Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FEDERAL
FLUMINENSE
PROGRAMA
DE
PÓS-‐GRADUAÇÃO
EM
SOCIOLOGIA
E
DIREITO
CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS
E
URBANOS
TERRITÓRIO
MINADO
NITERÓI
2014
2
TERRITÓRIO MINADO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.
Niterói, 2014
3
428
f.
Orientação
do
Prof.
Dr.
Wilson
Madeira
Filho
Tese
(Doutorado
em
Ciências
Jurídicas
e
Sociais)
–
Universidade
Federal
Fluminense,
2004.
1.
Interdisciplinaridade.
2.
Justiça
Ambiental.
3.
Conflitos
sócio-‐ambientais.
I.
Dissertação
(Mestrado).
II.
Título
4
TERRITÓRIO MINADO
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________________
Prof. Dr. Wilson Madeira Filho (PPGSD – UFF)
________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marta de Azevedo Irving (UFRJ)
________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª May Waddington Telles Ribeiro (UFPI)
________________________________________________________________
Dr.ª Alba Simon (SEA)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Lobão (PPGSD – UFF)
Niterói, 2014
5
In memoriam
Ao meu pai, que me deu a vida e deu a vida pela educação de seus filhos.
No curso da redação deste trabalho ele partiu em uma “conjunção astral”.
Dedico este trabalho ao meu filho que ainda não nasceu, concebido um mês
após o falecimento de meu pai, para me ajudar a entender a vida.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Esta tese estabelece uma análise dos dissídios entre diferentes grupos de interesses que
recaem sobre os territórios de duas Unidades de Conservação na Amazônia brasileira: a
Reserva Biológica do Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, localizadas no
Estado do Pará. Oriundos das políticas governamentais de desenvolvimento e de conservação
experimentadas durante o regime militar e no início da transição democrática, esses espaços
territoriais protegidos guardam fortes embates assimétricos que envolvem populações
tradicionais, mineração da bauxita, grandes corporações, cientistas de diversas instituições e
entidades governamentais ligadas à gestão ambiental. Uma área peculiarmente marcada pela
intensidade das forças que colidem ao buscar determinar quais práticas devem prevalecer no
uso e ocupação desses territórios, ultrapassando sobremaneira os marcos legais que os regem.
A região em que a pesquisa se debruça situa-se entre os maiores contínuos de áreas protegidas
do país, onde se localiza uma das maiores mineradoras de bauxita do mundo e a primeira
Terra Quilombola titulada no Brasil. Sustentado em pesquisa de campo que buscou conjugar
concomitantemente a análise documental, os relatos orais dos diversos atores e as vivências in
situ, o estudo objetivou percorrer a historicidade e a interatividade entre os grupos de
interesses que vão compor aquela realidade e a integração dos mesmos a uma vasta rede
sócio-técnica que ultrapassa as fronteiras nacionais. A pesquisa está estruturada em três partes
e doze capítulos em que são apresentados o percurso e o desenvolvimento dos trabalhos, a
base epistemológica e metodológica, e a rede de interações estabelecida pelos atores que
configura a sócio-natureza em questão. O estudo resulta em uma densa narrativa que
apresenta as múltiplas estratégias utilizadas para dar legitimação às práticas dos segmentos
enfocados, as conexões que perfazem e reconfiguram os territórios e a distância que marca os
resultados dos diferentes projetos idealizados e a realidade mapeada na pesquisa.
ABSTRACT
This thesis provides an analysis of the conflicts between different interest groups that fall on
the territories of two protected areas in the Brazilian Amazon: the Biological Reserve of Rio
Trombetas and Saracá-Taquera National Forest, located in the State of Pará. Arising from
government policy development and conservation experienced during the military regime and
the beginning of the democratic transition, these protected spaces keep strong asymmetric
territorial clashes involving traditional populations, bauxite mining, large corporations,
scientists from various institutions and government-related entities environmental
management. An area peculiarly marked by the intensity of the forces that seek to collide
determine which practices should prevail on the use and occupation of these territories,
greatly exceeding the legal frameworks governing. The region in which the research focuses
is among the largest continuous protected areas of the country, home to one of the largest
mining bauxite in the world and the first Quilombo Territory titled in Brazil. Sustained in
field research that sought simultaneously combine document analysis, the oral reports of the
various actors and experiences in situ, the study aimed to go historicity and interactivity
among interest groups that will make up that reality and their integration to a wide socio-
technical network that transcends national boundaries. The research is divided into three parts
and twelve chapters in which are presented the course and development of the work, the
epistemological and methodological basis, and the network of interactions established by the
actors who sets the socio-nature in question. The study results in a dense narrative that
presents multiple strategies used to give legitimacy to the practices of the focused segments,
which make up the connections that reconfigure the territories and the distance that marks the
results of the different idealized projects and reality mapped in the survey.
LISTA DE FOTOS
Foto 03: Entrada da Reserva Biológica - Flutuante. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2011...........................................................................................................................................46
Foto 05: Preparo de tartarugas jovens. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012..........53
Foto 07: Cachoeira Porteira – BR163. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013..........60
Foto 08: Tabuleiros do Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012........103
Foto 10: Mineração Rio do Norte. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012................215
Foto 11: Torre do Linhão no Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2013.........................................................................................................................................217
Foto 12: Descoberta da bauxita pela Alcan na década de 1960. MRN, 2013......................242
Foto 15: Colocação da bandeira indicando o controle do Governo sobre a área em setembro
de 1976. IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976................................................................................273
Foto 19: Família do lago do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011...............313
Foto 22: Altar da Comunidade do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.......385
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 01: Diário de Campo – Brega 45. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2010...........................................................................................................................................82
Ilustração 02: Jean-Pierre Chabloz, 1942. In. Jornal da Unicamp, nº 542, Campinas. 15 de
outubro de 2012......................................................................................................................191
Ilustração 04: Panfletos dos Seminários sobre as barragens na Cachoeira Porteira, 1989 e
1981.........................................................................................................................................396
14
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 3: Comparativo entre o número de filhotes contabilizados de 1986 até 2003 no Rio
Trombetas e Santarém. MMA/ICMBio 2011.........................................................................338
LISTA DE MAPAS
Mapa 01: Diário de Campo – Rota da Pesquisa. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2013...........................................................................................................................................30
Mapa 02: Diário de Campo – esboço do trajeto. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara,
2010...........................................................................................................................................39
Mapa 06: Projeto Trombetas – mapa das reservas. Greig (1977) reproduzido por Machado,
2007.........................................................................................................................................242
Mapa 09: Mapa dos territórios quilombolas incidentes sobre as UCs. MMA/ICMBio,
2011.........................................................................................................................................310
Mapa 10: Zoneamento da FLONA-ST. Fonte: Plano de Manejo da Floresta Nacional Saracá-
Taquera, 2001.........................................................................................................................361
Mapa 11: Mapa geral das novas áreas propostas de inclusão na zona de mineração da
FLONA-ST. MRN, 2011…………………………………………………………………….361
LISTA DE TABELAS
Tabela 01:Fonte: Publicador Paraense – Belém, ano I, nº 64, de 24 de dezembro de 1849, p.1,
reproduzido por BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural.
(2009:124)...............................................................................................................................177
Tabela 05: Descrição das técnicas de pesca, utilizadas pelas comunidades quilombolas do
Rio Trombetas. Fonte: Luciana S. Melo, 2012.......................................................................305
Tabela 6: Descrição das técnicas de caça utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio
Trombetas. Fonte: Luciana S. Melo, 2012..............................................................................305
ABREVIATURAS UTILIZADAS
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................23
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................31
2 O PARAÍSO E O LIMBO.....................................................................................................36
1 TRÊS MATRIZES...............................................................................................................104
1.1 Estruturalismo-construtivista...........................................................................................105
1.2 Rizoma e Multiplicidade...................................................................................................110
1.3 Multiterritorialidade.........................................................................................................117
1. O PROGRESSO E A ORDEM...........................................................................................174
1.1. Breves passagens na fabricação da Amazônia brasileira.................................................176
1.2. Integrar e desintegrar: o avanço do progresso e a construção da ordem..........................186
1.3. “Amazônia: de última página do Gênesis ao preâmbulo do mundo futuro”...................195
2. OS PLATÔS DE BAUXITA..............................................................................................215
2.1. A máquina minerária........................................................................................................215
2.2. Para além dos territórios e das leis...................................................................................225
22
3. A CONSERVAÇÃO E ORDEM........................................................................................253
3.1. A segregação do espaço e os estoques para a ciência......................................................259
3.2. A edificação da governança ambiental no Rio Trombetas..............................................273
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................415
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................427
23
APRESENTAÇÃO
serão avistadas casas suspensas de madeira e palha, espaçadas, podendo marcar as horas do
percurso após o flutuante. Focando o olhar percebe-se a peculiaridade étnica dessas
comunidades, que, diferente das demais ao longo do trajeto, seus habitantes são
predominantemente negros. Cerca de cinco horas após o ingresso nas unidades de
conservação, outra base de fiscalização se avista, com uma pequena balsa e uma escadaria em
terra que leva a um grupo de casas onde, geralmente, se alojam os pesquisadores. Neste
momento se iniciam grandes extensões de areia sobre o rio, chamadas de tabuleiros, estes, em
outros tempos, representaram o maior berçário conhecido da tartaruga-da-Amazônia. Essas
grandes praias seguem acompanhando a paisagem por mais algumas horas até que paredões
de pedra passam a compor o cenário e, ao longe, soará forte a turbulência das águas. Pouco
depois uma grande cachoeira será avistada e impossibilitará a continuação do percurso no
barco. Adiante, somente de canoa. Chega-se aos limites da Reserva em uma comunidade
chamada Cachoeira Porteira. Índios, negros e ribeirinhos são avistados no vilarejo, uma
estrada o corta rumo ao infinito, a BR-163, e pouco acima da cachoeira está a comunidade
indígena de Tawanan. Neste recanto, que paira um projeto insepulto de uma hidroelétrica, se
finda o traço longitudinal do percurso desta pesquisa.
A breve descrição tem como escopo ilustrar a intensidade das relações imbrincadas
nesses territórios em que a pesquisa se debruça. Multinacionais mineradoras, indígenas,
quilombolas, governo, ONGs, cientistas, ribeirinhos e o que mais se liga das florestas, das
águas e dos solos compõem essa sócio-natureza. As diferentes simetrias que caracterizam os
distintos atores recria uma contenda territorial peculiar que abrange desde a inviabilização de
modos de vida de determinados grupos, disputas na acessibilidade dos recursos do ambiente,
até os modelos de desenvolvimento nacional e de conservação da sociobiodiversidade. Todos
confrontam os sentidos e as qualificações possíveis para essas áreas, as conexões e os
agenciamentos que podem ser estabelecidos.
O estudo versa sobre os “conflitos socioambientais” em espaços territoriais
especialmente protegidos na Amazônia brasileira; mais especificamente em duas unidades de
conservação, consideradas de importância nacional tanto para a preservação da
biodiversidade, quanto para o uso sustentável dos recursos naturais: a Reserva Biológica do
Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, situadas na mesorregião do Baixo
Amazonas, microrregião de Óbidos, em uma região conhecida como Alto Trombetas no
município de Oriximiná. Os imbróglios e os próprios espaços empenhados na análise
originaram-se a partir das políticas de desenvolvimento e de conservação experimentadas no
regime militar, que empenhou uma nova colonização do espaço amazônico para integrá-lo a
25
enfocada; o segundo narra os trabalhos de campo realizados com base nos diários de campo,
neste momento sem dar voz aos múltiplos atores, apenas descrevendo a experiência; e o
terceiro capítulo busca uma apresentação do município de Oriximiná contextualizada com a
complexidade de sua vastidão territorial.
Parte II
No início da pesquisa adotei enquanto viés de análise, sem pretensões de uma pureza
teórica, a perspectiva estruturalista-construtivista, pela sua ampla utilização na sociologia da
questão ambiental no estabelecimento de um “campo próprio dos conflitos socioambientais”.
Neste primeiro momento tracei hipóteses que focavam os posicionamentos ocupados pelos
diferentes atores em conflito, com seus respectivos “capitais” empenhados na “luta cognitiva
e classificatória” pelas mudanças de posições pleiteadas no “campo”. No caso, o que
representa a própria ocupação e utilização do território: quais práticas são mais legítimas,
mais justas, mais sustentáveis etc. Nesse sentido, o objetivo geral da tese, neste primeiro
momento, foi compreender e explicitar as contradições e as discrepâncias de poder no uso
desses territórios associadas à uma perspectiva de justiça. Em síntese, a partir de um modelo
sistêmico em que os elementos da realidade poderiam ser inseridos, para que se
compreendesse as “estruturas profundas” que determinam a realidade e o movimento dos
atores, que não são perceptíveis apenas empiricamente, pois representam “forças sociais
ocultas”.
A constante necessidade de amputar aspectos da realidade percebidos enquanto
relevantes, mas que não eram comportados pela moldura, me levou a uma mudança de
perspectiva, induzida também por afinidades filosóficas anteriores. Com essa mudança, todos
os artigos escritos na fase exploratória da pesquisa, que compuseram grande parte do “projeto
de qualificação”, tiveram que ser abandonados ou refeitos. A transição empenhada se
apresentou não apenas como uma “troca de paradigma”, mas como uma mudança na “forma
de ver o mundo”. Esse momento foi aproveitado na segunda parte da tese com o intuito tanto
de elucidar essa transição, quanto de empenhar diferentes perspectivas epistemológicas que,
ao configurarem ontologias e metafísicas muito distintas sobre o que é o “social”, marcam
diferentes possibilidades de leitura para os conflitos socioambientais.
Essa segunda parte também é subdividida em três capítulos. O quarto capítulo
apresenta sucintamente as três matrizes teóricas que influenciaram o desenvolvimento da
pesquisa. No quinto capítulo é apresentada toda uma base conceitual que aporta diferentes
compreensões da questão ambiental e dos conflitos sobre os recursos, dentro de algumas
concepções, destacando-se a do estruturalismo-construtivista. O sexto capítulo trata a
27
conjugados para a análise, podem falhar, todos configuram percepções. Quaisquer suposições
adicionais valorativas, que serão apenas suposições, tomaram como norte a ideia de uma
democracia ampla, que visa apreender a pluralidade dos seres. As linhas e os nós que atam a
rede narrada, que dão os caminhos deste mapa, são portas abertas para novas pesquisas ou
para intervenções ou ações. Contudo, condizente à filosofia que inspira o trabalho, aspira-se
que eventuais ações não venham de modelos pré-concebidos, mas que brotem diretamente
destes solos.
30
Mapa 01: Diário de Campo – Rota da Pesquisa. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2013.
31
1 INTRODUÇÃO
propriedade, com base na ideia de uso comum. Criam-se percepções ainda não harmonizáveis
em nossa tradição jurídica privatista.
A presente pesquisa foca essa realidade severamente marcada pelos processos de
disputa sobre os recursos ambientais – acesso, controle e exploração – em um território de
grande riqueza e sobre um viés que retrata um marco indispensável na inteligibilidade das
sociedades contemporâneas: a sustentabilidade dos modelos de desenvolvimento e a
distribuição de poder sobre os recursos naturais. Esse vasto campo amazônico, no qual a
investigação se empenha, antagoniza a barbárie civilizatória do desenvolvimento, o
enclausuramento impositivo das políticas conservacionistas e a luta por reconhecimento dos
velhos povos de lá, imbricadas entre o discurso da defesa da tradicionalidade identitária e as
novas ambições materiais, abduzidos pela sociedade de consumo.
O mundo de contrastes circunscreve-se nas linhas de um dos maiores municípios do
planeta em espaço territorial e no seu entorno: Oriximiná, localizado na calha norte do Estado
do Pará, na região oeste. O município, instalado em 1934, situa-se na mesorregião Baixo
Amazonas e microrregião de Óbidos (01º 46` 00" S e 55º 51` 30" W.Gr.), faz divisa ao norte
com o Suriname e com a Guiana Francesa, ao leste com o municípios de Óbidos, ao oeste
com o município de Faro e o estado de Roraima e ao sul com os municípios de Juriti e Terra
Santa. Conforme o IBGE (2010) possui uma população urbana estimada de 40.147 e rural de
26.674. Com um território de 107.602,99 Km², o município encontra-se em área de particular
beleza, com seus grandes rios, lagos, praias, igarapés e toda a complexidade e opulência da
floresta amazônica.
Desde meados da década de 1970, acompanhando as referidas políticas
governamentais que focavam implementar grandes empreendimentos na Amazônia, norteados
pelos ideais desenvolvimentistas hegemônicos e pelo mito dos “territórios vazios”, o
município de Oriximiná assistiu a uma forte modernização e dinamização de sua economia.
Ao longo da bacia do Rio Trombetas, principal rio da região que nasce na fronteira do
Suriname e da Guiana Francesa, desaguando no Amazonas, foram experimentados enormes
projetos para apropriação dos recursos minerais e do potencial hidroelétrico, visando tornar a
área um novo polo de desenvolvimento. Empenharam-se nessa colonização do território
empresas como a ELETRONORTE, ALCAN, ALCOA Mineração S.A., Mineração Rio do
Norte – MRN, Andrade Gutierrez, Jarí, Petrobrás, Engerio, entre outras, incentivadas,
subsidiadas e apoiadas pelo Estado brasileiro. Dentre estas empresas, a que efetivamente se
consolidou na região foi a MRN, constituída em 1974 por empresas nacionais e
internacionais, possuindo como acionistas a Vale do Rio Doce (40%), BHP Billiton Metais
33
(14,8%), Rio Tinto - Alcan (12%), Companhia Brasileira de Alumínio – CBA (10%), Alcoa
Alumínio S.A. (8,58%), Norsk Hydro (5%), Alcoa World Alumina (5%) e Alcoa AWA
(4,62%).
A MRN atua na mineração e beneficiamento primário da bauxita, iniciando sua
produção com 3,3 milhões de toneladas anuais e atualmente produzindo cerca de 18,1 milhões
de toneladas por ano de bauxita, matéria prima do alumínio. Para acomodar seus funcionários,
pesquisadores, diretores e todo pessoal de suporte, foi criada uma sede urbana para a empresa,
denominada de Porto Trombetas, com mais de 6.000 habitantes e com uma infraestrutura
social muito superior à do próprio município de Oriximiná. Uma “cidade” fechada, recolhida
sobre si mesma, a qual surpreende pelo rigor e disciplina, controlando quem entra e quem sai,
possuindo “hora de recolher” dos bares e restaurantes, exibindo escolas, hospitais,
laboratórios, áreas de lazer, comércio etc.
Concomitante aos projetos de desenvolvimento experimentados na região, revelando
quão antagônicas foram tais políticas públicas, criaram-se duas unidades de conservação de
importância nacional nos arredores de Oriximiná e municípios vizinhos: A Reserva Biológica
do Rio Trombetas, com cerca de 408.000 ha, criada em 1979 pelo Decreto Federal nº 84.018
de 21 de setembro do mesmo ano; e a Floresta Nacional Saracá-Taquera, com 429.600 ha,
criada no final de 1989 pelo Decreto Federal 98.704 de 27 de dezembro de 1989, abrangendo
três municípios: Oriximiná, Faro e Terra Santa – ambas são atualmente disciplinadas pelo
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei 9985/2000. De um lado, o
desenvolvimentismo predatório da mineração, da hidroelétrica, da abertura de estradas; e de
outro, a conservação segregacionista e excludente da reserva biológica e da floresta nacional,
unidades de conservação que demarcam o campo preciso desta pesquisa.
Os impactos ambientais e sociais das grandes empresas que por lá passaram são de
complexa mensuração, pois não apenas modificam os modos de vida das populações e dos
ecossistemas, mas recriam em âmbito local toda uma rede de atores e relações de poder que,
por fim, mudam a dinâmica do ambiente (sócio-natural) completamente. A criação das duas
unidades de conservação está intimamente ligada ao modelo de apropriação do ambiente que
se instaurou. Apesar de operar como uma garantia de proteção da biodiversidade e dos
recursos naturais daqueles territórios, as unidades foram sobrepostas aos territórios de
populações tradicionais ferindo profundamente outra riqueza que a região de Oriximiná
guardava: os modos de vida de populações tradicionais, sobretudo os remanescentes de
quilombos que há cerca de duzentos anos habitam o vale do Rio Trombetas, exatamente na
área que passou a ser abrangida pelas unidades e pela mineração.
34
2 O PARAÍSO E O LIMBO
Impressões do lado de cá
Descrevo, sabendo que a palavras não abrangeriam o que de fato gostaria de dizer, o que
sobre os meus olhos se impõe e os meus sentimentos inunda. Entorpecido com tanta vida,
viva, cores, vida sobre vida, morte e vida. Da textura fina das meninas de pele cobre, das
águas cálidas sobre a areia clara, o horizonte dos rios ultrapassa a distância dos olhos e se
perde no oceano doce onde o sol se esconde.
Do mundo os contrastes afloram, da beleza que se rouba, da terra que se estupra, do bicho
que se come na fome dos gostos dos homens, dos seres milenares que vão ao chão para
tornarem-se nossos objetos. Experimento! Nunca sei muito bem onde se encaixa o que digo e
acredito. Apenas vivo para sentir que existo junto a isso.
Moderados sentimentos, cada conversa, cada palavra, revelam que os sentidos se modificam
a cada instante na repetição da tradição de anteontem. Milenar! As pessoas dos rios me
disseram sobre o tempo, a imensa escultura dos nossos saberes, passa percebido sobre tudo
em volta, onde estou e sou.
Queria fazer sentir em cada um, parte de cada um, de tudo que existe, mas se sinto, por que
me sinto só? Essa busca do medo maior fazia controlar tudo e daí se expandir para o infinito,
dentro e fora das nossas ambições e desejos de conseguir ter alguém! Ou tudo?
Saudades.
Abril de 2010
cerca de uma hora no pequeno aeroporto até que a situação se resolvesse após conversa com
representante da área de comunicação da empresa, Sr. Pedro Ribeiro, prosseguindo então para
o hotel em que nos alojamos. O breve acontecimento guardou em si uma inusitada situação:
como poderia ser necessário autorização para ingressar em um distrito? Considerando que
éramos na maioria profissionais do Direito, e como tal, tínhamos para nós enquanto
fundamental e constitucionalmente previsto o direito de ir e vir, em se tratando de espaços
públicos sem aparentes restrições. O pequeno distrito de Oriximiná, Porto Trombetas, a
company town, chamou-nos a atenção por sua peculiar condição de uma “cidade enclave”,
recolhida em si, controlada, disciplinada e normatizada pela Mineração Rio do Norte, que o
criou e que o mantém, dando a razão de sua existência.
Ordem, disciplina e controle são termos que retratam bem a realidade do pequeno
distrito, a lógica operacional das grandes empresas como a MRN e a busca obstinada da
modernidade em suas múltiplas expressões. São termos que guardam peculiar importância na
inteligibilidade do contexto da presente pesquisa. A pequena cidade industrial, incrustrada na
densa floresta amazônica, está conectada às grandes minas de bauxita e desemboca no Rio
Trombetas, onde opera o seu “shiploader” (carregador de navios). Diariamente navios
transcontinentais chegam ao Porto de Trombetas para se abastecerem do minério e o levar a
diversos lugares do mundo. A bauxita ali comercializada, minério com baixo valor agregado,
é levada para diferentes locais para ser transformada no leve metal chamado alumínio.
O contraste sobre os olhos não se dá apenas com a imagem dos imensos navios sendo
carregados na cidade industrial frente àquele rio e floresta tão exaltantes, ou das grandes
minas manchando a floresta de vermelho nas fotos de satélite ou nos sobrevoos, mas também
no choque entre os que ali há muito vivem na absorção da nova ordem, na conjugação entre
exploração minerária e preservação ambiental, na relação entre multinacionais e o governo
brasileiro. Contraste, contradição e paradoxo são termos também substanciais para elucubrar
o círculo imaginário que recai sobre aqueles territórios delimitando a abrangência desta
pesquisa, que muitas vezes o ultrapassa, quando da possibilidade de conduzir-se no fluxo de
seus múltiplos rizomas. Da dialética que desconstrói para reconstruir, da ambivalência que
valora o que se antagoniza, para a multiplicidade e polivalência dialógica das redes e
interações que se multiplicam e se desvelam na medida em que se penetra nos seus fios
conectores e atinge seus nós.
Neste momento, além de apresentar o desenvolvimento do estudo e suas nuanças,
tenho o intuito de aproximar o leitor da realidade vivida ao longo de três anos na execução
desta pesquisa, sobretudo no que tange aos trabalhos realizados naquela região. Sem
38
pretensão de abarcar todas as vivências, são narradas algumas passagens, com base nos
diários de campo, que contribuíram de maneira mais substancial na formação dos
entendimentos expostos na tese sobre a realidade delineada.
A origem da pesquisa está atrelada à mencionada disciplina ofertada pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito – PPGSD/UFF, sob responsabilidade do professor
Wilson Madeira Filho, orientador desta pesquisa. Nessa oportunidade pude conhecer Porto
Trombetas e Oriximiná em que, durante quinze dias do mês de abril de 2010, com o referido
grupo, foram levantados dados sobre a realidade político-institucional do município,
principalmente no que se refere a meio ambiente, saúde, educação e suas populações
tradicionais.
No município de Oriximiná, nos estabelecemos na Unidade Avançada José Veríssimo,
campus avançado da Universidade Federal Fluminense – UAJV/UFF, em que gozávamos de
boa infraestrutura, com acomodações condignas, refeitório e ambiente adequado para
trabalhar. Esse primeiro contato acarretou na mudança do tema de minha tese, anteriormente
voltada para o desdobramento de conflitos socioambientais em instâncias colegiadas de
deliberação coletiva da gestão ambiental. Foi também o ponto de partida para este estudo e a
particular beleza daquela região, em toda sua complexidade, fonte de sua inspiração.
Trabalhávamos concomitantemente um projeto para implantação de um Centro de
Assistência Judiciária em Oriximiná – CAJUFF Amazônia, visando a prestação de assistência
judicial gratuita para hipossuficientes no município, propondo a instalação do mesmo na
própria UAJV/UFF. Este trabalho foi conduzido paralelamente ao longo da pesquisa.
Nesse campo, de caráter exploratório, foi possível delimitar a pesquisa e problematizar
o tema que trata dos conflitos socioambientais e das disputas de poder sobre o território
(interior e entorno) de duas Unidades de Conservação Federais: a Floresta Nacional Saracá-
Taquera – FLONA-ST e a Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO-RT. Na ocasião,
organizamos uma expedição para conhecermos as áreas, fretamos um barco com condutor,
auxiliar e uma cozinheira, aportando todos os insumos necessários para os trabalhos. Foi
firmada uma importante parceria com estudantes de geografia da UFF, que ali desenvolviam
um projeto de extensão sobre segurança alimentar, em que, um nos acompanhou na
expedição, facilitando o ingresso nas comunidades que já conhecia. Após registro da pesquisa
no SISBIO/ICMBIO, foi possível visitar as duas unidades e algumas comunidades que ali
residem (Abuí, Paraná do Abuí, Moura, Boa Vista, Mãe-Cué, Último Quilombo e Nova
Esperança). Foram realizadas entrevistas coletivas, Diagnósticos Rápido-Participativos,
conversas com autoridades públicas e vivências importantes. Muito material foi coletado, de
39
Estudos de Impacto Ambiental aos Planos de Manejo, dando início também ao eixo
documental da pesquisa.
Mapa 02: Diário de Campo – esboço do trajeto. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.
Dezembro de 2010
Julho de 2011
Foto 03: Entrada da Reserva Biológica - Flutuante. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.
Em julho de 2011 foi realizada a terceira ida a campo. Nesta etapa, foi possível um
estreitamento dos laços com lideranças comunitárias, novas vivências, diversas entrevistas e o
levantamento documental de parte significativa da história da organização político-
institucional dos povos tradicionais de Oriximiná. Houve um maior estreitamento das relações
com a MRN, agendando previamente as visitas e entrevistas para início do próximo ano.
Também foi possível identificar os atores sociais que se apresentam como peça-chave para a
pesquisa e que foram entrevistados posteriormente.
Em uma visita à Paróquia de Santo Antônio em Oriximiná, pude realizar o
levantamento da história da mobilização política dos remanescentes de quilombo e da
organização dos trabalhadores rurais de Oriximiná. De um lado a mobilização associativista,
que tem como marco a Associação dos Remanescente de quilombo de Oriximiná – ARQMO
e, do outro, a organização sindical com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
de Oriximiná – STTRO, ambos intimamente ligados ao movimento pastoral da Igreja
Católica. Foi possível aferir que no final da década de 1980, se iniciara um trabalho articulado
pelas linhas da Pastoral de Direitos Humanos (ligada à Pastoral da Terra), por parte de padres
presbíteros, franciscanos e verbitas, de conscientização sobre direitos e articulações políticas
direcionadas aos trabalhadores rurais e tradicionais de Oriximiná. Quase que
concomitantemente, outras organizações deram apoio, no que diz respeito aos remanescentes
de quilombo, para que se estruturassem politicamente. Neste caso, a Comissão Pró-Índio de
47
São Paulo teve forte participação. Um momento histórico em que a visibilidade dos
tradicionais e seu capital político cresceu sobremaneira naquela região.
Acompanhando uma equipe da UFF coordenada pela professora Adriana Russi
Tavares de Mello – que realizava o levantamento dos diferentes artesanatos produzidos por
aqueles povos tradicionais, por meio de um projeto de educação patrimonial – pude me
aproximar de um importante funcionário da MRN, no que diz respeito às relações da empresa
com as comunidades. Evandro Soares Silva, assistente de Relações Comunitárias da MRN,
nos apresentava, em um local chamado Casa da Memória em Porto Trombetas, a história da
MRN, sua produção e seus projetos com as comunidades, principalmente quilombolas. Após
a apresentação tive oportunidade de conversar com o referido funcionário a respeito das
relações da mineradora com as comunidades, aproveitando para reproduzir algumas de suas
queixas a respeito do insucesso dos projetos experimentados, sobretudo em relação à
continuidade dos fomentos para o prosseguimento dos mesmos. Os projetos variados, melhor
detalhados em parte especifica da tese, são de piscicultura, apicultura, agricultura familiar,
artesanatos de barro entre outros. Alguns projetos prosperaram em algumas comunidades,
mas na grande maioria das áreas visitadas fracassaram. A resposta que obtive não foi
diferente do que já ouvira em Oriximiná, verbalizado por autoridades públicas ligadas à
prefeitura municipal e mesmo por pessoas da UAJV/UFF, que atribuíam esse insucesso à
incapacidade administrativa dos próprios tradicionais, mas geralmente colocado de uma
forma preconceituosa, relacionando seus modos de vida à falta de vontade de trabalhar, à
preguiça – termo escutado de maneira recorrente nas conversas com pessoas em Oriximiná,
que revelavam um preconceito muito vívido na área urbana sobre os modos de vida
tradicionais. Por sua vez, o então chefe das unidades de conservação, Carlos Augusto
Pinheiro, relacionava o fracasso dos projetos sociais da MRN à sua inobservância aos modos
de vida tradicionais. Dizia que a empresa tratava os quilombolas e ribeirinhos ali como se os
mesmos fossem empreendedores e empregava uma lógica muito distinta de seus modos de
vida na operacionalização dos projetos, enquanto se tratava de povos extrativistas.
Outro desdobramento deste campo foi uma vivência de cinco dias na comunidade da
Cachoeira Porteira, uma das primeiras áreas a abrigar remanescentes de quilombo e que se
liga diretamente à história deste povo na região. Além de entrevistas com as lideranças
comunitárias que remontaram os conflitos e a história local, foi possível acompanhar os
modos de vida dessa comunidade, muito singular por abrigar não apenas quilombolas, mas
remanescentes dos projetos de desenvolvimento experimentados ali por várias empresas
principalmente a partir da década de 1970. Alguns dos antigos funcionários e pessoas
48
Novembro de 2011
Em novembro de 2011 foi realizado campo em São Paulo com fins de conhecer a
Comissão Pró-Índio - CPISP, Organização Não Governamental que desempenhou papel
importante na articulação política dos remanescentes de quilombo de Oriximiná e na
demarcação de seus territórios. Neste campo foi possível realizar entrevista com Lúcia
Andrade, constantemente citada por diversos personagens entrevistados durante a pesquisa, e
obter material sobre as questões fundiárias relativas aos territórios e a novos conflitos que se
avistavam no horizonte a partir de novos empreendimentos na região.
Lucia Andrade foi referida seguidamente, seja pelas comunidades tradicionais, seja
por representantes do governo ou da mineração, sua inserção naquela realidade foi
indubitavelmente muito marcante. Na sede da CPISP, após troca de e-mails e agendamento
prévio, pude conhecer pessoalmente a equipe que ali estava presente e realizar longa conversa
gravada com ela, cumprindo importante etapa da pesquisa no que tange à remontar a ascensão
política dos remanescentes de quilombo e a atuação de organizações exógenas na construção
daquela realidade.
pode ser mais fácil ou mais complicada e eles explicavam que cada caça (paca, anta,
queixada, macacos etc.) tinha uma melhor temporada, em que a mesma estava mais “gorda”.
Na comunidade do Abuí me alimentei basicamente de farinha e peixes, um dia trouxeram
uma caça, uma ave chamada mutum, que foi repartida por toda a família. Me surpreendia a
facilidade de obtenção do alimento. Pude acompanhar dois irmãos, entre oito e onze anos, que
após sua avó pedir a eles para pescar, em menos de uma hora, com um casco de madeira e
uma pequena malhadeira, retornaram com peixes para toda a família, cerca de dez pessoas.
Em outro desdobramento deste campo, na Base do Tabuleiro, acompanhei a ação dos
agentes do ICMBio na fiscalização das praias de desova das Tartarugas da Amazônia na
REBIO. Já havia entrevistado parte deles em outras oportunidades; neste sentido, ali focava
mais o acompanhamento dos trabalhos. Apesar do período de desova ter passado à época,
uma fiscalização mais acirrada se estendia por mais de um mês pela razão dos quelônios
permanecerem nas praias mesmo após a eclosão dos ovos, sendo esse cuidado considerado
necessário. O controle constante dos barcos que passam pela base, nesta época também se
agrava, proibindo que no turno da noite os mesmos subam o rio, obrigando-os a parar. Ouvia
muitas queixas a esse respeito nas entrevistas com alguns tradicionais, essa situação lhes
gerava certa revolta, pois muitas vezes tinham que esperar amanhecer nos barcos para
retornarem aos seus lares. Como o argumento que lhes externam é que o barulho dos barcos
prejudica as tartarugas e, no entanto, os próprios agentes circulam a noite com lanchas que
produzem igual ruído, os mesmos não deixavam de questionar qual a razão de lhes cercearem
o direito de ir e vir.
Naquela ocasião, ao contrário do que ocorreu em 2010, em que houve até disparos de
arma de fogo por parte de pescadores de quelônios direcionados aos agentes, a fiscalização
corria de forma mais amena. Para a realização dos trabalhos, foi montado um acampamento
no tabuleiro principal, próximo à base, em que os agentes se revezavam entre os que ali
pernoitariam ou não. Pude pernoitar um dia e vivenciar este trabalho naquela imensa praia,
entre o céu espelhado no rio e a sonora floresta. Outro trabalho consistia em uma ação de
busca direta utilizando uma lancha de quarenta cavalos, em que os agentes por meio de um
instrumento feito de vários grandes anzóis fixos em uma base de metal amarrada numa longa
linha, faziam busca ativa de malhadeiras de quelônios naquela parte do Rio Trombetas e nos
lagos próximos da base (Jacaré e Leonardo). Nesta noite, apesar de não encontrarmos
nenhuma malhadeira, foi possível flagrar dois comunitários do Paraná do Abuí pescando a
tartaruga. Camuflados na vegetação da beira do rio, os pescadores foram abordados pelos
agentes, também das comunidades, de maneira educada. Maneco, um dos agentes, pede para
52
aproximar o barco apontando uma forte lanterna na direção dos mesmos. Aborda-lhes
explicando que tal prática não era ali permitida e pedindo a compreensão deles em relação ao
trabalho que estava sendo desenvolvido. Por fim solicita que entreguem seus materiais de
pesca e os libera para seguirem para suas casas, noite adentro naquele rio. Não houve
momentos de maiores tensões, senão o medo da minha parte de os pescadores estarem
armados e ocorrer algum acidente.
Nesta mesma época, acompanhando a equipe do ICMBio no cadastro dos
comunitários para o “acordo da castanha” no centro comunitário do Abuí, pude conhecer
pessoalmente o pescador em questão. Um senhor com mais de setenta anos de idade que me
explicou sobre a tradição da pesca dos quelônios. Foi bastante simpático na conversa; por sua
vez, o filho dele, conhecido pescador de quelônios e reincidente infrator, foi mais hostil ao me
ver conversando, interrompendo a conversa e retirando seu pai de onde estava.
Sigo os trabalhos visitando a comunidade da Tapagem, mais antiga comunidade ali,
colhendo relatos de suas lideranças e moradores, posteriormente descendo para outra
comunidade que se desdobrou desta, chamada Sagrado Coração, ambas em área da FLONA.
Um pouco mais abaixo, visito a comunidade da Mãe Cué, em que tive um pouco mais de
dificuldade na recepção, tendo que dormir num barracão afastado e não conseguindo comida
durante um dia, o que já havia ocorrido em outras ocasiões (me alimentei de granola e leite
em pó que sempre levava comigo). Nesta comunidade realizei uma entrevista coletiva que
revelava quanto estava vivo o ressentimento gerado pelas práticas governamentais dos tempos
anteriores. Posteriormente visito a comunidade do Curuça e do Juquerizinho, na FLONA e na
REBIO respectivamente.
As vivências possibilitavam aferir também como as comunidades se distinguem em
termos de estrutura, organização política ou mesmo em suas práticas. A história do
surgimento desses locais, os recursos financeiros que receberam, o fato de a comunidade estar
dentro ou fora da REBIO ou em terra titulada, os recursos naturais que estão próximos e como
são utilizados... diversos e distintos fatores corroboram as peculiaridades de cada uma. Apesar
da proximidade entre muitas das comunidades e da relação de parentesco entre seus membros,
os percursos pelo rio não são tão simples, principalmente para aqueles que não dispõem de
recursos financeiros para adquirir combustível. Mesmo com muitas pessoas possuindo sua
“rabeta”, os contatos entre as comunidades são mais esporádicos e casuais. Obviamente essa
“tecnologia” revoluciona não apenas o transporte ali, mas as próprias conexões que aquela
socionatureza vai estabelecer com aquele mundo ao redor.
53
Foto 05: Preparo de tartarugas jovens. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.
Na comphany town acompanhei o trabalho e o dia a dia dentro do escritório do
ICMBio e um pouco da vida no pequeno distrito. Hospedei-me no alojamento do Pioneiro,
local destinado ao pessoal da própria entidade e aos pesquisadores das unidades de
conservação. O escritório, situado em Porto Trombeta na “Praça da Feirinha” – única área
54
acessível ao público geral – desde sempre foi mantido pela MRN, assim como a maior parte
dos programas desenvolvidos nas duas unidades de conservação. Convênios entre governo e
empresa estipulam os fomentos aos programas e os repasses de recursos que vão dar origem
aos planos de manejo, pesquisas, ações de conservação etc. Perscrutar sobre a autonomia do
órgão em sua atuação requer pensar, de um lado, que toda a operacionalidade do mesmo está
atrelada aos fomentos da mineração, e, de outro lado, que o ICMBio é composto de pessoas
que não necessariamente coadunam com a lógica da empresa. Isso diz muito e é muito do que
queremos dizer para sairmos de uma perspectiva analítica de fluxos uníssonos e lineares que
estabelecem uma inteligibilidade do mundo a partir de uma secção, privilegiando os aspectos
de análise que a reafirmam. Não sobrepujando o poder do capital e sua força em imprimir sua
lógica na compreensão dessa realidade, apenas sendo sensível às muitas minas incrustradas no
território, que constantemente são acionadas e imprimem também sua dinâmica, um desvio
vetorial, novas conexões, transformações ideológicas, inversões argumentativas.
Do início da pesquisa de campo ao seu término, assisti constante reconfiguração no
corpo técnico do ICMBio. No ano de 2010 o chefe da unidade havia sido substituído, o
anterior passou a chefiar outra unidade de conservação no nordeste e novos funcionários
haviam sido ali alocados. No ano seguinte outras pessoas haviam saído, transferidas para
outras unidades, reduzindo bastante o corpo de funcionários. Em 2012, novamente ocorreram
mudanças significativas, com substituição de pessoas. Por outro lado, também havia aqueles
que estavam ali desde a criação das unidades e ali se mantiveram. A saída de algumas dessas
pessoas me foi relatada por um funcionário como consequência da forte influência da
mineração. No caso relatado, a razão teria menos relação com alguma obstaculizacão à prática
da mineração propriamente do que por não se adequar à rigorosa dinâmica do distrito.
Porto Trombetas, dentro de sua peculiar organização, é um belo local com suas praças,
jardins e arborização. É conectado à grande floresta e possui uma infraestrutura mais
completa do que a de Oriximiná, ao menos em equipamentos urbanos. Caminhando por suas
ruas é possível avistar diferentes exemplares da fauna amazônica cruzando os caminhos, mais
facilmente do que nas comunidades tradicionais onde estes compõem parte da alimentação.
Tudo parece contrastar com o deserto vermelho das grandes minas que dali não se vê. Visito
as áreas de trabalho da empresa tanto as administrativas e de produção, como o horto, o centro
de reabilitação de animais, hospital, entre outros locais. Busco sempre dialogar com as
pessoas discretamente, conversar sobre a pacata vida ali e seus trabalhos.
Após acompanhar os trabalhos no escritório do ICMBio, combino com um
funcionário, que me auxiliava sobremaneira na pesquisa, de jantarmos em um restaurante em
55
Porto Trombetas. Ali conversávamos sobre assuntos diversos, dentre eles a vida no distrito.
Relatou-me que os dois funcionários do ICMBio que haviam saído neste ano, cederam às
pressões da empresa, indo trabalhar em outras unidades de conservação. Ele mesmo
comentava sentir-se constantemente vigiado, às vezes dizia mesmo ter a sensação de estar
sendo seguido – outras pessoas reproduziam esse comentário também. Falava que a vida ali
era extremamente monótona, regrada e sem muitas opções para se divertir. No ano seguinte
este funcionário foi transferido passando a chefiar outra unidade de conservação também na
Amazônia.
Apesar de estar muito próximo das áreas de mineração, não consegui visitar as minas
que estavam sendo exploradas e nem as áreas em processo de recuperação. As conversas com
responsáveis por departamentos estrategicamente importantes para a pesquisa se deram
sempre de maneira informal, sem entrevistas gravadas, salvo anotações em diário de campo.
Conversei com Milena Moreira, a gerente de Meio Ambiente da MRN, que me apresentou a
nova metodologia de recuperação das áreas degradadas, segundo a mesma, proveniente do
Laboratório de Restauração Ambiental Sistêmica da UFSC e da Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz da USP, a “metodologia de nucleação” que visa formar
microhabitats, seria a mais avançada que havia. Perguntei sobre as áreas em processo de
regeneração, que não estavam obtendo resultados satisfatórios, e sobre as políticas ambientais
da empresa. Milena ressaltava a assídua preocupação da empresa com a questão ambiental,
sempre investindo em tecnologia de ponta e contratando profissionais que eram referência
nacional para a execução dos trabalhos, muitos de universidades federais do sudeste e sul do
país.
Conversei brevemente também com Ademar Cavalcanti, Gerente de Saúde,
Segurança, Meio Ambiente e Relações Comunitárias, cargo importante na empresa, o qual se
subordinam quase todos os departamentos da mesma. Falava-me da falsa imagem que as
pessoas tinham sobre a empresa ser altamente lucrativa, dizendo que em alguns anos a mesma
chegou a operar no vermelho, que a mineradora sofre todos os riscos inerentes às oscilações
do mercado, do capital dos investidores, acionistas, custos da produção, entre outros.
Conversávamos sobre os valores de uma indenização para o governo dos produtos florestais
não-madeireiros no Platô Monte Branco. Cavalcanti peremptoriamente afirmava que o valor
econômico da bauxita era muito superior ao da floresta, que os recursos gerados ali traziam
desenvolvimento para todo o país e que o principal problema da FLONA era a invasão de
fazendeiros para criação de gado. A referida indenização era decorrente de uma determinação
do escritório local do ICMBio, que exigiu um inventário das espécies não-madeireiras como
56
condição da liberação da licença para extrair bauxita no local. A questão gerou conflito entre
o ICMBio na instância local e a empresa, que, com seu poder político, conseguiu obter a
licença em âmbito federal no ICMBio em Brasília. O Ministério Público Federal ingressou
com uma ação e obteve decisão judicial determinando que se interrompesse o desmatamento
de 267 ha de floresta, correspondente a uma parte do platô, no processo nº 3080-
52.2011.4.01.3902. O imbróglio girava em torno não apenas da interrupção do cronograma da
empresa e as implicações daí decorrentes; mas, dependendo da metodologia adotada para a
avaliação dos produtos florestais, os mesmos poderiam torna-se economicamente mais
vantajosos do que a exploração da bauxita, ou seja, a floresta poderia valer mais em pé do que
minerar o solo e o subsolo para extrair bauxita.
Em Oriximiná, no dia 19 de janeiro de 2012, pego um barco chamado Silva Moda que
prestava o serviço de transporte para os quilombolas, trazendo-os e os levando da cidade para
suas respectivas comunidades rio acima. O destino era novamente a comunidade da Tapagem,
desta vez, para presenciar a festa tradicional do santo padroeiro da mesma, São Sebastião.
Embarquei por volta das quatro horas da tarde, pois sabia que o barco ficaria bem cheio. Não
imaginava o quanto, pois além dos quilombolas e outras pessoas que viviam em Oriximiná,
foram levados também os equipamentos de som e bebidas para a festa. As redes se
sobrepunham umas sobre as outras em quatro andares, fiquei ao longo da viagem com o corpo
tocando os coletes salva-vidas, dispostos horizontalmente no teto. Imóvel como uma crisálida
por cerca de dezoito horas, a imagem ali contrastava a festividade do barco, seu alto som e
foguetórios, com silêncio da noite naquele rio entre a floresta. Jovens ficavam sobre o teto do
barco, bebiam e dançavam o “tecno-brega”, numa algazarra que parecia dilatar cada minuto
dentro do barco. Chegamos ao amanhecer, vários barcos das outras comunidades já se
encontravam aportados.
A festa, com duração de duas noites, reunia pessoas de todas as comunidades ao redor,
nesta ocasião havia também outros pesquisadores, inclusive um casal francês. Sigo realizando
conversas com os comunitários, perguntando sobre a tradição da festa e as mudanças na
mesma. Os mais velhos me relatavam que antigamente a música era tocada na tradição do
“pau-e-corda”, com violas, violões, tambores e instrumentos que eram por eles produzidos.
Relatam que isso se perdeu e que os jovens não querem mais saber disso. Hoje é o som
eletrônico do tecno-brega que anima a festividade, tocado por músicos profissionais, muitos
oriundos das próprias comunidades. As mudanças na tradição exaltam a força dos inevitáveis
intercâmbios culturais e a assimilação da cultura de massas. Por outro lado, permanece ainda
a tradição da “ladainha”, com tambores e rezas cantadas ao longo de todo o Sírio de São
57
Outubro de 2012
Em outubro de 2012 foi realizada nova expedição com fins de dar continuidade ao
projeto do Centro de Assistência Judiciaria da Universidade Federal Fluminense na Amazônia
- CAJUFF. O campo se desdobrou em três momentos: O primeiro, em Santarém, visitamos a
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, a subseção da Ordem dos Advogados –
OAB e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, buscando firmar
parcerias para o projeto. Nesta oportunidade estiveram presentes professores e alunos da
graduação, mestrado e doutorado. Com relação a pesquisa, foi possível no contato com o
INCRA, superintendência de Santarém, gravar entrevista com o responsável pelas
demarcações e titularizações de territórios quilombolas, Raimundo Guilherme Pereira Feitosa.
Além das explicações sobre a atividade do INCRA na regularização dos territórios
quilombolas, obtive informações sobre os trabalhos desenvolvidos na região alvo da pesquisa.
Neste momento estava ocorrendo a realização de laudo antropológico com fins de propor
titulação de áreas quilombolas em sobreposição às unidades de conservação. Indaguei sobre a
questão legal que assegura rigidez para alterar ou desafetar unidades de conservação, como
estas questões seriam dirimidas e sobre as articulações institucionais com o ICMBio. Foi
relatado que o governo estaria reconhecendo uma “dívida” com esses povos, sendo esta a
razão destes trabalhos. Com relação às articulações institucionais, como se depreendera em
outras ocasiões, são sempre muito limitadas e restritas às questões pontuais. O aparato
59
conservação e pesquisa por toda a Amazônia. Richard Vogt nos concede uma longa entrevista
e explica sobre os seus trabalhos na reserva, mostra-nos os equipamentos de alta tecnologia
que utiliza e nos fala sobre as dificuldades enfrentadas na conservação dos quelônios
aquáticos da Amazônia.
Foto 07: Cachoeira Porteira – BR163. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013.
que possuem maior poder aquisitivo. Apesar de não serem os únicos, os principais
consumidores são as pessoas da elite do município, que, em alguns casos, possuem criatórios
legais ou não em suas fazendas, tanto de peixes quanto de quelônios.
O barqueiro, que trabalhava com fretes, tinha grande vivência em toda região e
conhecia muito das relações que ali se estabeleciam. Relatava que antigos agentes
governamentais extraíam peixes da reserva para as “pessoas importantes” do município, bem
como filhotes de tartaruga para os criatórios (práticas que supostamente se mantém). Falava
também da corrupção dentro do município, da manutenção do poder pelo prefeito que se
reveza nas eleições com seus aliados há cerca de trinta anos. Peço informações de como obter
uma tartaruga no município, com fins de conhecer como se dá o comércio, ver o real valor de
venda e as condições de vida de quem vende.
Por indicação, consigo me aproximar de um comerciante no porto de Oriximiná.
Talvez por desconfiança, a pessoa me diz que no momento não teria uma tartaruga para me
vender, mas que poderia obter um animal no valor de duzentos e cinquenta Reais, no final do
mês. Não objetivava realizar entrevista, logo me apresentei como um estudante de fora que
queria experimentar a tartaruga, junto com outros estudantes. Não cheguei a conhecer o local
que vive, nem tampouco onde armazena os animais, a conversa foi breve e não retornei para
efetuar o “negócio”.
Em um segundo momento deste campo, volto a Porto Trombetas para seguir junto aos
agentes do ICMBio para a Base do Tabuleiro, onde teria disponível um barco para a
realização dos trabalhos com as comunidades. Sigo para Cachoeira Porteira com objetivo de
obter informações sobre um conflito territorial que se dava entre índios e quilombolas naquela
região. Consigo nova entrevista com o coordenador da comunidade, Ivanildo Carmo de
Souza, que me informa sobre os acontecimentos e as medidas governamentais que estavam
sendo tomadas. O conflito basicamente se dava pela realização de novos aldeamentos em
áreas utilizadas pelos quilombolas ou demarcadas para os mesmos e a consequente disputa
pelos recursos dali. Naquele momento a situação já caminhava para sua resolução consensual.
Na ocasião desta conversa, solicito apoio para conhecer os trabalhos nos castanhais
próximos dali. A Associação dos Remanescentes de Quilombo de Cachoeira Porteira –
AMOCREQ, presidida pelo Ivanildo, nos sede transporte até o quilometro vinte e três da
rodovia federal BR-163 para que conhecêssemos o castanhal que havia ali próximo, cerca de
dez quilômetros floresta adentro. O nosso guia, nascido em 1952 no Piauí, era um antigo
funcionário da ELETRONORTE que trabalhava como telegrafista e ali permaneceu. Caçador
e extrativista de castanha, Edward de Souza Araujo – Seu Diva – assumira “integralmente” os
62
modos de vida local, com cerca de quarenta anos ali vivendo. Estabelecemo-nos em um
pequeno barraco de lona plástica e estacas de madeira a vinte e três quilômetros da
comunidade. Ali pernoitamos e logo cedo partimos para os castanhais, dentro da REBIO,
onde caminhamos o dia inteiro percorrendo cerca de vinte quilômetros no total. Nos
castanhais a floresta se torna mais homogênea diante da repetição daquelas imensas árvores,
testemunhas seculares de toda a vida ali e que compõem sociedades humanas desde tempos
muito remotos. Hoje é a principal atividade econômica da maioria das comunidades ali e
conecta-se aos grandes centros nas prateleiras dos supermercados, como um valioso alimento.
No trajeto foi explicado como se dava o processo de extrativismo, como coletam, onde
depositam os ouriços, como limpam e transportam; um trabalho bastante árduo. Pernoitamos
mais um dia no barraco e retornamos ao amanhecer para a comunidade, no mesmo veículo
que nos levara. Seu Diva relatava como as empresas ali chegaram e depois partiram, nos
mostrava algumas áreas que seriam submersas com a represa e que foram destinadas a
extração de madeira para a MRN. Parte dessas áreas visitadas simplesmente não se
regeneraram, permanecendo o solo descoberto há mais de vinte anos.
De volta a comunidade conheço um rapaz que estava vendendo por quarenta Reais
tartarugas-da-Amazônia, segundo o mesmo, de tamanho médio (não as vi). Destaca-se como
em uma comunidade o valor do animal é muitas vezes inferior ao que é vendido no município
de Oriximiná, que por sua vez, é muitas vezes inferior aos grandes centros como Manaus e
Belém.
Noutro momento deste campo, acompanho o trabalho dos pesquisadores com as
tartarugas-da-Amazônia na Base do Tabuleiro. Richard Vogt e Virginia Bernardes
monitoravam algumas matrizes por rádio-telemetria, as que permaneciam na região após a
desova e nascimento dos filhotes. Também estavam instalando receptores sonoros para a
captação da vocalização desses quelônios, na busca de ampliar o conhecimento sobre a
ecologia desses animais.
No acompanhamento dos trabalhos, quase diariamente, muitas conversas sobre os
conflitos ali se desenrolaram, marcando bem a interpretação dos pesquisadores sobre a frágil
situação desta espécie ameaçada de extinção e sobre o jogo de poder que recai sobre esses
espaços territoriais. Richard Vogt, americano, mas com traços germânicos e mexicanos
advindos do seu país, é o mais antigo pesquisador da REBIO e seu entorno, inicia seus
trabalhos na década de 1980 e desde então segue ali pesquisando. Virgínea, fez mestrado no
INPA, encaminhava-se para o doutorado e estava trabalhando como pesquisadora do projeto
63
Março de 2013
Na primeira semana de março de 2013 foi realizado em Brasília o último campo desta
pesquisa. Acompanhando um evento do Ministério do Meio Ambiente pude estabelecer um
estreito contato com funcionários do departamento de unidades de conservação. Entretanto as
ocupações com atividades internas e a pouca disponibilidade de tempo, não viabilizaram
entrevistas com os mesmos, senão breves conversas que não trouxeram dados novos. Por sua
vez, no IBAMA, pude entrevistar um antigo funcionário que participou da criação da Reserva
Biológica do Rio Trombetas. Assim como Beto Guerreiro – mais antigo funcionário do
ICMBio em Porto Trombetas e o mais envolvido com a criação da REBIO, sendo inclusive
um dos autores dos estudos que a embasou – João Carlos Nedel também não entendia haver
uma relação direta da MRN com a criação da REBIO. Afirmou que esta desde o princípio
tinha como foco a preservação dos quelônios. Entretanto, achava uma estranha coincidência o
fato da mesma ter sido criada no mesmo ano em que iniciam as operações comerciais da
mineradora e em uma área contígua à mesma. Por sua vez, quanto à FLONA, afirmou (assim
como Beto Guerreiro) que a mesma foi criada em um ato vertical empenhado pelo Presidente
da República na época, após uma reunião com os presidentes do IBAMA e da MRN. Nedel
fora convocado para realizar os estudos que justificariam sua criação, com a unidade já criada.
Considerações “preliminares”
ordem que é impressa tem incrustrada em suas fissuras aquilo que a modifica também.
Violência física, psicológica e moral, arbitrariedades, controle do corpo e da cultura, estão ao
lado de negociação, sedução, receptividade e permeabilidade. Há uma real desproporção entre
as trocas estratificadas. Provavelmente se adotarmos qualquer parâmetro de justiça, isso se
salientaria. Mas analisar essa realidade numa perspectiva dicotômica/dualista sob a lógica de
uma “unidade-pivô que funda um conjunto de relações biunívocas”, reduzindo-a aos grupos
de interesse ou às suas relações quantificáveis, não foi o caminho adotado para entender a
dinâmica desses conflitos territoriais.
Penetrar essa densa rede, requer pensar que ela conecta os acionistas globais das
maiores mineradoras do mundo às jazidas de bauxita daquele solo. Provavelmente ávidos por
crescimento e lucro e completamente alienados daquela realidade, ou senão, informados por
meio de um material “filtrado”, publicitário ou sobre o controle da própria empresa. Requer
pensar nas relações dos governos com as corporações e na permeabilidade destes e daquelas
para com os interesses das peculiares pessoas locais. Requer pensar na opulência da ciência e
da técnica nas reconfigurações do ambiente, na mobilização das forças, dos seres e dos
elementos naturais que vão compor o coletivo hibridizado. Pensar a “Ciência” em seu poder
de legitimar os discursos, dar os certos e errados, direcionar os caminhos.
Pode-se dizer que há um disciplinamento territorial que favorece o bom andamento
dos negócios do capital, na mesma medida em que este disciplinamento territorial lhe é
profundamente antagônico; e, ato contínuo, dentro de sua lógica requer outros
disciplinamentos para outros grupos de interesses que também vão conflitar. Nessas relações
todos se modificam – mineração, conservação, tradição. O Estado subserviente aos interesses
do capital, assume também o papel de incorporar outros interesses que lhe impõem uma
posição ambígua, que não se encerra e não se determina a priori.
Não há mineração de bauxita sem a extensa rede que lhe dá suporte, assim como não
há o território quilombola desconectado desta rede. A bauxita que sai de lá pode fazer parte
do computador que redigiu este trabalho ou da bicicleta em que me exercito, das peças do
carro, utensílios domésticos, aeronaves etc. suas conexões são múltiplas e indivisíveis da
própria sociedade. O processo que transforma aquelas pedrinhas avermelhadas nos objetos
que utilizamos, demanda muita tecnologia, maquinário, a supressão de milhões de árvores,
destruição de culturas, decisões políticas, organização do trabalho etc. Esse processo
integrado costuma não fazer parte do campo de visão das pessoas de uma forma geral, pelo
menos não em sua multiplicidade, mesmo nas pesquisas. Segmentamos o conhecimento tanto
quanto possível e este do interesse, da justiça, da moral, da política, do poder. Cada item tem
66
destinadas às águas das fortes e intermitentes chuvas. O grande matadouro frente ao porto
parecia coberto com um manto negro de tantos urubus, uma cena também marcante. Essas
aves necrófagas eram muito comuns pela cidade, talvez pelo alto consumo de carnes e pelos
hábitos de deixar restos de alimentos pelas ruas em latões de lixo destampados. Cheguei a
cruzar, por duas vezes, com carapaças de Tartaruga-da-Amazônia e de outro quelônio em
calçadas de ruas mais afastadas. Razão de muitos conflitos entre governo e tradicionais na
Reserva Biológica, esses animais são amplamente consumidos no município. Lá o mais
consumido não é um peru para a ceia do natal ou uma leitoa para comemoração de um
casamento, a tartaruga-da-Amazônia é o animal preferido nas datas comemorativas, servida
em pratos diversos como guisados, assados, sarapatéis etc. Pude contatar dois pontos de venda
e distribuição de quelônios, traficados da reserva e arredores, que atendiam ao consumo
interno e também aos centros urbanos maiores.
Em dias que me restava menos tempo, sem poder empreender longas caminhadas,
subia até praça do cemitério próximo da UAJV para ver o sol se esconder no mar das águas
brancas1 que formam o encontro do Trombetas com o Sapucuá. Muitas conversas, muitos
casos e trocas de experiências me auxiliavam a compreender aquela realidade. Nalgumas
noites saia para as casas noturnas da cidade onde se escutava muito Technobrega e se dançava
muito, uma cultura bastante massificada por todo o Norte. Casos de violência não eram raros,
constantemente se noticiavam brigas entre pessoas envolvendo armas brancas nesses bailes.
Em uma ocasião um estudante de medicina da UFF chegou a ser agredido com um terçado,
protegendo sua face com o braço e consequentemente levando uma série de pontos para
costurar as feridas. Foi um caso isolado que coincidiu com um dos campos da pesquisa. O
município apresentava-se peculiar e complexo tanto em sua história quanto na sua vida
política cotidiana.
1
“Águas brancas” é um termo local utilizado para classificar as águas dos rios quando são mais turvas, ocre ou
barrentas, em contraposição às “águas pretas” que são mais cristalinas, esverdeadas, cobre ou azuladas.
2
PARÓQUIA DE SANTO ANTÔNIO. Histórico da Paróquia de Santo Antônio. In. Caminhando Libertando:
Anuário da Prelazia de Óbidos. 1957-1982. p.1. Disponível em: http://www.oriximina.org/noticias.html.
Acesso em: 18 de março de 2013.
69
3
IBGE. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/para/oriximina.pdf
4
HIBERT, Peter Paul. A Cerâmica Arqueológica da região de Oriximiná. Instituto de Antropologia e Etnologia
do Pará. In. Publicação Nº 9, Belém. Pará. 1955.
5
NEVES, Eduardo. Amazônia ano 1000: na Amazônia de 1000 anos atrás, civilizações experimentam o
florescimento cultural. In. National Geographic. Nº 122, maio de 2010.
6
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da Amazônia
brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f.
70
7
PNUD. Ranking decrescente do IDH-M dos municípios do Brasil. Atlas do Desenvolvimento Humano.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (2010). Disponível em:
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-‐IDHM-‐Municipios-‐2010.aspx. Acesso em março de 2013.
71
transformações, seja por imposição, seja por sedução, a rede sociotécnica do ocidente se
amplia ali, amarrando bem suas conexões e fincando as suas bandeiras, integralizando
territórios à uma ordem própria e seletiva. Sob o sofisma de uma “terra sem homens” a
chegada de projetos como os da Mineração Rio do Norte, Andrade Gutierrez, ENGE-RIO,
ELETRONORTE entre outros, vão reconfigurar toda a lógica espacial e imprimir uma
racionalidade específica e homogeneizadora do território dentro da ambivalência dos projetos
modernizantes. De um lado alguns benefícios advindos dos repasses de recursos aos citadinos
e comunitários, ligados a infraestrutura, tecnologias, trocas comerciais e assistências
governamentais, de outro, enriquecimento sem parâmetros de grupos minoritários que se
ligam direta ou indiretamente ao grande capital, perda de recursos naturais, degradação
ambiental e supressão de direitos. Por sua vez, a democratização do país e a Constituição
Federal de 1988 reconfiguraram gradativamente a lógica anterior, contrabalançando a
unilateralidade dos interesses considerados, inserindo novas pretensões e novos atores, mas
dentro da mesma lógica expansionista do coletivo que vai agregando mais coisas, se
ampliando e hierarquizando.
A oposição de diferentes “racionalidades” de uso, significação e ocupação do
território, somada à grande riqueza de recursos naturais e culturais, faz daquela região uma
terra de extremos. Grandes projetos de desenvolvimento ligados à ideologia hegemônica, com
madeireiras, mineradoras, agroindústria e hidroelétricas, se contrapõem aos espaços
tradicionalmente utilizados. As práticas tradicionais também foram transformadas pelos
projetos conservacionistas que, historicamente, antes de serem consonantes às práticas mais
sustentáveis, como se presumiria, aliam-se à dinâmica daqueles que possuem melhores
condições de acesso e formalização de seus interesses à lógica governamental. Entretanto,
essa realidade gradativamente vem se modificando. As mudanças políticas, a atuação de
agentes externos, as novas concepções do ambientalismo, as mudanças legais que recaíram
sobre as Unidades de Conservação com a Lei 9985/2000, por sua vez, proporcionam um
momento histórico de inversão de interesses e (des)legitimação de práticas.
Cabe ressaltar que a dinâmica dos tradicionais dentro dos inevitáveis intercâmbios
culturais se modificam e, ainda para aqueles mais resguardados, não podemos adjetivar suas
práticas como sustentáveis a priori, como muito se romantiza. A continuidade de práticas ou
modos de vida (hábitos alimentares, trocas econômicas, ocupação de áreas, abertura de
roçados) podem não se sustentar por lapsos temporais mais delongados, pela intensidade das
deveriam ser integrados à nova dinâmica industrial por meio do pleno emprego e com modernização de suas
práticas extrativistas.
73
práticas dos próprios tradicionais ou pelo aumento do seu contingente populacional, sejam
eles indígenas, quilombolas ou ribeirinhos. Nesse sentido, isentar suas práticas da
necessidade de algum controle estatal, por mais paradoxal que seja dentro da história aqui
narrada, pode tornar mais difícil a sobrevivência e continuidade das comunidades tradicionais
em seus territórios. Territórios estes sob constante ameaça das próprias políticas
desenvolvimentistas do governo e dos “invasores” que podem ser: a) grupos organizados
externos como geleiras, madeireiras, mineradoras; b) grupos ou indivíduos menos
organizados como fazendeiros, grileiros, garimpeiros; c) ou mesmo pessoas internas da
própria comunidade que extraem recursos em grande quantidade para fins comerciais
tornando-os escassos para os demais ou gerando outros problemas.
A exponencial ordenação e normatização territorial que recaiu sobre Oriximiná – nas
estacas e recortes que marcam as linhas imaginárias dos seus diferentes espaços – recriou um
imenso território em disputa, “palmo a palmo”, por distintos grupos, com diferentes
significados para a terra. O município corresponde ao maior contínuo de áreas protegidas do
mundo com três Unidades de Conservação estaduais: Floresta Estadual do Trombetas,
Floresta Estadual de Faro e Estação Ecológica do Grão Pará; duas Unidades de Conservação
federais: Floresta Nacional Saracá-Taquera e Reserva Biológica do Rio Trombetas; três
Terras Indígenas: Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera e Tumucumaque; e, cinco Terras
Quilombolas tituladas: Boa Vista, Água Fria, Trombetas, Erepecuru e Alto Trombetas. Além
de outras demarcações pleiteadas por quilombolas ou indígenas. Isso significa regras de uso e
significações relativamente variadas para extensos pedaços de terra, muitas vezes já
habitados/utilizados, que pressupõe rígido controle sobre o manto legitimador dos ideais de
sustentabilidade e proteção sociocultural. No outro extremo terras são demandadas por
fazendeiros, pecuaristas e sojicultores, que também exercem fortes influências políticas.
Contudo, em termos de influência, todos se apresentam incomparáveis perto da mineração de
bauxita que parece flutuar num mundo aparte, acima de tudo isso.
Com as adversidades geradas pelos distintos modos de utilização do território e a
inserção de novos atores sociais surge a consciência dos conflitos, a politização dos grupos de
interesse e a luta material e simbólica por cada espaço daquela terra. A discrepância de forças
é o que muitas vezes perturba os sentimentos de justiça, pois dentre as muitas facetas,
algumas correspondem a uma “sociedade” com o Estado com repercussões diretas nos
processos decisórios políticos e jurídicos, sobretudo os interesses minerários e energéticos. As
decisões sobre a utilização dos recursos são tomadas em instâncias que ultrapassam as esferas
locais (ou mesmo nacionais) repercutindo na ordenação territorial sempre favorável a estes
74
população, pela força dos grandes grupos econômicos – o Defensor Público torna-se uma
figura emblemática pelo seu esforço e história9.
Entretanto, no que diz respeito aos espaços territoriais recortados, correspondentes às
duas unidades de conservação federais, todos os litígios que se desdobram em seus limites são
tratados pela Justiça Federal e pela Procuradoria da República. Nesse sentido, os principais
casos enfocados que envolvem a Reserva Biológica, a mineração da bauxita na Floresta
Nacional e as comunidades quilombolas, tiveram como primeira instância o foro judicial do
município de Santarém e não de Oriximiná, que não possui Justiça Federal. O que certamente
não diminui a importância da Justiça Estadual e seu necessário e urgente fortalecimento no
município.
Conforme afirma o Sr. Josielson dos Santos Costa, Coordenador Social da Paróquia de
Santo Antônio, nas cidades paraenses onde operam os grandes projetos de mineração, o papel
jurisdicional do Estado é quase inexistente. Como se toda uma região fosse entregue pelo
próprio Estado ao jugo dos protagonistas da mineração. Prioritariamente a ordenação do
território seria para atender à estabilidade e manutenção dos bons negócios dos mesmos10.
Essa “simbiose” entre mineradora e Estado, que trato mais profundamente adiante, em
Oriximiná se materializa de maneiras muito diversas como, p. ex., nos veículos, equipamentos
e recursos doados pela MRN e utilizados pelo poder judiciário, legislativo e executivo locais,
além dos repasses tributários e suas aplicações. Na realidade de Oriximiná essa relação é
significativamente estável, principalmente se comparada a outras realidades como foi a de
Carajás. Aqui a “violência” é sutil, se apresenta pela regra e pelo controle sistemático, pelo
disciplinamento frio, sem explosões, sem descontroles perceptíveis à primeira vista. Talvez,
por isso, ainda mais penetrante, ainda mais extensiva.
Uma conveniente distância é mantida entre a MRN, situada no distrito de Porto
Trombetas, e a realidade política e econômica que se apresenta em Oriximiná, não obstante a
onipresença material da empresa em praticamente tudo. Não me refiro às cinco horas de barco
9
MADEIRA FILHO, Wilson; ALCÁNTARA, Leonardo Alejandro Gomide; VERAS, Cristiana Vianna;
AZEVEDO, Thais Maria Lutterback Saporetti; TERRA, Alessandra Dale Giacomin; SANTOS, Camila Oliveira;
NASCIMENTO, Marina Marçal do. Nas mãos de Deus: a atuação da defensoria pública do estado do Pará no
município de Oriximiná junto às comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas. In: II Seminário
Interdisciplinar em Sociologia e Direito: resumos e artigos. Niterói: PPGSD-UFF/PROEX-UFF, Niterói,
outubro de 2012, GT 10, p. 1-23.
10
COSTA, Josielson dos Santos. Relato sobre o papel da igreja na organização política das comunidades
quilombolas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e a Thaís M. L. S. Azevedo.
Oriximiná. 21 de julho de 2011. Esse ponto apresentando pela entrevista enseja uma pesquisa de
aprofundamento: aferir a operacionalidade do judiciário nos municípios em que atuam os grandes
empreendimentos de mineração. Aqui segue enquanto sugestão, pois não se trata propriamente do foco desta
análise.
76
ou uma hora de lancha para chegar no distrito, ao mesmo tempo em que a empresa está por
trás de várias ações governamentais, seja financiando ou influindo politicamente conforme
sua conveniência, a mesma segue blindada pelo próprio Estado, que lhe faculta essas vestes
de imparcialidade. Conforme salientou em conversa, Evandro Soares Silva, assistente de
Relações Comunitárias da MRN, a empresa cumpre a lei e paga todos os seus tributos, o que
o município faz com o recurso não está na esfera de responsabilidade da mesma. Será? O
“poder sobre o poder” fica salientado nos dizeres de João Bosco Almeida, advogado,
fundador da Associação Comercial de Oriximiná e da Fundação Ferreira de Almeida:
A vila de Porto Trombetas era o templo sagrado e estratégico do
governo militar e empresas estrangeiras, onde se instalava a
Mineração Rio do Norte SA – MRN, empresa mito e sucesso de
administração para os seus acionistas. Porto Trombetas era
indecifrável e inacessível nessa época da pós-ditadura. Dizem que até
o prefeito do município tinha que pedir licença para desembarcar.
Assim se nutria a sociedade agora mais civil que via a nova república
de Tancredo e Sarney surgir. Após longa madrugada, aportavam na
vila de Porto Trombetas os teimosos empresários de Oriximiná,
devidamente conduzidos para o café da manhã na Casa de Hóspedes
da MRN. Crachás e Credenciamento não era compatíveis com a
liberdade democrática nem com a mudez e rudimentares técnicas
comercias dos oriximinaenses. Foi a primeira vez que uma delegação
de oriximinaenses conseguiu ser recebida em Porto Trombetas pelos
seus próprios méritos, isto é, sem favor político[...].
Depois da apresentação, um passeio pela área industrial e mina fez os
empresários oriximinaenses virem pela primeira vez as enormes
máquinas assustadoras a escavar o solo e extrair as riquezas,
originariamente em prazo estimado para quatro séculos. Hoje tarefa
ajustada para pouco mais de quatro décadas, tal o esforço exigido pelo
mercado mundial do alumínio.11
11
ALMEIDA, João Bosco. Kondurilândia: Ideias e registros na gênese da nova unidade federativa no oeste do
Pará. Fundação Ferreira de Almeida. Oriximiná. 2001. p. 69
77
Outros afirmavam que aqueles que estavam no poder ou diretamente ligados a ele, há mais de
vinte anos se revezando no município, tornaram-se milionários, adquiriram muitas cabeças de
gado e largas porções de terras na região. Latifundiários – em geral brancos e pessoas de fora
– no poder ou diretamente ligados a ele, segundo os entrevistados mais engajados
politicamente, não é uma realidade exclusiva de Oriximiná, levando-se em conta outras
realidades paraenses.
Não foi possível no curso da pesquisa uma conversa direta com o chefe do executivo,
apesar das muitas tentativas. Mesmo quando raramente conseguia um agendamento prévio,
sem horário definido, o atendimento no gabinete do prefeito era extremamente concorrido,
sempre havia uma fila imensa que não compatibilizava com o meu horário ou não chegava ao
seu término no final do expediente, não me possibilitando ser atendido. A fila era composta
por pessoas carentes da cidade e das diversas comunidades interioranas. Por curiosidade
puxava assunto para saber o que tratariam com o prefeito e obtinha respostas quase
constantes: estavam ali para pedir ou materiais de construção, ou combustível, ou
medicamentos, ou um gerador para a comunidade, ou arrumar o barco que estragou, entre
outros favorecimentos. Os cabrestos, os currais e os recursos que asseguravam a manutenção
do povo gado a um só tempo.
Durante todo o curso deste trabalho, que se iniciou em 2009, o prefeito municipal foi o
político do Partido Verde, Luiz Gonzaga Viana Filho, que se reelegera ao seu quarto mandato
na mesma época em que eu realizava o campo em outubro de 2012. Em meados de 2013 uma
série de protestos e manifestações nas redes sociais pediam a cassação do prefeito, com
inúmeras irregularidades expostas nos meios de comunicação. Nepotismo, desvio de recursos
públicos, enriquecimento ilícito, entre outras irregularidades foram avençadas pelas redes
sociais e pela imprensa. Consultando o Tribunal de Contas da União encontro uma decisão
obrigando o prefeito e uma empresa a ele ligada a devolver aos cofres públicos R$ 1.546.827,
3612, relativo ao seu primeiro mandato e ainda sem decisão final. Na Justiça Eleitoral
inicialmente seu nome constava dentre os políticos impugnados pelo “Ficha Limpa”, mas o
mesmo conseguiu contornar a situação, se reeleger e seguir no mandato até o final da
pesquisa.
Em nota divulgada pelo “Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de
Minerais Não Ferrosos do Oeste do Pará - STIEMNFOPA” e notícia divulgada no “Jornal de
12
Tribunal de Contas da União. (10/09/2009 15:32) TCU condena ex-prefeito de Oriximiná (PA). Disponível
em: http://portal2.tcu.gov.br/portal
/page/portal/TCU/
imprensa/
noticias/detalhes_noticias?
noticia=1771906. Acesso em março de 2013.
78
13
STIEMNFOPA. Trabalhadores da MRN organizam protesto contra fraude no transporte público. Oriximiná.
Disponível em http://www.stiemnfo.org.br/noticias.php?id=16538. Acesso em 18 de agosto de 2013
14
ABREU, F. Sant’Anna. Sindicato organiza frente contra a corrupção do transporte público em Oriximiná. In:
Jornal de Santarém e do Baixo Amazonas. Caderno 1 – Plantão, 15 a 25 de julho de 2013. p. 3. Santarém. 2013.
Disponível em: http://www.calameo.com/books/001507549fead079a393e. Acesso em 2 de agosto de 2013.
79
Valer-se do próprio Estado como blindagem para assegurar seus interesses e proteger-
se de ataques externos, ocultando-se, é uma estratégia muito bem sucedida: práticas que
dificilmente se legitimariam do ponto de vista legal e moral, ganham as vestes da legitimidade
estatal e do “interesse público”. A relação com município é menos do que a ponta do iceberg,
conforme se avança, percebe-se que a influência da MRN se amplia ainda mais nas instâncias
superiores, contrario senso.
Oriximiná, cuja economia está atrelada à exploração mineral, não se restringe a esta,
tendo em vista tanta riqueza natural. As madeireiras e os pecuaristas também ganham
importância neste cenário, sendo usual “medir” a riqueza dos munícipes pelas suas terras e
gado. Por sua vez, pecuária, agricultura e exploração madeireira são atividades geralmente
relacionadas às pessoas de lá e não a grupos transnacionais como é a mineração. Nesse
complexo a percepção que se tem ao dialogar com a população local é de que os mesmos são
conscientes politicamente da realidade local, principalmente quando se trata dos grupos
tradicionais, mas não somente. A importância da Igreja na organização política das
populações rurais e tradicionais merece destaque sendo melhor tratada um pouco mais
adiante. Em algumas passagens da entrevista com o Coordenador Social da Paróquia de Santo
Antônio é possível estabelecer algumas conexões entre os diferentes grupos de poder e
elucidar um pouco mais aquela realidade política. Pergunto:
*Deixa eu dar um pulo no tempo. O município recebe hoje uma
quantia muito significativa de recursos devido aos royalties da
mineração e pra quem vem de fora, eu não sei qual é a monta, mas eu
sei que é significativa, em torno de alguns milhões [...] pra quem vem
de fora a gente vê uma administração que tem carências que poucos
recursos poderiam resolver. Ou seja, seriam deficiências da
administração política pública e de outro lado você vê filas de
pessoas na prefeitura pedindo coisas. Há uma política assistencialista
forte, mas assistencialista no sentido de paternalista, pelo meu ponto
de vista, e, ao mesmo tempo, com deficiências significativas que
políticas públicas simples poderiam resolver. Como você vê a
administração hoje aqui no município, fazendo um paralelo com o
passado? Você vê a continuidade de uma lógica?
– É... já ouviram a história do cachorro? Do cachorro e da coleira?
Mudam os cachorros, mas a coleira é a mesma. Então, na década de
70 no município houve uma reunião dos pecuaristas e deliberaram
que o município seria um polo exportador de carne. Devido aos
grandes empreendimentos planejados pra cá, certo? Então logo em
seguida, sai ali da região de Macapá, chega a Jari, em seguida chega
a Mineração Rio do Norte. Então estava no projeto a Mineração Rio
do Norte, a barragem do Trombetas e a ALCOA em Juriti. A pesquisa
de Juriti saiu em 77. Então mais tarde falaram pra gente da Rio Tinto.
Mas pelo menos essas duas empresas já estavam garantidas aqui na
80
Oriximiná o preso mais velho tem 23 anos. Entendeu? Um menor mata a mando de alguém e com 2, 3 dias tá
solto. E exemplos aqui em Oriximiná não falta. Demora mais às vezes aí no Centro de Acolhimento por não ter
promotor às vezes logo pra sentenciar ele, se ele fica aí, se libera ou se vai pra Santarém. Então como eu to te
falando, é só olhar os municípios onde tem mineração que vocês vão ver as deficiências do judiciário em todas
as instâncias.
82
Ilustração 01: Diário de Campo – Brega 45. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.
Ano de 2010 – primeiro campo – saímos eu, Wilson Madeira e Ivan Pimentel de Porto
Trombetas por volta das onze da noite, as meninas pesquisadoras quedaram-se na Casa de
Hóspedes. Já havíamos acertado, ali mesmo no porto, com um barqueiro que nos conduziria e
aguardaria o nosso retorno da comunidade denominada Vila Paraíso, ou Brega 45. Cerca de
vinte minutos navegando e chegávamos às palafitas iluminadas, cheia de música, de bebidas e
de dança. A pujança e excitação pela oportunidade de uma pesquisa tão extraordinária para
mim se misturava ao medo do desconhecido, de estar na beira de um rio no coração da
Amazônia, em uma vilazinha onde as damas prestam serviços sexuais para os operários do
grande empreendimento minerário. Subimos as escadinhas de madeira e, transitando por uma
passarela suspensa, podíamos escolher em qual daqueles pequenos cabarés tomaríamos
discretamente uma cerveja e iniciaríamos o nosso trabalho. Poucas passadas e uma senhora
83
nos recebe educadamente e nos serve em uma mesa, ao nosso lado meninas se exibiam com
danças sensuais, aguardando que nos manifestássemos. Wilson acena e elas se aproximam e
se sentam na mesa, nos apresentamos e iniciamos ali breve conversa. Escolho uma das
meninas, a mais nova, que me conduz para o seu quarto anexado aos outros da grande
palafita, como um cortiço todo de madeira. Ali uma pequena estante, um radinho, sua cama
que ocupava 70% do quarto e um armário onde guardava seus pertences. Me assento na cama,
me apresento e apresento o meu trabalho, já havia combinado pagá-la (seu tempo) por uma
breve entrevista. Ela me conta: “completei 19 anos tem dois meses [tinha minhas dúvidas] e
sou de Santarém [...] estou aqui para levantar um dinheiro, minha prima trabalha aqui, ela
que me chamou, mas ela não está aqui agora não, está lá pra Santarém”. Me diz também que
sua família não sabia que estava ali e que logo retornaria e voltaria a estudar. “Aqui dá pra
fazer um bom dinheiro, as vezes, quando vem os estrangeiro, tiro até quatrocentos dólares na
semana”. Parte desse dinheiro ficava com a “casa”, que ela não se queixou do tratamento.
Provavelmente ela não vivia a mesma realidade de outras meninas ali, pois era jovem e
bonita, de pele cobre, claramente com ascendentes indígenas. Me contou que era praxe ali
cobrar US$ 60,00 por estrangeiro e o mesmo valor em Reais para os brasileiros, e que atendia
o “povo da mineração” em geral, das empreiteiras e dos navios. Disse que não gostava dos
orientais, se queixava: “a gente não entende nada do que eles falam [...] e eles são muito
bruto com a gente” ... Por ali já apareceram gregos, americanos, canadenses, franceses, gente
do mundo todo que atravessa os oceanos, penetra nos grandes rios e vai lá pegar o mineral
avermelhado. Essas moças, cujos brios se ofuscam nas sombras dos preconceitos, são
proibidas em Porto Trombetas, circundam na Praça da Feirinha... sempre as via por lá, mas
não são beneficiárias de nenhum projeto da mineração, provavelmente as mais invisíveis de
todos. Isso por prestar esse antigo serviço que ali amansa a solidão dos marinheiros e
operários da máquina minerária. É só mais um povo a ela conectado, cuja existência e
subsistência estão atreladas à própria MRN, ali tão perto e tão diferente dos quilombolas do
Boa Vista, dos ribeirinhos do Lago Batata e dos indígenas do Mapuera.16
16
Poucos dias depois retornamos com as pesquisadoras Thaís Azevedo, Carolina Thibes, Denise Vidal, Jamile
Souza, Alessandra Terra. As meninas realizaram ampla abordagem no local, estabelecendo descontraídos
diálogos com as meretrizes, se banhando no Rio Trombetas, brincando e ao mesmo tempo recolhendo
importantes informações. No campo realizado em outubro de 2012 também retornamos ao Brega 45 e deixamos
um pesquisador, Eduardo castelo Branco e Silva, enquanto o resto da equipe seguiu para a aldeia-mãe Mapuera.
Eduardo Silva realizou o seu mestrado sobre o Brega 45, tomando como lastro as experiências vivenciadas no
outro campo. Os dois renderam artigos:
a) MADEIRA FILHO, Wilson; ALCÁNTARA, Leonardo Alejandro Gomide; PIMENTEL, Ivan Ignácio;
VIDAL, Denise da Silva; AZEVEDO, Thais Maria Lutterback Saporetti; THIBES, Carolina Weiler; SOUZA,
Jamille Nedeiros de; TERRA, Alessandra Dale Giacomin. Vila Parais: invisibilidade das prostitutas do Brega 45,
84
A história sobre o povo do Lago Batata narrada no compendio analisado nos próximos
capítulos17 não se alinha com as informações obtidas em um campo que realizei no mesmo.
Além de não mencionar quais foram os impactos vivenciados pelas pessoas ali, a narrativa
que enfatiza a alegria e a satisfação daquele povo ribeirinho, oculta as vozes ressentidas e as
transformações que vieram com a chegada da MRN. Partindo de entrevistas coletivas, por
meio de Diagnóstico Rápido Participativo - DRP com duas famílias, merecem destaque
alguns pontos aferidos nas histórias orais coletadas.
Converso com a família de Dona Domingas Alzira Pires18, 45 anos, e com a família de
Domingos de Souza19, 76 anos. Antes da chegada da MRN poucas famílias viviam no Lago
Batata, segundo os relatos, apenas duas e uma na área em que se erigiu Porto Trombetas. Foi
com a chegada da mineração que várias famílias se instalaram neste lago. Famílias “doutras
paragens, vinha por causa da concorrência de trabalho” [sic] e foram se instalando ao longo
do Batata. Com a deposição do rejeito de bauxita no lago, dentre as ações da empresa,
ganhava destaque nas falas, a remoção das famílias que ali haviam se instalado, pouco após a
contaminação. Outra ação mencionada tratava da realização de poços artesianos para as
comunidades afetadas mais acima, como Boa Vista e Moura, segundo os relatos. As famílias
retiradas do Lago Batata foram alocadas do outro lado do Rio Trombetas, “numa paragem
que chama de Bacabal” [sic], mas muitas se dispersaram e foram para outras “paragens”,
como o caso de Dona Domingas, que foi para o Juqueri Grande, abaixo da Cachoeira Porteira.
Segundo os entrevistados, a indenização que foi paga pela MRN não “dava pra nada”,
disseram que todos ali foram retirados e nas casas que restaram “colocaram fogo”. Conforme
Domingos de Souza, morador mais antigo do lago que chegou antes da mineração, com a
indenização que recebeu conseguiu comprar apenas uma “canoa velha [...] não dava pra
nada”. Mencionou que a “mineração falou que ia ajudar, mas não ajudou nada, eles
esqueceram”. Do local para onde foi removido, assim como grande parte das pessoas em
conjunto de prostíbulos no entorno da Mineradora Rio Norte, às margens do Rio Trombetas, em Oriximiná (PA).
In: Confluências, v. 13, n.1. Niterói: PPGSD-UFF, novembro de 2012, p.73-81.
b) MADEIRA FILHO, Wilson; SILVA, Eduardo Castelo Branco e; PINAUD, Deborah Zambrotti; TERRA,
Alessandra Dale Giacomin; LOUZADA, Ana Beatriz. Retorno à Vila Paraíso: memórias, processos de
territorialização e gestão de espaços de prostituição no Brega 45, no Rio Trombetas, em Oriximiná (PA). In:
Confluências, v. 14, n.1. Niterói: PPGSD-UFF, dezembro de 2012, p.218-236.
17
MOURÃO, Isaura. Um pouco de história, seu povo. In. BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De Assis, ROLAND,
F. Lago Batata: impacto e recuperação de um ecossistema amazônico. Rio de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000. p.
17-25.
18
PIRES, Domingas A.; et al. Entrevista Coletiva na comunidade do Lago Batata: família de Dona Domingas.
Entrevista realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de
2012. Oriximiná, 2012.
19
SOUZA, Domingos; et al. Entrevista Coletiva com o ancião do Lago Batata e seus familiares. Entrevista
realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de 2012.
Oriximiná, 2012.
85
igual situação, ficou menos de três anos e retornou para o Batata: “aqui tem muitos igarapés,
é mais bonito, é a vida da gente”. Dona Domingas afirma que as pessoas ali se opuseram à
remoção: “eles reclamava mas não adiantava nada, tinha que sair, tinha que perder tudo”
[sic]. Por sua vez, com relação a contaminação do lago, os comunitários que participaram da
entrevista, assim como Seu Domingos, davam mais ênfase à poluição visual: “a água ficou
feia e ainda tá feia, fica tudo vermelho quando a água baixa, tudo sujo da lama da bauxita, e
também é ruim, pode causar doença, dá coceira” [sic]. Disseram, nas duas entrevistas, não ter
assistido os trabalhos para recuperação do lago, não detinham conhecimento sobre o que foi
feito nesse sentido, para os mesmos, apenas pararam de lançar os rejeitos, mas não “retiraram
a lama vermelha, quando a água baixa fica tudo feio lá pra cima”. Ou seja, os grupos
familiares entrevistados não fizeram parte do processo de recuperação do lago.
A população do Batata, no tempo da pesquisa com 120 famílias, retira parte de sua
renda da agricultura, comercializando a produção de farinha de mandioca, beiju, jerimum,
melancia entre outros produtos na Praça da Feirinha, onde conseguem escoar, segundo os
entrevistados, tudo o que produzem. A outra fonte de renda, principalmente para os
“maridos”, se dá com os trabalhos para as empresas terceirizadas da MRN, conforme os
mesmos se referem: “as empreiteiras”. Pergunto se são empregados ou apenas prestam o
serviço e obtenho como resposta que são empregados. O esposo de Dona Rosana (que estava
junto com a Dona Domingas na entrevista), por exemplo, trabalha para a Cattani – a polêmica
empresa supra mencionada que tornou-se a concessionária do maculado transporte público de
Oriximiná para os trabalhadores da MRN até as suas minas. Conforme os relatos, nenhum
morador do lago estava trabalhando direto para a MRN, mas para as terceirizadas, que por sua
vez, empregavam muitas pessoas de lá.
Seu Domingos inicia a entrevista dizendo que antes da chegada da MRN não havia
“motor” (a rabeta para canoa), não havia comércio, para comprar qualquer coisa que
necessitasse tinha que ir remando até Oriximiná... uma jornada de três dias. Relata a chegada
da mineração, os acampamentos de pesquisa, as explosões nos platôs, as explosões na água
que a “branquejavam de tanto peixe que boiava”, o rejeito despejado no lago, no igarapé
Caranã... falou daquilo que provavelmente marcou seus olhos, sua história, dentro de sua
percepção de mundo. Seu Domingos afirmou que as coisas melhoraram muito com a chegada
da mineração, agora ele tem um motor, ou pode pegar um barco para Oriximiná, tem sempre
um regatão para escoar os produtos, tem acesso ao hospital de Porto Trombetas em caso de
emergência, tem gerador a diesel e tem ajuda da prefeitura. Seu Domingos não associa a
diminuição do pescado à contaminação das águas, diz que quando chegou o comércio (junto
86
com a MRN), é que se começou a pescar em demasia, de forma predatória. Foi a atuação dos
“invasores” (aqueles que pescam ou caçam para comercialização) que ocasionou a escassez
dos peixes e também dos “bichos-de-casco” e da caça. “Foi a invasão [...] antes não tinha
pra quem vendê, era só a gente aqui, despois começou tudo” ... [sic]. Fala da chegada do
“IBAMA”, segundo ele, se não fosse a entidade, já não haveria mais nada. Esse
posicionamento também obtive de entrevistados quilombolas.
Os programas sociais e ambientais da MRN são bastante diversificados podendo ser
divididos em voluntários e decorrentes de condicionantes dos licenciamentos ambientais20 – o
que corresponde a grande maioria dos projetos. Além dos projetos ambientais mencionados
sobre reflorestamento, manejo de fauna e de sítios arqueológicos, relacionado às operações
nas minas e todos gozando de parcerias com instituições de pesquisa como EMBRAPA, UFV,
UFPA, UFRJ, UFSC, ZOOFIT, UFG, UFJF, UFA, INPA etc., existem os projetos voltados
para as comunidades do entorno da mineração21. As ações socioambientais tem perceptível
repercussão na vida dos povos tradicionais na área de influência da empresa, perfazem
conexões peculiares da mesma com as comunidades, criam laços, influências, acessos,
oportunidades, recursos e dependências. Em praticamente todas as comunidades que visitei,
senão todas, parte da infraestrutura, como os barracões comunitários, foi construída com
recursos da mineração e, pelo menos um projeto de desenvolvimento social, também havia
sido realizado. Com fins ilustrativos elenco os principais projetos da empresa e,
posteriormente, comento aqueles em que tive oportunidade de vivência de campo e/ou coleta
de relatos por parte de comunitários e/ou autoridades públicas.
Como condicionante dos licenciamentos ambientais foi criado o Programa de
Educação Socioambiental – PES em 2010. Este programa se subdivide em doze projetos (em
alguns casos incorporando projetos anteriores) com aplicação e participação comunitária.
Transformar realidades, desenvolver conhecimentos, capacidades, O resultado dos projetos
variavam conforme a comunidade, prosperando em algumas e fracassando em outras.
20
Condicionantes, conforme o próprio nome, são ações que devem ser realizadas para a manutenção e validade
das licenças ambientais.
21
Separado por regiões segue um breve panorama das comunidades: 1. Sapucuá – Casinha, Amim, Ascenção,
Cunuri, Ajará, Leiro, Maceno, Castanhal, Macedônia, Vila Ribeiro, Amapá, São Braz, Boa Nova, Saracá
(realizei trabalhos de campo na Casinha, Castanhal, São Braz e Boa Nova); 2. Médio Trombetas – Sacuri, Boa
Vista, Nova Sacuri, Jacupá, Camixá, Tapixaua, Curupira, Axipicá, Varjão, Samaúma, Bacabal, Acari, Batata,
Flechal, Vila Paraiso e Muçurá (realizei campo na Boa Vista, Vila Paraiso, Batata e Flechal); 3. Alto
Trombetas – Moura, Último Quilombo, Nova Esperança, Palhal, Juqueri Grande, Jamari, Curuça, Juquerizinho,
Mãe Cué, Sagrado Coração, Tapagem, Paraná do Abuí, Abuí e Cachoeira Porteira (somente o Palhal e o Juqueri
Grande não foram trabalhados).
87
Um projeto que pude vivenciar e que talvez seja o mais complexo de todos é o
“Manejo de Copaíbas”. Conforme mencionado, grande parte desses projetos decorrem de
condicionantes ambientais, nesse sentido, visam “compensar” alguns dos impactos causados
pela atividade de mineração ou trazer algum benefício direto para as comunidades
impactadas. Este projeto está relacionado ao Platô Monte Branco, de substancial importância
para a MRN, que no curso da pesquisa estava na eminência da supressão de milhares de
copaibeiras, fonte de renda das mencionadas comunidades do Jamari e do Curuça, no
território da Floresta Nacional. O projeto visa a produção e manejo de mudas de copaíba pelos
comunitários, em nome da “preservação da espécie” e como forma de gerar “autonomia” para
os produtores locais – ressalvo: como compensação pelo extermínio de umas das áreas de
maior concentração da espécie de toda a região e pela extinção do principal modo de
subsistência das referidas comunidades. As mudas são plantadas em estruturas criadas nas
próprias comunidades, Jamari e Curuça, com sementes coletadas pelos comunitários e
insumos cedidos pela MRN (saquinhos e adubo), toda a mão-de-obra fica por conta das
comunidades e as mudas são adquiridas pela MRN pelo valor de R$ 1,50, com dois anos de
idade, que segundo os comunitários, não “compensa” o trabalho. É só imaginar ter que regar
milhares de mudinhas quase todos dia sem ter água encanada, como é o caso do Jamari, tendo
que pegar água do rio. Conforme representante do Curuça e do Jamari, sobre o projeto do
inventário e viveiro de mudas respectivamente:
23
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
91
Curuça
- Tá sendo estudado e a gente não sabe. Aí fizeram um projeto. Esse
projeto que o Jonas tá fazendo com a gente e a gente já passou pra
você, né. Tá fazendo um inventário a redor. A gente tá trabalhando
com ele, mas de 2 em 2 meses. Então, dentro de uma comunidade, de
2 em 2 meses é pra ir 5 pessoas. 5 daqui e 5 do Jamari. São 10
pessoas que nós trabalhamo. Aí o que acontece, chega um mês todo
mundo quer ir porque precisa de ganhar um dinheirinho. Aí tu não
pode levar 10, só é 5 que eles pediram. Aí, poxa, fica aquela coisa... E
aqui tá a prova bem aqui, olha depois a gente vai lá. Fizeram esse
projeto, a gente ajuntou as sementes pra produzir, pra plantar em
2013. É pra plantar lá no platô, no Monte Branco e aqui na área da
comunidade pra fazer uma área pra plantar um pouco. Mas só que
esse trabalho que a gente faz aqui é de graça, não pagam nada,
entendeu? Ninguém ganha nada por isso, a gente tá trabalhando
mesmo só porque um dia quer ver, se ficar, talvez os filhos e os netos
da gente consiga alcançar esse período aí. Então a gente vai plantar
na situação, a gente tá trabalhando, tem uma base aí de 5 mil pé, e
muda aí de copaíba. Só que esse trabalho que a gente faz, que eles
pediram pra gente fazer, vai ser levado pra lá, vai ser levado pra cá,
mas eles não pagam nadinha. Nada, nada, nada.24
Jamari
- A gente conversamo com ela, perguntamo o que ela podia ajudar.
Porque antes, quando eu fui numa comunidade bem próxima dela que
é Boa Vista, ela deu a maior assistência. Agora quando chega com
nós por aqui ela não dá a mínima atenção e nem fala de indenização
nada não. O que ela diz pra nós é que ela vai tirar, mas vai repor. Vai
plantar mais do que tinha. Se ela vai derrubar 5 mil, ela diz que vai
plantar 20.000. Aí com 10 anos nós já tamo utilizando lá, mas isso
não é verdade. Não vai acontecer isso. A gente já fizemo umas
pesquisas, já fizemo trabalho com eles lá. Já derrubaram copaibeira,
já tiraram medida... já fizeram pesquisa do corpo dela toda pra ver
que marca era aquela, quanto que aquilo reproduzia e a gente vê que
não dá certo, que nós temo uns plantio agora da copaíba, que é pra
plantar aqui no Jamari e levar um pouco lá pro platô também, mas
ele morre e eu acho que não dá certo.25
24
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
25
JAMARI. Uso comunitário do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 09 de janeiro de 2012
92
é a própria MRN que economiza na produção e no plantio das mudas – sua obrigação –
utilizando-se dos quilombolas que não percebem remuneração direta (salário) pelo trabalho.
Outro projeto polêmico é a “Compra de sementes florestais” que se dá diretamente de
algumas comunidades no entorno do Lago Sapucuá. Esse projeto tem sua origem atrelada ao
início da exploração da bauxita no Platô Almeidas com 876,2 ha, o primeiro projeto da MRN
a ter uma audiência pública no processo de licenciamento por determinação do IBAMA a
pedido da população. Foram duas audiências públicas, a primeira em 28 de março e a segunda
em 21 de maio, ambas em 2002. Na primeira audiência conforme representação encaminhada
ao Ministério Público Federal, assinada por oito organizações26, os interessados comunitários
e suas organizações representativas obtiveram o RIMA, às vésperas da audiência, com 41
páginas sendo-lhes ocultado 75% do relatório original com 203 páginas. Apontando na
mesma representação:
Que a Audiência Pública conduzida pelo IBAMA não obedeceu os
trâmites da RESOLUÇÃO CONAMA Nº 009/1987. O local de
realização foi a Câmara Municipal de Oriximiná que comporta 150
pessoas e compareceram aproximadamente 500 pessoas. A maioria
ficou fora das discussões; o intermediador impediu a participação
popular ao exigir que os questionamentos fossem feitos por escrito,
mesmo sabendo que as pessoas participantes eram pessoas humildes
de pouca escrita; não se permitiu interlocução entre o público e o
representante da mineradora; o intermediador ainda, dirigiu a palavra
de maneira áspera, dizendo que a opinião dos representantes não iria
interferir na aprovação do projeto da mineradora, parecendo jogo de
carta marcada.27
mandioca, conforme os relatos. Mencionam, também, sobre outros projetos que foram
ofertados como o de piscicultura, criação de galinhas, agroflorestal etc. No caso da compra de
sementes os comunitários se queixavam que, com o aumento do número de famílias vendendo
sementes e as mesmas sendo adquiridas também de outras localidades, a renda, que no início
do projeto “compensou” o recurso dos castanhais, não o fazia mais. Reclamavam também da
inconstância dos pedidos que, por vezes, eram requeridas sementes fora da estação das
mesmas. Não houve nenhuma indenização direta para os comunitários pela perda de suas
áreas de trabalho. Segundo Dona Maria Expedita, que participou do DRP, aquela região,
dentre outras cabeceiras, pertenciam ao Sr. Luiz Gonzaga Viana, pai do Luiz Gonzaga Viana
Filho, o prefeito de Oriximiná, diz que ali haviam muitos castanhais que “eram a coisa mais
linda”, lamentando a perda.
Segundo o inventário florestal do EIA/RIMA os castanhais do Platô Almeidas
ocupavam cerca de 450 ha, possuindo mais de 1.150 árvores contabilizadas, com uma média
de 32,4 metros de altura. Segundo um analista ambiental do ICMBio que resguardo a fonte,
após vistoria do IBAMA na área foram identificadas omissões sobre o número de castanheiras
(para reduzir a indenização). Na representação ao Ministério Público as associações
apontaram 3000 castanheiras e mais madeiras-de-lei que foram omitidas. Além de não constar
no EIA/RIMA os impactos relacionados ao uso comunitário e sustentável da floresta na
unidade de conservação. Como compensação ambiental por essa perda a empresa foi obrigada
a investir em 2002 em outro projeto: o “Banco de Germoplasma de Castanheira-do-Brasil”. O
projeto voltado para o inventário, para a futura recuperação dos castanhais suprimidos e para
o manejo dos castanhais remanescentes nas encostas do platô, até 2012 havia plantado 1,3 mil
mudas da Bertholletia excelsa. Um desdobramento deste projeto é o “Manejo dos castanhais”
nas encostas do Platô Almeidas (área não minerada) com envolvimento dos comunitários de
Boa Nova e Saracá, também com inventários e plantios, o projeto incide sobre nove
castanhais: Veado Pequeno, Veado Grande, Josefa, Tauri, Viana, Pedras, Moreira, Paiol e
Severino. Cada pedaço de terra, cada cabeceira, cada castanhal, cada igapó, cada igarapé,
cada espaço na floresta parece ter nome próprio, cada pedaço de terra ou de água perfaz
territórios.
Outros projetos sociais da empresa também merecem menção, enquanto conexões da
mesma com as populações tradicionais do seu entorno. Dentre esses projetos, o relacionado
ao “Apoio à Educação Formal” (que não tive contato) se subdivide em inúmeros subprojetos
com foco tanto Oriximiná, como Terra Santa e Faro. Existem projetos também específicos
para comunicação externa e interna da empresa. O jornal Konduri, disponível no sítio
94
titulação da terra de Boa Vista, que os quilombolas levaram a proposta da “terra coletiva”,
quando solicitaram auxilio da organização, inclusive pela experiência da mesma com as terras
indígenas, que se assemelham ao modelo proposto. Contudo, na mesma entrevista, também
ressalta que os quilombolas da Boa Vista já tinham um acordo prévio com a MRN, expõe:
[...]Então, a gente chegou em 1989 a convite da Paróquia de
Oriximiná. A gente tinha naquela época uma campanha muito grande
contra as hidrelétricas... para discutir esse modelo energético. A
gente estava com um trabalho grande no Xingú, estava começando na
Amazônia e também discutindo a Cachoeira Porteira. Foi por causa
da hidrelétrica de Cachoeira Porteira que a Paróquia de Oriximiná
nos convidou.... Na mesma época teria um encontro “raízes negras”
na comunidade de Jauari, era o segunda na região e o primeiro em
Oriximiná. E aí nós fomos lá para falar das hidrelétricas e, nesse
meio tempo, a discussão da titulação começou a aparecer... E assim,
era muito recente que tinha sido aprovada a Constituição... E é
interessante, porque assim, esse direito está na Constituição,
construído a partir de uma luta direta do movimento negro urbano,
não teve um envolvimento dos quilombolas nesse período. Mas os
quilombolas de lá já tomavam conhecimento da existência desse
artigo, mas ninguém sabia como colocar em prática, porque é um
artigo super curto... E aí o que eles pediram: “olha a gente quer terra
coletiva, vocês têm experiência em trabalhar na demarcação de terra
indígena que é coletiva também, vocês não querem ajudar a gente a
pensar como vai ser isso?” Então, foi por esse viés da área coletiva...
e o que começou como uma ajuda mais pontual acabou virando um
programa da Comissão Pró-Índio com quilombos. O que hoje é um
programa com atuação nacional e local, lá em Oriximiná. Então, foi
nesse sentido... e pra gente fez sentido também, porque esse viés do
direito à terra coletiva era o nosso mote na questão indígena. Então a
gente achou muito interessante e achamos que uma coisa reforça a
outra inclusive.
*Tudo é muito novo... era muito novo na época, né. Vocês tiveram
participação com relação à titulação de Boa Vista?
- É então, a gente participou de todos esses processos.
*Todas as titulações?
- É, todas as titulações [...] E a luta pela terra sempre foi um viés
muito forte e a gente pensou junto, inclusive essa estratégia da Boa
Vista, de começar com uma terra que fosse mais simples, né... porque
tinha uma discussão se começava com as terras das unidades de
conservação, onde o conflito era mais forte naquele momento. Nossa
estratégia foi uma sugestão que foi acatada de: “olha, é tudo muito
novo, vamos começar com uma menor, mas simples.” Na época foi
muito interessante porque a Mineração Rio do Norte era favorável,
porque resolvia também uma questão, porque, assim, é... a mineração
já tinha ocupado áreas que antigamente os quilombolas utilizavam da
Boa Vista, mas já tinha um acordo lá. A Boa Vista não queria aquela
área, a relação deles, como você deve já conhecer, é bem diferente
com a mineração. Então se chegou nesse... se pensou e se teve uma
96
31
ANDRADE, Lúcia. A participação da Comissão Pró-Índio na organização política dos remanescentes de
quilombo de Oriximiná. São Paulo, 03 de novembro de 2011.
32
FEREIRA, José Cândido. Organização Social e regimes de propriedade numa comunidade quilombola
paraense. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2013. p. 123
33
O que levantou amplos debates jurídicos pois não se sabia se estaria criando uma usucapião sui generis ou
uma modalidade de território protegido para grupos étnicos e tradicionais, sob regime particular de terra. Em
toda sorte como não havia regulamentação questionou-se a necessidade de previsão legal para respaldar os atos
do
Estado,
com base no princípio da legalidade. Outra corrente entendia a necessidade de aplicação imediata
artigo 68 da ADCT como forma de assegurar o Direito Fundamental à sobrevivência desses grupos, cujas terras,
mais do que bem patrimonial, constituem elemento integrante de sua própria identidade coletiva. Sem seus
territórios seriam absorvidos pela sociedade envolvente e perderiam sua peculiaridade identitária e étnica. Nesse
sentido gozaria de aplicabilidade imediata, enquanto extensão de direito fundamental, com base no princípio da
dignidade da pessoa humana.
97
34
Artigo 17 do Decreto nº 4.887/2003 que revogou o Decreto
nº
3.912/2001
35
Para conhecer o assentamento coletivo ver a obra: AZEVEDO, T. M. L. S. Estatização do Puxirum: Uso
coletivo da terra no Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas, em Oriximiná (PA). 2012.
Dissertação. (Mestrado em Sociologia e Direito) – PPGSD. UFF. Niterói, 2012.
36
Informações constantes do sítio da empresa.
98
Apresentar os fatos fragmentados sem possibilidade de “ligar uma coisa a outra” é o que
possibilita maquiar as “conexões necessárias”, como p. ex., o projeto “germoplasma da
castanha” que está ligado ao extermínio dos castanhais no platô Almeidas; ou o projeto
“manejo de copaibeiras” que se liga ao extermínio no platô Monte Branco, ambos em uma
unidade de conservação para o uso sustentável dos recursos florestais e fonte de subsistência
de povos tradicionais. O que traduz (translada, se conecta, faz acontecer, desencadeia) se
oculta pela purificação publicitária.
Ao longo de sua história a MRN amplia sobremaneira seu capital e sua produção. Sua
chegada representa a chegada do Governo Federal na região e todo um disciplinamento
territorial peculiar com as unidades de conservação, sobretudo a Floresta Nacional Saracá-
Taquera diretamente atrelada a ela. E, com obrigação que se impôs de considerar novos
interesses, os assentamentos coletivos e os territórios quilombolas vêm dar vez a uma nova
realidade e movimento político àquelas terras, obrigando adaptações por parte de seus atores e
redimensionamento às controvérsias. Se pegarmos os balanços da empresa de 2012, seu
faturamento bruto se deu na ordem de R$ 1.034.562 bilhões, com recolhimento de R$
116.045 milhões em tributos, logo lucro líquido de R$917.139 milhões. A empresa, ligada à
SUDAM conforme o delineamento histórico, desde sua origem, é favorecida com benefício
fiscal de redução parcial do Imposto de Renda. A Lei Complementar nº 87 e 1996, “Lei
Kandir”, também beneficia a empresa com isenções no imposto estadual do ICMS, para
produção destinada à exportação. Em 2012 MRN investiu cerca de R$ 310.7 milhões em suas
atividades e ações operacionais. Destes, R$ 190,4 milhões foram destinados à abertura de
novas minas, R$ 44.8 milhões para projetos especiais como melhoria no sistema de
peneiramento e linha de transmissão; R$ 17.1 milhões em equipamentos de mineração; R$
11.1 milhões em correias transportadoras; R$ 7.0 milhões em ferrovia; para os projetos
socioambientais, segurança e saúde foram destinados R$ 13.9 milhões; R$ 5.1 milhões em
pesquisas geológicas e R$ 21.3 milhões em projetos de infraestrutura, atualização tecnológica,
modernização e continuidade operacional37. A empresa está crescendo ininterruptamente
desde sua criação, em vias de se tornar a maior do planeta no setor, com implicações de
diversas ordens, dentre elas, a que mais translada interesses são os recursos financeiros que
gera. O município de Oriximiná oscila de 30% a 50% de sua receita atrelada à atividade
mineral, sua principal fonte de recursos, com uma média de 1,2 milhões de reais por mês,
gradativamente ampliados na medida em que se aumentou a atividade minerária (a CFEM
37
MRN. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-‐DOE-‐2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
99
decorre do lucro da venda do mineral). Desde 2010 Oriximiná divide parte do recurso da
CFEM com o município de Terra Santa, quando se inicia a exploração do Platô Bela Cruz,
situado entre os dois municípios. O recurso arrecadado com CFEM manteve-se com uma
média entre 22 e 26 milhões de Reais de 2004 até 2009, no ano de 2010 cai para R$
18.596.174,68 e, em 2013, o município arrecadou R$7.941.190,2438.
Os argumentos que sustentam historicamente os grandes empreendimentos como a
MRN se ligam ao ideal de desenvolvimento, hoje com o adjetivo obrigatório de “sustentável”.
Nesta seara, o que se esperaria em cumprimento às promessas que legitimam esse ideal, é que,
nos locais onde se instalaram estes projetos, assistir-se-ia efetivas melhoras nas condições de
vida das pessoas. Dois estudos se debruçam nesta análise especificamente no município de
Oriximiná: “Royalties da Mineração: Instrumentos de promoção do desenvolvimento
sustentável de regiões mineradoras na Amazônia Oriental”39 e “Adequação de um município
minerador aos objetivos de desenvolvimento do milênio das Nações Unidas”40. O primeiro
analisa os Royalties da mineração de uma forma geral, apresentando como o Brasil é um dos
países que possui as menores alíquotas, partindo para a arrecadação municipal, o investimento
do recurso no município, o despreparo para o futuro por parte das autoridades e os resultados
para sociedade de uma forma geral, em síntese:
Em Oriximiná, no período 91/95, os royalties apresentaram, em
média, 30% da receita municipal. Nesse mesmo período o número de
funcionários da prefeitura aumentou de 1.250 para 2.330 e a relação
funcionário por habitante dobrou de 0,03 para 0,06. Como
consequência, os gastos com o funcionalismo passaram de 46% em
1991 para 62% do orçamento em 1995, infringindo a legislação que
estabelece um teto máximo de 60% para gastos com funcionalismo.
Em 1991, o município de Oriximiná provavelmente utilizou o
dinheiro dos royalties para pagamento de funcionários pois a receita
municipal sem royalties (US$3.385) foi insuficiente para cobrir os
gastos com o funcionalismo (US$ 3.570). Nos outros casos, não é
possível afirmar que os royalties foram utilizados para pagamento de
salário nem descartar essa hipótese. Infelizmente, a contabilidade
pública municipal não permite examinar com exatidão o destino dos
royalties. Os gastos de Oriximiná em investimentos em infraestrutura
e setores produtivos foram muito pequenos. Esses gastos
corresponderam a apenas 2,45% e 4,25% do total do orçamento
municipal em 1991 e 1995 respectivamente, embora os royalties
tenham representado 34 e 30% do total do orçamento.
38
DNPM. Arrecadação da CFEM por substância.
39
SILVA, Maria A. R. Royalties da Mineração: Instrumentos de promoção do desenvolvimento sustentável de
regiões mineradoras na Amazônia Oriental. Belém: IMAZON, 2012. Disponível em:
http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/viewFile/15/12. Acesso em: junho de 2013.
40
LIMA, M. H. R.; FERNANDES, F. R. C.; TEIXEIRA, N. S. Adequação de um município minerador aos
objetivos de desenvolvimento do milênio das Nações Unidas. Rio de Janeiro: CETEM.2009.
100
41
SILVA, Maria A. R. Op. Cit. p. 1 - 13
101
Conforme a linha que narramos, até então, a ordem espacial de Oriximiná e região
ganha novos contornos com a descoberta da bauxita e a chegada das empresas mineradoras
junto ao governo. A Reserva Biológica do Rio Trombetas de 1979 e a Floresta Nacional
Saracá-Taquera de 1989, representam os primeiros disciplinamentos territoriais mais rígidos,
do ponto de vista legal, para a região. Essas “políticas de conservação” territorial, que dão os
limites em que a pesquisa se empenha, não somente repercutiram em uma ordem severa sobre
os modos de vida dos habitantes humanos daquelas florestas, mas legitimaram, em nome de
um interesse universal de “proteção da natureza”, ações violentas por parte dos agentes
estatais para com eles – um excepcional controle sobre saberes e corpos. Essas ações foram se
transformando tanto com relação aos tradicionais como com relação à empresa,
estabelecendo-se hoje uma relação que se aproxima mais de uma “parceria” entre governo e
tradicionais. Mas no fluxo da história, não apenas pelo sincronismo de sua implementação, as
políticas de desenvolvimento e de conservação, também perfazem um liame na configuração
de uma ordem territorial “desejada” na hierarquia dos interesses em jogo que, conforme
42
LIMA, M. H. R.; FERNANDES, F. R. C.; TEIXEIRA, N. S. op. cit. p. 1- 11
102
PARTE II
DO CAMPO ATÉ AS REDES, DA SOCIEDADE À NATUREZA
Foto 08: Tabuleiros do Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcàntara, 2012.
104
1 TRÊS MATRIZES
Neste momento da caminhada o olhar se volta para aqueles que acuram nossas
percepções sobre aquilo que estamos estudando: os teóricos, suas ideias e práticas perpetradas
nas páginas dos livros. Como analisar um “conflito ambiental”? Ou, ampliando um pouco o
termo, como descrever as controvérsias sobre as diferentes formas e propostas de uso e
apropriação do que chamamos de “natureza”?
Essa parte da tese, subdividida em três capítulos, tem como escopo apresentar
brevemente algumas percepções teórico-metodológicas que influenciaram e auxiliaram na
confecção da mesma. Sem pretensão de realizar longas explanações – de maneira introdutória
– são abordados os pontos centrais de inteligibilidade e aplicação das teorias no contexto da
pesquisa. As discussões empenhadas se afunilam em dois pontos-de-vista teóricos,
substancialmente divergentes em suas ontologias e metafisicas, sobretudo nas concepções
sobre o que é “natureza” e o que é “sociedade”.
A proposta aqui não é a elaboração de um quadro comparativo em que se aloca, lado-
a-lado, as diferentes perspectivas que se empenham num mesmo foco. Também não se
pretendeu estabelecer uma relação de superioridade/inferioridade de uma perspectiva em
relação a outra para este tipo de análise. No ponto de vista do qual observo, é o contexto do
campo e a posição pessoal do pesquisador – sua criatividade, disponibilidade e sensibilidade –
que deve conduzir a escolha de sua “metodologia” de observação/experimentação. No caso
em tela, entendo, a realidade da pesquisa é autoexplicativa nos “porquês” de uma mudança
analítica no curso dos trabalhos. E é exatamente esta a função da presente parte da pesquisa:
mostrar de antemão seus fundamentos, contradições, confusões, fusões e distanciamentos.
105
Apresentar, ao mesmo tempo, algumas matrizes acadêmicas em torno da questão num plano
de abstração mais nítido (sic) e os (des)caminhos adotados no curso do trabalho. Isso, além de
previamente apresentar conceitos que não precisam ser retomados ao longo do texto,
aproxima o leitor da análise empenhada.
As duas perspectivas convergem na necessidade de uma base empírica e que se dá
com o foco em “objetos quentes”, em movimento, objetos que estão em controvérsias. De um
lado as compreensões sobre conflitos na especificidade das disputas territoriais e sobre
recursos ditos naturais, que antagonizam “sujeitos de interesses” num “campo de lutas”; do
outro, o que cinde à própria visão recortada com base nas estruturas e nos sujeitos para uma
percepção que privilegia as multiplicidades e agenciamentos que se extraem da realidade
vivida. Sem sujeitos e sem objetos em planos de distinção, sem estrutura e sem mecanismos
em planos de determinação da realidade. Por uma vertente, a realidade é explicada dentro de
um quadro, um pano-de-fundo, um papel-parede a priori. Na outra vertente nada se explica
apenas se descreve e a descrição deve se explicar por si. Como diz o poema de Machado43:
“caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”.
1.1 Estruturalismo-construtivista
Esta primeira matriz tem como objetivo subsidiar o debate empenhado no próximo
capítulo. Perpassando questões generalizadas sobre o que se compreende como “questão
ambiental”, passando-se à sua integralização nos contextos histórico-culturais, a abordagem
seguirá por uma breve análise de concepções que situam a problemática do meio ambiente
dentro das disputas sobre os recursos naturais territorializados. Trata-se também, no campo da
ecologia dos saberes, de lidar com ferramentas epistemológicas, a um só tempo colonizatórias
e reterritorializantes. Neste sentido a dimensão universalizável da questão ambiental passa a
ser rechaçada, percebendo esta enquanto “causas parcelares”, situadas no espaço e no tempo
de realidades contingentes, que podem atingir maior ou menor potencial de “universalização”,
conforme são inseridas nas esferas políticas em sentido amplo. Nesse víeis, que rejeita
parcialmente o reducionismo objetivista, cria-se um “campo” próprio para os conflitos
ambientais, propondo uma análise sustentada em um “estruturalismo-construtivista” que aqui
43
Tomado esse pequeno recorte na citação de Vandenbergue. VANDENBERGUE, Frédéric. Construção e
crítica na nova sociologia francesa. Trad. Ana Liési Thurler. Brasília: Sociedade e Estado. Vol. 21. Nº 2.
Maio/Agosto. 2005
106
usos sociais. Quanto mais nítida é essa estrutura que se salienta no plano consciente, mais
oculta é a estrutura profunda que dá razão a ela. A diferença entre culturas é explicitada nos
modelos conscientes que criam uma distância que obstaculiza uma identificação imediata
entre os membros pertencentes de cada qual (linguagem, valores morais, hábitos diferentes, p.
ex.). A garantia da objetividade na etnologia se dá na própria distância entre o observador e o
observado que não se identificam pelas suas divergências culturais. Ao mesmo tempo a
distância não representa uma estranheza completa, que inviabiliza qualquer interlocução, mas
um terreno de comunicação, de reciprocidade, uma intersecção de duas subjetividades, um
lugar comum na própria diferença, o que faz recusar a antinomia entre sujeito e objeto, são
dois sujeitos. De um lado há um conjunto de manifestações empiricamente percebidas, que
são as relações sociais visíveis, o fato social que é apreendido de maneira totalizante no
movimento único das suas propriedades (dentro dos elementos elegidos enquanto
significantes); do outro lado a experiência subjetiva e a razão imaterial/intangível que é
estabelecida teoricamente, revelando as estruturas sociais invisíveis45. Dois mundos apartados
com tráfegos distintos, o da natureza e o da cultura que, não obstante a razão lógica
pertencente a cada um dos membros da segunda, a operacionalidade da mesma é
condicionada pela estrutura.
A rigidez do estruturalismo de Lévi-Strauss, que determina a realidade independente
da consciência e da vontade dos agentes, anulando-os, é transformado na proposta de
Bourdieu. O sujeito banido pela estrutura rígida, continua inserido na estrutura e por ela
determinado, mas também é força estruturante, a constrói, nessas relações flexibilizando-a
enquanto dinâmica, enquanto cambiável46. As estruturas sociais são interiorizadas no
indivíduo, no contexto de um “campo social”, dentro de sua história e de suas idiossincrasias.
Grosso modo, a cultura moral (estrutura normativa e orientadora da conduta) cotidiana, na
dinâmica de sua absorção e aprendizagem do indivíduo, operando inconscientemente seu
esquema de ação, percepção e reflexão. A “hibridização” dessa “estrutura social” com o
“indivíduo” é designada habitus.
O habitus que conduz a maneira de perceber, valorizar, julgar, interpretar e agir, é o
que entremeia sociedade e indivíduo, o que se interioriza da estrutura social e se exterioriza na
ação individual dentro do grupo. Retira a liberdade do sujeito, produto de uma “estrutura
45
LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia. In. Os Pensadores: Lévi-Strauss. A noção de
estrutura em etnologia; Raça e História; Totemismo Hoje. Trad. E. P. Graeff, I. Canelas e M. B. Corrie. São
Paulo: Abril Cultural. 1980.
46
THIRY-CHERQUES, Hermano R. Bourdieu: a teoria na prática. In RAP. Rio de Janeiro 40(1):27-55,
Jan./Fev. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n1/v40n1a03.pdf. Acesso em: 02/11/2012
108
47
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989. p. 12
109
dominam o domínio do Estado, constituindo seu ponto de vista no ponto de vista universal
pelo Estado.”48 Nesse sentido, legitimam e conformam a hierarquia do campo que opera
como uma estrutura que constrange os agentes estruturados em posições, mantendo uma
estabilidade temporal (campo de forças), mas que também é palco da ação desses agentes para
conquistar posições/postos (campo de lutas), na medida que se adquire ou se perde o capital
exigido em cada campo.
O esquema que leva à análise empírica é sistêmico. Deriva do
princípio de que a dinâmica social se dá no interior de um /campo/,
um segmento do social, cujos / agentes/, indivíduos e grupos têm
/disposições/ específicas, a que ele denomina / habitus/. O campo é
delimitado pelos valores ou formas de /capital/ que lhe dão
sustentação. A dinâmica social no interior de cada campo é regida
pelas lutas em que os agentes procuram manter ou alterar as relações
de força e a distribuição das formas de capital específico. Nessas lutas
são levadas a efeito /estratégias/ não- conscientes, que se fundam no
/habitus/ individual e dos grupos em conflito. Os determinantes das
condutas individual e coletiva são as /posições/ particulares de todo
/agente/ na estrutura de relações. De forma que, em cada campo, o
/habitus/, socialmente constituído por embates entre indivíduos e
grupos, determina as posições e o conjunto de posições determina o
/habitus/.49
Como os campos são de certa maneira arbitrados pela análise (uma estratégia
epistemológica e não necessariamente uma existência real), são segmentações ou reduções da
realidade social. Na realidade complexa é inegável que eles estão em constante interação e
interpenetração. Como a percepção é sistêmica (tem um in put e um out put), o campo se
auto-referencia e as penetrações inter-sobre-campos serão refratadas pela lógica interna de
cada um. As penetrações são sempre possíveis pelo fato dos campos possuírem homologia
estrutural, mas absorvem o “externo” traduzido em suas regras internas. A mediação dessas
influências externas se dá pela estrutura interna do campo que, por sua vez, não impedem
condicionamentos de um campo sobre outro, por contaminações mais profundas, ainda que
reproduzidas por meio de uma “expressão simbólica”50. Como é o caso da economia que
influencia a política, o direito, a educação, a ciência etc.
Essa perspectiva teórico-metodológica possibilita uma moldura (com base na teoria
das estruturas) a ser preenchida com dados empíricos do campo, do comportamento dos
48
“[…]la doxa est un point de vue particulier, le point de vue des dominants, qui se présente et s’impose comme
point de vue universel; le point de vue de ceux qui dominent en dominent l’Etat et qui ont contitué leur point de
vue en point de vue universel en faisant l’État”. BOURDIEU, P. Raisons pratiques: sur la thèorie de l’action.
Paris: Seuil, 1994 p. 129
49
THIRY-CHERQUES, Hermano R. Op cit. p. 31
50
id. Ibid. p. 41
110
agentes, das instituições etc. (que influenciam na estrutura dando-lhe o víeis construtivista),
compondo um quadro de análise sistemática do objeto (entre o objetivismo e subjetivismo).
Esse “modelo analítico”, que tem grande valia para as perspectivas críticas e atualiza
sobremaneira as heranças marxistas das mesmas, tem significativa recepção e influência na
sociologia da questão ambiental que foca os conflitos sobre recursos e territórios51,
empenhadas num primeiro momento desta pesquisa. Por esta lente, temos de um lado os
sujeitos, ainda quando adjetivados de “agentes” pela sua liberdade limitada e condicionada, e
do outro lado os objetos, que vão da própria sociedade objetiva fragmentada nos campos
como um “fato social” inspirado em Durkheim, ou das coisas em si (recursos naturais no
caso), reificadas na composição da realidade social e não representativas na constituição da
mesma, classicamente restrita e explicada pela própria sociedade (fenômenos sociais
explicados por fenômenos sociais).
Essa breve descrição teve como propósito introduzir as discussões sobre conflitos
socioambientais empenhadas no próximo capítulo, conforme mencionado, que influenciaram
o primeiro momento da pesquisa tanto na identificação dos agentes sociais, quanto na
compreensão da distribuição do poder sobre aqueles territórios e seus recursos.
O que foi vivenciado no campo da pesquisa, os dados que foram sendo obtidos, a
realidade que foi se revelando em sua complexidade, reivindicou uma postura que levasse em
consideração outros muitos elementos que a configuram, não os hierarquizando dentro da
constituição da mesma. Houve um abandono parcial da estrutura – não na negativa de sua
existência – mas na identificação de que sob esta perspectiva se recobraria um recorte que, de
um lado, conduziria a um enquadramento dos elementos de análise que sempre a reafirmasse,
e de outro, daria voz somente àqueles sobredeterminados pela própria estrutura (em posições
inferiores como os tradicionais p. ex.) e subavaliaria a posição de muitos outros “actantes”
que compõem aquela realidade. Nesse contexto a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
na estruturação de um pensamento “rizomático” foi de grande inspiração.
51
Nesse sentido podemos apontar alguns autores como: Acselrad, H. “As práticas espaciais e o campo dos
conflitos ambientais”, In: Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich
Böll, pp. 13-35.; Carneiro, E. J. “Política ambiental e a ideologia do desenvolvimento sustentável”, in: ZHOURI
ET ALII (org.), A insustentável leveza da política ambiental, Belo Horizonte: Autêntica, pp. 27-47.; Zhouri, A.
& Laschefski, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: Um Novo Campo de Investigação. In: Zhouri, A.;
Laschefski, K. (org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010; entre
outros.
111
consistência), por sua vez “definem-se pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segunda a qual elas mudam de natureza ao se conectarem a outras”.
O quarto princípio é o da ruptura assignificante em que apresenta o rizoma enquanto
“linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado,
significado, atribuído etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais
ele foge sem parar”. Essa linha de fuga é uma ruptura, mas essa ruptura também é o rizoma,
ele foge fazendo outras ligações, sobre outras ligações, sobre outros rizomas, impedindo
dualismos e dicotomias, mesmo rudimentares como bem e mau.
O quinto e o sexto princípios tratam da cartografia e da decalcomania. “Um rizoma
não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo”, a estrutura profunda e o
eixo genético fazem decalques reprodutíveis ao infinito. O rizoma faz um mapa inteiramente
voltado para uma experimentação ancorada no real. O decalque remete à uma presumida
competência que traduz o mapa em imagem (transforma o rizoma em raízes ou radículas),
organizou, significou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos próprios de
significância e de subjetivação (reproduz a si mesmo enquanto crê reproduzir outra coisa – é
sempre o imitador que cria o seu modelo e o atrai). O mapa é aberto, é conectável em todas as
suas dimensões, demonstrável, reversível suscetível de receber modificações constantemente.
O decalque seria como uma fotografia, nas palavras dos autores, um rádio que começaria a
eleger e isolar o que ele tem a intensão de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, de
colorantes ou outros procedimentos de coação52.
Essa perspectiva compreende a realidade como um conjunto de forças que se
encontram e se afetam/transformam, forças em constante afecção, sem início nem fim, em
múltiplas direções, sempre um processo. O encontro das forças produzem transformações,
forças de diferentes signos se encontrando, uma afetando a outra e assim reciprocamente e
sequencialmente em encontros que causam um processo e que se designam como “síntese
disjuntiva”, o que dá existência as coisas. O social é uma sequência de sínteses disjuntivas.
A realidade não é inteligível por um plano de significação, mesmo onde ela se
externaliza53, pois sempre que assim feito, implica em “criar” uma ordem, uma autoridade,
52
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo. Editora 34,
2011. pp. 22-48
53
As forças em afecção – intensio – geram transformações que se tornam visíveis – extensio – , externas (como
um encontro de placas tectónicas geram um terremoto ou o vento sobre a agua gera uma onda) e assim possíveis
de serem apreendidas, configurando parte também da realidade, que por sua vez será tomada, explicada,
significada, quantificada, decalcada, vindo a compor toda uma inteligibilidade e hierarquia e, por fim, uma
ordem social. Levando em consideração essa “dupla-articulação – dupla-pinça – double-bind”, a realidade não
pode ser nem composta pelo significante, nem pelo significado, uma vez que o que se têm é o que está
“estratificado”. “Do mesmo modo que os signos só designam uma certa formalização da expressão num
113
uma hierarquia, um comando. A oposição entre formas de “perceber a realidade” são dadas
pelas metáforas botânicas “rizoma” e “arvore-raiz”: de um lado, faz alusão a um tipo de caule
que se espalha subterraneamente, como uma grande rede emergindo em certos pontos; do
outro, o tronco rígido que se erige e se ramifica sucessivamente, formando suas extremidades.
Ultrapassando sobremaneira a sugestão metafórica, as duas percepções coexistem e a
perspectiva do rizoma não se apresenta como uma oposição – mais uma vez binária – às
outras formas de pensamento, mas muda sobremaneira o ângulo de visão sobre a realidade,
dando-lhe outro movimento e pluralidade. A multiplicidade inerente ao rizoma, não é a
simples identificação da complexidade caótica e aleatória a qual é preciso ordenar, ou da
identificação da ambivalência ou sobredeterminação dos fenômenos, ou ainda de uma
realidade natural múltipla vista de cima por uma realidade espiritual una. “É preciso fazer o
múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões que se dispõe, sempre n - 1”54. Para
fazer o múltiplo é necessário estar subtraído dele (excluir o Uno), o que equivale a pensar a
realidade (cartografá-la) enquanto encontros e agenciamentos múltiplos, heterogêneos, de
diversas ordens, experimentados, não hierarquizados e sem dicotomizá-la, sem corpo nem
alma separados.
Ao mesmo tempo em que contrapõe o pensamento centralizador e hierarquizador da
árvore-raiz, apreendendo outra “visão de mundo”, o rizoma – que conecta um ponto qualquer
a outro ponto qualquer, que são traços de naturezas muito variadas, que são linhas (o ponto
em movimento é uma linha) – pode apresentar “nós de arborescência”, formar “bulbos”,
hierarquias, despotismos, microfascismos; bem como a raiz pode criar rizomas, “empuxos
rizomáticos”, linhas de fuga, desterritorializações. Há tangenciamentos entre eles, há
transposições, se transpassam. Essa perspectiva filosófica não pode ser tratada como uma
simples oposição de “modelos”. Enquanto a árvore-raiz seria um modelo que produz
“decalques” em realidades estruturadas/recortadas/objetivadas/significadas/subjetivadas, o
rizoma é um processo que esboça mapas com linhas que ligam coisas diversas em
geografias/platôs/planos de consistência.
A ordem epistemológica do Estado, da Ciência, do Ocidente está estruturada no
modelo árvore-raiz, mas essa ordem pode ser pensada como apenas um plano de existência
determinado grupo de estratos, a própria significância só designa um certo regime dentre outros nessa
formalização particular”. DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São
Paulo. Editora 34. 2011 p. 108
54
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo. Editora 34. 2011
p. 23
114
que faz a leitura dos pontos em que o rizoma se exterioriza55, local onde este se torna visível e
então é cristalizado/sobrecodificado por este modelo, que lhe impõe uma organização e
produz uma ordem. Por sua vez qualquer dimensão da sociedade faz rizoma, ou seja, não para
de se conectar à “cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às
artes, às ciências, às lutas sociais”, é uma manifestação da vida, da matéria, da energia, da
cultura... Se desterritorializa e se reterritorializa em um constante devir. Há necessariamente
uma dimensão “molar” (externa, dura, macro) e uma molecular (interna, flexível, micro) em
dupla articulação na sociedade56. “O plano de consistência é a abolição de qualquer metáfora;
tudo o que consiste é Real. São elétrons em pessoa, buracos negros verdadeiros, organitos em
realidade, sequência de signos autêntica”57. Substitui unidades por dimensões, por “direções
movediças”, por “um meio pelo qual ele cresce e transborda”, sem começo nem fim. Um
rizoma é substancialmente distinto58 de um “eixo genético” ou de uma “estrutura profunda”.
Um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual
se organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes,
como uma sequência de base decomponível em constituintes
imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa
outra dimensão, transformacional e subjetiva59.
Esse deslocamento epistemológico não apenas possibilita sua leitura nas muitas
ciências, como obriga ser lido por múltiplas ciências, fundindo-as na inteligibilidade que
busca dos encontros, conexões, agenciamentos e contextos que configuram a (sua percepção
de) realidade. Isso permite anular a grande divisão entre sociedade e natureza, posto que a
sociedade passa a ser explicada pela multiplicidade de “encontros” que a constituem, não
mais por si mesma, o que ganha peculiar aplicabilidade no método desenvolvido por Bruno
Latour60, Michel Callon61 e John Law62, tratado no último capítulo desta segunda parte. Esse
55
Extensio e intensio/ molar e molecular são como duas faces da mesma moeda, o molar é a
representação/exteriorização do molecular conglomerado. A sociedade é molar e molecular ao mesmo tempo,
uma face representável pelo nosso aparato cognitivo, exterior (uma instituição p. ex.), e outra interior, molecular,
intensiva e subterrânea, sendo a síntese de um conjunto de forças de diferentes signos (não-visível).
56
Importante ressaltar que a dupla molar e molecular não se trata de uma dicotomia, mas de uma existência que
se articula duplamente, se coproduzem, se contém, se co-transformam. Suponhamos que o rizoma tenha fluxos e
florescimentos, partes flexíveis (forças - intensio) e partes rígidas (afecções - extensio), partes que estão em
movimento e partes que se cristalizam, a primeira corresponderia à molecular e a segunda à molar. A ideia de
molar e molecular também não podem ser consideradas apenas uma mudança de perspectiva micro e macro, de
escala ou dimensão, dinâmica e estática, mas também da natureza do sistema de referências considerado.
57
Id. Ibid. p. 110
58
“O sistema dos estratos, portanto, nada tinha a ver com significante-significado, nem com infraestrutura-
superestrutura, nem com matéria-espírito. Tais oposições eram maneiras de reduzir a um todos os estratos, ou
então de fechar o sistema sobre si, isolando-o do plano de consistência como desestratificação.” Id. Ibid. p.112
59
Id. Ibid. p. 29
60
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005.
115
objetivos, nem a mesma forma de lutar das classes. Contudo, dentro delas são “talhadas as
classes” que perfazem uma noção molar, cristalizada dentro das massas (organizada,
dicotomizada). Por sua vez dentro das classes as massas vão constantemente vazar, encontrar
suas linhas de fuga, desterritorializar-se em massas novamente. Podemos avançar um pouco
mais dizendo que dentro da classe os interesses serão percebidos enquanto homogêneos,
“comuns”, podendo ser organizados e pautados, nesse sentido são molares (duros). Em
oposição, dentro das próprias classes, percebido na microfísica, indivíduos vão ter interesses
difusos, variados, divergentes, que, mais tempo/menos tempo, formarão uma forma de
“vazamento” da ordem da classe, compondo “massas” novamente, tornando-se moleculares
(moles). Isso é irrefreável, inelutável e incontrolável ad eternum dentro de qualquer ordem.
Uma ordem molar será tanto mais forte quanto maior for sua correspondência na
“molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos elementares. [...] uma
grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos
medos [...]”64. A questão é que, por mais que o segmento molar (macropolítico,
macroeconômico, macropoder etc.) esteja organizado para e adaptado às linhas moleculares
ou “fluxos de quanta”65 (dentro da micropolítica, microeconomia, micropoder), não se detém
um controle sobre estes, sempre vão haver fendas, trincas, vazamentos, linhas de fuga em que
os fluxos vão gerar suas modificações moleculares no que é molar (e depois se cristalizar
novamente em outra molaridade, sempre em movimento). Nesse sentido a afirmativa marxista
de que uma sociedade se define por suas contradições é equivocada, parte-se somente da
grande escala (do pensamento biunívoco arborescente da visão que só apreende o que é
molar). As sociedades se definem mais pelas suas linhas de fuga, pelas desterritorializações,
pelas suas fissuras, pelo seus fluxos de quanta.
Os “centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência,
muito mais do que por sua zona de potência”66. Cada segmento molar tem o seu centro de
poder e este tem neste “segmento duro” sua zona de potência; mas todo centro de poder tem
também sua difusão num tecido microfísico (zona indiscernível), que o segmento duro tenta
moldar através de agenciamentos que vão adaptar as variações de massa e fluxo através de
traduções ou conversões em função do segmento dominante e dos segmentos dominados (p.
ex. as classes). Entretanto, há uma terceira zona, a de impotência, que está relacionada com os
fluxos de quanta, onde não é possível controlar nem determinar, no máximo converter
64
Id. Ibid. p. 102
65
Em alusão aos “movimentos quânticos” da mecânica quântica utilizada tanto na física quanto na química.
66
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo. Editora 34.
2012. p. 105.
117
(sempre parcialmente dentro da segunda zona). Como a microtextura (segunda zona) oscila
entre a primeira e a terceira zonas – entre a ordem e o que a desconstrói – a impotência é que
traduz a potência do centro de poder, sua capacidade de traduzir os fluxos moleculares em sua
ordem, fazê-la ser desejada. No exemplo de classes podemos falar de medo, segurança,
estabilidade, o que seduz e assim agrega, faz aderir...
É ela [capacidade de se adaptar aos fluxos moleculares da segunda
zona] – e não o masoquismo – que explica que um oprimido possa
sempre ocupar um lugar ativo num sistema de opressão: os operários
dos países ricos participando ativamente da exploração do terceiro
mundo, do armamento das ditaduras, da poluição da atmosfera.67
1.3 Multiterritorialidade
epistemológica etc. e todas elas a uma geografia. É inerente aos agenciamentos uma
territorialidade, eles descontroem territórios e os recriam num processo constante de múltipla
agregação que está sempre produzindo, sempre criando. Este processo é designado enquanto
“processo maquínico” ou simplesmente máquina, exatamente por agenciar diversos
elementos, funcionar na soma de suas forças e compor/construir/criar realidades (o que existe
é uma mecanosfera).
O agenciamento possui dois eixos em dupla articulação que o traduz enquanto um
processo de desterritorialização (linhas de fuga, momentos moleculares, forças e funções em
afecção) e de territorialização (componentes discursivos, momentos molares, sistemas
semióticos, significantes-significação) simultaneamente. Percebe-se que o sentido de território
é muito ampliado, indo do psicológico, social, animal etc., sempre num plano de existência
real, do que de fato se conecta, existe e se transforma. Obviamente nem tudo pode ser
apreendido por qualquer análise que seja, mas composto num mapa que traça os
agenciamentos identificados, sempre podendo ser refeito, ampliado, corrigido etc. Essa
percepção explicita uma visão “geográfica” desta filosofia, apreendida e aplicada de maneira
muito própria por Rogério Haesbaert, em sua “teoria da multerritorialidade”. Essa concepção
de território e territorialidade também foi influente na análise empenhada nesta pesquisa,
pelos territórios que percorre. “Muito mais do que uma coisa ou objeto, o território é um ato,
uma ação, uma real-ação, um movimento (de territorialização e desterritorialização), um
ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle.69”
Haesbaert parte de uma crítica às formas mais correntes do uso do termo
“desterritorialização”, apontando que estas perspectivas repercutem num sentido de promover
e legitimar a ótica parcial do modelo hegemônico neoliberalista, que prega o fim do Estado e
das fronteiras para a livre atuação das forças de mercado:
Assim, o que “desterritorializa”, de fato, na maioria das vezes, é
justamente esse afastamento ou fragilização do Estado e a
consequente onipotência de uma economia “flexível”, “fictícia”,
especulativa e/ou “deslocalizada”. Aí não são os grandes empresários
que estão “desterritorializados” – ao contrário, são eles que tem a
liberdade de escolher a (multi)territorialidade que mais lhes convém,
mais flexível e mutante, é verdade, mas justamente por isso ainda
mais prodigiosa70.
Perpassando de forma adensada diferentes perspectivas sobre territorialidade e
concepções sobre território, Haesbaert se empenha numa análise sobre as teorias da
69
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 127
70
Id. Ibid. p. 367
119
71
SENNETT, Richard. A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad.
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999
72
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
73
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 149
120
outro lado, o ausente, o sem-lugar, o sem acesso. Pode-se falar do surgimento de um espaço
imaterial, virtual ao mesmo tempo em que se pode falar de um uso ainda mais acirrado e
disciplinado do espaço e dos recursos materiais. A tecnologia que encurta as distâncias e
redefine a noção de tempo, tudo é instantâneo e imediato, decisões tomadas de longe, de fora,
mas com efeitos locais reais; e informações sincronicamente compartilhadas por todo o globo,
“aniquilando o espaço pelo tempo”. O território é instável e fluído, amanhã pode mudar, o
capital segue para onde for mais atrativo, para as melhores oportunidades, não há fronteiras,
pelo menos não muito rígidas. De um lado o local que perde sua identidade frente ao global
pelos mecanismos de “desencaixe”, com um “alongamento” espaço-temporal
(sobredeterminação); de outro lado o global que se encolhe, fica comprimido até reproduzir-
se no nível local, com a “compressão” do espaço-tempo. Os territórios se imbricam e se
justapõem, ora fronteiras são flexibilizadas ora são enrijecidas e as identidades culturais,
sempre atreladas a um território, se chocam, hibridizam-se e transformam-se.
Esse contexto fomenta os discursos sobre desterritorialização, partindo de diferentes
vieses, mas na grande maioria atrelados a uma visão linear e inevitável de um mundo “sem
fronteiras” ou sem territórios, com base em dicotomias como espaço-tempo, sociedade-
natureza, local-global, sujeito universal, cultura global etc. O deslocamento perceptivo de
Haesbaert se dá com a compreensão de que as mudanças compõem um “processo” que resulta
em novas perspectivas territoriais e não na abolição dos territórios. Para cada
desterritorialização, há uma reterritorialização, ora suplantando espaços e criando outros
novos, ora os hibridizando, mas dando outro plano de extensão e de controle. É um processo
sincrético, múltiplo, multiterritorial. Por uma perspectiva ideal-típica weberiana o autor
sintetiza três modalidades de organização espaço-territorial:
[...] os território-zona, mais tradicionais, forjados no domínio da
lógica zonal, com áreas e limites (“fronteiras”) relativamente bem
demarcados e com grupos mais “enraizados”, onde a organização em
rede adquire papel mais secundário; os territórios-rede, configurados
sobretudo na topologia ou lógica das redes, ou seja, são espacialmente
descontínuos, dinâmicos (com diversos graus de mobilidade) e mais
suscetíveis a sobreposições; e aquilo que denominamos
“aglomerados”, mais indefinidos, muitas vezes mesclas confusas de
territórios-zona e territórios-rede, onde fica muito difícil identificar
uma lógica coerente e/ou uma cartografia espacialmente bem
definida.74
74
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 306
121
Entretanto, não quer dizer que na perspectiva do autor não se adote axiomas, ou
pressupostos, ou mesmo crie polarizações. As mesmas estão presentes em vários momentos,
quase sempre inevitáveis, mas aportadas como sempre relacionais e suscetíveis de
reavaliações. Na perspectiva de Haesbert a “estrutura” se mantém como pano-de-fundo, nas
construções do poder e nas relações simbólicas principalmente, bem como percebe-se um
significativo empenho do autor em salientar as “especificidades humanas” de territorialidade,
para manter o humano em uma posição diferenciada, dicotomizada. Nesta feita, a filosofia
Deleuze-Guatttariana é parcialmente adotada, o que é afirmado pelo próprio autor.
75
Id. Ibid. p. 369
122
atingiria de forma mais ou menos homogênea toda a humanidade. Tratadas por um matiz
essencialmente economicista a questão tende a ser compreendida em sua resolução ou
mitigação por processos de conscientização, proteção de espaços territoriais e de
desenvolvimento de tecnologias que possibilitariam contornar a situação agônica que
enclausura a sociedade como um todo.
Alier78 aponta três momentos do “ambientalismo” como ramificações de um tronco
único: “o culto ao silvestre”, o “evangelho da ecoeficiência” e o “ecologismo dos pobres”.
Apesar de guardarem vários pontos em comum, sobretudo por se apresentarem contrários ao
modelo de produção da sociedade capitalista, cada qual tem seu viés que o distingue
nitidamente: o primeiro tem como característica fundamental a segregação de espaços
territoriais para a conservação e preservação de espécies ameaçadas de extinção; o segundo
compreende a saída para a crise a partir de investimento em tecnologias verdes, adaptando o
sistema atual aos novos problemas; por fim, o terceiro reivindica justiça na distribuição dos
recursos e dos ônus da degradação, configurando movimentos por justiça ambiental e dando
um matiz cultural para a questão. As duas primeiras linhas, que “eventualmente dormem
juntas”79, tratam a questão ambiental de forma mais fragmentária, técnica e, não raras as
vezes, associada à uma forma de manutenção/adaptação do modelo hegemônico.
Apesar da importância da compreensão, reduzir as questões ambientais
exclusivamente à problemática das quantidades de matéria e energia, é percebido como algo
impossibilita apreendê-las em sua real complexidade na dinâmica das sociedades. Dentro
desse contexto algumas vertentes teóricas buscam compreender essas questões de maneira
mais integrativa e conjuntiva, percebendo as inter-relações entre sociedade e meio ambiente,
ou seja, entre os elementos que constituem o meio e seus sentidos culturais e históricos,
apontando para a interconexão explícita dos processos sociais e ecológicos. Nesse sentido, as
formas de uso, apropriação e ocupação do território e dos seus elementos constitutivos pelos
diferentes segmentos e formas sociais é dotada de distintos fins, sentidos e significados.
Os modelos e práticas sociais se ligam diretamente às representações simbólicas que
atribuem diferentes significados aos elementos ambientais e à distribuição de poder sobre os
mesmos, dentro de um contexto histórico-social. A partir dessa relação Acselrad expõe que
disputas figuram: no campo dos significados, legitimando ou deslegitimando práticas sócio-
78
ALIER, Juan Martínes. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagem de valoração. São Paulo:
Editora Contexto, 2005.
79
Nessa perspectiva o “culto ao silvestre” e o “credo da ecoeficiencia” eventualmente dormem juntos. Assim
vemos a associação entre a Shell e a WWF para o plantio de eucaliptos ao redor do mundo com base no
argumento de que isso diminuirá a pressão sobre os bosques naturais e, presumivelmente, promoverá também o
aumento na absorção do carbono. Id. Ibid. p. 33
124
culturais de apropriação da base material; nas relações atreladas aos recursos e sua
acessibilidade e deterioração (questões de justiça ambiental); e nas competições sobre a
distribuição de poder sobre esses elementos.80
Há uma dimensão política e conflitiva intrinsecamente ligada às questões ambientais
que não se resume a uma convergência consensual necessária da ideia de crise e da
construção de uma consciência universal da mesma.
Nesse viés – sensível às diferentes práticas, significados e modelos culturais de
apropriação do ambiente – percebe-se uma realidade permeada por conflitos socioambientais.
Os impactos gerados por determinados usos, o poder exercido sobre determinado recurso, o
status designado para determinada área, os riscos de uma dada atividade, entre outras
situações que se reproduzem diuturnamente nas sociedades, muitas vezes, perfazem o que se
convencionou designar como “conflitos ambientais” ou “socioambientais”. Vale dizer, as
disputas entre os grupos sociais derivadas dos distintos tipos de relação que eles mantém com
seu meio natural, engloba três dimensões: o mundo biofísico, o mundo humano-social e o
relacionamento dinâmico e interdependente de ambos81, o ambiental e o social se conectam
(ainda que dentro de um modelo epistemológico que os dicotomiza).
O processo de disputa sobre os elementos ambientais, pelo seu controle (distribuição
de poder e designação de sentidos), acesso (distribuição social dos recursos) e exploração
(formas de uso, apropriação e ocupação), é um ponto marcante e indissociável da
compreensão das sociedades contemporâneas.
Diante dessa realidade crescem mundialmente as discussões sobre instituições
regulatórias e políticas, assim como de tecnologias para resolução de conflitos ambientais82. E
nesse sentido uma questão se perfaz: o que significa resolver um conflito? Seria cessá-lo ou
mitigá-lo? Negociá-lo ou arbitrá-lo? A resolução de um conflito ambiental deve se pautar
exclusivamente numa discussão técnica, ou incluir a dimensão da justiça e da ética? O
conflito deve ser resolvido em si, ou deve-se confrontar e transformar o processo que lhe deu
origem?
As práticas sociais institucionalizadas que visam dirimir conflitos de qualquer
natureza – grosseiramente – tendem, inicialmente, a uma harmonização ou conciliação entre
80
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
81
LITTLE, Paul E. Os Conflitos Socioambientais: Um Campo de Estudo e de Ação Política. In: BURSZTYN,
Marcel (org.) A Difícil Sustentabilidade: Política Energética e Conflitos Ambientais. Brasília: Garamond
Universitária, 2000. p.p. 107 - 122
82
ACSELRAD, Henri, H., BEZERRA, G.N. “Inserção econômica internacional e “resolução negociada” de
conflitos ambientais na América Latina” apres. Seminário Nacional Desenvolvimento e Conflitos Ambientais,
Belo Horizonte, 2008. http://www.ufmg.br/conflitosambientais/ acesso em 28/02/2009 [disponível em pdf]
125
ambientais são bens de interesse comum, perspectiva essa que vem redimensionar o conceito
de propriedade privada com implicações significativas em sua fruição. Esta fica submetida à
explorabilidade limitada (certos bens ou espaços não são passíveis de utilização) e
condicionada (deve-se demonstrar que o uso não será nocivo para receber outorga do poder
público). A fruição passa a estar atrelada à função socioambiental da propriedade e as
questões ambientais passam a envolver (direta ou indiretamente) a sociedade como um todo –
caráter difuso.84
Apesar de gozar de um arcabouço teórico e legislativo amplo, que dialoga com outras
disciplinas inclusive não jurídicas, e de reformular vários conceitos jurídicos tradicionais, o
Direito Ambiental é uma disciplina relativamente marginalizada, que vem ganhando
importância gradual na atualidade. Seu conteúdo legislativo encontra grande descompasso
com a realidade, e o poder judiciário em si, é consideravelmente despreparado para lidar com
as questões ambientais que lhes são apresentadas85. A inaptidão técnica e a extrema
morosidade são apontados como fatores de esvaziamento do judiciário para dirimir as lides
ambientais. Estas, por sua vez, recairiam ainda mais para uma instrumentalização
contratualista e privada, flexibilizando o teor de indisponibilidade e de “bens de uso comum”
dos elementos ambientais.
Por sua vez, é importante salientar que o acesso à justiça é bastante ampliado no
Direito Ambiental. Instrumentos como a Ação Civil Pública (Lei 7347 de 24-07-85) e a Ação
Popular (Lei 4717 de 29-06-65), além de serem instrumentos processuais específicos de tutela
do interesse coletivo, ampliam o rol de legitimados ativos para a impetração da ação,
possibilitando-a às associações civis e aos cidadãos respectivamente. Não obstante tratar-se de
instrumentos de exercício profundo da cidadania, tanto a Ação Civil Pública quanto a Ação
Popular não são amplamente utilizados pela sociedade civil.
O Ministério Público, que utiliza amplamente a Ação Civil Pública, pode-se dizer,
desempenha um papel importante na resolução de conflitos ambientais. Este possui como
função precípua, além de fiscalizar a lei e promover a justiça, defender os direitos
massificados da sociedade (função preventiva e repressiva). Dispondo de uma série de
instrumentos de atuação, o Ministério Público pode figurar tanto como “demandista”, atuando
frente ao Poder Judiciário que se incumbe da resolução dos conflitos, através da Ação Civil
84
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In.
CANOTILHO, J. J. G.; MORATO LEITE, José R. (org.), Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2007.
85
NAVIA, J. M. B. Limiti e promesse del diritto ambientale in America Latina. In: Rivista Giuridica
dell´Ambiente. N. 3 vol.4. Milano: Giuffrè editore, 2003.
127
Pública, do Inquérito Civil e Criminal p. ex.; ou assumir um papel “resolutivo”, lançando mão
dos procedimentos administrativos e firmando Termos de Ajustamento de Conduta, e a partir
daí, resolvendo os embates86.
A resolução de conflitos através de Termos de Ajustamento de Condutas pelo
Ministério Público ou Termos de Compromisso (legitimados para alguns órgãos ambientais)
se dá mediante um compromisso firmado para “ajustar” a conduta do agente que está em
desacordo com a lei. Figurando como título executivo extrajudicial, esses instrumentos evitam
a burocracia do processo judicial, são mais flexíveis e negociados, podendo ser assistidos por
outras instituições (órgãos públicos, universidades, associações etc.) que lhes dão mais
legitimidade. Entretanto, apresentam inúmeras deficiências decorrentes do não cumprimento
dos acordos firmados, principalmente devido à ausência ou insuficiência de fiscalização.
O terceiro enfoque trata dos instrumentos administrativos de co-gestão política do
meio ambiente. Espaços onde se constroem e se decidem políticas socioambientais, planos de
desenvolvimento, normatizações, controle de atividades, qualificação de territórios etc. Há
cerca de quatro décadas, quando as políticas ambientais deixaram de ser tratadas
implicitamente em outros setores (constituindo um campo próprio), se inicia o processo de
construção desses instrumentos de gestão ambiental, que ao longo do tempo, foram ganhando
materialidade na realidade social brasileira.
Sob a influência da Conferência das Nações Unidades sobre Meio Ambiente Humano
de 1972, realizada na cidade de Estocolmo, o Governo Federal, na excepcionalidade do
Regime Militar e em meio a obras colossais e desastrosas, descontrolada exploração dos
recursos naturais, favorecimentos e expansão das fronteiras agrícolas, teve o início do que se
designa como “política ambiental explícita do governo”87. Precisamente no final de 1973 com
a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente - SEMA, instituída pelo Decreto n°
73.030, em 30 de outubro de 1973.
Contudo, já antes da criação da SEMA, começaram a se institucionalizar órgãos em
alguns estados do Brasil, que passaram a tratar o Meio Ambiente como um setor específico de
políticas públicas. Em junho de 1973 criou-se a Companhia de Tecnologia de Saneamento
Básico e de Controle da Poluição das Águas – CETESPE (Lei 118/73 SP). E, em outubro de
1973, foi criado na Bahia o primeiro conselho de meio ambiente do país, o Conselho Estadual
de Proteção Ambiental – CEPRAM (Lei 3163/73 BA).
86
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
87
ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio
da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
128
Segundo Lemos88, surge pela primeira vez um colegiado de Meio Ambiente com
poderes deliberativos no Estado do Rio de Janeiro. Em Minas Gerais, outra importante
inovação se deu com a criação da Comissão de Política Ambiental - COPAM (instituído em
29 de abril de 1977 que, a partir de 1988, passou a ser Conselho Estadual de Política
Ambiental, mantendo a sigla COPAM). Um órgão colegiado normativo e deliberativo que,
pela primeira vez, incluía a participação da sociedade civil de forma mais ampla, com
representantes de entidades ambientalistas, fomentando um maior controle social das políticas
públicas de meio ambiente do estado89.
Em 1981, com a edição da Política Nacional de Meio Ambiente, fica instituído o
Sistema nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), que se estabelece como uma rede
articulada de órgãos interativos que atuam nos três níveis da federação. Esse amplo modelo de
gestão – que incorpora os órgãos ambientais federais, estaduais e municipais – veio se
constituindo por tripartições em sua estrutura, com órgãos centrais (mais diretamente ligados
ao governo – chefe do executivo), órgãos executivos (executam as políticas, aplicam
penalidades, fiscalizam, transigem etc.) e órgãos decisórios (conselhos e comitês que
comportam múltiplos segmentos representativos). As representações, principalmente dos
órgãos colegiados, também vêm se organizando por mecanismos tripartites – Estado,
Mercado e Sociedade. Esse processo se deu acompanhando uma crescente mentalidade
democrática e participativa, consagrando a participação social nos processos decisórios e
configurando uma gestão descentralizada sobre os territórios.
Foi a partir dos modelos experimentados na Bahia, no Rio de Janeiro, em Santa
Catarina, em São Paulo e em Minas Gerais (posteriormente disseminados pelo país) e de seus
aperfeiçoamentos, que o Governo Federal se inspira para criar o Conselho Nacional de Meio
Ambiente (CONAMA) em 1981, comportando amplos segmentos representativos. Também
na década de 1980 aponta-se o grande momento do surgimento dos conselhos de meio
ambiente no âmbito municipal, concomitantemente ao surgimento de inúmeras associações
ambientalistas90.
88
LEMOS, Haroldo Mattos de. O sistema nacional de meio ambiente e o conselho nacional de meio ambiente no
Brasil: seu impacto na qualidade de vida. In: Diálogos de Política Social e Ambiental: Aprendendo com os
Conselhos Ambientais Brasileiros. Banco Interamericano de Desenvolvimento/Ministério do Meio Ambiente do
Brasil. Brasília: BID/MMA, 2002, 1ª edição. p.p. 31-82
89
RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. Indicadores Ambientais: Avaliando a Política de Meio Ambiente no
Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Semad, 2006.
90
ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade: Delimitação e análise de embates sociais
no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) –
PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
129
91
ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade: Delimitação e análise de embates sociais
no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) –
PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
92
BOLTANSKI, L. L'amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l'action. Paris:
Métailié, 1990.
131
93
HERCULANO, Selene C. Sociologia Ambiental: origens, enfoques metodológicos e objetos. In. Revista
Mundo e Vida: alternativas em estudos ambientais. n. 1. Niterói, 2000.
94
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
95
LITTLE, Paul E. Os Conflitos Socioambientais: Um Campo de Estudo e de Ação Política. In: BURSZTYN,
Marcel (org.) A Difícil Sustentabilidade: Política Energética e Conflitos Ambientais. Brasília: Garamond
Universitária, 2000. p.p. 107 - 122
132
naturais; segundo, conflitos em torno dos impactos sociais e ambientais gerados pela ação
humana; e terceiro, conflitos em torno dos usos dos conhecimentos ambientais. O tratamento
e entendimento dos conflitos devem considerar a pluralidade, o multiculturalismo e a
complexidade da sociedade atual.
No campo dos conflitos sociais, ganha substancial importância: a) a reflexão sobre os
atores sociais, a construção de suas identidades e solidariedades (constituição de movimentos
sociais); e b) o fenômeno da ação coletiva, referenciada por orientações e relações sociais.
Nesse sentido, conforme aponta Melucci96, deve-se entender o sujeito coletivo da ação não
como uma estrutura definida e homogênea (integrada em suas demandas) e nem reduzidos ao
“momento histórico”, mas de forma complexa, heterogênea em seus significados,
organizações e formas de ação. Essa perspectiva conduz à compreensão de um fenômeno de
ação coletiva, não de forma global ou como resposta a uma crise do sistema (patologia
social), mas como um objeto construído por uma análise que o decompõe segundo o sistema
de relações sociais ao qual a ação faz referência e às orientações que tal ação assume. É,
sobretudo, um conflito expresso na luta entre atores pelo controle de recursos essenciais de
interesse comum97. Essa percepção (sobre conflitos sociais em geral), remonta à necessidade
de uma análise empírica, onde a compreensão de um conflito ou formação de movimento
social, em sua real dimensão, só é possível partindo da análise de casos concretos.
Para a caracterização do “ambiental” como um campo específico de construção e
manifestação dos conflitos, Acselrad98 parte de um “estruturalismo construtivista” onde: a) as
posições no espaço social, em que os agentes sociais se distribuem segundo princípios de
diferenciação, conflitando pela posse das espécies de poder/capital específicos, formam os
“campos de forças relativas”; e b) as categorias vigentes de construção simbólica do mundo,
historicamente produzidas pela ação coletiva, são mutáveis; podem ser deslegitimadas pelas
lutas simbólicas (“desinventadas”), onde, nessa luta pela distribuição do poder, há uma
“valorização/desvalorização relativa dos diferentes tipos de capital”, portanto uma luta
classificatória e cognitiva. Desta forma, a designação sobre o que é ou não ambientalmente
benigno vai redistribuir o poder sobre os recursos territorializados. Isso se dá pela
legitimação/deslegitimação das práticas de apropriação dos recursos ou da localização em que
96
MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente - Movimentos sociais nas sociedades complexas. Trad. Maria do
Carmo Alves do Bomfim. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001
97
Id. Ibid.
98
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004.
133
esses se encontram, tornando a luta por recursos ambientais, simultaneamente, uma luta por
sentidos culturais e o meio ambiente uma construção variável no tempo e no espaço.
Nesse sentido, a emergência da questão ambiental tem no argumento ambiental (nas
justificações ecologizadas) o ponto de integração das distintas “ordens de justificação”. Ou
seja, a lógica dos discursos pertinentes à questão ambiental, ao contrário de uma causa
universal ecológica, trata de causas parcelares que podem ser universalizadas através de
valores compartilháveis que justificam os atos no plano do interesse comum. Dessa forma
uma gama variada de atores sociais integra o campo de forças da luta que visa classificar a
representação legítima da natureza e distribuir o poder sobre os recursos territorializados.
Assim, lhe dão diversos significados como, por exemplo, o de reservatório de recursos,
paisagem de consumo estético, reprodução de grupos socioculturais etc. Utilizando-se de
diferentes estratégias discursivas de legitimação que expõem, dentre uma diversidade de
vertentes, direitos de propriedade e direitos de uso, argumentações científicas sobre riscos,
vocação de determinadas áreas e seus usos etc. Dentro dessa disputa argumentativa e de
legitimidade, as representações dominantes podem sofrer inflexões no plano discursivo,
reconfigurando o poder relativo dos atores no campo das práticas.
Os conflitos ambientais têm origem, concebendo a sociedade como uma rede
espacialmente interativa de atividades que formam “acordos” de mútuos benefícios
(simbióticos), quando há o rompimento desses “acordos”. A atividade de um determinado
grupo compromete a manutenção das atividades de outro grupo, por meio de “impactos
indesejáveis” transmitidos por meios físicos (solo, água, ar ou sistemas vivos)
comprometendo a continuidade das formas sociais de apropriação, uso ou significação do
meio. O conflito é gerado a partir do momento que o grupo afetado denuncia a ruptura do
“acordo simbiótico”99, partindo da perspectiva de que a sociedade se constitui de uma forma
geral de relações de mútuos benefícios que podem ser rompidos gerando o benefício.
O quadro analítico proposto por Acserald aponta para uma remissão necessária dos
conflitos ambientais a quatro dimensões constitutivas: 1ª- A apropriação material dos recursos
do território: campo por excelência onde se desenrolam disputas sociais, econômicas e
políticas pela apropriação dos diferentes tipos de capital natural e também, pela mudança e
conservação da estrutura de distribuição de poder. Nessa vertente os agentes possuem
dotações diferenciadas de capital material e capacidade distinta de terem acesso a esses
99
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
134
capitais (acesso aos recursos vivos, água, terra fértil etc.). 2ª - Apropriação simbólica dos
recursos do território: a luta para impor as categorias simbólicas que legitimam ou não a
distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital. Aí se percebe embates entre
diferentes formas de apropriação do território pela afirmação de seus respectivos caracteres
como: “ambientalmente correto”, “sustentável”, “compatível com a vocação do meio”,
“produtivo”, “competitivo” etc. 3ª - A durabilidade da atividade no que se refere à
possibilidade de continuidade dos modos de apropriação material: a condição de existência da
base material que determinadas formas sociais dependem para sua subsistência e integridade
pode ser afetada por atividades que comprometem essa durabilidade. No plano argumentativo
esse pode ser um critério de legitimação/deslegitimação de uma determinada atividade, a ser
acionado no campo representativo do meio ambiente pelos sujeitos do conflito. 4ª - A
interatividade, onde “os conflitos ambientais opõem atores sociais que desenvolvem ou
propugnam distintas formas técnicas, sociais, culturais e simbólicas de apropriação dos
elementos materiais de um mesmo território ou de territórios conexos”. Há uma interação de
atividades em que uma transmite impactos indesejados para a outra, onde essa “interação” é
de difícil mensuração (incerteza cognitiva) e, portanto “suposta e sustentada na autoridade da
própria denúncia.” 100
Por uma perspectiva crítica das relações de poder sobre os recursos ambientais e seus
significados, da desigual distribuição dos custos socioambientais de certas práticas e sua
alocação territorial, que prejudica grupos cuja voz muitas vezes não redunda nas esferas de
decisão, impõe considerar a dimensão da (in)justiça ambiental. Uma definição esclarecedora
sobre o tema é apresentada por Herculano, Acselrad e Pádua101 (2004) como: “o mecanismo
pelo qual sociedades desiguais, destinam maior carga dos danos ambientais do
desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais descriminados, aos povos
étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”
(definição de injustiça ambiental).
Para o enfoque da pesquisa a desconsideração se dá também em outro nível, quando
espaços territoriais há muito habitados possuem recursos que interessam a grandes grupos
econômicos e os mesmos sobrepõem seus interesses, dominando o espaço com o aval do
poder público. E, ainda, a dominação se dá aliada a uma política ambiental segregacionista
que endossa a separação entre espaços humanos e naturais, colocando, na realidade em foco,
100
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri.(org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004
101
ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Fundação Ford. 2004.
135
muito mais uma estratégia política de controle e dominação do que de conservação ambiental
propriamente. A multiplicidade de formas de uso da área foco da pesquisa traduz uma
multiplicidade de territorialidades e uma complexa dinâmica de poder em que relações
estreitas entre poder econômico e Estado revelam práticas antagônicas que vão do
esvaziamento do poder estatal ao controle minucioso de práticas, da liberalização absoluta a
um compartilhamento íntimo do espaço físico.
A crítica vem dar voz aos dominados (no caso os subtraídos de seus recursos ou
territórios etc.) dando-lhes maior visibilidade e uma inserção possível de rearranjar as
estruturas, uma vez que identifica o “capital” de legitimação do campo em questão (o dos
conflitos ambientais), e denuncia a “injustiça” na distribuição do poder (do acesso aos marcos
decisórios e do discurso legitimador do desenvolvimento e da sustentabilidade). No caso da
pesquisa os quilombolas não tem acesso ao discurso técnico-científico do desenvolvimento
sustentável e nem condições de formalizar processos perante o órgão ambiental para legitimar
suas práticas. Por sua vez suas práticas são menos impactantes do que as da mineradora e
mais condizente do ponto de vista legal com as finalidades de uma das unidades de
conservação em questão, a FLONA. Evocando a questão da sustentabilidade e da legalidade e
inserindo-as nas esferas públicas, por agentes externos via de regra, poder-se-ia reconfigurar a
distribuição do poder ali, distribuí-lo melhor ou subverte-lo.
Por essa perspectiva – ou poderíamos dizer perspectivas, já que não foi apresentada
uma linha única, mas algumas linhas próximas – o “social” se conecta ao “natural” por uma
socialização do que se compreende como “ambiental”. Agora ele está alocado no polo
“cultura” e não mais exclusivamente nas questões relativas à matéria e energia, polo
“natureza”. Mantém-se a divisão, a dicotomia, muda-se o polo: o ambiental é socialmente
construído. Em outro ângulo, a análise remete às forças sociais estruturadas que fornecem o
poder hierarquizado do campo (pelo sistema econômico, capital, multinacionais, relações de
mercado, governo etc.). Esse “pano de fundo” dá o formato do quadro em que os elementos
obtidos em campo devem ser inseridos demonstrando as dimensões constitutivas do conflito
e, assumpta positione, denunciar as injustiças. O caráter normativo de orientação e a herança
marxista da crítica tornam-se forças vivas na análise. Por sua vez, nem tudo cabe na moldura
sem ultrapassar suas bordas e descaracterizar a imagem que se quer mostrar. O que fazer com
esses elementos sobressalentes? Desviar o olhar, aparar as arestas ou simplesmente ignorá-
los? Haverão sempre delitescências. Conforme mencionado, algumas questões levaram a uma
mudança de perspectiva metodológica no curso do campo.
136
3.1 Nem mais cultura e nem mais natureza: sobre a Antropologia Simétrica
Segregar, do latim segregare, aduz em sua etimologia o significado de apartar,
separar, colocar de lado. Com o seu radical grex/gregis, mais precisamente, apartar do
rebanho. Por uma conotação possível o termo exprime uma tática muito afim à visão de
mundo moderna, dentro de sua instrumentalização e apreensão do conhecimento e de suas
estratégias de desenvolvimento. O termo, assim como separar ou disjungir, guarda a
ambivalência de se remeter tanto ao que é posto para fora quanto ao que permanece dentro, ao
que se considera e inclui quanto ao que se desconsidera e exclui. Cria dicotomias. A simples
palavra apresenta-se como insigne ponto de partida na compreensão da crítica e do raciocínio
norteadores do estudo em tela.
Na clássica divisão de Descartes um res cogitans, ser que compartilha sua
racionalidade diretamente com o Cosmos, é capaz de apreender a operacionalidade e a
natureza dos demais seres, todos res extensa102. Descartes entendia que o conhecimento
estava mais próximo das vivências e experiências do que das obras edificadas pelos velhos
sábios ou instituições. Estabelecia uma base empírica forte em seu método, em que: 1. só
poderia ser aceito como verdadeiro aquilo que por suas evidências não poderia ser posto em
dúvida; 2. dividir/fragmentar para resolver o objeto em análise tanto quanto possível; 3.
organizar o conhecimento em gradações, dos objetos mais simples aos mais complexos,
supondo sempre relações de causa e efeito; e 4. estabelecer enumerações e divisões para não
omitir nada. Seu método, ainda hoje, influencia qualquer tipo de ciência, mesmo as que se
intitulam não-modernas. Entretanto, na sua concepção – consagrada na célebre frase cogito
ergo sum – a existência se dá independente da matéria, pois a alma se distingue por completo
do corpo. A razão (espelho da perfeição de Deus), distingue o humano, sensível, subjetivo,
dos demais seres, mecânicos, autômatos, objetivos103.
A inteligibilidade do mundo pela civilização ocidental moderna se consagrou por
instrumentos metodológicos que buscam fragmentar, separar, reduzir, simplificar e ordenar a
102
DESCARTES, R. As paixões da alma. In. Os Pensadores. Discurso do Método; Meditações; Objeções e
respostas; As paixões da alma; Cartas. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 214
- 294
103
DESCARTES, R. O método. In. Os Pensadores. Discurso do Método; Meditações; Objeções e respostas; As
paixões da alma; Cartas. Trad. J. Guinsburg e B. Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979. pp. 25 -71
137
104
MORIN, Edgar.
Ciência com Consciência: Edição revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre
e Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003
105
Latour aponta como marco da descrença nas promessas modernas, de emancipação humana e domínio da
natureza, o ano de 1989. De um lado o “fim” do socialismo com a queda do muro de Berlim: “Ao tentar acabar
com a exploração do homem pelo homem, o socialismo multiplicou-a indefinidamente. Estranha dialética esta
que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após ter ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em larga
escala. O recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome da qual a vanguarda do proletariado
reinava, volta a ser um povo; as elites com seus longos dentes, que pareciam ser desnecessárias, voltam com toda
força para retomar, nos bancos, nos comércios e nas fábricas, seu antigo trabalho de exploração.”; do outro lado,
as primeiras conferências sobre o estado global do planeta apontando o fim da possibilidade de conquista
ilimitada da natureza e a impossibilidade de crescimento eterno: “Ao tentar desviar a exploração do homem pelo
homem para uma exploração da natureza pelo homem, o capitalismo multiplicou indefinidamente as duas. O
recalcado retorna e retorna em dobro: as multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos milhões na
miséria; as naturezas que deveriam ser dominadas de forma absoluta, nos dominam de forma igualmente global,
ameaçando a todos. Estranha dialética esta que faz do escravo dominado o mestre e dono do homem e que
subitamente nos informa que inventamos os ecocídeos e ao mesmo tempo as fomes em larga escala”. LATOUR,
Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 13 - 14
106
Id, Ibid. p. 19. Vai utilizar o termo para trata a separação entre o mundo social e o mundo natural como algo
análogo à separação do executivo do judiciário, p. ex..
138
Estado, possibilitando aos homens regerem suas próprias leis, criarem seu “contrato social”.
Curiosamente, o Deus moderno suprimido pode ser evocado no caso de conflito entre a
sociedade e a natureza, como entidade transcendente, com duplo papel, ao mesmo tempo
impotente e juiz soberano. Ele está agora alocado no foro íntimo, na religião individual, sem
intervir nem na política e nem na ciência, mas garantindo a paz aos espíritos humanos.
Entretanto, a modernidade não se resume a alguns pensadores e suas filosofias, nem
tampouco aos vários outros pensadores, práticas e instituições que se somam no processo de
sua “construção”. Aqui não temos a pretensão de exaurir o que se pode entender por
modernidade e sua peculiar ordenação do mundo. Entretanto, nos é necessário entender um
pouco da “constituição” moderna, na percepção de Bruno Latour, para compreendermos uma
das bases metodológicas que mais influenciaram no trabalho. Conforme Latour, “nosso meio
de transporte é a noção de tradução ou rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais
histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne
destas histórias confusas”107.
Diferente do pensamento de Deuleze e Guattari, em que o labirinto rizomático se dá
sem a possibilidade de um fio de Ariadne, sem começo nem final, Latour, ao acompanhar as
redes sociotécnicas, possibilita arbitrar por recortes – p. ex., o surgimento de uma nova
tecnologia e suas conexões – para dizer, conforme suas palavras, da “própria matéria da
sociedade”, de uma “nova forma que se conecta ao mesmo tempo à natureza das coisas e ao
contexto social, sem contudo reduzir-se nem a uma coisa nem a outra”108. Agora os rizomas
ganham uma ontologia e atores.
Sua percepção de modernidade estende-se um pouco além das críticas convencionais.
Um pouco além de pensar a modernidade revolucionária em contraposição ao passado
arcaico, com uma temporalidade outra que suplanta o passado com a flecha do tempo e suas
mudanças irreversíveis; da emancipação humana à dominação da natureza, das promessas do
socialismo às do capitalismo, ao declínio estrondoso de ambos os sonhos, desembocando no
descrédito e desconstrutivismo pós-moderno. Latour apresenta uma compreensão atrelada à
uma antropologia da sociedade moderna, valendo-se como referência do método etnográfico,
em que se estuda “sem crises e sem crítica o tecido inteiriço das naturezas-culturas” em se
tratando de povos tradicionais (liga-se política, divindades, práticas alimentares,
conhecimentos, seres-vivos etc. na composição social). Por sua vez, a antropologia mantém-
se centrada na cultura, mantém a divisão, a assimetria, neste sentido precisa ser “repensada”.
107
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009. p. 9
108
Id. Ibid. p. 11
139
Para o autor, se é possível fazer uma antropologia da sociedade moderna, é preciso alterar a
definição de mundo moderno, assim como a prática da própria antropologia.
Um ponto de partida no seu pensamento desloca o olhar para compreender como o
tecido social moderno é formado por “seres híbridos”. Ou seja, a sociedade moderna mobiliza
e recruta uma diversidade de seres e forças de diversas ordens na sua constituição que não
podem ser pensadas nem mais como “naturais” e nem mais como “culturais” puramente. A
interação, dependência e utilização do que se compreende como natureza é ampliada
incomensuravelmente na sociedade moderna em que o trabalho de “purificação” – que vai
dividir o social do natural – não dá mais conta de fazê-lo, a partir da proliferação dos híbridos
(utilizar um objeto de alumínio nos liga às comunidades quilombolas, aos acionistas
multinacionais da mineradora, às decisões governamentais, às estratégias industriais, às
políticas de conservação, às copaibeiras, castanheiras, tartarugas-da-amazônia etc.) . O
paradoxo entendido por Latour é que, quanto mais os híbridos são proibidos na constituição
moderna, mais eles se inserem, mais eles estão presentes (e na realidade sempre estiveram
presentes compondo o social, por mais que negligenciados). Em sua hipótese a palavra
“moderno” designa dois conjuntos de práticas distintas cuja eficiência depende de mantê-las
separadas uma da outra:
O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, mistura entre
gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura.
O segundo cria por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente
distintas, a dos humanos de um lado, e a dos não humanos de outro.
[...] O primeiro, por exemplo, conectaria em uma cadeia contínua a
química da alta atmosfera, as estratégias científicas e industriais, as
preocupações dos chefes de Estado, as angústias dos ecologistas; o
segundo estabeleceria uma partição entre um mundo natural que
sempre esteve aqui, uma sociedade com interesses e questões
previsíveis e estáveis, e um discurso independente tanto da referência
quanto da sociedade.
109
[...] Quando se toma a decisão de estudar um laboratório, colocando entre parênteses ao mesmo tempo nossas
crenças sobre a ciência e nossas crenças sobre a sociedade, só estamos prolongando o programa formulado por
David Bloor (1976, trad. franc.1982) [...] a ideia original de Bloor era encorajar os historiadores e sociólogos que
140
ainda hesitavam de passar de uma história e uma sociologia dos cientistas para uma história e uma sociologia das
ciências. Bloor chamava de “programa fraco” a ideia de que era suficiente cercar a “dimensão cognitiva” das
ciências com uns poucos “fatores sociais” para ter o direito de ser chamado de historiador e sociólogo. O
“programa forte” exigia, ao contrário, que se investisse na fortaleza, no núcleo, no santo dos santos, no conteúdo
– pouco importa qual seja a metáfora. Segundo ele, nem um estudo merecia levar o nome de sociologia ou
história das ciências se não levasse em conta tanto o contexto social quanto o conteúdo científico, e isso também
nas ciências teóricas como a matemática (Bloor, 1976).
[...] A doutrina de Bloor é límpida mesmo quando exige basicamente o abandono de toda filosofia da ciência: ou
as explicações sociais, econômicas são usadas para explicar porque um cientista enganou-se, e então elas não
tem valor, ou devem ser empregadas simetricamente, de modo a explicar porque esse cientista errou e aquele
outro acertou. Fazer sociologia para compreender por que os franceses acreditam na astrologia, mas não pra
compreender por que eles acreditam na astronomia, isso é assimétrico. Fazer sociologia para entender o medo
que os franceses tem do átomo, mas não faze-lo para a descoberta do átomo pelos físicos nucleares, isso é
assimétrico (Latour, 1985). Ou bem é possível fazer uma antropologia do verdadeiro, assim como do falso, do
científico, como do pré-científico, do central, como do periférico, do presente, como do passado, ou então é
absolutamente inútil dedicar-se à antropologia, que nunca passaria de um meio perverso de desprezar os
vencidos, dando a impressão de respeitá-los, como o mui ilustre O pensamento selvagem, de Levi-Strauss
(1962). LATUOR, Bruno. WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: A produção dos fatos científicos. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1997. pp. 22, 23.
110
A expressão Caixa-preta é utilizada na cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se
revela complexo demais. Em seu lugar é desenhado uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber
nada, senão o que nela entra e o que dela sai. LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e
engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000. p. 14
141
cidadãos etc.). Um simples artigo científico emprega diversas “mãos” em sua construção, não
importa se possui um único autor, apresentará aliados que agregam e reafirmam os
argumentos, é uma construção coletiva (basta ver suas referências e os
conhecimentos/descobertas que se somam). Se possuirmos maior adesão ao nosso “suposto
enunciado”, mais ele for citado, utilizado, incorporado e fortalecido em diversos contextos,
quanto mais ele suportar os ataques de seus adversários, refutações e tentativas de torna-lo
mero “artefato”, mais se consolidará, mais se tornará fato.
O destino de um projeto depende das alianças que ele permite e dos
interesses que mobiliza, por isso que nenhum critério, nenhum
algoritmo pode proporcionar um sucesso a priori. Ao invés de
decisões racionais, devemos falar da agregação de interesses que são
ou não capazes de produzir. Inovação é a arte do interesse para um
número crescente de aliados que fazem você mais forte111
O fato representa uma “estabilidade” e não a natureza em si. “[...] devemos abster-nos
de invocar a realidade exterior ou o caráter operacional que a ciência produz para explicar a
estabilização dos fatos, porque esta estabilidade e esta operacionalidade são consequência, e
não a causa da atividade científica”112. Seguindo o nosso exemplo, por sua vez, de um lado,
devemos considerar a necessária expansão de nosso suposto enunciado para que ele não se
estagne no tempo e no espaço (se transforme apenas em sonho/fantasia de um cientista), do
outro devemos considerar aqui um controle necessário para que ele não se altere
substancialmente, se desconfigure na medida que vai formando suas conexões. Nesse sentido
duas ações concomitantes são imprescindíveis: alistar as outras pessoas/interesses e tornar
previsíveis suas ações (controlar o comportamento delas). Para atingir esse sucesso é
necessário operar um processo de tradução ou translação de interesses:
Além de seu significado linguístico de tradução (transposição de uma
língua para outra), também tem um significado geométrico
(transposição de um lugar para outro). Transladar interesses significa,
ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e
canalizar as pessoas para direções diferentes. [...] Os resultados de tais
translações são um movimento lento de um lugar para outro. A
principal vantagem dessa mobilização lenta é que problemas de
111
Akrich, M., Callon, M. et Latour, B., 1988, A quoi tient le succès des innovations? 1 : L’art de
l’intéressement, Gérer et comprendre, Annales des Mines, 11, pp.4-17. 1988. p. 17. Disponível em:
http://halshs.archives-‐ouvertes.fr/docs/00/08/17/41/PDF/SuccesInnovation.pdf, Acesso em 12/04/2013. No
original: Que le sort d'un projet dépende des alliances qu'il permet et des intérêts qu'il mobilise, explique
pourquoi aucun critère, aucun algorithme ne permettent d'assurer a priori le succès. Plutôt que de rationalité des
décisions, il faut parler de l'agrégation d'intérêts qu'elles sont ou non capables de produire. L'innovation c'est l'art
d'intéresser un nombre croissant d'alliés qui vous rendent de plus en plus fort.
112
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000 p. 203 - Foi devido a estabilização do “enunciado” que ele se tornou “fato” e não por ter se revelado fato
que se estabilizou.
142
Desta forma, uma grande expansão da rede exigirá sempre uma maior heterogeneidade
da mesma (empresas, políticos, militares, consumidores, matéria-prima, equipamentos,
máquinas etc.) e centros mais dominadores e mais formalistas para se “manterem coesos e
conservar seu império”. A tecnociência só funciona eficazmente fora do “laboratório”, i. e.,
suas previsões podem ser confirmadas, até aonde estende suas redes: “fatos e máquinas são
como trens, eletricidade, bytes ou legumes congelados: podem ir para qualquer lugar desde
que a trilha por eles percorrida não seja interrompida de modo algum”116, e não por inércia
própria, por dizer o que é o real/natureza.
Pensar a tecnociência é pensar um “empreendimento demiúrgico” que se estende na
medida que alicia interesses múltiplos e que ao mesmo tempo é rara e frágil, totalmente
dependente das conexões que estabelece, e que só pode ser percebida na presença do
que/quem se alia a ela (se não reproduziremos o mito de que ela representa a natureza). É a
mais forte Política que se vale da condição de apolítica/isenta/neutra, operando como
demiurgo trabalhador da construção do mundo material e intelectual. Se quisermos saber qual
o seu poder, basta-nos olhar para o lado e perceber os “objetos” que nos cercam e do que são
compostos (e que estão atrelados a nossa existência como tal); se quisermos saber sua
fragilidade, basta olhar para como tudo isso está concentrado em centros, ao mesmo tempo
diluído em pontos, em laços “vitais”. Daí vem o seu poder, ter as características de uma rede,
ter seus recursos concentrados em poucos locais (nos centros, laçadas e nós), interligados
como fios/malhas que realizam conexões que se estendem por toda parte.
É devido à burocracia que as redes avançam mais – pela administração, pelo
gerenciamento – estão em operações financeiras, subvenções, aparatos legais, envolvem
115
Id. Ibid. p. 399
116
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 407
144
Para chegar aos seus preceitos Latour acompanha os cientistas nas produções de seus
“fatos”, no interior do laboratório, no cotidiano, nas relações em que um chefe de pesquisa
estabelece com empresas, políticos e outros cientistas para conseguir recursos, equipamentos,
instrumentos, status etc. Foca na relação e no trabalho da equipe técnica e de pesquisadores de
segundo escalão que não aparecem com seus nomes nos feitos, foca nos instrumentos
utilizados, no material manipulado, nas bactérias no meio de cultura etc. Chega a conclusão
de que a ciência é uma construção sociológica. Ela não se caracteriza pela objetividade,
racionalidade ou pela veracidade de suas descobertas119 e sim pela rede que compõe. Mas,
conforme dito, a sociedade também está entre parênteses (em suspeição), assim como a ideia
de natureza.
117
id. Ibid. p. 417
118
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 417
119
É importante frisar que Latour não está questionando a eficiência e veracidade das descobertas científicas. O
autor diria: se quer testar se a gravidade de Newton é uma reles “construção social” se jogue do décimo quinto
andar de um prédio. A questão é que a ideia de “construção social” e mesmo do “social” é diferente do uso
habitual das ciências sociais. O fato de ser socialmente construído não quer dizer que é um artifício/subjetivo em
contraposição ao que é natural/objetivo. Como Thatcher, Latour vai dizer que “não existe essa tal de sociedade”,
mas por razões completamente diferentes, por entender que sociedade diz respeito a “associação”, mas estas
associações não se limitam à humanos, longe disso, são heterogêneas. Ao contrário dos sociólogos da sociedade
(em contraposição aos sociólogos das associações) a sociedade não pode ser explicada por si mesma, auto-
referenciada, como na tradição positivista. E isso serve da mesma forma e pelas mesmas razões para as ciências
da natureza e para epistemologia.
145
O primeiro princípio de simetria não mais divide a ideologia da ciência, uma vez que
coloca a “natureza entre parênteses”, o peso das explicações agora é sustentado no polo
sociedade (construtivista para a natureza, realista para a sociedade). Por sua vez, esse
princípio mantém uma assimetria. Se as práticas modernas revelam que natureza e sociedade
são imanentes, a partir do trabalho de “mediação/tradução” a tecnociência transforma os
elementos da “natureza” em seres híbridos de um lado, do outro o trabalho de “purificação”,
faz sociedade e natureza transcendentes, separando os humanos dos não-humanos. Ou seja,
após essa clivagem o que estava unido se separa em sujeitos e objetos, deduz-se, sem muita
dificuldade, que a ideia de sociedade também é uma construção. Se formos construtivistas
para um devemos sê-lo para o outro, se formos realistas para um devemos sê-lo para o outro
também. Neste sentido é necessário um segundo princípio de simetria: o princípio de simetria
generalizada.
Quando se diz que “a ciência é uma construção sociológica”, não se refere a sociedade
dos sociólogos (que pode ser explicada por si mesma), mas a uma sócio-lógica, que é
construída por associações heterogêneas que envolvem tanto humanos quanto não-humanos.
A principal dificuldade ao se mapear o sistema de associações
heterogêneas está em não fazer nenhuma suposição adicional sobre
sua realidade. [...] Uma metáfora ajudaria a dar ao observador
liberdade suficiente para mapear as associações sem distorcê-las
classificando-as em “boas” ou “más”: a sócio-lógica é muito
semelhante aos mapas rodoviários; todos os caminhos vão a algum
lugar, sejam eles trilhas estradas vicinais, rodovias ou autopistas, mas
nem todos vão para o mesmo lugar, suportam o mesmo tráfego,
custam o mesmo preço de abertura e manutenção. Dizer que uma
afirmação é “absurda” ou um conhecimento é “acurado” não tem mais
sentido do que chamar de “ilógica” uma trilha de contrabandistas e
“lógica” uma autopista. As únicas coisas que queremos saber sobre
essas vias sócio-lógicas é onde elas levam, quantas pessoas as
percorrem com que tipo de veículo, e que facilidades oferecem para a
viagem; e não se estão certas ou erradas.120
O princípio de simetria generalizada é uma “posição” que permite olhar tanto para o
trabalho de mediação/tradução quanto para o de purificação simultaneamente, olhar ao
mesmo tempo como se dá a atribuição de propriedades não-humanas e de propriedades
humanas aos seres existentes. Esse ponto mediano possibilita explicar natureza e sociedade
conjuntamente, partindo dos quase-sujeitos e dos quase-objetos de Michel Serres (híbridos de
natureza e cultura). Essa é a grande ruptura com a visão moderna uma vez que essa
120
LATOUR, bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp,
2000. p. 336
146
constituição que divide humanos e não-humanos (sociedade e natureza) nunca existiu de fato,
a proliferação dos híbridos (embriões congelados, aquecimento global, organismos
geneticamente modificados, áreas protegidas etc.) revelou isso, mas os híbridos sempre
existiram (em todas as “culturas”) e nunca foram assumidos enquanto tal, por isso “jamais
fomos modernos”.
O grande questionamento que ampara as alegações de Latour partem da própria
antropologia, impedida de estudar o ocidente enquanto uma cultura como as demais. Por que
o Ocidente e somente ele não é apenas uma cultura como as demais? Essa percepção é o que
deve ser rompido na perspectiva do autor. A resposta se liga à própria Grande Divisão entre
humanos e não-humanos. Enquanto o ocidente faz uma distinção plena entre natureza e
cultura, a natureza é externa à sociedade e revelada/mobilizada pela ciência, nas outras
sociedades tem-se apenas representações simbólicas da natureza, projeções de categorias
sociais sobre a mesma.
A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão
exterior: apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza
e a cultura, entre a ciência e a sociedade, enquanto todos os outros
sejam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem
separar de fato aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é
signo do que é coisa, o que vem da natureza como ela realmente é
daquilo que suas culturas requerem. Não importa o que eles fizerem,
por mais adaptados, regrados e funcionais que possam ser,
permanecerão eternamente cegos por esta confusão, prisioneiros tanto
do social quanto da linguagem. Não importa o que nós façamos, por
mais criminosos e imperialistas que sejamos, escapamos da prisão do
social e da linguagem e temos acesso às próprias coisas através de
uma porta de saída providencial, a do conhecimento científico. A
partição anterior dos não-humanos define uma segunda partição, desta
vez externa, através da qual os modernos são separados dos pré-
modernos. Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as
coisas são quase coextensivos. Na nossa sociedade ninguém deve
poder misturar as preocupações sociais e o acesso às coisas em si.121
I. Relativismo absoluto – culturas sem hierarquia e sem contato, todas incomensuráveis e com
a natureza fora do jogo, totalmente à parte; II. Relativismo Cultural – A natureza está
presente, mas do lado de fora das culturas, sendo que todas possuem um ponto de vista mais
ou menos preciso sobre essa; III. Universalismo particular – uma das culturas (a ocidental),
possui um acesso privilegiado à natureza que a separa das outras.
Na percepção da antropologia simétrica, todos os coletivos (termo utilizado para se
diferenciar da sociedade dos sociólogos – homens-entre-si – e dos epistemólogos – coisas em
si) constituem naturezas e culturas, o que as distingue é a dimensão da mobilização da
natureza na constituição. Ou seja, o tamanho dessa mobilização, quantos elementos exteriores
passam a compor o interior, quais pontos serão atados/interligados. O que vai compor o
“social” e o que vai ser “externo” a ele.
A solução surge ao mesmo tempo em que o artefato das culturas se
dissolve. Todas as naturezas culturas são similares por construírem ao
mesmo tempo os seres humanos, divinos e não humanos. Nenhuma
delas vive num mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente
impostos a uma natureza exterior que apenas nós conhecemos.
Nenhuma delas e sobretudo não a nossa, vive em um mundo de
coisas. Todas distribuem aquilo que receberá uma carga de símbolos e
aquilo que não receberá (Claiverie, 1990). Se existe uma coisa que
todos fazemos da mesma forma é construir ao mesmo tempo nossos
coletivos humanos e não-humanos que os cercam. Alguns mobilizam
para construir seus coletivos ancestrais, leões, estrelas fixas e o sangue
coagulado dos sacrifícios; para construir os nossos, nós mobilizamos a
genética, a zoologia, a cosmologia e a hematologia.122
122
Id. Ibid. p. 104
148
deve ser mais do que uma “causalidade natural” também, deve-se identificar efetivamente um
papel ativo da associação do não-humano em questão; II. A direção que a explicação irá
tomar – o social não pode ser mantido “estável” quando da descrição de uma associação
(continuará sendo apenas social pelo social), nenhuma “força social oculta” deve direcionar a
explicação ou ser mantida nela (tudo deve poder ser demonstrado); III. Qual o objetivo do
estudo: se é, de um lado, dispersar/desconstruir o social ou, de outro, remonta-lo, buscar as
associações – a TAR não deve ser concebida como o desconstrutivismo pós-moderno e nem
como uma simples crítica das “Grandes Narrativas” – eurocêntricas ou hegemônicas – seu
foco é “verificar quais são as novas instituições, procedimentos e conceitos capazes de coletar
e reconectar o social”124.
O que a TAR busca, conforme dito, é modificar todo o repertório da crítica
abandonando simultaneamente o uso da natureza e o uso da sociedade. Sair do tríplice
repertório que só opera em separado: naturalização, socialização e desconstrução. A
sociologia do social busca – em oposição a sociologia das associações da TAR ou sua
“associologia” – por trás dos fenômenos sociais, as “forças sociais” que os revelam
(fetichismo, mercado, estrutura, simbolismo etc.), que, por sua vez, são forças
“transcendentais” no sentido de não possuírem uma conexão material com o fenômeno
descrito. A proposta da TAR seria exatamente eliminar esse “vento de éter” e, desvelando as
múltiplas e heterogêneas conexões que perfazem um fenômeno social, dar-lhe materialidade e
empiria tão rigorosa quanto qualquer ciência natural e seus laboratórios. Parte de uma recusa
peremptória de se construir o objeto como um sistema invisível de relações que
sobredeterminam e explicam a ação. Conforme Latour:
Se eles [os sociólogos convencionais] literalmente não substituem
algum fenômeno por uma força social, o que as explicações sociais
querem dizer quando dizem que há alguma força "por trás das
aparências ilusórias", que constitui a 'coisa real', de que deuses, artes,
direito, mercados, psicologia e crenças são "realmente" feitas? O que é
uma entidade que desempenha o papel principal sem fazer nada? Que
tipo de ausência/presença é essa? Para mim, isso parece ainda mais
misterioso do que o dogma da Santíssima Trindade, e eu não fico
tranquilo enquanto é esse o mistério que é suposto para explicar toda a
religião, direito, arte, política, economia, impérios, ou simplesmente
tudo, incluindo a Santíssima Trindade! 125
124
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 11
125
Id. Ibid. p. 103. No original:
If they don’t literally replace some phenomenon by some social force, what do
social explainers mean when they say that there is some force ‘behind the illusory appearances’ that constitutes
the ‘real stuff’ out of which gods, arts, law, markets, psychology, and beliefs are ‘really’ made? What is an entity
that plays the main part without doing anything? What sort of absence/presence is this? To me, this looks even
150
Sob este preceito é o social que deve ser explicado e não dar uma explicação prévia
por estar “atrás”, há nítidas inversões de causalidade. O que se busca são “traduções” entre
mediadores que podem gerar associações rastreáveis. O Termo tradução ganha peculiar
especificidade dentro da técnica como aquilo que induz aos mediadores a coexistência.
Por sua vez a noção de “rede” não se assemelha a ideia de uma superfície de
interconexões estáveis que simplesmente fluem informações – algo como em cibernética ou a
World Wide Web. A rede se define pelos seus agenciamentos internos e não pelos seus limites
externos. Assim como a noção de rizoma de Deleuze e Guattari, as redes são como linhas que
formam agenciamentos em todos os lados e direções. São abertas e operam em uma
multiplicidade, com circulações, fluxos e conexões que transformam, criam mudanças e
formam nós (a parte que se constitui/cristaliza). A rede não é um objeto a ser descrito neste
sentido, ela não está “parada”, mas no movimento que é dado pelos atores, que estão sempre
agindo, deixando traços, “construindo o mundo sócio-lógico”.
Ator-rede define a co-existência de ambos em uma circulação de mútua construção e
simultaneidade. Dois lados de uma moeda, micro e macro, global e local. Entretanto a rede
não se reduz a um ator, pois perfaz um conjunto heterogêneo de vários atores, animados e
inanimados, agenciados, mas que pode se desintegrar, mudar os componentes, as alianças, se
redefinir.
O ator é um “alvo em movimento”, pode ser representado por um vasto conjunto de
entidades, não apenas humanos, mas animais, máquinas, objetos etc. Nesse sentido, por
comportar também os não-humanos, recebe também o nome de actante. Qualquer coisa que
está produzindo efeito no mundo e pode ser “lido” pelos traços que deixa, que se define pelo
que faz, pelo seu desempenho, é um actante. Atua em razão de muitos outros e representa a
fonte de incerteza sobre a origem da ação. A ação é sentida como um nó, um laço, “um
conglomerado de vários conjuntos de agenciamentos a serem lentamente desembaraçados”.
O envolvimento dos não-humanos não significa uma afirmação vazia de que os
objetos fazem as coisas acontecerem no lugar dos humanos. Mas uma forma de explorar tudo
que participa da ação e que o analista deve estar preparado para olhar, pois é a única forma
concreta de explicar a durabilidade e a extensão das interações sociais.
Se sociólogos tivessem o privilégio de observar com mais cuidado os
babuínos e reparar sua "estrutura social" constantemente em
more mysterious than the dogma of the Holy Trinity, and I am not reassured when it is this mystery that is
supposed to explain the whole of religion, law, art, politics, economics, empires, or just plain everything—
including the Holy Trinity!
151
“coisas”, mesmo que elas sejam mudas, há sempre quem as represente (Pasteur representa as
bactérias, Bourdieu os dominados, Einstein a relatividade, um líder sindical os sindicalizados,
um entomólogo os insetos etc.). Mesmo os que falam (humanos), quando não conseguem
falar todos ao mesmo tempo, elegem seus representantes. Em todos os casos os porta-vozes e
os representantes podem trair: um cientista pode estar completamente equivocado ao
pronunciar as qualidades de seu objeto de pesquisa, um político pode estar representando seus
próprios interesses ou interesses de outros que não os que o elegeram, assim por diante.
Assim, a rede é uma expressão para verificar a quantidade de energia,
movimento e especificidade que os nossos próprios relatórios são
capazes de captar. Rede é um conceito, não é uma coisa lá fora. É uma
ferramenta para ajudar a descrever algo, não o que está sendo descrito.
Ele tem a mesma relação com o assunto em questão como uma grade
de perspectiva tem para uma pintura em perspectiva, único ponto
tradicional: desenhadas pela primeira vez, as linhas podem permitir
projetar um objeto tridimensional em um pedaço de linho, mas elas
não são o que vai ser pintado, só o que possibilita ao pintor dar a
impressão de profundidade antes de serem apagadas. Da mesma
maneira, uma rede não é o que é representado no texto, mas o que
prepara o texto para levar a retransmissão de agentes como
mediadores. A consequência é que você pode dar conta com o ator-
rede de temas que em nada têm a forma de uma rede: de uma sinfonia,
uma peça de legislação, uma pedra da lua, uma gravura. Por outro
lado, você pode muito bem escrever sobre as redes técnicas: televisão,
e-mails, satélites, força de vendas - sem qualquer ponto explicado pela
teoria ator-rede.127.
A TAR é uma técnica, um instrumento de descrição da sócio-realidade que ressuscita
a heterogeneidade do socius, perdida com a purificação moderna e convenientemente
percebida somente em sua dimensão humana. As consequências de sua aplicação é a
descrição sistemática, minuciosa, fria e apolítica, na identificação ponto-a-ponto, dos
agenciamentos que formam o coletivo em expansão. Apenas o que é fisicamente rastreável e
empiricamente demonstrável pode ser levado em consideração. Mas vai além, ela vai dar voz
aos objetos mudos, aos humanos, animais, vegetais e todos os outros seres que vão compor o
127
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: A introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford.
2005. p. 131. No original:
So, network is an expression to check how much energy, movement, and specificity
our own reports are able to capture. Network is a concept, not a thing out there. It is a tool to help describe
something, not what is being described. It has the same relationship with the topic at hand as a perspective grid
to a traditional single point perspective painting: drawn first, the lines might allow one to project a three-
dimensional object onto a flat piece of linen; but they are not what is to be painted, only what has allowed the
painter to give the impression of depth before they are erased. In the same way, a network is not what is
represented in the text, but what readies the text to take the relay of actors as mediators. The consequence is that
you can provide an actor-network account of topics which have in no way the shape of a network—a symphony,
a piece of legislation, a rock from the moon, an engraving. Conversely, you may well write about technical net-
works—television, e-mails, satellites, salesforce—without at any point providing an actor-network account.
153
coletivo. Nesse sentido guarda uma peculiar filosofia política: a democracia das coisas.
Perspectiva esta, que muito tem a ver com o que compreendemos como questão ambiental.
sobre o mundo, compreendido como natural, regido pela estrita causalidade, e apartado do
social, humanamente construído.
A tradição cultural do ocidente sempre compreendeu o humano em uma posição
diferenciada em relação a tudo mais que existe. Da herança hebraica à greco-romana, da
formação da moral judaico-cristã, perpassando a baixa e alta idade-média, ao renascimento, a
disputa hierárquica de preeminência se alternou entre uma entidade criadora superior e o
próprio humano, relegando tudo mais a um plano inferior e segregado. Ainda que
evocássemos a dualidade da apreensão e compreensão do mundo que flutuou entre o exterior
e o interior, entre o que se apresenta externamente no mundo e o que se compreende
internamente no humano, entre a natureza suja e imperfeita à natureza magnífica, reveladora
de Deus, toda matéria é percebida pelo humano para servi-lo e controlada por autoridades
inquestionáveis/irresistíveis. No florescer da modernidade as dicotomias ganham contornos
mais nítidos: racional-irracional, mente-corpo, matéria-energia, sociedade-natureza, emoção-
razão, sujeito-objeto. Com o despertar do novo guia do saber humano revelador das novas
verdades, a Ciência moderna, a capacidade de modificar o ambiente aumentou
exponencialmente, assim como a capacidade de domesticar o mundo material - e subjugar
quase tudo que se pode manipular, reduzir, experimentar, classificar, ordenar, sistematizar etc.
- ao interesse humano (ao menos de certo número de humanos) se consolida. Conforme
empreendido anteriormente, “jamais fomos modernos”, é difícil dimensionar a ilusão, mas
importante reconhecer seus feitos formidáveis.
Essa visão de controle sobre o natural e o mesmo natural dissociado do social,
também, de certa forma, compõe o debate dos ambientalistas (amplamente considerados) em
suas reivindicações – uma herança explícita. Quando acusam o modelo de sociedade (sistema
social) de ser predatório, desarmônico com o ambiente/natureza, ou recriam um humano
desintegrado da “natureza”, não-natural, patológico, cancerígeno, viral, ou que, a partir de seu
desenvolvimento econômico, sua superpopulação, ameaça a vida do planeta, compromete-se a
estabilidade dos ecossistemas, fortalece-se a imagem de uma natureza idílica, enquanto, no
plano fático de uma ecologia política a ser construída, percebe-se uma conotação muito
restrita dessa natureza, pois não inclui o humano como sua manifestação, ao mesmo tempo
reafirmando sê-lo algo que foi de alguma forma separado, que precisa se reencontrar e que
detém as ferramentas para tanto. Parte-se de uma estrutura de valoração que define certo-
errado, bem-mal, racional-irracional como coisas alheias a uma concepção mais ampla e
complexa de natureza. Uma questão se perfaz: como integrar sociedade e natureza partindo de
155
sua dissociação? Ou melhor, seria necessário uma “humanização” da natureza para que a
mesma pudesse ser incorporada/valorada na vida política? Ou uma naturalização do humano?
Não obstante as múltiplas conotações de natureza e as múltiplas soluções empreitadas
para dirimir a ideia de crise ambiental, a proposta “ousada” por Bruno Latour, em sua obra
“Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia”, estabelece um campo conceitual
diferenciado para a ecologia política ao escancarar suas limitações, e, ao mesmo tempo,
propõe-se uma nova constituição político-social, sob bases de sua epistemologia reformadora
que integraria sociedade e natureza, humanos e não-humanos, em um mesmo patamar político
que dissolve tanto a ideia de natureza quanto a de sociedade. Conforme dito, não existe
natureza e nem cultura, mas naturezas-culturas.
129
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.
130
Latour estabelece uma distinção entre ciências (no plural e em minúsculo) da Ciência (singular e em
maiúsculo) em que, a primeira se aproxima dos múltiplos saberes humanamente construídos e temporalmente
alterados; a segunda é a “politização das ciências pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via política
ordinária, fazendo pesar sobre ela a ameaça de uma natureza indiscutível”, algo como uma poderosa instituição
que dita as verdades do mundo. p.26
156
serem as sombras dos objetos que se projetam sobre as paredes dentro da caverna. Somente
aquele que consegue transcender para um conhecimento racional, organizado e sistemático,
ou seja, se libertar da caverna, atinge a real verdade do mundo (a essência/natureza das
coisas) – esse representaria o papel do filósofo, que se distingue dos demais.
Para explicar a concepção ocidental de vida pública utilizando-se dessa alegoria,
Latour substitui o filósofo pela autoridade científica, posta como capaz de apreender as
verdades objetivas do mundo, a “natureza” das coisas, e trazer luzes a ordem social obscura.
Entretanto, na alegoria de Platão, o detentor do verdadeiro conhecimento, o filósofo (o que se
liberta da caverna), ao retornar para iluminar os demais com a verdade, é acusado de deturpar
a ordem que vige e punido por isso. Hoje, na percepção de Latour, o cientista goza de uma
ampla via de acesso ao “mundo social obscuro do subjetivismo” e pode apresentar “as coisas
tais com elas são”, distinguindo-as das representações (subjetivas) que se fazem delas. Isso
operaria na vida política como uma forma de encerrar todo tipo de embate social: a Ciência
seria a autoridade que valida os discursos, legisla objetivamente e julga, por estar acima e em
outro plano, de toda a política humana. Ao contrário do destino do filósofo de Platão no mito
da caverna, que é morto pela ordem social, o sábio contemporâneo (o cientista, o pesquisador,
as instituições científicas etc.) vai ditar a ordem social.
Nesta relação, a Ciência engloba concomitantemente “saberes, política e natureza”, e
se apresenta como um liame entre dois mundos: o da realidade (a natureza) e o das
construções sociais (as crenças humanas sobre a natureza). Nessa “dupla ruptura”, que
remonta ao mito da caverna, entre o verdadeiro conhecimento (a realidade da natureza) e o
conhecimento vulgar (concernente a vida político-social), transitam os expertos, capazes de,
ao passar de um mundo para o outro, levar a luz para a política e dar fim aos embates com sua
voz de autoridade. Esse poder da Ciência, que remonta ao da Igreja medieval, segundo
Latour, é que faz da natureza um fator de imobilização do discurso público e neutraliza a
democracia.
O resultado dessa “dupla ruptura”, segundo Latour, organiza a vida pública em duas
câmaras: de um lado a sociedade humana, orientada por suas ficções, submergida em sua
própria ignorância, mas capaz de falar; de outro o mundo não-humano alheio às disputas e
ficções humanas, compostas dos objetos reais, o que define o que existe, mas que é muda.
Entre ambas, existem aqueles que podem transitar de uma para outra (os expertos) que
possuem o poder de fala e a autoridade capaz de pôr ordem na assembleia dos humanos uma
vez que podem “fazer o mundo mudo falar, dizer a verdade sem ser discutida, pôr fim aos
157
debates intermináveis por uma forma indiscutível de autoridade, que se limitaria as próprias
coisas”131.
Objetar-se contra tal autoridade é o mesmo que macular a confiabilidade da Ciência
em descrever os fenômenos do mundo, “confundindo questões cognitivas com questões
políticas”, lançando mão de um relativismo que será taxado de sofisma. Nesse sentido, para o
sucesso dessa constituição social bicameral, é necessário apartar Ciência do corpo social,
mantê-la intocada, pois uma vez tocada em sua credulidade, enquanto não detentora/tradutora
da realidade (natureza), mas mero representante de mais um poder social, o “truque” perderia
o efeito e a “natureza” não mais poderia ser evocada para silenciar a discussão pública. Para
Latour, a melhor forma de sair da caverna é não entrando nela, não cortando as inúmeras
relações que estabelecemos com a realidade e com as ciências, para aceitar uma autoridade
externa como iluminação, possível somente à instituição Ciência. Ou seja, entender que a
Ciência é tudo, menos neutra.
Com efeito, sabemos que, depois de Popper, Habermas, Khun, Morin entre outros
(groso modo), a Ciência, suas teorias e autoridade, não pode ser mais vista como espelho do
real, dissociada de uma construção social político-ideológica, mesmo às ciências mais duras,
que ditariam as leis da natureza, no máximo apresentam “verdades temporais”, cujos mesmos
fenômenos que descrevem serão explicados/concebidos de outra forma na medida em que as
teorias avançam e os paradigmas se modificam.
Para Popper um conhecimento para ser científico deve poder ser falseado, ou seja,
contradito, ter como ser provado em contrário. Neste sentido qualquer conhecimento
científico não representa o “real” em absoluto, senão uma verdade temporária, durável até
quando provada falsa. Apreende de forma heurística em seu falsificasionismo o jogo da
“verdade e erro” da ciência. “Penso que nos devemos habituar à ideia de que a ciência não
pode ser vista como um “corpo de conhecimentos”, mas sim como um sistema de hipóteses,
ou seja, um sistema de conjecturas ou antecipações que não admite, em princípio,
justificação, com o qual, entretanto, operamos enquanto puder sobrepujar os testes a que for
submetido – um sistema de hipóteses que não estamos em condições de declarar
‘verdadeiras’, ou ‘mais ou menos certas’ ou mesmo ‘prováveis’. 132
Para Habermas, não obstante a pretensão de certeza e imparcialidade inerente ao
conhecimento científico e tecnocrático, onde as tensões entre objetivismo e subjetivismo são
131
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.Id. Ibid. p. 34
132
POPPER, Karl. A Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. p.349
158
escancaradas, esta “consciência” não está isenta de sua historicidade. A ciência e a técnica
correspondem a uma ideologia cujo núcleo “é a eliminação da diferença entre a práxis e
téchne” representada por uma política de dominação contextualizada temporalmente na
perspectiva da sociedade industrial. 133
Para Kuhn a ciência normal se sustenta por paradigmas que são “o conjunto das
crenças, dos valores reconhecidos e das técnicas comuns aos membros de um determinado
grupo”. Ou seja, certa comunidade científica opera na sofisticação/aprofundamento dos
“paradigmas” que lhes proporciona todo um direcionamento da análise de um dado
fenômeno, cuja leitura é possível pelo paradigma, incorporando desde teorias, procedimentos,
técnicas, métodos, instrumentos, valores entre outras coisas, que vão se somando até o
momento em que o mesmo entra em colapso, não mais possibilitando a leitura do fenômeno
ou das controvérsias que surgem em torno das explicações. Neste momento surgem as crises
que podem repercutir na complete substituição do paradigma dando outra inteligibilidade ao
fenômeno e iniciando-se um novo processo que o autor compara às revoluções políticas,
enquanto mudanças na visão de mundo que se estabelecem pela adesão da comunidade
científica à nova visão. Por essa perspectiva a ciência normal não busca descobertas, lê apenas
o que pode ser lido pelo paradigma. As descobertas decorrem das crises, dos erros ou das
insuficiências do paragisma em explicar o fenômeno. 134
Na perspectiva epistemológica de Morin, que em vários momentos perfaz interseções
com pontos do pensamento de Latour e vice-versa, há uma ampliação da concepção de
paradigma de Kuhn, somando a noção de “mindscape” de Maruyama e de “epistême” de
Foucault, expandindo-a para todo o sistema cultural e noológico. Num paradigma está contido
“para todos os discursos realizados sobre seu domínio” as categorias-mestras de
inteligibilidade do mundo. Dessa forma, aqueles indivíduos inscritos culturalmente em
determinados paradigmas vão agir, pensar e conhecer carregando elementos deste paradigma.
Morin critica o reducionismo moderno da ciência e ao mesmo tempo o holismo que a mesma
atinge posteriormente, em sua perspectiva de complexidade: a realidade é complexa e requer
uma dupla recursividade do todo e da parte para uma melhor aproximação da mesma. As
dicotomias evocadas que traspassam a história e avançam no tempo, modelando a forma de
experimentar o mundo das sociedades ocidentais, são reflexos de um grande paradigma
subterrâneo que as engloba, o “paradigma da disjunção”. Nessa direção, duas concepções
133
HABERMAS, Jurgen . Técnica e Ciência enquanto “Ideologia”. Os Pensadores. Trad. Zeljko lopari ́c e
Andréa M. A. C.Lopari ́c . 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 337
134
KUHN, Thomas Samuel .A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
159
135
MORIN, Edgar. As Idéias: habitat, Vida, Costumes, Organização .In: O Método 4. Trad. Juremir Machado
da Silva. 4o Ed. Porto Alegre: Sulinas, 2005. p. 260 – 261; MORIN, Edgar. Ciência com Consciência: Edição
revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo:
160
Bertrand Brasil, 2003. p. 329 -331; ALCÁNTARA, Leonardo A. G. Conflito, Consenso e Legitimidade:
Delimitação e análise de embates sociais no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juiz de Fora. Dissertação
(Mestrado em Sociologia e Direito) – PPGSD. UFF, Niterói, 2008.
161
mito da caverna) e todas as aspirações modernas. Por sua vez, a prática da ecologia política
inovaria em seus reveses (quando as coisas aparentemente não dão certo ou saem do seu
controle), o que na percepção do autor, sempre ocorre.
Ao ver ampliar a incerteza das conexões entre os seres, ao ver os desarranjos surgidos
das situações imprevisíveis, ao fazer emergir objetos eivados de incomensuráveis riscos, a
ecologia tornaria impossível o uso de qualquer noção de “natureza”, concebida como algo
uno, delimitável e estável. Nesse sentido a prática da ecologia política se caracterizaria pela
“multiplicação dos vínculos de risco”, o que na prática perturbaria “o ordenamento das classes
de seres, multiplicando as conexões imprevistas e variando brutalmente sua respectiva
importância”136. A crise ecológica, nesse sentido, seria uma crise não da natureza, mas da
objetividade.
Para uma melhor compreensão, dois pontos precisam ser elucidados. Primeiro, o que é
o ideal e a prática da ecologia política; segundo, a substituição dos ditos objetos sem risco
(limpos) da modernidade, pelos vínculos de risco e os objetos desordenados apresentados pela
ecologia política.
No que diz respeito ao ideal e a prática da ecologia política, Latour desenvolve duas
listas em que, na primeira, expõe a realidade da ecologia política e na segunda, os benefícios
que se extraem dessa realidade (num primeiro momento percebido como fraquezas). Pretendo
apresentá-las, sem enfrentá-las, de forma conjunta e simplificada: a) a natureza a qual a
ecologia política se refere está sempre associada aos humanos e a outros seres de forma
complexa (incluindo aparelhos, instituições, consumidores, fauna, flora etc.), não se trata de
uma natureza una, mas distribuída em seus contornos e com agentes redistribuídos; b) ao
proteger a natureza e colocá-la ao abrigo do homem, ela possibilita um controle ainda mais
sofisticado e invasivo da natureza pelo próprio homem, em benefício do próprio homem e não
da natureza em si desumanizada, por outro lado, “suspende nossas certezas concernentes ao
soberano bem dos homens e das coisas, dos fins e dos meios”; c) ela não saberia o que é um
sistema ecológico-político, sustentando inúmeras contradições científicas o que míngua ainda
mais as certezas e lhe beneficia de uma outra política da ciência; d) não consegue estabelecer
uma hierarquia regrada por elos cibernéticos, mas uma heterarquia, com uma multidão de
dispositivos experimentais que não formam uma ciência certa; e) pretende falar do todo, mas
se pauta a lugares, situações, biotopos, situações particulares e pontuais em suas ações, não
podendo ordenar uma hierarquia única de ações; e f) pretende despontar como poder real na
136
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 56-57
162
vida política, mas exerce papel marginal e não compreende bem nem sua política e nem sua
ecologia, tendo seus propósitos diferentes de sua prática, que após compreendida, lhe
proporcionaria a maturidade política137.
Quanto ao segundo ponto, os vínculos de risco se caracterizam por produzir novos
objetos, desordenados, diferentes daqueles modernos, “limpos”, com “contornos nítidos,
propriedades reconhecidas e essência bem definida”, cujos “pesquisadores, engenheiros,
administradores, empresários e técnicos, que concebiam, produziam e colocavam esses
objetos no mercado, tornavam-se invisíveis uma vez terminado o objeto”. Objetos que saiam
de um mundo (da técnica, da Ciência, da natureza, da certeza) para outro (dos fatores sociais e
dimensões políticas), em que seus impactos não repercutiriam sobre sua definição primeira,
sobre seus autores/produtores, mas encerrar-se-iam nos seus usuários (sociedade). Com a
proliferação dos vínculos de risco é somado aos “objetos limpos”, seus riscos associados, as
consequências de seus impactos são agregadas aos seus produtores, idealizadores,
consumidores, não se distinguindo mais o mundo social ou político do mundo da objetividade
e da rentabilidade. As consequências incomensuráveis passam a fazer parte do objeto, assim
como seus produtores passam a ser expostos numa rede de entrelaçamentos que não distingue
mais um universo independente do outro138. Poderíamos dizer que o princípio da precaução e
a “teoria do risco” na responsabilidade civil objetiva caracterizam bem esta mudança.
Como na prática a ecologia política vai “perturbar ao ordenamento das classes de
seres, multiplicando as conexões imprevistas e variando brutalmente sua respectiva
importância”, torna impossível, diante de uma multiplicidade de entendimentos sobre o que
tem prevalência, o que conta e o que não conta, o que deve ser percebido conjuntamente e o
que deve ser separado, uma concepção única de natureza ou de ordem social. Algo como se
imaginássemos, dentro de uma dada atividade social, um imbróglio que conjugasse ao mesmo
tempo: uma rodovia, um sapo, seres humanos, uma relação comercial, um peixe, capital
financeiro, um valor cultural, uma paisagem etc. Ou, no nosso caso, empresas multinacionais,
técnicas de mineração, unidades de conservação, comunidades quilombolas, agentes
governamentais, tartarugas, castanheiras, copaibeiras, bauxita, ONGs etc. Com a prática da
ecologia política, em tese, dentro desse imbróglio, na realização da tal atividade social,
poderiam todos concorrer em uma ordenação de prevalência, consideração, relevância ou
preeminência, sem ter como, em uma esfera pública, estabelecer, a partir de uma concepção
137
Id. Ibidem. p. 45-48
138
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004.Id. p 48-53
163
139
O termo laicizar é justificado em menção a qual a “naturalização” sempre foi utilizada para combater a
religião, através dos objetos modernos da Ciência, mas a mesma continua toda impregnada da religião que
combateu.
164
caverna, pois, não obstante as construções sociais sobre a natureza, a mesma continuaria suas
manifestações independente das percepções humanas e, se não há acesso à natureza, estamos
condenados a escuridão da caverna, nenhum conhecimento real poderia ser apreendido, não
precisaríamos de sábios e nem de ciências – mas os mesmos continuariam. Há a necessidade
de reconhecer a história humana construída, mas, além disso, a história não construída de tudo
que existe externamente que segue independentemente das construções e representações
sociais, buscando intercessões de modo a fundi-las. Para tanto seria necessário agregar a
história infinitamente longa da natureza – matéria, energia, evolução da vida, manifestações
do universo etc. – dentro do que se conhece por meio das várias disciplinas científicas –
astronomia, química, física, biologia etc. – datadas a partir da história das ciências, formando
uma história conjunta.“[...] já não falamos mais do todo da natureza, mas daquilo que se
produz, se constrói, se decide, se define, em uma cidade sábia sobre ecologia, quase tão
complexa como a do mundo em que ela produz o conhecimento”140.
Ainda que a história das ciências no esforço de tornar cognoscível a natureza não
escape da realidade das representações sociais, à medida que se aproxima de uma exatidão (o
eterno jogo da verdade e do erro das ciências), se aproxima também do que a natureza
realmente é, mantendo-se como representação social, opera sob as duas perspectivas e reúne
as duas assembleias: a dos humanos e a das coisas. Esquivando-se das “evidencias enganosas
das ciências do homem” (construtivismo social, estruturalismo etc.), pode-se apreender o
papel e a “presença múltipla” dos não-humanos (multiplicidade dos seres – naturezas), bem
como distinguir o “trabalho político” que os apresentava sob a forma de uma natureza única
que impunha sua autoridade muda.
A ruptura absoluta que separa a sociedade da natureza (assembleia dos humanos e
assembleia das coisas), cuja transcendência só é possível aos sábios que tornam
compreensível a realidade dos objetos à sociedade, através da figura da natureza una, objetiva
– criando uma autoridade inquestionável; é substituída por um “coletivo em via de
expansão”, em que as propriedades tanto dos humanos quanto dos não humanos não são
garantidas (vínculos de risco – objetos desordenados), reconhecendo os não-humanos como
parte indissociável do social, “recrutados, mobilizados, socializados, domesticados para
engrossar a demografia do coletivo”
Na nova conjuntura, os sábios e as ciências não são abandonados, ao contrário,
assumem o papel de conexão/representação com o mundo exterior, através da mediação das
140
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 70
165
disciplinas científicas que unem a história social e natural. Mas ao contrário do esquema da
caverna, não para impor “um recurso decisivo a uma transcendência indiscutível” para
solucionar os problemas político-sociais, e sim para funcionar como problematização,
complicação, “não resolvendo definitivamente nenhuma das questões essenciais do coletivo”.
Ao apelar para a realidade exterior não se aparta o mundo social e nem o faz calar, como no
coletivo em duas câmaras (sociedade versus natureza), mas convoca uma multiplicidade de
novos seres para uma vida em comum, em que todos são atores (actantes) que funcionam em
rede – estabelecem interferências, associações, conexões, fluxos, circulações, alianças etc.
Conforme visto, a proposta conduz a um afastamento concomitante da natureza e da
cultura enquanto conceitos separadamente fechados, isolados e independentes, em que, na
proposta de Latour, a ideia de coletivo abarca ambos, fundindo-os. Parte da natureza não em
direção ao humano, mas em direção a “multiplicidade das naturezas” (pluriverso) em que “o
social” ganha conotação de associação, coleção, englobando seres humanos e não-humanos,
possibilitando seu ajuntamento, sua unificação, coleta, a partir da prática da ecologia política.
Existe, pois, uma outra via além do idealismo para abandonar a
natureza, uma outra via além dos sujeitos para abandonar os objetos,
uma outra via além da dialética, para “ultrapassar” a suposta
contradição entre sujeito e objeto. Para dizê-lo de modo mais brutal
ainda, graças à ecologia política, a Ciência não sequestra mais a
realidade exterior para criar uma corte de apelação de última instância,
ameaçando a vida pública com uma promessa de salvação pior do que
o mal. Tudo aquilo que as ciências humanas haviam imaginado sobre
o mundo social, para construir suas disciplinas longe das ciências
naturais, foi ao inferno da Caverna que elas tomaram emprestado.
Intimidadas pela Ciência, elas aceitaram o mais cominatório dos
diktats: “Sim, reconhecêssemos bem prazerosamente, confessavam
elas em coro, mais falamos de construção social, mais nos
distanciamos, de fato, da verdadeira verdade”. Ora, era preciso recusar
o Diktat e se reaproximar, contra a ameaça da Ciência, da realidade
produzida pelas ciências, afim de poder colocar, a novos custos, a
questão da composição do mundo comum. 141
A questão que se perfaz é como se daria a nova constituição, uma vez que a mesma
dilui as categorias dos sujeitos e dos objetos em suas pretensões? Partindo da perspectiva de
uma conotação de política como “composição progressiva de um mundo comum” a ser
compartilhado; e desconstruindo a noção de natureza que servia como pano de fundo para a
unificação dos seres e das culturas, que independente das particularidades havia uma
“essência” comum, as soluções propostas pelo mononaturalismo e pelo multiculturalismo
141
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 74
166
142
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de
Souza. Rio de Janeiro: Edusc. 2004. p. 93
143
Id. Ibidem. p. 94-95
167
os humanos não existirem por si mesmos, mas através de uma longa cadeia de não-humanos,
sem os quais eles não saberiam fazer questão de liberdade.
O imaginário comum nos conduz a perceber que a relação de afastamento e
independência do homem com relação ao mundo “dito” natural, passou a ser questionada com
a emergência das questões ambientais, consagrando os movimentos ambientalistas, como a
ecologia política, como responsáveis pela inserção da natureza nas preocupações políticas. A
proposta de Latour vem desmitificar essa suposição com uma inversão de perspectiva que
acusa a natureza, em suas diversificadas concepções, de sempre estar presente na vida política
do ocidente, apresentando-se a partir de autoridades que a traduzem para o entendimento geral
como “a certeza” que serve de embargo para qualquer discussão política. O mérito da
ecologia política seria exatamente digerir essa percepção de natureza, da objetividade e
hierarquização, “pondo fim à natureza” e fazendo irromper uma percepção de mundo
carregada de incertezas, riscos e multiplicidades, possibilitando a constituição de uma nova
vida política que dissolveria a dicotomia sociedade e natureza.
O “prelúdio do novo tempo” antes de se dar pelo sucesso da ecologia política
enquanto movimento que se insere de fato na vida pública, o que não ocorre, vai ser dado
pelos seus desconcertos, na sua prática, que geram a penetração irreversível dos “vínculos de
risco” que desmantelam o projeto moderno de um mundo ordenado que apontaria para um
futuro promissor. O sentido teleológico da modernidade, bem como a autoridade da Ciência e
da técnica na busca da redenção humana ficam suspensas, questionadas com a multiplicidade
de incertezas.
Toda essa discussão não deixa de encampar as tradicionais críticas recorrentes da
modernidade no que tange ao modelo de inteligibilidade do mundo,
disjuntivo/fragmentário/divisor/simplificador, consagrado pela filosofia e ciência moderna.
Ao apresentar o sujeito cognoscente e a realidade do mundo objetivo por uma indissolúvel
conjunção entre ambos, o autor nos remete ao entendimento de que o sujeito está presente nos
objetos que conhece, ao mesmo tempo em que esses se inscrevem no espírito humano em uma
relação de dupla-via. A realidade objetiva é uma construção subjetiva que jaz no mundo
objetivo. Apesar de realmente inovadora, a diluição das dicotomias de sua proposta
epistemológica, com as devidas ressalvas, se acercam das propostas da teoria da
complexidade de Edgar Morin, buscando uma interligação de saberes e a hibridização dos
seres dicotomizados/antagonizados pelo pensamento moderno. Mas há diferenças cruciais e
um método “facilmente aplicável”, efetivamente empírico e epistemologicamente progressivo
pelas possibilidades que abre.
168
Conversões
PARTE III
O VALE DO RIO TROMBETAS
1 O PROGRESSO E A ORDEM
Vou ao porto de Manaus digladiar por uma passagem para Oriximiná, sabia, pelas
experiências anteriores, que no final do ano todos viajam. A multidão desesperada faz o
momento dos cambistas especuladores. Não havia mais passagens aéreas e, por “nau”,
somente para Óbidos ou Santarém. Como não podia aguardar até a próxima semana, segui
para Óbidos. No translado conheço duas francesas que vieram se aventurar no Brasil,
disseram vir conhecer a “natureza”, a Amazônia, maior floresta tropical do mundo – “essa
imensa reserva ecológica do planeta”. A companhia das turistas estrangeiras e os longos
diálogos desentendidos que travávamos, abreviavam as trinta horas de viagem percorridas
pelo Rio Amazonas. A paisagem contínua, por vezes, era interrompida pelos pequenos
povoados ribeirinhos, criações de gado e cidadelas. No navio, muito Technobrega, pessoas
bebendo e um verdadeiro emaranhado de redes que aconchegavam as centenas de pessoas que
ali viajavam. Chegando em Óbidos consigo no mesmo dia um barco para Oriximiná.
Necessitando aguardar algumas horas, aproveito o entretempo para conversar com pessoas
dali. Os olhos se confundem diante da tamanha complexidade daquela região.
176
Perscrutar essa realidade e compreender sua pluralidade requer vasculhar como se deu
seu complexo ordenamento territorial. A Amazônia dos seringueiros, babaçueiros, açaizeiros,
dos muitos índios, dos ribeirinhos, dos quilombolas; a Amazônia dos patrões, dos regatões,
dos fazendeiros, das elites falidas; a Amazônia periferia nacional ameaçada pela cobiça
internacional; a Amazônia futuro do país com incomensuráveis recursos – o biológico, o
madeireiro, o mineral; a Amazônia último reduto da vida, da manutenção do equilíbrio
térmico do planeta, da natureza para conservação; a Amazônia dos grandes projetos
governamentais de desenvolvimento, das empreiteiras, das hidroelétricas, das monoculturas,
da pecuária extensiva, das mineradoras multinacionais; a Amazônia atrasada, terra sem lei à
Amazônia voz de seu povo, ainda quando educados e representados pelos que vem de fora.
Não há uma Amazônia, são muitas “Amazônias”, como já consagrara Carlos Walter Porto
Gonçalves144, que também nos conta essa história, ponto de suma importância para traçarmos
as linhas de nossa jornada.
brasiliensis, vai exercer grande influência nas delimitações territoriais amazônicas. Isso se
deu sob o jugo dos que faziam conectar o produto de sua seiva, o látex transformado em
borracha, à toda rede sociotécnica de produção da Segunda Revolução Industrial em meados
do século XIX, sem maiores considerações aos povoados que ali há muito existiam. Nesse
sentido o que se compreende como Amazônia está atrelado ao marco científico da
abrangência das Heveas147 e o surto econômico de sua exploração contribuiu sobremaneira na
delimitação das fronteiras nacionais que ali se estabeleceram.
A borracha passa a ser parte indissociável de diversos componentes das máquinas da
indústria, dos fios de transmissão de energia e de telecomunicações, dos calçados, de roupas,
dos pneumáticos que vão reconfigurar os veículos, o transporte e a indústria automobilística.
Enfim, essa “planta” passa a estar presente em toda a “sociedade ocidental” e dar-lhe outra
abrangência com o seu agenciamento. Partindo do conhecimento dos índios e apresentada aos
europeus com a colonização, a borracha gradativamente vai encontrando “funções sócio-
lógicas”, até atingir maior envergadura comercial e disseminação com a “descoberta” da
borracha vulcanizada em 1839/1843148.
Assim como outros períodos de exploração de commodities amazônicas, o látex vai
propiciar um grande fluxo migratório contribuindo para configurar a pluralidade de grupos
humanos que vão habitar a região. Esses fluxos migratórios se deram subindo o Rio Tapajós,
o Xingo, o Madeira, posteriormente atingindo o Solimões, o Purus e o Juruá, chegando ao
Acre (Aquyri) em 1877149. Cerca de 300 a 500 mil migrantes nordestinos entre 1860 e 1912150
vão para os seringais tornarem-se “servos por dívida”, como ilustra Euclides da Cunha:
De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão opulento, se não o
freguês jungido à gleba das “estradas”, o seringueiro realiza uma
tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se [...]
Repitamos: o sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a
qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para
escravizar-se.
Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota
fazenda de São Paulo, paternalmente assistido pelos nossos poderes
públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo
147
GONÇALVES, C. W. P. op. Cit. p. 18
148
Essa descoberta está associada ao inventor estadunidense Charles Goodyear em 1839, que por acaso mistura a
borracha natural com enxofre em uma chapa quente, adquirindo outra consistência ao material – elasticidade e
resistência às variações de temperatura. O inglês Thomas Hancock em 1843, consegue efetuar o mesmo processo
obtendo primeiramente a patente e dando maior disseminação comercial ao produto. Contudo, mesmo antes
desta técnica já haviam diversas aplicações para borracha, como calçados, colchões, peças industriais, roupas
etc.
149
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
150
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001. p. 86
178
151
CUNHA, Euclides da, 1866-1909. Um paraíso perdido : reunião de ensaios amazônicos / Euclides da Cunha ;
seleção e coordenação de Hildon Rocha. -- Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. 393 p. --
(Coleção Brasil 500 anos) p.127 e 144
152
GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
153
SANTOS, R. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: Editora T.A. Queiroz, 1980.
179
154
Esse sistema em “rede”, extremamente espoliador e complexo por ter intermediários as vezes até mesmo
aviados/seringueiros, estabelecia numa peculiar cadência de conexões: a)
Floresta/seringueiras/seringueiros/víveres – a extração do látex/produção da borracha com a exploração do
trabalho estabelecida com a permuta dos produtos de outros locais (alimentícios, instrumentos de trabalho,
vestimenta etc.), não havendo, via de regra, pagamento em espécie ao seringueiro (haviam os contadores para
garantir que a dívida permanecesse); b) Rio/barco/regatão/seringalistas – a tecnologia do barco a vapor e o
“crédito” dos produtos de
subsistência proporcionavam o custeamento da viagem para os locais longínquos – o
seringalista ou o regatão (dono do barco e geralmente intermediário) obtinha a
borracha sem ter qualquer
custo
adicional; c) Urbe/casas-aviadoras/casas-exportadoras – venda da borracha para as casas
exportadoras em
Manaus ou Belém; d) Capital estrangeiro – o recebimento do crédito controlado pelo capital inglês ou norte-
americano nas casas exportadoras, percebido enquanto moeda, apenas pelas casas aviadoras e seus
intermediários diretos (coronéis, patrões, comerciantes, regatões).
155
O documentário “Nas Terras do Bem-Virá”, Brasil, 2007, 111min.- Direção: Alexandre Rampazzo, traz uma
análise muito bem amparada das condições atuais de trabalho e exploração dos recursos na Amazônia brasileira.
156
Que em muito ultrapassava o Tratado de Tordesilhas.
157
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
158
MEDEIROS, R. A. L. op. Cit. p. 52 - 59
180
argumenta a importância dessas terras em disputa com a Espanha. Gusmão opera a linguagem
dos tratados para assegurar a efetividade do Tratado de Madri (1750), mantendo as pretensões
da Coroa Portuguesa – ainda nas suas modificações com os Trados de El Pardo (1761) e
Santo Ildefonso (1777) – nas terras da América Meridional.
Os aldeamentos das missões religiosas vão surgindo em pontos estratégicos ao longo
do Rio Amazonas, na confluência com outros rios como o Tapajós, o Trombetas, o Rio Negro
e o Japurá. Posteriormente estes locais vão dar origem às cidades da região: Santarém,
Óbidos, Manaus e Tefé – respectivamente. Com a domesticação dos índios inicia o processo
de exploração econômica da Amazônia por meio do extrativismo de sua fauna e flora –
especiarias, plumas e peles principalmente – tendo em vista atender o mercado europeu. As
denominadas “drogas do sertão” e os produtos da fauna, não se apresentaram como um
grande atrativo mercantil pela própria dispersão das mercadorias valiosas e dificuldade de
acesso. Por sua vez, também os aldeamentos dos índios nem sempre eram bem sucedidos.
Enquanto conhecedores daquele ambiente, em alguns casos, os mesmos se libertavam e se
refugiavam da “espada e da cruz” portuguesas159, retomando seus hábitos em locais mais
afastados. Porém, junto com os portugueses e a rede sócio-técnico-biológica que avançava,
chegavam também as pestilências virais e bacterianas das quais os índios não tinham defesas.
As epidemias rapidamente se alastravam e ceifavam milhares de vidas em curto período de
tempo160.
Com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e do Maranhão em 1755,
sobre o governo do Primeiro Ministro Marques de Pombal, a Amazônia se integra mais
efetivamente à lógica mercantil. Nesse momento a empresa comunitária jesuítica, fundada na
mão-de-obra servil dos índios amansados, sucumbe diante da empresa colonial,
economicamente mais eficiente, com base na mão-de-obra escravista das diásporas africanas.
Os jesuítas são expulsos da região e as terras passam a ser doadas por cartas de sesmarias
àqueles colonos e soldados que se comprometessem a cultivá-las. A agricultura e pecuária são
ampliadas sendo cultivados cacau, café, algodão, arroz, fumo e anil, consolidando a elite
latifundiária que irá se estabelecer politicamente na região (muito mais ligada a Portugal do
que à elite do resto do país161). Neste período é introduzido o trabalho escravo com negros em
159
MEDEIROS, R. L. de. Decodificando a Internacionalização da Amazônia em Narrativas e Práticas
Institucionais: Governos da Natureza no Brasil e nos Eua. Tese (Doutorado em Estudos Comparados sobre as
Américas) – CEPPAC. UNB, Brasília, 2012.
160
Nesse sentido ver RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras. 2010.
161
Mesmo por questões geográficas, era mais barato, mais fácil e mais perto se deslocar para Portugal do que
para o sudeste do Brasil, especificamente para o Rio de Janeiro onde se situava a elite brasileira à época.
Observações do autor:
1 Mário Meireles (1980: 192) nos informa que, em 1680, esses escravos eram vendidos ao preço de Rs
60$000 por “fôlego vivo” de Angola. As “peças de Guiné”, no mercado de São Luís e Belém, valiam Rs
120$000 a 130$000, enquanto o índio escravo era vendido a Rs 30$000 (SALLES, 1988: 14).
2 As crianças eram vendidas na África, pagando imposto de exportação, sendo agrupadas em diversas
categorias: “crias de pé”, definidas como aquelas que tivessem de quatro palmos para baixo e 181
faziam jus à metade do pagamento do imposto. As “crias de peito” eram isentas de impostos
(KLEIN, 1987: 55).
3 No Pará havia um intenso comércio de aluguel de escravos. Segundo nos relata Salles (1988: 170),
um negro de bom físico e gozando de boa saúde era mercadoria cara no Pará Colonial. Os
proprietários dos escravos cobravam a diária do aluguel em 300 réis, ou Rs 7$500 por mês, ou Rs
1756.89$000
Entreporeste
ano.ano
Comoe um
o de 1788
escravo estima-se
podia quepor
ser comprado foram comercializados
Rs 112$500 cerca
por “peça”, esse era28.657162
preçode
inteiramente amortizado em quinze meses de aluguel, ressarcindo assim o capital empatado (SALLES,
1988: 170). As mais caras eram as amas-de-leite que eram compradas a Rs 500$000 e rendiam,
escravos
quandonegros
alugadas,na 320região do sendo
réis por dia, Grão-Pará
o capital einvestido
Maranhão, contribuindo
amortizado para anos.
em cerca de quatro a formação
Havia, naquele tempo, um mercado regular de famulagem das famílias abastadas que podiam pagar
os pretosda
multiétnica de região
sala e dee,cozinha,
com asmucamas, aios emesmos,
fugas dos aias, amas,dando
pagens,origem
arrumadeiras, lavadeiras
às muitas e
comunidades
cozinheiras (SALLES, 1988: 171).
163
remanescentes de quilombo da Amazônia que passaram a viver nos “mocambos” .
POPULAÇÃO DOS ESCRAVOS NEGROS DO GRÃO-PARÁ EM 1849
162
A estimativa é dada por Herbert Klein, da Columbia University de New York, traduzido e publicado pelo
IBGE nas Estatísticas Históricas do Brasil apud BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural.
3ª edição. Manaus: Valer, 2009. p. 124
163
Esse momento nos é de substancial importância, pois a formação de um dos principais grupos de atores que
compõem a pesquisa tem aí a sua origem. Os negros que se refugiaram da escravidão nas fazendas de cacau das
regiões de Santarém e Óbidos, sobem o Rio Trombetas e se estabelecem acima das cachoeiras onde não podiam
ser recapturados. Esse ponto será aprofundado posteriormente.
164
ACEVEDO, A. & CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993. p.17
182
região. Essa participação vai repercutir em proteção por parte dos setores comerciais que se
beneficiavam com as trocas, dificultando as investiduras da ordem escravocrata165.
Na conquista de seus territórios e no domínio sobre os mesmos a relação com os
povos originários é apontada de maneira dúbia na literatura. Ora como relações amistosas, ora
como conflituosas em que os índios eram cada vez mais afastados. Inclusive há relatos sobre
relações de escravidão e sequestro de mulheres indígenas para procriação166. Por sua vez a
autonomia que atingiram sobre os territórios, o substancial contingente populacional que
formaram e as hibridizações culturais e genéticas com os indígenas, assumindo parte de seus
costumes, confluem nos estudos167.
Em 1772 a província do Grão-Pará é separado do Maranhão, posteriormente tornando-
se província do Império em 1823. É subdividido novamente nas províncias do Pará e do
Amazonas pela Lei 582 de 05 de setembro de 1850 que, por sua vez, tornam-se dois estados
federativos em 1889, com a República proclamada168.
Entre 1834 e 1840 uma violenta revolta se instaura na província do Grão-Pará
contribuindo para a afirmação indenitária daqueles povos, principalmente dos subjugados
pelas elites locais. A “cabanagem” explode com os braços dos índios, negros, caboclos e os
brancos renegados e afastados da vida pública. Resumidamente, o movimento toma a capital
Belém em 1835, executando em via pública o presidente provincial Bernardo Lobo de Souza,
o comandante das armas da província, Joaquim Silva Santiago e o capitão James Inglis e
colocando no poder o líder cabano Ten-Cel Félix Antônio Clemente Malcher. O poder sobre a
capital dura pouco sendo retomado no mesmo ano. Isso se dá pelas alianças militares
estabelecidas pelo império (Portugal, Inglaterra, França) e devido às divergências entre os
próprios cabanos, subdivididos em facções, sem uma unidade que permitisse a manutenção do
poder. Por sua vez, subsistindo como guerrilhas, o movimento vai ser liquidado apenas em
1840, levando dois terços da população masculina paraense, cerca de 40.000 homens, na
imensa maioria cabanos. A cabanagem se destaca pelo caráter de secessão que assume com a
proposta de se criar o país do Amazonas. Nesse processo há a participação dos negros dos
165
FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
166
HILBERT, Peter Paul. A cerâmica Arqueológica da Região de Oriximiná. P. Nº 9 Belém: Instituto de
Antropologia e Etnologia do Pará, 1955.
167
Nesse sentido: ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea,
1993.; ANDRADE, Lúcia M. M. de. Os Quilombos da Bacia do Trombetas: breve histórico. Revista de
Antropologia. Volume 38, nº 01, São Paulo, 1995, p.79-99.; e FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive
Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História
da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
168
STELLA, T. H. T. A integração econômica da Amazônia (1930-1980). Dissertação (Mestrado em Economia)
– Instituto de Economia. UNICAMP, Campinas, 2009.
183
tornaram mais “integrados” e dependentes das tecnologias “comuns”, não obstante estarem
marginalizados ou mesmo isolados. Além do mais, com exceção de poucas áreas como o
norte, as demais regiões guardam o estigma da dizimação de parte significativa dessa
diversidade sócio-natural (sobretudo dos indígenas), bem como o extermínio de parte
substantiva do próprio ambiente e dos saberes locais. Nesse sentido, o que o imenso
ecossistema amazônico pode oferecer em termos de subsistência para grupos sociais
tradicionais ou autóctones, tornou-se extremamente raro se comparado ao restante do país.
175
Considerando o termo aqui em sua concepção mais amplamente disseminada: enquanto políticas formuladas
levando-se em consideração os fatores geográficos como formas de se imprimir disciplina e poder sobre os
territórios e re-estruturar a realidade sócioeconômica.
187
ambivalência das propostas governamentais para a região, o que tanto integra quanto
desintegra, conforme o olhar pregresso nos revela.
Se a economia gomífera fez conectar a seiva daquela planta à toda produção técnico-
industrial do ocidente, fez estender também parte dessa rede sócio-técnica à região, sobretudo
nos centros urbanos Belém e Manaus. Trouxe iluminação às ruas, novos meios de transporte,
serviços variados. Trouxe a infraestrutura dos grandes centros, inclusive uma incipiente
indústria manufatureira e a reprodução do conhecimento científico com a Universidade de
Manaus, em 1912 (anterior Escola Livre de Manaus em 1909). Entretanto, estar sustentada em
uma economia primário-exportadora, com foco centrado em poucos produtos, basicamente a
borracha, escancarava a fragilidade dos laços que amarravam essa rede. A posição de
isolamento, a dilapidação tributária do governo central, as relações pré-capitalistas de
produção com o sistema de aviamento, as constantes transferências de recursos das elites para
o exterior e a predominância do capital mercantil, são apontados como fatores que inibiram a
acumulação primitiva do capital e consequente reprodução ampliada do mesmo, com o
reinvestimento na industrialização e diversificação econômica. Ou seja, apesar de auferir
imensos recursos, estes não promoveram o desenvolvimento do capitalismo industrial na
região, como ocorreu com o café no sudeste do país.
Com a “revolução” de Getúlio Vargas em 1930, inicia-se um novo período de
integração territorial no Brasil, com significativas mudanças em âmbito comercial e
produtivo. A exportação primária vai cedendo lugar para a industrialização e para o comércio
nacional interno, como uma bem-sucedida reação à crise de 1929 que atingiu globalmente os
países capitalistas. Com o fortalecimento do Estado e sua intervenção mais efetiva na
economia, a partir do Estado Novo em 1937, surgem políticas públicas que corroboram a
modernização do Estado brasileiro, tais quais: programas de colonização agrária e créditos
agrícolas e industriais pelo Banco do Brasil; instituem-se órgãos setoriais do governo para
tratar assuntos estratégicos, criam-se empresas estatais de grande porte e promove-se a
nacionalização de recursos minerais e o controle federal de produtos agrícolas – dentre eles o
cacau, o café e o açúcar. Integrar a região Norte através da institucionalização de políticas
estratégicas passa a ser uma das bandeiras desse governo. Pode-se depreender o matiz desse
direcionamento político em algumas passagens do pronunciamento presidencial intitulado de
Discurso do Rio Amazonas, proferido no Teatro Amazonas em 10 de outubro de 1940:
[...] Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta, foram as
nossas tarefas. E nessa luta, que já se estende por séculos, vamos
obtendo vitória sobre vitória. [...] Necessitais adensar o povoamento,
acrescer o rendimento das culturas, aparelhar os transportes. [...] Da
188
sua colonização. A missão era “preencher seus vazios” com a abertura de estradas e
identificação de locais propícios à implementação de campos de pouso, bases militares e
futuras cidades. A épica expedição foi liderada inicialmente pelo Coronel Flaviano de Mattos
Vanique e seu grupo de frente com 40 homens, cada um com “um fuzil, cinquenta balas e um
par de botas”. No seu avançar passou a ser liderada pelos irmãos Leonardo, Orlando e
Cláudio Villas-Bôas, após a desistência de Vanique que não queria lidar com os indígenas. A
epopeia percorrera mil e quinhentos quilômetros de picadas abertas e rios, desbravando o vale
do Araguaia e o sul da Amazônia177. A medida que avançava deixava para trás a marca do
“progresso”, com bases militares, criação de estradas, pistas de pouso e fundando dezenas de
vilas que posteriormente tornam-se cidades. Junto com as estradas chegam as fazendas, a
demarcação do território sob a lógica colonizadora da política à brasileira, privilegiando
sempre os “amigos do rei”. A mata vai cedendo lugar às plantações de grãos e criação de
gado, os povos nativos vão se hibridizando e sucumbindo nas doenças, nos trabalhos
espoliadores e na perda de seus habitats. Na ambiguidade dessas relações e na força política
dos Villas-Bôas e Darcy Ribeiro, foi criado a primeira terra indígena demarcada em 1961,
pelo então presidente Jânio Quadros. O Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do
Xingu), com 27 mil quilômetros quadrados, abriga catorze etnias representando um mosaico
linguístico com quatro grande famílias: Carib, Aruak, Tupi e Jê. Essa perspectiva política da
época entendia ser necessário o isolamento cultural dos indígenas, tanto quanto possível, para
assegurar sua subsistência, postergando ao máximo o inevitável contato com o homem
branco.
O pensamento geopolítico militar brasileiro no primeiro momento de Vargas tem
como expoente Mário Travassos com sua obra Projeção Continental do Brasil de 1938.
Preocupado com a integração e controle militar-econômico do continente sul-americano com
a liderança brasileira, sua análise subdivide-se em dois eixos de projeção estratégica:
Atlântico x Pacífico e Prata x Amazonas. Travassos percebia como desafio a essa integração
econômica sul-americana a forte influência norte-americana no continente. Em particular,
negativo aos interesses brasileiros, a influência dos EUA na bacia amazônica. Dentro dessa
perspectiva iniciam-se as projeções de fortalecimento político institucional através de redes de
177
VILLAS BÔAS, O.; VILLAS BÔAS, C. A Marcha para o Oeste: A epopeia da expedição Roncador-Xingu.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
190
Amazônia – Protegido pelo SEMTA”, “Mais pneus para a vitória”, “Mais borracha para a
vitória”, “Cada um no seu lugar – Brasil para a vitória”, entre outros slogans tresvariados,
propagandeados pelo governo que contratara até o artista suíço Jean-Pierre Chabloz180.
Ilustração 02: Jean-Pierre Chabloz, 1942. In. Jornal da Unicamp, nº 542, Campinas. 15 de outubro de 2012.
180
MORAES, A. C. A. Jean-Pierre Chabloz e a Campanha de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
(1943): cartaz e estudo preliminar em confronto. In. VI EHA – Encontro de História da Arte – Unicamp.
Campinas, 2010.
181
Obra literária, com onze contos, de 1908 de Alberto Rangel. Assim como Euclides da Cunha, que chefiou a
expedição para o auto Purús, Rangel parceiro de Euclides, em sua obra buscava retratar a vida do homem na
floresta amazônica e o trabalho duro nos seringais. O livro com seu “ardente verbalismo” desmitificava a ideia
de Eldorado que habitava o consciente popular de outras regiões do país na época.
182
STELLA, T. H. T. A integração econômica da Amazônia (1930-1980). Dissertação (Mestrado em Economia)
– Instituto de Economia. UNICAMP, Campinas, 2009. p. 76
192
183
No documento oficial do governo chamado “Operação Amazônia” de 1966, é relatado, página 40, que: “Não
se cumpre o dispositivo constitucional de vincular três por cento da recita tributária para programas de
valorização da Amazônia”.
184
O ex-presidente, então parlamentar, Arthur Bernardes liderou a campanha contra o Instiuto da Hiléia, dizendo
ser o mesmo uma proposta de internacionalização da Amazônia, destacando que o mesmo: “poderia adquirir,
possuir e levar bens, contratar e assumir obrigações, receber contribuições e donativos, movimentar fundos, criar
e gerir centros científicos e outros serviços em geral, executar atos legais necessários às finalidades”. O IIHA,
com conclave em Iquitos, Perú, reunia além dos países possuidores de territórios amazónicos, os que detinham
relações coloniais como França, Holanda, Inglaterra e também a Itália que não se enquadrava nos intereses
diretos. GOVERNO FEDERAL. Operação Amazônia, Brasília. 1966. p. 130
193
1950 o BCB vai ser renomeado enquanto Banco de Crédito da Amazônia – BCA, ampliando
o rol de operações bancárias para diversas atividades, não apenas a borracha.
O retorno democrático de Vargas em 1951 marcou o pensamento nacional-
desenvolvimentista, em certa medida, influenciado pela Comissão Econômica para a América
Latina e Caribe da ONU, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDE e pela doutrina
da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e seu diagnóstico de eliminar os “pontos de
estrangulamento” da economia nacional. Por sua política própria foi criada a Petrobrás em
1953, entre outras estatais, consideradas como grande obra do nacionalismo político-
econômico de Vargas a contragosto norte-americano185. Para a região amazônica suas
políticas buscavam a promoção de um desenvolvimento capitalista, mas sem desconstituir os
sistemas econômicos vigentes na época e suas relações de poder (considerando os interesses
das elites locais e a ordem social estabelecida). A Amazônia seguia como consumidora de
produtos de toda ordem e exportadora primária de produtos do extrativismo e da agricultura.
Neste período, em 1953, foi regulamentado o Plano de Valorização da Amazônia e
criada a Superintendência para a Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA, pela Lei
Federal 1806 de 1953186. Essa mesma Lei incorpora à Amazônia o Estado de Goiás, do
Maranhão e do Mato Grosso, que passou a se chamar Amazônia Legal. Aí estabelecidas suas
delimitações por razões geoeconômicas, como forma do governo planejar e promover o
desenvolvimento da região, não mais pela característica florestal do bioma.
Após Vargas, no período subsequente, a lógica do capitalismo industrial se aprofunda,
constituindo-se indústrias ainda mais pesadas, realizando-se empréstimos ainda mais
vultuosos, criando uma vinculação ainda mais estreita com a sócio-tecnologia do modelo
econômico ocidental – um alinhamento mais fiel como ocorreu no governo Dutra. Na mesma
medida em que se aprofunda o capitalismo industrial e sua fome de mobilizar uma imensa
diversidade de seres humanos e não-humanos, se aprofundam as desigualdades entre os
centros e as periferias, tanto na microescala quanto na macro. A Amazônia agora se torna uma
importante “fronteira de recursos” e deve ter continuada a política de integração já iniciada
por Vargas. Só que ampliada, criando-se novas conexões, conexões mais íntimas com a
própria rede sócio-técnica que se instaurara: por estradas.
185
SKIDMORE, T. E. Brasil de Getúlio Vargas à Castelo Branco (1930 – 1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1975.
186
A SPVEA tinha como objetivo: a) assegurar a ocupação da Amazônia em um sentido brasileiro; b) constituir
na Amazônia uma sociedade economicamente estável e progressista, capaz de, com seus próprios recursos,
prover a execução de suas tarefas sociais; c) desenvolver a Amazônia num sentido paralelo e complementar ao
da economia brasileira.
194
Mensagem da Amazônia
Prezado Compatriota:
1. Venha investir na Amazônia, nossas terras são férteis e tudo nelas é
abundante!
2. Leis federais, estaduais e municipais oferecem ao homem de empresa
brasileiro condições altamente favoráveis para participar do
programa de aceleração do desenvolvimento da região amazônica.
3. A SUPERINTENDENCIA DO DESENVOLVIMENTO DA
AMAZÔNIA (SUDAM) e o BANCO DA AMAZÔNIA S/A (BASA) estão
à sua disposição para ajudá-lo a investir num dos muitos projetos em
implantação: são empreendimentos industriais, agrícolas e pecuárias
disseminados na imensa extensão territorial que é a Amazônia
brasileira.
4. Venha, pois participar do desbravamento econômico da Planície
Verde, através da Operação Amazônia.
5. Seja mais BRASILEIRO conhecendo melhor a Amazônia e ajudando a
integrá-la definitivamente no patrimônio ativo nacional.
(Mensagem da Amazônia – Álbum Operação Amazônia, 1967)
em análise. Os incentivos se davam por ordens diversas. As atividades exercidas por pessoas
jurídicas que eram consideradas de interesse para o desenvolvimento da região, ficavam
isentas do imposto de renda em 50% para os que já haviam se instalado até a publicação da
lei, e 100% para os que se instalassem até o fim do exercício de 1971. Outros benefícios
tributários também eram atribuídos com relação à importação de equipamentos, desde que
não produzidos no Brasil. As deduções tributárias para investimentos diretos, outra forma de
incentivo, recaiam sobre o imposto de renda de qualquer empresa com registro no país.
Variavam entre 75%, para investimentos no FIDAM, à 50%, para projetos agropecuários,
industriais e de serviços básicos (energia, transporte, comunicações, colonização, turismo,
educação e saúde pública).
Como já comentado, o antigo Banco de Crédito da Amazônia – BCA foi transformado
no Banco da Amazônia S.A. – BASA. Com atribuições ampliadas em relação ao BCA, o
BASA tornou-se o depositário dos recursos provenientes das medidas fiscais do governo.
Essa instituição financeira pública, responsável pela execução creditícia da política do
Governo Federal na região, atuava executando os serviços bancários em geral, com linhas de
créditos e financiamentos para os projetos públicos e privados, conforme mencionado, e
também com negociações para obtenção de recursos externos com agências internacionais ou
estrangeiras.
Já nos primeiros anos do golpe militar, a política governamental experimentada
começa apresentar resultados para o Governo, com a ampliação do número de projetos e de
investimentos para a região. Com a criação da SUDAM e do BASA a “nova política” se
solidifica enquanto novo marco para as transformações posteriores. No discurso proferido
pelo então presidente Humberto Castello Branco no Teatro Amazonas em dezembro de 1966,
de maneira entusiástica, salientou-se a proeminência dos céleres resultados:
Não fizemos milagre que não fosse o do trabalho e o da honestidade.
E daí a verdadeira multiplicação dos pães a que temos assistido na
administração da Amazônia. Realmente, ao assumir o General Mário
Cavalcanti a direção da SPVEA em 1964, não encontrou sequer um
projeto aprovado para absorver os recursos oriundos do Imposto de
Renda. Hoje, há cerca de 40 projetos aprovados, com investimentos
previstos num montante de 73 milhões; além de mais 9 projetos em
fase de conclusão, num total aproximado de sete bilhões. Alguns
deles, como acontece com o da JUTEX, para fiação e tecelagem, da
SIDERAMA, para siderurgia, e da SABIM e INASA, para madeiras,
202
191
BRANCO, H. C. Solenidade de instalação da I Reunião de Incentivo ao Desenvolvimento da Amazônia. In:
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Operação Amazônia: discursos. Serviço de Documentação e Divulgação.
Belém. 1968. p. 39
192
ANDRADE, J. W. Solenidade de instalação do Conselho Deliberativo da SUDAM. In: GOVERNO
FEDERAL/SUDAM. Operação Amazônia: discursos. Serviço de Documentação e Divulgação. Belém. 1968. p.
133 - 134
203
193
O texto foi confeccionado pelos seguintes pesquisadores: dr.ª Catharina Vergolino Dias, dr.ª Clara Martins
Pandolfo, dr. Alfredo H. Higassi, dr. Antero d. D. P. Lopes, dr Benjamin M. da Silva, dr. Claudio J. Da Costa,
José R. M. Rodrigues e dr. Pedro L. A. da Silva.
194
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972 – 1974). Belém:
Ministério do Interior, 1971. p. 51
204
195
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministério do Interior, 1971. p. 65
205
Legal Florestal. A realidade que se sucedeu, como é de praxe, foi muito diversa do “mundo
bem organizado” idealizado nos projetos governamentais. O documento também menciona a
necessidade de se criar “Reservas Florestais de Renda” para “funcionarem como fontes
permanentes de suprimento de matéria-prima”196.
Por sua vez a fauna é apresentada como uma das principais fontes de alimento das
populações interioranas, o que se mantém provavelmente para grande parte da região, a
exemplo do que constatei na região vivenciada. Apesar da crítica ao modelo de exploração
predatória, na comercialização de peles principalmente, é vislumbrada a possibilidade de uma
“exploração racional” que influiria positivamente na balança comercial regional. Para ilustrar,
posso dizer que, conforme apurei, bem antes da criação das unidades de conservação no Rio
Trombetas, uma das práticas econômicas das populações quilombolas dali era a
comercialização de peles, principalmente de felinos, caçados pelos “gateiros”. No estudo
governamental, perscruta-se também sobre criação de parques e reservas com fins turísticos
como fonte de renda. Já com relação à pesca, criticam-se as práticas tradicionais aspirando-se
uma pesca industrializada, a piscicultura e a carcinocultura197.
As menções sobre os povos que vivem nos interiores da grande floresta são raríssimas
por todos os estudos analisados. Essas populações ainda não eram concebidas enquanto
“povos tradicionais” ou “quilombolas”, nesse sentido não gozavam de um estatuto jurídico
diferenciado para os seus modos de vida e seus territórios. As parcas referências os
descreviam enquanto míseros representantes do subdesenvolvimento da região, os espoliados
da patronagem e do aviamento. Para o governo esses povos deveriam ter seus modos de vida
integrados e seus sistemas produtivos racionalizados, adaptados à dinâmica do novo mundo
que chegava. O extrativismo, fonte principal de subsistência desses povos, era prática que
deveria ser extinta ou transformada na medida do possível, conforme mencionado. A postura
explicitada nas pesquisas governamentais para o desenvolvimento regional coadunam com as
políticas públicas experimentadas. Seus resultados, que não poderiam ser outros, ocasionaram
a invisibilidade desses povos por longo período. Sobrepujados pelos projetos econômico-
produtivos e concebidos como anônimos do subdesenvolvimento, quando os “interesses do
desenvolvimento” insidiam sobre seus territórios, esses povos estavam praticamente
desprovidos de quaisquer meios de defesa. Contudo, dentro de sua atuação dúbia, o Estado
desde aquela época tinha como foco a inclusão social dessas populações, indistintamente,
196
Id. Ibid. p. 66
197
Id. Ibid. pp. 69, 70 e 71
206
conforme muitas menções nas propostas de políticas públicas relacionadas à saúde, habitação,
educação etc.
É preciso que se dê ao seringueiro, ao castanheiro, ao madeireiro, ao
babaçueiro – que são milhares de humildes brasileiros – condições de
vida mais humanas, facilitando-lhes acesso a um nível social mais
elevado e mais condizente com o ritmo de progresso que
experimentam a região e o país.198
O extrativismo vegetal, por menos rentável que fosse aos olhos do governo, era fonte
de renda substancial para grande parte da população amazônica. Com uma gama variada de
produtos, a prática extrativista era percebida enquanto “degradante processo de espoliação
social”, atribuindo-se algum destaque econômico à extração da Borracha, da Castanha do
Pará, do Pau Rosa, do Babaçu e das madeiras em geral. Todas as práticas extrativistas tinham
como foco a realização de estudos para a racionalização do processo exploratório.
A Amazônia, para progredir e se desenvolver, tem necessidade de
modificar os seus postulados econômicos, através de uma forma de
atendimento razoável que, sem causar um colapso na economia
regional, com o abandono puro e simples dessas atividades,
abruptamente, possa entretanto proporcionar melhoria de padrão de
vida aos anônimos trabalhadores que, no recesso da mata, à margem
dos benefícios da civilização, ajudam a construir a grandeza do
Brasil.199
198
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministerio do Interior, 1971. p. 75
199
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-1974). Belém:
Ministerio do Interior, 1971 p. 75
200
Id. Ibid. p. 83
207
estudos acerca da espécie vegetal e da produção dava-se por meio de convênio entre a
SUDAM e o Instituto de Tecnologia de Alimentos – ITAL, de Campinas/São Paulo.
Seguindo a lógica do desenvolvimento atrelada ao crescimento econômico, o estudo
indica como áreas prioritárias para o Plano Regional de Desenvolvimento aquelas que já
gozavam de melhor infraestrutura e adensamento populacional.
A ausência de uma rede urbana, bem estruturada na Amazônia, levou
a considerar-se as cidades que, pela sua população, pelas funções
administrativas, políticas, culturais, econômicas, de prestação de
serviços, desempenham um papel importante, não apenas quanto ao
município ao qual pertencem, mas principalmente, porque irradiam
suas influências a outras comunas.201
***
***
Com mais de 85.000 Km2 o Polo Trombetas, em sua área de abrangência, abarcou
parte dos municípios de Monte Alegre, Alenquer, Óbidos e Oriximiná. Com 60% dos solos
203
Id. Ibid. p. 13
204
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Síntese do POLAMAZONIA. Belém. 1975
209
bauxita é que fez estender para lá todo o ideário desenvolvimentista e estabelecer políticas
públicas e conexões reais sobre aquela região reconfigurando-a. Seccionou o arcaico e o
moderno, o produtivo e o improdutivo, o passado e o futuro. Fez jorrar milhões e milhões em
investimentos, solapar interesses dos grupos humanos mais frágeis, dizimar vastas extensões
de floresta e conectar a área com toda a ordem tecnológica, cientifica, social e econômica
relacionada, ao menos de forma incontestavelmente material, com qualquer um que usa
objetos de alumínio provenientes daquela região. A bauxita foi eleita o que era mais
importante naquela região acima de qualquer outra coisa humana ou não-humana. Por razões
de ordem cronológica esse primeiro ator seguirá a narrativa um pouco mais adiante,
apresentando o seu percurso de transformações sócio-lógicas.
Ainda no II PND as reservas de bauxita já eram estimadas em 2,6 bilhões de
toneladas. Enquanto a Transamazônica cortava o sul do Amazonas abrindo caminho para as
pastagens e monoculturas, ao norte emergiam complexos industriais, outras rodovias e ações
para proteger áreas representativas por sua fauna, flora ou outros atributos naturais.
O potencial energético da Amazônia em seus muitos rios considerados como um todo
era estimado em 62.000MW, com exceção do Amazonas que, por si só, representaria cerca de
150.000MW. Ao Rio Trombetas atribuía-se 16.000MW, possuindo um projeto de
hidroelétrica planejada para atender o beneficiamento da bauxita, estimando-se produção de
800MW na área da Cachoeira Porteira207. A hidroelétrica estava prevista juntamente com a
criação de um complexo industrial no Trombetas. A legislação permitia a participação direta
das grandes indústrias consumidoras nas obras de geração de energia, possibilitando um
ambiente favorável para os investidores que vão se instalar durante um breve e transformador
período na Cachoeira Porteira.
O projeto Trombetas visa a exploração da bauxita, cujas reservas
localizam-se nas proximidades da cidade de Oriximiná-Pará, às
margens do Rio Trombetas. O projeto será executado em duas etapas;
a primeira objetivando a exportação do minério lavado e seco e a
segunda a produção de alumina/alumínio; o prazo de maturação para
as duas será de cinco a sete anos, respectivamente. Os efeitos
esperados no quinquênio 1975-79 são os seguintes: produção anual de
cinco milhões de toneladas de bauxita lavada e seca. E um milhão de
toneladas de alumina. Prevê-se ainda, após a construção de Tucuruí,
em 1981, a produção de 640 mil toneladas anuais de alumínio
metálico208.
207
O projeto da hidroelétrica da Cachoeira Porteira, anos depois, vai ser um dos estopins para a organização
políca dos remanescentes de quilombo, assumindo grande importância nesta narrativa.
208
GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimeto – Programa de Ação do Governo
Para a Amazônia. Belém, 1976.p. 73. Continua: Estima-se ainda a aplicação de Cr$ 960,5 milhões, sendo os
recursos oriundos da CVRD, de grupos privados e de financiamentos internos e externos, além de incentivos
212
212
PROST, Catherine. Forças Armadas, geopolítica e Amazônia. Paper do NAEA 156. Dezembro de 2000. p. 31
214
2 OS PLATÔS DE BAUXITA
Foto 10: Mineração Rio do Norte. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2012.
213
KOTSCHOUBEY, Basile et al. Caracterização e Gênese dos depósitos de bauxita da província bauxífera de
Paragominas, Noroeste da Bacia do Grajaú, Nordeste do Pará/oeste do Maranhão. Cap.XI. In. MARINI, O. J.;
RAMOS B. W.; QUIROZ, E. T. Caracterização de depósitos minerais em distritos mineiros da Amazônia.
Brasília: DNPM – CT/MINERAL – ADIMB, 2005.
216
Eu e Thaís Azevedo remávamos já com certa destreza e logo atingimos o pontal de areia do
outro lado, onde avistávamos ao longe a igrejinha adjacente à casinha branca. Atrás de nós o
lago ultrapassava a linha do nosso horizonte. A imagem que penetra as pupilas cristaliza-se na
alma, o tempo parou ali, como se tivéssemos cruzado um portal para ingressar nesse mundo
recôndito. No crepúsculo Dona Tereza ajeitava o fogão de lenha para fazer a comida, nesse
dia os carapanans estavam ouriçados, “carapanam, bicho covarde” dizia Dona Tereza, nem a
fumaça de óleo queimado do lampião os afastava. Seu Chico ajeitava a mesa para comermos e
preparava o combustível para ligar o gerador, lá pelas oito da noite. Tínhamos eletricidade
pelo menos até o final da novela, importante momento para eles, depois retornávamos aos
lampiões e as estórias da mata grande. Dormíamos todos no barracão, lá, curiosamente, os
mosquitos davam trégua.
Quando amanheceu seguimos com Seu Chico até um longo trecho recentemente
desmatado que cortou boa parte da propriedade coletiva PEAEX Sapucuá-Trombetas.
Estávamos próximo da divisa da Floresta Nacional Saracá-Taquera e, naquele lugar,
podíamos testemunhar a realização das obras do “Linhão de Tucuruí”. Projeto bilionário do
Governo Federal, destinado a percorrer 1.800 Km de floresta, por um circuito duplo na tensão
de 500 e 230 quilovolts (KV). O objetivo do projeto é levar a energia da Hidroelétrica de
Tucuruí até Manaus, atendendo alguns municípios do percurso. As torres erguidas só se
avistavam ao longe, algumas estão projetadas com até inéditos 280 metros de altura, ali
apenas grandes buracos, estruturas de concreto em andamento e restos de grandes árvores,
inclusive castanheiras que foram cortadas e que tanto chatearam Seu Chico. Desta vez os
contrastes parecem não caber nos olhos. Seu Chico se queixava que para as comunidades ali,
diretamente impactadas com o empreendimento não haveria “rebaixamento da transmissão”,
ou seja, eles não perceberiam energia elétrica nenhuma com o empreendimento, só as
limitações e prejuízos em suas terras (servidão de 40 metros de largura). No mesmo espaço
das mais sofisticadas linhas de transmissão do país, diversas famílias sem eletricidade, na
escuridão da noite e das políticas desenvolvimentistas. Diferente seria para a MRN em Porto
Trombetas, que obteve licença para uma linha de transmissão própria, com 98 Km partindo
dali e que irá mudar sua matriz energética (o que é possível, posto que uma das subestações
está prevista para o município de Oriximiná). Por determinação do IBAMA foi realizada
audiência pública. Os comunitários do assentamento coletivo brigavam por uma indenização,
segundo os mesmos, miserável.
217
Foto 11: Torre do Linhão no Rio Trombetas. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2013.
O Pará é a segunda maior província mineral do país, logo depois de Minas Gerais,
respondendo por cerca de 35% da economia nacional neste setor. Abriga uma das maiores
reservas minerais do mundo, principalmente em bauxita e minério de ferro. Além de ser o
sexto maior exportador de minérios do Brasil, possui um dos maiores rebanhos bovinos, a
maior produção de pescado, encontra-se entre os primeiros produtores de abacaxi, açaí, coco,
cacau entre outras frutas. Quando a barragem de Belo Monte ficar pronta em Altamira – o
maior município do país em extensão territorial – o Pará provavelmente será a maior potência
hidroenergética do Brasil. O Estado é o décimo terceiro colocado dentre os PIBs nacionais e
cresce acima da média das outras unidades federativas. Seu crescimento econômico galopante
não condiz com a realidade de seu povo, com quase um terço vivendo no nível da miséria e a
maioria, como no restante do país, é pobre. Mas se comparado a outros tempos, esse índice
melhorou significativamente. As políticas governamentais, principalmente do Governo
Federal, atualmente se esforçam mais efetivamente para reduzir as desigualdades e incluir
economicamente os mais pobres. Sobretudo melhorar os índices e fazer com que as pessoas
possam comprar mais objetos, consumir mais... retirar da pobreza equivale a criar
consumidores, integrar ao sistema. O foco principal das políticas afirmativas não é agregar ou
preservar culturas, conhecimentos, experiências de vida, que pouco importam para os
indicadores e estatísticas.
Não obstante as desigualdades sociais persistirem, as políticas para o crescimento
econômico seguem a todo vapor, ainda na toada da velha receita do “crescer para depois
dividir”. Segundo a Federação das Indústrias do Estado do Pará – FIEPA, estão previstos para
os próximos anos mais de R$ 130 bilhões em investimentos públicos e privados, destes mais
de 50% vão para a indústria mineral214 e o restante para infraestrutura ou produção de energia
que também beneficiam o setor mineral. O setor contribuiu com 90% das exportações
paraenses que, por sua vez, contribui com bilhões de reais anualmente na balança comercial
brasileira, sendo o Pará um dos principais responsáveis pelo seu equilíbrio215.
214
Principalmente na região do Carajás onde a Cia Vale do Rio Doce pretende investir cerca de 20 bilhões no
projeto conhecido como S11D, com finalidades de aumentar o processamento do minério retirado pela empresa
na região. FIEPA. Guia Industrial Pará. Disponível em http://cadind.fiepa.org.br/oguia.php. Acesso em 20 de
outubro de 2013.
215
Conforme tabela em demonstrativo do DNPM é possível fazer uma estimativa da movimentação financeira
do setor minerário na balança comercial. DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL.
Economia Mineral do estado do Pará. Belém, 2012. Disponível em
http://www.dnpm.gov.br/mostra_arquivo.asp?
IDBanco
ArquivoArquivo
=6860. Acesso em 21 de outubro de
2013.
219
NCM*
DESCRIÇÃO VALOR
26011100 Min. De ferro não aglom. E seus 11.770.815.145
concentrados
26030090 Outros minérios de cobre e seus 853.845.822
concentrados
26020090 Outros minérios de manganês 280.458.651
25070010 Caulim 259.132.241
26060011 Bauxita não calcinada 199.932.321
75022000 Ligas de níquel em forma bruta 91.148.529
71081310 Ouro em barra, fios, perfis de sec. Mac., 82.088.088
bul. Dour.
26090000 Minério de estanho e seus concentrados 9.733.647
26110000 Minério de tungstênio e seus concentrados 554.169
TOTAL 13.547.708.613
São milhares de pessoas que empregam sua força de trabalho para fazer a máquina
minerária rodar, mas que sem a alta tecnologia, as imensas escavadeiras e caminhões, linhas
férreas, navios, muita energia, capital, combustível, decisões políticas e muitas outras forças
somadas, de nada servem. Desse contingente de empregados apenas 35% são paraenses e a
maior parte está alocada nos setores de lavra e beneficiamento em que o nível de escolaridade
necessário é o fundamental e o fundamental incompleto216.
Dentre as atividades econômicas minerárias do Pará as empresas ligadas à bauxita
movimentam um mercado bilionário e fazem da região um dos principais polos produtores do
mundo, oscilando entre o terceiro e o quarto lugar. Suas 2,7 bilhões de toneladas
correspondem a 75% das reservas brasileiras e estão entre as maiores do mundo217. Das
quinze maiores empresas paraenses, quatro são diretamente ligadas a esse minério, inclusive a
de maior economia: Hydro Alunorte, Alumínio Brasileiro – Albras, Mineração Rio do Norte –
MRN e Mineração Paragominas, respectivamente. O setor que recebeu aportes bilionários nas
216
ENRÍQUEZ, Maria A. Plano de Mineração do Estado do Pará. In. GOVERNO DO PARÁ. Relato da Sexta
Oficina: Mineração em Unidades de Conservação no Pará. Belém. 2012
217
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Relatório Técnico 22: Perfil da Mineração de Bauxita. Brasília:
Banco Mundial. 2009
220
218
[...]o saldo para os metais é de fortes perdas em 2013, com o alumínio acumulando queda nas cotações de
15% no ano. Segundo analistas, o cenário não deve mudar no ano que vem, já que não há sinais de mudanças na
China, com o país mantendo políticas de subsídio para a produção mesmo com margens negativas. "Como essa
dinâmica não muda, esse ciclo de baixa deve se estender para 2014 e 2015", diz Bruno Rezende, analista da
Tendências Consultoria. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ALUMÍNIO. Cotações do Alumínio primário
recuam em 2013. Disponível em: http://www.abal.org.br/noticias/lista-‐noticia/integra-‐noticia/?id=1183.
Acesso em dezembro de 2013.
219
A produção do alumínio é uma das atividades que mais consomem energia elétrica em sua cadeia de
produção, por isso a variação no preço da mesma influencia toda a cadeia. No Brasil a cotação para o setor está
em US$ 72/MWh, muito acima da média mundial registrada em US$ 40/MWh. ROCKMANN, R. Cautela com
preços baixos e energia cara. In. VALOR ECONÔMICO S.A.: Estados – Mineração lidera a economia: setor
estimula uma sólida cadeia produtiva. Rio de Janeiro. Novembro de 2013.
220
HYDRO. Projeto de alumina da CAP é adiado. 2013. Disponível em: http://www.hydro.com/pt/A-‐Hydro-‐
no-‐Brasil/Imprensa/Noticias/Projeto-‐de-‐alumina-‐da-‐CAP-‐e-‐adiado/. Acesso em outubro de 2012.
221
No sentido de que as próprias companhias mineradoras, concorrentes entre si, participam enquanto parceiras
nos projetos de produção em suas diversas etapas, desde a mineração da bauxita, à produção de alumina, ao
alumínio primário.
221
222
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste Final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 288
222
223
uma de alumínio. A tecnologia exigida em todas as etapas do processo, o custo de
produção e a demanda extrema de energia dão o porte dos atores envolvidos. O Brasil na
produção do alumínio tem destaque internacional tanto na produção quanto na tecnologia
empregada, mas os principais atores que movem esse processo não tem pátria, senão, talvez,
suas matrizes como destinação da maior monta dos dividendos da produção, porém essa trilha
não foi percorrida nesta pesquisa.
A mobilização de outros setores por meio do Estado na cadeia produtiva do alumínio
fica explicitado com o projeto da ALBRÁS – Alumínio Brasileiro S. A. (inicialmente com
capital nacional da CVRD, japonês da Nippon Amazon Aluminium Co. - NAAC e do BNDES,
hoje com a parte referente à CVRD transferida para a Hydro). A ALBRÁS provocou e
viabilizou a construção da Usina de Tucuruí, no Pará, entre 1975 e 1984. A empresa teve para
si criada a Usina de Tucuruí, mas a hidroelétrica, por sua vez, possibilitou a ALUMAR,
criada em 1984, composta pela ALCOA, BHB Billition e Rio Tinto-Alcan, situada em São
Luiz – MA224. Atualmente a construção da hidroelétrica de Belo Monte, orçada em cerca de
R$ 30 bilhões com 80% de investimentos públicos, planejada desde da década de 1980,
apresenta um quadro muito parecido com o desenvolvimentismo do regime militar na
sobreposição de interesses e na manutenção de relações estreitas entre as empreiteiras e
empresas eletrointensivas, principalmente do alumínio primário225. É a renovação dos votos
desse antigo casamento entre políticas governamentais e grandes empreendimentos. A
hidroeletricidade na proporção projetada em Belo Monte beneficia os setores que tem alta
demanda de energia e necessidade de que ela seja estável, contínua e ininterrupta por todas as
horas do dia, diferente das demandas domésticas e de empresas de menor impacto energético
que poderiam ser atendidas por fontes alternativas (eólica e solar)226. A transmissão dessa
energia para o sudeste do país também faz aquecer o setor da bauxita/alumínio que vão
compor parte dos materiais de transmissão (principalmente cabos) – tudo conectado.
223
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Relatório Técnico 22: Perfil da Mineração de Bauxita. Brasília:
Banco Mundial. 2009
224
MACHADO, Raymundo Campos. A Indústria do Alumínio neste Final de Século. Ouro Preto: Fundação
Goicerx. 1988. p. 289
225
FEARNSIDE, Philip M. Belo Monte: Resposta à Associação Brasileira do Alumínio. Instituto Nacional de
Pesquisa da Amazônia. 23 de fevereiro de 2012. Disponível em:
http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/Fearnside-‐Belo%20Monte-‐
Resposta%20a%20Assoc%20Bras%20de%20Aluminio.pdf. Acesso em: 16 de março de 2012.
226
BERMANN, C. & MARTINS, O.S. Sustentabilidade Energética no Brasil: Limites e Possibilidades para
uma Estratégia Energética Sustentável e Democrática. (Série Cadernos Temáticos No. 1) Projeto Brasil
Sustentável e Democrático, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Rio de
Janeiro, RJ. 2000. p.151.
223
227
VALE DO RIO DOCE. A Vale. Disponível em http://www.vale.com/PT/investors/company/fact-‐
sheet/Documents/factsheetp.pdf. Acesso em novembro de 2013.
228
Id. Vale conclui gestão de portfólio de ativos de alumínio. Disponível em:
http://www.vale.com/brasil/PT/investors/home-‐press-‐releases/press-‐releases/Paginas/vale-‐conclui-‐gestao-‐de-‐
portfolio-‐de-‐ativos-‐de-‐aluminio.aspx. Acesso em novembro de 2013
229
RIBEIRO, Ivo. Fatia da Vale na MRN terá disputa acirrada. In Valor Econômico. São Paulo. 29 de setembro
de 2013. Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/3282206/fatia-da-vale-na-mrn-tera-disputa-
acirrada#ixzz2mq3Ozg3k. Acesso em 10 de outubro de 2013.
224
(mercado interno230) e os 41% restantes foram destinados ao mercado externo, sendo 18%
para os EUA, 11% para o Canadá, 10% para Europa e 2% para a China. A MRN conta com
um quadro de empregados de cerca de 1.300 funcionários, destes 88% são da região Norte231.
Conforme buscou-se mapear há uma complexa rede que configura a mineração da
bauxita, quase sempre associada à produção do alumínio, sua principal destinação (o uso para
refratários é muito restrito e não está relacionado com a bauxita da Amazônia). Nessa rede
atuam poderosos grupos de interesses que se coligam para a viabilização de seus projetos.
Formam-se égides sobre égides, é inidentificável de onde originam as decisões e
reponsabilidades. Empresas que “competem no mercado entre si”, mas que aqui apresentam-
se unidas para concretização dos projetos de extração mineral na Amazônia brasileira. É só
ligar os pontos que as linhas se apresentam. O Estado assume o papel preponderante e
garantidor do processo (que detalharemos adiante com a atuação da MRN), na analogia
ecológica, uma relação simbiótica. Alguns iriam preferir dizer que o Estado é parasitado por
interesses externos em que assumimos a posição de eternos fornecedores de matéria prima ou
commodities, entregando nossos recursos ao capital estrangeiro que dilapidam nossas terras e
almas. Os dois lados da divisão internacional do trabalho, quem se enriquece e quem se
empobrece. “A pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas
transações” que só favorecem as perpétuas elites nacionais. Mas, nesse viés, deveríamos nos
prender a uma perspectiva de Estado idealizada que não se assenta em nenhum plano de
existência: o Estado é definitivamente peça fundamental no jogo e a dicotomia do interesse
público e privado é diluída pela própria realidade. A rede certamente se estende aos
indivíduos: governantes ou ligados a eles, alto empresariado, e mesmo aos “Senhores
Ausentes” de Bauman (elites globais), já que o velho modelo José Ermírio de Morais, que
mostra a cara, assume a responsabilidade e maquia o capital externo, não existe mais. Não
tive folego para avançar nessa direção. O lucro é o que faz conectar atuando sobre a nossa
fome, os nossos instintos mais primitivos, ele não determina, é determinado pela ciência e
técnica que faz possível o agenciamentos deste metal, que o faz parte indissociável da
sociedade no número infinito de conexões que passa a estabelecer e dependências que passa a
criar.
230
É importante ressaltar que tanto a Alunorte quanto a Alumar também são exportadoras de alumina, ou seja,
um percentual da bauxita que é processada aqui vai para fora da mesma forma, só que com uma etapa a mais de
beneficiamento. Exportam mais de 80% de sua produção, conforme disponível em seus sites.
231
MRN. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-‐DOE-‐2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
225
A mitologia do eldorado fez a força dos corações aventureiros dos povos ibéricos para
rasgarem o mundo atrás da fortuna dos metais e gemas. O conhecimento milenar da fundição,
que se liga até os dias de hoje à mais sofisticada metalurgia, proporcionou ferramentas,
extensões ou rizomas do nosso corpo, que deram outro poder a nós e as nossas sociedades. Se
uma tribo conhecer um machado de ferro, não mais utilizará um machado de pedra para cortar
uma árvore e, se ela não detiver a tecnologia para a fabricar a ferramenta, passa a estar
dependente de quem a possui. Se um grupo humano produz armas de metal torna-se quase
impossível para outro rival que não as detiver competir ou defender-se. Armas, germes e aço,
como diria Jared Diamond233, fizeram diferença para o povo europeu, selecionado na guerra e
na doença, imbuído de conhecimentos de muitas civilizações anteriores, para dominar as
terras ameríndias. “Tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste”234, os diferentes
ciclos do ouro, da prata, da esmeralda, do diamante ou outro mineral qualquer, abriram as
veias da América Latina que ainda sangram após todos esses séculos. Agora na técnica das
imensas máquinas, na força dos que detém o conhecimento para fazer armas de uranio ou para
nos seduzir e fazer que desejemos machados de ferro para cortar as árvores com que
construiremos nossas casas ou extrairemos a lenha para cosermos nosso alimento.
232
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às
plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 25
233
DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: o destino das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2007
234
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2010. Disponível em:
http://copyfight.noblogs.org/gallery/5220/Veias_Abertas_da_América_Latina(EduardoGaleano).pdf. Acesso
em outubro de 2010.
226
235
LOPEZ, Octavio J. Minería del Caribe y de América Central. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p.
125.
227
Constitucionais Transitórias – ADCT, dispôs sobre o assunto também nos artigos 43 e 44240.
Uma das grandes inovações e a de maior repercussão para a mineração foi o tratamento
exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: a) toda atividade
nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso
Nacional; b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a
pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção,
comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d) a responsabilidade
civil por danos nucleares independe da existência de culpa;
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XII - jazidas, minas, outros recursos minerais e
metalurgia;
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado. § 3º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em
conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros. § 4º - As cooperativas a que
se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e
jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21,
XXV, na forma da lei.
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o
aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições
específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. § 2º - É
assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei. §
3º - A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as autorizações e concessões previstas neste
artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente.
§ 4º - Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de
capacidade reduzida.
Art. 177. Constituem monopólio da União: V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos
cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as
alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a
recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na
forma da lei.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.
240
Art. 43. Na data da promulgação da lei que disciplinar a pesquisa e a lavra de recursos e jazidas minerais, ou
no prazo de um ano, a contar da promulgação da Constituição, tornar-se-ão sem efeito as autorizações,
concessões e demais títulos atributivos de direitos minerários, caso os trabalhos de pesquisa ou de lavra não
hajam sido comprovadamente iniciados nos prazos legais ou estejam inativos.
Art. 44. As atuais empresas brasileiras titulares de autorização de pesquisa, concessão de lavra de recursos
minerais e de aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica em vigor terão quatro anos, a partir da
promulgação da Constituição, para cumprir os requisitos do art. 176, § 1º.
§ 1º - Ressalvadas as disposições de interesse nacional previstas no texto constitucional, as empresas brasileiras
ficarão dispensadas do cumprimento do disposto no art. 176, § 1º, desde que, no prazo de até quatro anos da data
da promulgação da Constituição, tenham o produto de sua lavra e beneficiamento destinado a industrialização no
território nacional, em seus próprios estabelecimentos ou em empresa industrial controladora ou controlada.
§ 2º - Ficarão também dispensadas do cumprimento do disposto no art. 176, § 1º, as empresas brasileiras titulares
de concessão de energia hidráulica para uso em seu processo de industrialização.
229
diferenciado ao meio ambiente e seus atributos que passam a ser “bens de uso comum do
povo”, ou seja, de interesse difuso, “res communis”, de caráter eminentemente público. A
obrigação de reparar o dano causado pela mineração, obrigação já dedutível da Política
Nacional de Meio Ambiente, Lei 6938 de 1981, é ineditamente explicitada na Constituição de
1988. Na mesma linha instituiu-se também uma tríplice responsabilização decorrente de dano
eventual ao meio ambiente: penal (inclusive figurando no polo ativo a pessoa jurídica –
mediante culpa lato senso), civil (responsabilidade objetiva com dever de indenizar e reparar
o dano) e administrativa (correspondente à transgressão de regra administrativa de tutela
ambiental, podendo ser responsabilidade objetiva ou subjetiva conforme a regra
administrativa transgredida).
O reconhecimento da importância da atividade minerária é notório na Constituição de
1988 enquanto atividade de “relevante interesse público”. Por sua vez, com exceção das
substâncias minerais protegidas (radioativas e hidrocarbonetos), a Constituição possibilitou ao
Poder Público autorizar e/ou conceder tanto a pesquisa quanto a lavra para particulares241.
Nesse caso, a grande diferença em relação aos momentos anteriores, está na rigidez do
controle ambiental da atividade pelo reconhecimento de que a mesma pode causar muito mais
prejuízos do que benefícios sem este controle. Aqui a legislação se conecta ampliando os
vínculos e fazendo emergir interesses.
§ 3º - As empresas brasileiras referidas no § 1º somente poderão ter autorizações de pesquisa e concessões de
lavra ou potenciais de energia hidráulica, desde que a energia e o produto da lavra sejam utilizados nos
respectivos processos industriais.
241
Com fins elucidativos segue um breve resumo do regime de concessão e autorização para lavra, baseado no
Código de Mineração em vigor (Decreto-lei 227/1967): 1. Requerimento de Pesquisa em área livre (equivale a
área sem requerimentos ou pesquisas anteriores conforme art. 18 do Código de Mineração). Apresenta-se os
documentos constantes do art. 16 dirigido ao Diretor Geral do Departamento Nacional de Produção Mineral -
DNPM, tais documentos devem ser preparados por geólogos ou engenheiros de minas, atendendo aos requisitos
será emitido Alvará publicado no Diário Oficial da União (ato compulsório). 2. Autorizada a pesquisa o acesso a
área poderá ser negociado com o proprietário ou pleiteado judicialmente, em que serão fixadas as rendas e
indenizações. Após autorizado, o Titular da pesquisa deve iniciá-la dentro de sessenta dias e manter um fluxo
constante de informações para o DNPM, previstos na Lei, até a apresentação do relatório final – Relatório dos
Trabalhos de Pesquisa (art. 22 e 30). 3. Após aprovação do relatório publicada no DOU, o titular tem o prazo de
um ano para requerer a concessão de lavra. Dará entrada então a uma série de documentos para a requisição
dirigidos ao Ministro de Minas e Energia com o Plano de Aproveitamento Económico da jazida. 4. Apresentando
a documentação concernente ao requerimento de lavra será analisada no DNPM e, estando bem instruída,
ensejará a Concessão pelo Ministro de Minas e Energia de uma Portaria, devendo atender aos requisitos do
Licenciamento Ambiental para o aproveitamento da jazida. Cabe ressaltar que também estão previstos os
regimes de a) Licenciamento (substancias de emprego imediato na construção civil) facultado exclusivamente ao
proprietário do solo ou a quem obtiver expressa autorização; b) Permissão de Lavra Garimpeira (substâncias
minerais garimpáveis); c) Extração (para órgão ou entes públicos de substancias utilizadas imediatamente na
construção civil de obras públicas.
230
242
Com exceção do quarto momento os demais encontram-se em: HERRMANN, Hildebrando. A mineração sob
a óptica legal. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da América Latina pela Mineração: Histórico
Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p. 171
231
pela Exploração dos Recursos Minerais – CFEM – que sofrerá reajustes, majorando-os em
geral. 243
A CFEM que substituiu o Imposto Único sobre Mineral - IUM, é uma tributação
específica que recai sobre a atividade de mineração (também recaem as outras tributações em
geral). As alíquotas agrupam as substâncias minerais em quatro grupos: 1. Minério de
alumínio, manganês, sal-gema e potássio – 3% sobre o produto comercializado; 2. Ferro,
fertilizante, carvão e demais substâncias – 2%; 3. Pedras preciosas, pedras coradas lapidáveis,
carbonatos e metais nobres – 0,2%; 4. Ouro – 1% quando extraído por empresas e isento para
garimpeiros. Os recursos são distribuídos da seguinte maneira: 12% para União (DNPM,
IBAMA e MCT), 23% para o Estado onde for extraída a substância e 65% para o município
produtor, conforme a Lei 7990 de 28 de dezembro de 1989. Os recursos do CEFEM por força
da lei, devem ser aplicados em melhorias locais comunitárias, de infraestrutura, qualidade
ambiental, educação, saúde etc. Apesar de existirem diferentes modelos para a cobrança de
Royalties pelo mundo, o Brasil é um dos países com as mais baixas alíquotas244, i. e. está
entre os que menos recebe tributo específico da atividade minerária.
Enquanto atividade causadora de significativa degradação a exploração de recursos
minerais é condicionada ao licenciamento ambiental, seja em âmbito municipal, estadual ou
federal. O licenciamento ambiental torna-se condição para a licença de lavra pelo
Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM. Esse procedimento administrativo sui
generis do direito ambiental, de caráter híbrido (não puramente vinculado e tampouco
discricionário), visa avaliar em todas as etapas do empreendimento (licença prévia, licença de
instalação e licença de operação) os impactos na sua área de influência e a forma como estes
serão controlados/mitigados/compensados, condicionando a expedição das licenças. O
licenciamento ambiental não é ato precário, mas as licenças possuem prazos de validade,
exigindo-se renovações quando vencidas, mas possuindo estabilidade temporal no tempo de
sua vigência. O licenciamento ambiental é precedido de estudos prévios que subsidiam os
tomadores de decisão para a concessão ou não da licença, amparada no “interesse social”.
Estes estudos visam quantificar e qualificar os impactos ambientais, bem como apresentar
globalmente o projeto, a tecnologia utilizada e os responsáveis técnicos, mas não vinculam a
licença. Dentre os diversos tipos de Avaliações de Impactos Ambientais, três são importantes
243
BRASIL. Projeto de Lei nº 5807 de 2013. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=1B5D111BB92060BD820BEF376F
D02721.node1?codteor=1101841&filename=PL+5807/2013
244
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Aspectos Tributários da Mineração Brasileira: Análise
comparativa de Royalties. Brasília, junho de 2009.
233
245
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Instrução Normativa Nº 05 de 02 de setembro de 2009. Disponível
em: http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/o-que-somos/in052009.pdf
246
O jusambientalista Paulo de Bessa Antunes entende ser ilegal a exigência de licenciamento ambiental para a
pesquisa: “Parece-me, portanto, que há uma evidente ilegalidade na exigência de licenciamento ambiental para
as atividades de pesquisa mineral” […]. ANTUNES, P. B. Direito Ambiental. 14ª edição. São Paulo: Atlas.
2012. p. 955. Devo, todavia, dizer que discordo peremptoriamente, a atividade de pesquisa é extremamente
impactante e pude constatar com os meus próprios olhos as estradas sendo abertas e inúmeras árvores sendo
derrubadas para as pesquisas da MRN no Platô Cruz Alta, além de toda a movimentação de lanchas e
mobilização dos pesquisadores e funcionários, com impactos visíveis próximos da comunidade de Mãe Cué,
inclusive sobre a mesma.
234
desenvolvimento. Na medida em que foi ampliando sua penetração social, não apenas no
campo legal, mas sobretudo no moral, foram se multiplicando os diferentes vínculos nos
processos produtivos e obrigando a consideração de fatores de risco inerentes às atividades. A
legitimação de uma atividade como a mineração, até a década de 1970 (ou 1980 para os
países do sul), sustentava-se em um modelo de responsabilidade social coorporativa, num
campo de relações limitado aos seus empregados, clientes, governos, proprietários e
concorrentes. Esse modelo ancorado no universo dos negócios, construía sua aceitação
pública tendo como base argumentativa e publicitária principalmente: os investimentos
realizados, os empregos gerados, o pagamento de impostos, o oferecimento de bens e
serviços, a transferência de tecnologias, a substituição de importações, a entrada de divisas e
as ações filantrópicas como criação de fundações, escolas, hospitais, infraestrutura etc. Esse
modelo de desenvolvimento, com a emergência da questão ambiental, se percebeu acuado e
obrigado a adaptar-se aos novos imperativos morais (legais, políticos, econômicos, sociais,
tecnológicos etc.) atrelados à ideia de crise ambiental, como condição sine qua non de
legitimação social. Esse deslocamento na indústria mineral corresponde à gradativa filiação
ao ideário do “desenvolvimento sustentável”, sacralizado no documento da “Comissão
Mundial da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” de 1987, conhecido como
“Nosso Futuro Comum” ou “Relatório de Brundtland” e nos processos de adaptação
tecnológica denominado “ecoeficiência”. Além da adequação legal brevemente explanada,
nesse “novo modelo” que também incorpora os pontos de legitimação do modelo anterior,
ligados à eficiência econômica, tem somada dois outros vieses de análise: o desempenho
ambiental e o desempenho social (impactos sobre os ecossistemas humanos e não-humanos),
considerados principalmente depois da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento de 1992 no Rio de janeiro. As partes interessadas, aqueles que devem ser
levados em consideração no processo produtivo, são significativamente ampliados. Estes – na
palavra inglesa que se tornou o jargão dos economistas – stakeholders passam a ser: as
organizações das comunidades locais, as ONGs socioambientais, os fornecedores, os
financiadores e outros grupos de interesses especiais, os consumidores, os acionistas, as
mídias, além dos anteriormente considerados. Nesse sentido, o controle se amplia para muito
além do Estado, como é o caso da mineração da bauxita, via de regra relacionada ao mercado
externo, sendo exercido internacionalmente por ONGs, exportadores, acionistas etc247. Nesse
247
BORGES, L. F. Política e Mineração na era da ecoeficiência. In. LINS, F. A. F. A Construção do Brasil e da
América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de Janeiro: CETEM/MCT, 2000. p.
149 - 154
235
248
Nesse sentido ver as obras: VILLAS BÔAS, R. C. Indicadores de desenvolvimento sustentável para a
indústria extrativa mineral: guia prático. Rio de Janeiro: CETEM/MCT/CNPq/CYTED. 2009; VILLAS BÔAS,
H. C. A indústria extrativa mineral e a transição para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:
CETEM/MCT/CNPq. 2011; FERNANDES, F. R. C.; ENRÍQUEZ, M. A. R. S.; ALAMINO, R. C. J. Recursos
Minerais & Sustentabilidade Territorial. Volume I e II. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI. 2011.
236
recursos atendendo as necessidades atuais sem prejudicar as gerações futuras? Não seria uma
relação com o tempo?
Amanhecia mais uma vez no barco no atracadouro de Porto Trombetas. Essa imagem
já não era novidade após tantos episódios, mas desta vez, guardava uma sensação de
nostalgia. Era 17 de janeiro de 2013 e esse seria o último campo do estudo na “cidade
enclave” e eu teria apenas dois dias para cumprir minhas metas até a data do voo para
Manaus, partindo do aeroporto local. Ainda faltava uma parte importante da pesquisa para ser
vivenciada: visitar as grandes minas de bauxita, ver a opulência das máquinas devorando o
solo e a imensa planície vermelha que tomou o lugar da floresta, ainda viva atrás do
horizonte... ver também o verde lentamente tomando espaço nas áreas em recuperação. O
barco chegava de Oriximiná por volta das quatro e meia da madrugada e ali quedava-se até o
sol subir. Aguardando da rede observava com olhos entreabertos as luzes do navio enquanto
se carregava de bauxita, uma cidade flutuante, o shiploader parecia trabalhar dia e noite. Após
solicitações formais de apoio à pesquisa para a MRN, obtive poucas respostas e uma
invariável incompatibilidade de agenda para as visitas e entrevistas. Minha última esperança
era acompanhar alguma fiscalização do ICMBio nas minas, mas não foi possível, pois não
ocorreram em datas coincidentes. A imagem na mente foi construída apenas pelos relatos,
pelas diferentes fotos e o que era possível visualizar do avião.
O Alojamento do Pioneiro em Porto Trombetas é uma área cedida pela MRN ao
ICMBio, após reivindicação realizada ainda na época do IBAMA, em 2003. Ali gozava de
boas acomodações, ar condicionado e cozinha coletiva, mas não havia internet, senão como
serviço oferecido em um cyber-café a algumas quadras de distância. Enquanto pesquisador
credenciado no SISBIO minha estada em Porto Trombetas estava sob custódia do governo e
238
não dependia mais da autorização da MRN. Essa era a situação dos pesquisadores das
unidades de conservação que “pousavam” ali antes de seguir para o interior da unidades.
Porto Trombetas, o distrito que é uma aberração jurídica frente ao direito
constitucional de ir e vir250, foi criado em 1976 sobre uma área de 500 ha denominada Sítio da
Conceição. Antigamente ligado à produção de castanha, o sítio foi adquirido pela MRN em
1970, na época a empresa ainda era totalmente vinculada à Alcan. Porto Trombetas é um
ícone da organização empresarial, a vila construída para abrigar os funcionários da MRN e
das empresas prestadoras de serviço, abriga mais de 6000 pessoas, com cerca de 900 casas
muito similares, mas com diferentes tamanhos e padrões conforme a posição dos funcionários
nos escalões das empresas. O lixo tem coleta seletiva, triagem e compostagem. Há estação de
tratamento de água e de esgoto sanitário e duas usinas termoelétricas para suprir a energia da
vila e das operações da MRN. Muitos elementos de autossuficiência se apresentam, mas não
há produção de alimentos. Comboios de balsas saem regularmente de Belém e Santarém para
abastecerem Porto Trombetas após receberem produtos, via transporte rodoviário, do restante
do país. No supermercado do distrito me surpreendia pela diversidade de produtos, podia
comprar um vinho chileno, ou argentino ou mesmo francês, o que não encontraria em
Oriximiná, quiçá em Santarém. Os produtos ali eram praticamente os mesmos que se
encontram nos grandes centros metropolitanos do Sudeste. Já na Praça da Feirinha (Centro
Comercial do Porto) – exceção da company town no que tange ao acesso público –
encontram-se os produtos locais, hortifrúti e pescados. A escola, administrada pela Fundação
Vale do Rio Trombetas de 1997, com ótimas acomodações, leva o nome do ex-secretário de
educação do Pará, o oriximinaense Prof. Jonathas Pontes Athias e atende cerca de 1.200
alunos até o pré-universitário, principalmente filhos dos funcionários, mas também de
algumas comunidades próximas como Boa Vista, primeiro Território Quilombola titulado do
Brasil. O primeiro hospital, de 1977, recebera o nome de Santo Antônio de Uruá-Tapera.
Posteriormente, em 1986 já como Hospital de Porto Trombetas, gozava de trinta leitos,
serviços de saúde superiores aos de municípios muito maiores, sendo em 1997 terceirizado
em sistema de cogestão para a empresa Pró-Saúde. O Ambulatório na Praça da Feirinha pode
e é utilizado frequentemente pelas comunidades ribeirinhas mais próximas. Além do hospital
250
Em texto da MRN, do documento publicitário bilíngue que apresenta o perfil da empresa, o acesso restrito ao
distrito teria se iniciado em 2002, após o Brasil adotar o Código Internacional de Segurança a Navios, elaborado
depois dos atentados de setembro de 2001, nos EUA, pela Organização Marítima Internacional (IMO), filiada a
ONU. Segundo a empresa para atender a estas normatizações e adquirir a certificação da IMO foram impostas as
restrições, deixando como única área pública a “Praça da Feirinha”. Segundo os relatos históricos e
bibliográficos consultados, a área sempre fora restrita, conforme visto, até o Prefeito de Oriximiná tinha que ter
autorização.
239
Alcan Brasil também tinha sede em São Paulo, mas seu envolvimento inicial se deu de
maneira mais marginal. Por sua vez a Alcan do Rio de Janeiro254 teve importante papel na
obtenção das fotos da Petrobrás que possibilitaram por estereoscopia encontrar os platôs na
imensidão verde. O prosseguimento das pesquisas no seio da floresta se dava de forma
da Inglaterra em 1966. O minério descoberto na década de 1960, pela sua dimensão
rudimentar devido
só poderia a impossibilidade
ser aproveitado de se
no mercado transportar os equipamentos de perfuração,
internacional.
A MRN foi, nessa época, organizada como sociedade anônima, não mais pelo
obrigando que a realização dos poços para análise se desse manualmente nas áreas elegidas
pessoal que conduzia as pesquisas de bauxita da Aluminas, mas pela equipe
onde jurídica
a equipepaulista
montavadaacampamento.
matriz da Alcan no Brasil
Staargaard e teve opor
é sucedido seu diretor
Igor geral Francisque,
Mousasticoshvily
Aubrey Sievert e o engenheiro Jorge Fragoso como diretores da nova empresa.
em 1967,
Essesquatro
dois anos após a primeira
administradores não descoberta, procede a confirmação
tiveram relacionamento da primeira
com o projeto, reserva
que nem
mesmo tiveram oportunidade de visitar.
255
exportável
Figura de bauxita
1: Projeto do Trombetas,
Trombetas - Área danos platôs
Juruti - mapado Saracá
das reservas .
Fonte:
Greig
(1977)
254
O fato de haver tantas subdivisões da mesma empresa e tantas empresas subsidiárias dela, dentre outras
questões, está relacionado à legislação que já exigia que as empresas fossem constituídas sob as leis brasileiras e,
principalmente, restringia a exploração de dado recurso mineral seja por quantidade seja por extensão de área,
bem como o número de pesquisas que poderiam obter etc., para sair dessa situação, foram criadas várias
empresas, todas interligadas e hierarquicamente subordinadas.
255
MACHADO, R. C.; LIMA, M. H. M. R. Implantação do Projeto Trombetas na Amazônia: de 1962 a 1972.
In. 62º Congresso Nacional da ABM. Vitória. 23 a 27 de julho de 2007
242
Mapa 06: Projeto Trombetas – mapa das reservas. Greig (1977) reproduzido por Machado, 2007.
Nesse período a Alcan que tinha como sua principal fornecedora de alumina (bauxita
beneficiada) a fábrica de Arvida na Guina Inglesa, sentia-se ameaçada com a independência
deste país em 1966 e a consequente estatização dos recursos minerais. A descoberta nos
Platôs do Saracá passaram a ser de interesse estratégico para a empresa que assume
diretamente o projeto por meio da matriz em São Paulo e não mais pelos pesquisadores da
Alumina. A Mineração Rio do Norte é criada inicialmente para obter as pesquisas que, após
aprovadas e com os decretos de lavra, tornou-se a firma operadora do Projeto Trombetas da
Alcan. O projeto decidido em Montreal em 1969, teria capacidade de produção de 1 milhão
de toneladas por ano de bauxita que seria destinada para Quebec para atender a própria
Alcan256.
Foto 12: Descoberta da bauxita pela Alcan na década de 1960. MRN, 2013.
A MRN foi organizada como sociedade anônima pela equipe jurídica da matriz da
Alcan em São Paulo. O engenheiro canadense Tom A. Wootton foi designado como chefe
executivo do projeto, convidando, em 1970, Raymundo C. Machado para a presidência da
MRN. Tendo por base as instalações da Alcan na Guiana, que operava com mineração de
grande porte, idealizou-se como seria a mineração no Trombetas. Nesse momento o Governo
256
Id. Ibid.
243
257
MACHADO, R. C.; LIMA, M. H. M. R. Implantação do Projeto Trombetas na Amazônia: de 1962 a 1972.
In. 62º Congresso Nacional da ABM. Vitória. 23 a 27 de julho de 2007
258
Id. Ibid. p. 7
259
I. Ibid. p. 8
244
por ano, exigindo uma pesada industrialização e vultuosos gastos. Para compensar o
investimento, o projeto iniciado para extrair um milhão de toneladas por ano (1Mtpa), passou
para 2Mtpa, posteriormente para 3Mtpa, em que seria necessário um consórcio para o
viabilizar o investimento previsto em US$ 131 milhões. Em novos estudos a Alcan buscou
outra saída que era reduzir a produção para 700 mtpa, evitando a paralização do projeto (neste
caso sem os subsídios da SUDAM). Entretanto, em 24 de maio de 1972 a Alcan, em decisão
unilateral, paralisa o Projeto em consequência desses vários fatores externos e internos que
abalaram a equação econômico-financeira e a viabilidade/interesse do mesmo. “A decisão
assumia os riscos, que depois se consumam, de perder as concessões do governo brasileiro
para a exploração do local”, além de gerar um desconforto no próprio governo brasileiro:
Dias Leite expressou a decepção do governo brasileiro com a
paralisação brusca do projeto. Entretanto, entendia não ser possível
forçar a execução de um projeto não-econômico. Aceitou as razões
apresentadas, mas não gostou da press release da Alcan, em que a
razão da paralisação teria sido a exigência de 51% de participação
acionária da CVRD no projeto, isto é, do Governo brasileiro. [sic]260
260
Id. Ibid. p. 10
245
261
DEAL, Michael. United Sates Dependence on Caribbean Bauxite and the Formation of the Internacional
Bauxite Association. In. Maryland journal of International Law. Volumen 4/Issue 1. Article 16. 1978
262
Considerando que antes a produção brasileira era destinada exclusivamente para o mercado interno e que o
país não tinha suprida sua demanda de aluminio.
246
Reserva
Reserva Biológica
Biológica
do
do Rio
Rio Trombetas
Trombetas
Rio
Rio Tro
Tromb
mbeta
etass
Porto
Porto Trombetas
Trombetas
Lago
Lago
Batata
Batata
9830
9830
MUNICÍPIO
MUNICÍPIO DE
DE
ORIXIMINÁ
ORIXIMINÁ
Monte
Monte Branco
Branco
Floresta
Floresta Nacional
Nacional de
de
Saracá-Taquera
Saracá-Taquera
9820
9820
RRii
ooTT
rroo
m
m
bbee
Saracá
Saracá
ttaass
Cipó
Cipó
Aviso
Aviso Almeidas
Almeidas 9810
9810
Teófilo
Teófilo
ORIXIMINÁ
ORIXIMINÁ
Bela
Bela Cruz
Cruz
LAGO
LAGO DE
DE
9800
9800
SAPUCUÁ
SAPUCUÁ
MUNICÍPIO
MUNICÍPIO Greig
Greig Aramã
Aramã
DE
DEFARO
FARO
9790
9790
90
60
70
30
50
90
10
60
70
20
30
80
00
10
20
80
00
248
Ilustração
Fonte: MRN, 2010 03: Mineração da Bauxita. MRN/RIMA do Platô Bacaba, 2007.
264
ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio
da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
265
Na ordem cronológica desenhada, na medida em que as pressões políticas foram se transformando em
tratados, que, por sua vez, se transformaram em legislações domésticas, foi gradativamente se erigindo a
estrutura administrativa responsável por essa exigência pública e a consideração do “ambiente” enquanto
variável obrigatória das políticas de desenvolvimento. No caso em tela o que efetivamente se assiste é uma brutal
discrepância entre os impactos gerados pela atividade minerária, comparados aos impactos gerados pelas
populações tradicionais e os investimentos públicos e ações efetivas direcionadas no controle dos tradicionais e a
condescendência aberta para com as atividades de mineração.
251
266
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Relatório Anual de Sustentabilidade 2012 – GRI. Porto Trombetas. 2012.
Disponível em:
http://www.mrn.com.br/MateriaisParaDownload/RELATÓRIO%20GRI%202012%20MRN_final.pdf. Acesso em:
27 de julho de 2013.
267
Tive a oportunidade de conhecer o Dr. Francisco A. Esteves no primeiro campo da pesquisa, que coincidiu
com sua estada em Porto Trombetas, num momento ainda exploratório da pesquisa. Por sua vez, o Dr. Fábio
Roland foi meu professor de ecologia na Universidade Federal de Juiz de Fora no ano de 2001, quando cursava
disciplinas do curso de biologia, momento em que esta pesquisa sequer era imaginada.
252
40% da área impactada – podem ser sintetizados em alguns pontos que se correlacionam: 1.
diminuição da turbidez com a redução da ressuspensão decorrente do ressecamento e
compactação do rejeito nos períodos de seca; 2. aumento da concentração de matéria orgânica
ocasionando modificações na estrutura do sedimento depositado; 3. Aumento de grupos e
densidade de macroinvertebrados no sedimento e aumento da biomassa de peixes capturados;
4. Nos igapós as áreas de colonização natural passaram a apresentar considerável
biodiversidade vegetal, as áreas colonizadas com arroz-bravo (Oryza glumaepatula)
apresentam melhora nas condições nutricionais do solo inundável e as áreas colonizadas com
espécies arbóreas tiveram reduzida a taxa de mortalidade, com crescimento lento, mas
contínuo. A expectativa para que o lago atinja novamente seu equilíbrio ambiental, dentro das
variáveis consideradas pela análise, seria por volta do ano de 2017, quase três décadas após o
encerramento de sua contaminação268.
Em novembro de 1989 o rejeito da bauxita para de ser lançado no Lago Batata e passa
a ser depositado em reservatórios na própria área de lavra. A operação custou a MRN,
segundo a própria, mais de US$ 89 milhões e teve que transferir toda a instalação de
beneficiamento, antes em Porto Trombetas próximo ao Lago Batata, para a região das minas.
Como consequência a geometria das áreas de lavra tiveram que ser modificadas para
comportar os reservatórios, utilizados na sequência do processo de mineração, com o aumento
de áreas desmatadas e não florestadas para receber o rejeito. Como essas novas áreas de
rejeito padeciam com maior dificuldade na regeneração florestal, foram firmadas parcerias
com a EMBRAPA e com a UFV para o desenvolvimento de tecnologias próprias para a
revegetação dos tanques.
268
BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De Assis, ROLAND, F. Lago Batata: impacto e recuperação de um
ecosistema amazônico. Rio de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000.
253
3 A CONSERVAÇÃO E A ORDEM
Compartilho
Breve relato sobre o meu trabalho...
O que nos últimos dias me absorveu o corpo e a alma.... e que daqui pra frente o fará,
initerruptamente, até o seu desfecho.
Acho que a beleza deste local não tem como ser descrita, nem meu vocabulário abrange, nem
as fotografias atingem... é só vivendo mesmo para sentir. Então não vou me atrever.
Aqui na Base do Tabuleiro, na Rebio do Rio Trombetas, consigo acesso à internet via satélite
quando estão ligados os geradores, das 18 às 23 horas. Entretanto, nem todos os dias
funciona (até então funcionou somente dois dias – tirando os dias que dormi nas
comunidades que não sei) e funciona mal... é muito, muito difícil, passar um e-mail. Só não
estamos incomunicáveis porque o rádio do ICMBio voltou a funcionar.
Meu corpo dá sinais claros de cansaço e é literalmente na pele que este se mostra. São cortes
infeccionados, espinhos nas mãos e nos pés, brotoejas, espinhas, erupções cutâneas e outras
ordens de reações alérgicas ocasionadas pelo calor, sol e insetos... insignificantes
agressões... são os “ossos do ofício”.
Mas, o que de fato volta mais embrutecido, não é o corpo, mas o “espírito”... é tudo junto!
São muitos sentimentos se antagonizando dentro de mim. Ora o êxtase de atingir resultados
tão promissores em uma pesquisa sublime para mim. Ora a tristeza profunda de viver uma
realidade tão complexa, sórdida e cruel... assim como a própria vida se faz às vezes.
Meu trabalho trata, em síntese, das políticas governamentais de desenvolvimento e
conservação ambiental experimentadas aqui desde meados do século passado. I. e. a forma
neo-colonizadora de avançar o ideário de um desenvolvimentismo homogeneizador no norte
do país, falsamente compreendido como despovoado. Esta marcha foi empenhada pelo
regime militar e por multinacionais que rapinam os recursos do mundo todo... e ainda hoje
endossada pelos nossos governos corruptos.
Dentro desse contexto, a explosão dos conflitos, escancarados no grito abafado dos
fragilizados deste processo, e a distribuição de poder que se configurou em toda região, são
meus objetos de análise. Precisamente delineados “nas linhas imaginárias” que demarcam
duas Unidades de Conservação de importância nacional: a Reserva Biológica do Rio
Trombetas – REBIO-RT e a Floresta Nacional Saracá-Taquera – FLONA-ST.
Neste complexo, além dos recursos minerais, madeireiros e de fauna e flora com exuberância
incomensurável, há a peculiaridade étnica de um povo verdadeiramente sui generis: os
remanescentes de quilombo daqui, outra grande riqueza. Devo muito a eles pelo apoio que
estão me proporcionando. Pessoas das matas e dos rios, indissociáveis deste ambiente, como
os demais seres que aqui vivem e os demais povos da floresta, como os índios e ribeirinhos,
também presentes aqui.
A história dos quilombolas é muito interessante, mas não me cabe falar neste momento...
apenas que parece estar tudo se modificando muito rápido... logo eles vão ser outra coisa...
Para entender a dimensão do problema se faz necessário remissão à história das unidades de
conservação... sempre atreladas, direta ou indiretamente, ao modelo de desenvolvimento
experimentado.
Em 1979, após mais ou menos oito anos de implantação do Projeto Trombetas, se iniciam as
operações comerciais da Mineração Rio do Norte – MRN, com a construção do porto
(carregador de navios) e em seguida a primeira carga de bauxita para o Canadá. Neste
mesmo ano de 1979 foi criada a Rebio-RT, indicada pelo projeto RADAM em 1975, com
estudos desenvolvidos no mesmo ano, financiados pelos programas governamentais,
POLAMAZONIA e SUDAM (os mesmos programas que subsidiavam a mineração). Aqui o
argumento central era a proteção da Tartaruga-da-Amazônia (Podocnemis expansa – adoro
254
os nomes científicos), pois esse era o local em que se identificava a maior presença dessa
espécie e já existiam ali, mesmo antes da Rebio, políticas de conservação desses quelônios
desde 1960.
Contudo, meus estudos estão revelando que, de fato, a proteção das tartarugas e mesmo dos
recursos naturais ali é algo secundário... não para quem exerce a conservação, como os
cientistas, ou para as pessoas dos órgãos ambientais, eles dão existência a isso, mas dentro
de uma macro-política onde conservação, aparentemente, é só um tipo de pretexto no
processo. A Rebio nunca funcionou, existem coisas “muito maiores” em questão. Ostentando
o quão paradoxal é a nossa sociedade, uma das atividades de maior impacto ambiental,
dentre mais degradadoras (pois a retirada da bauxita é a céu aberto, arrancando toda mata
em extensões cujos olhos não alcançam o outro lado) é desenvolvida em conjunto com a
conservação mais severa e segregacionista da reserva biológica. Seria coincidência? Ou uma
forma de compensar tamanha destruição, criando-se uma área de proteção ambiental? Um
pouco além...
Estratégia já há muito utilizada pelos Estados para impor sua ordem se traduz em atingir os
indesejados (no caso a população tradicional simplória que já vivia aqui) indo no cerne de
sua existência: controlando seus modos de vida. Essa é uma forma de controle muito eficaz.
Uma Rebio não permite retirar uma folha, sequer viver ou transitar no local, quanto mais
caçar, pescar, extrair produtos da floresta. E, exatamente isso, é o que consubstancia a
relação de vida desses tradicionais com seu ambiente. São extrativistas e caçadores. Seus
modos de vida foram criminalizados com a Rebio, passaram a ser criminosos simplesmente
por existirem como são. Com isso o “Poder” concentrou nas mãos seus dois bens mais
preciosos: a liberdade, pois detêm-se controle sobre o corpo do infrator, que pode ser preso,
desalojado, ter suas posses confiscadas; e sua cultura, pois seus saberes, sua tradição, seus
valores, sua alma, agora estão proibidos ou submetidos à nova ordem.
Em uma sequência de oportunismos, a ordem ditada pelo governo, que por sua vez se alia
aos interesses das corporações (o poder sobre o poder sobre o poder) e não das pessoas.
Não seria de se admirar que proliferassem conflitos de toda ordem... daí a história que se
seguiu foi de violência, humilhações, homicídios e extorsões recaindo sobre aqueles que em
outros tempos eram escravos (ironia do destino? Carma?). E violência também proferidas
por eles. A Rebio, e sua ordem ambiental conservacionista, representa o Estado no local por
meio dos seus agentes, e o disciplinamento do território, por meio da nova normatização.
Apesar de estar de fato atrelada à preservação dos quelônios da Amazônia, parece que nunca
foi feita para funcionar efetivamente enquanto Rebio, mas, com ela, cumpria-se uma
geopolítica, colocava-se todos ali nas mãos do Estado, impedia-se a formação de bolsões de
miséria dos flagelados em busca de emprego e, se acaso alguma comunidade quisesse criar
algum problema, fazia-se sentir a força da lei... Valer-se da questão ambiental, que é
mundialmente aceita e legítima, como forma de assegurar uma ordem territorial e, a
consequente estabilidade e segurança necessárias ao bom andamento dos negócios
multimilionários da mineração, é uma boa estratégia, temos que tirar o chapéu...
Mas de fato se assim fosse... o bem e o mal ... seria bem mais simples... ocorre que os estudos
justiceiros sobre a realidade aqui não fazem justiça... fazem política... operam a mesma
lógica invertida... essa história precisa ser recontada!
E a conservação da tartaruga, não existe? Existe! Com gente que dá o seu suor e sangue
para isso, gente muito boa! Mas vejamos: desde antes da criação da Rebio estes quelônios
vem reduzindo em número gradativamente (espécie ameaçada de extinção). Com a reserva a
situação não mudou, o declínio continuou, mas agora com dados mais precisos. Uma queda
brusca (absurda) se dá por volta de 1998 até 2004. É um mistério... todos os dados
pesquisados mantiveram-se enquanto relativamente constantes (fiscalização, caça,
contrabando, pesquisas etc.) com algumas exceções, como as inovações tecnológicas dos
255
Como se não bastasse, a história da outra unidade de conservação ainda é mais impactante.
Aqui sim há uma intensão explícita de se usar a questão ambiental para favorecer interesses
e não por oportunismo como o caso da Rebio. A Floresta Nacional Saracá-Taquera foi
criada em 1989, por decreto presidencial, depois de uma reunião “a portas fechadas” com o
Presidente da República da época, José Sarney, o presidente do IBAMA e o presidente da
MRN. Não existiram estudos prévios e nem consulta pública para sua criação. No ano
anterior, 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil que
assegurou em suas disposições transitórias (ADCT-CF88, art. 68) o direito aos
remanescentes de quilombo às suas terras (terras em que vivem ou utilizam). Como os
quilombolas daqui habitavam as áreas adjacentes e pleiteadas pela mineração, utilizando
locais de jazidas, para assegurar que os mesmos não tivessem direito às suas terras (e
atrapalhassem a mineração) foi criada a Flona-ST. Uma forma de “expropriação
ecológica”. Mais uma vez, valeram-se da questão ambiental para legitimar a prática da
mineração, compreendendo esta enquanto “sustentável” sobrepondo-se à prática dos
quilombolas, com mais de duzentos anos vivendo junto a floresta, percebida como
“ameaçadora” ao equilíbrio ambiental. O direito difuso ao meio ambiente, enquanto direito
fundamental da pessoa humana, se sobrepõe ao direito coletivo dos quilombolas na
hierarquia legal. Boa sacada do governo e da mineração, não é?
Agora estou estudando uma área de conflito dentro da Flona, a qual uma comunidade extrai
copaíba, tendo esta atividade como principal fonte de renda da mesma. Esta área foi
destinada à mineração por meio de processo de licenciamento ambiental fraudulento
(omitiram a existência das copaíbas), no Platô Monte Branco. Atualmente, pela legislação
em vigor, mineração em Floresta Nacional seria inconcebível, já que a mesma se destina à
exploração sustentável dos recursos florestais, mas a lei flexibiliza para os grupos
economicamente fortes... é sempre assim e é muito difícil enquanto professor de Direito
Ambiental, dizer para os meus alunos que os rigores desse direito só recaem sobre aqueles
que não tem defesa... é muito triste.
O mais difícil de tudo é que os tradicionais, de uma forma geral, são extremamente desejosos
dessas mudanças... eles me dizem – para você ter uma ideia – que a comunidade do lado da
mineração – que aos meus olhos está desconfigurada, favelizada, eles nem plantam mais,
varrem o chão da mineradora – foi a mais beneficiada, “ganhou” com relação as outras por
estar mais perto, e que ali tem “tudo”. Como assim? A realidade aqui é muito diferente do
que se conta nos livros e artigos. Mas pensa o seguinte: converso com uma quilombola de
uma comunidade mais afastada e ela me conta que recentemente havia perdido o filho, se
acidentou pelo que entendi, o menino morreu numa canoa para o hospital em Porto
Trombetas, o motorzinho da canoa levaria muitas horas, neste caso não tinha jeito... A vida
quer viver e quer viver bem, tanto quanto puder...
Muitos outros pontos são abordados na minha pesquisa, não dá para te contar tudo neste
email com texto apressado. Aliás, tenho vivido isso de forma muito obsessiva e não tenho
como fugir disso.
Ontem estive em outra comunidade quilombola, atualizando alguns dados... me deparei com
um pequeno macaco-prego (Cebus apella) amarrado em uma coleira bem curta que lhe
permitia andar menos de um metro, somente. Estava embaixo de uma palafita (barraco
suspenso que eles moram), sobre uma pequena rede de pano. Era de estimação de uma
família... sobrou depois de comerem a mãe dele... me aproximei para acaricia-lo e ele me
olhou tão profundamente, mexeu a cabeça de lado, emitiu um pequeno assobio...parecia
sorrir pra mim... e me olhava, me olhava, como se me implorasse para retirá-lo dali... como
se pedisse liberdade... eu quase desabei... cara, tive que secar as lágrimas para que ninguém
percebesse. Cheguei a comentar que se ele ficasse preso daquele jeito morreria de tristeza...
me responderam que ele faz muita bagunça...
257
Me explica a vida?
Essa hierarquia das explorações onde um subjuga o outro que subjuga o outro que subjuga o
outro...
Todos os dias eu tenho que escolher o que vou negar dentro mim, do que acredito e valoro...
mas, mesmo que de canto de olho, eu acabo vendo... e mesmo que negue, eu acabo sentindo,
recalcando, colocando lá no fundo... estou me embrutecendo.
Acho que a fracassada missão de explicar a vida é minha... malfadada vida...
Acho que as palavras direcionadas aos vaidosos e pomposos da academia não vão mudar
nada... não posso parar por aqui...
Me sinto pequeno... sou pequeno e frágil...
Desculpe... se te cansei, não foi a intenção... apenas quis compartilhar...
Sinto saudades
A jornada da pesquisa agora vai ao encontro dos liames de outros atores que
constroem aquela realidade sócio-natural nesta temporalidade, além da bauxita e da
mineração já associados à trajetória percorrida. As tartarugas, as castanheiras, as copaibeiras,
os cientistas, os tradicionais e, principalmente nos próximos tópicos, as políticas e os agentes
governamentais são outros recortes que nos são importantes para o que queremos mostrar,
desconsiderando, por incapacidade, inúmeros outros atores que os nossos olhos não
alcançaram. Tomamos o Estado – sem nenhuma pretensão de defini-lo conceitualmente –
como um conjunto de coisas se movimentando, em afecções, um fenômeno sócio-
organizacional que se manifesta sobre determinadas condições, não tendo relação com uma
razão desencarnada do modelo hegeliano, não se tratando de uma existência soberana em si,
muito menos uma abstração que representa a “todos”. Mas uma composição permeável a
díspares interesses. O Estado comporta-se mantendo sua ordem e, para tanto, tem que
modifica-la constantemente, daí decorre a dubiedade que tanto nos referimos. Nos pautamos
no que podemos mostrar, ligar-uma-coisa-na-outra, mas o que mostramos pode estar
equivocado e os nossos traços podem ser refeitos – é possível retrilhar o nosso caminho e
mostrar o que não foi visto ou nos dar novos óculos para vermos melhor onde a nossa visão
falha. O Estado é/são aparelho/s, são instituições, Leis, compartimentos, micro/macro/poder,
direções, centrais de cálculo, polícias, ideais, armas e inúmeros outros objetos conectados em
sua rede que muito o ultrapassa e/ou que não chega em toda sua extensão territorial
imaginária; e, também, são pessoas, algumas subordinadas como cães adestrados, outras
sabotadores compenetrados, burocratas tão funcionais quanto peças de máquina,
trabalhadores assíduos, outros bandidos, alguns desonestos, corruptos aos montes como
praticamente todos somos/seremos/já fomos em alguma instância, algum momento ou algum
lugar, há corporativistas, os de esquerda, os de direita, os de lado nenhum, os que não
trabalham, os que simplesmente são alheios a tudo, centrados nos seus interesses individuais e
258
os que lutam pelas causas que acreditam, matam ou morrem por elas sem mesmo saber o que
são elas. Se tomarmos o Estado enquanto modelos: de Direito, Democrático, Social,
Ambiental e o focarmos o “devir” respectivo a cada um desses modelos, vamos falar do que
não é, do que não veio e, por fim, que não possuímos a menor condição de prever o futuro
para dizer como será. Compactuamos com a ideia de que a democracia é uma construção
contínua e diária, não um modelo ou um lugar para se chegar, mas um caminho ético-político
para se percorrer, não como o único, mas como o mais condizente com as aspirações
contemporâneas. Esse posicionamento, que não se encerra aqui, marca a influência de
Deleuze, mas sem se limitar a ela, em que:
O Estado é soberania. No entanto a soberania só reina sobre aquilo
que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente. Não apenas
não há Estado universal, mas o fora dos Estados não se deixa reduzir à
“política externa”, isto é, há um conjunto de relações entre Estados. O
fora aparece simultaneamente em duas direções: grandes máquinas
mundiais, ramificadas sobre todo o ecúmeno num momento dado, e
que gozam de ampla autonomia com relação aos Estados (por
exemplo, organizações comerciais do tipo “grandes companhias”, ou
então complexos industriais, ou mesmo formações religiosas como o
cristianismo, o islamismo, certos movimentos de profetismo ou
messianismo etc.); mas também mecanismos locais de bandos,
margens, minorias, que continuam a afirmar o direito de sociedades
segmentárias contra os órgãos de poder do Estado. O mundo moderno
nos oferece hoje imagens particularmente desenvolvidas dessas duas
direções, a das máquinas mundiais ecumênicas, mas também a de um
neoprimitivismo, uma nova sociedade tribal [...] O que é evidente é
que os bandos, não menos que as organizações mundiais, implicam
uma forma irredutível ao Estado, e que essa forma de exterioridade se
apresenta necessariamente como uma máquina de guerra, polimorfa e
difusa. É um nomos, muito diferente da “lei”. A forma-Estado, como
forma de interioridade, tem uma tendência a reproduzir-se, idêntica a
si através de suas variações, facilmente reconhecível nos limites de
seus polos, buscando sempre o reconhecimento público (o Estado não
se oculta). Mas a forma de exterioridade da máquina de guerra faz
com que esta só exista nas suas próprias metamorfoses; ela existe
tanto numa inovação industrial como numa invenção tecnológica, num
circuito comercial, numa criação religiosa, em todos esses fluxos e
correntes que não deixam apropriar-se pelo Estado senão
secundariamente. Não é em termos de independência, mas de
coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação, que
é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as maquinas de
guerra de metamorfose e os aparelhos identitários do Estado, os
bandos e os reinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo
campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas descreve sua
259
outras formas de vida e aos ecossistemas, com a linguagem economicista prevalecendo, tende
a ver a natureza enquanto “recurso”, a humanidade enquanto algo aparte, e mantém as
questões sobre justiça e conflitos ambientais ainda muito incipientes e difusas, pela própria
complexidade das mesmas.
A preocupação em conservar o “ambiente” e os “recursos naturais” no Estado
brasileiro, antes de ser um fenômeno recente, remonta a tempos longínquos de quando este
país ainda era uma colônia portuguesa, perpassando o império, a república, até os dias de
hoje. Com sua natureza exuberante e riquíssima o Brasil serviu como fonte inesgotável de
produtos para alimentar o insaciável mercado europeu, sedento de nossas madeiras, da pele
de nossos animais, das plumas de nossas aves, das nossas plantas ornamentais, de nossos
minérios, metais, enfim, de toda sorte de ser vivo e de matéria prima que se conseguia fazer
conectar interesses ou atribuir uma utilidade econômica.
O deslumbramento que o desconhecido mundo novo trazia – inspiração para os
europeus praticantes das ciências naturais se aventurarem em longas viagens pelas florestas,
campos e sertões, em busca de desvendá-los – carregava junto a si o interesse de se
descobrir de que forma tamanha riqueza poderia ser utilizada, explorada, extraviada para a
Metrópole ou para os países civilizados. A Ciência, neste quesito, é insuperável, conforme
discussão da segunda parte da tese. A já bastante conhecida história da utilização da terra
brasileira, percebida quase sempre como um território de passagem, da exaustão causada
pelas monoculturas de cana, algodão, café, cacau; da caçada em busca das peles e plumas,
da retirada incessante de madeiras e minerais; refletia, há muito, uma preocupação com o
esgotamento desses estoques. Já em 1605, diante da drástica redução das “madeiras reais”,
são baixadas pela Metrópole as primeiras normas para controle do corte de certos
espécimes, que passaram a depender de autorização. No período imperial normatizações
caminhavam no mesmo sentido, criando as “madeiras de lei” e criminalizando o corte das
mesmas sem autorização273. Entretanto, tanto as “cartas régias” quanto as “leis do império”
andavam descompassadas com a realidade das monoculturas, da exploração desordenada
dos recursos e do contrabando da madeira.274 A marcha adiante que deixou para trás
273
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
274
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 5º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
262
275
DEAN, Warren. A ferro e fogo: A história e devastação da Mata Atlântica Brasileira. Trad. Cid Knipel
Moreira. Companhia das Letras: São Paulo. 2004.
276
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-
1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
277
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
263
André Rebouças intitulado de “Parques Nacionais”, sob inspiração do modelo inaugurado nos
Estados Unidos com o Parque do Yellow-Stone278.
Em meados da década de sessenta, o Código Florestal é reeditado com a Lei 4771
de 1965, sofrendo algumas modificações posteriores, criando limites significativos à
propriedade com a obrigatoriedade de se conservar espaços territoriais como as Reservas
Legais Florestais e as Áreas de Preservação Permanente. Atualmente o Código Florestal
ganha nova edição com a Lei 12.651 de 2012, mantendo as modalidades de espaços
protegidos. A não observância das determinações legais que recaem sobre a propriedade
passaram a representar uso nocivo da mesma, já com a primeira edição do Código
Florestal279.
Enquanto no Brasil a questão emergia e tomava corpo, em âmbito internacional, já
no início do século XX, movimentos de defesa do patrimônio natural já estavam
consolidados. Uma precursora de destaque no movimento foi “Comissão Internacional de
Proteção da Natureza” já em 1913. Em 1928 tornou-se a “União Internacional de Ciências
Biológicas”, e, em 1948, “União Internacional de Proteção da Natureza”. Mais tarde passou a
ser denominada “União Internacional para Conservação da Natureza e Recursos Naturais”,
atualmente, “União Mundial para a Natureza - IUCN”, ganha sede no Brasil apenas em 2010
e representa bem as mudanças no pensamento conservacionista. No Brasil esse movimento
ganha contornos significativos mais tardiamente, tendo como referência a obra de Wanderbilt
Duarte de Barros, “Parques Nacionais do Brasil” de 1946. A articulação entre cientistas e
personalidades brasileiras com o movimento conservacionista internacional estimula a
organização do movimento nacional dando origem, em 1958, a Fundação Brasileira de
Conservação da Natureza, que exerceu forte influência na política de preservação no país280.
A política de segregar espaços territoriais para protegê-los ganha gradativamente
mais força, até se consagrar como uma das principais estratégias, pelos próprios resultados
que gerou – não obstante os muitos conflitos irresolúveis que trouxe a reboque,
principalmente por desconsiderar o próprio humano enquanto parte do ambiente. Mesmo que
não implementada, apenas criada, uma unidade de conservação assegura significativa
proteção aos recursos da área. Por sua vez, tomada sobre qualquer perspectiva, essa política
não enfrenta o cerne da “questão ambiental”, cujo principal problema se assenta no “modelo
278
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
279
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2004
280
URBAN, Tereza. Saudades do matão. Paraná: UFPR, 1998.
264
Florestas Nacionais (desde 1946), Estações Ecológicas (desde 1975), Reservas Biológicas
(desde 1974), Reservas Extrativistas (desde 1990), entre outras que passaram a ser
incorporadas no SNUC. Sendo que alguns desses territórios com escopo similar, ficaram de
fora como as Área de Preservação Permanente, as Reservas Florestais e Reservas Ecológicas.
Diante da diversidade de espaços territoriais que gozavam de proteção especial, havia
uma preocupação já na década de 1970 em sistematizar a criação e gestão dos mesmos. O
IBDF publicara em 1979 o “Primeiro Plano do Sistema de Unidades de Conservação do
Brasil”, consolidando as discussões empenhadas nos anos anteriores. Em 1988 o mesmo
órgão contratara a Fundação Pró-Natureza – FUNATURA para elaborar o anteprojeto de lei
que se tornou o SNUC, amplamente discutido com a comunidade conservacionista. O projeto
foi entregue ao recém criado IBAMA em 1989, passando em seguida pelo CONAMA e em
1992 encaminhado ao Congresso Nacional282.
A Lei 9985 de 18 de julho de 2000 foi alvo de muitas discussões polêmicas e
negociações antes de sua promulgação. Seu principal objetivo foi sistematizar e reunir em um
único diploma todas as categorias de unidades de conservação, disciplinando-as de acordo
com suas atribuições específicas e estabelecendo regras para a criação, modificação, gestão,
implementação e manejo.
Conforme o consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Maurício Mercadante283,
existiam dois polos ideológicos que lutavam para impor seus marcos regulatórios: de um lado
representado pelos conservacionistas e do outro pelos socioambientalistas (ambos compostos
por funcionários públicos, ONGs e políticos). De um lado, os primeiros entendiam que as
unidades de conservação deveriam restringir ao máximo a presença de seres humanos,
reprimir toda sorte de relação que não estivesse sob o estrito controle dos gestores e que não
tivessem fins voltados à própria conservação e a pesquisa científica; criar verdadeiras “ilhas”
de isolamento do território para sua proteção. Do outro lado, empenhava-se uma visão de
inter-relação homem-natureza que rechaçava a ideia de apartheid e buscava o “convívio
harmônico sociedade-natureza” inspirado nas populações tradicionais e silvícolas – neste
sentido, admitindo-se a presença humana e práticas compreendidas como sustentáveis. Apesar
de existirem, antes da elaboração do SNUC, as duas modalidades de unidades de conservação
(as mais restritivas e as que possibilitavam utilização racional dos recursos), o embate
contendia, palmo a palmo, como se daria a gestão dessas unidades, as relações de relevância,
282
MERCADANTE, Maurício. Democratizando a Criação e Gestão de Unidades de Conservação da Natureza: a
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. In. Revista de Direitos Difusos. Florestas e Unidades de Conservação. Vol. 5.
Fev. 2001. São Paulo: ADCOAS, 2001.
283
Id. Ibid.
266
284
Conforme artigo 10 Lei 9985/2000: Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral
da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações
ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo
necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos
naturais.
§ 1o A Reserva Biológica é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus
limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o É proibida a visitação pública, exceto aquela com objetivo educacional, de acordo com regulamento
específico.
§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e
está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
285
Conforme artigo 17 da Lei 9985/2000: Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de
espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos
florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas.
§ 1o A Floresta Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus
limites devem ser desapropriadas de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua
criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.
§ 3o A visitação pública é permitida, condicionada às normas estabelecidas para o manejo da unidade pelo órgão
responsável por sua administração.
§ 4o A pesquisa é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela
administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e àquelas previstas em regulamento.
§ 5o A Floresta Nacional disporá de um Conselho Consultivo, presidido pelo órgão responsável por sua
administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e, quando
for o caso, das populações tradicionais residentes.
§ 6o A unidade desta categoria, quando criada pelo Estado ou Município, será denominada, respectivamente,
Floresta Estadual e Floresta Municipal. (grifei)
268
importância. Correspondem ao mesmo espaço, a dois lados de um mesmo rio, mas seus
estatutos jurídicos lhes conferem atribuições e restrições muito distintas, recriando realidades
distintas. Ambas refletem as peculiaridades e complexidades de um vasto e riquíssimo
território: a Amazônia brasileira do Vale do Rio Trombetas.
Mapa 08: Floresta Nacional Saracá-Taquera e Reserva Biológica do Rio Trombetas. MMA/ICMBIO, 2011.
pesquisa. Essa peculiaridade, necessidade de lei específica para alterações, além de ser uma
garantia necessária para a estabilidade do território protegido, torna as unidades de
conservação espaços distintos daqueles previstos no Código Florestal – Reserva Legal e
Área de Preservação Permanente – que não possuem esse requisito para alterações.
Outro ponto importante de se destacar é a obrigatoriedade de Plano de Manejo e
conselhos gestores para todas as categorias de unidades de conservação. O primeiro
estabelece as regras especificas e contextualizadas a cada realidade para o manejo da
unidade, dizer o que há dentro de cada realidade, o que pode e o que não pode, tomando a
lei como referência geral para estabelecer o disciplinamento e gerenciamento da unidade.
Ou seja, cria as regras internas conforme cada área e sua realidade. Mais uma vez ressalta-se
a necessidade de participação da população do entorno (ou conforme o caso, do interior da
unidade) na elaboração desse instrumento como condição de sua efetividade – apesar de não
haver obrigatoriedade em parte dos casos. Quanto aos conselhos, instrumentos democráticos
de gestão, infelizmente em sua maior parte, sobretudo das unidades de conservação de
proteção integral e algumas de uso sustentável (como é o caso da Florestas Nacionais),
possuem caráter meramente consultivo, ou seja, o seu resultado atinge somente o status de
opinião e não de deliberação coletiva.
A lei prevê também a necessidade de indenização para a população residente no
interior de unidades de conservação que não permitem as mesmas, possibilitando a sua
permanência até o seu devido reassentamento, assegurando a participação ampla na
elaboração das regras de gestão. Ponto importante, pois atenua as injustiças que
tradicionalmente foram cometidas com a criação arbitrária de unidades de conservação.
Conforme o artigo 42:
Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de
conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão
indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e
devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições
acordados entre as partes.
§ 1º O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o
reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.
§ 2º Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este
artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a
compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com
os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes
de subsistência e dos locais de moradia destas populações,
assegurando-se a sua participação na elaboração das referidas normas
e ações.
270
286
MERCADANTE, Maurício. Democratizando a Criação e Gestão de Unidades de Conservação da Natureza: a
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. In. Revista de Direitos Difusos. Florestas e Unidades de Conservação. Vol. 5.
Fev. 2001. São Paulo: ADCOAS, 2001.
271
287
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 55
288
A capacidade de adaptação de muitas espécies frente às modificações que a espécie humana imprime sobre
os ecossistemas, não é suficiente para que as mesmas continuem existindo – as temporalidades são muito
discrepantes. Segregar o espaço, como no caso das unidades de conservação de proteção integral, tem como
finalidade declarada assegurar que parcela da biodiversidade não sucumba diante das relações ecossistêmicas de
uma espécie em expansão – o Homo sapiens. Isto se dá principalmente quando ampliamos a capacidade de nos
apropriar – somar-a-nós – inúmeros elementos/seres do ambiente que nos circunda ou onde atingimos (o planeta
inteiro), suplantando inúmeros outros que não “interessaram” na composição social. Sob a perspectiva da
história geológica da Terra não faz muito sentido preservar as espécies, as mesmas se transformam com o tempo
e por suas próprias interações, criar “ilhas” não freia os processos evolutivos. Mas sob a perspectiva da
autopreservação e da extensão dos valores éticos, faz sentido, na média em que se percebe as múltiplas relações
de interdependência e de correspondência. Se olharmos por outro ângulo, antes de ser uma área e sua respectiva
biodiversidade separada das “sociedades e suas interferências”, é um acoplamento rigoroso da mesma ao corpus
social e à sua regência nesta temporalidade. Mesmo aquelas áreas destinadas à contemplação. Antes de ser um
local proibido para o humano é o local destinado aos humanos que mais operam a composição da sociedade, aos
cientistas. É proibida para alguns humanos. A Ciência penetra e circula por todos esses espaços, por ironia, a
mesma que acelerou o processo de destruição dos habitats. Antes de ser o local onde as espécies vão “viver na
natureza” é o local regrado em que elas serão agenciadas pela ciência, contabilizadas, classificadas,
vivisseccionadas, dissecadas, vão compor coleções, exsicatas, ter revelada sua ecologia, etologia, hábitos
alimentares, seu genoma sequenciado, ou vão ser estoques para um agenciamento futuro. Isso não quer dizer que
as espécies não estão sendo preservadas e nem que isso não é importante. Elas estão sendo preservadas, mas
dentro de uma temporalidade humana e ampliando a composição da sócio-natureza.
Por sua vez, os espaços destinado ao uso sustentável, mais democráticos sem dúvida, são espaços em que se
busca uma interação mais ampla, mas igualmente regrada, em que a sustentabilidade das formas de uso também
é dada pela tecno-ciência. O reconhecimento dos grupos tradicionais, cujo conceito jurídico vai ser dado pelo
próprio SNUC, é o reconhecimento de que determinadas formas de apropriação dos elementos possibilitam
maior durabilidade, mas não uma sustentabilidade a priori.
273
possibilitando que os outros muitos elementos que compõem suas áreas coexistam ou
perdurem para o futuro. Em ambas as situações não estamos falando de uma “natureza” lá
fora, mas espaços ligados à uma determinada rede sócio-técnica.
Foto 15: Colocação da bandeira indicando o controle do Governo sobre a área em setembro de 1976.
IBDF/POLAMAZÔNIA, 1976.
os filhotes eram mantidos em tanques, por cerca de oito meses, até serem entregues aos
criadouros particulares cadastrados, como parte da política de conservação da espécie289.
Institucionalmente até a década de 1970 o Brasil gozou de algumas estruturas
administrativas ligadas a conservação do ambiente, mas subordinadas ao Ministério da
Agricultura e sem uma política ambiental explícita290, que surge com a criação da Secretaria
Especial do Meio Ambiente – SEMA, em 1973. Criada no contexto da Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de Estocolmo de 1972. Os espaços territoriais
protegidos, dentre eles, os que passaram a se chamar unidades de conservação da natureza, já
existiam de formatos variados com finalidades distintas. Essas áreas ficavam sob a tutela de
órgãos como o Serviço Florestal, substituído em 1959 pelo Departamento de Recursos
Naturais Renováveis – DRNR, Conselho Federal Florestal e posteriormente pelo Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, em 1967, criado sob a atmosfera do regime
militar. Esses órgãos e entidades, vinculados ao Ministério da Agricultura, não gozavam de
um orçamento minimamente capaz de dar conta da vastidão territorial do país e não faziam
frente à mentalidade desenvolvimentista que imperava.
O IBDF vai ser criado em 28 de fevereiro de 1967 pelo Decreto Lei 289/67. Enquanto
entidade autárquica vinculada ao Ministério da Agricultura, o IBDF tinha a finalidade de
formular a política florestal bem como orientar, coordenar e executar as medidas necessárias à
utilização racional, à proteção e à conservação dos recursos naturais renováveis e ao
desenvolvimento florestal do País291. O IBDF foi até 1989 a entidade responsável em
administrar a maioria das áreas protegidas, previstas até então em legislações esparsas, como:
o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, os Parques Nacionais, as Florestas Nacionais, as
Reservas Biológicas, os Parques de Caça Federais entre outras. Podia também criar novas
áreas protegidas. O IBDF gozava de poder para fiscalizar e para aplicar penalidades:
apreensões, multas, interdição de atividades etc., relacionadas ao mal uso dos recursos
naturais renováveis. Essa entidade representa o momento em que o Governo Federal se instala
efetivamente na região do Médio e Alto Rio Trombetas, a partir de 1965, mas,
principalmente, com a Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO-RT de 1979, em que a
área passa a ser da jurisdição privativa desta entidade. Contudo, conforme visto no
289
MINISTÉRIO DAS MINAS E ENERGIA/RADAMBRASIL. Folha SA.21 – Santarém. Rio de Janeiro, 1976.
p. 432
290
ACSELRAD, H. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio da
sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001. p.p. 75-96
2001
291
GOVERNO FEDERAL. Decreto-Lei nº 289 de 28 de fevereiro de 1967. Cria o Instituto Brasileiro do
Desenvolvimento Florestal e dá outras providências. Disponível em:
http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/126130/decreto-lei-289-67
275
delineamento histórico das políticas governamentais, a região já era apontada como “polo de
desenvolvimento” e assistida pelos projetos federais desde a década de 1970, dentre outros,
pelo POLAMAZÔNIA e pelo RADAM.
Para recontar a história do IBDF e sua atuação na região a partir da proposta da
REBIO-RT, gravo entrevista em Porto Trombetas com o mais antigo funcionário do local,
hoje do ICMBio, Alberto Guerreiro de Carvalho292, o “Beto Guerreiro”, que desenvolveu os
estudos para a criação da REBIO-RT. Consigo também entrevista em Brasília, com atual
funcionário do IBAMA, João Carlos Nedel293, diretamente envolvido com a implementação
da REBIO e da Floresta Nacional Saracá-Taquera – FLONA-ST, de 1989. Por fim, neste
quadro de pessoas mais antigas ali, gravo entrevista com o funcionário do IBAMA, hoje
alocado em uma unidade operacional no centro urbano de Oriximiná, Manuel de Jesus Gomes
Vinente294. Beto Guerreiro narra sua chegada a Oriximiná, quando sai do INCRA e vai para o
IBDF realizar os estudos para a criação da REBIO-RT:
*Ah você era do INCRA?
- Sim era do INCRA. Eu vinha do Ministério da Agricultura
concursado. Aí depois o INCRA me solicitou do Ministério da
Agricultura e o Ministério da Agricultura não cedeu. Então eu pedi
demissão do Ministério da Agricultura para servir ao INCRA na
Transamazônica. Essa minha ida pra Transamazônica fez que, na
viagem, eu fizesse um novo concurso do DASP que naquela ocasião
estava surgindo em Belém, e passei em terceiro lugar no Brasil todo.
Como passei em terceiro lugar, fui um dos melhores classificados, já
fui como chefe em Altamira, não chefe do projeto integrado de
Altamira propriamente dito, como chefe do mesmo programa, mas era
lá em Brasil Novo, uma agrópole. Em vez de ser chefe do escritório
central, eu era chefe de uma agrópole que pegava do km 40 até o km
180 da Transamazônica, onde hoje em dia já tem uma comunidade lá.
Então nessa administração, eu consegui muita coisa lá. Eu tenho uma
dinâmica de trabalho, que se eu sou seu empregado e você me dá uma
coisa pra fazer eu quero fazer logo. Resolvo logo, eu desembolo.
Quando o governo estipulava dinheiro, eu procurava colocar nos
primeiros meses os recursos e comprar logo o que eu ia precisar,
talvez até pro resto do ano, porque eu não corria o risco de no meio
ocorrer alguma calamidade, um incêndio numa mata em que o
governo precisasse retirar dinheiro pra cobrir aquele outro setor e
tirasse o meu dinheiro. Então eu já tendo meu dinheiro em mão eu
conseguia já comprar todos os equipamentos e formalizar toda a
minha programação já em mãos. Então nunca me faltou recurso
292
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
293
NEDEL, J. C. A implementação da Floresta Nacional Saracá-taquera e da Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 28 de fev. de 2013. Brasília, 2013.
294
VINENTE, M. J. G. A atuação do IBAMA em Oriximiná. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G.
Alcântara em 28 de setembro de 2012. Oriximiná, 2012.
276
295
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira.
CANOTILHO, J. J. G. & MORATO LEITE, J. R. (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2007.
278
296
O filme biográfico do seringueiro acreano Chico Mendes denominado “Amazônia em Chamas” (The Burning
Season no original), dirigido por John Frankenheimer de 1994, retrata bem essa história.
297
ANDRADE FILHO, Jovelino M. Gestão da natureza e natureza da gestão: do IBAMA ao ICMBIo –
Movimento Social dos Servidores de Unidades Federais de Conservação da Biodiversidade. Tese Doutorado:
PPGSD/UFF. Orientação: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Niterói, 2013.
279
acesso aos “livros de registro” existentes na Base do Tabuleiro. Estes livros (como cadernos
de contabilidade de empresas) tinham registrados quase diariamente pelos agentes da base
(os técnicos e/ou contratados), todas as atividades desenvolvidas ali, apresentando: cada
embarcação que passava, as vistorias nas mesmas, as atividades de fiscalização realizadas,
os pesquisadores que chegavam, o controle sobre os ninhos de tartaruga etc. Um diário de
atividades escrito ao longo dos anos. O mais antigo destes documentos que obtive, data
outubro de 1990 e, por meio destes, é possível constatar os trabalhos rotineiros e metódicos
dos agentes, sempre relacionados à fiscalização para preservação dos quelônios, ao controle
de embarcação e ao auxilio nas pesquisas (principalmente com quelônios).
Com a entrada de novos funcionários e, sobretudo, com a gradativa mudança de
mentalidade no que tange à conservação, as relações com os comunitários foi se
transformando. Isso se dá antes da criação do ICMBio, sendo apontado pelos comunitários,
de uma forma geral, na década de 1990 ou um pouco antes. A contratação de pessoas das
comunidades para o auxílio na conservação dos quelônios, via de regra, por contratos
temporários (principalmente na época da desova), já ocorria na época do IBDF (talvez
anteriormente). Por sua vez, um envolvimento mais efetivo das comunidades na
conservação, com programas de educação e incentivos, decorrem de políticas mais recentes.
Acompanho a sucessão entre dois Chefes das unidades, funcionários ingressos
ainda na época do IBAMA que vivenciaram a transição para o ICMBio. Carlos Augusto de
Alencar Pinheiro298, Engenheiro Florestal, pude conhecer ainda como Chefe das unidades
de conservação, no seu último ano em Porto Trombetas. Havia substituído em 2005 outro
Engenheiro Florestal, Vitor Hugo Cantarelli (que não tive contato) e foi substituído pelo
atual Chefe, José Risonei Assis da Silva299, o “Nei”, Engenheiro Agrônomo, que pude
acompanhar alguns trabalhos. Dentro do enfoque da pesquisa, no que tange aos conflitos,
ambos eram significativamente conscientes dos problemas das unidades e apresentavam-se
bastante propícios ao diálogo com os comunitários quilombolas. Presenciei algumas
reuniões dirigidas por José Almeida junto aos mesmos e, pessoalmente assisti o empenho
para com os tradicionais na resolução de suas questões. Por sua vez, ambos também eram
bastante reticentes com os assuntos relacionados à MRN, afirmando que cumpriam
terminantemente suas funções, com autonomia, pois eram funcionários públicos, não
hesitando de autuá-la quando necessário – o que se constata analisando os autos de infração
298
PINHEIRO, C. A. A. Conflitos nas Unidades de Conservação do Rio Trombetas. Entrevista concedida a
Leonardo Alejandro Gomide Alcántara em 12 de dezembro de 2010. Oriximiná, 2010.
299
SILVA, J. R. A. As comunidades tradicionais na FLONA-ST e REBIO-RT. Entrevista concedida a Leonardo
Alejandro Gomide Alcàntara em 15 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
280
que recaíram sobre a empresa. Com um terceiro funcionário, Gilmar Nicolau Klein,
Biólogo, Coordenador de Pesquisa das unidades, também foi possível realizar conversas e
acompanhar trabalhos, mas não cheguei a gravar entrevistas.
Carlos Augusto Pinheiro me externou que já havia uma discussão interna do
ICMBio de Brasília que vislumbrava a recategorização da REBIO-RT com fins de torná-la,
na parte pleiteada pelos quilombolas, uma Reserva do Desenvolvimento Sustentável – RDS
ou uma Reserva Extrativista – RESEX, ou mesmo, a desafetação para tornar essa parte
Território Quilombola. Para a desafetação foi ressaltado que a unidade de conservação
tornar-se-ia inviável, tanto do ponto de vista logístico de sua gestão, quanto pelo que quer
conservar, principalmente a tartaruga, que perderia sua área de reprodução. Conforme visto,
qualquer uma dessas medidas requer lei específica, não depende da instituição. Converso
sobre o mesmo assunto com José Silva que afirma não ter participado de reuniões nesse
sentido, mas se posiciona dizendo não ter nenhuma objeção quanto a isso, por sua vez,
entendia ser melhor para os próprios quilombolas a recategorização e não a desafetação.
Explica que constantemente é requisitado por quilombolas e ribeirinhos do entorno das
unidades de conservação, mas fora de sua área de jurisdição, para combater invasores
(internos e externos). Me apresenta também estudos sobre o Lago do Acapú que foi
desmembrado da REBIO para tornar-se Território Quilombola, onde os recursos sofreram
uma redução drástica. Os mesmos quilombolas reafirmaram em diversos momentos que “se
não fosse o IBAMA, já não tinha mais nada”. A recategorização é um mínimo necessário
para que a área opere conforme a lei, mas a desafetação é uma questão bastante complexa,
que gera uma polifonia de opiniões e opõe interesses, principalmente entre os diferentes
pesquisadores. Mas, entende-se, deve ser avaliada de acordo com a realidade local, sem
idealismos excessivos, levando-se em conta todos os interesses em jogo.
Existem levantamentos fundiários, recenseamentos das populações do interior e
entorno das unidades, e mesmo caracterizações de seus modos de vida e socioeconomia,
acompanhando a história da presença governamental relacionada a estes espaços protegidos.
Entretanto, estudos mais criteriosos surgem a partir do ano 2000, em que o governo contrata
Edna Castro, Rosa Acevedo Marin e Camilo Sanches para realizarem o “Diagnóstico da
Situação: Comunidades Localizadas na REBIO Rio Trombetas”300. Posteriormente dois
estudos se destacam e marcam definitivamente o reconhecimento governamental dos
tradicionais que vivem na FLONA e na REBIO e os conflitos ali vivenciados. Isso de forma
300
CASTRO, Edna; ACEVEDO, Rosa; SANCHES, Camilo T. Diagnóstico da Situação: Comunidades
Localizadas na REBIO Rio Trombetas. Ministério do Meio Ambiente/IBAMA/PNUD, 2000
281
bem mais profunda e detalhada do que os Planos de Manejo das duas unidades, pagos pela
MRN.
O primeiro estudo, intitulado de “Povos do Rio – Cadastro de comunidades
quilombolas e ribeirinhas localizadas no interior e entorno da Reserva Biológica do Rio
Trombetas”, com envolvimento de várias entidades governamentais e não governamentais,
inclusive a ARQMO. O estudo estabelece um levantamento de todas as comunidades do
interior e entorno das duas unidades de conservação, apresentando o número de famílias,
histórico da ocupação, modos de vida e depoimentos dos comunitários sobre suas questões.
Os resultados deste estudo foram apresentados em Brasília com a presença de
representantes do IBAMA/Reserva Biológica do Rio Trombetas/PA, do INCRA –
Superintendência Nacional e regional de Santarém, do Ministério Público Federal de
Santarém, da Comissão Pró-índio de São Paulo e do Núcleo Macaco-prego de Vivências
Ambientais e Culturais. O estudo culmina na propositura de um Termo de Ajustamento de
Conduta-TAC, produzido pelo Ministério Público para ser firmando entre o IBAMA e os
tradicionais das unidades, tendo em vista pactuarem compromissos recíprocos301.
O segundo estudo, “Caracterização Socioeconômica das Comunidades
Quilombolas do Alto Trombetas”, foi publicado em 2010, já com o ICMBio. O objetivo foi
conhecer e compreender a situação dessas populações na região do Alto Trombetas, tendo
em vista subsidiar um posicionamento institucional para o ICMBio, frente as demarcações e
reivindicações para titulação das Terras Quilombolas. O estudo pondera dois polos de
direitos: 1) o direito dos quilombolas ao acesso à terra, 2) o direito à integridade do meio
ambiente. Primando pelo caráter universal de ambos, o coletivo e o difuso, perscruta sobre a
possibilidade de se harmonizarem na realidade em foco. Tomando por base: a) os modos de
vida dos tradicionais; b) a impossibilidade de se conciliar as finalidades da REBIO-RT com
a titulação das terras quilombolas; c) a principal demanda dos quilombolas estar relacionada
à melhoria nas suas condições de vida; o estudo conclui que medidas compensatórias, como
políticas públicas sociais e uma distribuição mais justa dos resultados da mineração, que
repercutisse na melhora das condições de vida dos Quilombolas, tornando-os independentes
dos recursos da REBIO, seria possível dirimir o conflito e assegurar os dois direitos,
mantendo a reserva:
Existem, portanto, possibilidades de negociação que contentam e
beneficiam os moradores das comunidades de remanescentes de
301
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Povos do Rio – Cadastro de comunidades quilombolas e ribeirinhas
localizadas no interior e entorno da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Relatório Final. Núcleo Macacoprego
de Vivências Ambientais e Culturais/FUNBIO/ARPA. Oriximiná. 2006
282
Ministério do Meio Ambiente. Aqui, cabe ressaltar que o Serviço Florestal Brasileiro,
estava, no tempo da pesquisa, empenhando ações na região estudada, com projetos para os
remanescentes de quilombo da Cachoeira Porteira, visando a criação de uma cooperativa de
beneficiamento da castanha. Havia atuações também em outras comunidades,
principalmente com estudos para capacitação na exploração dos recursos florestais e
relacionadas com as concessões florestais licitadas na FLONA-ST.
As discussões para a criação de uma instituição específica para a gestão das unidades
de conservação, apesar de abordadas desde 1973, emergem enquanto um “movimento social
de servidores” a partir das reuniões dos Chefes de Unidades de Conservação Federais
iniciadas na década de 1990. A ineficiência da gestão centralizada no IBAMA para com o
setor de áreas protegidas, que padeciam de uma desassistência generalizada da instituição,
culmina na proposta de criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
– ICMBio, criado pela Lei 11.516 de 28 de agosto de 2007. A proposta é acatada no Governo
Lula, com o Ministério do Meio Ambiente sob comando da Marina Silva. A instituição
passou a ser a principal responsável pela conservação in situ e ex situ da biodiversidade, com
atribuições sobre: as áreas protegidas – com 313 unidades de conservação federais – e Centros
de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade – com 15 centros como o Centro Nacional de
Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas - TAMAR, Centro de pesquisa e
Conservação da Biodiversidade Amazônica - CEPAM, Sociobiodiversidade Associada a
Povos e Comunidades Tradicionais – CNPT entre outros306.
No escopo de criação do ICMBio já estava presente uma percepção mais integrada
entre “sociedade e natureza”. O “mito moderno da natureza intocada” das políticas
conservacionistas descrito em Diegues307, já havia dado lugar a outros mitos. O ICMBio fora
cunhado sobre o jargão do socioambientalismo, herdou as experiências de um longo histórico
de conflitos entre unidades de conservação criadas arbitrariamente com as populações do
interior e entorno das mesmas, sabendo o quanto isso obstaculiza qualquer conservação. Essa
mentalidade já estava avançada no IBAMA, principalmente em 2003 na proposta de gestão
das unidades por um sistema bioregional. Com o ICMBio a questão se entrelaça de vez,
asseverando em sua missão – reproduzida muitas vezes nas conversas com os funcionários de
Porto Trombetas – de proteger o patrimônio natural, “por meio da gestão de Unidades de
306
ANDRADE FILHO, Jovelino M. Gestão da natureza e natureza da gestão: do IBAMA ao ICMBIo –
Movimento Social dos Servidores de Unidades Federais de Conservação da Biodiversidade. Tese Doutorado:
PPGSD/UFF. Orientação: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Niterói, 2013.
307
DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB – Universidade de
São Paulo, 1994.
285
Os recortes acima versaram sobre o acentuado declínio dos quelônios da REBIO, que
trato em tópico próprio, mas que aqui ilustra as diferentes posições institucionais (e também
de mentalidade e pessoais).
O ICMBio assume integralmente a competência da gestão da FLONA e da REBIO,
mas o IBAMA mantem atuação no local enquanto entidade licenciadora das atividades
minerárias no interior da FLONA. No curso da pesquisa não foi possível acesso aos
funcionários do IBAMA relacionados aos licenciamentos da MRN, que estão alocados em
Brasília e realizam vistoriais eventuais. Por sua vez, com outros funcionários que ingressaram
já com o ICMBio, bem mais jovens, foi possível travar importantes conversas e ter um
acompanhamento mais aprofundado: André Luis Macedo Vieira e Andréa de Oliveira
Raimundo. Os dois funcionários tinham perfis muito distintos. Andréa Raimundo, Agente
Fiscal, pelo próprio exercício de sua função, mantinha certo afastamento no trato com os
comunitários, no que pude observar. Por sua vez, foi muito solícita me esclarecendo pontos
importantes sobre as fiscalizações e autuações que foram realizadas na FLONA e na REBIO.
Afirma que dentro das comunidades não são realizadas fiscalizações ou vistorias, salvo se
308
Disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/quem-somos/missao.html
309
VINENTE, M. J. G. A atuação do IBAMA em Oriximiná. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G.
Alcântara em 28 de setembro de 2012. Oriximiná, 2012.
310
SILVA, J. R. A. As comunidades tradicionais na FLONA-ST e REBIO-RT. Entrevista concedida a Leonardo
Alejandro G. Alcântara em 15 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
286
311
SOUZA, Raimundo e SANTOS, Raimundo. Funcionários da base do Tabuleiro da REBIO Rio Trombetas -
FUNTEC/ICMBIO. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcántara em 18 jul. 2011. Oriximiná,
2011.
287
Os “agentes” também são a linha de frente das ações de conservação e dos conflitos
diretos que daí decorrem, muitas vezes, sofrendo ameaças por membros de suas próprias
comunidades. Sobre as questões que seguem, abordando a violência estatal e comunitária, o
tráfico de animais e alguns posicionamentos quanto a isso, para evitar repercussões negativas
ou prejudicar alguém, resguardo as minhas fontes e as mantenho em sigilo. Quando se tratam
de posicionamentos coletivos, identifico-os pelas respectivas comunidades. Reitero que o
trabalho se pauta nas relações de poder sobre o uso dos recursos dentro da FLONA e da
REBIO que estão em controvérsias, criando realidades, com base em ações vivenciadas,
relatadas ou documentadas, sem pretensão de abarcar todas essas relações. Apenas se
descreve o que se observa de uma realidade dentro de uma temporalidade. Os
posicionamentos individuais, coletivos ou institucionais, enriquecem as percepções; no
entanto, mantenho o cuidado de não expor pessoas, qualifica-las ou tipificar suas condutas ou
prejulgá-las.
288
que viviam ou utilizavam parte daquelas áreas, seus modos de vida e especificidades. Os
conflitos que poderiam surgir posteriormente com a criação da mesma, no caso, com os
remanescentes de quilombo (naquela época menos numerosos e não reconhecidos enquanto
tal), são colocados enquanto “dificuldade na fiscalização pela ação extrativa da tartaruga e da
castanha”. Dentre as 103 propriedades levantadas no estudo, apenas 9 não possuíam registro
cartorial, as outras 97 eram tituladas. Essas propriedades estavam concentradas por 18
proprietários, apenas dois destes eram pessoas jurídicas. As propriedades variavam bastante
de tamanho, sendo a maior propriedade medindo 7.200 ha e a menor com 22 ha, perfazendo
um total de 66.924 ha – 32% da área proposta pela reserva. Como o percentual de terras com
proprietários era relativamente baixo, perto do que se pretendia conservar, fossem terras
griladas ou não, a regularização fundiária da reserva foi exposta no estudo como uma
dificuldade contornável pela desapropriação. No que tange ao uso da terra, o estudo descreve
que a agricultura era secundária frente a coleta da castanha, principal atividade econômica
dessas propriedades. Aqui a história contemporânea se conecta à história recente da
Amazônia, nas relações já descritas do aviamento e da patronagem que configuravam as
relações dos tradicionais com essas terras, concentradas nas mãos de poucos latifundiários,
antes da reserva. Por sua vez, um ponto reiteradamente mencionado no estudo em foco é o
desenvolvimento da pesquisa, como um dos argumentos centrais do documento, assim como
as muitas instituições ligadas à pesquisa que atuavam no Pará e que poderiam dar apoio como
o INPA, MPEG, CNPq, EMBRAPA etc. inclusive a UAJV/UFF é mencionada. Nessa
trajetória, a tartaruga Podocnemis expansa é o nosso principal ator, é na busca de seu
agenciamento que se propõem a instauração dessa nova ordem territorial:
Há perigo de extermínio das tartarugas, em virtude da grande procura
de seus ovos, o que não permite uma reprodução a contento. Sendo
sua carne muito saborosa, as tartarugas na época da desova são
apanhadas em grande quantidade nas praias chamadas “praias de
viração ou tabuleiros”, para serem comercializadas314.
Conforme visto, a presença do Governo Federal para “proteger esse recurso” estava
instituída desde 1965, na parceria entre o município de Oriximiná e Ministério da
Agricultura/IBDF, com manejo similar ao que é realizado hoje. Segundo o estudo, outro
314
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA/POLAMAZÔNIA/IBDF. Estudo de Viabilidade para Implantação da
Reserva Biológica do Rio Trombetas. Equipe Executora: Alberto Guerreiro de Carvalho e Francisco Pio
Patenostro. Oriximiná, 1977. p. 29
291
grande atrativo do local para a criação da reserva eram as castanheiras, nosso segundo ator.
Uma das fontes utilizadas pelo estudo do RADAM, reproduzido em Almeida315 afirma que:
Em 1975, o pioneiro nos estudos de ocorrência desses animais na
Amazônia, José Alfinito, chamou a atenção para a necessidade de se
proteger os tabuleiros de desova da tartaruga de rio (Podocnemis
expansa) e principalmente daqueles que foram posteriormente
englobados pela reserva biológica do Rio Trombetas; pois, na ocasião,
se tratava dos tabuleiros onde havia a maior desova de tartarugas,
dentre todos os conhecidos.
315
ALMEIDA, J. B. O. Escopo Jurídico Contemporâneo da Norma Quilombola: O Caso dos Quilombolas do
Rio Trombetas. Belém: Programa de Pós-Graduação em Direito - PPGD do Instituto de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Pará, 2010 (Dissertação de Mestrado) p. 35
316
BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Da Nação ao Planeta através da Natureza: uma abordagem
antropológica das unidades de conservação de proteção integral na Amazônia brasileira. São Paulo: Pós-
Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, 2001. (Tese de Doutorado)
317
WANDERLEY, L. J. M. Deslocamento compulsório e estratégias empresariais em áreas de mineração: um
olhar sobre a exploração de bauxita na Amazônia. In: Revista IDeAS, v. 3, n. especial, p. 475-509, 2009. p. 477;
WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. De escravos livres a castanheiros “presos”: A saga dos negros no Vale
do Trombetas. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais: Caxambu- MG –Brasil, de 29 de setembro a
03 de outubro de 2008. p. 15; WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. “Território Invadido”: As lutas e os
conflitos nas terras dos negros do Trombetas-PA. Monografia apresentada ao Departamento de Geografia,
Instituto de Geociências, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza – Universidade Federal do Rio de
Janeiro-UFRJ, 2006.
292
321
NEDEL, J. C. A implementação da Floresta Nacional Saracá-taquera e da Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 28 de fev. de 2013. Brasília, 2013.
294
ou não-vivos) que estão agenciados em redes mais ou menos extensas ou que traduzem mais
ou menos interesses associados, vão ganhando posições diferenciadas. A bauxita não apenas
demonstrou ter predileção sobre a tartaruga, como alinhou o interesse da conservação da
mesma ao interesse da mineração. A partir daí, pelo que se pode observar, a conservação e
sua consequente ordenação territorial foi bem aproveitada pela mineração, operando em seu
benefício e, de certa forma, sendo conformada por ela nos laços que se criaram. Como?
Sabemos apenas que a Reserva Biológica nunca operou enquanto tal. Mesmo que a mineração
seja o ente mais agressivo na transformação daquele ambiente ela fez alinhar forças diversas a
seu favor. Mas a contenda pode reacender, os laços são frágeis, e se demonstrar, por exemplo,
que a mineração é a causa forte do desaparecimento da P. expansa na região... dependendo de
como repercutir... nos antagonismos, a ordem temporariamente estável iria ganhar provável
movimento. Richard Vogt323, americano de origem germânica, radicado no México e hoje no
Brasil, o mais antigo pesquisador da REBIO diz, com seu acentuado sotaque:
O principal tabuleiro, o tabuleiro do Leonardo, sumiu [...]uma praia,
com mais de 2Km de extensão simplesmente sumiu [...] depois que
dragaram o Rio Trombetas para a passagem dos navios, ela, na seca
seguinte, não apareceu [...] Não sou engenheiro... mas uma praia que
sempre existiu, que séculos e séculos serviu como principal área de
desova da tartaruga... faz essa dragagem aí e ela some... no creo que
és coincidência.
324
BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. DOU de 19/7/2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm.
297
325
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. Plano De
Manejo da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Brasília: STCP Engenharia de Projetos Ltda, 2004.
326
ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993.
327
ANDRADE, Lúcia M. M. de. Os Quilombos da Bacia do Trombetas: breve histórico. Revista de
Antropologia. Volume 38, nº 01, São Paulo, 1995, p.79-99.
328
WANDERLEY, Luiz Jardim de Moraes. De escravos livres a castanheiros “presos”: A saga dos negros no
Vale do Trombetas. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais: Caxambu- MG –Brasil, de 29 de
setembro a 03 de outubro de 2008. Entre outros estudos.
329
FARIAS Jr. E. A. Unidades de Conservação, Mineração e concessão florestal: os interesses empresariais e a
instrução de territórios quilombolas no Trombetas. In. ALMEIDA, A. W. B. Et al. (org). Caderno de Debates
Nova Cartografia Social: Territórios Quilombolas e Conflitos. Manaus: UEA, 2010.
330
FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
298
331
MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985
332
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Inf. Nº02/2011, Porto Trombetas, 05 de janeiro de 2011
333
CASTRO, Edna; ACEVEDO, Rosa; SANCHES, Camilo T. Diagnóstico da Situação: Comunidades
Localizadas na REBIO Rio Trombetas. IBAMA/MMA/PROECOS-PNUD, novembro de 2000.
300
Ocupações 1987-2006
100
90
80 1987
70
60 1996
50
40 2000
30
20 2006
10
0
e
a
te
cu
o
iri
é
i
ira
rá
ar
nd
nh
nh
co
Cu
qu
an
su
ep
m
rte
ra
gi
ar
zi
ud
Ju
Ja
us
ãe
Er
Po
iri
pa
G
M
Aj
M
qu
do
M
do
Ta
iri
o
ira
do
do
Ju
Sã
qu
go
go
oe
Ju
go
go
go
La
La
ch
do
La
La
La
Ca
go
La
Gráfico 1: Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio Trombetas. MINISTÉRIO DO MEIO
AMBIENTE.
O decréscimo ou crescimento das comunidades é relacionado a diversos fatores:
migração entre comunidades, matrimônios, acesso à infraestrutura e a possibilidade de
desenvolvimento econômico. A REBIO-RT criada sobre áreas utilizadas por inúmeros grupos
humanos, dentre eles os quilombolas, com exceção do início de sua implementação, teve
canalizada suas atividades fiscalizatórias na proteção dos quelônios, no mais, nunca operou
efetivamente como uma Reserva Biológica, mesmo porque, conflitaria com a MRN. Os casos
de violências entre agentes governamentais e os tradicionais, que trato adiante, estão
relacionados principalmente à proteção da P. expansa e aos primeiros anos de sua
implementação. Uma hipótese factível para o desenvolvimento de algumas comunidades no
interior da reserva, que antes eram apenas poucas famílias dispersas nas áreas onde hoje são
as comunidades, é o acesso aos castanhais cujo controle sai das mãos dos patrões e passou
para o poder público. Para as comunidades (algo mais que algumas famílias) que surgem
depois de 1990, como Último Quilombo e Nova Esperança no Lago do Erepecú, é bastante
provável um crescimento devido à acessibilidade aos castanhais, apesar de que todas, com
exceção do Jamari, tem como principal atividade extrativista a castanha. Por exemplo a
comunidade Nova Esperança nem aparece em nenhum dos estudos, até 2010; as demais,
conforme o gráfico acima, crescem a partir de 1990, já com o IBAMA, em que se iniciam as
mudanças das posturas governamentais. Ou seja, cresceram ali em virtude do acesso aos
recursos tanto para alimentação quanto para a economia. Na entrevista com Carvalho334 é
334
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
301
* Dentro do Erepecu...
- E se continuar isso vai aumentar muito mais. Não to sendo contra
porque a mentalidade do governo era uma, agora é outra... as coisas
mudam, a fila anda. Só que naquela época era como chamam...
ditadura militar... e o regime militar era danado, não era pra entrar,
não era pra entrar mesmo, não era pra ficar, não era pra ficar
mesmo. Eu levava muita culpa porque eu era o administrador...
* E fazia se cumprir a lei...
- Aqui eu fazia cumprir diretamente e bem feito. Não estou culpando
quem está agora não...
* É que as perspectivas políticas mudam, então assim, o importante
pra mim é entender o contexto daquela época.
- Você tá entendendo, né?
* Sim. Porque o contexto daquela época é importante.
- Então naquela época não existia grupos quilombolas dentro da
reserva.
* Eles só utilizavam aquela área?
- Só utilizavam. Por exemplo, dentro do Lago do Jacaré, era de um
cara de São Paulo aquela área. O cara de São Paulo veio, indenizou
todos os moradores do Jacaré, tirou todos e deu uma área pra eles no
Abuí.
* O que é a comunidade do Abuí agora?
- Isso... passamos os camaradas todos pro Abuí, que não era reserva
biológica e limpou a área... e a área tá limpa até hoje. Lago do
Jacaré, onde tem castanha também.
A criação da REBIO-RT, no contexto do regime militar, nos seus primeiros cinco anos
imprimiu uma política conservacionista mais ferrenha. Mas com o afastamento de seu gestor,
essa política foi flexibilizada, nos seus dizeres, coincidindo com o aumento das ocupações e
com a transição do regime político. Mas, diferente da percepção geral dos estudos, a criação
da reserva não impossibilitou as práticas tradicionais dos quilombolas, mas repercutiu em
apreensões, dificultou a comercialização dos produtos florestais e da fauna, principalmente os
mais visados, a tartaruga e a madeira. Segundo os próprios tradicionais, eles continuaram
ingressando na reserva, pela própria deficiência na fiscalização. O que a reserva extinguiu foi
a relação de patronagem, com a retirada dos proprietários, esse foi o grupo de interesse
efetivamente removido da área onde hoje é a REBIO-RT. Os “proprietários legais da terra”
iniciam suas titulações de posse a partir de 1894, sendo que a maioria dos títulos de terra ao
longo do Rio Trombetas datam de 1920-1940335, persistindo ali esse modelo legal de
propriedade da terra, que exclui parcela significativa da população brasileira, até 1979. A
REBIO, modelo igualmente excludente, mas sobre o controle do Estado e destinado à
pesquisa, não suprimiu o desenvolvimento comunitário, simplesmente surgiram novas
335
ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do Trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993. p. 104-
107.
304
336
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da
Amazônia brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f.
305
A intensa coleta que é realizada pelos castanheiros, cerca de 90% dos frutos, fez crer
no passado que, pela redução drástica das sementes e pela caça associada de seu principal
dispersor, a cutia (Drasyprocta spp.), os castanhais estariam condenados a não se renovarem e
sucumbirem no tempo dessas árvores. Daí a necessidade de se conservar para que os mesmos
pudessem se regenerar. Entretanto, estudos como os de Ricardo Scoles (que realizou pesquisa
na REBIO-RT no mesmo período em que eu estava desenvolvendo a minha – visitei dois de
“seus castanhais”) apontam existirem evidencias de que a castanha é uma espécie
306
Conforme mencionado, a castanha não deixou de ser coletada, mas a extração foi
muito reprimida no começo da reserva e, formalmente, a prática tornou-se permanentemente
ilegal e seus praticantes, povos daquelas florestas, infratores. Para sair dessa situação,
gradativamente a partir da década de 1990, começaram a ser formulados acordos entre os
agentes governamentais e os comunitários das diferentes comunidades – quilombolas,
ribeirinhos e citadinos que eram antigos coletores. Esses acordos passaram a se chamar
“Acordos da Castanha” que se procedem mediante um cadastro prévio dos tradicionais
(somente os cadastrados ficam em situação legal) e posterior reunião para discutir seus
termos. A regra geral era não levar armas e nem animais. No ano em que assisti, o cadastro
foi na comunidade do Abuí e a reunião na base do Tabulerio, na ocasião, o ICMBio instituiu
outra regra não passível de discussão que era proibir levar crianças, pois estariam na época
dos estudos. Hoje o acordo é formalizado enquanto “Termo da Castanha”, assistido pela
Advocacia Geral da União – AGU e endossado pelo Ministério Público Federal. José Risonei
e André Macedo negociavam a possibilidade do extrativismo de outros produtos florestais
comporem o Termo – copaíba, balata, breu, açaí, bacaba, jutaicica, cipó titica etc. Dizem que
são produtos extraídos, mas sem um controle maior, assim, a extensão do acordo beneficiaria
337
SCOLES, R. Do Rio Madeira ao Rio Trombetas: novas evidências ecológicas e históricas da origem
antrópica dos castanhais amazônicos. In. Novos Cadernos NAEA. V. 14, n. 2, p. 265-282, dezembro de 2011
338
SCOLES, Ricardo. Ecologia e Extrativismo da castanheira (Bertolletia excelsa) em duas regiões da
Amazônia brasileira. Tese (doutorado). Orientador: Rogério Gribel Soares Neto. Manaus. INPA, 2010, 193 f. p.
158
307
340
Com relação aos índios, em entrevista, um quilombola da Cachoeira Porteira me narra sua percepção do
conflito:
- Tem algumas situações que diferenciam, né. E que as vezes a gente não quer assim, aceitar do jeito que é.
Então vamos tentar criar dois territórios e vamos ser vizinhos. Você precisa de mim eu vou servir. E se eu
precisar dele, ele vai servir. Por que eu digo isso? Porque durante treze anos, mexendo com associação eu já fiz
muitos atendimentos pra indígenas. Já teve vezes de, não fugindo um pouco do assunto, mas assim... teve vezes
de chegar aí naquele carro de mão empurrando, né, desmaiado aí. Aí eu falei: o que é? Ah é acidente. Aí eu
fiquei olhando... O que aconteceu? A mulher meu, eu tava partindo lenha, o machado pegou e cortou essa parte
aqui que virou pra cá, sabe. Então eu disse: poxa vou atender. Peguei, coloquei ele aí, peguei um soro, apliquei
um soro nela, lavei aquilo tudo. É... fiz uma sutura. Ela ficou no soro até umas 3 horas da madrugada ou mais,
mas não conseguia. Quando ela voltou ao desmaio não tava se aguentando. Ficava segurando nas paredes pra
não cair. Eu deixei ela deitada, coloquei uma rede, ela ficou e se recuperou. Nem foi mais pra Oriximiná, aqui
mesmo ela ficou boa, foi embora pra aldeia. É... aconteceu outros dois casos iguais também. Dois senhores que
vinham descendo com velocidade num bote, o pau pegou aqui também no bote caiu pra trás, partiu o supercílio,
essa parte aqui. Fiz tratamento de novo. Outra senhora chegou aqui com dores fortes pra ter bebe, né, então eu
disse: oh eu vou te levar pra Oriximiná, no meio da viagem não aguentou, tive que ser parteiro. Cheguei em
Oriximiná, liguei pro andar de saúde e disseram: cadê? Eu disse: já nasceu, tá aqui na lancha, vem me dá
socorro que eu nem fiz corte de cordão umbilical nada, porque não tinha nada. Então num momento chegou lá
ambulância lá e prestou socorro. E outros que chegam lá do quilômetro da 220, daqueles lugares pra lá... Eu
mando pegar na caminhonete: vai lá que é malária. Três, quatro a gente vem, faz coleta de sangue, minha
esposa examina, dá o resultado, dá medicação. Eu digo: olha vou fazer sempre com relação à saúde eu vou
atender. Independente de disputa de território, independente se é uma etnia diferente da minha, mas também é
povo que vive em contato com a floresta, eu vou atender sempre. Agora isso é eu enquanto presidente, né. Eu
não vou fazer meu governo paralelo a um outro, negativo. Então eu pedi pra FUNAI pra gente ter uma reunião,
pra Secretaria de Meio Ambiente pra tentar resolver pro ICM-bio e dividir esses territórios, fazer os estudos
antropológicos e ver que a gente vive do extrativismo. Principalmente a castanha é o nosso foco muito forte e
eles querem áreas também maiores. Eles tem uma área muito grande, né. Mas aí vendo um pouco a legislação,
praticamente nenhuma lei sobrepõe a lei indígena, então é muito difícil você ter direitos constitucionais. Aí vem
uma lei maior que o teu direito e você fica pensando: poxa, de que forma a minha lei existe e eu não poder ser
beneficiado por ela? Então eu já tive várias conversas com líderes da FUNAI, como ICM-bio, com a Secretaria
de Meio Ambiente e eles falaram que dia 7 desse que passou ia ter uma reunião em Brasília, né, com o
Ministério Público Federal e todas as instituições do governo, né, sobre essas questões fundiárias, INCRA,
ITERPA, é... ACEMAS, FUNAI, Palmares, então... Ontem o pessoal lá de Piracicaba ligaram pra mim lá de São
Paulo: oh Ivanildo, o pessoal da EMAFLORA, né, olha a gente ia pra lá pra trabalhar com algumas práticas lá
pra Cachoeira Porteira que a gente pensa em criar um polo nosso lá com vocês, mas por conta de questão
fundiária a ACEMA suspendeu a nossa ida até lá. Nós já estamos aqui em Belém mas a gente não pode ir que
teve uma reunião em Brasília no dia 7 e ela tem que tomar uma providência imediatamente pra resolver essas
questões fundiárias lá entre quilombolas e indígenas. E como é FLOTA também, é governo do estado, tem que
resolver essa situação. Então por conta disso a gente vai tá parado aqui até se resolva essa situação, pra gente
poder tá indo lá com vocês pra trabalhar com cultura sustentável e...
*São dois pontos que tencionam muito, né, de um lado a reserva biológica, de outro a FLOTA. De um lado, pro
governo federal, vocês foram reconhecidos quilombolas, teve reconhecimento, isso já agora né...
- Isso, reconheceu a gente.
*Mas agora, pelo lado da FLOTA incialmente o laudo não caracterizou a...
- Aí, justo, boa pergunta. Aí assim, da mesma forma que foi criado a reserva biológica e a gente não foi levado
em consideração, ao que muitos colocaram pra gente, que era regime militar naquela época. Então agora nós
criamos em 2004, 2003 me parece, a associação quilombola de Cachoeira Porteira. E em 2006 criada a FLOTA
também não fomos levados em consideração. Já tramitava o nosso pedido de reconhecimento ITERPA.
310
Mapa 9: Mapa dos territórios quilombolas incidentes sobre as UCs. MMA/ICMBio, 2011.
341
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE/ICMBio. Situação Fundiária/Demarcação Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Inf. Nº02/2011, Porto Trombetas, 05 de janeiro de 2011
311
Para entender os conflitos basta saber sobre o modo de vida desses tradicionais, e sua
dependência com a integridade da floresta e no acesso aos seus recursos. O que não tem a ver
com sustentabilidade apriorística de seus modos de vida ou uma valoração moral diferenciada
sobre os seres ali, seus valores são cristãos. Apesar de poucos viverem exatamente na área da
REBIO-RT – a maior parte morava do outro lado do Rio Trombetas, na área onde hoje é a
FLONA-ST – as comunidades quilombolas que habitam toda aquela região do Trombetas,
313
mantém fortes laços com o território e dependem do extrativismo para sua subsistência.
Segundo os próprios moradores é na área da Reserva que se encontram os melhores
castanhais, principalmente no Lago Erepecu, em seus rios e lagos há gerações se extraem
peixes e quelônios para o comércio e alimentação, a floresta sempre proporcionou com fartura
tudo que necessitavam para sobreviver e ainda o faz. O processo de criação da Reserva teve
como objetivo a preservação integral, o que repercutiu nos seus modos de vida, cultura e
tradição. O legado de sua história, sua íntima relação com as águas do rio e com as matas que
os cercam, assim como seus meios de vida, enfim os próprios tradicionais foram relegados à
invisibilidade. Todo o empreendedorismo governamental experimentado na Amazônia a partir
da década de 1960 entendia que os extrativistas deveriam ser incorporados a uma lógica mais
produtiva e acabar com o aviamento. A política de cuidados e vigia da região da Reserva, sob
a atmosfera da ditadura militar na época, repercutia na apreensão de armas, instrumentos e
produtos coletados. Percebe-se um forte ressentimento ainda por alguns (ou algumas
comunidades) com relação aos “órgãos ambientais” em suas falas, que ainda o vê como
coator e expropriador dos seus meios de vida.
Foto 19: Família do lago do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.
pequeno porte, e também gado, mas que é mais raro e controlado. A prática da pesca é
fundamental na alimentação, sendo peixes, quelônios e jacarés (que os quilombolas não
gostam muito). A dieta proteica é complementada com a caça de aves, répteis e mamíferos
como a anta, o jabuti, a queixada, a cotia, o caititu, patos, mutuns entre outros animais. A
alimentação varia conforme a estação, tanto para captura da caça, quanto para a pesca, a
farinha é a base do carboidrato, mas também compram arroz, quase não se alimentam de
verduras e legumes.
Técnicas de Pesca Descrição
Arpão Vara de madeira com uma ponta de metal e outra com uma corda com boia.
Normalmente utilizado nos lagos e em corredeiras em períodos que os pescadores
consideram mais favoráveis. Depois de lançado o arpão, o organismo fica preso
pela corda para ser recolhido.
Caniço Pequena vara de madeira com linha, anzol e isca de minhocas, gafanhotos ou
pequenos frutos. Utilizado na mão amarrado na vara de madeira.
Coleta com a mão Coleta de quelônios e/ou ovos em praias ou locais rasos.
Espinhel Linha longa da qual pendem linhas curtas com anzóis na extremidade. A linha é
amarrada às margens ficando os anzóis iscados pendentes ao centro.
Zagaia Utiliza-se lanterna para focalizar os peixes à noite. Em seguida os peixes são
capturados com a zagaia, que consiste em uma vara com um tridente na ponta.
Linha de mão Pesca de linha e anzol, utilizada na mão ou presa ao ponto fixo na margem e alguns
utilizam para pescar em locais mais profundos.
Malhadeira Rede de espera para captura de peixes e/ou quelônios. São fixas e utilizadas em
ambientes sem muita correnteza com rios e lagos.
Pindá Vara de madeira com gancho de ferro na ponta, utilizado para captura de quelônios.
Puçá Rede em forma de funil e malha fina. É utilizado na seca, especialmente nas
margens e em áreas com pedras.
Tarrafa Rede cônica de malha pequena e borda chumbada. É lançada à água, abrindo em
forma circular, no canal do rio ou em lagos, em locais rasos e com pouca vegetação.
Normalmente utilizada em regiões de lagos.
Tabela 05: Descrição das técnicas de pesca, utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio Trombetas.
Fonte: Luciana S. Melo, 2012.
Técnica de caça Descrição
Espera com espingarda O caçador aguarda em árvores frutíferas ou outros hábitats utilizados pelos
animais, atando bem alto a rede ou construindo um moitá (espécie de cabana
armada em cima de uma árvore). Outro modo é atrair o animal a um local
específico.
Procura com espingarda Procura por animais na mata a pé ou com canoas a remo, margeando igarapés
e outros ambientes.
Tabela 6: Descrição das técnicas de caça utilizadas pelas comunidades quilombolas do Rio Trombetas. Fonte:
Luciana S. Melo, 2012.
Suas casas são muito simples, muitas vezes pequenas palafitas construídas com
madeira da floresta. São consideradas moradias precárias pela ausência de saneamento,
energia elétrica, água encanada entre outras coisas. Em várias comunidades há uma
complementação da renda através de remuneração por serviços, emprego/salário,
aposentadoria, programas assistenciais do governo e assistência da prefeitura de Oriximiná
que doa combustível para os geradores e embarcações (não faz para todas e com quantias
diferentes para cada uma delas). Quase todas as comunidades possuem escolas e todas
possuem centros comunitários para suas festas e reuniões.
Durante os anos que se seguiram à criação da reserva, as entidades ambientais,
sobretudo o IBDF, exerceram a “violência física e simbólica” sobre as comunidades no
cumprimento de suas obrigações fiscais. Tais práticas são atribuídas também por Castro e
Acevedo aos funcionários da mineradora encarregados de fazer a “proteção do ambiente” –
não foram confirmados na entrevista com a ARQMO e com os tradicionais. A apreensão de
material de caça e pesca, além de produtos coletados é relatado como uma constante, mas
não apenas, existem relatos envolvendo conflitos mais graves, inclusive com homicídios e
acidentes que resultaram em morte344.
Não obtive documentos históricos sobre as violências por parte do ICMBio, mas na
Paróquia de Santo Antônio consegui um abaixo assinado, com data provável entre 1981-
1984, e uma coleta de declarações realizados pela Pastoral de Direitos Humanos de
Oriximiná, datada de 1985. O primeiro documento é direcionado ao Sr. Antônio Edilson
Silva Castro, Delegado Regional do IBDF entre as datas mencionadas, comunicando a
apreensão de castanha que estava sendo realizada pelo IBDF. O documento afirma que os
“lavradores/castanheiros [...] não são ladrões, são trabalhadores honestos que enfrentam
dificuldades [...] sem condições nenhuma de sobrevivência”. Solicita que, pela dependência
econômica da população relacionada à castanha, que fosse liberada a extração da mesma na
REBIO-RT e que fossem devolvida as castanhas e os pertences confiscados, ou que se
344
Tais informações constam do Projeto Povos do Rio (2006), do Plano de Manejo da REBIO-RT (2003), no
Plano de Manejo da FLONA – Saracá Taquera (2001), em Acevedo & Castro (1993), além de ter sido afirmado
em entrevistas coletivas realizadas em 2010 no Abuí, Mãe Cué, Tapagem, Erepecu entre outras comunidades.
316
vive de caça e pesca é... às vezes você pega uma caça e às vezes você
desce com uma caça, às vezes você tem filho que estudô em
Oriximiná, aí tem algumas restrições muito rígidas que você não
pode, você tem que pegar, comer aqui e muitos pensam que a gente
vai levar de má fé pra comercializar, então, eu pessoalmente já teve
vezes que eu consultei o ICMBio, igual a gente um evento interno, a
gente tem que passar pela Unidade de Conservação, mas eu preciso
de levar uma quantidade de alimento porque são 300 dias e tem que
se alimentar nesse período, tem que ser autorizado e tal pra poder
sair com essa alimentação. Mas a gente sentiu o impacto porque
muitos resolveram deixar a comunidade, né, pra ir pra cidade porque
tava se sentindo ainda como se fosse um prisioneiro.345
Jamari
*Como foi a história da criação da Reserva, o que que isso implicou
na vida de vocês... se você lembra disso, se vocês já moravam aqui
antes da reserva.
- Antes de reserva já morava sim. Meu avô tinha um terreno aqui. Ele
tinha pra mais de 40 anos que vivia nesse terreno aqui. Quando a
reserva foi criada em 79 a gente já tava aqui, que até eu quando eu
nasci, eu nasci em 1973 aí a gente já morava aqui quando foi criada.
Isso foi um conflito pra nós, porque quando o Beto Guerreiro disse
que foi ele, foi o cabeçalho dele... e sempre ele é o mais velho da
turma aí... o IBAMA e eles fizeram o levantamento dizendo que não
morava ninguém aqui dentro da reserva.
*E vocês já moravam aqui?
- Já morava aqui dentro.
*Você tinha quantos anos quando foi criada a Reserva?
- Sete anos, seis anos.
*E você lembra como foi que isso impactou aí com vocês, o que
aconteceu depois de criada a Reserva?
- Eles brigaram muito com nós aqui. Eles fizeram conflito com nós
aqui, porque por eles a gente não existia aqui. Eles nunca
conversavam com nós e eles só andavam com Polícia Federal,
traziam um bocado de gente. A gente não conhecia, eles não
identificavam pra gente quem que eles eram mesmo. A primeira
escola que foi construída aqui foi a do Jamari. Quando nós tava
construindo o pessoal do Beto veio e disse pra nós parar a construção
e foram embora. Aí no outro dia eles tornaram a passar aqui pra
perguntar se nós tava continuando a trabalhar, aí se nós tivesse
continuando a trabalhar no outro dia que eles passassem aqui eles
iam derrubar a escola e tacar fogo. Aí nisso a gente baixou pra
Oriximiná, que tinha um prefeito lá, sempre ele deu apoio pra cá. Aí
nós fomo lá, contemo [sic] a história e eles mandaram nós voltar pra
trabalhar aqui, continuar construindo a escola, porque era a primeira
escola ela foi feita mesmo de madeira que foi nós que tiremo [sic]
345
CACHOEIRA PORTEIRA. A atuação da AMOCREQ. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcantara em 11 de janeiro de 2013. Oriximiná, 2013.
318
aqui. Nós cortemo... meus pais porque eu ainda era pequeno ainda. Aí
foi continuado, mas desde esse tempo o IBAMA... agora já a pouco
menos tempo que a gente tá começando a se entrosar, que vai
mudando os tempos, passando os tempos e eles vão começando a
conversar. Agora até eles já vem aqui na comunidade, já conversa, já
tenta dizer alguma coisa, mas antes era muito ruim, não tinha
conversa com eles.
*Chegou a ter conflito corpo a corpo, de violência mesmo?
- Com certeza. Uma vez eles alagaram meu tio que vinha da roça, aí
eles passaram, meteram a lancha mesmo em cima e alagou ele, só que
ele não morreu, mas perdeu a espingarda...
*Derrubou ele na água....
- Derrubou ele na água, eles meteram a lancha em cima e alagaram
ele. E ele só foi buscar uma maniva de uma roça pra outra que era
pra plantar. Mas assim, pra gente brigar com eles, pra estar
ameaçando, isso não aconteceu não.346
*Em outras comunidades aconteceu...
- Aconteceu porque dentro do Jacarezinho tinha muita gente, no
Erepecu tinha muita gente e eles fizeram uma mini indenização.
Indenizaram o pessoal e eles saíram. E nós aqui continuemo aqui e
ainda temo aqui até hoje.
*Então, aqui foi, pelo que você estava me contando da história, o foco
da resistência. Aqui que começou a resistência e as outras
comunidades que depois surgiram que é o Último Quilombo e o...
- Nova Esperança, Juquerizinho, Juqueri Grande... isso já foi
comunidade fundada já muito depois da nossa, porque a nossa que
aguentou a pressão do IBAMA aqui e não saía. E a nossa não é
escondido né, fica bem na beira do rio onde gente passa todo dia.
*E isso foi melhorando... você sabe quando foi que melhorou mesmo?
- Quando entrou um cidadão chamado Mauro no IBAMA. Ele
começou a conversar, veio nas comunidades. Depois passou agora
pro Nei...
*E esse acordo da castanha, como é que você vê isso?
- Acho que foi melhor do que quando era no tempo do patrão, porque
agora o acordo que a gente faz... o acordo com eles é simples pra
dizer ou não quem vai pra lá, quem pode levar o que. É um acordo
pra gente não levar o que não é permitido, espingarda, cachorro,
galinha... bicho nenhum a gente não pode levar. Criança também...
esse ano ele disse que o acordo não vai mais ser acordo, vai ser um
termo mesmo. Aí ele veio avisar que não pode levar criança com
menos de 15 anos, de 13 anos que esteje estudando. Porque quando a
criança tá com 10, 12 anos o pai tira da escola no tempo da castanha
e leva pro castanhal. Aí lá as vezes cobra morde e acontece alguma
coisa, quando era pra ele tá estudando. Isso foi uma coisa que abriu o
olho de muita gente e eu acho que a gente voltando atrás é muito
certo.
346
JAMARI. Uso comunitário do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 09 de janeiro de 2012
319
Sagrado Coração
- Hoje mudou um pouco, melhorou. Antigamente era muito difícil
porque o IBAMA ele tomava muito as coisas da gente. Se pegassem a
gente com umas certas coisas eles tomavam. Se pegasse um tracajá
tomava, né.
*Aqui no Sagrado tem algum caso mais grave com o IBAMA?
- Teve o caso da morte de um menino, né. Foi um pouquinho por aí.
*Foi um acidente?
- Foi por aí nesse tempo que tinha uma polícia que era federal, né. E
aí eles vieram aí na casa onde morreu esse menino. E chegou aí os
pais dele, o pessoal eles tavam na beira tomando banho com as
criança e aí a polícia chegou lá, eu não estava lá, mas eles contam, o
pessoal daí mesmo. E aí eles se assustaram todo mundo, né. Os
meninos ficam lá na beira, né... aí quando foi no término do
movimento eles começaram a procurar o menino e ele tava lá no
fundo morto.
*A lancha pegou nele?
-. Não sei se ela pegou não. Dizem que parece que triscou, né. A
conversa zoou assim né. Eu mesmo não cheguei a ver. Foi assim que
viram a história. Já faz tempo que aconteceu isso. Tem uns 20 ano,
daí pra mais.
*Eu entrevistei o Beto e me contou uma versão diferente do que o
pessoal contou. Ele falou que o menino se acidentou sozinho, parece
que caiu, não sei e que eles chegaram lá e estava acontecendo isso...
mas antes deles chegarem já tinha acontecido.
- Não, os menino tava na beira tomando banho. A polícia quando
chega assim numa casa e pessoal fica meio prestando atenção. E aí
ainda tava pequeno e o pessoal saltaram tudo e esqueceram dele, né,
não sei. Quando a lancha saiu é que foram dá falta dele. Foram
procurar e cismaram que tava no fundo. Aí começaram a procurar e
acharam ele morto.
*E ele tava machucado?
- Diz que tinha uma triscada. Não sei bem. Eu não cheguei a ver
mesmo.
*E outros casos? Deles baterem... me falaram que eles derrubavam
até comida.
- Essa polícia que veio descendo pra cá, ela andou dando uns tapas
em algumas pessoas.
*Isso antigamente, né, não agora?
- Isso, antigamente. No ano mais ou menos da morte do menino. E
essa polícia eles andaram dando uns tapa, prendendo as pessoa se
pegava pescando, né.
*O sr já teve algum problema com eles?
- Não, eu não. Uma vez eu tava numa pescaria com um colega meu e
eles pegaram nós. Mas eles não chegaram a bater. No meu parceiro
deram um tapazinho, mas pouco também. Aí levaram nós lá pro
posto, nós passemo lá um dia, aí no outro dia eles soltaram nós.
*Vocês ficaram presos de um dia pro outro?
- É.
*E eles eram policiais mesmo?
320
- Diz que era federal. Assim dizia eles, né. Pois é, e no mais não.
* E quando o IBDF virou IBAMA:
- Melhorou com certeza um pouco, agora melhorou mais. Porque
antigamente era perigoso a história aqui o negócio do IBDF, que era
no tempo que eu era moleque. Com o IBAMA foi meio feio o negócio.
No tempo da morte do menino era IBAMA, né, era meio feio. Não
podia pescar um tracajá nem longe, pra comer né. Se eles pegasse um
tracajá mesmo pra comer sempre era problema.
*Mas pra comer hoje não é problema.
- É, não.
*O problema é pra vender.
- É, pra vender.
*Agora temos um outro problema. E o sujeito que vivia de pesca?
Como é que fica a situação dele?
- Hoje em dia até melhorou porque eles já pararam de pescar, os
caras já se empregaram...
*Porque o governo proibia, mas não dava alternativa também...
- É verdade. Antigamente pra você ter um emprego aí era difícil, né,
de conseguir. Aí no caso melhorou essa parte. Já trabalha gente na
comunidade... Nós já fomo até um dia numa sortura [sic] de
tartaruga.
*Foi agora, né, mais recente?
- Foi mês de dezembro.347
Tapagem
- Naquela época a gente ainda era meio criança, mas a gente alembra
um pouco. Por exemplo assim, por mais que eu fosse o chefe dessa
casa aqui, quando a federal veio ela passou a vassoura aqui. Ela veio
prendendo e batendo... prendia canoa, tomava espingarda, até
comida da panela eles jogavam.
*E hoje, como tem sido a relação? Quando virou Chico Mendes
houve uma mudança muito grande né? Como que está a relação com
vocês aí?
- Hoje mudou muito. Porque hoje a gente já trabalha praticamente
quase em parceria com o IBAMA. Quando acontece algum acidente
aqui na comunidade, a gente sempre pede apoio de transporte pra
eles. Eles cedem pra gente, eles levam.
*Hoje já é uma parceria.
- Hoje já mudou, é uma parceria.
*E na proteção dos recursos aí de vocês? Recentemente chegou uma
madeireira com proposta, de vez em quando vem outro e vai pescar
num lago... Como tem sido essa relação aí? Como é que o Chico
Mendes tem dado? Porque teve uma proposta de madeireira agora,
né? Não foi uma proposta interessante, foi uma proposta pra eles
levarem os recursos.
- Nós somos muito contra madeireira. A invasão assim, nos nossos
lago, o Chico Mendes espera assim que a comunidade se reúna, por
347
SAGRADO CORAÇÃO. A história dos conflitos com o governo. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcantara em 11 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
321
exemplo, você vai lá, pede pro cara sair e se ele não sair você vai lá
no Chico Mendes que eles dão apoio pra gente.
*Mas dá mesmo?
- Dá. Se a gente pedir pra eles, eles vão. Eles só não vão da livre
vontade deles, por exemplo assim, sem nós ir lá pedir pra eles.
Porque daqui pra cima é uma área titulada.
*Que é a parte do Abuí, do Paraná...
- É. Que é onde eles gosta mais de invadir é no Faria, bem lá em
frente à base lá.
*Que é a parte da FLONA.
- É, lá que eles gosta de fazer a invasão.
*E com relação à madeireira? À proposta da madeireira?
- Nós tudo semo contra madeireira.
*Todo mundo foi contra?
- Todo mundo foi contra.
*Mas eles voltam, né? Não vieram só uma vez...
- Não. Três ou quatro vezes que vieram aqui. Eles chegam a pegar
meio pesado. Fomos até meio grosso com eles. Aí eles pararam.
*O que vocês falaram? Como é que foi?
- A gente expulsou, foi meio grosseiro né. Nós falamo que eles não
eram bem vindos aqui, que era a nossa casa, que eles respeitassem a
gente e que parassem de vir. A última vez a gente falou isso pra eles e
eles não vieram mais.348
Mãe Cué
- Do tempo que eu me formei, pro que eu to vendo agora existia um
respeito por nós do pessoal mais antigo do IBDF, nunca chegaram a
ofender nenhum de nós, tirar nossa vida por um animal que nós
depende pra sobreviver. Hoje que formou já esse grupo do IBAMA
que já destruíram a vida dois patrício nosso por causa de comida.
Deram muita trancada nos pobre dos velho, nos novo, no tempo já do
IBAMA.
*Isso já tem bastante tempo também, né?
- Já tem bastante tempo.
*E você sabe quando foi mais ou menos?
- Não, isso eu não to por dentro do ano que existiu esse tipo de caso,
que foi uma surra grande no pessoal, inclusive que nessa surra
morreu uma criança de uns 10 a 12 anos. Eles meteram uma lancha
em cima da criança que tava tomando banho e matou a pobre da
criança e levou amarrado o pai da criança. Ficou aquele desespero,
depois quando a mãe foi procurar a criança já tava morta, por causa
da tartaruga. E a ganância mais é pra eles levarem. E já chegou num
momento, eu tive numa justiça, o devogado falou pra mim que se era
pra eu pegar uma tartaruga pra IBAMA me pegar, mas antes matasse
um cristão. Eu testemunho caso, que esse caso foi um caso sério que
nós tivemo com o IBAMA, eles processaram nós por um caso que eles
foram agredir um pobre dum velho que morava lá na casa que até
348
TAPAGEM. Coordenação da Tapagem. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara em
12 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
322
Abuí
- Hoje em dia nós já temo uma parceria maior com o IBAMA, porque
antes ninguém tinha. Vivia brigando o IBAMA e a comunidade,
porque IBAMA tinha aí o trabalho, mas ninguém era informado. Eles
não passavam nada pra gente, aí tivemos várias dificuldades. Hoje
em dia, depois de passar pras comunidades o trabalho deles a gente
já entende um pouco como é que são o trabalho deles, aí acabou um
pouco a briga. A gente foi entendendo um pouco como é a questão do
trabalho deles.
*Aqui na comunidade de vocês teve algum momento de uma briga
mais forte, de uma relação mais complicada, de violência mesmo?
- Não, não existiu esse problema não. Existia aquelas brigas as vezes
lá deles. Na época da federal, que era o IBDF, né, veio a federal e
349
MÃE CUÉ. As dificuldades vividas na Comunidade. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcantara em 14 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
323
As versões dos agentes do governo que atuaram na época contrastam alguns pontos
dos relatos, mas não negam as arbitrariedades e violências que decorriam das políticas de
conservação: “naquele tempo era assim”. Mas dizem que muitos dos casos, como o acidente
com um menino que, supostamente, uma lancha do IBAMA teria atropelado, ou que
roubavam “comida da panela”, açoitavam as pessoas, é contado de maneira muito
distorcida. Segundo os agentes contratados mais antigos que pude entrevistar, as trocas de
tiros que chegaram a ocasionar mortes, se davam porque os próprios agentes, muitas vezes
350
ABUÍ. A vida no territorio titulado. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara em 04 de
janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
351
JUQUERIZINHO A Comunidade e os conflitos com o governo. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcantara em 13 de janeiro. de 2012. Oriximiná, 2012.
324
acompanhados da polícia, eram recebidos com tiros (pelo que entendi, não dentro das
comunidades ou propriamente com comunitários, mas em ações de fiscalização de grupos
atuando na caça ou na pesca).
A ARQMO já consolidada desde 1990, aponta em documento interno da associação
sua atuação para combater as violências do Estado no exercício das políticas de
conservação, principalmente por meio de denúncias diversas. Em 1991 o Ministério Público
Federal instaura Inquérito Civil para apurar possíveis violências sofridas por remanescentes
de quilombo. Pelas denúncias realizadas em Brasília é realizada duas vistorias diretas da
capital, vindo também a própria ouvidoria do IBAMA. O conjunto de ações da ARQMO
vão influenciar a postura do IBAMA desde 1992.
O Plano de Manejo da Reserva352 faz menção às populações tradicionais e expõem em
duas laudas o posicionamento dos tradicionais frente aos cerceamentos que vivenciaram
com a Reserva. Atualmente as atividades praticadas na REBIO percebidas como
conflitantes com os objetivos da unidade, conforme Plano de Manejo são: as comunidades
residentes na Reserva e no seu entorno; abertura de roçados e pastagem através da
derrubada da floresta ou queimadas; invasão de terras em Cachoeira Porteira, localidade que
faz fronteira com a Reserva; queimadas de igapós (para posterior coleta de ovos de
quelônios); grande fluxo de embarcações no rio Trombetas; presença do shiploader da
MRN; e, atividades de caça e pesca no interior e entorno imediato da Unidade, além do
extrativismo de recursos naturais (madeira, castanha, cipó). Conforme se depreende, não são
apenas as atividades dos comunitários que são conflitantes, mas dentre estas, grande parte
são fundamentais para a própria sobrevivência desses grupos humanos. Por tratar-se de uma
Reserva Biológica, a presença desses povos da floresta vai ser sempre percebida como um
problema, assim como seus modos de vida, fortemente dependentes da floresta e de sua
integridade, serão compreendidos como práticas predatórias que ocasionam forte “pressão”
sobre os recursos ali resguardados. Essa é a principal violência.
No curso das narrativas, as mudanças de percepção sobre a conservação dentro de
uma macropolítica e, também, a experiência prática acumulada de que políticas repressoras
podem gerar mais efeitos adversos na conservação do que benéficos, principalmente a partir
da década de 1990, vão repercutir em mudanças significativas no trato com as comunidades.
O que é exposto hoje pela maior parte das comunidades é que os mesmos são “parceiros” da
352
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS.
Plano De Manejo da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Brasília: STCP Engenharia de Projetos Ltda, 2004. p.
2.53 – 2.54
325
de seus territórios. Uma das autuações versou sobre apreensão de quelônios, com 22 tracajás
encontrados no porão de uma lancha grande, foi realizada a fiscalização no interior da REBIO
por denúncia, aplicando-se uma multa ao proprietário da mesma no valor de 2 milhões de
reais, a denúncia pode ter partido de algum membro das comunidades como de costume. Das
autuações do ICMBio, duas recaiam sobre a MRN e correspondiam a dano ambiental
decorrente de acidentes (deslizamento de terra) nas minas da empresa. Obtive também uma
defesa da MRN realizada pela “Milaré Advogados – Consultoria em Meio Ambiente”,
conforme mencionado, a MRN contrata sempre os principais “nomes”353 para suas ações e
projetos. Em Santarém, em campo realizado junto ao Ministério Público Federal, me foi
disponibilizado um relatório de todas as ações judiciais relacionadas às duas unidades de
conservação até o ano de 2011, a análise reproduz mais ou menos a mesma lógica anterior em
131 processos – desmatamentos para pastagens, poucas relacionadas à madeireiras, uma
relacionada à Concessão Florestal e uma relacionada à MRN, sobre valorização dos produtos
florestais não madeireiros.
Tipo Infracional 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total
Desmatamento 4 6 7 15 10 18 9 69
Caça 2 1 4 9 4 5 7 32
Fogo 1 2 1 4
Pesca 2 3 1 4 5 2 4 21
Outros 4 1 5
Total 5 4 10 16 30 20 26 20 131
Tabela 07: Processos Judiciais Referente à FLONA-ST e à REBIO na Procuradoria da República do Munícipio
de Santarém, 2011.
353
Edis Milaré é um famoso jusambientalista autor, dentre outras obras, do “Direito do Ambiente”, considerada
uma das mais completas obras de Direito Ambiental no Brasil.
327
relatam que apanharam muito por estarem vigiando objetos apreendidos e assim por diante.
Por outro lado uma queixa atual dos quilombolas, principalmente daqueles moram acima dos
tabuleiros (Abuí, Paraná do Abuí, Cachoeira Porteira) decorre de terem que se submeter ao
jugo e controle do Estado seus direitos mais básicos, como os de ir e vir. No caso eles são
obrigados a parar em determinados horários (18:00 horas), na linha da Base do Tabuleiro e
não podem prosseguir viagem até o dia seguinte na época de reprodução dos quelônios. Tal
medida é justificada em razão de ser a época da desova um momento em que esses animais
encontram-se muito suscetíveis, principalmente aos ruídos das embarcações. Por sua vez os
tradicionais questionaram que, se a razão são os ruídos, por quê a lancha dos agentes circula
diversos momentos durante a noite?
Jauari - 80 ha
Abuí - 47 ha
divididas entre famílias extrativistas e fiscalizadas pelos “comandantes das praias reais” que
supervisionavam a coleta dos ovos, a distribuição entre as famílias e o recolhimento da taxa.
Em um momento seguinte a produção se transforma, com base na propriedade legal da terra,
assume as feições da patronagem, com os tabuleiristas, mas manteve ampla regulamentação
estatal:
A atividade havia se tornado cartorial. As 32 leis e outros
regulamentos relacionados com a captura e comercialização de
quelônios e seus produtos, em treze munícipios do Amazonas entre
1893 e 1936, estabeleciam sobretudo impostos taxas e multas, apenas
três regulamentos faziam restrições a técnicas de manejo. Os vigias,
práticos que entendiam das “normas que regem o tabuleiro e versados
na ciência dos quelônios”, e seus patrões, os tabuleiristas,
administraram um sistema de exaustão dos recursos e produção de
receitas para o Estado356.
organizada que contribuiu para a drástica redução desses quelônios nos séculos XVII, XVIII,
XIX e XX.
Conforme mencionado, o projeto RADAMBRASIL já expunha políticas públicas
municipais organizadas para a conservação da espécie em Oriximiná desde 1963 com o
“Serviço de Proteção à Tartaruga”, com a participação direta do Governo Federal em 1965,
por meio do Ministério da Agricultura e, posteriormente, em 1967, com o IBDF. Desde essa
época já era narrada a instalação de acampamentos para a guarda e pesquisa. Os ovos não
eram recolhidos, mas logo que eclodiam recolhiam-se os filhotes que eram mantidos em
caixas de tela no Rio trombetas até o momento de serem transportados para a Base do
Ministério da Agricultura em Fordlandia. Lá eram mantidos durante 6 a 8 meses e entregues
aos criadores relacionados ao Serviço de Proteção à Tartaruga. A primeira entrega, com um
lote de 5.000 tartaruguinhas é datada de 1965 para um criador no município de Juriti, sendo
que até 1975, cerca de 50 criadouros haviam recebido os filhotes, destacando-se que algumas
criações eram caseiras, outras fazendas e uma empresa de porte médio a “Comércio e Criação
de Tartarugas Ltda – COCRITA. A empresa obteve financiamento do Banco do Brasil – pelo
PROTERRA – para construir uma barragem em Juruti onde foram colocados 90.000 filhotes
em 1973, com resultados altamente rentáveis, a empresa já pretendia instalar um frigorífico.
Nesta época estavam se popularizando os criatórios por toda a Amazônia o que era visto com
otimismo pelo governo:
Tudo indica que, uma vez mantido em funcionamento o Serviço de
Proteção à Tartaruga, a P. expansa deixará de ser uma espécie
ameaçada de extinção, pelo simples fato da oferta de exemplares
mantidos em criatórios baixar o preço do animal, ao ponto de tornar a
sua captura e o seu comércio clandestino atividades pouco
compensadoras357.
357
MINISTÉRIO DAS MINAS E ENERGIA/RADAMBRASIL. Folha SA.21 – Santarém. Rio de Janeiro, 1976.
p. 432
333
silvestres em escala comercial, era muito mais fácil retirá-los de seus habitats para o
comércio, que por sua vez, só existe por que há demanda.
A tartaruga na Amazônia, representa uma questão muito peculiar pelo seu
enraizamento nos hábitos regionais, profundamente inserida na composição social, tornada
“insustentável” da maneira como se configurou. Ainda hoje ela é muito apreciada como uma
iguaria e uma iguaria fina. Na década de 1980 um artigo sobre a conservação da tartaruga na
REBIO-RT, expõem a extrema procura desses animais nas épocas festivas, principalmente
nos Sírios, em que os valores chegavam à US$ 200,00. Nesta mesma época uma lauta refeição
girava em torno de US$ 80 nos hotéis em Manaus. Esse mercado cada vez mais restrito em
seu acesso continua a existir enquanto, do outro lado, as políticas de conservação não
lograram êxito em frear o gradativo declínio da espécie. Isso, segundo Vogt358, com o Brasil
sendo o país que mais investe em conservação dos quelônios. É comum escutar dos
tradicionais mais antigos no Rio Trombetas sobre a fartura de tartarugas no passado, nas
décadas de 1950 e 1960, em que, nas épocas da postura, não se conseguia chegar com o barco
nos tabuleiros de tanta tartaruga. Segundo os relatos colhidos por Vogt, cerca de 30.000
tartarugas desovavam nos tabuleiros do Trombetas em meados do século passado. Sobre a
época que precede a reserva escuta-se falar que os barcos quebravam a hélice em cascos de
tartaruga, quando se arriscavam a atravessar certos pontos. Já na época da criação legal da
reserva o número de matrizes era mais modesto, segundo Vogt, os dados mais concretos de
1979 apontam cerca de 8.000 matrizes desovando. Quando ele chegou, dez anos depois, em
1989 havia 860 tartarugas desovando. Hoje são cerca de 680 desovando, mas destas, uma boa
parte seriam de animais jovens “recrutados pelas mais antigas”, configurando uma
regeneração. De todos os anos, 2004 é apontado como o menor registro de desova: menos de
200 tartarugas foram contabilizadas desovando, sendo que o decréscimo acentuado se inicia
em 1999.
Desde a criação da REBIO-RT se contarmos de 1979 até 2004, em 25 anos de história
desse espaço territorial protegido, criado para a preservação da P. expansa, houve uma
redução de 97,5% de matrizes contabilizadas nas praias. Praticamente a espécie se extinguiu
no local. Por sua vez, a partir de 2004 é apresentado um aumento considerável – de 200 para
860 – associado ao crescimento de jovens matrizes que foram contabilizadas ao utilizarem os
tabuleiros em 2012. Os gráficos governamentais reafirmam este desaparecimento abrupto,
dentro de um declínio constante.
358
VOGT, Richard C. O mais antigo pesquisador da Reserva Biológica do Rio Trombetas. Entrevista concedida
à Leonardo Alejandro Gomide Alcantara e Wilson Madeira Filho em 05 de outubro de 2012. Oriximiná, 2012.
334
500.000
Navegação
450.000
Repiquetes
400.000
350.000
300.000
Nº de Filhotes
250.000
200.000 Repiquete
150.000
Seca
100.000
50.000
-
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Ano-Safra
Não foi apontado pelo governo ou pelos cientistas uma explicação para o fenômeno,
senão hipóteses dentro de uma conjuntura de possibilidades. Ao seguir essa trilha neste
estudo, pretendo apenas apresentar os diferentes posicionamentos dos diversos atores
envolvidos, com exceção de representantes da MRN, por não conseguir acesso. Consigo
conversar com agentes governamentais e acompanhar alguns dos trabalhos de conservação e
de fiscalização. Converso com alguns cientistas que também pude acompanhar em seus
trabalhos. Nas vivências com os tradicionais a tartaruga sempre foi um assunto muito
avençado, ela é profundamente relacionada às representações de mundo deles, como um ser
de muitas estórias folclóricas. Consigo conversar também com pescadores tradicionais, com
comerciantes e atravessadores que, em outros tempos, realizaram o transporte desses animais
para Manaus. Os relatos são confrontados com os dados disponíveis publicados sobre o
assunto que me foram fornecidos e outros que consegui acesso. Na narrativa que segue,
exponho o entendimento dos diversos grupos sem identificá-los, ressaltando que todos os
relatos foram autorizados e foi assegurado o resguardo da fonte.
O ICMBio em um relatório institucional levanta três hipóteses para o declínio abrupto
da espécie: a navegação que aumentou sobremaneira com o aumento da produção da MRN, a
pesca, com a captura das fêmeas e a coleta dos ovos por invasores (tradicionais ou não) e o
manejo e conservação que pode estar inadequado.
Em sua tese de doutoramento Ferrara359 analisa a bioacústica da tartaruga e aponta um
repertório vocal com onze tipos de sons que variam de pulsos e sinais tonais até sinais mais
complexos, apresentando a P. expansa como um dos répteis com maior repertório vocal. O
estudo demonstra que a tartaruga tem um comportamento social complexo que perdura em
359
FERRARA, Camila Rudge. Comunicação Acústica de tartaruga-da-amazônia na Reserva Biológica do Rio
Trombetas, Pará, Brasil. Tese de doutorado. Programa Integrado de Pós-graduação em Biologia Tropical e
Recursos Naturais. Orientação de Richard Carl Vogt. Manaus, 2012.
335
todo o seu período de vida, das migrações até os ninhos. Aponta que o momento em que vão
desovar é que se identificam a maior diversidade de sons (momento de maior vulnerabilidade
e de alinhamento das matrizes para subirem nos tabuleiros todas de uma vez). Por sua vez, o
que chama mais a atenção no estudo é o comportamento parental da tartaruga, há uma
comunicação constante entre mães e filhos que se inicia enquanto estes ainda são embriões
nos ovos nos ninhos. As mães aguardam seus filhotes nos rios e, conforme experimento
narrado, os mesmos quando, as encontram, se abrigam e são por elas abrigados sob suas patas
e pescoço como as galinhas fazem com seus pintinhos.
Tais estudos requerem equipamentos caros para ouvir a tartaruga falar e tentar
entender o que dizem, bem como para acompanhar sua trajetória, por rádio VHF ou satélite,
segundo Vogt, são investidos alguns milhões. O pesquisador aponta também, que na vida
adulta o comportamento social também é fundamental para a espécie, os mais jovens
aprendem com as mais velhas, “são recrutados”, para as praias de reprodução que não
necessariamente são as mesmas, mas que devem ser viáveis, pois quando não são a água
sobre e mata todos os ninhos (repiquete). O ponto levantado é que toda a “escola antiga” de
conservação desta espécie não leva em consideração estes aspectos da etologia desse
quelônio, mesmo porque tudo é recente e ainda requer aprofundamento das pesquisas para ter
força para mudar o “paradigma”. Vogt assinala a presença ainda entre pesquisadores do mito
da “memória ancestral” da tartaruga, que, desovada em uma praia, saberia a essa exata praia
retornar enquanto fêmea adulta, para ali também desovar. Os estudos da semiótica do animal,
contrariamente, tem revelado a ausência de fundamento desse argumento, uma vez que as
fêmeas permanecem na água, sonorizando para guiar seus filhotes. Desse modo, no que se
convencionou enquanto preservação da espécie grande parte dos ninhos são retirados e
levados para incubadoras, após eclodirem parte dos filhotes são soltos e parte permanece até
atingirem um tamanho que possibilite maior defesa, pois neste período são altamente
predados por pássaros, peixes e jacarés, o que justificava o “resguardo” do filhote para que ele
tivesse mais chances. Os pesquisadores estão questionando a eficiência deste modelo na
conservação e mesmos os possíveis prejuízos no manejo da espécie pois estão identificando
fêmeas jovens que realizam a postura em praias inviáveis, possivelmente, por serem “filhas de
chocadeira” e não ter aderido a um cardume mais antigo, capaz de recrutar-lhes para as praias
certas.
Por sua vez, acreditam que isto não está diretamente relacionado com o
desaparecimento abrupto da espécie na REBIO-RT, mas possivelmente com o gradual
declínio. Pergunto aos pesquisadores sobre a possiblidade de serem os navios e obtenho como
336
resposta que pode ser sim, mas não existem estudos que comprovem. Apontam que, se a
redução ocorreu pelo impacto dos navios, relacionada ao fluxo migratório dos animais, ou
seja, cardumes antigos que possam ter descido o Rio Trombetas e não retornado mais, pela
perturbação ocasionada pelos navios, já seria irreversível. Entendem que pode ser também o
tráfico de animais, pelas mudanças das técnicas de pesca das tartarugas, que potencializou
muito a captura com a chegada da malhadeira no final da década de 1990.
O ICMBio exigiu como condicionante para as atividades da MRN um estudo para
tentar averiguar os impactos possíveis dos navios – que não foi realizado até o curso desta
pesquisa – e passou a proibir a circulação noturna de navegações na proximidade dos
tabuleiros. Hoje, a política de repreensão foi substituída por projetos que envolvem os
comunitários tradicionais na proteção e no manejo desses animais, no sentido de se buscar
uma conscientização e mesmo uma parceria, pois eles percebem os quelônios como uma
riqueza deles. Os próprios tradicionais se tornam os vigias das praias nessas parcerias, contam
as nidificações e as marcam junto ao governo, dificultando a ação de invasores externos.
Alguns destes projetos são financiados pela MRN, assim como alguns trabalhos dos
pesquisadores. A MRN também aporta recursos para um projeto maior de conservação
trabalhado nos arredores da REBIO e no Sapucuá, o projeto “Pé-de-pincha”.
Dentro da REBIO-RT, os tradicionais atribuem o desaparecimento das tartarugas aos
pesquisadores. Relatam que junto com as pesquisas veio a escassez. Durante o longo período
em que foram realizadas as pesquisas as tartarugas foram reduzindo. Para os tradicionais as
pesquisas que capturam os animais e colocam sobre eles aparelhos, marcações, rádios, anilhas
etc. estariam “injuriando o bichinho”, fazendo que os mesmos não retornem mais nessas
praias, porque nelas já conhecem a ameaça. Os tradicionais guardam ressentimento dos
pesquisadores e isso é percebido na fala dos mesmos. Segundo Vogt, porque no início da
implementação das pesquisas na REBIO-RT, algumas ações “equivocadas” de pesquisadores
levaram centenas de tartarugas de lá para povoar outras rios da Amazônia e, em uma pesquisa
realizada sobre a proteína da carne de tartaruga, segundo ele pela UFPA, foram sacrificados
muitos animais e abandonados dezenas de carapaças nas praias, o que supostamente foi
assistido pelos tradicionais, que passado de boca em boca, geração em geração, denegriu a
ação das pesquisas para eles. Os pesquisadores levam as tartarugas, matam as tartarugas e
eles, por outro lado, são coibidos de pescar, talvez nessa relação tenha surgido o
ressentimento. Alguns tradicionais também associam o desaparecimento à “invasão”,
relacionando-a a ação de alguns comunitários. As práticas tradicionais de captura são
consideradas predatórias e cruéis, apanham os animais logo após depositarem seus ovos
337
(através da viração) e depois coletam os ovos. Coletam tanto animais e ovos quanto possível
para depois serem vendidos no amplo comércio ilegal.
Outro grupo que inclui os pescadores tradicionais e alguns fiscais atribuem redução
exclusivamente à própria pesca do quelônio, assim como os citadinos envolvidos no comércio
e no transporte (sem exceções para os entrevistados). Esse grupo contrasta com a visão de
alguns funcionários públicos mais antigos, que dizem que a “invasão” sempre ocorreu, mas
controlada, o que não existia antes era o fluxo de tantos navios.
I. Aumento da navegação
360
http://www.dnpm.gov.br/assets/galeriadocumento/sumariomineral2004/ALUMÍNIO%202004.pdf
338
Gráfico 3: Comparativo entre o número de filhotes contabilizados de 1986 até 2003 no Rio Trombetas e
Santarém. MMA/ICMBio 2011.
- Se a pessoa tá desse lado, não tem emprego, não tem o que comer...
é mais fácil pegar onde tem mais do que ir lá arriscar porque não
tem. Então a gente entende. Mas eu acho que é devido a isso...
* Ao shipload...
- Não! Ao tráfego...
* A circulação de navios?
- Como acabar com isso?
* Não tem jeito?
- Não tem jeito!
* Mesmo que isso fique comprovado?
- É... como que vai acabar? Tem que tirar a bauxita.
* Não... sim, mas é... tem como comprovar isso?
- Não sei... não sei porque eu não pesquiso. É como eu te digo, isso é
questão de pesquisar mais vezes, com tartaruga, se passa, se não
passa, analisar quanto decibéis emite, sei lá quantos... se a tartaruga
é capaz de... biólogo deve saber... é capaz de aguentar no tímpano
dela, a pressão que ela consegue aguentar. Estuda... uma vez por
semana ela passa no dia de segunda feira... só vai passar na outra
segunda, então na terça, quarta, quinta, o pessoal que vem, vem.
* E eles andam muito, né? E você tem essa percepção de experiência
né, de vivência. Você viu isso já. Você viu aumentar e diminuir
concomitantemente.
- Tem alguém que fala isso, que as tartarugas que a gente vê
aumentar, porque tá aumentando no Trombetas, mas são tartarugas
jovens.
* Estão vindo de outro lugar...
- Não, são criadas ali. Elas não descem. E as velhonas ainda tem a
predação, não é? Gente que pega, só pega as maiores. Hoje você vê
muita tartaruga. Então no futuro, se continuar essa preservação, vai
aparecer mais tartaruga.
* Mas esse trecho aqui você acha que elas não vão fazer mais?
- Eu acho que ela não baixa mais aqui.
* Tem muito lugar lá pra cima, tudo bem? Pra ela comer e tal...
- Tem... ai tu tem o lago do Erepecu... é o que você lê.
* Mas de qualquer forma foi então uma perda e a perda está
relacionada...
- Eu acho que sim, porque a predação diminuiu. Polícia federal
trabalhava com nós aqui.
* A predação diminui na época de vocês.
- Muita! Muita! Não existia...361
361
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2011.
340
362
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.
341
funcionar, não possui nem veículo e nem lancha. Para atender uma denúncia tem que
requisitar ou um ou outro o que leva dois dias, e mais um dia para chegar nos locais
longínquos, “pra quando chegar lá, muitas vezes, não ter mais nada”. A prefeitura de
Oriximiná não quer a ação do IBAMA que atrapalha o desenvolvimento, principalmente da
agropecuária. É neste cenário que percorremos o nosso caminho.
O ex-regatão oriximinaense me explica sobre a procedência e chegada das tartarugas e
tracajás em Oriximiná, como elas são embarcadas para Manaus, as pessoas que trabalham
com isso e as estratégias para burlar a fiscalização. Seguem abaixo os trechos delimitados:
* O ponto que eu gostaria de tratar com você diz respeito à tartaruga.
Você chegou a me falar que chegou até a trabalhar um pouco com
isso, com essa parte de transporte. E você me disse que haviam mais
pessoas que faziam o transporte. Você sabe mais ou menos quantas
pessoas fazem isso e pra onde elas vão? De onde elas são? Essa
teia...
- De onde começa e onde termina. Geralmente elas saem daqui do
alto Trombetas, da mediação ali do Tabuleiro, que é a região mais
atacada dali. Que pra outros cantos tem, mas é pouquinho. Pra lá
eles não fazem tanta questão. É mais é daí do médio, do alto
Trombetas que a gente chama aqui, né. Aqui vem muito de lá e a
saída delas daqui... de lá é chegar até aqui e daqui ela ser
comercializada até... pra ser comercializada pra Manaus.
* Pra Belém não?
- Pra Belém aqui é raro de sair. Não sai quase pra Belém devido à
fiscalização. Que como faz no porto de Óbidos, de Santarém e outros
portos aí e até mesmo antes de chegar lá em Belém a fiscalização é
muito rigorosa.
* E você tem ideia assim de número. Assim, primeiro sai de lá, dos
pescadores de lá. Das comunidades mesmo ou pescadores que vem
daqui?
- Das comunidades de lá, os próprios pessoal de lá.
[...]
- Todinhos. Todos eles. Lá onde a gente parou lá. A região do [...],
tem aquele pessoal lá. Tudinho as comunidades. Você querendo fazer
uma entrevista pra perguntar de que eles sobrevivem eles vão falar
que é do salário... é... bolsa família, né, bolsa escola. E o salário a
gente vê que não tem condição de uma pessoa viver, que é sessenta e
poucos reais, né. Setenta, oitenta reais cada pessoa pra pegar. Três,
quatro filhos só que ganha e isso é pra quem tá estudando né, ainda.
Aí você vê que não tem como a pessoa sobreviver sobre isso aí. Não
tem como comprar o alimento, remédio, roupa e manter uma casa.
Você sabe que não dá. Então é tudo disso daí que eles coisam lá.
*Da tartaruga?
- Exatamente. Tudo é da tartaruga.
*Você tem uma ideia de quantas... tem época que você tem mais a
pesca né?
342
*E a fiscalização lá, você acha que eles não veem, que eles fazem
vistas grossas, que eles participam do esquema... o que você acha?
- Aqui em Trombetas? Não porque lá tem muitos pontos de passarem.
Lá eles fazem a vista mesmo em cima lá, mas só que tem muitos
pontos de passarem. Eles trapaceiam muito lá por cima, porque ali é
a última passagem que a gente tem do flutuante... lá em cima naonde
é tabuleiro, onde é as desova né... lá fica ruim de passar. Lá é só por
lá que tem pra passar, não tem outro local. E aqui perto de Porto
Trombetas já tem vários biombos pra passar. Tem o [comunidade]
pra passar, tem pra passar por detrás do IBAMA. Inclusivamente,
olha, o [...] era um que tava andando com a gente e ele falou que o
pai dele sobrevive disso, de coisa de tartaruga. Por isso que a gente
encarnava nele que ele pescava. Ele tem um tio que segundo por lá,
por onde a gente tava andando e ele já estava trabalhando lá no
[comunidade], que ele conhecia onde tinha coisa de tartaruga só pelo
cheiro da água, ele sabia o tanto de tartaruga que tinha.
*Só pelo cheiro da água?
- Só pelo cheiro da água ele já sabia se tinha tartaruga lá ou não. É
uma pessoa que já é acostumada nesse coisa de tartaruga.
*Que sabe disso.
- Que sabe. Mas é que quando passa lá no Tabuleiro, passa lá pela
frente, por detrás lá do [comunidade]. Passa por lá uma época dessa.
Por detrás do IBAMA passa, que eles não vê que por lá passa com
canoa...
*Aí consegue sair?
- Exatamente, consegue sair.
*Mas no Tabuleiro, você acha que as tartarugas do Tabuleiro ficam
mais vigiadas.
- Fica vigiadas, com certeza.
*Lá não passa não?
- Lá não passa, lá não tem por onde passar. Lá pra passar é difícil
passar por lá. Porque lá você já viu nessa época, tempo de verão é
raso demais. Agora esse ano que passou agora eu encostei lá. O
motor encostou. Só tava chegando até lá. Não passava pra lá mais
não. Deu esse pipoco d’água que encheu e foi que...
* Essas tartarugas grandes que são pescadas elas vão pra
restaurantes ou elas vão pro comércio varejo mesmo, o pessoal
compra, você sabe?
- Ela vai pra varejo e pra restaurante. Principalmente pra quando é
assim, negócio de casamento pra muitos... como a gente chama, a
gente grande daqui, que mora lá pra Manaus... é doutores, médicos,
advogados... doutores assim que eu falo, negócio de promotor que
tem vários daqui pra lá. Aí...
*Eles consomem...
- Eles consomem.
*Mais em tempos festivos mesmo...
- Mais em tempos festivos mesmo, aniversário, casamento, alguma
coisa de políticos que tem... aí tudo isso aí rola.
*Você sabe quanto custa uma tartaruga grande mais ou menos?
Quanto tá valendo ela hoje?
344
- Isso foi em 92-93, uma coisa assim. Que eu fui pra Manaus. Que
papai pegou um gado, aí foi eu e ele e a gente ajudava a matar as
tartaruga. Assim que foi.
*Essa época você acha que a fiscalização era menor? Saia mais?
- Era menor. Na época de 85 à 98 a fiscalização era muito pequena
[em Oriximiná], como a faz a Rebio, né, a coisa do IBAMA que não
tinha antes. Ela era mais aqui no nosso trecho aqui. Já depois do
motor sair daqui a fiscalização que tinha era só por conta do gado.
Deu ordem de despacho por isso e pronto. Não tinha fiscalização não.
Não entravam no motor pra revirar o estrado, procurar... é que nem
como agora é feito, eles vão, procuram, mete cachorro pra ver se tem
coisa de tráfico ou alguma coisa de cocaína e ao mesmo tempo se vai
em cima da tartaruga também. Já vê tudo de uma vez. E antes não. Só
ia mesmo por causa da fiscalização de gado e pronto.363
Na outra ponta consigo uma entrevista muito elucidativa com um pescador tradicional
que possibilitou uma visão da prática na comunidade, o que se recreia em termos de técnicas e
como os mesmos à vêm e quais seriam os possíveis caminhos para resolver esse conflito.
Segue abaixo os trechos mais importantes:
* Sobre a pesca da tartaruga, você iniciou esse trabalho há quanto
tempo?
- Desde criança.
* Seu pai que te ensinou?
- Isso. Eu pescava com ele.
* Você sabe se seu pai aprendeu com seu avô. Seu pai é de lá
também?
- É de lá também.
* E seu avô? É de lá também?
- Isso.
* E seu pai aprendeu com seu avô também, você sabe?
- Com certeza.
* De lá pra cá, da época do seu pai, como que era feita a pesca?
- Na época do meu pai eu acho que era espinhel.
* Como é que funciona o espinhel?
- É uma linha com vários anzol.
* E vocês usavam o que de isca na época?
- Palmito.
* E essa técnica com espinhel você usou até quando mais ou menos,
você lembra?
- Todo tempo a gente usa.
* Ainda usa ela?
- Ainda usa.
*Chegou de um tempo pra cá, você tinha me falado, em 1996 a
malhadeira?
- Isso.
363
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.
346
- Foi... foi. Isso aí todo mundo que tinha malhadeira sabia disso. Hoje
é mais difícil. Hoje acho que na região não tem mais de cinco
malhadeira.
* Na época que chegou o IBAMA aqui você já pescava, seu pai já
pescava...
- Na época que eles chegaram eu ainda não pescava. Meu pai
pescava.
* Você era novo ainda?
- Era novo ainda.
* Teve muita briga?
- Não... Não tinha briga.
* O pessoal do IBAMA não caía em cima muito? Porque eu ouvia
muita história do pessoal da comunidade dizendo que o IBAMA
chegava, o pessoal brigava, batia nos outros, humilhava...
- É... as vezes. Quando o peão metia de bravo também né. Aí eles
batia.
*E como que vocês viram isso na vida de vocês, a chegada do
IBAMA? Assim, isso atrapalhou muito a vida de vocês?
- Não, uma certa época atrapalhou. Aí depois foi melhorando.
*A relação foi melhorando? Hoje a relação é outra?
- Hoje a relação é outra.
* O que eu queria saber mesmo é o que que vocês pensam, porque
teve uma diminuição muito grande em 2001, né, 2002... e você tá
dizendo que houve uma pesca muito grande em 2000. Então a
diminuição tá relacionada à pesca, da própria comunidade. Porque
eles estão também avençando a possibilidade de serem esses navios
aí...
- Hum...
* É a pesca? Foi forte a pesca?
- Com certeza. Não foi só uma vez não.
* E você acha que existe a possibilidade de vocês pararem de pescar?
- Possibilidade existe, agora também...
*Que tipo de trabalho você acha que deve ser feito?
- Tem que inventar um trabalho pro pessoal lá... pra substituir a
pescaria. Senão não vai acabar nunca.364
O que se pode depreender das falas é que as políticas policialescas nunca conseguiram
conter a pesca, mas que, com a parceria da comunidade as ações fiscalizatórias e proteção
ganharam muito mais efetividade pelo próprio conhecimento tradicional do “pescador”, quem
efetivamente conhece os meandros dos rios e as técnicas de captura. O outro lado é o amplo
consumo que inviabiliza o controle em uma ponta, se não haver o combate em toda a cadeia.
Conforme mencionado, é fácil comprar uma tartaruga em Oriximiná, basta discretamente
perguntar quem vende e ter o dinheiro. Por sua vez, tomando por base o relato, é difícil dizer
que a pesca não contribuiu para a drástica redução da espécie e que a prática é insustentável,
364
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.
349
* E uma coisa que a gente escuta muito falar, da época [...], é que ele
também levava muita coisa de lá...
- Isso. Eles dizia que ele trazia principalmente peixe, mas a tartaruga
não tenho certeza. Mas já ouvi dizer que ele trazia.
* Só escutou dizer, não sabe?
- Isso.
*Era uma coisa bem escondida?
- Isso.
*Filhote também?
- Até teve um funcionário dele que saiu por causa disso... levou até no
barco que fazia a viagem da comunidade lá... o [...]. Aí agarraram ele
com essas tartaruguinhas dentro do [...] e ele saiu.
* Mas ele tava fazendo pra ele mesmo ou [...]?
- Não sei pra qual era dos dois. Se era pra ele mesmo ou pro [...]. A
gente não sabe pra quem era.365
***
*Agora dizem que o [...] até hoje vende filhotes, não sei se é verdade.
- É, eu escuto esse comentário também que ele trabalha com esses
coisa de filhote, de venda de filhote também.
*Vai levar pra esses criadouros legais que vai esquentar o filhote.
Esquentar é legalizar.
- É. É o que eu escuto também, dos filhotes. É como faz o tracajá e a
tartaruga... é o que eu vejo falarem dele também. Ele já sai lá todo
dia... não sei o que que aconteceu...
*Ele tem um bom esquema lá...
- É, ele não sai de lá devido à isso. Dizem que ele não tá mais
trabalhando, mas ele tá lá. E todo mundo respeita lá ele. Porque ele
que começou e praticamente ele considera isso lá como se fosse dele,
né... Aquilo ali.
*Você acha que essa relação, essa teia que ele criou é muito grande?
Ou seja, ele tem muita influência, muito poder ao redor?
- Tem. Tem muita influência ele, com certeza. A influência dele é
muito grande ali. Muito, muito grande ali. Ele que conseguiu colocar
isso pra ele, quase isso aí tudinho. Ele até hoje ainda manobra essas
coisas. Vem gente de fora, mas ele que manobra esse pessoal que vem
sim. Pra poder fazer isso aí, é como a gente fala, tem que fazer uma
varredura. Sai ele, sair aqueles outros que estão lá, que é daqui [de
Oriximiná]. Tirar esses que tão lá... é fazer uma varredura. Tirar todo
mundo de lá pra entrar outros. Aí a gente pode ver uma melhora.
*Agora esses filhotes você só ouviu falar, não teve conhecimento
direto...
- Não teve assim direto não. Só escutei a conversa. Isso como sempre
a gente escuta, né.
*É, eu também, sempre escuto mas nunca vi ninguém que fale olha...
só os pesquisadores.
365
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.
351
366
SIGILO DE FONTE. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara. Oriximiná, 2013.
352
Por sua vez Nedel368 esclarece como foram realizados os estudos de criação da
FLONA-ST, pois enquanto coordenador de florestas nacionais do IBAMA na época, foi quem
realizou os mesmos:
*Me fala seu nome completo João.
- Meu nome é João Carlos Nedel, sou engenheiro florestal. Trabalhei
na coordenação dos programas especiais, como coordenador de 80 -
84, 85 e um dos projetos nossos era a implementação e consolidação
da Reserva Biológica do [Rio] Trombetas. Também participei, já a
alguns anos depois, como coordenador de florestas nacionais da
criação da Floresta Nacional de Saracá-Taquera. Mas assim, onde eu
participei praticamente foi uma ação previamente decidida e
determinada pela Presidência da República, e pelo próprio presidente
do IBAMA na época e o nosso trabalho era simplesmente um trabalho
burocrático, não lembro com clareza, mas era tipo fazer uma
exposição de motivos, fazer algo assim... uma coisa que já estava
decidida, entendeu? Só uma maquiagem de um documento, uma coisa
assim.
367
CARVALHO, A. Guerreiro de. Funcionário mais antigo da Reserva Biológica do Rio Trombetas/ ICMBIO.
Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 19 jul. 2011. Oriximiná, 2011. Grifei.
368
NEDEL, J. C. A implementação da Floresta Nacional Saracá-Taquera e da Reserva Biológica do Rio
Trombetas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G. Alcântara em 28 de fev. de 2013. Brasília, 2013.
Grifei.
354
podem ser caudados sobre os atributos que justificam a proteção de dada área; 3) as
disposições legais que estabelecem o que pode ou não dentro de uma determinada UC.
Com relação ao primeiro ponto, a mineração, conforme visto, é compreendida como
interesse nacional. Qualquer minério é bem público da União, só pode ser explorado quando
autorizado ou concedido com base no interesse público e por brasileiros ou empresas
constituídas sob as leis brasileiras. Em tese, toda mineração seria de interesse público, não
obstante o histórico mundial de devastação que propiciou à atividade o título de “economia de
rapina”. Por outro lado a proteção ambiental é interesse difuso, abrange toda a coletividade.
Do ponto de vista dos mineradores, a atividade deve sobrepor-se tanto à propriedade privada
quanto às restrições ambientais que recaem em áreas de ocorrência de jazidas como o
exemplo das unidades de conservação, visto que se trata de interesse do desenvolvimento
nacional. Por outro lado, enquanto direito fundamental o meio ambiente não é transigível,
negociável ou disponível e como as Unidades de Conservação são previstas
constitucionalmente enquanto “espaços territoriais especialmente protegidos” indispensáveis
à manutenção do ambiente sadio, esse interesse, em tese, não pode ser flexibilizado375.
Entretanto, quando há colisão de interesses dessa natureza o que se assiste peremptoriamente
é a sobreposição dos interesses de grupos economicamente mais fortes, dentro da óptica que
adotamos, que estabelecem redes mais extensas, que estão associadas a grandes grupos e ao
governo que legitima a atividade enquanto promotora do desenvolvimento nacional.
O segundo e terceiro pontos podem ser discutidos conjuntamente, pois tratam de um
lado se atividade foi iniciada antes ou depois da criação da UC, se a mesma compreende a
proteção do subsolo e sobre o que a lei dispõe sobre cada categoria de UC. Para as UCs de
proteção integral cuja utilização só pode ser realizada de forma indireta, a mineração ficaria
vedada de toda sorte (mesmo sem menção explícita ao subsolo), cabendo no caso discutir
possíveis indenizações relativas aos investimentos realizados no caso de atividades anteriores
à criação da unidade (o minério não entraria na indenização por ser propriedade da União).
Com relação às UCs de uso sustentável, as que não dispõem explicitamente a vedação ou
destinação incompatível, vai depender do que dispõe o Plano de Manejo e o Zoneamento das
mesmas. O SNUC trata em seu artigo 24 que “o subsolo e o espaço aéreo, sempre que
influírem na estabilidade do ecossistema, integram os limites das unidades de conservação”,
por sua vez, o decreto que regulamenta essa lei (Decreto nº 4.340/2002) em seu artigo 6º diz
que o subsolo deve ser definido no ato da criação ou posteriormente em seu Plano de Manejo,
375
LIMA, A. SiNUCa de bico: mineração em Unidade de Conservação. In. ROLLA, A. & RICARDO F. (org).
Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006
357
o que, dependendo do caso vai possibilitar a atividade de lavra, desde que compatível com os
fins de uma dada unidade.
A FLONA-ST tem previsto no seu decreto de criação a atividade de mineração da
bauxita. Em outros momentos é explicitado a MRN como parceira para implementação,
elaboração do plano de manejo e convênios com as autoridades gestoras da FLONA-ST. O
imbróglio jurídico com relação à mineração em Florestas Nacionais na Amazônia não é
exclusividade da Saracá-Taquera, mas também da FLONA de Bom Futuro (Decreto Federal
96.188/88), de Carajás (Decreto 2.486/98), do Amana (Decreto s/nº de 13/02/06), do Amapá
(Decreto 97.630/89), do Crepori (Decreto s/nº de 13/02/06), do Jamanxim (Decreto s/nº de
13/02/06), Tapirapé Aquiri (Decreto 97.720 de 1989) entre outras376. Parece haver um
entendimento pacífico por parte dos órgãos gestores dessas unidades no que diz respeito à
essa prática, apesar de existirem divergências legais como pretendo demonstrar.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado além de uma garantia
constitucional prevista no artigo 225 da CF88 é pacificamente reconhecido pela doutrina
como um direito humano fundamental. Esse posicionamento hierárquico-normativo corrobora
alguns entendimentos, essenciais à devida interpretação consonante à CF88, que atribuem
certas características a esse direito que não poderiam ser desconsideradas pelos agentes
públicos de todas as esferas do poder. A ordem pública ambiental constitucionalizada, cria
restrições ao uso da propriedade – pública e privada – e dos recursos naturais, condicionando
e limitando sua exploração ao bem estar social e a não degradação do ambiente. Um primeiro
entendimento que se depara é a aplicação imediata e vinculante do direito-dever
constitucional, independente da atuação do legislador ordinário. Enquanto difuso, o direito-
dever ao ambiente se espraia por toda coletividade possuindo a mesma como sujeito direto, i.
e., evocá-lo significa evocar o direito de todos em causa própria. Esse posicionamento lhe
confere um caráter transindividual, intertemporal ou atemporal com repercussões inovadoras
no campo do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da prescrição. É atribuída a
irrenunciabilidade (direito que não pode ser renunciado), a inalienabilidade (direito que não
pode ser negociado) e a imprescritibilidade (direitos e deveres que não sofrem alienação
temporal), em que se percebe a consolidação de uma ordem pública diferenciada como
ressalta Benjamin377:
376
LIMA, A. SiNUCa de bico: mineração em Unidade de Conservação. In. ROLLA, A. & RICARDO F. (org).
Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006
377
BENJAMIN, Antonio H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira.
CANOTILHO, J. J. G.; MORATO LEITE, J. R. (org.), Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 122
358
época da criação da maioria das FLONAS com estes propósitos o que as regia era a Lei
4771/65 em seu artigo 5º, que mencionava apenas que o Poder Público as criaria “com fins
econômicos, técnicos ou sociais, inclusive reservando áreas ainda não florestadas e destinadas
a atingir aquele fim”. Da menção normativa anterior não se depreende nada que impedisse a
prática da mineração, ao contrário, era plenamente possível a prática da mineração em
florestas nacionais do ponto de vista legal.
Com o Decreto Federal 1298/94 o dispositivo da Lei 4771/65 foi disciplinado e as
FLONAS ganham uma função mais próxima da atual prevista no SNUC, relacionando-as à
exploração sustentável de recursos naturais, sobretudo de origem florestal, além da
conservação, pesquisa, educação e lazer.
Por sua vez, o artigo 4º do mesmo decreto faz alusão à exploração de recursos
minerais, permitindo tal prática, posto que estabelece menção direta à Lei 7805/89 que instituí
o regime de permissão de lavra garimpeira, em seus artigos 16 e 17, que mencionam
diretamente pesquisa e lavra em áreas de conservação sob a dependência de
licença/autorização prévia do órgão ambiental.
Art. 4º A realização de quaisquer atividades nas dependências das
FLONAS, especialmente de pesquisa, deverá ser precedida de
autorização do IBAMA ou de licença ambiental, nos termos previstos
nos arts. 16 e 17 da Lei nº 7.805, de 18 de julho de 1989.
Entretanto com o advento do SNUC a redação que disciplina estes espaços territoriais
protegidos sofre alterações substanciais. Apesar de se tratar de uma UC de uso sustentável, o
legislador entendeu que esse tipo de espaço deve ser destinado somente à exploração de
recursos florestais, conforme se depreende da redação do artigo 17 da lei 9985/2000:
Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de
espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso
múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica,
com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas
nativas.
possibilidade de mineração em FLONA, mas somente para atividades cuja licença fora
concedida antes da entrada em vigor do SNUC.
Neste sentido a interpretação de que o SNUC, ao especificar que nas FLONAs as
atividades precípuas ao modelo de conservação proposto estão atreladas exclusivamente à
exploração de recursos florestais, sejam eles madeireiros ou não, de maneira indireta excluí a
atividade mineradora. Não obstante o entendimento neste sentido, advoga-se que as atividades
que já operavam anteriormente à criação da unidade e que dispõem em seus diplomas
constitutivos a permanência da mesma, bem como em seu plano de manejo, estariam
operando dentro da lei.
No caso a Floresta Nacional Saracá-Taquera estaria enquadrada nesta situação, visto
que em seu decreto há a previsão legal explícita sobre a atividade de mineração. No seu plano
de manejo, financiado pela própria MRN, também existem diversas disposições sobre a
mineração da bauxita compreendida pelo mesmo como prática sustentável e legalmente
adequada para a UC em questão. O Decreto 98.704/89 autoriza o próprio IBAMA a
conveniar-se com a MRN objetivando obter apoio para a implantação da FLONA e proteção
de sua área. Com relação ao Decreto cabe a seguinte transcrição:
Art. 2º As atividades de pesquisa e lavra minerais autorizadas já em
curso ou consideradas reservas técnicas na área da Flona, ora criada,
não sofrerão solução de continuidade, devendo ser observado o
disposto no art. 225 da Constituição Federal, bem como o disposto no
Decreto nº 97.632 de 10 de abril de 1989, e na Lei nº 6.938, de 31 de
agosto de 1981.
Mapa 10: Zoneamento da FLONA-ST. Fonte: Plano de Manejo da Floresta Nacional Saracá-Taquera,
2001.
Mapa 11: Mapa geral das novas áreas propostas de inclusão na zona de mineração da FLONA-ST. MRN, 2011
harmonização adequada do ordenamento jurídico, mas o conflito que estava ocorrendo sobre
o uso por tradicionais dos produtos florestais não madeireiros como a castanha (Platô
Almeidas) e a copaíba (Platô Monte Branco), cujo impacto é praticamente nenhum e o uso é
temporalmente indeterminado. Obtenho como resposta que a argumentação faz sentido, mas
que seria uma energia canalizada em vão, porque seria mais fácil a mineração mudar a lei do
que perder suas jazidas. Ou seja, a atividade está acima da lei e não existe Estado
Democrático de Direito?
As questões legais tangentes à mineração em UC, especificamente em Floresta
Nacional, no caso em tela, se apresentam substancialmente complexas e tecnicamente pouco
adequadas em sua aplicação/interpretação. O Poder Público evidencia se amparar mais em
acordos políticos do que propriamente na lei, que apresenta-se flexibilizada para atender os
interesses desses grandes grupos. Entretanto, outro ponto se mostra igualmente complexo no
que tange à legalidade e priorização.
Conforme abordado, no interior da FLONA habitam comunidades tradicionais –
quilombolas e ribeirinhos, principalmente nos seus arredores. Ambos possuem práticas
extrativistas muito variadas que vão desde a extração da castanha-do-Brasil, até resinas, breu,
copaíba, madeiras etc. Não raras as vezes áreas destinadas à mineração eram utilizadas por
estes tradicionais para realização de suas atividades extrativistas com fins comerciais.
Atividades estas com impacto muito baixo e muito mais adequada às funções de uma Floresta
Nacional.
Um caso específico, tratado adiante, coloca em confronto direto duas comunidades e a
MRN. O Jamari no interior da REBIO e o Curuça, no interior da FLONA, há mais de trinta
anos exploram as copaibeiras do platô Monte Branco, hoje explorado pela MRN. Tendo como
base de sua economia a extração do óleo de copaíba, essas comunidades estão assistindo a
perda de sua principal perspectiva de trabalho, passada de pai para filho, sucumbir diante do
avanço da mineração.
Há que se perscrutar: diante de casos conflituosos como este, em que uma prática
inviabiliza a outra, como o Poder Público deveria se posicionar? Do ponto de vista da
legalidade e da legitimidade a extração do óleo de copaíba é muito mais adequada à UC em
questão, a prática pode durar enquanto durar a floresta. Mas do ponto de vista econômico qual
valeria mais? A questão da temporalidade deve entrar em cena na apreciação dos valores que
recaem sobre os produtos florestais, sobretudo os não-madeireiros, pois são continuamente
aproveitáveis ou muito rapidamente renováveis enquanto a floresta estiver de pé. Por uma
escala temporal mais ampla estes produtos assumiriam um valor diferenciado e ao mesmo
365
tempo real que se sobreporia ao valor do mineral, um recurso que vai necessariamente se
exaurir até 2050, com baixo valor agregado e principalmente exportado – a ALUNORTE e a
ALUMAR, principais compradoras da bauxita da MRN são grandes exportadoras de alumina
e alumínio primário respectivamente. O importante é que essa discussão ganhe cada vez mais
espaço e inserção dentro das esferas discursivas, para que possam ser agenciados cada vez
mais interesses e mais seres, formar redes maiores tanto para os usos dos produtos florestais
quanto para a prática tradicional. Esse é um ponto de legitimação que pode minar o sistema
dentro de sua própria lógica, pois torna-se ainda mais complexa a sua desconsideração e a
FLONA-ST que já existe, deve ser utilizada para alinhavar as ações nesta direção, valendo-se
do próprio golpe que foi dado com a sua criação. Não que a bauxita não seja importante, o
poder dela esta nas mão de quem segura uma latinha de alumínio ou usa um talher, mas que
ela não deve ser priorizada quando se trata da perda de riquezas para “todos”.
366
Mapa 12: Mapa Falado da Comunidade da Casinha – Lago sapucuá. MMA/ICMBio, 2011.
Pelo Plano de Manejo da FLONA-ST de 2001, viviam cerca de 2.500 pessoas, dentre
comunidades ribeirinhas, remanescentes quilombolas e comunidades não tradicionais, com
a revisão esse número mais do que triplica. As comunidades quilombolas se mantiveram as
mesmas descritas no Plano de 2001 sobre a área da FLONA: Moura, Palhal, Sagrado
Coração, Mãe Cué, Curuça-mirim e Tapagem. Os quilombolas reivindicam a titularização
de territórios representando 20% da área da unidade. As comunidades de ribeirinhos não
quilombolas são muitas, não cabe descrevê-las aqui, envolvendo os três municípios
abrangidos pela Floresta Nacional379. As que se mobilizaram para reivindicar o
reconhecimento foram as comunidades do lago Sapucuá principalmente. Contudo, dentre as
questões fundiárias mais complexas apontadas, está a ocupação da floresta por populações
não tradicionais, que invadiram a área após a sua criação, configurando situações de
ilegalidade incontornáveis, senão pela remoção dessas pessoas e recuperação da área. Esses
pontos se mantiveram na revisão.
A FLONA-ST situa-se exatamente ao lado da REBIO-RT, tendo como limite o Rio
Trombetas que as divide. Nesse sentido, por serem áreas contíguas, é razoável afirmar que
em relação à sua biodiversidade e biomas, ambas possuem relevância similar, apesar do
tratamento completamente diferenciado. As atividades desenvolvidas pelas comunidades
também são praticamente as mesmas nas duas unidades de conservação, com intensidade
maior no uso da terra na Floresta Nacional. Apesar de menos reprimidas pelos órgãos
ambientais nesta área, segundo o Plano de Manejo 2001, a própria mineradora exercia
atividades de “conservação e fiscalização” em sua área de atuação de 20.000ha – não
consegui documentos nem comentários a respeito de violências ou conflitos maiores nesta
área.
Conjugando fatores como vulnerabilidade, potencialidade, restrições e aspectos legais
foi desenvolvido o zoneamento da FLONA-ST, estabelecendo-se sete zonas definidas
378
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Relatório das reuniões participativas realizadas nas comunidades da
FLONA-ST, de 23 de maio a 23 de novembro, sobre a revisão do Plano de Manejo desta unidade de
conservação. Oriximiná, novembro de 2011.
379
Nesse sentido observar o trabalho: AZEVEDO, T. M. L. S. Estatização do Puxirum: Uso coletivo da terra no
Projeto Estadual Agroextrativista Sapucuá-Trombetas, em Oriximiná (PA). Dissertação de Mestrado, UFF/
Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito. Orientação Wilson Madeira Filho. Niterói, 2012.
368
como: a) Zona Primitiva (25,92%) – designada para conservar amostras representativas dos
ecossistemas com intervenção mínima; b) Zona de Produção Florestal (36,02%) – com
objetivos de promover manejo sustentável da fauna e da flora com destaque para exploração
da madeira e demais produtos florestais, compreende em parte próxima da Zona
Populacional, área de prioridade para uso das comunidades quilombolas (menor
consideração para os ribeirinhos); c) Zona de Mineração (36,02%) – subdividida em área de
lavra e área de uso restrito, a primeira corresponde aos platôs que reservam a bauxita em
toda a FLONA e a segunda corresponde às encostas desses platôs representando Áreas de
Preservação Permanente pela declividade; d) Zona de Uso Especial (0,43%) – corresponde
às áreas destinadas à infra-estrutura para gestão, educação, fiscalização, pesquisa e
recreação na Floresta Nacional; e) Zona de Recuperação (0,69%) – corresponde às áreas em
conflito fundiário com população não tradicional que devem ser recuperadas
ambientalmente; f) Zona Populacional (2,49%) – corresponde às áreas destinadas à
população tradicional e relacionadas à subsistência das mesmas; g) Zona de Uso Intensivo
(0,41%) – área destinada à visitação, recreação e educação ambiental.
Os efeitos da mineração são percebidos enquanto pontuais no Plano de Manejo 2001,
mas são, indubitavelmente os de maior monta naquela unidade de conservação, em todos os
aspectos: biológicos, geológicos, físico-químicos, culturais e econômicos. As águas são
classificadas enquanto “classe 2” o que permite uma deposição maior de rejeitos e menos
custos no tratamentos dos mesmos. Uma das reivindicações das comunidades foi modificar
a classe, por sugestão dos analistas ambientais do ICMBio, para “classe especial” de uso
direto humano, assegurando um cuidado muito maior a ser tomado por parte da mineração,
para não contaminar os igarapés, parte integrante da vida daquelas populações.
Com as reivindicações para a ampliação das zonas populacionais, a MRN, com o
oportunismo que lhe é inerente, se antecipou e solicitou a ampliação da zona de mineração
em janeiro de 2011380, o que conflita com as disposições legais, conforme mencionado. Já
estava ocorrendo uma controvérsia com a zona de produção florestal que, para operar,
incidiria em área utilizada pela MRN. A licitação para a concessão florestal, através do
edital de Concorrência nº 01/2009 do Serviço Florestal Brasileiro, também gerou
controvérsia com as comunidades quilombolas repercutindo em uma representação a
ARQMO no Ministério Público Federal. O Procurador da República acatou a representação
e ingressou com a Ação Civil Pública nº 1516 -09.2009.4.01.3902/PA, obtendo liminar pelo
380
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Proposta de Revisão da zona de mineração da Floresta nacional Saracá-
Taquera. Porto Trombetas, janeiro de 2011.
369
381
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Análise do Diagnóstico Preliminar da revisão do Plano de Manejo da
FLONA-ST. Porto Trombetas, 32 de outubro de 2011.
Figura 2 – Número total de famílias que moram no interior da FLONA, por
comunidade, segundo dados repassados por moradores nas reuniões participativas sobre
370
revisão do Plano de Manejo da FLONA Saracá-Taquera, ocorridas de 23 a 28 de
novembro de 2011 nas comunidades da FLONA.
52 29
7
83
ACOMTAGS - lago Sapucua
ACOMTAGS - Maria Pixi
ACOMTAGS - rio Trombetas
lago do Batata
Comunidades quilombolas
O documento final da ECOSSIS ficou pronto em junho de 2013 não mais compondo
os levantamentos desta pesquisa. Contudo, ponto de importância para essa caminhada está
na forma em que as populações tracionais inseriram suas demandas e as fizeram conectar na
proposta. Nas reuniões realizadas nas diversas comunidades eram construídos mapas
falados onde se apresentava as áreas de uso e as formas como as mesmas eram utilizadas,
desde agricultura, criações e extrativismo. Com isso o processo se tornou bem mais
inclusivo, possibilitando dar visibilidade aos diversos usos territoriais e diversos seres que
compõem aquelas comunidades.
382
MERCADANTE, Maurício. Democratizando a Criação e Gestão de Unidades de Conservação da Natureza: a
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. In. Revista de Direitos Difusos. Florestas e Unidades de Conservação. Vol. 5.
Fev. 2001. São Paulo: ADCOAS, 2001.
372
áreas, assistência técnica entre outros fins. Cria um sistema de informações e um sistema de
monitoramento das florestas públicas, com intuito de promover uma gestão participativa e
transparente. Estabelece que a gestão das florestas públicas é promovida através da criação de
Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais; com a destinação de florestas públicas às
comunidades locais; e por meio das Concessões Florestais.
Com relação à destinação das florestas públicas às comunidades locais, apesar de levar
em conta a utilização de recursos madeireiros e não madeireiros pelas comunidades
tradicionais e assentados, no que tange aos recursos madeireiros vem se tornando prática
corrente a apropriação transfigurada desses recursos por empresas madeireiras em detrimento
da fruição plena (ou mesma razoável) dos mesmos pelos comunitários383. Com relação à
criação de Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais e ao implemento das concessões
florestais, há uma correlação entre ambas visto que as concessões se dão geralmente em áreas
específicas dessas unidades de conservação.
Ensaiada no desenvolvimentismo predatório do regime militar, repaginada nas
privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso e finalmente regulamentada e
experimentada no governo Lula, as concessões florestais não são uma experiência inédita no
Brasil. Iniciadas com caráter utilitário puro, perpassando a discussão da ineficiência do Estado
na gestão e aproveitamento do patrimônio público, a concessão florestal, em sua última
idealização representa uma mudança de direção da Política Nacional do Meio Ambiente, que
se valeu tradicionalmente de instrumentos repressivos de comando e controle. Com fins de
transformar os recursos florestais em ativos reais, conter o desmatamento ilegal e a grilagem
de terras, as concessões florestais representam a utilização de instrumentos econômicos com
fins de proteção do patrimônio ambiental de um lado e do outro a discussão público-privado.
Compreendendo três tipos de florestas – a de terra firme, a de várzea e a de igapó – a
FLONA-ST conforme mencionado, guarda significativa riqueza florestal e excepcional
biodiversidade. Com elevada diversidade florística, possui mais de cem espécies arbóreos
madeireiros com valor comercial e uma grande diversidade de espécies utilizadas no
extrativismo de onde se extraem sementes, folhas, cascas, látex, frutos, óleos, seivas, raízes
etc. Das oito zonas previstas no zoneamento da FLONA-ST, a zona de produção florestal,
com objetivo de promover o uso múltiplo sustentado dos recursos, gerar divisas e
implementar o manejo sustentável da floresta possui 154.742,98 ha. Esta zona equivale a
383
NETO, Manuel Amaral et al. Análise de acordos entre empresas e comunidades para exploração da madeira
em assentamentos rurais na região da BR 163 e entorno, no Estado do Pará. Belém: Instituto Internacional de
Educação do Brasil, 2011.
373
Outro ponto de destaque no que tange ao regime de concessões florestais, diz respeito
a sustentabilidade da prática. O regime de exploração é substancialmente controlado, com
sofisticadas técnicas de monitoramento, devendo ter aprovado o Plano de Manejo Florestal
Sustentado pelo IBAMA e o contrato supervisionado pelo Serviço Florestal Brasileiro. Por
sua vez, estranhamente o plano não tem que ter anuência do ICMBio, gestor direto da unidade
e que provavelmente detém melhor conhecimento daquela realidade (queixa de um
representante do órgão). O manejo florestal permite extrair uma média de cinco árvores por
hectare entre outros produtos florestais, não permitindo extrair minérios e outros recursos. Há
necessidade de reservar espécies como porta sementes, bem como no regime de exploração
seletiva, em tese, um ciclo completo de 40 anos permite regeneração da área para nova
exploração comercial. A participação social durante todo o processo é um valor declarado,
bem como a consideração das populações locais que detém possibilidade de participar do
processo licitatório com equitativas vantagens, perspectiva esta que corrobora com as ideias
de sustentabilidade.
Entretanto, na mencionada licitação da FLONA-ST, desdobraram-se conflitos de
significativa repercussão. Inicialmente com os remanescentes quilombolas que habitam a
unidade e utilizam seus recursos e posteriormente, com comunitários ribeirinhos em situação
similar. Conforme a Ata da Audiência Pública realizada no município de Oriximiná em 18 de
375
folha de uma palmeira menor ao lado e fez com ela um instrumento circular chamado
“peconha”, com esse instrumento colocado nos pés, uma coroa de folhas, é possível se firmar
na palmeira enquanto sobe. O terçado foi na boca, preso com os dentes, e quando chegou lá
em cima, sustentou o cacho das frutas na perna e o cortou, baixando com ele na própria perna
para não perder muitos frutos. O cacho de frutos media cerca de um metro e meio e pesava
uns 40Kg. O carregamos até a canoa e o levamos para a comunidade. Lá as mulheres
debulharam os frutinhos que, jogados em água quente, amoleciam para serem peneirados
dando origem a um caldo pastoso que eles chamam de “vinho da bacaba”. A fruta de cor
rósea, mais saborosa do que o açaí, foi meu alimento neste dia e de todos da comunidade que
quiseram comer, servido com farinha de mandioca.
O objetivo deste campo foi conhecer a percepção dos quilombolas sobre o conflito que
estava ocorrendo entre eles e a MRN no que tange à supressão de milhares de copaibeiras no
Platô Monte Branco, principal fonte de subsistência das comunidades do Jamari e Curuçá-
Mirim conforme já mencionado. A questão se assemelhou ao que havia ocorrido com as
comunidades ribeirinhas da Boa Nova e Saracá em relação às castanheiras do Platô Almeidas.
Os Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatório (EIA/RIMA) realizados pela
empresa BRANDT Meio Ambiente, referiram-se aos levantamentos realizados em cinco
platôs: Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó, apresentando-os conjuntamente em
2007. O EIA menciona um número significativo de espécies da flora que são raras, presentes
nos cinco platôs (137 só no Monte Branco) e uma espécie raríssima, além de diversos sítios
arqueológicos (7 sítios e 10 ocorrências no Monte Branco) e grande diversidade de fauna, o
que é próprio das áreas íntegras da Amazônia384. Ocorre que não há menção sobre as
copaibeiras no que se refere ao levantamento florestal (páginas 322 até 350) e tampouco ao
uso das mesmas pelos povos tradicionais e sobre os possíveis conflitos e impactos que
decorreriam da supressão das mesmas (parte de “tensões e conflitos” nas páginas 586 até
589)385. A mesma situação se repete no RIMA, não avençando sobre o uso humano da área do
platô Monte Branco e os possíveis conflitos que decorreriam com a mineração386. Por sua vez,
no inventário florestal dos 3.750 ha do platô Monte Branco, realizado em 2006 e que
subsidiou o EIA/RIMA, realizado pela Cooperativa de Tecnologia Organizacional –
Coopertec faz menção destacada da presença das copaibeiras neste platô:
384
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/BRANDT MEIO AMBIENTE. Estudo de Impacto Ambiental dos platôs
Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó. Volume II. Oriximiná. Abril de 2007.
385
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/BRANDT MEIO AMBIENTE. Estudo de Impacto Ambiental dos platôs
Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó. Volume III. Oriximiná. Abril de 2007
386
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/BRANDT MEIO AMBIENTE. Relatório de Impacto Ambiental dos platôs
Monte Branco, Bela Cruz, Greig, Teófilo e Cipó. Volume II. Oriximiná. Abril de 2007.
379
A partir daí se iniciou um embate entre os analistas locais do ICMBio e a MRN, para
tentar não deixar acontecer o que aconteceu no platô Almeidas ou exigir uma indenização
maior sobre os produtos florestais e alguma indenização para as comunidades. A audiência
387
MINERAÇÃO RIO DO NORTE/COOPERATIVA DE TECNOLOGIA ORGANIZACIONAL. Inventários
Florestal em 3.750 ha de Floresta Ombrófila Densa no Platô Monte Branco – Relatório do Inventário. Volume I.
Oriximiná. 2006. Grifo no documento.
388
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
380
pública foi realizada pelo IBAMA em final de 2008, de uma maneira proforma, possibilitando
a maquiagem democrática que assegurasse o licenciamento, uma vez que as comunidades
tiveram participação:
E aí fomo na audiência pública lá. Chegamo lá até o Nei tava lá. Aí
ele chegou lá e disse: olha eu vou dizer uma coisa pra vocês, hoje é a
vez de vocês reivindicarem tudo lá que vocês tem. Tudo que vocês
perguntarem vai em ata. Tinha um pessoal de Brasília... Aí eles
davam um papelzinho, a gente escrevia a pregunta que a gente tinha,
porque tinha muita gente e não tinha condição de tá falando mesmo.
Tava o Ademar da mineração, o pessoal do INPA, todo esse pessoal
foi. Aí a gente fez a pergunta lá pra eles, né, que a mineração ia tirar
esse minério daí do Monte Branco que a gente usava, tinha o produto
que a gente usava lá que era a copaíba, que a gente já tinha
comprovado pra eles. Esse material era a sustentabilidade da
comunidade, o que é que eles iam fazer em relação disso aí? Bom, o
Ademar respondeu de lá dizendo que eles tinham feito um inventário,
que realmente tinha copaibeira lá, mas eles tavam terminando de
fazer o estudo e no prazo de 60 dias eles iam chamar as comunidade
pra tentar conversar. Bom, passou 30, passou 60, passou 90, né, aí fui
lá dá uma cutucada neles. “Não, nós tamo terminando o estudo nesse
período.” Aí tem um ano e pouco que aconteceu isso né, aí eles
vieram aqui. A gente começou a trabalhar com eles, né. Eles começou
a dar uma ajudinha aqui pra gente, né. Vamos dizer... porque a gente
aqui tava trabalhando da fraqueza a força. Nós começamo aqui do
zero. Isso aqui hoje o pessoal olha aqui, né, mas pra quem viu do dia
que a gente começou aqui... daqui aí você não enxergava. Aí a gente
começou a pedir uma ajuda, falou com a mineração se eles não
davam uma ajuda pra gente. A prefeitura não quis ajudar a gente. Aí
eles agarraram e disse: olha, a gente ajuda mas quer retorno, quer
ver o que vocês vão fazer.
*Qual é o retorno que eles pedem?
- Assim, por exemplo, se eu for fazer uma farinha dessa aqui, aí eles
pediu: vocês fazem o barracão e o resto a gente dá. Tá, aí a gente fez
o barracão, né, tudinho... aí eles mandaram fazer piso, a cerca, esses
três forno, a prensa. Aí vinham ver. Tá pronto? Tá. Então era esse o
retorno que eles queriam que a gente desse. Aí nos fomo trabalhando
com eles. Eles foram dando uma ajudinha né. Aí construíram um
sistema de abastecimento de água, pra gente que a gente não tinha...
infraestrutura, né, foi ajudado pela mineração. Mas aí eles vieram
aqui conversar com a gente, que iam fazer alguma proposta, né, dessa
situação que eles tava, porque o IBAMA tinha feito um levantamento
com eles e tinha dois tipo de proposta: a indenização e a
compensação. E aí eles iam optar pela compensação porque a
indenização... podia dar, fazer uma indenização, mas o cara não...
praticamente tinha acabado, não tinha nada. E a compensação
dobraria. Que eles iam ajudando, fazendo um meio de o pessoal
381
389
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro
Gomide Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
390
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE/UNIADE AVANÇADA
TROMBETAS. Nota Ténica 002/11: Valoração económica dos Produtos Florestais Não Madeireiros – Platô
Monte Branco. Oriximiná, 06 de julho de 2011.
382
A partir dessa situação criada pelo no platô Monte Branco o Ministério Público
Federal apresenta ao Presidente do ICMBio em Brasília e à Unidade Avançada de Porto
Trombetas a recomendação Nº 6 de 25 de agosto de 2011. No documento é determinado que
todas as autorizações para a supressão vegetal, para todos os platôs, fossem submetidas à
análise técnica prévia dos inventários florestais madeireiros (que a MRN usualmente paga) e
não madeireiros (que passaram a ser cobrados). O Procurador da República sustenta a ACP
para impedir a supressão do platô Monte Branco, arguindo o descumprimento da liminar, mas
sobre a autorização que o próprio ICMBio havia revogado, concedendo outra em 2012. A
segunda autorização foi dada com base nas indenizações dos produtos florestais madeireiros e
não madeireiros pactuados entre MRN e ICMBio, resultando no indeferimento do pedido da
391
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE/UNIDADE AVANÇADA
TROMBETAS. Nota Técnica 014/11: Indenização dos produtos florestais não madeireiros em 267,71 hectares
do Platô Monte Branco. Oriximiná,10 de Outubro de 2011
383
ACP, pela 2ª vara da Justiça Federal da subseção de Santarém, em outubro de 2013, com
fulcro na inexistência da autorização392.
Posteriormente, o analista ambiental que mais se empenhou no caso “valorização
econômica dos produtos florestais não madeireiros” foi transferido da unidade de Porto
Trombetas. Em conversas dizia se sentir vigiado e mesmo seguido por policiais em Porto
Trombetas. Analisando os muitos estudos ambientais para supressão de floresta pela MRN,
não é raro encontrar omissões e falhas como a narrada no caso do Platô Monte Branco. O
mais complexo é compreender como essa relação histórica entre empresa e governo manteve
subordinadas as entidades ambientais governamentais com todas as suas transformações.
A questão do Monte Branco gerou um desentendimento entre a comunidade do Jamari
e do Curuçá, na época em que estive lá pela primeira vez. O Curuçá recebeu apoio da
mineração passando a gozar de infraestrutura muito diferenciada das demais comunidades
quilombolas do Alto Trombetas. Por sua vez, quando retornei, a maior parte dos homens da
comunidade do Jamari estavam prestando serviços para a MRN, o que dissipou um pouco o
conflito. Até aonde a pesquisa avançou não ocorreram indenizações diretas, o recurso
auferido com as indenizações dos produtos florestais vão para o ICMBio e não para as
comunidades.
De toda essa história, o ponto mais importante está na valorização dos produtos
florestais não madeireiros. O Termo de Referência criado, que atingiu o valor de pouco mais
de seis milhões de reais considerou apenas o valor de uso direto dos produtos florestais, no
caso os não madeireiros. Esse valor é dado tanto para as madeiras com valor cotado no
mercado e pelos produtos não madeireiros cuja cotação ainda é muito incipiente e dada por
uma temporalidade de 100 anos. Os produtos florestais não madeireiros mais considerados
são: a) oleaginosas (andiroba, babaçu, copaíba, cumaru, ucuri, macaúba, olicica, pequí,
tucum, ucuuba e outros); b) alimentícios (bacaba, açaí, castanha de caju, castanha do Pará,
erva mate, mangaba, palmito, pinhão, umbu); c) Aromáticos, medicinais e corantes
(ipecacunha, jaborandi, jatobá, quina, timbó, uruçu e outros); d) borracha (cauchu, hevea –
coagulada e líquida – e mangabeira); e) gomas (maçaranduba e sorva); f) cera (carnaúba); g)
fibras (buriti, carnaúba, caroá, cipó-imbé, butiá, guaxima, malva, paina, piaçava, taboa,
tucum); tanantes (angico, barbatimão, mangue e outros). Assim como a Hevea brasilienses
fez de Manaus a cidade mais rica do mundo em um processo exploratório desumano, o
agenciamento desses produtos, ainda muito pouco desenvolvido, podem criar sobre um
392
JUSTIÇA FEDERAL SUBSEÇÃO DE SANTARÉM. Processo 3080-52.2011.4.01.3902 : Decisão.
Santarém, 29 de outubro de 2013.
384
regime mais justo de exploração, pelos povos da floresta, uma Amazônia muito diferente da
que está se criando com o expansionismo desenvolvimentista. Por outro lado, uma discussão
que ganha cada vez mais força é Valoração Econômica dos Serviços Ambientais de Florestas
Nacionais393, ou seja, o valor de uso indireto. Essa valoração engloba as funções ecológicas
da floresta (climática, sumidouro de CO2, produção de O2, preservação de habitats e etc.),
além do valor de herança, que se refere ao benefício econômico adveniente da possibilidade
de outros se usufruírem no futuro do recurso florestal. Com uma metodologia adequada que
permita contabilizar esses valores de uso direto e indireto, a floresta passa a ter um valor que
possivelmente tornará inviável a mineração da bauxita, pois atinge valor econômico maior do
que o minério, possibilitando compor, sob a mesma perspectiva econômico-utilitária, um
modelo de desenvolvimento muito mais rico em biodiversidade, muito mais sustentável. Se
passar a ser cobrada a indenização pelo uso indireto da floresta, o que ainda padece de
previsão legal por pressão das próprias mineradoras, a mineração da bauxita na FLONA-ST,
cujo histórico nada mais revela do que a predação e a arbitrariedade, que se ampara por uma
base legal totalmente questionável, perde seu último argumento que é a “geração de riqueza
para o país” – que a população também não percebe. Se a floresta assume realmente essa
potencialidade, perfazendo um excepcional campo para estudos, pode não ser algo imediato,
mas será muito mais adequado e legítimo dentro dos valores democráticos. E afinal qual é a
pressa? O que deve ser priorizado: a venda de commodities que podem aguardar no subsolo
para um uso mais sustentável no futuro? Ou a floresta e seus povos ainda vivos no presente?
393
NOGUEIRA, J. M.; SANT’ANNA, A. C. Valoração Econômica dos Serviços Ambientais de Florestas
Nacionais. Brasília, 2010. Disponível em http://
vsites.unb.br/
face/
eco/jmn/publicacoes/
2010/3
ValoracaoFLONAS_REE.pdf
385
Foto 22: Altar da Comunidade do Abuí. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2011.
A história de luta dos povos descendentes das diásporas que se estabeleceram no Rio
Trombetas, ricamente narrada pela literatura acadêmica perpassada neste trabalho, foi contada
no Jornal “FOLHA DO NORTE”, do dia 03 de janeiro de 1981, pelo senhor Raimundo Vieira
dos Santos, ex-vereador da Câmara Municipal de Oriximiná. “Dico”, como era conhecido, foi
um quilombola do Alto Trombetas cuja família havia sido expulsa do Lago do Jacaré quando
foi criada a Reserva Biológica. A história de seu povo, comumente retratada pelas pessoas de
fora por fontes documentais e orais, é contada de uma maneira diferente pelo ex-político.
Dico dedicou-se a estudar o passado de seu povo a partir de seu próprio povo. Passo a
reproduzir essa história, parafraseando-a, para dizer o que eles dizem sobre si mesmos por
meio da estória de Dico.
A história que conta é a tradição falada, que passa de geração em geração e que diz
que toda sua gente descende dos escravos que vieram da África. Ainda antes da abolição da
escravatura, esses escravos escaparam das mãos dos seus senhores de Santarém, que era o
povoado de maior expressão econômica da região. O contexto político em que narra sua
história é o da criação da Reserva Biológica, percebida como um continuação das
perseguições históricas sofridas por seu povo.
Os visionários da liberdade não aguardaram os ventos do liberalismo soprados do
386
norte agenciarem suas políticas por aqui, posteriormente consagradas na Lei do Ventre Livre
de 28 de setembro de 1871 e na Lei Áurea de 23 de maio de 1888. Livraram-se antes de seus
algozes e partiram para as terras recônditas depois das cachoeiras do Trombetas (além do
Cuminá e Curuá que não fazem parte dessa narrativa). Ali, onde o acesso era restringido
pela própria turbulência das águas do rio, iniciaram a conquista de seus territórios e a
fixação de seus quilombos. A escolha do local tinha que ser estratégica, pois a perseguição
fatalmente viria e, como muitos casos na história que se vivia ali, os quilombos eram
aniquilados quando menos escondidos.
Dico era homem de poucos conhecimentos livrescos, mas que acumulava os seus
saberes das estórias que ouvia dos avós e dos pretos mais velhos da região onde ele nasceu.
Viveu no Alto Trombetas até os treze anos de idade, quando foi para Oriximiná. Seu bisavô
foi escravo fugido e repassou aos seus filhos estórias sobre os martírios da escravidão que,
por sua vez, passavam aos netos e assim por diante. A caça ao negro promovida pelos
brancos que os buscavam nos barrancos do Trombetas é comparado por Dico à chegada das
políticas de conservação. Dico conta que a paragem de Uruá-Tapera era local abandonado
pelos índios e, os que ainda restavam mais acima, se misturaram com os escravos. Ainda
hoje muito se escuta falar desses povos que pela região só tem índio manso, os bravos já
acabaram faz muito tempo.
Das estórias que marcaram Dico sobre a crueldade dos senhores, a que ele mais
enfatiza é o costume que algumas Casas Grandes tinham de se castigar os escravos fazendo-
os segurar candelabros durante o jantar, transformando-os em “lampiões”. Esse castigo
obrigava os negros a ficarem com as mãos em uma concha, dentro da qual era colocado o
azeite e o pavio, e acesa a luz para iluminar o salão. “Eu ainda conheci pretos velhos e
pretas velhas que tinham a mão enrolada, isto por efeito da queimadura que o trabalho
causava; os brancos também tinham o costume de colocar estearinas nas mãos dos
escravos.”
Segundo Dico foi também um grupo desses escravos que empreendeu uma fuga para
as bandas do Trombetas. Para realizarem suas fugas os escravos contavam com a
colaboração de outros senhores de escravos, que segundo Dico, reproduzindo o que os mais
velhos contavam: “eram senhores cristãos”. Mas para Dico, esses senhores certamente
estavam interessados em libertar os pretos de seus concorrentes, enfraquecendo-os, e
principalmente para que produzissem os bens do extrativismo na floresta. Produtos de alto
valor comercial que depois lhes seriam vendidos ou trocados por mantimentos. Muitas
canoas e mantimentos foram conseguidos graças à ajuda desses “senhores cristãos”. Outros
387
barcos foram feitos de tronco inteiriço de madeira, impulsionado a remo. Neste feito
opunham-se dois modelos: o modelo de produção colonial, com base no trabalho escravo e
na monocultura, e o modelo tradicional amazônico do extrativismo com base no aviamento.
Modelo econômico que conectava os seres da floresta com a economia dos homens, nas
relações de trocas, dívidas e servidão.
Dico diz não haver registro sobre o número de escravos fugitivos, mas segundo a
tradição, “foram perto de cem”. Esses grupos se dividiram em dois, seguindo um para o
Trombetas e outro para o Erepecurú (Cuminá), seu afluente. Dico desconhecia o destino dos
negros que penetraram no Erepecurú, e dizia que a sua sorte “não deve ter sido dramática –
pior talvez – que os do Trombetas, cujos descendentes ainda hoje contam sua saga”, ou, no
nosso caso, contaram pelos dizeres de Dico, além das muitas conversas. Hoje o Erepecuru é
um Território Quilombola titulado pelo ITERPA e pelo INCRA em 1997 com 218.044,2577
ha.
A saga dos que seguiram pelo Trombetas prosseguiu até certo ponto do rio, depois
das cachoeiras, pararam em um local que recebeu o nome de “Maravilha”, um nome que
conjugava os anseios de liberdade com as belezas locais. Dico diz que “viver entre cobras,
caminhar sobre o tijuco pegajoso da várzea e recomeçar vida nova em terra agreste era,
para eles, uma verdadeira maravilha”. Estavam livres do trabalho árduo das monocultoras
cacaueiras e dos castigos que os fazia permanecer horas com as mãos servindo de
candelabro para iluminar a mesa de jantar dos brancos. Maravilha, ficava próxima de várias
cachoeiras, próximo de onde é a Cachoeira Porteira, a primeira delas. “Quando eu era
menino, ainda cheguei a ver lá, acima da cachoeira, a capoeira baixa, abacatais, laranjais,
armações de casas, casas de barro que pertenceram aos negros antigamente”. Ali em
Maravilha os negros trabalharam longas temporadas durante o ano, até chegar o momento
de descerem para o Rio Amazonas e seguirem para Santarém, onde seus produtos seriam
comercializados.
Havia um barracão estratégico em certo ponto do Rio Trombetas onde os negros se
preparavam para a descida até Santarém em que era necessário todo cuidado, pois haviam
os caçadores de escravos e a odisseia tinha que atravessar os dias de percurso sem serem
vistos, protegidos das perseguições dos brancos. Realizavam um plano de viagem para o
percurso, tinha que estar tudo previsto e preparado. A viagem somente poderia ser
transcorrida durante a noite e em período em que não havia lua, de modo a não serem
percebidos pelos caçadores investidos na recaptura desses escravos. A viagem até Santarém
levaria no mínimo 20 noites.
388
O rancho para a viagem era previamente preparado no barracão, para não chamar a
atenção durante o caminho com fogo e fumaça. Mês de maio, com o rio cheio na altura da
copa das árvores do igapó, o percurso e eventuais fugas eram facilitadas. Dico conta de uma
estória em que certa vez, um dos negros, ao amanhecer, “alertou aos outros de que estava
sentindo cheiro de fogo de palito”. Não tardou e foram vistos por um barco de brancos
caçadores de mocambeiros”. Na mesma hora os caçadores rumaram na direção da canoa
dos pretos que, por sua vez, para se livrarem da perseguição, retornaram para a “Cachoeira
Porteira”, onde eles não poderiam atravessar. “No remo, tanto pretos como os brancos
foram velozes”. O acossamento seguiu, mas os negros conheciam bem a floresta e
conseguiram enganar os perseguidores. Enquanto permaneciam na espreita próximo da
cachoeira aguardando, “o grupo de negros saiu por um talho, na calada da noite, rumo a
Santarém levando seus produtos”. As viagens noturnas eram intercaladas pelos descansos
diurnos nos refúgios na beira rio, onde a mata os ocultava. Chegavam a Santarém sempre
depois do cair da noite. Um dos negros era designado para adentrar na cidade e “dar o
aviso aos patrões que os protegiam” de que eles haviam chegado. Era necessário todo o
auspicio e a cautela para adentrar na cidade de seus ex-patrões e atingir o destino, o
barracão da vila que pertencia a um comprador de seus gêneros. Lá eles estavam seguros.
Enquanto efetuavam suas trocas clandestinas, que assumia grande importância para a
economia local, o “patrão negociante” mandava alagar as canoas para ocultá-las no tempo
em que providenciava o aviamento da troca para a volta dos negros ao quilombo.
Após efetuadas as transações, na noite seguinte, tudo estava pronto. “Os escravos do
patrão protetor dos negros do Trombetas, iam com cuidado ao rio e retiravam as canoas do
fundo. Eles também preparavam a carga na canoa, os produtos da troca, conseguidos na
arriscada aventura. A cada viagem os negros traziam peles e outros produtos da floresta
para trocarem por provisões em Santarém e, após efetuada as trocas, os negros tinham que
retornar à Maravilha pelo mesmo percurso temerário, “remando até o dia amanhecer, para
mais um dia de esconderijo nas barrancas do Amazonas” e do Trombetas, até chegar. Dico
relata que essas viagens eram frequentes, sempre realizadas por pequenos grupos com
pequenas canoas para facilitar a mobilidade e os esconderijos. As mulheres e crianças
ficavam em Maravilha, mas não a sós, sempre parte do quilombo permanecia para não se
sujeitarem a alguma eventual chantagem de algum branco que pudesse encontra-los.
Os avós de Dico contam uma estória em que certa vez os senhores pegaram um preto
velho no Baixo Trombetas, o Manoel Benedito. Esse preto velho foi obrigado a revelar e a
levar os brancos aonde ficava o quilombo. A partir daí os caçadores organizaram uma
389
expedição para destruir o quilombo Maravilha. Seguiram até onde se podia chegar no Alto
Trombetas, pois da Cachoeira Porteira, nenhum barco grande consegue passar, só era
possível atravessar empurrando com as mãos uma canoa, e desde que se conhecesse os locais
certos para passar. Seguiram apenas homens, armas e canoas. Passando essa primeira
cachoeira o rio vai seguindo até que chega outra, onde só é possível atravessar a pé: a
chamada cachoeira das pedras, aqui as canoas não mais seguiam. Nesse momento os
expedicionários de depararam com outros dois pretos velhos do quilombo, um homem e uma
mulher. “Era o nego Basílio e a nega Benedita”, que quando avistados pelos expedicionários
deblateraram o comando: “Ta preso, nego! Mas o preto velho respondeu: Morto sim, preso
não”! “Aí, o velho, mandou que a velha se agarrasse nas costa dele pra pular na água.
Outro dos expedicionários grita: “Não cai n’água que tu vai morrer”. Com um fuzil
apontado, mas desses “de antigamente que só atirava de perto”. Então o preto velho gritou;
“Valei-me meu São João e saltou n’água com a velha nas costas”. O tiro partiu, mas não
pegou e os escravos fugitivos com muita habilidade, mergulharam e nadaram, até outro lado
do rio. Mais tiros partiram sem que os projéteis atingissem a carne e os dois ganharam a
mata conseguindo se desvanecer dos olhos do inimigo. As passadas desesperada dos
perseguidos rumavam até Maravilha para avisar os demais sobre o perigo à espreita: “vem
branco aí”!
O preto velho Basílio, que salva o povo de Maravilha, era tio do avô de Dico, irmão
do pai do seu pai. Essa estória marca a chegada dos brancos à Maravilha. Mas uma chegada
ali anunciada, ainda que às pressas, em tempo de fuga. Subiram todos do quilombo para a
floresta, abandonando suas criações, roçados e casas. Se refugiaram algumas léguas dali e,
próximo de um igarapé, construíram taparís, onde alojaram as mulheres e crianças. Os
homens retornaram e permaneceram em um local que detinham uma visão parcial da aldeia,
podendo observar os brancos sem que fossem vistos. Aguardaram até que os perseguidores
saíssem de lá e desceram cautelosamente para buscar alimentos, “animais para assar e
passarem os dias, até que as coisas se definissem”. Os expedicionários não tinham como
encontrar aqueles negros embrenhados no seio da floresta amazônica, mas tinham seus
passos acompanhados todo o tempo.
Passaram-se os dias e os negros foram ao encontro de uma tribo de índios que se
relacionavam nas proximidades, também escorraçados pelas perseguições dos brancos. Ali
se aliaram com os negros para se defenderem juntos da ameaça comum que se instalou na
localidade do quilombo. Foi dos índios que partiu o plano de matar todos os brancos
perseguidores. Esses grandes conhecedores da floresta, dos quais os negros herdaram seus
390
os direitos do seu povo. E completa: “mas antigamente isso era impossível, por que quem
aparecia por aqui, era só para tapear”. Dico faz menção a um tal de “Coronel Manoel da
Costa Lima”, que depois da abolição foi um dos primeiros “a explorar as famílias dos pretos
e tentar tomar-lhes as terras cujos castanhais avultavam como excelentes fontes de rendas”.
Com o falecimento do Coronel, outros herdaram ou compraram as terras sucessivamente até
a chegada das políticas de conservação concomitantemente com as de desenvolvimento.
Entretanto, os “patrões” apenas exerciam controle sobre aquilo que lhes podia prover
alguma renda, como a castanha e a tartaruga, no mais, esses povos viviam onde há muito
haviam se estabelecido, sem maiores problemas. Com a chegada da conservação, parte desse
povo não mais podia viver onde vivia e nem exercer seus trabalhos na área. Com a chegada
da mineração, suas áreas de uso que colidissem com os interesses minerários era como se
eles não existissem.
Conforme exposto o texto é uma paráfrase da tradição oral narrada em depoimento
pelo ex-vereador quilombola Raimundo Vieira dos Santos. Inseri algumas conexões para dar
melhor sentido, mas fui fiel à história narrada. O intuito aqui não é o rigor acadêmico e nem
atestar se os acontecimentos narrados ocorreram da forma como se conta. O objetivo é apenas
apresentar a história deles sob a perspectiva deles, que atravessou as gerações, que ainda hoje
os antigos fazem referência à algumas passagens.
referentes à história dos quilombos no Brasil. Essa proposta estava cotada para se tornar o
artigo 490 da Constituição Federal. Contudo, a comissão de sistematização, no momento
seguinte ao das comissões temáticas, ataca a proposta, tendo aprovada uma emenda
supressiva do parlamentar paraense Eliel Rodrigues – PMDB.O parlamentar argumentava que
a proposta representava uma segregação racial no Brasil, um apartheid. Em seguida outro
parlamentar endossa o movimento contrário, tendo emenda supressora também aprovada,
dizendo que a titulação geraria conflito entre os entes federados, por perda de bens dos
Estados, interferindo na autonomia dos entes federados (Acival Gomes – PMDB de
Sergipe)394.
A reviravolta se dá com a emenda popular de iniciativa do deputado Alberto Caó do
PDT do Rio de Janeiro, que pedia a restauração do artigo 490, entre outros. A proposta então
foi acolhida e deslocada para o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reunia
as normas de transição do regime constitucional anterior, que a partir de sua implementação,
teriam a eficácia exaurida – o que não é o caso. Outras propostas surgiram, inclusive para a
inclusão dos territórios quilombolas aos bens da União, unificando-o com a questão indígena,
pois isso retornaria a discussão às etapas anteriores, de composição do próprio texto
constitucional, já ultrapassadas. O texto foi aprovado como o artigo 68 do ADCT, retirando-se
a segunda parte, sobre tombamento, que já estava previsto no artigo 229, § 5ª da CF, com a
seguinte redação: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir -lhes os
títulos respectivos”.
A argumentação central dos defensores dos quilombolas se pautava na assertiva de
que essa garantia somente legitimava uma situação de fato e de direito, que era o domínio e a
posse secular dos quilombolas sobre os seus territórios. Tratava primordialmente de conectar
a norma com a realidade. Com ampla participação do movimento negro nacional, os
remanescentes de quilombo de Oriximiná, os primeiros a terem terras tituladas no país, já
eram reconhecidos pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – CEDENPA. A
ARQMO já gozava de respeito amplo, apesar de não participarem diretamente dos debates na
constituinte, foram por estes e pela própria Constituição, conectados a uma política nacional.
É exatamente sobre a força dessas conexões e suas redes que pretendo esmiuçar.
394
SOUZA, R. G. Luta por reconhecimento e proceso legislativo: a participação das comunidades remanescentes
de quilombos na formação do art. 68 do ADCT. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Programa de
Pós-Graduação em Direito. Brasília, 2013. p. 54
394
Ilustração 04: Panfletos dos Seminários sobre as barragens na Cachoeira Porteira, 1989 e 1981.
Para deter o avanço da hidroelétrica e dar coesão ao movimento são organizados três
seminários sequenciais em Oriximiná, amplamente panfletados, destacando-se o primeiro,
realizado entre os dias 13 e 15 de outubro de 1989, na sede da Igreja de Santo Antônio –
Oriximiná. O seminário promovido pela CUT do Baixo Amazonas e a Comissão dos
Atingidos por Barragens tinha como tema Hidrelétricas e Meio Ambiente. A construção da
Hidrelétrica de Cachoeira Porteira no Rio Trombetas, prevista para o ano de 1990 foi o
principal alvo dos debates. Os impactos do empreendimento já começavam a ser sentidos
pelos locais antes mesmo do início das obras, pois para a realização dos estudos para a
implantação da Hidrelétrica, os técnicos da empresa responsável (ELETRONORTE)
invadiram lotes de terras sem o consentimento dos moradores e abriram mais de cem clareiras
dentro do território indígena da área Nhamundá-Mapuera para a instalação de uma base de
apoio. Preocupados com essa situação, os organizadores propuseram o seminário com o
objetivo de “mobilizar as entidades sindicais, movimentos populares, população atingida e
população em geral para se questionar a viabilidade ou não da construção das barragens.”
Todos os sindicatos, associações e demais movimentos populares locais foram convidados. O
seminário recebeu apoio do CPDH – Prelazia de Óbidos, STR’S e Pró-Índio. Como
conferencistas participaram Lúcio Flávio Pinto (jornalista), Lúcia Andrade (Comissão Pró-
397
Índio) e Manuel Dutra (jornalista). O seminário teve ainda como convidados especiais Paulo
Rocha (Presidente da CUT Estadual do Pará), Éder Coelho (Advogado da CPDH/Diocese de
Santarém / Prelazia de Óbidos – Dom Martinho), Dom Erwin (CIMI) e Chicão (do Tucuruí).
Após esse seminário, vão ocorrer mais dois no ano seguinte reunindo diversos
sindicatos, organizações, universidades, colônias de pescadores e a ARQMO já consolidada,
como uma das promotoras dos eventos. Em 1990 a CPISP envia uma carta à diversas
organizações internacionais fazendo com que o movimento ultrapassasse as fronteiras
nacionais. A Carta da Comissão Pró- Índio de São Paulo é endereçada aos seguintes
organismos da Probe International: Canada, International Rivers Network; USA, Rainforest
Action Network; Holanda, International Water Tribunal – Holland, Working Group
Indigenous People – Holland e International Union for the Conservation of Nature and
Natural Resources – Holland; e Noruega, FIVAS Study Group on Hydro-Power Impacts –
Norway.
Nesta carta a Comissão Pró-Índio encaminha em anexo um documento da Associação
das Comunidades Remanescentes de Quilombos do município de Oriximiná solicitando o
apoio das organizações supracitadas na luta para tentar impedir a construção de uma
hidrelétrica dentro de suas terras. Como justificativa para o pedido de apoio esclarecem que as
comunidades negras que habitam a região ocupam este território desde o século XVIII,
quando seus antepassados fundaram os quilombos nas margens do Rio Trombetas, Erepecuru,
Cuminã e Curuá. Tais comunidades tinham, até a data presente, suas vidas profundamente
atreladas ao rio, que lhes servia como fonte de sustento e rota de transporte
A carta é endereçada a organizações situadas nos países que sediam empresas
proprietárias da Mineração Rio do Norte (ALCAN – canadense, Billiton BV e Billiton Metais
S.A. – holandesas, Norsk Hydro Comércio e Indústria – norueguesa e Reynolds Alumínio do
Brasil – norte americana), para que essas organizações avaliassem a possibilidade da
organização de campanhas para pressionarem as companhias de seus respectivos países a não
construir a Hidrelétrica do Chuvisco, planejada para ocupar um território pertencente a
comunidade negra “Pancada”. Sugere também uma campanha de cartas de cidadãos e
entidades a estas companhias, bem como a divulgação do problema através de boletins e
jornais.
O movimento surte efeito e a hidroelétrica, ao menos temporariamente, é afastada. Na
opinião de alguns atores governamentais, também por questões de viabilidade econômica.
Após esse episódio, a ARQMO concentra suas ações na titulação dos Territórios
Quilombolas, já com ampla visibilidade e uma extensa rede de atores que lhe facultou captar
398
recursos internacionais. A compra de equipamentos, carro, barco, sede, telefone, entre outros,
possibilitava a ARQMO cada vez mais interações e acessos. Com base nos documentos da
ARQMO é possível traçar o caminho de seus trabalhos e a história de inserção política das
primeiras comunidades quilombolas reconhecidas no Brasil. Como principal resultado a
associação conquistou o reconhecimento de seu trabalho, embora algumas comunidades ainda
não tivessem se filiado, pouco a pouco, as diferentes comunidades vão aceitando se auto
definirem enquanto “quilombolas”. Essa figura era estranha para eles e requereu diversas
reuniões para explicar-lhes o sentido do termo e os direitos que possuíam com essa
qualificação. As pessoas das comunidades envolvidas tornaram-se mais informadas e
procuraram participar mais dos trabalhos da ARQMO. Algumas dificuldades foram
salientadas como: atraso no repasse de recursos, conflitos nas comunidades e sobrecarga de
trabalho devido à luta pela titulação de Boa Vista.
A ARQMO organizou no período mutirões de auto demarcação e concluiu entre os
anos de 1991 e 1994 os mapas das áreas do Alto Trombetas e Trombetas. No ano de 1995 foi
feita uma complementação desses mapas na área Trombetas, baseadas na indicação das
comunidades das áreas onde se realizavam agricultura, caça, pesca e coleta – informações
importantes para a justificativa do tamanho e limites das áreas reivindicadas. O mapa da
comunidade Boa Vista também foi concluído. No restante da comunidade o trabalho de
elaboração dos mapas já fora iniciado. Como principal dificuldade foi apontada a morosidade
no processo de elaboração dos mapas devido às várias etapas que compunham o mesmo:
“estudo das bases cartográficas, debates nas comunidades e com o núcleo, vistoria na mata
para verificar o limite, elaboração do esboço do mapa pelas comunidades na base
cartográfica, desenho do mapa, discussão do mapa com as comunidades, novas vistorias e
finalmente desenho da última versão do mapa.”
Como iniciativas para a regularização fundiária a instituição realizou algumas viagens
para Belém, Santarém e Brasília, para se reunirem com o INCRA, INTERPA, IBAMA e
Procuradoria da República. Foi organizada uma campanha pela titulação de Boa Vista
realizada nacional e internacionalmente, com força política admirável. Como principais
resultados obtiveram: a emissão do título de Boa Vista, o primeiro do Brasil; a assinatura da
portaria do INCRA n. 307/95, que estabelecia o compromisso do mesmo em titular as terras
dos remanescentes de quilombos de forma coletiva, entre outros. Com a entrega do título, a
ARQMO conquistou o respeito das comunidades e dos políticos locais. Como dificuldades
nesse processo foram apontadas a morosidade no trabalho por parte do INCRA e o conflito
com a Fundação Cultural Palmares “que queria desmobilizar o processo no INCRA”, pois
399
grande extensão dos territórios demarcados, alguns com mais de 200.000 ha, só é possível de
ser compreendida se considerarmos seus modos de vida extrativistas. Para atingir os
castanhais entre outros produtos da floresta que utilizam, como o exemplo das copabeiras, os
quilombolas percorrem, por vezes, dezenas de quilômetros, ou mesmo centenas, dependendo.
Pode levar dias para chegar e meses de trabalho dentro da floresta. Com essas dimensões, as
terras pleiteadas não seriam inviáveis por titulações individuais, razão de se adotar a
Propriedade Coletiva da Terra. Como me ressalta Raimundo Guilherme Pereira Feitosa395, do
INCRA em Santarém, reponsável pelos processos de titulação na região do Rio Trombetas.
Os territórios titulados hoje perfazem 361.825,48 ha, para quem vem do sudeste é difícil
mensurar. O principal ponto de amparo e legitimação para agenciar tantos interesses, além da
questão étnica, está também na ideia de sustentabilidade e preservação da biodiversidade,
inclusive da humana, com os seus modos de vida.
No curso da pesquisa a ARQMO estava passando por uma crise de representatividade,
sendo comum ouvir das comunidades que atualmente a entidade não os estava assistindo
adequadamente, questionam também as condições de vida dos que estiveram à frente da
organização quando comparada às das comunidades mais afastadas. Outras associações foram
surgindo, como a Mãe Domingas e a dos Remanescente de Quilombo da Cachoeira Porteira.
Por sua vez, estas estão mais relacionadas à representação do território para receberem os
títulos e os projetos para serem aplicados ali, sem um víeis mais combativo, pela situação
histórico-política diferente.
395
FEITOSA, Raimundo Guilherme Pereira. Titulação Coletiva dos Territórios Quilombolas do Rio Trombetas
– INCRA/Santarém. Entrevista concedia à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, Wilson Madeira Filho, Thais
Maria Lutterback Saporetti Azevedo e Eduardo Castelo Branco e Silva. Santarém 25 de setembro de 2012.
401
Foto 24: Cemitério Quilombola da Tapagem. Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, 2010.
Uma das questões mais delicadas da discussão sobre as titulações dos territórios
quilombolas, excluindo-se aqui as posições mal-intencionadas dos segmentos conservadores,
diz respeito ao tipo de segurança e proteção aos quilombolas – seus territórios e seus modos
de vida – que titulação propicia. Obviamente com a titulação assegura-se muito mais do que
sem ela, não é esse o ponto, entendo ser uma política necessária e justa, não apenas para os
quilombolas, mas para todos os demais tradicionais e outros tantos brasileiros sem acesso à
terra. Mas, dentro do que foi estudado, gostaria de sair das perspectivas idealizadas, ou
mesmo romanceadas, encampadas nos estudos críticos de uma forma em geral. Nesse sentido,
a discussão não se dá pautada na questão da justiça histórica, da preservação da cultura
tradicional, do acesso à terra ou do acesso ao direito, no combate ao capitalismo, ou no
modelo do desenvolvimento sustentável que são as perspectivas mais usais. Também não as
estou confrontando em suas razões é mais uma questão de quatro isso é aplicável ao caso.
Tomo a formalização dessas terras já há muito ocupadas, como uma forma de integração à
expansão de um modelo de sociedade, o que está sendo tocado por sua rede sócio técnica,
nesse sentido envolvem tantos interesses quanto os que de fato existem ali. É uma ordenação
territorial estatal, um direito, mas o estado pode não estar lá para protege-lo, pode não ser
acessível aos seus titulares, ou pode estar presente e simplesmente não significar nenhuma
402
proteção, ao contrário, atender a outros interesses. Pode representar também uma composição
“racionalizada” do espaço, onde em si mesmo encontrar-se-ão muitas outras “razões”.
Na conversa com os tradicionais é possível perceber que a titulação representa um
desejo profundo dessas pessoas, uma demanda que eles anseiam muito. Por outro lado,
questiona-se: apenas a titulação assegura a proteção ou a justiça que se pretende? A
perspectiva que adotei na pesquisa não visa dar uma resposta, mas apresentar alguns
problemas com base no que foi vivenciado. Respostas poderiam vir posteriormente, mas
proporiam uma inversão na lógica dos projetos, abdicaria da existência prévia de um modelo
em que se pudesse enquadrar a realidade estudada para aplica-lo. Sugeriria que partíssemos
do chão e a partir do chão construir o que se pode ser construído, sempre conjugando o
máximo de interesses e seres possível. E, por certo, todos os ideais, políticas, normas, relações
econômicas, tecnologias, desejos, hierarquias etc. estão já fincadas neste chão e todas as
intervenções significam rearranjos.
As terras quilombolas de Oriximiná são: Boa Vista, titulada em 1995 pelo INCRA,
com dimensões de 1.125 ha; Água Fria, titulada pelo INCRA em 1996, com 557 ha;
Trombetas, titulada pelo INCRA e pelo ITERPA em 1997, com 80.887 ha; Erepecuru,
titulada pelo INCRA e ITERPA em 2003, com 218.044 ha; Ariramba, ainda não titulada,
processo INCRA nº54100.000755/2004, área dentro da FLOTA Trombetas, com 23.418 ha;
Alto Trombetas, parcialmente titulada pelo ITERPA, com 61.211 ha e área pleiteada dentro
da FLONA-ST, processo INCRA nº54100.0022189/2004, com 151.923 ha; Jamari/Último
403
Quilombo, área pleiteada dentro da REBIO-RT com 138.822 ha, processo INCRA nº
54100.002185/2004; Cachoeira Porteira, a área pleiteada pega parte da REBIO-RT, da
FLOTA Trombetas e de Terras Índigenas pleiteadas do Nhamundá-Mapuera, processo
ITERPA nº 2004/125212; e Moura, área pleiteada dentro da FLONA-ST, com 18.491 ha,
processo INCRA nº 54100.002186/2004.
No curso da pesquisa visitei ao menos 20 comunidades diferentes, dentre quilombolas
e ribeirinhos, algumas com terra titulada outras não, mas todas vivendo como
tradicionalmente se vive na Amazônia, compartilhando espaços com recursos comuns. Em
todas as comunidades que visitei fora das unidades de conservação a principal queixa era o
esgotamento de recursos: “pirarucu não tem mais, tracajá... não tem mais, você vai pescar e o
peixe já não tem, os invasores tão levando a comida do prato dos nossos filhos”. Um ponto é
que os invasores, muitas vezes são da própria comunidade, outro ponto é que quando são
pessoas de fora, é pior ainda, pois os comunitários na maior parte das vezes não tem como
combate-los e, conforme mencionado, não existe uma presença do Estado que seja
minimamente capaz de atender essas pessoas. Em alguns desses locais, como as comunidades
do PEAEX do Sapucuá, existem acordos de pesca e regulamentos para o uso do espaço
comum, mas as transgreções, segundo os próprios comunitários, seguem de maneira
reincidente. Por outro lado, as comunidades que vivem no interior ou mais próximo das
unidades de conservação REBIO-RT e FLONA-ST, nas áreas acessadas pelo Rio Trombetas
onde existe fiscalização do governo, não se escuta falar de escassez de recursos (salvo a
tartaruga), ao contrário, falam que as terras deles tem “muita fartura”. As queixas estão mais
relacionas ao acesso à recursos, dificuldade de desenvolver atividades econômicas e
infraestrutura. Nestas áreas também os índices de desmatamento são menores quando
comparados às áreas tituladas. Mas mesmo ali onde há a fiscalização, há também invasão,
inclusive de pessoas de fora das comunidades, geleiras e mesmo madeireiras, obviamente,
com atuação bem menor pelo alto risco.
Um dos maiores desafios externos que os territórios quilombolas da região do Rio
Trombetas vem enfrentando são as propostas capciosas de madeireiras realizadas em
comunidades com áreas tituladas ou mesmo não tituladas. A atuação das madeireiras é
percebida como um problema grave na Amazônia em geral. A perda anual de área florestal é
muito significativa com prejuízos de difícil mensuração, uma constante que atesta a
insuficiência/ineficiência das medidas governamentais de controle e fiscalização da
exploração do patrimônio de uso comum do povo. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE) a estimativa de desflorestamento na Amazônia Legal no período desta
404
pesquisa, de 2009 até 2013, somam 31.296 Km², referente ao corte raso da floresta, percebido
pelo PRODES/landsat396. Destes, somente o Pará contribuiu com 15.179Km2. Comparado
com os 27.772 Km² desmatados entre 2003 e 2004, com 8.270Km2 no Pará, há uma redução
perceptível, mas que vem sempre flutuando. Entretanto, considerando a soma cumulativa da
perda nas últimas quatro décadas, com a intensificação da ocupação na região a partir de
1970, a monta é estapafúrdia, ultrapassando os 600.000 Km² (mais do que a área da França).
No início da década de 1970, com os incentivos governamentais do planos de
desenvolvimento, com as isenções, os créditos, as concessões, a abertura das estradas
estratégicas, as obras de infraestrutura etc. iniciou-se um grande ciclo de desmatamento,
conforme já narrado. Neste período e na década subsequente, os incentivos fiscais e linhas de
crédito foram os grandes condutores do desflorestamento, seguidos pela especulação
imobiliária estimulada pela alta inflação. O avanço da pecuária e da soja, mais recentemente,
completaram o quadro do uso “destrutivo” dos recursos florestais no final do século passado
até o presente. Em todos os casos a exploração da madeira, principalmente das espécies de
elevado valor comercial, iniciavam o processo de devastação abrindo espaço para agricultura
e pecuária extensiva. Segundo Fearnside397 a flutuação do desmatamento se relaciona mais
com os ciclos econômicos do que propriamente com as medidas de controle e fiscalização. As
formas mais efetivas de combate ao desmatamento estão fora do alcance dos órgãos
ambientais, pois se ligam aos financiamentos, créditos, subsídios e programas de
desenvolvimento articulados por distintos setores do governo que nem sempre mantém um
estreitamento de relações com o setor ambiental.
A análise do monitoramento por satélite realizado pelo INPE ao longo das últimas
décadas revela que a perda florestal se dá majoritariamente nos grandes latifúndios que
comumente se sobrepõe às terras públicas na região. O processo se inicia com a retirada de
madeiras de valor, passando-se às queimadas sucessivas e posteriormente implantando-se as
pastagens e monoculturas. Tais práticas representam aproximadamente 70% do
desmatamento. Por sua vez, pequenas propriedades e assentamentos rurais em terras públicas
e privadas representam os outros 30%. Nas ocupações de terras pelos beneficiários da reforma
agrária, severas críticas foram tecidas contra o INCRA que escolhia áreas florestadas no
intuito de levantar recursos com a venda da madeira e depois aproveitar o solo fértil da área
396
MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Projeto PRODES – monitoramento da floresta amazônica
brasileira por satélite. Disponível em: http://www.obt.inpe.br/prodes/prodes_1988_2013.htm
397
FEARNSIDE, Philips M. Desmatamento na Amazônia Brasileira: história, índices e consequências.
Megadiversidade. vol. 1, nº 1, julho 2005. Disponível em:
http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/16_Fearnside.pdf. Acesso: 01 agosto, 2011.
405
398
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Termo de Compromisso que firmam o Ministério Público Federal e o
Insituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, válido para toda a Amazônia Legal. Brasília, 08 de agosto
de 2013.
399
HUMMEL, António Carlos et al. A atividade madeireira na Amazônia brasileira: produção receita e
mercados. Belém, PA: Serviço Florestal Brasileiro; Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, 2010.
406
suas práticas, trata-se de formular propostas de parcerias com comunidades tradicionais (que
vivem no local a gerações) e assentados (que são remanejados para áreas florestadas), com o
fim de retirar a madeira de seus territórios. Habitando unidades de produção familiar ou
comunitária (território coletivo), os tradicionais e assentados, são extremamente carentes de
apoio governamental para utilização dos recursos florestais de seus territórios, despidos de
conhecimentos técnicos de manejo florestal e desprovidos de recursos financeiros, o que os
torna alvo fácil para as empresas madeireiras. Ludibriados com a possibilidade de renda,
infraestrutura e trabalho e desassistidos pelo governo, os comunitários através de suas
associações firmam acordos formais (contratos de cessão de uso) e informais que, pela
ausência de controle, tornam-se na prática extremamente assimétricos não resultando em
benefícios duradouros para os comunitários, além de exaurir os recursos de seus territórios.400
Cabe ressaltar que do ponto de vista da legalidade os contratos podem ser
questionados uma vez que os assentados e titulados devem utilizar-se de seus territórios direta
e pessoalmente (Lei 8.629/1993), não podendo ceder o uso a terceiros. Entretanto, existe a
possibilidade de “auxilio técnico” por terceiros no manejo florestal, hipótese em que uma
empresa poderia auxiliar na exploração dos recursos florestais de tais territórios, prevista pelo
Decreto 6.874/2009. Por sua vez, a responsabilidade sobre o Plano de Manejo Florestal
Sustentado - MFS é exclusiva dos assentados, inclusive no caso de danos ambientais e na
forma de utilização, cuja descaracterização pode gerar inclusive a perda dos lotes – Instrução
Normativa 61/2010 do INCRA.
Na realidade dessas parcerias assiste-se um grande oportunismo de grupos fortes, com
capital para criar infraestrutura necessária à retirada de madeira. Essa relação pode ferir os
interesses coletivos e também dos próprios comunitários, na medida em que percebem a perda
de seus recursos em uma velocidade muito distinta de seus modos de vida e sem o retorno
pactuado. A condescendência do poder público, que não proporciona as condições e nem a
capacitação dos assentados na fruição dos recursos de seu território é a regra. ONGs como o
Greenpeace denunciam uma parceria entre INCRA e madeireiras na realização dos
assentamentos da Amazônia, fazendo menção inclusive a assentamentos sem assentados, o
que é sutilmente corroborado nas publicações constantes no site do Sistema Florestal
Brasileiro que versam sobre o assunto.
400
NETO, Manuel Amaral et al. Análise de acordos entre empresas e comunidades para exploração da madeira
em assentamentos rurais na região da BR 163 e entorno, no Estado do Pará. Belém: Instituto Internacional de
Educação do Brasil, 2011.
407
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20% Área Desmatada
10%
0% Área não Desmatada
Jamari
Alto Trombetas
Erepecuru
Trombetas
Moura
Ariramba
Boa Vista
Água Fria
Gráfico 5: Proporção do desmatamento acumulado até 2009 por terra quilombola em porcentagem de área.
Fonte: CPISP, 2011.
A análise da evolução temporal indicou que 78,2% do desmatamento nos territórios quilombolas ocorreu
até o ano de 2000;Conforme
14,6% nodiscutido
períodono capítulo
entre 2001 eanterior,
2005; e, a7,2%
FLONA-ST,
no períodododeponto
2006 ade2009
vista(Tabela
legal, 9).
deveria priorizar o uso
Massustentável
a evoluçãodos
do recursos florestais e não ocaracterísticas
que dizima eles, nesse
Ou seja, considerando o conjunto dos territórios quilombolas em Oriximiná, o ritmo do desmatamento
entre 2001 e 2009 diminuiu. desmatamento apresenta diferenciadas
em cadasentido, essa é uma demanda que deve ser veiculada, o que no curso da pesquisa não foi
território.
assistido.
O território É como
Boa Vista se realmente
(titulado em 1995)a área
não fosse da MRN
apresentou e não uma área
desmatamento pública
após 2000.federal destinada
Em seis territórios
à exploração
observou-se uma queda dosna recursos florestais, com
área desmatada, comunidades
comparando-se tradicionais
o período que desenvolvem
2001/2005 essa
com 2006/2009:
atividade, que chegaram muito antes e que deveriam ter prevalência. Com relação à REBIO-
Água Fria, Trombetas e Erepecuru (já titulados), Jamari, Moura e Ariramba (não titulados).
RT, onde existem outros interesses para se conciliar, entendo, uma saída pode estar também
Tabela 9. Desmatamento nas terras quilombolas por período de análise.
em uma Terra
RESEX, assegurando as áreas de reprodução da Desmatamento
Quilombola
P. expansa, enquanto
(ha)
proteção
integral com
Nome contratação
Situação Fundiária dos Área
próprios comunitários
TQ (ha) Até 2000na defesa e manutenção
de 2001 das pesquisas.
de 2006 TOTAL
Nesse caso, o ponto mais frágil e ao mesmo tempo mais necessário naquele contexto é a
a 2005 a 2009
Boa Vista Titulada em 1995 1.125,03 374,69 - - 374,69
Água FriapresençaTitulada
permanente
em 1996 das entidades ambientais
557,14 do335,95
Estado. Por sua
2,52 vez, conforme
0,85 visto, a
339,32
significa autonomia, significa dependência à rede que faz com que isso opere, desde o
petróleo à política de cabresto. Conforme mencionado, são ambivalentes, possuem pontos
positivos e negativos dentro de uma multiplicidade de perspectivas. Ademais não me
posiciono no sentido de que é possível ou necessário romper essas conexões, que sempre
existiram em maior ou menor grau. Um ponto frágil observado é, p. ex., o potencial
transformador de um auxilio governamental mensal. Conversei com um tradicional sobre isso
e perguntei sobre os seus roçados, suas atividades na floresta e ele foi me contando que agora
podiam comprar a farinha e alguns mantimentos na cidade, por isso o roçado estava
“pequeno” (não estava plantando), mas continuava pegando castanha. Muitos projetos
também não prosperaram, alguns por serem completamente descontextualizados, outros, mais
condizentes e que visavam aprimorar as atividades extrativistas e assegurar os vínculos dos
tradicionais com a floresta, por dificuldade de organização dos mesmos e conflitos internos.
Todos esses projetos e projetismos levam à questão formulada por Lobão quanto “se agora
não estaríamos produzindo a inclusão do ‘Outro’ em nossa própria temporalidade”403. Na
entrevista com Lúcia Andrade me é relatada a sua experiência e perspectiva:
* Eu estava falando do curral eleitoral, da dependência de energia...
Com relação à cultura deles, a perda cultural... porque tem também
relação com essas políticas assistenciais. E não só por parte do
governo, mas também por parte da mineradora e até por parte da
gente também que chega lá com as nossas propostas para melhorar a
vida deles... Boa Vista é um caso complicado de compreender para
quem vem de fora...
- É porque a principal atividade deles não é nem receber a bolsa, eles
trabalham na mineração.
* Formou-se uma outra relação, quase urbana ali né, eles são como
uma periferia de Porto Trombetas...
- Eu acho assim, então vamos falar primeiro da questão
governamental e depois falar dessas outras experiências mais
pontuais aí, inclusive da nossa. Acho que em termos de governo, tem
uma coisa que a gente vê que em Oriximiná, é uma questão maior, de
um problema de uma política de governo, que vem desde muitos anos
que é você dar cesta... não chama cesta mais, né... é bolsa família,
bolsa não sei o que, que pode ser importante pra situações mais
emergenciais e tal, e eu tenho dúvida se Oriximiná configura... eu
acho que é uma situação muito diferente do pessoal do nordeste, de
uma seca, que não tem o que plantar. Então assim, eu questiono um
pouco, mas esse meu questionamento nunca fez sucesso. Você pode
imaginar que os quilombolas nunca acharam bom esse meu
questionamento. Mas eu acho que lá a gente vive isso. Que por outro
403
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se
transformar em uma política de ressentimento. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2010. p.
287.
411
lado tem essas políticas, sempre também deu muita confusão porque
essas bolsas nunca chegaram pra todo mundo da comunidade. Teve
uma época também que distribuía... o fome zero distribuía não sei o
que, também a ARQMO se via em maus lençóis porque não chegava
pra todo mundo da comunidade e sobrava pra eles ter que saber
quem ganhava e quem não ganhava... então essas questões. Mas
então tem isso... e não tem políticas mais amplas, de longo prazo, uma
política pra apoiar o castanheiro, que dê um preço melhor pra
castanha, sabe? Uma coisa subsidiada... não tem política. Não tem!
No máximo tem algumas coisas pontuais, mas não tem... Essa também
é uma das coisas que a gente tá falando: precisa ter essa política.
Então eu acho que isso não é só Oriximiná, eu acho que é uma coisa
maior. E se a gente vê aquele programa “Brasil quilombola” também
é de forma geral, é isso. Tanto que também acho que é significativo
que a titulação das terras quilombolas que é o básico também não
anda. No governo Lula doze terras tituladas. Essa também é uma
política de fundo, pra você garantir. Porque lá também eles não estão
sendo expulsos, mas imagina se você ganha bolsa família e não
consegue ficar na sua terra porque tá com conflito com fazendeiro.
Então eu acho que tem mesmo essa lógica complicada dessa política.
Então isso é um ponto que eu acho que reflete lá. Acho que tem então
essas iniciativas, aí vou falar mais da nossa, né... que umas das coisas
que a gente percebeu é que... e que a gente tá avaliando... a gente
propõe certas iniciativas como iniciativas piloto, pra ver se o governo
encampa a ideia e faz. E não conseguimos isso. Foi se tentado
bastante com o Ministério da Agricultura, que era o que tava mais
envolvido com a questão da castanha... e o que a gente percebeu é
que nesse cenário de Amazônia, falta de comunicação, distâncias
enormes... transformar um projeto comunitário de castanha em
alguma coisa lucrativa dependia de política pública, para subsidiar
no começo... Por exemplo: criei uma cooperativa, se fosse fazer todas
as regras legais, colocar imposto... a cooperativa não consegue
concorrer com nenhum regatão, que faz tudo na informalidade.
Então, é... são coisas mais amplas que precisam ser... fizeram todo o
investimento nas tais boas práticas da castanha, chegou na hora H os
usineiros não pagaram a mais por isso, que era a lógica do mercado,
que era você investir e tal. Então acho que uma parte a gente viveu
também essa situação, que as iniciativas piloto e tal, pra elas saírem
do piloto, pra eles terem continuidade elas precisam desse apoio e a
gente não foi capaz e o governo também não teve sensibilidade de
olhar pra aquela região, pros quilombolas e pensar políticas. Então
nunca tiveram nenhum apoio e foi tentado. Então eu acho que
também foi isso: comercializar o artesanato, como que ajuda com o
mercado, como que orienta... tem isso. Esse foi um aspecto. Tem um
outro aspecto que eu acho que é: trabalhado dessa forma, pensando
no mercado, numa forma mais organizada e tal é uma coisa nova pra
essas comunidades. E são mudanças que a gente não consegue em
projetos de três anos... Então assim, é que eu acho que a gente viveu
logo que acabou o projeto também tinha uma dificuldade de
conseguir outro apoio, mas também teve uma coisa que a gente falou:
412
vamos parar pra pensar um pouco. Porque tinha essa questão que
tinha muita gente insatisfeita com a forma que o recurso foi
utilizado... Não tava um clima de dizer assim: as coisas estão
andando super bem, vamos continuar nesse caminho, então também
precisava pensar o que tava acontecendo. No caso do artesanato,
particularmente, assim... é... a gente pensou num projeto pras
mulheres e elas acabaram se desentendendo todas entre elas. E foi
muito assim... é pena porque ainda tinha um mercado. Ainda tem
algumas que fazem muito individualmente, mas aquela coisa assim
maior não se conseguiu. E um dos grandes problemas que teve foi
porque tinha o padrão de qualidade do artesanato pra mandar pra
loja de São Paulo. E aí as mulheres que foram responsáveis por
fiscalizar o padrão as outras brigaram todas com elas. Mas elas
estavam cumprindo e elas tinham vindo pra São Paulo. A gente fez
isso, elas foram conversar com as donas das lojas que foram muito
claras em dizer: se não viesse num padrão, não iam vender. E de fato
a gente via, chegava aqui era o que ficava encalhado. Então assim, aí
é uma dificuldade de um tal mercado. A gente quer fazer um
artesanato, que tenha um lucro, que seja vendido mais como uma
coisa única, exclusiva, mais pra obra de arte do que pra artesanato,
ele tem umas regras de mercado. Eu não acho que eles não têm
capacidade de lidar. Eu acho que eles têm uma coisa nova, que eles
têm que aprender. Eu não sou uma pessoa de negócios. Se tivesse que
montar um negócio eu ia ter que aprender. Eles estão aprendendo?
Estão. Quem nunca comercializou, são regras diferentes... Então
assim, o que eu acho que essas pessoas não consideram é o tamanho
do desafio pra eles. E as mulheres estavam começando o que pra elas
era um posicionamento novo. Delas estarem a frente do projeto. Elas
nunca tinham se organizado só elas, né. Eu acho que brigar faz... não
tem tanto sociedade... eu acho que assim, com os quilombolas tem de
ser tudo bonitinho, harmonioso, ninguém brigou... não! É tudo igual.
E ainda por cima tem uma dificuldade mesmo, que eles não vêm de
uma família de comerciantes que já sabem lidar. Acho que a castanha
também teve esse tipo de problema... isso que eu te falei no começo,
que a gente tá pensando que ao invés de ter uma estrutura
centralizada na cooperativa, tentar ver se em pequenas unidade
familiares também, mais de acordo com o jeito que eles já se
organizam hoje, pode ser pensado. E tamos tentando pensar, mas isso
aí ainda é muito... a gente tá tentando ver se consegue recurso pra
pensar um estudo de viabilidade... pequenas beneficiamentos... fazer
um doce, fazer uma coisa que possa ser vendida no mercado local.
Aproveitar esse tipo de questão de iniciativa... porque assim, a gente
já começou a pensar a castanha, a castanha é muito no mercado... é
exportar. Então assim, pensar em beneficiar já pra exportar... a gente
fez toda uma discussão pra vender como uma marca quilombola no
supermercado. Eu me lembro muito bem dessa reunião, que ela foi
ficando murcha. O cara falando da regra que o Pão de Açúcar tem
pra vender qualquer produto, mesmo naquele “caras do Brasil”...
assim, tem um horário que a mercadoria tem que estar lá na porta do
413
vida é associada à chegada do modelo de desenvolvimento, que enfim, está lá. Mas o ponto
que não se observa muitas vezes é que os demais tradicionais querem isso também, acham
que essas comunidades foram beneficiadas... não entendem a armadilha. Assim como a
história do seu Domingos do Lago Batata, que foi retirado de suas terras que, por sua vez,
foram contaminadas e que depois retornou e disse que a vida melhorou muito: antes não tinha
“motor”. Como se defender disso? Voltemos ao machadinho de pedra, ou ao remo que levava
dias para se chegar em uma “paragem”, e agora leva horas com a rabeta. Não se trata de uma
“escolha da razão”, a própria vida vai impor isso em um mundo de trocas inevitáveis. A
tecnologia é um gancho, it’s a hook, um anzol que te fisga e te agencia e te torna dependente.
Te liberta e te escraviza. Proporciona comodidades. Mas está homogeneizando o mundo por
relações espoliadoras, acabando com a sociobiodiversidade, comprometendo o futuro, nos
empobrecendo etc. Assim como foi necessária a mobilização de diversos interesses para o
agenciamento da bauxita, para que a máquina minerária operasse, com o suporte e os
subsídios do governo, para agenciar os elementos da floresta também vai ser necessária a
canalização de muitos interesses, e o direcionamento de muitas políticas públicas, subsídios e
infraestrutura por parte do Estado. Esses povos são os atores que podem compor um mundo
mais plural, mais democrático.
415
CONSIDERAÇÕES FINAIS
criança, outro índio e uma índia idosos não estavam conseguindo empurrar sua canoa,
carregada com materiais de construção, em uma área mais turbulenta. Enquanto Thaís ficou
segurando nossa canoa, vou com o índio ajuda-los para liberar a passagem. O índio velho, de
tanta força que fez, começou a passar mal e se assentou em uma pedra para se recompor,
outros índios se juntaram para ajudar e, num certo momento, um buraco me desequilibra, a
força da água me puxa e bato com o queixo na beirada da canoa. Vou lançado pela correnteza
por debaixo d’água. Naquele momento a pesquisa poderia ter se encerrado sem nunca ganhar
forma no papel... tentava me agarrar, mas as forças me faltaram e, num curso de uns
cinquenta metros uma pedra no caminho me ancora e me para deitado em uma lâmina d’água
de uns dez centímetros. De joelhos, tomo ar, reergo e retomo o caminho sobre as pedras.
Quando alcanço a nossa canoa, já estavam atravessando a parte mais turbulenta; sem muita
força, sigo para auxiliar a empurrar. A Alessandra perdeu seu óculos de grau, a Thaís deixou a
filmadora cair na água, a Marina saiu intacta, apenas molhada, mas todos ficamos bastante
cansados e assustados. A outra canoa teve mais sorte, mas não menos cansaço e
assombramento. Seguimos pelo Rio Mapuera cujas águas claras, azuladas, possuem outra
velocidade comparadas às do Rio Trombetas, com paredões de pedras nas margens, e
pequenas ilhas pelo rio, o cenário é deslumbrante. Passamos por três aldeias e paramos na
quarta em que nos hospedamos em uma casa de madeira destinada ao pessoal da FUNASA e
da FUNAI. Apesar dos modos de vida parecidos, os índios não são receptivos como os
quilombolas e não apenas por não falarem português, pelos seus próprios costumes. Esses
índios migram por longas trajetórias até se estabelecerem em determinado local e depois, com
a redução dos recursos, migram novamente. Muitos ali desceram das Guianas e do Suriname e
passaram por muitos territórios. Missionários religiosos ingleses lhes roubaram parte da
liberdade, não andam mais despidos, mesmo quando se banham. Poucos falam português,
alguns falam inglês e em geral são bastante fechados e tímidos. No dia seguinte sigo
caminhando pela aldeia, na oca grande as crianças estavam em aula, me aproximo e observo
de fora, quando elas terminam e saem, me veem e correm todas sem olhar para trás. Cena
marcante. Neste dia desistimos de seguir para a aldeia Mapuera. As dificuldades na interação,
a dependência da alimentação e, principalmente, por termos tomado conhecimento de que a
próxima cachoeira antes de chegar na aldeia seria muito mais complicada do que primeira,
desanimou a equipe. Neste dia, após visitarmos as outras aldeais na descida, retornamos para
a Cachoeira Porteira. Chegamos lá e nos deparamos com um hidroavião pousado no Rio
Trombetas, era de um pastor batista. Na própria Cachoeira Porteira havia uma pista de pouso,
417
da época dos grandes projetos, mas esta foi implodida pela polícia federal no combate ao
narcotráfico. Neste mapa são muitos caminhos e muitos outros para serem acrescidos...
Poucos dias antes de partirmos na caravana, Wilson Madeira Filho organizou uma
exibição pública, na praça da Paróquia de Santo Antônio em Oriximiná, do filme
“Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Olhares compenetrados e risos compuseram o cenário de
gentes diferentes. Nosso horizonte é amplo na augura dos olhos. Conquistadores do inútil? O
sonho do sonho de conhecer quer se conectar, quer se apresentar para que as formigas verdes
continuem sonhando, ou voltem a sonhar... em alusão a outro filme de Herzog.
O percurso que trilhou este estudo perpassou o histórico das políticas governamentais
para a Amazônia brasileira, na perspectiva de sua “integração” estatal, que buscou fulcro e
aceitação na necessidade do controle deste vasto território sobre constante “ameaça”, e nos
ideários desenvolvimentistas. Sempre amparados nos números que revelaram este espaço
enquanto um vazio demográfico, pelo desconhecimento e pela desconsideração da
territorialidade de seus povos errantes e de seus seres erráticos. Por sua vez a concretização ou
efetividade de qualquer dessas políticas estiveram sempre atreladas ao agenciamento dos
seres e das coisas, sejam da fauna, da flora, dos povos ou dos solos e subsolos, integrando-os
a uma rede que ultrapassa as linhas territoriais dos Estados e compõem matéria no próprio
Ocidente em expansão. “Os ganhos” dessa marcha adiante são concentrados em “centros de
poder” possíveis de serem definidos. A Ciência fez conectar os seres à essa rede e, do outro
lado, o governo e suas políticas, no plano das ideias projetadas, nunca atingiu o que se
propunha.
Os programas do regime militar, consideravelmente analisados neste estudo em seus
documentos oficiais, ensaiaram uma nova toada nesta colonização. Investidos da Ciência e
agenciadores de múltiplos interesses com capital e tecnologia, possibilitaram uma nova ordem
de intervenções. Aqui tivemos o privilégio de vivenciar um desses projetos pioneiros e suas
consequências nos territórios que deram origem à pesquisa. O agenciamento da bauxita foi a
razão de maciços investimentos e da construção de toda uma organização territorial, com
grandes empreiteiras e sagazes políticos, para possibilitar que este mineral se conectasse à
rede sócio técnica que hoje se expandiu para o mundo todo, legitimado pela geração de
“riqueza” para a Nação a qual a imensa maioria nunca viu ser compartilhada. Anteriormente
este mineral era majoritariamente destinado ao mercado externo apenas com uma etapa de
beneficiamento no país, hoje passando por outras empresas com os mesmos acionistas
transnacionais, é exportado com mais uma ou duas etapas de beneficiamento, alumina e
alumínio primário respectivamente. Para perscrutarmos a importância externa deste mineral
418
podemos comparar o consumo per capta anual no Brasil, que está em torno de 4Kg, com os
países da Europa, os EUA, ou Japão que gira em torno de 30 Kg. Para explicar as macro-
relações de poder o estudo abdicou de recorrer à forças sociais ocultas, como “o capital”. É
necessário poder apontar o dedo e dizer quem é quem, pessoas e coisas, e como elas se
conectam. Antes de ser decorrente de uma entidade transcendental o poder dessa máquina
minerária está nas mãos de quem usa energia elétrica transmitida por cabos de alumínio.
O ponto de maior relevância na pesquisa é a ascensão da questão ambiental e os
múltiplos interesses que “passaram” a ser evidenciados com a mesma. Foram analisados
projetos sociais para stakeholders, estudos de impactos ambientais, pesquisas de conservação,
projetos de reflorestamento, políticas de compensação, licenciamentos ambientais, ações de
fiscalização etc. O que representou a emergência da questão ambiental na área de estudo?
Quais foram os seus resultados? Empiricamente, o aumento exponencial da mineração que
avança floresta adentro, cada vez mais rápido, impossibilitando que diversos outros seres
sejam agenciados, sequer conhecidos, inviabilizando modos de vida tradicionais, recriando
um novo espaço para o futuro, provavelmente mais homogeneizado, menos plural e menos
vivo. O esperado não seria o inverso? Ao contrário, além do avanço tecnológico e do aumento
do capital de reinvestimento, agora a atividade ganha o rótulo de “prática sustentável”, seja
pelos estudos, pelos licenciamentos ou pelas compensações. Dentre os promotores dessa
“sustentabilidade” estão as empresas de consultoria ambiental, seus instrumentos e agentes: os
biólogos, os geólogos, os geógrafos, os sociólogos, os advogados, os químicos, GPSs, mapas,
exsicatas, laboratórios etc. e também o governo e os seus funcionários. Os selos e
qualificações também corroboram essa legitimidade universal da sustentabilidade, mas,
indubitavelmente, não tem a força legitimadora maior do que a “emprestada” pelas
instituições de pesquisa, internacionalmente reconhecidas, como Museu Emílio Goeldi,
INPA, UFRJ, UFSC entre outras. Mas, o mais importante na emergência da questão
ambiental para o estudo não é a promoção desse “desenvolvimento sustentável”, são os
espaços territoriais protegidos.
Na região do estudo, concomitante às políticas de desenvolvimento vieram as políticas
de conservação, mas não sob a mesma perspectiva, não alinhavadas a priori. Advogou-se uma
constante dubiedade na ação estatal, demonstrada na ordenação hierárquica dos interesses que
contam “mais” e direcionam as políticas, os interesses que criam mais conexões por
conversões, traduções ou translações. A Reserva Biológica do Rio Trombetas, unidade de
conservação de proteção integral, teve como objetivo principal a proteção da tartaruga-da-
amazônia e dos castanhais do Alto Trombetas. Apenas posteriormente foi cosida aos
419
interesses da mineração da bauxita, dentre outras razões, pelas próprias contradições geradas
com relação à preservação dos quelônios, impactados com o tráfego dos navios. Sua criação
arbitrária e seu modus operandi segregacionista representou o primeiro desencadeamento de
conflitos entre os tradicionais e o poder público. Violências e ressentimentos marcaram as
relações, pois, apesar de ter extinguido ali a prática da patronagem, removeu famílias e
cerceou os remanescentes de quilombo de suas atividades corriqueiras, relacionadas ao
extrativismo e à caça e pesca de uma forma em geral. A Reserva deu início à organização
política desses povos. Na prática a Reserva Biológica não operou enquanto tal e, no curso das
mudanças governamentais nas ações e percepções sobre conservação da biodiversidade, a
relação com os tradicionais foi se transformando. A região em que foi criada a Reserva
Biológica do Rio Trombetas representava a principal área de desova da Podocnemis expansa
no Brasil, após trinta anos de sua criação, a espécie que se destinava a proteção, praticamente
desapareceu no local. A pesca, os navios, o manejo inadequado estão entre as possíveis
causas. A linha que se traça é de uma irreconciliável política de conservação fechada sobre si,
preservacionista, com as utilizações tão arraigadas dos recursos florestais por parte das
populações tradicionais que ali habitam, exigindo que novos pactos sejam firmados, como
condição de uma melhor operacionalidade dessas próprias políticas.
Por sua vez, a Floresta Nacional Saracá-Taquera, criada sob os auspícios do
autoritarismo governamental, operou como uma “expropriação ecológica” dos direitos dos
remanescentes de quilombo sobre seus territórios. Assegurou a posse e o domínio público da
área para a atividade da mineração operar de maneira fluida. Contudo, com objetivo real
diverso das finalidades do espaço territorial protegido, sobretudo com as mudanças
advenientes com a Lei 9.985/2000, a extração da bauxita na Floresta Nacional opera
sustentada em marco legal duvidoso, contrariando a posição doutrinária majoritária em
matéria de direito adquirido no jusconstitucionalismo ambiental. Contudo, a ideia de Direito,
dentro do que se descreveu no estudo, funciona mais próximo do estabelecimento de relações
de ordens diversas do que da observância aos parâmetros legais. Afora a história que macula a
idoneidade moral da empresa e do governo federal na criação dessa unidade de conservação,
o conflito direto com práticas tradicionais extrativistas na floresta, exercidas antes da
mineração e substancialmente mais condizentes com a finalidade legal do espaço protegido, é
o que mais se destaca, por dois traços marcantes: primeiro, pela injustiça social de se
inviabilizar modos de vida associados a uma prática que poderia atravessar gerações, com a
manutenção da floresta e com o desenvolvimento econômico das comunidades, gerando
benefícios distributivos muito mais reais, e essa fratura da sociobiodiversidade ocorrendo sem
420
uma indenização justa. Segundo, pela perda do potencial econômico da floresta, que ainda
não é devidamente contabilizado e que pode ser maior do que o da bauxita, em uma escala
temporal mais ampla, criando-se uma situação irreversível cujos resultados apresentados, para
a região e para o país, não se justificam dentro do que se idealiza enquanto “promoção do
desenvolvimento”. É preciso repensar o avanço desta “máquina” em uma perspectiva de
futuro menos imediatista e contabilizar os seus resultados de maneira mais profunda, antes
que se recriem mais “fatos consumados”. Nesse sentido abra-se mais um caminho para
pesquisas.
Por fim, foi narrada a luta extraordinária dos remanescentes de quilombo e a ampla
rede de relações que foi tecida com a mesma. Um corpus de conexões que ultrapassou as
fronteiras nacionais e que fez frente tanto às políticas de desenvolvimento quanto às de
conservação, ganhando visibilidade notória. A luta pelos territórios repercutiu na inauguração
de marcos legais inéditos no país, com a propriedade coletiva da terra, e vem representando
uma nova organização estatal na região. Não obstante significar um grande progresso em
termos de justiça social, os territórios titulados não representaram, por si só, uma garantia
mais efetiva à manutenção dos modos de vida dessas poluções tradicionais – em alguns locais
não existe mais puxirum, roçados ou extrativismo – tampouco representou uma segurança
contundente dos recursos territorializados, revelando áreas sob constante pressão. Todavia,
tanto a defesa dos modos de vida tradicionais, quanto a sustentabilidade de suas práticas, no
uso dos recursos de interesse comum, são apresentados enquanto pilares de legitimação
dessas políticas. A luta mais aguerrida e mais complexa desses povos se dá com as unidades
de conservação, pela rigidez jurídica para a alteração desses espaços. Por sua vez, por mais
contraditório que soe, são nesses espaços ou nas áreas tituladas mais próximas a eles, que se
percebe os modos de vida mais resguardados e os recursos mais íntegros. O que se dá pela
presença da governança ambiental que controla um pouco mais as invasões, internas e
externas, e presta-lhes uma assistência mais direta e presencial. Essa é uma discussão que o
estudo também lança sobre o que se busca afinal.
Um mundo em movimento. A expansão representa o que se associa e passa a compor
ao mesmo tempo em que excluí e nega a existência. Como construir o múltiplo? Ele já está
dado. A pergunta correta seria como percebê-lo e aceita-lo? Ao longo do estudo, por vezes, a
visão se dividia. O caminho a se buscar seria a emancipação, a autonomia? Mas se está tudo
ligado, tudo aceso, tudo se conectando e, o que ainda não está, parece desejar isso ou não ter
como fugir disso. Esse parece ser um caminho pouco viável. O caminho seria a integração? O
que se observou é que, quanto mais “integrado”, mais criaram-se dependências, mais se
421
canalizaram “as energias” aos centros que controlam a medida e a velocidade da integração,
mais se excluiu seres e homogeneizou ambientes, a integração pareceu mais uma
“vampirização” (currais eleitorais, cooperativas para serviços de baixa qualificação,
dizimação da floresta). Então, não haveria caminho? Entendo que sim, e muitos, certamente.
O que provavelmente não há é a possibilidade de se prever onde eles levam ou onde se
encerram, sem percorre-los antes. Talvez se dê para saber até aonde os olhos alcançam e se
tiver um binóculo vai se ver mais longe... Quando observei o Seu Domingos falando que
“melhorou muito por que agora tem motor”, era um martírio remar dias, o mesmo valia para
os quilombolas e para os índios. Emancipação e autonomia me soaram como um “devaneio”,
salvo se diluídas em graus que estão em movimento. Emancipou-se do remo e agora depende
do petróleo e do próprio motor. De onde vêm o motor? Provavelmente de lugares e tempos
variados, talvez, um de seus metais, o alumínio, possa ter saído dali de uma montanha ao
lado, dado a volta ao mundo, e retornado em forma de motor, depois de somar conhecimentos
novos e antigos, tecnologias, mão de obra, energia, outros metais etc. A questão que se coloca
é perceber o motor tão natureza quanto o Seu Domingos, as montanhas perfuradas e as
árvores que estavam acima dela, sem reduzir tudo a uma naturalização. A autoridade
epistemológica dirá: é a natureza transformada pela cultura, fruto do trabalho humano! Sob a
perspectiva que adotamos poderíamos indagar: quando começou esse “trabalho”? Com o
Homo habilis, ou com Homo ergaster, ou Homo erectus, o Homo sapiens, o Homo Lattes? Ou
com a primeira bactéria? Se foi no H. sapiens que tem idade atribuída de 200.000 anos,
quando se deu? Pode-se eleger uma data, dar a característica que vale e atribuir a ela uma
autoridade, cindir um antes e um depois. É o papel da Ciência criar provas válidas para isso. É
aonde a perspectiva filosófica do estudo busca problematizar, como diria Morin:
É necessário dizer que a obsessão quase religiosa de fazer triunfar a
ordem no mundo e a obsessão quase delirante de encontrar a pedra
fundamental (molécula, átomo, partícula) com a qual teria sido
construído o universo impulsionaram um prodigioso dinamismo na
busca da ordem soberana e do átomo original, procura que culminou
nas descobertas que arruinaram a ordem soberana e o átomo
fundamental.404
capaz de revelar o que é o real, “a natureza”, pois transcende a ela. Isso é uma forma de ver o
mundo: a filosofia moderna. O caminho epistemológico que o estudo percorre partiu de uma
rejeição dessa grande divisão entre sociedade e natureza, no sentido de empenhar uma
compreensão mais condizente com a multiplicidade que se apresentou. Para tanto
desacreditou de uma essência humana, uma essência racional e qualquer outra essência. Pois,
senão teríamos que questionar novamente: Qual origem? quando iniciou? No humano. Esse é
o ponto de chegada? O fim da linha? Se sim, teríamos que negar todo o conhecimento que a
ciência moderna atingiu, ou ainda, que as transformações no ambiente e as que infligimos
sobre nós mesmos não nos transformam. Acreditar no criacionismo seria mais fácil. Senão
estaríamos negando o que os nossos próprios olhos podem ver – que as coisas mudam. Outra
indagação que se perfaz é sobre a suportabilidade de mudanças que podem recair sobre algo
antes de sua transformação, ou seja, qual o quantum de mudanças pode incidir sobre alguma
coisa antes que se torne outra coisa? Quantas mudanças uma época pode tolerar antes que
passemos a vê-la como outra? Assim por diante... Isso vai ser necessariamente arbitrado
dentro do elegido como “essencial”. Compreendeu-se enquanto um conhecimento mais
aproximativo observar o que se liga e se transforma, focar o processo e a metamorfose, ser
mais kafkiano do que K. Isso não é uma redução do humano, ao contrário, é uma
multiplicação. É uma mudança na relação com o tempo e com espaço estabelecida pela visão
moderna. A filosofia moderna cria um télos, uma promessa de realização futura, uma
percepção de que o desenvolvimento promovido pela Ciência e tecnologia vão realizar todos
desejos e sonhos... É tão atrativo quanto a “terra prometida”, mas os resultados devem ser
apresentados o quanto antes. Como se o agora não passasse da espera do amanhã, que apaga
o ontem, assassina a história e recomeça de novo, sem nunca chegar... Por isso, talvez, tanta
pressa, a promessa não se cumpre. Sem dúvida, não estou negando as conquistas, são essas
conexões que nos importam. Mas, esse recurso à razão transcendente cria uma autoridade,
cujo esplendor é a Ciência, neutra, pura e desencarnada, mas que dita a própria política e os
próprios valores. A razão desencarnada é uma autoridade tão forte quanto Deus na era
medieval e, assim como nesta época, tem seus representantes diretos, os aliados, os
financiadores, os que concentram as informações e que, conforme se estudou, vão ter mais
razão do que a razão do quilombola, ou do indígena, quem dirá da árvore que não tem
nenhuma dentro desse modelo. Os resultados dessa “forma de ver o mundo” são soberbos,
mas muito diferente das idealizações projetadas, o que fez foi ampliar sobremaneira a
“natureza de fora” no “convívio do humano”, ampliar sua rede-habitat, multiplicar as
dependências, somar mais coisas e hierarquiza-las na composição do que se designou como
423
social... Que no final das contas são múltiplas coisas, todas que se somam, é a vida se
manifestando portentosamente. Por sua vez, na autoridade de quem tem o acesso à essa
“razão”, cujos interesses valem mais, fez-se excluir outros inúmeros seres, humanos ou não,
exterminá-los, escraviza-los etc. Reconhecer que vem comprometendo a própria possibilidade
de expansão, ou mesmo de subsistência, por ter desconsiderado a ligação desses tantos seres,
a partir das múltiplas ciências que, dificilmente podem ser ordenadas em uma mesma direção,
fez abrir a Caixa de Pandora epistemológica que é a “questão ambiental”. Apresentar a
ligação desses muitos seres foi o que este estudo quis apresentar, uma ecologia política. Por
isso refutar a percepção dessa autoridade epistemológica, sustentada na divisão entre
sociedade e natureza, para perceber uma multiplicidade (a que foi possível). Para tanto
valendo-se das mesmas técnicas tradicionais de coleta de dados, mas tentando relacionar
diferentes saberes e dando a mesma importância à carta para as ONGs internacionais, a fala
do quilombola, a tartaruga ameaçada de extinção e a bauxita que compõe o computador que
redigiu esta tese.
424
Um Desvio no olhar
Sois capaz!
Não necessitais nenhum óculos especial, nenhuma lente, nenhum prisma mágico
Não precisais de luneta, telescópio ou microscópio
Apenas uma pequena mudança no ângulo do vosso olhar
Isso é um convite?
É
Olhai vossos objetos...
O chão que pisais, o veículo que vos transporta, a casa que vós habitais
Vejais donde estas palavras se materializam e chegam aos vossos olhos
São coisas!
Direis...
Não
São a nossa extensão, conexão e apreensão do que ousaram chamar de mundo "lá fora"
“Olhai a vida secreta das coisas!”
Elas já são mais vós do que o que vós supões serdes
Ou o que crês que sois?
Digo:
Pensai vós sem suas vestes
Eis um humano nu
Pensai vossa vida sem elas!
Da fogueira de gravetos de vosso mais longínquo ancestral...
Do machadinho de pedra, ao foguete espacial...
O seu ultramoderno computador...
O que são?
São mobilizações das forças e matérias da "natureza"?
Testemunhas inertes de nossos saberes transformadores?
Os objetos da nossa sublime “cultura"?
Muito mais!
Ademais não existe essa tal de natureza e essa tal de cultura!
Isso é apenas uma estratégia "moderna" de dominação!
A natureza morreu e a cultura também!
Estais a blasfemar, ou pior, rompestes o elo com a sanidade... me dirás com certo desdém...
Insisto!
Ser moderno é estar dividido em dois...
Dicotomizado!
A natureza lá fora
Os humanos aqui dentro
Res extensa e res cogitans... Como sacralizara Descartes
Os racionais e os autômatos
A objetividade e a subjetividade
Os modernos suprimiram Deus da explicação da Natureza: o universo tem suas próprias leis
e nós somos capazes de desvendá-las...
Os modernos afastaram Deus da Política: nós regemos o nosso Estado e criamos nossas
próprias leis...
Mas o Deus afastado e suprimido, se precisareis, pode habitar vosso coração... Os modernos
vos permitem terdes vossa religião "individual" para garantir vossa paz...
Quão hipócritas são esses modernos!
Natureza - Sociedade - Deus
425
"Mentietur pilosos"
Nada disso existe em separado!
In divisus
A separação é uma forma de criar "autoridades": a Natureza cabe à Ciência; a Sociedade
à Política e Deus às Religiões... Todos com seus respectivos representantes iluminados
Substantia absolute infinita est indivisibilis
Diria Spinoza!
Dizer que as coisas existem em separado é uma ilusão de óptica surgida na dominação!
É congela-las em seu movimento...
Deveis se libertar da ilusão
Quod dulcis illusio
Voltemos aos vossos objetos!
Embriões congelados, clones e organismos geneticamente modificados...
São a natureza (coisas) ou a cultura (humanos)?
Como diria Latour: são híbridos!
Ou Serres: quase-objetos!
Ou Deleuze e Guattari: quase-sujeitos!
Assim como todos os objetos, são "naturezas-culturas"
São conexões, agenciamentos, mobilizações heterogêneas...
Rizomas que conectam coisas muito diversas e que dão a nossa existência!
Somos uma multiplicidade...
Cadeias biológicas, econômicas, políticas, literárias, de armas e de amor...
Não existe essência humana!
Novamente direis: quanta tolice!
Afirmareis: É a ciência e a tecnologia humana que os constrói! É o poder da razão!
É???
A ciência é uma fina rede que agencia humanos e não-humanos
Assim como qualquer conhecimento
Não é o espelho do real
Assim como a tecnologia não é uma milagrosa magia!
A realidade objetiva é uma construção subjetiva que jaz no mundo objetivo
Ou tente fazer funcionar a mais sofisticada máquina humana sem uma tomada para ligá-la!
Tudo isso só existe se existir em "rede"!
Qualquer política humana, qualquer lei, qualquer conhecimento cientifico só existe em
multiplicidades
Nunca é uma coisa em si...
São sempre muitas coisas agenciadas, vivas e não vivas
Assim também como não existe racionalidade em si
Como disse Nietzsche: o humano é a ponte entre o macaco e outra coisa que virá!
Tudo é movimento e encontros de forças que transformam...
Existência fugaz... sempre se metamorfoseando
Diria: olhando um pouco mais de longe somos a manifestação do tempo sobre as bactérias!
Margulis disse: quando pisamos na lua não fomos nada além das botas das bactérias!
Data maxima venia
O que compreendeis como razão nada mais é do que um continuum de saberes talhados nas
nossas relações com o mundo...
O que conseguimos somar a nós mesmos para compor a nossa existência!
Isso já acontece muito antes de sermos "humanos"...
Não tenteis explicar, olhai aquilo que se explica por si mesmo...
Usai todas as técnicas e ferramentas que as ciências e saberes vos dão... Mas somente para
426
que o olhar possa ir mais longe... Ver mais coisas que se somam...
O que não se alcança pode ser ludicamente fantasiado... Mas que o sonho seja apenas sonho,
não uma imposição!
É saudável sonhar...
Mas suplicai para que nada se torne uma autoridade absoluta, apenas seja compreendido
depois de demonstrado
Lembrai: o que é feito deve poder ser refeito... Tudo é movimento...
Não existe o certo e o errado... Diria Deleuze e Guattari: " bom e mal são somente o produto
de uma seleção ativa e temporária a ser recomeçada"
Como diria Marx: "tudo que é sólido desmancha no ar"
Direis: eis um desconstrutivista pós-moderno lançando sua hermenêutica da suspeita para
aniquilar a humanidade sagrada! Ser amaldiçoado, diabólico!
Retruco: "pós" é o que já foi, mas ainda não é! Somos plurais e dispensamos os rótulos...
Desviar o olhar é operar outras ferramentas...
Atingir outras liberdades
É ampliar a história construída para a história da vida...
Olhar as naturezas-culturas é ampliar a existência para além de vossos umbigos...
Mudar o mundo é vê-lo com outros olhos...conhecê-lo e ensiná-lo... por si as coisas já estão
mudando todo o tempo...
Quid faciam?
Conexões!
"É meu amigo só resta uma certeza
É preciso acabar com a 'natureza'
E 'em-TERRAr' de vez o nosso amor!"
427
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACEVEDO, A. CASTRO, E. Negros do trombetas: guardiões de matas e rios. Belém: Naea, 1993.
ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Hanri. (org.)
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Boll. 2004.
________________. Políticas ambientais e construção democrática. In: SILVA, Marina et al.(org.) O desafio da
sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo. Fundação Perceu Abramo. 2001.
_______________.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Fundação Ford. 2004.
AKRICH, M., CALLON, M. & LATOUR, B., 1988, A quoi tient le succès des innovations? 1 : L’art de
l’intéressement, Gérer et comprendre, Annales des Mines, 11, pp.4-17. 1988.
ALLEY, Richard et al. Intergovernmental Panel on Climate Change: Climate Change 2007:
The Physical Science Basis. Summary for Policymakers. Genova: WMO/ UNEP, 2007.
ALIER, Juan Martínes. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagem de valoração. São Paulo:
Editora Contexto, 2005.
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
ALMEIDA, João Bosco. Kondurilândia: Ideias e registros na gênese da nova unidade federativa no oeste do
Pará. Fundação Ferreira de Almeida. Oriximiná. 2001.
ALMEIDA, J. B. O. Escopo Jurídico Contemporâneo da Norma Quilombola: O Caso dos Quilombolas do Rio
Trombetas. Belém: (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Direito - PPGD do Instituto de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, 2010
BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Da Nação ao Planeta através da Natureza: uma abordagem
antropológica das unidades de conservação de proteção integral na Amazônia brasileira. (Tese de Doutorado)
São Paulo: Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: Formação Social e Cultural. 3ª edição. Manaus: Valer, 2009
BERMANN, C. & MARTINS, O.S. Sustentabilidade Energética no Brasil: Limites e Possibilidades para uma
Estratégia Energética Sustentável e Democrática. (Série Cadernos Temáticos No. 1) Projeto Brasil Sustentável e
Democrático, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Rio de Janeiro, RJ. 2000.
BRUCE, A. Terra Yanomami e Florestas Nacionais no Projeto Calha Norte: uma expropriação ecológica. In:
Povos Indígenas no Brasil, 1987-1990. São Paulo: CEDI, pp. 166-169, 1995.
BOLTANSKI, L. L'amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l'action. Paris:
Métailié, 1990.
CALLON, Michael et al. A quoi tient le succès des innovations? 1: L’art de l’intéressement, Gérer et
comprendre, Annales des Mines, 11, pp.4-17. 1988.
DEAL, Michael. United Sates Dependence on Caribbean Bauxite and the Formation of the
Internacional Bauxite Association. In. Maryland journal of International Law. Volumen
4/Issue 1. Article 16.1978
DELEUZE, G. & GAUTTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo:
Editora 34, 2011.
DEAN, Warren. A ferro e fogo: A história e devastação da Mata Atlântica Brasileira. Trad.
Cid Knipel Moreira. Companhia das Letras: São Paulo. 2004.
DESCARTES, R. As paixões da alma. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: o destino das sociedades humanas. Rio de Janeiro:
Record, 2007
DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB –
Universidade de São Paulo, 1994.
DURKHEIM, Emile. A Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999
FARIAS Jr. E. A. Unidades de Conservação, Mineração e concessão florestal: os interesses empresariais e a
instrução de territórios quilombolas no Trombetas. In. ALMEIDA, A. W. B. Et al. (org). Caderno de Debates
Nova Cartografia Social: Territórios Quilombolas e Conflitos. Manaus: UEA, 2010.
FERREIRA, José Cândido. Organização Social e regimes de propriedade numa comunidade quilombola
paraense. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2013.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Tradução de Maria Teresa Machado.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FUNES, Eurípedes. “Nasci nas Matas, Nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas”. Tese de doutorado. Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2010.
430
GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Ed.
UNESP, 1991.
__________________. Mundo em Descontrole. Trad. Maria Luísa Borges. São Paulo: Ed.
Record, 2000.
HAILS, Chris et al. Relatório Planeta Vivo 2006. Gland – Suíça: World Wide Fund for
Nature – WWF, Zoological Society of London – ZSL e Global Footprint Network, 2006.
IZAGUIRRE, Inês. Algunos ejes teórico-metodologicos em El estúdio del conflicto social. In:
SEOANE, José (coord,). Movimientos sociales y conflicto em América Latina. Buenos Aires:
Clacso, 2004.
KOTSCHOUBEY, Basile et al. Caracterização e Gênese dos depósitos de bauxita da
província bauxífera de Paragominas, Noroeste da Bacia do Grajaú, Nordeste do Pará/oeste do
Maranhão. Cap.XI. In: MARINI, O. J.; RAMOS B. W.; QUIROZ, E. T. Caracterização de
depósitos minerais em distritos mineiros da Amazônia. Brasília: DNPM – CT/MINERAL –
ADIMB, 2005.
KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira
e Nelson Boeira. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora.
São Paulo: Unesp, 2000.
______________. Jamais fomos modernos. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 2009.
_____________. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Trad. Carlos Aurélio Mota de Souza.
Rio de Janeiro: Edusc. 2004.
431
LAW, John. Notes on the Theory of Actor-Network: Ordering, Strategy and Hetergeneity. In. Systems Practice ,
Vol.5, nº. 4, 1992.
LEMOS, Haroldo Mattos de. O sistema nacional de meio ambiente e o conselho nacional de meio ambiente no
Brasil: seu impacto na qualidade de vida. In: Diálogos de Política Social e Ambiental: Aprendendo com os
Conselhos Ambientais Brasileiros. Banco Interamericano de Desenvolvimento/Ministério do Meio Ambiente do
Brasil. Brasília: BID/MMA, 2002, 1ª edição.
LOPEZ, Octavio J. Minería del Caribe y de América Central. In. LINS, F. A. F. A Construção
do Brasil e da América Latina pela Mineração: Histórico Atualidade e perspectivas. Rio de
Janeiro: CETEM/MCT, 2000.
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12 ed. São Paulo:
Malheiros, 2004
MACHADO, R. C. Projeto Trombetas: de Saramenha a Oriximiná. Rio de Janeiro: Lana Projetos gráficos.
2005.
MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente - Movimentos sociais nas sociedades complexas. Trad. Maria do
Carmo Alves do Bomfim. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 5º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência: Edição revista e modificada pelo autor. Trad. Maria D. Alexandre e
Maria Alice Sampaio Dória. 7.ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003
MOURÃO, Isaura. Um pouco de história, seu povo. In. BOZELLI, R. L.; ESTEVES, F. De
Assis, ROLAND, F. Lago Batata: impacto e recuperação de um ecossistema amazônico. Rio
de Janeiro: IB-UFRJ/SBL, 2000.
NAVIA, J. M. B. Limiti e promesse del diritto ambientale in America Latina. In: Rivista
Giuridica dell´Ambiente. N. 3 vol.4. Milano: Giuffrè editore, 2003.
433
NEVES, Eduardo. Amazônia ano 1000: na Amazônia de 1000 anos atrás, civilizações
experimentam o florescimento cultural. In. National Geographic. Nº 122, maio de 2010.
NETO, Manuel Amaral et al. Análise de acordos entre empresas e comunidades para
exploração da madeira em assentamentos rurais na região da BR 163 e entorno, no Estado
do Pará. Belém: Instituto Internacional de Educação do Brasil, 2011.
OSTROM, E. Governing the common: the evolution of institutions for collective action.
Cambridge, New York: Cambridge University Press, 1990.
OLIVEIRA, A. A. B. Histórico Projeto RADAMBRASIL. Rio de Janeiro, 17 de maio de 1999. Disponível em
http://www.projeto.radam.nom.br/historico.html, acesso em 16/08/2012
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-
1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
PÁDUA, M. T. J. Vila Sônia e Repouso do Guerreiro. In. O ECO – 23 de maio de 2008. Disponível em:
http://www.oeco.org.br/maria-tereza-jorge-padua/16318-oeco_27634. Acesso em: 13 de abril de 2013.
PROST, Catherine. Forças Armadas, geopolítica e Amazônia. Paper do NAEA 156. Dezembro de 2000.
REBELO, Geoge; PEZZUTI, Juarez. Percepções sobre o consumo de Quelônios na Amazônia In: Ambiente &
Sociedade. Ano III, n. 6/7 de 2000
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras. 2010.
RIBEIRO, Ivo. Fatia da Vale na MRN terá disputa acirrada. In: Valor Econômico. São Paulo.
29 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/3282206/fatia-
da-vale-na-mrn-tera-disputa-acirrada#ixzz2mq3Ozg3k. Acesso em 10 de outubro de 2013.
RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. Indicadores Ambientais: Avaliando a Política de Meio Ambiente no Estado
de Minas Gerais. Belo Horizonte: Semad, 2006.
ROCKMANN, R. Cautela com preços baixos e energia cara. In. VALOR ECONÔMICO S.A.: Estados –
Moneração lidera a economía: setor estimula uma sólida cadeia produtiva. Rio de Janeiro. Novembro de 2013.
ROLLA, A. & RICARDO F. (org). Mineração em Unidade de Conservação na Amazônia Brasileira. São Paulo:
Instituto Socioambiental, 2006.
434
______________. Do Rio Madeira ao Rio Trombetas: novas evidências ecológicas e históricas da origem
antrópica dos castanhais amazônicos. In. Novos Cadernos NAEA. V. 14, n. 2, p. 265-282, dezembro de 2011
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Mota. 8ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009
SENNETT, Richard. A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad.
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999
SKIDMORE, T. E. Brasil de Getúlio Vargas à Castelo Branco (1930 – 1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
SOUZA, R. G. Luta por reconhecimento e proceso legislativo: a participação das comunidades remanescentes de
quilombos na formação do art. 68 do ADCT. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Programa de
Pós-Graduação em Direito. Brasília, 2013
TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as idéias que moldaram a nossa
visão de mundo. Trad. Beatriz Sidou. 2º ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000
VANDENBERGUE, Frédéric. Construção e crítica na nova sociología francesa. Trad. Ana Liési Thurler.
Brasília: Sociedade e Estado. Vol. 21. Nº 2. Maio/Agosto. 2005.
VIÉGAS, Rodrigo Nuñez. As resoluções de conflito ambiental na esfera pública brasileira: uma análise crítica.
In. Confluências, n. 9 v. 2, Niterói, 2007.
VILLAS BÔAS, O.; VILLAS BÔAS, C. A Marcha para o Oeste: A epopeia da expedição Roncador-Xingu. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
VILLAS BÔAS, H. C. A indústria extrativa mineral e a transição para o desenvolvimento sustentável. Rio de
Janeiro: CETEM/MCT/CNPq. 2011.
435
Fontes
__________ Lei Federal 4132 de 1962, dispõe sobre desapropriação por interesse social.
Disponível em: Http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9433.htm>. Acesso em:
10/07/2011
436
__________ Decreto 6040 de 2007 que versa sobre a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em:
Http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9433.htm>. Acesso em:10/07/2011
__________ Lei 3924 de 1961 que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-
históricos. Disponível em: Http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9433.htm>. Acesso
em: 10/07/2011
__________ Decreto nº 99556 de 1990 que dispõe sobre a proteção das cavidades naturais
subterrâneas existentes no território nacional e dá outras providências. Disponível em:
Http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9433.htm>. Acesso em:10/07/2011
__________ Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II,
III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza e dá outras providências. DOU de 19/7/2000. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm. Acesso em: 01 ago. 2011.
CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S.A. Usina Hidroelétrica Porteira: Planejamento da Rede
Hidrométrica Bacia Trombetas Mapuera. Abril de 1988.
COMPANHIA VALE DO RIO DOCE. Vale conclui gestão de portfólio de ativos de alumínio. Disponível em:
http://www.vale.com/brasil/PT/investors/home-press-releases/press-releases/Paginas/vale-conclui-gestao-de-
portfolio-de-ativos-de-aluminio.aspx. Acesso em novembro de 2013
DEAL, Michael. United Sates Dependence on Caribbean Bauxite and the Formation of the
Internacional Bauxite Association. In. Maryland journal of International Law. Volumen
4/Issue 1. Article 16. 1978.
ENRÍQUEZ, Maria A. Plano de Mineração do Estado do Pará. In. GOVERNO DO PARÁ. Relato da Sexta
Oficina: Mineração em Unidades de Conservação no Pará. Belém. 2012
FEARNSIDE, Philip M. Belo Monte: Resposta à Associação Brasileira do Alumínio. Instituto Nacional de
Pesquisa da Amazônia. 23 de fevereiro de 2012. Disponível em:
http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/Fearnside-Belo%20Monte-
Resposta%20a%20Assoc%20Bras%20de%20Aluminio.pdf. Acesso em: 16 de março de 2012.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Termo de convênio nº 02 que celebram o IBAMA e a MRN. Brasília,
2004.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Termo de Cooperação Técnica nº 02 que celebram o IBAMA e a MRN.
Brasília, 1995.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Relatório das reuniões participativas realizadas nas comunidades da
FLONA-ST, de 23 de maio a 23 de novembro, sobre a revisão do Plano de Manejo desta unidade de
conservação. Oriximiná, novembro de 2011.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Termo de Compromisso que firmam o Ministério Público Federal e o
Insituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, válido para toda a Amazônia Legal. Brasília, 08 de agosto
de 2013.
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Relatório Anual de Sustentabilidade 2012 – GRI. Porto Trombetas. 2012.
Disponível em:
http://www.mrn.com.br/MateriaisParaDownload/RELATÓRIO%20GRI%202012%20MRN_final.pdf. Acesso
em: 27 de julho de 2013.
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Relatório da Administração 2012. Auditores independentes. Disponível em:
http://www.mrn.com.br/Informaes%20Financeiras/24x27cm-DOE-2012.pdf. Acesso em fevereiro de 2013.
MINERAÇÃO RIO DO NORTE. Proposta de Revisão da zona de mineração da Floresta nacional Saracá-
Taquera. Porto Trombetas, janeiro de 2011.
PNUD. Ranking decrescente do IDH-M dos municípios do Brasil. Atlas do Desenvolvimento Humano. Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (2010). Disponível em
http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-IDHM-Municipios-2010.aspx. Acesso em março de 2013.
STIEMNFOPA. Trabalhadores da MRN organizam protesto contra fraude no transporte público. Oriximiná.
Disponível em http://www.stiemnfo.org.br/noticias.php?id=16538. Acesso em 18 de agosto de 2013
VARGAS, Getúlio. Discurso do Rio Amazonas. In. Revista Brasileira de Geografia. Quarto
centenário do descobrimento do Rio Amazonas. Abril – Junho. 1942.
Entrevistas
COSTA, Josielson dos Santos. Relato sobre o papel da igreja na organização política das
comunidades quilombolas. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcantara e a
Thaís M. L. S. Azevedo. Oriximiná. 21 de julho de 2011
CURUÇA-MIRIM. As copaibeiras do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 12 de janeiro de 2012
FEITOSA, Raimundo Guilherme Pereira. Titulação Coletiva dos Territórios Quilombolas do Rio Trombetas –
INCRA/Santarém. Entrevista concedia à Leonardo Alejandro Gomide Alcántara, Wilson Madeira Filho, Thais
Maria Lutterback Saporetti Azevedo e Eduardo Castelo Branco e Silva. Santarém 25 de setembro de 2012.
JAMARI. Uso comunitário do Platô Monte Branco. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcántara. Oriximiná, 09 de janeiro de 2012
MÃE CUÉ. As dificuldades vividas na Comunidade. Entrevista concedida à Leonardo Alejandro Gomide
Alcantara em 14 de janeiro de 2012. Oriximiná, 2012.
PIRES, Domingas A.; et al. Entrevista Coletiva na comunidade do Lago Batata: familia de Dona Domingas.
Entrevista realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcantara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de
2012. Oriximiná, 2012.
PRINT, Carlos. Presidente da ARQMO. Oriximiná, 2011. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro G.
Alcántara em 13 jul. 2011. Oriximiná, 2011.
SARMENTO, José Luiz; et al. Entrevista Coletiva com comunitários da Boa Nova, Lago
Sapucua. Entrevista realizada por Thaís L. S. Azevedo e Leonardo Alejandro Gomide
Alcantara em 27 de julho de 2011. Oriximiná, 2011.
SOUZA, Domingos; et al. Entrevista Coletiva com o ancião do Lago Batata e seus familiares. Entrevista
realizada por Leonardo Alejandro Gomide Alcantara e Wilson Madeira Filho em 30 de setembro de 2012.
Oriximiná, 2012.
SOUZA, Raimundo e SANTOS, Raimundo. Funcionários da base do Tabuleiro da REBIO Rio Trombetas -
FUNTEC/ICMBIO. Entrevista concedida a Leonardo Alejandro Gomide Alcántara em 18 jul. 2011. Oriximiná,
2011.