram
coisas dela, só se atenta para o que entra e o que sai – é preciso um grande trabalho de
aliciamento (de investidores, políticas públicas, empresários, outros cientistas, governo,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
ainda hesitavam de passar de uma história e uma sociologia dos cientistas para uma história e uma sociologia das
ciências. Bloor chamava de “programa fraco” a ideia de que era suficiente cercar a “dimensão cognitiva” das
ciências com uns poucos “fatores sociais” para ter o direito de ser chamado de historiador e sociólogo. O
“programa forte” exigia, ao contrário, que se investisse na fortaleza, no núcleo, no santo dos santos, no conteúdo
– pouco importa qual seja a metáfora. Segundo ele, nem um estudo merecia levar o nome de sociologia ou
história das ciências se não levasse em conta tanto o contexto social quanto o conteúdo científico, e isso também
nas ciências teóricas como a matemática (Bloor, 1976).
[...] A doutrina de Bloor é límpida mesmo quando exige basicamente o abandono de toda filosofia da ciência: ou
as explicações sociais, econômicas são usadas para explicar porque um cientista enganou-se, e então elas não
tem valor, ou devem ser empregadas simetricamente, de modo a explicar porque esse cientista errou e aquele
outro acertou. Fazer sociologia para compreender por que os franceses acreditam na astrologia, mas não pra
compreender por que eles acreditam na astronomia, isso é assimétrico. Fazer sociologia para entender o medo
que os franceses tem do átomo, mas não faze-lo para a descoberta do átomo pelos físicos nucleares, isso é
assimétrico (Latour, 1985). Ou bem é possível fazer uma antropologia do verdadeiro, assim como do falso, do
científico, como do pré-científico, do central, como do periférico, do presente, como do passado, ou então é
absolutamente inútil dedicar-se à antropologia, que nunca passaria de um meio perverso de desprezar os
vencidos, dando a impressão de respeitá-los, como o mui ilustre O pensamento selvagem, de Levi-Strauss
(1962). LATUOR, Bruno. WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: A produção dos fatos científicos. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1997. pp. 22, 23.
110
A expressão Caixa-preta é utilizada na cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se
revela complexo demais. Em seu lugar é desenhado uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber
nada, senão o que nela entra e o que dela sai. LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e
engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000. p. 14
  141  

cidadãos etc.). Um simples artigo científico emprega diversas “mãos” em sua construção, não
importa se possui um único autor, apresentará aliados que agregam e reafirmam os
argumentos, é uma construção coletiva (basta ver suas referências e os
conhecimentos/descobertas que se somam). Se possuirmos maior adesão ao nosso “suposto
enunciado”, mais ele for citado, utilizado, incorporado e fortalecido em diversos contextos,
quanto mais ele suportar os ataques de seus adversários, refutações e tentativas de torna-lo
mero “artefato”, mais se consolidará, mais se tornará fato.
O destino de um projeto depende das alianças que ele permite e dos
interesses que mobiliza, por isso que nenhum critério, nenhum
algoritmo pode proporcionar um sucesso a priori. Ao invés de
decisões racionais, devemos falar da agregação de interesses que são
ou não capazes de produzir. Inovação é a arte do interesse para um
número crescente de aliados que fazem você mais forte111

O fato representa uma “estabilidade” e não a natureza em si. “[...] devemos abster-nos
de invocar a realidade exterior ou o caráter operacional que a ciência produz para explicar a
estabilização dos fatos, porque esta estabilidade e esta operacionalidade são consequência, e
não a causa da atividade científica”112. Seguindo o nosso exemplo, por sua vez, de um lado,
devemos considerar a necessária expansão de nosso suposto enunciado para que ele não se
estagne no tempo e no espaço (se transforme apenas em sonho/fantasia de um cientista), do
outro devemos considerar aqui um controle necessário para que ele não se altere
substancialmente, se desconfigure na medida que vai formando suas conexões. Nesse sentido
duas ações concomitantes são imprescindíveis: alistar as outras pessoas/interesses e tornar
previsíveis suas ações (controlar o comportamento delas). Para atingir esse sucesso é
necessário operar um processo de tradução ou translação de interesses:
Além de seu significado linguístico de tradução (transposição de uma
língua para outra), também tem um significado geométrico
(transposição de um lugar para outro). Transladar interesses significa,
ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e
canalizar as pessoas para direções diferentes. [...] Os resultados de tais
translações são um movimento lento de um lugar para outro. A
principal vantagem dessa mobilização lenta é que problemas de
                                                                                                           
111
Akrich, M., Callon, M. et Latour, B., 1988, A quoi tient le succès des innovations? 1 : L’art de
l’intéressement, Gérer et comprendre, Annales des Mines, 11, pp.4-17. 1988. p. 17. Disponível em:
http://halshs.archives-­‐ouvertes.fr/docs/00/08/17/41/PDF/SuccesInnovation.pdf, Acesso em 12/04/2013. No
original: Que le sort d'un projet dépende des alliances qu'il permet et des intérêts qu'il mobilise, explique
pourquoi aucun critère, aucun algorithme ne permettent d'assurer a priori le succès. Plutôt que de rationalité des
décisions, il faut parler de l'agrégation d'intérêts qu'elles sont ou non capables de produire. L'innovation c'est l'art
d'intéresser un nombre croissant d'alliés qui vous rendent de plus en plus fort.
112
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000 p. 203 - Foi devido a estabilização do “enunciado” que ele se tornou “fato” e não por ter se revelado fato
que se estabilizou.
  142  

âmbitos restritos (como o orçamento para a ciência ou o do modelo


monoporo) agora estão solidamente amarrados a problemas bem mais
amplos (a sobrevivência do país, o futuro dos carros), na verdade tão
bem amarrados que a ameaçar os primeiros equivale ameaçar os
segundos. Sutilmente urdida e cuidadosamente atirada, essa finíssima
rede pode ser muito útil para manter os grupos em suas malhas.113

As múltiplas estratégias de tradução/translação é que vão possibilitar às ciências e


tecnologias agregarem interesses de diversas ordens: investimentos, fomentos, equipamentos,
serem percebidas como indispensáveis ou como altamente lucrativas ou as duas coisas; vão
conseguir afastar as controvérsias até tornarem-se estáveis, a partir daí serem percebidas
como o “real” (descobertas científicas p. ex.), ou serem inseridas no mercado (tecnologias ou
máquinas p. ex.). Enfim, vão compor a sociedade moderna. Esse conceito de
tradução/translação é de suma importância na percepção metodológica do autor uma vez que
formam os pontos de conexão na rede.
O meio mais simples de transformar o conjunto justaposto de aliados
que atue com unicidade é atar as forças reunidas uma à outra, ou seja,
construir uma máquina. Máquina, como um nome indica, é, antes de
tudo, maquinação, estratagema, um tipo de esperteza em que as forças
usadas mantêm-se mutuamente sobre controle, de tal modo que
nenhuma delas possa escapar do grupo. Isso constitui uma máquina
diferente da ferramenta, que é um elemento isolado, seguro
diretamente pela mão de uma pessoa.114

Nesse sentido, quanto mais sofisticada/densa/ampla é a ciência ou a tecnologia em


questão, mais pessoas estão alinhadas no mesmo objetivo, trabalhando para ele. Ou seja, a
concepção de ciência comumente isenta/independente só serve para uma parcela ínfima da
produção científica de Universidades ou da ciência que não avança, pois a que progride estará
alinhada a múltiplos interesses, “bem amarrada” e direcionada. A razão/racionalidade está
atrelada a amplas negociações de uma política-ciência, que extraí daí o seu poder: parecer
apolítica e fiel representante da natureza. Irracionalidade vai ser aquilo que obstrui o avanço
da rede neste diapasão (sem nenhuma diferença essencial com a racionalidade). Sua expansão
estará sempre atrelada a centrais de poder, de cálculo, que estabelecem toda uma metrologia
(constantes oficiais – tempo, peso, medida, padrões biológicos etc.) e são capazes de
empreender prodigiosas mudanças de escala e construir seu próprio espaço-tempo.
Informações obtidas em locais longínquos, traduzidas em inscrições, formulários e
formalismos, podem ser acumuladas e combinadas nos centros, a partir daí transformados em
                                                                                                           
113
Id. Ibid. p. 194
114
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 212
  143  

estatísticas e equações, em gráficos, podendo ser utilizados em diversos contextos por


economistas, bancos, militares, governo etc. e dando posição privilegiada àqueles que
realizam os cálculos, pois tudo passa por suas mãos.
Quando alguém pergunta de que modo a geometria ou a matemática
“abstrata” pode influenciar a “realidade”, na realidade está admirando
a posição estratégica assumida por aqueles que trabalham nos centros
com formas de formas. Estes deveriam ser os mais fracos, por estarem
mais distantes (como muitas vezes se diz) de qualquer “aplicação”,
mas, ao contrário, podem ser os mais fortes pela mesma razão, já que
os centros acabam por controlar o espaço e o tempo: eles desenham
redes que se interligam nuns poucos pontos de passagem
obrigatória.115

Desta forma, uma grande expansão da rede exigirá sempre uma maior heterogeneidade
da mesma (empresas, políticos, militares, consumidores, matéria-prima, equipamentos,
máquinas etc.) e centros mais dominadores e mais formalistas para se “manterem coesos e
conservar seu império”. A tecnociência só funciona eficazmente fora do “laboratório”, i. e.,
suas previsões podem ser confirmadas, até aonde estende suas redes: “fatos e máquinas são
como trens, eletricidade, bytes ou legumes congelados: podem ir para qualquer lugar desde
que a trilha por eles percorrida não seja interrompida de modo algum”116, e não por inércia
própria, por dizer o que é o real/natureza.
Pensar a tecnociência é pensar um “empreendimento demiúrgico” que se estende na
medida que alicia interesses múltiplos e que ao mesmo tempo é rara e frágil, totalmente
dependente das conexões que estabelece, e que só pode ser percebida na presença do
que/quem se alia a ela (se não reproduziremos o mito de que ela representa a natureza). É a
mais forte Política que se vale da condição de apolítica/isenta/neutra, operando como
demiurgo trabalhador da construção do mundo material e intelectual. Se quisermos saber qual
o seu poder, basta-nos olhar para o lado e perceber os “objetos” que nos cercam e do que são
compostos (e que estão atrelados a nossa existência como tal); se quisermos saber sua
fragilidade, basta olhar para como tudo isso está concentrado em centros, ao mesmo tempo
diluído em pontos, em laços “vitais”. Daí vem o seu poder, ter as características de uma rede,
ter seus recursos concentrados em poucos locais (nos centros, laçadas e nós), interligados
como fios/malhas que realizam conexões que se estendem por toda parte.
É devido à burocracia que as redes avançam mais – pela administração, pelo
gerenciamento – estão em operações financeiras, subvenções, aparatos legais, envolvem
                                                                                                           
115
Id. Ibid. p. 399
116
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 407
  144  

diversas e distintas disciplinas, não apenas as consideradas “ciência e tecnologia”. “Acreditar


mais no formulário de enésima ordem do que no senso comum é próprio de astrônomos,
economistas, banqueiros, em suma de todos os que, nas centrais, tratam com fenômenos
ausentes por definição”117. Assim pode-se mobilizar recursos e pessoas para operarem em
longas distâncias, mantendo um controle/ordem, até onde a rede se estende. Em síntese,
pode-se dizer que a ciência é a última instância na extensa rede de poderes e micropoderes
que compõem a sociedade ocidental, dando-lhe forma e substância.
O sistema econômico, por exemplo, não pode ser usado sem
problemas para explicar a ciência porque ele próprio é o resultado
extremamente controverso de outra ciência social: a economia. Como
vimos antes, ele é extraído de centenas de instituições de estatísticas,
questionários, pesquisas e levantamentos, sendo tratado em centrais de
cálculo. Alguma coisa como o Produto Nacional Bruto é uma
exposição visual de enésima ordem que, na verdade, pode ser
combinado com outros formulários, mas que não está fora da frágil e
minúscula rede construída pelos economistas do que as estrelas, os
elétrons ou as placas tectônicas.118

Para chegar aos seus preceitos Latour acompanha os cientistas nas produções de seus
“fatos”, no interior do laboratório, no cotidiano, nas relações em que um chefe de pesquisa
estabelece com empresas, políticos e outros cientistas para conseguir recursos, equipamentos,
instrumentos, status etc. Foca na relação e no trabalho da equipe técnica e de pesquisadores de
segundo escalão que não aparecem com seus nomes nos feitos, foca nos instrumentos
utilizados, no material manipulado, nas bactérias no meio de cultura etc. Chega a conclusão
de que a ciência é uma construção sociológica. Ela não se caracteriza pela objetividade,
racionalidade ou pela veracidade de suas descobertas119 e sim pela rede que compõe. Mas,
conforme dito, a sociedade também está entre parênteses (em suspeição), assim como a ideia
de natureza.

                                                                                                           
117
id. Ibid. p. 417
118
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 417  
119
É importante frisar que Latour não está questionando a eficiência e veracidade das descobertas científicas. O
autor diria: se quer testar se a gravidade de Newton é uma reles “construção social” se jogue do décimo quinto
andar de um prédio. A questão é que a ideia de “construção social” e mesmo do “social” é diferente do uso
habitual das ciências sociais. O fato de ser socialmente construído não quer dizer que é um artifício/subjetivo em
contraposição ao que é natural/objetivo. Como Thatcher, Latour vai dizer que “não existe essa tal de sociedade”,
mas por razões completamente diferentes, por entender que sociedade diz respeito a “associação”, mas estas
associações não se limitam à humanos, longe disso, são heterogêneas. Ao contrário dos sociólogos da sociedade
(em contraposição aos sociólogos das associações) a sociedade não pode ser explicada por si mesma, auto-
referenciada, como na tradição positivista. E isso serve da mesma forma e pelas mesmas razões para as ciências
da natureza e para epistemologia.
  145  

O primeiro princípio de simetria não mais divide a ideologia da ciência, uma vez que
coloca a “natureza entre parênteses”, o peso das explicações agora é sustentado no polo
sociedade (construtivista para a natureza, realista para a sociedade). Por sua vez, esse
princípio mantém uma assimetria. Se as práticas modernas revelam que natureza e sociedade
são imanentes, a partir do trabalho de “mediação/tradução” a tecnociência transforma os
elementos da “natureza” em seres híbridos de um lado, do outro o trabalho de “purificação”,
faz sociedade e natureza transcendentes, separando os humanos dos não-humanos. Ou seja,
após essa clivagem o que estava unido se separa em sujeitos e objetos, deduz-se, sem muita
dificuldade, que a ideia de sociedade também é uma construção. Se formos construtivistas
para um devemos sê-lo para o outro, se formos realistas para um devemos sê-lo para o outro
também. Neste sentido é necessário um segundo princípio de simetria: o princípio de simetria
generalizada.
Quando se diz que “a ciência é uma construção sociológica”, não se refere a sociedade
dos sociólogos (que pode ser explicada por si mesma), mas a uma sócio-lógica, que é
construída por associações heterogêneas que envolvem tanto humanos quanto não-humanos.
A principal dificuldade ao se mapear o sistema de associações
heterogêneas está em não fazer nenhuma suposição adicional sobre
sua realidade. [...] Uma metáfora ajudaria a dar ao observador
liberdade suficiente para mapear as associações sem distorcê-las
classificando-as em “boas” ou “más”: a sócio-lógica é muito
semelhante aos mapas rodoviários; todos os caminhos vão a algum
lugar, sejam eles trilhas estradas vicinais, rodovias ou autopistas, mas
nem todos vão para o mesmo lugar, suportam o mesmo tráfego,
custam o mesmo preço de abertura e manutenção. Dizer que uma
afirmação é “absurda” ou um conhecimento é “acurado” não tem mais
sentido do que chamar de “ilógica” uma trilha de contrabandistas e
“lógica” uma autopista. As únicas coisas que queremos saber sobre
essas vias sócio-lógicas é onde elas levam, quantas pessoas as
percorrem com que tipo de veículo, e que facilidades oferecem para a
viagem; e não se estão certas ou erradas.120

O princípio de simetria generalizada é uma “posição” que permite olhar tanto para o
trabalho de mediação/tradução quanto para o de purificação simultaneamente, olhar ao
mesmo tempo como se dá a atribuição de propriedades não-humanas e de propriedades
humanas aos seres existentes. Esse ponto mediano possibilita explicar natureza e sociedade
conjuntamente, partindo dos quase-sujeitos e dos quase-objetos de Michel Serres (híbridos de
natureza e cultura). Essa é a grande ruptura com a visão moderna uma vez que essa

                                                                                                           
120
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 336
  146  

constituição que divide humanos e não-humanos (sociedade e natureza) nunca existiu de fato,
a proliferação dos híbridos (embriões congelados, aquecimento global, organismos
geneticamente modificados, áreas protegidas etc.) revelou isso, mas os híbridos sempre
existiram (em todas as “culturas”) e nunca foram assumidos enquanto tal, por isso “jamais
fomos modernos”.
O grande questionamento que ampara as alegações de Latour partem da própria
antropologia, impedida de estudar o ocidente enquanto uma cultura como as demais. Por que
o Ocidente e somente ele não é apenas uma cultura como as demais? Essa percepção é o que
deve ser rompido na perspectiva do autor. A resposta se liga à própria Grande Divisão entre
humanos e não-humanos. Enquanto o ocidente faz uma distinção plena entre natureza e
cultura, a natureza é externa à sociedade e revelada/mobilizada pela ciência, nas outras
sociedades tem-se apenas representações simbólicas da natureza, projeções de categorias
sociais sobre a mesma.
A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão
exterior: apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza
e a cultura, entre a ciência e a sociedade, enquanto todos os outros
sejam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem
separar de fato aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é
signo do que é coisa, o que vem da natureza como ela realmente é
daquilo que suas culturas requerem. Não importa o que eles fizerem,
por mais adaptados, regrados e funcionais que possam ser,
permanecerão eternamente cegos por esta confusão, prisioneiros tanto
do social quanto da linguagem. Não importa o que nós façamos, por
mais criminosos e imperialistas que sejamos, escapamos da prisão do
social e da linguagem e temos acesso às próprias coisas através de
uma porta de saída providencial, a do conhecimento científico. A
partição anterior dos não-humanos define uma segunda partição, desta
vez externa, através da qual os modernos são separados dos pré-
modernos. Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as
coisas são quase coextensivos. Na nossa sociedade ninguém deve
poder misturar as preocupações sociais e o acesso às coisas em si.121

Para solucionar o problema, suspendendo toda e qualquer afirmação que distinguiria


os “Ocidentais” dos “Outros”, Latour tem uma proposta ousada: declarar que não existem
culturas, mas naturezas-culturas. O próprio termo cultura é um artifício para conceber algo
exclusivamente humano, um artefato criado pelo afastamento da natureza. Perceber a
imanência entre ambas (cultura e natureza) é o único parâmetro possível para comparações –
não existe nem cultura universal ou relativa, nem natureza universal, apenas naturezas-
culturas. Com isso três posições tradicionais da antropologia são substituídas a um só tempo:
                                                                                                           
121
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 99
  147  

I. Relativismo absoluto – culturas sem hierarquia e sem contato, todas incomensuráveis e com
a natureza fora do jogo, totalmente à parte; II. Relativismo Cultural – A natureza está
presente, mas do lado de fora das culturas, sendo que todas possuem um ponto de vista mais
ou menos preciso sobre essa; III. Universalismo particular – uma das culturas (a ocidental),
possui um acesso privilegiado à natureza que a separa das outras.
Na percepção da antropologia simétrica, todos os coletivos (termo utilizado para se
diferenciar da sociedade dos sociólogos – homens-entre-si – e dos epistemólogos – coisas em
si) constituem naturezas e culturas, o que as distingue é a dimensão da mobilização da
natureza na constituição. Ou seja, o tamanho dessa mobilização, quantos elementos exteriores
passam a compor o interior, quais pontos serão atados/interligados. O que vai compor o
“social” e o que vai ser “externo” a ele.
A solução surge ao mesmo tempo em que o artefato das culturas se
dissolve. Todas as naturezas culturas são similares por construírem ao
mesmo tempo os seres humanos, divinos e não humanos. Nenhuma
delas vive num mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente
impostos a uma natureza exterior que apenas nós conhecemos.
Nenhuma delas e sobretudo não a nossa, vive em um mundo de
coisas. Todas distribuem aquilo que receberá uma carga de símbolos e
aquilo que não receberá (Claiverie, 1990). Se existe uma coisa que
todos fazemos da mesma forma é construir ao mesmo tempo nossos
coletivos humanos e não-humanos que os cercam. Alguns mobilizam
para construir seus coletivos ancestrais, leões, estrelas fixas e o sangue
coagulado dos sacrifícios; para construir os nossos, nós mobilizamos a
genética, a zoologia, a cosmologia e a hematologia.122

Nessa perspectiva aporta-se uma base comum para todas as naturezas-culturas – um


ponto de partida que “calibra o zero da balança” – para que a antropologia simétrica possa
gravar também as diferenças e entender a dominação de uns coletivos sobre os outros. No
primeiro momento, “o trem bala, o acelerador de partículas e uma rede de satélites” ganham o
mesmo peso do que “uma fogueira de gravetos, o espírito dos ancestrais e o arco e flecha”. Os
quase-objetos vão tomando formas de natureza e formas de sociedade ao traçarem suas
trajetórias. No final da medição os primeiros vão traçar coletivos completamente distintos do
segundo. Mas esta distinção esta, sobretudo, no tamanho e nas formas de mobilização dos
não-humanos que vão compor o coletivo. Não estão na natureza e nem na cultura, pois não
existem separadamente. As ciências não possuem suas qualidades primeiras por serem a
verdade revelada da natureza, mas porque tornam mais íntima a relação dos humanos e não-

                                                                                                           
122
Id. Ibid. p. 104
  148  

humanos na composição do coletivo. Multiplica sobremaneira o recrutamento de seres não-


humanos na composição do coletivo e assim o amplia absurdamente.

3.2 Descrever, escrever, descrever, escrever: a perspectiva metodológica da Teoria Ator-


Rede

Latour deslocou o olhar da antropologia para os “quase-objetos e quase sujeitos”, i. e.,


o que vai compor cada coletivo e será simbolizado/valorado como interior/exterior a ele. A
antropologia “perde as culturas mas ganha as naturezas”, o que amplia consideravelmente o
seu foco de ação e cria um campo ilimitado de estudo. Contudo, o deslocamento não se
restringe à uma mudança de “posição no olhar”, mas à elaboração de um método
substancialmente empírico de análise que ganha o status de teoria: a Actor-network Theory
(ANT).
A Teoria Ator-Rede – TAR (na tradução usual) parte de uma ideia de sociedade,
conforme mencionado, que não designa “um conjunto de humanos e suas relações que os
amalgamam”, conotação usual da sociologia enquanto ciência que estuda o social. Para a
TAR a palavra social designa “um rastro de associações heterogêneas” que, por conseguinte,
tem como sociologia o rastreamento dessas associações, das conexões, das coisas diferentes
que se ligam, transformam e deixam traços. A apropriação do termo, segundo Latour, é
possível porque mantém a mesma etimologia da palavra a partir da raiz latina socius –
“alguém seguindo alguém”, “um associado”. O social, então, não é um domínio especial ou
específico, ele designa um movimento, um processo de constante re-associação e
remontagem. O termo Teoria Ator-rede, conforme o próprio Latour, “é um nome tão estranho,
tão confuso, tão sem sentido que merece ser mantido” por ter sido assim popularizado. O
autor, segundo o próprio, proporia termos mais sofisticados como: “ontologia actante-
rizoma”, “sociologia da tradução” ou “sociologia da inovação”123.
A TAR, longe de ser um empreendimento monocrático, é fruto de uma associação de
engenheiros, antropólogos, sociólogos e filósofos franceses e ingleses. Seus principais
representantes são Bruno Latour, Michel callon e John Law. Hoje, podemos dizer, que é uma
Escola. Praticar a metodologia da TAR, conforme Latour (em sua visão pessoal), requer
algumas observações: I. o papel concedido aos não-humanos – eles não podem ser simples
projeções simbólicas, devem ser efetivamente considerados como atores, o agenciamento
                                                                                                           
123
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005.
  149  

deve ser mais do que uma “causalidade natural” também, deve-se identificar efetivamente um
papel ativo da associação do não-humano em questão; II. A direção que a explicação irá
tomar – o social não pode ser mantido “estável” quando da descrição de uma associação
(continuará sendo apenas social pelo social), nenhuma “força social oculta” deve direcionar a
explicação ou ser mantida nela (tudo deve poder ser demonstrado); III. Qual o objetivo do
estudo: se é, de um lado, dispersar/desconstruir o social ou, de outro, remonta-lo, buscar as
associações – a TAR não deve ser concebida como o desconstrutivismo pós-moderno e nem
como uma simples crítica das “Grandes Narrativas” – eurocêntricas ou hegemônicas – seu
foco é “verificar quais são as novas instituições, procedimentos e conceitos capazes de coletar
e reconectar o social”124.
O que a TAR busca, conforme dito, é modificar todo o repertório da crítica
abandonando simultaneamente o uso da natureza e o uso da sociedade. Sair do tríplice
repertório que só opera em separado: naturalização, socialização e desconstrução. A
sociologia do social busca – em oposição a sociologia das associações da TAR ou sua
“associologia” – por trás dos fenômenos sociais, as “forças sociais” que os revelam
(fetichismo, mercado, estrutura, simbolismo etc.), que, por sua vez, são forças
“transcendentais” no sentido de não possuírem uma conexão material com o fenômeno
descrito. A proposta da TAR seria exatamente eliminar esse “vento de éter” e, desvelando as
múltiplas e heterogêneas conexões que perfazem um fenômeno social, dar-lhe materialidade e
empiria tão rigorosa quanto qualquer ciência natural e seus laboratórios. Parte de uma recusa
peremptória de se construir o objeto como um sistema invisível de relações que
sobredeterminam e explicam a ação. Conforme Latour:  
Se eles [os sociólogos convencionais] literalmente não substituem
algum fenômeno por uma força social, o que as explicações sociais
querem dizer quando dizem que há alguma força "por trás das
aparências ilusórias", que constitui a 'coisa real', de que deuses, artes,
direito, mercados, psicologia e crenças são "realmente" feitas? O que é
uma entidade que desempenha o papel principal sem fazer nada? Que
tipo de ausência/presença é essa? Para mim, isso parece ainda mais
misterioso do que o dogma da Santíssima Trindade, e eu não fico
tranquilo enquanto é esse o mistério que é suposto para explicar toda a
religião, direito, arte, política, economia, impérios, ou simplesmente
tudo, incluindo a Santíssima Trindade! 125
                                                                                                           
124
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 11
125
Id. Ibid. p. 103. No original:  If they don’t literally replace some phenomenon by some social force, what do
social explainers mean when they say that there is some force ‘behind the illusory appearances’ that constitutes
the ‘real stuff’ out of which gods, arts, law, markets, psychology, and beliefs are ‘really’ made? What is an entity
that plays the main part without doing anything? What sort of absence/presence is this? To me, this looks even
  150  

Sob este preceito é o social que deve ser explicado e não dar uma explicação prévia
por estar “atrás”, há nítidas inversões de causalidade. O que se busca são “traduções” entre
mediadores que podem gerar associações rastreáveis. O Termo tradução ganha peculiar
especificidade dentro da técnica como aquilo que induz aos mediadores a coexistência.
Por sua vez a noção de “rede” não se assemelha a ideia de uma superfície de
interconexões estáveis que simplesmente fluem informações – algo como em cibernética ou a
World Wide Web. A rede se define pelos seus agenciamentos internos e não pelos seus limites
externos. Assim como a noção de rizoma de Deleuze e Guattari, as redes são como linhas que
formam agenciamentos em todos os lados e direções. São abertas e operam em uma
multiplicidade, com circulações, fluxos e conexões que transformam, criam mudanças e
formam nós (a parte que se constitui/cristaliza). A rede não é um objeto a ser descrito neste
sentido, ela não está “parada”, mas no movimento que é dado pelos atores, que estão sempre
agindo, deixando traços, “construindo o mundo sócio-lógico”.
Ator-rede define a co-existência de ambos em uma circulação de mútua construção e
simultaneidade. Dois lados de uma moeda, micro e macro, global e local. Entretanto a rede
não se reduz a um ator, pois perfaz um conjunto heterogêneo de vários atores, animados e
inanimados, agenciados, mas que pode se desintegrar, mudar os componentes, as alianças, se
redefinir.
O ator é um “alvo em movimento”, pode ser representado por um vasto conjunto de
entidades, não apenas humanos, mas animais, máquinas, objetos etc. Nesse sentido, por
comportar também os não-humanos, recebe também o nome de actante. Qualquer coisa que
está produzindo efeito no mundo e pode ser “lido” pelos traços que deixa, que se define pelo
que faz, pelo seu desempenho, é um actante. Atua em razão de muitos outros e representa a
fonte de incerteza sobre a origem da ação. A ação é sentida como um nó, um laço, “um
conglomerado de vários conjuntos de agenciamentos a serem lentamente desembaraçados”.
O envolvimento dos não-humanos não significa uma afirmação vazia de que os
objetos fazem as coisas acontecerem no lugar dos humanos. Mas uma forma de explorar tudo
que participa da ação e que o analista deve estar preparado para olhar, pois é a única forma
concreta de explicar a durabilidade e a extensão das interações sociais.
Se sociólogos tivessem o privilégio de observar com mais cuidado os
babuínos e reparar sua "estrutura social" constantemente em
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
more mysterious than the dogma of the Holy Trinity, and I am not reassured when it is this mystery that is
supposed to explain the whole of religion, law, art, politics, economics, empires, or just plain everything—
including the Holy Trinity!
  151  

decomposição, teriam testemunhado o custo incrível que foi pago ao


trabalho de manter, por exemplo, a dominância social, sem coisa
alguma, apenas com as habilidades sociais. Eles teriam documentado
empiricamente o preço a pagar para a tautologia de laços sociais feitas
de laços sociais. É o poder exercido através de entidades que não
dormem e associações que não quebram, que permitem o poder para
durar mais tempo e se expandir ainda mais e, para alcançar tal
façanha, muitos mais materiais do que pactos sociais devem ser
concebidos. Isso não quer dizer que a sociologia do social é inútil, só
que poderia ser excelente para estudar babuínos, mas não para estudar
os seres humanos.126

A proposta metodológica de TAR é uma tentativa de descrição empírica da


composição da sociedade nas múltiplas associações que possibilitam sua existência,
durabilidade e expansão. Não permite juízo de valores e nem uma estrutura prévia, não pode
ser utilizada como moldura para encaixar a realidade e promover uma explicação. Não tem
posição moral, sentido político ou qualquer outra orientação normativa. Requer acompanhar
tudo e qualquer coisa que deixa traço, que molda o mundo em observação, e de forma
minuciosa para se apreender o que foi tecido na sua atuação. O que transforma a sociedade e
como transforma, materialmente, sem pano de fundo e limitado ao que pode ser efetivamente
demonstrado/descrito. Guardada as devidas proporções, é como o mapa de Deleuze e
Guattari, em que se deve traçar as linhas, fazê-lo e refazê-lo, na medida em que novos
agenciamentos vão surgindo, mas somado de uma perspectiva própria de metafísica, de uma
ontologia e de atores. O resultado de sua aplicação é um “local” para se testar, experimentar,
reformular, recriar e transformar, sempre que necessário.
As redes são como mediadores híbridos que se constituem ao mesmo tempo que
constituem o mundo, o que performa e transforma. A TAR não busca propriamente as inter-
relações que já estão “prontas”, estáveis, onde as ligações já estão constituídas, mas o
conteúdo relacional, em processo, o que está deixando traços. É isso que deve ser mobilizado,
detectado, descrito. Seres humanos, não-humanos, sociais e técnicos (processos, leis,
tartarugas, bauxita etc. o que estiver se conectando à rede) uma vez identificado seus traços,
devem ter seus agenciamentos traduzidos/transladados. Deve-se dar voz as “pessoas” e as
                                                                                                           
126
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 70. No original:   If sociologists had the privilege to watch more carefully baboons repairing their
constantly decaying ‘social structure’, they would have witnessed what incredible cost has been paid when the
job is to maintain, for instance, social dominance with no thing at all, just social skills. They would have
documented empirically the price to pay for the tautology of social ties made out of social ties.79 It’s the power
exerted through entities that don’t sleep and associations that don’t break down that allow power to last longer
and expand further— and, to achieve such a feat, many more materials than social compacts have to be devised.
This does not mean that the sociology of the social is useless, only that it might be excellent for studying
baboons but not for studying humans.
  152  

“coisas”, mesmo que elas sejam mudas, há sempre quem as represente (Pasteur representa as
bactérias, Bourdieu os dominados, Einstein a relatividade, um líder sindical os sindicalizados,
um entomólogo os insetos etc.). Mesmo os que falam (humanos), quando não conseguem
falar todos ao mesmo tempo, elegem seus representantes. Em todos os casos os porta-vozes e
os representantes podem trair: um cientista pode estar completamente equivocado ao
pronunciar as qualidades de seu objeto de pesquisa, um político pode estar representando seus
próprios interesses ou interesses de outros que não os que o elegeram, assim por diante.
Assim, a rede é uma expressão para verificar a quantidade de energia,
movimento e especificidade que os nossos próprios relatórios são
capazes de captar. Rede é um conceito, não é uma coisa lá fora. É uma
ferramenta para ajudar a descrever algo, não o que está sendo descrito.
Ele tem a mesma relação com o assunto em questão como uma grade
de perspectiva tem para uma pintura em perspectiva, único ponto
tradicional: desenhadas pela primeira vez, as linhas podem permitir
projetar um objeto tridimensional em um pedaço de linho, mas elas
não são o que vai ser pintado, só o que possibilita ao pintor dar a
impressão de profundidade antes de serem apagadas. Da mesma
maneira, uma rede não é o que é representado no texto, mas o que
prepara o texto para levar a retransmissão de agentes como
mediadores. A consequência é que você pode dar conta com o ator-
rede de temas que em nada têm a forma de uma rede: de uma sinfonia,
uma peça de legislação, uma pedra da lua, uma gravura. Por outro
lado, você pode muito bem escrever sobre as redes técnicas: televisão,
e-mails, satélites, força de vendas - sem qualquer ponto explicado pela
teoria ator-rede.127.
A TAR é uma técnica, um instrumento de descrição da sócio-realidade que ressuscita
a heterogeneidade do socius, perdida com a purificação moderna e convenientemente
percebida somente em sua dimensão humana. As consequências de sua aplicação é a
descrição sistemática, minuciosa, fria e apolítica, na identificação ponto-a-ponto, dos
agenciamentos que formam o coletivo em expansão. Apenas o que é fisicamente rastreável e
empiricamente demonstrável pode ser levado em consideração. Mas vai além, ela vai dar voz
aos objetos mudos, aos humanos, animais, vegetais e todos os outros seres que vão compor o

                                                                                                           
127
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 131. No original:  So, network is an expression to check how much energy, movement, and specificity
our own reports are able to capture. Network is a concept, not a thing out there. It is a tool to help describe
something, not what is being described. It has the same relationship with the topic at hand as a perspective grid
to a traditional single point perspective painting: drawn first, the lines might allow one to project a three-
dimensional object onto a flat piece of linen; but they are not what is to be painted, only what has allowed the
painter to give the impression of depth before they are erased. In the same way, a network is not what is
represented in the text, but what readies the text to take the relay of actors as mediators. The consequence is that
you can provide an actor-network account of topics which have in no way the shape of a network—a symphony,
a piece of legislation, a rock from the moon, an engraving. Conversely, you may well write about technical net-
works—television, e-mails, satellites, salesforce—without at any point providing an actor-network account.
  153  

coletivo. Nesse sentido guarda uma peculiar filosofia política: a democracia das coisas.
Perspectiva esta, que muito tem a ver com o que compreendemos como questão ambiental.

3.3 A filosofia Política na Antropologia Simétrica


3.3.1 As concepções convencionais do ecologismo
Eugene P. Odum, um dos principais teóricos das ciências ecológicas, vislumbrava na
ecologia uma ponte de ligação entre ciências humanas e naturais, uma forma de integração de
saberes que a História moderna estancou e cerceou o diálogo. Sob a perspectiva de uma
ciência integrativa que estuda o “ambiente”, incluindo todos os organismos nele existentes e
os processos funcionais que o torna habitável, estabeleceu-se uma “denúncia”, por parte desse
saber, na forma como a civilização ocidental industrializada alterava abrupta e
irreversivelmente os ecossistemas na harmonia de seus ciclos, comprometendo sua própria
estabilidade e a de inúmeros outros seres128. A percepção material do comprometimento, do
esgotamento, das perturbações oriundas desse modelo de apropriação dos elementos
“naturais”, subsidiada pelo crescente conhecimento científico integrativo, fomentou, entre
outras coisas, o surgimento de movimentos sociais que, da sua maneira, contribuíram para que
tais assuntos fossem pautados nas agendas políticas dos Estados, reivindicando significativas
e variadas mudanças em diversos setores sociais. A relação entre humanos, sociedade e
natureza ganhava novos contornos epistemológicos com a ascensão das ciências ecológicas e,
também, novos contornos políticos, com a emergência dos movimentos ambientalistas,
sobretudo a partir da segunda metade do século passado – assim compreendido.
Essas questões, partindo da crítica do modelo de desenvolvimento que se tornou
hegemônico, da sociedade de consumo, aportam a necessidade de uma nova consciência que
reclamaria a urgência da percepção de uma interdependência sociedade-natureza e uma
necessária extensão da ética para valores além dos humanos, mas que englobassem o
ambiente e os elementos que o compõe. O cômputo das externalidades (aquilo que não se
inclui no sistema de produção social), não se limitaria à percepção de limitação e finitude de
recursos/escassez/dotação de valor econômico/pagamento pelos serviços ambientais, mas
(também) reconhecimento de identidade/causalidade/ integração.
Tarefa assaz complexa de se vencer, como visto, a dicotomia sociedade-natureza e a
inserção de uma valoração intrínseca ao que não é humano esbarram, obviamente, na própria
percepção de si do humano, de sua concepção de independência, autodeterminação e domínio
                                                                                                           
128
ODUM, Eugene P.. Ecologia. Trad. Christopher J. Tribe. Rio de Janeiro: Guanabara. 1988.
  154  

sobre o mundo, compreendido como natural, regido pela estrita causalidade, e apartado do
social, humanamente construído.
A tradição cultural do ocidente sempre compreendeu o humano em uma posição
diferenciada em relação a tudo mais que existe. Da herança hebraica à greco-romana, da
formação da moral judaico-cristã, perpassando a baixa e alta idade-média, ao renascimento, a
disputa hierárquica de preeminência se alternou entre uma entidade criadora superior e o
próprio humano, relegando tudo mais a um plano inferior e segregado. Ainda que
evocássemos a dualidade da apreensão e compreensão do mundo que flutuou entre o exterior
e o interior, entre o que se apresenta externamente no mundo e o que se compreende
internamente no humano, entre a natureza suja e imperfeita à natureza magnífica, reveladora
de Deus, toda matéria é percebida pelo humano para servi-lo e controlada por autoridades
inquestionáveis/irresistíveis. No florescer da modernidade as dicotomias ganham contornos
mais nítidos: racional-irracional, mente-corpo, matéria-energia, sociedade-natureza, emoção-
razão, sujeito-objeto. Com o despertar do novo guia do saber humano revelador das novas
verdades, a Ciência moderna, a capacidade de modificar o ambiente aumentou
exponencialmente, assim como a capacidade de domesticar o mundo material - e subjugar
quase tudo que se pode manipular, reduzir, experimentar, classificar, ordenar, sistematizar etc.
- ao interesse humano (ao menos de certo número de humanos) se consolida. Conforme
empreendido anteriormente, “jamais fomos modernos”, é difícil dimensionar a ilusão, mas
importante reconhecer seus feitos formidáveis.
Essa visão de controle sobre o natural e o mesmo natural dissociado do social,
também, de certa forma, compõe o debate dos ambientalistas (amplamente considerados) em
suas reivindicações – uma herança explícita. Quando acusam o modelo de sociedade (sistema
social) de ser predatório, desarmônico com o ambiente/natureza, ou recriam um humano
desintegrado da “natureza”, não-natural, patológico, cancerígeno, viral, ou que, a partir de seu
desenvolvimento econômico, sua superpopulação, ameaça a vida do planeta, compromete-se a
estabilidade dos ecossistemas, fortalece-se a imagem de uma natureza idílica, enquanto, no
plano fático de uma ecologia política a ser construída, percebe-se uma conotação muito
restrita dessa natureza, pois não inclui o humano como sua manifestação, ao mesmo tempo
reafirmando sê-lo algo que foi de alguma forma separado, que precisa se reencontrar e que
detém as ferramentas para tanto. Parte-se de uma estrutura de valoração que define certo-
errado, bem-mal, racional-irracional como coisas alheias a uma concepção mais ampla e
complexa de natureza. Uma questão se perfaz: como integrar sociedade e natureza partindo de
  155  

sua dissociação? Ou melhor, seria necessário uma “humanização” da natureza para que a
mesma pudesse ser incorporada/valorada na vida política? Ou uma naturalização do humano?
Não obstante as múltiplas conotações de natureza e as múltiplas soluções empreitadas
para dirimir a ideia de crise ambiental, a proposta “ousada” por Bruno Latour, em sua obra
“Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia”, estabelece um campo conceitual
diferenciado para a ecologia política ao escancarar suas limitações, e, ao mesmo tempo,
propõe-se uma nova constituição político-social, sob bases de sua epistemologia reformadora
que integraria sociedade e natureza, humanos e não-humanos, em um mesmo patamar político
que dissolve tanto a ideia de natureza quanto a de sociedade. Conforme dito, não existe
natureza e nem cultura, mas naturezas-culturas.

3.3.2 O papel da natureza no discurso público


Partindo de uma concepção de natureza como o “termo que permite recapitular em
uma só série ordenada a hierarquia dos seres” ou o que pode qualificar “um ser por sua
pertença a certo domínio da realidade” classificando-o “em uma hierarquia unificada, que vai
do maior ou menor dos seres”, Bruno Latour, expondo esse conceito não como o seu próprio,
mas como o usual/convencional, advoga que a natureza não pode ser compreendida
dissociada de uma conotação política, da mesma forma em que a política está sempre
associada a uma concepção de natureza. Ao contrário do que se propaga, Latour questiona a
afirmação de que a natureza só passa a ser devidamente considerada na vida política a partir
dos movimentos ecológicos, afirmando, o autor, que as preocupações com a natureza e com
recursos naturais nunca estiveram dissociadas da vida política desde tempos mais remotos.
Lançando mão da alegoria platônica da Caverna, Latour129 cria, como ferramenta,
“certa ideia de Ciência130 e certa ideia de mundo social” para explicar a concepção ocidental
de vida pública de acordo com sua proposta de filosofia política. O mito da Caverna de Platão
(grosso modo) retrata, por uma linguagem metafórica, que as sociedades humanas em sua
percepção da realidade, funcionariam como pessoas que vivem presas em grilhões em uma
caverna. Essas pessoas (a sociedade) detêm uma “falsa compreensão” do mundo, pautada em
crenças e superstições (senso comum), devido ao único contato com a realidade que possuem

                                                                                                           
129
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.
130
Latour estabelece uma distinção entre ciências (no plural e em minúsculo) da Ciência (singular e em
maiúsculo) em que, a primeira se aproxima dos múltiplos saberes humanamente construídos e temporalmente
alterados; a segunda é a “politização das ciências pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via política
ordinária, fazendo pesar sobre ela a ameaça de uma natureza indiscutível”, algo como uma poderosa instituição
que dita as verdades do mundo. p.26
  156  

serem as sombras dos objetos que se projetam sobre as paredes dentro da caverna. Somente
aquele que consegue transcender para um conhecimento racional, organizado e sistemático,
ou seja, se libertar da caverna, atinge a real verdade do mundo (a essência/natureza das
coisas) – esse representaria o papel do filósofo, que se distingue dos demais.
Para explicar a concepção ocidental de vida pública utilizando-se dessa alegoria,
Latour substitui o filósofo pela autoridade científica, posta como capaz de apreender as
verdades objetivas do mundo, a “natureza” das coisas, e trazer luzes a ordem social obscura.
Entretanto, na alegoria de Platão, o detentor do verdadeiro conhecimento, o filósofo (o que se
liberta da caverna), ao retornar para iluminar os demais com a verdade, é acusado de deturpar
a ordem que vige e punido por isso. Hoje, na percepção de Latour, o cientista goza de uma
ampla via de acesso ao “mundo social obscuro do subjetivismo” e pode apresentar “as coisas
tais com elas são”, distinguindo-as das representações (subjetivas) que se fazem delas. Isso
operaria na vida política como uma forma de encerrar todo tipo de embate social: a Ciência
seria a autoridade que valida os discursos, legisla objetivamente e julga, por estar acima e em
outro plano, de toda a política humana. Ao contrário do destino do filósofo de Platão no mito
da caverna, que é morto pela ordem social, o sábio contemporâneo (o cientista, o pesquisador,
as instituições científicas etc.) vai ditar a ordem social.
Nesta relação, a Ciência engloba concomitantemente “saberes, política e natureza”, e
se apresenta como um liame entre dois mundos: o da realidade (a natureza) e o das
construções sociais (as crenças humanas sobre a natureza). Nessa “dupla ruptura”, que
remonta ao mito da caverna, entre o verdadeiro conhecimento (a realidade da natureza) e o
conhecimento vulgar (concernente a vida político-social), transitam os expertos, capazes de,
ao passar de um mundo para o outro, levar a luz para a política e dar fim aos embates com sua
voz de autoridade. Esse poder da Ciência, que remonta ao da Igreja medieval, segundo
Latour, é que faz da natureza um fator de imobilização do discurso público e neutraliza a
democracia.
O resultado dessa “dupla ruptura”, segundo Latour, organiza a vida pública em duas
câmaras: de um lado a sociedade humana, orientada por suas ficções, submergida em sua
própria ignorância, mas capaz de falar; de outro o mundo não-humano alheio às disputas e
ficções humanas, compostas dos objetos reais, o que define o que existe, mas que é muda.
Entre ambas, existem aqueles que podem transitar de uma para outra (os expertos) que
possuem o poder de fala e a autoridade capaz de pôr ordem na assembleia dos humanos uma
vez que podem “fazer o mundo mudo falar, dizer a verdade sem ser discutida, pôr fim aos
  157  

debates intermináveis por uma forma indiscutível de autoridade, que se limitaria as próprias
coisas”131.
Objetar-se contra tal autoridade é o mesmo que macular a confiabilidade da Ciência
em descrever os fenômenos do mundo, “confundindo questões cognitivas com questões
políticas”, lançando mão de um relativismo que será taxado de sofisma. Nesse sentido, para o
sucesso dessa constituição social bicameral, é necessário apartar Ciência do corpo social,
mantê-la intocada, pois uma vez tocada em sua credulidade, enquanto não detentora/tradutora
da realidade (natureza), mas mero representante de mais um poder social, o “truque” perderia
o efeito e a “natureza” não mais poderia ser evocada para silenciar a discussão pública. Para
Latour, a melhor forma de sair da caverna é não entrando nela, não cortando as inúmeras
relações que estabelecemos com a realidade e com as ciências, para aceitar uma autoridade
externa como iluminação, possível somente à instituição Ciência. Ou seja, entender que a
Ciência é tudo, menos neutra.
Com efeito, sabemos que, depois de Popper, Habermas, Khun, Morin entre outros
(groso modo), a Ciência, suas teorias e autoridade, não pode ser mais vista como espelho do
real, dissociada de uma construção social político-ideológica, mesmo às ciências mais duras,
que ditariam as leis da natureza, no máximo apresentam “verdades temporais”, cujos mesmos
fenômenos que descrevem serão explicados/concebidos de outra forma na medida em que as
teorias avançam e os paradigmas se modificam.
Para Popper um conhecimento para ser científico deve poder ser falseado, ou seja,
contradito, ter como ser provado em contrário. Neste sentido qualquer conhecimento
científico não representa o “real” em absoluto, senão uma verdade temporária, durável até
quando provada falsa. Apreende de forma heurística em seu falsificasionismo o jogo da
“verdade e erro” da ciência. “Penso que nos devemos habituar à ideia de que a ciência não
pode ser vista como um “corpo de conhecimentos”, mas sim como um sistema de hipóteses,
ou seja, um sistema de conjecturas ou antecipações que não admite, em princípio,
justificação, com o qual, entretanto, operamos enquanto puder sobrepujar os testes a que for
submetido – um sistema de hipóteses que não estamos em condições de declarar
‘verdadeiras’, ou ‘mais ou menos certas’ ou mesmo ‘prováveis’. 132
Para Habermas, não obstante a pretensão de certeza e imparcialidade inerente ao
conhecimento científico e tecnocrático, onde as tensões entre objetivismo e subjetivismo são

                                                                                                           
131
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.Id. Ibid. p. 34
132
POPPER, Karl. A Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. p.349
  158  

escancaradas, esta “consciência” não está isenta de sua historicidade. A ciência e a técnica
correspondem a uma ideologia cujo núcleo “é a eliminação da diferença entre a práxis e
téchne” representada por uma política de dominação contextualizada temporalmente na
perspectiva da sociedade industrial. 133
Para Kuhn a ciência normal se sustenta por paradigmas que são “o conjunto das
crenças, dos valores reconhecidos e das técnicas comuns aos membros de um determinado
grupo”. Ou seja, certa comunidade científica opera na sofisticação/aprofundamento dos
“paradigmas” que lhes proporciona todo um direcionamento da análise de um dado
fenômeno, cuja leitura é possível pelo paradigma, incorporando desde teorias, procedimentos,
técnicas, métodos, instrumentos, valores entre outras coisas, que vão se somando até o
momento em que o mesmo entra em colapso, não mais possibilitando a leitura do fenômeno
ou das controvérsias que surgem em torno das explicações. Neste momento surgem as crises
que podem repercutir na complete substituição do paradigma dando outra inteligibilidade ao
fenômeno e iniciando-se um novo processo que o autor compara às revoluções políticas,
enquanto mudanças na visão de mundo que se estabelecem pela adesão da comunidade
científica à nova visão. Por essa perspectiva a ciência normal não busca descobertas, lê apenas
o que pode ser lido pelo paradigma. As descobertas decorrem das crises, dos erros ou das
insuficiências do paragisma em explicar o fenômeno. 134
Na perspectiva epistemológica de Morin, que em vários momentos perfaz interseções
com pontos do pensamento de Latour e vice-versa, há uma ampliação da concepção de
paradigma de Kuhn, somando a noção de “mindscape” de Maruyama e de “epistême” de
Foucault, expandindo-a para todo o sistema cultural e noológico. Num paradigma está contido
“para todos os discursos realizados sobre seu domínio” as categorias-mestras de
inteligibilidade do mundo. Dessa forma, aqueles indivíduos inscritos culturalmente em
determinados paradigmas vão agir, pensar e conhecer carregando elementos deste paradigma.
Morin critica o reducionismo moderno da ciência e ao mesmo tempo o holismo que a mesma
atinge posteriormente, em sua perspectiva de complexidade: a realidade é complexa e requer
uma dupla recursividade do todo e da parte para uma melhor aproximação da mesma. As
dicotomias evocadas que traspassam a história e avançam no tempo, modelando a forma de
experimentar o mundo das sociedades ocidentais, são reflexos de um grande paradigma
subterrâneo que as engloba, o “paradigma da disjunção”. Nessa direção, duas concepções
                                                                                                           
133
HABERMAS, Jurgen . Técnica e Ciência enquanto “Ideologia”. Os Pensadores. Trad. Zeljko lopari ́c e
Andréa M. A. C.Lopari ́c . 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 337
134
KUHN, Thomas Samuel .A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
  159  

antinômicas, dois paradigmas opostos, possuem a mesma raiz – espiritualismo e materialismo,


por exemplo, embora sejam paradigmas antagônicos convivem na base comum de um
paradigma matriz para ambos. Isso nos remete a ideia de que vários paradigmas podem
conviver em uma cultura, pacificamente ou em guerra, criando a organização social e sendo
criado por ela, numa relação rotativa de interdependência. O grande paradigma da sociedade
ocidental, o paradigma da disjunção, segundo Morin, comanda a dupla natureza da práxis: de
um lado a auto-adoração do sujeito individual, do humano, do nacional, do moral; e do outro
o objetivismo, o tecnicismo, as ciências, o que quantifica e manipula. A disjunção entre os
dois universos é consagrada pelo humanismo ocidental, que se instala em ambos. Assim o que
se vê na ciência não é o aspecto que faz do homem mais um objeto entre outros da ciência,
mas o que faz dela o instrumento da dominação humana sobre a natureza, fazendo daquele
que manipula (o homem) o sujeito do universo. Encontra-se algo de paradigmaticamente
comum no desenvolvimento histórico- cultural do ocidente que se liga à técnica, ao
capitalismo, à indústria, à vida urbana, à burocracia. Algo estabelecido entre os princípios de
organização do Estado-nação, das ciências, da economia, enfim, da organização da sociedade;
que se explicita no próprio tratamento do real, no que tange a disjunção/redução. Onde há
uma ocultação mútua do sujeito pelo objeto e do objeto pelo sujeito, uma redução à ordem, à
medida, ao cálculo, a uma mesma especialização e hierarquização, ao pragmatismo, ao
empirismo, ao manipulacionismo, à tecnologização e tecnoburocratização, à racionalização, à
dissociação entre o homem e o natural em detrimento das unidades complexas, das totalidades
e das qualidades. A égide da razão junto com todos os princípios e componentes da ciência
clássica nutre uma visão de mundo de ordem, de unidade, de simplicidade que diz alcançar a
verdadeira realidade oculta atrás das aparências de confusão, pluralidades, complexidades.
Qualquer outro sistema de conhecimento de outras culturas é desprezado/rejeitado na
qualidade de mito ou superstição, quando não passa pelo crivo do que é científico. Nesse
sentido, conforme visto, a visão mecanicista, materialista, determinista, cientificista satisfaça
necessidade de certeza, de perfeição, de harmonia, ou seja, a todas aspirações religiosas,
mesmo com o afastamento de Deus. Morin expõem a interdependência das sociedades
humanas à rede da própria vida, expondo que na medida em que a sociedade vai se tornando
mais complexa e mais autônoma, aumenta o gasto de energia, as necessidades materiais, a
interface, a interação, a entropia e principalmente (ironicamente) a dependência. 135

                                                                                                           
135
MORIN, Edgar. As Idéias: habitat, Vida, Costumes, Organização .In: O Método 4. Trad. Juremir Machado
da Silva. 4o Ed. Porto Alegre: Sulinas, 2005. p. 260 – 261; MORIN, Edgar. Ciência com Consciência: Edição
revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo:
  160  

Mas, conforme visto, Latour apresenta uma proposta e um entendimento


completamente diferente dos epistemólogos tradicionais.
A sociologia das ciências que emerge, na percepção de Latour, se demonstra como
insuficiente para reinventar a Constituição social bi-cameral (natureza de um lado, humanos
de outro), sendo necessário juntá-la ao movimento social da ecologia política, devido às
inovações que o mesmo traz. É preciso olhar para a ciência em movimento e não a pronta e
acabada.
A ecologia política – movimento concebido tradicionalmente como de meados do
século passado concomitante acadêmico e político – na perspectiva do autor não possui como
questão central a introdução da natureza nas preocupações políticas, que, aliás, sempre esteve
presente para abortar a política. Ao contrário do que se supõe, a ecologia política corriqueira
sustenta-se sobre a mesma constituição social apresentada sob a perspectiva de duas câmaras
e a natureza continua sendo utilizada para submeter a política. Nesse sentido, quando se fala
de natureza – seja para atacá-la, ignorá-la ou protegê-la, conservá-la, defendê-la – faz-se,
senão, o silenciar da política pela autoridade dos que supostamente detém a realidade das
coisas. Para retirar do mito da caverna o movimento da ecologia política, segundo o autor, é
necessário compreender que ele não mais se apoia na natureza, na sua conservação, proteção e
defesa de um “meio ambiente”.
O autor evoca uma distinção entre a prática dos movimentos ecológicos e a teoria que
as sustenta, a militância ecológica e a filosofia da ecologia (o que ele chama de
Naturpolitick). Na “filosofia da ecologia”, o “respeito à natureza”, estabelece uma
classificação em importância de todos os seres e busca a partir daí uma religação sociedade-
natureza, a noção bem definida dos seres, sua importância, o controle dos riscos, a
domesticação dos problemas. Ou seja, a implementação de um mundo bem ordenado, com
noções/conceitos bem definidos e autoridades bem delineadas para dizer o que é ou não
importante para a natureza e para a sociedade, um modelo que mantém as duas câmaras (o

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
Bertrand Brasil, 2003. p. 329 -331; ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade:
Delimitação e análise de embates sociais no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação
(Mestrado em Sociologia e Direito) – PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
  161  

mito da caverna) e todas as aspirações modernas. Por sua vez, a prática da ecologia política
inovaria em seus reveses (quando as coisas aparentemente não dão certo ou saem do seu
controle), o que na percepção do autor, sempre ocorre.
Ao ver ampliar a incerteza das conexões entre os seres, ao ver os desarranjos surgidos
das situações imprevisíveis, ao fazer emergir objetos eivados de incomensuráveis riscos, a
ecologia tornaria impossível o uso de qualquer noção de “natureza”, concebida como algo
uno, delimitável e estável. Nesse sentido a prática da ecologia política se caracterizaria pela
“multiplicação dos vínculos de risco”, o que na prática perturbaria “o ordenamento das classes
de seres, multiplicando as conexões imprevistas e variando brutalmente sua respectiva
importância”136. A crise ecológica, nesse sentido, seria uma crise não da natureza, mas da
objetividade.
Para uma melhor compreensão, dois pontos precisam ser elucidados. Primeiro, o que é
o ideal e a prática da ecologia política; segundo, a substituição dos ditos objetos sem risco
(limpos) da modernidade, pelos vínculos de risco e os objetos desordenados apresentados pela
ecologia política.
No que diz respeito ao ideal e a prática da ecologia política, Latour desenvolve duas
listas em que, na primeira, expõe a realidade da ecologia política e na segunda, os benefícios
que se extraem dessa realidade (num primeiro momento percebido como fraquezas). Pretendo
apresentá-las, sem enfrentá-las, de forma conjunta e simplificada: a) a natureza a qual a
ecologia política se refere está sempre associada aos humanos e a outros seres de forma
complexa (incluindo aparelhos, instituições, consumidores, fauna, flora etc.), não se trata de
uma natureza una, mas distribuída em seus contornos e com agentes redistribuídos; b) ao
proteger a natureza e colocá-la ao abrigo do homem, ela possibilita um controle ainda mais
sofisticado e invasivo da natureza pelo próprio homem, em benefício do próprio homem e não
da natureza em si desumanizada, por outro lado, “suspende nossas certezas concernentes ao
soberano bem dos homens e das coisas, dos fins e dos meios”; c) ela não saberia o que é um
sistema ecológico-político, sustentando inúmeras contradições científicas o que míngua ainda
mais as certezas e lhe beneficia de uma outra política da ciência; d) não consegue estabelecer
uma hierarquia regrada por elos cibernéticos, mas uma heterarquia, com uma multidão de
dispositivos experimentais que não formam uma ciência certa; e) pretende falar do todo, mas
se pauta a lugares, situações, biotopos, situações particulares e pontuais em suas ações, não
podendo ordenar uma hierarquia única de ações; e f) pretende despontar como poder real na
                                                                                                           
136
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 56-57  
  162  

vida política, mas exerce papel marginal e não compreende bem nem sua política e nem sua
ecologia, tendo seus propósitos diferentes de sua prática, que após compreendida, lhe
proporcionaria a maturidade política137.
Quanto ao segundo ponto, os vínculos de risco se caracterizam por produzir novos
objetos, desordenados, diferentes daqueles modernos, “limpos”, com “contornos nítidos,
propriedades reconhecidas e essência bem definida”, cujos “pesquisadores, engenheiros,
administradores, empresários e técnicos, que concebiam, produziam e colocavam esses
objetos no mercado, tornavam-se invisíveis uma vez terminado o objeto”. Objetos que saiam
de um mundo (da técnica, da Ciência, da natureza, da certeza) para outro (dos fatores sociais e
dimensões políticas), em que seus impactos não repercutiriam sobre sua definição primeira,
sobre seus autores/produtores, mas encerrar-se-iam nos seus usuários (sociedade). Com a
proliferação dos vínculos de risco é somado aos “objetos limpos”, seus riscos associados, as
consequências de seus impactos são agregadas aos seus produtores, idealizadores,
consumidores, não se distinguindo mais o mundo social ou político do mundo da objetividade
e da rentabilidade. As consequências incomensuráveis passam a fazer parte do objeto, assim
como seus produtores passam a ser expostos numa rede de entrelaçamentos que não distingue
mais um universo independente do outro138. Poderíamos dizer que o princípio da precaução e
a “teoria do risco” na responsabilidade civil objetiva caracterizam bem esta mudança.
Como na prática a ecologia política vai “perturbar ao ordenamento das classes de
seres, multiplicando as conexões imprevistas e variando brutalmente sua respectiva
importância”, torna impossível, diante de uma multiplicidade de entendimentos sobre o que
tem prevalência, o que conta e o que não conta, o que deve ser percebido conjuntamente e o
que deve ser separado, uma concepção única de natureza ou de ordem social. Algo como se
imaginássemos, dentro de uma dada atividade social, um imbróglio que conjugasse ao mesmo
tempo: uma rodovia, um sapo, seres humanos, uma relação comercial, um peixe, capital
financeiro, um valor cultural, uma paisagem etc. Ou, no nosso caso, empresas multinacionais,
técnicas de mineração, unidades de conservação, comunidades quilombolas, agentes
governamentais, tartarugas, castanheiras, copaibeiras, bauxita, ONGs etc. Com a prática da
ecologia política, em tese, dentro desse imbróglio, na realização da tal atividade social,
poderiam todos concorrer em uma ordenação de prevalência, consideração, relevância ou
preeminência, sem ter como, em uma esfera pública, estabelecer, a partir de uma concepção

                                                                                                           
137
Id. Ibidem. p. 45-48
138
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.Id. p 48-53  
  163  

de natureza ontológica, ditada por uma autoridade epistemológica (supostamente) externa à


própria política, o que realmente deve prevalecer.
Nesse sentido, tanto a ordem natural, quanto a ordem social, se misturam, não sendo
debatidas separadamente, sem que uma anulasse a outra e vice-versa. A ecologia política, com
a multiplicação dos objetos, exerce o papel de unificar as duas arenas, da natureza e da
política, à única arena do coletivo, em sentido amplo, compreendendo a categoria de todos os
seres. No curso da pesquisa, essa perspectiva mostrou-se providencial, assaz reveladora dos
traços dos humanos e não-humanos que compõem a rede. Um pouco além, apresenta
perspectivas políticas progressistas para os imbróglios ditos ambientais.

3.3.3 O coletivo em uma câmara


Conforme mensuramos, a natureza, desde sempre, desempenhou um importante papel
na vida política ocidental. Com significados cambiantes que atravessam a história, a natureza
pôde ser evocada para legitimar a superioridade de uma etnia sobre outra, a posição
hierárquica de grupos sociais, a privação dos direitos políticos das pessoas de sexo feminino,
a liberdade humana e sua natureza racional etc. O potencial político da “natureza” se dá,
segundo Latour, devido ao emprego do termo no singular, ou seja, ao caráter de unificação
que o termo enseja, ao poder de congregar e hierarquizar tudo que existe, de apresentar
essências, verdades. Na perspectiva do autor, se pensássemos uma multiplicidade de
“naturezas”, esse efeito seria perdido.
Se, de um lado, a natureza é percebida por aquilo que representam os fatos, de outro a
política representa os valores, tornando-se ordens incomensuráveis, não relacionais, em que a
evocação da primeira, que só seria possível aos sábios cientistas/expertos, anuncia a definição
da realidade, dos fatos e não uma relação de poder, uma ideologia, ao contrário da segunda.
Essa compartimentação estanque entre os dois poderes, na percepção de Latour, é que deve
ser “laicizada”139 e a prática da ecologia política está dando início ao processo.
Por sua vez, encampar a perspectiva das ciências sociais de que não há acesso a uma
natureza imediata, pois qualquer compreensão de natureza não ultrapassaria a condição de
representações mentais humanas, ou de que “a natureza não existe” senão como construção
social, levaria à percepção, pela ecologia política, de que a natureza que se defende é a
concepção ocidental da mesma. Ainda assim essa percepção não livraria a política do mito da

                                                                                                           
139
O termo laicizar é justificado em menção a qual a “naturalização” sempre foi utilizada para combater a
religião, através dos objetos modernos da Ciência, mas a mesma continua toda impregnada da religião que
combateu.
  164  

caverna, pois, não obstante as construções sociais sobre a natureza, a mesma continuaria suas
manifestações independente das percepções humanas e, se não há acesso à natureza, estamos
condenados a escuridão da caverna, nenhum conhecimento real poderia ser apreendido, não
precisaríamos de sábios e nem de ciências – mas os mesmos continuariam. Há a necessidade
de reconhecer a história humana construída, mas, além disso, a história não construída de tudo
que existe externamente que segue independentemente das construções e representações
sociais, buscando intercessões de modo a fundi-las. Para tanto seria necessário agregar a
história infinitamente longa da natureza – matéria, energia, evolução da vida, manifestações
do universo etc. – dentro do que se conhece por meio das várias disciplinas científicas –
astronomia, química, física, biologia etc. – datadas a partir da história das ciências, formando
uma história conjunta.“[...] já não falamos mais do todo da natureza, mas daquilo que se
produz, se constrói, se decide, se define, em uma cidade sábia sobre ecologia, quase tão
complexa como a do mundo em que ela produz o conhecimento”140.
Ainda que a história das ciências no esforço de tornar cognoscível a natureza não
escape da realidade das representações sociais, à medida que se aproxima de uma exatidão (o
eterno jogo da verdade e do erro das ciências), se aproxima também do que a natureza
realmente é, mantendo-se como representação social, opera sob as duas perspectivas e reúne
as duas assembleias: a dos humanos e a das coisas. Esquivando-se das “evidencias enganosas
das ciências do homem” (construtivismo social, estruturalismo etc.), pode-se apreender o
papel e a “presença múltipla” dos não-humanos (multiplicidade dos seres – naturezas), bem
como distinguir o “trabalho político” que os apresentava sob a forma de uma natureza única
que impunha sua autoridade muda.
A ruptura absoluta que separa a sociedade da natureza (assembleia dos humanos e
assembleia das coisas), cuja transcendência só é possível aos sábios que tornam
compreensível a realidade dos objetos à sociedade, através da figura da natureza una, objetiva
– criando uma autoridade inquestionável; é substituída por um “coletivo em via de
expansão”, em que as propriedades tanto dos humanos quanto dos não humanos não são
garantidas (vínculos de risco – objetos desordenados), reconhecendo os não-humanos como
parte indissociável do social, “recrutados, mobilizados, socializados, domesticados para
engrossar a demografia do coletivo”
Na nova conjuntura, os sábios e as ciências não são abandonados, ao contrário,
assumem o papel de conexão/representação com o mundo exterior, através da mediação das
                                                                                                           
140
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 70  
  165  

disciplinas científicas que unem a história social e natural. Mas ao contrário do esquema da
caverna, não para impor “um recurso decisivo a uma transcendência indiscutível” para
solucionar os problemas político-sociais, e sim para funcionar como problematização,
complicação, “não resolvendo definitivamente nenhuma das questões essenciais do coletivo”.
Ao apelar para a realidade exterior não se aparta o mundo social e nem o faz calar, como no
coletivo em duas câmaras (sociedade versus natureza), mas convoca uma multiplicidade de
novos seres para uma vida em comum, em que todos são atores (actantes) que funcionam em
rede – estabelecem interferências, associações, conexões, fluxos, circulações, alianças etc.
Conforme visto, a proposta conduz a um afastamento concomitante da natureza e da
cultura enquanto conceitos separadamente fechados, isolados e independentes, em que, na
proposta de Latour, a ideia de coletivo abarca ambos, fundindo-os. Parte da natureza não em
direção ao humano, mas em direção a “multiplicidade das naturezas” (pluriverso) em que “o
social” ganha conotação de associação, coleção, englobando seres humanos e não-humanos,
possibilitando seu ajuntamento, sua unificação, coleta, a partir da prática da ecologia política.
Existe, pois, uma outra via além do idealismo para abandonar a
natureza, uma outra via além dos sujeitos para abandonar os objetos,
uma outra via além da dialética, para “ultrapassar” a suposta
contradição entre sujeito e objeto. Para dizê-lo de modo mais brutal
ainda, graças à ecologia política, a Ciência não sequestra mais a
realidade exterior para criar uma corte de apelação de última instância,
ameaçando a vida pública com uma promessa de salvação pior do que
o mal. Tudo aquilo que as ciências humanas haviam imaginado sobre
o mundo social, para construir suas disciplinas longe das ciências
naturais, foi ao inferno da Caverna que elas tomaram emprestado.
Intimidadas pela Ciência, elas aceitaram o mais cominatório dos
diktats: “Sim, reconhecêssemos bem prazerosamente, confessavam
elas em coro, mais falamos de construção social, mais nos
distanciamos, de fato, da verdadeira verdade”. Ora, era preciso recusar
o Diktat e se reaproximar, contra a ameaça da Ciência, da realidade
produzida pelas ciências, afim de poder colocar, a novos custos, a
questão da composição do mundo comum. 141

A questão que se perfaz é como se daria a nova constituição, uma vez que a mesma
dilui as categorias dos sujeitos e dos objetos em suas pretensões? Partindo da perspectiva de
uma conotação de política como “composição progressiva de um mundo comum” a ser
compartilhado; e desconstruindo a noção de natureza que servia como pano de fundo para a
unificação dos seres e das culturas, que independente das particularidades havia uma
“essência” comum, as soluções propostas pelo mononaturalismo e pelo multiculturalismo
                                                                                                           
141
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 74
  166  

tornam-se vazias. Se de um lado o mononaturalismo estabilizava a noção de natureza,


propugnando “uma natureza, várias culturas; a unidade na mão das ciências exatas, a
multiplicidade nas mãos das ciências humanas”, em que a noção de cultura esta esvaziada de
substância e a natureza, traduzida pelos sábios, corresponde ao real. De outro lado, no
multiculturalismo, as culturas são diversas e possuem distintas maneiras de definir o real, não
existindo essências ou realidade durável, essas são meras ilusões. Em uma das perspectivas,
um mundo sem valor, mas com essência, de outra, um mundo de valores, não essencial,
impossibilitado de se tornar um mundo comum. Nesse sentido, para essa superação, é que se
faz necessário romper com a noção de cultura e com a noção de natureza, pois ambas se
assemelham, possuem em sua separação caráter político e nos aprisionam em um coletivo
impróprio, do mito da caverna.
Como a natureza e o humano, no mundo ocidental, sempre viveram em oposição na
vida pública, a questão não é a inserção da natureza na vida política, mas o contrário, seu
exorcismo enquanto condição de se estabelecer um poder, que não se assume como tal,
encampado por um grupo restrito de humanos. As ciências, na multiplicidade de suas
disciplinas, se inserem na coletividade não como solução pronta e acabada para os problemas
humanos, mas como forma de injetar e recrutar novos atores, não-humanos, delimitar seu grau
de penetração e influência, gerando novas incertezas que alavancariam o progresso do
conhecimento e a abertura de novas instituições, ainda não visualizáveis politicamente.
A diluição da dicotomia sujeito e objeto é a diluição da dicotomia sociedade e
natureza. Nesse sentido, os não-humanos não são totalmente objetos, ao menos devemos
cessar de objetivá-los e compreender qual a dimensão de sua relação com a assembleia de
humanos. Coletar quais e de que forma se associam aos humanos na complexa construção da
realidade, quais efeitos produzem, quais influencias geram, de que maneira modificam a
sociedade etc. Segundo Latour142 o objeto era o não-humano mais a polêmica da natureza
dando uma lição à política dos sujeitos, uma vez libertos, não como “coisas em si”, compõem
o coletivo de forma acessível, atacável e qualificável. Por sua vez, os sujeitos não são (mais)
totalmente sujeitos, o que caracterizava o sujeito era sua ruptura com a estrita causalidade da
natureza, seu arbítrio próprio, sua condição de não ser objeto, ou seja, o sujeito era o humano
preso na polêmica da natureza e resistindo corajosamente à objetivação pela Ciência. A
143
liberação do humano não mais como sujeito, conforme Latour é a consciência do fato de

                                                                                                           
142
 LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 93  
143
 Id. Ibidem. p. 94-95  
  167  

os humanos não existirem por si mesmos, mas através de uma longa cadeia de não-humanos,
sem os quais eles não saberiam fazer questão de liberdade.
O imaginário comum nos conduz a perceber que a relação de afastamento e
independência do homem com relação ao mundo “dito” natural, passou a ser questionada com
a emergência das questões ambientais, consagrando os movimentos ambientalistas, como a
ecologia política, como responsáveis pela inserção da natureza nas preocupações políticas. A
proposta de Latour vem desmitificar essa suposição com uma inversão de perspectiva que
acusa a natureza, em suas diversificadas concepções, de sempre estar presente na vida política
do ocidente, apresentando-se a partir de autoridades que a traduzem para o entendimento geral
como “a certeza” que serve de embargo para qualquer discussão política. O mérito da
ecologia política seria exatamente digerir essa percepção de natureza, da objetividade e
hierarquização, “pondo fim à natureza” e fazendo irromper uma percepção de mundo
carregada de incertezas, riscos e multiplicidades, possibilitando a constituição de uma nova
vida política que dissolveria a dicotomia sociedade e natureza.
O “prelúdio do novo tempo” antes de se dar pelo sucesso da ecologia política
enquanto movimento que se insere de fato na vida pública, o que não ocorre, vai ser dado
pelos seus desconcertos, na sua prática, que geram a penetração irreversível dos “vínculos de
risco” que desmantelam o projeto moderno de um mundo ordenado que apontaria para um
futuro promissor. O sentido teleológico da modernidade, bem como a autoridade da Ciência e
da técnica na busca da redenção humana ficam suspensas, questionadas com a multiplicidade
de incertezas.
Toda essa discussão não deixa de encampar as tradicionais críticas recorrentes da
modernidade no que tange ao modelo de inteligibilidade do mundo,
disjuntivo/fragmentário/divisor/simplificador, consagrado pela filosofia e ciência moderna.
Ao apresentar o sujeito cognoscente e a realidade do mundo objetivo por uma indissolúvel
conjunção entre ambos, o autor nos remete ao entendimento de que o sujeito está presente nos
objetos que conhece, ao mesmo tempo em que esses se inscrevem no espírito humano em uma
relação de dupla-via. A realidade objetiva é uma construção subjetiva que jaz no mundo
objetivo. Apesar de realmente inovadora, a diluição das dicotomias de sua proposta
epistemológica, com as devidas ressalvas, se acercam das propostas da teoria da
complexidade de Edgar Morin, buscando uma interligação de saberes e a hibridização dos
seres dicotomizados/antagonizados pelo pensamento moderno. Mas há diferenças cruciais e
um método “facilmente aplicável”, efetivamente empírico e epistemologicamente progressivo
pelas possibilidades que abre.
  168  

Conversões

Falamos de conflitos ambientais sob uma perspectiva estruturalista-construtivista e nos


deslocamos para uma percepção da ontologia actante-rizoma da Teoria Ator-Rede. O que
ambas as perspectivas aqui tratadas nos conduzem, cada uma a sua maneira, é a visibilidade e
a possível inserção de interesses tradicionalmente negligenciados/desapercebidos nas esferas
públicas e nos espaços de decisões – ambas podem ser percebidas como progressivas num
sentido democrático.
De um lado, a denúncia das formas de dominação que recaem sobre os grupos
humanos com menos acesso ao “poder”. No caso da pesquisa, aqueles que têm os seus modos
de vida ameaçados/comprometidos/dizimados nos avanços territoriais dos grandes grupos
econômicos afinados com os projetos governamentais de desenvolvimento e conservação.
Esta perspectiva, com orientações normativas declaradas, é fortemente sustentadas nas
questões de proporcionalidade e justiça sobre o acesso e o uso dos recursos que compõem as
diferentes faces da sociedade. Do outro lado, amplia-se os interesses à tudo que se agencia na
composição da sociedade, mas apenas descrevendo como uma coisa se liga a outra, sem
maiores explicações, sem orientações normativas, sem juízos morais de valor declarados a
priore. Contudo não se trata de um “realismo/objetivismo ingênuo”, ainda que os axiomas
não se revelem explicitamente nas descrições, ou estarão embutidos (não declarados) ou virão
depois, com as possíveis utilizações de uma pesquisa. Em todo caso, sem prejuízo algum para
esta perspectiva de análise. Por mais que se empenhe em uma descrição restrita ao que se
pode demonstrar empiricamente, por mais que nos esforcemos em sermos imparciais, os
“olhos” veem aquilo que lhes conecta a atenção, involuntariamente, já que somos parte de
múltiplas conexões mútuas e dentre elas também os instrumentos que possuímos para
observar e os nossos valores morais, nossas crenças que nos “ensinam” a olhar.
Foram frisadas duas diferentes perspectivas, quase opostas podemos dizer, que
possibilitam caminhar em um topoi mas que levam a utopos ou mesmo distopos particulares,
mas que no final se encontram. Se a sociologia crítica estrutural-construtivista visa dar
visibilidade aos humanos dominados em busca de sua emancipação ou autonomia – neste
caso focamos o reconhecimento de seus territórios, o controle dos seus recursos naturais, o
acesso aos recursos públicos, a organização cooperativa, o melhor escoamento ou valorização
de seus produtos, a melhoria da qualidade de vida etc. Percebemos que essa mesma
emancipação representa a configuração de uma estreita dependência aos recursos públicos, à
  169  

inserção nos espaços estatais, às tecnologias, ao mercado, a toda uma reconfiguração de


saberes, de identidades, de transformações irreversíveis... É ambivalente e paradoxal, pois os
benefícios emancipatórios gerados carregam dentro de si um maior controle e dependência,
seja das autoridades, dos recursos públicos, do combustível, da aceitação no mercado, dos
agentes externos, ou na hibridização desproporcional da cultura. Laços bem amarrados com
organizações internacionais, com o Estado, com o mercado, com o consumo, com o saber
científico se solidificam. Se tomarmos como exemplo os geradores das comunidades, os
motores para as embarcações – que tanto os beneficia nos afazeres doméstico, laborais e nos
seus deslocamentos – ao mesmo tempo temos o petróleo, o auxílio do governo para que isso
opere, o vinculo político, o arrebanhamento, a subordinação. Há uma hierarquização na
multiterritorialidade que se desenha. Em se tratando de populações tradicionais, como no
caso, a questão se complexifica ainda mais dentro do que substancialmente os transforma.
Por sua vez, sob a outra perspectiva, descrever as redes sociotécnicas que se expandem
e formam suas conexões e agenciamentos, partindo de uma dependência criada e assumida,
das transformações em foco, da frieza na análise dos objetos quentes, em movimento, “esse”
coletivo em expansão visto em sua multiplicidade e diversidade parece caminhar para um ser
unívoco irreversível/inelutável e essa “diversidade/pluralidade” tão cara à vida, não seria mais
controlada pela Ciência, mas pelo pacto civil em nome da paz, das coisas e dos homens.
Difícil não elucubrar neste “bom modo de compor o mundo” em constante desterritorialização
uma possível reterritorialização hegemônica, não obstante falarmos de um coletivo que não
representa-se no singular da palavra, é necessariamente heterogêneo... mas se expande e quer
estabilizar-se. Como? Por ordem? Então voltemos ao conflito em condições desiguais de
poder? Ou identifiquemos as finas linhas que ligam as redes para interceptá-las em seus
frágeis laços e conter seu avanço? Ou ainda, aceitamos irreversibilidade de seu avanço e
mitigamos seus impactos com a consideração dos interesses excluídos? Outra ambivalência e
outro paradoxo: partimos da diversidade, da multiplicidade, para assistirmos o levante dos
seres representados pelas múltiplas ciências e dos humanos pelos diversos segmentos
políticos representativos, para se alinharem num mundo harmonizado comum, incorporando
tudo que deve ser levado em consideração na composição do coletivo, a partir das lutas na
assembleia da câmara única, da democracia dos objetos e sujeitos. Contudo, não é possível
apreender tudo e todos, qual métrica vai dar valor ao que conta e ao que não conta na
composição do coletivo?
Algumas questões se apresentaram como profundos “dilemas” no curso da pesquisa e
direcionaram o estudo não na proposição de respostas ou saídas para os mesmos, mas na
  170  

explicitação das aporias e contradições ou na problematização da realidade em foco. Como


articular a diversidade de modos de vida circunscrita naqueles territórios com a unidade
ideológica integracionista e ordenadora que parece avançar irrefreavelmente? Como manter as
particularidades inerentes àqueles povos e suas relações ecossistêmicas somando-se os
benefícios almejados e as trocas tecnológicas que se assentam em um modelo universalista?
Faz algum sentido falar de proteção sócio-natural quando reduzimos a intencionalidade das
ações humanas e planificamos o socious com a natura?
Essas questões perduram mesmo quando partimos de uma percepção de “cultura”
imanente aos seus ambientes e conexões, sempre cambiante e intercambiante, viva e
dinâmica. Tratamos, de um lado, de populações tradicionais, suas identidades e
sustentabilidade de seus modos de vida. Quando falamos dos direitos aos seus territórios, das
injustiças históricas, da espoliação pelos poderosos etc. assistimos gradativamente o levante
político dos mesmos, a inserção cada vez mais efetiva de seus interesses, ao mesmo tempo em
que ocorre o aumento da inserção do Estado e de agentes exógenos em suas vidas, novas
relações comerciais, conforme mencionado, novas dependências, outras conexões... muitos
interesses parecem colidir na disputa dos fins daqueles espaços territoriais e de seus recursos
dentro do próprio Estado. Interesses que divergem mas são regidos dentro de uma mesma
lógica de controle, disciplina, ordenação, previsibilidade e segurança em suas demandas.
Unidade de Conservação, Território Quilombola, mineração da bauxita parecem pertencer,
nos termo de Latour, à mesma rede sócio-técnica em expansão. Contudo, se comparada aos
tempos anteriores, as diferenças se exaltam no que tange à permeabilidade dos diferentes
interesses na composição daquela realidade, com o processo de democratização do estado
brasileiro. Antes uma ordenação restrita aos interesses da mineração da bauxita que se valia
da doxa do desenvolvimento e de uma conservação maquiada para imprimir sua ordem e
legitimar-se, agora estendido aos remanescentes de quilombo e outros grupos excluídos,
obrigando-nos a pensar um papel ambíguo para o Estado que trata as questões em
compartimentos distintos e com escasso diálogo entre si.
Conforme mencionado anteriormente, optei no curso da pesquisa em adotar uma
perspectiva mais descritiva, dentro do que se apreendeu enquanto constitutivo daquele
realidade, inspirado na Teoria Ator-Rede. Entretanto, a estratégia metodológica empregada
não abdicou dos resultados propiciados pela perspectiva moderna de análise, tampouco
deixou de se sustentar na literatura especializada dentro do seu recorte específico e na
temática que se relaciona mais diretamente, que abrange conflitos ambientais, disputa de
poder, territórios, relações de direito, proteção da biodiversidade e etnografia. Assim como se
  171  

valeu de instrumentos corriqueiros de investigação como levantamento de pesquisas


pertinentes e correlacionadas, análise de documentos, processos administrativos e judiciais,
aplicação de questionários, entrevistas semiestruturadas, narrativas, observações in lócus,
caminhadas transversais entre outros que se apresentaram importantes à execução do estudo.
O ponto se dá com relação ao método, que se apresenta mais como uma “visão de mundo” do
que como procedimentos empregados. Aquilo que permite não segregar a natureza da
sociedade ou vice-versa na busca do conhecimento, não apenas fragmentar para entender, ou
emoldurar nos limites de uma teoria: ao invés, compreender as inter-relações, conjunções,
redes e, ao mesmo tempo, eleger o que se percebe como mais importante na construção de
uma visão sobre aquela realidade partindo dos elementos que a constitui: visão esta não-
moderna, pois não compreende em separado um mundo humano e outro não-humano.
Isso quer dizer que elementos constitutivos daquela realidade, que tradicionalmente
não se considerariam em uma pesquisa jurídico-sociológica enquanto construtores da
dinâmica social, não foram desprezados, na medida em que produzem efeitos na constituição
da mesma. Neste sentido, a Podocnemis expansa é tão importante na construção daquela
realidade quanto os remanescentes de quilombo, a bauxita, o combustível, a mineradora, as
decisões judiciais, a rabeta, a Copaifera multijuga, as tramas políticas entre outros
atores/actantes que influenciam na constituição da realidade que se perfaz na Reserva
Biológica do Rio Trombetas e na Floresta Nacional Saracá-taquera. Cabe ressaltar que apesar
de existir uma visão privilegiada, qual seja a dos conflitos de interesse e da distribuição de
poder sobre esses territórios, a pesquisa não reduz aquela realidade a essa visão segregada de
tudo que a compõe.      
Cabe reafirmar que não houve uma fidelidade teórico-metodológica no curso da
pesquisa que direcionou o seu curso com exclusividade, conforme exposto. Em outras
palavras, uma filiação a um modelo que conduziu linearmente a análise, a partir de seus
pressupostos, na inteligibilidade da questão estudada. Mais adequadamente poder-se-ia falar
de influências, já que o estudo se sustenta sobretudo nas suas vivências de campo, na sua base
empírica, sem uma comunhão paradigmática, como no sentido de Kuhn, ou da própria praxe
da academia. Por ser uma perspectiva aberta, “não o quadro a ser pintado, mas o pincel que
pinta”, a Teoria Ator-Rede exerceu maior influência. Contudo, ao lançar mão de instrumentos
metodológicos e perspectivas epistemológicas de ordens diversas, que contribuíram na
análise, procedeu-se rejeitando certos “caminhos”, parcial ou integralmente, de maneira mais
“livre e adaptável” de acordo com o próprio fluxo da pesquisa e suas demandas na
compreensão/descrição dos espaços em que se assenta. O exercício das duas perspectivas
  172  

narradas permite de um lado reduzir, delimitar a análise, configurando um “campo dos


conflitos socioambientais”, do outro abrir e complexificar esse microcosmo num plano de
existência mais amplo, incorporando os diversos elementos que constituem essa realidade
analisada e que são excluídos na primeira visão.
A seguir, na próxima e última parte da pesquisa, optei por apresentar em uma ordem
cronológica os interesses que compõem a realidade em análise. Não por uma pré-existência
relacionada aos grupos que ali viviam (ou vivem), mas dentro do avanço de um modelo
expansionista de sociedade que gerou os conflitos enfocados. Nesse sentido, primeiro surgem
as políticas estatais, seguidas da descoberta da bauxita e posterior instalação da infraestrutura
e ordenação territorial para sua exploração. No período subsequente, concomitante à
exploração comercial da bauxita, é criada a Reserva Biológica do Rio Trombetas, Unidade de
Conservação de proteção integral em área contígua à mineração com objetivo principal de
proteção da Tartaruga-da-Amazônia, por esse viés, tornando a reserva e esse quelônio os
próximos actantes a serem considerados. Apesar de viverem no local antes mesmo de existir o
município de Oriximiná e todas as políticas públicas que ali recaíram, os remanescentes de
quilombo, peculiar grupo humano que vive naquelas terras, foram praticamente relegados à
invisibilidade por todo esse período, possuindo levante político e melhor voz a partir de
meados da década de oitenta, marcando, daí pra frente, uma nova ordenação territorial. Nesse
contexto surge a Floresta Nacional Saracá-Taquera, estrategicamente criada para proteger os
interesses da mineração da bauxita, mas posteriormente gerando profundas contradições
legais com essa prática, acirrando ainda mais os conflitos sobre aqueles territórios e seus
recursos. A Floresta nacional é tratada junto com a Reserva Biológica, dentro das políticas
conservacionistas experimentadas na região e a atuação do Governo Federal.
  173  

PARTE III
O VALE DO RIO TROMBETAS

Mapa 04: Landsat – Google Earth, 2013.


  174  

1 O PROGRESSO E A ORDEM

O presidente Médici expressou sua confiança em que a


transamazônica pode ser o caminho para o encontro da verdadeira
vocação econômica da Amazônia.
Continuemos citando o discurso presidencial: o coração da
Amazônia é o cenário para que se diga ao povo que a revolução e
este governo são essencialmente nacionalistas, entendido o
nacionalismo como a afirmação do interesse nacional sobre
quaisquer interesses e a prevalência das soluções brasileiras para os
problemas do Brasil. Dois desses problemas referidos na fala do
chefe do Estado são: o homem sem terras no nordeste e a terra sem
homens na Amazônia [...].
[...]Tanto para a agricultura quanto para a criação a terra é boa, há
verdes pastos na floresta de leite e mel. A imensidão amazônica induz
o homem a pensar no seu grande destino. A estrada que leva ao céu
deve ser uma imensa e vasta transamazônica rasgada por Deus no
coração dos homens que sabem sacrificar-se pelo progresso da
humanidade.
(Propaganda do Governo Federal da década de 1970 - Arquivo Nacional)

Céu e inferno. Da natureza idílica ao faroeste caboclo, da natureza hostil à urbe-


habitat. Ora as retinas se apraziam diante de tantas cores e tanta vida portentosamente
aflorando; ora são violentadas com os lúgubres traços da destruição que o avanço
desenvolvimentista vai deixando por onde passa. Ora o calor daquela floresta quase
impenetrável me atormenta e aqueles imensos rios e seus perigos me enclausuram; ora o
refrigério do ar-condicionado de um quarto de hotel e o conforto de estar sendo bem servido,
a um preço por mim acessível, me aliviam. Desço no aeroporto de Manaus ainda bem cedo,
me hospedo em um hotel central na cidade e sigo para o INPA, em busca dos meus
pesquisadores-atores. Consigo mais material, mais contatos e nenhuma entrevista. Passeio na
cidade, observo suas vias, dutos, tráfego, pessoas circulando, energia fluindo, um caos (ou
uma ordem). Observo os pedintes, os zumbis do crack, os turistas gringos, as prostitutas, os
ambulantes aos milhares. É uma cidade, como todas, com sua história própria, seu ambiente
peculiar, suas segregações – a Manaus dos turistas, a Manaus dos excluídos, a Manaus dos
comerciantes, a Manaus dos pesquisadores, estudantes e moradores mais abastados dos
condomínios, “belos e organizados”.
Aproveito o dia que me sobra para conhecer melhor a cidade, observar as edificações
históricas e visitar o Teatro Amazonas, sublime testemunha da opulência dos tempos
pretéritos. Observo atentamente as explicações do guia sobre aquele ecletismo, tanta
exuberância, tanto luxo, quase tudo vindo de fora, da Europa. Ouço sobre as seringueiras, o
  175  

látex, a borracha, sobre a história de Manaus, do Amazonas, da Amazônia. Esse teatro


conecta-se ao “passado glorioso” dessa região e essa cidade, que já foi uma das mais
prósperas do mundo, conta esse passado que a nossa caminhada pretende percorrer
brevemente. Recobro a memória de que os grandes monumentos erigidos na nossa história
sustentam-se sobre os ossos daqueles que ela renegou. Todos esses grandes monólitos têm o
suor e o sangue dos espoliados esquecidos como argamassa. Mas minha apreciação deve
manter-se neutra.

Foto 09: Teatro Amazonas. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2012.

Vou ao porto de Manaus digladiar por uma passagem para Oriximiná, sabia, pelas
experiências anteriores, que no final do ano todos viajam. A multidão desesperada faz o
momento dos cambistas especuladores. Não havia mais passagens aéreas e, por “nau”,
somente para Óbidos ou Santarém. Como não podia aguardar até a próxima semana, segui
para Óbidos. No translado conheço duas francesas que vieram se aventurar no Brasil,
disseram vir conhecer a “natureza”, a Amazônia, maior floresta tropical do mundo – “essa
imensa reserva ecológica do planeta”. A companhia das turistas estrangeiras e os longos
diálogos desentendidos que travávamos, abreviavam as trinta horas de viagem percorridas
pelo Rio Amazonas. A paisagem contínua, por vezes, era interrompida pelos pequenos
povoados ribeirinhos, criações de gado e cidadelas. No navio, muito Technobrega, pessoas
bebendo e um verdadeiro emaranhado de redes que aconchegavam as centenas de pessoas que
ali viajavam. Chegando em Óbidos consigo no mesmo dia um barco para Oriximiná.
Necessitando aguardar algumas horas, aproveito o entretempo para conversar com pessoas
dali. Os olhos se confundem diante da tamanha complexidade daquela região.
  176  

Perscrutar essa realidade e compreender sua pluralidade requer vasculhar como se deu
seu complexo ordenamento territorial. A Amazônia dos seringueiros, babaçueiros, açaizeiros,
dos muitos índios, dos ribeirinhos, dos quilombolas; a Amazônia dos patrões, dos regatões,
dos fazendeiros, das elites falidas; a Amazônia periferia nacional ameaçada pela cobiça
internacional; a Amazônia futuro do país com incomensuráveis recursos – o biológico, o
madeireiro, o mineral; a Amazônia último reduto da vida, da manutenção do equilíbrio
térmico do planeta, da natureza para conservação; a Amazônia dos grandes projetos
governamentais de desenvolvimento, das empreiteiras, das hidroelétricas, das monoculturas,
da pecuária extensiva, das mineradoras multinacionais; a Amazônia atrasada, terra sem lei à
Amazônia voz de seu povo, ainda quando educados e representados pelos que vem de fora.
Não há uma Amazônia, são muitas “Amazônias”, como já consagrara Carlos Walter Porto
Gonçalves144, que também nos conta essa história, ponto de suma importância para traçarmos
as linhas de nossa jornada.

1.1 Breves passagens na fabricação da Amazônia brasileira

A organização do espaço Amazônico – sua integração a uma territorialidade


burocrático-administrativa nacional –incorporou assimetricamente os interesses dos diferentes
segmentos humanos que ali chegaram ou já habitavam a região145. Essa ordenação territorial,
como qualquer outra, abrange os sistemas produtivos, os conflitos sociais, as atividades
econômicas, as normatizações jurídicas, as tecnologias disponíveis, as geografias, os
agenciamentos de múltiplos seres não-humanos que compõem as naturezas-culturas e as
diferentes significações/representações dos mesmos. Cria hierarquias posicionando o que
conta mais e o que conta menos na reprodução social, se alterando com o tempo. A marcha
expansionista macroétnica caucasiana, não representa apenas um processo de sucessão
ecológica na região, mas uma complexa hibridização genética, cultural, material e energética,
sobre uma fina rede de conexões. Uma dupla via de conexões, levam seres e trazem sua
“biota-portátil”146. Na Amazônia, em especial, um gênero de planta, a das seringueiras –
Heveas (guianenenses, benthamiana, brasiliensis etc.) – sobretudo uma espécie, a Hevea
                                                                                                           
144
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
145
Assim como geralmente se dão as composições socionaturais. Conforme a perspectiva que adoto, trabalhada
na segunda parte da tese, a “Grande Divisão sociedade-natureza” é uma estratégia epistemológica que não se
sustenta dentro do avanço do conhecimento hodierno. Nesse sentido qualquer sociedade é socionatural, como
qualquer cultura é uma “natureza-cultura”, de uma megalópole como Nova York ou São Paulo à aldeia indígena
do Mapuera ou a comunidade quilombola do Abuí.
146
CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. Tradução de José
Augusto Ribeiro e Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  177  

brasiliensis, vai exercer grande influência nas delimitações territoriais amazônicas. Isso se
deu sob o jugo dos que faziam conectar o produto de sua seiva, o látex transformado em
borracha, à toda rede sociotécnica de produção da Segunda Revolução Industrial em meados
do século XIX, sem maiores considerações aos povoados que ali há muito existiam. Nesse
sentido o que se compreende como Amazônia está atrelado ao marco científico da
abrangência das Heveas147 e o surto econômico de sua exploração contribuiu sobremaneira na
delimitação das fronteiras nacionais que ali se estabeleceram.
A borracha passa a ser parte indissociável de diversos componentes das máquinas da
indústria, dos fios de transmissão de energia e de telecomunicações, dos calçados, de roupas,
dos pneumáticos que vão reconfigurar os veículos, o transporte e a indústria automobilística.
Enfim, essa “planta” passa a estar presente em toda a “sociedade ocidental” e dar-lhe outra
abrangência com o seu agenciamento. Partindo do conhecimento dos índios e apresentada aos
europeus com a colonização, a borracha gradativamente vai encontrando “funções sócio-
lógicas”, até atingir maior envergadura comercial e disseminação com a “descoberta” da
borracha vulcanizada em 1839/1843148.
Assim como outros períodos de exploração de commodities amazônicas, o látex vai
propiciar um grande fluxo migratório contribuindo para configurar a pluralidade de grupos
humanos que vão habitar a região. Esses fluxos migratórios se deram subindo o Rio Tapajós,
o Xingo, o Madeira, posteriormente atingindo o Solimões, o Purus e o Juruá, chegando ao
Acre (Aquyri) em 1877149. Cerca de 300 a 500 mil migrantes nordestinos entre 1860 e 1912150
vão para os seringais tornarem-se “servos por dívida”, como ilustra Euclides da Cunha:
De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão opulento, se não o
freguês jungido à gleba das “estradas”, o seringueiro realiza uma
tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se [...]
Repitamos: o sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a
qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para
escravizar-se.
Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota
fazenda de São Paulo, paternalmente assistido pelos nossos poderes
públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo
                                                                                                           
147
GONÇALVES, C. W. P. op. Cit. p. 18
148
Essa descoberta está associada ao inventor estadunidense Charles Goodyear em 1839, que por acaso mistura a
borracha natural com enxofre em uma chapa quente, adquirindo outra consistência ao material – elasticidade e
resistência às variações de temperatura. O inglês Thomas Hancock em 1843, consegue efetuar o mesmo processo
obtendo primeiramente a patente e dando maior disseminação comercial ao produto. Contudo, mesmo antes
desta técnica já haviam diversas aplicações para borracha, como calçados, colchões, peças industriais, roupas
etc.
149
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
150
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001. p. 86
  178  

desamparado, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos


feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e
de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para
sempre insolvente.
A sua atividade, desde o primeiro golpe de machadinha, constringe-se
para logo num círculo vicioso inaturável: o debater-se exaustivo para
saldar uma dívida que se avoluma, ameaçadoramente, acompanhando-
lhe os esforços e as fadigas para saldá-la. 151

No momento econômico da borracha desponta uma nova elite na região, com as


“casas exportadoras”, as “casas aviadoras” e os “coronéis de barranco”, deslocando as áreas
de maior interesse econômico do Baixo Amazonas para o Tapajós e Xingu e sobretudo para o
Juruá e o Purus. As casas exportadoras, aviadoras, os coronéis donos de seringais e os
comerciantes estabeleceram-se, via de regra, nos grandes centros, Belém e Manaus, onde
ocorriam as transações comercias de exportação da borracha. As antigas oligarquias
latifundiárias, não lograram tanto êxito com o extrativismo do látex no Baixo Amazonas, mas
mantiveram-se atreladas ao aparelho burocrático estatal dos grandes centros regionais,
mantendo-se influentes152.
No sistema produtivo da borracha a “contratação” dos imigrantes se dava pelo sistema
de aviamento. Os mesmos eram levados de suas terras agrestes para os seringais amazônicos,
onde trabalhavam no extrativismo. Chegavam no “barracão” com sua produção de borracha –
área controlada onde depositava-se o produto – já devendo o custo de sua viagem. Tinham
que pagar por sua alimentação e o que mais precisassem. Não podiam plantar para sua
subsistência mantendo-se dependentes dos aviadores e acabando por se endividar
progressivamente. Ao mesmo tempo, tinham que produzir cada vez mais para sair da dívida.
Criava-se uma situação na qual os seringueiros não tinham como se libertar na maioria das
vezes, nunca percebendo pagamento em espécie que lhe permitisse voltar para suas terras. O
aviamento estabelece uma teia de relações em que o “patrão seringalista” (e/ou um
intermediário/regatão) obtinha um crédito com o seringueiro a partir dos bens essenciais
permutados pela borracha produzida, criando uma situação de “servidão por dívida”153.
O Sistema de aviamento conectava o extrativista seringalista ao mercado exportador,
ao capital estrangeiro norte-americano e inglês que controlavam as casas exportadoras,
interligava os interiores com as cidades, a mata e a urbe, a seiva leitosa da seringueira com o

                                                                                                           
151
CUNHA, Euclides da, 1866-1909. Um paraíso perdido : reunião de ensaios amazônicos / Euclides da Cunha ;
seleção e coordenação de Hildon Rocha. -- Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. 393 p. --
(Coleção Brasil 500 anos) p.127 e 144
152
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
153
SANTOS, R. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: Editora T.A. Queiroz, 1980.
  179  

mundo154. O aviamento, assim como a patronagem, consolidou muitas das relações


socioeconômicas entre os estratos sociais amazônicos e, sobre outras roupagens, e ainda hoje
sobrevive, inclusive nos territórios estudados por esta pesquisa155.
O espaço amazônico à época da colônia portuguesa, século XVII, era vinculado às
classificações administrativas enquanto sertão, terras incultas, rio das amazonas e confins.
Palavras que designavam terras de pouco conhecimento ou menor interesse. Diante de
acirradas disputas entre franceses, ingleses, holandeses e espanhóis por aquelas terras, a coroa
portuguesa se via na necessidade de lançar mão de estratégias para assegurar a soberania
sobre sua área pleiteada156– dentre jogos burocráticos, negociações internas e externas,
missões religiosas e guarnições militares. Na perspectiva de se atribuir uma utilidade
mercantil e a legitimidade política da posse sobre o território, a “domesticação das terras
incultas”, fazia-se necessário a integração das terras ao comércio marítimo português, sua
exploração econômica e o controle militar. Essa estratégia se dava a partir de tratados
firmados entre os centros econômico-militares e não propriamente pela criação de uma
identidade com os povos locais157.
Antes de se estabelecer a fiscalização fazendária, o controle dos produtos, a
homogeneização da língua e dos credos, foram operadas as missões das Ordens Religiosas e
militares: o aldeamento de povos indígenas em missões jesuítas e a realização das
fortificações militares, como o Forte do Presépio em 1616, na foz do Amazonas onde vai
surgir a cidade de Belém. Medeiros158 aponta como importante ator-autor neste período o
Conselheiro Imperial Alexandre de Gusmão, em sua obra “Resposta ao papel do Brigadeiro
Antônio Pedro de Vasconcelos sobre o Tratado dos Limites da América” (1751) em que

                                                                                                           
154
Esse sistema em “rede”, extremamente espoliador e complexo por ter intermediários as vezes até mesmo
aviados/seringueiros, estabelecia numa peculiar cadência de conexões: a)
Floresta/seringueiras/seringueiros/víveres – a extração do látex/produção da borracha com a exploração do
trabalho estabelecida com a permuta dos produtos de outros locais (alimentícios, instrumentos de trabalho,
vestimenta etc.), não havendo, via de regra, pagamento em espécie ao seringueiro (haviam os contadores para
garantir que a dívida permanecesse); b) Rio/barco/regatão/seringalistas – a tecnologia do barco a vapor e o
“crédito” dos produtos de   subsistência proporcionavam o custeamento da viagem para os locais longínquos – o
seringalista ou o regatão (dono do barco e geralmente intermediário) obtinha a   borracha sem ter qualquer   custo
adicional; c) Urbe/casas-aviadoras/casas-exportadoras – venda da borracha para as casas   exportadoras em  
Manaus ou Belém; d) Capital estrangeiro – o recebimento do crédito controlado pelo capital inglês ou norte-
americano nas casas exportadoras, percebido enquanto moeda, apenas pelas casas aviadoras e seus
intermediários diretos (coronéis, patrões, comerciantes, regatões).
155
O documentário “Nas Terras do Bem-Virá”, Brasil, 2007, 111min.- Direção: Alexandre Rampazzo, traz uma
análise muito bem amparada das condições atuais de trabalho e exploração dos recursos na Amazônia brasileira.
156
Que em muito ultrapassava o Tratado de Tordesilhas.
157
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
158
MEDEIROS, R. A. L. op. Cit. p. 52 - 59
  180  

argumenta a importância dessas terras em disputa com a Espanha. Gusmão opera a linguagem
dos tratados para assegurar a efetividade do Tratado de Madri (1750), mantendo as pretensões
da Coroa Portuguesa – ainda nas suas modificações com os Trados de El Pardo (1761) e
Santo Ildefonso (1777) – nas terras da América Meridional.
Os aldeamentos das missões religiosas vão surgindo em pontos estratégicos ao longo
do Rio Amazonas, na confluência com outros rios como o Tapajós, o Trombetas, o Rio Negro
e o Japurá. Posteriormente estes locais vão dar origem às cidades da região: Santarém,
Óbidos, Manaus e Tefé – respectivamente. Com a domesticação dos índios inicia o processo
de exploração econômica da Amazônia por meio do extrativismo de sua fauna e flora –
especiarias, plumas e peles principalmente – tendo em vista atender o mercado europeu. As
denominadas “drogas do sertão” e os produtos da fauna, não se apresentaram como um
grande atrativo mercantil pela própria dispersão das mercadorias valiosas e dificuldade de
acesso. Por sua vez, também os aldeamentos dos índios nem sempre eram bem sucedidos.
Enquanto conhecedores daquele ambiente, em alguns casos, os mesmos se libertavam e se
refugiavam da “espada e da cruz” portuguesas159, retomando seus hábitos em locais mais
afastados. Porém, junto com os portugueses e a rede sócio-técnico-biológica que avançava,
chegavam também as pestilências virais e bacterianas das quais os índios não tinham defesas.
As epidemias rapidamente se alastravam e ceifavam milhares de vidas em curto período de
tempo160.
Com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e do Maranhão em 1755,
sobre o governo do Primeiro Ministro Marques de Pombal, a Amazônia se integra mais
efetivamente à lógica mercantil. Nesse momento a empresa comunitária jesuítica, fundada na
mão-de-obra servil dos índios amansados, sucumbe diante da empresa colonial,
economicamente mais eficiente, com base na mão-de-obra escravista das diásporas africanas.
Os jesuítas são expulsos da região e as terras passam a ser doadas por cartas de sesmarias
àqueles colonos e soldados que se comprometessem a cultivá-las. A agricultura e pecuária são
ampliadas sendo cultivados cacau, café, algodão, arroz, fumo e anil, consolidando a elite
latifundiária que irá se estabelecer politicamente na região (muito mais ligada a Portugal do
que à elite do resto do país161). Neste período é introduzido o trabalho escravo com negros em

                                                                                                           
159
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
160
Nesse sentido ver RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras. 2010.
161
Mesmo por questões geográficas, era mais barato, mais fácil e mais perto se deslocar para Portugal do que
para o sudeste do Brasil, especificamente para o Rio de Janeiro onde se situava a elite brasileira à época.
Observações do autor:
1 Mário Meireles (1980: 192) nos informa que, em 1680, esses escravos eram vendidos ao preço de Rs
60$000 por “fôlego vivo” de Angola. As “peças de Guiné”, no mercado de São Luís e Belém, valiam Rs
120$000 a 130$000, enquanto o índio escravo era vendido a Rs 30$000 (SALLES, 1988: 14).
2 As crianças eram vendidas na África, pagando imposto de exportação, sendo agrupadas em diversas
  categorias: “crias de pé”, definidas como aquelas que tivessem de quatro palmos para baixo e 181  
faziam jus à metade do pagamento do imposto. As “crias de peito” eram isentas de impostos
(KLEIN, 1987: 55).
3 No Pará havia um intenso comércio de aluguel de escravos. Segundo nos relata Salles (1988: 170),
um negro de bom físico e gozando de boa saúde era mercadoria cara no Pará Colonial. Os
proprietários dos escravos cobravam a diária do aluguel em 300 réis, ou Rs 7$500 por mês, ou Rs
1756.89$000
Entreporeste
ano.ano
Comoe um
o de 1788
escravo estima-se
podia quepor
ser comprado foram comercializados
Rs 112$500 cerca
por “peça”, esse era28.657162
preçode
inteiramente amortizado em quinze meses de aluguel, ressarcindo assim o capital empatado (SALLES,
1988: 170). As mais caras eram as amas-de-leite que eram compradas a Rs 500$000 e rendiam,
escravos
quandonegros
alugadas,na 320região do sendo
réis por dia, Grão-Pará
o capital einvestido
Maranhão, contribuindo
amortizado para anos.
em cerca de quatro a formação
Havia, naquele tempo, um mercado regular de famulagem das famílias abastadas que podiam pagar
os pretosda
multiétnica de região
sala e dee,cozinha,
com asmucamas, aios emesmos,
fugas dos aias, amas,dando
pagens,origem
arrumadeiras, lavadeiras
às muitas e
comunidades
cozinheiras (SALLES, 1988: 171).
163
remanescentes de quilombo da Amazônia que passaram a viver nos “mocambos” .
POPULAÇÃO DOS ESCRAVOS NEGROS DO GRÃO-PARÁ EM 1849

COMARCAS HOMENS MULHERES TOTAL %

BELÉM 9.637 9.552 19.189 56,10%


CAMETÁ 2.536 2.189 4.725 13,81%
SANTARÉM 2.018 1.865 3.883 11,35%
MACAPÁ 1.516 1.418 2.934 8,58%
BRAGANÇA 1.416 1.350 2.766 8,09%
RIO NEGRO 348 362 710 2,08%

TOTAL 17.471 16.736 34.207 100,00%


Tabela 01 – Publicador
Fonte: Fonte: Publicador
ParaenseParaense
– Belém,– ano
Belém, ano
I, n.º 64,I, de
nº 24
64,de
dedezembro
24 de dezembro dep.1849,
de 1849, p.1, reproduzido
1, reproduzido por
por Vicente Salles em O Negro no Pará (1988: 72).
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural. (2009:124)
Observações do autor:
1 Em 1849 a Comarca do Rio Negro ainda pertencia à Província do Grão-Pará, da qual iria se desligar
Na região
em 1850 para se do BaixonaAmazonas
constituir Província dode Santarém, Alenquer, Monte Alegre, Óbidos e Faro,
Amazonas.
2 A Comarca de Belém detinha a maior concentração de escravos da região: 56,10%. A proporção de
os sesmeiros iniciaram
escravos negros decresciapor voltaque
à medida dese1780
subia as
o rioplantações
Amazonas: a de
atualcacau
região,eocupada
criações
pelode gado. Esses
Estado
do Amazonas, detinha apenas 2,08% da população negra escrava.
3 O contingente populacional mais numeroso da Província do Amazonas provinha do grupo caboclo, que
Remediados, aplicados
detinha 63,93% a plantar
do total de habitantes,cacau noque
enquanto grupo deesse
no Pará 20percentual
colonoscaía adquiriram
para 16,20%233 escravos em
conforme
se demonstra no próximo quadro de composição étnica da populção amazônica em 1872 e 1890.
1778. Na medida em que o cacau ganhava importância entre os gêneros exportados entre
1783 e 1792, aumentava a população escrava164. A oscilação da economia cacaueira é
124 Samuel Benchimol
correlacionada à fuga de escravos, seja por estagnação, crise ou fenômenos ambientais que
enfraqueciam a propriedade e criavam as oportunidades. As fugas encontraram condições de
subsistência e isolamento contra as investidas de recaptura nas cachoeiras dos rios Curuá,
Trombetas e Erepecuru/Cuminá no século XIX. Conforme pesquisa de Funes, as épocas de
fuga se davam nas cheias e datas festivas de dezembro a maio, em que os escravos
provinham-se de suprimentos, pólvora e armas e subiam para as áreas menos transitáveis
desses rios. Assim formavam-se os quilombos, que representavam o espaço de reprodução
sócio-material autônomo, com núcleos familiares convivendo em espaço de uso comum. As
relações com o homem branco se mantiveram por trocas comerciais estabelecidas com os
regatões, suprindo os mercados locais com produtos extrativistas como a castanha-do-Brasil,
peles, peixes, tartarugas e excedentes de agricultura, atingindo importância econômica na

                                                                                                           
162
A estimativa é dada por Herbert Klein, da Columbia University de New York, traduzido e publicado pelo
IBGE nas Estatísticas Históricas do Brasil apud BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural.
3ª edição. Manaus: Valer, 2009. p. 124
163
Esse momento nos é de substancial importância, pois a formação de um dos principais grupos de atores que
compõem a pesquisa tem aí a sua origem. Os negros que se refugiaram da escravidão nas fazendas de cacau das
regiões de Santarém e Óbidos, sobem o Rio Trombetas e se estabelecem acima das cachoeiras onde não podiam
ser recapturados. Esse ponto será aprofundado posteriormente.
164
ACEVEDO, A. & CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993. p.17
  182  

região. Essa participação vai repercutir em proteção por parte dos setores comerciais que se
beneficiavam com as trocas, dificultando as investiduras da ordem escravocrata165.
Na conquista de seus territórios e no domínio sobre os mesmos a relação com os
povos originários é apontada de maneira dúbia na literatura. Ora como relações amistosas, ora
como conflituosas em que os índios eram cada vez mais afastados. Inclusive há relatos sobre
relações de escravidão e sequestro de mulheres indígenas para procriação166. Por sua vez a
autonomia que atingiram sobre os territórios, o substancial contingente populacional que
formaram e as hibridizações culturais e genéticas com os indígenas, assumindo parte de seus
costumes, confluem nos estudos167.
Em 1772 a província do Grão-Pará é separado do Maranhão, posteriormente tornando-
se província do Império em 1823. É subdividido novamente nas províncias do Pará e do
Amazonas pela Lei 582 de 05 de setembro de 1850 que, por sua vez, tornam-se dois estados
federativos em 1889, com a República proclamada168.
Entre 1834 e 1840 uma violenta revolta se instaura na província do Grão-Pará
contribuindo para a afirmação indenitária daqueles povos, principalmente dos subjugados
pelas elites locais. A “cabanagem” explode com os braços dos índios, negros, caboclos e os
brancos renegados e afastados da vida pública. Resumidamente, o movimento toma a capital
Belém em 1835, executando em via pública o presidente provincial Bernardo Lobo de Souza,
o comandante das armas da província, Joaquim Silva Santiago e o capitão James Inglis e
colocando no poder o líder cabano Ten-Cel Félix Antônio Clemente Malcher. O poder sobre a
capital dura pouco sendo retomado no mesmo ano. Isso se dá pelas alianças militares
estabelecidas pelo império (Portugal, Inglaterra, França) e devido às divergências entre os
próprios cabanos, subdivididos em facções, sem uma unidade que permitisse a manutenção do
poder. Por sua vez, subsistindo como guerrilhas, o movimento vai ser liquidado apenas em
1840, levando dois terços da população masculina paraense, cerca de 40.000 homens, na
imensa maioria cabanos. A cabanagem se destaca pelo caráter de secessão que assume com a
proposta de se criar o país do Amazonas. Nesse processo há a participação dos negros dos
                                                                                                           
165
FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
166
HILBERT, Peter Paul. A cerâmica Arqueológica da Região de Oriximiná. P. Nº 9 Belém: Instituto de
Antropologia e Etnologia do Pará, 1955.
167
Nesse sentido: ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea,
1993.; ANDRADE, Lúcia M. M. de. Os Quilombos da Bacia do Trombetas: breve histórico. Revista de
Antropologia. Volume 38, nº 01, São Paulo, 1995, p.79-99.; e FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive
Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História
da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
168
STELLA, T. H. T. A integração econômica da Amazônia (1930-1980). Dissertação (Mestrado em Economia)
– Instituto de Economia. UNICAMP, Campinas, 2009.
  183  

mocambos que auxiliaram os revoltosos e da mesma forma se valeram da instabilidade


política para engrossarem seus contingentes169.
Conforme Ribeiro170, os conflitos de toda ordem que dilaceraram a história brasileira
guardam dois traços importantes: não foram conflitos puros e não chegaram a amadurecer
como uma alternativa viável ao poder, conquanto como reais ameaças. Segundo o mesmo
autor, o caráter marcante desses conflitos interétnicos é a disputa pela hegemonia da imagem
étnica que se buscava imprimir na sociedade. Uma vez no poder representaria outra
organização social em substituição à anterior, percebida enquanto espoliadora171.
Segundo Santos172, além dos portugueses e brasileiros nativos e mestiços, os
imigrantes estrangeiros também contribuíram para a consolidação da extensa rede sócio-
técnica do ocidente na região com a infraestrutura de portos, energia, telegrafia, telefonia,
saneamento, comércio e crédito. Alemães, ingleses, americanos, franceses, judeus, norte-
africanos, sírio-libaneses entre outros, vão trazer e implementar novas tecnologias e compor
também esse processo histórico da gênese desse vastíssimo território.
No império e ainda na república, perdurava uma constante ameaça de interesses
externos173 e indeterminação das fronteiras territoriais na região. Se, de um lado, o avanço da
colonização com suas espoliações, aculturações, miscigenações acarretava na desconsideração
completa e subjugação dos povos de lá, do outro, criava uma vinculação religiosa, linguística
                                                                                                           
169
SALLES, V. O Negro no Pará, Sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas e
Universidade Federal do Pará, 1971.
170
RIBERIO, D. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.
2010. p. 167-168
171
Apenas para marcar a posição cabe ressaltar que, em nossa leitura, as concepções de exploração social,
habitualmente percebidas como de um grupo étnico sobre outro, ou de uma classe sobre outra, “do homem pelo
homem”, é estendido também à sua microfísica que leva a perceber essa exploração no interior de cada grupo
étnico entre seus membros, em cada unidade familiar de qualquer classe, numa interação individual do mais
velho sobre o mais novo, do mais forte sobre o mais fraco, ou mesmo, do humano sobre os animais, p. ex. O
pano de fundo ético judaico-cristão, ampliado e “purificado de suas bases divinas” nos ideias iluministas e
marxistas de igualdade, tendem a ver um “bom” e um “mau” estancados que culminam inevitavelmente num
maniqueísmo simplista. Tem tanto “mau” presente no “bem” e vice-versa que optamos – conforme posição
firmada na segunda parte da tese – em não apresentar uma fotografia da hierarquia que se sobrepõe sobre os
interesses em jogo (que no nosso caso vai dos acionistas das megacorporações mineradoras tomando os
territórios dos quilombolas com o aval do governo, ao cachorro sofrido da comunidade cuja existência é despida
de qualquer valor intrínseco para os mesmos), mas apresentá-la num mapa que pode ser refeito, em seu
movimento, em suas conexões, em suas desterritorializações e reterritorializações, na expressão de Deleuze e
Guattari.
172
SANTOS, R. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: Editora T.A. Queiroz, 1980. p. 97
173
A forte pressão externa para a abertura do Amazonas para livre navegação e comércio internacional, apoiada
pela Inglaterra, França, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela e elites locais, tinha como principal interessado os
EUA. O império norte-americano chegou a cogitar a invasão da Amazônia em 1850 para alocar ali a população
negra do sul daquele país na exploração da borracha e algodão. Com a criação em 1853 da Companhia Nacional
de Navegação e Comércio do Amazonas, monopólio concedido ao Barão de Mauá, e, posteriormente, com a
abolição da escravatura nos EUA em 1863, a ameaça foi afastada. Por sua vez, em 1866 ocorre a abertura da
livre navegação na Amazônia à todos os países, excetuada para navios de guerra, e somente em nome “da ciência
e do progresso”.
  184  

e comercial que contribuía para a consolidação político-institucional do Estado brasileiro


nestes territórios. O princípio do direito internacional, uti possidetis, fora constantemente
evocado para assegurar a soberania nacional na região, legitimado pela caracterização do uso
da terra, ainda que na perspectiva assimétrica brevemente narrada. Neste contexto, um ator de
destaque foi o Barão do Rio Branco, com importante missões políticas para assegurar os
interesses brasileiros frente as ostensivas externas, conforme Medeiros:
A atuação do Barão se inscreve nas seguintes contendas: (1) o
território de Palmas e a contenda de limites com a República
Argentina (Tratado de Montevidéu de 25 de janeiro de 1890 e
arbitramento do presidente dos Estados Unidos da América); (2)
disputa territorial com a Guiana Francesa (caso Amapá), pretensões da
França na bacia amazônica, a controvérsia foi resolvida por
arbitramento do Conselho Federal Suíço, missão do Barão em Berna;
(3) limites do Brasil com a Guiana Inglesa, também ocorreu
arbitramento, não de todo satisfatório aos interesses do Brasil,
Joaquim Nabuco foi convidado por Rio Branco para representar o
Brasil, Tratado de Arbitramento de 6 de novembro de 1901; (4) a
questão do Acre, após toda a movimentação de confronto da soberania
boliviana por parte de seringueiros brasileiros e o agravamento da
situação com a entrada da Bolivian Syndicate, Paranhos Jr. costura
acordos com EUA e Inglaterra, a fim de desfazer os interesses
comerciais do Bolivian Syndicate e prevenir potenciais intervenções.
Esse arranjo político deixa o caminho livre para o Brasil continuar
negociando diretamente com a Bolívia (Tratado de Petrópolis de 17 de
novembro de 1903); e (5) pretensões peruanas aos territórios entre os
rios Javari e Madeira, expansão brasileira nas bacias dos rios Purus e
Juruá (Tratado de Limites de 8 de setembro de 1909); limites com a
Colômbia (tratado de 24 de abril de 1907); (6) Uruguai (tratado de 30
de outubro de 1909); e (7) Guiana Holandesa, em 1906. Em todas elas
foram utilizadas a categoria do uti possidetis para legitimar a posse
brasileira174.

A consolidação do Estado Brasileiro atrelado às elites litorâneas, principalmente da


região Sudeste e Sul, e suas políticas centralizadoras, vão marcar o continuado e reconhecido
descaso do país para com a região. Marginalizada e submetida a políticas dilapidadoras
atreladas aos interesses centrais, muitas vezes em detrimento dos interesses regionais, o Norte
do país seguiu flutuando entre a negligência interna e o interesse externo. A atividade
econômica altamente lucrativa da borracha, que tanto drenou recursos para a capital, Rio de
Janeiro, na época, sofre declínio em 1913 devido à concorrência das platations de
seringueiras da Inglaterra na Ásia. Houve uma ruptura quantitativamente significativa da
                                                                                                           
174
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.  
  185  

exportação da borracha amazônica para os países exportadores. Os mesmos passam a adquirir


por preços bem inferiores a borracha asiática, repercutindo na desagregação da complexa rede
social que se formou em torno desse extrativismo, acarretando inúmeras falências e novas
reestruturações sociais. Atividades de agricultura são retomadas e outros produtos do
extrativismo vão ganhar espaço como a castanha, óleos vegetais, madeiras e fibras vegetais,
contudo sem atingir a relevância da era áurea da borracha.
Essa breve contextualização histórica nos serve de base para compreender o que se
sucede posteriormente e que assume maior importância no estudo, principalmente com as
políticas de desenvolvimento implementadas a partir da década de 1960. Adentrar na história
dessa região, não obstante os olhares historiográficos arbitrarem seus enfoques e
reproduzirem seus recortes, visou nortear o percurso, apresentar algumas das conexões que
vão configurar as territorialidades que se instauraram. As visões relatadas também não
deixam de ser contrastadas com as vivências, por vezes dando margem a outras
interpretações.
Se de um lado temos a configuração socioambiental, econômica, institucional e
territorial amazônica atrelada ao extrativismo de seus recursos, à exploração do trabalho
migrante, à escravidão, aos interesses egóicos das elites – realidade não muito diferente do
restante do país – mas num contexto de isolamento e “descaso” para com a região; de outro
lado, esse mesmo descaso e a biogeografia local colaborou não apenas para manter esse
bioma mais íntegro, mas também para que os povos nativos e os espoliados negros e mestiços
se refugiassem nos interiores e estabelecessem conexões mais fortes com outros
conhecimentos, sobretudo dos próprios nativos. Por essa perspectiva, teriam obtido maior
“independência” em relação aos modos de vida dos colonizadores e possibilitando uma maior
diversidade de grupos humanos que ainda sobrevivem (dentre indígenas, ribeirinhos,
quilombolas) com relativo isolamento. Por assim dizer, grupos menos dependentes dos
conhecimentos, das técnicas e dos objetos do ocidente, agenciando os elementos daquele
ambiente de forma própria, relacionada aos conhecimentos locais, de maneira “imediata” e
sem desintegrá-lo ou homogeneizá-lo por completo. Dependem da “integridade” do ambiente
que lhes provem praticamente tudo que necessitam, mas assistem um intercambio cada vez
mais intenso com os saberes e objetos ocidentais que lhes reconfigura junto com seus
ambientes.
Apesar de existir uma grande diversidade cultural no restante do país, as comunidades
e povos tradicionais das demais regiões, via de regra, apresentam menor grau de “autonomia”
se comparados com os amazônicos. As configurações ambientais que se desenharam os
  186  

tornaram mais “integrados” e dependentes das tecnologias “comuns”, não obstante estarem
marginalizados ou mesmo isolados. Além do mais, com exceção de poucas áreas como o
norte, as demais regiões guardam o estigma da dizimação de parte significativa dessa
diversidade sócio-natural (sobretudo dos indígenas), bem como o extermínio de parte
substantiva do próprio ambiente e dos saberes locais. Nesse sentido, o que o imenso
ecossistema amazônico pode oferecer em termos de subsistência para grupos sociais
tradicionais ou autóctones, tornou-se extremamente raro se comparado ao restante do país.

1.2 Integrar e desintegrar: o avanço do progresso e a construção da ordem

O vale do Amazonas em futuro não muito remoto será um centro de


civilização e o celeiro do mundo.
(A. Humboldt)

Entre as idas e vindas do campo nas unidades de conservação eu encontrava sempre


um ambiente confortável e familiar na Unidade Avançada José Veríssimo em Oriximiná. Em
grande parte das vezes estavam estabelecidos ali estudantes e professores da Universidade
Federal Fluminense de áreas diversas como medicina, enfermagem, antropologia, veterinária
entre outras, que proporcionavam ricas trocas de experiências e informações.
A UAJV, criada pela resolução 024 de 1972 do conselho Universitário, é vinculada à
Pró-Reitoria de Extensão da UFF e tem como objetivo atividades de ensino, pesquisa e
extensão, levando estudantes da universidade federal no estado do Rio de Janeiro ao
município de Oriximiná, na calha norte do Pará. A UAJV conecta-se diretamente às políticas
governamentais do regime militar que estabeleceram na região amazônica diversas unidades
acadêmico-extensionistas subordinadas às universidades do sudeste, sob o lema
governamental do “integrar para não entregar”. Com trabalhos diversos, os Campis marcavam
importantes políticas governamentais que visavam suprir as reais carências das diversas
localidades, principalmente em educação e saúde. Instalada incialmente no município de
Óbidos em 1972 e transferida para Oriximiná em 1973, onde se estabeleceu, a UAJV
contribuiu substantivamente para a estruturação do município com a formação de mão de obra
local, intercâmbio de profissionais de fora, estruturação do sistema de saúde (SUDS e depois
SUS) e com o Hospital e Maternidade São Domingos Sávio. Essas geopolíticas175 marcam a

                                                                                                           
175
Considerando o termo aqui em sua concepção mais amplamente disseminada: enquanto políticas formuladas
levando-se em consideração os fatores geográficos como formas de se imprimir disciplina e poder sobre os
territórios e re-estruturar a realidade sócioeconômica.
  187  

ambivalência das propostas governamentais para a região, o que tanto integra quanto
desintegra, conforme o olhar pregresso nos revela.
Se a economia gomífera fez conectar a seiva daquela planta à toda produção técnico-
industrial do ocidente, fez estender também parte dessa rede sócio-técnica à região, sobretudo
nos centros urbanos Belém e Manaus. Trouxe iluminação às ruas, novos meios de transporte,
serviços variados. Trouxe a infraestrutura dos grandes centros, inclusive uma incipiente
indústria manufatureira e a reprodução do conhecimento científico com a Universidade de
Manaus, em 1912 (anterior Escola Livre de Manaus em 1909). Entretanto, estar sustentada em
uma economia primário-exportadora, com foco centrado em poucos produtos, basicamente a
borracha, escancarava a fragilidade dos laços que amarravam essa rede. A posição de
isolamento, a dilapidação tributária do governo central, as relações pré-capitalistas de
produção com o sistema de aviamento, as constantes transferências de recursos das elites para
o exterior e a predominância do capital mercantil, são apontados como fatores que inibiram a
acumulação primitiva do capital e consequente reprodução ampliada do mesmo, com o
reinvestimento na industrialização e diversificação econômica. Ou seja, apesar de auferir
imensos recursos, estes não promoveram o desenvolvimento do capitalismo industrial na
região, como ocorreu com o café no sudeste do país.
Com a “revolução” de Getúlio Vargas em 1930, inicia-se um novo período de
integração territorial no Brasil, com significativas mudanças em âmbito comercial e
produtivo. A exportação primária vai cedendo lugar para a industrialização e para o comércio
nacional interno, como uma bem-sucedida reação à crise de 1929 que atingiu globalmente os
países capitalistas. Com o fortalecimento do Estado e sua intervenção mais efetiva na
economia, a partir do Estado Novo em 1937, surgem políticas públicas que corroboram a
modernização do Estado brasileiro, tais quais: programas de colonização agrária e créditos
agrícolas e industriais pelo Banco do Brasil; instituem-se órgãos setoriais do governo para
tratar assuntos estratégicos, criam-se empresas estatais de grande porte e promove-se a
nacionalização de recursos minerais e o controle federal de produtos agrícolas – dentre eles o
cacau, o café e o açúcar. Integrar a região Norte através da institucionalização de políticas
estratégicas passa a ser uma das bandeiras desse governo. Pode-se depreender o matiz desse
direcionamento político em algumas passagens do pronunciamento presidencial intitulado de
Discurso do Rio Amazonas, proferido no Teatro Amazonas em 10 de outubro de 1940:
[...] Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta, foram as
nossas tarefas. E nessa luta, que já se estende por séculos, vamos
obtendo vitória sobre vitória. [...] Necessitais adensar o povoamento,
acrescer o rendimento das culturas, aparelhar os transportes. [...] Da
  188  

colonização esparsa [...] devemos passar à concentração e fixação do


potencial humano. [...] Com elementos de tamanha valia, não mais
perdidos na floresta, mas concentrados e metodicamente localizados
será possível, por certo, retomar a cruzada desbravadora e vencer,
pouco a pouco, o grande inimigo do progresso amazonense, que é o
espaço imenso e despovoado. É tempo de cuidarmos, com sentido
permanente do povoamento amazônico.[...] O nomadismo do
seringueiro e a instabilidade econômica dos povoadores ribeirinhos
deve dar lugar a núcleos de cultura agrária, onde o colono nacional
recebendo gratuitamente a terra, desbravada, saneada e loteada, se fixe
e estabeleça a família com saúde e conforto.[...] Vim para observar de
perto as condições de realização do plano de reerguimento da
Amazônia. Todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o
desejo patriótico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento. E não
somente os brasileiros; também os estrangeiros, técnicos e homens de
negócios, virão colaborar nesta obra, aplicando-lhe a sua experiência e
os seus capitais, com o objetivo de aumentar o comércio e as
indústrias e não, como acontecia antes, visando formar latifúndios e
absorver a posse da terra, que legitimamente pertence ao caboclo
brasileiro. [...] Nada nos deterá nesta arrancada que é, no século XX, a
mais alta tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales
das grandes torrentes equatoriais, transformando sua força cega e sua
fertilidade extraordinária em energia disciplinada176.

Nesse cenário, compreendia-se como principal óbice ao desenvolvimento da


Amazônia a concepção de um “vazio demográfico” – o que se reproduziu no período anterior
e também no posterior. Esse argumento pode ser reafirmado pelas estatísticas que de fato
sempre apontaram a baixa densidade demográfica, mas esta percepção se relativiza quando se
conhece os modos de vida das populações nativas e tradicionais que ali vivem e as relações
que estabelecem com aquele ambiente. Entretanto, nesse novo contexto do “coletivo em
expansão” e sua bandeira de colonização, a estratégia política de Estado consubstanciava-se
num plano denominado “Movimento de Reconstrução Nacional” que possuía como diretrizes
a realização de expedições para ocupar os “vazios demográficos”. Não obstante a
insensibilidade do governo para com os povos nativos, aqueles que promoveram as
expedições buscaram integra-los com maiores cuidados. Assumem a mesma perspectiva
experimentada no início da República, na primeira década do século XX, por Candido
Mariano da Silva Rondon, o Marechal Rondon, percebendo os mesmos enquanto possíveis
formadores da nação e empenhando sua filosofia do “morrer se preciso for, matar nunca”.
A “Marcha para o Oeste” e a “Expedição Roncador-Xingu” rumara no começo da
década de 1940 para o “coração do Brasil, desconhecido e mitificado”, com fins de promover
                                                                                                           
176
VARGAS, Getúlio. Discurso do Rio Amazonas. In. Revista Brasileira de Geografia. Quarto centenário do
descobrimento do Rio Amazonas. Abril – Junho. 1942. p. 3 - 6
  189  

sua colonização. A missão era “preencher seus vazios” com a abertura de estradas e
identificação de locais propícios à implementação de campos de pouso, bases militares e
futuras cidades. A épica expedição foi liderada inicialmente pelo Coronel Flaviano de Mattos
Vanique e seu grupo de frente com 40 homens, cada um com “um fuzil, cinquenta balas e um
par de botas”. No seu avançar passou a ser liderada pelos irmãos Leonardo, Orlando e
Cláudio Villas-Bôas, após a desistência de Vanique que não queria lidar com os indígenas. A
epopeia percorrera mil e quinhentos quilômetros de picadas abertas e rios, desbravando o vale
do Araguaia e o sul da Amazônia177. A medida que avançava deixava para trás a marca do
“progresso”, com bases militares, criação de estradas, pistas de pouso e fundando dezenas de
vilas que posteriormente tornam-se cidades. Junto com as estradas chegam as fazendas, a
demarcação do território sob a lógica colonizadora da política à brasileira, privilegiando
sempre os “amigos do rei”. A mata vai cedendo lugar às plantações de grãos e criação de
gado, os povos nativos vão se hibridizando e sucumbindo nas doenças, nos trabalhos
espoliadores e na perda de seus habitats. Na ambiguidade dessas relações e na força política
dos Villas-Bôas e Darcy Ribeiro, foi criado a primeira terra indígena demarcada em 1961,
pelo então presidente Jânio Quadros. O Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do
Xingu), com 27 mil quilômetros quadrados, abriga catorze etnias representando um mosaico
linguístico com quatro grande famílias: Carib, Aruak, Tupi e Jê. Essa perspectiva política da
época entendia ser necessário o isolamento cultural dos indígenas, tanto quanto possível, para
assegurar sua subsistência, postergando ao máximo o inevitável contato com o homem
branco.
O pensamento geopolítico militar brasileiro no primeiro momento de Vargas tem
como expoente Mário Travassos com sua obra Projeção Continental do Brasil de 1938.
Preocupado com a integração e controle militar-econômico do continente sul-americano com
a liderança brasileira, sua análise subdivide-se em dois eixos de projeção estratégica:
Atlântico x Pacífico e Prata x Amazonas. Travassos percebia como desafio a essa integração
econômica sul-americana a forte influência norte-americana no continente. Em particular,
negativo aos interesses brasileiros, a influência dos EUA na bacia amazônica. Dentro dessa
perspectiva iniciam-se as projeções de fortalecimento político institucional através de redes de

                                                                                                           
177
VILLAS BÔAS, O.; VILLAS BÔAS, C. A Marcha para o Oeste: A epopeia da expedição Roncador-Xingu.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  190  

transportes terrestres e aéreos, telecomunicação, trocas econômicas e povoamentos que


conectassem longitudinalmente as regiões mais isoladas do norte com o litoral sul-sudeste178.
No primeiro período da era Vargas a Amazônia mantinha-se na condição de
exportadora primária, entretanto mais voltada para o mercado interno e com exportações mais
diversificadas (apesar da borracha se manter como o principal produto). A ligação com o
restante do país se dava pelo comércio costeiro através da cabotagem. Enquanto o sudeste e
sul se industrializavam cada vez mais, as desigualdades regionais se exorbitavam, marcando
ainda mais os contrastes entre os estados ricos e pobres no país. Vargas, com sua política de
forte apelo nacionalista, amplia a presença do Estado na região Norte e cria o Serviço de
Navegação do Amazonas e de Administração de Porto do Pará (SNAPP), estatizando as
companhias inglesas The Amazon River Steam Navegation Company Limited e Port of Pará.
Em 1943 cria novos Territórios Federais (além do Acre) em áreas estratégicas com presença
de minerais: Rio Branco, Guaporé e Amapá179.
Entretanto, neste mesmo período, o Brasil estava sobre forte pressão dos EUA para
que aderisse aos Acordos de Washington e saísse da condição de país neutro com relação à II
Grande Guerra. Cedendo à pressão, o Brasil (sob a ameaça de invasão norteamericana no
Nordeste) declara guerra ao Eixo – Alemanha, Itália e Japão. Esse episódio vai repercutir
significativamente na região Amazônica, ao mesmo tempo em que esta vai ganhar
importância crucial na II Guerra. Com o controle do Japão sobre a heveicultura na Ásia, que
se tornara a principal fornecedora de borracha para o ocidente, a indústria americana e aliada
bélica e automobilística viu-se gravemente ameaçada e novamente a borracha da Amazônia
ganha importância mundial. Nesse momento, a presença norte-americana na Amazônia se
fortalece abrangendo as esferas empresarial, política e militar. Em contrapartida à adesão
brasileira, os EUA vendem armamentos para o Brasil e concedem altos valores em
empréstimos que possibilitaram a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e da
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).
Em 1942 ocorre uma nova etapa de migração nordestina para a Amazônia, no episódio
conhecido como “Batalha da Borracha”. Para atender as demandas emergências dos EUA e
dos aliados em guerra, o governo brasileiro inicia uma grande campanha publicitária para
angariar mão de obra para os seringais, tendo como foco principal os nordestinos castigados
pela seca. Diziam as campanhas: “Rumo à Amazônia – Terra da fartura”, “Vai também para
                                                                                                           
178
MEDEIROS, R. A. L. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012. p. 96 - 98
179
Atuais estados de Roraima, Rondônia e Amapá.
  191  

Amazônia – Protegido pelo SEMTA”, “Mais pneus para a vitória”, “Mais borracha para a
vitória”, “Cada um no seu lugar – Brasil para a vitória”, entre outros slogans tresvariados,
propagandeados pelo governo que contratara até o artista suíço Jean-Pierre Chabloz180.

Ilustração 02: Jean-Pierre Chabloz, 1942. In. Jornal da Unicamp, nº 542, Campinas. 15 de outubro de 2012.

Como era necessário um aumento exponencial da produção de borracha e as


migrações, nesse primeiro momento, não estavam cumprindo suas metas, passou-se a uma
convocação compulsória de nordestinos para os seringais. Os “soldados da borracha”, em
torno de cinquenta mil pessoas, ao contrário do paraíso difundido pelo governo,
(re)encontraram o “inferno verde”181 que, diante das condições insalubres de transporte,
alojamento e trabalho nos seringais, ceifou milhares de vidas (em torno de 30% a 40% das
pessoas enviadas ou mais). Os EUA participaram do processo ativamente fornecendo recursos
financeiros e tecnologias, drenando gordas verbas para o SNAPP para ampliar a navegação,
inclusive exigindo um contrato de trabalho entre seringalista e seringueiro que destinasse 60%
do lucro ao seringueiro182. Esse acordo jamais foi cumprido, repetindo-se o mesmo sistema de
aviamento narrado anteriormente. Nos permitimos verbalizar que se há uma assimetria nas
relações exteriores que submetem o país, grosso modo, à eterna condição de colônia
fornecedora de matéria-prima, internamente há um amparo, algo mais do que uma
cumplicidade e complacência, por parte da elite nacional que não apenas historicamente
sustenta essa condição, vendendo aviltantemente os recursos que deveriam ser bens comuns,
mas a própria alma do povo.

                                                                                                           
180
MORAES, A. C. A. Jean-Pierre Chabloz e a Campanha de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
(1943): cartaz e estudo preliminar em confronto. In. VI EHA – Encontro de História da Arte – Unicamp.
Campinas, 2010.
181
Obra literária, com onze contos, de 1908 de Alberto Rangel. Assim como Euclides da Cunha, que chefiou a
expedição para o auto Purús, Rangel parceiro de Euclides, em sua obra buscava retratar a vida do homem na
floresta amazônica e o trabalho duro nos seringais. O livro com seu “ardente verbalismo” desmitificava a ideia
de Eldorado que habitava o consciente popular de outras regiões do país na época.
182
STELLA, T. H. T. A integração econômica da Amazônia (1930-1980). Dissertação (Mestrado em Economia)
– Instituto de Economia. UNICAMP, Campinas, 2009. p. 76
  192  

Nesse período a aliança estadunidense configurava-se também com a presença das


corporações Rubber Development Corporation - RDC, a Board of Economic Warfare, a
Rubber Reserve Company - RRC, a Reconstrucction Finance Corporation e a Defense
Supllies Corporation. O Brasil, por sua vez, cria o Serviço Especial de Mobilização de
Trabalhadores para a Amazônia – SEMTA, que posteriormente é substituído pela Comissão
Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia - CAETA, a
Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico - SAVA e o Banco de Crédito da
Borracha – BCB, associado ao capital americano.
Os resultados dessa associação não foram positivos para a região e nem para os
trabalhadores, muito pelo contrário. Além da baixa produtividade, a aliança se findou logo
que se recuperou o poder sobre a produção asiática, ocasionando novamente diversas
falências nos seringais brasileiros. Todo esse projeto fora estruturado para atender uma
demanda de curto prazo, sem uma visão de futuro que assegurasse sua continuidade. O custo
em vidas humanas expõe um episódio lamentável da história do país. Na mesma linha, a
experiência realizada pela Ford em Belterra levou o mesmo destino da anterior em
Fordlândia: o abandono. Adiante, a produção da borracha se volta para o mercado interno,
mas sem atingir grande relevância comercial, ou mesmo, sem se manter sustentável
economicamente.
Na sequência da primeira era Vargas – que inaugura uma “nova modalidade” de
integração desses interiores que se estenderá nas próximas décadas – outros episódios
importantes vão configurar a área. Com a Constituição Federal de 1946, criou-se o Plano de
Valorização da Amazônia e, em seu artigo 199, passou-se a destinar 3% da renda tributária da
União para a Amazônia183. Em 1952 foi criado o Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia – INPA, substituindo o Instituto Internacional da Hileia Amazônica – IIHA de
1947, considerado ameaça à soberania nacional184. O BCB estatizado subsidiava a cadeia
produtiva da borracha que já não se sustentava por si só, mantendo a consolidada e obsoleta
estrutura econômica local, mas politicamente estável e vinculada a floresta e seus povos. Em

                                                                                                           
183
No documento oficial do governo chamado “Operação Amazônia” de 1966, é relatado, página 40, que: “Não
se cumpre o dispositivo constitucional de vincular três por cento da recita tributária para programas de
valorização da Amazônia”.
184
O ex-presidente, então parlamentar, Arthur Bernardes liderou a campanha contra o Instiuto da Hiléia, dizendo
ser o mesmo uma proposta de internacionalização da Amazônia, destacando que o mesmo: “poderia adquirir,
possuir e levar bens, contratar e assumir obrigações, receber contribuições e donativos, movimentar fundos, criar
e gerir centros científicos e outros serviços em geral, executar atos legais necessários às finalidades”. O IIHA,
com conclave em Iquitos, Perú, reunia além dos países possuidores de territórios amazónicos, os que detinham
relações coloniais como França, Holanda, Inglaterra e também a Itália que não se enquadrava nos intereses
diretos. GOVERNO FEDERAL. Operação Amazônia, Brasília. 1966. p. 130
  193  

1950 o BCB vai ser renomeado enquanto Banco de Crédito da Amazônia – BCA, ampliando
o rol de operações bancárias para diversas atividades, não apenas a borracha.
O retorno democrático de Vargas em 1951 marcou o pensamento nacional-
desenvolvimentista, em certa medida, influenciado pela Comissão Econômica para a América
Latina e Caribe da ONU, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDE e pela doutrina
da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e seu diagnóstico de eliminar os “pontos de
estrangulamento” da economia nacional. Por sua política própria foi criada a Petrobrás em
1953, entre outras estatais, consideradas como grande obra do nacionalismo político-
econômico de Vargas a contragosto norte-americano185. Para a região amazônica suas
políticas buscavam a promoção de um desenvolvimento capitalista, mas sem desconstituir os
sistemas econômicos vigentes na época e suas relações de poder (considerando os interesses
das elites locais e a ordem social estabelecida). A Amazônia seguia como consumidora de
produtos de toda ordem e exportadora primária de produtos do extrativismo e da agricultura.
Neste período, em 1953, foi regulamentado o Plano de Valorização da Amazônia e
criada a Superintendência para a Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA, pela Lei
Federal 1806 de 1953186. Essa mesma Lei incorpora à Amazônia o Estado de Goiás, do
Maranhão e do Mato Grosso, que passou a se chamar Amazônia Legal. Aí estabelecidas suas
delimitações por razões geoeconômicas, como forma do governo planejar e promover o
desenvolvimento da região, não mais pela característica florestal do bioma.
Após Vargas, no período subsequente, a lógica do capitalismo industrial se aprofunda,
constituindo-se indústrias ainda mais pesadas, realizando-se empréstimos ainda mais
vultuosos, criando uma vinculação ainda mais estreita com a sócio-tecnologia do modelo
econômico ocidental – um alinhamento mais fiel como ocorreu no governo Dutra. Na mesma
medida em que se aprofunda o capitalismo industrial e sua fome de mobilizar uma imensa
diversidade de seres humanos e não-humanos, se aprofundam as desigualdades entre os
centros e as periferias, tanto na microescala quanto na macro. A Amazônia agora se torna uma
importante “fronteira de recursos” e deve ter continuada a política de integração já iniciada
por Vargas. Só que ampliada, criando-se novas conexões, conexões mais íntimas com a
própria rede sócio-técnica que se instaurara: por estradas.

                                                                                                           
185
SKIDMORE, T. E. Brasil de Getúlio Vargas à Castelo Branco (1930 – 1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1975.
186
A SPVEA tinha como objetivo: a) assegurar a ocupação da Amazônia em um sentido brasileiro; b) constituir
na Amazônia uma sociedade economicamente estável e progressista, capaz de, com seus próprios recursos,
prover a execução de suas tarefas sociais; c) desenvolver a Amazônia num sentido paralelo e complementar ao
da economia brasileira.
  194  

No governo de Juscelino Kubitscheck, 1956 – 1961, destacam-se a criação de Brasília


– que desloca a capital para região central do país – e a implementação das diretrizes
estabelecidas ainda no governo anterior para a dinamização da economia nacional. As
mesmas vão constituir o “Plano de Metas” do governo, abarcando cinco setores básicos da
economia e trinta e um objetivos – “cinquenta anos em cinco” era o lema desenvolvimentista
do governo. Dos cinco setores gerais – indústria de base, transportes, energia, alimentação e
educação – os três primeiros drenaram 93% dos recursos. Nesse período foi criada a Zona
Franca de Manaus – ZFM, pela Lei 3.173/1957 que, apesar de ser direcionada para o
comércio externo com os países vizinhos, foi forte instrumento de integração com o mercado
interno. Também foi criada a Universidade Federal do Pará – UFPA, o Acre se eleva a
categoria de Estado em 1962 e se iniciam os levantamentos aerofotométricos na região para
levantamentos de suas “potencialidades”. Ainda neste momento se inicia a integração da
região amazônica à malha viária nacional: a BR-010 – Belém/Brasília concluída em 1960
com 1954 Km de extensão; a BR-029 – Brasília/Porto Velho/Rio Branco, concluída em 1961
com 3.306 Km.
A Amazônia ocidental e a oriental passam a estar conectadas com a nova capital do
país por longas estradas, algumas até então não pavimentadas em vários trechos. Essa
aclamada acessibilidade vai repercutir no predomínio de outra forma de mobilização daquela
socionatureza, não mais atrelada aos conhecimentos locais, à floresta e a sua grande
diversidade. Ou pelo menos, não a tendo mais como principal atrativo. Chega gradativamente
a vez do “grande capital” levado pelas ações do governo, empresas e fazendeiros, todos “de
fora” daquele contexto. Neste momento, os olhos se voltam muito mais para o que há no
subsolo ou na terra logo abaixo da floresta – mineração agricultura e pecuária. “Na prática”
despindo a floresta de valor, ou dando-lhe mais valor quando suprimida, exterminada, como é
o caso da indústria madeireira que, em seu modelo de exploração, simplesmente dizimava a
mesma187.
Nos momentos que se sucederam à história política narrada, a excepcionalidade do
regime militar marca outro momento desta pesquisa: as políticas de desenvolvimento e
conservação que recaíram sobre a área elegida e suas contínuas transformações desde então.
A análise agora se volta para os documentos oficiais, com foco nas políticas públicas
implementadas e suas consequências, numa interpretação e descrição próprias, com menor
recursividade aos dados secundários.
                                                                                                           
187
Não obstante nos documentos oficiais e pesquisas da época ter menções constantes sobre a necessidade de
“exploração racional” dos recursos florestais de maneira a posibilitar sua continuidade.
  195  

1.3 “Amazônia: de última página do Gênesis ao preâmbulo de um mundo futuro”

Mensagem da Amazônia
Prezado Compatriota:
1. Venha investir na Amazônia, nossas terras são férteis e tudo nelas é
abundante!
2. Leis federais, estaduais e municipais oferecem ao homem de empresa
brasileiro condições altamente favoráveis para participar do
programa de aceleração do desenvolvimento da região amazônica.
3. A SUPERINTENDENCIA DO DESENVOLVIMENTO DA
AMAZÔNIA (SUDAM) e o BANCO DA AMAZÔNIA S/A (BASA) estão
à sua disposição para ajudá-lo a investir num dos muitos projetos em
implantação: são empreendimentos industriais, agrícolas e pecuárias
disseminados na imensa extensão territorial que é a Amazônia
brasileira.
4. Venha, pois participar do desbravamento econômico da Planície
Verde, através da Operação Amazônia.
5. Seja mais BRASILEIRO conhecendo melhor a Amazônia e ajudando a
integrá-la definitivamente no patrimônio ativo nacional.
(Mensagem da Amazônia – Álbum Operação Amazônia, 1967)

Em 1966 é apresentado ao então Presidente da República, Marechal Humberto de


Alencar Castello Branco, o relatório intitulado de “Operação Amazônia”, desenvolvido pelo
Ministério Extraordinário para Coordenação dos Organismos Regionais – MECOR,
comandado pelo então Ministro Marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. O fulcro deste
documento assentou-se no binômio desenvolvimento e segurança, como forma de reformular
as diretrizes políticas para a Amazônia a partir de um compêndio de diferentes informações e
experiências relativas à área. Inspirado na experiência da “Operação Nordeste”, a proposta da
Operação Amazônia visou reorganizar o aparato legislativo em nível federal que recaia sobre
a região e recriar um sistema de incentivos tributários e de projetos de infraestrutura para
atrair investidores. Porém, diferente da primeira, tinha como fator preponderante declarado a
questão da segurança nacional e percebia no desenvolvimento econômico, dentre outros
fatores, uma forma de assegurar o adensamento populacional para superar a ameaça do vazio
demográfico (o que não era um problema para o nordeste). A Operação Amazônia estabelece
uma ampla revisão do “I Plano de Valorização” de 1953/54, que sequer foi examinado pelo
Congresso Nacional, e vai ocasionar a extinção da Superintendência para a Valorização
Econômica da Amazônia - SPEVEA e subsequente criação da Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM.
  196  

O documento em foco para empenhar sua análise subdivide o “imenso” território


amazônico em quatro “grandes subáreas”: a Amazônia litorânea (Macapá, Belém, zona
Bragantina), a Amazônia central (estado do Amazonas próximo ao Brasil central), a
Amazônia fronteira (todo o cordão fronteiriço) e a Amazônia periférica (áreas parciais dos
estados de Goiás, Mato Grosso e Maranhão). Cada qual comporia políticas específicas
levando-se em conta suas características inerentes e as estratégias respectivas a se lançar mão
para o desenvolvimento. Nesse sentido, áreas com maior infraestrutura seriam destinadas à
expansão econômica mais atuante e imediata (litorânea e periférica p. ex.), áreas como a
Amazônia Central gozariam de estudos mais detalhados para a exploração dos recursos ainda
desconhecidos e, áreas como as fronteiriças, preocupar-se-ia mais com a questão da segurança
e com interligação destas ao território nacional. Em todas elas as interligações por rodovias
eram questões prementes.
Conforme mencionado anteriormente, o quadro econômico associado à borracha
estava se diversificando. Apesar do mesmo integrar o maior contingente demográfico de mão
de obra à época, havia culturas que estavam se sobressaindo como a juta e a pimenta do reino,
bem como a exploração da madeira e a agropecuária, principalmente nas regiões já
interligadas por estradas. Os centros urbanos maiores apresentavam uma industrialização
modesta, mas com capacidades de aproveitamento dos recursos da região. As atividades
mineiras do manganês, da cassiterita e a refinaria do petróleo também compunham o quadro
econômico. A posição política na época, não percebia na industrialização uma saída imediata
para as questões de integração da região:
Não estará certamente na industrialização a grande saída para
desenvolver e promover o povoamento, no prazo exigido pelas
condições nacionais de segurança e de interesse de integração regional
da Amazônia. O mérito da industrialização local estará na fixação de
bases mais estáveis para o aproveitamento dos recursos naturais
existentes e potenciais. Todavia o aproveitamento agrícola, pecuário e
até mesmo, por certo tempo, o extrativismo orientado deverão
oferecer perspectivas mais efetivas para a diversificação da estrutura
econômica no ritmo acelerado exigido presentemente188.

O diagnóstico geral da socioeconomia apontava dez “gargalos” ao desenvolvimento:


i. a extensão geográfica versus baixa densidade demográfica, ii. o potencial desconhecido dos
recursos naturais, iii. a escassez de recursos humanos, iv. a distribuição dos recursos
assistenciais onerada pela dispersão geográfica, v. o dualismo econômico com o extrativismo
de baixa produtividade contrastando com a ascendente tecnologia empresarial, vi. a
                                                                                                           
188
GOVERNO FEDERAL. Operação Amazônia. Brasília. 1966.  
  197  

infraestrutura precária, vii. a dificuldade de escoamento de produtos em geral e insuficiência


dos agropecuários, viii. a industrialização incipiente com predominância de pequeno porte, ix.
o desestímulo a iniciativa privada acarretando baixo interesse empresarial e x. descompasso
entre a atuação dos órgãos federais e estaduais. Por sua vez, como solução para o status de
subdesenvolvimento da região, propunha-se uma série de intervenções governamentais que
iam desde reorganização de políticas locais – fortalecendo lideranças conforme contribuição
ao estimado quadro de desenvolvimento – aos incentivos às instituições de pesquisa,
desenvolvimento de tecnologias próprias, criação de divisas etc. Com relação a este ponto
será dado ênfase às propostas efetivamente aplicadas.
Cabe mencionar que o extrativismo, apesar de percebido enquanto necessário
naquele momento, era algo que deveria ser gradativamente substituído (prioritariamente) ou
modernizado (tanto quanto possível). Além de representar os principais indicativos de
subdesenvolvimento, quando não era estabelecido pelos regimes de patronagem e aviamento,
eram realizados por grupos autônomos/autossuficientes que, em todos os casos, não
correspondiam aos interesses de integração. Como nesta seara a borracha era o produto que
mais se destacava e, ao mesmo tempo, vivia um quadro econômico muito negativo, percebia-
se a necessidade, dentre várias medidas, de repetir-se as políticas de subsídios e estoques
(antes realizadas pelo Banco de Crédito da Borracha - BCB que tornou-se Banco de Crédito
da Amazônia - BCA e, posteriormente, Banco da Amazônia S.A. - BASA). Na mesma
medida, vislumbrava-se um futuro cada vez mais complexo para a economia gomífera
extrativista com as plantações na Bahia e com o advento do elastômero/borracha sintética.
No que tange a esfera político-administrativa, a descontinuidade dos programas
federais e as ações fragmentadas do poder público foram postas como óbices que requereriam
mudanças estratégicas principalmente em âmbito federal. A escassez de recursos, com
previsões orçamentárias não cumpridas e liberadas com relativo atraso, culminavam na
insuficiência dos programas e na referida descontinuidade dos mesmos. Uma ambiguidade se
apresentava: de um lado, o governo federal, excessivamente centralizado, arbitrário e detentor
da maior monta dos recursos necessários aos investimentos estatais; do outro, o mesmo
atribuía uma importância secundária à região, mantinha instituições federais mal equipadas e
que padeciam de deficiente corpo técnico, com salários não equiparados e de baixa
qualificação para atuar em tamanha abrangência territorial. Ou seja, a administração federal
exercia um poder centralizador e ao mesmo tempo ausente.
Os planos da SPVEA são, desde o início, comprometidas pela
insuficiência de recursos, liberados parcialmente e com relativo
  198  

atraso. Não se cumpre o dispositivo constitucional de vincular três por


cento da receita tributária para programas de valorização na
Amazônia. O cálculo base dilui os recursos finalmente disponíveis
para a programação financeira, indicada nos planos iniciais. Acresce,
por outro lado, a importância de um mais perfeito entrosamento da
máquina ministerial com os planos parciais da SPVEA, concorrentes
em muitos setores e áreas geográficas delimitadas. O ideal seria
identificar para a Amazônia um quadro geral de aplicações federais
diretas ou indiretas, compreendendo toda a prioridade governamental,
inclusive na mobilização de recursos financeiros externos e internos.
O programa global assim concebido, partindo dos planos parciais
discutidos ou previstos em cada unidade governamental, constituiria
um PROGRAMA ANUAL DE PRIORIDADES PARA A
AMAZÔNIA, a exemplo do que se faz na aprovação de planos
setoriais189.

A atuação das administrações estatais e territoriais são apontadas como o que


assegurava a presença do poder público na área, descrevendo o poder central/federal enquanto
ausente, omisso e descompassado. Por sua vez, os estados elaboravam projetos audaciosos em
diversos setores, mas não detinham recursos para executá-los e os incentivos que propunham
não eram suficientemente atrativos aos investidores. Mormente diante da precária
infraestrutura e da concorrência com as áreas mais assistidas pelo governo federal.
A análise empenhada apresentou, enquanto um programa bem sucedido para a região,
a denominada Comissão Interestadual dos Vales do Araguaia e Tocantins – CIVAT, criada
em 1962. Tratava-se de uma iniciativa interestadual, de caráter autárquico, com fins de
pesquisa para aproveitamento de recursos do solo e da água do complexo Araguaia-Tocantins
com 884.448 Km2. A CIVAT, reconhecida internacionalmente, chegou a ser assistida pela
equipe norte-americana Bureau of Land Reclamantion e pela Food and Agriculture
Organization – FAO, que concluem ser a área de sua atuação, de um lado, o maior potencial
do mundo em diversidade mineral, do outro, a de maior extensão agricultável e a solução para
a fome no mundo, respectivamente.
No tocante aos programas setoriais prioritários esboçados para a Amazônia, alguns
pontos são destacados com estratégias estabelecidas de médio e longo prazo nos setores de:
infraestrutura, pesquisa de recursos naturais, fomento econômico, industrialização, saúde e
educação.
A infraestrutura, percebida como prioritária para o processo de desenvolvimento e,
indubitavelmente, o principal ponto de conexão e integração sociotécnica, focava o
aproveitamento energético (hidroelétrico e termoelétrico), o aprimoramento das vias já
                                                                                                           
189
 GOVERNO FEDERAL. Operação Amazônia, Brasília. 1966.    
  199  

existentes e implementações de novas vias para os transportes (rodoviário, ferroviário, fluvial


e aéreo) e os projetos de telecomunicações relacionados às tecnologias da época.
As pesquisas sobre os “desconhecidos” recursos naturais e seus potenciais realizavam-
se através do INPA, IPEAM e por iniciativas, então isoladas, dos centros universitários das
capitais do país e também por entidades do exterior. Destacam-se pesquisas sobre recursos
minerais (ainda sem menções à bauxita do Trombetas no Platô do Saracá), os recursos
florestais e da pesca, todos tidos como subaproveitados. O fomento econômico ligava-se
diretamente aos incentivos governamentais que visavam tornar a região atrativa para a
industrialização privada e para a agricultura de monoculturas (principalmente) e pecuária
extensiva.
Para a educação eram apontados como principais problemas as descontinuidades dos
programas federais e estaduais, bem como a deficiência quantitativa e qualitativa de mão de
obra, propondo como solução políticas imigratórias adequadas e capacitação dos profissionais
orientada para atividades regionalmente úteis (atrelada às características locais). A saúde
apresentava como foco programas de saneamento, assistência médica, endemias rurais e
erradicação da malária, constatando também orçamento insuficiente para a implementação
dos mesmos.
A síntese do diagnóstico governamental apontava que a “Amazônia como um todo
para efeito de planejamento e desenvolvimento, é uma ficção”, dentro destas determinadas
áreas-problemas, tendo em vista o parco conhecimento que se dispunha e a operacionalidade
das próprias instituições governamentais na região. Essa breve descrição nos possibilita
compreender o panorama geral da época e o direcionamento das políticas posteriores que
culminam na área de análise, enquanto o embrião de um relativamente lento, mas continuado
processo de expansão de um modus operandi.
Em seu outro eixo o documento externa sua preocupação acentuada com a questão da
segurança nacional, destacando a questão do vazio demográfico, a suposta proposta de
internacionalização da Amazônia pelo “Instituto Internacional da Hiléia Amazônica – IIHA”
e o que se considerou outros pleitos de internacionalização à época, relacionados ao potencial
da região em absorver os excedentes demográficos de outros países. Destaca-se no documento
que, forma geral, as intervenções estrangeiras na região se davam por meio da pesquisa
científica, como no exemplo dos “Centros Tropicais de Pesquisa e Treinamento” com
Conselho Administrativo em Washington ou na cooperações entre centros nacionais de
pesquisa com a Organização das Nações Unidas.
  200  

O estudo intitulado de “Operação Amazônia” culmina na proposta de reformas


legislativas, através de projetos de leis e decretos, que vão se converter, dentre os mais
importantes, nos seguintes instrumentos normativos: Lei nº 5.173 de 27 de outubro de 1966,
que dispõe sobre o Plano de Valorização Econômica da Amazônia, extingue a SPVEA e cria a
SUDAM; a Lei nº 5.174, com mesma data de criação da anterior, dispondo sobre a concessão
de incentivos fiscais em favor da Região Amazônica; a Lei nº 5.122, de 28 de setembro de
1966, que dispõe sobre a transformação do Banco de Crédito da Amazônia – BCA em Banco
da Amazônia S/A – BASA, e no Decreto nº 60.070 de 16 de janeiro de 1967, que regulamenta
o Plano de Valorização Econômica da Amazônia190.
O Plano de valorização Econômica da Amazônia apresentava como objetivos
principais a integração da região à economia nacional, a promoção do desenvolvimento
autossustentado e do bem-estar social, dentro da lógica expansionista aqui narrada. Dentre as
orientações do Plano destacam-se: o incentivo à pesquisa, a criação de polos de crescimento
com concentração de recursos, a política imigratória, a substituição, quando possível, da
economia extrativista, a implantação ou expansão de infraestrutura pelo governo e adoção de
intensiva política de estímulos fiscais e creditícios para reversão dos recursos ali gerados e
atração de investimentos nacionais e estrangeiros. Muitos desses pontos são comuns às
propostas governamentais anteriores, mas atingiram neste momento histórico outro
dimensionamento.
A SUDAM, principal entidade do Governo Federal na região, é criada como autarquia
estabelecendo sua sede em Belém. A finalidade primordial da entidade era dar suporte às
ações federais na região e coordenar o Plano de Desenvolvimento. Além de promover e
realizar diretamente pesquisas sobre as potencialidades regionais, a SUDAM, diretamente ou
através de entidades públicas federais, estaduais ou municipais, tinha também como fim
prestar assistência ao aproveitamento dos recursos naturais, por meio de financiamentos de
longo prazo, com juros módicos, ou investimentos a fundo perdido, para os projetos
aprovados. Cabe destacar que a SUDAM, por meio de seu Conselho Técnico, posteriormente
transformado em Conselho Deliberativo, possibilitava a participação direta dos governos
locais na estruturação e execução de suas políticas, dentro do contexto do regime militar.
Além do Fundo para Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia –
FIDAM, criado na própria SUDAM, os incentivos fiscais são também de grande importância
para compreensão da configuração atual do espaço amazônico e sobretudo para a realidade
                                                                                                           
190
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Novo Sistema de Ação do Governo Federal na Amazônia: legislação
básica/vol. I. Editora Spencer S.A. Rio de janeiro, 1967
  201  

em análise. Os incentivos se davam por ordens diversas. As atividades exercidas por pessoas
jurídicas que eram consideradas de interesse para o desenvolvimento da região, ficavam
isentas do imposto de renda em 50% para os que já haviam se instalado até a publicação da
lei, e 100% para os que se instalassem até o fim do exercício de 1971. Outros benefícios
tributários também eram atribuídos com relação à importação de equipamentos, desde que
não produzidos no Brasil. As deduções tributárias para investimentos diretos, outra forma de
incentivo, recaiam sobre o imposto de renda de qualquer empresa com registro no país.
Variavam entre 75%, para investimentos no FIDAM, à 50%, para projetos agropecuários,
industriais e de serviços básicos (energia, transporte, comunicações, colonização, turismo,
educação e saúde pública).
Como já comentado, o antigo Banco de Crédito da Amazônia – BCA foi transformado
no Banco da Amazônia S.A. – BASA. Com atribuições ampliadas em relação ao BCA, o
BASA tornou-se o depositário dos recursos provenientes das medidas fiscais do governo.
Essa instituição financeira pública, responsável pela execução creditícia da política do
Governo Federal na região, atuava executando os serviços bancários em geral, com linhas de
créditos e financiamentos para os projetos públicos e privados, conforme mencionado, e
também com negociações para obtenção de recursos externos com agências internacionais ou
estrangeiras.
Já nos primeiros anos do golpe militar, a política governamental experimentada
começa apresentar resultados para o Governo, com a ampliação do número de projetos e de
investimentos para a região. Com a criação da SUDAM e do BASA a “nova política” se
solidifica enquanto novo marco para as transformações posteriores. No discurso proferido
pelo então presidente Humberto Castello Branco no Teatro Amazonas em dezembro de 1966,
de maneira entusiástica, salientou-se a proeminência dos céleres resultados:
Não fizemos milagre que não fosse o do trabalho e o da honestidade.
E daí a verdadeira multiplicação dos pães a que temos assistido na
administração da Amazônia. Realmente, ao assumir o General Mário
Cavalcanti a direção da SPVEA em 1964, não encontrou sequer um
projeto aprovado para absorver os recursos oriundos do Imposto de
Renda. Hoje, há cerca de 40 projetos aprovados, com investimentos
previstos num montante de 73 milhões; além de mais 9 projetos em
fase de conclusão, num total aproximado de sete bilhões. Alguns
deles, como acontece com o da JUTEX, para fiação e tecelagem, da
SIDERAMA, para siderurgia, e da SABIM e INASA, para madeiras,
  202  

são indiscutivelmente grandiosos e contribuirão para mudar a face


econômica da região191.

Os diversos discursos proferidos pelos militares e outras autoridades que atuaram na


região alinham-se argumentativamente no ideal desenvolvimentista, sempre sobre uma
vertente de integração econômica, científica e industrial. Sob esse ângulo, sem diferenças
substanciais com os momentos anteriores, mas efetivamente mais incisivo, o regime militar
ataca sobre várias frentes e com várias políticas expansionistas o território amazônico. Em
1968 diversos projetos já haviam se instaurado, sobretudo para estender e consolidar a
infraestrutura necessária à propagação e sustentação deste ideário. Energia, transportes,
telecomunicações, educação, saneamento, habitações, políticas imigratórias, de incentivos e
principalmente de pesquisas eram as prioridades dos investimentos. O aproveitamento dos
recursos naturais renováveis e não renováveis deveriam ser ordenados pela técnica e pela
ciência aplicadas à produção. A crescente e constante industrialização deveria atingir até
mesmo as práticas extrativistas, quando as mesmas não pudessem ser substituídas por outras
mais lucrativas. O poder público – representado pelo regime militar – e a iniciativa privada –
principalmente no interesse do alto empresariado – estavam de mãos dadas todo o tempo na
empreitada colonizadora da região.
No governo do Marechal Costa e Silva o engenheiro e militar Cel João Walter de
Andrade assume a superintendência da SUDAM, em 1967. Em seu discurso na instalação do
Conselho Deliberativo da SUDAM, em 1968, externa de maneira veemente a necessidade da
colaboração estrangeira “ordenada e disciplinada” como condição sine qua non para atingir os
objetivos almejados pelo governo. Salienta que dentre os principais problemas a serem
enfrentados, a questão do capital era o de ordem mais proeminente. “Abrir as portas ao
capital estrangeiro” e receber “sem medo ou desconfiança, todos aqueles que nos desejam
ajudar nessa cruzada desenvolvimentista”192, considerando aí os países “irmãos” para o
regime militar, fora palavra de ordem. Por sua vez, tratava-se a questão da “ameaça à
soberania nacional” condicionando os investimentos externos ao regime jurídico nacional.
Essa suposta saída para o problema da soberania ainda opera como base de legitimação para
as intervenções externas: constituir as empresas com base nas leis brasileiras.

                                                                                                           
191
BRANCO, H. C. Solenidade de instalação da I Reunião de Incentivo ao Desenvolvimento da Amazônia. In:
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Operação Amazônia: discursos. Serviço de Documentação e Divulgação.
Belém. 1968. p. 39
192
ANDRADE, J. W. Solenidade de instalação do Conselho Deliberativo da SUDAM. In: GOVERNO
FEDERAL/SUDAM. Operação Amazônia: discursos. Serviço de Documentação e Divulgação. Belém. 1968. p.
133 - 134
  203  

Em 1971 o estudo denominado “Subsídios ao Plano Regional de


193
Desenvolvimento” , vai dar novos direcionamentos às políticas governamentais para a
região. Com base nas pesquisas e experiências da SUDAM e do Departamento de Estudos
Econômicos do Banco da Amazônia S.A. – DESEC/BASA, o documento estabeleceu uma
análise focada nas múltiplas realidades da Amazônia incorporando, ainda que de maneira
incipiente, questões locais. I. e. a análise adentra em peculiaridades de algumas realidades
municipais, visando uma melhor adequação das propostas do Governo Federal. A
metodologia empenhada no estudo buscou compatibilizar os indicadores do Plano Regional
de Desenvolvimento - PRD com o Plano Nacional de Desenvolvimento – PND. A análise
adotou como módulo territorial o município em que se analisaram indicadores gerais
(relativos à infraestrutura, serviços públicos, recursos naturais etc.) e dados estatísticos
(referentes à população, industrialização, agropecuária etc.) para posterior análise crítica
comparativa. A proposta culminou na escolha de “áreas prioritárias”, a partir de um
zoneamento geoeconômico, para a atuação governamental entre 1972/1974194.
O estudo apresenta uma análise das pesquisas sobre recursos naturais já empenhadas
na época e uma programação para novas pesquisas ou de aprofundamento, com fins de
elaborar uma base cartográfica mais precisa para região. Para tanto, levando-se em conta as
informações cartográficas da Fundação IBGE, da PETROBRÁS, de outros mapeamentos já
desenvolvidos com os estudos geológicos no Pará e, também, do sensoriamento remoto
iniciado em 1970 com o Projeto Radar na Amazônia – RADAM. A aerofotogrametria e
fotointerpretação era apresentado como “a forma mais expedita de avaliação de recursos
naturais” e, com tecnologia norte-americana, o projeto RADAM executava essa função, à
época iniciando o levantamento de uma área de 1.500.000 Km2 ao sul do Rio Amazonas com
ampliação já prevista para a parte norte, em período subsequente.
O estudo subsidiário do PRD relacionou uma gama ampla de dados levantados sobre
variados recursos (solos, hidrografia, geologia, madeiras, castanha-do-pará, borracha, fauna,
mão-de-obra p. ex.) com diferentes atividades sociais (pecuária, agricultura, indústria,
mineração, extrativismo, saúde, educação...). As informações obtidas nas pesquisas já
realizadas foram apresentadas conjuntamente às propostas de programas futuros e de
aprofundamento. O estudo evidencia grande defasagem de informações à época, em todos os

                                                                                                           
193
O texto foi confeccionado pelos seguintes pesquisadores: dr.ª Catharina Vergolino Dias, dr.ª Clara Martins
Pandolfo, dr. Alfredo H. Higassi, dr. Antero d. D. P. Lopes, dr Benjamin M. da Silva, dr. Claudio J. Da Costa,
José R. M. Rodrigues e dr. Pedro L. A. da Silva.
194
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972 – 1974). Belém:
Ministério do Interior, 1971. p. 51
  204  

subsetores, no processo de compatibilização dos indicadores estabelecidos. Afirma uma


realidade de pouco conhecimento científico produzido e com informações sistematizadas
disponíveis de maneira dispersa e fragmentária, atribuídas essas dificuldades à própria
extensão da região (e não às políticas governamentais e privadas mal sucedidas).
No que se refere aos estudos sobre os recursos minerais na região do Rio Trombetas,
apesar de já existirem resultados desde 1963, apresentados pelo grupo canadense ALCAN,
apenas em 1967 foram confirmadas as reservas de bauxita economicamente viáveis de serem
exploradas e a partir daí ganhando maior importância para o governo. O estudo
governamental em tela dizia das grandes reservas de bauxita no Rio Trombetas como
superiores a 200 milhões de toneladas. Na época desse plano de desenvolvimento regional já
se iniciavam os trabalhos pré-operatórios para a exploração por parte da ALCAN com os
subsídios governamentais, assim como caminhavam os estudos de planejamento daquela área
enquanto prioritária para um modelo de desenvolvimento industrial.
Na análise dos estudos florísticos da Hiléia alguns posicionamentos governamentais
marcam a inserção do que se pode designar como “preocupação ambiental”. Apesar de, em
outros momentos, diferentes documentos fazerem menção à necessidade de exploração
racional dos recursos naturais, principalmente madeira, aqui a ideia de preservação e a
escolha de espaços destinados à conservação são explicitados:
É também imperiosa a necessidade de iniciar estudos imediatos
visando à localização, decretação e organização de Reservas Florestais
em grandes áreas, suficientemente representativas dos diversos
ecossistemas amazônicos, que assegurem a manutenção das condições
de equilíbrio ecológico ambiental e como garantia de abrigo à fauna
remanescente.195

Há menção sobre um necessário equilíbrio entre solo, água e floresta apontado na


necessidade de disciplina na ocupação territorial, tanto para projetos industriais como para
agropecuários. Menciona-se também sobre a criação de um mecanismo de fiscalização
“ambiental”, para assegurar o cumprimento de projetos de reflorestamento decorrentes da
utilização industrial de recursos naturais. A principal legislação ambiental à época era a Lei
4771/1965, o antigo Código Florestal, muito progressista na temática e que encampava grande
parte da discussão técnica de conservação de recursos florestais e de solos que estava
emergindo. Inclusive, já fazia menção sobre as florestas enquanto bens públicos e a
necessidade de preservação de 50% da propriedade rural na Amazônia a título de Reserva

                                                                                                           
195
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministério do Interior, 1971. p. 65
  205  

Legal Florestal. A realidade que se sucedeu, como é de praxe, foi muito diversa do “mundo
bem organizado” idealizado nos projetos governamentais. O documento também menciona a
necessidade de se criar “Reservas Florestais de Renda” para “funcionarem como fontes
permanentes de suprimento de matéria-prima”196.
Por sua vez a fauna é apresentada como uma das principais fontes de alimento das
populações interioranas, o que se mantém provavelmente para grande parte da região, a
exemplo do que constatei na região vivenciada. Apesar da crítica ao modelo de exploração
predatória, na comercialização de peles principalmente, é vislumbrada a possibilidade de uma
“exploração racional” que influiria positivamente na balança comercial regional. Para ilustrar,
posso dizer que, conforme apurei, bem antes da criação das unidades de conservação no Rio
Trombetas, uma das práticas econômicas das populações quilombolas dali era a
comercialização de peles, principalmente de felinos, caçados pelos “gateiros”. No estudo
governamental, perscruta-se também sobre criação de parques e reservas com fins turísticos
como fonte de renda. Já com relação à pesca, criticam-se as práticas tradicionais aspirando-se
uma pesca industrializada, a piscicultura e a carcinocultura197.
As menções sobre os povos que vivem nos interiores da grande floresta são raríssimas
por todos os estudos analisados. Essas populações ainda não eram concebidas enquanto
“povos tradicionais” ou “quilombolas”, nesse sentido não gozavam de um estatuto jurídico
diferenciado para os seus modos de vida e seus territórios. As parcas referências os
descreviam enquanto míseros representantes do subdesenvolvimento da região, os espoliados
da patronagem e do aviamento. Para o governo esses povos deveriam ter seus modos de vida
integrados e seus sistemas produtivos racionalizados, adaptados à dinâmica do novo mundo
que chegava. O extrativismo, fonte principal de subsistência desses povos, era prática que
deveria ser extinta ou transformada na medida do possível, conforme mencionado. A postura
explicitada nas pesquisas governamentais para o desenvolvimento regional coadunam com as
políticas públicas experimentadas. Seus resultados, que não poderiam ser outros, ocasionaram
a invisibilidade desses povos por longo período. Sobrepujados pelos projetos econômico-
produtivos e concebidos como anônimos do subdesenvolvimento, quando os “interesses do
desenvolvimento” insidiam sobre seus territórios, esses povos estavam praticamente
desprovidos de quaisquer meios de defesa. Contudo, dentro de sua atuação dúbia, o Estado
desde aquela época tinha como foco a inclusão social dessas populações, indistintamente,

                                                                                                           
196
Id. Ibid. p. 66
197
Id. Ibid. pp. 69, 70 e 71
  206  

conforme muitas menções nas propostas de políticas públicas relacionadas à saúde, habitação,
educação etc.
É preciso que se dê ao seringueiro, ao castanheiro, ao madeireiro, ao
babaçueiro – que são milhares de humildes brasileiros – condições de
vida mais humanas, facilitando-lhes acesso a um nível social mais
elevado e mais condizente com o ritmo de progresso que
experimentam a região e o país.198

O extrativismo vegetal, por menos rentável que fosse aos olhos do governo, era fonte
de renda substancial para grande parte da população amazônica. Com uma gama variada de
produtos, a prática extrativista era percebida enquanto “degradante processo de espoliação
social”, atribuindo-se algum destaque econômico à extração da Borracha, da Castanha do
Pará, do Pau Rosa, do Babaçu e das madeiras em geral. Todas as práticas extrativistas tinham
como foco a realização de estudos para a racionalização do processo exploratório.
A Amazônia, para progredir e se desenvolver, tem necessidade de
modificar os seus postulados econômicos, através de uma forma de
atendimento razoável que, sem causar um colapso na economia
regional, com o abandono puro e simples dessas atividades,
abruptamente, possa entretanto proporcionar melhoria de padrão de
vida aos anônimos trabalhadores que, no recesso da mata, à margem
dos benefícios da civilização, ajudam a construir a grandeza do
Brasil.199

Dentre essas diversas atividades a que se apresenta diretamente correlacionada com a


área foco do estudo e os nossos atores é a exploração da Castanha-do-Pará, hoje Castanha-do-
Brasil. Abaixo da Borracha e do Babaçu, a castanha representava a principal atividade
econômica extrativista. Cerca de 90% da produção era destinada ao exterior, na época
destinada a multinacionais como a PARA NUT norte-americana, BRASIL NUT inglesa,
NOIX BRÉSIL francesa. Os problemas apontados não distam muito do que se percebe ainda
hoje: a intermediação no transporte com o regatão, os locais de processamento distantes dos
locais de coleta, armazenagem deficiente gerando perdas significativas, produto
comercializados sem beneficiamento com baixo valor agregado etc. Além das propostas de
racionalização técnica e implementação de usinas de beneficiamento locais, mencionava-se
também sobre a introdução de modelos cooperativistas200 para os coletores. O fomento aos

                                                                                                           
198
 GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministerio do Interior, 1971. p. 75
199
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministerio do Interior, 1971 p. 75
200
Id. Ibid. p. 83
  207  

estudos acerca da espécie vegetal e da produção dava-se por meio de convênio entre a
SUDAM e o Instituto de Tecnologia de Alimentos – ITAL, de Campinas/São Paulo.
Seguindo a lógica do desenvolvimento atrelada ao crescimento econômico, o estudo
indica como áreas prioritárias para o Plano Regional de Desenvolvimento aquelas que já
gozavam de melhor infraestrutura e adensamento populacional.
A ausência de uma rede urbana, bem estruturada na Amazônia, levou
a considerar-se as cidades que, pela sua população, pelas funções
administrativas, políticas, culturais, econômicas, de prestação de
serviços, desempenham um papel importante, não apenas quanto ao
município ao qual pertencem, mas principalmente, porque irradiam
suas influências a outras comunas.201

Os denominados “Centros Propulsores para o Desenvolvimento” elegidos


corresponderam a 26 municípios, em todos os estados e territórios Amazônicos, delimitados
em algumas regiões. A de maior importância para a pesquisa é a região de Santarém, que
inclui os municípios de Faro, Juriti, Óbidos, Alenquer, Monte Alegre, Santarém e Oriximiná.
Na sequência deste diagnóstico que direcionou projetos, programas, investimentos e maior
atenção do governo para as áreas prioritárias, iniciou-se uma nova política, ainda mais
delimitada regionalmente, sobre os “Polos de Desenvolvimento”.

***

O fluxo narrado visa dar historicidade às conexões que transformaram a área da


pesquisa, acarretando nas controvérsias que passarei a analisar. No ínterim entre os planos
governamentais que ali se iniciavam e a implementação efetiva dos projetos de
desenvolvimento e, posteriormente, de conservação, ocorria um evento de grande
importância, com influência nas políticas públicas que estavam se desenhando: a Conferência
das Nações Unidades Sobre Meio Ambiente que ocorreu em Estocolmo em junho de 1972.
Em 1971 o então Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional, João Batista de
Oliveira Figueiredo, na exposição de motivos à Presidência da República, associava as
providências avençadas nos encontros preparatórios do conclave enquanto ameaças às
políticas de desenvolvimento nacional e à questão da Segurança Nacional202. O
posicionamento do chefe da delegação brasileira, Ministro José Costa Cavalcanti, endossou as
orientações do governo que atribuíam a responsabilidade pela correção da deterioração do
                                                                                                           
201
Id. Ibid. p. 222
202
CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O MEIO AMBIENTE HUMANO. Relatório da
delegação do Brasil. Vol II. Estocolmo, 1972. p. 3
  208  

ambiente aos países desenvolvidos, assim como priorizava o crescimento econômico e o


combate à pobreza, antes das preocupações ambientais. “Um país que não alcançou o nível
satisfatório mínimo no prover o essencial não está em condições de desviar recursos
consideráveis para a proteção do meio ambiente”203. Apesar de sobrepor soberbamente os
planos de desenvolvimento econômico às políticas de conservação ali pautadas, a Conferência
de Estocolmo foi o germinal para uma posição política que gradativamente vai ganhando
importância e se transformando, atrelada à problemática ambiental que tornar-se-á de
remissão necessária nos discursos de legitimação de políticas públicas.
A lógica que se segue nos documentos governamentais analisados, destinados aos
programas e projetos de desenvolvimento na região, apresenta, para cada versão, o que foi
implementado das propostas anteriores, o que prosperou ou declinou, dando um panorama
geral sobre a realidade local a partir de dados estatísticos e propondo também futuras
políticas. Nesse sentido, o apresentado até aqui – Operação Amazônia, Ação do Governo
Federal na Amazônia, Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento entre outros –
representam uma gradação das ações governamentais (e empresariais) que vão, ao longo da
história, reconfigurando toda a região amazônica, mas que o foco aqui se direciona para área
em estudo.
As áreas selecionadas enquanto prioritárias para o Plano Regional de
Desenvolvimento vão ser contempladas pelo programa de Polos Agropecuários e
Agrominerais da Amazônia – POLAMAZÔNIA204. Partindo das informações diagnosticadas
sobre recursos naturais, sociedade e economia de cada área escolhida, foram indicadas as
programações e os recursos necessários para a execução dos programas nos anos de 1975 até
1979. O estudo apresenta dez polos com suas respectivas características e propostas de ação,
sendo: Polo Carajás, Polo Trombetas, Polo Altamira, Polo Pré-Amazônia Maranhense, Polo
Acre, Polo Juruá-Solimões, Polo Roraima, Polo Tapajós, Polo Amapá e Polo Marajó.
Seguindo a nossa trilha, nos debruçaremos no Polo Trombetas, a partir de aqui, afunilando a
caminhada até os “pontos quentes” que buscamos.

***

Com mais de 85.000 Km2 o Polo Trombetas, em sua área de abrangência, abarcou
parte dos municípios de Monte Alegre, Alenquer, Óbidos e Oriximiná. Com 60% dos solos
                                                                                                           
203
Id. Ibid. p. 13
204
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Síntese do POLAMAZONIA. Belém. 1975
  209  

de baixa fertilidade e cerca de 10% de boa fertilidade as propostas de aproveitamento


agropecuário foram bastante diversificadas, indo desde pastagens, juta, arroz até cana-de-
açucar para as regiões mais férteis. Por sua vez, os recursos minerais é que ganharam mais a
atenção. Além da bauxita, em 1975 com reserva estimada em 1,2 bilhões de toneladas e já
programada para ser explorada comercialmente a partir de 1977 pela MRN, o calcário em
Monte Alegre também gozava de projeto para a exploração de 470.000 toneladas/ano
destinados à fabricação de cimento. Ao sal-gema, ao cobre, à ilmenita e ao ouro também se
atribuía importância econômica, mas sem propostas programadas de exploração no horizonte
descrito. As madeiras também ganhavam destaque estimando-se a possibilidade de uma área
de exploração com 1.773.000 ha com volume médio de 60m3/ha de madeiras comerciais.
O panorama geral da região no início das políticas do Poloamazônia apresentava uma
economia essencialmente sustentada no setor primário, com culturas de subsistência e
pecuária extensiva com baixa qualificação técnica. O extrativismo apresentava-se em
declínio, não atingindo importância econômica considerável. A dispersão da população foi
apontada como o principal entrave às políticas sociais de educação, saúde, saneamento,
produção, consumo, entre outras. Além de ações em pesquisas, políticas de colonização,
regularização fundiária e implantação de “planos diretores de desenvolvimento urbano” para
os municípios do polo, compunham os investimentos governamentais. Estradas de penetração
foram construídas, bem como consolidados trechos da rodovia estadual PA-254 entre
Oriximiná e Prainha e aprimorados os atracadouros de Oriximiná, Alenquer e Monte Alegre.
Por ter sido eleita enquanto polo de desenvolvimento, a Região do Trombetas, perceberia a
partir de então maciços investimentos em infraestrutura com fins de formar na área um
complexo industrial, principalmente ligado a produção de energia e a bauxita.
Em 1976 o Ministério do Interior/SUDAM promulga o “II Plano Nacional de
Desenvolvimento – Programa de Ação do Governo para a Amazônia”, consolidando a “nova
era de expansão desenvolvimentista” que recaiu sobre a região analisada e a configurou
enquanto um território minado por conflitos. O II PND adotou uma fórmula que visava a
“manutenção de altas taxas de crescimento do PIB, através de ampla contribuição em relação
ao setor de comércio exterior”205 para em última instância promover a distribuição da renda
pelo crescimento econômico e reduzir as desigualdades inter-regionais. Focava-se gerar
divisas via exportações de matérias-primas e produção de insumos, tanto para o consumo
interno quanto externo, identificando nas diversas regiões aquelas que pudessem atender essas
                                                                                                           
205
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimeto – Programa de Ação do Governo
Para a Amazônia. Belém, 1976. p. 52
  210  

demandas e, a partir daí, investir na infraestrutura requerida para operacionalizar tais


atividades.
Nessa direção, em curto e médio prazo, a prioridade do governo fora o crescimento
econômico, seguindo o que se designou como “modelo amazônico de desenvolvimento”,
sempre atrelado a um grande capital financeiro privado nacional e internacional (os parceiros
do desenvolvimento). Este modelo priorizava investimentos/benefícios aos setores e produtos
dotados de “vantagens comparativas” (empreendimentos que possibilitassem per se a inserção
de produtos no mercado interno e externo). Essas políticas setoriais dos produtos com
vantagens comparativas foram voltadas para a pecuária de corte, aproveitamento madeireiro,
exploração mineral, indústria, turismo, pesca em escala empresarial e lavouras selecionadas.
O extrativismo que possibilita produtos exclusivos da região, por fim, é mencionado na
perspectiva de que “a estratégia adotada permitirá uma paulatina substituição da atividade de
coleta por outra essencialmente agrícola”206, i. e., com base em plantações técnicas das
espécies extrativas.
Noutro viés as ações governamentais tinham como foco a ocupação territorial, a
expansão das fronteiras econômicas, a difusão do emprego produtivo e, posteriormente,
elevação do poder aquisitivo das pessoas da região. Ressaltando-se que a “questão da
segurança” estava sempre presente em todos os momentos.
As ações programadas do governo levaram em conta a gradação de estratégias
estabelecidas ao longo do regime militar e culminaram em políticas selecionadas e
direcionadas para áreas eleitas, conforme a possibilidade de contribuição das mesmas para o
“crescimento”. Os diferentes polos elegidos e suas subsequentes políticas específicas geraram
múltiplas e complexas realidades nas regiões. Hoje, ao trafegar pela Amazônia, podem-se
encontrar áreas onde não mais se reconhece o bioma tamanha devastação (principalmente
aquelas regiões/áreas que receberam maior incentivo para a agricultura, a pecuária e as
madeireiras), outras áreas intocadas para conservação ou para os povos autóctones, ou ainda
complexos industriais, imensas mineradoras e grandes projetos de aproveitamento energético
dividindo espaço com a floresta e seu povo antigo.
Dentro desse complexo de políticas e ações tanto públicas quanto privadas, nacionais
e estrangeiras, locais, regionais e globais que recaíram sobre o vale do Rio Trombetas e
reconfiguraram as relações sociais ali estabelecidas anteriormente, o primeiro ator da história
aqui narrada sobre “conflitos ambientais” – melhor seria dizer “actante” – foi a bauxita. A
                                                                                                           
206
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimento – Programa de Ação do Governo
Para a Amazônia. Belém, 1976.p. 56
  211  

bauxita é que fez estender para lá todo o ideário desenvolvimentista e estabelecer políticas
públicas e conexões reais sobre aquela região reconfigurando-a. Seccionou o arcaico e o
moderno, o produtivo e o improdutivo, o passado e o futuro. Fez jorrar milhões e milhões em
investimentos, solapar interesses dos grupos humanos mais frágeis, dizimar vastas extensões
de floresta e conectar a área com toda a ordem tecnológica, cientifica, social e econômica
relacionada, ao menos de forma incontestavelmente material, com qualquer um que usa
objetos de alumínio provenientes daquela região. A bauxita foi eleita o que era mais
importante naquela região acima de qualquer outra coisa humana ou não-humana. Por razões
de ordem cronológica esse primeiro ator seguirá a narrativa um pouco mais adiante,
apresentando o seu percurso de transformações sócio-lógicas.
Ainda no II PND as reservas de bauxita já eram estimadas em 2,6 bilhões de
toneladas. Enquanto a Transamazônica cortava o sul do Amazonas abrindo caminho para as
pastagens e monoculturas, ao norte emergiam complexos industriais, outras rodovias e ações
para proteger áreas representativas por sua fauna, flora ou outros atributos naturais.
O potencial energético da Amazônia em seus muitos rios considerados como um todo
era estimado em 62.000MW, com exceção do Amazonas que, por si só, representaria cerca de
150.000MW. Ao Rio Trombetas atribuía-se 16.000MW, possuindo um projeto de
hidroelétrica planejada para atender o beneficiamento da bauxita, estimando-se produção de
800MW na área da Cachoeira Porteira207. A hidroelétrica estava prevista juntamente com a
criação de um complexo industrial no Trombetas. A legislação permitia a participação direta
das grandes indústrias consumidoras nas obras de geração de energia, possibilitando um
ambiente favorável para os investidores que vão se instalar durante um breve e transformador
período na Cachoeira Porteira.
O projeto Trombetas visa a exploração da bauxita, cujas reservas
localizam-se nas proximidades da cidade de Oriximiná-Pará, às
margens do Rio Trombetas. O projeto será executado em duas etapas;
a primeira objetivando a exportação do minério lavado e seco e a
segunda a produção de alumina/alumínio; o prazo de maturação para
as duas será de cinco a sete anos, respectivamente. Os efeitos
esperados no quinquênio 1975-79 são os seguintes: produção anual de
cinco milhões de toneladas de bauxita lavada e seca. E um milhão de
toneladas de alumina. Prevê-se ainda, após a construção de Tucuruí,
em 1981, a produção de 640 mil toneladas anuais de alumínio
metálico208.
                                                                                                           
207
O projeto da hidroelétrica da Cachoeira Porteira, anos depois, vai ser um dos estopins para a organização
políca dos remanescentes de quilombo, assumindo grande importância nesta narrativa.
208
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimeto – Programa de Ação do Governo
Para a Amazônia. Belém, 1976.p. 73. Continua: Estima-se ainda a aplicação de Cr$ 960,5 milhões, sendo os
recursos oriundos da CVRD, de grupos privados e de financiamentos internos e externos, além de incentivos
  212  

A geopolítica do regime militar assentada no binômio segurança e desenvolvimento e


exercida com o autoritarismo e a desumanidade que lhe é inerente, culminava no controverso
projeto “sigiloso” do Conselho de Segurança Nacional denominado “Calha Norte – PCN”209.
Neste ínterim Cachoeira Porteira estava se conectando à malha rodoviária nacional pela
BR163, sendo construída pelo consórcio Andrade Gutierrez, Noberto Odebrecht e Estacon
Engenharia. Por sua vez a hidroelétrica UHE Porteira era responsabilidade da
ELETRONORTE e ENGE-RIO. Nem a hidroelétrica e tampouco a continuação da BR163
prosperaram. Contudo, permanecem enquanto espectros que a qualquer momento podem
voltar para assombrar, a exemplo de Belo Monte, antiga Kararaô210 projetada na década de
1980. Em abril de 1988 é apresentado novo projeto básico da UHE Porteira – Planejamento
da rede hidrométrica da Bacia Trombetas/Mapuera211. Novos postos pluviométricos e
fluviométricos e seus respectivos equipamentos foram instalados (Pluviógrafo e Limnígrafo)
em diversos rios da região – além do Trombetas e Mapuera, no Cachorro, no Caxipacoré, no
Anamú, no Erepecuru e no Tiriós. Os dados processados serviriam de suporte para a
operacionalidade da hidroelétrica – UHE Porteira. No último campo da pesquisa observei um
novo equipamento que haviam instalado próximo ao encontro dos rios Trombetas e Mapuera,
semanas antes da minha chegada à Cachoeira Porteira, segundo os quilombolas.
Já na década de 1970, os volumes do Projeto RADAMBRASIL, via de regra,
indicavam áreas para a criação de espaços territoriais protegidos para a conservação, dentre
estes, a Reserva Biológica do Rio Trombetas, Parque nacional Pico da Neblina, Reserva
Biológica do Moju, Parauequara entre outras. Contudo, uma consideração mais efetiva dos
interesses ambientais e sociais se dá na década de 1980, mesmo assim de forma tímida e
desde que não obstruíssem os “interesses do desenvolvimento”. Na transição democrática de
1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves, seu posterior falecimento e entrega do cargo
ao seu vice, José Sarney, os projetos da calha norte seguiram “bem tutelados” sem maiores
óbices. A geopolítica subsequente manteve-se autoritária e obscura, nos anos de 1990 é
lançado o Sistema de Vigilância e Proteção da Amazônia – SIVAM/SIPAM, desta vez
amparado no binômio “segurança e desenvolvimento sustentável”. O projeto consiste no “uso
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
fiscais. […] Ressalta-se que o projeto de produção de alumina/alumínio encontra-se em fase de estudo de pré-
viabilidade e depende fundamentalmente da construção da hidroelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, com
potencial inicial de 3000MW.
209
PROST, Catherine. Forças Armadas, geopolítica e Amazônia. Paper do NAEA 156. Dezembro de 2000.
210
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Especial Belo Monte – Cronologia do Projeto. Disponível em:
http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp. Aceso em: janeiro de 2013
211
CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S.A. Usina Hidroelétrica Porteira: Planejamento da
Rede Hidrométrica Bacia Trombetas Mapuera. Abril de 1988.
  213  

interativo de vários sistemas tecnológicos de controle: detecção aérea, radares e


sensoriamento remoto [...] detecção e monitoramento de comunicações clandestinas,
telecomunicação e radiolocalização”. O projeto foi iniciado no Governo Collor, seguido do
Itamar Franco e defendido no Governo Fernando Henrique Cardoso “em nome da garantia da
credibilidade internacional do Brasil”. Implementado em 2002, esse projeto gerou grande
polêmica e foi associado ao interesse dos EUA no suposto auxílio no combate ao tráfico de
drogas e do terrorismo, seus inimigos despatriados.212
Os conflitos na região do Vale do Rio Trombetas vão se acirrando, ou melhor,
tornando-se mais visíveis, na medida em que novos direitos vão se consolidando (como os
ambientais, indigenistas e dos remanescentes de quilombo na Constituição Federal de 1988),
novos atores entram em cena para somar forças com determinados grupos (ONGs, cientistas,
certos setores do governo etc.) e as tecnologias possibilitam um fluxo cada vez maior de
informações e interações. Ao mesmo tempo os recursos ali vão despertar a cobiça de outros
grupos, também influentes, como madeireiras, fazendeiros e outras mineradoras além da
Mineração Rio do Norte. O Poder Público, menos monolítico, infere estratégias de setores
autônomos, por sua vez, antagônicas, buscando de qualquer forma a manutenção de sua
estabilidade sistêmica, conforme o atual contexto político.
A ideia de desenvolvimento permeia todos os discursos e atos de poder ao longo dessa
história na marcha avante pelas terras incultas. Como a promessa da Terra Prometida ou do
Reino de Deus, mas operada pelas mãos das ciências e das técnicas e num plano temporal
mais imediato – de um amanhã mais breve, no máximo para o final do século – a doxa do
desenvolvimento promete a elevação humana e a satisfação de todas as suas aspirações
espirituais, morais e materiais. Ganha incontáveis devotos de diferentes classes, castas e
etnias, crédulos fiéis de suas promessas. Violar as mais robustas montanhas, romper pradarias,
barrar imensos rios, aniquilar florestas, dominar, manipular e ordenar numa rígida escala
hierárquica tudo que pode ser vinculado a esse processo expansionista é o fazer-se máquina
do progresso. Uma soma de diferentes forças direcionadas. Sob distintas vestes ideológicas
que alternam as posições hierárquicas dos seres e das coisas, os projetos modernos –
tecnicistas, socioambientalistas ou capitalistas – prometem uma realização futura próxima.
August Comte nos falava de um devir na história vinculado ao conhecimento. Uma
inevitabilidade da transição entre os estágios teológico, metafísico e científico das formas de
compreensão do mundo, onde, no final, tudo será ciência, técnica e indústria. A lei dos três

                                                                                                           
212
PROST, Catherine. Forças Armadas, geopolítica e Amazônia. Paper do NAEA 156. Dezembro de 2000. p. 31
  214  

estágios e o ideário do positivismo se equivoca ao anunciar o fim das guerras e também um


tempo certo para as transições. Um mundo de conflitos e sobredeterminações na força da
astúcia, da sedução, da opressão e das armas avança irrefreavelmente estendendo suas ações
até aonde pode manter-se estável em seus pontos de ligação ao seu todo múltiplo. Enquanto
operador de um sistema de crenças que legitima ações e que materialmente amálgama uma
pluralidade de seres, esse avanço associativo foi se modificando dentro daquilo que passou a
incluir e excluir, a ser mais considerado ou menos considerado, modificando-se além de uma
esfera de previsibilidade e controle.
  215  

2 OS PLATÔS DE BAUXITA

2.1 A máquina minerária

Foto 10: Mineração Rio do Norte. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.

O mineral avermelhado, nas reservas de Oriximiná com mais de 50% de Alumina


(Al2O3) e cerca de 800 milhões de toneladas, com descoberta atribuída à Pierre Berthier no
ano de 1821 em Les Baux, no sul da França, formou suas jazidas no vale do Rio Trombetas há
cerca de 40 milhões de anos, no período Paleogeno, especificamente no Oligoceno (Terciário
Superior)213. Esse mineral não ferroso, matéria prima do alumínio inicialmente utilizado para
fins não metalúrgicos, hoje com utilizações variadas, metalúrgicas ou não, assim como foi o
látex das seringueiras em vários locais da Amazônia, vai conectar a região em estudo com o
mundo, vai compor a carapaça metálica não oxidante e leve dos muitos objetos que compõem
as sociedades humanas, as aeronaves, os fios de transmissão de eletricidade, os satélites ou
simplesmente uma panela em que se prepara os alimentos.
Tínhamos ainda umas quatro horas antes do cair da noite, chegávamos no meio da
tarde na Comunidade da Casinha nos interiores do lago Sapucuá. Logo que nos estabelecemos
pegamos um barco e dois remos para nos banharmos em alguma das muitas praias do entorno.

                                                                                                           
213
KOTSCHOUBEY, Basile et al. Caracterização e Gênese dos depósitos de bauxita da província bauxífera de
Paragominas, Noroeste da Bacia do Grajaú, Nordeste do Pará/oeste do Maranhão. Cap.XI. In. MARINI, O. J.;
RAMOS B. W.; QUIROZ, E. T. Caracterização de depósitos minerais em distritos mineiros da Amazônia.
Brasília: DNPM – CT/MINERAL – ADIMB, 2005.
  216  

Eu e Thaís Azevedo remávamos já com certa destreza e logo atingimos o pontal de areia do
outro lado, onde avistávamos ao longe a igrejinha adjacente à casinha branca. Atrás de nós o
lago ultrapassava a linha do nosso horizonte. A imagem que penetra as pupilas cristaliza-se na
alma, o tempo parou ali, como se tivéssemos cruzado um portal para ingressar nesse mundo
recôndito. No crepúsculo Dona Tereza ajeitava o fogão de lenha para fazer a comida, nesse
dia os carapanans estavam ouriçados, “carapanam, bicho covarde” dizia Dona Tereza, nem a
fumaça de óleo queimado do lampião os afastava. Seu Chico ajeitava a mesa para comermos e
preparava o combustível para ligar o gerador, lá pelas oito da noite. Tínhamos eletricidade
pelo menos até o final da novela, importante momento para eles, depois retornávamos aos
lampiões e as estórias da mata grande. Dormíamos todos no barracão, lá, curiosamente, os
mosquitos davam trégua.
Quando amanheceu seguimos com Seu Chico até um longo trecho recentemente
desmatado que cortou boa parte da propriedade coletiva PEAEX Sapucuá-Trombetas.
Estávamos próximo da divisa da Floresta Nacional Saracá-Taquera e, naquele lugar,
podíamos testemunhar a realização das obras do “Linhão de Tucuruí”. Projeto bilionário do
Governo Federal, destinado a percorrer 1.800 Km de floresta, por um circuito duplo na tensão
de 500 e 230 quilovolts (KV). O objetivo do projeto é levar a energia da Hidroelétrica de
Tucuruí até Manaus, atendendo alguns municípios do percurso. As torres erguidas só se
avistavam ao longe, algumas estão projetadas com até inéditos 280 metros de altura, ali
apenas grandes buracos, estruturas de concreto em andamento e restos de grandes árvores,
inclusive castanheiras que foram cortadas e que tanto chatearam Seu Chico. Desta vez os
contrastes parecem não caber nos olhos. Seu Chico se queixava que para as comunidades ali,
diretamente impactadas com o empreendimento não haveria “rebaixamento da transmissão”,
ou seja, eles não perceberiam energia elétrica nenhuma com o empreendimento, só as
limitações e prejuízos em suas terras (servidão de 40 metros de largura). No mesmo espaço
das mais sofisticadas linhas de transmissão do país, diversas famílias sem eletricidade, na
escuridão da noite e das políticas desenvolvimentistas. Diferente seria para a MRN em Porto
Trombetas, que obteve licença para uma linha de transmissão própria, com 98 Km partindo
dali e que irá mudar sua matriz energética (o que é possível, posto que uma das subestações
está prevista para o município de Oriximiná). Por determinação do IBAMA foi realizada
audiência pública. Os comunitários do assentamento coletivo brigavam por uma indenização,
segundo os mesmos, miserável.
  217  

Foto 11: Torre do Linhão no Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013.

A linha de transmissão Tucuruí/Macapá/Manaus que compõe o Sistema Interligado


Nacional (SIN), tem escopo estratégico para o desenvolvimento industrial desses centros.
Apesar de fazer parte do programa “Luz para Todos”, os pequenos municípios estão tendo
que digladiar para que a linha que passará por cima de suas cabeças compartilhe um pouco da
energia, o que não ocorre de imediato e até o final da pesquisa não havia uma definição.
Todos querem energia, todos querem estar conectados. Em Oriximiná passo em frente ao
escritório da Andrade Gutierrez, responsável por trecho da obra e vejo uma fila dobrar a
esquina, “peão tem que aproveitar qualquer oportunidade nessa vida” me fala um pretendente
ao emprego. Passo dias depois e encontro o anúncio: “não temos mais vagas, favor não
insistir”.
  218  

O Pará é a segunda maior província mineral do país, logo depois de Minas Gerais,
respondendo por cerca de 35% da economia nacional neste setor. Abriga uma das maiores
reservas minerais do mundo, principalmente em bauxita e minério de ferro. Além de ser o
sexto maior exportador de minérios do Brasil, possui um dos maiores rebanhos bovinos, a
maior produção de pescado, encontra-se entre os primeiros produtores de abacaxi, açaí, coco,
cacau entre outras frutas. Quando a barragem de Belo Monte ficar pronta em Altamira – o
maior município do país em extensão territorial – o Pará provavelmente será a maior potência
hidroenergética do Brasil. O Estado é o décimo terceiro colocado dentre os PIBs nacionais e
cresce acima da média das outras unidades federativas. Seu crescimento econômico galopante
não condiz com a realidade de seu povo, com quase um terço vivendo no nível da miséria e a
maioria, como no restante do país, é pobre. Mas se comparado a outros tempos, esse índice
melhorou significativamente. As políticas governamentais, principalmente do Governo
Federal, atualmente se esforçam mais efetivamente para reduzir as desigualdades e incluir
economicamente os mais pobres. Sobretudo melhorar os índices e fazer com que as pessoas
possam comprar mais objetos, consumir mais... retirar da pobreza equivale a criar
consumidores, integrar ao sistema. O foco principal das políticas afirmativas não é agregar ou
preservar culturas, conhecimentos, experiências de vida, que pouco importam para os
indicadores e estatísticas.
Não obstante as desigualdades sociais persistirem, as políticas para o crescimento
econômico seguem a todo vapor, ainda na toada da velha receita do “crescer para depois
dividir”. Segundo a Federação das Indústrias do Estado do Pará – FIEPA, estão previstos para
os próximos anos mais de R$ 130 bilhões em investimentos públicos e privados, destes mais
de 50% vão para a indústria mineral214 e o restante para infraestrutura ou produção de energia
que também beneficiam o setor mineral. O setor contribuiu com 90% das exportações
paraenses que, por sua vez, contribui com bilhões de reais anualmente na balança comercial
brasileira, sendo o Pará um dos principais responsáveis pelo seu equilíbrio215.

                                                                                                           
214
Principalmente na região do Carajás onde a Cia Vale do Rio Doce pretende investir cerca de 20 bilhões no
projeto conhecido como S11D, com finalidades de aumentar o processamento do minério retirado pela empresa
na região. FIEPA. Guia Industrial Pará. Disponível em http://cadind.fiepa.org.br/oguia.php. Acesso em 20 de
outubro de 2013.
215
Conforme tabela em demonstrativo do DNPM é possível fazer uma estimativa da movimentação financeira
do setor minerário na balança comercial. DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL.
Economia Mineral do estado do Pará. Belém, 2012. Disponível em
http://www.dnpm.gov.br/mostra_arquivo.asp?  IDBanco  ArquivoArquivo  =6860. Acesso em 21 de outubro de
2013.
  219  

NCM*

DESCRIÇÃO VALOR
26011100 Min. De ferro não aglom. E seus 11.770.815.145
concentrados
26030090 Outros minérios de cobre e seus 853.845.822
concentrados
26020090 Outros minérios de manganês 280.458.651
25070010 Caulim 259.132.241
26060011 Bauxita não calcinada 199.932.321
75022000 Ligas de níquel em forma bruta 91.148.529
71081310 Ouro em barra, fios, perfis de sec. Mac., 82.088.088
bul. Dour.
26090000 Minério de estanho e seus concentrados 9.733.647
26110000 Minério de tungstênio e seus concentrados 554.169
TOTAL 13.547.708.613

* Nomenclatura Comum do Mercosul


Tabela 02: Pauta de Exportação Mineral do Pará. Fonte: SECEX/MDIC - em US$

ANO BRASILEIRA PARAENSE


TOTAIS MINERAIS TOTAIS MINERAIS
2007 186.974.311.748 13.996.988.204 9.223.762.135 3.715.029.173
2008 209.733.426.593 19.842.127.864 11.316.727.635 6.025.375.640
2009 177.756.897.710 16.792.322.617 9.695.932.264 5.587.113.218
2010 219.734.555.237 33.559.557.514 13.968.161.969 9.170.741.268
2011 256.039.574.768 44.216.554.398 18.336.604.195 13.547.708.613
Tabela 03: Exportações Brasileiras e Paraenses. Fonte: SECEX/MDIC - em US$

São milhares de pessoas que empregam sua força de trabalho para fazer a máquina
minerária rodar, mas que sem a alta tecnologia, as imensas escavadeiras e caminhões, linhas
férreas, navios, muita energia, capital, combustível, decisões políticas e muitas outras forças
somadas, de nada servem. Desse contingente de empregados apenas 35% são paraenses e a
maior parte está alocada nos setores de lavra e beneficiamento em que o nível de escolaridade
necessário é o fundamental e o fundamental incompleto216.
Dentre as atividades econômicas minerárias do Pará as empresas ligadas à bauxita
movimentam um mercado bilionário e fazem da região um dos principais polos produtores do
mundo, oscilando entre o terceiro e o quarto lugar. Suas 2,7 bilhões de toneladas
correspondem a 75% das reservas brasileiras e estão entre as maiores do mundo217. Das
quinze maiores empresas paraenses, quatro são diretamente ligadas a esse minério, inclusive a
de maior economia: Hydro Alunorte, Alumínio Brasileiro – Albras, Mineração Rio do Norte –
MRN e Mineração Paragominas, respectivamente. O setor que recebeu aportes bilionários nas

                                                                                                           
216
ENRÍQUEZ, Maria A. Plano de Mineração do Estado do Pará. In. GOVERNO DO PARÁ. Relato da Sexta
Oficina: Mineração em Unidades de Conservação no Pará. Belém. 2012
217
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Relatório Técnico 22: Perfil da Mineração de Bauxita. Brasília:
Banco Mundial. 2009
  220  

últimas décadas, atualmente aguarda uma melhora no mercado internacional218 e a redução


dos custos de energia219 para novos investimentos. Inclusive, um projeto milionário da Norsk
Hydro ASA (Norueguesa) em parceria com a Dubal (estatal de Dubai) de produção de
alumina foi adiado, a Companhia de Alumina do Pará – CAP220. A Alunorte de 1978
(subsidiária da Hydro que tinha como parceira e acionista a Vale do Rio Doce) em Bacarena é
a maior refinaria de alumina do mundo. Por sua vez a Alcoa (Norte-Americana) investiu
bilhões em Juruti, próximo a Oriximiná, ampliando para cerca de 4,5 milhões de toneladas
anuais sua capacidade produtiva de bauxita primária. Despejados aqui superficialmente como
manchetes jornalísticas de cadernos econômicos, vários destes projetos com propostas
iniciadas nas décadas de 1970 e 1980 e outros mais recentes, vão aportar bilhões e bilhões em
recursos, na maior parte internacional. Por sua vez esses recursos podem ser fracionados nos
múltiplos interesses que se mobilizam em torno da produção do metal não-ferroso mais
consumido no mundo, com possibilidade infinita de reciclagem, alta condutibilidade elétrica e
térmica e incontáveis funções dentro das sociedades atuais.
O mercado altamente integrado221 e transnacional em torno da bauxita traduz em
números e linhas de gráficos os dados produzidos pelos estudos técnico-científicos: da
quantidade de reservas, da qualidade das mesmas, das tecnologias disponíveis para
extração/produção, das políticas governamentais favoráveis, dos custos ambientais entre
muitas outras variáveis que representam as milhões de toneladas que serão extraídas do
mineral em suas regiões de origem. A mudança de escala nos números processados pelas
centrais de cálculos (universidades, bancos, bolsas de valores, governos etc.) vão
associando/transladando diferentes setores e funções sociais amarrando-os na extração do
mineral. Enlaçam desde as grandes companhias minerárias globalizadas, as políticas públicas,

                                                                                                           
218
[...]o saldo para os metais é de fortes perdas em 2013, com o alumínio acumulando queda nas cotações de
15% no ano. Segundo analistas, o cenário não deve mudar no ano que vem, já que não há sinais de mudanças na
China, com o país mantendo políticas de subsídio para a produção mesmo com margens negativas. "Como essa
dinâmica não muda, esse ciclo de baixa deve se estender para 2014 e 2015", diz Bruno Rezende, analista da
Tendências Consultoria. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ALUMÍNIO. Cotações do Alumínio primário
recuam em 2013. Disponível em: http://www.abal.org.br/noticias/lista-­‐noticia/integra-­‐noticia/?id=1183.
Acesso em dezembro de 2013.
219
A produção do alumínio é uma das atividades que mais consomem energia elétrica em sua cadeia de
produção, por isso a variação no preço da mesma influencia toda a cadeia. No Brasil a cotação para o setor está
em US$ 72/MWh, muito acima da média mundial registrada em US$ 40/MWh. ROCKMANN, R. Cautela com
preços baixos e energia cara. In. VALOR ECONÔMICO S.A.: Estados – Mineração lidera a economia: setor
estimula uma sólida cadeia produtiva. Rio de Janeiro. Novembro de 2013.
220
HYDRO. Projeto de alumina da CAP é adiado. 2013. Disponível em: http://www.hydro.com/pt/A-­‐Hydro-­‐
no-­‐Brasil/Imprensa/Noticias/Projeto-­‐de-­‐alumina-­‐da-­‐CAP-­‐e-­‐adiado/. Acesso em outubro de 2012.  
221
No sentido de que as próprias companhias mineradoras, concorrentes entre si, participam enquanto parceiras
nos projetos de produção em suas diversas etapas, desde a mineração da bauxita, à produção de alumina, ao
alumínio primário.
  221  

os consumidores, até acionistas/investidores individuais que veem nesses números seus


posteriores ganhos pessoais em cifras, mas não veem, pelo menos não com seus olhos, a
realidade de onde sai estes minerais. A máquina precisa crescer para manter suas amarras e
criar novas. Se não crescer ou ter essa perspectiva o investidor retira seu dinheiro e põe em
algo mais lucrativo e aí tudo pode estagnar ou parar. A oscilação destes números vão
repercutir diretamente no avanço sobre os territórios e as transformações socionaturais que
vêm a reboque. Este avanço multidimensional que literalmente move montanhas dos locais de
extração é promovido pelas grandes companhias transnacionais que atuam conjuntamente
entre si, muitas das vezes, sejam como parceiras em projetos ou como acionistas uma das
outras. Detentoras dos aportes tecnológicos necessários para extrair e dar valor monetário ao
mineral, nossos protagonistas aqui, cujo papel principal é dado à MRN, são hidras que
amarram nossa rede do local ao global (até onde estendem suas conexões) e tem muito mais
do que sete cabeças.
Nesse processo, além dos projetos comuns entre as multinacionais, são estabelecidas
parcerias íntimas com o Estado, não apenas como detentor legal dos recursos do subsolo, mas,
muitas vezes, como imprescindível condição de operacionalização dessa “máquina”. Uma
breve oscilação negativa na cotação mundial desse mineral pode paralisar a operação ou
expansão dessa rede, tanto quanto uma política governamental não realizada a seu favor – os
laços dessa poderosa conjuntura são frágeis. A máquina opera no limite e quer sempre
ultrapassá-lo. O setor recebe internacionalmente um tratamento diferenciado do poder
público222, que mobiliza outros bilhões em infraestrutura e fortalecimento de outros setores
correlatos, como o de energia elétrica, para somar as forças dessa máquina.
Em seu processo produtivo, a bauxita minerada e primariamente beneficiada (lavada e
secada) é levada às refinarias para a produção da alumina por meio de um processo químico
denominado “Bayer” (dissolução, filtração, cristalização e calcinação do minério).
Posteriormente a alumina sofre redução por eletrólise em um processo denominado Hall-
Héroult, para a obtenção do alumínio. No processo de calcinação é consumido (além de cal,
soda cáustica, óleo combustível etc.) cerca de 150 a 400 Kwh por tonelada. Entretanto, para a
produção de alumínio primário, no processo de redução da alumina, são consumidos 14 a 16,5
MWhcc por tonelada de alumínio, em que para cada cinco toneladas de bauxita é produzida

                                                                                                           
222
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste Final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 288
  222  

223
uma de alumínio. A tecnologia exigida em todas as etapas do processo, o custo de
produção e a demanda extrema de energia dão o porte dos atores envolvidos. O Brasil na
produção do alumínio tem destaque internacional tanto na produção quanto na tecnologia
empregada, mas os principais atores que movem esse processo não tem pátria, senão, talvez,
suas matrizes como destinação da maior monta dos dividendos da produção, porém essa trilha
não foi percorrida nesta pesquisa.
A mobilização de outros setores por meio do Estado na cadeia produtiva do alumínio
fica explicitado com o projeto da ALBRÁS – Alumínio Brasileiro S. A. (inicialmente com
capital nacional da CVRD, japonês da Nippon Amazon Aluminium Co. - NAAC e do BNDES,
hoje com a parte referente à CVRD transferida para a Hydro). A ALBRÁS provocou e
viabilizou a construção da Usina de Tucuruí, no Pará, entre 1975 e 1984. A empresa teve para
si criada a Usina de Tucuruí, mas a hidroelétrica, por sua vez, possibilitou a ALUMAR,
criada em 1984, composta pela ALCOA, BHB Billition e Rio Tinto-Alcan, situada em São
Luiz – MA224. Atualmente a construção da hidroelétrica de Belo Monte, orçada em cerca de
R$ 30 bilhões com 80% de investimentos públicos, planejada desde da década de 1980,
apresenta um quadro muito parecido com o desenvolvimentismo do regime militar na
sobreposição de interesses e na manutenção de relações estreitas entre as empreiteiras e
empresas eletrointensivas, principalmente do alumínio primário225. É a renovação dos votos
desse antigo casamento entre políticas governamentais e grandes empreendimentos. A
hidroeletricidade na proporção projetada em Belo Monte beneficia os setores que tem alta
demanda de energia e necessidade de que ela seja estável, contínua e ininterrupta por todas as
horas do dia, diferente das demandas domésticas e de empresas de menor impacto energético
que poderiam ser atendidas por fontes alternativas (eólica e solar)226. A transmissão dessa
energia para o sudeste do país também faz aquecer o setor da bauxita/alumínio que vão
compor parte dos materiais de transmissão (principalmente cabos) – tudo conectado.

                                                                                                           
223
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Relatório Técnico 22: Perfil da Mineração de Bauxita. Brasília:
Banco Mundial. 2009
224
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste Final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 289
225
FEARNSIDE, Philip M. Belo Monte: Resposta à Associação Brasileira do Alumínio. Instituto Nacional de
Pesquisa da Amazônia. 23 de fevereiro de 2012. Disponível em:
http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/Fearnside-­‐Belo%20Monte-­‐
Resposta%20a%20Assoc%20Bras%20de%20Aluminio.pdf. Acesso em: 16 de março de 2012.
226
BERMANN, C. & MARTINS, O.S. Sustentabilidade Energética no Brasil: Limites e Possibilidades para
uma Estratégia Energética Sustentável e Democrática. (Série Cadernos Temáticos No. 1) Projeto Brasil
Sustentável e Democrático, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Rio de
Janeiro, RJ. 2000. p.151.
  223  

A inserção do governo brasileiro no setor do alumínio, enquanto “sócio”, se inicia com


o Projeto Trombetas em 1972 na proposta da CVRD – na época controlada pelo Ministério de
Minas e Energia – em participar minoritariamente da MRN, projeto original da canadense
Alcan apoiado pela SUDAM. A CVRD também vai participar diretamente nos demais
projetos estatais na região amazônica como o da ALBRÁS e da ALUNORTE. Investimentos
privados internacionais e nacionais como os da Companhia Brasileira de Alumínio – CBA (do
grupo Votorantin) e da Alcoa, da Hydro entre outras, também vão receber apoio direto do
governo com investimentos em infraestrutura, ou concessão de benefícios fiscais, ou
subsídios em financiamentos, tributos, além de favorecimentos outros que não aparecem em
documentos oficiais.
Atualmente a CVRD privatizada abreviou o nome para Vale e é considerada a terceira
maior mineradora do mundo com 5.5% de suas ações com o governo, 37.9% de investidores
estrangeiros, 23.3% de investimentos brasileiros e 33.3% da Valepar (Grupo Bradesco e
outros acionistas como a Litel, Mitsui, BNDESpar e Elétron)227. No ano de 2010 a CVRD
anuncia seu gradativo afastamento do setor de alumínio transferindo para Hydro todas as suas
participações na Albrás, na Alunorte e na Companhia Alumina do Pará228. Em setembro de
2013 é anunciado em matéria na Revista Valor Econômico a comercialização das cotas da
Vale na MRN, que tem a companhia como principal acionista e está em disputa pela Alcoa,
Rio Tinto Alcan, BHP Billiton e Norsk Hydro, suas acionistas também. Outros grupos de fora
entre russos e chineses também tem interesses229. Atualmente a MRN é constituída pela Vale
(40%), BHP Billiton Metais (14,8%), Rio Tinto Alcan (12%), Companhia Brasileira de
Alumínio – CBA (10%), Alcoa Brasil (8,58%), Norsk Hydro (5%), Alcoa World Alumina
(5%) e Alcoa AWA (4,62%). São as maiores mineradoras do mundo que compõem esta joint-
venture, que se tornou a maior produtora de bauxita do Brasil e uma das maiores do mundo (a
maior produtora individual do mundo), com produção vendida em 2012 de 17,1 milhões de
toneladas do minério. Desta produção 59% atenderam as refinarias da Alunorte e da Alumar

                                                                                                           
227
VALE DO RIO DOCE. A Vale. Disponível em http://www.vale.com/PT/investors/company/fact-­‐
sheet/Documents/factsheetp.pdf. Acesso em novembro de 2013.
228
Id. Vale conclui gestão de portfólio de ativos de alumínio. Disponível em:
http://www.vale.com/brasil/PT/investors/home-­‐press-­‐releases/press-­‐releases/Paginas/vale-­‐conclui-­‐gestao-­‐de-­‐
portfolio-­‐de-­‐ativos-­‐de-­‐aluminio.aspx. Acesso em novembro de 2013
229
RIBEIRO, Ivo. Fatia da Vale na MRN terá disputa acirrada. In Valor Econômico. São Paulo. 29 de setembro
de 2013. Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/3282206/fatia-da-vale-na-mrn-tera-disputa-
acirrada#ixzz2mq3Ozg3k. Acesso em 10 de outubro de 2013.
  224  

(mercado interno230) e os 41% restantes foram destinados ao mercado externo, sendo 18%
para os EUA, 11% para o Canadá, 10% para Europa e 2% para a China. A MRN conta com
um quadro de empregados de cerca de 1.300 funcionários, destes 88% são da região Norte231.
Conforme buscou-se mapear há uma complexa rede que configura a mineração da
bauxita, quase sempre associada à produção do alumínio, sua principal destinação (o uso para
refratários é muito restrito e não está relacionado com a bauxita da Amazônia). Nessa rede
atuam poderosos grupos de interesses que se coligam para a viabilização de seus projetos.
Formam-se égides sobre égides, é inidentificável de onde originam as decisões e
reponsabilidades. Empresas que “competem no mercado entre si”, mas que aqui apresentam-
se unidas para concretização dos projetos de extração mineral na Amazônia brasileira. É só
ligar os pontos que as linhas se apresentam. O Estado assume o papel preponderante e
garantidor do processo (que detalharemos adiante com a atuação da MRN), na analogia
ecológica, uma relação simbiótica. Alguns iriam preferir dizer que o Estado é parasitado por
interesses externos em que assumimos a posição de eternos fornecedores de matéria prima ou
commodities, entregando nossos recursos ao capital estrangeiro que dilapidam nossas terras e
almas. Os dois lados da divisão internacional do trabalho, quem se enriquece e quem se
empobrece. “A pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas
transações” que só favorecem as perpétuas elites nacionais. Mas, nesse viés, deveríamos nos
prender a uma perspectiva de Estado idealizada que não se assenta em nenhum plano de
existência: o Estado é definitivamente peça fundamental no jogo e a dicotomia do interesse
público e privado é diluída pela própria realidade. A rede certamente se estende aos
indivíduos: governantes ou ligados a eles, alto empresariado, e mesmo aos “Senhores
Ausentes” de Bauman (elites globais), já que o velho modelo José Ermírio de Morais, que
mostra a cara, assume a responsabilidade e maquia o capital externo, não existe mais. Não
tive folego para avançar nessa direção. O lucro é o que faz conectar atuando sobre a nossa
fome, os nossos instintos mais primitivos, ele não determina, é determinado pela ciência e
técnica que faz possível o agenciamentos deste metal, que o faz parte indissociável da
sociedade no número infinito de conexões que passa a estabelecer e dependências que passa a
criar.

                                                                                                           
230
É importante ressaltar que tanto a Alunorte quanto a Alumar também são exportadoras de alumina, ou seja,
um percentual da bauxita que é processada aqui vai para fora da mesma forma, só que com uma etapa a mais de
beneficiamento. Exportam mais de 80% de sua produção, conforme disponível em seus sites.
231
MRN. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-­‐DOE-­‐2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
  225  

2.2 Para além dos territórios e das leis

Ferramentas de pedra são utilizadas antes do surgimento do Homo sapiens


acompanhando todo o paleolítico. O fascínio por minerais, não apenas de uso prático ou
direto, mas também sobre aqueles coloridos e que brilham, acompanha a espécie humana em
muitas de suas composições socionaturais, ganhando maior expressão no surgimento das
civilizações. Inúmeras guerras foram travadas em busca de minerais e também ganhas pelo
domínio dos mesmos. Eras inteiras são assim marcadas: Idade do Cobre, do Bronze, do Ferro,
do Ouro, do Silício...
[...] sem os metais, os homens teriam sido privados da “glória e
pompa” da batalha, ferida com espadas, armas e trombetas; em vez
disso, haveria somente “uivos e brados de homens pobres e nus
espancando-se uns aos outros [...] com porretes, ou brigando
totalmente aos murros”. 232

A mitologia do eldorado fez a força dos corações aventureiros dos povos ibéricos para
rasgarem o mundo atrás da fortuna dos metais e gemas. O conhecimento milenar da fundição,
que se liga até os dias de hoje à mais sofisticada metalurgia, proporcionou ferramentas,
extensões ou rizomas do nosso corpo, que deram outro poder a nós e as nossas sociedades. Se
uma tribo conhecer um machado de ferro, não mais utilizará um machado de pedra para cortar
uma árvore e, se ela não detiver a tecnologia para a fabricar a ferramenta, passa a estar
dependente de quem a possui. Se um grupo humano produz armas de metal torna-se quase
impossível para outro rival que não as detiver competir ou defender-se. Armas, germes e aço,
como diria Jared Diamond233, fizeram diferença para o povo europeu, selecionado na guerra e
na doença, imbuído de conhecimentos de muitas civilizações anteriores, para dominar as
terras ameríndias. “Tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste”234, os diferentes
ciclos do ouro, da prata, da esmeralda, do diamante ou outro mineral qualquer, abriram as
veias da América Latina que ainda sangram após todos esses séculos. Agora na técnica das
imensas máquinas, na força dos que detém o conhecimento para fazer armas de uranio ou para
nos seduzir e fazer que desejemos machados de ferro para cortar as árvores com que
construiremos nossas casas ou extrairemos a lenha para cosermos nosso alimento.

                                                                                                           
232
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às
plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 25
233
DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: o destino das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2007
234
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2010. Disponível em:
http://copyfight.noblogs.org/gallery/5220/Veias_Abertas_da_América_Latina(EduardoGaleano).pdf. Acesso
em outubro de 2010.
  226  

Ciência, técnica e mineração caminham de mãos dadas compondo parte substancial da


matéria das sociedades humanas. A identificação, mapeamento, qualificação, extração,
regulamentação, aplicação, utilização e comercialização dos minerais compõem uma rede
sociotécnica de proporções globais de longa e sangrenta história. Nos tempos modernos os
grandes projetos minerários foram tradicionalmente idealizados, negociados e decididos em
locais muito distantes de sua extração e realizados por organizações ou grupos que não
possuíam nenhum laço com território da mina além do interesse frio no próprio mineral e da
capacidade técnica para extraí-lo. Diferente do garimpo, ou da faiscação ou da cata, também
impactantes em menor escala, a mineração que nos referimos precisa mobilizar muitos
interesses em uma mesma direção para que opere e, para amalgama-los, precisa convencer ou
com o repasse de parte de seus resultados ou pela força bruta sobrepujando interesses – o que
se fez mais usual ao longo da história e que apresenta um novo quadro na contemporaneidade
que aqui estamos explorando.
Enquanto a América Latina via reduzir a um décimo sua população original na
violência colonizadora, a Europa via quintuplicar seu capital com as riquezas minerais
sorvidas destes solos235. No Brasil colonial, onde a principal mão de obra eram os negros
africanos, as corridas pelo ouro, diamantes e outros minerais preciosos marcaram diversas
passagens da história e assentaram grupos humanos em diferentes sítios deste vasto território,
além de contribuir muito para a riqueza europeia. No período colonial a Coroa realizava
acirrado controle sobre os que detinham conhecimentos minerários, principalmente ourives e
ferreiros, inclusive proibindo a fabricação do ferro, em 1785. Via nesse controle uma forma
de combater os descaminhos, principalmente do ouro e do diamante, e manter a dependência
da colônia sobre os objetos de ferro, imprescindíveis para várias funções. Com a chegada do
Príncipe Regente em 1808 se inicia a siderurgia no Brasil, em apoio à busca do ouro, com o
alemão Schonewolf. Com deficiências técnicas e conhecimentos geológicos ainda pouco
desenvolvidos o Brasil pós-colonial do século XIX recebe diversos personagens estrangeiros
para “contribuir” no reconhecimento e mapeamento de suas riquezas naturais como: John
Baptist Von Spix, Carl Friedrich Philipp Von Martius, Harry Rosenbush, Hermann Von
Ihering, entre outros. Quando o mineral de fácil acesso dos aluviões começaram a se exaurir,
as minas e jazidas foram amplamente abertas à iniciativa privada, isso já na independência.
Nesse momento, os ingleses foram os maiores investidores que, com apoio do capital nacional

                                                                                                           
235
LOPEZ, Octavio J. Minería del Caribe y de América Central. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p.
125.
  227  

do Barão de Catas Altas e do Marquês de Olinda, incorporaram a “Imperial Brazilian Mining


Association”, com sede em Londres. Posteriormente novas companhias foram se instalando,
tornando a exploração do ouro brasileiro o investimento mais lucrativo da Inglaterra na
América Latina do séc. XIX. Esses investimentos e tecnologias escavaram grandes minas em
S. João Del Rei, S. José Del Rei (Tiradentes), Sabará, Itabira do Campo, entre outros locais236.
A mineração, conforme ilustrado, associa-se historicamente a vários atores externos e
internos que alojam-se, subtraem e modificam parte do território. Quando esgota o mineral
elas partem deixando as cicatrizes na terra. As regras que vão disciplinar a apropriação dos
recursos minerais, proveniente de tratados internacionais ou emanadas do Estado enquanto
ente Soberano, vão variar conforme o momento político e conforme o interesse sobre cada
mineral. No Brasil da época colonial as jazidas pertenciam à Coroa Portuguesa disciplinadas
pelo regime denominado Regaliano, o donatário do território que obtivesse outorga de lavra
devia o quinto237 à Coroa. No período do império o regime foi o Dominial em que jazidas e
minas pertenciam à Nação. Com a proclamação da República e a Constituição de 1891 o
regime foi o de Acessão, em que as jazidas e minas pertenciam ao proprietário do solo (art.
72, §17). Com a Emenda de 03 de setembro de 1926, se as minas e jazidas estivessem
relacionadas à segurança nacional não poderiam ser transferidas a estrangeiros. Este regime
perdurou até a próxima Constituição e o Código de Minas, ambos de 1934. A partir de então
passou-se ao regime de “res nullius”, em que as jazidas e minas constituíam “propriedade
distinta da do solo”, não pertenciam a ninguém especificamente, concedendo-se ou
outorgando direito a quem realizasse a exploração conforme a lei, com preferência para o
proprietário do solo238. Neste período assim como na Constituição de 1937 e 1967, a
exploração mineral só poderia ser realizada por empresas nacionais ou organizadas no Brasil.
Com a Constituição Federal de 1988 os recursos minerais passam a ser bens da União (art. 20,
IX), que detém competência privativa para legislar sobre os mesmos. A Constituição Federal
de 1988 avança muito na temática frente às constituições anteriores, tratando em diversos
momentos os recursos minerais: art. 20, IX; art. 21, XXV; art. 22, XII; art. 174, §§ 3º e 4º; art.
176, §§ 1º, 2º e 3º; art. 225, § 2º; art. 231, § 3º.239 Por fim os Atos das Disposições
                                                                                                           
236
RAMOS, José R. A. Mineração no Brasil Pós-Colonia. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p. 56
237
O “quinto” conforme o próprio nome, correspondia à quinta parte da produção, os vinte por cento que eram
devidos à Coroa.
238
RAMOS, José R. A. Mineração no Brasil Pós-Colonia. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p. 58
239
Art. 20. São bens da União: IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
Art. 21. Compete à União: XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de
garimpagem, em forma associativa. XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e
  228  

Constitucionais Transitórias – ADCT, dispôs sobre o assunto também nos artigos 43 e 44240.
Uma das grandes inovações e a de maior repercussão para a mineração foi o tratamento
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: a) toda atividade
nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso
Nacional; b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a
pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção,  
comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d) a responsabilidade
civil por danos nucleares independe da existência de culpa;
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XII - jazidas, minas, outros recursos minerais e
metalurgia;
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado. § 3º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em
conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros. § 4º - As cooperativas a que
se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e
jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21,
XXV, na forma da lei.
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o
aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições
específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. § 2º - É
assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. §
3º - A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as autorizações e concessões previstas neste
artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente.
§ 4º - Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de
capacidade reduzida.
Art. 177. Constituem monopólio da União: V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos
cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as
alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a
recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na
forma da lei.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.
240
Art. 43. Na data da promulgação da lei que disciplinar a pesquisa e a lavra de recursos e jazidas minerais, ou
no prazo de um ano, a contar da promulgação da Constituição, tornar-se-ão sem efeito as autorizações,
concessões e demais títulos atributivos de direitos minerários, caso os trabalhos de pesquisa ou de lavra não
hajam sido comprovadamente iniciados nos prazos legais ou estejam inativos.
Art. 44. As atuais empresas brasileiras titulares de autorização de pesquisa, concessão de lavra de recursos
minerais e de aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica em vigor terão quatro anos, a partir da
promulgação da Constituição, para cumprir os requisitos do art. 176, § 1º.
§ 1º - Ressalvadas as disposições de interesse nacional previstas no texto constitucional, as empresas brasileiras
ficarão dispensadas do cumprimento do disposto no art. 176, § 1º, desde que, no prazo de até quatro anos da data
da promulgação da Constituição, tenham o produto de sua lavra e beneficiamento destinado a industrialização no
território nacional, em seus próprios estabelecimentos ou em empresa industrial controladora ou controlada.
§ 2º - Ficarão também dispensadas do cumprimento do disposto no art. 176, § 1º, as empresas brasileiras titulares
de concessão de energia hidráulica para uso em seu processo de industrialização.
  229  

diferenciado ao meio ambiente e seus atributos que passam a ser “bens de uso comum do
povo”, ou seja, de interesse difuso, “res communis”, de caráter eminentemente público. A
obrigação de reparar o dano causado pela mineração, obrigação já dedutível da Política
Nacional de Meio Ambiente, Lei 6938 de 1981, é ineditamente explicitada na Constituição de
1988. Na mesma linha instituiu-se também uma tríplice responsabilização decorrente de dano
eventual ao meio ambiente: penal (inclusive figurando no polo ativo a pessoa jurídica –
mediante culpa lato senso), civil (responsabilidade objetiva com dever de indenizar e reparar
o dano) e administrativa (correspondente à transgressão de regra administrativa de tutela
ambiental, podendo ser responsabilidade objetiva ou subjetiva conforme a regra
administrativa transgredida).
O reconhecimento da importância da atividade minerária é notório na Constituição de
1988 enquanto atividade de “relevante interesse público”. Por sua vez, com exceção das
substâncias minerais protegidas (radioativas e hidrocarbonetos), a Constituição possibilitou ao
Poder Público autorizar e/ou conceder tanto a pesquisa quanto a lavra para particulares241.
Nesse caso, a grande diferença em relação aos momentos anteriores, está na rigidez do
controle ambiental da atividade pelo reconhecimento de que a mesma pode causar muito mais
prejuízos do que benefícios sem este controle. Aqui a legislação se conecta ampliando os
vínculos e fazendo emergir interesses.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
§ 3º - As empresas brasileiras referidas no § 1º somente poderão ter autorizações de pesquisa e concessões de
lavra ou potenciais de energia hidráulica, desde que a energia e o produto da lavra sejam utilizados nos
respectivos processos industriais.
241
Com fins elucidativos segue um breve resumo do regime de concessão e autorização para lavra, baseado no
Código de Mineração em vigor (Decreto-lei 227/1967): 1. Requerimento de Pesquisa em área livre (equivale a
área sem requerimentos ou pesquisas anteriores conforme art. 18 do Código de Mineração). Apresenta-se os
documentos constantes do art. 16 dirigido ao Diretor Geral do Departamento Nacional de Produção Mineral -
DNPM, tais documentos devem ser preparados por geólogos ou engenheiros de minas, atendendo aos requisitos
será emitido Alvará publicado no Diário Oficial da União (ato compulsório). 2. Autorizada a pesquisa o acesso a
área poderá ser negociado com o proprietário ou pleiteado judicialmente, em que serão fixadas as rendas e
indenizações. Após autorizado, o Titular da pesquisa deve iniciá-la dentro de sessenta dias e manter um fluxo
constante de informações para o DNPM, previstos na Lei, até a apresentação do relatório final – Relatório dos
Trabalhos de Pesquisa (art. 22 e 30). 3. Após aprovação do relatório publicada no DOU, o titular tem o prazo de
um ano para requerer a concessão de lavra. Dará entrada então a uma série de documentos para a requisição
dirigidos ao Ministro de Minas e Energia com o Plano de Aproveitamento Económico da jazida. 4. Apresentando
a documentação concernente ao requerimento de lavra será analisada no DNPM e, estando bem instruída,
ensejará a Concessão pelo Ministro de Minas e Energia de uma Portaria, devendo atender aos requisitos do
Licenciamento Ambiental para o aproveitamento da jazida. Cabe ressaltar que também estão previstos os
regimes de a) Licenciamento (substancias de emprego imediato na construção civil) facultado exclusivamente ao
proprietário do solo ou a quem obtiver expressa autorização; b) Permissão de Lavra Garimpeira (substâncias
minerais garimpáveis); c) Extração (para órgão ou entes públicos de substancias utilizadas imediatamente na
construção civil de obras públicas.
  230  

Os diversos momentos políticos que compuseram a legislação mineral internacional


vão influenciar as legislações domésticas dos países, dentre eles o Brasil, destacando-se
quatro momentos242:
1º. (1945/1965) Após a II Grande Guerra aumenta a demanda global de minério para a
reconstrução dos países assolados. Simultaneamente se intensificam os movimentos
nacionalistas e de independência nos países colonizados. O aumento da resistência dos países
pobres à dominação dos países ricos acarreta na rediscussão de contratos e concessões que
feriam a soberania desses países hospedeiros de companhias estrangeiras. Começam as
reivindicações para “dividir o lucro”. Neste momento, iniciam os movimentos ambientalistas
que involuntariamente promovem o deslocamento da mineração mais poluente para os países
pobres, ao reivindicar um controle mais rígido para a prática nos países ricos.
2º. (1965/1980) A ONU reconhece em 1972 a soberania nacional sobre os recursos minerais
existentes nos subsolo dos países e na plataforma continental. O governo passa a ter um
controle mais efetivo da mineração, com participação mais direta do Estado e restrições ao
capital estrangeiro. Proliferam-se as estatais e as joint-ventures e a parceria entre ambas. Os
primeiros grandes tratados sobre meio ambiente são estabelecidos, possuindo como como
marco a Conferência das Nações Unidas Sobre meio Ambiente Humano de Estocolmo.
3º. (1980/1990) Crise econômica nos países produtores, auxílios internacionais e aumento da
dívida externa, terceirizações, contratos de serviço, contratos de risco e gradativo
fortalecimento da legislação ambiental.
4º (1990-) Globalização econômica regida pelo ideário neoliberalista com grande volatização
e dinamicidade do capital que passa a se movimentar com mais facilidade em busca de
oportunidades melhores. Privatizações em série de estatais. Maior visibilidade de interesses
excluídos por meio do intercâmbio e fortalecimento dos movimentos sociais. Adaptação do
paradigma da “economia de rapina” para a “ecoeficiência” e consequente ampliação da
negociação com os stakeholders (diversas partes envolvidas).
No Brasil o Código de Minas de 1934 (Decreto nº 24.642/1934) é revogado pelo
Decreto-Lei 1.985 de 29 de março de 1940, que por sua vez ganha nova redação com o
Decreto-Lei nº 227 de 28 de fevereiro de 1967, com sucessivas modificações posteriores,
principalmente pela Lei 7.805 de 1989 e Lei 9.314 de 1996, sendo este último o Código de
Minas que vige atualmente. Por ser o recurso mineral um bem público que pode ter concedida

                                                                                                           
242
Com exceção do quarto momento os demais encontram-se em: HERRMANN, Hildebrando. A mineração sob
a óptica legal. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da América Latina pela Mineração: Histórico
Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p. 171
  231  

a exploração ao particular, figuram alguns preceitos gerais do direito administrativo somados


aos específicos do direito mineiro em que se destacam: a legalidade, a formalidade, a
gratuidade (em casos específicos), a utilidade pública, a divisibilidade, a transmissibilidade e
as onerações. Apesar de possuir regime jurídico próprio, a mineração guarda estreita relação
com o direito ambiental, sobretudo por se tratar de atividade altamente impactante e pela
elevação do meio ambiente enquanto direito humano fundamental, garantido
constitucionalmente.
O principal ente público relacionado à mineração no Brasil é o Departamento
Nacional de Produção Mineral - DNPM. Sua origem está associada à Diretoria do Serviço
Geológico e Mineralógico do Brasil, criado em 1907, na época subordinado ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio. Oficialmente instituído em 1934, pelo Decreto 23.979,
manteve-se atrelado à agricultura até 1960 quando foi criado o Ministério de Minas e Energia
pela Lei 3.282. Trinta anos depois esse ministério é fundido com o de Comunicações e
Transportes e com o de Industria e Comércio formando o “Ministério da Infraestrutura” que
modificou substancialmente o DNPM. Em 1994 o DNPM torna-se Autarquia (Lei 7876) com
representação em todos os Estados e assumindo a responsabilidade de promover, planejar,
fomentar, outorgar, normatizar, controlar e fiscalizar o aproveitamento dos recursos minerais
e a realização das pesquisas geológicas. Apesar das muitas atribuições, o DNPM é
considerado uma entidade que age compulsoriamente autorizando pesquisas ou outorgando
lavras, bastando atender as formalidades legais, sem muita discricionariedade e ponderações.
Atualmente tramita o Projeto de Lei 5807, de 2013, que pretende substituir o atual
Código de Minas. A proposta foi realizada pelo Governo federal sob o argumento do
anacronismo do código anterior e da necessidade de modernizar a exploração mineral no país,
estimular a concorrência e ampliar a participação governamental dos resultados. Essa
proposta vem redimensionar a atividade mineral e sua regulamentação. A criação do
Conselho Nacional de Política Mineral - CNPM e da Agencia Nacional de Mineração –
ANM, segue a lógica da Agência Nacional do Petróleo, Gás-natural e Biocombustíveis. Essa
mesma lógica se reproduz no regime legal de exploração das minas e jazidas que serão
licitadas para exploração privada por períodos de quarenta anos prorrogáveis por mais vinte.
Outras modificações importantes estão relacionadas aos Royalties – Compensação Financeira
  232  

pela Exploração dos Recursos Minerais – CFEM – que sofrerá reajustes, majorando-os em
geral. 243
A CFEM que substituiu o Imposto Único sobre Mineral - IUM, é uma tributação
específica que recai sobre a atividade de mineração (também recaem as outras tributações em
geral). As alíquotas agrupam as substâncias minerais em quatro grupos: 1. Minério de
alumínio, manganês, sal-gema e potássio – 3% sobre o produto comercializado; 2. Ferro,
fertilizante, carvão e demais substâncias – 2%; 3. Pedras preciosas, pedras coradas lapidáveis,
carbonatos e metais nobres – 0,2%; 4. Ouro – 1% quando extraído por empresas e isento para
garimpeiros. Os recursos são distribuídos da seguinte maneira: 12% para União (DNPM,
IBAMA e MCT), 23% para o Estado onde for extraída a substância e 65% para o município
produtor, conforme a Lei 7990 de 28 de dezembro de 1989. Os recursos do CEFEM por força
da lei, devem ser aplicados em melhorias locais comunitárias, de infraestrutura, qualidade
ambiental, educação, saúde etc. Apesar de existirem diferentes modelos para a cobrança de
Royalties pelo mundo, o Brasil é um dos países com as mais baixas alíquotas244, i. e. está
entre os que menos recebe tributo específico da atividade minerária.
Enquanto atividade causadora de significativa degradação a exploração de recursos
minerais é condicionada ao licenciamento ambiental, seja em âmbito municipal, estadual ou
federal. O licenciamento ambiental torna-se condição para a licença de lavra pelo
Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM. Esse procedimento administrativo sui
generis do direito ambiental, de caráter híbrido (não puramente vinculado e tampouco
discricionário), visa avaliar em todas as etapas do empreendimento (licença prévia, licença de
instalação e licença de operação) os impactos na sua área de influência e a forma como estes
serão controlados/mitigados/compensados, condicionando a expedição das licenças. O
licenciamento ambiental não é ato precário, mas as licenças possuem prazos de validade,
exigindo-se renovações quando vencidas, mas possuindo estabilidade temporal no tempo de
sua vigência. O licenciamento ambiental é precedido de estudos prévios que subsidiam os
tomadores de decisão para a concessão ou não da licença, amparada no “interesse social”.
Estes estudos visam quantificar e qualificar os impactos ambientais, bem como apresentar
globalmente o projeto, a tecnologia utilizada e os responsáveis técnicos, mas não vinculam a
licença. Dentre os diversos tipos de Avaliações de Impactos Ambientais, três são importantes

                                                                                                           
243
BRASIL. Projeto de Lei nº 5807 de 2013. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=1B5D111BB92060BD820BEF376F
D02721.node1?codteor=1101841&filename=PL+5807/2013
244
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Aspectos Tributários da Mineração Brasileira: Análise
comparativa de Royalties. Brasília, junho de 2009.
  233  

para o estudo: o Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto


Ambiental – EIA/RIMA (apresentado na requisição da Licença Prévia), o Plano de Controle
Ambiental (apresentado no requerimento da Licença de Instalação) e o Projeto de
Recuperação de Áreas Degradadas – PRAD (no curso da operação).
No caso da mineração da bauxita em Oriximiná pela MRN, o licenciamento se dá em
âmbito federal, posto que a atividade se situa em uma unidade de conservação federal, a
Floresta Nacional Saracá-Taquera. Neste caso o órgão responsável pelo licenciamento é o
IBAMA, mas por impactar diretamente a unidade de conservação, o ICMBio faz parte do
processo. O IBAMA outorga as licenças, mas para que ocorra o processo de licenciamento é
necessário que ICMBio conceda uma “Autorização para o Licenciamento Ambiental”. Esta se
dá por meio de análise técnica e parecer conclusivo, considerando os impactos ambientais, os
atributos, o Plano de Manejo da UC e a compatibilidade da atividade245. A Resolução
CONAMA 237 de 1997 regulamenta os licenciamentos ambientais de uma forma geral
enquanto a Resolução CONAMA 009 de 1990 é específica para a atividade de mineração,
exigindo-se o licenciamento também para a pesquisa mineral246. O processo de licenciamento
ambiental consubstancia-se em um princípio de participação democrática, inerente ao direito
ambiental, que visa possibilitar a participação dos interessados durante o processo por meio
de audiências públicas, conselhos gestores e consulta de todos os estudos e documentos
produzidos no processo (Lei Federal 10.650/03). Quando se trata de áreas frágeis e os
impactos recaem sobre grupos humanos sensíveis a questão ganha ainda mais notoriedade,
com um maior número de documentos legais de remissão obrigatória no processo (como p.
ex. a legislação indigenista, lista de espécies ameaçadas de extinção, classificação do curso
d’água, Convenção 169 da OIT etc.). A observância dos preceitos legais, a subsunção, a
formalização dos processos de autorização e de licenciamento com consequente legitimação
estatal, vão constituir uma das facetas do ideário do “desenvolvimento sustentável”.
A questão ambiental – historicamente sustentada na própria ciência e tecnologia em
sua política – é um divisor de águas no universo empresarial e nas políticas de

                                                                                                           
245
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Instrução Normativa Nº 05 de 02 de setembro de 2009. Disponível
em: http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/o-que-somos/in052009.pdf
246
O jusambientalista Paulo de Bessa Antunes entende ser ilegal a exigência de licenciamento ambiental para a
pesquisa: “Parece-me, portanto, que há uma evidente ilegalidade na exigência de licenciamento ambiental para
as atividades de pesquisa mineral” […]. ANTUNES, P. B. Direito Ambiental. 14ª edição. São Paulo: Atlas.
2012. p. 955. Devo, todavia, dizer que discordo peremptoriamente, a atividade de pesquisa é extremamente
impactante e pude constatar com os meus próprios olhos as estradas sendo abertas e inúmeras árvores sendo
derrubadas para as pesquisas da MRN no Platô Cruz Alta, além de toda a movimentação de lanchas e
mobilização dos pesquisadores e funcionários, com impactos visíveis próximos da comunidade de Mãe Cué,
inclusive sobre a mesma.
  234  

desenvolvimento. Na medida em que foi ampliando sua penetração social, não apenas no
campo legal, mas sobretudo no moral, foram se multiplicando os diferentes vínculos nos
processos produtivos e obrigando a consideração de fatores de risco inerentes às atividades. A
legitimação de uma atividade como a mineração, até a década de 1970 (ou 1980 para os
países do sul), sustentava-se em um modelo de responsabilidade social coorporativa, num
campo de relações limitado aos seus empregados, clientes, governos, proprietários e
concorrentes. Esse modelo ancorado no universo dos negócios, construía sua aceitação
pública tendo como base argumentativa e publicitária principalmente: os investimentos
realizados, os empregos gerados, o pagamento de impostos, o oferecimento de bens e
serviços, a transferência de tecnologias, a substituição de importações, a entrada de divisas e
as ações filantrópicas como criação de fundações, escolas, hospitais, infraestrutura etc. Esse
modelo de desenvolvimento, com a emergência da questão ambiental, se percebeu acuado e
obrigado a adaptar-se aos novos imperativos morais (legais, políticos, econômicos, sociais,
tecnológicos etc.) atrelados à ideia de crise ambiental, como condição sine qua non de
legitimação social. Esse deslocamento na indústria mineral corresponde à gradativa filiação
ao ideário do “desenvolvimento sustentável”, sacralizado no documento da “Comissão
Mundial da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” de 1987, conhecido como
“Nosso Futuro Comum” ou “Relatório de Brundtland” e nos processos de adaptação
tecnológica denominado “ecoeficiência”. Além da adequação legal brevemente explanada,
nesse “novo modelo” que também incorpora os pontos de legitimação do modelo anterior,
ligados à eficiência econômica, tem somada dois outros vieses de análise: o desempenho
ambiental e o desempenho social (impactos sobre os ecossistemas humanos e não-humanos),
considerados principalmente depois da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento de 1992 no Rio de janeiro. As partes interessadas, aqueles que devem ser
levados em consideração no processo produtivo, são significativamente ampliados. Estes – na
palavra inglesa que se tornou o jargão dos economistas – stakeholders passam a ser: as
organizações das comunidades locais, as ONGs socioambientais, os fornecedores, os
financiadores e outros grupos de interesses especiais, os consumidores, os acionistas, as
mídias, além dos anteriormente considerados. Nesse sentido, o controle se amplia para muito
além do Estado, como é o caso da mineração da bauxita, via de regra relacionada ao mercado
externo, sendo exercido internacionalmente por ONGs, exportadores, acionistas etc247. Nesse

                                                                                                           
247
BORGES, L. F. Política e Mineração na era da ecoeficiência. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p.
149 - 154
  235  

contexto, ampliado gradativamente na década de 1990 e 2000, a “imagem social e ambiental”


da empresa passa a ter um peso vital para a mesma. Assim, percebe-se nas últimas duas
décadas uma substancial ampliação dos investimentos em recuperação de áreas degradadas,
projetos comunitários, em preservação da natureza, em certificações e autorregulação, a
exemplo das normas ISO 14.001 e OHSAS 18.001, adequação tecnológica ao
desenvolvimento mais Limpo – P + L e, substancialmente, em publicidade sobre essas ações.
Estar associada a uma imagem de empresa ambientalmente poluidora ou socialmente
irresponsável pode significar para um acionista ou consumidor fazer mal a si mesmo, aquilo
que deve ser evitado, ou para uma instituição financiadora um investimento de alto risco que
qualquer hora pode gerar um motim ou uma repressão estatal, um prejuízo etc.
Como toda lógica empresarial moderna e sua busca obstinada pela objetividade,
investir em tecnologias e criar indicadores ambientais e sociais foi a maneira de medir o
desempenho nesses processos, buscar formas de corrigir as deficiências para atingir um
óptimo operacional e a previsibilidade das ações. A Comissão para o Desenvolvimento
Sustentável –CDS das Nações Unidas tem atuação contínua nesta direção na busca de
concretizar o ideal do desenvolvimento sustentável, medindo a sustentabilidade dos agentes
sociais produtores. Um exemplo amplamente aceito é o GRI – Global Reporting Initiative,
indicadores sobre desempenho econômico, ambiental e social, com o desempenho financeiro
de empresas (utilizado pela própria MRN p. ex.). Forma geral, os indicadores são criados
levantando-se em conta os interessados (stakeholders) e seus interesses (hipóteses de
desenvolvimento), apresentando a proposta de empreendimento (a atividade e seus resultados)
e negociando os benefícios que podem ser gerados (acordos políticos)248. Pode resultar, não
apenas no demonstrativo qualitativo e quantitativo de desempenho ambiental, mas em uma
forma de resolver conflitos socioambientais por via privada, entre as partes com discrepantes
poderes e influências, em que a ideia de benefícios gerados com a otimização da utilização
dos recursos naturais, serão, necessariamente relativas.
A mineração, uma das mais importantes atividades humanas na constituição das
sociedades, está historicamente situada entre os trabalhos mais usurpadores, degradantes e
predatórios que já existiram. Exercida sem maiores controles até meados do século passado,
pouco a pouco, foi se submetendo aos regramentos e reivindicações nacionais e

                                                                                                           
248
Nesse sentido ver as obras: VILLAS BÔAS, R. C. Indicadores de desenvolvimento sustentável para a
indústria extrativa mineral: guia prático. Rio de Janeiro: CETEM/MCT/CNPq/CYTED. 2009; VILLAS BÔAS,
H. C. A indústria extrativa mineral e a transição para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:
CETEM/MCT/CNPq. 2011; FERNANDES, F. R. C.; ENRÍQUEZ, M. A. R. S.; ALAMINO, R. C. J. Recursos
Minerais & Sustentabilidade Territorial. Volume I e II. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI. 2011.
  236  

internacionais. Com a emergência da questão ambiental e sua penetração social espetacular,


um novo paradigma se instaura: a ordem passa a ser a “internalização das externalidades”, os
custos para reparar/indenizar os danos causados pela atividade passam a ser de obrigação de
quem a exerce, conforme o “clássico princípio do poluidor-pagador”. Além de serem
substancialmente ampliados os preceitos normativos que regulamentam a atividade, também
passou a ser obrigatória a consideração de riscos e interesses de grupos, antes negligenciados,
enquanto dever jurídico e condição de aceitação moral. A adaptação a essas novas exigências
e suas mudanças no mundo dos negócios é nitidamente perceptível ao acompanhar a história
da MRN e de suas ações ao longo. O que se ilustra e se perfaz nessas “políticas de
adequação” ao mesmo tempo revela o quão contraditória é essa adaptação e como a mesma
pôde ser arquitetada em benefício dos interesses da própria empresa, fazendo convergir vários
interesses, mas não necessariamente coadunando com interesses socioambientais
universalizáveis ou aceitáveis sob uma perspectiva de universalização. E, no caso em estudo,
sempre associado às políticas governamentais. Três momentos são especialmente marcantes:
1. a criação das unidades de conservação em 1979 e 1989; 2. A recuperação ambiental do
Lago Batata a partir de 1987; e 3. Os projetos de desenvolvimento comunitário a partir de
1990. Desses momentos o que gera as maiores controvérsias são as unidades de conservação,
cuja mineração se dá no interior de uma Floresta Nacional e adjacente a uma Reserva
Biológica, ambas sobrepondo-se aos territórios tradicionalmente utilizados pelos
remanescentes de quilombo. A questão tornou-se complexa sob várias perspectivas, inclusive
do ponto de vista legal, o que enfrentaremos nos capítulos seguintes249.
Mais uma vez é só ligar os pontos para vermos as linhas, na mesma medida em que se
filia ao paradigma do “desenvolvimento sustentável” a exploração do recurso se amplia
exorbitantemente, quintuplica-se... avança sobre mil platôs, com mais de mil seres cada
um...seres estes que poderiam também compor as sociedades, serem agenciados, ou ter
atribuído valor intrínseco, mas muitos sequer serão conhecidos... E ainda, existem aqueles
bem conhecidos e amplamente utilizados pelas comunidades tradicionais da região, mas que
vão sucumbir para dar vez a bauxita... E a sustentabilidade? Não dizia respeito ao uso dos
                                                                                                           
249
Apesar da discussão estar pacificada dado os posicionamentos da Advocacia Geral da União, por uma
exegética mais adequada da matéria ambiental constitucional a discussão mereceria melhor tratamento. Mesmo
tratando-se de unidade de “uso sustentável”, a redação dada pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
Lei 9985 de 2000, modifica a anterior do Código Florestal de 1965 (lei 4771), e destina as Florestas Nacionais à
utilização sustentável dos recursos florestais. Essa discussão será aprofundada em parte própria. No que tange às
unidades de conservação de proteção integral a prática minerária fica vedada pelo fato de que o uso do subsolo
repercute indubitavelmente na qualidade ambiental e, segundo a própria lei, o meio ambiente deve ser visto de
maneira holística. Nas discussões que seguem esses instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente
ganham destaque e aprofundamento na peculiaridade dos casos estudados
  237  

recursos atendendo as necessidades atuais sem prejudicar as gerações futuras? Não seria uma
relação com o tempo?

2.3 Mil platôs de bauxita

Quanto aos recursos minerais é inolvidável que seu aproveitamento


deve ser feito em benefício de outros recursos da região e não em
detrimento deles ou da própria região. São conhecidos, por exemplo,
os prejuízos causados pela lavra de jazida de bauxita, ao meio
ambiente natural, principalmente á fauna aquática.
A exploração das duas jazidas poderá tornar o baixo Amazonas
estéril, se medidas que visam minimizar os prejuízos causados pelo
carreamento da água de lavagem de detritos do minério para os
principais canais não forem tomadas.
(RADAMBRASIL – Santarém/área D/região de Bragança-PA – 1977,
p.505)

Amanhecia mais uma vez no barco no atracadouro de Porto Trombetas. Essa imagem
já não era novidade após tantos episódios, mas desta vez, guardava uma sensação de
nostalgia. Era 17 de janeiro de 2013 e esse seria o último campo do estudo na “cidade
enclave” e eu teria apenas dois dias para cumprir minhas metas até a data do voo para
Manaus, partindo do aeroporto local. Ainda faltava uma parte importante da pesquisa para ser
vivenciada: visitar as grandes minas de bauxita, ver a opulência das máquinas devorando o
solo e a imensa planície vermelha que tomou o lugar da floresta, ainda viva atrás do
horizonte... ver também o verde lentamente tomando espaço nas áreas em recuperação. O
barco chegava de Oriximiná por volta das quatro e meia da madrugada e ali quedava-se até o
sol subir. Aguardando da rede observava com olhos entreabertos as luzes do navio enquanto
se carregava de bauxita, uma cidade flutuante, o shiploader parecia trabalhar dia e noite. Após
solicitações formais de apoio à pesquisa para a MRN, obtive poucas respostas e uma
invariável incompatibilidade de agenda para as visitas e entrevistas. Minha última esperança
era acompanhar alguma fiscalização do ICMBio nas minas, mas não foi possível, pois não
ocorreram em datas coincidentes. A imagem na mente foi construída apenas pelos relatos,
pelas diferentes fotos e o que era possível visualizar do avião.
O Alojamento do Pioneiro em Porto Trombetas é uma área cedida pela MRN ao
ICMBio, após reivindicação realizada ainda na época do IBAMA, em 2003. Ali gozava de
boas acomodações, ar condicionado e cozinha coletiva, mas não havia internet, senão como
serviço oferecido em um cyber-café a algumas quadras de distância. Enquanto pesquisador
credenciado no SISBIO minha estada em Porto Trombetas estava sob custódia do governo e
  238  

não dependia mais da autorização da MRN. Essa era a situação dos pesquisadores das
unidades de conservação que “pousavam” ali antes de seguir para o interior da unidades.
Porto Trombetas, o distrito que é uma aberração jurídica frente ao direito
constitucional de ir e vir250, foi criado em 1976 sobre uma área de 500 ha denominada Sítio da
Conceição. Antigamente ligado à produção de castanha, o sítio foi adquirido pela MRN em
1970, na época a empresa ainda era totalmente vinculada à Alcan. Porto Trombetas é um
ícone da organização empresarial, a vila construída para abrigar os funcionários da MRN e
das empresas prestadoras de serviço, abriga mais de 6000 pessoas, com cerca de 900 casas
muito similares, mas com diferentes tamanhos e padrões conforme a posição dos funcionários
nos escalões das empresas. O lixo tem coleta seletiva, triagem e compostagem. Há estação de
tratamento de água e de esgoto sanitário e duas usinas termoelétricas para suprir a energia da
vila e das operações da MRN. Muitos elementos de autossuficiência se apresentam, mas não
há produção de alimentos. Comboios de balsas saem regularmente de Belém e Santarém para
abastecerem Porto Trombetas após receberem produtos, via transporte rodoviário, do restante
do país. No supermercado do distrito me surpreendia pela diversidade de produtos, podia
comprar um vinho chileno, ou argentino ou mesmo francês, o que não encontraria em
Oriximiná, quiçá em Santarém. Os produtos ali eram praticamente os mesmos que se
encontram nos grandes centros metropolitanos do Sudeste. Já na Praça da Feirinha (Centro
Comercial do Porto) – exceção da company town no que tange ao acesso público –
encontram-se os produtos locais, hortifrúti e pescados. A escola, administrada pela Fundação
Vale do Rio Trombetas de 1997, com ótimas acomodações, leva o nome do ex-secretário de
educação do Pará, o oriximinaense Prof. Jonathas Pontes Athias e atende cerca de 1.200
alunos até o pré-universitário, principalmente filhos dos funcionários, mas também de
algumas comunidades próximas como Boa Vista, primeiro Território Quilombola titulado do
Brasil. O primeiro hospital, de 1977, recebera o nome de Santo Antônio de Uruá-Tapera.
Posteriormente, em 1986 já como Hospital de Porto Trombetas, gozava de trinta leitos,
serviços de saúde superiores aos de municípios muito maiores, sendo em 1997 terceirizado
em sistema de cogestão para a empresa Pró-Saúde. O Ambulatório na Praça da Feirinha pode
e é utilizado frequentemente pelas comunidades ribeirinhas mais próximas. Além do hospital

                                                                                                           
250
Em texto da MRN, do documento publicitário bilíngue que apresenta o perfil da empresa, o acesso restrito ao
distrito teria se iniciado em 2002, após o Brasil adotar o Código Internacional de Segurança a Navios, elaborado
depois dos atentados de setembro de 2001, nos EUA, pela Organização Marítima Internacional (IMO), filiada a
ONU. Segundo a empresa para atender a estas normatizações e adquirir a certificação da IMO foram impostas as
restrições, deixando como única área pública a “Praça da Feirinha”. Segundo os relatos históricos e
bibliográficos consultados, a área sempre fora restrita, conforme visto, até o Prefeito de Oriximiná tinha que ter
autorização.
  239  

e dos serviços laboratoriais, existe um Clube poliesportivo, o Mineração Esporte Clube –


MEC, o iate clube, o Hotel, o cineteatro, igrejas, diversas praças e centros comerciais, bares-
restaurantes, delegacia de polícia, aeroporto, casa da memória, horto de mudas e de epífitas,
centro de reabilitação de amimais, entre outros. Uma infraestrutura de “primeiro mundo”,
como se autoqualificam. Ao lado do centro urbano encontra-se a estrutura empresarial de
parte da administração da mineradora e do carregamento da bauxita. São escritórios,
almoxarifados, centro de processamento de dados, de treinamento, oficinas, ferrovia, estrutura
de secagem da bauxita, locais para estocagem da mesma seca e úmida e o carregador de
navios. A área de beneficiamento foi transferida em 1989 para o platô Saracá, distando cerca
de 30Km da área original, próxima ao porto. Os investimentos dessa operação foram de US$
82 milhões para instalar a nova planta. A Petrobrás possui um terminal próximo ao porto,
sendo responsável pelo combustível que move a máquina minerária, enquanto a TELEMAR
presta o serviço de telecomunicação, fazendo fluir as informações quase na velocidade da luz.

Mapa 05: Porto Trombetas. Landsat – Google Earth, 2013.

O Projeto Trombetas, oriundo de uma complexa geopolítica, fora implantado na


associação entre governo/regime militar, alto empresariado/elite econômica e capital
estrangeiro que marca a história do país no período. A promoção da segurança nacional e do
desenvolvimento econômico partia de grandes projetos integrados que se afunilaram em
projetos pontuais para a colonização do “vazio” espaço amazônico, conforme narrado no
quinto capítulo. O Projeto Trombetas, enquanto um desses afunilamentos, tem também sua
história atrelada à mineradora canadense Alcan, antes mesmo de se alinhar aos projetos
  240  

governamentais. O projeto que se inicia com o capital da empresa canadense, posteriormente


vai marcar o ingresso do governo brasileiro no setor de alumínio, que julgou não poder ficar
de fora diante de tantas possibilidades de exportações com as imensas reservas251, ao mesmo
tempo que a situação convergia com as pretensões governamentais de segurança e
desenvolvimento.
Raymundo de Campos Machado, foi pioneiro e importante engenheiro no setor de
alumínio no país. Catedrático da Escola de Minas de 1938 até 1958, na Universidade Federal
de Ouro Preto, foi o primeiro presidente da MRN, nos anos de 1970 a 1972, antes da entrada
da CVRD no projeto. Em seu livro intitulado de Projeto Trombetas: de Saramenha a
Oriximiná a história da descoberta da bauxita nos platôs próximos ao Rio Trombetas é
ricamente narrada252.
O projeto inicial de criação da MRN tinha como objetivo básico adquirir as pesquisas
e outorgas de lavra das jazidas de bauxita do Trombetas para, com a exploração, atender as
demandas da Alcan. Essa multinacional canadense junto com a Companhia Brasileira de
Alumínio – CBA, eram as empresas que atuavam no setor de alumínio no Brasil no início da
década de 1960. As modestas reservas de bauxita conhecidas na época situavam-se no Estado
de Minas Gerais e não permitiam ao Brasil ingressar no mercado mundial do alumínio, mas
asseguravam a produção do Grupo Alcan no país, em seu consumo naquele tempo de 86 mil
toneladas por ano (mtpa), destinadas ao mercado interno. Com o aumento da produção de
alumínio na fábrica de Saramenha em Minas Gerais e com a consequente necessidade de mais
bauxita, consumindo 450 mtpa em 1962, inicia, nesse local, o projeto para buscar o minério
na “desconhecida Amazônia”. A escolha da Região Norte se deu por sugestão do geólogo
holandês Johan Arnold Staargaard, com apoio da presidência da Aluminas (firma da
Alcan)253.
Em 03 de agosto de 1963 Staargaard anuncia ter encontrado bauxita de boa qualidade
e em tonelagem substancial na região do Rio Trombetas, restando confirmar a condição das
jazidas com o aprofundamento das pesquisas. Com novo aporte de recursos, os estudos
prosseguiram gerenciados pela matriz da Aluminas em São Paulo, com subordinação técnica
direta da Alcan em Montreal, no Canadá. Por sua vez, as operações eram realizadas por outra
empresa subsidiária da Alcan, a Bauxita Santa Rita – BAUXISA, com sede em Manaus. A
                                                                                                           
251
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 284
252
MACHADO, R. C. Projeto Trombetas: de Saramenha a Oriximiná. Rio de Janeiro: Lana Projetos gráficos.
2005
253
MACHADO, R. C.; LIMA, M. H. M. R. Implantação do Projeto Trombetas na Amazônia: de 1962 a 1972.
In. 62º Congresso Nacional da ABM. Vitória. 23 a 27 de julho de 2007. p. 4
  241  

Alcan Brasil também tinha sede em São Paulo, mas seu envolvimento inicial se deu de
maneira mais marginal. Por sua vez a Alcan do Rio de Janeiro254 teve importante papel na
obtenção das fotos da Petrobrás que possibilitaram por estereoscopia encontrar os platôs na
imensidão verde. O prosseguimento das pesquisas no seio da floresta se dava de forma
da Inglaterra em 1966. O minério descoberto na década de 1960, pela sua dimensão
rudimentar devido
só poderia a impossibilidade
ser aproveitado de se
no mercado transportar os equipamentos de perfuração,
internacional.
A MRN foi, nessa época, organizada como sociedade anônima, não mais pelo
obrigando que a realização dos poços para análise se desse manualmente nas áreas elegidas
pessoal que conduzia as pesquisas de bauxita da Aluminas, mas pela equipe
onde jurídica
a equipepaulista
montavadaacampamento.
matriz da Alcan no Brasil
Staargaard e teve opor
é sucedido seu diretor
Igor geral Francisque,
Mousasticoshvily
Aubrey Sievert e o engenheiro Jorge Fragoso como diretores da nova empresa.
em 1967,
Essesquatro
dois anos após a primeira
administradores não descoberta, procede a confirmação
tiveram relacionamento da primeira
com o projeto, reserva
que nem
mesmo tiveram oportunidade de visitar.
255
exportável
Figura de bauxita
1: Projeto do Trombetas,
Trombetas - Área danos platôs
Juruti - mapado Saracá
das reservas .

                   Fonte:
                   Greig
                 (1977)
                                                 
254
O fato de haver tantas subdivisões da mesma empresa e tantas empresas subsidiárias dela, dentre outras
questões, está relacionado à legislação que já exigia que as empresas fossem constituídas sob as leis brasileiras e,
principalmente, restringia a exploração de dado recurso mineral seja por quantidade seja por extensão de área,
bem como o número de pesquisas que poderiam obter etc., para sair dessa situação, foram criadas várias
empresas, todas interligadas e hierarquicamente subordinadas.
255
MACHADO, R. C.; LIMA, M. H. M. R. Implantação do Projeto Trombetas na Amazônia: de 1962 a 1972.
In. 62º Congresso Nacional da ABM. Vitória. 23 a 27 de julho de 2007
  242  

Mapa 06: Projeto Trombetas – mapa das reservas. Greig (1977) reproduzido por Machado, 2007.

Nesse período a Alcan que tinha como sua principal fornecedora de alumina (bauxita
beneficiada) a fábrica de Arvida na Guina Inglesa, sentia-se ameaçada com a independência
deste país em 1966 e a consequente estatização dos recursos minerais. A descoberta nos
Platôs do Saracá passaram a ser de interesse estratégico para a empresa que assume
diretamente o projeto por meio da matriz em São Paulo e não mais pelos pesquisadores da
Alumina. A Mineração Rio do Norte é criada inicialmente para obter as pesquisas que, após
aprovadas e com os decretos de lavra, tornou-se a firma operadora do Projeto Trombetas da
Alcan. O projeto decidido em Montreal em 1969, teria capacidade de produção de 1 milhão
de toneladas por ano de bauxita que seria destinada para Quebec para atender a própria
Alcan256.

Foto 12: Descoberta da bauxita pela Alcan na década de 1960. MRN, 2013.

A MRN foi organizada como sociedade anônima pela equipe jurídica da matriz da
Alcan em São Paulo. O engenheiro canadense Tom A. Wootton foi designado como chefe
executivo do projeto, convidando, em 1970, Raymundo C. Machado para a presidência da
MRN. Tendo por base as instalações da Alcan na Guiana, que operava com mineração de
grande porte, idealizou-se como seria a mineração no Trombetas. Nesse momento o Governo

                                                                                                           
256
Id. Ibid.
  243  

Federal percebia na proposta da Alcan inarredável convergência com os projetos de


desenvolvimento da Amazônia, ensaiando sua participação mais direta257.
O governo federal, na pessoa do ministro de Minas e Energia,
professor Dias Leite, apresentou em uma entrevista ao presidente da
MRN, os pontos de vista do governo sobre o projeto, que na sua
opinião, deveria ser de escala conveniente e ter sócios nacionais para
poder começar com porte maior e, se possível, com produção de
alumina em consórcio com tais sócios. O governo federal tinha grande
interesse em aumentar a mineração de porte no país e sócios
estrangeiros seriam bem recebidos em projetos de interesse
nacional.258

Procedeu-se a escolha do local para a instalação da cidade industrial da mineração –


Sítio da Conceição atual Porto Trombetas – escolha do processo industrial mais adequado de
beneficiamento (lavagem e separação do minério bruto) a partir das amostras enviadas para o
laboratório da Escola de Minas do Colorado. Para a destinação dos resíduos foi escolhido o
Lago Batata, que se tornou um caso emblemático de degradação ambiental na região, que
relato adiante. Pari passu com as emissões de posse para lavra no Platô do Saracá em 1970,
foi aberta uma estrada de 28Km do mesmo até o local onde foi construído o porto. Os
técnicos da Alcan, em Montreal, decidem pelo sistema ferroviário para o transporte da bauxita
e a energia seria gerada por gerador a diesel. “Em janeiro de 1971, a associação das firmas
Christiani Nielsen e Consag ganharam a concorrência feita em São Paulo. Para a escolha da
firma empreiteira geral das obras, apresentaram proposta a Cetenco, a Noberto Odebrecht, a
Christiani Nielsen, a J. Mendes Jr. E a Consag.”259 Posteriormente, quando o governo assume
na figura da Vale do Rio Doce, quem efetivamente instalou a infraestrutura do projeto foi a
empreiteira Andrade Gutierrez.
Uma crise na economia do alumínio que durou um ano, de 1972 até 1973, repercutiu
no Projeto Trombetas com uma redução abrupta no investimento de sua instalação. A
manutenção do fornecimento das minas na Guiana Inglesa para a Alcan com a nacionalização
em 1971, o custo do projeto e sua rentabilidade a médio prazo, desaceleraram os interesses da
Alcan que, com sua demanda suprida, poderia postergar o empreendimento para momentos
mais propícios. O início da exploração de uma mina em Boké, na Guiné/Africa, também vai
criar repercussões no mercado e consequências para o Trombetas. Nesse ínterim, o projeto de
Oriximiná foi aprovado em 1972 pela SUDAM para a produção de dois milhões de toneladas

                                                                                                           
257
MACHADO, R. C.; LIMA, M. H. M. R. Implantação do Projeto Trombetas na Amazônia: de 1962 a 1972.
In. 62º Congresso Nacional da ABM. Vitória. 23 a 27 de julho de 2007
258
Id. Ibid. p. 7
259
I. Ibid. p. 8
  244  

por ano, exigindo uma pesada industrialização e vultuosos gastos. Para compensar o
investimento, o projeto iniciado para extrair um milhão de toneladas por ano (1Mtpa), passou
para 2Mtpa, posteriormente para 3Mtpa, em que seria necessário um consórcio para o
viabilizar o investimento previsto em US$ 131 milhões. Em novos estudos a Alcan buscou
outra saída que era reduzir a produção para 700 mtpa, evitando a paralização do projeto (neste
caso sem os subsídios da SUDAM). Entretanto, em 24 de maio de 1972 a Alcan, em decisão
unilateral, paralisa o Projeto em consequência desses vários fatores externos e internos que
abalaram a equação econômico-financeira e a viabilidade/interesse do mesmo. “A decisão
assumia os riscos, que depois se consumam, de perder as concessões do governo brasileiro
para a exploração do local”, além de gerar um desconforto no próprio governo brasileiro:
Dias Leite expressou a decepção do governo brasileiro com a
paralisação brusca do projeto. Entretanto, entendia não ser possível
forçar a execução de um projeto não-econômico. Aceitou as razões
apresentadas, mas não gostou da press release da Alcan, em que a
razão da paralisação teria sido a exigência de 51% de participação
acionária da CVRD no projeto, isto é, do Governo brasileiro. [sic]260

Ainda em 1972 se restabelecem as negociações entre o Governo e Alcan para a


retomada do projeto sob o comando da CVRD que, a partir de então, passaria a ser a maior
acionista do capital votante com 51%. Os outros 49% da Alcan também seriam parcialmente
cedidos para outras empresas, megacorporações mundiais do alumínio, para viabilizar o
projeto da primeira grande mineração de bauxita da Amazônia. Levando-se em conta que o
Rio Trombetas é afluente do Amazonas e possui um calado adequado para o transporte fluvial
de larga escala e, considerando a vultuosidade das reservas, não tardou chamar a atenção de
investidores, transformando a MRN num grande consórcio com as maiores mineradoras do
mundo. O capital brasileiro ficou em 46% para a CVRD e 10% para a CBA (do Grupo
Ermírio de Moraes), enquanto o capital estrangeiro seccionou-se: a Alcan ficou inicialmente
com 24%, a Norsk com 5%, a Reynolds (EUA) com 5%, Billiton (inglesa/australiana) com
10%. Vê-se uma confluência de fatores que se conectaram possibilitando a soma das forças
necessárias para o agenciamento da bauxita naquele momento. Esses percentuais acionários
vão se alterar sendo que atualmente a CVRD privatizada está com 40% e, conforme
mencionado, pretende vender sua cota; a BHP Billiton com 14,8%, a Rio Tinto Alcan com
12%, CBA com 10%, ALCOA Alumínio SA 8,58%, ALCOA World Alumina 5%, NORSK
HYDRO 5%, ALCOA AWA Brasil Participações 4,62%.

                                                                                                           
260
Id. Ibid. p. 10
  245  

A compreensão da estrutura empresarial do alumínio é complexa, pois as empresas,


além de possuir inúmeras outras subsidiárias subordinadas às matrizes, se fundem, a exemplo
da Rio Tinto (inglesa) com a Alcan (canadense), ou atuam em conjunto, a exemplo da própria
MRN, formando uma hierarquia de difícil penetração sobre “o que se conecta ao que e
como?” Uma vez que a cadeia produtiva do alumínio passa por três momentos – bauxita,
alumina e alumínio primário – para posteriormente ser destinado aos seus múltiplos usos, é
estratégico para as corporações estarem relacionadas com essas três etapas, verticalizando-se.
A indústria mundial do alumínio na época do surgimento da MRN tinha como
principais representantes seis megacorporações verticalmente integradas – Alcan Alumínio
Ltd., Aluminum Company of America (Alcoa), Reynolds Metals Company, Kaiser
Aluminum e Chemical Corp (norte-americana), Pechiney Ugine Kuhlmann Group (PUK -
francesa) e Swiss Aluminum Ltd. (Alusuisse) – todas dependentes da bauxita de países
diferentes de suas origens, que por sua vez, são todos dependentes do alumínio para a
produção industrial em geral – do foguete espacial à panela de pressão. Para compreender a
força política e geopolítica empregada por estas empresas e seus respectivos países, basta
pensar que a sociedade ocidental como conhecemos atualmente não seria possível sem o
alumínio e, consequentemente, sem a bauxita. Em 1974 é fundada a International Bauxite
Association como uma estratégia dos países exportadores para lidar com a força política das
megacorporações e “dividir melhor os lucros” da mineração. Essas estratégias podem ser
graduadas em quatro momentos: 1. Tentativa dos governos em aumentar os impostos que
recaiam sobre a produção da bauxita; 2. Negociar com as empresas para que fosse produzido
alumina e alumínio primário nos locais da extração, agregando um pouco mais de valor ao
minério; 3. Negociar a participação direta do Estado na propriedade e gestão de empresas
subsidiárias; e 4. Criar uma associação internacional dos países produtores para ter força
política capaz de fazer frente às megacorporações261. Esse cenário elucida um pouco o
contexto em que o Brasil estava recém ingressando, enquanto país exportador, com a
descoberta da bauxita na Amazônia262.

                                                                                                           
261
DEAL, Michael. United Sates Dependence on Caribbean Bauxite and the Formation of the Internacional
Bauxite Association. In. Maryland journal of International Law. Volumen 4/Issue 1. Article 16. 1978
262
Considerando que antes a produção brasileira era destinada exclusivamente para o mercado interno e que o
país não tinha suprida sua demanda de aluminio.    
  246  

Foto 13: Instalação de Porto Trombetas em 1974. MRN, 2013.

As obras foram retomadas em 1976 com o Projeto Trombetas já aprovado pela


SUDAM para uma produção de 3,35Mtpa, e começa, neste mesmo ano, a construção de Porto
Trombetas. Em 1979 iniciou-se o processo de lavra e a primeira embarcação de bauxita para o
Canadá, no navio Cape Race com 21.054 toneladas. A primeira atividade comercial datada de
1979, coincide com o ano em que foi criada a Reserva Biológica do Rio Trombetas em área
contígua à da mineração, cujos estudos foram desenvolvidos em 1976, conforme
aprofundaremos no próximo capítulo. Em 1979, junto com a tomada das “Barreiras do
Terciário”, começa também a contaminação do Lago Batata.
As Barreiras do Terciário são platôs fortemente erodidos milhões de anos atrás onde
se formaram as jazidas de bauxita. Se estendem pelo vasto território de Oriximiná e
municípios vizinhos como Terra Santa, Faro, entre outros na calha norte do Rio Amazonas.
São nesses platôs característicos, com altitude até 200 metros acima do nível do mar e cerca
de 70 a 120 metros acima do solo, bem no topo dos mesmos, que se extrai a bauxita de alta
qualidade da região (essencialmente gipsítica com menos de 1% de boehmita). A composição
da parte superior do platô, a área de interesse minerário, é separada em três zonas distintas: 1ª.
a argila belterra (capeamento amarelado e permeável da jazida – até 14 metros de
profundidade); 2ª. A laterita concrecionária (subdividida em bauxita nodular, laterita e bauxita
maciça – as camadas de bauxita variam de 0,5 a 2,5 metros a primeira sem importância
comercial, seguido da laterita com até 2 metros e a segunda e mais importante camada de
bauxita de 0 a 6 metros); 3ª. A zona saprolítica (argila variegada). A segunda zona é de onde
  247  

se estrai o minério e se encontra geralmente entre 5 e 17 metros, viabilizando tecnicamente a


exploração a céu aberto e de grande extensão. Os platôs que estão, foram ou serão lavrados
variam substancialmente de tamanho. O Platô do Saracá, por exemplo, possui mais de 2.900
ha, enquanto o Papagaio, mais de 200 ha ou o Almeidas com mais de 1000 ha. No tempo
desta pesquisa já gozavam de Licença de Operação para a abertura de minas, extração e
embarque da bauxita os Platôs: Saracá, com licenciamento tardio concluído em 1993 e
renovações posteriores (LO nº 21/95); o Papagaio em 1997 com renovação posterior (LO nº
08/97); o Periquito com as três etapas de licenciamento cumpridas (Prévia, Instalação e
Operação), obtendo a LO em abril de 2001 (LO nº134/01) e o Almeidas com as três etapas e
renovação da LO em 2007 (LO nº 255/02). No licenciamento do Platô Almeidas foi realizado
a primeira audiência pública da MRN, como determinação do IBAMA após reivindicação do
STRO por suprimir um gigantesco castanhal utilizado por diversas famílias do Lago Sapucuá.
O platô Bacaba obteve Licença de Instalação concedida em novembro de 2009 e outros seis
platôs estavam em processo de análise e adquiriram Licença Prévia em julho de 2009, sendo
eles: Arama, Greigh, Bela Cruz, Teófilo, Cipó e Monte Branco. Destes, o Platô Bela Cruz
obteve Licença de Instalação em junho de 2010 e de Operação no ano seguinte, os demais
estavam na eminência de obter a LI. O Platô Monte Branco que trataremos adiante, nos é de
grande importância por conta da denúncia dos quilombolas sobre dizimação de copaibeiras
(principal fonte de renda da comunidade do Jamari e do Curuça) que foram omitidas no
EIA/RIMA. Em 2012 o Platô já possuía Licença de Instalação e em 2013 obteve a de
Operação.
FIGURA 5.122 - Localização dos platôs e sua estrutura de uso e ocupação do solo

Reserva
Reserva Biológica
Biológica
do
do Rio
Rio Trombetas
Trombetas

Rio
Rio Tro
Tromb
mbeta
etass
Porto
Porto Trombetas
Trombetas

Lago
Lago
Batata
Batata

9830
9830

MUNICÍPIO
MUNICÍPIO DE
DE
ORIXIMINÁ
ORIXIMINÁ
Monte
Monte Branco
Branco

Floresta
Floresta Nacional
Nacional de
de
Saracá-Taquera
Saracá-Taquera
9820
9820
RRii
ooTT
rroo
m
m
bbee

Saracá
Saracá
ttaass

Cipó
Cipó

Aviso
Aviso Almeidas
Almeidas 9810
9810
Teófilo
Teófilo

ORIXIMINÁ
ORIXIMINÁ
Bela
Bela Cruz
Cruz

LAGO
LAGO DE
DE
9800
9800
SAPUCUÁ
SAPUCUÁ
MUNICÍPIO
MUNICÍPIO Greig
Greig Aramã
Aramã

DE
DEFARO
FARO

9790
9790

Mapa 07: Platôs de Bauxita. MRN, 2010.


MUNICÍPIO
MUNICÍPIO DE
DE
TERRA
TERRA SANTA
SANTA
RIO
R IO A
AMMA
AZO
ZON
NAASS
9780
9780
LEGENDA
LEGENDA
Platôs do projeto

Platôs em atividade MUNICÍPIO


MUNICÍPIO
DE
DE JURUTI
JURUTI
Limite Municipal

Floresta Nacional Saracá- Taquera 9770


9770
TERRA
TERRA
Reserva Biológica do Rio Trombetas SANTA
SANTA
50

90
60

70

30
50

90

10
60

70

20

30
80

00

10

20
80

00
  248  

Tanto o processo de extração da bauxita, quanto as operações de lavra e de


beneficiamento são apresentadas de maneira muito similar nos Estudos de Impacto Ambiental
dos referidos licenciamentos. Basicamente as mesmas técnicas, considerando algumas
adaptações, são utilizadas para a lavra desde o começo das atividades, com exceção para o
tratamento dos rejeitos e dos processos de recuperação ambiental que sofreram adequações,
acarretando em redimensionamentos nas minas. Sucintamente a bauxita sai de lá para o resto
do mundo pelas seguintes operações de lavra: 1ª. Desmatamento – derrubada da mata por
meio de tratores de esteira com imensas correntes, onde a madeira de valor comercial é
removida e aproveitada por madeireiras, as demais são picotadas e aproveitadas, junto ao solo
vegetal, nas áreas de reflorestamento; 2ª. Decapeamento – é a remoção da primeira camada do
solo vegetal, da argila amarela, da bauxita nodular e da laterita ferruginosa. Separado o solo
vegetal, a argila amarela e a bauxita nodular são removidas conjuntamente, em faixas
regulares de trinta metros e depositadas nas áreas adjacentes, restando a laterita que tem que
ser escarificada por trator antes da remoção pela dragline; 3ª. Escavação – promove-se o
afrouxamento da camada de bauxita compacta com explosivos, partindo para a escavação e
carregamento por meio de retroescavadeiras hidráulicas; 4ª. Carregamento – as
retroescavadeiras descarregam a bauxita em caminhões fora-de-estrada que a carregam até as
instalações de britagem primária; 5ª. Após reduzida até o máximo de 7,5 cm, são levadas por
meio de correias transportadoras até a planta de beneficiamento, beneficiada e depois
transportada para a ferrovia, onde é direcionada até o porto em composições de até 46 vagões
com capacidade de 85 toneladas cada um, carregando navios de até 60.000 toneladas total; e
6ª. Recuperação da área minerada – após a mineração as áreas são aplanadas com tratores,
recebendo uma camada de solo vegetal incorporado à galhada do desmatamento, formando
aproximadamente 15 cm de solo com nutrientes que é escarificado para aeração e plantio. As
bordas do platô, em torno de 10 metros, são preservadas como meio de conter os processos
erosivos mantendo a estabilidade geológica e prevenindo a contaminação dos igarapés. Todo
um sistema de drenagem com decantação, caixa de sedimentação, tubulações e dissipadores
de energia em degraus para águas pluviais são construídos, dentro da realidade de cada mina,
com as mesmas técnicas. São também utilizados sistemas para separação dos resíduos de
máquinas e combustíveis utilizados nos processos de lavra, beneficiamento, transporte,
manutenção de equipamentos etc. Há monitoramento periódico para avaliar a carga poluidora
sobre os solos, águas e atmosfera nas áreas de influência das atividades. O manejo da
herpetofauna, avifauna, entomofauna, ictiofauna e mastofauna, proporciona algum
conhecimento sobre as espécies que habitam os platôs e poupa do extermínio aqueles
DAS ÁREAS MINERADAS
A MRN possui larga experiência em reabilitação de áreas mineradas, tendo desenvolvido ao
  longo dos anos uma metodologia própria, com o apoio de universidades e instituições
249   de
pesquisa.
O objetivo do reflorestamento é garantir após a lavra uma reabilitação da área e estabelecer
um sistema auto-suficiente a médio e longo prazo. Nesse item serão detalhadas as
indivíduos que referentes
atividades conseguem aoser transportados
Programa do habitate aRevegetação
de Recuperação ser dizimadorealizados
para outras
pelaáreas.
MRN.
Também artefatos
A Figura arqueológicos
7.01 esquematizapresentes em sítiosetapas
as principais de alguns
doplatôs são recolhidos
Programa por uma e
de Recuperação
Revegetação das Áreas Mineradas pela MRN.
equipe de arqueólogos do Museu Emilio Goeldi, que possui um convênio com a MRN,
Figura
resgatam-se os artefatos, mas os –sítios
7.01 Método de Lavra com
arqueológicos Reabilitação Simultânea
se vão.

Ilustração
Fonte: MRN, 2010 03: Mineração da Bauxita. MRN/RIMA do Platô Bacaba, 2007.

7.1Junto com a obrigação


– SUPRESSÃO legal de internalização das externalidades (que possibilita
DA VEGETAÇÃO
alguma visibilidade
A supressão da avegetação
outros seres vivos e sobre
é realizada não vivos),
a jazidaestá a linguagem
e ocorre legitimadora
à medida da de
que as frentes
lavra avançam. Antes da supressão é realizado o Inventário Florestal das áreas a serem
tecnociência, empenhada pelos que tem acesso a ela, que a direcionam e no seu crivo ganham
lavradas para que seja conhecido o volume de madeira existente na área, a composição de
espéciesda
a roupagem e asustentabilidade.
cobertura florestal, possibilitando
Na prática o aproveitamento
é um processo da madeira
de legitimação, e a orientação
propiciado por
das atividades de reflorestamento e subsidiando os pedidos de autorização de supressão da
instituições de renome
vegetação perante eo autoridades no assunto,
órgão ambiental não neutro, substancialmente interessado e
competente.
que resulta numa cada
A supressão vez mais acelerada
da vegetação marcha
é realizada avante sobre
pela derrubada os platôs.
direta Tomando
das árvores compor base de
tratores
esteira. Antes e durante a supressão da vegetação é realizado o resgate de fauna.
os documentos – EIA/RIMA – pode se dizer que o controle é rigoroso, extremamente técnico
Após a supressão da vegetação é realizado o resgate de epífitas, que posteriormente são
e dispendioso, masem
classificadas nãoAráceas,
necessariamente fidedigno
Bromélias àquela realidade,
e Orquídeas como estudaremos
e multiplicadas. em são
Essas plantas
introduzidas
alguns casos. nas áreas em reabilitação.
De acordo com o planejamento anual de lavra, para o primeiro semestre de 2010 a
Por suaprevista
supressão vez, ofoibeneficiamento da bauxitao que
de 291,1 ha, entretanto, consiste basicamente
foi suprimido em foram
de fato redução
145 ha
(Tabela 7.01).
granulométrica A diferença
através entre
de britagem, previsto
lavagem e água
com suprimido (146,1 ha)
e classificação emdeve-se a problemas
quatro produtos:
operacionais. .
conforme granulometria (grosso e fino) e por ser ou não submetido ao processo de secagem
(seco e úmido). Dentro desses procedimentos, a lavagem nos é mais importante, pois nesta
etapa os resíduos decorrentes da argila caulinítica aderida ao mineral são gerados. Esse
rejeito, constituído de partículas sólidas inertes e lama, com composição química de 47% de
silicatos, 21% de óxido de ferro e 21% de óxido de alumínio, foi descartado no Lago Batata
no período de 1979 até 1989, contaminando-o. A escolha do lago é justificada por um
contexto de falta de alternativas técnicas, dada a topografia aplanada da Amazônia que
inviabilizaria os usuais tanques de rejeito. A contaminação de ecossistemas aquáticos por este
tipo de rejeito supostamente263 era desconhecido pela ciência e, apesar de se tratar de matéria
inerte, resultou em um desequilíbrio de grandes proporções neste lago que pereceu ao longo
de toda a região assoreada – 30% de sua área ou cerca de 630 ha.
                                                                                                           
263
Essa informação consta em BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De Assis, ROLAND, F. Lago Batata: impacto e
recuperação de um ecosistema amazônico. Rio de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000. Mas em consulta ao projeto
RADAMBRASIL de 1975 já se afirmava conhecimento sobre os impactos da bauxita conforme o prefacio deste
tópico.
  250  

Foto 14: Contaminação do Lago Batata. MRN, 2013.

A obrigação da recuperação do Lago Batata, por 10 anos depositário do rejeito da


bauxita, retrata também a gradativa importância que a questão ambiental foi atingindo e as
necessidades de adaptação da empresa. Ao mesmo tempo explícita as contradições inerentes
ao tratamento governamental, sobretudo quando contraposto à criação das duas unidades de
conservação. Como aponta Acserald264 em artigo sobre as políticas ambientais no Brasil: de
um lado elege-se áreas destinadas à conservação, do outro, áreas que são entregues aos
apetites econômicos, em ambos os casos, as pessoas que vivem nesses locais foram
desconsideradas amplamente. Nos dez anos que seguiram a contaminação, o Estado, além de
conivente, era pouco estruturado para lidar com a questão, atuando mais efetivamente na
repressão à pesca da tartaruga pelos “invasores” da Reserva Biológica. A contaminação se
deu no momento em que se vivenciava uma mudança paradigmática no combate à poluição
no início de 1980, com a Política Nacional de Meio Ambiente – Lei 6938 de 1981 e
legislações subsequentes265. Ainda assim, a mudança no processo de contaminação do lago
não é apresentada como relacionada a um aumento do controle estatal, mas como uma

                                                                                                           
264
ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio
da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
265
  Na ordem cronológica desenhada, na medida em que as pressões políticas foram se transformando em
tratados, que, por sua vez, se transformaram em legislações domésticas, foi gradativamente se erigindo a
estrutura administrativa responsável por essa exigência pública e a consideração do “ambiente” enquanto
variável obrigatória das políticas de desenvolvimento. No caso em tela o que efetivamente se assiste é uma brutal
discrepância entre os impactos gerados pela atividade minerária, comparados aos impactos gerados pelas
populações tradicionais e os investimentos públicos e ações efetivas direcionadas no controle dos tradicionais e a
condescendência aberta para com as atividades de mineração.  
  251  

“tomada de consciência da própria empresa”, um compromisso. As ações da empresa,


conforme divulgado em seu sítio, se iniciam em 1981, com estudos sobre os impactos gerados
em instituições no Brasil e no exterior. De fato esses estudos ganham maior envergadura a
partir de 1986, resultando em ações efetivas implementadas em 1989.
A falta de um conhecimento mais técnico sobre os impactos do rejeito de bauxita no
ecossistema amazônico do lago Batata – caracterizado pelos momentos de águas baixas
(lêntico) e de águas altas (lótico – em que se inundam as planícies e se interligam
ecossistemas) – exigiu longos estudos para o desenvolvimento das técnicas de recuperação.
Sobre o Lago Batata, atualmente, existem diversos trabalhos científicos: cerca de 80 trabalhos
de iniciação científica, 31 dissertações de mestrado, 20 teses de doutorado, 40 artigos em
periódicos nacionais e 47 em internacionais266. Contudo, a obra de maior destaque que nos
debruçamos aqui, foi um livro intitulado de “Lago Batata: impacto e recuperação de um
ecossistema amazônico”, coordenado pelos cientistas Reinaldo L. Bozelli, Francisco A.
Esteves e Fábio Roland, publicado no ano 2000267. Suscintamente os impactos ambientais do
Batata se deram: a) nas áreas de igapó, com perecimento da vegetação e perda do habitat de
diversos seres; b) com o assoreamento de águas permanentemente inundadas, tornando-as
similares às áreas de igapó (mas sem vegetação); e c) com a turbidez das águas adjacentes,
com influência direta em toda a cadeia trófica do lago, principalmente comunidades
planctônicas e bentônicas. O resíduo formou uma camada estéril, que impediu as trocas
gasosas do ecossistema e causou turbidez pelas partículas em suspensão, bloqueando a luz
solar, atingindo camadas depositadas de até seis metros de profundidade em determinados
pontos. As técnicas de recuperação tiveram como foco ações que não causassem mais
impactos, podendo ser sintetizadas, conforme o tipo de área, em: I. para as áreas
permanentemente aquáticas – o monitoramento da coluna d’água e da distribuição do rejeito;
II. para as áreas inundáveis (igapó) – o monitoramento da colonização natural, o plantio e
monitoramento de espécies arbóreas e herbáceas de igapó, a formação de ilhas de vegetação,
o enriquecimento com banco de sementes e o enriquecimento por semeadura. Por sua vez, os
resultados até a publicação do livro no ano 2000 – 10 anos de pesquisa com intervenções em

                                                                                                           
266
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Relatório Anual de Sustentabilidade 2012 – GRI. Porto Trombetas. 2012.
Disponível em:
http://www.mrn.com.br/MateriaisParaDownload/RELATÓRIO%20GRI%202012%20MRN_final.pdf. Acesso em:
27 de julho de 2013.
267
Tive a oportunidade de conhecer o Dr. Francisco A. Esteves no primeiro campo da pesquisa, que coincidiu
com sua estada em Porto Trombetas, num momento ainda exploratório da pesquisa. Por sua vez, o Dr. Fábio
Roland foi meu professor de ecologia na Universidade Federal de Juiz de Fora no ano de 2001, quando cursava
disciplinas do curso de biologia, momento em que esta pesquisa sequer era imaginada.
  252  

40% da área impactada – podem ser sintetizados em alguns pontos que se correlacionam: 1.
diminuição da turbidez com a redução da ressuspensão decorrente do ressecamento e
compactação do rejeito nos períodos de seca; 2. aumento da concentração de matéria orgânica
ocasionando modificações na estrutura do sedimento depositado; 3. Aumento de grupos e
densidade de macroinvertebrados no sedimento e aumento da biomassa de peixes capturados;
4. Nos igapós as áreas de colonização natural passaram a apresentar considerável
biodiversidade vegetal, as áreas colonizadas com arroz-bravo (Oryza glumaepatula)
apresentam melhora nas condições nutricionais do solo inundável e as áreas colonizadas com
espécies arbóreas tiveram reduzida a taxa de mortalidade, com crescimento lento, mas
contínuo. A expectativa para que o lago atinja novamente seu equilíbrio ambiental, dentro das
variáveis consideradas pela análise, seria por volta do ano de 2017, quase três décadas após o
encerramento de sua contaminação268.
Em novembro de 1989 o rejeito da bauxita para de ser lançado no Lago Batata e passa
a ser depositado em reservatórios na própria área de lavra. A operação custou a MRN,
segundo a própria, mais de US$ 89 milhões e teve que transferir toda a instalação de
beneficiamento, antes em Porto Trombetas próximo ao Lago Batata, para a região das minas.
Como consequência a geometria das áreas de lavra tiveram que ser modificadas para
comportar os reservatórios, utilizados na sequência do processo de mineração, com o aumento
de áreas desmatadas e não florestadas para receber o rejeito. Como essas novas áreas de
rejeito padeciam com maior dificuldade na regeneração florestal, foram firmadas parcerias
com a EMBRAPA e com a UFV para o desenvolvimento de tecnologias próprias para a
revegetação dos tanques.

                                                                                                           
268
BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De Assis, ROLAND, F. Lago Batata: impacto e recuperação de um
ecosistema amazônico. Rio de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000.
  253  

3 A CONSERVAÇÃO E A ORDEM

Compartilho
Breve relato sobre o meu trabalho...
O que nos últimos dias me absorveu o corpo e a alma.... e que daqui pra frente o fará,
initerruptamente, até o seu desfecho.
Acho que a beleza deste local não tem como ser descrita, nem meu vocabulário abrange, nem
as fotografias atingem... é só vivendo mesmo para sentir. Então não vou me atrever.
Aqui na Base do Tabuleiro, na Rebio do Rio Trombetas, consigo acesso à internet via satélite
quando estão ligados os geradores, das 18 às 23 horas. Entretanto, nem todos os dias
funciona (até então funcionou somente dois dias – tirando os dias que dormi nas
comunidades que não sei) e funciona mal... é muito, muito difícil, passar um e-mail. Só não
estamos incomunicáveis porque o rádio do ICMBio voltou a funcionar.
Meu corpo dá sinais claros de cansaço e é literalmente na pele que este se mostra. São cortes
infeccionados, espinhos nas mãos e nos pés, brotoejas, espinhas, erupções cutâneas e outras
ordens de reações alérgicas ocasionadas pelo calor, sol e insetos... insignificantes
agressões... são os “ossos do ofício”.
Mas, o que de fato volta mais embrutecido, não é o corpo, mas o “espírito”... é tudo junto!
São muitos sentimentos se antagonizando dentro de mim. Ora o êxtase de atingir resultados
tão promissores em uma pesquisa sublime para mim. Ora a tristeza profunda de viver uma
realidade tão complexa, sórdida e cruel... assim como a própria vida se faz às vezes.
Meu trabalho trata, em síntese, das políticas governamentais de desenvolvimento e
conservação ambiental experimentadas aqui desde meados do século passado. I. e. a forma
neo-colonizadora de avançar o ideário de um desenvolvimentismo homogeneizador no norte
do país, falsamente compreendido como despovoado. Esta marcha foi empenhada pelo
regime militar e por multinacionais que rapinam os recursos do mundo todo... e ainda hoje
endossada pelos nossos governos corruptos.
Dentro desse contexto, a explosão dos conflitos, escancarados no grito abafado dos
fragilizados deste processo, e a distribuição de poder que se configurou em toda região, são
meus objetos de análise. Precisamente delineados “nas linhas imaginárias” que demarcam
duas Unidades de Conservação de importância nacional: a Reserva Biológica do Rio
Trombetas – REBIO-RT e a Floresta Nacional Saracá-Taquera – FLONA-ST.
Neste complexo, além dos recursos minerais, madeireiros e de fauna e flora com exuberância
incomensurável, há a peculiaridade étnica de um povo verdadeiramente sui generis: os
remanescentes de quilombo daqui, outra grande riqueza. Devo muito a eles pelo apoio que
estão me proporcionando. Pessoas das matas e dos rios, indissociáveis deste ambiente, como
os demais seres que aqui vivem e os demais povos da floresta, como os índios e ribeirinhos,
também presentes aqui.
A história dos quilombolas é muito interessante, mas não me cabe falar neste momento...
apenas que parece estar tudo se modificando muito rápido... logo eles vão ser outra coisa...
Para entender a dimensão do problema se faz necessário remissão à história das unidades de
conservação... sempre atreladas, direta ou indiretamente, ao modelo de desenvolvimento
experimentado.
Em 1979, após mais ou menos oito anos de implantação do Projeto Trombetas, se iniciam as
operações comerciais da Mineração Rio do Norte – MRN, com a construção do porto
(carregador de navios) e em seguida a primeira carga de bauxita para o Canadá. Neste
mesmo ano de 1979 foi criada a Rebio-RT, indicada pelo projeto RADAM em 1975, com
estudos desenvolvidos no mesmo ano, financiados pelos programas governamentais,
POLAMAZONIA e SUDAM (os mesmos programas que subsidiavam a mineração). Aqui o
argumento central era a proteção da Tartaruga-da-Amazônia (Podocnemis expansa – adoro
  254  

os nomes científicos), pois esse era o local em que se identificava a maior presença dessa
espécie e já existiam ali, mesmo antes da Rebio, políticas de conservação desses quelônios
desde 1960.
Contudo, meus estudos estão revelando que, de fato, a proteção das tartarugas e mesmo dos
recursos naturais ali é algo secundário... não para quem exerce a conservação, como os
cientistas, ou para as pessoas dos órgãos ambientais, eles dão existência a isso, mas dentro
de uma macro-política onde conservação, aparentemente, é só um tipo de pretexto no
processo. A Rebio nunca funcionou, existem coisas “muito maiores” em questão. Ostentando
o quão paradoxal é a nossa sociedade, uma das atividades de maior impacto ambiental,
dentre mais degradadoras (pois a retirada da bauxita é a céu aberto, arrancando toda mata
em extensões cujos olhos não alcançam o outro lado) é desenvolvida em conjunto com a
conservação mais severa e segregacionista da reserva biológica. Seria coincidência? Ou uma
forma de compensar tamanha destruição, criando-se uma área de proteção ambiental? Um
pouco além...
Estratégia já há muito utilizada pelos Estados para impor sua ordem se traduz em atingir os
indesejados (no caso a população tradicional simplória que já vivia aqui) indo no cerne de
sua existência: controlando seus modos de vida. Essa é uma forma de controle muito eficaz.
Uma Rebio não permite retirar uma folha, sequer viver ou transitar no local, quanto mais
caçar, pescar, extrair produtos da floresta. E, exatamente isso, é o que consubstancia a
relação de vida desses tradicionais com seu ambiente. São extrativistas e caçadores. Seus
modos de vida foram criminalizados com a Rebio, passaram a ser criminosos simplesmente
por existirem como são. Com isso o “Poder” concentrou nas mãos seus dois bens mais
preciosos: a liberdade, pois detêm-se controle sobre o corpo do infrator, que pode ser preso,
desalojado, ter suas posses confiscadas; e sua cultura, pois seus saberes, sua tradição, seus
valores, sua alma, agora estão proibidos ou submetidos à nova ordem.
Em uma sequência de oportunismos, a ordem ditada pelo governo, que por sua vez se alia
aos interesses das corporações (o poder sobre o poder sobre o poder) e não das pessoas.
Não seria de se admirar que proliferassem conflitos de toda ordem... daí a história que se
seguiu foi de violência, humilhações, homicídios e extorsões recaindo sobre aqueles que em
outros tempos eram escravos (ironia do destino? Carma?). E violência também proferidas
por eles. A Rebio, e sua ordem ambiental conservacionista, representa o Estado no local por
meio dos seus agentes, e o disciplinamento do território, por meio da nova normatização.
Apesar de estar de fato atrelada à preservação dos quelônios da Amazônia, parece que nunca
foi feita para funcionar efetivamente enquanto Rebio, mas, com ela, cumpria-se uma
geopolítica, colocava-se todos ali nas mãos do Estado, impedia-se a formação de bolsões de
miséria dos flagelados em busca de emprego e, se acaso alguma comunidade quisesse criar
algum problema, fazia-se sentir a força da lei... Valer-se da questão ambiental, que é
mundialmente aceita e legítima, como forma de assegurar uma ordem territorial e, a
consequente estabilidade e segurança necessárias ao bom andamento dos negócios
multimilionários da mineração, é uma boa estratégia, temos que tirar o chapéu...
Mas de fato se assim fosse... o bem e o mal ... seria bem mais simples... ocorre que os estudos
justiceiros sobre a realidade aqui não fazem justiça... fazem política... operam a mesma
lógica invertida... essa história precisa ser recontada!
E a conservação da tartaruga, não existe? Existe! Com gente que dá o seu suor e sangue
para isso, gente muito boa! Mas vejamos: desde antes da criação da Rebio estes quelônios
vem reduzindo em número gradativamente (espécie ameaçada de extinção). Com a reserva a
situação não mudou, o declínio continuou, mas agora com dados mais precisos. Uma queda
brusca (absurda) se dá por volta de 1998 até 2004. É um mistério... todos os dados
pesquisados mantiveram-se enquanto relativamente constantes (fiscalização, caça,
contrabando, pesquisas etc.) com algumas exceções, como as inovações tecnológicas dos
  255  

tradicionais e o número de navios transcontinentais que carregam a bauxita, que de um por


mês passou ao absurdo de quase dois por dia. Pergunta-se: por quê somente dez anos depois
da redução drástica da espécie o governo vai exigir uma pesquisa que averigue o impacto
dos navios? Desde sua criação a mineração colidia com a Rebio, mas operou associada a
ela, muito complexo! Já haviam evidências de impactos... Será que essa pesquisa vai sair?
Tenho minhas dúvidas...
Por outro lado, os quilombolas que tem como principal fonte de renda a farinha de
mandioca, a Castanha do Pará, a copaíba e outros produtos da floresta, geralmente
sazonais, também pescam a tartaruga e, muitas vezes, a comercializam. Poucas tartarugas
podem valer meses de trabalho, é muito tentador para eles e eles realmente o fazem. Daí
parte significativa dos conflitos. Não existem políticas capazes de coibir essa prática se não
atingir o mercado consumidor, que em alguns lugares, um animal chega a valer mais de
R$1.000,00 (dados atuais). Ou seja, com exceção das áreas mais próximas do contrabando
em que se encontra o animal por valor menor, este compõe o cardápio excêntrico
principalmente dos abastados (políticos, empresários etc.). Aqui em datas comemorativas
como natal, ano novo, aniversários e casamentos, não tem peru ou leitão... é tartaruga! Os
quilombolas também parecem estar relacionados ao desaparecimento desta espécie.
Mas dentro da Rebio e suas políticas de conservação, o que mais choca é que, praticamente
desde sua criação, pode ter se iniciado um esquema de contrabando de tartarugas e peixes
pelos próprios agentes do governo. A forma sorrateira e sórdida como supostamente é feita,
segundo os relatos, reafirma a hipótese sobre a operacionalidade dessa reserva
(mundialmente importante na preservação da tartaruga). Segundo cientistas que trabalham
no local, quilombolas, ribeirinhos, agentes governamentais (praticamente todos os grupos
que conversei) dizem que o um antigo funcionário governamental, muito forte nesta região,
montou um esquema digno de cinema para efetuar um negócio supostamente muito lucrativo
e politicamente muito influente, extraviando os recursos da reserva, principalmente peixes e
tartarugas. Um esquema de “patronagem” se recriou com os tradicionais, regido por um
representante do governo. Que ironia...pasme! Anualmente, desde a época do IBDF,
passando-se ao IBAMA e hoje ICMBio, supostamente milhares de filhotes são desviados da
reserva para engordarem nos criadouros comercias de carne de tartaruga, legais e ilegais
(segundo relatos chegam a custar R$10,00 cada filhote, já outros dizem que são trocados por
favores políticos e não vendidos). Muitos relatos apontam que um número significativo de
matrizes também foram desviadas. Quem são os donos de criadouros? Pessoas influentes
como governadores, prefeitos, vereadores, empresários, juízes, promotores, defensores
públicos... Mas, não apenas tartaruga seria contrabandeada, mensalmente muitos peixes
seriam também retirados da reserva por agentes governamentais para, segundo relatos,
servirem a mesa das autoridades supramencionadas. Aqui se fala muita coisa... Parece que
todos esses agentes governamentais, principalmente os das comunidades, saberiam do
esquema, ao menos ouviram falar, e muitos são contrários (relatam em entrevista), mas a
máfia seria tão bem articulada por relações políticas sólidas entre poderosos que o seu
principal ator está blindado e ninguém consegue retirá-lo. O esquema é complexo, não dá
pra relatar aqui... mas é bizarro! Para você ver as histórias que eu escuto e muito do que
estou vivendo.
Mas tenho que fazer uma ressalva: os atuais funcionários do ICMBio que conheci são
pessoas que acreditam no que fazem, são pessoas sérias e responsáveis que estão lutando
para mudar a realidade aqui... lutando efetivamente para proteger esse pedaço de mundo
tão, tão lindo. Devo muito a eles e tenho imensa gratidão por compartilharem tantas
informações comigo, sem falar no apoio logístico... Infelizmente estou assistindo a partida de
vários, indo para outras unidades... pessoas boas... não consigo entender como a banda toca
aqui, mas sei que toca diferente...
  256  

Como se não bastasse, a história da outra unidade de conservação ainda é mais impactante.
Aqui sim há uma intensão explícita de se usar a questão ambiental para favorecer interesses
e não por oportunismo como o caso da Rebio. A Floresta Nacional Saracá-Taquera foi
criada em 1989, por decreto presidencial, depois de uma reunião “a portas fechadas” com o
Presidente da República da época, José Sarney, o presidente do IBAMA e o presidente da
MRN. Não existiram estudos prévios e nem consulta pública para sua criação. No ano
anterior, 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil que
assegurou em suas disposições transitórias (ADCT-CF88, art. 68) o direito aos
remanescentes de quilombo às suas terras (terras em que vivem ou utilizam). Como os
quilombolas daqui habitavam as áreas adjacentes e pleiteadas pela mineração, utilizando
locais de jazidas, para assegurar que os mesmos não tivessem direito às suas terras (e
atrapalhassem a mineração) foi criada a Flona-ST. Uma forma de “expropriação
ecológica”. Mais uma vez, valeram-se da questão ambiental para legitimar a prática da
mineração, compreendendo esta enquanto “sustentável” sobrepondo-se à prática dos
quilombolas, com mais de duzentos anos vivendo junto a floresta, percebida como
“ameaçadora” ao equilíbrio ambiental. O direito difuso ao meio ambiente, enquanto direito
fundamental da pessoa humana, se sobrepõe ao direito coletivo dos quilombolas na
hierarquia legal. Boa sacada do governo e da mineração, não é?
Agora estou estudando uma área de conflito dentro da Flona, a qual uma comunidade extrai
copaíba, tendo esta atividade como principal fonte de renda da mesma. Esta área foi
destinada à mineração por meio de processo de licenciamento ambiental fraudulento
(omitiram a existência das copaíbas), no Platô Monte Branco. Atualmente, pela legislação
em vigor, mineração em Floresta Nacional seria inconcebível, já que a mesma se destina à
exploração sustentável dos recursos florestais, mas a lei flexibiliza para os grupos
economicamente fortes... é sempre assim e é muito difícil enquanto professor de Direito
Ambiental, dizer para os meus alunos que os rigores desse direito só recaem sobre aqueles
que não tem defesa... é muito triste.
O mais difícil de tudo é que os tradicionais, de uma forma geral, são extremamente desejosos
dessas mudanças... eles me dizem – para você ter uma ideia – que a comunidade do lado da
mineração – que aos meus olhos está desconfigurada, favelizada, eles nem plantam mais,
varrem o chão da mineradora – foi a mais beneficiada, “ganhou” com relação as outras por
estar mais perto, e que ali tem “tudo”. Como assim? A realidade aqui é muito diferente do
que se conta nos livros e artigos. Mas pensa o seguinte: converso com uma quilombola de
uma comunidade mais afastada e ela me conta que recentemente havia perdido o filho, se
acidentou pelo que entendi, o menino morreu numa canoa para o hospital em Porto
Trombetas, o motorzinho da canoa levaria muitas horas, neste caso não tinha jeito... A vida
quer viver e quer viver bem, tanto quanto puder...
Muitos outros pontos são abordados na minha pesquisa, não dá para te contar tudo neste
email com texto apressado. Aliás, tenho vivido isso de forma muito obsessiva e não tenho
como fugir disso.
Ontem estive em outra comunidade quilombola, atualizando alguns dados... me deparei com
um pequeno macaco-prego (Cebus apella) amarrado em uma coleira bem curta que lhe
permitia andar menos de um metro, somente. Estava embaixo de uma palafita (barraco
suspenso que eles moram), sobre uma pequena rede de pano. Era de estimação de uma
família... sobrou depois de comerem a mãe dele... me aproximei para acaricia-lo e ele me
olhou tão profundamente, mexeu a cabeça de lado, emitiu um pequeno assobio...parecia
sorrir pra mim... e me olhava, me olhava, como se me implorasse para retirá-lo dali... como
se pedisse liberdade... eu quase desabei... cara, tive que secar as lágrimas para que ninguém
percebesse. Cheguei a comentar que se ele ficasse preso daquele jeito morreria de tristeza...
me responderam que ele faz muita bagunça...
  257  

Me explica a vida?
Essa hierarquia das explorações onde um subjuga o outro que subjuga o outro que subjuga o
outro...
Todos os dias eu tenho que escolher o que vou negar dentro mim, do que acredito e valoro...
mas, mesmo que de canto de olho, eu acabo vendo... e mesmo que negue, eu acabo sentindo,
recalcando, colocando lá no fundo... estou me embrutecendo.
Acho que a fracassada missão de explicar a vida é minha... malfadada vida...
Acho que as palavras direcionadas aos vaidosos e pomposos da academia não vão mudar
nada... não posso parar por aqui...
Me sinto pequeno... sou pequeno e frágil...
Desculpe... se te cansei, não foi a intenção... apenas quis compartilhar...
Sinto saudades

A jornada da pesquisa agora vai ao encontro dos liames de outros atores que
constroem aquela realidade sócio-natural nesta temporalidade, além da bauxita e da
mineração já associados à trajetória percorrida. As tartarugas, as castanheiras, as copaibeiras,
os cientistas, os tradicionais e, principalmente nos próximos tópicos, as políticas e os agentes
governamentais são outros recortes que nos são importantes para o que queremos mostrar,
desconsiderando, por incapacidade, inúmeros outros atores que os nossos olhos não
alcançaram. Tomamos o Estado – sem nenhuma pretensão de defini-lo conceitualmente –
como um conjunto de coisas se movimentando, em afecções, um fenômeno sócio-
organizacional que se manifesta sobre determinadas condições, não tendo relação com uma
razão desencarnada do modelo hegeliano, não se tratando de uma existência soberana em si,
muito menos uma abstração que representa a “todos”. Mas uma composição permeável a
díspares interesses. O Estado comporta-se mantendo sua ordem e, para tanto, tem que
modifica-la constantemente, daí decorre a dubiedade que tanto nos referimos. Nos pautamos
no que podemos mostrar, ligar-uma-coisa-na-outra, mas o que mostramos pode estar
equivocado e os nossos traços podem ser refeitos – é possível retrilhar o nosso caminho e
mostrar o que não foi visto ou nos dar novos óculos para vermos melhor onde a nossa visão
falha. O Estado é/são aparelho/s, são instituições, Leis, compartimentos, micro/macro/poder,
direções, centrais de cálculo, polícias, ideais, armas e inúmeros outros objetos conectados em
sua rede que muito o ultrapassa e/ou que não chega em toda sua extensão territorial
imaginária; e, também, são pessoas, algumas subordinadas como cães adestrados, outras
sabotadores compenetrados, burocratas tão funcionais quanto peças de máquina,
trabalhadores assíduos, outros bandidos, alguns desonestos, corruptos aos montes como
praticamente todos somos/seremos/já fomos em alguma instância, algum momento ou algum
lugar, há corporativistas, os de esquerda, os de direita, os de lado nenhum, os que não
trabalham, os que simplesmente são alheios a tudo, centrados nos seus interesses individuais e
  258  

os que lutam pelas causas que acreditam, matam ou morrem por elas sem mesmo saber o que
são elas. Se tomarmos o Estado enquanto modelos: de Direito, Democrático, Social,
Ambiental e o focarmos o “devir” respectivo a cada um desses modelos, vamos falar do que
não é, do que não veio e, por fim, que não possuímos a menor condição de prever o futuro
para dizer como será. Compactuamos com a ideia de que a democracia é uma construção
contínua e diária, não um modelo ou um lugar para se chegar, mas um caminho ético-político
para se percorrer, não como o único, mas como o mais condizente com as aspirações
contemporâneas. Esse posicionamento, que não se encerra aqui, marca a influência de
Deleuze, mas sem se limitar a ela, em que:
O Estado é soberania. No entanto a soberania só reina sobre aquilo
que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente. Não apenas
não há Estado universal, mas o fora dos Estados não se deixa reduzir à
“política externa”, isto é, há um conjunto de relações entre Estados. O
fora aparece simultaneamente em duas direções: grandes máquinas
mundiais, ramificadas sobre todo o ecúmeno num momento dado, e
que gozam de ampla autonomia com relação aos Estados (por
exemplo, organizações comerciais do tipo “grandes companhias”, ou
então complexos industriais, ou mesmo formações religiosas como o
cristianismo, o islamismo, certos movimentos de profetismo ou
messianismo etc.); mas também mecanismos locais de bandos,
margens, minorias, que continuam a afirmar o direito de sociedades
segmentárias contra os órgãos de poder do Estado. O mundo moderno
nos oferece hoje imagens particularmente desenvolvidas dessas duas
direções, a das máquinas mundiais ecumênicas, mas também a de um
neoprimitivismo, uma nova sociedade tribal [...] O que é evidente é
que os bandos, não menos que as organizações mundiais, implicam
uma forma irredutível ao Estado, e que essa forma de exterioridade se
apresenta necessariamente como uma máquina de guerra, polimorfa e
difusa. É um nomos, muito diferente da “lei”. A forma-Estado, como
forma de interioridade, tem uma tendência a reproduzir-se, idêntica a
si através de suas variações, facilmente reconhecível nos limites de
seus polos, buscando sempre o reconhecimento público (o Estado não
se oculta). Mas a forma de exterioridade da máquina de guerra faz
com que esta só exista nas suas próprias metamorfoses; ela existe
tanto numa inovação industrial como numa invenção tecnológica, num
circuito comercial, numa criação religiosa, em todos esses fluxos e
correntes que não deixam apropriar-se pelo Estado senão
secundariamente. Não é em termos de independência, mas de
coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação, que
é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as maquinas de
guerra de metamorfose e os aparelhos identitários do Estado, os
bandos e os reinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo
campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas descreve sua
  259  

exterioridade naquilo que escapa aos Estados ou se erige contra os


Estados.269

Para continuarmos o percurso se faz importante, primeiramente, compreendermos


como emergem e se entrelaçam as políticas de conservação e, posteriormente, como o Estado
passou a lidar com a conservação, especificamente na área de análise.

3.1 A segregação do espaço e os estoques para a Ciência

Numa outra perspectiva, uma espécie de território “natural” (nada


“natural”) às avessas é aquele que se define a partir das chamadas
reservas naturais ou ecológicas. Obrigado a reinventar a natureza
através de concepções como ecologia, biosfera e meio ambiente, o
homem se viu na contingencia de produzir concretamente uma
separação que nunca teria existido entre espaços “humanos” e
“naturais”, como numa leitura da Geografia que separa paisagens
naturais e paisagens culturais e humanizadas.
(Rogério Haesbaert)

O que se convencionou e se compreende majoritariamente enquanto conservação da


biodiversidade, os seus ideais e as suas práticas enquanto movimento político-social
organizado e autoconsciente, remontam mais de cem anos de história. Inspirados na beleza e
magnitude da vida silvestre e dos monumentos naturais, esse movimento foi se consolidando
como um “culto à vida silvestre” e na defesa de uma “natureza intocada”270. Respaldado em
sua base científica pela biologia da conservação e sustentado por dados empíricos de uma
perigosa e crescente fratura na biodiversidade do planeta, essa vertente ambientalista se
caracterizava pela reivindicação de mudanças de base ética na relação do humano com a vida,
por adotar uma perspectiva de conservação normativa e pela segregação de espaços
territoriais para a conservação271. Com força e irradiação inegável, orquestrada por sólidas
organizações internacionais como Wordwide Found of Nature (WWF), The Nature
Conservancy (TNC), Internatinal Union for the Conservation of Nature (IUCN), essa
corrente ambientalista representou conquistas importantes: com financiamento de projetos de
preservação e recuperação de espécies pelo mundo inteiro; na defesa de muitas espécies a
partir de tratados internacionais como a Convenção da Biodiversidade assinada no Rio de
                                                                                                           
269
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo. Editora 34.
2012. p 25 grifei
270
DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB – Universidade de
São Paulo, 1994.
271
ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valorização. Tradução
de Maurício Waldman. São Paulo: Contexto, 2007.
  260  

Janeiro em 1992; e na proteção jurídica de significativos espaços territoriais, difundindo esse


modelo de conservação como estratégia mais premente na proteção da biodiversidade. Esses
espaços e sua tutela jurídica seguem por uma análise breve e convencional, enquanto uma
“passagem necessária” na sequência de nossa caminhada.
As discussões em torno da biodiversidade em nível global e sua inserção na pauta
política dos países seguem recorrentes na contemporaneidade. 2010 foi declarado o ano da
biodiversidade pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), esse
mesmo ano, segundo o Relatório Planeta Vivo da WWF272, apresenta o pior cenário para
biodiversidade do planeta, principalmente nos países tropicais, em uma sequência de
decréscimo gradativo, ano após ano, desde que se iniciaram as medições. A extinção em
massa do Holoceno galga agora os seus mais alto patamares. Dados apontam que a
humanidade excede em 50% a biocapacidade do planeta e que este cenário crítico se
concretizou nas últimas décadas por consequência do “modelo de desenvolvimento
hegemônico”. Esses dados objetivos e cientificamente respaldados servem como arsenal
argumentativo para manter acesas as reivindicações de base conservacionista.
Por sua vez, essas construções argumentativas em torno da questão vêm flexionando
no sentido de inserir percepções de duas outras grandes vertentes do ambientalismo: a que
prioriza aspectos econômicos e a que prioriza aspectos sociais. Sem perder sua matriz teórica
da biologia da conservação, a linguagem vem inserindo aspectos economicistas que apontam
os graves prejuízos decorrentes da perda da biodiversidade a partir dos “serviços” que
prestam para a humanidade (os serviços ambientais de provisão, suporte, culturais e de
regulação). Nesse sentido aproxima-se da perspectiva da “ecoeficiência” e do
“desenvolvimento sustentável”, talvez, estrategicamente, para maior inserção da questão da
biodiversidade dentro da linguagem globalmente mais considerada que é a econômico-
utilitária. No que tange aos aspectos sociais é apresentada a denúncia de uma extrema
iniquidade na fruição dos recursos naturais no que diz respeito aos países ricos e pobres bem
como na diferença de classes. A exacerbada pressão exercida sobre os ecossistemas, ainda
que nos países pobres, atende, via de regra, aos interesses dos países ricos ou das pessoas
mais abastadas dentro desses países pobres. A sociedade de consumo, o modelo de
desenvolvimento e o crescimento econômico é o alvo principal da crítica. Não obstante o
aprimoramento nos discursos e a associação com as outras correntes (nesta visão
fragmentária), essa perspectiva que antes buscava a atribuição de um valor intrínseco às
                                                                                                           
272
BARLOW, Dan et al. Relatório Planeta Vivo 2010. Gland/Suíça: World Wide Fund for Nature – WWF,
Zoological Society of London – ZSL e Global Footprint Network, 2010.
  261  

outras formas de vida e aos ecossistemas, com a linguagem economicista prevalecendo, tende
a ver a natureza enquanto “recurso”, a humanidade enquanto algo aparte, e mantém as
questões sobre justiça e conflitos ambientais ainda muito incipientes e difusas, pela própria
complexidade das mesmas.
A preocupação em conservar o “ambiente” e os “recursos naturais” no Estado
brasileiro, antes de ser um fenômeno recente, remonta a tempos longínquos de quando este
país ainda era uma colônia portuguesa, perpassando o império, a república, até os dias de
hoje. Com sua natureza exuberante e riquíssima o Brasil serviu como fonte inesgotável de
produtos para alimentar o insaciável mercado europeu, sedento de nossas madeiras, da pele
de nossos animais, das plumas de nossas aves, das nossas plantas ornamentais, de nossos
minérios, metais, enfim, de toda sorte de ser vivo e de matéria prima que se conseguia fazer
conectar interesses ou atribuir uma utilidade econômica.
O deslumbramento que o desconhecido mundo novo trazia – inspiração para os
europeus praticantes das ciências naturais se aventurarem em longas viagens pelas florestas,
campos e sertões, em busca de desvendá-los – carregava junto a si o interesse de se
descobrir de que forma tamanha riqueza poderia ser utilizada, explorada, extraviada para a
Metrópole ou para os países civilizados. A Ciência, neste quesito, é insuperável, conforme
discussão da segunda parte da tese. A já bastante conhecida história da utilização da terra
brasileira, percebida quase sempre como um território de passagem, da exaustão causada
pelas monoculturas de cana, algodão, café, cacau; da caçada em busca das peles e plumas,
da retirada incessante de madeiras e minerais; refletia, há muito, uma preocupação com o
esgotamento desses estoques. Já em 1605, diante da drástica redução das “madeiras reais”,
são baixadas pela Metrópole as primeiras normas para controle do corte de certos
espécimes, que passaram a depender de autorização. No período imperial normatizações
caminhavam no mesmo sentido, criando as “madeiras de lei” e criminalizando o corte das
mesmas sem autorização273. Entretanto, tanto as “cartas régias” quanto as “leis do império”
andavam descompassadas com a realidade das monoculturas, da exploração desordenada
dos recursos e do contrabando da madeira.274 A marcha adiante que deixou para trás

                                                                                                           
273
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
274
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 5º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  262  

lúgubres monumentos ao desperdício275 no Sul, Sudeste, Nordeste do país, agora avança


com um novo sopro de destruição276 para o Brasil central e para o Norte.
A discussão sobre conservação ambiental no Brasil, no início pouco consciente de si e
exclusivamente vinculada a aspectos econômicos, conforme Urban277, remontam ao menos
quatro importantes momentos: 1. As “Cartas Régias” do Brasil colônia declaravam as
florestas “à borda da costa ou dos rios que desembocam imediatamente no mar” propriedade
da coroa. Para assegurar o cumprimento dessas determinações o documento previa
penalidades de “reversão de sesmarias e proibição de futuras concessões”, além de outras
como açoites e o degredo. 2. O Brasil Imperial, conforme mencionado, criminalizava o corte
clandestino das até hoje designadas “madeiras de lei”, no momento histórico das grandes
monoculturas de algodão, cana e café. 3. No Brasil República foi editado o Código Florestal
de 1934, que inova subordinando o direito de propriedade ao interesse coletivo com a
obrigatoriedade de se instituir, dentro de todas as propriedades, a reserva de vegetação
permanente, a “quarta parte”. Neste momento (antes mesmo) o movimento conservacionista
já detinha consciência de si, sendo que, em 1934, foi realizada no Rio de Janeiro a “1ª
Conferência Brasileira para Proteção da Natureza” que visou a defesa da biodiversidade e
dos monumentos naturais – “a protecção e melhoramento das fontes de vida do Brasil”. Nesta
mesma década foram criados os três primeiros Parques Nacionais (Itatiaia em 1937, Serra dos
Órgãos e Iguaçu em 1939). 4. Segunda metade do século passado, no Regime Militar, décadas
de 1970 e 1980, em que surgem políticas explícitas para o meio ambiente e se consolida o
Direito Ambiental Brasileiro com a Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6938 de 1981,
com a Lei da Ação Civil Pública, Lei 7347/1985 e com a Constituição Federal de 1988. O
meio ambiente passa a ser alvo específico de tutela jurídica, constitui um direito difuso e
atinge o ápice do ordenamento pátrio.
A proteção dos ecossistemas brasileiros, sobretudo florestas, vai ganhando contornos
mais nítidos a partir de 1930 com os trabalhos que originaram o Código Florestal,
transformado em lei em 1934. Institucionalmente ainda muito fraca, a proteção do patrimônio
natural vai ganhando novos diplomas legais como o Código de Caça e Pesca, de Águas e de
Mineração. Os primeiros Parques Nacionais são criados no final desta década, mas o assunto
sobre parques já havia sido tratado antes, em 1876, em um artigo escrito pelo engenheiro

                                                                                                           
275
DEAN, Warren. A ferro e fogo: A história e devastação da Mata Atlântica Brasileira. Trad. Cid Knipel
Moreira. Companhia das Letras: São Paulo. 2004.
276
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-
1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
277
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
  263  

André Rebouças intitulado de “Parques Nacionais”, sob inspiração do modelo inaugurado nos
Estados Unidos com o Parque do Yellow-Stone278.
Em meados da década de sessenta, o Código Florestal é reeditado com a Lei 4771
de 1965, sofrendo algumas modificações posteriores, criando limites significativos à
propriedade com a obrigatoriedade de se conservar espaços territoriais como as Reservas
Legais Florestais e as Áreas de Preservação Permanente. Atualmente o Código Florestal
ganha nova edição com a Lei 12.651 de 2012, mantendo as modalidades de espaços
protegidos. A não observância das determinações legais que recaem sobre a propriedade
passaram a representar uso nocivo da mesma, já com a primeira edição do Código
Florestal279.
Enquanto no Brasil a questão emergia e tomava corpo, em âmbito internacional, já
no início do século XX, movimentos de defesa do patrimônio natural já estavam
consolidados. Uma precursora de destaque no movimento foi “Comissão Internacional de
Proteção da Natureza” já em 1913. Em 1928 tornou-se a “União Internacional de Ciências
Biológicas”, e, em 1948, “União Internacional de Proteção da Natureza”. Mais tarde passou a
ser denominada “União Internacional para Conservação da Natureza e Recursos Naturais”,
atualmente, “União Mundial para a Natureza - IUCN”, ganha sede no Brasil apenas em 2010
e representa bem as mudanças no pensamento conservacionista. No Brasil esse movimento
ganha contornos significativos mais tardiamente, tendo como referência a obra de Wanderbilt
Duarte de Barros, “Parques Nacionais do Brasil” de 1946. A articulação entre cientistas e
personalidades brasileiras com o movimento conservacionista internacional estimula a
organização do movimento nacional dando origem, em 1958, a Fundação Brasileira de
Conservação da Natureza, que exerceu forte influência na política de preservação no país280.
A política de segregar espaços territoriais para protegê-los ganha gradativamente
mais força, até se consagrar como uma das principais estratégias, pelos próprios resultados
que gerou – não obstante os muitos conflitos irresolúveis que trouxe a reboque,
principalmente por desconsiderar o próprio humano enquanto parte do ambiente. Mesmo que
não implementada, apenas criada, uma unidade de conservação assegura significativa
proteção aos recursos da área. Por sua vez, tomada sobre qualquer perspectiva, essa política
não enfrenta o cerne da “questão ambiental”, cujo principal problema se assenta no “modelo

                                                                                                           
278
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
279
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2004
280
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
  264  

predatório” de apropriação do ambiente. A ideia implícita parece ser: precisamos proteger o


espaço que vivemos de nós mesmos e precisamos nos proteger de nós mesmos.
As unidades de conservação operam, de um lado, assegurando um acirrado controle
sobre as atividades que serão desenvolvidas em seu interior, e, de outro lado, como
salvaguarda de áreas sensíveis às atividades socioeconômicas ou criando um “estoque” para o
“futuro” de recursos naturais, permanentemente aberto para a pesquisa. Para ilustrar como a
conservação já estava aliada à geopolítica mais ampla da segunda metade do século passado
podemos citar o projeto RADAM que, ao realizar o sensoriamento remoto dos recursos
naturais do Brasil nas décadas de 1970 e 1980, vai propor a criação de diversas áreas
protegidas nos variados biomas. Para tanto, justifica as proposições pelas características das
áreas escolhidas e por visar “a proteção ambiental e o desenvolvimento de conhecimentos
científicos e tecnológicos que permitam um maior proveito no uso do meio ambiente”281.
Essa estratégia de destinar áreas para preservação e para o “uso racional” dos
recursos – conservação (no que se convencionou distinguir de preservação), vai se constituir
no presente por duas principais classes de espaços territoriais legalmente protegidos: A
primeira classe corresponde aos espaços previstos no atual Código Florestal, Lei 12.651 de
2012, sendo as Áreas de Preservação Permanente (APP) – espaços geográficos previamente
previstos na lei ou declarados pela autoridade competente, que possuem como finalidade,
entre outras, garantir estabilidade geológica de encostas, recarga hídrica dos lençóis freáticos,
proteção de cursos d’água e conservação da biodiversidade; e as Reservas Legais Florestais
(RLF) – áreas que recaem sobre toda propriedade rural, exigindo-se que um percentual da
mesma seja destinado à manutenção da flora original não podendo gozar de outra destinação.
A segunda classe vai tratar das unidades de conservação – UCs, que no ano 2000 com o
advento da Lei 9985, passa a reunir diversas categorias de espaços protegidos (já existentes
ou novos) em um único diploma legal: o Sistema Nacional de Unidades de Conservação -
SNUC. Outros espaços protegidos como as Terras Indígenas, Reservas da Biosfera, os Jardins
Botânicos, Sítios do Patrimônio da Humanidade e, mais recentemente, os Territórios
Quilombolas, não possuem a mesma visibilidade na discussão sobre conservação e proteção
ambiental.
Conforme dito, já existiam Parques Nacionais desde a década de trinta e, logo após,
uma diversidade de novas unidades de conservação haviam sido criadas como: Áreas de
Proteção Ambiental (desde 1982), Áreas de Relevante Interesse Ecológico (desde 1985),
                                                                                                           
281
MINISTÉRIO DAS MINAS E ENERGIA/RADAMBRASIL. Folha SA.22 – Belém. Rio de Janeiro, 1974. p.
302
  265  

Florestas Nacionais (desde 1946), Estações Ecológicas (desde 1975), Reservas Biológicas
(desde 1974), Reservas Extrativistas (desde 1990), entre outras que passaram a ser
incorporadas no SNUC. Sendo que alguns desses territórios com escopo similar, ficaram de
fora como as Área de Preservação Permanente, as Reservas Florestais e Reservas Ecológicas.
Diante da diversidade de espaços territoriais que gozavam de proteção especial, havia
uma preocupação já na década de 1970 em sistematizar a criação e gestão dos mesmos. O
IBDF publicara em 1979 o “Primeiro Plano do Sistema de Unidades de Conservação do
Brasil”, consolidando as discussões empenhadas nos anos anteriores. Em 1988 o mesmo
órgão contratara a Fundação Pró-Natureza – FUNATURA para elaborar o anteprojeto de lei
que se tornou o SNUC, amplamente discutido com a comunidade conservacionista. O projeto
foi entregue ao recém criado IBAMA em 1989, passando em seguida pelo CONAMA e em
1992 encaminhado ao Congresso Nacional282.
A Lei 9985 de 18 de julho de 2000 foi alvo de muitas discussões polêmicas e
negociações antes de sua promulgação. Seu principal objetivo foi sistematizar e reunir em um
único diploma todas as categorias de unidades de conservação, disciplinando-as de acordo
com suas atribuições específicas e estabelecendo regras para a criação, modificação, gestão,
implementação e manejo.
Conforme o consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Maurício Mercadante283,
existiam dois polos ideológicos que lutavam para impor seus marcos regulatórios: de um lado
representado pelos conservacionistas e do outro pelos socioambientalistas (ambos compostos
por funcionários públicos, ONGs e políticos). De um lado, os primeiros entendiam que as
unidades de conservação deveriam restringir ao máximo a presença de seres humanos,
reprimir toda sorte de relação que não estivesse sob o estrito controle dos gestores e que não
tivessem fins voltados à própria conservação e a pesquisa científica; criar verdadeiras “ilhas”
de isolamento do território para sua proteção. Do outro lado, empenhava-se uma visão de
inter-relação homem-natureza que rechaçava a ideia de apartheid e buscava o “convívio
harmônico sociedade-natureza” inspirado nas populações tradicionais e silvícolas – neste
sentido, admitindo-se a presença humana e práticas compreendidas como sustentáveis. Apesar
de existirem, antes da elaboração do SNUC, as duas modalidades de unidades de conservação
(as mais restritivas e as que possibilitavam utilização racional dos recursos), o embate
contendia, palmo a palmo, como se daria a gestão dessas unidades, as relações de relevância,
                                                                                                           
282
MERCADANTE, Maurício. Democratizando a Criação e Gestão de Unidades de Conservação da Natureza: a
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. In. Revista de Direitos Difusos. Florestas e Unidades de Conservação. Vol. 5.
Fev. 2001. São Paulo: ADCOAS, 2001.
283
Id. Ibid.
  266  

precedência entre as mesmas, a possibilidade de permanência das populações tradicionais,


criminalizações por danos etc.
Nessa direção, no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, de um lado
percebia-se a questão desses espaços sob o matiz das primeiras vertentes do ambientalismo
conservacionista, advogando a premência de espaços territoriais que sofressem minimamente
intervenção humana, ou mesmo nenhuma intervenção salvo as da “ciência da conservação”,
como as “verdadeiras unidades de conservação”. Espaços estes que efetivamente garantiriam
o necessário cuidado, promovendo uma real preservação e, por isso, merecendo maior
atenção. Por outro lado, com uma percepção menos segregacionista no uso do território,
advogava-se a necessidade de se considerar que grande parte das áreas destinadas à
conservação eram áreas anteriormente habitadas e que essas pessoas deveriam ser
consideradas enquanto parte daquele ambiente, questionando a história de injustiça na criação
desses espaços. Essa vertente primou por unidades de conservação que garantissem a
permanência das populações tradicionais e o uso sustentável dos recursos. O SNUC se
consolida contemplando diversas categorias de unidades de conservação subdivididas em dois
grupos: as Unidades de Proteção Integral ou uso indireto e as Unidades de Uso Sustentável.
As categorias de proteção integral contemplam: a Estação Ecológica, a Reserva
Biológica, o Parque Nacional, o Monumento Natural e o Refúgio da Vida Silvestre. São
unidades que, conforme o próprio nome, não podem ter seus recursos utilizados senão de
forma indireta e para pesquisas, não admitem permanência de populações tradicionais,
devendo as mesmas serem removidas e indenizadas. Algumas aceitam visitas recreativas
(parques e monumentos naturais), mas, em geral, as únicas atividades permitidas são as
pesquisas científicas ou relacionadas à educação ambiental.
Do outro lado, as categorias de uso sustentável contemplam: a Área de Proteção
Ambiental, a Área de Relevante Interesse Ecológico, a Floresta Nacional, a Reserva
Extrativista, a Reserva de Fauna, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável e a Reserva
Particular do Patrimônio Natural. São unidades que permitem a utilização de parte de seus
recursos de forma sustentável, em geral, admitem presença de populações tradicionais e uma
gama variada de atividades, dependendo da categoria de unidade, abrigam até cidades inteiras
no seu interior (como algumas APAs).
TIPO/CATEGORIA ESFERA TOTAL
Produção Integral Federal Estadual Municipal
Nº Área (km2) Nº   Área (km2)   Nº   Área (km2)   Nº   Área (km2)  
Estação Ecológica 31 68.034 63 47.603 1 9 95 115.646
Monumento Natural 3 443 27 881 9 68 39 1.392
Parque 69 252.259 190 94.366 79 195 338 346.821
Nacional/Estadual/Municipal
  267  

Refúgio de Vida Silvestre 7 2.018 22 1.696 1 22 30 3.736


Reserva Biológica 30 39.047 23 13.507 4 60 57 52.613
Total Proteção Integral 140 361.802 325 158.053 94 353 559 520.208
 
Uso Sustentável Nº Área (km2) Nº Área (km2) Nº Área (km2) Nº Área (km2)
Floreta 65 164.045 38 136.025 0 0 103 300.069
Nacional/Estadual/Municipal
Reserva extrativista 59 123.333 28 20.205 0 0 87 143.539
Reserva de Desenvolvimento 1 644 29 115.879 3 146 33 116.670
Sustentável
Reserva de Fauna 0 0 0 0 0 0 0 0
Área de Proteção Ambiental 32 99.877 184 334.812 55 7.284 271 441.973
Área de Relevante Interesse 16 448 25 445 6 27 47 920
Ecológico
RPPN 574 4.728 108 674 1 0 683 5.402
Total Uso Sustentável 747 393.075 412 608.040 65 7.457 1224 1.008.573
 
Total Geral 887 754.877 737 766.094 159 7.811 1783 1.528.781
Área Considerando Sobreposição 887 749.280 737 754.108 159 7.735 1783 1.486.511
Mapeada
Tabela 04: Unidades de Conservação Consolidadas. Fonte: CNUC/MMA – www.mma.gov.br/cadastro_uc
Atualizada em: 30/08/2013.

Para a pesquisa, dentre as cinco categorias de proteção integral e sete de uso


sustentável, a Reserva Biológica284 e a Floresta Nacional285 são o foco principal: a Reserva
Biológica do Rio Trombetas – REBIO-RT e a Floresta Nacional Saracá-Taquera – FLONA-
ST, localizadas na calha norte do estado do Pará, duas unidades de grandes dimensões e

                                                                                                           
284
Conforme artigo 10 Lei 9985/2000: Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral
da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações
ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo
necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos
naturais.
§ 1o A Reserva Biológica é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus
limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o É proibida a visitação pública, exceto aquela com objetivo educacional, de acordo com regulamento
específico.
§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e
está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
285
Conforme artigo 17 da Lei 9985/2000: Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de
espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos
florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas.
§ 1o A Floresta Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus
limites devem ser desapropriadas de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua
criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.
§ 3o A visitação pública é permitida, condicionada às normas estabelecidas para o manejo da unidade pelo órgão
responsável por sua administração.
§ 4o A pesquisa é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela
administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e àquelas previstas em regulamento.
§ 5o A Floresta Nacional disporá de um Conselho Consultivo, presidido pelo órgão responsável por sua
administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e, quando
for o caso, das populações tradicionais residentes.
§ 6o A unidade desta categoria, quando criada pelo Estado ou Município, será denominada, respectivamente,
Floresta Estadual e Floresta Municipal. (grifei)

 
  268  

importância. Correspondem ao mesmo espaço, a dois lados de um mesmo rio, mas seus
estatutos jurídicos lhes conferem atribuições e restrições muito distintas, recriando realidades
distintas. Ambas refletem as peculiaridades e complexidades de um vasto e riquíssimo
território: a Amazônia brasileira do Vale do Rio Trombetas.

Mapa 08: Floresta Nacional Saracá-Taquera e Reserva Biológica do Rio Trombetas. MMA/ICMBIO, 2011.

A criação de uma unidade de conservação, de qualquer categoria, pode ser dar


através de ato público, geralmente um decreto, entretanto, deve ser precedida de estudos
técnicos e de amplo processo de consulta e negociação pública, assegurando a democratização
do processo e um pacto viável em seu cumprimento. A exceção da Reserva Biológica e
Estação Ecológica (unidades de conservação substancialmente muito semelhantes) que
dispensa a consulta pública, o que é um equívoco, pois não pactuar com a comunidade local o
que lhes afetará substancialmente a vida, além de ser repulsivo do ponto de vista ético, é
ineficiente do ponto de vista prático para a conservação.
Por sua vez, a redução, desafetação ou modificação (reclassificação) de uma
unidade de conservação, só pode se dar mediante lei específica, o que lhes assegura
importante estabilidade de um lado, mas, de outro, dificuldades de corrigir erros quando se
escolhe uma unidade de conservação inadequada para dada área, ou ocorra necessidade de
reclassificação ou redução de seus limites. Esse é um ponto importante na realidade da
  269  

pesquisa. Essa peculiaridade, necessidade de lei específica para alterações, além de ser uma
garantia necessária para a estabilidade do território protegido, torna as unidades de
conservação espaços distintos daqueles previstos no Código Florestal – Reserva Legal e
Área de Preservação Permanente – que não possuem esse requisito para alterações.
Outro ponto importante de se destacar é a obrigatoriedade de Plano de Manejo e
conselhos gestores para todas as categorias de unidades de conservação. O primeiro
estabelece as regras especificas e contextualizadas a cada realidade para o manejo da
unidade, dizer o que há dentro de cada realidade, o que pode e o que não pode, tomando a
lei como referência geral para estabelecer o disciplinamento e gerenciamento da unidade.
Ou seja, cria as regras internas conforme cada área e sua realidade. Mais uma vez ressalta-se
a necessidade de participação da população do entorno (ou conforme o caso, do interior da
unidade) na elaboração desse instrumento como condição de sua efetividade – apesar de não
haver obrigatoriedade em parte dos casos. Quanto aos conselhos, instrumentos democráticos
de gestão, infelizmente em sua maior parte, sobretudo das unidades de conservação de
proteção integral e algumas de uso sustentável (como é o caso da Florestas Nacionais),
possuem caráter meramente consultivo, ou seja, o seu resultado atinge somente o status de
opinião e não de deliberação coletiva.
A lei prevê também a necessidade de indenização para a população residente no
interior de unidades de conservação que não permitem as mesmas, possibilitando a sua
permanência até o seu devido reassentamento, assegurando a participação ampla na
elaboração das regras de gestão. Ponto importante, pois atenua as injustiças que
tradicionalmente foram cometidas com a criação arbitrária de unidades de conservação.
Conforme o artigo 42:
Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de
conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão
indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e
devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições
acordados entre as partes.
§ 1º O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o
reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.
§ 2º Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este
artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a
compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com
os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes
de subsistência e dos locais de moradia destas populações,
assegurando-se a sua participação na elaboração das referidas normas
e ações.
  270  

Na história de criação de parte significativa das unidades de conservação o matiz


tecnicista sempre direcionou o debate e se somou à herança autoritária que recaia sobre os
órgãos ambientais, da tradição da governança pública e principalmente do regime militar,
completada com a visão estreita que separa o humano do resto dos seres. Isso fez com que as
mesmas fossem criadas de uma forma muito arbitrária e insensível aos interesses das pessoas
locais, refletindo grandes injustiças e um modelo equivocado de conservação, hoje admitido.
E, de fato, é assim que, tradicionalmente, as UCs são criadas no
Brasil. Os técnicos do órgão competente elaboram os estudos básicos,
os limites da área são definidos no mapa, o Presidente decreta a
criação da UC e começa a novela em busca de recursos para cercar a
área, desapropriar, indenizar e por a população residente para fora.
Para a comunidade local, alijada do processo, a criação da UC é uma
imposição, um ato de força, uma medida autoritária, “urdida nos
gabinetes refrigerados dos tecnocratas de Brasília”. Na perspectiva da
gente do lugar, a criação da UC pode ser benéfica para o Brasil e a
humanidade, mas é ela quem paga a conta. Não existe forma mais
eficaz de fazer a população local uma adversária da conservação286.

Apesar de estar longe do ideal, o SNUC representou indubitavelmente um avanço


democrático na criação, implementação e manejo de unidades de conservação, inclusive
possibilitando que a gestão das mesmas seja integralmente realizada por Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público, retirando-as do controle exclusivo do Estado. A
subdivisão que a lei cria – uso sustentável e proteção integral – herança das concepções
conservacionistas, hierarquiza as unidades de conservação, conforme mencionado,
atribuindo-se maior importância às primeiras e compreendendo as segundas como unidades
complementares do sistema. Tanto o é que, para empreendimentos de significativa
degradação – os que se submetem a elaboração de Estudo de Impacto Ambiental e relatório
- EIA/RIMA para o seu licenciamento ambiental – a lei obriga apoiar unidade de
conservação de proteção integral como medida compensatória não mencionando as de uso
sustentável.
Em linhas gerais, as unidades de conservação possuem finalidades distintas dentro de
cada categoria e grupo. Cada qual guarda suas peculiaridades, tendo por lei definido quais
atividades podem ser desenvolvidas em seu interior, qual o domínio e a posse do território
(púbico, privado ou ambos), se é permitido ou não permanência de populações tradicionais,
visita pública, uso dos recursos, o modelo de conselho que vai geri-las etc. Todas têm em

                                                                                                           
286
MERCADANTE, Maurício. Democratizando a Criação e Gestão de Unidades de Conservação da Natureza: a
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. In. Revista de Direitos Difusos. Florestas e Unidades de Conservação. Vol. 5.
Fev. 2001. São Paulo: ADCOAS, 2001.  
  271  

comum a necessidade de estudos técnicos de viabilidade antes da implementação, elaboração


de Planos de Manejo, possibilidade da gestão ser realizada por Organização da Sociedade
Civil de Interesse Público - OSCIP, serem criadas mediante ato público e só poderem ser
desafetadas ou reduzidas mediante lei específica. Com exceção da Reserva Biológica e da
Estação Ecológica, todas as unidades de conservação requerem “consulta pública” antes de
sua criação em que devem participar todos os possíveis afetados pela mesma. As categorias
de proteção integral gozam da possibilidade de receber (para criação ou implantação) recursos
de empreendimentos que causem significativa degradação (submetidos ao Estudo de Impacto
Ambiental), calculado a partir de um percentual sobre o valor total do empreendimento (não
pode ser inferior a 0,5% do seu valor total). Recursos externos também podem ser percebidos
por qualquer unidade de conservação.
Apesar do avanço legislativo que o SNUC representa, a realidade da grande
maioria das unidades de conservação brasileiras é: a) de desamparo, em que muitas existem
apenas no papel, não possuem gestão adequada e não conseguem cumprir satisfatoriamente
o que se propõem; b) de injustiça para com a população residente, havendo problemas
fundiários em grande parte das mesmas e arbitrariedades latentes por parte dos órgãos
gestores; e c) de problemas conceituais, pois, apesar de serem de substancial importância
para assegurar um banco genético e de recursos para o futuro, ou empreender uma
sustentabilidade na utilização da base material da sociedade, a segregação do espaço para
fins de conservação não enfrenta os pontos centrais das questões ambientais que se dão nos
modelos de apropriação do ambiente e na celeridade em que essa apropriação predatória
avança; ao contrário, toma como inelutável tanto os “modelos” quanto o “avanço”, servindo
como medida necessária e desesperada de preservação e autopreservação dentro de uma
“tomada de consciência”, mas meramente paliativa e insuficientemente compensatória, além
de transformar os elementos ambientais em meros recursos, estoques para a Ciência, ou
mercadoria sem, na prática, atribuir nenhum valor intrínseco à “natureza”.
Assim, a reclusão a que algumas áreas do planeta foram relegadas em
função de sua condição de áreas “protegidas”, provoca a reprodução
de territórios que são uma espécie da clausura ao contrário, já que
muitas vezes têm praticamente vedadas a intervenção e a mobilidade
humana em seu interior. É claro que, aí, as questões de ordem cultural,
política e econômica envolvidas são tão importantes quanto as
questões ditas ecológicas. De qualquer forma, trata-se de mais um
exemplo, muito rico, de um território interpretado numa perspectiva
materialista e que, embora entrecruze fortemente áreas com a
  272  

Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política, também é bastante


focalizado a partir de perspectivas como as da Ecologia.287

Em todos os casos, tanto as unidades de conservação de proteção integral288 quanto


as de uso sustentável, são espaços regrados, intimamente acoplados à composição social. São
territórios segregados do uso ordinário, mas substancialmente utilizados por grupos
“especiais”: a) os cientistas, que transitam em todos os espaços e passam a compor a
sociedade com os conhecimentos que auferem das espécies que “protegem” ou das práticas
que dizem sustentáveis; b) os que subordinam suas práticas ao crivo do que for considerado
sustentável pela própria tecno-ciência nas áreas de uso sustentável ou tem força política para
convencer que sua prática é “sustentável” – contrastando práticas de baixa tecnologia e de
tecnologia de ponta; c) e os tradicionais (antes populações rurais pobres) que passam a estar
restritos à reprodução de seus modos de vida isolados, conservando-os (o que é praticamente
impossível, pois as trocas tecnológicas são inevitáveis); ou se submetem também à
“educação” dada pela ciência da sustentabilidade, para que desenvolvam seus modos de vida
sem dizimar seus territórios, o que muitas vezes se dá quando modificam suas práticas,
aumentam sua população ou ampliam suas relações comerciais. Ou seja, são controlados para
que desenvolvam suas redes de interações, inserindo os elementos que necessitam, mas

                                                                                                           
287
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 55
288
A capacidade de adaptação de muitas espécies frente às modificações que a espécie humana imprime sobre
os ecossistemas, não é suficiente para que as mesmas continuem existindo – as temporalidades são muito
discrepantes. Segregar o espaço, como no caso das unidades de conservação de proteção integral, tem como
finalidade declarada assegurar que parcela da biodiversidade não sucumba diante das relações ecossistêmicas de
uma espécie em expansão – o Homo sapiens. Isto se dá principalmente quando ampliamos a capacidade de nos
apropriar – somar-a-nós – inúmeros elementos/seres do ambiente que nos circunda ou onde atingimos (o planeta
inteiro), suplantando inúmeros outros que não “interessaram” na composição social. Sob a perspectiva da
história geológica da Terra não faz muito sentido preservar as espécies, as mesmas se transformam com o tempo
e por suas próprias interações, criar “ilhas” não freia os processos evolutivos. Mas sob a perspectiva da
autopreservação e da extensão dos valores éticos, faz sentido, na média em que se percebe as múltiplas relações
de interdependência e de correspondência. Se olharmos por outro ângulo, antes de ser uma área e sua respectiva
biodiversidade separada das “sociedades e suas interferências”, é um acoplamento rigoroso da mesma ao corpus
social e à sua regência nesta temporalidade. Mesmo aquelas áreas destinadas à contemplação. Antes de ser um
local proibido para o humano é o local destinado aos humanos que mais operam a composição da sociedade, aos
cientistas. É proibida para alguns humanos. A Ciência penetra e circula por todos esses espaços, por ironia, a
mesma que acelerou o processo de destruição dos habitats. Antes de ser o local onde as espécies vão “viver na
natureza” é o local regrado em que elas serão agenciadas pela ciência, contabilizadas, classificadas,
vivisseccionadas, dissecadas, vão compor coleções, exsicatas, ter revelada sua ecologia, etologia, hábitos
alimentares, seu genoma sequenciado, ou vão ser estoques para um agenciamento futuro. Isso não quer dizer que
as espécies não estão sendo preservadas e nem que isso não é importante. Elas estão sendo preservadas, mas
dentro de uma temporalidade humana e ampliando a composição da sócio-natureza.
Por sua vez, os espaços destinado ao uso sustentável, mais democráticos sem dúvida, são espaços em que se
busca uma interação mais ampla, mas igualmente regrada, em que a sustentabilidade das formas de uso também
é dada pela tecno-ciência. O reconhecimento dos grupos tradicionais, cujo conceito jurídico vai ser dado pelo
próprio SNUC, é o reconhecimento de que determinadas formas de apropriação dos elementos possibilitam
maior durabilidade, mas não uma sustentabilidade a priori.  
  273  

possibilitando que os outros muitos elementos que compõem suas áreas coexistam ou
perdurem para o futuro. Em ambas as situações não estamos falando de uma “natureza” lá
fora, mas espaços ligados à uma determinada rede sócio-técnica.

3.2 A edificação da governança ambiental no Rio Trombetas

Foto 15: Colocação da bandeira indicando o controle do Governo sobre a área em setembro de 1976.
IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976.

Em 1963 é votada uma lei pela Câmara Municipal de Oriximiná, seguida de um


Decreto do então Prefeito assinado em 1964, criando no município o “Serviço de Proteção à
Tartaruga”. Para a operacionalidade desse programa de manejo e conservação do quelônio, foi
firmado um convênio em 1965 com o Ministério da Agricultura. O serviço era mantido pela
Diretoria do Ministério no Estado do Pará e, em 1967, pela Delegacia do Instituto Brasileiro
de Desenvolvimento Florestal – IBDF. O Programa funcionava com a colaboração da
Sociedade de Preservação dos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia – SOPREN. Na
época, além da fiscalização de dez tabuleiros no Rio Trombetas (área onde hoje é a Reserva
Biológica), o programa fazia o manejo das matrizes e dos ovos da P. expansa. Eram
instalados acampamentos de fiscalização desde 1965, em setembro (assim como é hoje).
Quando os ovos eclodiam, parte das tartaruguinhas eram alocadas em caixas e mantidas no rio
até serem transportadas para Fordlândia, onde havia uma Base do Ministério da Agricultura e
  274  

os filhotes eram mantidos em tanques, por cerca de oito meses, até serem entregues aos
criadouros particulares cadastrados, como parte da política de conservação da espécie289.
Institucionalmente até a década de 1970 o Brasil gozou de algumas estruturas
administrativas ligadas a conservação do ambiente, mas subordinadas ao Ministério da
Agricultura e sem uma política ambiental explícita290, que surge com a criação da Secretaria
Especial do Meio Ambiente – SEMA, em 1973. Criada no contexto da Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de Estocolmo de 1972. Os espaços territoriais
protegidos, dentre eles, os que passaram a se chamar unidades de conservação da natureza, já
existiam de formatos variados com finalidades distintas. Essas áreas ficavam sob a tutela de
órgãos como o Serviço Florestal, substituído em 1959 pelo Departamento de Recursos
Naturais Renováveis – DRNR, Conselho Federal Florestal e posteriormente pelo Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, em 1967, criado sob a atmosfera do regime
militar. Esses órgãos e entidades, vinculados ao Ministério da Agricultura, não gozavam de
um orçamento minimamente capaz de dar conta da vastidão territorial do país e não faziam
frente à mentalidade desenvolvimentista que imperava.
O IBDF vai ser criado em 28 de fevereiro de 1967 pelo Decreto Lei 289/67. Enquanto
entidade autárquica vinculada ao Ministério da Agricultura, o IBDF tinha a finalidade de
formular a política florestal bem como orientar, coordenar e executar as medidas necessárias à
utilização racional, à proteção e à conservação dos recursos naturais renováveis e ao
desenvolvimento florestal do País291. O IBDF foi até 1989 a entidade responsável em
administrar a maioria das áreas protegidas, previstas até então em legislações esparsas, como:
o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, os Parques Nacionais, as Florestas Nacionais, as
Reservas Biológicas, os Parques de Caça Federais entre outras. Podia também criar novas
áreas protegidas. O IBDF gozava de poder para fiscalizar e para aplicar penalidades:
apreensões, multas, interdição de atividades etc., relacionadas ao mal uso dos recursos
naturais renováveis. Essa entidade representa o momento em que o Governo Federal se instala
efetivamente na região do Médio e Alto Rio Trombetas, a partir de 1965, mas,
principalmente, com a Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO-RT de 1979, em que a
área passa a ser da jurisdição privativa desta entidade. Contudo, conforme visto no
                                                                                                           
289
MINISTÉRIO DAS MINAS E ENERGIA/RADAMBRASIL. Folha SA.21 – Santarém. Rio de Janeiro, 1976.
p. 432
290
ACSELRAD, H. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio da
sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
2001
291
GOVERNO FEDERAL. Decreto-Lei nº 289 de 28 de fevereiro de 1967. Cria o Instituto Brasileiro do
Desenvolvimento Florestal e dá outras providências. Disponível em:
http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/126130/decreto-lei-289-67
  275  

delineamento histórico das políticas governamentais, a região já era apontada como “polo de
desenvolvimento” e assistida pelos projetos federais desde a década de 1970, dentre outros,
pelo POLAMAZÔNIA e pelo RADAM.
Para recontar a história do IBDF e sua atuação na região a partir da proposta da
REBIO-RT, gravo entrevista em Porto Trombetas com o mais antigo funcionário do local,
hoje do ICMBio, Alberto Guerreiro de Carvalho292, o “Beto Guerreiro”, que desenvolveu os
estudos para a criação da REBIO-RT. Consigo também entrevista em Brasília, com atual
funcionário do IBAMA, João Carlos Nedel293, diretamente envolvido com a implementação
da REBIO e da Floresta Nacional Saracá-Taquera – FLONA-ST, de 1989. Por fim, neste
quadro de pessoas mais antigas ali, gravo entrevista com o funcionário do IBAMA, hoje
alocado em uma unidade operacional no centro urbano de Oriximiná, Manuel de Jesus Gomes
Vinente294. Beto Guerreiro narra sua chegada a Oriximiná, quando sai do INCRA e vai para o
IBDF realizar os estudos para a criação da REBIO-RT:
*Ah você era do INCRA?
- Sim era do INCRA. Eu vinha do Ministério da Agricultura
concursado. Aí depois o INCRA me solicitou do Ministério da
Agricultura e o Ministério da Agricultura não cedeu. Então eu pedi
demissão do Ministério da Agricultura para servir ao INCRA na
Transamazônica. Essa minha ida pra Transamazônica fez que, na
viagem, eu fizesse um novo concurso do DASP que naquela ocasião
estava surgindo em Belém, e passei em terceiro lugar no Brasil todo.
Como passei em terceiro lugar, fui um dos melhores classificados, já
fui como chefe em Altamira, não chefe do projeto integrado de
Altamira propriamente dito, como chefe do mesmo programa, mas era
lá em Brasil Novo, uma agrópole. Em vez de ser chefe do escritório
central, eu era chefe de uma agrópole que pegava do km 40 até o km
180 da Transamazônica, onde hoje em dia já tem uma comunidade lá.
Então nessa administração, eu consegui muita coisa lá. Eu tenho uma
dinâmica de trabalho, que se eu sou seu empregado e você me dá uma
coisa pra fazer eu quero fazer logo. Resolvo logo, eu desembolo.
Quando o governo estipulava dinheiro, eu procurava colocar nos
primeiros meses os recursos e comprar logo o que eu ia precisar,
talvez até pro resto do ano, porque eu não corria o risco de no meio
ocorrer alguma calamidade, um incêndio numa mata em que o
governo precisasse retirar dinheiro pra cobrir aquele outro setor e
tirasse o meu dinheiro. Então eu já tendo meu dinheiro em mão eu
conseguia já comprar todos os equipamentos e formalizar toda a
minha programação já em mãos. Então nunca me faltou recurso
                                                                                                           
292
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
293
NEDEL, J. C. A implementação da Floresta Nacional Saracá-taquera e da Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 28 de fev. de 2013. Brasília, 2013.
294
VINENTE, M. J. G. A atuação do IBAMA em Oriximiná. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G.
Alcântara em 28 de setembro de 2012. Oriximiná, 2012.  
  276  

nessa ocasião e a gente trabalhava o ano inteiro despreocupado. E o


que aconteceu? Eu saí do INCRA porque achava que já devia
trabalhar por conta própria e ajudar meu pai. Nós éramos oito filhos
e eu era o único formado, precisava formar os outros todos. Eu
queria ir embora pra Oriximiná, foi quando...
*Sua família é daqui?
- É de Oriximiná. Aí o que acontece? Nessa transição, no meu aviso
prévio, o cara do IBDF foi meu colega de turma, sabia do meu
potencial e não queria abrir mão de mim. Me procurou e disse que
queria que eu trabalhasse com ele de todo jeito e eu disse que não,
que não tinha possibilidade, porque eu queria ir pra Oriximiná ajudar
meu pai. E então ele lembrou que tinha essa indicação do projeto
RADAM, que indicava e a área, a reserva biológica aqui no alto
Trombetas pra preservar essa mancha de castanhas e as tartarugas
da Amazônia. Ele então procurou financiador e o POLAMAZÔNIA
financiou. E ele me contratou pra ser o chefe e de se fazer um estudo
da viabilidade para criação de uma reserva biológica. Eu passei um
mês no mato, fiz um livro...
* O Sr. tem ele publicado?
- Tenho. Fiz um livro... tá até aqui...
*Pode ter acesso?
- Eu acho que sim... Esse livro foi só dados meus. E o
POLAMAZÔNIA abraçou, aceitou e então financiou. Nesse
financiamento então que eu entrei, tive que contratar as florestais,
motoristas, enfim, escritório em Oriximiná... e começamos o projeto
em 76. O estudo foi feito em 76, a criação de fato, de direito foi em
79. Desde 76 que a gente preserva a reserva biológica.
* Já sabia o lugar, as medidas, o que tinha...
- Já... e foi só evidenciada em 79, devido a vários outros assuntos, por
exemplo a mineração[MRN] estava se implantando nessa época e
havia a necessidade de se fazer esse shipload aqui no rio, que estava
dentro da área pretendida pela reserva biológica. Então, naquela
ocasião a economia, ela mandava na ecologia. E a coisa está
mudando hoje em dia. Hoje em dia pra você ter uma economia firme
você tem que abrir mão para os projetos de meio ambiente, senão o
governo não aceita o seu projeto.

Retomando a discussão institucional, após a década de 1970, já com a emergente


construção da “questão ambiental”, vista gradativamente de forma mais integrada após a
Conferência de Estocolmo, a política ambiental brasileira vai tomando forma até culminar
na Lei 6.938, de 1981 – Política Nacional de Meio Ambiente- PNMA. Esta vai criar um
complexo de entidades e órgãos integrados nos três níveis da federação, um sistema,
responsáveis pela administração ambiental: o Sistema Nacional de Meio Ambiente –
SISNAMA. Ao mesmo tempo em que a PNMA consagra uma funcionalidade regida no
“comando e controle”, traduz aspirações nitidamente mais democráticas em seu escopo.
Pouco a pouco, a administração ambiental brasileira vai tomando a forma atual, com a
  277  

criação do Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA pela PNMA e,


posteriormente, com o IBAMA em 1989 e o Ministério do Meio Ambiente em 1992.
Com a Constituição Federal de 1988, a questão ambiental atinge o ápice do
ordenamento jurídico brasileiro, interpenetrando boa parte da malha constitucional
regulatória – ao menos formalmente. A integridade do meio ambiente passa a ser
considerado um direito fundamental e o patrimônio ambiental torna-se bem de uso comum.
Ou seja, os bens ambientais passam a integrar a categoria de bens de interesse público,
legitimando a ação estatal reguladora em nome próprio: defesa do meio ambiente. Isso
repercute em severas restrições na propriedade que passou a ser disciplinada por um regime
de explorabilidade limitada– certos elementos, áreas ou recursos não podem ser utilizados –
e condicionada – deve-se demonstrar que o uso da propriedade não será nocivo295. Daí a
razão de instrumentos de controle como autorizações, o Licenciamento Ambiental e os
estudos que o precedem. Em relação às áreas para conservação, o artigo 225 da constituição,
em seu inciso primeiro, parágrafo terceiro, conferiu ao poder público a incumbência de
definir nas unidades da federação os espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, cuja supressão ou alteração só pode ser feita mediante lei
específica, consolidando a estratégia de separar áreas para a conservação na própria Carta
Magna.
Um ano após a promulgação da Constituição, o Instituto Brasileiro de Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, foi criado pela Lei 7.735, em 22 de
fevereiro de 1989. Neste mesmo ano foi criada a FLONA-ST, já diretamente administrada
pela entidade. O IBAMA foi resultado da fusão de cinco outras entidades: além do próprio
IBDF, relacionado ao fomento florestal, e da SEMA, com função precípua atrelada à
qualidade ambiental; absorveu também a Superintendência de Pesca – SUDEPE, que
regulamentava e fomentava a pesca; a Superintendência da Borracha - SUDHEVEA, que
fomentava o uso da borracha; e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro – JABOR, que atuava
na área de pesquisa florestal. Inicialmente fora subordinado ao Ministério do Interior,
depois à Secretaria de Meio Ambiente da Presidência da República e, em 1992, ao
Ministério do Meio Ambiente. O IBAMA passou a ser o órgão central do SISNAMA e
executor da PNMA.

                                                                                                           
295
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira.
CANOTILHO, J. J. G. & MORATO LEITE, J. R. (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2007.
  278  

A criação do IBAMA, assim como o fortalecimento da questão ambiental no


Brasil, guarda relação também com a Amazônia, devido a repercussão mundial alcançada
na luta do seringueiro Chico Mendes296. O avanço das estradas e das fronteiras agrícolas na
região Norte resultavam em extrema degradação ambiental e violência para com os povos
que viviam na floresta. Essas pessoas, desconsideradas tanto pelos governos quanto pelos
empreendedores, formavam movimentos de resistência pontuais, com maior ou menor
organização. Dentre estes, com auxílio de personagens externos, o movimento do
seringueiro Chico Mendes no Acre, ultrapassou as fronteiras nacionais. A repercussão
criada em duas reuniões nos EUA (em Miami e em Washington), em que expôs a realidade
vivida pelo seu povo e a destruição da floresta, culminou na suspensão de financiamentos
internacionais para o Brasil. A complexa situação abalou o então Presidente da República
José Sarney que, em decorrência do feito, traçou duas estratégias para melhorar a imagem
político-ecológica do Brasil: a) trazer a Conferência das Nações Unidas para o país;
resultando na realização da mesma no Rio de Janeiro em 1992; e b) criar uma instituição
forte para a política ambiental brasileira, que resultou no IBAMA297.
Até 2007 o IBAMA, dentre muitas outras atribuições, era responsável pela
administração das unidades de conservação federais. A atuação do mesmo, que herda parte
do que já existia nos outros órgãos, e foi, desde o início, atrelado à uma legislação ambiental
de caráter regulador e controlador, assume feições fiscalizatórias e policialescas,
prioritariamente. Na realidade em que nos debruçamos, o IBAMA quando assume o
comando da REBIO-RT e da FLONA-ST, vai manter as políticas anteriores de forte
fiscalização contra a comercialização dos quelônios. Mesmo porque, as mesmas pessoas que
já trabalhavam no IBDF, vão ser mantidas, agregando-se novos funcionários posteriormente
(eventualmente, subtraindo outros, sendo realocados, exonerados, se aposentando etc.). O
“IBAMA” é a entidade mais referenciada pelos tradicionais, sobretudo por ser a que
permaneceu por maior período a frente das unidades e a que eles tiveram maior contato,
apenas recentemente substituída pelo ICMBio (que eles ainda não acostumaram a falar).
A permanência do mesmo quadro de funcionários refletiu na regularidade dos
trabalhos e programas, principalmente nos de fiscalização e manejo dos quelônios que, pelo
que se pode aferir, mantiveram-se constantes. Para essa aferição, além dos relatos, tive

                                                                                                           
296
O filme biográfico do seringueiro acreano Chico Mendes denominado “Amazônia em Chamas” (The Burning
Season no original), dirigido por John Frankenheimer de 1994, retrata bem essa história.
297
ANDRADE FILHO, Jovelino M. Gestão da natureza e natureza da gestão: do IBAMA ao ICMBIo –
Movimento Social dos Servidores de Unidades Federais de Conservação da Biodiversidade. Tese Doutorado:
PPGSD/UFF. Orientação: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Niterói, 2013.
  279  

acesso aos “livros de registro” existentes na Base do Tabuleiro. Estes livros (como cadernos
de contabilidade de empresas) tinham registrados quase diariamente pelos agentes da base
(os técnicos e/ou contratados), todas as atividades desenvolvidas ali, apresentando: cada
embarcação que passava, as vistorias nas mesmas, as atividades de fiscalização realizadas,
os pesquisadores que chegavam, o controle sobre os ninhos de tartaruga etc. Um diário de
atividades escrito ao longo dos anos. O mais antigo destes documentos que obtive, data
outubro de 1990 e, por meio destes, é possível constatar os trabalhos rotineiros e metódicos
dos agentes, sempre relacionados à fiscalização para preservação dos quelônios, ao controle
de embarcação e ao auxilio nas pesquisas (principalmente com quelônios).
Com a entrada de novos funcionários e, sobretudo, com a gradativa mudança de
mentalidade no que tange à conservação, as relações com os comunitários foi se
transformando. Isso se dá antes da criação do ICMBio, sendo apontado pelos comunitários,
de uma forma geral, na década de 1990 ou um pouco antes. A contratação de pessoas das
comunidades para o auxílio na conservação dos quelônios, via de regra, por contratos
temporários (principalmente na época da desova), já ocorria na época do IBDF (talvez
anteriormente). Por sua vez, um envolvimento mais efetivo das comunidades na
conservação, com programas de educação e incentivos, decorrem de políticas mais recentes.
Acompanho a sucessão entre dois Chefes das unidades, funcionários ingressos
ainda na época do IBAMA que vivenciaram a transição para o ICMBio. Carlos Augusto de
Alencar Pinheiro298, Engenheiro Florestal, pude conhecer ainda como Chefe das unidades
de conservação, no seu último ano em Porto Trombetas. Havia substituído em 2005 outro
Engenheiro Florestal, Vitor Hugo Cantarelli (que não tive contato) e foi substituído pelo
atual Chefe, José Risonei Assis da Silva299, o “Nei”, Engenheiro Agrônomo, que pude
acompanhar alguns trabalhos. Dentro do enfoque da pesquisa, no que tange aos conflitos,
ambos eram significativamente conscientes dos problemas das unidades e apresentavam-se
bastante propícios ao diálogo com os comunitários quilombolas. Presenciei algumas
reuniões dirigidas por José Almeida junto aos mesmos e, pessoalmente assisti o empenho
para com os tradicionais na resolução de suas questões. Por sua vez, ambos também eram
bastante reticentes com os assuntos relacionados à MRN, afirmando que cumpriam
terminantemente suas funções, com autonomia, pois eram funcionários públicos, não
hesitando de autuá-la quando necessário – o que se constata analisando os autos de infração
                                                                                                           
298
PINHEIRO, C. A. A. Conflitos nas Unidades de Conservação do Rio Trombetas. Entrevista concedida a
Leonardo Alejandro Gomide Alcántara em 12 de dezembro de 2010. Oriximiná, 2010.
299
SILVA, J. R. A. As comunidades tradicionais na FLONA-ST e REBIO-RT. Entrevista concedida a Leonardo
Alejandro Gomide Alcàntara em 15 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
  280  

que recaíram sobre a empresa. Com um terceiro funcionário, Gilmar Nicolau Klein,
Biólogo, Coordenador de Pesquisa das unidades, também foi possível realizar conversas e
acompanhar trabalhos, mas não cheguei a gravar entrevistas.
Carlos Augusto Pinheiro me externou que já havia uma discussão interna do
ICMBio de Brasília que vislumbrava a recategorização da REBIO-RT com fins de torná-la,
na parte pleiteada pelos quilombolas, uma Reserva do Desenvolvimento Sustentável – RDS
ou uma Reserva Extrativista – RESEX, ou mesmo, a desafetação para tornar essa parte
Território Quilombola. Para a desafetação foi ressaltado que a unidade de conservação
tornar-se-ia inviável, tanto do ponto de vista logístico de sua gestão, quanto pelo que quer
conservar, principalmente a tartaruga, que perderia sua área de reprodução. Conforme visto,
qualquer uma dessas medidas requer lei específica, não depende da instituição. Converso
sobre o mesmo assunto com José Silva que afirma não ter participado de reuniões nesse
sentido, mas se posiciona dizendo não ter nenhuma objeção quanto a isso, por sua vez,
entendia ser melhor para os próprios quilombolas a recategorização e não a desafetação.
Explica que constantemente é requisitado por quilombolas e ribeirinhos do entorno das
unidades de conservação, mas fora de sua área de jurisdição, para combater invasores
(internos e externos). Me apresenta também estudos sobre o Lago do Acapú que foi
desmembrado da REBIO para tornar-se Território Quilombola, onde os recursos sofreram
uma redução drástica. Os mesmos quilombolas reafirmaram em diversos momentos que “se
não fosse o IBAMA, já não tinha mais nada”. A recategorização é um mínimo necessário
para que a área opere conforme a lei, mas a desafetação é uma questão bastante complexa,
que gera uma polifonia de opiniões e opõe interesses, principalmente entre os diferentes
pesquisadores. Mas, entende-se, deve ser avaliada de acordo com a realidade local, sem
idealismos excessivos, levando-se em conta todos os interesses em jogo.
Existem levantamentos fundiários, recenseamentos das populações do interior e
entorno das unidades, e mesmo caracterizações de seus modos de vida e socioeconomia,
acompanhando a história da presença governamental relacionada a estes espaços protegidos.
Entretanto, estudos mais criteriosos surgem a partir do ano 2000, em que o governo contrata
Edna Castro, Rosa Acevedo Marin e Camilo Sanches para realizarem o “Diagnóstico da
Situação: Comunidades Localizadas na REBIO Rio Trombetas”300. Posteriormente dois
estudos se destacam e marcam definitivamente o reconhecimento governamental dos
tradicionais que vivem na FLONA e na REBIO e os conflitos ali vivenciados. Isso de forma
                                                                                                           
300
CASTRO, Edna; ACEVEDO, Rosa; SANCHES, Camilo T. Diagnóstico da Situação: Comunidades
Localizadas na REBIO Rio Trombetas. Ministério do Meio Ambiente/IBAMA/PNUD, 2000
  281  

bem mais profunda e detalhada do que os Planos de Manejo das duas unidades, pagos pela
MRN.
O primeiro estudo, intitulado de “Povos do Rio – Cadastro de comunidades
quilombolas e ribeirinhas localizadas no interior e entorno da Reserva Biológica do Rio
Trombetas”, com envolvimento de várias entidades governamentais e não governamentais,
inclusive a ARQMO. O estudo estabelece um levantamento de todas as comunidades do
interior e entorno das duas unidades de conservação, apresentando o número de famílias,
histórico da ocupação, modos de vida e depoimentos dos comunitários sobre suas questões.
Os resultados deste estudo foram apresentados em Brasília com a presença de
representantes do IBAMA/Reserva Biológica do Rio Trombetas/PA, do INCRA –
Superintendência Nacional e regional de Santarém, do Ministério Público Federal de
Santarém, da Comissão Pró-índio de São Paulo e do Núcleo Macaco-prego de Vivências
Ambientais e Culturais. O estudo culmina na propositura de um Termo de Ajustamento de
Conduta-TAC, produzido pelo Ministério Público para ser firmando entre o IBAMA e os
tradicionais das unidades, tendo em vista pactuarem compromissos recíprocos301.
O segundo estudo, “Caracterização Socioeconômica das Comunidades
Quilombolas do Alto Trombetas”, foi publicado em 2010, já com o ICMBio. O objetivo foi
conhecer e compreender a situação dessas populações na região do Alto Trombetas, tendo
em vista subsidiar um posicionamento institucional para o ICMBio, frente as demarcações e
reivindicações para titulação das Terras Quilombolas. O estudo pondera dois polos de
direitos: 1) o direito dos quilombolas ao acesso à terra, 2) o direito à integridade do meio
ambiente. Primando pelo caráter universal de ambos, o coletivo e o difuso, perscruta sobre a
possibilidade de se harmonizarem na realidade em foco. Tomando por base: a) os modos de
vida dos tradicionais; b) a impossibilidade de se conciliar as finalidades da REBIO-RT com
a titulação das terras quilombolas; c) a principal demanda dos quilombolas estar relacionada
à melhoria nas suas condições de vida; o estudo conclui que medidas compensatórias, como
políticas públicas sociais e uma distribuição mais justa dos resultados da mineração, que
repercutisse na melhora das condições de vida dos Quilombolas, tornando-os independentes
dos recursos da REBIO, seria possível dirimir o conflito e assegurar os dois direitos,
mantendo a reserva:
Existem, portanto, possibilidades de negociação que contentam e
beneficiam os moradores das comunidades de remanescentes de
                                                                                                           
301
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Povos do Rio – Cadastro de comunidades quilombolas e ribeirinhas
localizadas no interior e entorno da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Relatório Final. Núcleo Macacoprego
de Vivências Ambientais e Culturais/FUNBIO/ARPA. Oriximiná. 2006
  282  

quilombos e não prejudicam o alcance dos objetivos da Reserva


Biológica do Rio Trombetas, relacionados, sobretudo, com a
conservação da biodiversidade. Certamente, elas exigem
comprometimento das autoridades com políticas públicas voltadas
para a melhoria da qualidade de vida da população local e com a
implementação da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Trata-se de
exercer pressão sobre as grandes empresas que têm explorado os
recursos naturais da Amazônia para que assumam as suas
responsabilidades sociais e ambientais, o que implicaria em uma
pequena parcela dos recursos auferidos. Obviamente, isto implica em
romper com a lógica do “desenvolvimento econômico a qualquer
custo” e condicionar as políticas de desenvolvimento ao bem estar
social e ambiental302.

No breve acompanhamento dos trabalhos do Poder Público se pode constatar que:


o trato com as comunidades, as estratégias de ação para conservação, o empenho e
determinação em cumprir funções, enfim, as práticas que resultam na “boa” ou na “má”
administração pública, muito se relacionam com a pessoa do “funcionário público”, não
obstante este não ser o único fator que determina uma conjuntura política, indubitavelmente,
é uma variável que deve ser considerada, além das mudanças na macropolítica. Outra
variável é a absorção/assimilação dos valores coorporativos da instituição que passam a ser
reproduzidos, não apenas como um “protocolo”, mas identitariamente pelo funcionário.
Neste quesito, pode se observar o comportamento de alguns dos contratados das próprias
comunidades que assumiam não apenas o “protocolo de sua função”, mas uma postura
peculiar de identidade, com as roupas, óculos escuros, o jeito dos agentes externos... “o
peão entra lá e fica se achando, bota aquelas ropa, óculos e sai nas lancha pa perturba”
[sic], me relata um comunitário do Paraná do Abuí. Por sua vez, a subordinação hierárquica
dos contratados assumia uma relação mais estreita com a figura do contratante, pessoa
física, do que com a instituição, no caso ICMBio, o que auxilia na compreensão de certas
relações que se estabeleceram ali que, supostamente, atendem interesses pessoais da
autoridade pública contratante.
A operacionalidade do IBAMA em Porto Trombetas – assim como ocorre
atualmente com ICMBio – esteve atrelada à MRN, principalmente no que tange ao repasse
de recursos financeiros e à infraestrutura: algumas instalações, equipamentos, insumos, mas
principalmente, a sede em Porto Trombetas, foram disponibilizadas pela MRN. Os Planos
de Manejo das duas unidades, além de diversas outras ações e pesquisas, também foram
financiados pela MRN com recursos de compensação ambiental, conforme contrato
                                                                                                           
302
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE/ICMBio. Caracterização Socioeconômica das Comunidades
Quilombolas do Alto Trombetas. Oriximiná, 2010.
  283  

IBAMA/MRN nº 2005/02. Já em 1995 havia um Termo de Cooperação Técnica


IBAMA/MRN nº 03/95303 para o manejo dos recursos da FLONA e conservação da REBIO
com o financiamento de várias ações. Em 2004 é firmado um convênio entre a MRN e o
IBAMA em Brasília, com o objeto de “cooperação mútua e a integração de ações entre os
partícipes, visando a implantação dos programas previstos no Plano de Manejo da Floresta
Nacional Saracá-Taquera, e ações para a preservação e conservação da Reserva Biológica
do Rio Trombetas304”. Para ilustrar, os repasses de 2005 somaram a quantia de R$
750.000,00 para operar as duas unidades, além disso, algumas atividades foram pagas
diretamente pela MRN à empresas terceirizadas, como é o caso de alguns estudos (os Planos
de Manejo das duas unidades, a revisão do Plano da FLONA, mapeamentos etc.). O
convênio vai ganhando novos aditivos até 2007, quando é criado o ICMBio. A partir daí são
firmados outros acordos, dando a mesma sequência, como o Termo de Reciprocidade de
2010305, com aporte financeiro de R$ 930.726,00 por parte da MRN. Para sintetizar, o que
se auto-explica, há uma correspondência muito profunda entre o Estado e a empresa, mas
como ressaltou José Silva, seriam “compensações”, obrigações legais da empresa. Por sua
vez, não se pode deixar de perscrutar sobre a fragilidade dessas relações diante de
“compensações” que sustentam integralmente (ou praticamente isso) a entidade pública no
local.
A parte do que ocorre em Porto Trombetas, que é uma realidade peculiar, ao longo
de sua história, o IBAMA, fruto da junção de várias entidades, não vai atingir o resultado
institucional esperado na tutela dos recursos naturais, principalmente no que tange às
unidades de conservação. Pouco a pouco, a entidade que concentrava inúmeras funções, vai
assistindo a fragmentação de suas atribuições. O JABOR se desliga em 1996 e se transforma
no Instituto de Pesquisa Jardim Botânico vinculado ao Ministério do Meio Ambiente em
1998. Em 1997 as atribuições relacionadas à pesca são transferidas para o Ministério da
Agricultura, criando-se o Departamento de Agricultura e Pesca, posteriormente com a Lei
10.683/2003 é criada a Secretaria Especial de Agricultura e Pesca, vinculada à Presidência
da República.
Com relação aos setores de fomento florestal, as competências foram transferidas
para o Serviço Florestal Brasileiro – SFB, criado pela Lei 11.284 de 2006, vinculado ao
                                                                                                           
303
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Termo de Cooperação Técnica nº 02 que celebram o IBAMA e a
MRN. Brasília, 1995
304
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Termo de convênio nº 02 que celebram o IBAMA e a MRN. Brasília,
2004.
305
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Termo de Reciprocidade nº 01 que celebram o IBAMA e a MRN.
Brasília, 2010
  284  

Ministério do Meio Ambiente. Aqui, cabe ressaltar que o Serviço Florestal Brasileiro,
estava, no tempo da pesquisa, empenhando ações na região estudada, com projetos para os
remanescentes de quilombo da Cachoeira Porteira, visando a criação de uma cooperativa de
beneficiamento da castanha. Havia atuações também em outras comunidades,
principalmente com estudos para capacitação na exploração dos recursos florestais e
relacionadas com as concessões florestais licitadas na FLONA-ST.
As discussões para a criação de uma instituição específica para a gestão das unidades
de conservação, apesar de abordadas desde 1973, emergem enquanto um “movimento social
de servidores” a partir das reuniões dos Chefes de Unidades de Conservação Federais
iniciadas na década de 1990. A ineficiência da gestão centralizada no IBAMA para com o
setor de áreas protegidas, que padeciam de uma desassistência generalizada da instituição,
culmina na proposta de criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
– ICMBio, criado pela Lei 11.516 de 28 de agosto de 2007. A proposta é acatada no Governo
Lula, com o Ministério do Meio Ambiente sob comando da Marina Silva. A instituição
passou a ser a principal responsável pela conservação in situ e ex situ da biodiversidade, com
atribuições sobre: as áreas protegidas – com 313 unidades de conservação federais – e Centros
de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade – com 15 centros como o Centro Nacional de
Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas - TAMAR, Centro de pesquisa e
Conservação da Biodiversidade Amazônica - CEPAM, Sociobiodiversidade Associada a
Povos e Comunidades Tradicionais – CNPT entre outros306.
No escopo de criação do ICMBio já estava presente uma percepção mais integrada
entre “sociedade e natureza”. O “mito moderno da natureza intocada” das políticas
conservacionistas descrito em Diegues307, já havia dado lugar a outros mitos. O ICMBio fora
cunhado sobre o jargão do socioambientalismo, herdou as experiências de um longo histórico
de conflitos entre unidades de conservação criadas arbitrariamente com as populações do
interior e entorno das mesmas, sabendo o quanto isso obstaculiza qualquer conservação. Essa
mentalidade já estava avançada no IBAMA, principalmente em 2003 na proposta de gestão
das unidades por um sistema bioregional. Com o ICMBio a questão se entrelaça de vez,
asseverando em sua missão – reproduzida muitas vezes nas conversas com os funcionários de
Porto Trombetas – de proteger o patrimônio natural, “por meio da gestão de Unidades de

                                                                                                           
306
ANDRADE FILHO, Jovelino M. Gestão da natureza e natureza da gestão: do IBAMA ao ICMBIo –
Movimento Social dos Servidores de Unidades Federais de Conservação da Biodiversidade. Tese Doutorado:
PPGSD/UFF. Orientação: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Niterói, 2013.
307
DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB – Universidade de
São Paulo, 1994.
  285  

Conservação Federais e da promoção do desenvolvimento socioambiental das comunidades


tradicionais naquelas consideradas de uso sustentável”308.
As mudanças institucionais macropolíticas se contrastam, por exemplo, na fala do
antigo funcionário da reserva (da época do IBDF até o IBAMA), Manoel Vinente309, com a
do atual Chefe das unidades, José Silva310, respectivamente:
M.V.[...]segundo informações que tive com pessoas de dentro, os
morenos lá [quilombolas], eles não são fiscalizados mais, na nossa
época a gente fiscalizava todo mundo, até índio, era fiscalização dia e
noite. Hoje ninguém pode mais fiscalizar o moreno, o moreno entra
na reserva, o moreno pesca, o moreno caça e ta tudo certo. Na nossa
época era severo mesmo, de manhã a gente já percorria a praia pra
tirar anzol, espinhel, era noite e dia, uma vigilância intensa ali.
J.A.[...]como as políticas de fiscalização sozinhas não deram muito
resultado, hoje a gente procura um envolvimento maior com a
comunidade. Procuramos descobrir quais são os pescadores de
quelônios, que são sempre os mesmos, e contratamos eles para
trabalhar com a gente na preservação. Também temos os trabalhos de
educação ambiental e de conscientização, eles tem que fazer parte do
processo, tem que entender que a pesca predatória prejudica a eles
também.

Os recortes acima versaram sobre o acentuado declínio dos quelônios da REBIO, que
trato em tópico próprio, mas que aqui ilustra as diferentes posições institucionais (e também
de mentalidade e pessoais).
O ICMBio assume integralmente a competência da gestão da FLONA e da REBIO,
mas o IBAMA mantem atuação no local enquanto entidade licenciadora das atividades
minerárias no interior da FLONA. No curso da pesquisa não foi possível acesso aos
funcionários do IBAMA relacionados aos licenciamentos da MRN, que estão alocados em
Brasília e realizam vistoriais eventuais. Por sua vez, com outros funcionários que ingressaram
já com o ICMBio, bem mais jovens, foi possível travar importantes conversas e ter um
acompanhamento mais aprofundado: André Luis Macedo Vieira e Andréa de Oliveira
Raimundo. Os dois funcionários tinham perfis muito distintos. Andréa Raimundo, Agente
Fiscal, pelo próprio exercício de sua função, mantinha certo afastamento no trato com os
comunitários, no que pude observar. Por sua vez, foi muito solícita me esclarecendo pontos
importantes sobre as fiscalizações e autuações que foram realizadas na FLONA e na REBIO.
Afirma que dentro das comunidades não são realizadas fiscalizações ou vistorias, salvo se
                                                                                                           
308
Disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/quem-somos/missao.html
309
VINENTE, M. J. G. A atuação do IBAMA em Oriximiná. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G.
Alcântara em 28 de setembro de 2012. Oriximiná, 2012.
310
SILVA, J. R. A. As comunidades tradicionais na FLONA-ST e REBIO-RT. Entrevista concedida a Leonardo
Alejandro G. Alcântara em 15 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
  286  

forem situações muito extremas ou partirem de denúncias dos próprios comunitários. Os


tradicionais utilizam a floresta como bem entendem, só não podem sair com produtos
florestais e da fauna para comercializá-los sem autorização, realizar grandes desmatamentos
ou invadirem as praias nas épocas de desova. Com relação à MRN, Andréia afirmou que a
empresa, quando autuada, se entender que cometeu alguma infração, simplesmente paga a
multa, caso contrário, recorre até a última instância. Afirma também que na FLONA o
principal problema tem sido a abertura de pastagens, que já desmatam mais do que a própria
mineração da bauxita, e é muito difícil fiscalizar e autuar dada as dimensões da mesma. Já o
André Vieira, por trabalhar direto com os comunitários, era o funcionário a que tive mais
acesso. Ele coordenava alguns projetos para as comunidades como: Mapeamento participativo
e organização socioeconômica para extração sustentável de óleo-resina de Copaifera
multijuga na Floresta Nacional Saracá-Taquera, Conservação da castanha-do-pará e da
copaíba no interior e entorno da REBIO-RT e Organização comunitária e manejo dos recursos
naturais no interior da FLONA-ST. Assim como José Silva, André Vieira também entende
que a ausência do órgão ambiental, em uma possível desafetação ali, repercutiria muito
negativamente não apensa na conservação, mas para os próprios quilombolas e ribeirinhos
que vivem nas reservas.
Por sua vez, o trabalho mais importante foi realizado junto aos agentes ambientais
contratados que atuavam nas bases: Santa Rosa, Flutuante e no Tabuleiro, com destaque para
o último, principalmente pela proximidade com as comunidades. Os contratados se revezam
nas bases em períodos quinzenais e são, em parte, das próprias comunidades do entorno:
Tapagem, Abuí, Sagrado Coração, Mãe Cué, Moura entre outras. Os demais são de
Oriximiná. Já os contratados temporários são pessoas escolhidas somente das comunidades,
dentre outros, entre aqueles que estiveram envolvidos em práticas predatórias. Interessante
pontuar que alguns dos tradicionais, pescadores de tartaruga, recusam constantemente os
convites de trabalho, segundo dois agentes das comunidades que entrevistei, Coruja e
Copaíba311, entre outros motivos, por que podem ganhar mais com a venda da tartaruga:
Tem muitos que pescam que o IBAMA oferece trabalho, mas tem
muito que eles não qué né?... tem uns que desce assim com a malha...
fica mais pescando... cada vez que eles encontra oferece trabalho... aí
eles não qué... aí já ganha, são viciados na pescaria... eles não pegam
mais trabalho... tem pião que gosta demais de pesca.. E aí ficam com

                                                                                                           
311
SOUZA, Raimundo e SANTOS, Raimundo. Funcionários da base do Tabuleiro da REBIO Rio Trombetas -
FUNTEC/ICMBIO. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcántara em 18 jul. 2011. Oriximiná,
2011.
  287  

raiva daquele que entrou e pegou o trabalho... porque aí o cara entrô


no IBAMA... aí o cara vai perseguir...

Os “agentes” também são a linha de frente das ações de conservação e dos conflitos
diretos que daí decorrem, muitas vezes, sofrendo ameaças por membros de suas próprias
comunidades. Sobre as questões que seguem, abordando a violência estatal e comunitária, o
tráfico de animais e alguns posicionamentos quanto a isso, para evitar repercussões negativas
ou prejudicar alguém, resguardo as minhas fontes e as mantenho em sigilo. Quando se tratam
de posicionamentos coletivos, identifico-os pelas respectivas comunidades. Reitero que o
trabalho se pauta nas relações de poder sobre o uso dos recursos dentro da FLONA e da
REBIO que estão em controvérsias, criando realidades, com base em ações vivenciadas,
relatadas ou documentadas, sem pretensão de abarcar todas essas relações. Apenas se
descreve o que se observa de uma realidade dentro de uma temporalidade. Os
posicionamentos individuais, coletivos ou institucionais, enriquecem as percepções; no
entanto, mantenho o cuidado de não expor pessoas, qualifica-las ou tipificar suas condutas ou
prejulgá-las.
  288  

4 A RESERVA BIOLÓGICA DO RIO TROMBETAS

Foto 16 e 17: Marcação e soltura de tartarugas apreendidas em 1976. IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976.


  289  

O projeto RADAM-BRASIL nas décadas de 1970 e 1980, foi responsável pelo


levantamento e mapeamento dos recursos naturais em todo o território brasileiro. O projeto
foi criado em 1970 em âmbito do Ministério de Minas e Energia para realizar inicialmente o
levantamento integrado de recursos naturais de uma área de 1.500.000 Km2 na faixa de
influência da rodovia Transamazônica. Estendido para toda Amazônia legal e posteriormente
para todo o Estado brasileiro, o projeto foi resultado de uma estreita relação entre a National
Aeronautics and Space Administration - NASA e a Comissão Nacional de Atividades
Espaciais Brasileira – CNAE. A partir de um programa de cooperação entre os dois órgãos,
surgiu um projeto de sensoriamento remoto de recursos naturais em meados da década de
1960, em que uma equipe brasileira foi capacitada nos EUA, dando início a dois
complementares programas nacionais: o RADAM e o Programa de Sensoriamento Remoto
por Satélite312.
Por indicação do projeto RADAM-BRASIL, FOLHA SA.21-SANTARÉM de 1975,
foi desenvolvido no âmbito do Ministério da Agricultura, pelo Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal – IBDF, com recursos orçamentário do POLAMZÔNIA, o
“Estudo de Viabilidade para Implantação da Reserva Biológica do Rio Trombetas”313.
Conforme Carvalho, principal articulador do estudo e quem o desenvolveu:
Foi indicado pelo projeto RADAMBRASIL uma área aqui no
Trombetas onde teria um grupo de castanheiras, unidade única no país
inteiro, também no mundo de castanhas graúdas, que tinha de 8 a 10
cm de comprimento. Então essa mancha foi detectada aqui entre o
[Lago] Erepecu e o Rio Acapu. Além de nessa ocasião, a quantidade
de tartaruga que existia no Brasil conhecida, a maioria era aqui de
Oriximiná, aqui do Alto Trombetas, pelo menos era muito famosa por
causa do gosto. O sabor da tartaruga aqui do Trombetas é diferente do
sabor da tartaruga de outros lugares, porque aqui ela se alimenta de
ostra, uma ostrazinha que fica no fundo do rio. Ela come aquilo, o que
enriquece o tecido dela, dá um sabor especial, inclusive ela fica
bastante gorda e saborosa.

O estudo de viabilidade traz em sua justificativa para escolha da área a presença de


rica flora e fauna, grande parte desconhecida e com grande potencial para pesquisa, além da
grande concentração de lagos e praias. Seguindo com os aspectos gerais, físicos e biológicos
da área, passando-se a análise da viabilização da criação da reserva, não se encontra, mesmo
no tópico “ocupação humana”, uma descrição mais pormenorizada que caracterize as pessoas
                                                                                                           
312
OLIVEIRA, A. A. B. Histórico Projeto RADAMBRASIL. Rio de Janeiro, 17 de maio de 1999. Disponível em:
http://www.projeto.radam.nom.br/historico.html. Acesso em:16/08/2012.
313
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA/POLAMAZÔNIA/IBDF. Estudo de Viabilidade para Implantação da
Reserva Biológica do Rio Trombetas. Equipe Executora: Alberto Guerreiro de Carvalho e Francisco Pio
Patenostro. Oriximiná, 1977.
  290  

que viviam ou utilizavam parte daquelas áreas, seus modos de vida e especificidades. Os
conflitos que poderiam surgir posteriormente com a criação da mesma, no caso, com os
remanescentes de quilombo (naquela época menos numerosos e não reconhecidos enquanto
tal), são colocados enquanto “dificuldade na fiscalização pela ação extrativa da tartaruga e da
castanha”. Dentre as 103 propriedades levantadas no estudo, apenas 9 não possuíam registro
cartorial, as outras 97 eram tituladas. Essas propriedades estavam concentradas por 18
proprietários, apenas dois destes eram pessoas jurídicas. As propriedades variavam bastante
de tamanho, sendo a maior propriedade medindo 7.200 ha e a menor com 22 ha, perfazendo
um total de 66.924 ha – 32% da área proposta pela reserva. Como o percentual de terras com
proprietários era relativamente baixo, perto do que se pretendia conservar, fossem terras
griladas ou não, a regularização fundiária da reserva foi exposta no estudo como uma
dificuldade contornável pela desapropriação. No que tange ao uso da terra, o estudo descreve
que a agricultura era secundária frente a coleta da castanha, principal atividade econômica
dessas propriedades. Aqui a história contemporânea se conecta à história recente da
Amazônia, nas relações já descritas do aviamento e da patronagem que configuravam as
relações dos tradicionais com essas terras, concentradas nas mãos de poucos latifundiários,
antes da reserva. Por sua vez, um ponto reiteradamente mencionado no estudo em foco é o
desenvolvimento da pesquisa, como um dos argumentos centrais do documento, assim como
as muitas instituições ligadas à pesquisa que atuavam no Pará e que poderiam dar apoio como
o INPA, MPEG, CNPq, EMBRAPA etc. inclusive a UAJV/UFF é mencionada. Nessa
trajetória, a tartaruga Podocnemis expansa é o nosso principal ator, é na busca de seu
agenciamento que se propõem a instauração dessa nova ordem territorial:
Há perigo de extermínio das tartarugas, em virtude da grande procura
de seus ovos, o que não permite uma reprodução a contento. Sendo
sua carne muito saborosa, as tartarugas na época da desova são
apanhadas em grande quantidade nas praias chamadas “praias de
viração ou tabuleiros”, para serem comercializadas314.

Conforme visto, a presença do Governo Federal para “proteger esse recurso” estava
instituída desde 1965, na parceria entre o município de Oriximiná e Ministério da
Agricultura/IBDF, com manejo similar ao que é realizado hoje. Segundo o estudo, outro

                                                                                                           
314
 MINISTÉRIO DA AGRICULTURA/POLAMAZÔNIA/IBDF. Estudo de Viabilidade para Implantação da
Reserva Biológica do Rio Trombetas. Equipe Executora: Alberto Guerreiro de Carvalho e Francisco Pio
Patenostro. Oriximiná, 1977. p. 29  
  291  

grande atrativo do local para a criação da reserva eram as castanheiras, nosso segundo ator.
Uma das fontes utilizadas pelo estudo do RADAM, reproduzido em Almeida315 afirma que:
Em 1975, o pioneiro nos estudos de ocorrência desses animais na
Amazônia, José Alfinito, chamou a atenção para a necessidade de se
proteger os tabuleiros de desova da tartaruga de rio (Podocnemis
expansa) e principalmente daqueles que foram posteriormente
englobados pela reserva biológica do Rio Trombetas; pois, na ocasião,
se tratava dos tabuleiros onde havia a maior desova de tartarugas,
dentre todos os conhecidos.

Barreto Filho316, afirma que as políticas de conservação associadas a projetos


mundiais como o “Regional Project on Wildlands Management” foram influentes no governo
militar para criação de espaços territoriais protegidos e para a instrumentalização de medidas
conservacionistas, repercutindo em influência direta para o local. Não encontrei menções
diretas nos documentos analisados.
Por sua vez, Wanderley317, em seus estudos sobre os quilombolas e os conflitos na
área da REBIO, associa as políticas de conservação ali experimentadas com a nova ordenação
territorial advinda dos projetos de desenvolvimento e reprodução do capital, no caso,
exploração da bauxita: Segundo ele, a nova racionalidade do território se dá pela
institucionalização ou rearranjos de espaços em que se molda uma “nova ordem
territorial/espacial normatizada que define os limites das ações quanto ao uso e funções no/do
espaço, de modo que o funcionamento assegure a reprodução do capital”. Em outro estudo:
“Após três anos de exploração, promulgou-se no congresso nacional a proposta da empresa
MRN de demarcação da Reserva Biológica do Trombetas (REBIO), na margem esquerda do
rio, área não explorada em recursos minerais, porém onde há jazidas a serem mineradas”.
Para o autor, a REBIO teria sido instrumentalizada e criada para a MRN exercer o seu
controle na região. Essa percepção, de uma forma geral, converge com as de Acevedo &

                                                                                                           
315
ALMEIDA, J. B. O. Escopo Jurídico Contemporâneo da Norma Quilombola: O Caso dos Quilombolas do
Rio Trombetas. Belém: Programa de Pós-Graduação em Direito - PPGD do Instituto de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Pará, 2010 (Dissertação de Mestrado) p. 35
316
BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Da Nação ao Planeta através da Natureza: uma abordagem
antropológica das unidades de conservação de proteção integral na Amazônia brasileira. São Paulo: Pós-
Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, 2001. (Tese de Doutorado)
317
WANDERLEY, L. J. M. Deslocamento compulsório e estratégias empresariais em áreas de mineração: um
olhar sobre a exploração de bauxita na Amazônia. In: Revista IDeAS, v. 3, n. especial, p. 475-509, 2009. p. 477;
WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. De escravos livres a castanheiros “presos”: A saga dos negros no Vale
do Trombetas. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais: Caxambu- MG –Brasil, de 29 de setembro a
03 de outubro de 2008. p. 15; WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. “Território Invadido”: As lutas e os
conflitos nas terras dos negros do Trombetas-PA. Monografia apresentada ao Departamento de Geografia,
Instituto de Geociências, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza – Universidade Federal do Rio de
Janeiro-UFRJ, 2006.
  292  

Castro318 em que a REBIO corresponde a uma associação entre “Estado e empresas” e


também com as de Farias Jr.319, onde a reserva corresponde a uma “ordenação territorial
favorável à empresa”. Com base nos dados colhidos, essas posições que estabelecem uma
conexão imediata e necessária não procedem.
Se tomarmos, conforme delineamento histórico traçado, o II
PND/SUDAM/POLAMAZÔNIA enquanto políticas/instituições/instrumentos estatais co-
promotores da exploração da bauxita no Trombetas e que, ao mesmo tempo, estas políticas
coordenaram e financiaram os estudos de criação da REBIO-RT, por certo nos
convenceríamos de que há uma relação. Mas qual? O capitalismo imperialista, excludente e
repressor da MRN imprimindo sua ordem? Saindo um pouco das explicações com base na
“transcendental força do capital”, invisível mas que ao mesmo tempo rege tudo – seja pelo
governo e/ou pelas corporações – e passarmos para aquilo que, num plano que podemos
perceber, se conecta, temos uma relação sim, ou melhor, muitas. E estão dentro de um
conjunto de coisas de diferentes ordens que se encontram e se transformam, e que devem
poder ser demonstradas, entendo, sem recorrer a uma razão mágica desencarnada que reduz
tudo a si mesma. As relações que foram possíveis de se aferir – reafirmando que os nossos
traços podem ser refeitos/corrigidos – são que, num primeiro momento, a proposta da reserva
biológica colidiu com o Projeto Trombetas. Não foi aceita a priori. Tomo por base o projeto
de conservação de quelônios do Governo Federal que já existia desde 1965 (antes de se
descobrir as reservas comerciais de bauxita), a indicação do RADAMBRASIL de 1975, os
estudos realizados em 1976 e os depoimentos que colhi das pessoas que estiveram envolvidas
na criação da reserva. Primeiro com relação a Carvalho320 em Oriximiná:
Desde [19]76 que a gente preserva a reserva biológica.
* Já sabia o lugar, as medidas, o que tinha [...]?
- Já... e foi só evidenciada em [19]79, devido a vários outros
assuntos, por exemplo a mineração[MRN] estava se implantando
nessa época e havia a necessidade de se fazer esse shipload aqui no
rio, que estava dentro da área pretendida pela reserva biológica.
Então, naquela ocasião a economia, ela mandava na ecologia [...]. E
a coisa está mudando hoje em dia. Hoje em dia pra você ter uma
economia firme você tem que abrir mão para os projetos de meio
ambiente, senão o governo não aceita o seu projeto.
                                                                                                           
318
ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993. p. 173
319
FARIAS Jr. E. A. Unidades de Conservação, Mineração e concessão florestal: os interesses empresariais e a
instrução de territórios quilombolas no Trombetas. In. ALMEIDA, A. W. B. Et al. (org). Caderno de Debates
Nova Cartografia Social: Territórios Quilombolas e Conflitos. Manaus: UEA, 2010.
320
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
 
  293  

- Então naquela época era ao contrário, quem tinha dinheiro


mandava. Então a economia mandava na ecologia e a gente sempre
lutou, não contra economia, mas pra preservar o nosso espaço. E esse
caso, quando foi inaugurado o shipload aqui pra receber o minério,
após concluída a obra, o governo federal então criou a reserva
biológica.
* E isso tem alguma ligação... porque foi junto né, 1976 que inaugura
e 1979 cria...
- É já estava pronto e então o que que aconteceu? Teve que se fazer o
plano de manejo e essa área ficou como uma área litigiosa para o
resto da vida. É uma área de litígio.
* É uma área de litígio...
- A gente não quer que navio encoste aí, que jogue secreções no rio,
como água de porão[água de lastro]... a gente não quer que caia
bauxita na água, a gente não quer muita coisa...
* Mas isso é controlado, não é?
- É, muita coisa que acontece, embora não propositadamente, mas
acontece, porque...

João Nedel321, coordenador dos programas especiais do IBDF de 1980 a 1985,


responsável pela implementação da REBIO-RT, externa em uma entrevista realizada em seu
gabinete em Brasília que, não apenas não conhecia nenhuma relação direta entre a criação da
reserva e a MRN, se posicionando negativamente neste sentido, como, no início, o IBDF
gozava de ampla autonomia:
*Entendo. E você chegou a morar lá, a viver lá?
- Não. Nós apoiávamos o projeto da reserva biológica em todos os
aspectos. Desde a montagem das estruturas naquelas casas, que
foram... na realidade as casas em si, quando eu entrei elas já
existiam. Mas a questão da manutenção da reserva biológica, barcos,
combustível, pessoas... nós tínhamos uma equipe contratada, esse
programa POLAMAZÔNIA tinha uma tabela de pessoal. Nós
tínhamos 18 cursos extras e uma tabela de pessoal. Então, tanto o
chefe da unidade quanto uma equipe, que eu não sei de quantos eram
na época, talvez uns 6, eram pagos por esse programa. Então a
verdade é que foi provavelmente um momento de ouro daquela
unidade em termos de condições operacionais, né. Pelo menos
naquela época não se faltavam as coisas básicas para o
funcionamento. Era um recurso relativo à flexibilidade, era um
orçamento, digamos assim, adicional da instituição. Eram uns
orçamentos adicionais ao orçamento da instituição.
*Funcionava?
- Funcionava. Nós tínhamos autonomia pra contratar e pra demitir as
pessoas.

                                                                                                           
321
NEDEL, J. C. A implementação da Floresta Nacional Saracá-taquera e da Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 28 de fev. de 2013. Brasília, 2013.
  294  

Em direção similar Pádua322, em breve relato histórico sobre a REBIO-RT, aponta um


outro traço esclarecedor, que não obtive acesso em nenhum documento ou depoimento:
A criação da reserva biológica do Rio Trombetas vinha sendo
indicada pelo projeto RADAM Brasil, que já propunha o
estabelecimento de várias áreas protegidas para a Amazônia, e fora
aprovada pelo Polamazônia em 1975. Assim, a área passou a
funcionar como uma reserva biológica de fato, embora não o fosse de
direito ainda. Não faltavam recursos humanos ou financeiros para o
manejo da área que se pretendia que fosse também de direito uma
unidade de conservação. O IBDF insistia em sua criação legal, mas a
Casa Civil – sempre a Casa Civil – não aprovava o seu decreto de
criação. Os funcionários responsáveis do IBDF não entendiam bem o
porquê dessa atitude. Afinal dos seus 385.000 hectares [e 208.656,00
ha na proposta original do estudo], mais de 90% eram de terras
devolutas ou griladas que, excetuando a existência de quilombos – que
na época não eram reconhecidos – não havia um problema fundiário
sério demais e, como já foi dito, havia recursos e a infra-estrutura
mínima necessária, bem como equipamentos. O processo ia e vinha do
IBDF para a Casa Civil. Muitos ambientalistas começaram a nos
ajudar com pressão política, entre eles os mais importantes, o
Almirante Ibsen de Gusmão Câmara e, também, o Almirante José
Luiz Belart, quem conseguiu uma audiência nossa, os funcionários da
área do IBDF, com o então Presidente da República, João Figueiredo.
Hoje resulta evidente que o que se temia, naqueles tempos, era
comprometer o futuro da mineração de bauxita na região e, também,
afetar uma provável hidroelétrica. O fato é que a Casa Civil levantou
toda classe de obstáculos absurdos, incluindo ter o IBDF de responder
à pergunta: “qual é a relação da proposta reserva com Fordlândia?”.
Para isso tivemos de fazer uma resposta curta e grossa de próprio
punho: “Fordlândia fica na margem direita do rio Tapajós que é
afluente da margem direita do rio Amazonas; e a área da reserva
biológica do Rio Trombetas fica na margem esquerda do rio
Trombetas, afluente da margem esquerda do rio Amazonas, a não
menos de 12 horas de barco de Fordlândia”.

A história de criação da REBIO-RT, ao contrário dos que os estudos


supramencionados afirmam, nos aponta um conflito inicial com a mineração da bauxita, mas
que rapidamente foi “superado”. Dentro do que foi considerado mais ou menos importante, ou
que teve condições de se fazer assim, a tartaruga teve que esperar mais três anos para ter sua
reserva, até que a bauxita já estivesse pronta para ser embarcada para o Canadá, em 13 de
agosto de 1979 – contrastando aqui com a data de criação da REBIO, em 21 de setembro de
1979. Sem dúvida nesse jogo recria-se uma hierarquia dentro daquilo que amarra mais laços
ou que faz convergir mais interesses na composição da sócio-natureza, seres (humanos, vivos
                                                                                                           
322
PÁDUA, M. T. J. Vila Sônia e Repouso do Guerreiro. In. O ECO – 23 de maio de 2008. Disponível em:
http://www.oeco.org.br/maria-tereza-jorge-padua/16318-oeco_27634. Acesso em: 13 de abril de 2013. Grifei
  295  

ou não-vivos) que estão agenciados em redes mais ou menos extensas ou que traduzem mais
ou menos interesses associados, vão ganhando posições diferenciadas. A bauxita não apenas
demonstrou ter predileção sobre a tartaruga, como alinhou o interesse da conservação da
mesma ao interesse da mineração. A partir daí, pelo que se pode observar, a conservação e
sua consequente ordenação territorial foi bem aproveitada pela mineração, operando em seu
benefício e, de certa forma, sendo conformada por ela nos laços que se criaram. Como?
Sabemos apenas que a Reserva Biológica nunca operou enquanto tal. Mesmo que a mineração
seja o ente mais agressivo na transformação daquele ambiente ela fez alinhar forças diversas a
seu favor. Mas a contenda pode reacender, os laços são frágeis, e se demonstrar, por exemplo,
que a mineração é a causa forte do desaparecimento da P. expansa na região... dependendo de
como repercutir... nos antagonismos, a ordem temporariamente estável iria ganhar provável
movimento. Richard Vogt323, americano de origem germânica, radicado no México e hoje no
Brasil, o mais antigo pesquisador da REBIO diz, com seu acentuado sotaque:
O principal tabuleiro, o tabuleiro do Leonardo, sumiu [...]uma praia,
com mais de 2Km de extensão simplesmente sumiu [...] depois que
dragaram o Rio Trombetas para a passagem dos navios, ela, na seca
seguinte, não apareceu [...] Não sou engenheiro... mas uma praia que
sempre existiu, que séculos e séculos serviu como principal área de
desova da tartaruga... faz essa dragagem aí e ela some... no creo que
és coincidência.

A MRN sempre esteve e continua conflitando com o ideário preservacionista REBIO-


RT, mas suas articulações em nível macro e micropolítico, as medidas compensatórias que
suportam praticamente todas as ações de conservação, inclusive a própria governança
ambiental no local, que conforme visto, não sai barato, compram sua legitimidade
operacional. Com a mesma estratégia ela faz alinhar outros interesses díspares, como o dos
tradicionais, quando julga necessário e vice-versa, em um jogo se recria.
A Reserva Biológica do Rio Trombetas, uma das maiores do Brasil portanto, foi
criada pelo Decreto Federal 84.018, de 21 de setembro de 1979, em uma área inicialmente
mapeada de 385 mil ha, localizada na margem esquerda do rio Trombetas nas proximidades
do distrito de Porto Trombetas no município de Oriximiná. Atualmente, com a melhora nas
tecnologias de medição, identificou-se que a área demarcada na criação corresponde a
408.197,05 ha. Existem duas formas de acesso à reserva: via aérea – voos regulares operados
pela TRIP, saindo de Belém destino final em Porto Trombetas, com duração média de 2:30
horas de voo, ou de Manaus com 1:30 horas; e fluvial – por meio de barco, até a sede
                                                                                                           
323
VOGT, Richard C. O mais antigo pesquisador da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Entrevista concedida
à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara e Wilson Madeira Filho em 05 de outubro de 2012. Oriximiná, 2012.
  296  

administrativa do ICMBIO, em Porto Trombetas, (com duração média de 04:30 horas em


barco de linha, ou 1:30 hora de voadeira. Trata-se de uma unidade de conservação de proteção
integral, possuindo como objetivo principal
[...] a preservação integral da biota e demais atributos naturais
existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou
modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação
de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para
recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os
processos ecológicos naturais324.

O Código Florestal de 1965 e a Lei de Proteção à Fauna de 1967 eram os diplomas


legais que à época da criação regulamentavam as Reservas Biológicas. Atualmente a Lei 9985
de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, regulamenta estes
espaços territoriais com disposições similares às anteriores que atribuem o objetivo de
“proteção integral à biota e demais atributos naturais”, sem interferência humana, salvo
cientistas. Como a presença humana é cerceada, assim como qualquer utilização do local que
não seja para fins de pesquisa ou educação, essas áreas costumam ser palco de fortes
conflitos, não é um caso restrito à REBIO-RT. Ocupações e utilizações anteriores à criação de
uma reserva biológica submete ao arbítrio do Estado toda sorte de grupos humanos, tidos
como não autorizados. Considerando o que dispõe a Lei 9605/1998, Lei de Crimes
Ambientais, pode-se dizer que toda prática em desacordo com as atribuições da unidade
tornam-se criminalizáveis.
Por se tratar de uma REBIO, dentre as categoriais de unidades de conservação uma
das mais restritivas, a posse e domínio do território são públicos, obrigando-se a
desapropriação das áreas particulares incluídas em seus limites e a indenização ou
reassentamento das populações residentes em seu interior. Ou seja, ou o Estado remove as
pessoas que habitam a área, com prévia indenização, ou as tolera, até que isso seja
realizado, assegurando a condição de sua subsistência. A visitação pública é proibida,
exceto aquela com objetivo educacional, de acordo com seu regulamento. A pesquisa
científica depende de autorização do órgão responsável pela administração da unidade e está
sujeita às condições estabelecidas em regulamento, assim como as que o órgão impuser.
Mas, conforme visto, são áreas intimamente ligadas à pesquisa. Trata-se de uma área onde
não é permitido extrair seus recursos e a presença humana não é admitida sem autorização,

                                                                                                           
324
BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. DOU de 19/7/2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
  297  

assim como as práticas extrativistas, ocasionando a diversidade de conflitos socioambientais


tratados adiante.
O Plano de Manejo dá a dimensão da importância da REBIO-RT na lógica da
conservação que, situada no bioma amazônico, possui uma diversidade de ecossistemas
caracterizados como: Floresta Ombrófila de Terra Firme, Floresta Ombrófila Mista, Floresta
Inundável de Igapó, Floresta Inundável de Várzea, Formações Pioneiras, Formações
Campestres (Campinas de Areia Branca). Com fauna e flora riquíssima, a REBIO é
considerada de extrema importância para a flora, avifauna, biota aquática, herpetofauna; alta
e média importância para mamíferos; e não dispõe de estudos suficientes sobre
macroinvertebrados. No Plano de Manejo dentre as razões principais da criação da reserva
está a proteção dos quelônios da Amazônia e a preservação das áreas de quedas d’água,
essenciais à reprodução da ictiofauna325.
Uma questão bastante controversa sobre a história de criação da reserva diz respeito a
ocupação da área, se haviam ou não comunidades quilombolas (tradicionais) no que
corresponde hoje ao interior da REBIO. A literatura levantada que trata dos conflitos entre
essas comunidades com a criação da reserva, tendo como principal e mais citada, Castro &
Acevedo326, mas também Andrade327, Wanderley328, Faria Jr.329 e Funes330, todas reafirmam a
presença histórica dos “mocambeiros”, os “negros do rio”, hoje quilombolas, baseados em
fontes documentais, sobretudo nos relatos dos viajantes europeus e também nas narrativas dos
comunitários. As obras (em geral) apresentam uma visão profunda da história de constituição
dessas populações, a presença deles ali é irretorquível, mesmo que no interior da reserva, não
necessariamente enquanto comunidades, mas grupos de famílias. Contudo, essa literatura,
inclusive os primeiros artigos que publiquei na mesma linha, ainda na fase exploratória da
pesquisa, por serem empenhadas na defesa do direito dos quilombolas sobre os seus
territórios, não apenas criam uma visão parcial daquela realidade (privilegiam uma faceta),

                                                                                                           
325
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. Plano De
Manejo da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Brasília: STCP Engenharia de Projetos Ltda, 2004.
326
ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993.
327
ANDRADE, Lúcia M. M. de. Os Quilombos da Bacia do Trombetas: breve histórico. Revista de
Antropologia. Volume 38, nº 01, São Paulo, 1995, p.79-99.
328
WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. De escravos livres a castanheiros “presos”: A saga dos negros no
Vale do Trombetas. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais: Caxambu- MG –Brasil, de 29 de
setembro a 03 de outubro de 2008. Entre outros estudos.
329
FARIAS Jr. E. A. Unidades de Conservação, Mineração e concessão florestal: os interesses empresariais e a
instrução de territórios quilombolas no Trombetas. In. ALMEIDA, A. W. B. Et al. (org). Caderno de Debates
Nova Cartografia Social: Territórios Quilombolas e Conflitos. Manaus: UEA, 2010.
330
FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
  298  

mas ao alocar as relações conflituosas em dois polos: a mineração e o governo malvados e os


quilombolas oprimidos e coitados; a simplificação maniqueísta obnubila a real complexidade
dos conflitos e interações entre os diversos grupos de interesses que existem ali. Essa
complexidade inerente aos imbróglios daquela região não foi explorada nos estudos
supramencionados. Não menoscabando a importância desses estudos, tampouco retirando o
mérito em se dar visibilidade aos oprimidos e vítimas da violência histórica, bem como as
conquistas políticas que resultaram, mas que no câmbio do olhar sobre aquela realidade,
muitos elementos se inserem contrastando versões e ligando pontos seccionados nas
perspectivas dicotômicas.
Quando presenciei a Reunião da Castanha, organizada pelo ICMbio em dezembro de
2010, peguei o barco Ana Cândida em Oriximiná, junto com quilombolas e ribeirinhos que se
mudaram para a cidade. O próprio ICMBio disponibilizava o barco para o transporte dos
comunitários que não mais viviam nas comunidades ou na área da REBIO. No caminho,
converso com um senhor ribeirinho que afirma ter sempre coletado castanha, junto aos seus
familiares, nas terras onde hoje é a reserva. Ele se queixa de ser injustiçado pela política do
governo que favorece aos negros que moram perto dos castanhais, em sua visão, por marcar a
data do ingresso na REBIO muito próximo da queda dos ouriços, fazendo com que quem
mora mais próximo chegue antes e colete mais. No dia seguinte na reunião, integralmente
filmada por mim e por Thaís Azevedo, isso foi motivo de fortes discussões. Em entrevista na
comunidade Boa Nova, no Lago Sapucuá, Dona Maria Expedita, ribeirinha, me conta que ela
e sua família trabalhavam para os patrões no Lago do Erepecú, muito antes de criarem a
reserva. Antes dos quilombolas chegarem naquela região, o que já faz mais de 200 anos, a
área era habitada pelos índios que, atualmente, estão retornando, pleiteando áreas que se
sobrepõem aos territórios utilizados pelos quilombolas e também em área da REBIO,
reivindicando seus direitos originários e gerando novos conflitos. Os quilombolas, que são os
principais grupos humanos que vivem ali no Alto Trombetas, se hibridizaram com os índios
no passado e adquiriram parte de seus modos de vida, sendo extrativistas de diversos produtos
vegetais, mas principalmente da castanha, realizando pequenos roçados, caçando e pescando.
Na época da criação da REBIO trabalhavam também para os patrões – proprietários de parte
das terras em que se criou a unidade. O comércio de madeiras, da tartaruga e de pele de
felinos também fazia parte da economia daquelas populações, tanto quilombolas quanto
ribeirinhas, povos da floresta, que também viviam por lá, sendo essas práticas sempre
relacionadas a intermediários nas cidades próximas, não apenas Oriximiná. Apenas para
ilustrar, sempre foram muitos e distintos grupos de interesses que se sobrepunham naquele
  299  

território, além dos conservacionistas do governo, já instalados em 1965, que articulavam


como sobrepor a preservação da tartaruga e das castanheiras a todos esses grupos, com a
arbitrariedade que lhe é inerente. Por fim foi sobrepujado pelos interesses da mineração da
bauxita.
A questão fundiária da REBIO sempre foi complexa, mas no início de sua criação,
indubitavelmente, era menos. Apesar de ter sua área utilizada por distintos grupos de
interesse, existiam bem menos famílias morando, sob a espreita dos patrões, e a ordenação
territorial do aviamento, da patronagem e dos grileiros que predominava sobre aqueles
territórios não tinha força política frente aos interesses desenvolvimentistas do Governo
Federal. A construção político-jurídica dos remanescentes de quilombo ainda não existia,
estes eram vistos apenas como camponeses pobres, vítimas do aviamento, frente a um
governo que privilegiava a agroindústria331 e o desenvolvimento industrial, não receberam
consideração nenhuma. No relatório de regularização fundiária da REBIO332 é apontado que
de 1980 até 1983 foram indenizados 54 terrenos, com 24 proprietários, somando 63 mil ha.
Haviam 17 posseiros listados contrastando com 130 em 1990. Neste mesmo ano ainda
restavam 25 propriedades não indenizadas no interior da REBIO, correspondendo ainda hoje,
mais de vinte anos depois, à 25.000 ha de áreas não regularizadas. Em estudo realizado por
Castro, Acevedo e Sanches333, contratadas pelo IBAMA em 2000, são apontadas 07 (sete)
comunidades inseridas nos limites da unidade de conservação, sendo 05 (cinco) comunidades
remanescentes de quilombos: Erepecu, Juquirizinho ou Juquiri Mirim, Jamari, Juquiri ou
Juquiri Grande e Cachoeira da Porteira; e 02 (duas) de ribeirinhos (caboclos): Mussurá e
Ajudante. Os diversos levantamentos realizados em 1987, 1996, 2000 e 2006 acusam um
crescimento populacional nas maioria das comunidades, oscilando em algumas que chegaram
até a decrescer. A comunidade que mais cresceu neste período foi a de Ajudante, de
ribeirinhos, com cerca de 500 pessoas, com origem relacionada à procura de trabalho na
MRN.

                                                                                                           
331
MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985
332
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Inf. Nº02/2011, Porto Trombetas, 05 de janeiro de 2011
333
CASTRO, Edna; ACEVEDO, Rosa; SANCHES, Camilo T. Diagnóstico da Situação: Comunidades
Localizadas na REBIO Rio Trombetas. IBAMA/MMA/PROECOS-PNUD, novembro de 2000.
  300  

Ocupações 1987-2006

100
90
80 1987
70
60 1996
50
40 2000
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Gráfico 1: Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio Trombetas. MINISTÉRIO DO MEIO
AMBIENTE.
O decréscimo ou crescimento das comunidades é relacionado a diversos fatores:
migração entre comunidades, matrimônios, acesso à infraestrutura e a possibilidade de
desenvolvimento econômico. A REBIO-RT criada sobre áreas utilizadas por inúmeros grupos
humanos, dentre eles os quilombolas, com exceção do início de sua implementação, teve
canalizada suas atividades fiscalizatórias na proteção dos quelônios, no mais, nunca operou
efetivamente como uma Reserva Biológica, mesmo porque, conflitaria com a MRN. Os casos
de violências entre agentes governamentais e os tradicionais, que trato adiante, estão
relacionados principalmente à proteção da P. expansa e aos primeiros anos de sua
implementação. Uma hipótese factível para o desenvolvimento de algumas comunidades no
interior da reserva, que antes eram apenas poucas famílias dispersas nas áreas onde hoje são
as comunidades, é o acesso aos castanhais cujo controle sai das mãos dos patrões e passou
para o poder público. Para as comunidades (algo mais que algumas famílias) que surgem
depois de 1990, como Último Quilombo e Nova Esperança no Lago do Erepecú, é bastante
provável um crescimento devido à acessibilidade aos castanhais, apesar de que todas, com
exceção do Jamari, tem como principal atividade extrativista a castanha. Por exemplo a
comunidade Nova Esperança nem aparece em nenhum dos estudos, até 2010; as demais,
conforme o gráfico acima, crescem a partir de 1990, já com o IBAMA, em que se iniciam as
mudanças das posturas governamentais. Ou seja, cresceram ali em virtude do acesso aos
recursos tanto para alimentação quanto para a economia. Na entrevista com Carvalho334 é

                                                                                                           
334
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
  301  

possível aferir sob a perspectiva governamental a evolução da ocupação na reserva e as


mudanças de postura do próprio governo:
[...]Nesse período todos nós conseguimos voadeiras, equipamentos
que nos levavam a não deixar que ninguém invadisse e tomasse conta
da reserva biológica... apesar de que essa reserva biológica foi criada
numa área... porque nós precisávamos proteger os castanhais, só que
esses castanhais todos, eles tinham escritura pública, tinham
documentação de pessoas...
* Eles tinham donos?
- Tinham donos. Eram documentados.
* E quem eram os donos? Fazendeiros...
- Dentro da área da reserva biológica não existiam quilombolas.
* Mas existiam famílias e eles usavam a área?
- Exatamente. Você vê quando vai pra Tabuleiro, do lado direito do
rio cheio de casinhas. Eles moravam ali pra explorar a reserva, a
castanha.
* Nem no Erepecu ali não tinha?
- No Erepecu existiam os proprietários. E era esses proprietários, que
na época das castanhas contratavam os serviços de outras pessoas,
que eram quilombolas, ribeirinhos... vinha gente da cidade pra pegar
a castanha, entregar pra eles, receber o dinheiro e ir embora. Só que
eles não se preocupavam em trazer alimentação pra fornecer pra esse
pessoal, a não ser açúcar, café... mas alimentação mesmo básica,
carne não podia trazer de Oriximiná. Não existia luz elétrica, não
podia trazer nada senão ia estragar. Só se fosse carne em conserva. E
o que é que se fazia? Eles viviam da natureza. Se vinham 3 mil
pessoas pra tirar castanha no total, nos 365 mil hectares que tem a
reserva, eram 3 mil caças que morriam durante o dia, muito embora
essa caça podia ser até um peixe. Mas todas as pessoas precisavam se
alimentar e iam se alimentar de que? De caça ou de pesca. Que eram
feitas dentro da reserva biológica.
*O que era incompatível com a disposição legal dela...
Então o que que aconteceu? Nós tentamos proibir a retirada dessa
castanha. Mas o negócio estava de acordo com a lei porque eles eram
proprietários. Então a gente tinha que monitorar esses proprietários
pra que ele desse o nome, ou um cartãozinho das pessoas autorizadas
por eles que pudessem vir e retirar a castanha...
* Isso antes de criar a reserva ou já criada?
- Já criada.
* Em 80?
- Por aí... de 78 pra cá, 79 pra cá [...] aí é o seguinte, qual era a
preocupação do IBDF, como dentro de uma reserva biológica não
poder haver intervenção humana, não pode haver vida humana
próxima... existia os proprietários, que na época das castanhas eles
viviam lá... e nas áreas devolutas onde não existia a castanha, que é
essas ilhas da entrada, como eram áreas devolutas, já tinha gente
morando ali, umas oito famílias. Que era muito fácil se tirar essas
famílias de lá e dar um lugar mais próspero pra eles. Nessa ocasião
era fácil. Acontece é que nós estávamos preocupados em indenizar
  302  

logo os proprietários. Que era só gente de 7 mil hectares, 6 mil


hectares, 2 mil e tantos hectares, pra poder salvar os castanhais e o
governo ser o dono. A maioria dos castanhais foi indenizada. A área
do Acapu foi quase totalmente indenizada. E a área daqui faltou
indenizar, além do Erepecu faltou indenizar Caxias, Fartura, Belo
Horizonte, São Manuel, algumas propriedades... por que não foram
indenizadas? Porque o camarada não tinha documentação completa.
Não tinha pago o ITR mais, ou então morreu alguém que precisava
fazer inventário e isso foi se perdendo ao longo... até que de repente
não é mais de proprietário nenhum, passou a ser do governo federal a
área toda. E aí o governo federal não teve até hoje condições ou
força, sei lá...
* Vontade política...
- Vontade política de tirar todo mundo, pra que aquilo se torne
realmente uma reserva biológica com acesso só pra pesquisa
científica.
* E a questão só não foi dessa forma como ela embaralhou mais...
- Embaralhou mais porque os filhos dos caras que ficaram... assim...
cada propriedade tinha uma pessoa que fica tomando conta e então a
gente só indenizava o proprietário se ele indenizasse essa pessoa pra
sair de lá. Então a pessoa saia, a gente não indenizava o cara que
tomava conta da área. O que aconteceu... foi ficando... aí aconteceu
um acidente comigo em 85. A torre caiu em cima de mim, eu passei
quatro anos sem andar... aí quando voltei a área tava pulverizada de
invasores. Aí nós fomos pra querer tentar tirar, aí já havia apelações
de contrato, uso capeão e pessoas já morava a mais de ano e não sei
mais o que... aí vieram as leis que foram surgindo, agora inclusive um
quilombola que mora... não precisa morar na reserva, basta dizer que
já percorreu a área da reserva...
*É, que ele já utilizava ela...
- Que ele já tem direito de usar. Modificou tudo que eu acharia... no
meu ver eu acharia que deveria até mudar a categoria de reserva
biológica pra uma outra... unidade de preservação... porque reserva
biológica diz que não pode haver intervenção humana e existe
intervenção humana. Ainda existe moradores lá, já tem duas
comunidades na reserva, uma que foi criada acho que em [19]93
aqui... o último quilombo... por que? Porque a gente não deixava
entrar ninguém. Então eles botaram o nome de último quilombo. Foi
uma maneira de dizer que tinha um ainda, o último quilombo...
* Mas não tinha?
- Não foi na minha época, vieram depois... e agora abriram uma
outra lá na frente porque se houve indisposição deles com esse
pessoal daqui... foi aumentando, aumentando dentro da área da
reserva... de gente lá e invasores, que eles resolveram se dividir, pra
vir um camarada estudar lá daquela pra cá demandava muito tempo,
e eles resolveram fazer lá. Aí deram uma autorização, fizeram uma
escola lá, uma autorização pra fazer uma capelinha lá e hoje em dia
já estão construindo uma coisa...
* Duas comunidades...
- Já tem duas comunidades...
  303  

* Dentro do Erepecu...
- E se continuar isso vai aumentar muito mais. Não to sendo contra
porque a mentalidade do governo era uma, agora é outra... as coisas
mudam, a fila anda. Só que naquela época era como chamam...
ditadura militar... e o regime militar era danado, não era pra entrar,
não era pra entrar mesmo, não era pra ficar, não era pra ficar
mesmo. Eu levava muita culpa porque eu era o administrador...
* E fazia se cumprir a lei...
- Aqui eu fazia cumprir diretamente e bem feito. Não estou culpando
quem está agora não...
* É que as perspectivas políticas mudam, então assim, o importante
pra mim é entender o contexto daquela época.
- Você tá entendendo, né?
* Sim. Porque o contexto daquela época é importante.
- Então naquela época não existia grupos quilombolas dentro da
reserva.
* Eles só utilizavam aquela área?
- Só utilizavam. Por exemplo, dentro do Lago do Jacaré, era de um
cara de São Paulo aquela área. O cara de São Paulo veio, indenizou
todos os moradores do Jacaré, tirou todos e deu uma área pra eles no
Abuí.
* O que é a comunidade do Abuí agora?
- Isso... passamos os camaradas todos pro Abuí, que não era reserva
biológica e limpou a área... e a área tá limpa até hoje. Lago do
Jacaré, onde tem castanha também.

A criação da REBIO-RT, no contexto do regime militar, nos seus primeiros cinco anos
imprimiu uma política conservacionista mais ferrenha. Mas com o afastamento de seu gestor,
essa política foi flexibilizada, nos seus dizeres, coincidindo com o aumento das ocupações e
com a transição do regime político. Mas, diferente da percepção geral dos estudos, a criação
da reserva não impossibilitou as práticas tradicionais dos quilombolas, mas repercutiu em
apreensões, dificultou a comercialização dos produtos florestais e da fauna, principalmente os
mais visados, a tartaruga e a madeira. Segundo os próprios tradicionais, eles continuaram
ingressando na reserva, pela própria deficiência na fiscalização. O que a reserva extinguiu foi
a relação de patronagem, com a retirada dos proprietários, esse foi o grupo de interesse
efetivamente removido da área onde hoje é a REBIO-RT. Os “proprietários legais da terra”
iniciam suas titulações de posse a partir de 1894, sendo que a maioria dos títulos de terra ao
longo do Rio Trombetas datam de 1920-1940335, persistindo ali esse modelo legal de
propriedade da terra, que exclui parcela significativa da população brasileira, até 1979. A
REBIO, modelo igualmente excludente, mas sobre o controle do Estado e destinado à
pesquisa, não suprimiu o desenvolvimento comunitário, simplesmente surgiram novas
                                                                                                           
335
 ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do Trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993. p. 104-
107.  
  304  

comunidades e parte das que já existiam cresceram, conforme a documentação disponível e


segundo os próprios quilombolas. Essas comunidades que se formaram e as que já existiam e
se adensaram só tiveram como subsistir extraindo os recursos da reserva, principalmente a
castanha.
A castanha-do-Brasil, Bertholletia excelsa, produz sementes comestíveis, corresponde
a um dos principais produtos florestais não madeireiros e é a única semente comercializada
internacionalmente, cuja coleta é feita com exclusividade em áreas florestais naturais336. Sua
destinação principal é o mercado exterior. Ela é o principal actante que conecta os
quilombolas e demais castanheiros ao interior da REBIO-RT e essa com o mundo. Uma
amiga foi apresentar um trabalho em Washington/EUA e em uma ocasião comenta comigo:
“fui no supermercado lá e tinha castanha-do-pará e castanha-de-caju, quando vi o preço,
fiquei surpresa, era mais barato do que a aqui no Brasil, mesmo pagando em dólares,
como?”
As castanheiras, longevas como são, vivenciam as gerações de humanos passearem
sobre seus sub-bosques sombreados, coletando e amontoando seus frutos em montículos
entre-árvores, enquanto o sol, cinquenta ou sessenta metros acima, para sobre seus dosséis.
Isso se dá nos meses chuvosos, de fevereiro a maio os povos da floresta e dos rios migram
para os castanhais e vivem ali, no coração da floresta, nos barracos que constroem de madeira
e palha de palmeira. Esse trabalho nos castanhais do interior da reserva, onde quem passa se
deslumbra diante daqueles seres seculares, faz conectar aquelas sementes à uma extensa rede
de consumo nos países do ocidente.

                                                                                                           
336
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da
Amazônia brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f.
  305  

Foto 18: A castanheira. Leonardo. Alejandro Gomide Alcántara, 2012.

A intensa coleta que é realizada pelos castanheiros, cerca de 90% dos frutos, fez crer
no passado que, pela redução drástica das sementes e pela caça associada de seu principal
dispersor, a cutia (Drasyprocta spp.), os castanhais estariam condenados a não se renovarem e
sucumbirem no tempo dessas árvores. Daí a necessidade de se conservar para que os mesmos
pudessem se regenerar. Entretanto, estudos como os de Ricardo Scoles (que realizou pesquisa
na REBIO-RT no mesmo período em que eu estava desenvolvendo a minha – visitei dois de
“seus castanhais”) apontam existirem evidencias de que a castanha é uma espécie
  306  

antropogênica, ecologicamente associada aos milenares ameríndios pré-colombianos337. No


que tange à REBIO-RT conclui:
A inexistência de correlação entre intensidade de atividade extrativista
e regeneração natural das populações de B. excelsa na região do Rio
Trombetas descarta a adoção de ações restritivas relacionadas com a
coleta de castanha, tal como podia ser sugerido pelas conclusões de
Peres et al. (2003). Estas medidas, além de ineficientes desde o ponto
de vista ecológico, causaria grandes prejuízos socioeconômicos nas
comunidades extrativistas situadas no entorno dos castanhais, cuja
exploração da castanha é uma importante (frequentemente a principal)
fonte de renda. Na realidade, devido a sua dinâmica populacional, o
castanhal depende mais da sobrevivência de adultos reprodutivos que
das suas taxas de recrutamento, o que é típico de espécies de longa
vida (Silvertown et al., 1993). Além disso, B. excelsa pode ser
considerada uma planta de interação ecológica mutualística com a
espécie humana, cujas atividades não somente não a prejudica, mas
podem chegar a favorecer a regeneração desta espécie, especialmente
aquelas atividades que resultem em maiores aberturas de dossel
florestal338.

Conforme mencionado, a castanha não deixou de ser coletada, mas a extração foi
muito reprimida no começo da reserva e, formalmente, a prática tornou-se permanentemente
ilegal e seus praticantes, povos daquelas florestas, infratores. Para sair dessa situação,
gradativamente a partir da década de 1990, começaram a ser formulados acordos entre os
agentes governamentais e os comunitários das diferentes comunidades – quilombolas,
ribeirinhos e citadinos que eram antigos coletores. Esses acordos passaram a se chamar
“Acordos da Castanha” que se procedem mediante um cadastro prévio dos tradicionais
(somente os cadastrados ficam em situação legal) e posterior reunião para discutir seus
termos. A regra geral era não levar armas e nem animais. No ano em que assisti, o cadastro
foi na comunidade do Abuí e a reunião na base do Tabulerio, na ocasião, o ICMBio instituiu
outra regra não passível de discussão que era proibir levar crianças, pois estariam na época
dos estudos. Hoje o acordo é formalizado enquanto “Termo da Castanha”, assistido pela
Advocacia Geral da União – AGU e endossado pelo Ministério Público Federal. José Risonei
e André Macedo negociavam a possibilidade do extrativismo de outros produtos florestais
comporem o Termo – copaíba, balata, breu, açaí, bacaba, jutaicica, cipó titica etc. Dizem que
são produtos extraídos, mas sem um controle maior, assim, a extensão do acordo beneficiaria

                                                                                                           
337
SCOLES, R. Do Rio Madeira ao Rio Trombetas: novas evidências ecológicas e históricas da origem
antrópica dos castanhais amazônicos. In. Novos Cadernos NAEA. V. 14, n. 2, p. 265-282, dezembro de 2011
338
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da
Amazônia brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f. p.
158
  307  

tanto o governo quanto os tradicionais. Um tradicional em entrevista externou a queixa com


relação às crianças que, supostamente, ele não teria com quem deixar. Por outro lado, vários,
com relação a arma, diziam: “vamos ter que ficar comendo jabuti e peixe, eles num deixa levá
galinha, levá cachorro, como?” “Vai come só farinha?” Um outro me disse: “eles qué é que
a onça coma a gente”.
Antes da REBIO-RT e durante um período após a criação da mesma, uma das
atividades comerciais desenvolvidas por alguns tradicionais e por caçadores da cidade era a
venda de peles de felinos. Quem exercia essa atividade era chamado de “gateiro”. Um
comunitário, contratado na época como agente da reserva, havia trabalhado com essa caça,
assim como seu pai, me relatando como funcionava. Dizia que era construído uma espécie de
alçapão, com troncos fortes dispostos em um buraco no chão, com uma parte funcionando
como uma tampa. Falava que o “gato anda sempre com fome... e gosta de carne fresca”, então
se apanha uma caça e se retira um pedaço para colocar na armadilha, espalha um pouco de
sangue e aguarda “que o gato sempre vem”. Reclamava que essa prática desperdiçava muita
caça, as vezes se pegava uma anta, só aproveitava um pequeno pedaço e jogava o resto fora.
Para não danificar a pele do felino o mesmo era “laçado” (enforcado), dizia que alguns
gateiros sabiam como dar um tiro perfeito num ponto da cabeça que ele não sabia onde era.
Os felinos mais caçados eram: a onça pintada e a preta (Panthera onca), a onça vermelha
(suçuarana – Puma concolor), o gato-maracajá (Leopardus wiedii) e a jaguatirica (Leopardus
pardalis). A onça vermelha era, segundo ele, a que tinha menos valor a pele. Pergunto por que
essa prática se acabou e obtenho como resposta que “pararam de comprar as peles e ninguém
mais caçou os gatos”. Essa é a mesma questão das tartarugas, mas só existe política protetiva
em uma das pontas, a da reserva. Por quê? Não obtive resposta, mas sobre as peles,
Carvalho339 comenta:
* E ao longo dessa história haviam muitas apreensões?
- Sim. Só que naquela época a apreensão aqui... não existia juiz, não
existia promotor... era difícil. Então a pressão que existia era a
seguinte: nem auto de apreensão praticamente existia. Você ia lá com
a sua moral de agente, prendia, soltava os animaizinhos, doava os
animais mortos pras entidade filantrópicas, as vezes você resgatava,
guardava... tinha uma casa de guarda lá que era lotada de pirarucu e
tal... nós conseguimos acabar com o tráfico de pele de onça e o de
couro de jacaré, carne de jacaré... isso nós conseguimos erradicar.
* Então, esse é um caso interessante, o tráfico da pele de onça, da
carne de jacaré... houve uma política de fora também pra controlar o
comércio, né?
                                                                                                           
339
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
  308  

- Não, é o seguinte, exatamente. A gente procurou saber como é que


eles comercializavam e nós fazíamos batidas aqui e lá na cidade. A
gente achava pele de onça debaixo do zinco da tolda da embarcação.
Então quando a gente recebia a denúncia, a gente soltava os excessos
[arbitrariedade] por aí, eles diziam: no barco tal, embaixo do lugar
tal tem, tem, tem... aí você ia lá e achava e prendia o barco e
mandava pra Santarém pra entregar pra polícia federal. Então a
gente começou a não ter medo. Uma vez nós prendemos um camarada
com onze couros de onça.
* Onze couros de onça?
- Onze couros de onça nós prendemos.
* Muita coisa né?
- É e já tinha passado muito tempo. E o camarada pra quem ele ia
vender, propôs de vir me matar a noite e a esposa dele ouviu ele
fazendo a proposta. Daí veio o marido e disse não, não é assim, ele
não prendeu as [peles de] onças? Deu um prejuízo danado pra você,
três meses no máximo pra fazer outras onças... O cara disse pra ele:
“o cara me prende agora... já passei mais de cem... não, chama o rei
lá que eu mando buscar a diferença. Pô, tem que acabar com esse
cara, que esse cara tá atrapalhando”. Então a esposa dele ouviu e foi
contar pra minha mulher.
* Queriam armar uma tocaia pra você...
- Queriam armar uma tocaia pra mim, em frente de casa, e eu lá em
casa a noite. Então eu atei minha rede na varanda, no pátio da minha
casa, botei meu rifle embaixo, que é do governo e fiquei só esperando.
Eu não ia morrer dormindo. O carro que parasse lá e abrisse a porta,
eu queimava. Não tinha isso. Então todo mundo ficou assim: esse
cara é macho. Esse cara não vai se entregar assim não. A gente mata
o cara, mas não assim, não vai dar.
- É não vai ser moleza, porque se bate o pé e o cara corre... aqui ó!
Só sei que nós conseguimos acabar com o contrabando.
* E quem é que caçava onça? Mais o pessoal da cidade que subia
ou...
- Mais o pessoal da cidade ou o pessoal daqui que caçava e vendia
pro pessoal da cidade, que vinha buscar no regatão... [sempre tinha]
tudo que é tipo de anzol que pescasse quelônio, anzol n.7, n.8, n.9,
n.10, linha 12 que é pra botar espinhel, aquelas armas longas de
pêndulo de 100 anzóis que botando morriam todas... que pegam
bastante quelônio... tudo era apreendido. O camarada que quisesse
fazer regatão nessa área pra poder servir a população que morava do
lado daqui, era proibido regatão parar do lado da reserva. Só parava
na entrada aqui. E nos fiscalizávamos o terreno do lado da casa
aqui... a gente ia revistar tudo antes de fazer apreensão. Então a
nossa vida foi essa. Hoje em dia não pode mais... precisa de uma
autorização de um oficial pra poder entrar...

No momento desta pesquisa os representantes do governo entendiam, não apenas pela


preservação dos recursos, mas dos próprios tradicionais, que a área deveria se mantida
enquanto unidade de conservação, porém aventando a necessidade de ser recategorizada como
  309  

categoria de uso sustentável para resolver os irresolúveis conflitos existentes. Mencionam a


necessidade de parceria com SPU, INCRA e ITERPA, questionando que praticamente não há
diálogo entre as instituições. Enquanto tratar-se de Reserva Biológica apontaram em relatório,
como principais desafios, a demanda por titulação de terras quilombolas que superariam 2/3
da reserva, inviabilizando-a enquanto tal, e a recém descida dos índios340, conflitando tanto
com os quilombolas quanto com a reserva. Apontam:

                                                                                                           
340
Com relação aos índios, em entrevista, um quilombola da Cachoeira Porteira me narra sua percepção do
conflito:
- Tem algumas situações que diferenciam, né. E que as vezes a gente não quer assim, aceitar do jeito que é.
Então vamos tentar criar dois territórios e vamos ser vizinhos. Você precisa de mim eu vou servir. E se eu
precisar dele, ele vai servir. Por que eu digo isso? Porque durante treze anos, mexendo com associação eu já fiz
muitos atendimentos pra indígenas. Já teve vezes de, não fugindo um pouco do assunto, mas assim... teve vezes
de chegar aí naquele carro de mão empurrando, né, desmaiado aí. Aí eu falei: o que é? Ah é acidente. Aí eu
fiquei olhando... O que aconteceu? A mulher meu, eu tava partindo lenha, o machado pegou e cortou essa parte
aqui que virou pra cá, sabe. Então eu disse: poxa vou atender. Peguei, coloquei ele aí, peguei um soro, apliquei
um soro nela, lavei aquilo tudo. É... fiz uma sutura. Ela ficou no soro até umas 3 horas da madrugada ou mais,
mas não conseguia. Quando ela voltou ao desmaio não tava se aguentando. Ficava segurando nas paredes pra
não cair. Eu deixei ela deitada, coloquei uma rede, ela ficou e se recuperou. Nem foi mais pra Oriximiná, aqui
mesmo ela ficou boa, foi embora pra aldeia. É... aconteceu outros dois casos iguais também. Dois senhores que
vinham descendo com velocidade num bote, o pau pegou aqui também no bote caiu pra trás, partiu o supercílio,
essa parte aqui. Fiz tratamento de novo. Outra senhora chegou aqui com dores fortes pra ter bebe, né, então eu
disse: oh eu vou te levar pra Oriximiná, no meio da viagem não aguentou, tive que ser parteiro. Cheguei em
Oriximiná, liguei pro andar de saúde e disseram: cadê? Eu disse: já nasceu, tá aqui na lancha, vem me dá
socorro que eu nem fiz corte de cordão umbilical nada, porque não tinha nada. Então num momento chegou lá
ambulância lá e prestou socorro. E outros que chegam lá do quilômetro da 220, daqueles lugares pra lá... Eu
mando pegar na caminhonete: vai lá que é malária. Três, quatro a gente vem, faz coleta de sangue, minha
esposa examina, dá o resultado, dá medicação. Eu digo: olha vou fazer sempre com relação à saúde eu vou
atender. Independente de disputa de território, independente se é uma etnia diferente da minha, mas também é
povo que vive em contato com a floresta, eu vou atender sempre. Agora isso é eu enquanto presidente, né. Eu
não vou fazer meu governo paralelo a um outro, negativo. Então eu pedi pra FUNAI pra gente ter uma reunião,
pra Secretaria de Meio Ambiente pra tentar resolver pro ICM-bio e dividir esses territórios, fazer os estudos
antropológicos e ver que a gente vive do extrativismo. Principalmente a castanha é o nosso foco muito forte e
eles querem áreas também maiores. Eles tem uma área muito grande, né. Mas aí vendo um pouco a legislação,
praticamente nenhuma lei sobrepõe a lei indígena, então é muito difícil você ter direitos constitucionais. Aí vem
uma lei maior que o teu direito e você fica pensando: poxa, de que forma a minha lei existe e eu não poder ser
beneficiado por ela? Então eu já tive várias conversas com líderes da FUNAI, como ICM-bio, com a Secretaria
de Meio Ambiente e eles falaram que dia 7 desse que passou ia ter uma reunião em Brasília, né, com o
Ministério Público Federal e todas as instituições do governo, né, sobre essas questões fundiárias, INCRA,
ITERPA, é... ACEMAS, FUNAI, Palmares, então... Ontem o pessoal lá de Piracicaba ligaram pra mim lá de São
Paulo: oh Ivanildo, o pessoal da EMAFLORA, né, olha a gente ia pra lá pra trabalhar com algumas práticas lá
pra Cachoeira Porteira que a gente pensa em criar um polo nosso lá com vocês, mas por conta de questão
fundiária a ACEMA suspendeu a nossa ida até lá. Nós já estamos aqui em Belém mas a gente não pode ir que
teve uma reunião em Brasília no dia 7 e ela tem que tomar uma providência imediatamente pra resolver essas
questões fundiárias lá entre quilombolas e indígenas. E como é FLOTA também, é governo do estado, tem que
resolver essa situação. Então por conta disso a gente vai tá parado aqui até se resolva essa situação, pra gente
poder tá indo lá com vocês pra trabalhar com cultura sustentável e...
*São dois pontos que tencionam muito, né, de um lado a reserva biológica, de outro a FLOTA. De um lado, pro
governo federal, vocês foram reconhecidos quilombolas, teve reconhecimento, isso já agora né...
- Isso, reconheceu a gente.
*Mas agora, pelo lado da FLOTA incialmente o laudo não caracterizou a...
- Aí, justo, boa pergunta. Aí assim, da mesma forma que foi criado a reserva biológica e a gente não foi levado
em consideração, ao que muitos colocaram pra gente, que era regime militar naquela época. Então agora nós
criamos em 2004, 2003 me parece, a associação quilombola de Cachoeira Porteira. E em 2006 criada a FLOTA
também não fomos levados em consideração. Já tramitava o nosso pedido de reconhecimento ITERPA.
  310  

A grande pressão por titulação de territórios quilombolas sobrepondo


as unidades de conservação representam um grande desafio. Os
territórios requeridos cobrem cerca de 2/3 da REBIO. Informativos
técnicos produzidos por analistas ambientais sobre territórios criados
no entorno da UC concluíram haver uma crescente pressão sobre a
biodiversidade nessas áreas, em função da dificuldade que os próprios
quilombolas encontram de gerir áreas tão grandes.
Cabe ressaltar ainda que a Terra Indígena Nhamundá-Mapuera, que
não está ainda devidamente demarcada e regularizada, poderá ter seus
limites ampliados, podendo inclusive, abranger a zona de
amortecimento da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Este interesse
dos índios na expansão da Terra Indígena Nhamundá - Mapuera é
requisitado por considerarem que este local já era ocupado pelos
próprios (por grupos indígenas ou mesmo por famílias isoladas); outra
justificativa é de que as dimensões atuais não atendem às necessidades
dos índios, isto pelo motivo da área demarcada ter sido limitada por
dois grandes projetos, a Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira, cuja
bacia de inundação se estenderia até o Território Indígena e a
Perimetral Norte (BR-210). Caso a expansão ocorra de fato, a
proximidade da Terra Indígena junto à RBRT poderá trazer índios
para dentro da Reserva Biológica em busca de alimento através da
caça, e até mesmo o extrativismo dos recursos locais, atividades da
qual irão interferir na preservação permanente do local.341

Mapa 9: Mapa dos territórios quilombolas incidentes sobre as UCs. MMA/ICMBio, 2011.

                                                                                                           
341
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE/ICMBio. Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Inf. Nº02/2011, Porto Trombetas, 05 de janeiro de 2011
  311  

4.1 O mosaico das violências

Nilo Colé, brasileiro, casado, lavrador, 50 anos, residente na


localidade da Tapagem, Rio Trombetas, Oriximiná, dizendo que tem
15 filhos, que no dia 22 de novembro, que segundo sua mulher parou
uma lancha do IBDF, e dos representantes que chegaram lá só
conhecia o Armando do IBDF, também conhecido por Mosquito, e
outros disseram que eram da [Polícia] Federal e foram logo
invadindo a casa e revistando tudo, abrindo maletas e levaram uma
espingarda calibre 24 de sua mulher, levaram, ainda, uma espingarda
calibre 16 de seu filho João. O declarante ia subindo o rio,
mariscando, quando chegou a lancha do IBDF, o Rui e o Armando,
do IBDF, e pegaram a espingarda do declarante, calibre 20, e a
jogaram na água e foram embora.
Tapagem, 07 de dezembro de 1985.
Pastoral de Direitos Humanos de Oriximiná, 1985

A criação da REBIO-RT representou uma série de conflitos entre os grupos de


interesses, mas a maior repercussão se deu com os povos tradicionais, sobretudo com os
quilombolas que eram os que predominavam naquelas áreas, por mais de dois séculos,
conforme os estudos históricos realizados342. A inserção de seus interesses na conjuntura
política que se assentou nesses territórios, se deu por sua própria organização, orientados
pelos Padres Verbitas da Igreja Católica, atingindo repercussão maior a partir de
articulações políticas externas, nacionais e internacionais, como o movimento negro
nacional, o movimento dos atingidos por barragem e sobretudo o com apoio da Comissão
Pró-Índio de são Paulo - CPISP, que inicia uma campanha internacional. Conforme
demonstrado, a chegada da REBIO-RT vai cindir com as relações sociais estabelecidas e
estáveis da patronagem, chegando conjuntamente com todo o modelo geopolítico que
elegera aquela região enquanto polo de desenvolvimento. Apesar das relações anteriores
serem espoliadoras do ponto de vista moral – a patronagem, os regatões e o aviamento –
essas práticas ali tinham como foco os castanhais, os outros recursos e a própria circulação
eram livres, conforme expõe Carlos Printes343, presidente da ARQMO:
                                                                                                           
342
Entre outros estudos: FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: História e Memória dos
Mocambos do Baixo Amazonas”, Tese de doutorado Departamento de História da Universidade de São Paulo,
São Paulo, 1995.; ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea,
1993.; ANDRADE, Lúcia M. M. de. Os Quilombos da Bacia do Trombetas: breve histórico. Revista de
Antropologia. Volume 38, nº 01, São Paulo, 1995.; WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. De escravos livres a
castanheiros “presos”: A saga dos negros no Vale do Trombetas. XVI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais: Caxambu- MG –Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008. Entre outros estudos;
FARIAS Jr. E. A. Unidades de Conservação, Mineração e concessão florestal: os interesses empresariais e a
instrução de territórios quilombolas no Trombetas. In. ALMEIDA, A. W. B. Et al.
343
PRINT, Carlos. Presidente da ARQMO. Oriximiná, 2011. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G.
Alcántara em 13 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
  312  

Com a entrada da Rebio, então o que a gente viu é que muitas


famílias tinha o costume de andar o rio todo, as vezes, andava
liberto... encostava daqui, vivia liberto, tirava um pau ali, encostava
dali tirava outro, pescava, saltava, caçava, ia tirá castanha, tira açaí
enfim era tudo... aí com a entrada da Rebio, aí não tiveram mais essa
liberdade pra fazer tudo isso... ai é como as famílias sentiram muito
devido isso... que aí não ficaram mais liberto... eu tô falando o meio
aí de boa vista até lá no Abuí, até Cachoeira Porteira... eu lembro que
antes da criação dela a gente saia e andava... e quando cansava um
pouco de andá, às vezes parava numa bêra encostava e armava a rede
e ficava... hoje em certos lugares não pode mais fazer isso que já é
Rebio e você tá assim encostado eles passam e vê as pessoas as vezes
já vão lá pra ver o que é o que tá acontecendo.. aí o povo não tem
mais essa liberdade... em termos da coleta da castanha é... aí na parte
do Erepucu é... existia os patrões eu acho que é quase... meio
comparado... quase... porque antes os patrões as pontas de castanhal
sempre tinham os donos, tinhas os donos e eles sempre levava no
tempo da coleta da castanha... aqueles patrões já levavam os
trabalhadores dele pra trabalha ali... aquele já levava os dele e assim
por diante eles faziam e levavam daqui de Oriximiná, muitos iam
daqui de Oriximiná pra trabalha pra lá e lá também eles pegavam
alguns comunitários das comunidades pra trabalha pra eles... mas
não podia vender a caxa de castanha pra ninguém tinha que ser
diretamente pra eles... e as história que a gente sabe é que as vezes a
pessoa ia começar a trabalhá em janeiro e só ia acertar a conta no
mês de maio e dava o preço mais o menos que queriam... então a
gente vê que de qualquer forma o povo era sempre humilhado na
questão da coleta da castanha... e muitos que às vezes trabalhava pra
um fulano de tal se vendesse a castanha pra outro, muitos deles até às
vezes eram preso... tinham quilombolas que veio de lá e que ficava
preso aqui na cidade porque vendeu a castanha pra outro... os
patrões que notificavam ele pra vir pra cidade e ele vinha e acabavam
prendendo ele porque ele tinha vendido a castanha da colocação
deles, que eles chamavam, “da minha colocação” e vendeu castanha
pra outro e não podia fazê isso... então acontecia isso... e aí de
qualquer forma o povo era humilhado...
Com a Rebio às vezes o povo ia lá tirá a castanha e eles não
deixavam...

Para entender os conflitos basta saber sobre o modo de vida desses tradicionais, e sua
dependência com a integridade da floresta e no acesso aos seus recursos. O que não tem a ver
com sustentabilidade apriorística de seus modos de vida ou uma valoração moral diferenciada
sobre os seres ali, seus valores são cristãos. Apesar de poucos viverem exatamente na área da
REBIO-RT – a maior parte morava do outro lado do Rio Trombetas, na área onde hoje é a
FLONA-ST – as comunidades quilombolas que habitam toda aquela região do Trombetas,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
 
  313  

mantém fortes laços com o território e dependem do extrativismo para sua subsistência.
Segundo os próprios moradores é na área da Reserva que se encontram os melhores
castanhais, principalmente no Lago Erepecu, em seus rios e lagos há gerações se extraem
peixes e quelônios para o comércio e alimentação, a floresta sempre proporcionou com fartura
tudo que necessitavam para sobreviver e ainda o faz. O processo de criação da Reserva teve
como objetivo a preservação integral, o que repercutiu nos seus modos de vida, cultura e
tradição. O legado de sua história, sua íntima relação com as águas do rio e com as matas que
os cercam, assim como seus meios de vida, enfim os próprios tradicionais foram relegados à
invisibilidade. Todo o empreendedorismo governamental experimentado na Amazônia a partir
da década de 1960 entendia que os extrativistas deveriam ser incorporados a uma lógica mais
produtiva e acabar com o aviamento. A política de cuidados e vigia da região da Reserva, sob
a atmosfera da ditadura militar na época, repercutia na apreensão de armas, instrumentos e
produtos coletados. Percebe-se um forte ressentimento ainda por alguns (ou algumas
comunidades) com relação aos “órgãos ambientais” em suas falas, que ainda o vê como
coator e expropriador dos seus meios de vida.

Foto 19: Família do lago do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.

Suas práticas de subsistência de uma forma geral se estabelecem pelo extrativismo de


produtos da floresta como a castanha, o açaí, a copaíba, os cipós, o breu, o ubim, as resinas, as
madeiras, as palmeiras etc. Desenvolvem agricultura de subsistência através de roçados
pequenos e médios, principalmente com plantações de mandioca, mas também abóbora,
feijão, frutas entre outros alimentos (bem pouco, pois eles perderam muito o contato com
diversas sementes). Algumas comunidades mantêm pequenas criações de aves e mamíferos de
  314  

pequeno porte, e também gado, mas que é mais raro e controlado. A prática da pesca é
fundamental na alimentação, sendo peixes, quelônios e jacarés (que os quilombolas não
gostam muito). A dieta proteica é complementada com a caça de aves, répteis e mamíferos
como a anta, o jabuti, a queixada, a cotia, o caititu, patos, mutuns entre outros animais. A
alimentação varia conforme a estação, tanto para captura da caça, quanto para a pesca, a
farinha é a base do carboidrato, mas também compram arroz, quase não se alimentam de
verduras e legumes.
Técnicas de Pesca Descrição
Arpão Vara de madeira com uma ponta de metal e outra com uma corda com boia.
Normalmente utilizado nos lagos e em corredeiras em períodos que os pescadores
consideram mais favoráveis. Depois de lançado o arpão, o organismo fica preso
pela corda para ser recolhido.

Caniço Pequena vara de madeira com linha, anzol e isca de minhocas, gafanhotos ou
pequenos frutos. Utilizado na mão amarrado na vara de madeira.

Coleta com a mão Coleta de quelônios e/ou ovos em praias ou locais rasos.

Espinhel Linha longa da qual pendem linhas curtas com anzóis na extremidade. A linha é
amarrada às margens ficando os anzóis iscados pendentes ao centro.

Zagaia Utiliza-se lanterna para focalizar os peixes à noite. Em seguida os peixes são
capturados com a zagaia, que consiste em uma vara com um tridente na ponta.

Linha de mão Pesca de linha e anzol, utilizada na mão ou presa ao ponto fixo na margem e alguns
utilizam para pescar em locais mais profundos.

Malhadeira Rede de espera para captura de peixes e/ou quelônios. São fixas e utilizadas em
ambientes sem muita correnteza com rios e lagos.

Pindá Vara de madeira com gancho de ferro na ponta, utilizado para captura de quelônios.

Puçá Rede em forma de funil e malha fina. É utilizado na seca, especialmente nas
margens e em áreas com pedras.

Tarrafa Rede cônica de malha pequena e borda chumbada. É lançada à água, abrindo em
forma circular, no canal do rio ou em lagos, em locais rasos e com pouca vegetação.
Normalmente utilizada em regiões de lagos.

Tabela 05: Descrição das técnicas de pesca, utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio Trombetas.
Fonte: Luciana S. Melo, 2012.

 
Técnica de caça Descrição
Espera com espingarda O caçador aguarda em árvores frutíferas ou outros hábitats utilizados pelos
animais, atando bem alto a rede ou construindo um moitá (espécie de cabana
armada em cima de uma árvore). Outro modo é atrair o animal a um local
específico.

Procura com cachorro Procura da caça com auxílio de cachorros.


  315  

Procura com espingarda Procura por animais na mata a pé ou com canoas a remo, margeando igarapés
e outros ambientes.

Paulada Abate de animais acuados em buracos de paus e locas; normalmente animais


de pequeno porte como paca, cutia e caititu.

Tabela 6: Descrição das técnicas de caça utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio Trombetas. Fonte:
Luciana S. Melo, 2012.

Suas casas são muito simples, muitas vezes pequenas palafitas construídas com
madeira da floresta. São consideradas moradias precárias pela ausência de saneamento,
energia elétrica, água encanada entre outras coisas. Em várias comunidades há uma
complementação da renda através de remuneração por serviços, emprego/salário,
aposentadoria, programas assistenciais do governo e assistência da prefeitura de Oriximiná
que doa combustível para os geradores e embarcações (não faz para todas e com quantias
diferentes para cada uma delas). Quase todas as comunidades possuem escolas e todas
possuem centros comunitários para suas festas e reuniões.
Durante os anos que se seguiram à criação da reserva, as entidades ambientais,
sobretudo o IBDF, exerceram a “violência física e simbólica” sobre as comunidades no
cumprimento de suas obrigações fiscais. Tais práticas são atribuídas também por Castro e
Acevedo aos funcionários da mineradora encarregados de fazer a “proteção do ambiente” –
não foram confirmados na entrevista com a ARQMO e com os tradicionais. A apreensão de
material de caça e pesca, além de produtos coletados é relatado como uma constante, mas
não apenas, existem relatos envolvendo conflitos mais graves, inclusive com homicídios e
acidentes que resultaram em morte344.
Não obtive documentos históricos sobre as violências por parte do ICMBio, mas na
Paróquia de Santo Antônio consegui um abaixo assinado, com data provável entre 1981-
1984, e uma coleta de declarações realizados pela Pastoral de Direitos Humanos de
Oriximiná, datada de 1985. O primeiro documento é direcionado ao Sr. Antônio Edilson
Silva Castro, Delegado Regional do IBDF entre as datas mencionadas, comunicando a
apreensão de castanha que estava sendo realizada pelo IBDF. O documento afirma que os
“lavradores/castanheiros [...] não são ladrões, são trabalhadores honestos que enfrentam
dificuldades [...] sem condições nenhuma de sobrevivência”. Solicita que, pela dependência
econômica da população relacionada à castanha, que fosse liberada a extração da mesma na
REBIO-RT e que fossem devolvida as castanhas e os pertences confiscados, ou que se

                                                                                                           
344
Tais informações constam do Projeto Povos do Rio (2006), do Plano de Manejo da REBIO-RT (2003), no
Plano de Manejo da FLONA – Saracá Taquera (2001), em Acevedo & Castro (1993), além de ter sido afirmado
em entrevistas coletivas realizadas em 2010 no Abuí, Mãe Cué, Tapagem, Erepecu entre outras comunidades.
  316  

indenizassem as vítimas por isso. O segundo documento apresenta as declarações dos


moradores da Tapagem e foram prestadas perante Carlos Rebêlo Jr., advogado, e Evaldo
Pereira de Sousa, coordenador da Pastoral de Direitos Humanos. Todos os relatos referiam-
se a arbitrariedades com invasão de residência e apreensão de armas (de suma importância
para quem vive ali e depende de caçar o alimento).
As entrevistas coletadas nas comunidades revelam que na época de implantação da
REBIO-RT a atividade policialesca era constante, violências mais graves eram mais casuais
e o controle sobre as comunidades variava bastante, sendo mais rigoroso naquelas que
tinham tradição na pesca da tartaruga. Seguem os relatos selecionados:
Cachoeira Porteira
E com a criação das reservas... deixando um pouco lá um tempo mais
do passado e vindo mais pra realidade do presente... com a criação
dessas unidades de conservação, né, a gente de alguma forma, o que
o governo alega que ele fez isso por conta do próprio homem branco,
que tinha interesse em devastar tamanhas extensões pra fazer criação
de gado e um outro tipo de agriculturas, assim em nível empresarial,
né. Então, mas mesmo assim, eu achei de uma forma bruscamente,
devido a não levar em consideração o ser humano que tava dentro
daquelas floresta, naquela localidade e digamos, foi, mapeou lá... cria
isso aqui como uma unidade de conservação e pronto. E aí a gente se
sentiu como fantasmas, porque tava lá dentro e não foi contemplado.
Então, em 79 que foi criado essa REBIO, né, a gente ficou lá como se
fosse animais e muitos saíram na porrada mesmo pra desocupar esses
territórios, essas áreas né, essa unidade de conservação que não sei
se foi por conta da força militar, do exército, do IBDF, não sei... mas
aí houve até morte dos nossos, pra sair na marra, né...
*Morte de conflitos mesmo?
- É... porque a gente teve resistência pra não querer sair, aí a polícia
veio passou o bote inclusive por cima de pessoas e morreu afogado e
então foi situações que...
*Isso na comunidade de Cachoeira Porteira?
- Ali embaixo na Tapagem, que a gente usava toda essa área de...
então a gente se sentiu assim... sendo que Tapagem e Cachoeira
Porteira é tudo um grau de parentesco só, né. Praticamente é uma
família, né. Minha vó nasceu lá pro alto da Cachoeira, mas minha
mãe nasceu lá na Tapagem, aí veio pra cá. Então quer dizer, era
aquela vivência que a gente tinha de ficar meses na casa de parente,
depois ia visitar, tudo de canoa demorava muito, né, pra você se
deslocar de um lugar pra outro. Então, essas unidades foram criadas
e gente ficou lá dentro, uns que sofreram resistência conseguiram
ficar pessoalmente nas áreas mais distantes e a gente perdeu aquele
direito, vive hoje, nem monitorado, mas é como se fosse. Só vai poder
fazer uma coisa, digamos, um roçado, né, você vai fazer um roçado,
um hectare ou dois só por ano, e é isso e só mesmo. Então, você tem
que fazer só aquele tamanho e... também a gente vê assim, você que
  317  

vive de caça e pesca é... às vezes você pega uma caça e às vezes você
desce com uma caça, às vezes você tem filho que estudô em
Oriximiná, aí tem algumas restrições muito rígidas que você não
pode, você tem que pegar, comer aqui e muitos pensam que a gente
vai levar de má fé pra comercializar, então, eu pessoalmente já teve
vezes que eu consultei o ICMBio, igual a gente um evento interno, a
gente tem que passar pela Unidade de Conservação, mas eu preciso
de levar uma quantidade de alimento porque são 300 dias e tem que
se alimentar nesse período, tem que ser autorizado e tal pra poder
sair com essa alimentação. Mas a gente sentiu o impacto porque
muitos resolveram deixar a comunidade, né, pra ir pra cidade porque
tava se sentindo ainda como se fosse um prisioneiro.345

Jamari
*Como foi a história da criação da Reserva, o que que isso implicou
na vida de vocês... se você lembra disso, se vocês já moravam aqui
antes da reserva.
- Antes de reserva já morava sim. Meu avô tinha um terreno aqui. Ele
tinha pra mais de 40 anos que vivia nesse terreno aqui. Quando a
reserva foi criada em 79 a gente já tava aqui, que até eu quando eu
nasci, eu nasci em 1973 aí a gente já morava aqui quando foi criada.
Isso foi um conflito pra nós, porque quando o Beto Guerreiro disse
que foi ele, foi o cabeçalho dele... e sempre ele é o mais velho da
turma aí... o IBAMA e eles fizeram o levantamento dizendo que não
morava ninguém aqui dentro da reserva.
*E vocês já moravam aqui?
- Já morava aqui dentro.
*Você tinha quantos anos quando foi criada a Reserva?
- Sete anos, seis anos.
*E você lembra como foi que isso impactou aí com vocês, o que
aconteceu depois de criada a Reserva?
- Eles brigaram muito com nós aqui. Eles fizeram conflito com nós
aqui, porque por eles a gente não existia aqui. Eles nunca
conversavam com nós e eles só andavam com Polícia Federal,
traziam um bocado de gente. A gente não conhecia, eles não
identificavam pra gente quem que eles eram mesmo. A primeira
escola que foi construída aqui foi a do Jamari. Quando nós tava
construindo o pessoal do Beto veio e disse pra nós parar a construção
e foram embora. Aí no outro dia eles tornaram a passar aqui pra
perguntar se nós tava continuando a trabalhar, aí se nós tivesse
continuando a trabalhar no outro dia que eles passassem aqui eles
iam derrubar a escola e tacar fogo. Aí nisso a gente baixou pra
Oriximiná, que tinha um prefeito lá, sempre ele deu apoio pra cá. Aí
nós fomo lá, contemo [sic] a história e eles mandaram nós voltar pra
trabalhar aqui, continuar construindo a escola, porque era a primeira
escola ela foi feita mesmo de madeira que foi nós que tiremo [sic]
                                                                                                           
345
CACHOEIRA PORTEIRA. A atuação da AMOCREQ. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcantara em 11 de janeiro de 2013. Oriximiná, 2013.
 
  318  

aqui. Nós cortemo... meus pais porque eu ainda era pequeno ainda. Aí
foi continuado, mas desde esse tempo o IBAMA... agora já a pouco
menos tempo que a gente tá começando a se entrosar, que vai
mudando os tempos, passando os tempos e eles vão começando a
conversar. Agora até eles já vem aqui na comunidade, já conversa, já
tenta dizer alguma coisa, mas antes era muito ruim, não tinha
conversa com eles.
*Chegou a ter conflito corpo a corpo, de violência mesmo?
- Com certeza. Uma vez eles alagaram meu tio que vinha da roça, aí
eles passaram, meteram a lancha mesmo em cima e alagou ele, só que
ele não morreu, mas perdeu a espingarda...
*Derrubou ele na água....
- Derrubou ele na água, eles meteram a lancha em cima e alagaram
ele. E ele só foi buscar uma maniva de uma roça pra outra que era
pra plantar. Mas assim, pra gente brigar com eles, pra estar
ameaçando, isso não aconteceu não.346
*Em outras comunidades aconteceu...
- Aconteceu porque dentro do Jacarezinho tinha muita gente, no
Erepecu tinha muita gente e eles fizeram uma mini indenização.
Indenizaram o pessoal e eles saíram. E nós aqui continuemo aqui e
ainda temo aqui até hoje.
*Então, aqui foi, pelo que você estava me contando da história, o foco
da resistência. Aqui que começou a resistência e as outras
comunidades que depois surgiram que é o Último Quilombo e o...
- Nova Esperança, Juquerizinho, Juqueri Grande... isso já foi
comunidade fundada já muito depois da nossa, porque a nossa que
aguentou a pressão do IBAMA aqui e não saía. E a nossa não é
escondido né, fica bem na beira do rio onde gente passa todo dia.
*E isso foi melhorando... você sabe quando foi que melhorou mesmo?
- Quando entrou um cidadão chamado Mauro no IBAMA. Ele
começou a conversar, veio nas comunidades. Depois passou agora
pro Nei...
*E esse acordo da castanha, como é que você vê isso?
- Acho que foi melhor do que quando era no tempo do patrão, porque
agora o acordo que a gente faz... o acordo com eles é simples pra
dizer ou não quem vai pra lá, quem pode levar o que. É um acordo
pra gente não levar o que não é permitido, espingarda, cachorro,
galinha... bicho nenhum a gente não pode levar. Criança também...
esse ano ele disse que o acordo não vai mais ser acordo, vai ser um
termo mesmo. Aí ele veio avisar que não pode levar criança com
menos de 15 anos, de 13 anos que esteje estudando. Porque quando a
criança tá com 10, 12 anos o pai tira da escola no tempo da castanha
e leva pro castanhal. Aí lá as vezes cobra morde e acontece alguma
coisa, quando era pra ele tá estudando. Isso foi uma coisa que abriu o
olho de muita gente e eu acho que a gente voltando atrás é muito
certo.

                                                                                                           
346
JAMARI. Uso comunitário do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 09 de janeiro de 2012  
  319  

Sagrado Coração
- Hoje mudou um pouco, melhorou. Antigamente era muito difícil
porque o IBAMA ele tomava muito as coisas da gente. Se pegassem a
gente com umas certas coisas eles tomavam. Se pegasse um tracajá
tomava, né.
*Aqui no Sagrado tem algum caso mais grave com o IBAMA?
- Teve o caso da morte de um menino, né. Foi um pouquinho por aí.
*Foi um acidente?
- Foi por aí nesse tempo que tinha uma polícia que era federal, né. E
aí eles vieram aí na casa onde morreu esse menino. E chegou aí os
pais dele, o pessoal eles tavam na beira tomando banho com as
criança e aí a polícia chegou lá, eu não estava lá, mas eles contam, o
pessoal daí mesmo. E aí eles se assustaram todo mundo, né. Os
meninos ficam lá na beira, né... aí quando foi no término do
movimento eles começaram a procurar o menino e ele tava lá no
fundo morto.
*A lancha pegou nele?
-. Não sei se ela pegou não. Dizem que parece que triscou, né. A
conversa zoou assim né. Eu mesmo não cheguei a ver. Foi assim que
viram a história. Já faz tempo que aconteceu isso. Tem uns 20 ano,
daí pra mais.
*Eu entrevistei o Beto e me contou uma versão diferente do que o
pessoal contou. Ele falou que o menino se acidentou sozinho, parece
que caiu, não sei e que eles chegaram lá e estava acontecendo isso...
mas antes deles chegarem já tinha acontecido.
- Não, os menino tava na beira tomando banho. A polícia quando
chega assim numa casa e pessoal fica meio prestando atenção. E aí
ainda tava pequeno e o pessoal saltaram tudo e esqueceram dele, né,
não sei. Quando a lancha saiu é que foram dá falta dele. Foram
procurar e cismaram que tava no fundo. Aí começaram a procurar e
acharam ele morto.
*E ele tava machucado?
- Diz que tinha uma triscada. Não sei bem. Eu não cheguei a ver
mesmo.
*E outros casos? Deles baterem... me falaram que eles derrubavam
até comida.
- Essa polícia que veio descendo pra cá, ela andou dando uns tapas
em algumas pessoas.
*Isso antigamente, né, não agora?
- Isso, antigamente. No ano mais ou menos da morte do menino. E
essa polícia eles andaram dando uns tapa, prendendo as pessoa se
pegava pescando, né.
*O sr já teve algum problema com eles?
- Não, eu não. Uma vez eu tava numa pescaria com um colega meu e
eles pegaram nós. Mas eles não chegaram a bater. No meu parceiro
deram um tapazinho, mas pouco também. Aí levaram nós lá pro
posto, nós passemo lá um dia, aí no outro dia eles soltaram nós.
*Vocês ficaram presos de um dia pro outro?
- É.
*E eles eram policiais mesmo?
  320  

- Diz que era federal. Assim dizia eles, né. Pois é, e no mais não.
* E quando o IBDF virou IBAMA:
- Melhorou com certeza um pouco, agora melhorou mais. Porque
antigamente era perigoso a história aqui o negócio do IBDF, que era
no tempo que eu era moleque. Com o IBAMA foi meio feio o negócio.
No tempo da morte do menino era IBAMA, né, era meio feio. Não
podia pescar um tracajá nem longe, pra comer né. Se eles pegasse um
tracajá mesmo pra comer sempre era problema.
*Mas pra comer hoje não é problema.
- É, não.
*O problema é pra vender.
- É, pra vender.
*Agora temos um outro problema. E o sujeito que vivia de pesca?
Como é que fica a situação dele?
- Hoje em dia até melhorou porque eles já pararam de pescar, os
caras já se empregaram...
*Porque o governo proibia, mas não dava alternativa também...
- É verdade. Antigamente pra você ter um emprego aí era difícil, né,
de conseguir. Aí no caso melhorou essa parte. Já trabalha gente na
comunidade... Nós já fomo até um dia numa sortura [sic] de
tartaruga.
*Foi agora, né, mais recente?
- Foi mês de dezembro.347

Tapagem
- Naquela época a gente ainda era meio criança, mas a gente alembra
um pouco. Por exemplo assim, por mais que eu fosse o chefe dessa
casa aqui, quando a federal veio ela passou a vassoura aqui. Ela veio
prendendo e batendo... prendia canoa, tomava espingarda, até
comida da panela eles jogavam.
*E hoje, como tem sido a relação? Quando virou Chico Mendes
houve uma mudança muito grande né? Como que está a relação com
vocês aí?
- Hoje mudou muito. Porque hoje a gente já trabalha praticamente
quase em parceria com o IBAMA. Quando acontece algum acidente
aqui na comunidade, a gente sempre pede apoio de transporte pra
eles. Eles cedem pra gente, eles levam.
*Hoje já é uma parceria.
- Hoje já mudou, é uma parceria.
*E na proteção dos recursos aí de vocês? Recentemente chegou uma
madeireira com proposta, de vez em quando vem outro e vai pescar
num lago... Como tem sido essa relação aí? Como é que o Chico
Mendes tem dado? Porque teve uma proposta de madeireira agora,
né? Não foi uma proposta interessante, foi uma proposta pra eles
levarem os recursos.
- Nós somos muito contra madeireira. A invasão assim, nos nossos
lago, o Chico Mendes espera assim que a comunidade se reúna, por
                                                                                                           
347
SAGRADO CORAÇÃO. A história dos conflitos com o governo. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcantara em 11 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
  321  

exemplo, você vai lá, pede pro cara sair e se ele não sair você vai lá
no Chico Mendes que eles dão apoio pra gente.
*Mas dá mesmo?
- Dá. Se a gente pedir pra eles, eles vão. Eles só não vão da livre
vontade deles, por exemplo assim, sem nós ir lá pedir pra eles.
Porque daqui pra cima é uma área titulada.
*Que é a parte do Abuí, do Paraná...
- É. Que é onde eles gosta mais de invadir é no Faria, bem lá em
frente à base lá.
*Que é a parte da FLONA.
- É, lá que eles gosta de fazer a invasão.
*E com relação à madeireira? À proposta da madeireira?
- Nós tudo semo contra madeireira.
*Todo mundo foi contra?
- Todo mundo foi contra.
*Mas eles voltam, né? Não vieram só uma vez...
- Não. Três ou quatro vezes que vieram aqui. Eles chegam a pegar
meio pesado. Fomos até meio grosso com eles. Aí eles pararam.
*O que vocês falaram? Como é que foi?
- A gente expulsou, foi meio grosseiro né. Nós falamo que eles não
eram bem vindos aqui, que era a nossa casa, que eles respeitassem a
gente e que parassem de vir. A última vez a gente falou isso pra eles e
eles não vieram mais.348

Mãe Cué
- Do tempo que eu me formei, pro que eu to vendo agora existia um
respeito por nós do pessoal mais antigo do IBDF, nunca chegaram a
ofender nenhum de nós, tirar nossa vida por um animal que nós
depende pra sobreviver. Hoje que formou já esse grupo do IBAMA
que já destruíram a vida dois patrício nosso por causa de comida.
Deram muita trancada nos pobre dos velho, nos novo, no tempo já do
IBAMA.
*Isso já tem bastante tempo também, né?
- Já tem bastante tempo.
*E você sabe quando foi mais ou menos?
- Não, isso eu não to por dentro do ano que existiu esse tipo de caso,
que foi uma surra grande no pessoal, inclusive que nessa surra
morreu uma criança de uns 10 a 12 anos. Eles meteram uma lancha
em cima da criança que tava tomando banho e matou a pobre da
criança e levou amarrado o pai da criança. Ficou aquele desespero,
depois quando a mãe foi procurar a criança já tava morta, por causa
da tartaruga. E a ganância mais é pra eles levarem. E já chegou num
momento, eu tive numa justiça, o devogado falou pra mim que se era
pra eu pegar uma tartaruga pra IBAMA me pegar, mas antes matasse
um cristão. Eu testemunho caso, que esse caso foi um caso sério que
nós tivemo com o IBAMA, eles processaram nós por um caso que eles
foram agredir um pobre dum velho que morava lá na casa que até
                                                                                                           
348
TAPAGEM. Coordenação da Tapagem. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara em
12 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
  322  

hoje eu moro. Na casa do velhinho dormindo, eles com nove pessoas


em cada uma lancha e tudo armado pra agredir o pobre do velho. E
na hora que nós vinha vindo, nós fomo lá socorrer as coisas, eles
puxaram as armas pra nós. E nós tomemo as arma deles. Nós tivemo
por lá justiça e aí foi que o devogado me disse que se era pra pegar
uma tartaruga, matasse um cristão. Mas uma tartaruga não tem o
valor que um cristão tem. Se a pessoa alaga daquele lado, nós vai
socorre e trás pra cá e se uma tartaruga alaga lá por lá ela morre.
Então isso tá errado. Um animal com animal, um cristão com cristão.
*Mas teve um caso mesmo de um acidente de morte, com um tiro.
- Tive, tive.
*E era o pessoal daqui, era alguém daqui que morreu, não?
- Lá do Erepecú. Era um remanescente de quilombo.
*E o que é que houve? Ele reagiu?
- Não, ficou tudo porque aqui quando eles faz isso com nós é o mesmo
que nada. Hoje nós aqui, nós somo menos de que uma tartaruga.
Olha, ele matou o cara por dois tracajá, um pai de família e nisso
acabou-se e pronto. O cara que matou passou ali um quebra galho na
cadeia e pronto. Hoje em dia tá andando liberto.
*Mas isso mudou hoje, né? Hoje com o Chico Mendes é diferente.
- Pode ser até, mas nesse ponto ainda não. Nesse caso que eu to
falando ainda não mudou. Muda só os direito, mas não muda a
coordenação como era... As coisa de ano pra ano tá apertando pro
nosso lado, porque se nós vai fazer um roçadinho, se nós vai fazer um
campinho de duas quadra a IBAMA vai lá e bota a mão em cima, que
não é pra fazer. E a mineração eles não respeita, que tem muitas
hectare, eu já fui na mina, tem até um rebocador dentro daquele
mato, que já formou um rio e a IBAMA pra lá tá tapado. Que nesse
caso que eu to dizendo é por dinheiro. Nós como não temo dinheiro,
eles respeitam nós, consideram nós como um macaco, um bicho e
deixa pra lá. Matou, matou e deixa pra lá. Pra mim fica a história que
eu me criei, a coisa tá ficando cada vez mais feia pra nós, pra
comunidade.349

Abuí
- Hoje em dia nós já temo uma parceria maior com o IBAMA, porque
antes ninguém tinha. Vivia brigando o IBAMA e a comunidade,
porque IBAMA tinha aí o trabalho, mas ninguém era informado. Eles
não passavam nada pra gente, aí tivemos várias dificuldades. Hoje
em dia, depois de passar pras comunidades o trabalho deles a gente
já entende um pouco como é que são o trabalho deles, aí acabou um
pouco a briga. A gente foi entendendo um pouco como é a questão do
trabalho deles.
*Aqui na comunidade de vocês teve algum momento de uma briga
mais forte, de uma relação mais complicada, de violência mesmo?
- Não, não existiu esse problema não. Existia aquelas brigas as vezes
lá deles. Na época da federal, que era o IBDF, né, veio a federal e
                                                                                                           
349
MÃE CUÉ. As dificuldades vividas na Comunidade. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcantara em 14 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
  323  

chegava a ir até o Paraná pra pegar o pessoal quilombola pra


prender eles, mas não conseguiram. O pessoal sempre saiu fora.
*Hoje está havendo mais uma parceria, né?
- É, porque eles passaram mais ou menos como é o trabalho deles, né.
Ninguém era informado, né. Hoje já faz reunião na comunidade pra
explicar o trabalho deles. Então a gente começou a entender as
coisas, né. Porque às vezes o pessoal fazia as coisas, mas não sabia
como era a questão do trabalho deles.350
Juquerizinho
- Eu acharia ela mais ruim... é um problema dela [REBIO], o resto
não... é porque muitas vezes a gente pega um peixe pra levar e lá eles
tomam. Muitas vezes até quando a gente vai no rabeta da gente, eles
ficam com o rabeta e o rabeta não tem nada a ver com isso. É o mais
ruim, mas de fora disso...
*Eles não estão incomodando vocês?
- Não. Nunca eles vieram incomodar nós aqui.
*Ah é? Aqui não? Porque no Jamari e nos outros o pessoal reclama
muito, que foi vítima de violência...
- Não, aqui nunca.
*E com relação a vocês estarem do lado da REBIO, eles não falam
que vocês vão ter que sair...
- Olha, eles ainda não falaram. Não sei pra mais tarde, mas ainda
não falaram isso.
*Nem no começo?
- Nem no começo. Esse negócio do IBAMA com nós eles nunca vieram
perturbar.
*O pessoal relatou muitos casos de violência, até de morte.
- Pra lá já tive.
*Mas pra cá não?
- Não.
*Nem com os antigos?
- Com os antigos quando nós morava ali no Juqueri que foram uma
vez. Ainda era o Beto que era o encarregado. Também não teve
problema351

As versões dos agentes do governo que atuaram na época contrastam alguns pontos
dos relatos, mas não negam as arbitrariedades e violências que decorriam das políticas de
conservação: “naquele tempo era assim”. Mas dizem que muitos dos casos, como o acidente
com um menino que, supostamente, uma lancha do IBAMA teria atropelado, ou que
roubavam “comida da panela”, açoitavam as pessoas, é contado de maneira muito
distorcida. Segundo os agentes contratados mais antigos que pude entrevistar, as trocas de
tiros que chegaram a ocasionar mortes, se davam porque os próprios agentes, muitas vezes

                                                                                                           
350
ABUÍ. A vida no territorio titulado. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara em 04 de
janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.  
351
JUQUERIZINHO A Comunidade e os conflitos com o governo. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcantara em 13 de janeiro. de 2012. Oriximiná, 2012.
  324  

acompanhados da polícia, eram recebidos com tiros (pelo que entendi, não dentro das
comunidades ou propriamente com comunitários, mas em ações de fiscalização de grupos
atuando na caça ou na pesca).
A ARQMO já consolidada desde 1990, aponta em documento interno da associação
sua atuação para combater as violências do Estado no exercício das políticas de
conservação, principalmente por meio de denúncias diversas. Em 1991 o Ministério Público
Federal instaura Inquérito Civil para apurar possíveis violências sofridas por remanescentes
de quilombo. Pelas denúncias realizadas em Brasília é realizada duas vistorias diretas da
capital, vindo também a própria ouvidoria do IBAMA. O conjunto de ações da ARQMO
vão influenciar a postura do IBAMA desde 1992.
O Plano de Manejo da Reserva352 faz menção às populações tradicionais e expõem em
duas laudas o posicionamento dos tradicionais frente aos cerceamentos que vivenciaram
com a Reserva. Atualmente as atividades praticadas na REBIO percebidas como
conflitantes com os objetivos da unidade, conforme Plano de Manejo são: as comunidades
residentes na Reserva e no seu entorno; abertura de roçados e pastagem através da
derrubada da floresta ou queimadas; invasão de terras em Cachoeira Porteira, localidade que
faz fronteira com a Reserva; queimadas de igapós (para posterior coleta de ovos de
quelônios); grande fluxo de embarcações no rio Trombetas; presença do shiploader da
MRN; e, atividades de caça e pesca no interior e entorno imediato da Unidade, além do
extrativismo de recursos naturais (madeira, castanha, cipó). Conforme se depreende, não são
apenas as atividades dos comunitários que são conflitantes, mas dentre estas, grande parte
são fundamentais para a própria sobrevivência desses grupos humanos. Por tratar-se de uma
Reserva Biológica, a presença desses povos da floresta vai ser sempre percebida como um
problema, assim como seus modos de vida, fortemente dependentes da floresta e de sua
integridade, serão compreendidos como práticas predatórias que ocasionam forte “pressão”
sobre os recursos ali resguardados. Essa é a principal violência.
No curso das narrativas, as mudanças de percepção sobre a conservação dentro de
uma macropolítica e, também, a experiência prática acumulada de que políticas repressoras
podem gerar mais efeitos adversos na conservação do que benéficos, principalmente a partir
da década de 1990, vão repercutir em mudanças significativas no trato com as comunidades.
O que é exposto hoje pela maior parte das comunidades é que os mesmos são “parceiros” da

                                                                                                           
352
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS.
Plano De Manejo da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Brasília: STCP Engenharia de Projetos Ltda, 2004. p.
2.53 – 2.54
  325  

entidade ambiental (e vice-versa). Conforme mencionado, vários projetos vêm sendo


desenvolvidos para a melhoria de vida desses povos (suas principais reivindicações) e para a
promoção da sustentabilidade e educação ambiental das mesmas, tanto por parte do governo
federal, estadual e municipal (muitas pessoas recebem bolsa-verde, bolsa-família, entre
outros auxílios), quanto por parte da MRN, universidades e ONGs. São propostas ações
para promoção da saúde, para o desenvolvimento de fontes alternativas de renda,
implantação de sistemas agroflorestais, criação de escolas, entre outras obras de
infraestrutura. Com a política voltada para “gestão participativa” e o diálogo entre os
diversos atores envolvidos, os conflitos tendem a ser dirimidos nas instâncias colegiadas
como os conselhos de unidades de conservação (que dentre todas as Atas analisadas quase
não se assunta nada sobre a REBIO, praticamente só a FLONA) ou em reuniões específicas,
através de ampla participação dos envolvidos para a tomada de decisões – como no caso da
castanha e na soltura dos filhotes de quelônios. A política de fiscalização foi invertida,
agora são os comunitários que chamam o ICMBio para controlar as “invasões” que ocorrem
com certa frequência nas proximidades das comunidades no interior e entorno da reserva.
Hoje a maioria das queixas estão relacionadas à proibição da comercialização da
madeira, da pesca e da caça, bem como na dificuldade de abrir roçados, que por sua vez, são
realizados, segundo os analistas do ICMBio, sem nenhuma restrição, salvo quando para
criação de gado. Reclamam que para tudo é necessário autorização e que isso lhes restringe a
liberdade. Contudo, submeter-se a um regime de explorabilidade limitada e controlada para o
uso de recursos ambientais, pela legislação em vigor que compreende esses recursos como
“uso comum do povo”, é inescapável para todos os grupos. Mas esse regime, construído para
controlar as atividades predatórias e mais impactantes, na prática, acabou por prejudicar
aqueles com menos possibilidade de acesso, por incapacidade de formalizar processos e
submete-los ao órgãos controladores. “Mi vida va prohibida por no llevar papel”. É Direito
para uma minoria que opera sua linguagem técnica jurídica, mas exclusão e controle policial
para maioria das pessoas que, apenas por contraste, dever-se-ia comparar, lado-a-lado, vis-a-
vis, o grau de impacto de atividades como a mineração da bauxita e as práticas dos
tradicionais.
Das autuações que tive acesso, contabilizando 32 realizadas pelo ICMBio nos anos de
2010 e 2011, 29 estavam relacionadas ao desmatamento por invasores na FLONA, nenhuma
na REBIO, apenas 3 relacionadas à atuação de madeireiras, as demais tratavam de abertura de
pastagens. Pode ser que alguma esteja relacionada às comunidades tradicionais do Sapucuá,
como é nominal, não é possível saber. Nenhuma se relaciona aos quilombolas, estão distantes
  326  

de seus territórios. Uma das autuações versou sobre apreensão de quelônios, com 22 tracajás
encontrados no porão de uma lancha grande, foi realizada a fiscalização no interior da REBIO
por denúncia, aplicando-se uma multa ao proprietário da mesma no valor de 2 milhões de
reais, a denúncia pode ter partido de algum membro das comunidades como de costume. Das
autuações do ICMBio, duas recaiam sobre a MRN e correspondiam a dano ambiental
decorrente de acidentes (deslizamento de terra) nas minas da empresa. Obtive também uma
defesa da MRN realizada pela “Milaré Advogados – Consultoria em Meio Ambiente”,
conforme mencionado, a MRN contrata sempre os principais “nomes”353 para suas ações e
projetos. Em Santarém, em campo realizado junto ao Ministério Público Federal, me foi
disponibilizado um relatório de todas as ações judiciais relacionadas às duas unidades de
conservação até o ano de 2011, a análise reproduz mais ou menos a mesma lógica anterior em
131 processos – desmatamentos para pastagens, poucas relacionadas à madeireiras, uma
relacionada à Concessão Florestal e uma relacionada à MRN, sobre valorização dos produtos
florestais não madeireiros.

Tipo Infracional 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total

Desmatamento 4 6 7 15 10 18 9 69

Caça 2 1 4 9 4 5 7 32

Fogo 1 2 1 4

Pesca 2 3 1 4 5 2 4 21

Outros 4 1 5

Total 5 4 10 16 30 20 26 20 131

Tabela 07: Processos Judiciais Referente à FLONA-ST e à REBIO na Procuradoria da República do Munícipio
de Santarém, 2011.

                                                                                                           
353
Edis Milaré é um famoso jusambientalista autor, dentre outras obras, do “Direito do Ambiente”, considerada
uma das mais completas obras de Direito Ambiental no Brasil.
  327  

Embarcação apreendida. Sacos com os tracajás encontrados no porão da


polpa da embarcação.

Tracajás apreendidos. Soltura dos 22 tracajás apreendidos.

Foto 20: ICMBio/Auto de Infração 033651A/Ocorrência 05/2011.


Conforme se depreende e foi vivenciado em campo, não há, desde as mudanças nas
políticas ambientais, fiscalizações recaindo sobre as comunidades, que invada suas áreas ou
coisas similares, salvo os casos excepcionais. Por sua vez, segundo funcionários do ICMBio,
após uma visita do Procurador da República na áreas das duas unidades de conservação e nas
respectivas comunidades, foi determinado à entidade ambiental que retirasse toda a criação de
gado das comunidades que incidisse sobre os espaços territoriais protegidos, o que foi
cumprido.
Apesar da atmosfera de permanente conflito estar mais rarefeita comparado a outros
tempos, ainda são constantes os conflitos, mas por uma perspectiva invertida. Segundo alguns
contratados na conservação da REBIO, oriundos das próprias comunidades, não foram raras
as retaliações por parte dos demais comunitários, quando estes passaram para o lado do
“opressor”. Chego a entrevistar quatro pessoas diferentes e converso com praticamente todos
que conheci, as histórias foram muito variadas: um contratado da Mãe Cué, ainda na década
de 1980, relata que a casa dos seus familiares foi incendiada, outro, também antigo
contratado, relata que foi golpeado certa vez com um remo que o desacordou, outros dois me
  328  

relatam que apanharam muito por estarem vigiando objetos apreendidos e assim por diante.
Por outro lado uma queixa atual dos quilombolas, principalmente daqueles moram acima dos
tabuleiros (Abuí, Paraná do Abuí, Cachoeira Porteira) decorre de terem que se submeter ao
jugo e controle do Estado seus direitos mais básicos, como os de ir e vir. No caso eles são
obrigados a parar em determinados horários (18:00 horas), na linha da Base do Tabuleiro e
não podem prosseguir viagem até o dia seguinte na época de reprodução dos quelônios. Tal
medida é justificada em razão de ser a época da desova um momento em que esses animais
encontram-se muito suscetíveis, principalmente aos ruídos das embarcações. Por sua vez os
tradicionais questionaram que, se a razão são os ruídos, por quê a lancha dos agentes circula
diversos momentos durante a noite?

4.2 A guerra das tartarugas

Tabuleiros do Rio Trombetas


Leonardo - 70 ha Farias - 120 ha
Jacaré - 124 ha Uerana - 96 ha

Jauari - 80 ha

Abuí - 47 ha

Foto 21: Tabuleiros do Rio Trombetas. MMA/ICMBio, 2011.

Os ribeirinhos de forma geral sempre estiveram presentes e atuantes


nas atividades das pesquisas científicas em campo na Amazônia.
Sendo estes “caboclos”, quilombolas ou indígenas, pessoas que
conhecem a Floresta Amazônica, seus caminhos, os rios, lagos e seus
paranás, mais do que qualquer gestor de Unidade de Conservação e
demais, pois ali chegaram primeiro e nessa imensidão de florestas
nasceram, sobrevivem e fazem suas moradias. Com suas experiências
fornecem-nos as perguntas, os indícios e premissas, para podermos
assim planejar e desenvolver os métodos científicos. No estudo de
  329  

caso da pesquisa desenvolvida para a conservação dos quelônios da


Amazônia, não foge a regra. Um ribeirinho normalmente é contratado
para participar de nossas pesquisas de campo na Amazônia, que seja
como “prático” ou “mateiro”, sabe e conhece a área amostral como
um todo, e podem assim, não entender de nomes científicos de plantas
e fauna, nem o porquê que tal fenômeno ou comportamento aconteça,
mas entendem e simplesmente sabem como ocorrem e se distribuem
os animais. Os quilombolas do rio Trombetas nos ensinaram e ainda
ensinam seus métodos de captura, para onde vão os animais mesmo
quando todas as margens se transformam em “igapó”, conhecem com
segurança dos frutos consumidos pelos quelônios e assim, nos
aproximamos das tartarugas para observação ou captura por
intermédio deles, passamos a conhecer seus habitat’s. Com suas
habilidades e sabedoria, testamos hipóteses, métodos e confirmamos
dizeres.
Virginia Bernardes – Projeto Quelônios da Amazônia – Pesquisadora
do INPA

Era manhã cedinho no Tabuleiro do Jacaré, estávamos a desembarcar os diversos


baldes repletos de tartaruguinhas junto com os agentes do ICMBio e com comunitários de
diversas comunidades. Era o dia da soltura dos filhotes, uma ação de educação ambiental
promovida pelo ICMBio e pelos pesquisadores para a sensibilização dos comunitários sobre a
questão das tartarugas. Camila Rudge Ferrara, pesquisadora do INPA, reunia em uma grande
roda crianças e adultos das comunidades para explicar o seu trabalho sobre a comunicação
acústica da Tartaruga-da-Amazônia. Estava um pouco chateada porque havia perdido parte de
seus equipamentos e externou que, se acaso alguém encontrasse, era só deixar na base, esses
equipamentos não teriam valor comercial, só serviriam para captar os sons da tartaruga, e
seguiu falando sobre como as tartarugas falam, despertando a curiosidade de todos ali. Nesse
mesmo dia conversei com Romildo Augusto de Souza, pesquisador do INPA, que trabalhou
com educação ambiental nas comunidades mais próximas ali dos Tabuleiros e do Erepecú.
Contava a ele sobre o meu trabalho e perguntava sobre o dele. Me disse que eu estava no
lugar certo, que aqui haviam conflitos de toda ordem: com as comunidades, com o governo,
com os pesquisadores, com a mineração. Disse que seu chegasse um dia antes iria ver um
conflito com disparos, próximo de onde estávamos. O incidente me é narrado também no ano
seguinte por um agente contratado das comunidades que havia participado.
*No ano passado, na época em que eu estava aqui, em dezembro,
conversei com um pesquisador, antes da soltura dos filhotes... eu vou
pedir pra comentar um pouco, houve um conflito forte aqui? Chegou
a ter um tiroteio, uma briga mesmo com tiro né? Foi um tiro contra
vocês?
Eu tava aqui... Nóis trabalhava o dia... nóis fomo dentro do lago e
demo uma volta, e já ia embora pra cá, dai achamo duas boia de
  330  

maiadeira... ai cheguemo aqui, falemo, e os cara perguntaro seis viro


gente? Não, mas nóis achamo duas boia de maiadeira... só que era
dessa noite aí... peão tava pescando. Ai eles sairo na lancha e nóis
fiquemo, eles levaro o radinho... aí daí a um cado ficaram passando o
radio que era pra nóis ir lá, que eles tinha achado o peão com as
tartaruga e os arreio, eles era três lá e nos fomos mais uns quatro pra
lá. Cheguemo lá... ele tava lá perto, viu que a gente tinha mexido,
tava la perto olhano, cheguemo lá remulhando... tinha uma rede
atada, dois espinhel e uma saca com maiadeira e duas tartaruga... ele
tava la perto... fomo levando... ele ainda quase agarrou uma
tartaruga... tava perto dela... eu desconfiei... aí subimo para lá pa trás
dos tocos pra desmancha as redes, enquanto um ficou desamarrando
de um lado o outro foi com o terçado cortar a corda da maiadeira,
quando ele ia cortá... nos escutemo o tiro... nóis não percebemo de
onde saiu o primero tiro... de onde foi? de onde foi? enquanto ficava
procurando, queimô denovo.... mais otro tiro... ai nóis corremo pra
lancha... num mexemo mais nada... aí corremo pra lancha... aí
rodemo e encostemo lá na frente... pra passa o rádio... nóis fiquemo
olhano se o cara ia buscá...354
*E Ele foi buscar?
Ele levô o espinhel, levô a maiadeira, levô a saca com a rede, só não
levô a rede que tava atada... uma tartaruga ficou lá também...

A integração da tartaruga-da-amazônia às políticas públicas e sua extensa relação com


a rede sócio-técnica colonizadora, data do início da chegada dos portugueses na região e
percorre uma longa trilha até a contemporaneidade. Com utilização ampla pelos povos
ameríndios em seus festivais, em que se coletavam os ovos e se realizavam pescarias
coletivas, a tartaruga-da-amazônia manteve uma profunda penetração nos costumes, hábitos e
tradições amazônicas que acompanha todo o seu caminhar histórico até os dias de hoje. Os
naturalistas europeus do século XIX narram a sua abundância e a larga utilização por toda a
Amazônia, do “gado do rio”, ao mesmo tempo em que apresentavam preocupações com a
utilização exacerbada da espécie. Segundo Rebêlo e Pezzuti355, no século XVIII são
estabelecidos os “pesqueiros reais” pelo então Governador da Capitânia de São José do Rio
Negro, Manoel da Gama Lobo D’Almeida. Os pesqueiros inauguravam o comércio de peixes
salgados e tartaruga com fins de atender a demanda de carne nas vilas e exportar para a
Europa os derivados da tartaruga – óleo, banha, manteiga e carne. As praias de produção eram
                                                                                                           
354
No caso relatado o pescador fora reconhecido, enquanto um pescador tradicional que sempre pescou e que
não pretendia mudar seus hábitos. No mesmo dia do ocorrido, por acaso, a polícia acompanhava o ICMBio em
uma patrulha na Base Santa Rosa, no Erepecú. Após acionados pelo rádio (ICMBio junto com Polícia Militar)
foram na casa do pescador no Paraná do Abuí e o levaram para Oriximiná, onde prestou depoimento e foi
liberado. Segundo o entrevistado, o pescador teria dito que pescaria novamente. Na semana seguinte foi
novamente fiscalizado e flagrado com 12 tartarugas.
355
REBELO, Geoge; PEZZUTI, Juarez. Percepções sobre o consumo de Quelônios na Amazônia In: Ambiente
& Sociedade. Ano III, n. 6/7 de 2000
  331  

divididas entre famílias extrativistas e fiscalizadas pelos “comandantes das praias reais” que
supervisionavam a coleta dos ovos, a distribuição entre as famílias e o recolhimento da taxa.
Em um momento seguinte a produção se transforma, com base na propriedade legal da terra,
assume as feições da patronagem, com os tabuleiristas, mas manteve ampla regulamentação
estatal:
A atividade havia se tornado cartorial. As 32 leis e outros
regulamentos relacionados com a captura e comercialização de
quelônios e seus produtos, em treze munícipios do Amazonas entre
1893 e 1936, estabeleciam sobretudo impostos taxas e multas, apenas
três regulamentos faziam restrições a técnicas de manejo. Os vigias,
práticos que entendiam das “normas que regem o tabuleiro e versados
na ciência dos quelônios”, e seus patrões, os tabuleiristas,
administraram um sistema de exaustão dos recursos e produção de
receitas para o Estado356.

A indústria mercantil da tartaruga por longo período de tempo exerceu importante


papel na balança comercial da Amazônia, por diferentes momentos e por uma rede que
conectava distintos atores: o animal e seus ovos extraídos do habitat com o extrativista
tradicional (indígena, ribeirinho, quilombola), a supervisão governamental (provavelmente
em casos específicos), o atravessador dono das embarcações (o regatão), os proprietários
legais das áreas (a partir de determinada época), com o mercado consumidor de seus produtos
(população em geral e países importadores). No beneficiamento da tartaruga e seus ovos
obtinham-se usos variados: a carne cujo acesso foi se restringindo na medida que se tornava
escassa e se aumentava a população, o óleo que fora amplamente utilizado na culinária e na
iluminação pública dos centros urbanos, até cair em desuso, e a manteiga destinada
principalmente à exportação. A manteiga foi dos principais produtos extrativos antes da
chegada da borracha. Outras utilizações dos derivados da tartaruga também são narradas nas
muitas histórias, como para o uso em cosméticos e adornos, destacando-se a redução das
variadas utilizações com o esgotamento gradativo e ininterrupto dessa espécie desde o início
de sua utilização pela rede expansionista ocidental. Apesar do uso mais destacado para a
tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa), não apenas ela era amplamente utilizada, mas
o tracajá (P. unifilis – hoje o mais utilizado), o pitiu/iaçá (P. sextuberculata), a irapuca (P.
erytrocephala) todos do mesmo gênero, entre outros “bichos de casco” terrestres ou
aquáticos, compõem a tradição na culinária da região. As populações tradicionais, que sempre
utilizaram esses animais em sua subsistência, foram, ao longo do tempo, utilizadas como mão
de obra para suprir com os mesmos a rica indústria da tartaruga – uma estrutura comercial
                                                                                                           
356
Id. Ibid.
  332  

organizada que contribuiu para a drástica redução desses quelônios nos séculos XVII, XVIII,
XIX e XX.
Conforme mencionado, o projeto RADAMBRASIL já expunha políticas públicas
municipais organizadas para a conservação da espécie em Oriximiná desde 1963 com o
“Serviço de Proteção à Tartaruga”, com a participação direta do Governo Federal em 1965,
por meio do Ministério da Agricultura e, posteriormente, em 1967, com o IBDF. Desde essa
época já era narrada a instalação de acampamentos para a guarda e pesquisa. Os ovos não
eram recolhidos, mas logo que eclodiam recolhiam-se os filhotes que eram mantidos em
caixas de tela no Rio trombetas até o momento de serem transportados para a Base do
Ministério da Agricultura em Fordlandia. Lá eram mantidos durante 6 a 8 meses e entregues
aos criadores relacionados ao Serviço de Proteção à Tartaruga. A primeira entrega, com um
lote de 5.000 tartaruguinhas é datada de 1965 para um criador no município de Juriti, sendo
que até 1975, cerca de 50 criadouros haviam recebido os filhotes, destacando-se que algumas
criações eram caseiras, outras fazendas e uma empresa de porte médio a “Comércio e Criação
de Tartarugas Ltda – COCRITA. A empresa obteve financiamento do Banco do Brasil – pelo
PROTERRA – para construir uma barragem em Juruti onde foram colocados 90.000 filhotes
em 1973, com resultados altamente rentáveis, a empresa já pretendia instalar um frigorífico.
Nesta época estavam se popularizando os criatórios por toda a Amazônia o que era visto com
otimismo pelo governo:
Tudo indica que, uma vez mantido em funcionamento o Serviço de
Proteção à Tartaruga, a P. expansa deixará de ser uma espécie
ameaçada de extinção, pelo simples fato da oferta de exemplares
mantidos em criatórios baixar o preço do animal, ao ponto de tornar a
sua captura e o seu comércio clandestino atividades pouco
compensadoras357.

Um marco importante nesta história é a promulgação da lei nº 5.197 de “Proteção à


Fauna”, em 03 de janeiro de 1967. Neste momento histórico, toda a fauna silvestre passou a
ser propriedade do Estado, proibindo-se a utilização, caça, destruição, criação ou apanha,
salvo quando autorizada. Aqui novamente afloram-se os paradoxos, ao mesmo tempo em que
se assegurou uma proteção a seres que estavam sendo dizimados pelo Brasil afora,
criminalizou modos de vida e se fomentou um dos mercados negros mais lucrativos da
história – o tráfico de animais. A extrema carência material e educacional da população não
permitia o manejo de alta tecnologia que geralmente é requerido para a criação de animais

                                                                                                           
357
MINISTÉRIO DAS MINAS E ENERGIA/RADAMBRASIL. Folha SA.21 – Santarém. Rio de Janeiro, 1976.
p. 432
  333  

silvestres em escala comercial, era muito mais fácil retirá-los de seus habitats para o
comércio, que por sua vez, só existe por que há demanda.
A tartaruga na Amazônia, representa uma questão muito peculiar pelo seu
enraizamento nos hábitos regionais, profundamente inserida na composição social, tornada
“insustentável” da maneira como se configurou. Ainda hoje ela é muito apreciada como uma
iguaria e uma iguaria fina. Na década de 1980 um artigo sobre a conservação da tartaruga na
REBIO-RT, expõem a extrema procura desses animais nas épocas festivas, principalmente
nos Sírios, em que os valores chegavam à US$ 200,00. Nesta mesma época uma lauta refeição
girava em torno de US$ 80 nos hotéis em Manaus. Esse mercado cada vez mais restrito em
seu acesso continua a existir enquanto, do outro lado, as políticas de conservação não
lograram êxito em frear o gradativo declínio da espécie. Isso, segundo Vogt358, com o Brasil
sendo o país que mais investe em conservação dos quelônios. É comum escutar dos
tradicionais mais antigos no Rio Trombetas sobre a fartura de tartarugas no passado, nas
décadas de 1950 e 1960, em que, nas épocas da postura, não se conseguia chegar com o barco
nos tabuleiros de tanta tartaruga. Segundo os relatos colhidos por Vogt, cerca de 30.000
tartarugas desovavam nos tabuleiros do Trombetas em meados do século passado. Sobre a
época que precede a reserva escuta-se falar que os barcos quebravam a hélice em cascos de
tartaruga, quando se arriscavam a atravessar certos pontos. Já na época da criação legal da
reserva o número de matrizes era mais modesto, segundo Vogt, os dados mais concretos de
1979 apontam cerca de 8.000 matrizes desovando. Quando ele chegou, dez anos depois, em
1989 havia 860 tartarugas desovando. Hoje são cerca de 680 desovando, mas destas, uma boa
parte seriam de animais jovens “recrutados pelas mais antigas”, configurando uma
regeneração. De todos os anos, 2004 é apontado como o menor registro de desova: menos de
200 tartarugas foram contabilizadas desovando, sendo que o decréscimo acentuado se inicia
em 1999.
Desde a criação da REBIO-RT se contarmos de 1979 até 2004, em 25 anos de história
desse espaço territorial protegido, criado para a preservação da P. expansa, houve uma
redução de 97,5% de matrizes contabilizadas nas praias. Praticamente a espécie se extinguiu
no local. Por sua vez, a partir de 2004 é apresentado um aumento considerável – de 200 para
860 – associado ao crescimento de jovens matrizes que foram contabilizadas ao utilizarem os
tabuleiros em 2012. Os gráficos governamentais reafirmam este desaparecimento abrupto,
dentro de um declínio constante.
                                                                                                           
358
VOGT, Richard C. O mais antigo pesquisador da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Entrevista concedida
à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara e Wilson Madeira Filho em 05 de outubro de 2012. Oriximiná, 2012.  
  334  

Número de Filhotes de Tartaruga Contabilizados


REBIO do Rio Trombetas

500.000
Navegação
450.000
Repiquetes
400.000

350.000

300.000
Nº de Filhotes

250.000

200.000 Repiquete
150.000
Seca

100.000

50.000

-
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Ano-Safra

Gráfico 2: Número de filhotes de tartaruga contabilizados, REBIO do Rio Trombetas. Fonte:


MMA/ICMBio, 2011.

Não foi apontado pelo governo ou pelos cientistas uma explicação para o fenômeno,
senão hipóteses dentro de uma conjuntura de possibilidades. Ao seguir essa trilha neste
estudo, pretendo apenas apresentar os diferentes posicionamentos dos diversos atores
envolvidos, com exceção de representantes da MRN, por não conseguir acesso. Consigo
conversar com agentes governamentais e acompanhar alguns dos trabalhos de conservação e
de fiscalização. Converso com alguns cientistas que também pude acompanhar em seus
trabalhos. Nas vivências com os tradicionais a tartaruga sempre foi um assunto muito
avençado, ela é profundamente relacionada às representações de mundo deles, como um ser
de muitas estórias folclóricas. Consigo conversar também com pescadores tradicionais, com
comerciantes e atravessadores que, em outros tempos, realizaram o transporte desses animais
para Manaus. Os relatos são confrontados com os dados disponíveis publicados sobre o
assunto que me foram fornecidos e outros que consegui acesso. Na narrativa que segue,
exponho o entendimento dos diversos grupos sem identificá-los, ressaltando que todos os
relatos foram autorizados e foi assegurado o resguardo da fonte.
O ICMBio em um relatório institucional levanta três hipóteses para o declínio abrupto
da espécie: a navegação que aumentou sobremaneira com o aumento da produção da MRN, a
pesca, com a captura das fêmeas e a coleta dos ovos por invasores (tradicionais ou não) e o
manejo e conservação que pode estar inadequado.
Em sua tese de doutoramento Ferrara359 analisa a bioacústica da tartaruga e aponta um
repertório vocal com onze tipos de sons que variam de pulsos e sinais tonais até sinais mais
complexos, apresentando a P. expansa como um dos répteis com maior repertório vocal. O
estudo demonstra que a tartaruga tem um comportamento social complexo que perdura em
                                                                                                           
359
FERRARA, Camila Rudge. Comunicação Acústica de tartaruga-da-amazônia na Reserva Biológica do Rio
Trombetas, Pará, Brasil. Tese de doutorado. Programa Integrado de Pós-graduação em Biologia Tropical e
Recursos Naturais. Orientação de Richard Carl Vogt. Manaus, 2012.
  335  

todo o seu período de vida, das migrações até os ninhos. Aponta que o momento em que vão
desovar é que se identificam a maior diversidade de sons (momento de maior vulnerabilidade
e de alinhamento das matrizes para subirem nos tabuleiros todas de uma vez). Por sua vez, o
que chama mais a atenção no estudo é o comportamento parental da tartaruga, há uma
comunicação constante entre mães e filhos que se inicia enquanto estes ainda são embriões
nos ovos nos ninhos. As mães aguardam seus filhotes nos rios e, conforme experimento
narrado, os mesmos quando, as encontram, se abrigam e são por elas abrigados sob suas patas
e pescoço como as galinhas fazem com seus pintinhos.
Tais estudos requerem equipamentos caros para ouvir a tartaruga falar e tentar
entender o que dizem, bem como para acompanhar sua trajetória, por rádio VHF ou satélite,
segundo Vogt, são investidos alguns milhões. O pesquisador aponta também, que na vida
adulta o comportamento social também é fundamental para a espécie, os mais jovens
aprendem com as mais velhas, “são recrutados”, para as praias de reprodução que não
necessariamente são as mesmas, mas que devem ser viáveis, pois quando não são a água
sobre e mata todos os ninhos (repiquete). O ponto levantado é que toda a “escola antiga” de
conservação desta espécie não leva em consideração estes aspectos da etologia desse
quelônio, mesmo porque tudo é recente e ainda requer aprofundamento das pesquisas para ter
força para mudar o “paradigma”. Vogt assinala a presença ainda entre pesquisadores do mito
da “memória ancestral” da tartaruga, que, desovada em uma praia, saberia a essa exata praia
retornar enquanto fêmea adulta, para ali também desovar. Os estudos da semiótica do animal,
contrariamente, tem revelado a ausência de fundamento desse argumento, uma vez que as
fêmeas permanecem na água, sonorizando para guiar seus filhotes. Desse modo, no que se
convencionou enquanto preservação da espécie grande parte dos ninhos são retirados e
levados para incubadoras, após eclodirem parte dos filhotes são soltos e parte permanece até
atingirem um tamanho que possibilite maior defesa, pois neste período são altamente
predados por pássaros, peixes e jacarés, o que justificava o “resguardo” do filhote para que ele
tivesse mais chances. Os pesquisadores estão questionando a eficiência deste modelo na
conservação e mesmos os possíveis prejuízos no manejo da espécie pois estão identificando
fêmeas jovens que realizam a postura em praias inviáveis, possivelmente, por serem “filhas de
chocadeira” e não ter aderido a um cardume mais antigo, capaz de recrutar-lhes para as praias
certas.
Por sua vez, acreditam que isto não está diretamente relacionado com o
desaparecimento abrupto da espécie na REBIO-RT, mas possivelmente com o gradual
declínio. Pergunto aos pesquisadores sobre a possiblidade de serem os navios e obtenho como
  336  

resposta que pode ser sim, mas não existem estudos que comprovem. Apontam que, se a
redução ocorreu pelo impacto dos navios, relacionada ao fluxo migratório dos animais, ou
seja, cardumes antigos que possam ter descido o Rio Trombetas e não retornado mais, pela
perturbação ocasionada pelos navios, já seria irreversível. Entendem que pode ser também o
tráfico de animais, pelas mudanças das técnicas de pesca das tartarugas, que potencializou
muito a captura com a chegada da malhadeira no final da década de 1990.
O ICMBio exigiu como condicionante para as atividades da MRN um estudo para
tentar averiguar os impactos possíveis dos navios – que não foi realizado até o curso desta
pesquisa – e passou a proibir a circulação noturna de navegações na proximidade dos
tabuleiros. Hoje, a política de repreensão foi substituída por projetos que envolvem os
comunitários tradicionais na proteção e no manejo desses animais, no sentido de se buscar
uma conscientização e mesmo uma parceria, pois eles percebem os quelônios como uma
riqueza deles. Os próprios tradicionais se tornam os vigias das praias nessas parcerias, contam
as nidificações e as marcam junto ao governo, dificultando a ação de invasores externos.
Alguns destes projetos são financiados pela MRN, assim como alguns trabalhos dos
pesquisadores. A MRN também aporta recursos para um projeto maior de conservação
trabalhado nos arredores da REBIO e no Sapucuá, o projeto “Pé-de-pincha”.
Dentro da REBIO-RT, os tradicionais atribuem o desaparecimento das tartarugas aos
pesquisadores. Relatam que junto com as pesquisas veio a escassez. Durante o longo período
em que foram realizadas as pesquisas as tartarugas foram reduzindo. Para os tradicionais as
pesquisas que capturam os animais e colocam sobre eles aparelhos, marcações, rádios, anilhas
etc. estariam “injuriando o bichinho”, fazendo que os mesmos não retornem mais nessas
praias, porque nelas já conhecem a ameaça. Os tradicionais guardam ressentimento dos
pesquisadores e isso é percebido na fala dos mesmos. Segundo Vogt, porque no início da
implementação das pesquisas na REBIO-RT, algumas ações “equivocadas” de pesquisadores
levaram centenas de tartarugas de lá para povoar outras rios da Amazônia e, em uma pesquisa
realizada sobre a proteína da carne de tartaruga, segundo ele pela UFPA, foram sacrificados
muitos animais e abandonados dezenas de carapaças nas praias, o que supostamente foi
assistido pelos tradicionais, que passado de boca em boca, geração em geração, denegriu a
ação das pesquisas para eles. Os pesquisadores levam as tartarugas, matam as tartarugas e
eles, por outro lado, são coibidos de pescar, talvez nessa relação tenha surgido o
ressentimento. Alguns tradicionais também associam o desaparecimento à “invasão”,
relacionando-a a ação de alguns comunitários. As práticas tradicionais de captura são
consideradas predatórias e cruéis, apanham os animais logo após depositarem seus ovos
  337  

(através da viração) e depois coletam os ovos. Coletam tanto animais e ovos quanto possível
para depois serem vendidos no amplo comércio ilegal.
Outro grupo que inclui os pescadores tradicionais e alguns fiscais atribuem redução
exclusivamente à própria pesca do quelônio, assim como os citadinos envolvidos no comércio
e no transporte (sem exceções para os entrevistados). Esse grupo contrasta com a visão de
alguns funcionários públicos mais antigos, que dizem que a “invasão” sempre ocorreu, mas
controlada, o que não existia antes era o fluxo de tantos navios.

I. Aumento da navegação

Em Porto Trombetas no escritório do ICMBio busquei informações sobre o histórico


do fluxo de navios e não obtenho, segundo a entidade, eles não teriam este controle. Enviei
também email para a Agencia Nacional de Transportes Aquáticos-ANTAQ, obtendo como
resposta que eles não dispunham dos dados. Por informações verbais detenho algo em torno
de 300 navios por ano, variando um pouco para mais e para menos. No site da MRN as
informações são em relação ao tipo de navio: para as épocas secas – Panamax com até 32,2m
de boca e 260m LOA; para as épocas de cheia - graneleiros com até 40 metros de boca e 260
de LOA. A produção da MRN aumentou muito a partir de 1990; em 2003 vai subira 50,5%
atingindo cerca de 15 Mtpa360, hoje 18 Mtpa. Considerando a capacidade desses navios de no
máximo 45-60mt, é possível fazer a conta aproximativa com relação à produção no ano,
chegando na média de 300 navios nesta época de 2003-2004.
Para entender o possível impacto dos navios é necessário compreender que P. expansa
é um animal migratório que anda centenas de quilômetros e com sensibilidade auditiva. Os
navios poderiam estar interceptando os animais que baixaram e não estariam retornando mais,
segundo alguns posicionamentos. Um gráfico governamental aponta que houve um
crescimento exponencial da tartaruga na região de Santarém, Vogt questiona que não há
evidência genética que comprovem serem as mesmas tartarugas do Rio Trombetas.

                                                                                                           
360
http://www.dnpm.gov.br/assets/galeriadocumento/sumariomineral2004/ALUMÍNIO%202004.pdf
  338  

Condicionante para a MRN


Proibição de navegação noturna nos
tabuleiros no período da desova

Gráfico 3: Comparativo entre o número de filhotes contabilizados de 1986 até 2003 no Rio Trombetas e
Santarém. MMA/ICMBio 2011.

O posicionamento de um antigo funcionário governamental marca bem uma posição:


- Agora, eu nunca... nunca ninguém me convence que foi devido a
invasão e retirada de tartaruga não. Eu não posso afirmar, mas pelo
conhecimento e pela vivência que eu tenho aqui, eu acho que é devido
aos navios que vem buscar bauxita. Os estrondo no fundo do rio é
estarrecedor. Você não consegue mergulhar e ver um navio passando,
que só falta espocar seu tímpano. Outra coisa, o movimento do rio faz
com que toda a alimentação que tinha no fundo...
* Mexe tudo! Toda a dinâmica do rio mexe.
- A tartaruga que subia pra vim desovar no Trombetas... ela não subiu
mais.
* Foi pra outros lugares?
- Por que não subiu mais? Porque você pegou 10 tartarugas e botou o
satélite... botou... como é que chama aquilo? ... Transistor pra poder
o satélite acusar... todas não passaram do lago do Erepecu. Quase
não entraram no Erepecu. Não desceu nenhuma. Por que não desceu?
Medo! Ouviu o barulho: - não vou! Assustei com o barulho: - não
vou!
* E o navio está circulando o tempo todo?
- Antigamente vinha um por semana. Agora é um ou dois por dia.
Aumentou demais o número de tartaruga no Xingú e o número de
tartaruga no Tapajós. E aqui diminuiu. Aqui onde é preservação.
Você lembra, você morou lá [se referindo a ele]! Você não vê gente
entrar com malhadeira e o navio e tal. Você vê, é controlado.
* Uhum, claro.
  339  

- Se a pessoa tá desse lado, não tem emprego, não tem o que comer...
é mais fácil pegar onde tem mais do que ir lá arriscar porque não
tem. Então a gente entende. Mas eu acho que é devido a isso...
* Ao shipload...
- Não! Ao tráfego...
* A circulação de navios?
- Como acabar com isso?
* Não tem jeito?
- Não tem jeito!
* Mesmo que isso fique comprovado?
- É... como que vai acabar? Tem que tirar a bauxita.
* Não... sim, mas é... tem como comprovar isso?
- Não sei... não sei porque eu não pesquiso. É como eu te digo, isso é
questão de pesquisar mais vezes, com tartaruga, se passa, se não
passa, analisar quanto decibéis emite, sei lá quantos... se a tartaruga
é capaz de... biólogo deve saber... é capaz de aguentar no tímpano
dela, a pressão que ela consegue aguentar. Estuda... uma vez por
semana ela passa no dia de segunda feira... só vai passar na outra
segunda, então na terça, quarta, quinta, o pessoal que vem, vem.
* E eles andam muito, né? E você tem essa percepção de experiência
né, de vivência. Você viu isso já. Você viu aumentar e diminuir
concomitantemente.
- Tem alguém que fala isso, que as tartarugas que a gente vê
aumentar, porque tá aumentando no Trombetas, mas são tartarugas
jovens.
* Estão vindo de outro lugar...
- Não, são criadas ali. Elas não descem. E as velhonas ainda tem a
predação, não é? Gente que pega, só pega as maiores. Hoje você vê
muita tartaruga. Então no futuro, se continuar essa preservação, vai
aparecer mais tartaruga.
* Mas esse trecho aqui você acha que elas não vão fazer mais?
- Eu acho que ela não baixa mais aqui.
* Tem muito lugar lá pra cima, tudo bem? Pra ela comer e tal...
- Tem... ai tu tem o lago do Erepecu... é o que você lê.
* Mas de qualquer forma foi então uma perda e a perda está
relacionada...
- Eu acho que sim, porque a predação diminuiu. Polícia federal
trabalhava com nós aqui.
* A predação diminui na época de vocês.
- Muita! Muita! Não existia...361

Por sua vez, pelos fragmentos da entrevista de um oriximinaense, ex-regatão, que


havia realizado o transporte desses quelônios para Manaus, apesar de se posicionar de forma
diferente alguns pontos confluem. O oriximinaense não acredita que houve um aumento das
tartarugas na REBIO-RT nestes últimos três anos (desconsidera as jovens) e relata sobre o

                                                                                                           
361
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2011.
  340  

aparecimento de tartarugas na região de Oriximiná a mais de 100km de distância da REBIO-


RT:
- Olha, pra mim é como eu tava falando pra ti. Teve dois casos aí. A
pesquisa que quando fizeram muito alta, vai querer colocar um
investimento grande em cima daquilo, porque tava... aquilo lá tava
ameaçado de ser cortado um bocado da verba e de certeza foi isso
que aconteceu, colocaram um número alto dum patamar de tartaruga
e de quelônio lá pra aparecer e não tinha. E a outra também devido...
*Ah, você acha que eles maquiaram os resultados?
- Exatamente. Não era tanto aquilo lá. E outro caso também é devido
que quando tá na desova eles ficam pra cima e pra baixo na lancha,
tanto faz se é de dia e de noite. O que acontece, elas não ficam lá não.
Espanta elas. Basta eles colocarem uma coisa lá na praia como eles
fazem, aquelas casinha lá pro reparo, bastava aquilo lá que tava
sabendo que tava vigiado. Agora de meia em meia hora um tá pra
cima e outro tá pra baixo, tão transitando de voadeira lá. Aí tudo
aquilo espanta elas.
*Os quilombolas falam muito isso também.
- Aqui perto, como eu tava falando pra você, bem em frente ao nosso
terreno aí, o laguinho nunca tinha dado tartaruga como deu esse ano.
Deu muita tartaruga e, inclusivamente, eu conversando com o rapaz
que para lá de casa, ali no baixo Trombetas, ele tornou a me falar
que nunca ele tinha visto tanta tartaruga como ele viu aqui na ponta
das pedra... Então, o que tá acontecendo, elas não tão subindo essas
tartarugas. Elas estão sendo espantada de lá. Agora tem tartaruga aí
com placa de Trombetas... isso aí é pra ver que elas veio de lá, com
certeza teve um pasto melhor, não foi perseguida, manteve elas lá.
Ela se adaptou lá... e elas desovam lá, lá perto da minha casa.362

II. Predação e comércio

Ainda existe a pesca do quelônio dentro da REBIO-RT, as políticas conservacionistas


criminalizaram pessoas que aprenderam pescar com seus pais, que, por sua vez, aprenderam a
pescar com os avós, e que sempre tiveram como principal atividade a pesca. E não resolveu.
Apenas recentemente políticas mais integradas entre comunidade e governo estão sendo
experimentada, ainda sem saber quais serão os frutos, mas provavelmente serão diferentes dos
que geraram as políticas repressivas. A trilha que pude seguir sobre a captura e
comercialização desses animais se inicia com pessoas de algumas comunidades do Alto
Trombetas e vai até Oriximiná. Não há uma política integrada para coibir o comércio no
munícipio, apenas a reserva é fiscalizada com mais atenção, mesmo assim, conforme
ilustrado, com muitos conflitos. O IBAMA de Oriximiná, segundo Vicente, é feito para não

                                                                                                           
362
 SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.  
  341  

funcionar, não possui nem veículo e nem lancha. Para atender uma denúncia tem que
requisitar ou um ou outro o que leva dois dias, e mais um dia para chegar nos locais
longínquos, “pra quando chegar lá, muitas vezes, não ter mais nada”. A prefeitura de
Oriximiná não quer a ação do IBAMA que atrapalha o desenvolvimento, principalmente da
agropecuária. É neste cenário que percorremos o nosso caminho.
O ex-regatão oriximinaense me explica sobre a procedência e chegada das tartarugas e
tracajás em Oriximiná, como elas são embarcadas para Manaus, as pessoas que trabalham
com isso e as estratégias para burlar a fiscalização. Seguem abaixo os trechos delimitados:
* O ponto que eu gostaria de tratar com você diz respeito à tartaruga.
Você chegou a me falar que chegou até a trabalhar um pouco com
isso, com essa parte de transporte. E você me disse que haviam mais
pessoas que faziam o transporte. Você sabe mais ou menos quantas
pessoas fazem isso e pra onde elas vão? De onde elas são? Essa
teia...
- De onde começa e onde termina. Geralmente elas saem daqui do
alto Trombetas, da mediação ali do Tabuleiro, que é a região mais
atacada dali. Que pra outros cantos tem, mas é pouquinho. Pra lá
eles não fazem tanta questão. É mais é daí do médio, do alto
Trombetas que a gente chama aqui, né. Aqui vem muito de lá e a
saída delas daqui... de lá é chegar até aqui e daqui ela ser
comercializada até... pra ser comercializada pra Manaus.
* Pra Belém não?
- Pra Belém aqui é raro de sair. Não sai quase pra Belém devido à
fiscalização. Que como faz no porto de Óbidos, de Santarém e outros
portos aí e até mesmo antes de chegar lá em Belém a fiscalização é
muito rigorosa.
* E você tem ideia assim de número. Assim, primeiro sai de lá, dos
pescadores de lá. Das comunidades mesmo ou pescadores que vem
daqui?
- Das comunidades de lá, os próprios pessoal de lá.
[...]
- Todinhos. Todos eles. Lá onde a gente parou lá. A região do [...],
tem aquele pessoal lá. Tudinho as comunidades. Você querendo fazer
uma entrevista pra perguntar de que eles sobrevivem eles vão falar
que é do salário... é... bolsa família, né, bolsa escola. E o salário a
gente vê que não tem condição de uma pessoa viver, que é sessenta e
poucos reais, né. Setenta, oitenta reais cada pessoa pra pegar. Três,
quatro filhos só que ganha e isso é pra quem tá estudando né, ainda.
Aí você vê que não tem como a pessoa sobreviver sobre isso aí. Não
tem como comprar o alimento, remédio, roupa e manter uma casa.
Você sabe que não dá. Então é tudo disso daí que eles coisam lá.
*Da tartaruga?
- Exatamente. Tudo é da tartaruga.
*Você tem uma ideia de quantas... tem época que você tem mais a
pesca né?
  342  

- Isso. Não é o ano todo. Agora é período que vai dá muito a


tartaruga. Porque tá enchendo e elas estão indo por baixo comer
fruta que tá caindo. A época deles pegarem bastante tartaruga vai ser
agora de novo. É quando tá perto da desova que eles pegam, mês de
agosto a setembro, outubro... é a coisa que eles tão pegando. Mês de
novembro e dezembro elas somem tudo, devido à choca delas. Que
elas vão se atolam... aí fica difícil... tem muitas vezes que mesmo
assim consegue, só que eles não vendem diretamente elas porque elas
tão magra. Aí nesse período elas tão gorda e já tão pegando
diretamente por causa da fruta, pra revender
*Eles vão vender pra um atravessador aqui?
- Trás pra esses homens que trazem a cerveja, que levam o gado pra
Manaus. Esses aí é que levam pra lá pra Manaus, essa coisa de
tartaruga. O barco da linha não tem como levar, que é vistoriado. Aí
já com o motor, que vai com o gado, a balsa, não tem como fazer
vistoria. Só vai fazer vistoria em cima, vendo o gado e essas coisa.
Vai tudo no porão da balsa. Aí embaixo não dá pra ver, fazer a
vistoria. Só se na hora a federal, o IBAMA, o meio ambiente fosse,
engatasse do lado da balsa e descarregasse o gado... aí sim ia fazer a
vistoria dentro do motor, dentro da balsa pra ver se tem o produto lá
ou não.
*E você sabe quantas pessoas fazem isso aqui mais ou menos?
-Olha aqui tem uma média de umas oito a dez pessoas ou mais que faz
isso, daqui.
*E você saberia dizer o número de tartarugas que são levadas nessas
viagens? Quantas viagens são feitas? Quais épocas?
- Eles dão quatro viagens ao mês.
*Mas só nessas épocas que tem né?
- É... eles fazem o transporte diretamente nesse época. Mas eles ficam
viajando diretamente.
*Sim, mas tartaruga só na época que tem, né?
- Só na época que tem. Já quando tá ruim de tartaruga eles levam
pouquinho. Algumas que aparecem que eles levam.
*Mas aí é tartaruga, é tudo?
- Tartaruga, tracajá... tudo vai no meio, isso vai tudinho.
*E isso vai em muita quantidade?
- Vai. Vai muito. Agora porque diminuiu muito. Porque tava... cada
ano que passa... como a gente já andou, você viu o comentário por aí,
que cada ano que passa tá escasso tracajá e tartaruga que eles
levavam muito. Agora deve sair numa média por viagem aqui em
cada embarcação uns vinte a trinta bichos. Isso aí não é de dizer que
vai sair quatro ou cinco não... é muito raro. Quatro ou cinco vai sair
agora, nesse coisa que é agora porque tá ficando difícil devido à
cheia... aí que vai sair nesse número baixo.
*Mas agora que vai começar a encher você acha que vai sair umas
trinta?
- Vai. Vai sair muita. É o período que vai sair muita tartaruga vai ser
agora de novo, que elas tão indo pra beira e eles pegam bem mesmo...
a tartaruga e o tracajá.
  343  

*E a fiscalização lá, você acha que eles não veem, que eles fazem
vistas grossas, que eles participam do esquema... o que você acha?
- Aqui em Trombetas? Não porque lá tem muitos pontos de passarem.
Lá eles fazem a vista mesmo em cima lá, mas só que tem muitos
pontos de passarem. Eles trapaceiam muito lá por cima, porque ali é
a última passagem que a gente tem do flutuante... lá em cima naonde
é tabuleiro, onde é as desova né... lá fica ruim de passar. Lá é só por
lá que tem pra passar, não tem outro local. E aqui perto de Porto
Trombetas já tem vários biombos pra passar. Tem o [comunidade]
pra passar, tem pra passar por detrás do IBAMA. Inclusivamente,
olha, o [...] era um que tava andando com a gente e ele falou que o
pai dele sobrevive disso, de coisa de tartaruga. Por isso que a gente
encarnava nele que ele pescava. Ele tem um tio que segundo por lá,
por onde a gente tava andando e ele já estava trabalhando lá no
[comunidade], que ele conhecia onde tinha coisa de tartaruga só pelo
cheiro da água, ele sabia o tanto de tartaruga que tinha.
*Só pelo cheiro da água?
- Só pelo cheiro da água ele já sabia se tinha tartaruga lá ou não. É
uma pessoa que já é acostumada nesse coisa de tartaruga.
*Que sabe disso.
- Que sabe. Mas é que quando passa lá no Tabuleiro, passa lá pela
frente, por detrás lá do [comunidade]. Passa por lá uma época dessa.
Por detrás do IBAMA passa, que eles não vê que por lá passa com
canoa...
*Aí consegue sair?
- Exatamente, consegue sair.
*Mas no Tabuleiro, você acha que as tartarugas do Tabuleiro ficam
mais vigiadas.
- Fica vigiadas, com certeza.
*Lá não passa não?
- Lá não passa, lá não tem por onde passar. Lá pra passar é difícil
passar por lá. Porque lá você já viu nessa época, tempo de verão é
raso demais. Agora esse ano que passou agora eu encostei lá. O
motor encostou. Só tava chegando até lá. Não passava pra lá mais
não. Deu esse pipoco d’água que encheu e foi que...
* Essas tartarugas grandes que são pescadas elas vão pra
restaurantes ou elas vão pro comércio varejo mesmo, o pessoal
compra, você sabe?
- Ela vai pra varejo e pra restaurante. Principalmente pra quando é
assim, negócio de casamento pra muitos... como a gente chama, a
gente grande daqui, que mora lá pra Manaus... é doutores, médicos,
advogados... doutores assim que eu falo, negócio de promotor que
tem vários daqui pra lá. Aí...
*Eles consomem...
- Eles consomem.
*Mais em tempos festivos mesmo...
- Mais em tempos festivos mesmo, aniversário, casamento, alguma
coisa de políticos que tem... aí tudo isso aí rola.
*Você sabe quanto custa uma tartaruga grande mais ou menos?
Quanto tá valendo ela hoje?
  344  

- Aqui pra gente comprar já do atravessador ela sai numa faixa de


uns 300,00 reais.
*Lá deve chegar no dobro....
- Lá ela deve chegar numa faixa de 1.000. Ou daí pra melhor, com
certeza. Pra lá ela dá muito dinheiro, pra lá.
*E o pescador que ele trás ela aqui, tipo o [...]?
- Ele vende aqui ela numa base de uns 150,00, 120,00, 100,00 reais.
*Ele ganha bem pouco...
- Bem pouco. Esses é os que menos ganha lá. Olha, como lá na
[comunidade], bem em frente ao [...] ele é outro.
*Mas aqui ainda não é tão caro como é em Manaus.
- Exatamente. Aqui não é caro como Manaus e Manaus e muito caro
uma tartaruga.
*Aí vira um bom negócio...
- Um tracajá em Manaus, eu vi outro dia o rapaz tava falando, era
150,00 reais. Um tracajá. Então uma tartaruga é mil e pouco. Tem
muito mais carne de que um tracajá e é muito mais saborosa de que
um tracajá.
*É muito mais apreciada né, o pessoal gosta muito mais.
- Exatamente...
*É, o negócio é um negócio caro, um negócio muito bem... E eu
acredito que a justiça e o governo devem estar também envolvidos.
Você acha?
- Envolvido pelo meio? Não. Eu creio que não porque num caso
desse... eu vi vários motores serem pegos aqui por causa de tartaruga
pra Manaus. E nunca foi assim, cubado. Sempre foi revelado,
multado, preso tudinho. Olha hoje eu cheguei ainda agora do interior,
aí ainda agora teve conversando com um rapaz e foi que me falaram
que teve um conhecido dele como Raimundo Tavares, ele morreu
ainda hoje. Ele foi um que contrabandeou muito isso. A coisa de levar
o gado pra Manaus era só mesmo a fachada. O comércio dele mesmo
pra ir pra lá era a tartaruga. Ele levou muito mesmo.
*Você acha que a essa diminuição tá diretamente ligada à caça ou
você não teria como explicar ela? Você acha que essa caça se
manteve sempre a mesma? Ela aumento ou diminuiu? O que é que
você acha?
- A coisa da caça até que diminuiu mais um pouco. Mas delas
diminuírem eu não tenho assim um parecer assim diretamente. Mas
eu creio também que foi devido a essas coisas de levarem muita
tartaruga daqui.
*Você se lembra de alguma época que teve muita saída?
- Olha eu vi uma viagem num motor levando pra Manaus. Eu não
tava na viagem, eu tava na hora de embarcar o gado. Tinha 32
tartaruga morta lá no freezer, que tavam matando. Que eu ainda
ajudei matar. Que iam pegar gado lá em casa, eu ajudei matar
tartaruga ainda lá.
*Grande?
- Grande. Tartaruga grande pra sair daqui. Saia muito.
*Isso foi quando mais ou menos?
  345  

- Isso foi em 92-93, uma coisa assim. Que eu fui pra Manaus. Que
papai pegou um gado, aí foi eu e ele e a gente ajudava a matar as
tartaruga. Assim que foi.
*Essa época você acha que a fiscalização era menor? Saia mais?
- Era menor. Na época de 85 à 98 a fiscalização era muito pequena
[em Oriximiná], como a faz a Rebio, né, a coisa do IBAMA que não
tinha antes. Ela era mais aqui no nosso trecho aqui. Já depois do
motor sair daqui a fiscalização que tinha era só por conta do gado.
Deu ordem de despacho por isso e pronto. Não tinha fiscalização não.
Não entravam no motor pra revirar o estrado, procurar... é que nem
como agora é feito, eles vão, procuram, mete cachorro pra ver se tem
coisa de tráfico ou alguma coisa de cocaína e ao mesmo tempo se vai
em cima da tartaruga também. Já vê tudo de uma vez. E antes não. Só
ia mesmo por causa da fiscalização de gado e pronto.363

Na outra ponta consigo uma entrevista muito elucidativa com um pescador tradicional
que possibilitou uma visão da prática na comunidade, o que se recreia em termos de técnicas e
como os mesmos à vêm e quais seriam os possíveis caminhos para resolver esse conflito.
Segue abaixo os trechos mais importantes:
* Sobre a pesca da tartaruga, você iniciou esse trabalho há quanto
tempo?
- Desde criança.
* Seu pai que te ensinou?
- Isso. Eu pescava com ele.
* Você sabe se seu pai aprendeu com seu avô. Seu pai é de lá
também?
- É de lá também.
* E seu avô? É de lá também?
- Isso.
* E seu pai aprendeu com seu avô também, você sabe?
- Com certeza.
* De lá pra cá, da época do seu pai, como que era feita a pesca?
- Na época do meu pai eu acho que era espinhel.
* Como é que funciona o espinhel?
- É uma linha com vários anzol.
* E vocês usavam o que de isca na época?
- Palmito.
* E essa técnica com espinhel você usou até quando mais ou menos,
você lembra?
- Todo tempo a gente usa.
* Ainda usa ela?
- Ainda usa.
*Chegou de um tempo pra cá, você tinha me falado, em 1996 a
malhadeira?
- Isso.

                                                                                                           
363
 SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.  
  346  

*Quem que levou a malhadeira lá?


- Essa malhadeira, o primeiro que apareceu com malhadeira lá foi o
[...].
*Você acha que a malhadeira é mais eficiente que o espinhel?
- É.
*Pega mais?
- Pega mais.
*Muito mais?
- Muito mais.
*E a partir de 1996 todo mundo começou a usar malhadeira?
- Muitos pescador usava.
*Começaram a usar... e começaram a pegar mais?
- Começaram a pegar mais
*Você acha que isso fez com que diminuísse o número de bichos?
- Fez.
*Por que que você acha isso?
- Porque a quantia que tinha, hoje não tem mais. Depois de certo
tempo o pessoal foram parando também de pescar com a malhadeia.
Hoje um ou outro tem.
*Mas assim, começou lá em 96, 97, 98... e você viu só caindo o
número de bichos?
- Só caindo o número de bichos... tinha ano que nem produção não
tinha, porque não deixavam.
* Não tinha produção por que?
- Porque peão não deixava. Não deixava saltarem. Com a
malhadeira... onde coloca a malhadeira lá não sai.
*Você lembra de uma pesca muito grande? Um ano que teve muita
pesca... você consegue lembrar quais foram os anos que retiraram
muito?
- Foi em 2000... que teve uma seca grande... acho que foi em 2000.
*E quantos bichos você acha que foram levados lá?
- Ah, foi porção. Lá todo mundo pegava.
*Todo mundo... de todas as comunidades?
- Todo mundo, de todas as comunidades. Ficava quase empoçada.
Era colocar a malhadeira e pegar.
*Você não tem como me dizer nem quantas foram?
- Não... não.
- Umas quinhentas acho que foi pega.
*E nesse ano vocês conseguiram passar com elas?
- Conseguia.
*Sempre consegue?
- Sempre consegue. Esse ano é que foi o ano mais tranquilo aqui.
*Mas os outros anos todos...
- Os outros anos todos tem pescado.
*Com malhadeira também?
- A malhadeira é a que mais rende.
*A pescaria é melhor?
- É a que mais rende.
*E você consegue levar ela até Oriximiná? Passa na fiscalização e a
fiscalização não pega?
  347  

- A gente luta muito pra chegar até lá...


*Tem muito atalho né?
- Tem muito atalho.
*Quanto que você consegue vender uma tartaruga lá em Oriximiná?
- Agora acho que até 300,00 reais o cara vende.
*Até 300,00 reais né? É muito tentador pra vocês, né? É um dinheiro
que vocês não conseguem de outro jeito, né?
- Isso...
*Porque a tartaruga ela vale muito e se você for pegar castanha ou
plantar mandioca não dá pra render tanto, né?
- Não... a mandioca dá pra consumo da gente... mas pra trabalhar ela
pra vender é ruim.
*Já a castanha é boa, mas não dá tanto?
- Não dá tanto.
*Hoje você vê a continuidade desse trabalho como uma coisa possível
ou você acha uma coisa difícil?
- É tá ficando cada vez mais difícil.
*Por que que você acha?
- Porque antigamente a fiscalização do IBAMA era de pessoas de fora
e hoje tá na comunidade todo mundo pesca. Todo mundo sabe fazer.
Aí não tem como deixar o peão passar assim. Fica ruim de passar. De
primeiro não. Peão não sabia como é que era. Aí vinha pra aí mas
não adiantava.
*Que ele não conseguia pegar?
- Não conseguia pegar porque não sabia de nada. E agora da
comunidade não tem como escapar.
*Aí o cara já sabe... sabe o caminho...
- Sabe o caminho... tem que atalhar ele lá. Aí os outros que ficam de
fora ficam com medo de passar lá, pescar...
*A comunidade, porque são poucos os pescadores na comunidade,
né? A comunidade, como que ela vê os pescadores? Ela aceita, não
aceita? Por que acaba recaindo um pouco mais de pressão sobre ela.
- Isso... os próprios membros da comunidade mesmo são pescador.
*Sim, mas e os coordenadores, os que não estão trabalhando no
ICMBio?
- Não mas agora é poucos que estão pescando. É pouco pescador. O
pessoal mais tão trabalhando de empregado.
*Mas pra comunidade assim, não faz diferença?
- Não...
*Se você pescar ou não pescar o coordenador não vai falar contigo...
- Não, falam nada não. Fica lá do jeito dele.
*E assim, quando você recebe um recurso grande, com tartaruga por
exemplo, na época que você pescava, você dividia esse recurso lá,
não?
- Dividia na comunidade? Não, não.
*É só seu?
- Só meu.
*E você acha que a pesca foi o principal motivo do desaparecimento
delas?
  348  

- Foi... foi. Isso aí todo mundo que tinha malhadeira sabia disso. Hoje
é mais difícil. Hoje acho que na região não tem mais de cinco
malhadeira.
* Na época que chegou o IBAMA aqui você já pescava, seu pai já
pescava...
- Na época que eles chegaram eu ainda não pescava. Meu pai
pescava.
* Você era novo ainda?
- Era novo ainda.
* Teve muita briga?
- Não... Não tinha briga.
* O pessoal do IBAMA não caía em cima muito? Porque eu ouvia
muita história do pessoal da comunidade dizendo que o IBAMA
chegava, o pessoal brigava, batia nos outros, humilhava...
- É... as vezes. Quando o peão metia de bravo também né. Aí eles
batia.
*E como que vocês viram isso na vida de vocês, a chegada do
IBAMA? Assim, isso atrapalhou muito a vida de vocês?
- Não, uma certa época atrapalhou. Aí depois foi melhorando.
*A relação foi melhorando? Hoje a relação é outra?
- Hoje a relação é outra.
* O que eu queria saber mesmo é o que que vocês pensam, porque
teve uma diminuição muito grande em 2001, né, 2002... e você tá
dizendo que houve uma pesca muito grande em 2000. Então a
diminuição tá relacionada à pesca, da própria comunidade. Porque
eles estão também avençando a possibilidade de serem esses navios
aí...
- Hum...
* É a pesca? Foi forte a pesca?
- Com certeza. Não foi só uma vez não.
* E você acha que existe a possibilidade de vocês pararem de pescar?
- Possibilidade existe, agora também...
*Que tipo de trabalho você acha que deve ser feito?
- Tem que inventar um trabalho pro pessoal lá... pra substituir a
pescaria. Senão não vai acabar nunca.364

O que se pode depreender das falas é que as políticas policialescas nunca conseguiram
conter a pesca, mas que, com a parceria da comunidade as ações fiscalizatórias e proteção
ganharam muito mais efetividade pelo próprio conhecimento tradicional do “pescador”, quem
efetivamente conhece os meandros dos rios e as técnicas de captura. O outro lado é o amplo
consumo que inviabiliza o controle em uma ponta, se não haver o combate em toda a cadeia.
Conforme mencionado, é fácil comprar uma tartaruga em Oriximiná, basta discretamente
perguntar quem vende e ter o dinheiro. Por sua vez, tomando por base o relato, é difícil dizer
que a pesca não contribuiu para a drástica redução da espécie e que a prática é insustentável,

                                                                                                           
364
 SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.  
  349  

exigindo-se medidas de conservação, as próprias lideranças comunitárias verbalizam que não


conseguem conter os pescadores das próprias comunidades. Mas, por outro lado, a pesca não
exclui a possibilidade do impacto dos navios sobre a migração da mesma ter contribuído para
a redução.

III. A patronagem governamental da tartaruga

Um assunto reiterado por todos os grupos entrevistados, e que me chamou muito a


atenção, diz respeito a uma prática, mutatis mutandis, semelhante à patronagem, exercida por
antigos funcionários governamentais para extraviar quelônios e peixes da REBIO-RT. Em
uma conversa com um quilombola, que há muito tempo trabalha na REBIO, principalmente
auxiliando os pesquisadores, é me dito que, quando entrou, em meados da década de 1980,
lhe fizeram a seguinte proposta: “aqui passa uma barca, se você coloca o pé nessa barca, e
ajudar nos trabalhos dela, você tem tudo, vai ser sempre chamado pra trabalhar, se você não
quiser, não tem problema, mas se você ficar falando por aí vai dar problema” (com as
minhas palavras no diário de campo).
A prática de se destinar aos criadouros particulares filhotes de tartarugas da região do
Rio Trombetas, institucionalizada e legalizada nas décadas de 1960 e 1970, segundo
representantes dos vários grupos de interesse, teria se mantido de maneira velada, quando se
tornou ilícita com a criação da REBIO-RT. As relações de poder que envolvem a tartaruga-
da-amazônia, consumida pelas elites de toda a Região Amazônica, está atrelada também aos
criadouros. Como muito se diz, é prática comum entre políticos e funcionários públicos de
alto escalão a criação de peixes e quelônios em suas fazendas.
Outro ponto muito tocado foi que, com a chegada da Mineração Rio do Norte, todo o
“pessoal de fora” queria experimentar a “deliciosa tartaruga” e todo tipo de iguaria mais que
essas terras tinham. Nesse sentido é aventado que laços políticos foram criados para atender a
curiosidade gastronômica dos que vinham de fora, nos primeiros momentos.
Supostamente aqueles que estiveram nos primórdios de criação da reserva, se valeram
dos tradicionais, que são pessoas simples e carentes, para extraviar os peixes e quelônios da
REBIO e destiná-los aos criadouros dos políticos ou à mesa dos poderosos. Para tanto
asseguravam uma contratação continuada dos tradicionais que, como eles mesmos dizem, “é
difícil fazer um dinheiro aqui”.
Não avancei muito nesta direção, apenas apresento os relatos que obtive, sem nenhum
tipo de prova documental. Abaixo os relatos do pescador e do oriximinaense:
  350  

* E uma coisa que a gente escuta muito falar, da época [...], é que ele
também levava muita coisa de lá...
- Isso. Eles dizia que ele trazia principalmente peixe, mas a tartaruga
não tenho certeza. Mas já ouvi dizer que ele trazia.
* Só escutou dizer, não sabe?
- Isso.
*Era uma coisa bem escondida?
- Isso.
*Filhote também?
- Até teve um funcionário dele que saiu por causa disso... levou até no
barco que fazia a viagem da comunidade lá... o [...]. Aí agarraram ele
com essas tartaruguinhas dentro do [...] e ele saiu.
* Mas ele tava fazendo pra ele mesmo ou [...]?
- Não sei pra qual era dos dois. Se era pra ele mesmo ou pro [...]. A
gente não sabe pra quem era.365

***

*Agora dizem que o [...] até hoje vende filhotes, não sei se é verdade.
- É, eu escuto esse comentário também que ele trabalha com esses
coisa de filhote, de venda de filhote também.
*Vai levar pra esses criadouros legais que vai esquentar o filhote.
Esquentar é legalizar.
- É. É o que eu escuto também, dos filhotes. É como faz o tracajá e a
tartaruga... é o que eu vejo falarem dele também. Ele já sai lá todo
dia... não sei o que que aconteceu...
*Ele tem um bom esquema lá...
- É, ele não sai de lá devido à isso. Dizem que ele não tá mais
trabalhando, mas ele tá lá. E todo mundo respeita lá ele. Porque ele
que começou e praticamente ele considera isso lá como se fosse dele,
né... Aquilo ali.
*Você acha que essa relação, essa teia que ele criou é muito grande?
Ou seja, ele tem muita influência, muito poder ao redor?
- Tem. Tem muita influência ele, com certeza. A influência dele é
muito grande ali. Muito, muito grande ali. Ele que conseguiu colocar
isso pra ele, quase isso aí tudinho. Ele até hoje ainda manobra essas
coisas. Vem gente de fora, mas ele que manobra esse pessoal que vem
sim. Pra poder fazer isso aí, é como a gente fala, tem que fazer uma
varredura. Sai ele, sair aqueles outros que estão lá, que é daqui [de
Oriximiná]. Tirar esses que tão lá... é fazer uma varredura. Tirar todo
mundo de lá pra entrar outros. Aí a gente pode ver uma melhora.
*Agora esses filhotes você só ouviu falar, não teve conhecimento
direto...
- Não teve assim direto não. Só escutei a conversa. Isso como sempre
a gente escuta, né.
*É, eu também, sempre escuto mas nunca vi ninguém que fale olha...
só os pesquisadores.

                                                                                                           
365
 SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.  
  351  

-Exatamente, é. Não, já escutei assim, que tinha na linha Trombetas


esse comentário e já por aqui mesmo já escutei comentário que sai de
lá pra Manaus. É o que eu vejo falar. Os criadores vai... segundo que
já chegou, que eu já... eu procuro me informar das coisas também...
vai pra um cara em Itaquatiara, ele mora no km [...]. Ele tem um
criadouro de tartaruga lá muito grande que é pra comércio. E ele é
daqui do município de Oriximiná. Ele tem uma coisa com o [...]. É
esse que é o negócio. É conhecido ele lá como [....]. Tem uma
fazenda.
*Deve ser tudo legal.
- Tudo, tudo legal. Tem muita criação de peixe lá...
*Deve ser lá que eles esquentam então.
- É pra lá que... segundo o que eu vejo falar é isso.
*É uma história impressionante. Tem anos e anos e anos que isso tá
acontecendo. Tem muito tempo.
- Muito tempo. Há muito tempo que isso tá acontecendo, com certeza.
Isso não é da agora não, porque olha, segundo dizem que o que ele
conseguiu, antes, foi tudo em cima desse coisas de tartaruga. O que
ele tem que acabou mais com o que ele tinha.
*Mas ele tinha muita coisa?
- Muita coisa ele.
*Muita terra?
- Muita terra e muito gado. Hoje em dia não. Tem pouco. Ele vendeu.
Tomaram um pouco de terra dele aí...366

Na REBIO-RT a captura de quelônios é um dos problemas mais prementes, não


apenas pelos invasores que burlam a vigilância e carregam seus barcos com os mesmos, ou
pelos tradicionais que veem nisso uma forma de amenizar suas carências materiais, mas pelas
relações que se estabeleceram com todos os atores envolvidos. A nossa dócil actante
tartaruga-da-amazônia ainda sobrevive em meio a esse fogo cruzado e, entendo, deve ter o
direito de continuar compondo ali aquela sócio-natureza. Mas para isso é necessário ajustar os
espaços e criar novos pactos.

                                                                                                           
366
 SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.  
  352  

5 A FLORESTA NACIONAL SARACÁ-TAQUERA – FLONA-ST

A ascendente organização política dos remanescentes de quilombo e dos demais


tradicionais de Oriximiná em 1985, assessorados pela Igreja Católica e com alianças cada vez
mais abrangentes com outros movimentos, a crescente instrumentalização de suas demandas e
a institucionalização de um movimento formalizado em 1988, tornava-os não mais apenas
pobres lavradores invisíveis. Agora formavam uma rede cujos fios se lançavam para se
acoplarem com tudo aquilo que se identificava com a luta dos oprimidos e pela floresta
amazônica e seus povos. Com a conquista do movimento negro no artigo 68 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias na Constituição Federal de 1988 espelhavam-se
todas as reivindicações daqueles povos e determinava-se ao Estado a observância a elas.
Erguia-se uma resistência cuja força fazia frente a toda rede de interesses diretos atrelados à
mineração da bauxita, que, por antecipação, antes que aflorasse o conflito sob a nova ordem
constitucional, fizeram o Estado eleger o que era mais importante: as pessoas e seus modos de
vida atrelados à floresta ou a bauxita. Por uma estratégia ardilosa e contraditória criou-se a
Floresta Nacional Saracá-Taquera poucos meses depois da época em que se constituiu a
ARQMO - Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná, sem
estudos prévios, sem consulta e exatamente sobre as áreas de jazida. Apesar de já existir uma
proposta de Floresta Nacional no Rio Trombetas, também pelo projeto RADAM, a área
proposta e a finalidade era bem distinta da FLONA-ST.
Os estudos da Floresta Nacional Saracá-Taquera foram feitos posteriormente à criação
da mesma e o IBAMA, na época tinha que criar uma justificativa para o ato, realizando às
pressas uma “exposição de motivos”, abrangendo a mesma região onde operava a Mineração
Rio do Norte – MRN. Inicialmente denominada de Reserva Florestal Saracá-Jamari, com
429.600 ha, a FLONA-ST foi criada no final do ano de 1989 pelo Decreto Federal 98.704 de
27 de dezembro, com as mesmas dimensões da proposta inicial. O decreto de criação da
FLONA autorizou a continuidade das atividades de lavras minerais nas áreas de reserva
técnica. A FLONA-ST abrange os municípios de Oriximiná, Faro e Terra Santa, entre as
coordenadas geográficas 1°20’ e 1°55’ de latitude Sul e 56°00’ e 57°15’ de latitude Oeste.
Limita-se ao norte com a Reserva Biológica do Rio Trombetas, tendo como linha divisória o
rio Trombetas, a oeste com terras da União na bacia do Rio Nhamundá, ao sul com
propriedades privadas, pela bacia do Rio Nhamundá e do Lago Sapucuá e a leste com
propriedades privadas na bacia do rio Trombetas e do Lago Sapucuá.
  353  

Segundo Carvalho367 que desenvolveu os estudos da REBIO-RT e mais antigo


funcionário público ali para a criação da FLONA-ST:
- Se reuniram ai três maranhenses, o Sarney, o Mesquita que era o
presidente do IBAMA e mais o presidente da mineração do norte... se
reuniram e fizeram lá um documento e criaram a Floresta Nacional
aqui. Essa Floresta Nacional aqui criada pra proteger o minério...
* Pra impedir que haja a titularização da terra...
- Também... Tudo bem, só que no conceito o PNMA, que são as
grandes potências do mundo que doavam dinheiro pro Brasil, não
pode doar nenhum tostão pra Floresta Nacional. Por que não podia
doar? Porque é inconcebível ter uma Floresta Nacional com uma
mineradora dentro.

Por sua vez Nedel368 esclarece como foram realizados os estudos de criação da
FLONA-ST, pois enquanto coordenador de florestas nacionais do IBAMA na época, foi quem
realizou os mesmos:
*Me fala seu nome completo João.
- Meu nome é João Carlos Nedel, sou engenheiro florestal. Trabalhei
na coordenação dos programas especiais, como coordenador de 80 -
84, 85 e um dos projetos nossos era a implementação e consolidação
da Reserva Biológica do [Rio] Trombetas. Também participei, já a
alguns anos depois, como coordenador de florestas nacionais da
criação da Floresta Nacional de Saracá-Taquera. Mas assim, onde eu
participei praticamente foi uma ação previamente decidida e
determinada pela Presidência da República, e pelo próprio presidente
do IBAMA na época e o nosso trabalho era simplesmente um trabalho
burocrático, não lembro com clareza, mas era tipo fazer uma
exposição de motivos, fazer algo assim... uma coisa que já estava
decidida, entendeu? Só uma maquiagem de um documento, uma coisa
assim.

Conforme se estampa a FLONA-ST, cuja origem pode ser caracterizada como um


“golpe”, guarda conflitos de outra ordem e dimensão quando comparada à REBIO-RT,
agregando também outros atores além da mineradora, governo e os quilombolas, como
madeireiras, fazendeiros e ribeirinhos. Sua história é separada da REBIO-RT e sua intensão
de conservar o ambiente, nunca existiu. Os motivos históricos de criação da FLONA-ST
foram ordenar mineração desenvolvida pela MRN e assegurar a posse pública do território e
seu respectivo controle para inviabilizar o pleito dos outros grupos de interesse sobre as áreas

                                                                                                           
367
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011. Grifei.
368
NEDEL, J. C. A implementação da Floresta Nacional Saracá-Taquera e da Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 28 de fev. de 2013. Brasília, 2013.
Grifei.  
  354  

que se sobrepunham. Conforme já mencionado, em 2002 um consórcio de oito


organizações369 entra com uma representação no Ministério Público Federal reivindicando
que não se dizimasse o Platô Almeidas com a exploração do minério, privilegiando o uso dos
castanhais. Ou seja, que a floresta fosse priorizada na Floresta Nacional. Neste documento
expõem a percepção de parte da população oriximinaense sobre a FLONA-ST:
A Floresta Nacional Saracá-Taquera foi criada por meio de decreto
[...] pelo então Presidente José Sarney, 4 dias antes de terminar o seu
mandato, num ato antidemocrático recheado de autoritarismo e
arbitrariedade – ainda sob o pensamento militar do regime ditatorial –
afastado da realidade, politicamente incorreta, socialmente excludente,
economicamente privilegiando a MRN. [...] que a atividade
mineradora da MRN atingirá 32,58% do total da Floresta Nacional.
Que esta unidade de conservação denominada Saracá-Taquera é a
primeira que foi criada para na sua origem ser devastada. Cria-se uma
Floresta Nacional para permitir a extração de minério. Tal Floresta
veio ao mundo como uma criança abortada. A propósito o que vai ser
conservado? Seria o direito exclusivo da MRN? E quanto ao direito
das populações tradicionais?370

A FLONA, no plano dos discursos que foram publicizados, se amparou na


necessidade de proteção ambiental daquela área. O Plano de Manejo, com o processo de
revisão encerrado em junho de 2013 e não publicado até o final desta pesquisa, associa a
criação da mesma às ameaças ao meio ambiente que a região sofria, as dificuldades de
fiscalização e a uma necessária ampliação das atividades de conservação e fiscalização antes
realizadas pela própria MRN e restrita à área de atividade da empresa (com o IBAMA desde
sempre alocado ao lado na REBIO-RT, mantendo-se o mesmo quadro de funcionários depois
da criação da FLONA):
As atividades de conservação e fiscalização realizadas pela MRN
estavam restritas, até 1989, à área de atividades da empresa, que
compreendia cerca de 20.000 hectares, estando o restante da região
totalmente desprotegido e sob constantes ameaças de desmatamento,
caça e pesca predatórias. Frequentemente eram vistos barcos
carregados de madeira navegando pelo rio Trombetas.371
                                                                                                           
369
Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Município de Oriximiná – STRO; Associação dos Remanescentes de
Quilombo do Município de Oriximiná – ARQMO; Associação de Mulheres Trabalhadoras do Município de
Oriximiná – AMTMO; Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Médio Lago Sapucuá – ACPLASA;
Comissão Pastoral de Direitos Humanos – Paróquia Santo Antônio; Associação dos Agentes Comunitários de
Saúde do Município de Oriximiná – AACOSMO; Associação Comunitária dos Remanescentes de Quilombo da
Área Trombetas – ACORQAT; Associação Comunitária dos Pequenos Agricultores do Município de Oriximiná
– ACPAMO.
370
SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE ORIXIMINÁ et al. Representação à Procuradoria
Geral da República de Santarém. Oriximiná, 02 de Abril de 2002.
371
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS.
Plano De Manejo Da Floresta Nacional Saracá Taquera. Curitiba: STCP Engenharia de Projetos Ltda, 2001. p.
5.1
  355  

Como as áreas da mineração e das populações tradicionais são coincidentes em parte


significativa, valer-se da questão ambiental para cercear os direitos dos quilombolas aos seus
territórios ganhava, em um só tempo, a legitimidade universalizável do discurso ambiental e a
sobreposição jurídica, também de base constitucional, de um direito difuso sobre um direito
coletivo (stricto sensu). Ao mesmo tempo declara quais interesses eram privilegiados pelo
governo e quais estratégias foram operacionalizadas para efetivar esses interesses. Essa
estratégia, conforme Rolla & Ricardo372 não se distingue de outras FLONAs criadas no
Governo Sarney sobre territórios indígenas, no Amazonas, Roraima entre outros, ora para
atender interesses da Soberania Nacional, ora para interesses de grupos econômicos fortes,
reafirmando uma lógica de “expropriação ecológica”373.
A questão, como se discute adiante, é que com as mudanças legislativas advindas com
o SNUC e uma nova forma de valoração dos recursos florestais renováveis, as bases legais e
argumentativas que sustentam a legitimidade da mineração em Florestas Nacionais quedaram-
se extremamente fragilizadas.

5.1 Acima da Lei

Mineração em unidades de conservação é uma realidade na Amazônia brasileira.


Conforme dados do Instituto Socioambiental - ISA, a partir das informações dispostas no
Cadastro Mineiro do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM sobre os pedidos
de pesquisa ou exploração de lavras, cruzando os dados com os perímetros de UCs federais e
estaduais georeferenciados, dos 40.144 processos constantes no DNPM em 2006, cerca de
5.283 incidem sobre UCs federais e 880 em UCs estaduais. Dos processos válidos, 406 já se
encontravam em pesquisa ou exploração em 32 UCs de proteção integral e em 23 Reservas
extrativistas, onde a lei veda explicitamente. O restante, 571 processos encontram-se em 33
UCs de uso sustentável, sobretudo em Florestas Nacionais e Estaduais374.
Essa discussão permeia ao menos três pontos substanciais: 1) o conflito de interesses
públicos de preservação e desenvolvimento; 2) a anterioridade da atividade de lavra e a
abrangência da área protegida com relação ao subsolo, conjugado com os impactos que
                                                                                                           
372
ROLLA, A. & RICARDO F. (org). Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São
Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. p.17
373
BRUCE, A. Terra Yanomami e Florestas Nacionais no Projeto Calha Norte: uma expropriação ecológica. In:
Povos Indígenas no Brasil, 1987-1990. São Paulo: CEDI, pg. 166-169.
374
ROLLA, A. & RICARDO F. (org). Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São
Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
  356  

podem ser caudados sobre os atributos que justificam a proteção de dada área; 3) as
disposições legais que estabelecem o que pode ou não dentro de uma determinada UC.
Com relação ao primeiro ponto, a mineração, conforme visto, é compreendida como
interesse nacional. Qualquer minério é bem público da União, só pode ser explorado quando
autorizado ou concedido com base no interesse público e por brasileiros ou empresas
constituídas sob as leis brasileiras. Em tese, toda mineração seria de interesse público, não
obstante o histórico mundial de devastação que propiciou à atividade o título de “economia de
rapina”. Por outro lado a proteção ambiental é interesse difuso, abrange toda a coletividade.
Do ponto de vista dos mineradores, a atividade deve sobrepor-se tanto à propriedade privada
quanto às restrições ambientais que recaem em áreas de ocorrência de jazidas como o
exemplo das unidades de conservação, visto que se trata de interesse do desenvolvimento
nacional. Por outro lado, enquanto direito fundamental o meio ambiente não é transigível,
negociável ou disponível e como as Unidades de Conservação são previstas
constitucionalmente enquanto “espaços territoriais especialmente protegidos” indispensáveis
à manutenção do ambiente sadio, esse interesse, em tese, não pode ser flexibilizado375.
Entretanto, quando há colisão de interesses dessa natureza o que se assiste peremptoriamente
é a sobreposição dos interesses de grupos economicamente mais fortes, dentro da óptica que
adotamos, que estabelecem redes mais extensas, que estão associadas a grandes grupos e ao
governo que legitima a atividade enquanto promotora do desenvolvimento nacional.
O segundo e terceiro pontos podem ser discutidos conjuntamente, pois tratam de um
lado se atividade foi iniciada antes ou depois da criação da UC, se a mesma compreende a
proteção do subsolo e sobre o que a lei dispõe sobre cada categoria de UC. Para as UCs de
proteção integral cuja utilização só pode ser realizada de forma indireta, a mineração ficaria
vedada de toda sorte (mesmo sem menção explícita ao subsolo), cabendo no caso discutir
possíveis indenizações relativas aos investimentos realizados no caso de atividades anteriores
à criação da unidade (o minério não entraria na indenização por ser propriedade da União).
Com relação às UCs de uso sustentável, as que não dispõem explicitamente a vedação ou
destinação incompatível, vai depender do que dispõe o Plano de Manejo e o Zoneamento das
mesmas. O SNUC trata em seu artigo 24 que “o subsolo e o espaço aéreo, sempre que
influírem na estabilidade do ecossistema, integram os limites das unidades de conservação”,
por sua vez, o decreto que regulamenta essa lei (Decreto nº 4.340/2002) em seu artigo 6º diz
que o subsolo deve ser definido no ato da criação ou posteriormente em seu Plano de Manejo,
                                                                                                           
375
 LIMA, A. SiNUCa de bico: mineração em Unidade de Conservação. In. ROLLA, A. & RICARDO F. (org).
Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006  
  357  

o que, dependendo do caso vai possibilitar a atividade de lavra, desde que compatível com os
fins de uma dada unidade.
A FLONA-ST tem previsto no seu decreto de criação a atividade de mineração da
bauxita. Em outros momentos é explicitado a MRN como parceira para implementação,
elaboração do plano de manejo e convênios com as autoridades gestoras da FLONA-ST. O
imbróglio jurídico com relação à mineração em Florestas Nacionais na Amazônia não é
exclusividade da Saracá-Taquera, mas também da FLONA de Bom Futuro (Decreto Federal
96.188/88), de Carajás (Decreto 2.486/98), do Amana (Decreto s/nº de 13/02/06), do Amapá
(Decreto 97.630/89), do Crepori (Decreto s/nº de 13/02/06), do Jamanxim (Decreto s/nº de
13/02/06), Tapirapé Aquiri (Decreto 97.720 de 1989) entre outras376. Parece haver um
entendimento pacífico por parte dos órgãos gestores dessas unidades no que diz respeito à
essa prática, apesar de existirem divergências legais como pretendo demonstrar.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado além de uma garantia
constitucional prevista no artigo 225 da CF88 é pacificamente reconhecido pela doutrina
como um direito humano fundamental. Esse posicionamento hierárquico-normativo corrobora
alguns entendimentos, essenciais à devida interpretação consonante à CF88, que atribuem
certas características a esse direito que não poderiam ser desconsideradas pelos agentes
públicos de todas as esferas do poder. A ordem pública ambiental constitucionalizada, cria
restrições ao uso da propriedade – pública e privada – e dos recursos naturais, condicionando
e limitando sua exploração ao bem estar social e a não degradação do ambiente. Um primeiro
entendimento que se depara é a aplicação imediata e vinculante do direito-dever
constitucional, independente da atuação do legislador ordinário. Enquanto difuso, o direito-
dever ao ambiente se espraia por toda coletividade possuindo a mesma como sujeito direto, i.
e., evocá-lo significa evocar o direito de todos em causa própria. Esse posicionamento lhe
confere um caráter transindividual, intertemporal ou atemporal com repercussões inovadoras
no campo do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da prescrição. É atribuída a
irrenunciabilidade (direito que não pode ser renunciado), a inalienabilidade (direito que não
pode ser negociado) e a imprescritibilidade (direitos e deveres que não sofrem alienação
temporal), em que se percebe a consolidação de uma ordem pública diferenciada como
ressalta Benjamin377:

                                                                                                           
376
LIMA, A. SiNUCa de bico: mineração em Unidade de Conservação. In. ROLLA, A. & RICARDO F. (org).
Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006
377
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira.
CANOTILHO, J. J. G.; MORATO LEITE, J. R. (org.), Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 122
  358  

Tal ordem pública ambiental, por estar constitucionalizada e atrelada a


todos os bens e atividades, impõe a reversão do princípio
civilistico/administrativo tradicional, segundo o qual os dispositivos
interventivos na liberdade da indústria e do comércio são sempre de
interpretação e aplicação restritivas [...], na hipótese de exegese de
norma infraconstitucional duvidosa, ou mesmo na omissão de
regramento específico da atividade econômica, buscar-se-á, sem
exceção, a referência ao dever genérico de defesa e preservação do
meio ambiente e aos princípios da primariedade do meio ambiente, da
função ecológica da propriedade e da explorabilidade limitada dos
recursos naturais, matriz que deve sempre levar a entendimento que
propicie a melhor e mais eficaz salvaguarda do “meio ambiente
ecologicamente equilibrado”, bem tido como essencial à sadia
qualidade de vida.

Dentro dos dispositivos constitucionais direcionados para o poder público na


consagração do direito ao meio ambiente, merece destaque a criação dos espaços territoriais
especialmente protegidos como um dos instrumentos de base constitucional, conforme art.
225, parágrafo 1º, inc. III:
§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder
público:
III – definir em todas as unidades da federação espaços territoriais e
seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a
alteração e supressão permitidas somente através de lei, vedada
qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção

Esses espaços, as unidades de conservação conforme mencionado, vão ser


regulamentados pela legislação infraconstitucional por meio da lei 9985/2000, que
implementa o SNUC. Por sua vez, considerando o foco em torno das Florestas Nacionais,
antes do SNUC e mesmo da CF88, já havia disciplinamento legal para as mesmas,
primeiramente pelo art. 5º da Lei 4771/65, o Código Florestal, e posteriormente pelo decreto
1.298/94, ambos revogados pelo SNUC. Cabe ressaltar que a CF88 consagrou estes espaços,
cuja alteração só é possível mediante lei específica, como indispensável para efetividade do
direito fundamental ao meio ambiente.
Retornando ao caso das Florestas Nacionais, conforme visto, não são raros os
exemplos em que atividades de mineração são desenvolvidas no interior desses espaços
territoriais protegidos. Ademais a criação de muitos desses espaços antes de se dar em nome
de uma causa ambiental legítima, foi uma estratégia governamental para cercear direitos e
impor uma ordenação territorial atrelada aos interesses de grupos que não raras as vezes
colidem em suas práticas com à ideia de conservação comumente apreendida. Por sua vez, à
  359  

época da criação da maioria das FLONAS com estes propósitos o que as regia era a Lei
4771/65 em seu artigo 5º, que mencionava apenas que o Poder Público as criaria “com fins
econômicos, técnicos ou sociais, inclusive reservando áreas ainda não florestadas e destinadas
a atingir aquele fim”. Da menção normativa anterior não se depreende nada que impedisse a
prática da mineração, ao contrário, era plenamente possível a prática da mineração em
florestas nacionais do ponto de vista legal.
Com o Decreto Federal 1298/94 o dispositivo da Lei 4771/65 foi disciplinado e as
FLONAS ganham uma função mais próxima da atual prevista no SNUC, relacionando-as à
exploração sustentável de recursos naturais, sobretudo de origem florestal, além da
conservação, pesquisa, educação e lazer.
Por sua vez, o artigo 4º do mesmo decreto faz alusão à exploração de recursos
minerais, permitindo tal prática, posto que estabelece menção direta à Lei 7805/89 que instituí
o regime de permissão de lavra garimpeira, em seus artigos 16 e 17, que mencionam
diretamente pesquisa e lavra em áreas de conservação sob a dependência de
licença/autorização prévia do órgão ambiental.
Art. 4º A realização de quaisquer atividades nas dependências das
FLONAS, especialmente de pesquisa, deverá ser precedida de
autorização do IBAMA ou de licença ambiental, nos termos previstos
nos arts. 16 e 17 da Lei nº 7.805, de 18 de julho de 1989.

Entretanto com o advento do SNUC a redação que disciplina estes espaços territoriais
protegidos sofre alterações substanciais. Apesar de se tratar de uma UC de uso sustentável, o
legislador entendeu que esse tipo de espaço deve ser destinado somente à exploração de
recursos florestais, conforme se depreende da redação do artigo 17 da lei 9985/2000:
Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de
espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso
múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica,
com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas
nativas.

Com a Instrução Normativa 31 de 2004 do IBAMA, as atividades de lavra em


FLONAs foram novamente mencionadas, mas adotando o posicionamento mais consonante à
nova redação do SNUC, apenas seriam possíveis licenças para atividades “onde a lavra foi
concedida anteriormente à criação da Unidade de Conservação”. Por sua vez, a Instrução
Normativa do IBAMA nº 152 de 2007, autoriza explicitamente a pesquisa e lavra em algumas
Florestas Nacionais, entre elas a Saracá-Taquera, especificando os procedimentos necessários
para obtenção de autorização do órgão ambiental. Outros pareceres do IBAMA reafirmam a
  360  

possibilidade de mineração em FLONA, mas somente para atividades cuja licença fora
concedida antes da entrada em vigor do SNUC.
Neste sentido a interpretação de que o SNUC, ao especificar que nas FLONAs as
atividades precípuas ao modelo de conservação proposto estão atreladas exclusivamente à
exploração de recursos florestais, sejam eles madeireiros ou não, de maneira indireta excluí a
atividade mineradora. Não obstante o entendimento neste sentido, advoga-se que as atividades
que já operavam anteriormente à criação da unidade e que dispõem em seus diplomas
constitutivos a permanência da mesma, bem como em seu plano de manejo, estariam
operando dentro da lei.
No caso a Floresta Nacional Saracá-Taquera estaria enquadrada nesta situação, visto
que em seu decreto há a previsão legal explícita sobre a atividade de mineração. No seu plano
de manejo, financiado pela própria MRN, também existem diversas disposições sobre a
mineração da bauxita compreendida pelo mesmo como prática sustentável e legalmente
adequada para a UC em questão. O Decreto 98.704/89 autoriza o próprio IBAMA a
conveniar-se com a MRN objetivando obter apoio para a implantação da FLONA e proteção
de sua área. Com relação ao Decreto cabe a seguinte transcrição:
Art. 2º As atividades de pesquisa e lavra minerais autorizadas já em
curso ou consideradas reservas técnicas na área da Flona, ora criada,
não sofrerão solução de continuidade, devendo ser observado o
disposto no art. 225 da Constituição Federal, bem como o disposto no
Decreto nº 97.632 de 10 de abril de 1989, e na Lei nº 6.938, de 31 de
agosto de 1981.

Por sua vez, no Plano de Manejo da FLONA de 2001 é estabelecido em seu


zoneamento a área destinada à mineração, correspondendo a uma parte significativa da
própria FLONA conforme pode-se atestar com a imagem:
  361  

Mapa 10: Zoneamento da FLONA-ST. Fonte: Plano de Manejo da Floresta Nacional Saracá-Taquera,
2001.

Não obstante as Instruções Normativas do IBAMA afirmarem ser possível a


mineração somente nas áreas de lavra previamente concedidas antes da criação da FLONA,
contrariando as próprias normativas do IBAMA e da AGU, é acatado na revisão do Plano de
Manejo o adicional de 9.658,37 ha solicitado pela MRN na zona de mineração da FLONA
que já perfazia 142.095,47 ha do total da FLONA-ST. Essas áreas são novas, não estavam
previstas anteriormente. Conforme o mapa:
  362  

Mapa 11: Mapa geral das novas áreas propostas de inclusão na zona de mineração da FLONA-ST. MRN, 2011

Toda fundamentação legal empregada para justificar a legalidade de atividade de


mineração em FLONAs está consubstanciada no instituto do direito adquirido e do ato
jurídico perfeito. A relação de anterioridade prevista na IN 31/04 do IBAMA, bem como nos
pareceres Parecer/agu/pgf/ibama/proge n°0413/2003 e Parecer/agu/pgf/ibama/proge/coepa n°
0212/2004 afirmam a assertiva consubstanciando a possibilidade da mineração em FLONA
na relação da existência anterior da atividade.
Conforme visto, em matéria ambiental a Constituição Federal de 1988 vai abominar a
ideia de direito adquirido quando a atividade é considerada poluidora, i. e. não importa se uma
atividade é desenvolvida há cinquenta anos, se ela passa a ser considerada socialmente lesiva,
dever-se-á fazer valer a nova legislação ambiental. O interesse difuso deve prevalecer sobre o
interesse público da administração e sobre o interesse privado. A questão a saber é se a
atividade de mineração da bauxita poderia ser compreendida enquanto “poluidora”,
especificamente quando desenvolvida em FLONAs. Não que atividade de mineração da
bauxita seja considerada poluidora a priori, uma vez que exercida criteriosamente conforme
preconiza a legislação ambiental, será considerada lícita e de interesse público (como toda
atividade de mineração).
Mas, se recobrarmos o que diz a CF88 com relação a criação de UCs como forma de
assegurar o direito fundamental ao ambiente, somando ao fato de que a mesma afirma ser
“vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção”, mais a redação dada pelo SNUC às FLONAs, restringindo a exploração sustentável
de seus recursos aos recursos florestais, temos uma questão: a tese do direito adquirido, do ato
jurídico perfeito, da anterioridade da atividade etc. só seria viável se a atividade de mineração,
no caso da bauxita, não comprometesse a integridade dos recursos florestais.
Ainda que compreendida como de interesse público, a atividade econômica de
exploração da bauxita, desenvolvida por empresas privadas com fins lucrativos, não pode ser
lícita se conflitar com o interesse difuso da res communis omnium/res extra commercium que
caracteriza o bem ambiental – neste caso materializado nas funções da UC em questão. Seria
opor Direito contra Direito, ou melhor Direito contra Constituição. Se o legislador
compreendeu que em Florestas Nacionais somente a exploração sustentada dos recursos
florestais são compatíveis com estes espaços especialmente protegidos, que por sua vez são
instrumentos essenciais da promoção do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, conforme a própria Constituição, então, nestes espaços, somente a atividade que
não “comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção” poderia ser
  363  

desenvolvida, fazendo-se respeitar o caráter intertemporal/atemporal/transindividual do


direito constitucional ao meio ambiente. Retomando, no caso da mineração da bauxita, a
atividade só poderia ser considerada lícita dentro da FLONA – independente de licenciamento
e formalização de processos e aquisição de outorgas pela administração pública – se não
puder ser considerada enquanto “poluidora/degradadora” para os recursos protegidos pela
categoria de unidade de conservação chamada Floresta Nacional, disciplinada pelo art. 17 da
Lei 9985/2000. Ou seja, obriga a uma remissão à própria atividade de exploração da bauxita e
uma análise com bastante acuidade de seus impactos, confrontando-os com os fins de uma
Floresta Nacional.
A bauxita da FLONA Saracá-Taquera encontra-se na superfície, o “horizonte
mineralizado varia de 1 a 7 m com média de 4,5m”, as lavras estão na média de 16 metros de
profundidade, ou seja, para exploração do minério é necessário remover toda a cobertura
vegetal, todo o solo orgânico, enfim toda a camada biótica – mineração a céu aberto,
conforme já apresentado. Isso quer dizer que toda a área de mineração será desflorestada e
esta se dá em platôs com até 40 km2. A ideia de promover um corte raso em uma Floresta
Nacional não aparenta ser sustentável para mesma, quanto mais quando há um inevitável
subaproveitamento dos recursos florestais madeireiros e não madeireiros, bem como
impossibilidade de exploração continuada dos produtos da floresta como a copaíba, o breu, a
castanha, os cipós, as resinas, o açaí, a bacaba etc., que no nosso caso já são explorados e
estão em conflito. Mesmo havendo a obrigação legal de recuperação da área de mineração, há
uma forte e inafastável contradição da exploração mineral da bauxita frente às funções
designadas pelo legislador para às Florestas Nacionais, especificamente no caso da Saracá-
Taquera.
Ainda que houvesse exclusão do subsolo dos limites da FLONA, o que não é o caso, a
licitude do empreendimento padeceria de base legal para ser sustentado dentro da FLONA,
tendo em vista que a superfície do solo é completamente desfigurada e com isso os atributos
que justificam a proteção, quais sejam, as florestas. Neste mesmo sentido, consubstanciar a
legalidade da prática da mineração em sua anterioridade à criação da UC, no caso específico,
aparenta estar equivocado e afrontar abertamente a CF88, instituindo um direito adquirido de
poluir/degradar espaço protegido com finalidade precisada na Lei.
Em campo realizado em Santarém numa conversa breve com o Procurador da
República apresento esses mesmos argumentos e questiono sobre a necessidade de se
ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, tendo em vista não só a base
infralegal da fundamentação autorizativa contrariar a norma maior, requerendo uma
  364  

harmonização adequada do ordenamento jurídico, mas o conflito que estava ocorrendo sobre
o uso por tradicionais dos produtos florestais não madeireiros como a castanha (Platô
Almeidas) e a copaíba (Platô Monte Branco), cujo impacto é praticamente nenhum e o uso é
temporalmente indeterminado. Obtenho como resposta que a argumentação faz sentido, mas
que seria uma energia canalizada em vão, porque seria mais fácil a mineração mudar a lei do
que perder suas jazidas. Ou seja, a atividade está acima da lei e não existe Estado
Democrático de Direito?
As questões legais tangentes à mineração em UC, especificamente em Floresta
Nacional, no caso em tela, se apresentam substancialmente complexas e tecnicamente pouco
adequadas em sua aplicação/interpretação. O Poder Público evidencia se amparar mais em
acordos políticos do que propriamente na lei, que apresenta-se flexibilizada para atender os
interesses desses grandes grupos. Entretanto, outro ponto se mostra igualmente complexo no
que tange à legalidade e priorização.
Conforme abordado, no interior da FLONA habitam comunidades tradicionais –
quilombolas e ribeirinhos, principalmente nos seus arredores. Ambos possuem práticas
extrativistas muito variadas que vão desde a extração da castanha-do-Brasil, até resinas, breu,
copaíba, madeiras etc. Não raras as vezes áreas destinadas à mineração eram utilizadas por
estes tradicionais para realização de suas atividades extrativistas com fins comerciais.
Atividades estas com impacto muito baixo e muito mais adequada às funções de uma Floresta
Nacional.
Um caso específico, tratado adiante, coloca em confronto direto duas comunidades e a
MRN. O Jamari no interior da REBIO e o Curuça, no interior da FLONA, há mais de trinta
anos exploram as copaibeiras do platô Monte Branco, hoje explorado pela MRN. Tendo como
base de sua economia a extração do óleo de copaíba, essas comunidades estão assistindo a
perda de sua principal perspectiva de trabalho, passada de pai para filho, sucumbir diante do
avanço da mineração.
Há que se perscrutar: diante de casos conflituosos como este, em que uma prática
inviabiliza a outra, como o Poder Público deveria se posicionar? Do ponto de vista da
legalidade e da legitimidade a extração do óleo de copaíba é muito mais adequada à UC em
questão, a prática pode durar enquanto durar a floresta. Mas do ponto de vista econômico qual
valeria mais? A questão da temporalidade deve entrar em cena na apreciação dos valores que
recaem sobre os produtos florestais, sobretudo os não-madeireiros, pois são continuamente
aproveitáveis ou muito rapidamente renováveis enquanto a floresta estiver de pé. Por uma
escala temporal mais ampla estes produtos assumiriam um valor diferenciado e ao mesmo
  365  

tempo real que se sobreporia ao valor do mineral, um recurso que vai necessariamente se
exaurir até 2050, com baixo valor agregado e principalmente exportado – a ALUNORTE e a
ALUMAR, principais compradoras da bauxita da MRN são grandes exportadoras de alumina
e alumínio primário respectivamente. O importante é que essa discussão ganhe cada vez mais
espaço e inserção dentro das esferas discursivas, para que possam ser agenciados cada vez
mais interesses e mais seres, formar redes maiores tanto para os usos dos produtos florestais
quanto para a prática tradicional. Esse é um ponto de legitimação que pode minar o sistema
dentro de sua própria lógica, pois torna-se ainda mais complexa a sua desconsideração e a
FLONA-ST que já existe, deve ser utilizada para alinhavar as ações nesta direção, valendo-se
do próprio golpe que foi dado com a sua criação. Não que a bauxita não seja importante, o
poder dela esta nas mão de quem segura uma latinha de alumínio ou usa um talher, mas que
ela não deve ser priorizada quando se trata da perda de riquezas para “todos”.
  366  

5.2 ManejandoMapa Falado da Comunidade Casinha


com os Planos

Mapa 12: Mapa Falado da Comunidade da Casinha – Lago sapucuá. MMA/ICMBio, 2011.

O Plano de Manejo da FLONA-ST, desenvolvido em 2001 com recursos financeiros


da MRN, foi um instrumento elaborado para priorizar os interesses da mineração da bauxita
ou para fazer com que outras atividades não conflitassem com os mesmos. As
reivindicações de revisão deste por parte de populações tradicionais ribeirinhas (também
quilombolas), desconsideradas na primeira versão do plano, datam desde a sua publicação,
pois como não “existiam no plano”, eram invasores aos olhos do governo e não tradicionais,
tornando-se infratores por viverem como sempre viveram. Essa demanda só foi atendida em
2011, na oportunidade de também se atualizarem as zonas de exploração florestal com a
licitação da concessão florestal na FLONA-ST.
Nesse sentido, considerando que há comunidades tradicionais que
moram e outras que utilizam o interior e entorno da FLONA para
  367  

moradia e desenvolvimento de atividades produtivas voltadas ao


consumo de subsistência e comercialização e, que, estas não são
contemplados no Plano de Manejo atual, o Ministério do Meio
Ambiente, por meio do ICMBio e do SFB, iniciou o processo de
revisão do Plano de Manejo dessa unidade.378

Pelo Plano de Manejo da FLONA-ST de 2001, viviam cerca de 2.500 pessoas, dentre
comunidades ribeirinhas, remanescentes quilombolas e comunidades não tradicionais, com
a revisão esse número mais do que triplica. As comunidades quilombolas se mantiveram as
mesmas descritas no Plano de 2001 sobre a área da FLONA: Moura, Palhal, Sagrado
Coração, Mãe Cué, Curuça-mirim e Tapagem. Os quilombolas reivindicam a titularização
de territórios representando 20% da área da unidade. As comunidades de ribeirinhos não
quilombolas são muitas, não cabe descrevê-las aqui, envolvendo os três municípios
abrangidos pela Floresta Nacional379. As que se mobilizaram para reivindicar o
reconhecimento foram as comunidades do lago Sapucuá principalmente. Contudo, dentre as
questões fundiárias mais complexas apontadas, está a ocupação da floresta por populações
não tradicionais, que invadiram a área após a sua criação, configurando situações de
ilegalidade incontornáveis, senão pela remoção dessas pessoas e recuperação da área. Esses
pontos se mantiveram na revisão.
A FLONA-ST situa-se exatamente ao lado da REBIO-RT, tendo como limite o Rio
Trombetas que as divide. Nesse sentido, por serem áreas contíguas, é razoável afirmar que
em relação à sua biodiversidade e biomas, ambas possuem relevância similar, apesar do
tratamento completamente diferenciado. As atividades desenvolvidas pelas comunidades
também são praticamente as mesmas nas duas unidades de conservação, com intensidade
maior no uso da terra na Floresta Nacional. Apesar de menos reprimidas pelos órgãos
ambientais nesta área, segundo o Plano de Manejo 2001, a própria mineradora exercia
atividades de “conservação e fiscalização” em sua área de atuação de 20.000ha – não
consegui documentos nem comentários a respeito de violências ou conflitos maiores nesta
área.
Conjugando fatores como vulnerabilidade, potencialidade, restrições e aspectos legais
foi desenvolvido o zoneamento da FLONA-ST, estabelecendo-se sete zonas definidas

                                                                                                           
378
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Relatório das reuniões participativas realizadas nas comunidades da
FLONA-ST, de 23 de maio a 23 de novembro, sobre a revisão do Plano de Manejo desta unidade de
conservação. Oriximiná, novembro de 2011.
379
Nesse sentido observar o trabalho: AZEVEDO, T. M. L. S. Estatização do Puxirum: Uso coletivo da terra no
Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas, em Oriximiná (PA). Dissertação de Mestrado, UFF/
Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito. Orientação Wilson Madeira Filho. Niterói, 2012.
  368  

como: a) Zona Primitiva (25,92%) – designada para conservar amostras representativas dos
ecossistemas com intervenção mínima; b) Zona de Produção Florestal (36,02%) – com
objetivos de promover manejo sustentável da fauna e da flora com destaque para exploração
da madeira e demais produtos florestais, compreende em parte próxima da Zona
Populacional, área de prioridade para uso das comunidades quilombolas (menor
consideração para os ribeirinhos); c) Zona de Mineração (36,02%) – subdividida em área de
lavra e área de uso restrito, a primeira corresponde aos platôs que reservam a bauxita em
toda a FLONA e a segunda corresponde às encostas desses platôs representando Áreas de
Preservação Permanente pela declividade; d) Zona de Uso Especial (0,43%) – corresponde
às áreas destinadas à infra-estrutura para gestão, educação, fiscalização, pesquisa e
recreação na Floresta Nacional; e) Zona de Recuperação (0,69%) – corresponde às áreas em
conflito fundiário com população não tradicional que devem ser recuperadas
ambientalmente; f) Zona Populacional (2,49%) – corresponde às áreas destinadas à
população tradicional e relacionadas à subsistência das mesmas; g) Zona de Uso Intensivo
(0,41%) – área destinada à visitação, recreação e educação ambiental.
Os efeitos da mineração são percebidos enquanto pontuais no Plano de Manejo 2001,
mas são, indubitavelmente os de maior monta naquela unidade de conservação, em todos os
aspectos: biológicos, geológicos, físico-químicos, culturais e econômicos. As águas são
classificadas enquanto “classe 2” o que permite uma deposição maior de rejeitos e menos
custos no tratamentos dos mesmos. Uma das reivindicações das comunidades foi modificar
a classe, por sugestão dos analistas ambientais do ICMBio, para “classe especial” de uso
direto humano, assegurando um cuidado muito maior a ser tomado por parte da mineração,
para não contaminar os igarapés, parte integrante da vida daquelas populações.
Com as reivindicações para a ampliação das zonas populacionais, a MRN, com o
oportunismo que lhe é inerente, se antecipou e solicitou a ampliação da zona de mineração
em janeiro de 2011380, o que conflita com as disposições legais, conforme mencionado. Já
estava ocorrendo uma controvérsia com a zona de produção florestal que, para operar,
incidiria em área utilizada pela MRN. A licitação para a concessão florestal, através do
edital de Concorrência nº 01/2009 do Serviço Florestal Brasileiro, também gerou
controvérsia com as comunidades quilombolas repercutindo em uma representação a
ARQMO no Ministério Público Federal. O Procurador da República acatou a representação
e ingressou com a Ação Civil Pública nº 1516 -09.2009.4.01.3902/PA, obtendo liminar pelo
                                                                                                           
380
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Proposta de Revisão da zona de mineração da Floresta nacional Saracá-
Taquera. Porto Trombetas, janeiro de 2011.
  369  

Juízo Federal da Subseção Judiciária de Santarém, paralisando o processo. Posteriormente,


essa liminar teve seus efeitos suspenso pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região.
A ação teve como argumentos centrais o fato de que ainda não haviam sido demarcadas as
áreas dos remanescentes de quilombo e, também, não havia sido revisado o Plano de
Manejo. O Tribunal caçou a liminar alegando que o processo estava nos conformes legais e
que todas as cautelas haviam sido devidamente tomadas. No meio deste imbróglio é que foi
decido revisar o Plano de Manejo. Com a publicação do Edital do Serviço Florestal
Brasileiro, Edital 08/2011 lançado em maio, que teve contratada a empresa ECOSSIS em
junho de 2011, o que se apresenta não é a força da mobilização social para a revisão do
Plano de Manejo, mas um conjunto de fatores que, mais uma vez parecem estar mobilizados
na mesma hierarquia de interesses.
O primeiro produto apresentado pela ECOSSIS, mais uma vez não considerou
devidamente as populações tradicionais, dentro de suas reivindicações, e foi prontamente
rechaçado pelos Analistas Ambientais do ICMBio, André Luiz Macedo Vieira e José
Risonei Assis da Silva. Em conversa com um dos analistas me é externado que “não dá pra
acreditar a quantidade de erros e que eles desconsideraram as populações de novo, parece
piada”. No parecer do ICMBio de 31 de outubro de 2011 o documento é integralmente
desconstruído, determinando que seja completamente refeito:
Ao longo do documento são apresentadas muitas informações erradas,
sem nexo, descontextualizadas ou desatualizadas. Alguns mapas
apresentados estão com a legenda ilegível. O corpo do texto está
desorganizado, vários temas específicos que poderiam ser abordados
em um único tópico, são repetidos em diferentes partes do documento,
sendo que muitas dessas informações se contradizem.
Informações de extrema importância que poderiam estar inseridas em
mapas, tais como: a localização das comunidades residentes,
hidrografia, acessos e localidades foram apresentadas de forma
bastante limitadas.
Pelo exposto, entendemos que o documento objeto desta análise, não
atende minimamente os objetivos e requisitos técnicos necessários. 381

                                                                                                           
381
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Análise do Diagnóstico Preliminar da revisão do Plano de Manejo da
FLONA-ST. Porto Trombetas, 32 de outubro de 2011.
Figura 2 – Número total de famílias que moram no interior da FLONA, por
comunidade, segundo dados repassados por moradores nas reuniões participativas sobre
  370  
revisão do Plano de Manejo da FLONA Saracá-Taquera, ocorridas de 23 a 28 de
novembro de 2011 nas comunidades da FLONA.

52 29
7

83
ACOMTAGS - lago Sapucua
ACOMTAGS - Maria Pixi
ACOMTAGS - rio Trombetas
lago do Batata
Comunidades quilombolas

78 Comunidades de Terra Santa


237

Gráfico 4: Número de famílias no interior da FLONA-ST. MMA/ICMBio, 2011.

O documento final da ECOSSIS ficou pronto em junho de 2013 não mais compondo
os levantamentos desta pesquisa. Contudo, ponto de importância para essa caminhada está
na forma em que as populações tracionais inseriram suas demandas e as fizeram conectar na
proposta. Nas reuniões realizadas nas diversas comunidades eram construídos mapas
falados onde se apresentava as áreas de uso e as formas como as mesmas eram utilizadas,
desde agricultura, criações e extrativismo. Com isso o processo se tornou bem mais
inclusivo, possibilitando dar visibilidade aos diversos usos territoriais e diversos seres que
compõem aquelas comunidades.

5.3 A Concessão Florestal

Diuturnamente centenas de milhares de espécimes arbóreos vão ao chão na Amazônia


brasileira. Seja para atender o mercado da madeira ou para expansão das fronteiras agrícolas e
pecuárias, o percentual de área desmatada na Amazônia que encontra amparo legal é ínfimo
dentre a vastidão de terras ilegalmente desnudas de suas matas. Eivadas na ilegalidade, tais
práticas revelam, além da forma como os bens de interesse comum são apropriados por
segmentos privados específicos, o desdobramento de inúmeros conflitos que opõem formas
muito diversas de apropriação do ambiente, ideais de desenvolvimento e estratégias de
conservação.
No crescente cenário de desolação que avançou sobre a Amazônia nas últimas
décadas, rememorando a história do resto do país, a exploração da madeira ganha notoriedade
midiática ora pela rede de corrupção que se desenvolve, ora pela violência exercida pela
indústria da madeira sobre grupos extrativistas tradicionais. As cenas de imensas toras sendo
  371  

transportadas comovem os cidadãos das metrópoles repousados em seus móveis, muitas


vezes, de madeira ilegal. Para reverter esse quadro, sob pressão nacional e internacional,
assistiu-se uma crescente mobilização do governo federal no sentido de formular políticas de
manejo, controle e disciplina sobre a exploração dos recursos florestais, há séculos
descontroladamente apropriados sem maiores escrúpulos.
O principal marco dessas políticas governamentais ocorre recentemente, com a
promulgação da Lei 11.284, de 2006. A lei inova na gestão das florestas públicas brasileiras
buscando conjugar a conservação das mesmas com os benefícios sociais da utilização de seus
recursos e com ampla abertura para a participação social. Cria um órgão específico para lidar
com a questão – o Serviço Florestal Brasileiro – o financiamento através do Fundo Nacional
de Desenvolvimento Florestal e instrumentos próprios de gestão como: o Cadastro de
Florestas Públicas, a Concessão Florestal, o Manejo em Florestas Comunitárias e os
instrumentos de monitoramento, informação e fomento. Diante de uma realidade em que
cerca de 75% das florestas remanescentes estão em terras públicas, a lei pode representar um
significativo avanço na gestão desses recursos tendo como base equidade no acesso e
sustentabilidade no uso. O futuro é que dirá.
Conforme Mercadante382 a intenção do Governo quando inseriu no SNUC a categoria
de unidade de conservação “Floresta Nacional” foi para possibilitar, sob bases sustentáveis, a
exploração da madeira por empresas privadas. A Floresta Nacional Saracá-Taquera em 2009
teve licitada sua Concessão Florestal, estando entre as primeiras do país. O edital da “2ª
Licitação para Concessão Florestal - Concorrência nº 01/2009” do Ministério do Meio
Ambiente e do Serviço Florestal Brasileiro elegeu duas áreas de “Unidades de Manejo
Florestal – UMF”, que foram licitadas e tiveram como vencedoras as empresas EBATA –
PRODUTOS FLORESTAIS LTDA e GOLF – INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE
MADEIRAS LTDA.
Muito além da Concessão Florestal a Lei 11.284/2006 cria todo um aporte para a
gestão de florestas públicas, integrando, para tanto, um órgão específico ao Ministério do
Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro, que se incumbe em primeiro plano da gerência
desta política pública. A Lei cria também o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal,
com o objetivo de fomentar as atividades sustentáveis de base florestal captando recursos das
concessões e de outras fontes variadas e os destinando à pesquisa, educação, recuperação de

                                                                                                           
382
MERCADANTE, Maurício. Democratizando a Criação e Gestão de Unidades de Conservação da Natureza: a
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. In. Revista de Direitos Difusos. Florestas e Unidades de Conservação. Vol. 5.
Fev. 2001. São Paulo: ADCOAS, 2001.
  372  

áreas, assistência técnica entre outros fins. Cria um sistema de informações e um sistema de
monitoramento das florestas públicas, com intuito de promover uma gestão participativa e
transparente. Estabelece que a gestão das florestas públicas é promovida através da criação de
Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais; com a destinação de florestas públicas às
comunidades locais; e por meio das Concessões Florestais.
Com relação à destinação das florestas públicas às comunidades locais, apesar de levar
em conta a utilização de recursos madeireiros e não madeireiros pelas comunidades
tradicionais e assentados, no que tange aos recursos madeireiros vem se tornando prática
corrente a apropriação transfigurada desses recursos por empresas madeireiras em detrimento
da fruição plena (ou mesma razoável) dos mesmos pelos comunitários383. Com relação à
criação de Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais e ao implemento das concessões
florestais, há uma correlação entre ambas visto que as concessões se dão geralmente em áreas
específicas dessas unidades de conservação.
Ensaiada no desenvolvimentismo predatório do regime militar, repaginada nas
privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso e finalmente regulamentada e
experimentada no governo Lula, as concessões florestais não são uma experiência inédita no
Brasil. Iniciadas com caráter utilitário puro, perpassando a discussão da ineficiência do Estado
na gestão e aproveitamento do patrimônio público, a concessão florestal, em sua última
idealização representa uma mudança de direção da Política Nacional do Meio Ambiente, que
se valeu tradicionalmente de instrumentos repressivos de comando e controle. Com fins de
transformar os recursos florestais em ativos reais, conter o desmatamento ilegal e a grilagem
de terras, as concessões florestais representam a utilização de instrumentos econômicos com
fins de proteção do patrimônio ambiental de um lado e do outro a discussão público-privado.
Compreendendo três tipos de florestas – a de terra firme, a de várzea e a de igapó – a
FLONA-ST conforme mencionado, guarda significativa riqueza florestal e excepcional
biodiversidade. Com elevada diversidade florística, possui mais de cem espécies arbóreos
madeireiros com valor comercial e uma grande diversidade de espécies utilizadas no
extrativismo de onde se extraem sementes, folhas, cascas, látex, frutos, óleos, seivas, raízes
etc. Das oito zonas previstas no zoneamento da FLONA-ST, a zona de produção florestal,
com objetivo de promover o uso múltiplo sustentado dos recursos, gerar divisas e
implementar o manejo sustentável da floresta possui 154.742,98 ha. Esta zona equivale a

                                                                                                           
383
NETO, Manuel Amaral et al. Análise de acordos entre empresas e comunidades para exploração da madeira
em assentamentos rurais na região da BR 163 e entorno, no Estado do Pará. Belém: Instituto Internacional de
Educação do Brasil, 2011.
  373  

36,02% da unidade de conservação e se localiza, estrategicamente, nas proximidades da zona


populacional e de recuperação, para facilitar o escoamento da produção florestal e execução
dos programas de manejo. A segunda concessão florestal do país, relativa à FLONA-ST –
Unidades de Manejo Florestal - UFM II e III, licitou para duas empresas 48.800ha dentro
desta zona, recém demarcada geodesicamente sob a responsabilidade contratualmente
compartilhada entre o Serviço Florestal Brasileiro e as empresas. Apesar da atividade de
mineração da bauxita ser a mais polêmica e conflituosa exercida dentro da FLONA-ST, a
recente concessão florestal também foi alvo de conflitos entre as populações tradicionais,
empresas e poder público.
A concessão florestal, nos seus moldes atuais, sem dúvida representa um novo
paradigma de exploração das florestas públicas no Brasil. Trata-se de um regime de outorga
oneroso, com prazo determinado de 40 anos, o qual o governo concede ao concessionado o
direito de explorar de maneira sustentável os recursos florestais, madeiráveis ou não, de uma
determinada área licitada. Tomando por base o processo de licitação da FLONA-ST (2ª
Licitação para Concessão Florestal – Concorrência 01/2009), conforme Lei 11.284/2006, para
eleger a vencedora, além das documentações e condições econômicas, são analisados a
proposta técnica e de preço. Na proposta técnica são estabelecidos quatro critérios: a)
ambiental – menor impacto; b) social – maiores benefícios sociais diretos; c) eficiência –
diversidade de produtos, espécies e serviços a serem explorados; e d) agregação de valor –
grau de processamento dos produtos no local. A proposta de preço corresponde aos valores
ofertados para a exploração por metro cúbico em reais de quatro grupos madeireiros, em que
no caso correspondente às áreas licitadas UFM II e III, correspondiam ao valor de R$
1.454.190,00 e R$ 888.474,00 por ano, respectivamente. Como se trata de um contrato de
risco, a concessionária se obriga a pagar os valores, em taxas percentuais até o correspondente
anual, independente dos valores auferidos por ela, inclusive com previsão de caução. Os
recursos auferidos pelo governo serão destinados para os órgãos gestores, Estado, município e
também empregado no desenvolvimento do manejo comunitário.
  374  

Mapa 13: Zoneamento e Unidades de Manejo Florestal da FLONA-ST. MMA/SFB/ICMBio, 2012.

Outro ponto de destaque no que tange ao regime de concessões florestais, diz respeito
a sustentabilidade da prática. O regime de exploração é substancialmente controlado, com
sofisticadas técnicas de monitoramento, devendo ter aprovado o Plano de Manejo Florestal
Sustentado pelo IBAMA e o contrato supervisionado pelo Serviço Florestal Brasileiro. Por
sua vez, estranhamente o plano não tem que ter anuência do ICMBio, gestor direto da unidade
e que provavelmente detém melhor conhecimento daquela realidade (queixa de um
representante do órgão). O manejo florestal permite extrair uma média de cinco árvores por
hectare entre outros produtos florestais, não permitindo extrair minérios e outros recursos. Há
necessidade de reservar espécies como porta sementes, bem como no regime de exploração
seletiva, em tese, um ciclo completo de 40 anos permite regeneração da área para nova
exploração comercial. A participação social durante todo o processo é um valor declarado,
bem como a consideração das populações locais que detém possibilidade de participar do
processo licitatório com equitativas vantagens, perspectiva esta que corrobora com as ideias
de sustentabilidade.
Entretanto, na mencionada licitação da FLONA-ST, desdobraram-se conflitos de
significativa repercussão. Inicialmente com os remanescentes quilombolas que habitam a
unidade e utilizam seus recursos e posteriormente, com comunitários ribeirinhos em situação
similar. Conforme a Ata da Audiência Pública realizada no município de Oriximiná em 18 de
  375  

Julho de 2008, os remanescentes de Quilombo representados pela ARQMO (Associação dos


Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná), mostraram-se receosos ou mesmo
contrários à concessão. Alegaram que não foram suficientemente ouvidos e que mais uma vez
se repetia a história que os relegava à invisibilidade (como foi na implementação da MRN e
outras empresas, na criação da REBIO-RT e da FLONA-ST). As discussões que seguiram
também em outros municípios, como Faro e Terra Santa, apresentaram também preocupações
variadas de comunitários, órgãos públicos, empresas e cidadãos comuns com as
consequências da novidade. Por uma breve sistematização pode-se destacar algumas questões
que foram levantadas, principalmente em Oriximiná, como: a necessidade de revisão do plano
de manejo da unidade já mencionado; o exemplo negativo da mineração e as falsas promessas
de desenvolvimento comunitário; a ausência de mão de obra qualificada nas comunidades que
frustravam as expectativas de empregos; a dificuldade de acesso que poderia resultar da
concessão aos recursos tradicionalmente utilizados e a falta de garantias para os mesmos; a
possibilidade da concessão ser realizada pelos próprios comunitários, entre outras de menor
importância para o presente estudo. Essas questões evidenciam, de um lado, um
descontentamento por parte de alguns comunitários tradicionais no curso do processo e, ao
mesmo tempo, a possibilidade dos mesmos se posicionarem nos espaços de participação
democrática, revelando certa cultura política participativa dos mesmos (535 assinaturas nas
primeiras reuniões correspondente aos três municípios) e a abertura governamental para
consultas e audiências.
A divergência de interesses entre Serviço Florestal Brasileiro, com objetivo de dar
andamento nas licitações para efetivar a Concessão Florestal na FLONA-ST, e, a solicitação
de maiores esclarecimentos, revisão do plano de manejo e delimitação das áreas utilizadas
pelas comunidades locais por parte dos remanescentes de quilombo, culminou em uma
representação, por parte da ARQMO, ao Ministério Público Federal em Santarém. Atendendo
a representação, o Procurador da República impetrou Ação Civil Pública com pedido de
liminar para suspender a licitação. Apesar do acatamento do pedido em primeira instância,
endossando a necessidade de revisão do plano de manejo, atendimento às demandas de
titulação de terras quilombolas, de maiores definições sobre as áreas que utilizam e as
implicações possíveis de uma “exploração florestal desprovida de planejamento cauteloso”, a
liminar foi suspensa em segunda instância, dando prosseguimento à licitação. O processo
encontra-se concluso para decisão desde 05 de Agosto de 2011 e o conflito foi apaziguado
com uma revisão do “mapa” das comunidades acompanhada por órgãos públicos como
ICMBio, SFB, INCRA, Fundação Palmares e os representantes das comunidades que se
  376  

sentiram contemplados com os novos dimensionamentos. Por não corresponder à zona de


produção florestal, a UFM I, maior área, não foi licitada, quedando-se a UFM II e III que
tiveram, como já dito, as empresas EBATA – Produtos Florestais Ltda e GOLF – Indústria e
Comércio de Madeiras Ltda como vencedoras respectivamente.
Com os contratos assinados o processo de exploração dos recursos florestais devem
começar no início do próximo ano. Novos conflitos se avistam com as estradas de escoamento
dos produtos madeireiros que, em princípio, passarão por território de assentados ribeirinhos.
Cabe mencionar que a consideração das comunidades tradicionais ocorreu tanto no curso do
processo, ainda que de maneira insatisfatória, quanto no contrato, em algumas cláusulas que
fazem menção à sobreposição de seus territórios e interesse em caso de conflitos. Há menção
também sobre o acesso da mineradora às Unidades de Manejo Florestal - UMF e à
sobreposição de sua atividade de lavra, o que enseja uma discussão jurídica a respeito da
legalidade desta cláusula visto que a Lei proíbe a exploração mineral nestas áreas.
A promessa de empregos, renda, infraestrutura, aprimoramento técnico para os
comunitários, bem como a geração de receita para o governo, a auto-sustentabilidade da
unidade de conservação e o controle da atividade predatória da indústria madeireira representa
as expectativas de um progresso orientado, dentro dos ideários de um “desenvolvimento
sustentável” para a região. Por sua vez, considerar a possibilidade daqueles que habitam há
gerações aqueles territórios serem os prestadores do serviço de Concessão Florestal, de
fornecer-lhes o conhecimento técnico e de auxiliá-los em sua organização, parece não ter sido
uma hipótese levada em conta, salvo nos princípios da própria Lei 11.284/06. Talvez, após o
decurso dos quarenta anos que encerrarão os contratos atuais, ou um pouco menos de tempo
para os próximos contratos nas demais áreas da FLONA-ST, quiçá essa questão possa ser
levada em consideração de melhor maneira.
O crescente controle sobre os recursos ambientais e o disciplinamento sobre o acesso e
usufruto desses recursos apresenta-se como uma tendência inquestionável no bioma
amazônico. A multiplicação de unidades de conservação, o controle na atuação das
madeireiras ilegais e os recém implementados instrumentos de gestão florestal são reflexos de
uma presença estatal cada vez mais proativa e interventora. Há uma dupla questão,
aparentemente contraditória, pertinente ao novo modelo de gestão de recursos florestais,
enquanto bens comuns de consumo concorrencial: se de um lado a concessão abre para a
exploração privada desses bens, a mesma não se dá como uma privatização do público ou
uma descentralização de gestão desses bens; mas um acordo econômico relativamente
peculiar em que se possibilita uma exploração altamente controlada – tanto a gestão quanto o
  377  

domínio territorial permanecem sob controle governamental – com a obrigação de pagamento


proporcional à possibilidade de lucro, independente de auferi-lo.
Mesmo em se tratando de territórios destinados à posse e domínio das populações
tradicionais o controle do governo passa a ser a regra com os planos de manejo florestais. Há
um compartilhamento de responsabilidades e de gestão, com nítidos elementos democráticos,
mas em uma realidade em que a linguagem tecnicista opera como fator de exclusão. A
Concessão Florestal representa em muitos sentidos um avanço político em sua idealização,
principalmente por possibilitar que as populações que residem na área que será destinada à
concessão devam exercê-la prioritariamente.
Contudo, em ambos os casos o que se assiste é muito distinto do idealizado e consagra
a associação já há muito estabelecida entre poder político e poder econômico que dá sentido
às concepções reificadas de desenvolvimento. Tanto na realidade das concessões nas florestas
públicas quanto nos manejos florestais dos territórios de populações tradicionais e assentados,
aqueles que estão sendo considerados em primeiro plano não são os que necessitam de maior
assistência governamental, herdeiros de uma dívida histórica.

5.4 Por quê dar vez às florestas e aos seus povos?

Era 12 de janeiro de 2012, já havia encerrado meus trabalhos de campo nas


comunidades do Abuí e do Paraná do Abuí e retornado para a Base do Tabuleiro no dia
anterior. A próxima comunidade seria o Jamari e, neste dia, estava baixando o barco Silva
Moda da Cachoeira Porteira. Para economizar combustível peguei carona no “Silva” até o
Jamari e combinei previamente com os agentes que, dentro de quatro dias, quando
retornassem da busca de mantimentos no ICMBio em Porto Trombetas, me buscassem
novamente. Cheguei no Jamari ao anoitecer, não conhecia ninguém, sabia apenas o nome do
coordenador, Cocó, que logo busquei para explicar o meu trabalho e pedir abrigo. Apesar da
insegurança de estar em um lugar completamente desconhecido e sem ter como voltar dentro
de quatro dias, fui muito bem recebido. No dia seguinte, depois de gravar a entrevista com
Cocó, acompanhei seus trabalhos no roçado, no outro lado do rio Trombetas junto ao seu
filho. A comunidade apesar de viver no lado da REBIO, tem praticamente todas suas
atividades desenvolvidas no outro lado do rio, na FLONA. Enquanto caminhávamos na
floresta ele avistou e me mostrou uma bacabeira com frutos maduros, me perguntou se eu já
havia experimentado tal fruta, que eu nunca sequer tinha visto. Aproximamo-nos da palmeira
que dá o fruto, com uns dez metros de altura e ele me mostrou como apanha-lo: cortou uma
  378  

folha de uma palmeira menor ao lado e fez com ela um instrumento circular chamado
“peconha”, com esse instrumento colocado nos pés, uma coroa de folhas, é possível se firmar
na palmeira enquanto sobe. O terçado foi na boca, preso com os dentes, e quando chegou lá
em cima, sustentou o cacho das frutas na perna e o cortou, baixando com ele na própria perna
para não perder muitos frutos. O cacho de frutos media cerca de um metro e meio e pesava
uns 40Kg. O carregamos até a canoa e o levamos para a comunidade. Lá as mulheres
debulharam os frutinhos que, jogados em água quente, amoleciam para serem peneirados
dando origem a um caldo pastoso que eles chamam de “vinho da bacaba”. A fruta de cor
rósea, mais saborosa do que o açaí, foi meu alimento neste dia e de todos da comunidade que
quiseram comer, servido com farinha de mandioca.
O objetivo deste campo foi conhecer a percepção dos quilombolas sobre o conflito que
estava ocorrendo entre eles e a MRN no que tange à supressão de milhares de copaibeiras no
Platô Monte Branco, principal fonte de subsistência das comunidades do Jamari e Curuçá-
Mirim conforme já mencionado. A questão se assemelhou ao que havia ocorrido com as
comunidades ribeirinhas da Boa Nova e Saracá em relação às castanheiras do Platô Almeidas.
Os Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatório (EIA/RIMA) realizados pela
empresa BRANDT Meio Ambiente, referiram-se aos levantamentos realizados em cinco
platôs: Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó, apresentando-os conjuntamente em
2007. O EIA menciona um número significativo de espécies da flora que são raras, presentes
nos cinco platôs (137 só no Monte Branco) e uma espécie raríssima, além de diversos sítios
arqueológicos (7 sítios e 10 ocorrências no Monte Branco) e grande diversidade de fauna, o
que é próprio das áreas íntegras da Amazônia384. Ocorre que não há menção sobre as
copaibeiras no que se refere ao levantamento florestal (páginas 322 até 350) e tampouco ao
uso das mesmas pelos povos tradicionais e sobre os possíveis conflitos e impactos que
decorreriam da supressão das mesmas (parte de “tensões e conflitos” nas páginas 586 até
589)385. A mesma situação se repete no RIMA, não avençando sobre o uso humano da área do
platô Monte Branco e os possíveis conflitos que decorreriam com a mineração386. Por sua vez,
no inventário florestal dos 3.750 ha do platô Monte Branco, realizado em 2006 e que
subsidiou o EIA/RIMA, realizado pela Cooperativa de Tecnologia Organizacional –
Coopertec faz menção destacada da presença das copaibeiras neste platô:
                                                                                                           
384
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/BRANDT MEIO AMBIENTE. Estudo de Impacto Ambiental dos platôs
Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó. Volume II. Oriximiná. Abril de 2007.
385
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/BRANDT MEIO AMBIENTE. Estudo de Impacto Ambiental dos platôs
Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó. Volume III. Oriximiná. Abril de 2007
386
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/BRANDT MEIO AMBIENTE. Relatório de Impacto Ambiental dos platôs
Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó. Volume II. Oriximiná. Abril de 2007.
  379  

Em relação a outros platôs, a diversidade florística é grande neste


platô, inclusive com a ocorrência de espécies raras na Amazônia,
como por exemplo: arataciú glicia (Micrandropses scleroxylon),
saiuda (Huberodendro swietenioides), seringarana (Micrandra
rossiana), bucheira (Duckeodendro cestoides), espadaraba (Eperua
duckeana), copaíba (Copaifera reticulata), laranjinha (Spiranthera
guianensis), abiu mole (Pouteria laevigata), louro faia preto (Roupala
obtusata), muitos ipês roxo (Tabebuia impetiginosa), murucirana
(Sterigmapetalun obovatum). As espécies Huberodendron
swietenioides (Bombacaceae), Eperua deckeana (Caesalpiniaceae),
Pouteria laevigata (Sapotaceae) ocorreram pela primeira vez nos
platôs da região; essas espécies são mais comuns em locais baixos. As
outras relacionadas já ocorreram raramente em outros platôs. Nunca
se tinha encontrado com tanta abundância Copaifera reticulata
(alguns exemplares no Platô Cipó), assim como, a espécie
Micrandropsis scleroxylon (Euphorbiaceae). Recomenda-se a coleta
de sementes destas espécies no próprio local para produção de
mudas e plantio nas áreas de reflorestamentos387.

Os quilombolas das comunidades atingidas foram até os técnicos do ICMBio


denunciar que as suas práticas não estavam sendo consideradas e que iriam perder uma de
suas principais fontes de renda. Segundo os analistas do ICMBio ao receberem a denúncia
encaminharam a questão para Brasília e organizaram uma expedição para a área, junto aos
comunitários, para identificar as formas de uso.
[...]E a mineração precisava tirar esse minério, né. Foi aí que ela
começou a enxergar o pessoal aqui. Aí eu estive conversando com o
Instituto Chico Mendes, tive solicitando pra eles, que era um local
que a gente tirava copaíba...
*Você tá falando do Monte Branco?
- É. A gente tirava copaíba lá... aí eles disse: como você pode provar
isso? Aí eu disse: eu provo! Nós usa lá, o que é que eu posso fazer?
Levar vocês lá. Aí marcamo o dia e eu convidei até o Cocó pra ir
comigo. Aí foi o Victor e aquele outro cabeludo. Fomos lá em cima da
serra, de pé em pé de copaibeira. Fomos lá nas barraca... aí fizeram
um documento dizendo que ia enviar pra Brasília pra ver o que era
que acontecia, o que a mineração podia fazer. Bom, depois disso tive
duas audiência pública em Oriximiná. Aí a primeira era pra aquela
serra da Bacaba lá, que pertence a Terra Santa.388

A partir daí se iniciou um embate entre os analistas locais do ICMBio e a MRN, para
tentar não deixar acontecer o que aconteceu no platô Almeidas ou exigir uma indenização
maior sobre os produtos florestais e alguma indenização para as comunidades. A audiência
                                                                                                           
387
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/COOPERATIVA DE TECNOLOGIA ORGANIZACIONAL. Inventários
Florestal em 3.750 ha de Floresta Ombrófila Densa no Platô Monte Branco – Relatório do Inventário. Volume I.
Oriximiná. 2006. Grifo no documento.
388
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
  380  

pública foi realizada pelo IBAMA em final de 2008, de uma maneira proforma, possibilitando
a maquiagem democrática que assegurasse o licenciamento, uma vez que as comunidades
tiveram participação:
E aí fomo na audiência pública lá. Chegamo lá até o Nei tava lá. Aí
ele chegou lá e disse: olha eu vou dizer uma coisa pra vocês, hoje é a
vez de vocês reivindicarem tudo lá que vocês tem. Tudo que vocês
perguntarem vai em ata. Tinha um pessoal de Brasília... Aí eles
davam um papelzinho, a gente escrevia a pregunta que a gente tinha,
porque tinha muita gente e não tinha condição de tá falando mesmo.
Tava o Ademar da mineração, o pessoal do INPA, todo esse pessoal
foi. Aí a gente fez a pergunta lá pra eles, né, que a mineração ia tirar
esse minério daí do Monte Branco que a gente usava, tinha o produto
que a gente usava lá que era a copaíba, que a gente já tinha
comprovado pra eles. Esse material era a sustentabilidade da
comunidade, o que é que eles iam fazer em relação disso aí? Bom, o
Ademar respondeu de lá dizendo que eles tinham feito um inventário,
que realmente tinha copaibeira lá, mas eles tavam terminando de
fazer o estudo e no prazo de 60 dias eles iam chamar as comunidade
pra tentar conversar. Bom, passou 30, passou 60, passou 90, né, aí fui
lá dá uma cutucada neles. “Não, nós tamo terminando o estudo nesse
período.” Aí tem um ano e pouco que aconteceu isso né, aí eles
vieram aqui. A gente começou a trabalhar com eles, né. Eles começou
a dar uma ajudinha aqui pra gente, né. Vamos dizer... porque a gente
aqui tava trabalhando da fraqueza a força. Nós começamo aqui do
zero. Isso aqui hoje o pessoal olha aqui, né, mas pra quem viu do dia
que a gente começou aqui... daqui aí você não enxergava. Aí a gente
começou a pedir uma ajuda, falou com a mineração se eles não
davam uma ajuda pra gente. A prefeitura não quis ajudar a gente. Aí
eles agarraram e disse: olha, a gente ajuda mas quer retorno, quer
ver o que vocês vão fazer.
*Qual é o retorno que eles pedem?
- Assim, por exemplo, se eu for fazer uma farinha dessa aqui, aí eles
pediu: vocês fazem o barracão e o resto a gente dá. Tá, aí a gente fez
o barracão, né, tudinho... aí eles mandaram fazer piso, a cerca, esses
três forno, a prensa. Aí vinham ver. Tá pronto? Tá. Então era esse o
retorno que eles queriam que a gente desse. Aí nos fomo trabalhando
com eles. Eles foram dando uma ajudinha né. Aí construíram um
sistema de abastecimento de água, pra gente que a gente não tinha...
infraestrutura, né, foi ajudado pela mineração. Mas aí eles vieram
aqui conversar com a gente, que iam fazer alguma proposta, né, dessa
situação que eles tava, porque o IBAMA tinha feito um levantamento
com eles e tinha dois tipo de proposta: a indenização e a
compensação. E aí eles iam optar pela compensação porque a
indenização... podia dar, fazer uma indenização, mas o cara não...
praticamente tinha acabado, não tinha nada. E a compensação
dobraria. Que eles iam ajudando, fazendo um meio de o pessoal
  381  

ganhar alguma coisa, né... sobreviver. Mas, infelizmente, o que eles já


conseguiram aqui é muito pouco.389

Posteriormente, a MRN compra temporariamente o silêncio de uma das comunidades


com as obras realizadas no Curuçá, e já havia se antecipado com o INPA para a realizações
dos estudos sobre as copaibeiras, questão que retorno um pouco mais a frente. Em nenhum
momento foi levantado pelo ICMBio a questão das omissões no EIA/RIMA sobre o uso
sustentável pelos tradicionais dos recursos florestais não madeireiros que seriam suprimidos
na FLONA. Entendo que seria razoável que em uma Floresta Nacional os usos existentes dos
recursos florestais fossem destacados – o que configurou omissão grave dos impactos
gerados. Com isso seria possível a revisão do processo de licenciamento no IBAMA, o que
não foi sequer tocado, ficando a questão restrita ao ICMBio.
Por sua vez, os analistas da FLONA-ST, limitados à autorização para a supressão da
flora, condicionaram a emissão da mesma à apresentação do “inventário e valoração dos
produtos florestais não madeireiros”, com base na IN 09/2010, que determina que a emissão
da autorização somente pode ser dada após cumprida a indenização dos produtos não
madeireiros. Esse inventário também fora omitido pela MRN, deixando a brecha. O ICMBio
preventivamente solicita o cancelamento imediato da Autorização de Supressão Vegetal –
ASV 002/2011 à Coordenação Regional do ICMBio em Santarém (CR-03)390, encaminhou
também para Brasília e para o MPF a questão. Com esse recurso, inicialmente, o que se
conseguiria era protelar a destruição da floresta e, posteriormente, angariar uma indenização
mais considerável pela supressão. Neste ínterim, o Ministério Público Federal solicita
informações ao ICMBio em Porto Trombetas sobre a importância do inventário florestal dos
produtos não madeireiros e, do outro lado, a MRN recorre diretamente à Brasília ao Diretor
de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade - DIBIO.
A empresa recorreu a DIBIO, que na informação técnica
n°12/2011/DIBIO/ICMBio não vislumbrou óbice na emissão da
autorização, com a seguinte condicionante: “A empresa deverá
apresentar no prazo de 60 dias, metodologia detalhada e valoração dos
produtos florestais não madeireiros. A metodologia e valoração serão
analisadas pela chefia da FLONA Saracá Taquerá. Após a aprovação
será emitida nova GRU referente a estes produtos, que deverá ser paga
pela empresa no prazo estipulado.” Em atenção a informação técnica

                                                                                                           
389
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
390
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE/UNIADE AVANÇADA
TROMBETAS. Nota Ténica 002/11: Valoração económica dos Produtos Florestais Não Madeireiros – Platô
Monte Branco. Oriximiná, 06 de julho de 2011.
  382  

n°12/2011/DIBIO/ICMBio a Coordenação Regional (CR-03) emitiu a


autorização de supressão n° 02/2011

O parecer de Brasília criou uma situação anômala, em que se autorizava a derrubada


da floresta para se inventariar depois. Ou seja, a indenização sobre os produtos florestais não
madeireiros poderia ser apresentada sem a floresta, meramente arbitrada pela MRN, sem ter
como saber o que havia e o que não havia. Diante desta situação o Ministério Público Federal
ingressou com a Ação Civil Pública n° 3080-52.2011.4.01.3902 e obteve liminar que exigiu o
cancelamento da autorização. Após a decisão judicial, os analistas ambientais da FLONA-ST
formularam um Termo de Referência de Valoração e Elaboração de Inventário de Produtos
Florestais Não Madeireiros em Florestas Nacionais com base no Manual de Valoração de
Econômica de Florestas Nacionais. A empresa apresentou um estudo que foi negado pelos
técnicos em 30 de agosto de 2011,  com o valor de R$ 64.682,13 (R$ 241,70/ha)  para uma área
de 267,61 ha, questionando todos os pontos metodológicos do estudo e demonstrando ser esse
valor irrisório. Os próprios analistas ambientais, com base em outro estudo apresentado em
outubro do mesmo ano pela MRN, refazem todos os cálculos e chegam ao valor:
Considerando o marco conceitual-teórico estabelecido no Manual de
Valoração de Florestas nacionais (indicado pela Portaria ICMBio N°
15, de 05 de Março de 2010,) e a diretrizes estabelecidas no Termo de
Referência para Valoração e Elaboração de Inventário de Produtos
Florestais Não Madeireiros em Florestas Nacionais, chegamos ao
valor de R$ 6.139.011,42, para a indenização total dos Produtos
Florestais Não Madeireiros para uma área de 267,61 hectares no Platô
Monte Branco391.

A partir dessa situação criada pelo no platô Monte Branco o Ministério Público
Federal apresenta ao Presidente do ICMBio em Brasília e à Unidade Avançada de Porto
Trombetas a recomendação Nº 6 de 25 de agosto de 2011. No documento é determinado que
todas as autorizações para a supressão vegetal, para todos os platôs, fossem submetidas à
análise técnica prévia dos inventários florestais madeireiros (que a MRN usualmente paga) e
não madeireiros (que passaram a ser cobrados). O Procurador da República sustenta a ACP
para impedir a supressão do platô Monte Branco, arguindo o descumprimento da liminar, mas
sobre a autorização que o próprio ICMBio havia revogado, concedendo outra em 2012. A
segunda autorização foi dada com base nas indenizações dos produtos florestais madeireiros e
não madeireiros pactuados entre MRN e ICMBio, resultando no indeferimento do pedido da
                                                                                                           
391
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE/UNIDADE AVANÇADA
TROMBETAS. Nota Técnica 014/11: Indenização dos produtos florestais não madeireiros em 267,71 hectares
do Platô Monte Branco. Oriximiná,10 de Outubro de 2011
  383  

ACP, pela 2ª vara da Justiça Federal da subseção de Santarém, em outubro de 2013, com
fulcro na inexistência da autorização392.
Posteriormente, o analista ambiental que mais se empenhou no caso “valorização
econômica dos produtos florestais não madeireiros” foi transferido da unidade de Porto
Trombetas. Em conversas dizia se sentir vigiado e mesmo seguido por policiais em Porto
Trombetas. Analisando os muitos estudos ambientais para supressão de floresta pela MRN,
não é raro encontrar omissões e falhas como a narrada no caso do Platô Monte Branco. O
mais complexo é compreender como essa relação histórica entre empresa e governo manteve
subordinadas as entidades ambientais governamentais com todas as suas transformações.
A questão do Monte Branco gerou um desentendimento entre a comunidade do Jamari
e do Curuçá, na época em que estive lá pela primeira vez. O Curuçá recebeu apoio da
mineração passando a gozar de infraestrutura muito diferenciada das demais comunidades
quilombolas do Alto Trombetas. Por sua vez, quando retornei, a maior parte dos homens da
comunidade do Jamari estavam prestando serviços para a MRN, o que dissipou um pouco o
conflito. Até aonde a pesquisa avançou não ocorreram indenizações diretas, o recurso
auferido com as indenizações dos produtos florestais vão para o ICMBio e não para as
comunidades.
De toda essa história, o ponto mais importante está na valorização dos produtos
florestais não madeireiros. O Termo de Referência criado, que atingiu o valor de pouco mais
de seis milhões de reais considerou apenas o valor de uso direto dos produtos florestais, no
caso os não madeireiros. Esse valor é dado tanto para as madeiras com valor cotado no
mercado e pelos produtos não madeireiros cuja cotação ainda é muito incipiente e dada por
uma temporalidade de 100 anos. Os produtos florestais não madeireiros mais considerados
são: a) oleaginosas (andiroba, babaçu, copaíba, cumaru, ucuri, macaúba, olicica, pequí,
tucum, ucuuba e outros); b) alimentícios (bacaba, açaí, castanha de caju, castanha do Pará,
erva mate, mangaba, palmito, pinhão, umbu); c) Aromáticos, medicinais e corantes
(ipecacunha, jaborandi, jatobá, quina, timbó, uruçu e outros); d) borracha (cauchu, hevea –
coagulada e líquida – e mangabeira); e) gomas (maçaranduba e sorva); f) cera (carnaúba); g)
fibras (buriti, carnaúba, caroá, cipó-imbé, butiá, guaxima, malva, paina, piaçava, taboa,
tucum); tanantes (angico, barbatimão, mangue e outros). Assim como a Hevea brasilienses
fez de Manaus a cidade mais rica do mundo em um processo exploratório desumano, o
agenciamento desses produtos, ainda muito pouco desenvolvido, podem criar sobre um
                                                                                                           
392
JUSTIÇA FEDERAL SUBSEÇÃO DE SANTARÉM. Processo 3080-52.2011.4.01.3902 : Decisão.
Santarém, 29 de outubro de 2013.
  384  

regime mais justo de exploração, pelos povos da floresta, uma Amazônia muito diferente da
que está se criando com o expansionismo desenvolvimentista. Por outro lado, uma discussão
que ganha cada vez mais força é Valoração Econômica dos Serviços Ambientais de Florestas
Nacionais393, ou seja, o valor de uso indireto. Essa valoração engloba as funções ecológicas
da floresta (climática, sumidouro de CO2, produção de O2, preservação de habitats e etc.),
além do valor de herança, que se refere ao benefício econômico adveniente da possibilidade
de outros se usufruírem no futuro do recurso florestal. Com uma metodologia adequada que
permita contabilizar esses valores de uso direto e indireto, a floresta passa a ter um valor que
possivelmente tornará inviável a mineração da bauxita, pois atinge valor econômico maior do
que o minério, possibilitando compor, sob a mesma perspectiva econômico-utilitária, um
modelo de desenvolvimento muito mais rico em biodiversidade, muito mais sustentável. Se
passar a ser cobrada a indenização pelo uso indireto da floresta, o que ainda padece de
previsão legal por pressão das próprias mineradoras, a mineração da bauxita na FLONA-ST,
cujo histórico nada mais revela do que a predação e a arbitrariedade, que se ampara por uma
base legal totalmente questionável, perde seu último argumento que é a “geração de riqueza
para o país” – que a população também não percebe. Se a floresta assume realmente essa
potencialidade, perfazendo um excepcional campo para estudos, pode não ser algo imediato,
mas será muito mais adequado e legítimo dentro dos valores democráticos. E afinal qual é a
pressa? O que deve ser priorizado: a venda de commodities que podem aguardar no subsolo
para um uso mais sustentável no futuro? Ou a floresta e seus povos ainda vivos no presente?

                                                                                                           
393
NOGUEIRA, J. M.; SANT’ANNA, A. C. Valoração Econômica dos Serviços Ambientais de Florestas
Nacionais. Brasília, 2010. Disponível em http://   vsites.unb.br/   face/   eco/jmn/publicacoes/   2010/3  
ValoracaoFLONAS_REE.pdf
 
  385  

6 RECONHECIMENTO E TRADIÇÃO EM MOVIMENTO

Foto 22: Altar da Comunidade do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.

6.1 Os negros da floresta – a história contada por Dico

A história de luta dos povos descendentes das diásporas que se estabeleceram no Rio
Trombetas, ricamente narrada pela literatura acadêmica perpassada neste trabalho, foi contada
no Jornal “FOLHA DO NORTE”, do dia 03 de janeiro de 1981, pelo senhor Raimundo Vieira
dos Santos, ex-vereador da Câmara Municipal de Oriximiná. “Dico”, como era conhecido, foi
um quilombola do Alto Trombetas cuja família havia sido expulsa do Lago do Jacaré quando
foi criada a Reserva Biológica. A história de seu povo, comumente retratada pelas pessoas de
fora por fontes documentais e orais, é contada de uma maneira diferente pelo ex-político.
Dico dedicou-se a estudar o passado de seu povo a partir de seu próprio povo. Passo a
reproduzir essa história, parafraseando-a, para dizer o que eles dizem sobre si mesmos por
meio da estória de Dico.
A história que conta é a tradição falada, que passa de geração em geração e que diz
que toda sua gente descende dos escravos que vieram da África. Ainda antes da abolição da
escravatura, esses escravos escaparam das mãos dos seus senhores de Santarém, que era o
povoado de maior expressão econômica da região. O contexto político em que narra sua
história é o da criação da Reserva Biológica, percebida como um continuação das
perseguições históricas sofridas por seu povo.
Os visionários da liberdade não aguardaram os ventos do liberalismo soprados do
  386  

norte agenciarem suas políticas por aqui, posteriormente consagradas na Lei do Ventre Livre
de 28 de setembro de 1871 e na Lei Áurea de 23 de maio de 1888. Livraram-se antes de seus
algozes e partiram para as terras recônditas depois das cachoeiras do Trombetas (além do
Cuminá e Curuá que não fazem parte dessa narrativa). Ali, onde o acesso era restringido
pela própria turbulência das águas do rio, iniciaram a conquista de seus territórios e a
fixação de seus quilombos. A escolha do local tinha que ser estratégica, pois a perseguição
fatalmente viria e, como muitos casos na história que se vivia ali, os quilombos eram
aniquilados quando menos escondidos.
Dico era homem de poucos conhecimentos livrescos, mas que acumulava os seus
saberes das estórias que ouvia dos avós e dos pretos mais velhos da região onde ele nasceu.
Viveu no Alto Trombetas até os treze anos de idade, quando foi para Oriximiná. Seu bisavô
foi escravo fugido e repassou aos seus filhos estórias sobre os martírios da escravidão que,
por sua vez, passavam aos netos e assim por diante. A caça ao negro promovida pelos
brancos que os buscavam nos barrancos do Trombetas é comparado por Dico à chegada das
políticas de conservação. Dico conta que a paragem de Uruá-Tapera era local abandonado
pelos índios e, os que ainda restavam mais acima, se misturaram com os escravos. Ainda
hoje muito se escuta falar desses povos que pela região só tem índio manso, os bravos já
acabaram faz muito tempo.
Das estórias que marcaram Dico sobre a crueldade dos senhores, a que ele mais
enfatiza é o costume que algumas Casas Grandes tinham de se castigar os escravos fazendo-
os segurar candelabros durante o jantar, transformando-os em “lampiões”. Esse castigo
obrigava os negros a ficarem com as mãos em uma concha, dentro da qual era colocado o
azeite e o pavio, e acesa a luz para iluminar o salão. “Eu ainda conheci pretos velhos e
pretas velhas que tinham a mão enrolada, isto por efeito da queimadura que o trabalho
causava; os brancos também tinham o costume de colocar estearinas nas mãos dos
escravos.”
Segundo Dico foi também um grupo desses escravos que empreendeu uma fuga para
as bandas do Trombetas. Para realizarem suas fugas os escravos contavam com a
colaboração de outros senhores de escravos, que segundo Dico, reproduzindo o que os mais
velhos contavam: “eram senhores cristãos”. Mas para Dico, esses senhores certamente
estavam interessados em libertar os pretos de seus concorrentes, enfraquecendo-os, e
principalmente para que produzissem os bens do extrativismo na floresta. Produtos de alto
valor comercial que depois lhes seriam vendidos ou trocados por mantimentos. Muitas
canoas e mantimentos foram conseguidos graças à ajuda desses “senhores cristãos”. Outros
  387  

barcos foram feitos de tronco inteiriço de madeira, impulsionado a remo. Neste feito
opunham-se dois modelos: o modelo de produção colonial, com base no trabalho escravo e
na monocultura, e o modelo tradicional amazônico do extrativismo com base no aviamento.
Modelo econômico que conectava os seres da floresta com a economia dos homens, nas
relações de trocas, dívidas e servidão.
Dico diz não haver registro sobre o número de escravos fugitivos, mas segundo a
tradição, “foram perto de cem”. Esses grupos se dividiram em dois, seguindo um para o
Trombetas e outro para o Erepecurú (Cuminá), seu afluente. Dico desconhecia o destino dos
negros que penetraram no Erepecurú, e dizia que a sua sorte “não deve ter sido dramática –
pior talvez – que os do Trombetas, cujos descendentes ainda hoje contam sua saga”, ou, no
nosso caso, contaram pelos dizeres de Dico, além das muitas conversas. Hoje o Erepecuru é
um Território Quilombola titulado pelo ITERPA e pelo INCRA em 1997 com 218.044,2577
ha.
A saga dos que seguiram pelo Trombetas prosseguiu até certo ponto do rio, depois
das cachoeiras, pararam em um local que recebeu o nome de “Maravilha”, um nome que
conjugava os anseios de liberdade com as belezas locais. Dico diz que “viver entre cobras,
caminhar sobre o tijuco pegajoso da várzea e recomeçar vida nova em terra agreste era,
para eles, uma verdadeira maravilha”. Estavam livres do trabalho árduo das monocultoras
cacaueiras e dos castigos que os fazia permanecer horas com as mãos servindo de
candelabro para iluminar a mesa de jantar dos brancos. Maravilha, ficava próxima de várias
cachoeiras, próximo de onde é a Cachoeira Porteira, a primeira delas. “Quando eu era
menino, ainda cheguei a ver lá, acima da cachoeira, a capoeira baixa, abacatais, laranjais,
armações de casas, casas de barro que pertenceram aos negros antigamente”. Ali em
Maravilha os negros trabalharam longas temporadas durante o ano, até chegar o momento
de descerem para o Rio Amazonas e seguirem para Santarém, onde seus produtos seriam
comercializados.
Havia um barracão estratégico em certo ponto do Rio Trombetas onde os negros se
preparavam para a descida até Santarém em que era necessário todo cuidado, pois haviam
os caçadores de escravos e a odisseia tinha que atravessar os dias de percurso sem serem
vistos, protegidos das perseguições dos brancos. Realizavam um plano de viagem para o
percurso, tinha que estar tudo previsto e preparado. A viagem somente poderia ser
transcorrida durante a noite e em período em que não havia lua, de modo a não serem
percebidos pelos caçadores investidos na recaptura desses escravos. A viagem até Santarém
levaria no mínimo 20 noites.
  388  

O rancho para a viagem era previamente preparado no barracão, para não chamar a
atenção durante o caminho com fogo e fumaça. Mês de maio, com o rio cheio na altura da
copa das árvores do igapó, o percurso e eventuais fugas eram facilitadas. Dico conta de uma
estória em que certa vez, um dos negros, ao amanhecer, “alertou aos outros de que estava
sentindo cheiro de fogo de palito”. Não tardou e foram vistos por um barco de brancos
caçadores de mocambeiros”. Na mesma hora os caçadores rumaram na direção da canoa
dos pretos que, por sua vez, para se livrarem da perseguição, retornaram para a “Cachoeira
Porteira”, onde eles não poderiam atravessar. “No remo, tanto pretos como os brancos
foram velozes”. O acossamento seguiu, mas os negros conheciam bem a floresta e
conseguiram enganar os perseguidores. Enquanto permaneciam na espreita próximo da
cachoeira aguardando, “o grupo de negros saiu por um talho, na calada da noite, rumo a
Santarém levando seus produtos”. As viagens noturnas eram intercaladas pelos descansos
diurnos nos refúgios na beira rio, onde a mata os ocultava. Chegavam a Santarém sempre
depois do cair da noite. Um dos negros era designado para adentrar na cidade e “dar o
aviso aos patrões que os protegiam” de que eles haviam chegado. Era necessário todo o
auspicio e a cautela para adentrar na cidade de seus ex-patrões e atingir o destino, o
barracão da vila que pertencia a um comprador de seus gêneros. Lá eles estavam seguros.
Enquanto efetuavam suas trocas clandestinas, que assumia grande importância para a
economia local, o “patrão negociante” mandava alagar as canoas para ocultá-las no tempo
em que providenciava o aviamento da troca para a volta dos negros ao quilombo.
Após efetuadas as transações, na noite seguinte, tudo estava pronto. “Os escravos do
patrão protetor dos negros do Trombetas, iam com cuidado ao rio e retiravam as canoas do
fundo. Eles também preparavam a carga na canoa, os produtos da troca, conseguidos na
arriscada aventura. A cada viagem os negros traziam peles e outros produtos da floresta
para trocarem por provisões em Santarém e, após efetuada as trocas, os negros tinham que
retornar à Maravilha pelo mesmo percurso temerário, “remando até o dia amanhecer, para
mais um dia de esconderijo nas barrancas do Amazonas” e do Trombetas, até chegar. Dico
relata que essas viagens eram frequentes, sempre realizadas por pequenos grupos com
pequenas canoas para facilitar a mobilidade e os esconderijos. As mulheres e crianças
ficavam em Maravilha, mas não a sós, sempre parte do quilombo permanecia para não se
sujeitarem a alguma eventual chantagem de algum branco que pudesse encontra-los.
Os avós de Dico contam uma estória em que certa vez os senhores pegaram um preto
velho no Baixo Trombetas, o Manoel Benedito. Esse preto velho foi obrigado a revelar e a
levar os brancos aonde ficava o quilombo. A partir daí os caçadores organizaram uma
  389  

expedição para destruir o quilombo Maravilha. Seguiram até onde se podia chegar no Alto
Trombetas, pois da Cachoeira Porteira, nenhum barco grande consegue passar, só era
possível atravessar empurrando com as mãos uma canoa, e desde que se conhecesse os locais
certos para passar. Seguiram apenas homens, armas e canoas. Passando essa primeira
cachoeira o rio vai seguindo até que chega outra, onde só é possível atravessar a pé: a
chamada cachoeira das pedras, aqui as canoas não mais seguiam. Nesse momento os
expedicionários de depararam com outros dois pretos velhos do quilombo, um homem e uma
mulher. “Era o nego Basílio e a nega Benedita”, que quando avistados pelos expedicionários
deblateraram o comando: “Ta preso, nego! Mas o preto velho respondeu: Morto sim, preso
não”! “Aí, o velho, mandou que a velha se agarrasse nas costa dele pra pular na água.
Outro dos expedicionários grita: “Não cai n’água que tu vai morrer”. Com um fuzil
apontado, mas desses “de antigamente que só atirava de perto”. Então o preto velho gritou;
“Valei-me meu São João e saltou n’água com a velha nas costas”. O tiro partiu, mas não
pegou e os escravos fugitivos com muita habilidade, mergulharam e nadaram, até outro lado
do rio. Mais tiros partiram sem que os projéteis atingissem a carne e os dois ganharam a
mata conseguindo se desvanecer dos olhos do inimigo. As passadas desesperada dos
perseguidos rumavam até Maravilha para avisar os demais sobre o perigo à espreita: “vem
branco aí”!
O preto velho Basílio, que salva o povo de Maravilha, era tio do avô de Dico, irmão
do pai do seu pai. Essa estória marca a chegada dos brancos à Maravilha. Mas uma chegada
ali anunciada, ainda que às pressas, em tempo de fuga. Subiram todos do quilombo para a
floresta, abandonando suas criações, roçados e casas. Se refugiaram algumas léguas dali e,
próximo de um igarapé, construíram taparís, onde alojaram as mulheres e crianças. Os
homens retornaram e permaneceram em um local que detinham uma visão parcial da aldeia,
podendo observar os brancos sem que fossem vistos. Aguardaram até que os perseguidores
saíssem de lá e desceram cautelosamente para buscar alimentos, “animais para assar e
passarem os dias, até que as coisas se definissem”. Os expedicionários não tinham como
encontrar aqueles negros embrenhados no seio da floresta amazônica, mas tinham seus
passos acompanhados todo o tempo.
Passaram-se os dias e os negros foram ao encontro de uma tribo de índios que se
relacionavam nas proximidades, também escorraçados pelas perseguições dos brancos. Ali
se aliaram com os negros para se defenderem juntos da ameaça comum que se instalou na
localidade do quilombo. Foi dos índios que partiu o plano de matar todos os brancos
perseguidores. Esses grandes conhecedores da floresta, dos quais os negros herdaram seus
  390  

conhecimentos, seguiram em grupo de muitos índios para dentro da mata e retornaram


trazendo “braçadas de timbó e mairá”. Essas ervas venenosas são capazes de matar num
breve lapso de tempo quem ingerisse a água contaminada com a seiva das plantas
esmagadas, mas em pequenas quantidades ela enfraquece o corpo e dá cezão. Dico conta que
fazia parte das crenças dos tradicionais que o mairá e o timbó causavam a “cezão” (a
malária). Foi então essa a arma de combate: o envenenamento dos cursos d’água para que
os brancos adoecessem. “índios e negros começaram então a ralar o mairá e bater o timbó
dentro do rio, cujas as águas correntes levavam o veneno em direção aos seus inimigos”. Os
mais antigos contaram a Dico que a cezão começou atacar, e a febre acometia os homens
que sucumbiam com tremedeiras e calafrios, sem ter defesas contra a doença que lhes
apossara do corpo. No calor verde da floresta equatorial, desfaleciam e morriam, não
tardando em abandonar o território conquistado. Maravilha fora encontrada, tomada e
destruída, mas seu povo seguia unido para construir um novo quilombo, ainda mais acima,
que se chamava Cabiche.
Com o restabelecimento das trocas comerciais entre negros e aviadores, algum
tempo depois, outro preto velho foi capturado pelos caçadores de escravos; e, mais uma vez
foi obrigado a revelar a localidade do quilombo, conduzindo seus carrascos na direção de
seu povo. Mas desta vez, esse preto velho dissimulou o caminho por diversas vezes, fazendo
com que nunca chegassem ao destino. Até que “desistiram da empreitada e voltaram a
Santarém levando o preto velho”. Os povos negros do Trombetas se refugiaram até as
nascentes do rio, no Suriname, onde quedaram por pouco tempo e estabeleceram vínculos
com os Bonis, os marrons da Guyana Holandesa.
Em certa viagem para Santarém, um grupo que descera para efetuar as trocas, se
deparou com a notícia de que havia sido declarada a abolição da escravidão, “a Lei Áurea
acabava de ser assinada pela Princesa Isabel”. Os mesmos agora eram homens livres e o
grupo rapidamente retorna para comunicar aos demais. Com a notícia os “negros todos
baixaram o Trombetas” e fixaram-se na área da Cachoeira Porteira para baixo, mais
acessível às localidades onde vendiam seus produtos. Contudo, pouco depois desta época,
tudo que proporcionava alguma troca comercial havia se transformado em propriedade
privada. Os castanhais e os tabuleiros tinham os “donos legais”. Os grilheiros que
oportunamente registraram as terras nos cartórios, dando início a um novo ciclo, o da
patronagem.
“Nosso erro foi não ter legalizado essas terras no nosso nome, mas elas são nossas,
por que elas vêm desde os nossos bisavós”, se queixa Dico, eleito vereador para representar
  391  

os direitos do seu povo. E completa: “mas antigamente isso era impossível, por que quem
aparecia por aqui, era só para tapear”. Dico faz menção a um tal de “Coronel Manoel da
Costa Lima”, que depois da abolição foi um dos primeiros “a explorar as famílias dos pretos
e tentar tomar-lhes as terras cujos castanhais avultavam como excelentes fontes de rendas”.
Com o falecimento do Coronel, outros herdaram ou compraram as terras sucessivamente até
a chegada das políticas de conservação concomitantemente com as de desenvolvimento.
Entretanto, os “patrões” apenas exerciam controle sobre aquilo que lhes podia prover
alguma renda, como a castanha e a tartaruga, no mais, esses povos viviam onde há muito
haviam se estabelecido, sem maiores problemas. Com a chegada da conservação, parte desse
povo não mais podia viver onde vivia e nem exercer seus trabalhos na área. Com a chegada
da mineração, suas áreas de uso que colidissem com os interesses minerários era como se
eles não existissem.
Conforme exposto o texto é uma paráfrase da tradição oral narrada em depoimento
pelo ex-vereador quilombola Raimundo Vieira dos Santos. Inseri algumas conexões para dar
melhor sentido, mas fui fiel à história narrada. O intuito aqui não é o rigor acadêmico e nem
atestar se os acontecimentos narrados ocorreram da forma como se conta. O objetivo é apenas
apresentar a história deles sob a perspectiva deles, que atravessou as gerações, que ainda hoje
os antigos fazem referência à algumas passagens.

6.2 Dos grilhões às redes

Foto 23: Ladainha. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012


  392  

Sabemos que existem, espalhadas pelo nosso território, comunidades


negras isoladas, ameaçadas de expulsão de suas terras, apesar de
ocupá-las, em muitos casos, desde o século passado. Também está
comprovado que a maioria da população destituída de terras e que se
concentra nas regiões mais pobres do meio rural é afro-brasileira
(Benedita da Silva. Diário da Assembleia Nacional Constituinte,
29.05.1987, p. 25).

A Emenda Constitucional de nº 26, de 27 de novembro de 1985, aprovou a


Assembleia Nacional Constituinte em um momento histórico que marca a redemocratização
do país. Em 1º de fevereiro de 1987, é instalada a comissão com 559 membros que, neste
mesmo dia, iniciam os trabalhos que culminam na Constituição Federal de 1988. Os
integrantes da comissão constituinte foram distribuídos em Comissões temáticas, formando
oito grandes grupos, subdivididos em três subcomissões cada um. A Comissão VII, da Ordem
Social abordava em suas subcomissões as temáticas relativas aos: a) Direitos dos
Trabalhadores e Servidores Públicos, b) Saúde, Seguridade e Meio Ambiente e c) Negros,
Indígenas e Minorias. Cada comissão tinha seus trabalhos discutidos em audiências públicas
com participação da imprensas e de grupos organizados. Após 25 etapas, com as variadas
proposições já revisadas, aprovadas e sistematizadas nos capítulos que vão compor a Carta, os
trabalhos são concluídos em 05 de outubro de 1988 com sua promulgação pelo Presidente da
Constituinte, Deputado Federal Ulysses Guimarães.
O reconhecimento dos quilombos já era tema pautado em discussões acadêmicas,
principalmente por obras de antropólogos, sociólogos e historiadores. Mas no mundo jurídico
ainda não existia essa visibilidade, não se falava em direito de remanescentes de quilombo
(mesmo porque este não existia positivado), o que só vai ocorrer com a própria Constituição.
Com a constituinte percebeu-se um momento oportuno para pautar um assunto premente e
que não se conhecia ainda a dimensão. A sugestão da temática de proteção aos quilombos já
se deu nos primeiros meses de trabalho. Foram recebidas duas sugestões: uma do Centro de
Estudos Afro-brasileiros e a outra da parlamentar Benedita da Silva do Partido dos
Trabalhadores. Ambas as propostas tratavam do direito à moradia e da titulação definitiva de
suas terras. Tal pleito encontrou diferentes aliados e opositores travando uma guerra entre os
setores conservadores e progressistas. A proposta transita de maneira unanime na
subcomissão com a redação: “o Estado garantirá o título de propriedade definitiva das terras
ocupadas pelas comunidades negras remanescentes dos Quilombos”. Quando a proposta
chega na Comissão propriamente, houve substitutivo que mudou a redação, mantendo o
mesmo conteúdo e, posteriormente, acrescido do tombamento das terras e dos documentos
  393  

referentes à história dos quilombos no Brasil. Essa proposta estava cotada para se tornar o
artigo 490 da Constituição Federal. Contudo, a comissão de sistematização, no momento
seguinte ao das comissões temáticas, ataca a proposta, tendo aprovada uma emenda
supressiva do parlamentar paraense Eliel Rodrigues – PMDB.O parlamentar argumentava que
a proposta representava uma segregação racial no Brasil, um apartheid. Em seguida outro
parlamentar endossa o movimento contrário, tendo emenda supressora também aprovada,
dizendo que a titulação geraria conflito entre os entes federados, por perda de bens dos
Estados, interferindo na autonomia dos entes federados (Acival Gomes – PMDB de
Sergipe)394.
A reviravolta se dá com a emenda popular de iniciativa do deputado Alberto Caó do
PDT do Rio de Janeiro, que pedia a restauração do artigo 490, entre outros. A proposta então
foi acolhida e deslocada para o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reunia
as normas de transição do regime constitucional anterior, que a partir de sua implementação,
teriam a eficácia exaurida – o que não é o caso. Outras propostas surgiram, inclusive para a
inclusão dos territórios quilombolas aos bens da União, unificando-o com a questão indígena,
pois isso retornaria a discussão às etapas anteriores, de composição do próprio texto
constitucional, já ultrapassadas. O texto foi aprovado como o artigo 68 do ADCT, retirando-se
a segunda parte, sobre tombamento, que já estava previsto no artigo 229, § 5ª da CF, com a
seguinte redação: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir -lhes os
títulos respectivos”.
A argumentação central dos defensores dos quilombolas se pautava na assertiva de
que essa garantia somente legitimava uma situação de fato e de direito, que era o domínio e a
posse secular dos quilombolas sobre os seus territórios. Tratava primordialmente de conectar
a norma com a realidade. Com ampla participação do movimento negro nacional, os
remanescentes de quilombo de Oriximiná, os primeiros a terem terras tituladas no país, já
eram reconhecidos pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – CEDENPA. A
ARQMO já gozava de respeito amplo, apesar de não participarem diretamente dos debates na
constituinte, foram por estes e pela própria Constituição, conectados a uma política nacional.
É exatamente sobre a força dessas conexões e suas redes que pretendo esmiuçar.

                                                                                                           
394
SOUZA, R. G. Luta por reconhecimento e proceso legislativo: a participação das comunidades remanescentes
de quilombos na formação do art. 68 do ADCT. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Programa de
Pós-Graduação em Direito. Brasília, 2013. p. 54
  394  

Conforme já mencionado, os quilombolas de Oriximiná antes de se tornarem sujeitos


de um direito constitucional específico, já representavam força política no município de
Oriximiná, com cadeira na vereança local no final da década de 1970. Contudo a realidade
das numerosas famílias de lavradores pobres, ainda não era organizada o suficiente para ter
poder político frente à rede de interesses que se instalava naquela região e conflitava com seus
modos de vida. O principal ator que se conecta a eles de maneira transformadora e, que os
conecta a uma rede que já se reproduzia por toda a América Latina, é a Igreja Católica. Na
década de 1960 em que se iniciam de norte a sul as ditaduras militares nos países
latinoamericanos e também no Brasil, a Igreja Católica que inicialmente apoiou o golpe
militar, pouco depois se desvencilha do regime, assumindo uma posição de oposição. Por sua
vez, os núcleos mais progressistas da Igreja Católica passaram a ter um embate direto com o
regime, que resultou em inúmeras mortes e torturas atrozes, hoje amplamente difundidas. Na
entrevista que realizo com Josielson Santos Costa, Coordenador da Pastoral Social da
Paróquia de Santo Antônio de Oriximiná, me é narrado a profunda modificação da Igreja na
região amazônica, principalmente com as comunidades. Atividades antes restrita às práticas
eclesiásticas convencionais, batizar, casar, crismar etc. foi, neste período, transformada em
ações de capacitação para o embate contra o regime que se impunha. A corrente da Igreja que
ali chegou, ressentida com a morte e tortura de vários de seus sacerdotes, doutrinada na
Encíclica Gaudium Et Spes, e com forte inspiração da Teologia da Libertação era uma
“máquina de guerra”. Com a chegada dos Padres Verbitas e a assessoria que prestavam, não
apenas os quilombolas, mas todas as populações tradicionais foram capacitadas a reivindicar
os seus direitos e denunciar as arbitrariedades das relações de poder, por meio da organização
sindical, associativista e rede de alianças. A atuação das Pastorais passa a ser missionária e de
acompanhamento contínuo das comunidades:
Então, nessa turbulência aí, dessa mudança radical aqui na Igreja, na
paróquia Santo Antônio, tinha uma visão do que nós chamamos de
teologia da libertação. Que é o magistério paralelo ao magistério da
Igreja. Então a teologia da libertação é um magistério paralelo ao
nosso. Nós somos regidos por vários documentos, mas são
documentos oficiais da igreja. Nós nos baseamos muito na encíclica
Gaudium Et Spes. Que foi a conclusão do concílio vaticano segundo.
Então nesse período os primeiros padres verbitas vieram com essa
visão de libertar mesmo. Fazer um trabalho missionário.
Revolucionar mesmo. Não só levar o sacramento, mas organizar as
comunidades, organizar a associação, os sindicatos e fazer os
enfrentamentos necessários que... a um período nós esfriamos, né.
Então, nesse mesmo cenário ainda era ditadura militar. Nesse cenário
acontece em 79 a criação da Rebio Trombetas em cima de vários
  395  

territórios quilombolas e o mais afetado foi a comunidade do Lago do


Jacaré. Essa foi expulsa, né, do seu território tradicional e jogada pro
outro lado do rio Trombetas. E na sequência houve a implantação da
Mineração Rio do Norte e... é uma grande área que engloba três
municípios, Oriximiná, Terra Santa e Faro. [...] é criada a Flona
Saracá Taquera, simplesmente um passeio de avião que o Sarney deu
por cima da região, no entanto ele nem veio pro alojamento da
mineração. Só fez descer do avião, tomou uma água, voltou pro avião
e foi embora. Logo em seguida foi criada a Flona Saracá, em cima
novamente de três municípios, né: Oriximiná, Terra Santa e Faro. Em
cima de mais de 200 comunidades tradicionais, inclusive no
município de Terra Santa temos a comunidade de Jamary, que os
primeiros moradores chegaram em 1909, então... é um conflito. Então
a Igreja, nesse período se propôs a fazer esses enfrentamentos. E logo
na sequência em 1986, é criado a ARQMO, Associação dos
Remanescentes de Quilombo pra fazer esse enfrentamento. Então,
primeiro a Igreja organizou as comunidades e formou as lideranças,
por isso que sempre a Igreja puxou esses embates. Então depois que a
criança nasceu, começou a andar e já sabia comer e pensar muito
mais, então criou uma organização pra tomar conta desse trabalho
que a finalidade não é só ter o território, como dar sobrevivência pro
povo desse território. Então a ARQMO começa já a fazer esses
enfrentamentos. A comissão Pró-Índio chega aqui na paróquia muito
tempo depois. Depois de quase dez anos de luta que a comissão Pró-
índio chega aqui na paróquia e começa a fazer uma assessoria muito
mais direta às comunidades remanescentes do que à paróquia. A
paróquia volta a fazer o serviço pastoral, sacramental, mas quem
impulsiona mais a ARQMO a fazer as lutas é a Pró-Índio, com apoio
de organizações internacionais, financiadas...

Um momento histórico de substancial importância para a ampliação do movimento


dos quilombolas (e ribeirinhos) vai se dar com o início das obras para a construção das
Barragens da Cachoeira Porteira, com intervenções mais significativas a partir de 1987. Pouco
depois, na eminência de aprovação do projeto em 1989, ainda condicionada à aferição dos
seus impactos ambientais e sociais, a Comissão da Pastoral de Direitos Humanos da Prelazia
de Óbidos – CPDH, convida a Comissão Pró-Índio de São Paulo - CPISP, a CUT do baixo
amazonas e a Comissão dos Atingidos por Barragens para participarem do movimento. Como
os principais atingidos eram os índios do Nhamundá-Mapuera, além dos quilombolas, a
chegada da CPISP vai redimensionar o movimento, vai ligar o Norte com o Sudeste e depois
com o mundo. As similaridades entre a questão indígena e a causa quilombola (ao menos ali),
fez a CPISP, fundada em 1978, abarcar as duas causas e tratá-las com esmero.
  396  

Ilustração 04: Panfletos dos Seminários sobre as barragens na Cachoeira Porteira, 1989 e 1981.

Para deter o avanço da hidroelétrica e dar coesão ao movimento são organizados três
seminários sequenciais em Oriximiná, amplamente panfletados, destacando-se o primeiro,
realizado entre os dias 13 e 15 de outubro de 1989, na sede da Igreja de Santo Antônio –
Oriximiná. O seminário promovido pela CUT do Baixo Amazonas e a Comissão dos
Atingidos por Barragens tinha como tema Hidrelétricas e Meio Ambiente. A construção da
Hidrelétrica de Cachoeira Porteira no Rio Trombetas, prevista para o ano de 1990 foi o
principal alvo dos debates. Os impactos do empreendimento já começavam a ser sentidos
pelos locais antes mesmo do início das obras, pois para a realização dos estudos para a
implantação da Hidrelétrica, os técnicos da empresa responsável (ELETRONORTE)
invadiram lotes de terras sem o consentimento dos moradores e abriram mais de cem clareiras
dentro do território indígena da área Nhamundá-Mapuera para a instalação de uma base de
apoio. Preocupados com essa situação, os organizadores propuseram o seminário com o
objetivo de “mobilizar as entidades sindicais, movimentos populares, população atingida e
população em geral para se questionar a viabilidade ou não da construção das barragens.”
Todos os sindicatos, associações e demais movimentos populares locais foram convidados. O
seminário recebeu apoio do CPDH – Prelazia de Óbidos, STR’S e Pró-Índio. Como
conferencistas participaram Lúcio Flávio Pinto (jornalista), Lúcia Andrade (Comissão Pró-
  397  

Índio) e Manuel Dutra (jornalista). O seminário teve ainda como convidados especiais Paulo
Rocha (Presidente da CUT Estadual do Pará), Éder Coelho (Advogado da CPDH/Diocese de
Santarém / Prelazia de Óbidos – Dom Martinho), Dom Erwin (CIMI) e Chicão (do Tucuruí).
Após esse seminário, vão ocorrer mais dois no ano seguinte reunindo diversos
sindicatos, organizações, universidades, colônias de pescadores e a ARQMO já consolidada,
como uma das promotoras dos eventos. Em 1990 a CPISP envia uma carta à diversas
organizações internacionais fazendo com que o movimento ultrapassasse as fronteiras
nacionais. A Carta da Comissão Pró- Índio de São Paulo é endereçada aos seguintes
organismos da Probe International: Canada, International Rivers Network; USA, Rainforest
Action Network; Holanda, International Water Tribunal – Holland, Working Group
Indigenous People – Holland e International Union for the Conservation of Nature and
Natural Resources – Holland; e Noruega, FIVAS Study Group on Hydro-Power Impacts –
Norway.
Nesta carta a Comissão Pró-Índio encaminha em anexo um documento da Associação
das Comunidades Remanescentes de Quilombos do município de Oriximiná solicitando o
apoio das organizações supracitadas na luta para tentar impedir a construção de uma
hidrelétrica dentro de suas terras. Como justificativa para o pedido de apoio esclarecem que as
comunidades negras que habitam a região ocupam este território desde o século XVIII,
quando seus antepassados fundaram os quilombos nas margens do Rio Trombetas, Erepecuru,
Cuminã e Curuá. Tais comunidades tinham, até a data presente, suas vidas profundamente
atreladas ao rio, que lhes servia como fonte de sustento e rota de transporte
A carta é endereçada a organizações situadas nos países que sediam empresas
proprietárias da Mineração Rio do Norte (ALCAN – canadense, Billiton BV e Billiton Metais
S.A. – holandesas, Norsk Hydro Comércio e Indústria – norueguesa e Reynolds Alumínio do
Brasil – norte americana), para que essas organizações avaliassem a possibilidade da
organização de campanhas para pressionarem as companhias de seus respectivos países a não
construir a Hidrelétrica do Chuvisco, planejada para ocupar um território pertencente a
comunidade negra “Pancada”. Sugere também uma campanha de cartas de cidadãos e
entidades a estas companhias, bem como a divulgação do problema através de boletins e
jornais.
O movimento surte efeito e a hidroelétrica, ao menos temporariamente, é afastada. Na
opinião de alguns atores governamentais, também por questões de viabilidade econômica.
Após esse episódio, a ARQMO concentra suas ações na titulação dos Territórios
Quilombolas, já com ampla visibilidade e uma extensa rede de atores que lhe facultou captar
  398  

recursos internacionais. A compra de equipamentos, carro, barco, sede, telefone, entre outros,
possibilitava a ARQMO cada vez mais interações e acessos. Com base nos documentos da
ARQMO é possível traçar o caminho de seus trabalhos e a história de inserção política das
primeiras comunidades quilombolas reconhecidas no Brasil. Como principal resultado a
associação conquistou o reconhecimento de seu trabalho, embora algumas comunidades ainda
não tivessem se filiado, pouco a pouco, as diferentes comunidades vão aceitando se auto
definirem enquanto “quilombolas”. Essa figura era estranha para eles e requereu diversas
reuniões para explicar-lhes o sentido do termo e os direitos que possuíam com essa
qualificação. As pessoas das comunidades envolvidas tornaram-se mais informadas e
procuraram participar mais dos trabalhos da ARQMO. Algumas dificuldades foram
salientadas como: atraso no repasse de recursos, conflitos nas comunidades e sobrecarga de
trabalho devido à luta pela titulação de Boa Vista.
A ARQMO organizou no período mutirões de auto demarcação e concluiu entre os
anos de 1991 e 1994 os mapas das áreas do Alto Trombetas e Trombetas. No ano de 1995 foi
feita uma complementação desses mapas na área Trombetas, baseadas na indicação das
comunidades das áreas onde se realizavam agricultura, caça, pesca e coleta – informações
importantes para a justificativa do tamanho e limites das áreas reivindicadas. O mapa da
comunidade Boa Vista também foi concluído. No restante da comunidade o trabalho de
elaboração dos mapas já fora iniciado. Como principal dificuldade foi apontada a morosidade
no processo de elaboração dos mapas devido às várias etapas que compunham o mesmo:
“estudo das bases cartográficas, debates nas comunidades e com o núcleo, vistoria na mata
para verificar o limite, elaboração do esboço do mapa pelas comunidades na base
cartográfica, desenho do mapa, discussão do mapa com as comunidades, novas vistorias e
finalmente desenho da última versão do mapa.”
Como iniciativas para a regularização fundiária a instituição realizou algumas viagens
para Belém, Santarém e Brasília, para se reunirem com o INCRA, INTERPA, IBAMA e
Procuradoria da República. Foi organizada uma campanha pela titulação de Boa Vista
realizada nacional e internacionalmente, com força política admirável. Como principais
resultados obtiveram: a emissão do título de Boa Vista, o primeiro do Brasil; a assinatura da
portaria do INCRA n. 307/95, que estabelecia o compromisso do mesmo em titular as terras
dos remanescentes de quilombos de forma coletiva, entre outros. Com a entrega do título, a
ARQMO conquistou o respeito das comunidades e dos políticos locais. Como dificuldades
nesse processo foram apontadas a morosidade no trabalho por parte do INCRA e o conflito
com a Fundação Cultural Palmares “que queria desmobilizar o processo no INCRA”, pois
  399  

pretendia dirigir o processo de titulação retirando-o do INCRA, sem o consentimento da


ARQMO.
A ARQMO já estabelecia articulações com outras organizações do movimento
popular municipais como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Associação Comunitária dos
Pequenos Agricultores do Município de Oriximiná, Comissão dos Atingidos pelas Barragens
do Trombetas; bem como com comunidades remanescentes de quilombos de outras regiões
como Pascoval, do município de Alenquer, entre outras. Como principais resultados dessas
articulações destaca-se o ganho de mais prática para a realização de seus trabalhos, o
conhecimento das atividades de outras entidades, o ganho de conhecimento por parte de
outras entidades e de respeito pelo trabalho da ARQMO, o aumento do peso político da
organização e o apoio à sua luta. Como maior dificuldade temos o relacionamento com o
STR, as comunidades ribeirinhas se sentiram reduzidas diante do poder adquirido pela
ARQMO e pela causa quilombola. Como se os outros tradicionais valem-se mais por serem
quilombolas, enquanto os ribeirinhos não gozavam de um estatuto jurídico similar, que lhes
facultasse direito à terra, enquanto os mesmos eram igualmente excluído, passando a ser ainda
mais excluído. Contudo, apesar das pequenas divergências, os movimentos mantiveram-se
unidos, principalmente diante de poderes maiores.
A ARQMO em Oriximiná ganhava importância nacional dentro do movimento negro,
também gerando certas disputas de lideranças ou mesmo no sentido/direção do movimento.
Segundo documento interno de 1995, os outros movimentos negros tinham um foco mais
relacionado à parte cultural, enquanto a ARQMO tinha sua luta ligada à sobrevivência e à
terra. Com apoio internacional a ARQMO, junto às outras associações de Oriximiná,
conseguiu afastar a Mina de Bauxita da Amazônia (Blliton e Alcoa) e a Madeireira Sadiemla.
Esses movimentos contavam com a participação do Greenpeace, Vastenaktie/CEBEMO,
OXFAM, CESE, Tribunal dos Povos, em Paris; Tribunal Internacional das Águas, em
Amsterdam entre outros. Angariou apoio também de parlamentares como os Deputados
Federais Fabio Feldman (PSDB-SP), Paulo Rocha (PT-PA), senadora Benedita da Silva (PT-
RJ) e Deputados Estaduais como a Aida Maria (PT-PA) e Zé Carlos (PT-PA). Com a força
política que se erigia, a ARQMO também vai ganhar muitos opositores, principalmente na
política local, que criavam situações para gerar dúvidas sobre a idoneidade da organização,
inclusive difundindo a informação de que a mesma estava se associando internacionalmente
para entregar os territórios aos grupos estrangeiros.
As normatizações que vão reger as titulações de territórios quilombolas surgem
também das experiências vivenciadas ali, como o auto reconhecimento e a autodemarcação. A
  400  

grande extensão dos territórios demarcados, alguns com mais de 200.000 ha, só é possível de
ser compreendida se considerarmos seus modos de vida extrativistas. Para atingir os
castanhais entre outros produtos da floresta que utilizam, como o exemplo das copabeiras, os
quilombolas percorrem, por vezes, dezenas de quilômetros, ou mesmo centenas, dependendo.
Pode levar dias para chegar e meses de trabalho dentro da floresta. Com essas dimensões, as
terras pleiteadas não seriam inviáveis por titulações individuais, razão de se adotar a
Propriedade Coletiva da Terra. Como me ressalta Raimundo Guilherme Pereira Feitosa395, do
INCRA em Santarém, reponsável pelos processos de titulação na região do Rio Trombetas.
Os territórios titulados hoje perfazem 361.825,48 ha, para quem vem do sudeste é difícil
mensurar. O principal ponto de amparo e legitimação para agenciar tantos interesses, além da
questão étnica, está também na ideia de sustentabilidade e preservação da biodiversidade,
inclusive da humana, com os seus modos de vida.
No curso da pesquisa a ARQMO estava passando por uma crise de representatividade,
sendo comum ouvir das comunidades que atualmente a entidade não os estava assistindo
adequadamente, questionam também as condições de vida dos que estiveram à frente da
organização quando comparada às das comunidades mais afastadas. Outras associações foram
surgindo, como a Mãe Domingas e a dos Remanescente de Quilombo da Cachoeira Porteira.
Por sua vez, estas estão mais relacionadas à representação do território para receberem os
títulos e os projetos para serem aplicados ali, sem um víeis mais combativo, pela situação
histórico-política diferente.

                                                                                                           
395
FEITOSA, Raimundo Guilherme Pereira. Titulação Coletiva dos Territórios Quilombolas do Rio Trombetas
– INCRA/Santarém. Entrevista concedia à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, Wilson Madeira Filho, Thais
Maria Lutterback Saporetti Azevedo e Eduardo Castelo Branco e Silva. Santarém 25 de setembro de 2012.
  401  

6.3 Demarcou, titulou e acabou?

Foto 24: Cemitério Quilombola da Tapagem. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.

Uma das questões mais delicadas da discussão sobre as titulações dos territórios
quilombolas, excluindo-se aqui as posições mal-intencionadas dos segmentos conservadores,
diz respeito ao tipo de segurança e proteção aos quilombolas – seus territórios e seus modos
de vida – que titulação propicia. Obviamente com a titulação assegura-se muito mais do que
sem ela, não é esse o ponto, entendo ser uma política necessária e justa, não apenas para os
quilombolas, mas para todos os demais tradicionais e outros tantos brasileiros sem acesso à
terra. Mas, dentro do que foi estudado, gostaria de sair das perspectivas idealizadas, ou
mesmo romanceadas, encampadas nos estudos críticos de uma forma em geral. Nesse sentido,
a discussão não se dá pautada na questão da justiça histórica, da preservação da cultura
tradicional, do acesso à terra ou do acesso ao direito, no combate ao capitalismo, ou no
modelo do desenvolvimento sustentável que são as perspectivas mais usais. Também não as
estou confrontando em suas razões é mais uma questão de quatro isso é aplicável ao caso.
Tomo a formalização dessas terras já há muito ocupadas, como uma forma de integração à
expansão de um modelo de sociedade, o que está sendo tocado por sua rede sócio técnica,
nesse sentido envolvem tantos interesses quanto os que de fato existem ali. É uma ordenação
territorial estatal, um direito, mas o estado pode não estar lá para protege-lo, pode não ser
acessível aos seus titulares, ou pode estar presente e simplesmente não significar nenhuma
  402  

proteção, ao contrário, atender a outros interesses. Pode representar também uma composição
“racionalizada” do espaço, onde em si mesmo encontrar-se-ão muitas outras “razões”.
Na conversa com os tradicionais é possível perceber que a titulação representa um
desejo profundo dessas pessoas, uma demanda que eles anseiam muito. Por outro lado,
questiona-se: apenas a titulação assegura a proteção ou a justiça que se pretende? A
perspectiva que adotei na pesquisa não visa dar uma resposta, mas apresentar alguns
problemas com base no que foi vivenciado. Respostas poderiam vir posteriormente, mas
proporiam uma inversão na lógica dos projetos, abdicaria da existência prévia de um modelo
em que se pudesse enquadrar a realidade estudada para aplica-lo. Sugeriria que partíssemos
do chão e a partir do chão construir o que se pode ser construído, sempre conjugando o
máximo de interesses e seres possível. E, por certo, todos os ideais, políticas, normas, relações
econômicas, tecnologias, desejos, hierarquias etc. estão já fincadas neste chão e todas as
intervenções significam rearranjos.

Mapa 14: Comunidades quilombolas no interior e entorno da FLONA-ST e na REBIO-RT. MMA/ICMBio,


2011.

As terras quilombolas de Oriximiná são: Boa Vista, titulada em 1995 pelo INCRA,
com dimensões de 1.125 ha; Água Fria, titulada pelo INCRA em 1996, com 557 ha;
Trombetas, titulada pelo INCRA e pelo ITERPA em 1997, com 80.887 ha; Erepecuru,
titulada pelo INCRA e ITERPA em 2003, com 218.044 ha; Ariramba, ainda não titulada,
processo INCRA nº54100.000755/2004, área dentro da FLOTA Trombetas, com 23.418 ha;
Alto Trombetas, parcialmente titulada pelo ITERPA, com 61.211 ha e área pleiteada dentro
da FLONA-ST, processo INCRA nº54100.0022189/2004, com 151.923 ha; Jamari/Último
  403  

Quilombo, área pleiteada dentro da REBIO-RT com 138.822 ha, processo INCRA nº
54100.002185/2004; Cachoeira Porteira, a área pleiteada pega parte da REBIO-RT, da
FLOTA Trombetas e de Terras Índigenas pleiteadas do Nhamundá-Mapuera, processo
ITERPA nº 2004/125212; e Moura, área pleiteada dentro da FLONA-ST, com 18.491 ha,
processo INCRA nº 54100.002186/2004.
No curso da pesquisa visitei ao menos 20 comunidades diferentes, dentre quilombolas
e ribeirinhos, algumas com terra titulada outras não, mas todas vivendo como
tradicionalmente se vive na Amazônia, compartilhando espaços com recursos comuns. Em
todas as comunidades que visitei fora das unidades de conservação a principal queixa era o
esgotamento de recursos: “pirarucu não tem mais, tracajá... não tem mais, você vai pescar e o
peixe já não tem, os invasores tão levando a comida do prato dos nossos filhos”. Um ponto é
que os invasores, muitas vezes são da própria comunidade, outro ponto é que quando são
pessoas de fora, é pior ainda, pois os comunitários na maior parte das vezes não tem como
combate-los e, conforme mencionado, não existe uma presença do Estado que seja
minimamente capaz de atender essas pessoas. Em alguns desses locais, como as comunidades
do PEAEX do Sapucuá, existem acordos de pesca e regulamentos para o uso do espaço
comum, mas as transgreções, segundo os próprios comunitários, seguem de maneira
reincidente. Por outro lado, as comunidades que vivem no interior ou mais próximo das
unidades de conservação REBIO-RT e FLONA-ST, nas áreas acessadas pelo Rio Trombetas
onde existe fiscalização do governo, não se escuta falar de escassez de recursos (salvo a
tartaruga), ao contrário, falam que as terras deles tem “muita fartura”. As queixas estão mais
relacionas ao acesso à recursos, dificuldade de desenvolver atividades econômicas e
infraestrutura. Nestas áreas também os índices de desmatamento são menores quando
comparados às áreas tituladas. Mas mesmo ali onde há a fiscalização, há também invasão,
inclusive de pessoas de fora das comunidades, geleiras e mesmo madeireiras, obviamente,
com atuação bem menor pelo alto risco.
Um dos maiores desafios externos que os territórios quilombolas da região do Rio
Trombetas vem enfrentando são as propostas capciosas de madeireiras realizadas em
comunidades com áreas tituladas ou mesmo não tituladas. A atuação das madeireiras é
percebida como um problema grave na Amazônia em geral. A perda anual de área florestal é
muito significativa com prejuízos de difícil mensuração, uma constante que atesta a
insuficiência/ineficiência das medidas governamentais de controle e fiscalização da
exploração do patrimônio de uso comum do povo. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE) a estimativa de desflorestamento na Amazônia Legal no período desta
  404  

pesquisa, de 2009 até 2013, somam 31.296 Km², referente ao corte raso da floresta, percebido
pelo PRODES/landsat396. Destes, somente o Pará contribuiu com 15.179Km2. Comparado
com os 27.772 Km² desmatados entre 2003 e 2004, com 8.270Km2 no Pará, há uma redução
perceptível, mas que vem sempre flutuando. Entretanto, considerando a soma cumulativa da
perda nas últimas quatro décadas, com a intensificação da ocupação na região a partir de
1970, a monta é estapafúrdia, ultrapassando os 600.000 Km² (mais do que a área da França).
No início da década de 1970, com os incentivos governamentais do planos de
desenvolvimento, com as isenções, os créditos, as concessões, a abertura das estradas
estratégicas, as obras de infraestrutura etc. iniciou-se um grande ciclo de desmatamento,
conforme já narrado. Neste período e na década subsequente, os incentivos fiscais e linhas de
crédito foram os grandes condutores do desflorestamento, seguidos pela especulação
imobiliária estimulada pela alta inflação. O avanço da pecuária e da soja, mais recentemente,
completaram o quadro do uso “destrutivo” dos recursos florestais no final do século passado
até o presente. Em todos os casos a exploração da madeira, principalmente das espécies de
elevado valor comercial, iniciavam o processo de devastação abrindo espaço para agricultura
e pecuária extensiva. Segundo Fearnside397 a flutuação do desmatamento se relaciona mais
com os ciclos econômicos do que propriamente com as medidas de controle e fiscalização. As
formas mais efetivas de combate ao desmatamento estão fora do alcance dos órgãos
ambientais, pois se ligam aos financiamentos, créditos, subsídios e programas de
desenvolvimento articulados por distintos setores do governo que nem sempre mantém um
estreitamento de relações com o setor ambiental.
A análise do monitoramento por satélite realizado pelo INPE ao longo das últimas
décadas revela que a perda florestal se dá majoritariamente nos grandes latifúndios que
comumente se sobrepõe às terras públicas na região. O processo se inicia com a retirada de
madeiras de valor, passando-se às queimadas sucessivas e posteriormente implantando-se as
pastagens e monoculturas. Tais práticas representam aproximadamente 70% do
desmatamento. Por sua vez, pequenas propriedades e assentamentos rurais em terras públicas
e privadas representam os outros 30%. Nas ocupações de terras pelos beneficiários da reforma
agrária, severas críticas foram tecidas contra o INCRA que escolhia áreas florestadas no
intuito de levantar recursos com a venda da madeira e depois aproveitar o solo fértil da área

                                                                                                           
396
MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Projeto PRODES – monitoramento da floresta amazônica
brasileira por satélite. Disponível em: http://www.obt.inpe.br/prodes/prodes_1988_2013.htm
397
FEARNSIDE, Philips M. Desmatamento na Amazônia Brasileira: história, índices e consequências.
Megadiversidade. vol. 1, nº 1, julho 2005. Disponível em:
http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/16_Fearnside.pdf. Acesso: 01 agosto, 2011.
  405  

recém desmatada. O Ministério Público Federal como condição de extinção da execução de


07 ACPs por passivos ambientais do INCRA, na região Amazônica, propõe um TAC que foi
firmado em agosto de 2013, determinando ao INCRA a redução de 80% dos desmatamentos
nas áreas assentadas em sete anos398.
O mercado de madeira da Amazônia Legal, apesar de constante oscilação,
movimentou nos últimos anos mais de R$ 5,0 bilhões anuais, possuindo cerca de 2200
empresas que geram, entre diretos e indiretos, mais de 200.000 empregos. A exploração da
madeira que mantinha uma média de retirada de tora acima de 20 milhões de metros cúbicos
anuais, sofre declínio progressivo a partir de 2005. Atrelado a políticas governamentais,
sobretudo com o aumento na fiscalização a partir do Plano de Combate ao Desmatamento; a
substituição da madeira tropical por madeira reflorestada, PVC e alumínio; e a crise
econômica mundial que afetou as exportações, em 2009 a exploração da madeira estabeleceu-
se na ordem de 14,2 milhões de metros cúbicos tora/ano. Via de regra a madeira retirada é
destinada em sua maior parte ao mercado interno, com pouco valor agregado, cerca de 58% é
processada, 20% destina-se a produção de energia e 16% vira carvão para alimentar a
metalurgia de ferro gusa399.
Mesmo com a redução na produção, a exploração da madeira continua como uma das
principais atividades econômicas de toda a região. Muitas vezes a prática se dá de forma
ilegal, ainda quando autorizada ou com Planos de Manejo Florestal, que acabam operando
como legitimação da exploração irregular, principalmente quando as autorizações são
concedidas em âmbito estadual. O descompasso entre o percentual de área autorizada para
extração madeireira e as áreas efetivamente exploradas vem ocasionando sucessivos
cancelamentos de licenças por parte do IBAMA. Essa realidade, de descompasso entre o que
se licencia e o que se explora, que não se restringe à madeira da Amazônia, mas se estende a
casos diversos em todo país, explicita a incongruência das abordagens que afirmam ser a
gestão privada dos recursos de uso comum um caminho para sustentabilidade dos mesmos.
Com o aumento da fiscalização e dos espaços territoriais protegidos, principalmente
Unidades de Conservação, o potencial madeireiro dos territórios de assentamentos e de
populações tradicionais vem despertando a atenção do setor madeireiro. Uma estratégia
recorrente utilizada, tanto para explorar novos territórios quanto para maquiar legalidade em

                                                                                                           
398
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Termo de Compromisso que firmam o Ministério Público Federal e o
Insituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, válido para toda a Amazônia Legal. Brasília, 08 de agosto
de 2013.
399
HUMMEL, António Carlos et al. A atividade madeireira na Amazônia brasileira: produção receita e
mercados. Belém, PA: Serviço Florestal Brasileiro; Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, 2010.
  406  

suas práticas, trata-se de formular propostas de parcerias com comunidades tradicionais (que
vivem no local a gerações) e assentados (que são remanejados para áreas florestadas), com o
fim de retirar a madeira de seus territórios. Habitando unidades de produção familiar ou
comunitária (território coletivo), os tradicionais e assentados, são extremamente carentes de
apoio governamental para utilização dos recursos florestais de seus territórios, despidos de
conhecimentos técnicos de manejo florestal e desprovidos de recursos financeiros, o que os
torna alvo fácil para as empresas madeireiras. Ludibriados com a possibilidade de renda,
infraestrutura e trabalho e desassistidos pelo governo, os comunitários através de suas
associações firmam acordos formais (contratos de cessão de uso) e informais que, pela
ausência de controle, tornam-se na prática extremamente assimétricos não resultando em
benefícios duradouros para os comunitários, além de exaurir os recursos de seus territórios.400
Cabe ressaltar que do ponto de vista da legalidade os contratos podem ser
questionados uma vez que os assentados e titulados devem utilizar-se de seus territórios direta
e pessoalmente (Lei 8.629/1993), não podendo ceder o uso a terceiros. Entretanto, existe a
possibilidade de “auxilio técnico” por terceiros no manejo florestal, hipótese em que uma
empresa poderia auxiliar na exploração dos recursos florestais de tais territórios, prevista pelo
Decreto 6.874/2009. Por sua vez, a responsabilidade sobre o Plano de Manejo Florestal
Sustentado - MFS é exclusiva dos assentados, inclusive no caso de danos ambientais e na
forma de utilização, cuja descaracterização pode gerar inclusive a perda dos lotes – Instrução
Normativa 61/2010 do INCRA.
Na realidade dessas parcerias assiste-se um grande oportunismo de grupos fortes, com
capital para criar infraestrutura necessária à retirada de madeira. Essa relação pode ferir os
interesses coletivos e também dos próprios comunitários, na medida em que percebem a perda
de seus recursos em uma velocidade muito distinta de seus modos de vida e sem o retorno
pactuado. A condescendência do poder público, que não proporciona as condições e nem a
capacitação dos assentados na fruição dos recursos de seu território é a regra. ONGs como o
Greenpeace denunciam uma parceria entre INCRA e madeireiras na realização dos
assentamentos da Amazônia, fazendo menção inclusive a assentamentos sem assentados, o
que é sutilmente corroborado nas publicações constantes no site do Sistema Florestal
Brasileiro que versam sobre o assunto.

                                                                                                           
400
NETO, Manuel Amaral et al. Análise de acordos entre empresas e comunidades para exploração da madeira
em assentamentos rurais na região da BR 163 e entorno, no Estado do Pará. Belém: Instituto Internacional de
Educação do Brasil, 2011.
  407  

No curso da pesquisa, me foi comentado por representantes de algumas comunidades


– Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem, Sagrado Coração, Mãe Cué, Moura e no Erepecuru –
sobre as propostas de madeireiras. Disseram como se dava a aproximação e as formas de
convencimento utilizada pelas empresas. Também tive acesso a algumas propostas escritas.
As práticas ocorrem, geralmente, com uma pessoa que se aproxima da liderança comunitária e
solicita uma reunião coletiva para apresentação de realização de um Manejo Florestal
Sustentável. Apresenta as condições do contrato de parceria em que, conforme os casos
estudados, entre outras coisas, a empresa se propõe a arcar com as despesas de aprovação do
projeto e uma meação de todo o recurso extraído, com a possibilidade de compra da quota
pertencente à comunidade pelo preço de mercado. Possibilita acompanhamento e fiscalização
da comunidade durante todo o processo, mas aponta um rendimento que, segundo conversa
com André Macedo, analista do ICMBio, são irreais. Para exemplificar um desses contratos
apresentava, a partir de uma simulação de exploração de 2.166 hectares por ano, que
supostamente renderia 29 metros cúbicos por hectare, com valor de R$ 150,00/1m³,
perfazendo o total de R$ 9.423.000,00 por ano, mais os recursos com carvão entre outros
derivados, o qual metade ficaria para a comunidade. Não obstante as contradições legais do
contrato (proximidade e interior de unidade de conservação, proibição de ceder o território,
ausência da anuência governamental etc.), o poder de sedução, somado ao desamparo e a falta
de conhecimentos técnicos, fazem dessas propostas um risco constante. No caso mencionado
as próprias comunidades recusaram a proposta, pelo conhecimento prévio de um exemplo mal
sucedido com as comunidades do Erepecuru.
A CPISP publicou em 2011 um estudo sobre as pressões e ameaças percebidas pelos
territórios quilombolas em Oriximiná401. No estudo são apontados cinco principais problemas.
O primeiro diz respeito à morosidade na regularização fundiária, que ali também está
relacionada às unidades de conservação. O segundo e o terceiro tratam do desmatamento e da
ação das madeireiras, que comentei acima com os casos vivenciados em campo. E o quarto e
quinto tratam dos interesses minerários e das hidroelétricas. Neste último quesito, são
apontados 94 processos minerários incidindo sobre as terras quilombolas, destes 10 são
concessões de lavra, os demais são de pesquisa. Os minérios pleiteados são bauxita, com 26
processos; ouro com 35 processos; e fosfato, com 33 processos.
As terras quilombolas, após tituladas ficam desvinculadas da obrigação de uma
assistência estatal direta, vão figurar, mutatis mutandis, como um regime privado de direito,
                                                                                                           
401
ANDRADE, L. M. M. Terras Quilombolas em Oriximiná: Pressões e ameaças. São Paulo: Comissão Pró-
Índio de São Paulo, 2011.
  408  

mas com as peculiaridades da propriedade coletiva. A entidade incumbida de assistir os


remanescentes de quilombo após a titulação é a Fundação Cultural Palmares, ligada ao
Ministério da Cultura, operando em Brasília. Conforme mencionado, os bens minerais são
pertencentes à União, distinguindo-se propriedade do solo com a do subsolo, conforme
analisado a atividade minerária é considerada de interesse público estratégico. Diferente das
Terras Indígenas que são de propriedade da União e gozam de disciplina constitucional
específica para o desenvolvimento da mineração, obrigando a consulta e aprovação no
Congresso Nacional, além de contarem com um serviço de proteção com acesso aos locais, a
FUNAI, as terras quilombolas não possuem essa proteção legal. A segurança das terras
quilombolas contra a utilização dos recursos minerais se ampara na Convenção 169 sobre
Povos Indígenas e Tribais da OIT. A pesar das discussões sobre a possibilidade de aplicação
direta da convenção, entendo que a questão é pacificada pela própria Constituição Federal de
1988, art. 5º, §§ 1º e 2º. Por sua vez, quanto a caracterização das comunidades quilombolas
enquanto povos tribais, é uma questão amplamente aceita, inclusive com jurisprudência neste
sentido402. A questão está na própria força da Convenção, que restringe a atividade minerária,
mas não a impede, submete à ampla consulta, à participação dos benefícios gerados e a
indenização equitativa pelos danos, mas o que se pretende proteger, no final, não está
suficientemente assegurado. Ademais, o grande problema está na própria rede de “interesses e
coisas” atreladas à exploração mineral, como as hidroelétricas no exemplo da bauxita, que
direcionam o Estado vide, p. ex., Belo Monte.
Das comunidades tituladas que incidem processos minerários estão a Água Fria,
Erepecuru, Boa Vista e Trombetas. As não tituladas também possuem processos. Uma saída
para essa situação, por mais contraditória que seja, são as unidades de conservação no modelo
de Reserva Extrativista - RESEX, onde a exploração mineral é explicitamente vedada. A
questão aí esbarra na “autonomia” sobre o território, muito romanceada de uma forma geral, e
na vontade política para se criar essas unidades diante do histórico de embates ali e dos
interesses que vão conflitar. Outro ponto é que os próprios tradicionais ali tem um profundo
ressentimento com “unidades de conservação”, mas por mais paradoxal que seja, são as
mesmas que estão possibilitando um melhor cuidado de seus territórios (vide o gráfico de
desmatamento).
                                                                                                           
402
 Decisão do Juiz Jose Carlos do Vale Madeira, da 5a. Vara Federal do Maranhão, o dia 27 de setembro, em
São Luís (Maranhão), no âmbito da Ação Civil Pública (ACP), número 2003.37.00.008868-2, que tramita na 5a
Vara da Justiça Federal do Maranhão, desde 15 de agosto de 2003, contra a Fundação 2, que tramita na 5a Vara
da Justiça Federal do Maranhão, desde 15 de agosto de 2003, contra a Fundação Cultural Palmares, União
Federal e o Centro de Lançamento de Alcântara. Disponível em:
http://www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa./?q=convencao-169-da-oit-no-brasil
  409  
Gráfico 2. Proporção do desmatamento acumulado até 2009 por terra quilombola (em porcentagem
de área).

100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20% Área Desmatada
10%
0% Área não Desmatada
Jamari

Alto Trombetas

Erepecuru

Trombetas

Moura

Ariramba

Boa Vista

Água Fria
Gráfico 5: Proporção do desmatamento acumulado até 2009 por terra quilombola em porcentagem de área.
Fonte: CPISP, 2011.
A análise da evolução temporal indicou que 78,2% do desmatamento nos territórios quilombolas ocorreu
até o ano de 2000;Conforme
14,6% nodiscutido
períodono capítulo
entre 2001 eanterior,
2005; e, a7,2%
FLONA-ST,
no períodododeponto
2006 ade2009
vista(Tabela
legal, 9).
deveria priorizar o uso
Massustentável
a evoluçãodos
do recursos florestais e não ocaracterísticas
que dizima eles, nesse
Ou seja, considerando o conjunto dos territórios quilombolas em Oriximiná, o ritmo do desmatamento
entre 2001 e 2009 diminuiu. desmatamento apresenta diferenciadas
em cadasentido, essa é uma demanda que deve ser veiculada, o que no curso da pesquisa não foi
território.

assistido.
O território É como
Boa Vista se realmente
(titulado em 1995)a área
não fosse da MRN
apresentou e não uma área
desmatamento pública
após 2000.federal destinada
Em seis territórios
à exploração
observou-se uma queda dosna recursos florestais, com
área desmatada, comunidades
comparando-se tradicionais
o período que desenvolvem
2001/2005 essa
com 2006/2009:
atividade, que chegaram muito antes e que deveriam ter prevalência. Com relação à REBIO-
Água Fria, Trombetas e Erepecuru (já titulados), Jamari, Moura e Ariramba (não titulados).

RT, onde existem outros interesses para se conciliar, entendo, uma saída pode estar também
Tabela 9. Desmatamento nas terras quilombolas por período de análise.
em uma Terra
RESEX, assegurando as áreas de reprodução da Desmatamento
Quilombola
P. expansa, enquanto
(ha)
proteção
integral com
Nome contratação
Situação Fundiária dos Área
próprios comunitários
TQ (ha) Até 2000na defesa e manutenção
de 2001 das pesquisas.
de 2006 TOTAL

Nesse caso, o ponto mais frágil e ao mesmo tempo mais necessário naquele contexto é a
a 2005 a 2009
Boa Vista Titulada em 1995 1.125,03 374,69 - - 374,69
Água FriapresençaTitulada
permanente
em 1996 das entidades ambientais
557,14 do335,95
Estado. Por sua
2,52 vez, conforme
0,85 visto, a
339,32

governança ambiental tem a ação dificultada e direcionada pela própria empresa de


Trombetas Titulada em 1997 80.887,09 1.646,27 305,17 155,51 2.106,95
Erepecuru Titulada em 1998/2000 218.044,26 1.306,78 316,82 123,34 1.746,94
mineração, comemvínculos
Titulada 2003 históricos61.212,96
com as instâncias superiores13,32
146,52 do governo, 24,83
que a pesquisa
184,67
Alto Trombetas
não conseguiu abarcar para desvendar
Em Regularização
os nós. Por663,76
151.923
fim, toda essa50,59
discussão só faz- sentido714,35
se
Jamari Em Regularização 138.822 152,59 61,13 16,82 230,54
Moura estivermos focando proteção da sociobiodiversidade
Em Regularização 18.491 e dos recursos
587,74 territorializados.
50,79 6,69 Ou seja,
645,22
Ariramba
uma maneira diferente e cuidadosa de
Em Regularização
agencia-los
23.418
à rede sócio-técnica
1.253,93 406,83
expansionista
265,78
que já
1.926,54
TOTAL 694.479,01 6.468,23 1.207,17 593,82 8.269,22
está lá conectada. Mas, eles querem isso?
Até onde caminhei a aspiração maior são os territórios titulados, tanto para eles quanto

(2006 a para as adiferentes frentes que


caiuospela
conecta com 155,51
o mundo. Mas uma Na linha
Terrade conexões deve ser
No território Trombetas foram desmatados 305,17 hectares entre 2001 a 2005. Já nos quatro anos seguintes
2009), área desmatada metade: hectares. Quilombola Erepecuru,
também desenhada,
foi registradoe dentro dela não no
um decréscimo é apenas o território
ritmo do o que aspiram,
desmatamento. Entre 2001sãoe melhores condições
2005 foram e
desmatados

acessos de profundamente transformadores tanto de seus ambientes quanto de sua natureza-


316,82 hectares e no período seguinte (2006/2009) houve uma queda de 61%, tendo sido registrados
123,34 hectares desmatamento.
cultura. Uma questão observada foi a ambivalência das políticas assistencialistas do governo,
Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças s25
as bolsas famílias e mesmo as bolsas verdes, os recursosTerras
tecnológicos, o combustível para
mover os geradores e embarcações e os próprios objetos em si. Isso de forma nenhuma
  410  

significa autonomia, significa dependência à rede que faz com que isso opere, desde o
petróleo à política de cabresto. Conforme mencionado, são ambivalentes, possuem pontos
positivos e negativos dentro de uma multiplicidade de perspectivas. Ademais não me
posiciono no sentido de que é possível ou necessário romper essas conexões, que sempre
existiram em maior ou menor grau. Um ponto frágil observado é, p. ex., o potencial
transformador de um auxilio governamental mensal. Conversei com um tradicional sobre isso
e perguntei sobre os seus roçados, suas atividades na floresta e ele foi me contando que agora
podiam comprar a farinha e alguns mantimentos na cidade, por isso o roçado estava
“pequeno” (não estava plantando), mas continuava pegando castanha. Muitos projetos
também não prosperaram, alguns por serem completamente descontextualizados, outros, mais
condizentes e que visavam aprimorar as atividades extrativistas e assegurar os vínculos dos
tradicionais com a floresta, por dificuldade de organização dos mesmos e conflitos internos.
Todos esses projetos e projetismos levam à questão formulada por Lobão quanto “se agora
não estaríamos produzindo a inclusão do ‘Outro’ em nossa própria temporalidade”403. Na
entrevista com Lúcia Andrade me é relatada a sua experiência e perspectiva:
* Eu estava falando do curral eleitoral, da dependência de energia...
Com relação à cultura deles, a perda cultural... porque tem também
relação com essas políticas assistenciais. E não só por parte do
governo, mas também por parte da mineradora e até por parte da
gente também que chega lá com as nossas propostas para melhorar a
vida deles... Boa Vista é um caso complicado de compreender para
quem vem de fora...
- É porque a principal atividade deles não é nem receber a bolsa, eles
trabalham na mineração.
* Formou-se uma outra relação, quase urbana ali né, eles são como
uma periferia de Porto Trombetas...
- Eu acho assim, então vamos falar primeiro da questão
governamental e depois falar dessas outras experiências mais
pontuais aí, inclusive da nossa. Acho que em termos de governo, tem
uma coisa que a gente vê que em Oriximiná, é uma questão maior, de
um problema de uma política de governo, que vem desde muitos anos
que é você dar cesta... não chama cesta mais, né... é bolsa família,
bolsa não sei o que, que pode ser importante pra situações mais
emergenciais e tal, e eu tenho dúvida se Oriximiná configura... eu
acho que é uma situação muito diferente do pessoal do nordeste, de
uma seca, que não tem o que plantar. Então assim, eu questiono um
pouco, mas esse meu questionamento nunca fez sucesso. Você pode
imaginar que os quilombolas nunca acharam bom esse meu
questionamento. Mas eu acho que lá a gente vive isso. Que por outro
                                                                                                           
403
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se
transformar em uma política de ressentimento. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2010. p.
287.
  411  

lado tem essas políticas, sempre também deu muita confusão porque
essas bolsas nunca chegaram pra todo mundo da comunidade. Teve
uma época também que distribuía... o fome zero distribuía não sei o
que, também a ARQMO se via em maus lençóis porque não chegava
pra todo mundo da comunidade e sobrava pra eles ter que saber
quem ganhava e quem não ganhava... então essas questões. Mas
então tem isso... e não tem políticas mais amplas, de longo prazo, uma
política pra apoiar o castanheiro, que dê um preço melhor pra
castanha, sabe? Uma coisa subsidiada... não tem política. Não tem!
No máximo tem algumas coisas pontuais, mas não tem... Essa também
é uma das coisas que a gente tá falando: precisa ter essa política.
Então eu acho que isso não é só Oriximiná, eu acho que é uma coisa
maior. E se a gente vê aquele programa “Brasil quilombola” também
é de forma geral, é isso. Tanto que também acho que é significativo
que a titulação das terras quilombolas que é o básico também não
anda. No governo Lula doze terras tituladas. Essa também é uma
política de fundo, pra você garantir. Porque lá também eles não estão
sendo expulsos, mas imagina se você ganha bolsa família e não
consegue ficar na sua terra porque tá com conflito com fazendeiro.
Então eu acho que tem mesmo essa lógica complicada dessa política.
Então isso é um ponto que eu acho que reflete lá. Acho que tem então
essas iniciativas, aí vou falar mais da nossa, né... que umas das coisas
que a gente percebeu é que... e que a gente tá avaliando... a gente
propõe certas iniciativas como iniciativas piloto, pra ver se o governo
encampa a ideia e faz. E não conseguimos isso. Foi se tentado
bastante com o Ministério da Agricultura, que era o que tava mais
envolvido com a questão da castanha... e o que a gente percebeu é
que nesse cenário de Amazônia, falta de comunicação, distâncias
enormes... transformar um projeto comunitário de castanha em
alguma coisa lucrativa dependia de política pública, para subsidiar
no começo... Por exemplo: criei uma cooperativa, se fosse fazer todas
as regras legais, colocar imposto... a cooperativa não consegue
concorrer com nenhum regatão, que faz tudo na informalidade.
Então, é... são coisas mais amplas que precisam ser... fizeram todo o
investimento nas tais boas práticas da castanha, chegou na hora H os
usineiros não pagaram a mais por isso, que era a lógica do mercado,
que era você investir e tal. Então acho que uma parte a gente viveu
também essa situação, que as iniciativas piloto e tal, pra elas saírem
do piloto, pra eles terem continuidade elas precisam desse apoio e a
gente não foi capaz e o governo também não teve sensibilidade de
olhar pra aquela região, pros quilombolas e pensar políticas. Então
nunca tiveram nenhum apoio e foi tentado. Então eu acho que
também foi isso: comercializar o artesanato, como que ajuda com o
mercado, como que orienta... tem isso. Esse foi um aspecto. Tem um
outro aspecto que eu acho que é: trabalhado dessa forma, pensando
no mercado, numa forma mais organizada e tal é uma coisa nova pra
essas comunidades. E são mudanças que a gente não consegue em
projetos de três anos... Então assim, é que eu acho que a gente viveu
logo que acabou o projeto também tinha uma dificuldade de
conseguir outro apoio, mas também teve uma coisa que a gente falou:
  412  

vamos parar pra pensar um pouco. Porque tinha essa questão que
tinha muita gente insatisfeita com a forma que o recurso foi
utilizado... Não tava um clima de dizer assim: as coisas estão
andando super bem, vamos continuar nesse caminho, então também
precisava pensar o que tava acontecendo. No caso do artesanato,
particularmente, assim... é... a gente pensou num projeto pras
mulheres e elas acabaram se desentendendo todas entre elas. E foi
muito assim... é pena porque ainda tinha um mercado. Ainda tem
algumas que fazem muito individualmente, mas aquela coisa assim
maior não se conseguiu. E um dos grandes problemas que teve foi
porque tinha o padrão de qualidade do artesanato pra mandar pra
loja de São Paulo. E aí as mulheres que foram responsáveis por
fiscalizar o padrão as outras brigaram todas com elas. Mas elas
estavam cumprindo e elas tinham vindo pra São Paulo. A gente fez
isso, elas foram conversar com as donas das lojas que foram muito
claras em dizer: se não viesse num padrão, não iam vender. E de fato
a gente via, chegava aqui era o que ficava encalhado. Então assim, aí
é uma dificuldade de um tal mercado. A gente quer fazer um
artesanato, que tenha um lucro, que seja vendido mais como uma
coisa única, exclusiva, mais pra obra de arte do que pra artesanato,
ele tem umas regras de mercado. Eu não acho que eles não têm
capacidade de lidar. Eu acho que eles têm uma coisa nova, que eles
têm que aprender. Eu não sou uma pessoa de negócios. Se tivesse que
montar um negócio eu ia ter que aprender. Eles estão aprendendo?
Estão. Quem nunca comercializou, são regras diferentes... Então
assim, o que eu acho que essas pessoas não consideram é o tamanho
do desafio pra eles. E as mulheres estavam começando o que pra elas
era um posicionamento novo. Delas estarem a frente do projeto. Elas
nunca tinham se organizado só elas, né. Eu acho que brigar faz... não
tem tanto sociedade... eu acho que assim, com os quilombolas tem de
ser tudo bonitinho, harmonioso, ninguém brigou... não! É tudo igual.
E ainda por cima tem uma dificuldade mesmo, que eles não vêm de
uma família de comerciantes que já sabem lidar. Acho que a castanha
também teve esse tipo de problema... isso que eu te falei no começo,
que a gente tá pensando que ao invés de ter uma estrutura
centralizada na cooperativa, tentar ver se em pequenas unidade
familiares também, mais de acordo com o jeito que eles já se
organizam hoje, pode ser pensado. E tamos tentando pensar, mas isso
aí ainda é muito... a gente tá tentando ver se consegue recurso pra
pensar um estudo de viabilidade... pequenas beneficiamentos... fazer
um doce, fazer uma coisa que possa ser vendida no mercado local.
Aproveitar esse tipo de questão de iniciativa... porque assim, a gente
já começou a pensar a castanha, a castanha é muito no mercado... é
exportar. Então assim, pensar em beneficiar já pra exportar... a gente
fez toda uma discussão pra vender como uma marca quilombola no
supermercado. Eu me lembro muito bem dessa reunião, que ela foi
ficando murcha. O cara falando da regra que o Pão de Açúcar tem
pra vender qualquer produto, mesmo naquele “caras do Brasil”...
assim, tem um horário que a mercadoria tem que estar lá na porta do
  413  

supermercado. Não chega no horário, não é recebido. Pensar isso


numa coisa Amazônica...
* Você não pensa em horas, pensa em dias de atraso...
- Aí o cara trouxe uma coisa... ah vocês vão fazer embalagem
individualizada, tá, não tem fábrica em Oriximiná pra essa
embalagem. Provavelmente não tem nem no Pará a embalagem.
Então vocês vão mandar trazer de São Paulo pra lá? Tem gente que
manda embalar... Isso era um homem de negócios, não era eu,
explicando que o mundo é mais complexo. E olha que a gente teve um
monte de assessoria e tal... precisou dessa pessoa... Então você tá
falando: oh, é esse o tamanho do desafio que os quilombolas tem que
enfrentar além das coisas internas deles. Então é isso que eu fico um
pouco injuriada, porque eu acho que as pessoas precisam... que tem
problemas tem, né, tem erros com certeza, mas tem um problema de
um tamanho enorme. Um desafio muito grande. Então se fala que tem
muita castanha, mas tem uma castanha pra cima das cachoeiras do
Erepecurú que custa caríssimo trazer essa castanha pra Oriximiná. E
esse é um desafio: como faz? Às vezes eles vão ganhar mais se eles
tiverem um projeto de serviços ambientais de deixar aquela castanha
intocada.
* É e toda a questão de vida deles, voltando a questão do
desenvolvimento, do que se pretende, o que que é se quer cuidar... é
muito frágil, as coisas que chegam, eles são seduzidos por esse
modelo...
- Eles são seduzidos, mas eles também fazem escolhas. Eles também
filtram. Eu acho que Oriximiná também tá num momento de decidir.
Porque assim, beneficiar uma castanha, entrar no mercado, fazer um
artesanato que não seja vendido em Oriximiná, venha pra São Paulo
significa que eu tenho que andar com as regras de mercado. Essas
não tem adaptação cultural... isso é papo de antropólogo. Isso é um
papo que a gente acha bonito. Então, o que eu digo... eu acho que eles
estão num momento de decidir se eles querem continuar do jeito que
eles estão e ganhando menos, mas podendo fazer nesse ritmo... ou se
ter acesso a mais recurso é tão importante que também vou mudar um
pouco o meu jeito de ser, né. E isso também acho que não pode se
confundir... porque assim, além disso falta a questão de ter acesso a
luz, saneamento básico, melhores escolas e tal que não pode ser
defendido... e que às vezes as coisas ficam meio misturadas, né...
Então eu também acho que tem uma outra batalha que é pelos
jovens... vários deles gostam da internet, de computador, como todos
nós. Tem que ter um serviço público para ter. Não ter transporte
público por aqueles rios de Oriximiná... não sei como está hoje, mas
era um barco uma vez por mês que o prefeito dava pros professores
irem buscar... mas assim, tinha que ter linha.

A comunidade de Boa Vista e do Moura, que organizaram cooperativas para prestar


serviços à MRN, aos olhos de quem vem de fora estão muito transformadas. Eles não plantam
mais, não extraem os produtos da floresta como faziam, seus filhos não mais aprendem as
relações com o território que os seus antepassados possuíam. Muito dessa perda dos modos de
  414  

vida é associada à chegada do modelo de desenvolvimento, que enfim, está lá. Mas o ponto
que não se observa muitas vezes é que os demais tradicionais querem isso também, acham
que essas comunidades foram beneficiadas... não entendem a armadilha. Assim como a
história do seu Domingos do Lago Batata, que foi retirado de suas terras que, por sua vez,
foram contaminadas e que depois retornou e disse que a vida melhorou muito: antes não tinha
“motor”. Como se defender disso? Voltemos ao machadinho de pedra, ou ao remo que levava
dias para se chegar em uma “paragem”, e agora leva horas com a rabeta. Não se trata de uma
“escolha da razão”, a própria vida vai impor isso em um mundo de trocas inevitáveis. A
tecnologia é um gancho, it’s a hook, um anzol que te fisga e te agencia e te torna dependente.
Te liberta e te escraviza. Proporciona comodidades. Mas está homogeneizando o mundo por
relações espoliadoras, acabando com a sociobiodiversidade, comprometendo o futuro, nos
empobrecendo etc. Assim como foi necessária a mobilização de diversos interesses para o
agenciamento da bauxita, para que a máquina minerária operasse, com o suporte e os
subsídios do governo, para agenciar os elementos da floresta também vai ser necessária a
canalização de muitos interesses, e o direcionamento de muitas políticas públicas, subsídios e
infraestrutura por parte do Estado. Esses povos são os atores que podem compor um mundo
mais plural, mais democrático.
  415  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foto 25: Cachoeira Porteira. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.

Adiante somente de canoa. O barco da expedição ficou na Cachoeira Porteira


aguardando o nosso retorno. Já havíamos combinado com dois índios way-way que nos
conduzissem até a aldeia-mãe, Mapuera, uma jornada de mais dois dias de onde estávamos.
Nos dividimos em dois grupos. Em uma das canoas partiu eu, Thaís Azevedo, Alessandra
Terra e Marina Marçal e na outra Wilson Madeira Filho, Camila Santos, Débora Pinaud e
Cristiana Veras. Neste dia havia chegado um barco de Oriximiná com outros índios que
também estavam subindo para suas aldeias, situadas ao longo do Mapuera. Para subir na
cachoeira percorríamos até certa parte do rio onde havia uma entrada, parávamos num ponto
em que era necessário descer da canoa para empurrá-la, pois o motor de popa que os índios
usam, poderia bater em alguma pedra. Neste local a profundidade das águas não ultrapassava
os joelhos, mas existiam buracos e a violência com que as águas desciam exigia muita força
para se manter no lugar e avançar. Aquela cachoeira representa o encontro de três rios
amazônicos, o Rio Trombetas, o Rio Cachorro e o Rio Mapuera, apesar de sua declividade
suave num continuum com cerca de cem metros, sua extensão é expressiva, ultrapassa
quinhentos metros, com diferentes momentos e paisagens. No seio desta manifestação quedar-
se temeroso não pode representar adinamia, mas cautela. Marina e Alessandra permaneceram
na canoa enquanto eu, Thaís e o índio que nos guiava a empurrávamos. Pouco a frente, uma
  416  

criança, outro índio e uma índia idosos não estavam conseguindo empurrar sua canoa,
carregada com materiais de construção, em uma área mais turbulenta. Enquanto Thaís ficou
segurando nossa canoa, vou com o índio ajuda-los para liberar a passagem. O índio velho, de
tanta força que fez, começou a passar mal e se assentou em uma pedra para se recompor,
outros índios se juntaram para ajudar e, num certo momento, um buraco me desequilibra, a
força da água me puxa e bato com o queixo na beirada da canoa. Vou lançado pela correnteza
por debaixo d’água. Naquele momento a pesquisa poderia ter se encerrado sem nunca ganhar
forma no papel... tentava me agarrar, mas as forças me faltaram e, num curso de uns
cinquenta metros uma pedra no caminho me ancora e me para deitado em uma lâmina d’água
de uns dez centímetros. De joelhos, tomo ar, reergo e retomo o caminho sobre as pedras.
Quando alcanço a nossa canoa, já estavam atravessando a parte mais turbulenta; sem muita
força, sigo para auxiliar a empurrar. A Alessandra perdeu seu óculos de grau, a Thaís deixou a
filmadora cair na água, a Marina saiu intacta, apenas molhada, mas todos ficamos bastante
cansados e assustados. A outra canoa teve mais sorte, mas não menos cansaço e
assombramento. Seguimos pelo Rio Mapuera cujas águas claras, azuladas, possuem outra
velocidade comparadas às do Rio Trombetas, com paredões de pedras nas margens, e
pequenas ilhas pelo rio, o cenário é deslumbrante. Passamos por três aldeias e paramos na
quarta em que nos hospedamos em uma casa de madeira destinada ao pessoal da FUNASA e
da FUNAI. Apesar dos modos de vida parecidos, os índios não são receptivos como os
quilombolas e não apenas por não falarem português, pelos seus próprios costumes. Esses
índios migram por longas trajetórias até se estabelecerem em determinado local e depois, com
a redução dos recursos, migram novamente. Muitos ali desceram das Guianas e do Suriname e
passaram por muitos territórios. Missionários religiosos ingleses lhes roubaram parte da
liberdade, não andam mais despidos, mesmo quando se banham. Poucos falam português,
alguns falam inglês e em geral são bastante fechados e tímidos. No dia seguinte sigo
caminhando pela aldeia, na oca grande as crianças estavam em aula, me aproximo e observo
de fora, quando elas terminam e saem, me veem e correm todas sem olhar para trás. Cena
marcante. Neste dia desistimos de seguir para a aldeia Mapuera. As dificuldades na interação,
a dependência da alimentação e, principalmente, por termos tomado conhecimento de que a
próxima cachoeira antes de chegar na aldeia seria muito mais complicada do que primeira,
desanimou a equipe. Neste dia, após visitarmos as outras aldeais na descida, retornamos para
a Cachoeira Porteira. Chegamos lá e nos deparamos com um hidroavião pousado no Rio
Trombetas, era de um pastor batista. Na própria Cachoeira Porteira havia uma pista de pouso,
  417  

da época dos grandes projetos, mas esta foi implodida pela polícia federal no combate ao
narcotráfico. Neste mapa são muitos caminhos e muitos outros para serem acrescidos...
Poucos dias antes de partirmos na caravana, Wilson Madeira Filho organizou uma
exibição pública, na praça da Paróquia de Santo Antônio em Oriximiná, do filme
“Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Olhares compenetrados e risos compuseram o cenário de
gentes diferentes. Nosso horizonte é amplo na augura dos olhos. Conquistadores do inútil? O
sonho do sonho de conhecer quer se conectar, quer se apresentar para que as formigas verdes
continuem sonhando, ou voltem a sonhar... em alusão a outro filme de Herzog.
O percurso que trilhou este estudo perpassou o histórico das políticas governamentais
para a Amazônia brasileira, na perspectiva de sua “integração” estatal, que buscou fulcro e
aceitação na necessidade do controle deste vasto território sobre constante “ameaça”, e nos
ideários desenvolvimentistas. Sempre amparados nos números que revelaram este espaço
enquanto um vazio demográfico, pelo desconhecimento e pela desconsideração da
territorialidade de seus povos errantes e de seus seres erráticos. Por sua vez a concretização ou
efetividade de qualquer dessas políticas estiveram sempre atreladas ao agenciamento dos
seres e das coisas, sejam da fauna, da flora, dos povos ou dos solos e subsolos, integrando-os
a uma rede que ultrapassa as linhas territoriais dos Estados e compõem matéria no próprio
Ocidente em expansão. “Os ganhos” dessa marcha adiante são concentrados em “centros de
poder” possíveis de serem definidos. A Ciência fez conectar os seres à essa rede e, do outro
lado, o governo e suas políticas, no plano das ideias projetadas, nunca atingiu o que se
propunha.
Os programas do regime militar, consideravelmente analisados neste estudo em seus
documentos oficiais, ensaiaram uma nova toada nesta colonização. Investidos da Ciência e
agenciadores de múltiplos interesses com capital e tecnologia, possibilitaram uma nova ordem
de intervenções. Aqui tivemos o privilégio de vivenciar um desses projetos pioneiros e suas
consequências nos territórios que deram origem à pesquisa. O agenciamento da bauxita foi a
razão de maciços investimentos e da construção de toda uma organização territorial, com
grandes empreiteiras e sagazes políticos, para possibilitar que este mineral se conectasse à
rede sócio técnica que hoje se expandiu para o mundo todo, legitimado pela geração de
“riqueza” para a Nação a qual a imensa maioria nunca viu ser compartilhada. Anteriormente
este mineral era majoritariamente destinado ao mercado externo apenas com uma etapa de
beneficiamento no país, hoje passando por outras empresas com os mesmos acionistas
transnacionais, é exportado com mais uma ou duas etapas de beneficiamento, alumina e
alumínio primário respectivamente. Para perscrutarmos a importância externa deste mineral
  418  

podemos comparar o consumo per capta anual no Brasil, que está em torno de 4Kg, com os
países da Europa, os EUA, ou Japão que gira em torno de 30 Kg. Para explicar as macro-
relações de poder o estudo abdicou de recorrer à forças sociais ocultas, como “o capital”. É
necessário poder apontar o dedo e dizer quem é quem, pessoas e coisas, e como elas se
conectam. Antes de ser decorrente de uma entidade transcendental o poder dessa máquina
minerária está nas mãos de quem usa energia elétrica transmitida por cabos de alumínio.
O ponto de maior relevância na pesquisa é a ascensão da questão ambiental e os
múltiplos interesses que “passaram” a ser evidenciados com a mesma. Foram analisados
projetos sociais para stakeholders, estudos de impactos ambientais, pesquisas de conservação,
projetos de reflorestamento, políticas de compensação, licenciamentos ambientais, ações de
fiscalização etc. O que representou a emergência da questão ambiental na área de estudo?
Quais foram os seus resultados? Empiricamente, o aumento exponencial da mineração que
avança floresta adentro, cada vez mais rápido, impossibilitando que diversos outros seres
sejam agenciados, sequer conhecidos, inviabilizando modos de vida tradicionais, recriando
um novo espaço para o futuro, provavelmente mais homogeneizado, menos plural e menos
vivo. O esperado não seria o inverso? Ao contrário, além do avanço tecnológico e do aumento
do capital de reinvestimento, agora a atividade ganha o rótulo de “prática sustentável”, seja
pelos estudos, pelos licenciamentos ou pelas compensações. Dentre os promotores dessa
“sustentabilidade” estão as empresas de consultoria ambiental, seus instrumentos e agentes: os
biólogos, os geólogos, os geógrafos, os sociólogos, os advogados, os químicos, GPSs, mapas,
exsicatas, laboratórios etc. e também o governo e os seus funcionários. Os selos e
qualificações também corroboram essa legitimidade universal da sustentabilidade, mas,
indubitavelmente, não tem a força legitimadora maior do que a “emprestada” pelas
instituições de pesquisa, internacionalmente reconhecidas, como Museu Emílio Goeldi,
INPA, UFRJ, UFSC entre outras. Mas, o mais importante na emergência da questão
ambiental para o estudo não é a promoção desse “desenvolvimento sustentável”, são os
espaços territoriais protegidos.
Na região do estudo, concomitante às políticas de desenvolvimento vieram as políticas
de conservação, mas não sob a mesma perspectiva, não alinhavadas a priori. Advogou-se uma
constante dubiedade na ação estatal, demonstrada na ordenação hierárquica dos interesses que
contam “mais” e direcionam as políticas, os interesses que criam mais conexões por
conversões, traduções ou translações. A Reserva Biológica do Rio Trombetas, unidade de
conservação de proteção integral, teve como objetivo principal a proteção da tartaruga-da-
amazônia e dos castanhais do Alto Trombetas. Apenas posteriormente foi cosida aos
  419  

interesses da mineração da bauxita, dentre outras razões, pelas próprias contradições geradas
com relação à preservação dos quelônios, impactados com o tráfego dos navios. Sua criação
arbitrária e seu modus operandi segregacionista representou o primeiro desencadeamento de
conflitos entre os tradicionais e o poder público. Violências e ressentimentos marcaram as
relações, pois, apesar de ter extinguido ali a prática da patronagem, removeu famílias e
cerceou os remanescentes de quilombo de suas atividades corriqueiras, relacionadas ao
extrativismo e à caça e pesca de uma forma em geral. A Reserva deu início à organização
política desses povos. Na prática a Reserva Biológica não operou enquanto tal e, no curso das
mudanças governamentais nas ações e percepções sobre conservação da biodiversidade, a
relação com os tradicionais foi se transformando. A região em que foi criada a Reserva
Biológica do Rio Trombetas representava a principal área de desova da Podocnemis expansa
no Brasil, após trinta anos de sua criação, a espécie que se destinava a proteção, praticamente
desapareceu no local. A pesca, os navios, o manejo inadequado estão entre as possíveis
causas. A linha que se traça é de uma irreconciliável política de conservação fechada sobre si,
preservacionista, com as utilizações tão arraigadas dos recursos florestais por parte das
populações tradicionais que ali habitam, exigindo que novos pactos sejam firmados, como
condição de uma melhor operacionalidade dessas próprias políticas.
Por sua vez, a Floresta Nacional Saracá-Taquera, criada sob os auspícios do
autoritarismo governamental, operou como uma “expropriação ecológica” dos direitos dos
remanescentes de quilombo sobre seus territórios. Assegurou a posse e o domínio público da
área para a atividade da mineração operar de maneira fluida. Contudo, com objetivo real
diverso das finalidades do espaço territorial protegido, sobretudo com as mudanças
advenientes com a Lei 9.985/2000, a extração da bauxita na Floresta Nacional opera
sustentada em marco legal duvidoso, contrariando a posição doutrinária majoritária em
matéria de direito adquirido no jusconstitucionalismo ambiental. Contudo, a ideia de Direito,
dentro do que se descreveu no estudo, funciona mais próximo do estabelecimento de relações
de ordens diversas do que da observância aos parâmetros legais. Afora a história que macula a
idoneidade moral da empresa e do governo federal na criação dessa unidade de conservação,
o conflito direto com práticas tradicionais extrativistas na floresta, exercidas antes da
mineração e substancialmente mais condizentes com a finalidade legal do espaço protegido, é
o que mais se destaca, por dois traços marcantes: primeiro, pela injustiça social de se
inviabilizar modos de vida associados a uma prática que poderia atravessar gerações, com a
manutenção da floresta e com o desenvolvimento econômico das comunidades, gerando
benefícios distributivos muito mais reais, e essa fratura da sociobiodiversidade ocorrendo sem
  420  

uma indenização justa. Segundo, pela perda do potencial econômico da floresta, que ainda
não é devidamente contabilizado e que pode ser maior do que o da bauxita, em uma escala
temporal mais ampla, criando-se uma situação irreversível cujos resultados apresentados, para
a região e para o país, não se justificam dentro do que se idealiza enquanto “promoção do
desenvolvimento”. É preciso repensar o avanço desta “máquina” em uma perspectiva de
futuro menos imediatista e contabilizar os seus resultados de maneira mais profunda, antes
que se recriem mais “fatos consumados”. Nesse sentido abra-se mais um caminho para
pesquisas.
Por fim, foi narrada a luta extraordinária dos remanescentes de quilombo e a ampla
rede de relações que foi tecida com a mesma. Um corpus de conexões que ultrapassou as
fronteiras nacionais e que fez frente tanto às políticas de desenvolvimento quanto às de
conservação, ganhando visibilidade notória. A luta pelos territórios repercutiu na inauguração
de marcos legais inéditos no país, com a propriedade coletiva da terra, e vem representando
uma nova organização estatal na região. Não obstante significar um grande progresso em
termos de justiça social, os territórios titulados não representaram, por si só, uma garantia
mais efetiva à manutenção dos modos de vida dessas poluções tradicionais – em alguns locais
não existe mais puxirum, roçados ou extrativismo – tampouco representou uma segurança
contundente dos recursos territorializados, revelando áreas sob constante pressão. Todavia,
tanto a defesa dos modos de vida tradicionais, quanto a sustentabilidade de suas práticas, no
uso dos recursos de interesse comum, são apresentados enquanto pilares de legitimação
dessas políticas. A luta mais aguerrida e mais complexa desses povos se dá com as unidades
de conservação, pela rigidez jurídica para a alteração desses espaços. Por sua vez, por mais
contraditório que soe, são nesses espaços ou nas áreas tituladas mais próximas a eles, que se
percebe os modos de vida mais resguardados e os recursos mais íntegros. O que se dá pela
presença da governança ambiental que controla um pouco mais as invasões, internas e
externas, e presta-lhes uma assistência mais direta e presencial. Essa é uma discussão que o
estudo também lança sobre o que se busca afinal.
Um mundo em movimento. A expansão representa o que se associa e passa a compor
ao mesmo tempo em que excluí e nega a existência. Como construir o múltiplo? Ele já está
dado. A pergunta correta seria como percebê-lo e aceita-lo? Ao longo do estudo, por vezes, a
visão se dividia. O caminho a se buscar seria a emancipação, a autonomia? Mas se está tudo
ligado, tudo aceso, tudo se conectando e, o que ainda não está, parece desejar isso ou não ter
como fugir disso. Esse parece ser um caminho pouco viável. O caminho seria a integração? O
que se observou é que, quanto mais “integrado”, mais criaram-se dependências, mais se
  421  

canalizaram “as energias” aos centros que controlam a medida e a velocidade da integração,
mais se excluiu seres e homogeneizou ambientes, a integração pareceu mais uma
“vampirização” (currais eleitorais, cooperativas para serviços de baixa qualificação,
dizimação da floresta). Então, não haveria caminho? Entendo que sim, e muitos, certamente.
O que provavelmente não há é a possibilidade de se prever onde eles levam ou onde se
encerram, sem percorre-los antes. Talvez se dê para saber até aonde os olhos alcançam e se
tiver um binóculo vai se ver mais longe... Quando observei o Seu Domingos falando que
“melhorou muito por que agora tem motor”, era um martírio remar dias, o mesmo valia para
os quilombolas e para os índios. Emancipação e autonomia me soaram como um “devaneio”,
salvo se diluídas em graus que estão em movimento. Emancipou-se do remo e agora depende
do petróleo e do próprio motor. De onde vêm o motor? Provavelmente de lugares e tempos
variados, talvez, um de seus metais, o alumínio, possa ter saído dali de uma montanha ao
lado, dado a volta ao mundo, e retornado em forma de motor, depois de somar conhecimentos
novos e antigos, tecnologias, mão de obra, energia, outros metais etc. A questão que se coloca
é perceber o motor tão natureza quanto o Seu Domingos, as montanhas perfuradas e as
árvores que estavam acima dela, sem reduzir tudo a uma naturalização. A autoridade
epistemológica dirá: é a natureza transformada pela cultura, fruto do trabalho humano! Sob a
perspectiva que adotamos poderíamos indagar: quando começou esse “trabalho”? Com o
Homo habilis, ou com Homo ergaster, ou Homo erectus, o Homo sapiens, o Homo Lattes? Ou
com a primeira bactéria? Se foi no H. sapiens que tem idade atribuída de 200.000 anos,
quando se deu? Pode-se eleger uma data, dar a característica que vale e atribuir a ela uma
autoridade, cindir um antes e um depois. É o papel da Ciência criar provas válidas para isso. É
aonde a perspectiva filosófica do estudo busca problematizar, como diria Morin:
É necessário dizer que a obsessão quase religiosa de fazer triunfar a
ordem no mundo e a obsessão quase delirante de encontrar a pedra
fundamental (molécula, átomo, partícula) com a qual teria sido
construído o universo impulsionaram um prodigioso dinamismo na
busca da ordem soberana e do átomo original, procura que culminou
nas descobertas que arruinaram a ordem soberana e o átomo
fundamental.404

A “forma de observar” empenhada no estudo não nega a possibilidade de se dizer que


há uma cultura e uma natureza, ou um racional e um irracional. Mas aponta que para construir
essa dupla existência é necessário arbitrar uma divisão. Para isso é necessário negar a
percepção de que tudo é um processo e criar uma autoridade, a da razão, que por sua vez é
                                                                                                           
404
MORIN, E. O método 4: As ideias, habitat, vida, costumes, organização. Trad. Juremir Machado da Silva. 4ª
ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005. p.277.
  422  

capaz de revelar o que é o real, “a natureza”, pois transcende a ela. Isso é uma forma de ver o
mundo: a filosofia moderna. O caminho epistemológico que o estudo percorre partiu de uma
rejeição dessa grande divisão entre sociedade e natureza, no sentido de empenhar uma
compreensão mais condizente com a multiplicidade que se apresentou. Para tanto
desacreditou de uma essência humana, uma essência racional e qualquer outra essência. Pois,
senão teríamos que questionar novamente: Qual origem? quando iniciou? No humano. Esse é
o ponto de chegada? O fim da linha? Se sim, teríamos que negar todo o conhecimento que a
ciência moderna atingiu, ou ainda, que as transformações no ambiente e as que infligimos
sobre nós mesmos não nos transformam. Acreditar no criacionismo seria mais fácil. Senão
estaríamos negando o que os nossos próprios olhos podem ver – que as coisas mudam. Outra
indagação que se perfaz é sobre a suportabilidade de mudanças que podem recair sobre algo
antes de sua transformação, ou seja, qual o quantum de mudanças pode incidir sobre alguma
coisa antes que se torne outra coisa? Quantas mudanças uma época pode tolerar antes que
passemos a vê-la como outra? Assim por diante... Isso vai ser necessariamente arbitrado
dentro do elegido como “essencial”. Compreendeu-se enquanto um conhecimento mais
aproximativo observar o que se liga e se transforma, focar o processo e a metamorfose, ser
mais kafkiano do que K. Isso não é uma redução do humano, ao contrário, é uma
multiplicação. É uma mudança na relação com o tempo e com espaço estabelecida pela visão
moderna. A filosofia moderna cria um télos, uma promessa de realização futura, uma
percepção de que o desenvolvimento promovido pela Ciência e tecnologia vão realizar todos
desejos e sonhos... É tão atrativo quanto a “terra prometida”, mas os resultados devem ser
apresentados o quanto antes. Como se o agora não passasse da espera do amanhã, que apaga
o ontem, assassina a história e recomeça de novo, sem nunca chegar... Por isso, talvez, tanta
pressa, a promessa não se cumpre. Sem dúvida, não estou negando as conquistas, são essas
conexões que nos importam. Mas, esse recurso à razão transcendente cria uma autoridade,
cujo esplendor é a Ciência, neutra, pura e desencarnada, mas que dita a própria política e os
próprios valores. A razão desencarnada é uma autoridade tão forte quanto Deus na era
medieval e, assim como nesta época, tem seus representantes diretos, os aliados, os
financiadores, os que concentram as informações e que, conforme se estudou, vão ter mais
razão do que a razão do quilombola, ou do indígena, quem dirá da árvore que não tem
nenhuma dentro desse modelo. Os resultados dessa “forma de ver o mundo” são soberbos,
mas muito diferente das idealizações projetadas, o que fez foi ampliar sobremaneira a
“natureza de fora” no “convívio do humano”, ampliar sua rede-habitat, multiplicar as
dependências, somar mais coisas e hierarquiza-las na composição do que se designou como
  423  

social... Que no final das contas são múltiplas coisas, todas que se somam, é a vida se
manifestando portentosamente. Por sua vez, na autoridade de quem tem o acesso à essa
“razão”, cujos interesses valem mais, fez-se excluir outros inúmeros seres, humanos ou não,
exterminá-los, escraviza-los etc. Reconhecer que vem comprometendo a própria possibilidade
de expansão, ou mesmo de subsistência, por ter desconsiderado a ligação desses tantos seres,
a partir das múltiplas ciências que, dificilmente podem ser ordenadas em uma mesma direção,
fez abrir a Caixa de Pandora epistemológica que é a “questão ambiental”. Apresentar a
ligação desses muitos seres foi o que este estudo quis apresentar, uma ecologia política. Por
isso refutar a percepção dessa autoridade epistemológica, sustentada na divisão entre
sociedade e natureza, para perceber uma multiplicidade (a que foi possível). Para tanto
valendo-se das mesmas técnicas tradicionais de coleta de dados, mas tentando relacionar
diferentes saberes e dando a mesma importância à carta para as ONGs internacionais, a fala
do quilombola, a tartaruga ameaçada de extinção e a bauxita que compõe o computador que
redigiu esta tese.
  424  

Um Desvio no olhar

Sois capaz!
Não necessitais nenhum óculos especial, nenhuma lente, nenhum prisma mágico
Não precisais de luneta, telescópio ou microscópio
Apenas uma pequena mudança no ângulo do vosso olhar
Isso é um convite?
É
Olhai vossos objetos...
O chão que pisais, o veículo que vos transporta, a casa que vós habitais
Vejais donde estas palavras se materializam e chegam aos vossos olhos
São coisas!
Direis...
Não
São a nossa extensão, conexão e apreensão do que ousaram chamar de mundo "lá fora"
“Olhai a vida secreta das coisas!”
Elas já são mais vós do que o que vós supões serdes
Ou o que crês que sois?
Digo:
Pensai vós sem suas vestes
Eis um humano nu
Pensai vossa vida sem elas!
Da fogueira de gravetos de vosso mais longínquo ancestral...
Do machadinho de pedra, ao foguete espacial...
O seu ultramoderno computador...
O que são?
São mobilizações das forças e matérias da "natureza"?
Testemunhas inertes de nossos saberes transformadores?
Os objetos da nossa sublime “cultura"?
Muito mais!
Ademais não existe essa tal de natureza e essa tal de cultura!
Isso é apenas uma estratégia "moderna" de dominação!
A natureza morreu e a cultura também!
Estais a blasfemar, ou pior, rompestes o elo com a sanidade... me dirás com certo desdém...
Insisto!
Ser moderno é estar dividido em dois...
Dicotomizado!
A natureza lá fora
Os humanos aqui dentro
Res extensa e res cogitans... Como sacralizara Descartes
Os racionais e os autômatos
A objetividade e a subjetividade
Os modernos suprimiram Deus da explicação da Natureza: o universo tem suas próprias leis
e nós somos capazes de desvendá-las...
Os modernos afastaram Deus da Política: nós regemos o nosso Estado e criamos nossas
próprias leis...
Mas o Deus afastado e suprimido, se precisareis, pode habitar vosso coração... Os modernos
vos permitem terdes vossa religião "individual" para garantir vossa paz...
Quão hipócritas são esses modernos!
Natureza - Sociedade - Deus
  425  

"Mentietur pilosos"
Nada disso existe em separado!
In divisus
A separação é uma forma de criar "autoridades": a Natureza cabe à Ciência; a Sociedade
à Política e Deus às Religiões... Todos com seus respectivos representantes iluminados
Substantia absolute infinita est indivisibilis
Diria Spinoza!
Dizer que as coisas existem em separado é uma ilusão de óptica surgida na dominação!
É congela-las em seu movimento...
Deveis se libertar da ilusão
Quod dulcis illusio
Voltemos aos vossos objetos!
Embriões congelados, clones e organismos geneticamente modificados...
São a natureza (coisas) ou a cultura (humanos)?
Como diria Latour: são híbridos!
Ou Serres: quase-objetos!
Ou Deleuze e Guattari: quase-sujeitos!
Assim como todos os objetos, são "naturezas-culturas"
São conexões, agenciamentos, mobilizações heterogêneas...
Rizomas que conectam coisas muito diversas e que dão a nossa existência!
Somos uma multiplicidade...
Cadeias biológicas, econômicas, políticas, literárias, de armas e de amor...
Não existe essência humana!
Novamente direis: quanta tolice!
Afirmareis: É a ciência e a tecnologia humana que os constrói! É o poder da razão!
É???
A ciência é uma fina rede que agencia humanos e não-humanos
Assim como qualquer conhecimento
Não é o espelho do real
Assim como a tecnologia não é uma milagrosa magia!
A realidade objetiva é uma construção subjetiva que jaz no mundo objetivo
Ou tente fazer funcionar a mais sofisticada máquina humana sem uma tomada para ligá-la!
Tudo isso só existe se existir em "rede"!
Qualquer política humana, qualquer lei, qualquer conhecimento cientifico só existe em
multiplicidades
Nunca é uma coisa em si...
São sempre muitas coisas agenciadas, vivas e não vivas
Assim também como não existe racionalidade em si
Como disse Nietzsche: o humano é a ponte entre o macaco e outra coisa que virá!
Tudo é movimento e encontros de forças que transformam...
Existência fugaz... sempre se metamorfoseando
Diria: olhando um pouco mais de longe somos a manifestação do tempo sobre as bactérias!
Margulis disse: quando pisamos na lua não fomos nada além das botas das bactérias!
Data maxima venia
O que compreendeis como razão nada mais é do que um continuum de saberes talhados nas
nossas relações com o mundo...
O que conseguimos somar a nós mesmos para compor a nossa existência!
Isso já acontece muito antes de sermos "humanos"...
Não tenteis explicar, olhai aquilo que se explica por si mesmo...
Usai todas as técnicas e ferramentas que as ciências e saberes vos dão... Mas somente para
  426  

que o olhar possa ir mais longe... Ver mais coisas que se somam...
O que não se alcança pode ser ludicamente fantasiado... Mas que o sonho seja apenas sonho,
não uma imposição!
É saudável sonhar...
Mas suplicai para que nada se torne uma autoridade absoluta, apenas seja compreendido
depois de demonstrado
Lembrai: o que é feito deve poder ser refeito... Tudo é movimento...
Não existe o certo e o errado... Diria Deleuze e Guattari: " bom e mal são somente o produto
de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada"
Como diria Marx: "tudo que é sólido desmancha no ar"
Direis: eis um desconstrutivista pós-moderno lançando sua hermenêutica da suspeita para
aniquilar a humanidade sagrada! Ser amaldiçoado, diabólico!
Retruco: "pós" é o que já foi, mas ainda não é! Somos plurais e dispensamos os rótulos...
Desviar o olhar é operar outras ferramentas...
Atingir outras liberdades
É ampliar a história construída para a história da vida...
Olhar as naturezas-culturas é ampliar a existência para além de vossos umbigos...
Mudar o mundo é vê-lo com outros olhos...conhecê-lo e ensiná-lo... por si as coisas já estão
mudando todo o tempo...
Quid faciam?
Conexões!
"É meu amigo só resta uma certeza
É preciso acabar com a 'natureza'
E 'em-TERRAr' de vez o nosso amor!"
  427  

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