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A Ordem Terceira

Wanju Duli
2016
Imagem de Capa: © Nikitu | Dreamstime.com

Design de Capa: Luiggi Ligocky


Sumário
Capítulo 1: O Primeiro Contato.............................................5
Capítulo 2: As Missas.............................................................49
Capítulo 3: A Ordem.............................................................92
A Ordem Terceira

Capítulo 1: O Primeiro
Contato

Eu estava de saco cheio. O pessoal daquela


universidade não queria nada com nada.
Não que eu fosse suprema ou coisa assim. Mas eu
achava que, no mínimo, se alguém se propõe a estudar
seriamente uma filosofia deve estar disposto a defendê-la
e até mesmo vivê-la. Mas não era bem isso que acontecia.
– Do que está falando, Joana? Essa é só uma merda de
uma universidade. O pessoal vem aqui para ganhar um
diploma e depois conseguir dinheiro com isso. Alguns
podem até vir porque estão meio interessados em
aprender, mas ninguém quer “viver” uma filosofia.
– Então talvez a universidade não seja pra mim,
Patrícia – falei – tudo aqui é muito sem sal.
– É óbvio que é sem sal. Os professores e os alunos
comparecem porque são obrigados. O que você esperava?
Ninguém está aqui por amor ou ideal.
Eu suspirei enquanto mastigava meu pastel e tomava
meu refri com canudinho.
– De certa forma, eu também tô aqui porque meus
pais acharam que fazer faculdade seria uma boa ideia –
comentei – mas cada vez mais tô achando que é uma
furada.
– Há muitas opções para fazer coisas da vida que não
precisa de ensino superior.
– Tem mesmo. Quando comecei a faculdade semestre
passado eu tava toda animada. Agora vi que não é nada de
mais.
Terminei meu pastel e joguei o papel fora. Continuei
tentando sugar as últimas gotas da latinha com o canudo.

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– Vai pular fora então?


Fiz que não.
– Vou acabar esse semestre – decidi – e depois eu vejo
o que faço. Detesto abandonar a faculdade no meio do
semestre. Já fiz isso muitas vezes antes e vi que não é
legal. Saindo no fim do semestre pelo menos posso
aproveitar mais créditos pro meu próximo curso.
– Quantos cursos tu já tentou fazer?
Dei de ombros.
– Já perdi a conta. Não importa.
– Tu começou jornalismo, pedagogia e o que mais?
– Sei lá!
Mesmo assim, não achei que foi tempo perdido. No
curso de jornalismo reforcei meus conhecimentos de
gramática e redação. No curso de pedagogia aprendi
muito sobre história da educação e sistemas educacionais.
Comecei a questionar muitas coisas.
Na verdade, de vez em quando eu até amaldiçoava
meu ingresso no curso de pedagogia, pois foi graças a ele
que passei a odiar profundamente o sistema de ensino
universitário. Me dei conta do quanto ele era horrível.
Agora eu não conseguia mais assistir as aulas e
simplesmente ignorar o quanto tudo aquilo era uma
palhaçada. O quanto nos faziam perder tempo.
Mas quando eu dava discursos como esse, Patrícia me
criticava. Ela dizia coisas assim:
– Por que você só enxerga os defeitos? Mesmo que
alguns professores não ensinem bem, eles sabem muito.
– Eu preferia um professor que soubesse menos mas
que tivesse uma didática melhor. E que se esforçasse o
mínimo para fazer aulas divertidas.
– Cara, tenta olhar pelo lado deles – disse Patrícia –
alguns já estão aqui há décadas. Se você fizesse
exatamente a mesma coisa toda manhã, por anos, você ia
sentir disposição para preparar uma aula totalmente genial

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e criativa? Quem faz isso são os professores novatos ou os


mestrandos e doutorandos que chamam para dar aulas.
Ela estava certa.
– E você está gostando do seu curso? – perguntei.
– Bem, artes visuais não é tão ruim – respondeu
Patrícia – só acho meio triste que a gente não estude
praticamente nada de história da arte.
– Pois no meu curso a gente estuda história até demais
– respondi – e ninguém leva a sério o que a gente pensa
sobre as coisas.
– No meu curso é o contrário. Em artes, a gente tem
que aprender a criar novas obras de arte. É isso que
esperam da gente.
– Bem, no meu curso a gente só tem que aprender a
repetir e decorar tudo que já foi pensado até agora, como
se só no passado o pessoal conseguisse usar o cérebro.
– Você está fazendo aquilo de novo.
– Fazendo o quê?
– Está só olhando para os aspectos ruins do seu curso.
Por exemplo, já que eles não focam em história da arte eu
tento ler livros sobre isso quando tenho tempo, ou assistir
documentários de artistas famosos. A gente dá um jeito de
tapar os buracos que a universidade não tapa.
– Mas no meu caso é quase um buraco na camada de
ozônio – comentei.
Lancei a minha latinha tentando fazer uma cesta. Errei
feio. Fui até lá para recolher e lancei a latinha na lixeira
com ferocidade.
– Tô puta – falei – preciso comer doces.
– Assim você vai engordar.
– Eu já tô gorda, tanto faz.
Eu era um pouco acima do peso, mas não me
preocupava. Sempre tive uns quilinhos a mais e nunca
achei que aquilo fosse um problema. Até porque sempre
tive muito orgulho do meu cérebro. Quanto ao corpo,
tanto faz. De qualquer forma, eu não achava que era

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muito bonito garotas magras demais. Mas essa era apenas


uma opinião minha.
Comprei um brigadeiro e fui para a aula de metafísica.
É aquela aula em que a gente se pergunta: “Por que será
que aquela bola é vermelha e não amarela?” como se isso
fizesse muita diferença.
Naquela aula estávamos discutindo os argumentos
contra e a favor a existência de Deus. Eu queria bater
minha cabeça na parede muitas vezes para perder a
consciência e não precisar escutar aquele monte de
bobagem.
Até que não aguentei mais e levantei a mão.
– Com licença, professor. Por que discutir teologia na
aula de filosofia? A existência ou não existência de Deus é
uma questão de fé e acabou.
– Pode ser, mas muitas religiões também se baseiam
em pensamentos filosóficos – foi a resposta dele.
Não me senti convencida, mas deixei quieto.
– Por que você acha que a maior parte dos filósofos
hoje é ateísta ou agnóstica? – perguntou um colega meu.
– Não estou certo se isso é verdade, mas se for é
provável que seja devido ao período histórico em que
vivemos – respondeu o professor.
– Então isso significa que a maior parte dos filósofos
sofre lavagem cerebral devido à força do ateísmo de nossa
época?
Não gostei das perguntas dele. Eu mesma me
considerava agnóstica. Não me agradava muito o
pensamento de que eu era agnóstica porque sofri
“lavagem cerebral” com as crenças da época em que eu
vivia.
Resolvi sair mais cedo daquela aula, pois eu estava
ficando zangada.
Fui deitar à sombra de uma árvore, sozinha.
Era sempre assim: ou eu me encantava demais com
uma aula e me sentia no sétimo céu, ou as aulas me

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enchiam de ódio. Nenhuma daquelas aulas era neutra para


mim.
Talvez porque eu tivesse uma relação muito próxima
com a filosofia. Havia pensamentos que eu amava e
outros que eu detestava. Então quando um professor
defendia um pensamento com o qual eu concordava, era
música para meus ouvidos.
Por outro lado, bastava a defesa de uma posição que
me deixava desconfortável e eu já sentia vontade de bater
no professor. Lógico que eu não batia, mas talvez isso me
deixasse mais aliviada.
Será que isso significava que eu era intolerante? Talvez
um pouquinho.
Eu estava entediada. Aquelas aulas não tiravam o vazio
que eu sentia. Aquilo era só papo furado. Era puro
sofismo. Na prática, é possível defender praticamente
qualquer ideia quando se tem bons argumentos.
E o que isso prova? Nada! Só prova que escolhemos
uma ideia ou outra simplesmente porque nos apegamos
emocionalmente a ela. Depois disso buscamos bons
argumentos para defendê-la.
Por isso eu andava meio desencantada com a filosofia.
Era como dizia Wittgenstein, que nossa filosofia tinha
sido “enfeitiçada” com nossa linguagem. E, eu
acrescentaria, com nossa lógica.
A razão parecia um jogo ruim. Quem gostava de
filosofia só queria brincar com palavras. Por isso eu
achava todos os meus colegas e professores extremamente
superficiais.
Era como se masturbar com lógica. Para quê? Por que
não usar a mão então? Dá para ser bem pago com as duas
opções. Mas uma delas é mais socialmente aceitável.
Acabei dormindo. Quando acordei, já era quase fim da
tarde. Por sorte eu não tinha nenhuma aula depois.
Peguei um ônibus e fui pra casa.

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– Oi mãe, pai, Jéssica e Nata! Vou tomar banho,


depois janto, tchau!
Entrei no banheiro, enchi a banheira e não saí de lá
por um tempão. Coloquei água bem quente, para eliminar
o meu estresse.
Engraçado que meu curso não era estressante no
sentido de ter mil provas e trabalhos para fazer. Ele não
tomava muito meu tempo. Em compensação, ele me
deixava estressada por outros motivos.
Às vezes uma discussão idiota entre alunos e
professores acabava com meu dia. Eu não conseguia parar
de pensar: “Que idiotas!” mas será que a idiota não era eu?
Acho que não era normal alguém sentir tanta raiva.
Devia haver algo de errado comigo. E eu já tinha passado
da adolescência fazia um bom tempo.
Eu estava com 25 anos. Um quarto de século.
Possivelmente, uma boa idade para se ter.
Já fazia quase oito anos que eu estava brigando com a
universidade. Ela estava me dando muitos socos, pontapés
e rasteiras. Até agora, estava ganhando.
Se eu fosse bem otimista, poderia acreditar que talvez
quando eu completasse uns 40 anos estaria formada. Eu
simplesmente não conseguia parar quieta num curso só!
Patrícia estava certa: eu via defeito em tudo. Eu queria
brigar contra o sistema de ensino, contra o mundo inteiro.
Nada me deixava satisfeita.
O pior era que eu sempre largava os cursos no meio
do semestre, então ficava num limbo: nunca acumulava
créditos suficientes.
Mas tudo bem, dessa vez eu tinha uma estratégia: iria
concluir as disciplinas daquele semestre. A partir do
próximo ano talvez eu abandonasse o curso e tentasse
montar um negócio. Quem sabe eu pudesse abrir um
restaurante. Eu gostava de cozinhar tanto quanto eu
gostava de comer, embora fosse meio preguiçosa. Eu

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frequentemente deixava de jantar para comer salgadinhos


ou outra porcaria, porque bastava abrir o pacote.
Quando saí do banho e entrei no meu quarto, vi Nata
em cima da minha cama.
– Mãe! Ô mãe! Eu disse pra você não deixar a Nata
entrar no meu quarto. Ela sempre enche minha cama de
pêlos e pulgas!
– Nata não tem pulgas.
– Ah, não tem? Então o que são essas bolinhas
vermelhas nas minhas pernas?
Levantei uma das pernas da calça e mostrei para ela.
– Deve ser uma alergia.
– Alergia o meu rabo!
– O quê?
– Nada.
Entrei no quarto da Jéssica.
– Que tal bater na porta antes? – perguntou Jéssica,
arrumando os cabelos na penteadeira.
Ao contrário de mim, Jéssica era muito vaidosa. Ela
era magra, alta e vestia sempre as roupas da moda,
enquanto eu era gordinha, baixinha e usava moletom e
calça de moletom, sempre nas mesmas cores: preto, cinza,
azul escuro...
Apesar de ser um ano mais nova que eu, Jéssica já era
formada, em administração. Estudou numa universidade
particular. Meus pais davam a ela tudo o que ela queria.
Eu, ao contrário, tinha que ficar estudando para a porcaria
do vestibular toda vez que trocava de curso. Pelo menos
assim não me sentia tão culpada: eu seria a principal
prejudicada.
– Como andam as coisas na empresa? – perguntei.
– Não tão ruins. Por quê?
– Você parece irritada – observei.
– Você também.
– Ah, isso porque só tem babaca no meu curso.

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– Bem-vinda ao mundo real. Você acha que o pessoal


da empresa é legal?
– O Márcio é bem gatinho.
– Isso não significa que ele seja legal. Para o seu
governo, ele é um grande imbecil.
– Tá certo. Vou jantar. Você já jantou?
– Já.
Fui até a cozinha e esquentei minha janta. Depois
disso, fui para meu quarto mexer no computador.
Assisti alguns episódios de Gilmore Girls na Netflix e
depois fui dormir.
Só que eu não consegui dormir. Não me sentia muito
disposta a acordar. Será que eu estava meio depressiva?
Provavelmente não. Eu só estava braba. Não gostava
do mundo em que eu vivia. Só achava defeito nele. Mas
então talvez o problema estivesse em mim e não no
mundo.
Na próxima aula de metafísica, iniciaram uma
discussão ainda mais ridícula. Falavam sobre destino e
livre-arbítrio. Um colega meu defendia ardorosamente que
tudo já estava determinado, que nosso destino estava
traçado. Que pessoa sã acreditaria numa coisa dessas?
Era o mesmo idiota que havia feito as observações
infelizes sobre ateísmo na aula anterior. Resolvi me meter
na discussão.
– Então você defende que nós apenas temos a
impressão de ter vontade livre? – perguntei – no fundo,
não temos escolha nenhuma?
– Nós temos vontade e livre escolha – ele disse – mas
somente da nossa perspectiva. Da perspectiva de Deus, já
está tudo determinado.
Ah, então era isso. O cara realmente acreditava em
Deus.
– Mas esse raciocínio só funciona se você admite que
Deus existe – falei – o que é uma aposta meio arriscada.
– Você já ouviu falar na aposta de Pascal?

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– Isso não tem nada a ver! – protestei – se acreditar em


Deus é bom ou não é uma coisa. Se ele existe de fato é
outra. É claro que Deus não passa a existir
necessariamente só porque o mundo fica melhor com
Deus, independente da veracidade dessa afirmação.
– Pessoal, vocês estão desviando do assunto – disse
meu professor – o tema aqui é livre-arbítrio.
Eu o ignorei. Agora estava no calor da discussão.
– Você já leu “Ética” de Espinosa? – ele me
perguntou.
– A concepção que Espinosa tinha de Deus era meio
panteísta – falei – então isso não conta. O que você
defende aqui é a existência de um Deus pessoal.
– Você acha absurda a ideia de livre-arbítrio e destino
coexistirem?
– Não, mas eu acho absurdo dizer que o destino existe
“da perspectiva de Deus”. Você não pode provar que é
assim.
– E nem você pode provar que não é assim – afirmou
ele.
– É exatamente por isso que filosofia não é ciência! –
exclamei – porque uma afirmação pode ser definida como
científica se tem a possibilidade de ser provada falsa. Essa
não foi uma observação particularmente genial.
Eu estava tentando ofendê-lo, mas eu me sentia
ofendida porque ele não se ofendia!
Ele apenas me observava e dava um leve sorriso, como
se soubesse de tudo. Detesto essa postura arrogante. Ele
provavelmente se achava o mais inteligente da sala, como
se soubesse de verdades escondidas.
– Por que você tem a necessidade de meter Deus no
meio da filosofia? – insisti – ela pode muito bem existir
sem isso!
– Mas uma filosofia sem Deus é uma filosofia morta –
ele argumentou – totalmente desprovida de espírito. É
mera lógica, razão sem coração.

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– Uau! – exclamei – você acha mesmo que um amor


sem Deus é falso?
– Não disse que é falso. Todo amor vem de Deus. Se
não vem de Deus não é amor. Pode ser um apego ou uma
paixão pela carne, mas não amor puro.
– “Amor puro”! – exclamei – você é kantiano, meu
filho? Kant defendia a razão pura e agora você defende o
amor puro?
– Será que vocês dois podem discutir isso mais tarde?
– perguntou o professor – se eu não conseguir acabar essa
explicação hoje, vou ter que passar dever extra para vocês.
Eu não estava nem aí para o dever extra, mas é claro
que após aquela ameaça todos os nossos colegas nos
mandaram calar a boca. E a aula prosseguiu bem
comportada como se nada tivesse acontecido.
Essa era outra coisa que me deixava puta. A
universidade não era um espaço para debates? Qual a
diferença se o professor concluísse ou não a droga da
aula? Os professores achavam que eram os protagonistas
da universidade, mas eu os via como mediadores do
conhecimento. Nós estávamos ali para aprender e ter
espaço para discussão. Era assim que se estudava filosofia
na Grécia Antiga, com os debates, tais como Platão
mostrava em seus diálogos.
Mas é claro que para o professor era mais importante
cumprir o seu cronograma do que nós aprendermos
alguma coisa ou falar do que nos interessava. Se
escolhêssemos tópicos que gostávamos é claro que as
aulas seriam mais divertidas e interessantes, não apenas
bater ponto e esquecer tudo depois.
Discussões fervorosas como aquelas me marcavam e
assim eu não esquecia o que aprendia. Decorar o que o
filósofo fulano de tal disse e depois responder uma prova
não podia ser mais tedioso. Na semana seguinte eu já nem
lembrava.
Quando saímos da sala, bati no ombro do meu colega.

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– Ei.
Ele se virou para trás, curioso.
– Você mesmo – falei – vamos continuar a discussão.
Não foi uma pergunta. Eu estava ordenando que
continuássemos. Ele não teria escolha.
– Eu tô meio ocupado agora – ele disse – tenho outra
aula.
– Eu não tenho outra aula agora e não faz mal você
matar a sua próxima aula, não acha? Vai aprender muito
mais com nossa conversa do que lá.
Ele me observou atônito.
Eu sabia que estava forçando a barra. Nem sabia qual
era a outra aula que ele tinha. Podia ser algo importante. E
afirmar que ele ia aprender muito com o que eu tinha para
dizer também era meio arrogante, mas dane-se. Eu
realmente acreditava que ele poderia aprender com meus
bons argumentos.
Observei-o melhor. Ele tinha os cabelos cheios e bem
encaracolados. Muitas espinhas na cara. Usava óculos
quadrados. As roupas também não era nada especial:
camiseta, calça e tênis. E a mochila parecia meio velha e
sem graça.
– Podemos conversar depois – ele disse – daqui duas
horas não tenho mais aulas. Pode ser?
Pensei em dizer que não queria, só para implicar. Mas
assim ia parecer que eu estava comprando briga de graça.
– OK – respondi – aonde?
– Por aqui mesmo.
E ele foi embora.
Pensando bem, nem sei porque concordei. Eu queria ir
pra casa. Ia ter que ficar matando hora na faculdade, só
pra ter aquela droga de conversa.
Mas fui eu que inventei, então resolvi ceder. Retirei um
livro na biblioteca e fiquei lendo. Na hora marcada, voltei
para a frente da sala.
Ele chegou vinte minutos atrasado. Não gostei.

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– Está atrasado – fui logo dizendo.


– Desculpe – ele disse – o professor nos prendeu até
mais tarde.
– Não é muito educado deixar uma dama esperando –
observei.
Ele fez uma cara de “Do que você tá falando?”, mas eu
deixei pra lá. Achei que ele ia entender que foi uma piada,
mas ele me parecia meio lento.
– Vamos sentar ali? – ele apontou para um banco.
Concordei. Também não estava a fim de permanecer
em pé ao longo da conversa.
Ele devia ser mais novo que eu. Encarei como uma
vantagem a meu favor.
– Então, onde estávamos? – ele me perguntou – já
esqueci.
– Por que você faz tantas perguntas nas aulas? –
perguntei – e várias delas são meio ofensivas, como o que
você disse sobre ateísmo na aula anterior.
– Foi sem querer – ele confessou – às vezes não me
seguro. Que nem você.
No meu caso, eu não era rude por não conseguir me
segurar. Eu falava as coisas com intenção deliberada de ser
rude.
– Acho que entendo o que você quer dizer com muitos
filósofos serem ateístas – eu disse – mas isso é verdade
quando você se refere aos filósofos contemporâneos. Os
modernos, os medievais e até os antigos são fortemente
teístas.
– Concordo.
– Mas... e daí? – perguntei – vivemos na era da razão,
enquanto antes se vivia numa época em que o divino tinha
mais espaço.
– O fato de o divino ter mais espaço numa
determinada época não significa que ela não seja racional.
– Não estou dizendo que eles eram irracionais. Mas
agora somos mais racionais.

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– Isso não é verdade. As religiões possuem uma base


racional muito forte.
– Não sei de onde! – protestei.
– Você já estudou seriamente alguma religião? – ele
perguntou.
– Não tenho muito interesse em religiões.
– Então, aí está. Como posso levar a sério seus
argumentos se você nunca leu sobre religião nenhuma?
Você simplesmente não as conhece.
– Eu as conheço o suficiente para não ter interesse em
estudá-las – eu disse – acho que seria uma perda de
tempo. São apenas superstições.
– Você é ateísta?
– Sou agnóstica.
– Então você devia ler mais a respeito – ele disse – já
que você abre a possibilidade para a dúvida na questão da
existência de Deus.
– Eu não abro essa possibilidade – expliquei – no meu
caso, eu acredito que não há como provar que ele existe e
nem que ele não existe. Então ler mais seria inútil.
– Mas é bom ter argumentos lógicos para dar base a
essa sua crença – ele comentou – senão passa a ser uma fé
cega.
– Então a sua fé tem uma base forte? – zombei.
– Por acaso ela tem. Quer escutar meus argumentos?
– Acho que não. Já estou cansada de ouvir sobre esses
argumentos filosóficos chatos nas aulas de metafísica.
– Se não gosta de discutir isso, por que está estudando
filosofia?
– Eu gosto de outras partes da filosofia – falei – acho
que filosofia da arte ou filosofia política, por exemplo, são
bem mais úteis.
– Por que filosofia da arte é mais útil que filosofia da
religião? – ele perguntou, intrigado – qual é a “utilidade”
da arte?
– Despertar emoções, nos fazer pensar.

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– Com a religião também é possível despertar emoções


e reflexões, mas é muito mais que isso. Ela trata do
transcendente.
– Um tipo de idealismo transcendental kantiano? –
perguntei.
– Muito mais que isso.
– Mas não importa – decidi – mesmo que filosofia da
religião tenha alguma utilidade, ela simplesmente não me
interessa.
– Você gosta mais das áreas da filosofia que possuem
uma “utilidade”? – ele perguntou, num tom jocoso.
– Talvez. Por quê?
– Então você acha que a matemática aplicada, como as
engenharias, é melhor que a matemática pura por ter uma
utilidade?
– Nunca pensei sobre isso – falei – mas acho que cada
área tem seu valor. A religião também tem a utilidade de
fazer as pessoas se sentirem melhor, mas muita gente não
precisa disso para se sentir bem.
– Religiões não existem apenas para nos fazer “sentir
bem” – ele disse – elas nos mostram o que é a verdade.
– Ninguém sabe o que é a verdade – retruquei – a
ciência só corrobora teorias. E a filosofia também só cria
novos paradigmas.
– Por isso a teologia se ocupa com a questão da
verdade – ele explicou – porque a razão humana e nossos
sentidos são limitados, mas Deus tudo sabe.
– Quem disse que ele sabe de tudo?
– Porque essa é a própria definição de Deus: ser
onisciente.
– Mas quem disse que essa definição tem existência
real? E não me venha citar aquela grande porcaria do
argumento ontológico de Santo Anselmo!
Ele sorriu.
– Adoro conversar com alunos da filosofia – ele disse
– porque não preciso ficar explicando teologia desde o

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A Ordem Terceira

começo para vocês, já que possuem a base filosófica que a


sustenta.
– Qual é a sua religião?
– Eu sou católico.
– Eu já esperava isso – falei – que você fosse cristão
ou qualquer coisa parecida com isso.
– Não me importo de ser previsível.
– Qual é o seu nome?
– Thomas. E o seu?
– Caralho! – exclamei, sorrindo – você não sente
orgulho de ter o mesmo nome de Aquino?
– Eu sinto – ele sorriu também – e como você se
chama?
– Joana.
– Não sente orgulho de ter o mesmo nome de d‟Arc?
– Não muito.
Thomas olhou para os lados e depois olhou para o
chão. Acho que ele estava tentando me dizer que
precisava ir embora.
– Tem algum outro assunto que você quer discutir? –
ele perguntou.
– Não, acho que está bom por hoje – resolvi dizer.
Até porque eu queria ir para casa logo descansar.
– OK – ele disse – então vou indo. Tchau, Joana.
– Até mais.
E assim acabou nossa gloriosa discussão, que nem foi
assim tão gloriosa. Nem conversamos tanto.
Era meio difícil acreditar que existissem cristãos que
também fossem filósofos ou cientistas. Na minha cabeça,
qualquer um que estudasse o suficiente logo perceberia
que os argumentos do cristianismo são absurdos.
Eu apostava que ele tinha vindo de família cristã.
Então continuava a ser cristão por força de hábito, ou
para agradar a família.
Ele tinha um sotaque do interior. Do tipo “leite
quente”. Ele devia vir de alguma cidadezinha do Rio

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Grande do Sul. Os pais deviam ser fazendeiros e meio


supersticiosos, daqueles que rezavam sempre antes de
comer.
Se fosse assim, eu o desculpava. Ele era um bom
menino que agradava os pais.
Mas ele parecia ser um pouco inteligente e parecia
realmente acreditar no que falava. Talvez eu devesse
conversar com ele mais vezes para descobrir o que havia
por trás daquilo tudo.
Quando cheguei em casa contei para Patrícia pelo
Facebook sobre minha discussão na aula e minha
posterior conversa com o carinha.

Patrícia: Legal. Ele é bonitinho?


Joana: Nada de especial. Além do mais, ele é cristão.
Não deve curtir muito sexo eventual.
Patrícia: Você prefere sexo eventual ou um namorado?
Joana: Depende. Mas mudando de assunto, vai rolar
aquela tua exposição?
Patrícia: Sim, nós estamos organizando. Alugamos uma
galeria.
Joana: Ótimo! Me avise quando começar, tá? Estou
bem a fim de ir.
Patrícia: É lógico que você precisa me prestigiar. Não
tem eventos desse tipo na filosofia? Debates públicos ou
algo parecido?
Joana: Eles nem querem saber disso. Só sabem repetir
o que os outros filósofos disseram em vez de ter ideias
próprias. Por isso mesmo acho religiões tão chatas. Você
só fica repetindo o que o Zé Mané Supremo falou! Que
graça tem isso?
Patrícia: Tem gente que acha graça até em filmes
franceses pretensamente profundos que se passam na
velocidade de uma lesma. Então não duvido de nada.

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Para variar, na próxima aula de metafísica houve mais


discussões ridículas. Aquilo já estava me cansando.
Foi uma coisa super complicada sobre o tempo.
Falaram de série A, série B e um monte de asneiras como
essas. Eu não entendi porra nenhuma.
Basicamente a discussão era: será que o tempo é real
ou irreal? Existe passado e futuro? Analisávamos isso da
perspectiva filosófica, é claro, que é diferente daquela
analisada pela física.
Começaram a falar sobre as teorias de mundos
possíveis do David Lewis para abordar a questão do
tempo. Eu achava David Lewis uma viagem sem
tamanho. O cara dizia que era possível que fôssemos ovos
cozidos.
E foi exatamente esse o meu argumento, quando
Thomas resolveu enfiar o seu Deus no meio da discussão,
dizendo que Deus se encontrava fora do tempo e por isso
conseguia prever o futuro.
– Me diga o que você acha mais provável – Thomas
desafiou-me – que Deus exista ou que possamos ser ovos
cozidos?
Fiquei sem fala. A teoria de David Lewis era estudada
seriamente por muitos filósofos e considerada muito boa.
Então por que uma teoria que propunha que Deus existia
também não poderia ser boa?
– Acho mais provável que Deus exista do que sermos
ovos cozidos – falei – mas acho mais provável que
sejamos ovos cozidos do que existir um Deus pessoal
como defendem as religiões abraâmicas.
Eu falei aquilo só para implicar.
– É mesmo, Joana?
O sorriso de Thomas foi tão largo quando ele disse
isso que eu quase me intimidei. Estava na cara que eu
disse aquilo porque perdi o argumento.
Mas ele jogou sujo. E o argumento nem era assim tão
bom. Só me deixou momentaneamente confusa, mas se eu

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refletisse sobre a questão seriamente poderia arranjar uma


resposta melhor.
Eu só queria que o semestre acabasse logo, pois eu não
conseguia encontrar algo mais irrelevante de estudar do
que metafísica. Seria até mais útil decorar a lista telefônica.
Se o tempo existe? Deixem essa questão para os
físicos! Se existe causa e efeito? Na prática, é só com a
crença na causa e efeito que os cientistas conseguem bolar
suas teorias, então vamos fingir que existe.
E era exatamente disso que eu falava com Thomas no
final da aula. Estava quase se tornando um ritual aquelas
nossas conversas após a aula.
– Então você também diria: “Na prática, as pessoas
ficam felizes acreditando em Deus, então vamos fingir que
ele existe?” – perguntou Thomas.
– É diferente, porque nesse caso a pessoa está se
iludindo – expliquei.
– E o cientista também não está se iludindo?
– Mas não foi provado que não existe causa e efeito.
Pode ser que exista.
– A mesma coisa com Deus.
– Mas não era você que tinha dito antes que o objetivo
da religião não era meramente pragmático, mas uma busca
pela verdade? – perguntei – então vocês não deviam
enganar a si mesmo com coisas falsas.
– A minha religião se inicia com uma verdade a priori:
Deus existe. E a partir daí forma-se todo o resto.
– Eu prefiro duvidar de tudo, como Descartes – falei.
– Mas até Descartes concluiu que Deus existe com seu
ceticismo – argumentou Thomas – ele também acreditou
na própria existência. Você, por mais cética que seja, não
acredita que exista o mundo material?
– Provavelmente acredito – falei – mas essa não é uma
verdade a priori para mim. Acho que é passível de
questionamento.

22
A Ordem Terceira

– O que não é passível de questionamento para você?


– perguntou Thomas – você acredita que ama sua família?
– Disso não tenho dúvidas – afirmei.
– Mas você não consegue provar que esse amor existe
através de métodos científicos. E nem usando a lógica.
Então como você faz?
– Não preciso provar a ninguém que meu amor é real
– falei – porque ele é real o suficiente para mim.
– Penso o mesmo sobre Deus. Ou melhor, no meu
caso é ainda mais forte. Eu tenho uma fé tão grande em
sua existência que se torna uma certeza. Eu creio que
Deus é a base de tudo. Você acha que existe algo mais
importante que o amor?
– Não.
– Pois Deus é amor. É amor com sabedoria. Amor
infinito e sabedoria infinita.
– Meu amor não é infinito – falei.
– Só Deus pode amar infinitamente. Então esse
pedaço de amor que sentimos é uma porção do amor
infinito de Deus. Ele se chama alma. É através do nosso
pedaço de amor chamado alma que sentimos Deus. E nós
buscamos Deus porque desejamos nos reconectar com
ele. Já achamos que o amor limitado que sentimos já é
grandioso. Então imagine se reencontrar com a fonte de
todo esse amor!
Acho que ele se emocionou um pouco com esse
discurso. Eu só fiquei olhando para ele, como se dissesse:
“Aham. Legal”.
– Hã... sem querer te cortar – falei – mas, mudando de
assunto, você não tem uma aula depois dessa?
– Hoje não vai ter. O professor foi para um congresso.
Mas mesmo que tivesse eu não iria, pois hoje de tarde vai
ter um debate lá na sociedade cristã universitária. Que tal
você ir também? Pode ser interessante.

23
Wanju Duli

Ele estava seriamente me convidando? E ele estava


seriamente achando que eu tinha algum interesse naquele
treco?
O cara participava de uma sociedade cristã da
universidade! Eu desconfiava que ele era fanático, mas não
tanto.
Mas eu não quis ser rude. Eu não quis dizer algo
como: “Eu não tenho muito interesse em continuar
conversando com um sujeito que participa ativamente de
uma sociedade cristã universitária”. Tudo bem ele ir à
missa, porque os cristãos provavelmente eram obrigados a
ir, mas se ele optava participar daquilo livremente era
porque curtia de verdade.
– Tá bom, eu vou. Mas só vou ficar um pouquinho.
– Vai ser legal – insistiu ele – tem alunos de vários
cursos lá. E alguns deles vão levar amigos não cristãos,
para que a discussão fique ainda mais divertida.
Eu o acompanhei. Quase me arrependi no meio do
caminho, mas eu não ia voltar atrás.
Além do mais, eu poderia sair qualquer hora.
Entrei na sala. Quase todos lá eram homens, o que eu
não achei nada estranho. O cristianismo era uma religião
misógina, então era bastante natural que as mulheres
jovens de nossa época, que tinham mais estudo, evitassem
uma religião como essa.
– E aí, Thomas! – um cara apertou a mão dele – que
bom que chegou. Senta aí. A gente já vai começar.
– Essa é minha colega – ele me apresentou – a Joana.
– Tudo bem, Joana?
O sujeito me deu um sorrisão. Ele devia estar
pensando: “Oba, mais uma cristã para o rebanho!” mas
estava muito enganado.
Só fui lá olhar. E ficaria bem quietinha no meu canto.
Eu não pretendia falar nada ofensivo ou dizer que
estavam errados. Numa sala cheia de cristãos isso seria

24
A Ordem Terceira

meio rude da minha parte. Eu não queria ser olhada como


se eu fosse uma herege.
A não ser que eles falassem alguma bobagem sem
tamanho. Só nesse caso eu iria intervir. Eles deviam achar
que tinham toda a verdade e que todos os outros estavam
errados. Eu iria mostrar a eles que não era bem assim.
– Muito bem, por onde vamos começar? – perguntou
um cara muito animado, que provavelmente iria conduzir
a discussão – alguém tem um bom tópico?
– Que tal o sistema heliocêntrico? – propôs alguém.
– É aceito na física atual que a trajetória de um corpo
depende do referencial adotado. Portanto, o sistema
geocêntrico está correto ao considerarmos um observador
aqui da Terra. A única vantagem do sistema heliocêntrico
é que ele simplifica e facilita os cálculos em alguns pontos,
mas isso não o torna mais verdadeiro que o geocêntrico.
Essa foi fácil. Próximo tópico?
Fiquei ligeiramente aturdida por um momento.
Aquele cara que conduzia a discussão parecia ser bem
inteligente. Observei-o melhor. Ele tinha a pele negra,
cabelos crespos e olhos castanhos. O sorriso dele era
enorme e com dentes bem brancos. Ele usava uma camisa
branca de mangas longas, perfeitamente bem passada.
Eu estava intrigada. Ele já devia ter respostas prontas
para as perguntas mais comuns. Então só seria possível
encurralá-lo com uma pergunta bastante exótica. Mas eu
não conseguia pensar em nenhuma.
– E a evolução? – perguntou uma das poucas garotas
da sala.
– A posição oficial do Vaticano é que o mundo foi
formado a partir de um design inteligente. Esse design
aceita o papel da evolução na criação.
– E o aborto? – perguntou a mesma garota.
– Quanto a isso não há concessões – disse o rapaz,
com firmeza – todos nós possuímos alma, que é a parte de
Deus presente em nós.

25
Wanju Duli

– E no caso de estupro? – perguntei.


Não consegui me segurar. O rapaz negro se virou para
me olhar. O olhar dele foi tão intenso que eu quase me
arrependi de ter perguntado.
Mas ele não estava brabo e nem nada do tipo. Apenas
me fitava.
– Um dos argumentos mais usados a favor do aborto é
que já existe muita gente no mundo e que não há recursos
para todas. Portanto, todos iriam se beneficiar se menos
gente viesse ao mundo – começou o rapaz – mas eu não
acho que esse seja o jeito correto de pensar. Em vez de
tentar criar uma sociedade cristã, baseada na caridade, que
acolha os órfãos, é muito mais fácil matá-los. Infelizmente
nós vivemos numa sociedade secularista que se importa
mais com dinheiro do que com religião e amor. Por isso, o
cristão não pode ceder à pressão do raciocínio secular e
buscar a solução que gere menores custos financeiros.
Uma vida não pode ser medida com dinheiro.
– Esse é um pensamento muito idealista, mas não é
assim tão amoroso – comentei – porque não leva em
conta os sentimentos da mulher. Ela sofreu uma violência
e não tem direito de decidir o que fará com o próprio
corpo? Ela deixará que uma religião criada por homens
decida por ela?
– Todo ser humano tem a liberdade de tomar suas
próprias decisões – foi a resposta dele – Deus não
obrigada ninguém a nada. O cristianismo é uma das
religiões que mais dá liberdade para as pessoas. Como
disse G.K. Chesterton em seu livro “The Everlasting
Man”: “O dogma confere ao homem liberdade em excesso quando
permite que ele caia. O dogma confere até mesmo a Deus liberdade
em excesso quando permite que ele morra”. Adão e Eva caíram
porque Deus deu a eles liberdade. Se ele quisesse, teria
impedido que eles fizessem o mal, dominando suas
vontades. Mas Deus respeita o nosso livre-arbítrio. A
história do Jardim do Éden nos mostra exatamente a

26
A Ordem Terceira

importância de termos o direito de tomar nossas próprias


decisões. E esse direito é inviolável e deve ser exercido
mesmo que nos leve à morte ou ao inferno.
– Você não respondeu a minha pergunta – eu disse –
embora o cristianismo defenda o livre-arbítrio, ele
condena quem toma decisões tidas por ele como
“erradas”. A mulher cristã que faz aborto é considerada
uma pecadora. Mas e o homem que a engravidou não será
considerado pecador. Por que o pecado sempre tem que
recair sobre a mulher? Por que a culpa tem que ser de
Eva? Por que a mulher é o mal?
Ele me fitou intrigado.
– Na história do Jardim do Éden tanto Eva quanto
Adão pecaram – foi a resposta dele – além disso, o
cristianismo não “condena” quem toma decisões erradas.
Muitas decisões erradas podem ser confessadas e
perdoadas. O pecado mortal, único que não pode ser
perdoado, é aquele em que o pecador não se arrepende.
– Então está tudo bem que a mulher faça aborto
contanto que ela reconheça que fez algo errado e se
arrependa depois? – eu ri – que besteira! Esse é um direito
que ela deve ter sobre o próprio corpo. E o homem, tem
que se confessar também?
– Escute... qual é o seu nome?
– Joana.
– Joana, eu entendo o que você quer dizer.
– Não entende, porque você é homem – eu o
interrompi – você pode até correr o perigo de ser
violentado, mas não vai engravidar e não vai ter que tomar
uma decisão difícil. Além de ter que pensar numa série de
coisas, a mulher ainda vai ter que pensar sobre as
implicações teológicas envolvidas nisso? Eu acho que há
coisas mais importantes.
– Para o cristão não há coisas mais importantes – ele
disse – pode parecer um pouco duro esse ensinamento.
Mas o cristianismo é uma religião difícil. Não é para

27
Wanju Duli

qualquer um. Ela exige disciplina, abnegação e sacrifícios.


Por outro lado, o cristão recebe bênçãos sem tamanho em
troca. Religiões fáceis, que quase não exigem que se faça
esforço, em geral não geram muitos benefícios. Nenhum
desenvolvimento espiritual genuíno vem sem dor.
– Não estou interessada no seu desenvolvimento
espiritual genuíno – falei – o que eu quero saber mesmo é
porque a mulher é discriminada no cristianismo.
– Você nunca ouviu falar na Santa Maria, mãe de
Deus? Ela está até mesmo acima dos anjos. Ela é pura e
sem pecado. Somente Deus está acima dela.
– Maria só é louvada porque deu a luz a um homem –
falei – além disso, ela só é adorada por ser virgem. Por que
as mulheres precisam ser virgens para que sejam
homenageadas? É sempre assim. A maior parte das santas
cristãs são virgens e morrem jovens. Enquanto isso,
outros santos como Santo Agostinho e São Francisco de
Assis tiveram uma juventude cheia de sexo e prazeres
antes de se dedicarem ao cristianismo. Mas a mulher
precisa ser pura a vida inteira para ser valorizada.
– Não é verdade que só existem santas cristãs e virgens
– ele disse – já tivemos muitas santas católicas com
conversão tardia e que morreram idosas. E você diz que
Santa Maria só é louvada por ser virgem. Mas e Maria
Madalena? Já ouviu falar dela? Era prostituta. Jesus a
perdoou. Ela se converteu ao cristianismo e é louvada.
– Por que Jesus precisava “perdoá-la” por ser
prostituta? – insisti, pois eu não queria perder o
argumento – ela só estava fazendo seu trabalho, assim
como muitos homens da época de Jesus cobravam juros
quando emprestavam dinheiro ou eram cobradores de
impostos, e isso não era pecado. Só era o trabalho da
época.
– Não sei mais o que dizer a você para convencê-la –
ele confessou – Deus não clama que a mulher é inferior
ao homem. O cristianismo não defende isso. Eu mesmo

28
A Ordem Terceira

não acho que a mulher seja menos que o homem.


Nenhum cristão sério defende essa posição.
– E os homossexuais? – perguntei.
– Eu tenho um amigo homossexual que se tornou
padre – ele respondeu – ele deixou bem claro para os
sacerdotes que ele era gay. Mas ele estava disposto a fazer
o voto de castidade porque era seu sonho ser padre.
Ninguém viu nenhum problema nisso.
– Mas... mulheres não podem virar “padres” ou o
equivalente disso – argumentei – e os homossexuais não
podem se casar na igreja. E os divorciados não podem
receber eucaristia.
– O Papa Francisco está no momento formando
comissões para rever essas questões – ele disse – mas
entenda que na Igreja existe a ala liberal, a ala
conservadora e muitas outras coisas aí no meio. Se a Igreja
cede demais para um lado ou outro ela se quebra. Isso é
muito difícil. Deve haver diálogo. O problema é que cada
pessoa tem sua visão pessoal do que a Igreja deveria ser.
Mas a Igreja não está aí para agradar ninguém em
particular. Deve ser testemunha da verdade, mesmo que
essa verdade seja dura.
– Como vocês podem clamar que possuem a verdade?
– Porque nós temos fé. Nós confiamos no testemunho
de todos que vieram antes de nós, que presenciaram a
ressurreição de Cristo. É como confiar num amigo
querido. Você acreditaria em seu melhor amigo se ele
dissesse que teve uma visão divina?
Não conseguia imaginar Patrícia tendo uma visão
divina. Mas ela certamente não mentiria para mim sobre
isso. Eu acreditaria nela, mas diria que podia ter sido uma
ilusão.
Mas se ela me afirmasse com toda a certeza que não
foi uma ilusão... bem, talvez eu acreditasse.
– Eu acreditaria – eu disse, por fim.

29
Wanju Duli

– Então aí está sua resposta – ele disse – a comunidade


cristã é uma comunidade em que todos são amigos e
irmãos. Nós seguimos o mandamento de não mentir e
confiamos uns nos outros, porque nos amamos. Se nosso
amigo nos dá seu testemunho de que viu Cristo, nós
acreditamos nele. Milagres acontecem entre os cristãos e
eles relatam a experiência uns para os outros. Nós
confiamos naquilo que nos dizem e fortalecemos nosssa
fé.
– As pessoas às vezes podem se enganar – argumentei.
– Podem. Mas todas as pessoas não podem se enganar
todas as vezes. Nós não podemos viver sempre no escuro.
Temos que acreditar em alguma coisa: na verdade e no
amor.
– Tem muitas coisas absurdas na Bíblia – observei.
– Na Igreja católica nós acreditamos tanto na Bíblia
quanto na Tradição. Quando uma delas não tem a
resposta recorremos à outra. Então, se alguma passagem
na Bíblia parece muito obscura ou estranha, recorremos à
sabedoria dos nossos antepassados, aos comentários dos
teólogos do medievo. Existem diversas formas de
chegarmos a boas respostas. É como disse Sócrates: tanto
o raciocínio lógico quanto os sentidos físicos podem nos
pregar peças. Porém, é difícil encontrar um homem
extremamente bom ou um extremamente mau (ou uma
pessoa muito alta ou muito baixa), sendo que a maior
parte se encontra num meio termo. De modo análogo,
provavelmente nem a razão e nem os sentidos físicos são
uma completa enganação. Embora eles possam não nos
mostrar a verdade tal qual ela é, eles podem nos apontar,
no mínimo, pistas na direção correta.
– Então só o catolicismo está correto e todas as outras
religiões estão erradas, incluindo a posição dos
protestantes? – perguntei.
– Conforme dito pelo Papa Paulo VI na declaração
“Nostra Aetate”, a Igreja católica não rejeita o que há de

30
A Ordem Terceira

verdadeiro e sagrado nas outras religiões e reprova


qualquer discriminação ou violência por motivos
religiosos. Isso foi dito num documento oficial do
Vaticano.
– E a Santíssima Trindade? – perguntei – vocês dizem
que o cristianismo é lógico, mas isso não tem lógica
nenhuma.
– Por que a verdade precisa corresponder a nossas
expectativas e a nosso raciocínio? O cristianismo possui
muitos dogmas que nos parecem estranhos. Eu acharia
mais estranho ainda se no cristianismo só houvesse
dogmas fáceis e simples de entender. A mente de Deus é
extremamente complexa. Nós temos a mania de achar que
a verdade é simétrica, como achavam os antigos gregos
que defendiam que os planetas tinham órbitas circulares,
porque as julgavam mais belas. Mas as coisas não são
verdadeiras porque nós as achamos belas. Você acha que a
morte é bela, Joana?
– Não muito.
– Pois ela é a verdade. Mas é somente a morte do
corpo. Nosso espírito é imortal.
– Como pode ter tanta certeza?
– Porque eu já li toda a Bíblia, já li centenas de livros
com comentários de eminentes autores, porque eu tenho
fé, eu rezo, eu sinto Deus na missa e nos sermões do
padre, eu sinto Deus na eucaristia e em cada momento do
meu dia.
– Você sente Deus até no mal?
– Sem o mal, o bem não poderia se manifestar em toda
sua glória. Como poderíamos aprender qualquer coisa e
desenvolver nossa moralidade se não houvesse o mal? A
vida não é confortável. Deus não é confortável. É
somente na dor que sentimos a glória de Nosso Senhor
Jesus Cristo, aquele que morreu na cruz para nos mostrar
que até mesmo o sofrimento tem seu papel na criação,
para nos elevar até os céus.

31
Wanju Duli

– Você acredita mesmo no céu? – perguntei,


desconfiada.
– E no inferno. E no diabo.
– Então por que vocês também não adoram o diabo, já
que é graças a ele que vocês podem desenvolver a
moralidade?
– Nós não odiamos o diabo. Não odiamos o pecador e
sim o pecado. Esse é o ensinamento cristão por
excelência.
– Você acredita que o céu seja um lugar acima das
nuvens para o qual irão somente os bons? – perguntei.
Ele riu.
– Quando se fala no céu, não se trata do céu físico –
ele disse – é um plano espiritual e também mental. Os
anjos e demônios também são criaturas espirituais e não
materiais.
– Vocês acreditam em bruxas? – perguntei.
– Se a Igreja não acreditasse em bruxas, não teria
mandado queimá-las – foi sua resposta.
– Você acha que a Inquisição foi algo legal? –
perguntei, com desdém.
– Não, foi um erro. Mas aqueles eram outros tempos.
Também era costume queimar pessoas por motivos
políticos. É dito que alguns prisioneiros confessavam
heresia para que fossem punidos pela Igreja, já que as
punições lá eram mais leves.
– Então você está admitindo que a Igreja erra. Que o
papa não é infalível.
– A Igreja é santa e pecadora. Tem inspiração divina,
mas também tem a mão humana. Deus poderia ter escrito
um livro perfeito e dado para os humanos. Mas ele, em
seu infinitio amor, quis fazer uma obra em conjunto com
a humanidade. Por isso, é normal que até na Bíblia,
mesmo sendo a palavra de Deus, contenha pequenos
erros, especialmente erros de tradução. Mas são coisas

32
A Ordem Terceira

mínimas. É um livro sagrado que deve ser seguido e


interpretado à luz da Tradição.
Eu não estava gostando muito daquela conversa.
Achei que aquele cara era meio fanático. Ele dizia e
defendia umas coisas muito estranhas. Parecia ser meio
louco. Louco por Deus. Eu achava aquilo meio perigoso.
Por outro lado, embora algumas respostas dele fossem
absurdas, outras eram inteligentes. Me faziam pensar. Eu
não esperava que pessoas religiosas pudessem me fazer
pensar.
Achei que ouviria a mesma ladainha de sempre: “É
assim porque está na Bíblia. É assim porque Deus quis”.
É verdade que eles acreditavam nisso, literalmente. Mas
havia algo mais. Não era só fé cega.
E aquilo me incomodou. Me deixou desconfortável.
Eu estava agitada por dentro e não queria me sentir assim.
Por mim, teria saído logo de lá.
– Marcos, eu tenho uma dúvida – um dos garotos
presentes entrou na conversa – na encíclica “Fides et
Ratio” de João Paulo II somos alertados sobre o perigo de
cair na tendência fideísta do biblicismo, fazendo da leitura
da Sacrada Escritura ou de sua exegese o exclusivo
referencial da verdade. Sei que você nos lembrou, como
também afirma a constituição “Dei Verbum” que a
palavra de Deus está contida tanto nos textos sagrados
quanto na Tradição. Mas além de estudar os comentários,
como fazer para obter uma leitura correta da Bíblia?
– Deve-se pedir que o Espírito Santo nos guie –
respondeu ele – segundo o Papa Bento XVI, devemos
fazer uma leitura tríplice da Bíblia: interpretação histórica,
moral e espiritual. Há de se saber que nas escrituras existe
momentos de se interpretar literalmente, outro de extrair
ensinamento moral e um terceiro de buscar a leitura
transcendente. E como obter sabedoria para distinguir
cada uma delas? Isso se deve pedir ao Pai. Mas também,
como você disse, buscar os comentários daqueles que

33
Wanju Duli

também realizaram interpretações à Luz da Tradição e do


Espírito Santo.
– Entendi. Obrigado.
Então o nome dele era Marcos.
O pessoal parecia respeitá-lo muito. Mas depois da
pergunta desse outro cara, notei que não era só Marcos
que era expert no assunto.
Meu colega, por exemplo, parecia saber muito. A
seguir, parei de fazer perguntas. Outras pessoas encheram
Marcos com os mais diversos questionamentos.
No entanto, não foi só Marcos quem falou. Em pouco
tempo rolou outras discussões paralelas, e os mais
variados temas entraram em pauta.
Não demorou muito para eu me sentir um pouco
burra. Notei que eu não sabia quase nada de cristianismo.
Quando escutei o termo “exegese” eu me perguntei “que
raios é isso?” e olha que eu era da filosofia.
Eles tinham um vocabulário próprio, como se fizessem
parte de um clube muito exclusivo. E eles falavam daquilo
tudo tão naturalmente, com tanta paixão e tanto
conhecimento que eu quase senti inveja.
Aquele era um mundo que eu não poderia penetrar. Eu
me sentia de fora, deixada de lado. Principalmente após
minhas perguntas raivosas eu devia estar sendo vista por
eles como uma chata ignorante. Mas ninguém me olhava
com raiva. No máximo, deviam estar sentindo pena de
mim. Algo como: “Coitada. Ela não conhece Cristo. Ela
não entende. Ainda não chegou lá. Tem um longo
caminho a percorrer”.
Eu sentia raiva de mim mesma por não ter bons
argumentos. Por um momento, eu quis conhecer o
cristianismo mais a fundo, apenas para ter boas respostas
para dar para aquele Marcos, que era tão respeitado por
todos.
E o pior, o ponto que talvez tenha ferido ainda mais
meu ego: aquele não era somente um mundo de homens.

34
A Ordem Terceira

Houve algumas garotas presentes, claramente cristãs,


que fizeram observações particularmente geniais. Elas
pareciam ter muita fé. Elas certamente não eram menos
que os homens. Eram tidas no mesmo nível.
Em especial, havia essa garota bonita. O nome dela era
Melissa. Tinha cabelos castanhos claros e ondulados. Ela
havia feito luzes claras nos cabelos, então até se poderia
dizer que era loira. Ela tinha olhos castanhos claros, quase
verdes. E essa voz melodiosa, ligeiramente aguda, mas
bastante sensual.
Tinha rosto redondo de boneca e eu até acharia que
era meio gordinha, mas ela usava um vestido colado no
corpo, embora sem decote e abaixo dos joelhos, que
mostravam que ela era consideravelmente magra.
Não sei porque eu notava essas coisas. Não fazia a
menor diferença para mim se ela era magra ou bonita. Até
porque eu não era lésbica, então estava pouco me lixando
para a aparência dela.
Mas eu notei pelo menos essas três coisas nela: era
bonita, inteligente e tinha muita fé. A voz dela, cara. Fazia
a gente parar para prestar atenção. Era um tom de voz
meigo e doce. Quase senti vontade de abraçá-la e dizer:
“Meu, você é muito fofa!” e ela tinha esse sorriso lindo.
Ela e Marcos tiveram uma discussão complicadíssima
envolvendo contraceptivos e atos intrinsecamente maus,
com base numa carta encíclica chamada “Veritatis
Splendor”, escrita por João Paulo II, e a posição do Papa
Paulo VI sobre isso.
Debateram respostas para o relativismo moral,
defendendo que a lei moral não varia entre diferentes
culturas e que aquilo que é bom e mau pode ser
identificado “nas profundezas do coração, como um grito
que clama pela verdade absoluta”. Contudo, apenas com o
auxílio do coração não podemos identificar plenamente o
que é o bem e o mal, e por isso é preciso seguir os
mandamentos.

35
Wanju Duli

– A divina Lei não é oposta à liberdade humana, mas,


nas palavras do papa, “protege e promove essa liberdade”
– disse Marcos – a consciência e a razão humana, por mais
que sejam um reflexo da sabedoria de Deus, não
substituem os ensinamentos das escrituras. Nós podemos
seguir nossa consciência e ser guiados pelo Espírito Santo,
mas é a Lei que tem a palavra final a respeito do certo e o
errado. Foi como disse o papa: “Fé e razão são as duas
asas com as quais o espírito humano se eleva”. Mas a fé
deve ser sempre a nossa resposta final.
Por que eles tinham a obsessão de usar aquelas
palavras poderosas?
Eles falavam de Deus, alma, céu, inferno, diabo, Juízo
Final com a maior naturalidade, como se todas aquelas
coisas fossem completamente reais.
Não pareciam estar fingindo. A fé deles tinham
chegado a esse ponto. Mas aquele fenômeno era
extraordinário: por que uma pessoa sã e extremamente
inteligente, como quase todos naquela sala pareciam ser,
iria acreditar em todas aquelas fantasias? Em troca de quê?
Em troca do paraíso? Não. Eles não pareciam muito
preocupados em ser salvos, mas em “buscar a verdade” ou
“desenvolver moralidade mesmo que trouxesse dor”. Eles
usavam termos como esses.
Será que tudo que escutei antes sobre cristianismo era
uma mentira? Bem, não tudo. Mas eu via diante dos meus
olhos algo completamente diferente do que imaginei.
Achei que eles fossem apenas cantar músicas religiosas
e falar do grande amor de Jesus, sem explicar nada.
De certa forma, eu os invejei. A fé deles era bonita. Eu
também queria poder acreditar profundamente assim em
alguma coisa. Mas no que eu acreditava?
Eu apenas seguia a onda. Buscava conforto e prazeres.
Acreditava que só existia meu corpo e minha mente e que
minha vida acabaria com o fim do meu corpo. Eu vivia
apenas me baseando nessas especulações.

36
A Ordem Terceira

E se não fosse verdade? E se houvesse mesmo aquele


tal de espírito, de transcendente? Mas o que era realmente
esse negócio?
Era pouco provável que Deus existisse, porque isso
não me parecia muito lógico. Mas, como Marcos falou, a
verdade não corresponde necessariamente às noções
humanas de lógica, simetria e beleza.
Podia ser que houvesse um Deus e que ele tivesse
criado um mundo cheio de sofrimento, para que as
pessoas aprendessem a ser boas com as outras. Mas se
Deus existia, por que não se mostrava mais claramente aos
seres humanos?
Lá pelo fim da reunião, perguntei isso para Marcos. E,
para a minha surpresa, ele tinha uma boa resposta.
– É dito que Deus mantém uma distância epistêmica
dos seres humanos para que eles possam desenvolver sua
fé mesmo sem possuir evidências claras de que Deus
existe. Essa situação é análoga à questão da liberdade
humana. É mais louvável se escolher fazer o bem quando
há escolha de fazer o bem e o mal do que fazer o bem
quando apenas o bem é a única possibilidade. Assim, é
mais louvável acreditar em Deus quando ele não se mostra
diretamente do que acreditar nele caso ele se mostrasse.
– Então é como um teste? – perguntei – Deus está nos
testando, para ver se fazemos o bem e acreditamos nele?
– Não é um teste, no sentido usual dessa palavra. Não
se trata de um teste malicioso. Mas, sim, é um teste no
sentido de que devemos aprender a importância da
confiança. É preciso que os seres humanos confiem uns
nos outros e na Boa Nova.
– Quem fizer o bem e não acreditar em Deus vai para
o inferno? – perguntei.
– Não, não – disse Marcos – seguir a lei moral interna
também é um grande mérito. Essa pessoa provavelmente
será salva. Por outro lado, uma pessoa que tenha fé mas
que não faça o bem também terá algum tipo de

37
Wanju Duli

recompensa. Não afirmo que vá para o céu, pois ninguém


sabe dessas coisas. Quem sabe é Deus. Mas a fé gera
mérito por si mesma, independente de nossa ação moral.
– Isso quer dizer que fazer o bem é mais importante
do que acreditar em Deus?
– É uma questão complicada – respondeu Marcos –
ambos são importantes. Só se pode fazer plenamente o
bem com fé. E só se pode ter uma grande fé quando se
faz o bem. Há muito disso no cristianismo: duas coisas
que se apoiam uma na outra para nos dar força, como as
escrituras e a Tradição, como a consciência e a divina Lei.
– E isso também depende de seu carisma – comentou
uma moça de voz grave – os franciscanos, por exemplo,
possuem o carisma de ajudar os outros dando pão a quem
tem fome e um cobertor a quem tem frio. Os carmelitas
possuem o carisma de se conectar diretamente com Deus
pela reza fervorosa e penitência. Os dominicanos o fazem
pelo estudo diligente e pelo terço. Há muitas vias.
Essa garota estava do lado de Melissa e se chamava
Genevieve. Era uma mulata com cabelos cheios e crespos.
Era alta e magra, parecia uma modelo. E sua voz grave era
poderosa.
Ela tinha muito estilo, usando roupas da moda, com
botas, colares e pulseiras. E, é claro: um crucifixo no
pescoço. Vários deles possuíam um pingente com uma
cruz. Quase como se fosse um símbolo especial da
“sociedade secreta” deles.
Não era mesmo legal ser parte de um clube exclusivo?
Embora o “clube” dos cristãos provavelmente fosse a
sociedade mais popular do mundo. O livro deles era o
mais lido de todos!
Sempre achei que isso acontecia porque as pessoas
eram ignorantes e supersticiosas. Mas quem sabe todas
essas pessoas estivessem realmente fazendo algo
interessante. Algo que eu, mesmo me considerando tão
inteligente, não entendia plenamente.

38
A Ordem Terceira

O que seria essa “fé” misteriosa que eles tinham? Será


que aquilo nascia de repente, como um presente caído dos
céus? Ou precisava ser construída, plantada, cultivada,
sustentada? Imaginei que o mais provável fosse essa
última opção.
Afinal, ao olhá-los de longe todos me pareciam iguais:
com uma grande fé. Mas claro que cada um devia ter um
nível diferente de fé e deviam estar trabalhando
arduamente para aumentar aquela fé ainda mais. Não era o
principal objetivo deles?
A reunião acabou de um jeito bem engraçado. Um
deles comentou que um famoso padre chamado Sérgio
daria uma missa numa igreja da “SSPX” seja lá o que for
isso.
Vários deles deram gritos de animação e saíram de lá
aos trancos e barrancos, como se o “Padre Sérgio” fosse
uma famosa estrela de cinema e eles fizessem questão de
sentar-se nas fileiras da frente para ouvi-lo.
Sim, aquele monte de jovens inteligentes e descolados
estavam literalmente correndo para assistir a uma missa
chata, extremamente monótona e repetitiva que ainda por
cima era em latim. Será que algo pode se tornar mais
chato que isso?
Marcos não foi junto com eles. Ele apenas riu e
balançou a cabeça.
– A SSPX anda muito popular ultimamente – ele falou
– especialmente entre os convertidos recentes, que
costumam ser ainda mais conservadores que a média.
– Por que os convertidos recentes são mais
conservadores? – perguntei.
– Porque essas pessoas geralmente são atraídas pelos
aspectos exóticos da Igreja – explicou Marcos – jovens
que buscam o catolicismo estão cansados do mundo
secular, individualista, materialista e utilitarista. Então eles
buscam algo que seja completamente diferente disso. É
verdade que a Igreja contemporânea adaptou-se um

39
Wanju Duli

pouco à modernidade, especialmente após as reformas do


Concílio Vaticano II. Mas não acho que isso tenha sido
uma coisa ruim. Eu me considero nem liberal e nem
conservador demais. A Igreja precisa se adaptar aos novos
tempos, mas mantendo sua essência.
Na minha visão, ele era conservador em demasia.
– O que é a SSPX? – perguntei, com medo de estar
fazendo uma pergunta óbvia.
– É uma ala mais conservadora da Igreja, que defende
que se mantenham as antigas missas em latim – respondeu
Marcos – até os sermões dos padres da SSPX se parecem
com sermões da Idade Média e são bem duros: fala-se
muito do inferno, dos demônios, dos pecados e castigos.
Os jovens de hoje não querem mais ouvir falar de um
Deus que é apenas todo bondade e todo amor. Porque no
fundo Deus também inspira temor. É o que falei antes:
uma religião muito “leve” jamais pode nos fazer penetrar
nas realidades da dor e da morte. Precisamos aceitar que
essas coisas existem.
– Tem gente que acha que a SSPX é conservadora
num sentido ruim – disse Melissa – os seus detratores
dizem que eles são contra a mulher, contra homossexuais
e contra as lutas em busca de igualdade para minorias. Isso
é uma grande bobagem! Como se a Igreja da Idade Média
fosse preconceituosa. Nossas maiores santas surgiram no
medievo. É idiotice achar que antigamente se tinha mais
preconceito. Hoje os nossos preconceitos são apenas
diferentes e às vezes nem enxergamos quando os temos.
Eu achava legal ver uma mulher defendendo a Igreja.
Era poderoso. Soava sincero. Principalmente uma mulher
que parecia ter estudado tanto o cristianismo quanto ela.
Eu confiava no que ela dizia.
Confiança. A palavra mágica. Ela estava apenas a um
passo do termo “fé”.
Aos poucos eu sentia a força das palavras. Eu entendi
porque os frequentadores das igrejas da SSPX queriam

40
A Ordem Terceira

ouvir falar do diabo e do inferno. Porque eles não tinham


medo de palavras e da verdade.
Se aquilo tudo fosse verdade, é claro. Eu não
acreditava completamente. Mas talvez eu quisesse que
fosse verdade.
Antes eu não desejava que Deus existisse, porque não
queria ter a minha liberdade arrancada. Mas achei que o
que Marcos falou sobre liberdade fez muito sentido: “A
divina Lei protege e promove essa liberdade”.
Eu até sentia vergonha por ver beleza em toda aquela
loucura.
Bem, o encontro havia terminado. Eles finalizaram
com uma oração: “Pai Nosso”. Até mesmo eu sabia
aquele treco de cor.
“Por que eu sei isso de cor? Porque todo mundo
sabe!”. Que coisa!
Era como se o cristianismo sempre estivesse debaixo
do nosso nariz por toda a nossa vida. Era algo como “a
verdade esteve bem na sua frente o tempo todo, mas eu
não quis abrir os olhos!”. Seria a maior viagem! Eu era
realmente burra por não ter percebido aquilo muito tempo
atrás, por causa de preconceitos bobos e injustificados.
Quando estava saindo da sala, Marcos sorriu para mim
e disse:
– Tchau, Joana. Obrigado por contribuir com o
debate. Foi muito divertido!
E ele disse aquilo sinceramente. Mesmo eu tendo feito
muitas perguntas idiotas, várias delas bem mal educadas.
Ele deu um largo sorriso com seus dentes brancos e
saiu de lá.
Eu já tinha percebido isso há um tempo: parecia que
pessoas religiosas demonstravam uma alegria meio boba,
que era tão feliz que parecia ingênua. Mas que,
estranhamente, era inevitavelmente sincera e nem um
pouco forçada.

41
Wanju Duli

Acho que eles se tornavam bobos alegres e não


paravam de sorrir para todos porque acreditavam em
Deus. Mas será que eu também queria me tornar uma
boba alegre? Eu tinha minhas dúvidas.
Eu estava considerando seriamente me tornar uma
boboca? Aquele pensamento se passou mesmo pela minha
cabeça? Acho que eu só senti inveja por estar de fora do
clubinho e não entender os termos que eles usavam.
Eu não sabia direito o que pensar sobre religiões
populares. Um pensamento preconceituoso e
extremamente elitista seria: “se a maior parte das pessoas
gosta dessa religião, não deve prestar”, mas não era
exatamente o contrário? Se tantos se encantavam com ela
e encontravam lá suas respostas devia haver algo mais
naquilo tudo. Algo que ia além de mera tradição e
costume.
Mas de repente outro pensamento cruzou a minha
mente: Marcos era o maior gato. Meu Deus, que homem!
Aquele sorriso era muito matador.
Para ser honesta, eu fiquei observando aquele cara o
tempo todo. Simplesmente não conseguia desviar os
olhos.
O pessoal o tratava como se ele tivesse mais
conhecimento do que todos ali. Tanto que foi Marcos
quem conduziu a discussão e a maior parte das dúvidas
eram tiradas com ele. Será que ele já era cristão há muito
tempo? Ou tinha lido mais livros que a maioria?
– Hã, com licença – chamei a garota loira – sabe me
dizer de que curso é o Marcos?
– Ele era da filosofia, mas já é formado – ela
respondeu, com o mesmo sorriso encantador, bobo,
ingênuo e honesto.
Será que todos eles tinham o mesmo sorriso? Um
“sorriso cristão”. Que besteira! Daqui a pouco eu
enxergaria um anjo pairando ao lado de cada um. Será que
eles acreditavam nisso também? Não duvidei.

42
A Ordem Terceira

Então Marcos era meu veterano. Que interessante!


– E você, é de que curso? – perguntei.
– História – ela respondeu – estou fazendo mestrado
em Idade Média.
– Nossa, que incrível!
E eu achava incrível mesmo. Eu a admirei pela
ousadia. Ela sorriu novamente.
Pelo que eu entendi, Marcos não ia fazer mestrado.
Achei um pouco estranho, pois uma das poucas opções
para os filósofos era a carreira acadêmica. Então não era
natural que ele fizesse mestrado e depois doutorado
visando ser professor universitário? Ou ele tinha planos de
dar aulas para o ensino médio?
Mas resolvi não perguntar nada daquilo. Melissa se
despediu e eu resolvi não segurá-la mais.
– Então? O que achou?
Eu levei o maior susto quando Thomas apareceu atrás
de mim e me perguntou isso. Eu até tinha esquecido da
existência dele.
– Ah... valeu a pena ir – falei.
– Eu percebi – ele disse – você não parava de fazer
perguntas.
– E você, por que não perguntou nada?
– Já vim nesses debates muitas vezes. Já tirei todas as
minhas dúvidas até agora, então por enquanto eu não
tinha nada para perguntar.
Eu, por outro lado, tinha dezenas de perguntas para
fazer. Mas resolvi que iria pesquisar na internet as coisas
mais óbvias, porque eu não queria fazer perguntas idiotas
demais e mostrar toda a minha ignorância. Afinal, eu
desconhecia até as coisas bem básicas.
Eu não era batizada. E nem crismada, é claro. Meus
pais não eram católicos ou cristãos. Eles meio que não
eram nada e não estavam nem aí para isso. A mesma coisa
com minha irmã Jéssica.

43
Wanju Duli

E a mesma coisa com minha melhor amiga Patrícia.


Pelo jeito o ateísmo e o agnosticismo estavam mesmo se
instalando na classe média! Pensando bem, a maior parte
das pessoas que eu conhecia não tinha religão nenhuma.
No máximo, eu conhecia um ou outro espírita ou
evangélico. Mas um católico? Aquilo estava se tornando
cada vez mais raro. Eles eram como bichos exóticos entre
a classe média e a classe média alta.
Contei tudo sobre o debate cristão para Patrícia
quando cheguei em casa. Engraçado que, apesar de
estudarmos na mesma universidade, nós acabávamos nos
falando mais pela internet. Nossos intervalos entre as
aulas nunca coincidiam. E nenhuma de nós tinha
paciência para ficar esperando a outra por horas quando
não tínhamos mais aulas naquele dia.
Eu sabia que ela não estava interessada em nada que eu
disse sobre o cristianismo e as conversas que rolaram.
Depois de eu contar tudo, ela só escutou uma coisa:

Patrícia: Então você tá curtindo esse tal de Marcos,


hein? Ele é bonito mesmo?
Joana: Lindo! E é inteligente.
Patrícia: Eu não sei se saber sobre cristianismo é sinal
de inteligência.
Joana: Pelo menos ele sabe filosofia.
Patrícia: Cuidado, hein? Se andar por muito tempo
com esses rapazes é capaz de eles te converterem.
Joana: A sua família tem religião?
Patrícia: Minha mãe gosta um pouco de religiões
indianas como hinduísmo. Lembra que ela faz yoga, né?
Joana: Lembro sim.
Patrícia: Mas ela não acredita nos Deuses deles e nem
nada assim, ou pelo menos é o que eu acho. Ela só faz
yoga e meditação e vez ou outra lê um desses livros.
Joana: E seu pai?

44
A Ordem Terceira

Patrícia: Ele é espírita, mas ele só lê livros, não


frequenta regularmente nenhum centro espírita. Então
acho que tanto minha mãe quanto meu pai são “religiosos
caseiros”. Eles só leem sobre, pesquisam coisas na
internet, mas não fazem questão de conhecer
pessoalmente outros religiosos.
Joana: É reflexo do individualismo da nossa época.
Patrícia: Você acha? Eu acho que é só preguiça de sair
de casa. Meus pais pararam até de caminhar ou de ir para a
academia. Você acha que é porque eles não acreditam no
Deus deles?
Joana: Deve ter algum Deus pagão que rege os
esportes. E o teu irmão, é alguma coisa?
Patrícia: Ele não é nada, nem no céu e nem na terra.
Ele não tá nem aí pra nada, é um idiota!
Joana: Coitado, ele só tem vinte anos. Quando eu tinha
a idade dele estava totalmente perdida. Não que agora eu
tenha me encontrado, mas antigamente eu não fazia a
menor ideia do que eu queria fazer da vida. Cada pessoa
merece um tempo para pensar, para o autoconhecimento.
Patrícia: Autoconhecimento? Ele só fica em casa
jogando RPG online e não trabalha! E o pior é que ele
gasta dinheiro real nos jogos. Isso é autoconhecimento?
Joana: Pode ser uma parte dele. Por que não? Você
acha que não há sabedoria em jogos?
Patrícia: Tá, deixa pra lá. Mas por que me perguntou
sobre religião?
Joana: Você é ateísta, né?
Patrícia: Eu não sou nada. Simplesmente não me
importo. Não penso nisso.
Joana: Eu tava pensando. Eu também nunca me
importei com religião, provavelmente porque meus pais
não se importam. Talvez seja quase a mesma coisa com
você.
Patrícia: É, pode ser. Mas e daí?

45
Wanju Duli

Joana: E daí que parece que os pais do meu colega, o


Thomas, são católicos. Por isso ele é católico.
Patrícia: Sim, fizeram lavagem cerebral nele cedo.
Grande novidade.
Joana: Aí que está. Eu também pensava isso. Mas não
é a mesma coisa com a gente? Pelo simples fato de ignorar
a questão religiosa na nossa educação, nós sofremos a
“lavagem cerebral” de não se importar com esse assunto
ou ignorá-lo. Assim, ficamos com uma ideia terrível sobre
religiões.
Patrícia: Hmmm... não sei se é bem a mesma coisa.
Joana: Talvez seja. Tudo isso tá me deixando meio
confusa ultimamente. Acreditar em Deus é uma crença.
Mas acreditar na não existência de Deus também não é
uma crença?
Patrícia: Digamos que seja. Qual é o seu ponto?
Joana: O meu ponto é que talvez eu já tenha feito uma
escolha religiosa sem saber. A escolha de não me importar
e de não acreditar em nada. Mas escolher isso sem nem
saber se escolhi ou porque escolhi não é ser uma fanática
religiosa que não conhece nada sobre sua própria “não
religião”?
Patrícia: Agora você está indo longe demais.
Joana: Não estou. Hoje no debate eu me dei conta de
como sou intolerante. De como, apesar de achar que eu
respeitava outras formas de crença, eu sempre
secretamente achei que os cristãos eram mais ignorantes e
burros que eu. Mas não foi isso que eu vi hoje.
Patrícia: Então você teve um super insight sobre a
realidade. Mesmo que eu não concorde, te dou os
parabéns. E o que vai fazer agora?
Joana: Nada precipitado. Mas eu queria ler mais sobre
isso.
Patrícia: Por que não vai assistir a uma missa? Quando
descobrir como é chato, vai desistir dessa ideia rapidinho.

46
A Ordem Terceira

Além do mais, você consegue fingir que está rezando para


um ser imaginário?

Aqueles seriam desafios muito grandes. Eu não tinha


intenção de ir assim tão longe.
Eu não queria fazer coisas como ir numa missa, rezar
ou ler a Bíblia. Esses me pareciam atos muito monótonos
e primitivos.
Como eu apreciava filosofia, achava que a forma mais
efetiva de eu entender o cristianismo era lendo os
teólogos. Talvez eu encontrasse bons argumentos lendo
Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino.
Naquele mesmo dia baixei um livro de Santo
Agostinho da internet, mas achei tudo muito chato. Era
um saco quando ele começava a louvar a Deus e ficar
enrolando. Como é que aquela gente tinha paciência?
Então baixei um livro de São Tomás de Aquino, mas
me arrependi. Ler aquilo era mais assustador que ler Kant,
Hegel ou Heidegger. O cara era um monstro, mas num
sentido ruim.
Ele não apenas falava difícil, mas fazia questão de ser
profundamente entediante. Eu não conseguia prender
minha atenção até o fim do parágrafo. No final, eu já não
entendia mais do que ele estava falando e descobria que
nunca tive interesse no que ele dizia, para início de
conversa.
Se os brilhantes teológos da Igreja já me entediavam
tanto, imagine ir para uma missa e ver aquela gente
cantando desafinado? Falando de Cristo e de Jesus... não,
aquilo definitivamente não era para mim!
Será que eu era mesmo elitista? Eu não gostava do
cristianismo do povão. Que arrogante, que merda, como
eu me odiava!
Tomei coragem e abri uma Bíblia que tinha lá em casa,
que achei num armário velho. Acho que era da minha vó.

47
Wanju Duli

O Velho Testamento parecia ser um pé no saco, um pé


em todo o corpo. O Novo Testamento já não era tão
ruim, mas por que eu teria interesse em ler aquelas
histórias antigas sobre amor, sobre fé e blá, blá, blá? Por
que eles faziam questão de repetir mil vezes as mesmas
coisas de formas diferentes?
Tentar rezar também foi uma tragédia. Eu me achei
extremamente idiota fazendo aquilo, bastante embaraçada.
Para quem eu estava rezando? Para meu amigo
imaginário?
Eu me considerava agnóstica, mas naquele momento
fiquei surpresa ao descobrir minhas fortes inclinações
ateístas.
Daquele jeito não ia dar certo. Mas por que eu
precisava descobrir tudo sozinha? Meu colega podia me
dar umas dicas. Ou qualquer outra daquelas pessoas do
grupinho de jovens intelectuais descolados.
Quando Thomas defendeu Deus na aula seguinte de
metafísica, eu não senti raiva. Senti inveja da fé dele, como
se ele soubesse um segredo profundo o qual eu não tinha
acesso.
Ele tinha uma aula depois daquela, mas resolvi
incomodá-lo mesmo assim. Profundamente embaraçada,
confessei que eu estava um pouquinho interessada em
cristianismo. Até mesmo confidenciei a ele minhas
tentativas frustradas de ler os grandes teólogos e a Bíblia.
Ele não deu nenhum sorriso de triunfo. Apenas abriu
um sorriso de alegria, como se pensasse: “Que máximo
que você está interessada!”.
– Eu posso te ajudar, sem dúvidas! Que tal irmos
juntos na missa esse domingo?
Droga. Eu queria tudo, menos aquilo.
Mas eu ainda não sabia que naquela missa eu teria mais
surpresas do que eu esperava.

48
A Ordem Terceira

Capítulo 2: As Missas

Era meio frustrante ter que ir lá contra a minha


vontade, quando eu ainda não me julgava preparada. Mas
talvez eu nunca estivesse preparada.
Thomas me levou para uma igreja bem específica, que
era até meio longe. Perguntei-me porque precisava ser
aquela.
O padre, com suas vestes sacerdotais, estava
cumprimentando cada um que entrava na porta da igreja.
Parecia conhecer quase todos os seus frequentadores, pois
chamava cada um pelo nome. Achei um gesto bem
simpático.
– E aí, Marcos! Tudo em cima?
– Oi Thomas! Resolveu vir me ver hoje, cara?
– Eu não vim te ver, vim ver o Senhor – brincou
Thomas – eu vim trazer a Joana. Ela nunca assistiu a uma
missa.
– Sinto-me honrado – disse Marcos – o primeiro
sermão que você escutará será o meu.
Ainda levei um tempo para processar a informação.
O cara negro, jovem e bonito que havia conduzido o
debate no outro dia era padre? Que raios de idade ele
tinha?
Disfarcei minha surpresa e sorri para Marcos. Como se
eu não estivesse extremamente furiosa ao descobrir que o
cara por quem eu tive uma quedinha não estava
disponível.
Sério, eu achei aquilo uma merda. Era muito legal que
Marcos tivesse todo aquele conhecimento e tal. Achey
sexy. Mas não era nem um pouco sexy ele ser padre.
Aquilo era broxante.
Achei que eu iria passar o resto da missa de mau
humor.
49
Wanju Duli

– Veja como é linda essa igreja! – exclamou Thomas,


com animação – veja só os vitrais!
Linda? Eu achei apenas uma igreja normal. Não sei
porque aquelas pessoas se animavam com qualquer
coisinha. Havia praticamente uma igreja em cada esquina
no Brasil e não achei que aquela devia ser uma das mais
bonitas.
Foi então que ouvi a voz de Patrícia na minha mente,
dizendo: “Você está fazendo aquilo de novo, Joana. Só
vendo o lado ruim das coisas”. Mas qual era o lado bom
de estar numa igreja, afinal? Para completar, o assento dos
bancos era duro e o Thomas quis sentar lá na frente.
– Por que temos que sentar tão na frente? Todos vão
ficar me olhando. Que vergonha! – sussurrei para
Thomas.
– O mundo não gira ao seu redor, Joana – disse
Thomas – ninguém vai ficar te olhando. As pessoas
vieram aqui para ver Deus.
– Mas eu não sei nada. Vou fazer tudo errado. As
pessoas vão me olhar e saber que essa é minha primeira
missa e sou uma iniciante.
– Isso não é verdade. Fique tranquila. É só me imitar.
Eu te mostro o que você precisa fazer a cada momento.
Ele me entregou um papel feio com rezas.
– Escuta... qual é a idade do Marcos? – perguntei.
– Ele tem 25, quase 26 – respondeu Thomas – ele se
tornou padre recentemente.
O desgraçado tinha a minha idade!
– Eu não entendo isso direito – confessei – ele é
formado em filosofia, né?
– Sim, normalmente é esse um dos requisitos para ser
padre. Ele se formou em teologia também.
– Deve ser chato pra caramba ser padre – comentei –
ter que ter horário para dar a missa todo dia. Ter que
repetir o mesmo ritual mil vezes, cuidar de assuntos
administrativos, lidar com o povo...

50
A Ordem Terceira

– “Lidar com o povo”? – Marcos sorriu – eu não


esperava que você fosse uma pessoa assim, Joana. Estou
chocado.
A tradução do que eu tinha dito era praticamente: “eu
não gosto de pobre”. Senti vergonha de mim mesma.
Aquela igreja ficava quase fora da cidade e numa área
mais humilde. A maioria dos seus frequentadores eram
senhores e senhoras de idade, muitos deles se vestindo de
forma simples.
Mas eles sorriam, se cumprimentavam. Até sorriram
para mim, sem nem me conhecerem. Provavelmente eram
pessoas muito melhores do que eu. Senti-me arrependida
por ter pensamentos tão preconceituosos. E depois eu
achava que os preconceituosos eram os religiosos.
– A Igreja católica tem uma história muito forte de
servir os mais pobres e isso vem desde a época do
cristianismo primitivo – explicou Thomas – desde a Roma
Antiga os mais humildes se convertiam ao cristianismo,
pois diferente de muitas outras religiões da época, os
cristãos aceitavam a todos igualmente, independente da
classe social. Foi verdadeiramente uma inovação para a
época. E até hoje os cristãos se mantém fiéis a esse
princípio.
Será que eu queria fazer parte de uma “religião para
pobres”? Os jovens cristãos universitários que eu conheci
pareciam ser, em sua maioria, de classe média. E,
pensando bem, foi esse aspecto que atraiu inicialmente
meu interesse: saber que jovens da minha idade, ou até
mais novos, se interessavam pelo cristianismo. Jovens da
minha classe social, que eram inteligentes e cursavam o
ensino superior.
Ao olhar ao meu redor eu não via nada daquilo. Eu
praticamente não via jovens. A maioria das pessoas eram
mulheres idosas que, pelas roupas que usavam, deviam ser
de classe média baixa.

51
Wanju Duli

Eu nunca soube que eu guardava tais pensamentos


terríveis dentro de mim.
Depois de um tempo, Marcos se aproximou de
Thomas outra vez e falou uma coisa totalmente
irrelevante:
– Foi dois a zero pro timão ontem, né, velho.
– Bah! Que pernas de pau! – exclamou Thomas.
E, enquanto ainda faltavam alguns minutos para a
missa começar, Marcos ficou falando sobre o jogo de
futebol. Os dois pareciam ser verdadeiros entendidos de
futebol e faziam comentários detalhados. Deviam saber o
nome de todos os jogadores. Não pareciam perder um só
jogo.
– Peraí que eu tenho que ir lá – disse Marcos – depois
a gente continua.
– Falou.
“Que diabos?” pensei.
Uns dois minutos depois, lá estava Marcos entrando
pela porta da igreja atrás de uma comitiva de leigos
segurando uma cruz e uma Bíblia. E todos ao redor
cantavam.
Achei que seria uma canção totalmente brega e
desafinada. Mas até que os frequentadores daquela igreja
eram um pouco afinadinhos. Imaginei que não devia ser
assim sempre.
Além do mais, havia uma mulher lá na frente, que
devia ter em torno de quarenta anos, que cantava muito
bem. Deve ter sido por isso que foi chamada lá na frente
para cantar e falar ao microfone.
A missa foi praticamente uma alternância entre leituras
da Bíblia e cantorias. Não foi tão ruim quanto eu
imaginava.
Quando Marcos iniciou seu sermão, prestei bastante
atenção.
– Irmãos e irmãs – ele começou desse jeito – o que nos
ensina a parábola do filho pródigo e a parábola dos

52
A Ordem Terceira

trabalhadores na vinha, contidas nos evangelhos


sinópticos? No fundo, as duas possuem o mesmo
ensinamento moral: Deus não favorece ninguém, somos
todos iguais e no final todos receberemos as mesmas
recompensas.
Parecia que Marcos havia se transformado em outra
pessoa enquanto dava o sermão lá na frente. Como se
estivesse interpretando seu papel de padre num teatro.
Mas aquilo não me soou falso. Enquanto estava entre
amigos, ele falava informalmente. Mas quando estava lá na
frente, ele provavelmente queria ter uma postura “digna
de Deus”.
Mais cedo, essas duas parábolas tinham sido lidas na
Bíblia. Talvez eu já tivesse escutado aquilo antes. Eu não
tinha certeza.
Na parábola do filho pródigo, um pai tinha dois filhos.
O filho mais jovem resolve pedir sua parte da herança e
sai de casa para gastar tudo com bebidas e mulheres.
Depois fica pobre, se arrepende e retorna. O pai o recebe
de braços abertos. O filho mais velho, que sempre morou
com o pai e o serviu fielmente, acha injusto que o pai dê
aquela festa com a volta do filho mais jovem, se o mais
velho que era mais fiel nunca recebeu festa nenhuma.
Na parábola dos trabalhadores na vinha, o patrão
recebe vários trabalhadores para trabalhar na vinha em
diferentes horários do dia. No final, dá o mesmo salário a
todos, mesmo que alguns tenham trabalhado longas horas
e outros apenas uma hora.
Quando ouvi essas histórias eu não entendi. Achei
realmente injusto. Não era justo que o filho mais jovem
fosse punido pela besteira que fez, para aprender? E não
era justo que aquele que trabalhou mais recebesse um
salário maior?
Mas Marcos explicou o sentido daquelas parábolas:
– A justiça de Deus não é a mesma justiça dos
homens. Deus enxerga mais longe. Está disposto a

53
Wanju Duli

perdoar aqueles que cometem erros e sinceramente se


arrependem. Como um pai, sempre receberá de volta o
filho pecador de braços abertos. É como o pastor que
possui um rebanho de muitas ovelhas. Ele já se sente
tranquilo em relação às ovelhas que já estão bem
encaminhadas e que ele sabe onde se encontram. Mas se
apenas uma das ovelhas se perde, ele deixará as demais
ovelhas em local seguro e partirá para salvar aquela única
ovelha que se perdeu.
Resumindo: nós, que estávamos lá na igreja, éramos as
ovelhas de Jesus. Não gostei muito de ser chamada de
ovelha. Assim parecia que eu não tinha cérebro, que eu
apenas seguia meu pastor sem questionar.
Se bem que aquele pastor era onisciente. Partindo
desse pressuposto, a besteira seria exatamente não segui-lo
e confiar apenas na minha visão limitada do mundo,
certo?
Isso se aquele tal pastor existisse mesmo. Mas todos
que estavam lá pareciam acreditar nisso. E por que eles
acreditavam? O que eles sabiam que eu não sabia?
– No fim dos tempos, na ocasião do Juízo Final, todos
seremos salvos – explicou Marcos – não importa se uma
pessoa foi cristã por oitenta anos e sempre frequentou a
missa todos os domingos ou se outra pessoa foi um
pecador pela vida inteira e somente se arrependeu no
último segundo da vida. Essas duas pessoas serão salvas
igualmente.
Aquilo era difícil de acreditar, mas me deu esperanças.
Eu nunca me importei com religião pelos 25 anos em
que vivi. Se eu só começasse a me importar agora,
teologicamente falando eu não estaria mais “atrás” que
aqueles que foram cristãos pela vida inteira.
Houve um momento da missa em que tocou um sino e
todos se ajoelharam. Parecia meio importante.
Também houve o momento de passar a caixinha de
doações. Eu logo pensei: “Ahá! Lá estão eles querendo

54
A Ordem Terceira

arrancar dinheiro das pessoas!” era o momento ideal, pois


os fieis se sentiriam emocionalmente tocadas pelo
discurso e estariam dispostas a doar bastante dinheiro para
a igreja.
Mas não era uma doação obrigatória. Embora eu tenha
visto algumas pessoas colocando notas de dez reais, outras
colocavam apenas moedinhas. Cada um dava o que podia
e também havia alguns que optavam por não doar naquele
dia. Era um direito que cada um tinha.
Quando todos começaram a se levantar para ir lá na
frente eu me perguntei: “O que está acontecendo?”.
Thomas também se levantou. Eu o imitei, mas ele me
disse:
– Nós vamos receber a comunhão. Só quem é batizado
pode receber.
Ah, então estava começando o momento “clubinho
secreto e exclusivo dos iniciados”. Sem escolha, me sentei
novamente.
Cada um recebeu uma bolachinha. Não vi nada de
especial nisso.
Quando Thomas voltou, ajoelhou-se ao meu lado e
fechou os olhos, em oração. Eu apenas aguardei que ele se
sentasse outra vez. Mas não pude fazer mais perguntas,
pois a missa foi retomada.
No entanto, ela em breve terminou, de repente. E as
pessoas começaram a sair.
Fiquei um pouco confusa. No começo parecia que a
missa não ia acabar nunca. Mas de repente, terminou!
Exatamente uma hora tinha se passado. Como eles
conseguiam ser tão pontuais? Devia ser prática. E olha
que Marcos era um padre novato.
– O que foi aquela bolachinha que você comeu? –
perguntei.
– Bolachinha? – perguntou Thomas, sem acreditar – é
o corpo de Cristo!
– Literalmente?

55
Wanju Duli

– Literalmente. É engraçado que você saiba coisas


sobre os santos da Igreja e sobre outros aspectos
teológicos mas não saiba o que é a comunhão. Bem típico
de uma filósofa!
Senti-me orgulhosa por ele ter me chamado de
“filósofa”, sendo que eu estava apenas no segundo
semestre e visando sair do curso.
Mas no fundo a intenção dele foi me ofender, dizendo
que eu só lia livros e não conhecia práticas tão simples da
Igreja católica.
Aproveitei o momento para tirar outras dúvidas.
– Se Deus vai salvar todos do mesmo jeito, então por
que não deixar de ir para a igreja, ir curtir os prazeres da
vida e só voltar daqui algumas décadas e se arrepender? –
perguntei.
– Esse é um sofisma preguiçoso – disse Thomas –
muitas pessoas estão pecando por ignorância. Mas quem
conhece qual é o verdadeiro caminho e ainda assim opta
por não segui-lo está cometendo um pecado ainda mais
grave.
– Então se eu optar por não ser cristã agora que vocês
me mostraram tudo isso, será um pecado ainda pior do
que se eu estivesse pecando sem saber! – exclamei,
fingindo estar chocada – por culpa de vocês, agora serei
punida mais duramente toda vez que me entregar aos
prazeres da vida.
– Não é bem assim – falou Thomas – primeiro porque
ter prazeres não é errado. Deus criou esse mundo e quis
que suas criações desfrutassem dos prazeres simples da
vida. Mas desfrutar de prazeres não significa se afogar
neles. Entende o que quero dizer?
– Mais ou menos.
– Mas a maior parte de nós não vem para a missa por
obrigação – explicou Thomas – nós fazemos isso porque
gostamos. É uma grande alegria louvar Cristo. Muitos
cristãos frequentam a missa várias vezes por semana e

56
A Ordem Terceira

fazem parte de diferentes grupos da Igreja. Porque estão


alegres em servir ao Senhor! E não porque possuem o
dever de servi-lo.
– Isso é exatamente o oposto do que você me disse
antes – falei – você tinha me dito que a religião não serve
para nos fazer sentir bem e sim para cumprirmos o nosso
dever e buscar a verdade.
– Exato. Mas quando o cristão encontra a verdade e
contempla a magnificência de seu dever, ele passa a sentir
o amor puro de Deus. Então ele não faz mais isso por
amor a si mesmo ou por apego às sensações que sente.
Faz por amor ao Senhor.
Isso era meio complicado. Mas, por enquanto, fiquei
satisfeita com a explicação.
– Tudo isso é muito bonito e até faz sentido, mas só
tem um detalhe – observei – preciso me certificar de que
Deus existe. Se não existir, qual é o sentido disso tudo?
– Você não acha que o imperativo categórico de Kant
faz sentido?
– Ele faz – responndi – mas até mesmo ele diz que
sem as noções de Deus, alma e liberdade sua teoria cai por
terra.
– Eu acredito que o cumprimento do dever moral,
mesmo sem o aspecto transcendente, já seria motivo
suficiente para fazermos tudo o que fazemos. Você não
acha?
– Pensando bem, sim.
– Então, embora o que eu vou falar seja uma heresia,
mesmo sem Deus e Jesus, ainda assim o cristianismo faz
muito sentido e é impressionante – disse Thomas – mas é
evidente que possui ainda mais força ao considerarmos o
seu espírito, que é um objetivo muito mais grandioso que
o aspecto moral.
Entendi o que Thomas disse quando argumentou que
gostava de conversar com o pessoal da filosofia. Eu

57
Wanju Duli

também me sentia muito satisfeita de ter uma conversa


inteligente como aquela.
Isso era algo que eu entendia. Kant defendia que o
cumprimento do dever moral se encontrava acima das
nossas noções de felicidade e liberdade. Da mesma forma,
havia algo acima de nós mesmos, que era Deus, no
cristianismo. E isso era até mesmo mais importante que a
nossa felicidade e liberdade individual, ou a soma da
felicidade e liberdade conjunta de toda a humanidade.
Traduzindo: a ética altruísta se encontrava acima da
ética do utilitarismo. Não devíamos fazer a coisa certa
porque isso geraria mais felicidade para mim, ou para um
maior número de pessoas. Fazer a coisa certa deve ser
feita simplesmente porque é nosso dever, e não porque
isso vai nos fazer felizes. A coisa certa deve ser feita
mesmo que isso nos gere infelicidade, ou gere infelicidade
para outras pessoas.
Era um ensinamento duro, complexo, poderoso.
Niilista, diriam alguns. Mas quem o chamava de niilista
não acreditava na existência do espírito. Aquele
pensamento se tornava muito mais forte com a presença
do transcendente.
Eu entendia tudo isso filosoficamente. Mas ainda não
sentia vontade de seguir o cristianismo. Eu não podia
segui-lo simplesmente num nível intelectual?
– Assim você será apenas uma estudiosa do
cristianismo e não uma cristã – disse Thomas – se é o que
você quer, vá em frente. Mas eu acredito que só é possível
compreender plenamente nossa religião praticando-a e
vivendo-a.
Talvez.
Até queria falar mais com Marcos para tirar umas
dúvidas, mas vi que ele estava meio ocupado. Então eu e o
Thomas saímos de lá.
Quando peguei o ônibus com ele ainda estava
pensativa.

58
A Ordem Terceira

– Sua religião é legal – falei.


– Obrigado.
– Mas dá muito trabalho.
– Não dá trabalho. É um grande esforço ir à missa a
cada domingo?
– Tem também isso de rezar e ler a Bíblia. Como eu
disse, tudo muito trabalhoso. A Bíblia é chata. Rezar é
estranho.
– Eu acho muito mais estranho não rezar do que rezar.
Além do mais, a Bíblia é um livro incrível, cheio de
ensinamentos. Não precisa ler os livros na ordem. Leia um
pouco do Novo Testamento. E leia os Salmos. Comece
com o mais simples.
Eu não estava muito animada para fazer isso.
Chegando em casa, contei para Patrícia o que me
aconteceu.

Patrícia: Então o cara que você curtiu era padre? Que


azar! Esquece ele, Joana.
Joana: Já esqueci.
Patrícia: Pare de andar com esses cristãos, pois mesmo
que os caras não sejam padres vão querer transar só
depois de casar. Você vai aguentar isso?
Joana: Acho que não.
Patrícia: Que tal sairmos juntas para ir ao cinema?
Estou com a tarde livre. Assim você tira essas bobagens
da cabeça.

Achei uma ótima ideia. Mas chegando lá no cinema


havia um filme polonês chamado “Agnus Dei” que tive
curiosidade de ver.
– Eu não quero ver isso! – protestou Patrícia.
Quase brigamos por causa da escolha do filme. Por
fim, Patrícia cedeu, ainda irritada:
– Se for ruim, eu vou te matar.
E, infelizmente, o filme era ruim.

59
Wanju Duli

Na verdade, aconteceu o oposto do que eu esperava.


Patrícia definiu o filme como “legalzinho”, mas eu estava
revoltada:
– Até filmes religiosos hoje em dia são feitos da
perspectiva do secularismo!
– O que é secularismo? – perguntou Patrícia.
– Secularismo vem de “século”, das coisas do mundo –
expliquei.
O filme contava uma história real sobre freiras que
foram estupradas por soldados soviéticos no final da
Segunda Guerra. Uma enfermeira ateísta da Cruz
Vermelha veio para ajudá-las.
No entanto, no final prevalecia as ideias da enfermeira
ateísta sobre os princípios religiosos. Por que o
estrangeiro ateísta e libertário precisava “salvar” os
“religiosos atrasados” de seus próprios princípios, como
se as freiras fossem ignorantes?
– Os ocidentais criticam o homem branco que impõe o
cristianismo nas tribos indígenas – falei – mas quando é
um ocidental ateísta que tenta impor sua visão de mundo
sobre os cristãos de hoje, está tudo certo! Ele está
“libertando” esses religiosos atrasados de suas crenças
erradas!
– Joana, você está escutando a si mesma? Que
absurdo! O filme nem foi tão ruim assim. Não me diga
que está dando esse discurso só porque não gostou do
filme?
Não, não era por isso. Era porque eu estava cada vez
mais indignada com os nossos valores e nossa hipocrisia.
Nós ocidentais nos julgávamos espertos e superiores por
termos nos libertado dos “preconceitos” da religião.
Até me senti culpada por eu mesma ainda manter
alguns desses preconceitos. Por isso naquele momento eu
me decidi: eu iria me esforçar para realmente conhecer o
cristianismo. Iria não somente ler, mas praticá-lo.

60
A Ordem Terceira

Procurei Thomas no dia seguinte e expressei minha


indignação em relação ao filme.
– Eu ainda não vi esse filme – ele me falou – mas você
está certa sobre o que falou das tribos indígenas. É dito
que os jesuítas “impunham” suas crenças, mas aqui no
Brasil muitos deles se esforçaram para conhecer as crenças
dos indígenas e suas culturas. Inclusive, muitos
contribuíram para montar gramáticas de tupi.
Era como se todo o mundo que eu conhecia fosse uma
mentira. Como se todas as minhas aulas de história
fossem uma grande enganação, sempre deturpando a
Idade Média e as atividades missionárias dos padres.
E se eu já estava indignada com as aulas de história que
tive no ensino médio, estava muito mais aborrecida com
minhas aulas de filosofia. No próximo semestre eu teria
“história da filosofia medieval”. Eu estava ansiosíssima
para ver o quanto meus colegas iriam desprezar os
pensamentos dos filósofos dessa época, considerando-os
uma filosofia “contaminada” pelo cristianismo. Eu já tinha
ouvido boatos de que era isso que acontecia, mas eu
precisava presenciar com meus próprios olhos.
Isso significava que eu não ia poder abandonar o curso
no final do ano. Droga! Mas então prometi a mim mesma
que cursaria apenas mais o terceiro semestre. Depois sairia
e tomaria outro rumo.
Chegando em casa, peguei a Bíblia da minha vó outra
vez. Levei-a para meu quarto. Tentei ler algumas páginas.
Era difícil me forçar a gostar daquilo. Eu queria que
fosse um processo natural.
Foi então que aos poucos eu descobri o que realmente
acontecia na prática.
O grupo da minha universidade era exceção. Lá eles
tinham um real interesse em debater filosofia e teologia
cristã. Mas aqueles debates não eram tão comuns assim.
No máximo, os cristãos ouviam os sermões do padre
aos domingos. Quase não abriam a Bíblia.

61
Wanju Duli

Eu descobri isso quando fui assistir pela primeira vez a


missa da minha igreja local, no domingo seguinte. O padre
de lá era legal, era mais velho e mais experiente. E o
pessoal que frequentava aquela igreja já tinha um pouco
mais de poder aquisitivo. Eu via com frequência pessoas
colocando notas de 50 reais na caixinha de doações.
Uma garota adolescente veio falar comigo, me
convidando para participar de um negócio chamado
“CLJ” que parecia ser um tipo de encontro para jovens
cristãos. Eu disse a ela que já tinha 25 anos, mas ela disse
que se eu quisesse podia participar mesmo assim.
Fui em apenas um desses encontros e desejei não ter
ido. Quase todos eram adolescentes e só ficavam gritando
e pulando. Eu achei que eles iriam se reunir para um
estudo sério da Bíblia e debates teológicos. Grande ilusão.
Mas eu não os culpei. Eles eram só adolescentes, então
ainda tinham tempo para brincar antes de optar por, um
dia, realmente conhecer a fundo a religião deles.
Não que só fosse possível conhecer o cristianismo
pelo estudo da Bíblia, mas pelo que ouvi falar parecia ser
um bom lugar para começar. Se todo o cristianismo se
apoiava num misto dos ensinamentos da Bíblia e da
Tradição, como disse Marcos, era certamente tolice
desconhecer os escritos dos evangelhos.
Por isso, criei uma rotina para mim. Toda noite eu
passei a ler cinco páginas da Bíblia. Era tão chato que
apenas ler uma página já me deixava profundamente
entediada, mas eu me esforcei. Em poucos dias, já tinha
avançado bastante e aprendido várias coisas.
E é claro que quanto mais eu lia mais dúvidas surgiam.
Mas não encarei as dúvidas de modo ruim. Eram um sinal
de que eu estava aprendendo alguma coisa.
Não demorou muito para ter mais um encontro da
sociedade cristã da minha universidade. Descobri que
aqueles encontros aconteciam uma vez por mês. Isto é,
alguns deles se encontravam regularmente uma vez por

62
A Ordem Terceira

semana para atividades diversas, mas os debates teológicos


eram somente mensais.
Quem abriu a porta da sala quando entrei foi o mesmo
rapaz da outra vez.
– Oi Joana. Que bom que voltou!
Descobri que o nome dele era Diego. Ele era um
estudante de antropologia.
Fiquei um pouquinho feliz por ele lembrar o meu
nome.
E lá estava Marcos, que iria conduzir a discussão outra
vez. Ele estava conversando com outro cara sobre uma
passagem bíblica.
Eu bocejei. Tinha acordado muito cedo no domingo
para ir à missa. E acabei indo dormir tarde, como sempre.
Mas mesmo que eu estivesse frequentando a missa
dominical e lendo a Bíblia todo dia, eu ainda não tinha
decidido se eu queria mesmo ser cristã.
Eu achava que aquela era uma decisão séria. Uma coisa
era eu testar rezar para Deus antes de dormir. Outra coisa
era solicitar um batismo formal.
Afinal, mesmo eu não acreditando tanto assim em
Deus e alma, eu achava que o batismo era um ritual sério.
Por que outra razão alguns ateus não gostavam de dizer
que foram batizados quando crianças? Porque até eles, no
fundo, reconheciam que aquele era um ritual no mínimo
sério.
Era uma cerimônia espiritual. Eu iria mostrar meu
espírito para Deus.
Acabamos falando um pouco sobre isso no debate
daquele dia: sobre o significado dos sacramentos.
– Os sacramentos da iniciação cristã são batismo,
crisma e eucaristia – explicou Marcos – a crisma também
pode ser chamada de “confirmação”, já que é a
confirmação do batismo. E a eucaristia também é
chamada de “comunhão”, que é a ingestão da hóstia
consagrada, na qual se comunga com o corpo de Cristo.

63
Wanju Duli

– Por que os cristãos batizam os bebês? – perguntei –


eles ainda não têm condições de escolher se querem ser
cristãos. Então não seria melhor batizá-los mais tarde,
quando eles já possuem condição de fazer essa escolha?
– A Igreja reconhece benefícios no batismo das
crianças em sua primeira infância, pois eles recebem a
proteção de Nosso Senhor – explicou Marcos – esse é um
costume antigo, de épocas passadas em que era muito
comum que os bebês morressem pouco depois de nascer.
Então, para salvá-los, instituiu-se o batismo das crianças.
Essa regra perdura até hoje. Mas nada impede que uma
pessoa receba o batismo cristão em qualquer idade. O
próprio Santo Agostinho só batizou-se com 33 anos. Sem
dúvida, uma boa idade para se batizar. De qualquer forma,
é exatamente para isso que existe a crisma: para que o
candidato, normalmente na adolescência, confirme a
escolha de ser cristão por sua própria vontade. A idade
mínima para iniciar os estudos para a crisma é 14 anos.
Eu não tinha certeza se os adolescentes já tinham
cabeça suficiente para fazer uma escolha séria como
aquela. Aos 14 anos acho que eu nem sabia que eu existia.
– Também não entendi direito sobre a eucaristia –
observei – eu li na Bíblia a passagem em que Jesus reparte
o pão e o vinho. Mas então por que comemos só o pão na
Igreja e não o vinho?
– Conforme dito no Compêndio do Catecismo, a
Eucaristia é “o próprio sacrifício do Corpo e do Sangue
do Senhor Jesus”. Ou seja, não é um símbolo. Deve ser
entendido de forma literal. A hóstia se transforma no
corpo de Cristo. Foi estabelecido pela Igreja católica que
basta consumir a hóstia. Hoje em dia não se consome o
vinho, a não ser o padre. Você poderá encontrar debates
sobre isso em algumas vertentes protestantes.
– O que você acha dos protestantes?

64
A Ordem Terceira

– Eu os respeito – disse Marcos – e eu aprecio


particularmente os protestantes antigos, como os
luteranos. Há vasta literatura de qualidade.
– Eu gosto dos batistas – comentou Melissa – como
Martin Luther King.
Depois daquilo, eles começaram a falar sobre o
sacramento da Ordem. Eu não estava muito interessada
naquela conversa, já que eu não tinha a menor intenção de
me tornar freira ou monja. Já era um sacrifício ter que ir
na missa todo domingo. E eu ainda nem sabia se queria
ser mesmo católica.
Foi então que começaram a falar numa tal de “Ordem
Terceira”. Melissa disse que era membro, mas eu também
sabia que ela era leiga. Então o que era realmente aquilo?
Perdi meu medo de fazer uma pergunta idiota e
perguntei. Melissa me respondeu com muita naturalidade:
– É uma Ordem católica para leigos. É possível fazer
parte da Ordem Terceira dos franciscanos, dominicanos,
carmelitas ou augustinianos, conforme o seu carisma.
Você pode se casar, ter uma família e uma profissão. É
como ser um católico normal, mas que se compromete
mais seriamente com as atividades da Igreja.
– De qual Ordem Terceira você faz parte? – perguntei.
– Franciscanos – respondeu Melissa – e a Genevieve é
da Ordem Terceira dos carmelitas.
Eu não sabia que a Genevieve também era da Ordem
Terceira. Bem, é claro que não. Alguns minutos atrás eu
nem mesmo sabia que aquele treco existia.
– O que é preciso fazer para ser parte da Ordem
Terceira? – perguntei.
– Em primeiro lugar, você precisa ser católica –
Genevieve sorriu quando disse isso – isso significa que
deve ser batizada e crismada. E já deve ter certa
caminhada na Igreja. Por isso só se permite que se inicie
os estudos após ao menos dois anos depois do batismo e
da crisma.

65
Wanju Duli

Droga! Isso significava que se eu tivesse algum


interesse em fazer parte daquele negócio, teria que esperar
mais de dois anos.
– E quanto tempo leva para entrar na Ordem Terceira,
após iniciados os estudos? – perguntei.
– Normalmente uns quatro anos – respondeu
Genevieve – você deve se encontrar pessoalmente com os
membros do grupo, fazer leituras semanais, rezas,
penitênicas e outras práticas.
Aquilo levava tanto tempo quanto concluir um curso
de ensino superior! Ou, no meu caso, levaria mais de seis
anos.
Quase desisti antes mesmo de começar. Se eu me
batizasse o quanto antes, só iria ser aceita como membro
da Ordem com mais de 31 anos. Aos meus 25, aquilo me
parecia quase uma eternidade.
– Preciso ir – falei – tenho que me batizar!
E saí correndo de lá.
Depois eu ficaria sabendo que aquela minha saída se
tornou clássica. Aquela conversa foi passada adiante para
vários amigos dos presentes na reunião. Mas eu não me
importava. Tinha que ir logo até a minha igreja.
Falei com a secretária. Descobri que só iniciariam
novos grupos de batismo e crisma no próximo mês.
Mas eu não queria esperar. Por isso, passei em várias
igrejas da cidade até achar uma que estivesse iniciando os
estudos naquela semana. Acabei encontrando uma igreja
perto da universidade que tinha iniciado uma turma de
crisma há duas semanas.
Eu teria que frequentar uma aula por semana para
aprender o básico sobre cristianismo. Em breve eu
receberia meu batismo e, no fim de seis meses, seria
crismada.
Aquilo era como um intensivo, já que crianças de 14
anos normalmente passavam um ano em seus estudos de
crisma e só recebiam a confirmação aos 15.

66
A Ordem Terceira

Por sorte, não precisei ficar no mesmo grupo dos


pirralhinhos. Consegui fazer parte de um grupo de crisma
para adultos. Todos ali eram mais velhos que eu, a maior
parte com mais de 40 ou 50 anos.
Quando contei para Patrícia pela internet que eu tinha
começado a fazer parte do grupo de crisma da Igreja, ela
disse:

Patrícia: Tu tá a fim de algum guri de lá, né?


Joana: Bem que eu queria. Mas os homens lá têm mais
de 40 anos. Não me entenda mal, eu gosto de homens
mais velhos. Mas acho que todos eles já são casados, então
nem rola.
Patrícia: Que pena. Tu vai vir na minha exposição
amanhã?
Joana: É claro! Não vou faltar.

Convidei Thomas para ir na exposição da Patrícia. Eu


disse que a gente só ia dar uma passada de meia hora,
olhar e ir embora. Então ele aceitou.
Apresentei Thomas para Patrícia.
– A gente é do mesmo semestre – expliquei – já falei
dele para você.
Quando Thomas estava meio afastado olhando os
quadros, Patrícia sussurrou para mim:
– Ele é o “nada de especial”?
– Isso – confirmei.
– Vocês andam se vendo bastante.
– A gente é colega.
– OK, mas vocês sempre conversam depois da aula,
não é verdade?
– Sobre cristianismo.
– Mas cristãos também se apaixonam. Cristãos se
casam. Sabe se ele tem namorada?
– Não sei. Não deve ter. Eu nunca vi ele sozinho com
uma guria.

67
Wanju Duli

– Eu já. Com você.


Eu não achava que eu e ele andávamos juntos tantas
vezes. Até então, o máximo que fizemos foi conversar
após a aula, ir no grupo de cristianismo, ir à igreja, ir na
exposição... pensando bem, já tínhamos ido a vários
lugares só os dois.
Mas resolvi não pensar naquilo. No momento, meu
foco era outro: meus estudos de crisma, tendo em vista a
Ordem Terceira.
Não havia muito que estudar na crisma. Tínhamos
poucas atividades para fazer.
Por isso, enquanto eu esperava que aqueles seis meses
se passassem logo, comecei a pesquisar na internet sobre
as diferentes Ordens.
Qual eu escolheria? Os franciscanos se focavam mais
em trabalhos de caridade, como servir os pobres. Eu
achava isso sinceramente maravilhoso e admirava Melissa
por fazer algo tão nobre.
Mas não achei que aquilo fosse para mim. Digamos
que não me senti “chamada” para essa missão.
Os carmelitas também eram interessantes, pois
realizavam preces e penitências rigorosas, eles eram o lado
místico da Igreja. Mas digamos que eu ainda não havia
tido nenhuma visão de Deus e nem presenciado nenhum
milagre. E talvez eu não me interessasse muito por essas
coisas.
Eu também admirava Genevieve por querer sentir
Deus diretamente e abrir sua alma através daqueles
exercícios místicos. Isso não era para qualquer um. Até
mesmo eu já tinha ouvido falar no livro “A Noite Escura
da Alma” de São João da Cruz e no livro “Castelo
Interior” de Santa Teresa de Ávila, que propunham
exercícios e ensinamentos místicos.
Eu gostava de ler, mas talvez eu buscasse um tipo de
leitura mais filosófica. Descobri que tanto os dominicanos

68
A Ordem Terceira

como os beneditinos promoviam o ensino. Então


pesquisei mais essas duas.
Li a biografia de São Bento e a biografia de São
Domingos. Digamos que a biografia de São Bento era
quase sobrenatural, de tão admiravel. São Domingos, por
outro lado, era um cara mais simples.
Numa passagem da biografia, alguém pergunta a São
Domingos se é mais importante rezar ou estudar a Bíblia,
a que este responde perguntando: "Que é mais
importante: beber ou comer?". Afinal, um ajuda o outro,
assim como a fé e o amor fortalecem um ao outro.
Eu estava aprendendo. Gostei da simplicidade dos
dominicanos. O próprio São Tomás de Aquino, que era
dominicano, não fez nenhum milagre. Mesmo assim, ele
foi canonizado pela Igreja, porque a Suma Teológica que
ele escreveu foi considerado “um verdadeiro milagre”.
Achei isso tão interessante que me decidi: eu desejava
aprender mais sobre a Ordem de São Tomás de Aquino,
por muitos considerado o maior teólogo que a Igreja
católica já conheceu.
Já que eu me interessava por filosofia, parecia ser
mesmo o melhor caminho. Então, nas semanas que se
seguiram, passei a buscar livros de autores dominicanos.
Os dominicanos também gostavam muito de rezar o terço
e só por isso também aprendi a fazer aquilo.
Dois meses depois de iniciados os meus estudos de
crisma, seria meu batismo. Eu precisava convidar um
homem e uma mulher cristãos para que fossem meus
padrinhos. Mas eles precisavam ser batizados para isso.
Quando comuniquei isso na sociedade de cristianismo
da universidade, senti uma grande sensação de felicidade
com o gesto deles: vários levantaram a mão
imediatamente, candidatando-se para ser meu padrinho ou
madrinha.

69
Wanju Duli

Eu senti-me realmente tocada. Eles achavam mesmo


que era uma grande honra. E eu também senti-me
honrada.
Por fim, decidi que Thomas seria meu padrinho e
Melissa minha madrinha, mesmo ambos sendo mais
novos do que eu. Isso não importava muito. A própria
Melissa era só um ano mais nova.
Será que era proibido namorar o padrinho? Bem, eu
não tinha intenção de namorar Thomas, mas esse
pensamento se passou pela minha cabeça.
De qualquer forma, ele era um amigo querido. Ele era
a pessoa que tinha me introduzido ao cristianismo. Eu
devia muito a ele. Por isso, achei que seria muito mais
especial que nos uníssemos daquela forma, ele sendo meu
padrinho. Aquela seria uma união eterna.
O matrimônio também podia ser uma união eterna,
mas aquilo era diferente, porque ninguém pode se
“divorciar” do padrinho.
A minha cerimônia de batismo foi muito bonita. Mas
eu não senti absolutamente nada quando o padre colocou
a água na minha cabeça.
Detalhe: fui batizada por Marcos. Isso não era
totalmente extraordinário? Após mais de dois meses
frequentando semanalmente a sociedade cristã
universitária, eu já o considerava quase um amigo
próximo.
E, sei lá, ele tinha a minha idade. Aquilo era tão
estranho!
Após o batismo, não parecia ter nada de diferente em
mim. Teoricamente, eu havia recebido as virtudes
teologais da fé, esperança e caridade. Mas onde será que
estavam elas?
Talvez elas devessem ser amadurecidas com o tempo.
Eu havia recebido a semente de cada uma delas dentro de
mim. Agora, precisava cultivá-las com carinho, através da
oração, leitura da Bíblia e minhas idas às missas.

70
A Ordem Terceira

E para completar, continuei frequentando o grupo de


crisma e a sociedade cristã universitária. Eu não era
mesmo uma moça ocupada?
E agora eu era formalmente cristã! Definitivamente
essa era a parte mais esquisita da coisa toda.
Antes eu considerava cristãos seres bem distantes de
mim, que acreditavam numa religião totalmente antiquada
e com dogmas ilógicos. Pessoas repletas de preconceitos e
até um pouco burras. E até um pouco pobres.
Eu me tornei um deles. E minha meta era fazer parte
da Ordem Terceira dos Pregadores. Era exatamente o
pessoal que “evangelizava”, que levava adiante o
evangelho: os professores, que estudavam a fundo
filosofia e teologia para depois ensinar.
Por isso era importante que eu me dedicase aos meus
estudos de filosofia e lesse livros escritos por
dominicanos. Era o máximo ler livros escritos por caras
que passavam a vida inteira estudando. Eles sabiam muito.
Eu também queria me tornar uma pessoa assim: que
estivesse apta a passar adiante meu conhecimento.
Principamente teológico.
Na semana que se seguiu após meu batismo, depois da
reunião semanal do nosso grupo de cristianismo, Thomas
me convidou para sentarmos num banco, pois ele queria
me dar uma coisa.
– É um presente.
Ele me deu um embrulho. Eu o abri. Lá dentro tinha
um terço e um pequeno livro de rezas de Santa Catarina
de Siena.
– Você gosta dos dominicanos, certo? – ele perguntou
– então pensei que ia gostar dessas rezas. E esse terço...
era da minha irmã. Ela morreu quando ainda era criança.
Achei que você ia querer ficar com ele.
Nossa! Ele estava me dando o terço da irmã dele!
Não me contive e o abracei. Era a primeira vez que eu
encostava em Thomas.

71
Wanju Duli

Ele ficou imediatamente sem jeito. Deu um sorriso


amarelo.
– Ah... que bom que gostou – ele disse, meio perdido.
– Se gostei? Eu adorei! Foi o melhor presente de
batismo que recebi.
O livrinho de rezas também era um amor. Eu estava
com um sorriso enorme.
– Prometo que irei cuidar bem desse terço – falei – irei
usá-lo sempre.
– Eu agradeço.
– Toda a sua família é católica, certo?
– Sim – ele respondeu – meus pais sempre foram
católicos devotos. Eles têm uma fazenda. Sempre vou
visitá-los quando posso.
Uma fazenda. Eu sabia! Acertei na mosca.
– Sinto muito pela sua irmã – falei.
– Ela queria ser freira – ele disse – mas não sei se ela
teria mudado de ideia depois. Ela morreu com oito anos.
Foi de doença. Até hoje ninguém sabe bem o que foi. Ela
teve um mal súbito depois de comer algo estragado e teve
uma diarrreia e desidratação terríveis. Não tinha nenhum
médico. Ela não aguentou.
– Eu também tenho uma irmã, um ano mais nova – eu
disse.
– Eu tenho um irmão mais velho. Ele se formou em
agronomia. Meus pais queriam que um de nós fosse padre.
Meu irmão ainda é católico até hoje, mas não quis ser
padre. Por isso eu resolvi começar o seminário. Quando
eu terminar os meus estudos, pretendo voltar para minha
cidade natal, para ficar próximo dos meus pais. Quero
poder ficar numa igreja de lá.
Eu fiquei sem fala. Por alguns segundos, não consegui
dizer uma única palavra. O choque da surpresa não
deixou.
– Você é seminarista? – perguntei.
– Você não sabia? Pensei que soubesse.

72
A Ordem Terceira

– É claro que eu não sabia! Você começou o seminário


há quanto tempo?
– Um ano – ele respondeu – assim que terminei o
ensino médio. Por isso estou cursando filosofia. É um dos
requisitos para ser padre.
Sério que ele tinha só 18 ou 19 anos? Mas não foi isso
que me surpreendeu mais. Foi saber que, por todo aquele
tempo, ele já era seminarista e mesmo assim estava saindo
comigo.
Ou melhor, não estávamos “saindo”. Só estávamos
falando de cristianismo. Ele jamais deu em cima de mim,
nunca fez nada de errado. Ele tinha agido de forma
exemplar.
Ele nunca tinha mostrado o menor interesse em mim e
nem deu sugestões disso. Eu que tinha criado falsas
esperanças.
Foi só naquele momento que eu descobri que gostava
dele. Até então, eu estava apenas deixando essa questão
para lá. Não pensava nisso. Ele era só um amigo.
Antes que eu pudesse me conter, lágrimas rolaram dos
meus olhos. Muitas. Eu chorei, como há muitos anos não
me lembrava de ter chorado.
É claro que Thomas ficou extremamente preocupado.
– O que aconteceu? – ele perguntou imediatamente.
– Eu pensei que você... – tentei dizer – que a gente...
tava junto. Ia ficar junto.
– Ah – ele ficou sem fala – nossa, eu jamais imaginei
que... me desculpe! Jamais se passou pela minha cabeça
que você... me visse desse jeito.
Eu chorava cada vez mais. Nem eu sabia que eu o via
desse jeito. Eu só o vi desse jeito um minuto atrás!
Acho que eu estava apenas dando tempo ao tempo.
Achei que nossa aproximação seria natural. Que aos
poucos ficaríamos mais amigos. Iríamos começar a fazer
coisas juntos. E um dia íamos descobrir que nos
amávamos.

73
Wanju Duli

Por isso eu não quis descobrir aquilo cedo. Estava


guardando segredo de mim mesma.
Mas naquele momento, quando vi que aquilo jamais ia
começar, eu me senti extremamente triste.
Eu não fazia questão de namorar um cara seis ou sete
anos mais novo que eu. Mas antes eu não sabia a idade
dele. E agora eu sabia isso e uma informação ainda pior.
– Você se tornou seminarista só para agradar os seus
pais? – perguntei, com meu último fio de esperança.
– No começo sim – respondeu Thomas – agora, é algo
que realmente quero fazer. E que certamente farei. Me
desculpa mesmo.
Cada vez que ele pedia desculpas, eu chorava mais. Por
fim, ele me deu um abraço meio desajeitado, porque acho
que ele ficou com pena de mim. Mas foi só isso.
– Quer que eu ligue para alguém? – ele perguntou –
para a Melissa? Ou para outra amiga sua?
Inicialmente pensei em Patrícia. Mas achei que a
Melissa seria mais adequada para esse caso.
– Sim, para a Mel – confirmei.
Ela não demorou muito para chegar, pois também
estava na universidade, como nós.
– Vou deixá-las a sós – falou Thomas – obrigada por
vir, Mel. Com licença.
Mel sentou-se ao meu lado e me abraçou. Dessa vez
um abraço bem mais profundo do que aquele que tive
com Thomas, que até parecia ter receio de encostar em
mim.
Contei a ela a situação em uma frase. Ela entendeu
tudo.
– Passei exatamente pela mesma situação, Joana,
querida – disse Mel, com ternura – então sei bem o que
você está sentindo.
– Você passou? – perguntei, surpresa.
– Marcos e eu fomos namorados no ensino médio –
ela contou – estudamos no mesmo colégio. No primeiro

74
A Ordem Terceira

ano do segundo grau, vivemos um amor intenso e


profundamente apaixonado.
Ela e Marcos! Os dois costumavam conversar com
muita naturalidade. Ambos eram muito inteligentes. Então
eles já foram namorados.
Fiquei surpresa que eles continuassem amigos até hoje,
apesar daquele passado.
– Você não faz ideia como nos amávamos – ela contou
– nem eu e nem ele tínhamos religião nenhuma na época.
Desde o início do nosso namoro, a gente fazia sexo
praticamente todos os dias. Como se estivéssemos
desesperados um pelo outro. A gente não aguentava ficar
um dia separado. Era uma paixão muito poderosa. Até
que minha avó morreu.
Ela fez uma pausa e respirou fundo nesse momento,
como se estivesse se recordando de uma grande dor.
– Eu a amava muito. Desde bem pequena eu a amava.
Eu era mais próxima dela do que dos meus pais. Então a
morte dela foi um verdadeiro choque para mim. Eu me
acabei de chorar no enterro. Fiquei uns dias sem ver
Marcos nessa época e ele entendeu. Só que algumas
semanas depois eu comecei a frequentar a igreja. “Do
nada”, ele disse, mas não foi do nada. Foi porque eu
estava buscando respostas para a morte da minha vó. Eu
não achava que o mundo pudesse ser assim tão cruel.
Minha vó não podia simplesmente ter desaparecido.
Lembrei da Bíblia da minha vó. A minha vó por parte
de mãe ainda era viva, mas eu mal a via. Então eu não
sabia o que Melissa tinha sentido.
– Foi tudo muito rápido. Eu me converti para o
cristianismo. Fui batizada na Igreja católica. Naquela
época eu ia para a missa quase todos os dias, pois
precisava entender. Eu disse para Marcos que
continuaríamos a namorar, mas que não íamos mais fazer
sexo. Só depois do nosso casamento, pois após receber o

75
Wanju Duli

sacramento do batismo eu decidi que só faria sexo outra


vez na ocasião do meu matrimônio.
– E o que Marcos achou disso?
– Ele odiou, é claro – respondeu Melissa – ele me
criticou duramente. Me chamou de fanática religiosa.
Disse que eu estava maluca por seguir uma religião
atrasada como aquela.
– Nem imagino Marcos dizendo isso – eu ri.
– Bem, ele tinha quinze anos. E eu quatorze. Digamos
que ele explodiu. Ficou furioso com minha decisão. Ficou
até algumas semanas sem falar comigo, mas depois se
recuperou. Ele garantiu que ia começar a trabalhar naquele
mesmo ano, ia alugar um apartamento pequeno, íamos
nos casar na Igreja e morar juntos o mais rápido possível.
– Nossa, isso que é amor! – comentei, admirada – ele
te amava de verdade.
– Muito. Então ele descobriu que para casar na Igreja
precisava ser batizado e crismado. Ele começou a
frequentar o curso de crisma da Igreja à contragosto. Ele
me contava todas as coisas absurdas que o professor dele
dizia e ria disso depois. Eu ia aos poucos explicando para
ele que não era bem assim. Mesmo nessa época eu já lia
vários livros sobre cristianismo e por isso sempre tinha
boas respostas para dar aos questionamentos de Marcos.
– Que divertido.
– Foi mesmo. E pouco a pouco ele foi se
convencendo. Ele não começou a gostar do cristianismo,
mas o tolerou. Ele admitiu que algumas das minhas
respostas foram inteligentes. Mas foi só quando emprestei
para ele os livros do C.S. Lewis e do G.K. Chesterton que
ele começou a se interessar mais.
Aquela história estava bem emocionante. Ainda mais
porque eu já sabia qual seria seu desfecho.
– É muito interessante ler livros escritos por pessoas
convertidas tardiamente ao cristianismo. Frequentemente,
são essas pessoas que se tornam seus maiores defensores.

76
A Ordem Terceira

Isso porque convertidos tardios se tornaram cristãos não


por tradição ou porque os pais lhe educaram dessa forma,
mas através de uma leitura aprofundada e de uma prática
dedicada que os convenceu. Então os argumentos
costumam ser fantásticos.
Eu entendia o que ela queria dizer. O meu caso era
semelhante. Dava um certo orgulho ser uma convertida
tardia. Assim a base que eu teria seria muito sólida, porque
é óbvio que eu ia querer tirar todas as minhas dúvidas.
Quem sempre praticou o cristianismo desde pequeno já
tem fé em Deus desde o começo e não questiona isso.
Não precisa se convencer mais.
Mas eu precisava. E por isso minha base seria
poderosa. Eu acreditava nisso.
– Em pouco tempo, Marcos começou a ler mais livros
que eu – prosseguiu Melissa – em breve, seria ele que
descobriria novos autores e me indicaria. Ele percorria
todos os sebos e livrarias em busca de novos exemplares.
Não demorou muito para que ele passasse a citar
diferentes trechos da Bíblia para mim. Passagens que eu
nem me lembrava. Ele começou a dizer que minha prática
estava muito preguiçosa e que eu devia me dedicar mais.
Lembro de um domingo em que ele compareceu nas
quatro missas do dia e me levou junto.
Nunca se passou pela minha cabeça que uma pessoa
poderia fazer questão de ver a mesma missa várias vezes
num dia só.
– Ele já não falava comigo sobre casamento e nem eu
toquei no assunto – disse Melissa – achei que ele tinha
resolvido esperar terminarmos o ensino médio antes de
começarmos a trabalhar e nos casarmos. Mas assim que
terminou o segundo grau, ele entrou para o seminário.
Sem aviso. Ele só me disse que ia para lá. Imagino que ele
já tinha decidido isso há um tempo, mas não me falou,
porque não conseguiu.
– E você já pensou em ser freira? – perguntei.

77
Wanju Duli

– Não seriamente – respondeu Melissa – mas eu já


estava pensando em entrar para a Ordem Terceira. E foi
isso que eu fiz. Eu rezei muito e descobri que era essa
minha vocação: ser uma leiga que serve a Ordem Terceira
de São Francisco.
– E desde então você não namorou mais?
– Já namorei, é claro. Tive três namorados depois de
Marcos, mas nenhum deu certo. Ainda pretendo me casar
um dia. Vamos ver. Até hoje, Marcos é o único cara com
quem já fui para a cama. Ele é uma pessoa especial na
minha vida. E ele sempre me agradece. Disse que se não
fosse por mim, talvez ele nunca tivesse conhecido o
cristianismo.
Eu já tinha até me esquecido da minha paixão
passageira por Thomas diante da grandiosidade daquela
belíssima história.
– Obrigada por me contar tudo isso, Mel – eu disse –
já me sinto muito melhor.
– Fico feliz – ela deu aquele sorriso maravilhoso.
Quando vi Thomas de novo, alguns dias depois, ele
ainda parecia preocupado.
– Você está bem?
– Estou ótima – garanti a ele – não se preocupe.
E eu estava mesmo. Decidi que ia esquecer aquilo, que
eu só estava sendo boba.
Quando o semestre terminou e entrei de férias, senti
saudades dos encontros da sociedade cristã universitária, a
SCU.

Patrícia: Vamos enlouquecer juntas nessas férias?


Joana: Vamos! Para onde quer ir?
Patrícia: Ficar com meninos nas festas? Ou você não
pode fazer isso mais?
Joana: Até posso, mas não tô muito a fim.
Patrícia: Não me diga que agora só aceita namorar
cristãos?

78
A Ordem Terceira

Joana: Que bobagem. Eu não tenho preconceito


contra outras religiões, minha filha.
Patrícia: Você só se apaixona por padres e
seminaristas!
Joana: Eu me apaixono quando eu não sei que eles são
padres e seminaristas!
Patrícia: Pelo menos isso.
Joana: Eu ando conversando bastante com o Diego
ultimamente. Ele também frequenta a SCU.
Patrícia: Você já se certificou de que ele não é padre e
nem seminarista, certo? E que nem tem vontade de ser.
Joana: Sim, já fiz a ele todas essas perguntas. A barra tá
limpa.
Patrícia: Beleza! Então vai fundo! Mas sexo não rola,
né?
Joana: Sendo bem honesta contigo, no momento sexo
é minha menor preocupação. Na seca do jeito que eu tô,
se eu encontrar um guri que me curta, nem que seja pra
beijar, eu já vou ficar feliz.

Saí com Patrícia várias vezes durante as férias,


especialmente para ir ao cinema. A gente também foi na
casa uma da outra, para ficar assistindo filmes e séries até
bem tarde. Era maravilhoso!
Em breve seria minha crisma. Convidei Mel para ser
minha madrinha de crisma também. Dessa vez eu só
precisava de uma pessoa, do mesmo sexo.
– Por que não me convidou para ser sua madrinha? –
perguntou Patrícia, chocada.
– Tu nem é batizada! – argumentei.
– Espero que não me troque por essa tal de Mel. Um
dia quero conhecê-la.
– Você vai conhecê-la no dia da minha crisma.
Foi um momento bem especial. O bispo foi nos
crismar, pois só o bispo pode crismar. Apagaram as luzes
e eu e os outros crismandos entramos com velas. Foi uma

79
Wanju Duli

cerimônia bonita. Em certo momento, deixei a chama da


minha vela apagar sem querer, mas um amigo acendeu a
minha vela com a chama dele.
E disso tirei um poderoso ensinamento: eu não estava
sozinha. Mesmo se minha chama apagasse, eu poderia
contar com o amor dos meus amigos.
Eu e meus amigos fomos jantar após minha cerimônia
de crisma. Estavam todos muito felizes! Eu não via alguns
deles há mais de um mês, pois estávamos de férias.
Nesse jantar, Patrícia conheceu não apenas Mel, mas
Genevieve, Diego e vários outros amigos meus.
Ela até fez umas perguntas incômodas para eles sobre
cristianismo.
– Então vocês não podem usar pílula e camisinha, né?
Como é que vocês fazem sexo?
– Normalmente não fazemos – explicou Genevieve,
com toda a paciência – só depois de casar.
– Por quê?
– Porque nos tornamos uma só carne nesse momento
– disse Genevieve – então é melhor que façamos isso só
com quem realmente amamos.
– Entendi. Que romântico – percebi que Patrícia
estava sendo irônica – mas e depois do casamento? O
casal pode ter até uns três, quatro filhos, mas e depois?
Não fazem sexo nunca mais?
– Tem casais que usam o método da tabelinha – disse
Genevieve.
– Ah sim, é realmente um método ideal para ser usado
na modernidade – zombou Patrícia.
Genevieve percebeu a ironia. Não pareceu gostar
muito.
– A questão é a seguinte... Patrícia, certo? – ela
perguntou – nós católicos praticantes, que seguimos
fielmente as normas do Vaticano, levamos nossa religião
muito a sério. Acreditamos que realmente existe um Deus
e que a Igreja interpreta seus mandamentos de forma o

80
A Ordem Terceira

mais correta possível. Temos fé, confiamos nela. Mesmo


que a Igreja cometa erros, nós continuamos confiando
nela porque acreditamos que os acertos são mais
frequentes que os erros. Entende isso?
– Mais ou menos.
– Mas há uma outra questão ainda mais importante –
prosseguiu Genevieve – por que alguém trocaria o paraíso
pelo prazer do sexo? O casal poderá se tornar uma só
carne nos momentos da geração dos filhos. Esse é um
ritual especial e único. Quando se faz esse ritual toda
semana ou todo mês, por exemplo, se torna meio banal. A
ideia é que seja um ritual de amor, uma união de almas e
não só um prazer do corpo. Para o católico, não faz
diferença fazer sexo ou não. O importante é o amor que o
casal sente um pelo outro. Você acha difícil entender isso?
– Acho.
– Para quem acredita que o objetivo da vida é o prazer
e o conforto e que Deus é apenas uma metáfora para se
ter uma vida moral, é claro que é difícil entender esse
ensinamento tão difícil – disse Genevieve – quem não
acredita seriamente em Deus ou no paraíso, não vai seguir
os mandamentos. Vai dar um jeito de achar exceções e de
interpretar as escrituras do seu jeito, conforme for
conveniente. A Igreja não é perfeita, mas ela é muito boa.
Há milhares de teólogos e praticantes devotos que
preparam todo o corpo dos ensinamentos, que é muito
rico. Nós acreditamos nisso.
– Hm.
Patrícia não parecia muito interessada no discurso de
Genevieve.
– Respondi satisfatoriamente as suas perguntas? –
perguntou Genevieve.
– Na verdade não – respondeu Patrícia – vocês
simplesmente não fazem sexo por medo de ir para o
inferno. Não acho que esse seja um motivo melhor do que

81
Wanju Duli

o de alguém que faz sexo apenas por prazer e que não liga
se irá para o inferno ou não.
– Posso me intrometer? – pediu Mel, toda educada –
eu estou lendo um livro muito interessante no momento,
que tem boas reflexões para suas perguntas.
Ela tirou da bolsa um livro chamado “Relatos de um
peregrino russo”.
– Cristianismo ortodoxo? – perguntou Diego,
interessado.
– Recomendação de Salinger – piscou Mel – eis aqui
um bom trecho: Não é por medo do castigo que deixamos de
pecar, pois a alma só consegue se libertar dos pensamentos culpados
através da vigilância do espírito e da pureza do coração. Adquirimos
isso através da oração interior. Os Padres comparam a ação de
alguém que se empenha na vida ascética por temor das torturas do
inferno, e não por desejar o reino celeste, à ação de um mercenário.
Eles dizem que o medo dos tormentos é a via do escravo, e o desejo
de uma recompensa é a via do mercenário. Mas Deus quer que
venhamos a ele como Filhos; Ele quer que o amor e o zelo nos
impulsione a nos conduzir dignamente, e que gozemos da união
perfeita com Ele, na alma e no coração"
– Eu não me importo se vocês praticam seus
cristianismos por medo do inferno ou por desejo do céu –
argumentou Patrícia – pra mim, dá tudo na mesma.
– Sei a resposta para essa questão – comentei,
orgulhosa – discuti sobre isso com Thomas muito tempo
atrás. Você já ouviu falar no imperativo categórico de
Kant?
– Ah, não venha com suas filosofias para cima de mim
– se queixou Patrícia – você não consegue explicar isso de
uma maneira curta e simples?
– Acho que não, mas vou me esforçar – prometi – o
objetivo de uma religião não é “sentir-se bem”. Foi isso
que a Gê quis dizer quando falou que nossa meta não é
prazer e conforto. Na religião busca-se a verdade, o
espírito, o transcendente. Não importa se isso gera prazer

82
A Ordem Terceira

ou dor. Importa é manter-se fiel à busca da verdade.


Devemos fazer o que é certo, independente das
consequências. Por isso deve-se sempre cumprir os
mandamentos. Nunca devemos roubar, nem se for para
salvar a nossa mãe doente. Mesmo que meu ato leve à
minha morte e à morte das pessoas que amo, não posso
me desviar da conduta correta, pois a minha finalidade é o
espírito.
– Esse pensamento é meio fanático – observou
Patrícia – caso o espírito não exista, vocês vão sacrificar a
chance de prazer terreno apenas em nome de algo
imaginário?
– Mas o espírito existe, essa é nossa fé – falei – e essa
fé é fortalecida com muitos estudos e práticas. Sabe, pode
ser que o mundo material também não exista. Você
também está fazendo uma aposta.
– Mesmo que o mundo material não exista, o prazer
que sinto é real o bastante – disse Patrícia.
– E mesmo que o espírito não existisse, o nosso
desenvolvimento moral obtido através de nossas práticas é
totalmente real. Mas Deus existe. Eu tenho mais certeza
disso do que você tem certeza de que existem as coisas
que você sente com seus sentidos. Você apostaria a
felicidade de sua vida que o mundo material realmente
existe?
– Não.
– Pois eu apostaria a minha felicidade que Deus existe
– falei, surpreendendo até a mim mesma com a minha
confiança – na verdade, já apostei. Por isso estou aqui.
Não me importa mais a felicidade. Ralem-se os prazeres
da carne. Irei desfrutar deles apenas na medida que não
atrapalhem a prática da minha religião. Não me importo
de comer essa pizza. Mas quando for o momento de não
comer, não terei dúvidas e não o farei.
– O pessoal da filosofia é outro nível – comentou
Diego, aprovando o peso dos meus argumentos.

83
Wanju Duli

– Nem vem com essa que você sabe bem mais que eu
– eu disse – eu amei aquele seu discurso sobre a
pornografia da morte.
– O que foi que você disse? – perguntou Mel, curiosa.
– É um argumento da antropologia – explicou Diego –
eu disse que hoje a morte é considerada mais pornográfica
que sexo. Pessoas morrendo são escondidas em hospitais,
pois falar da morte é um tabu. Mas era bem diferente na
Idade Média.
– Verdade! – concordou Mel, que era entendida de
Idade Média – naquela época as pessoas morriam aos
montes, de peste, de guerra. Não se vivia muito. E as
pessoas falavam da morte normalmente no dia a dia e isso
ocorria não somente nas igrejas, mas também nos teatros,
na arte da época.
– Por isso eu aprecio tanto a SSPX – disse Diego – os
padres não temem falar da morte ou do inferno. E é dado
muito peso para a confissão. Devemos nos confessar para
um padre regularmente. É isso que redime nossos
pecados. Hoje as pessoas pensam que basta rezar para
Deus e os pecados estão perdoados, mas não é verdade.
Deve haver a confissão na Igreja. Esse não é apenas um
ritual bobo e antiquado.
– Nunca assisti a uma missa da SSPX – comentei.
– Então você precisa vir comigo – insistiu Diego – o
Padre Sérgio, que passou a ser o novo padre da capela
desde o ano passado, é excelente. Mas precisamos chegar
cedo, senão não vai ter mais lugar.
– As missas dele são assim tão populares? – perguntei,
impressionada.
– Sim – confirmou Diego – mas precisamos chegar
cedo principalmente porque a única igreja da SSPX da
nossa cidade é muito pequena. Não cabe muita gente lá.
Vamos juntos no próximo domingo?
– É claro! – confirmei, animadamente.

84
A Ordem Terceira

Quando saímos do restaurante, Patrícia disse para


mim:
– Parabéns, o garoto que você gosta te convidou para
sair – disse Patrícia – mesmo que tenha sido um convite
para ver o padre falar sobre morte e inferno.
– Eu acho que vai ser divertido – comentei.
– Não, você não pode se divertir, deve apenas cumprir
o seu dever de ir para a igreja, buscar a verdade e o
espírito e blá, blá, blá.
– É, ou isso.
Assim, eu e Diego fomos juntos para a capela da SSPX
no domingo seguinte.
Aquele lugar nem parecia uma igreja. Estava bem
escondido. Mas entramos e eu achei a capelinha muito
linda.
Nós nos sentamos em silêncio. Chegamos uma hora
antes. Diego foi fazer sua confissão e perguntou se eu
também não queria fazer. Eu disse que estava bem sem
me confessar e agradeci.
Quando Diego voltou, pegou seu rosário e começou a
rezar um monte de Pais Nossos e Ave Marias. Outras
pessoas também estavam lá rezando o terço juntas.
Notei que todas as mulheres colocavam um lencinho
rendado preto na cabeça. Por sorte eu tinha um lenço de
cor escura comigo e cobri os cabelos com ele. Até que
ficou parecido.
Aquela reza não terminava nunca. Acho que eles
ficaram mais de vinte minutos rezando sem parar, uma
reza atrás da outra.
Achei poderoso. Me ajoelhei, peguei meu terço e rezei
com eles, mesmo não tendo feito minha confissão.
E a missa começou. Era bem diferente da missa
contemporânea. Havia um monte de trechos em latim. Eu
imitava o que as pessoas faziam para saber o momento
certo de me levantar, sentar e me ajoelhar.

85
Wanju Duli

Havia vários momentos de ficar ajoelhado ao longo da


missa. Por isso o genuflexório era acolchoado.
Fiquei feliz ao ver que o padre daria seu sermão em
português. Pelo menos isso.
O padre arrasou. Falou sobre o Apocalipse. Sobre o
Juízo Final. Não parou de falar sobre as pessoas
queimando no inferno e como os pecadores iam queimar.
Uau, aquilo foi tão bom! Eu me sentia renovada.
Não fiquei feliz de saber que os pecadores iam queimar
no inferno, mas alegre porque eu conhecia o Evangelho!
E ao saber que é somente através dos obstáculos que o
diabo coloca em nosso caminho que podemos fortalecer
nossa via espiritual.
Foi dessas coisas que o padre falou. Realmente, fez
muito sentido e eu achei poderosíssimo.
Foi uma catarse. Ouvir tanta coisa ruim me deixou
leve. Era como ver um filme com um monte de tragédias,
sangue e morte. Às vezes isso nos deixa inexplicavelmente
tranquilos. Senti algo parecido após aquela missa, mas lá
tudo fazia sentido e estava dentro de um contexto
espiritual que me pareceu perfeito.
– Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa! – exclamavam
os fieis, socando o peito.
E eu os imitava, é claro. Eu conseguia reconhecer uma
ou outra palavra do latim que era parecido com o
português.
No fim da missa eu me sentia muito bem e Diego
também.
– O Padre Sérgio é o máximo, não acha? – disse
Diego.
– É mesmo – concordei.
– Quer vir aqui comigo mais vezes?
– É claro que sim.
Passei a assistir as missas em latim com ele todos os
domingos às seis da tarde. Mesmo assim, todo domingo às

86
A Ordem Terceira

oito da manhã eu fazia questão de assistir a missa da


minha igreja local. Eu também gostava dela.
Depois eu soube que o Padre Sérgio tinha apenas 35
anos. Era bem jovem. A SSPX andava atraindo muitos
jovens ultimamente, como Marcos disse. Vi vários
homens e mulheres jovens naquela missa.
Quando começou o novo semestre, eu estava ansiosa
pelas minhas aulas de história da filosofia medieval. E
Thomas também.
– Isso será o máximo.
Uma professora ministraria essa disciplina. Era a
professora Suzana. E ela era muito boa. Sabia muito.
Não tive nenhuma crítica a fazer da primeira aula. Ela
mandou muito bem. Thomas também achou.
– Precisamos convidar a Mel para assistir uma dessas
aulas conosco – disse Thomas, empolgado.
Mas apostamos que cedo ou tarde teríamos
oportunidade para criar polêmica.
Quando fomos falar com Mel, descobrimos que ela
estava viciada em pronunciar o “Kyrie Eleison” conforme
ensinado pelo livro que ela estava lendo. Na verdade, ela
estava relendo o livro, porque ficou obcecada por ele.
– Eu achava que Kyrie Eleison era uma música do
Mozart – comentei.
– Isso também – disse Mel – significa em grego
“Senhor, tenha piedade”.
Foi então que me lembrei que eles disseram aquilo na
missa tridentina.
– A versão aumentada é “Senhor, tenha piedade, sou
um pobre pecador” – explicou Mel – mas se pode usar a
versão reduzida. O personagem desse livro pronuncia isso
milhares de vezes por dia, sem parar.
– Que maluco – falei.
– Mas funciona! – disse Mel – vou tentar fazer isso.
Eu tinha amigos estranhos.

87
Wanju Duli

Numa ocasião em que eu estava lendo a Bíblia em


casa, perguntei.
– Mãe?
– Sim?
– Sabe se a vó ainda é católica?
– Sim.
– Ela é católica desde quando? – perguntei.
– Desde sempre, pelo que eu saiba.
– Ela te deu uma educação católica?
– Eu ia para a missa quando era criança – respondeu
minha mãe – sou batizada, mas não sou crismada.
– Então desde os 14 anos você já tinha decidido que
não gostava do catolicismo?
– Não é que eu não goste. Eu respeito. Mas não era
pra mim.
– Podemos visitar a vó qualquer dia desses?
Ela ficou meio surpresa com o pedido. Fazia meses
que não íamos vê-la. Aliás, quase um ano. Desde que
comecei a me interessar por cristianismo eu ainda não
tinha conversado com minha vó.
Queria falar com ela sobre isso.
Fomos almoçar na casa dela num fim de semana.
Jéssica foi junto.
Jéssica não parou de reclamar dos colegas de trabalho
durante o almoço inteiro. Minha vó só escutava e ria.
Ela fazia umas sobremesas maravilhosas. Acho que
isso é coisa de avó mesmo.
Jéssica roubou todo o meu tempo de conversa, então
eu simplesmente decidi que ia dormir lá.
Meu avó já tinha morrido. Minha vó morava sozinha,
mas estava sempre alegre e de bom humor.
Ela começou a tricotar e eu pedi que ela me ensinasse.
Eu não estava tão interessada assim em aprender, mas eu
queria que ela soubesse que eu me interessava pelas coisas
que ela gostava.

88
A Ordem Terceira

Tentei fazer aquilo por alguns minutos, mas depois


desisti.
– Não é difícil – disse a vó Catarina – e é a coisa mais
relaxante do mundo.
– Vó, posso ver a sua Bíblia?
– Claro. Está ali em cima da mesa.
Era uma Bíblia muito antiga. Parecia ser lida
frequentemente, pois estava cheia de páginas amassadas.
– Você lê todo dia?
– Sim. Tenho feito isso por toda a minha vida.
– Não deixou de ler por um dia sequer? – perguntei,
impressionada.
– É como eu disse. Leio todo dia.
Que hardcore! Admirei muito a minha vó por aquele
ato tão supremo. Ela estava com 83 anos. Ela devia
conhecer mais a Bíblia que o próprio papa. Bem, acho que
o papa era quem menos conhecia a Bíblia, de tantos
deveres administrativos com os quais se ocupar.
– Você vai para a missa todos os domingos? –
perguntei.
– Sempre.
– E reza todas as noites?
– E quando acordo, e antes de comer.
Meu sonho era ser tão dedicada quanto ela. Um dia
chegar no nível dela.
Eu queria que um dia todas aquelas atividades se
tornassem extremamente naturais para mim. Que fizessem
parte da minha rotina tanto quanto comer e dormir.
– Eu me crismei recentemente – contei, orgulhosa.
– Sua mãe me contou – minha vó sorriu – queria ter
ido ver sua crisma, querida. Mas a vó teve que ir no
hospital.
– Eu sei. Você tá bem vó?
– Eu tenho pressão alta, mas fora isso estou bem.
Naquele dia apenas senti um mal estar.

89
Wanju Duli

– Você se sente bem em morar sozinha? Por que não


mora com a gente?
– Não precisa, querida – disse minha vó – tem a Dona
Lourdes e a Dona Zélia, minhas maravilhosas vizinhas.
Sempre me ajudam quando preciso.
– Amanhã é domingo – lembrei – posso ir na missa
com você?
– Claro! – ela pareceu muito contente.
De repente entendi porque minha avó era tão otimista
e alegre. Entendi porque ela era tão querida com todo
mundo. Não que alguém religioso não pudesse ser, é
claro. Mas de fato, a religião dava forças.
A missa foi muito bonita. Era muito legal poder
frequentar igrejas diferentes e ver o sermão de diferentes
padres. Mas não adiantava: meu padre preferido era o da
igreja mais perto da minha casa. Eu me acostumei tanto
com ele que me apeguei. Era um senhor bem idoso com
voz baixinha. Eu simplesmente adorava ele! Mas eu tinha
que sentar lá na frente para escutar.
Depois da missa, eu e minha avó ficamos conversando
sobre o sermão. Mas eu tive que ir para casa mais cedo,
porque eu não podia me atrasar para a missa da SSPX!
Combinei com Diego de me encontrar com ele lá.

Quando voltei para casa, falei com a Paty pela internet:

Joana: Você devia ir ver uma missa em latim. É bem


elegante. Parece que estou na Idade Média.
Patrícia: Não, obrigada, Joaninha. Eu não faço
nenhuma questão de me sentir na Idade Média. E
adivinha só: comecei a me interessar por religião. Mas não
pela sua.
Joana: É sério? E que religião você está gostando? É
alguma protestante?
Patrícia: Não é o cristianismo. Não quer vir aqui em
casa? Aí eu te falo.

90
A Ordem Terceira

Eu adorava um bom mistério.

91
Wanju Duli

Capítulo 3: A Ordem

Fui até a casa de Patrícia. No caminho, fiquei tentando


adivinhar qual era a religião que ela tinha escolhido. Mas
não conseguia pensar em nenhuma religião que
combinasse com ela.
Concluí que só podia ser espiritismo ou alguma religião
indiana, já que eram os interesses dos pais dela. Só que
não era nenhuma dessas.
Assim que entrei no quarto dela, ela me mostrou três
livros.
– Você lendo? – perguntei – não dá para acreditar.
Eram livros sobre umbanda.
– É essa a sua nova religião?
– Isso mesmo! – confirmou Patrícia, orgulhosa –
comecei a frequentar um terreiro. Recomendação de uma
colega minha.
– Que fantástico! – falei – não sei nada sobre
umbanda. Me ensina?
Ela me explicou algumas coisas. Eu achei muito legal,
porque a umbanda tinha forte influência do cristianismo.
– Então agora vamos poder conversar bastante –
comentei, contente – e você poderá me contar tudo sobre
os Orixás, enquanto te conto sobre os santos.
– Pode apostar que vou!
Estranhamente, senti-me feliz. Eu gostava de saber
quando alguém próximo de mim se interessava por
alguma religião. No fundo, não importava tanto que
religião era. Só de saber que as pessoas estavam sendo
menos materialitas e acreditavam no aspecto espiritual da
existência, eu já considerava uma ótima ideia.
Na minha próxima aula de história da filosofia
medieval houve uma polêmica pela primeira vez.

92
A Ordem Terceira

Uma colega minha, chamada Lisandra, fez a pergunta


proibida:
– Parece que todos esses teólogos da Idade Média
eram iguais. Nem se pode chamar esses caras de filósofos.
Então qual é o sentido de estudá-los? Até esse tal de São
Tomás de Aquino nem foi tão original assim. Ele só
repetiu as crenças que a Igreja defendia.
Eu e Thomas estávamos disputando para ver quem
levantava a mão mais alto. Mas Thomas levantou a mão
primeiro. Por isso, minha professora lhe deu a palavra.
– Da perspectiva de um ocidental branco, todos os
asiáticos são iguais – começou Thomas – ou todos os
índios são iguais. Mas eles pertencem a etnias diversas e
cada grupo possui crenças muito diferentes umas das
outras. É lógico que quem nunca estudou o cristianismo a
fundo vai achar que é tudo igual.
– Eles podem até ser diferentes entre si, mas não muda
o fato que todos defendem os dogmas da Igreja –
observou Lisandra – como alguém pode filosofar
livremente se precisa seguir regras? Isso não é um livre
exercício de pensamento, como devia ser a filosofia. É
uma prisão.
A professora me deixou falar dessa vez.
– Cada filósofo está sempre preso aos paradigmas de
sua época – eu disse – não existe isso de “filosofar
livremente”. Tanto que se divide a filosofia em períodos.
Porque cada período é parecido com o outro, em que se
segue as tendências da época. É como na literatura: há
uma época em que é moda escrever livros românticos e
outra em que é moda escrever livros realistas. Na filosofia
há a moda do racionalismo, do empirismo, do realismo,
do antirrealismo. Então, qual é a diferença?
– É diferente no caso de uma religião – argumentou
Lisandra – um filósofo pode escolher seguir ou não a
moda do pensamento filosófico vigente em sua época.

93
Wanju Duli

– E quem disse que um cristão se torna cristão por


obrigação? – perguntou Thomas – os teólogos do
medievo estão defendendo a Igreja porque querem.
Porque eles acham que é o pensamento mais lógico da
época. Até mesmo naquele tempo havia muitas opções de
religiões e filosofias para seguir. Se escolheram essa, era
porque a acharam mais adequada.
– Mas eles podem ter escolhido essa opção pela fé e
não pela razão – disse Lisandra – o que destroi o objetivo
da filosofia, que é medir os argumentos usando critérios
puramente racionais.
– Eu tenho uma teoria – opinei – como diziam os
sofistas, é possível defender qualquer ideia contanto que
se tenha bos argumentos. Heidegger fez até o nazismo
parecer convincente. Então a minha teoria é de que, no
fundo, nenhum filósofo escolhe defender uma teoria
apenas porque a acha lógica. Há outros aspectos
envolvidos, como os emocionais. Filósofos de todas as
épocas tiveram suas crenças religiosas. A maioria deles
foram teístas, alguns panteístas ou deístas. Uns poucos,
especialmente os contemporâneos, agnósticos ou ateístas.
Mas e daí? Até estes também estão se baseando numa
crença para a escolha de teorias filosóficas. Um filósofo
pode optar por defender uma filosofia ateísta
simplesmente por não gostar do teísmo.
– Eles baseiam essa escolha na razão!
– O cristão também baseia na razão – retruquei – mas
uma parte disso é fé, não discordo. Meu ponto é que até
os ateístas também fazem parte de suas escolhas com base
na fé, mesmo que a crença deles seja a não existência de
Deus. Seguindo esse raciocínio, não há como um filósofo
ser totalmente neutro em questão de crença. O ser
humano não é só “razão pura kantiana”. Até Kant tinha
suas crenças, que no caso eram teístas.
– Bem, eu não concordo – insistiu Lisandra.

94
A Ordem Terceira

Mas não deu novos argumentos. Ela estava convencida


que os filósofos ateístas defendiam suas filosofias apenas
com base na razão e nada mais. Eles eram máquinas, nem
mesmo tinham algo parecido com “inconsciente”.
Eu e Thomas saímos bem felizes daquela aula.
– Legal – ele disse.
Quando Lisandra saiu da sala, eu, que estava perto da
porta, disse a ela:
– Esse é só o começo.
– Hein? – ela perguntou.
– Nada – eu disse – deixa pra lá.
Thomas morreu de rir depois. Minha frase de efeito
não deu muito certo.
Em nosso próximo encontro de debates da SCU, o
Padre Sérgio nos deu a honra de nos visitar. Diego o
convidou.
Havia muitos naquela sala que eram fãs dele e ficaram
impressionados com sua presença, como se ele fosse um
rei ou coisa que o valha.
Para a minha surpresa, ele era bem jovial. Bem, ele não
era assim tão mais velho que a gente. E parecia ser bem
alto astral.
Curioso. Acho que depois de tanto falar no inferno e
no demônio, ele se sentia leve, que nem eu me senti no
final daquela missa.
Uma das diferenças era que o Padre Sérgio sempre
vestia a camisa clerical negra com a palheta branca. Ou
seja, ele seria reconhecido como padre por onde passasse.
Marcos, ao contrário, usava no dia a dia roupas
absolutamente normais. Apenas na missa ele usava as
vestes clericais.
– Vocês ainda batem bola no seminário? – perguntou
Padre Sérgio.
– Opa! – falou Thomas – sempre!
– Tem algum campo de futebol aqui no campus?

95
Wanju Duli

E, para a minha completa surpresa, o Padre Sérgio foi


bater bola com os meus amigos. De batina e tudo.
Eu cheguei à conclusão que os católicos, especialmente
os padres e seminaristas, eram completamente viciados em
futebol. Até nas missas os padres não paravam de fazer
piadas com futebol.
Como o Padre Sérgio era da SSPX, ele não podia
assistir muito os jogos de futebol na televisão. A SSPX
recomendava até aos leigos que não assistissem muita TV.
Em compensação, praticar esportes continuava a ser
saudável.
Engraçado que não chamávamos Marcos de “Padre
Marcos”. Soaria meio estranho. Eu vi o pessoal na igreja
chamando Marcos assim e achei esquisito.
Mas acho que era só questão de nos acostumarmos.
Ele tinha se tornado padre há relativamente pouco tempo.
Os futuros novos membros da SCU provavelmente
começariam a se referir a ele dessa forma.
Naquele domingo à tarde, lá fui eu comparecer na
missa em latim com Diego. Era difícil de acreditar que
aquele padre imponente trovejando sobre o temor de
Deus e os suplícios do inferno fosse o mesmo que bateu
bola com o pessoal no outro dia.
Eu já tinha lido num livro que a Mel me emprestou
que era comum na Idade Média alguns padres serem tão
populares. Algumas igrejas eram tão cheias que o pessoal
assistia a missa até de pé e do lado de fora da igreja. Eram
como grandes eventos de uma banda musical famosa de
nossa época.
Por isso eu me senti meio emocionada quando vi uma
galera ali fora da capela, que não conseguiu entrar para a
missa, porque a capela já estava lotada. Cara, eu tava me
esbaldando por ter conseguido um lugar vago no evento
espiritual mais pop da cidade. Mas era para isso que eu
chegava uma hora antes! E para Diego fazer sua confissão
semanal, claro.

96
A Ordem Terceira

Quando saímos de lá, Diego voltou-se para mim:


– Você tem algum compromisso amanhã de tarde?
– Não – respondi.
– Que tal a gente sair juntos?
– Tem missa segunda? – perguntei.
– Não para a missa. Só sair.
– Para onde?
– Sei lá. A gente pode ir comer em algum lugar. Ou ir
no cinema.
Ele tava mesmo me convidando pra sair. Ficou
bastante claro que seria um encontro. Ele não deixou
margem para dúvida.
– Pode ser – confirmei.
– Então tá. A gente pode se encontrar no shopping?
– Não sabia que você gostava de shopping e cinema –
respondi – eu não imaginei, já que você é da SSPX.
– Bem, só estou tentando ser agradável – ele
respondeu – você pode sugerir qualquer outro lugar.
Pensando bem, ir ao teatro é melhor. Quer ir ao teatro?
– Vai ter alguma peça amanhã?
– Por acaso sim, mas é à noite. A gente pode se
encontrar de tarde numa praça então.
Concordei. E nos separamos.
Telefonei para Patrícia naquela noite para contar o
babado.
– Está dizendo que aquele rapaz da ala super
conservada da Igreja te chamou para um encontro? –
perguntou Patrícia, encantada.
– Sim! – exclamei, entusiasmada – até que demorou. Já
faz bastante tempo que a gente vai todo domingo juntos
na missa.
– Você sabe que não tem a menor chance de vocês
fazerem sexo, né? – perguntou Patrícia – nem amanhã e
nem em todos os outros dias que vão se seguir antes do
casamento de vocês.

97
Wanju Duli

– Sei disso. Ele não tem uma visão nem um pouco


liberal a esse respeito. Sei em primeira mão. Já o escutei
discursar sobre isso mil vezes. E talvez ele tenha gostado
de mim exatamente porque só uso moletom e calça de
moletom. Quer dizer, são roupas bem recatadas, né?
– Desculpa, minha flor, mas são roupas horríveis –
disse Patrícia – são roupas de usar em casa. E só em casa.
Tente pelo menos amahã usar algo um pouco mais
arrumado. Quer que eu te empreste uma roupa?
– Não sei. Odeio usar jeans. E claro que não vou usar
calça colada ou saia. Ah, tanto faz. Vou usar qualquer
porcaria. Não vou fazer sexo mesmo. Nem preciso
escolher uma boa calcinha. Nem vou me depilar.
Eu apenas selecionei no meu guarda-roupa uma calça e
uma blusa que estivessem limpas e bem passadas. Optei
por um tênis novo. E até lavei o cabelo.
Para mim, isso já era estar arrumada o suficiente. E
coloquei dois brincos de pedrinhas. Pronto, acabou.
Na tarde do dia seguinte, nos encontramos numa
praça, como ele queria. Sentamos num banco e ficamos
olhando a natureza, os passarinhos. De fato, foi bem
poético.
Ele não falava nada, então resolvi começar o assunto:
– Qual é a sua idade?
– 21.
– Tenho 25 – respondi.
– É mesmo? – ele perguntou – pensei que tivesse a
minha idade.
– Está desapontado? – perguntei.
– Não, de forma alguma. Só disse que você parece
jovem.
Era a tentativa dele de fazer um elogio. Infelizmente,
não me dei ao trabalho de vestir roupas bonitas para dar a
ele a oportunidade de elogiá-las.
– Por que escolheu estudar antropologia? – perguntei.

98
A Ordem Terceira

– Sou fascinado em ver a diversidade da cultura dos


povos. Especialmente no que diz respeito ao aspecto
religioso. Existem tantas religiões diferentes, mas no
fundo elas são muito parecidas. Porque existe o
transcendente, então cada povo é capaz de se comunicar
com esse espírito e adorá-lo.
– Mas você acha que o catolicismo é a interpretação
mais certa – falei.
– Eu acho, mas eu respeito todas as outras religiões –
ele disse – ou melhor, eu não “acho”. Eu tenho fé, tenho
confiança de que o catolicismo é mais certo. E você?
– Minha fé ainda não é tão forte quanto a sua – admiti
– mas admiro sua fé. Quero encontrar um equilíbrio:
desejo continuar respeitando as outras religiões, mas ao
mesmo tempo quero aumentar minha fé na minha
religião. Mas para aumentar essa fé preciso acreditar que o
catolicismo é mais certo que as outras. Entende meu
dilema?
– Não vejo dilema nenhum – ele disse – eu acho
inclusive que quanto mais aumentar sua fé no catolicismo,
mais você irá respeitar a crença dos outros. Porque você
sabe que cada pessoa está experimentando o
transcendente dentro de suas próprias culturas, mas só
irão experimentá-lo completamente no momento em que
confiarem.
– Não entendi direito o que você quis dizer – confessei
– mas mesmo assim achei bonito. Você acha que
precisamos converter os outros ao catolicismo?
– Nós podemos espalhar a fé, mas não obrigar
ninguém a nada. O catolicismo sempre coloca ênfase no
livre-arbítrio. Uma escolha que não é livre jamais será uma
escolha genuína.
– Tem razão – eu disse – mas por que antigamente
havia Gueras Santas e Inquisição para queimar os hereges?
– Principalmente porque a religião se misturou com a
política – disse Diego – é claro que as guerras geravam

99
Wanju Duli

ganhos financeiros. Esse era o maior interesse em fazer


guerras e é assim até hoje. A desculpa de espalhar a fé
geralmente tinha uma motivação política e econômica por
trás. E a Inquisição também tinha alguns motivos
políticos. A Igreja tinha acordo com outras instituições.
– Então sempre foi a briga por dinheiro que destruiu
tudo, não foi?
– Nunca é apenas o dinheiro. Também há motivação
por fama, poder e muitas outras. E todas essas paixões o
cristianismo tenta destruir, porque elas só nos destroem. E
você, por que decidiu estudar filosofia?
– Porque era a próxima opção da lista.
– Como assim?
– Já tentei fazer muitos cursos, mas nunca termino
nenhum. Estou meio perdida. Nem sei se vou terminar
esse.
– Bem, eu acho que você não deve se preocupar –
falou Diego – o importante é ter fé em Jesus. Os outros
aspectos da nossa vida a gente arranja. Com Deus temos
tudo. Eu não tenho medo de ser pobre. Nem um pouco.
Nunca tive. Eu não entendo meus colegas que estão
preocupados com o mercado de trabalho da antropologia.
Eu jamais escolhi meu curso pensando no mercado de
trabalho. Não condeno quem faça isso, mas eu sinto uma
grande compaixão pelos meus colegas que ficam ansiosos
e temerosos sobre o futuro. Como alguém pode ter medo
quando tem fé em Nosso Senhor?
Eu me senti emocionada com o que ele disse.
Na verdade, me senti tão emocionada que me inclinei
na direção dele e dei-lhe um beijo na boca.
Sim, eu sou corajosa. Fiz isso de uma vez só, sem
pensar.
E ele aceitou meu beijo. Demos um daqueles beijos
longos e profundos, mas sem usar a língua.
Senti-me aquecida por dentro. Meu coração batia forte.
Não lembrava que aquilo era tão bom.

100
A Ordem Terceira

Até que ele parou de me beijar. Eu me afastei dele.


Será que eu tinha ido longe demais? Eu não sabia qual
era o protocolo. Será que os cristãos tinham que pedir
permissão para o pai ou para a mãe para casar? Até onde
eu sabia, cristãos podiam namorar. Só não faziam sexo no
namoro.
Todos aqueles pensamentos estavam cruzando a
minha mente como um furacão. Por que ele não dizia
nada? Aquilo estava me deixando nervosa.
Foi quando ele me perguntou:
– A gente tá namorando?
– Eu aceito – falei – você quer?
– Quero.
Eu achei isso muito bonitinho! Mas depois de a gente
dizer isso, ainda ficamos parados. Cada um sentado,
olhando pra frente.
– Você já namorou antes, certo? – perguntei.
– Sim. E você?
– Também.
Então tá. Assim eu ficava mais tranquila.
Pensando com mais calma, era bom namorar um
cristão. Um católico sério como ele, que leva a sério os
mandamentos e que é um defensor da ala conservadora da
Igreja, leva um relacionamento a sério. Namora uma
garota pensando em casar com ela. E não vai querer traí-
la.
É claro que católicos também traem, mas a maior parte
deles o fazem ou porque não temem realmente a Deus ou
porque possuem uma libido tão forte que acabam
cometendo pecados que eles próprios reconhecem ser
pecados que confessam depois.
Infelizmente, atualmente nem os católicos acreditavam
mais na Igreja. Achavam que a eucaristia era um símbolo e
que a religião servia para nos “fazer sentir bem”.

101
Wanju Duli

Mas no que eu estava pensando? Eu estava pensando


em religião numa hora daquelas? Eu estava mesmo
distraída.
– Me conta uma coisa – falei – você sempre foi
católico?
– Sempre – ele respondeu – já tive meus momentos de
crise de fé no passado. Mas eu recuperei essa fé na SSPX.
– Então você é virgem? – perguntei.
– Sim. E você?
“Merda!” pensei. Que responsabilidade!
– Você sabe que sou uma convertida recente – foi
minha resposta.
– Isso quer dizer que você não é.
– Ficou triste? – perguntei.
Ele não respondeu.
“Porcaria!” pensei. Eu odiava toda aquela situação.
Não odiava o fato de eu não ser virgem, mas talvez eu
odiasse o fato de ele ser tão conservador e achar que eu
era menos que uma guria virgem.
Mas Jesus não achou que Madalena era menos que
ninguém por ser prostituta. Então por que ele ia me
julgar? Eu só tinha transado com dois caras e fazia muito
tempo! E os dois foram meus namorados, caramba. E
mesmo se não fossem... sei lá!
Para meu alívio, ele disse:
– Eu não me importo que você não seja virgem. Isso
aconteceu antes do seu batismo, certo?
– Sim – respondi.
– Então está tudo bem.
– Só por curiosidade – falei – e se tivesse acontecido
depois? O que você ia dizer?
– Eu não ia me importar mesmo assim, mas eu fico
mais aliviado que tenha sido antes. Não por minha causa.
Mas isso é positivo para você.

102
A Ordem Terceira

Eu não entendia muito bem aquilo tudo. Mas resolvi


deixar para lá. Não tinha interesse em alongar aquela
conversa.
– Pode me contar mais sobre as regras de um namoro
entre cristãos? – perguntei – eu gostaria de entender.
– É muito simples – falou Diego – você já conhece as
regras: sexo só depois do casamento. Mas onde termina o
abraço e o beijo e começa o sexo, cada casal deve
conversar e determinar sobre os limites.
– Entendi – falei – me conte sobre os seus limites. Não
quero cometer um erro.
Afinal, eu me sentiria muito mal de ser empurrada por
ele ou algo assim. Acho que eu me sentiria péssima.
– Não se preocupe com isso – ele disse.
– Eu estou preocupada! – garanti.
– Não acho que você vá passar de nenhum limite.
– Então abraço e beijo pode, né? – perguntei, para me
certificar.
– Sim, claro que pode.
Tá bom. Entendi qual era o jogo dele.
Ele não queria usar os termos. Eu não o imaginava
pronunciando a palavra “seios” ou “peitos”. Acho que ele
era conservador demais para isso.
Então, basicamente, só podia abraço e beijo. Nada
mais. Acho que foi isso que ele quis dizer. Resolvi
interpretar assim, para não criar problemas.
– E quanto a você? – ele me perguntou.
– Eu estou legal com o que você decidir – falei.
Isso significava que se ele topasse sexo eu topava. Mas
é claro que eu não ia dizer isso. Ele ia achar que minha fé
não era forte o bastante. E esse era exatamente o caso.
Acho que se pode determinar o grau de fé de um
católico vendo quantas proibições “literais” da Igreja ele
aceita. Isso faz sentido, porque significa que o católico
acredita que a Igreja representa a vontade de Cristo e que
se a Igreja proíbe contraceptivos e aborto, ela realmente

103
Wanju Duli

quis dizer exatamente isso, e não há possibilidade de


interpretação.
É claro que para a mente moderna e seus relativismos,
interpretar os dogmas da Igreja literalmente é sinônimo de
ignorância. Mas restava ver quem era o verdadeiro
ignorante da história.
Eu aceitava fazer sexo, ponto. Mas não porque eu
achava que não havia problemas nisso. Eu reconhecia que
minha fé não era forte. Muita gente prefere criticar a Igreja
e Deus do que admitir que pode estar errado ou que ceder
aos prazeres às vezes é objetivamente errado.
Bem, eu ainda estava aprendendo. Recém tinha sido
crismada. Mas para uma católica recente eu já me
considerava bastante esperta.
Ele levantou-se.
– Vamos comer alguma coisa? – ele me convidou –
onde você gostaria de ir?
– Onde você preferir – respondi.
Nós fomos até uma cafeteria. Ele pediu um café e um
pão de queijo. Eu pedi um chá e uma fatia de torta de
chocolate.
Enquanto aguardávamos os pedidos, eu o observei.
Diego era mulato como eu. Olhos e cabelos negros.
Cabelos crespos e curtos. Não era magro e nem gordo.
Tinha um tipo físico médio.
Naquele dia ele estava com uma calça jeans, sapato e
camisa de manga curta. Gostei do fato de que seus braços
eram ligeiramente musculosos. Será que ele fazia alguma
atividade física?
Ele tinha sobrancelhas grossas. Também gostei do
nariz dele. Era meio grande e com um formato meio
exótico.
Ele era sexy. Eu ficava maluca pensando que eu o
havia beijado pouco tempo atrás. Eu era uma sortuda por
estar namorando aquele gato.

104
A Ordem Terceira

Acho que eu era meio lenta. Foi assim com Thomas


também. Só percebi que gostava dele quando descobri que
não podia tê-lo. E no caso de Diego, eu só reparei no
quanto eu o achava gato depois que eu já o havia beijado.
Sei lá. Acho que meu corpo percebe as coisas mais
rápido do que meu cérebro.
– O que você acha dos protestantes? – resolvi
perguntar.
Será que era meio chato só falarmos de religião? Mas
pelo menos eu tinha certeza de que esse era um assunto
que ele gostava.
– Eu respeito os protestantes – foi a resposta de Diego
– ao mesmo tempo, acho precipitado querer interpretar a
Bíblia livremente. Respeito Lutero, admiro o que ele fez.
Mas ir mais longe confiando apenas na consciência pode
ser perigoso.
– Às vezes me sinto meio intolerante – falei – eu mal
experimentei outras religiões. Já fui direto para o
catolicismo. Parece que os católicos estão certos. Mas será
que se eu não lesse a fundo a literatura luterana também
não ficaria convencida? Eles também devem ter seus
grandes teólogos, com argumentos fortes.
– Pode ser – disse Diego – eu acho válido ler a
literatura protestante, mas também pode ser uma tentação
desnecessária. Já encontramos nosso caminho. Por que se
distrair da busca da verdade?
– Eu acho que quando temos uma fé muito forte não
precisamos temer nada – resolvi usar o argumento que ele
tinha dado antes – um católico que tem certeza de sua fé
jamais deve ter medo de ler literatura de qualquer tipo.
Essa fé jamais será abalada.
– Tem razão. Mesmo assim, a literatura católica já é
quase infinita. Precisaríamos de dezenas ou centenas de
vidas para estudá-la da forma que merece. Então por que
se desviar e ler outros tipos de livros?

105
Wanju Duli

– Você só lê livros católicos? – perguntei – não tem


outros hobbies? Não lê literatura?
– Eu leio literatura cristã.
Eu suspirei fundo.
– Eu assisto Netflix, jogo joguinhos de celular, leio
chick-lit. E você?
– Eu jogo futebol.
“É claro que você joga futebol, que grande novidade!”
Diego parecia um caldeirão de previsibilidade.
– Eu jogo Dota 2 – ele disse.
– Puta que pariu! Desculpe.
Fiquei chocada.
– O seu padre não diz que você tem que ver menos
televisão?
– Computador não é televisão – argumentou Diego.
– Você está fazendo que nem as pessoas que você
critica! – comentei, triunfante – em vez de admitir que
cometeu um erro, está tentando se safar!
– Está bem, espertinha – Diego sorriu – sou viciado
em jogos de computador. Preciso melhorar e jogar menos.
Sou um pecador. O padre sabe disso. Eu falo do Dota em
todas as minhas confissões.
– Coitado. Ele não deve aguentar mais.
– Ele também joga.
– O quê?!
– Estou brincando. Só queria ver a sua reação.
E ele deu um novo sorriso de triunfo.
Era isso que eu queria! Eu estava conhecendo um
novo lado do Diego. Não só o católico ultraconservador,
educadinho e politicamente correto.
Eu raramente o via sorrir. Fiquei feliz por ter visto.
– Já que é tão viciado no catolicismo, nunca pensou
em ser padre ou monge? – perguntei.
– Eu não acho que apreciar o catolicismo implique
necessariamente no desejo pelo sacerdócio – disse Diego
– nunca tive esse desejo. Sempre sonhei em ser pai.

106
A Ordem Terceira

– Eu também sempre quis ser mãe – garanti a ele –


então estamos combinando.
OK, aquele não era exatamente um sonho. Nunca
pensei muito sobre isso. Mas sempre achei natural um dia
casar e talvez ter pelo menos um filho. Propagar a espécie,
essas coisas. Fazia um pouquinho de sentido, talvez. Acho
que Jesus também era a favor. Não acho que ele
defendesse que a raça humana fosse extinta porque todos
se tornaram celibatários.
– Então... quando a gente vai se casar? – perguntei.
– Hã?
– Eu ouvi falar que vários católicos se casam cedo para
poder fazer sexo.
Quase me arrependi por ter dito isso. Acho que
pareceu meio desesperado.
– Você quer ter filhos agora? – ele perguntou, meio
confuso.
– Não era comum na Idade Média ter filhos com a
nossa idade? – perguntei, debilmente – você não defende
a Idade Média?
– Você está falando sério?
– Não, desculpa – eu ri – eu momentaneamente me
esqueci que não podemos usar preservativos.
– Você está OK com isso?
– Fazer o que, né – eu disse.
Eu estava falando muita merda para o primeiro dia de
namoro. Era melhor eu distribuir entre os próximos dias,
para não deixá-lo chocado demais e fazê-lo sair correndo.
– Você está feliz em me namorar, Joana? – ele
perguntou – mesmo sabendo que haverá essas limitações?
– Eu aguento – falei – porque gosto de você.
Ele deu um largo sorriso. Aquele sorriso sincero. O
“sorriso cristão” bobo alegre! Eu adorava.
Não me segurei e o beijei outra vez. A gente já tinha
acabado de comer.
– Vamos voltar para a praça? – propus.

107
Wanju Duli

– Pode ser. Ainda teremos que aguardar um pouco até


o horário da peça.
Nós voltamos. Assim que nos sentamos voltei a beijá-
lo.
Dei um beijo um pouco mais longo. Experimentei usar
a língua, para ver se ele topava. Será que era muito
pervertido?
Ele topou. E demos um beijo de língua. Meu coração
batia demais. Era gostoso. Até senti um pouco de desejo
sexual, mas foi bem leve.
Quando uma mulher sente desejo pode disfarçar bem.
Só senti uma pulsação no baixo ventre. É claro que não
era possível perceber isso.
No entanto, para meu espanto, notei que o Diego teve
uma ereção por baixo da calça enquanto me beijava. E
aquilo ficou muito claro.
Eu parei de beijá-lo. Eu não estava acreditando
naquilo.
– Merda!
Eu jamais o imaginei dizendo um palavrão. O cara
ficou furioso! Ele simplesmente levantou e saiu de lá.
“Para onde ele vai?” pensei. Ele me deixou lá sozinha!
Não achei aquilo legal. Poxa. Já era final de tarde. Não
queria ficar sozinha na praça.
Achei um ato meio egoísta. Ele estava mais
preocupado com o próprio pau e com seu orgulho do que
comigo.
Quando retornou alguns minutos depois, ele pediu
profundas desculpas. Eu não sabia exatamente pelo que
ele estava pedindo desculpas: se foi por ter tido uma
ereção ou por ter me deixado sozinha e abandonada. Ou
por ter falado um palavrão. Eram muitas as possibilidades.
– Isso nunca aconteceu antes – ele disse – quero dizer,
não na frente de uma garota. Eu estou chocado.
– Eu não estou chocada, não se preocupe – garanti –
então você nunca se masturbou?

108
A Ordem Terceira

– Eu não faço essas coisas. Já fiz há muito tempo, mas


não faço mais.
Coitado.
Pensando bem, talvez eu não gostasse de namorar um
cristão.
Aquilo era tudo muito chato. Todo aquele exagero
sobre pecados. Porra, o cara nem podia bater uma porque
Deus estava vendo? Eu continuava me masturbando
normalmente, mesmo depois de ter feito a crisma, e não
me sentia nem um pouco culpada.
Isso acontecia porque minha fé não era muito forte?
Que bobagem!
Ou será que não era bobagem?
Diego segurou na minha mão e beijou-a.
– Eu te amo muito, Joana. Vamos superar isso juntos?
Com fé em Jesus?
Droga. Ele estava sendo fofo de novo. Assim eu não
aguentava.
– Claro, Diego. Também te amo. Com... fé em Jesus.
Foi estranho pra caralho dizer aquilo. Mas tudo bem!
Tudo beleza! Aos poucos eu ia me acostumar.
Logo chegou o horário do teatro. Fomos juntos. Foi
muito bom. Foi uma peça do Molière.
Ele me acompanhou até em casa. Me deixou na porta.
Adorei! Muito romântico.
Assim que cheguei em casa peguei o telefone e contei
tudo para Patrícia. Não deixei escapar nada. Nem a
ereção.
Patrícia era o equivalente ao meu confessor.
– Guria! Que excitante! – exclamou Patrícia, feliz da
vida – então o ultraconservador também sente desejo
sexual, hã? Ele deve gostar mesmo de você.
Não sei porque tratavam os cristãos como se fossem
bichos. É óbvio que eles sentiam desejos como qualquer
outro. Eles eram completamente humanos.

109
Wanju Duli

Senti mais amor por Diego ao constatar seu lado


humano, suas fraquezas. Às vezes ele me parecia tão
distante e tão forte! Com uma fé inabalável.
Mas ele me amava. E pelo amor dele por mim, estava
disposto a correr diferentes perigos e tentações. Aquela
não era uma aventura divertida?
Nem eu e nem Patrícia colocamos muita fé naquela
nossa “castidade”. Patrícia apostou que não duraria um
mês.
Para a nossa surpresa, dois anos se passaram e a gente
continuou namorando sem transar. Nem mesmo eu
imaginei que um namoro assim fosse possível. Mas não é
que aconteceu?
Vou resumir a história: abandonei meu curso de
filosofia no meio do terceiro semestre, porque não
aguentei mais. Especialmente aquela disciplina de história
da filosofia medieval. A professora era inteligente, mas
não era capaz de controlar a turma. Aquela minha colega e
muitos outros colegas meus ateístas começaram a discutir
em quase todas as aulas.
Os argumentos eram circulares: “a Igreja é atrasada, a
Igreja atrasou a filosofia em mais de mil anos, a teologia
corrompeu a „verdadeira filosofia grega clássica””. Que
raios? O que é a porcaria da filosofia grega clássica, afinal?
A filosofia grega sempre teve influência da filosofia
Egípicia, da Biblioteca de Alexandria e muitos outros
lugares. Não existe nenhuma filosofia pura sem
influências.
Enfim. Enchi o saco.
A minha mãe já estava pensando em começar um
restaurante. Ela era aposentada e sempre teve essa ideia.
Então eu topei ajudá-la. Até a minha vó topou entrar na
onda, porque ela era fera na cozinha.
E assim montamos o nosso negócio. Decidi que era
aquilo que eu queria fazer da vida. Eu estava adorando

110
A Ordem Terceira

cozinhar ultimamente. Estava aprendendo a fazer pratos


divinos.
E o melhor: todo aquele projeto do restaurante me
aproximou muito da minha mãe e da minha avó. A gente
passava muito tempo juntas, apenas entre mulheres. As
mulheres das três diferentes gerações.
Um ano e meio após inaugurarmos o restaurante, já
tínhamos a nossa clientela regular. Abrir um negócio é
difícil. Mas deu certo! Ou pelo menos estava dando até
aquele momento.
Talvez porque a gente amava o que fazia. E nos fins de
semana o restaurante era tão agitado que acabamos
pensando em contratar um garçom.
Por isso, nos fins de semana o Diego nos ajudava.
Minha mãe adorava ele. E minha vó também.
Aqui está a melhor coisa do mundo: Diego e minha vó
debatendo catolicismo. E o mais interessante é que ela
tinha argumentos muito bons. Ela parecia conhecer a
Bíblia praticamente de cor. Às vezes deixava Diego sem
fala, pois ela sempre tinha alguma boa citação para quase
todo argumento que ela usava.
– Está no sangue – ele me disse por fim – a fé e o
conhecimento da sua vó são incomparáveis.
Me senti orgulhosa.
Também foi naquela época que eu iniciei meus estudos
para entrar na Ordem Terceira dos Pregadores.
Fiquei emocionada! Após dois anos e meio desde o
meu batismo, eu finalmente realizaria aquele sonho antigo.
E era tão empolgante quanto imaginei. Ali estavam
católicos devotos que já tinham certo tempo de
caminhada e que desejavam se dedicar mais
profundamente ao carisma dos dominicanos.
Todos ali curtiam filosofia e teologia. E alguns sabiam
tanto e tinham lido tanto que até me envergonhei do meu
pouco conhecimento. E eu pensando que era esperta!
Eu já estava com 27 anos, quase 28.

111
Wanju Duli

Tínhamos que realizar uma leitura semanal que


debatíamos no fim de semana. Nessa ocasião também
rezávamos o terço e fazíamos outras orações típicas dos
dominicanos.
Eu assisti pela primeira vez uma missa dominicana. Ela
era um pouco diferente da missa tradicional, ou
contemporânea.
Era realmente um novo mundo.
Diego estava me dando aulas de latim ultimamente.
Afinal, como ele era da SSPX, acabou aprendendo um
pouco de latim e grego.
Havia essa garota estudando comigo na Ordem
Terceira. Ela se chamava Rafaela e era um monstro.
Ela sabia trechos gigantes da Bíblia completamente de
cor. E não só isso. Sabia trechos dos comentários de cor.
De vários livros cristãos, especialmente de autores
dominicanos.
Ela era três anos mais nova que eu. Sempre tinha os
melhores argumentos durante as discussões.
“De onde essa menina saiu?” pensei, abismada.
Pensei em apresentá-la para vários amigos meus da
SCU, pois ela era realmente uma criatura inacreditável.
Fiz questão de levá-la em um dos encontros. O Marcos
ainda ajudava nos debates, mas em sua maioria havia
muita gente nova. Os novos alunos cristãos da
universidade. Exatamente as pessoas ideais para
impressionar.
– Oi gente – Rafaela sorriu amavelmente – vocês
precisam de alguma oração? Sei mais de cem orações de
cor.
Está bem, ela era muito inteligente e tinha uma
memória assustadora, mas faltava a ela um pouco de
humildade. Ela vivia repetindo a quantidade de coisas que
sabia de cor. Mas eu também achava aquilo engraçado.
Naquele dia, ela deixou muita gente boquiaberta.

112
A Ordem Terceira

Ela tinha cabelos enormes. Cabelos negros e


ondulados que lhe passavam da cintura. E usava uns
vestidos lindos e longos.
Era quase um ícone. Um tipo de Madona.
E ela ganhou muitos fãs. Fiquei sabendo que várias
pessoas que ouviram falar dela queriam conhecê-la.
Porém, ela logo se tornaria inacessível.
Um ano após iniciar seus estudos na Ordem Terceira,
ela a abandonou. Descobri que ela tinha se mudado para a
África para ser uma freira dominicana por lá. Seu sonho
era dar aulas para uma comunidade pobre e isolada que
havia na Etiópia.
Quando eu estava prestes a completar 29 anos, tive
uma conversa com Diego.
– Estou adorando a Ordem Terceira – falei – mas não
acho que eu preciso terminar meus estudos lá para a gente
se casar. Os negócios no restaurante estão bem. E você
conseguiu um estágio enquanto faz a sua pós-graduação.
Sei lá. O que você acha?
– Eu acho que eu devia ter aceitado a sua sugestão de
nos casarmos logo no nosso primeiro dia de namoro –
brincou Diego – mas naquela época nem eu mesmo
acreditei que esse namoro fosse dar certo. Sempre
desconfiei de convertidos recentes. Achei que podiam
continuar presos no passado.
Eu não precisava esquecer completamente meu
passado, mas aprender com ele. Achava que cada pequena
situação que eu havia vivido até ali tinha me ensinado
grandes lições. Mas alguns desses ensinamentos eu só viria
a entender num futuro muito mais distante.
Achava que estava mesmo tudo determinado pelos
planos de Deus. Até lembrei daquela conversa idiota e
antiga que tive com Thomas sobre livre-arbítrio e destino.
Provavelmente ele estava certo. Existia destino. Minha
vida era a maior bagunça, então só podia haver mesmo

113
Wanju Duli

uma força superior regendo aquilo tudo para fazer as


coisas darem certo.
Ou, como costumavam dizer os padres: a Igreja só
pode ser divina mesmo. Depois de todos os erros que a
Igreja já cometeu, só pode haver a mão de Deus naquilo
tudo para ela continuar de pé, firme e forte, por mais de
dois mil anos.
E talvez aquela fosse a maior fonte da minha fé: a
existência das falhas, dos erros, dos pecados e do mal. Era
exatamente porque existiam todas aquelas coisas que eu
acreditava em Deus.
Ou, como dizia o livrinho da Mel:
"Sem os demônios e as ciladas que eles colocam no nosso
caminho nós não conseguiríamos progredir, diziam os antigos Padres
do Deserto"
"O cristão não é um homem melhor do que os outros, nem mais
inteligente, nem mais amoroso, ele apenas caminha com alguém, ele
se mantém na sua presença"
É somente através do sofrimento passado no pior dos
infernos que conseguimos alcançar a bênção do mais alto
dos céus.
– Quer jogar futebol comigo, Joana? – perguntou
Diego – está fazendo um tempo ótimo lá fora.
– Claro, meu amor. Eu adoro jogar futebol.

FIM

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