– Experiência e Narrativa – o pós-abolição como problema histórico
Os depoimentos, tomados em conjunto, produziram determinadas representações
comuns sobre a escravidão e liberdade referidas à trajetória e à tradição familiar. A partir de iniciativas como essas, tardiamente começaram a se constituir, no Brasil, acervos potencialmente capazes de basear uma abordagem histórica sobre a inserção social dos últimos libertos após a abolição da escravidão, em 1888. Este esforço se fez de forma paralela a uma intensificação dos estudos comparados sobre sociedade pós-emancipação nas Américas. A construção do pós-abolição como problema Durante muitos anos considerou-se mais ou menos a mesma coisa estudar as relações raciais no pós-abolição ou o destino das populações libertas, considerando ambas as situações uma herança do período escravista. A tese de Freyre, da qual se infere uma visão de certa forma harmoniosa das relações raciais no Brasil dos anos 1930 como herança da escravidão, foi decisiva para influenciar a percepção acadêmica sobre a situação dos descendentes de escravos no Brasil. Tannenbaum iniciou o que seria uma das características metodológicas mais marcantes dos estudos posteriores sobre a escravidão: a preocupação com a comparação. Foi a relação estrutural, entre sistema jurídico no tempo da escravidão e relações raciais pós-emancipação, que se consolidou como leitura predominante de sua obra. Aquela que foi a mais duradoura e consensual das posições dos autores: a de que as relações raciais e a situação do “negro” no pós-escravidão eram fruto, mais ou menos direto, da herança da escravidão. Para Florestan Fernandes, a herança deformadora da escravidão seria apenas um dos fatores a explicar a desorganização social que ele percebia como característica das populações negras. Para a explicação dessa situação de patologia social, teriam contribuído elementos conjunturais e psicológicos, e não apenas a herança da escravidão. Mesmo introduzindo elementos conjunturais e dinâmicos em sua análise, Fernandes sugere, basicamente, que a ordem social herdada da escravidão foi um dado estrutural que persistiu, sobrevivendo ao pós- abolição. Nessa perspectiva, em si mesma a abolição se apresentaria quase como um não- fenômeno, incapaz de gerar mudanças. Ao longo dos anos 1960, operou-se na academia brasileira uma primeira revisão das teorias interpretativas sobre a escravidão brasileira. A escravidão passa então a ser percebida, por cientistas sociais e historiadores, como produto de uma sociedade completamente desprovida de espaços de convivência entre livres e cativos, para além das relações de violência e trabalho. No entanto, as conclusões de Elkins (1959) sobre a deformação da personalidade escrava nos EUA encontravam claros paralelos na produção brasileira do período, que passava a ver no escravo a mesma característica patológica e a olhar a escravidão no Brasil como um sistema cruel e deformador. Gutman (1976) mostrou que os escravos americanos não apenas conheceram a família, como esta era a principal influência em suas vidas. Genovese (1969) argumentava que o paternalismo não era traço único da escravidão ibérica, antes cumpria um papel especifico em todos os sistemas escravistas, dependendo mais de variáveis como o absenteísmo ou não da classe proprietária e da exigência ou não do tráfico negreiro do que propriamente da religião dos senhores ou da legislação vigente nos vários países escravistas. Também os espaços autônomos de produção dos escravos e suas possibilidades de negociação vieram a integrar o universo de preocupação dos historiadores. As descobertas sobre a importância das roças dos escravos e sobre as famílias escravas passaram a ter grande influência na explicação da estabilidade do próprio sistema escravista, bem como nos comportamentos de resistência passiva ou de revolta aberta apresentados pelos escravos. A incorporação do conceito do escravo como agente foi talvez o que tenha permitido a rica revisão historiográfica que a literatura sobre o tema tem apresentado. A ênfase das pesquisas para o papel social dos próprios escravos. A história social da escravidão, uma abordagem das sociedades pós-emancipação mais centrada na experiência dos libertos, no estudo de suas aspirações e de suas atitudes em face do processo emancipacionista e dos novos contextos sociais por ele produzidos. O escravo que emergia da nova história social da escravidão era cada vez mais capaz de ação histórica. Também as atitudes dos libertos passaram a ser analisadas como inciativas que respondiam a projetos próprios, que necessariamente teriam interferido nos processos de reconfiguração de relações sociais e de poder que se seguiram à abolição do cativeiro. Foi a historiografia sobre o período pós-emancipação no Caribe que primeiro explorou alguns dos aspectos que mais tarde se mostrariam comuns a vários processos de emancipações, num enfoque que privilegiava a ação dos libertos. Atualmente, a luta dos libertos pelo que entendiam como o significado da liberdade está na base das interpretações da política e das iniciativas dos antigos estados escravistas no pós- abolição. Os desenvolvimentos dos estudos sobre o pós-emancipação permitiram reavaliar também os estudos históricos sobre as relações raciais e a ideia de “herança da escravidão”. Reconhecer que o processo de destruição da escravidão moderna esteve visceralmente imbricado com o processo de definição e extensão dos direitos de cidadania nos novos países que surgiram das antigas colônias escravistas. A historicidade das identidades e classificações raciais tornou-se questão central para o entendimento dos processos de emancipação escrava e das formas como as populações afrodescendentes e as sociedades pós-emancipação lidaram culturalmente com os significados da memória do cativeiro. Estudos sobre o pós-emancipação têm contribuído para questionar o mais duradouro dos postulados Freyre/ Tannenbaum, o de que a situação do “negro” é resultado, pura e simplesmente, da herança da escravidão. Procura-se recuperar a historicidade dos diferentes processos de desestruturação da ordem escravista e seus desdobramentos. Procura-se desnaturalizar a noção de raça, percebendo as categorias e identidades raciais como construções sociais, historicamente determinadas. Explorar as condições de produção e difusão de uma determinada memória coletiva sobre o tempo do cativeiro que transmitiram, de forma surpreendentemente regular, a seus filhos e netos, bem como as formas como essa memória foi apropriada e ressignificada por seus descendentes ao longo do conturbado século XX. Permitem abordar aspectos do processo de inserção social dos últimos libertos após o fim do cativeiro que as abordagens exclusivamente baseadas em fontes escritas, até então, não haviam conseguido explorar. Evidenciar a construção de uma determinada memória coletiva sobre o processo de abolição e sobre o tempo do cativeiro, própria às famílias camponesas formadas a partir da última geração de libertos. Ajudar a sublinhar a especificidade e a importância de se abordar as reconfigurações de relações sociais e identitárias, no pós-abolição, como problema histórico.