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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.

Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.

TEXTO 01
Conceito e origem da Filologia românica

Conceito de Filologia e Linguística


Muitas universidades de línguas neolatinas têm professores de Filolo-
gia românica e as de outras nações as de suas línguas: Filologia germânica
ou Filologia eslava, por exemplo. Entretanto, é mais comum haver profes-
sores de Linguística.

Em que diferem Filologia e Linguística? Primeiro permita-me o leitor


apresentar a opinião abalizada de Serafim da Silva Neto (1917-1960) em
seu livro sobre a Filologia portuguesa (SILVA NETO, 1957):
A Linguística é uma ciência de princípios gerais, aplicáveis a quaisquer línguas. Nessa
conformidade, não julgamos aconselhável falar, por exemplo, em Linguística francesa,
ou inglesa, com o fito de referirmos estudos acerca dessas línguas. A Linguística parece-
-nos sempre geral. A Filologia, sim, encerra todos os estudos possíveis acerca de uma
língua ou grupo de línguas: Filologia portuguesa, Filologia indo-europeia. [...]

Enquanto a Linguística estuda precisamente a língua ao longo da sua


história, Linguística diacrônica, ou num dos seus momentos dados, Lin-
guística sincrônica, encarando sempre a fala, a Filologia depende majorita-
riamente de documentos escritos: assim existe uma Linguística das línguas
indígenas. Coutinho (1976, p. 17) nos traz uma definição simples e comple-
ta, que permite uma boa distância entre ela e a Linguística: “Filologia é a
ciência que estuda a literatura de um povo ou de uma época e a língua que
lhe serviu de instrumento”. Essa definição já explica que estudar a língua
de Os Lusíadas cabe bem mais à Filologia que à Linguística. Nesse sentido
mais restrito, a Filologia era praticada pelos antigos gregos e romanos, mas
agora a língua escrita é muito mais frequente que naqueles tempos.

É claro que entre a Filologia e a Linguística existe um elo comum, que


está no final da definição de Lima Coutinho: “[...] a língua que lhe serviu de
instrumento” (1969, p. 17). Por tudo isso, creio também que os aspectos
ortográficos antes pertençam à Filologia, e sejam em princípio indiferen-
tes para a Linguística.

Além disso, o campo da Filologia é mais amplo, porque há assuntos


de que a Linguística ordinariamente não cuida, sem se falar dos aspectos
literários que também não são abordados por ela:
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 edições diplomáticas;

 edições críticas;

 comparação de edições diferentes para se chegar ao texto original;

 estudo das divergências entre línguas da mesma origem.

As edições diplomáticas e críticas apresentam as obras sob diferentes crité-


rios de elaboração, ainda que os objetivos sejam os mesmos: apresentação mo-
delar de um original.

A edição diplomática procurava dar a imagem verdadeira de um texto, mas


a técnica de hoje tem as cópias fotográficas ou eletrônicas, que são muito mais
fiéis por reproduzirem todos os detalhes da página. Houve, entretanto, valiosas
edições diplomáticas das cantigas trovadorescas que se perderam no tempo.

A edição crítica quer apresentar a melhor forma de um texto por eliminar


os erros involuntários, existindo excelentes edições críticas dos Evangelhos. O
ruim dessas edições críticas é que comumente aparecem em cada página mais
linhas de notas que as do texto original, sendo assim interessantes somente para
poucos especialistas e para bibliotecas especializadas.

A comparação de edições diferentes para se chegar ao texto original tem o


exemplo das duas edições antigas de Os Lusíadas, que se distinguem pela capa. Em
cada uma delas aparece um pelicano voltado para um lado diferente. É trabalho da
Filologia estudar as edições para descobrir qual forma foi a escolha inicial do autor.

Um caso mais simples está em um dos versos do Hino Nacional brasileiro, que
é cantado de duas formas, cabendo à Filologia provar como é o verso original do
texto de 1909, escrito por Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927) e música
de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), tocada pela primeira vez em 1831,
sem nunca ter um texto definitivo, todos ruins de letra ou de conteúdo. A sua
oficialização veio em 1922, pouco antes dos festejos do primeiro centenário da
nossa independência política.

Entre os nossos hinos patrióticos, o mais heroico e ao mesmo tempo lírico é


a Canção do Expedicionário, criada em 1944 com texto de Guilherme de Almeida
(1890-1969) e melodia de Spartaco Rossi (1910-1993), que falam ao coração:

Você sabe de onde eu venho?

Venho do morro, do engenho,

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Das selvas, dos cafezais,

Da boa terra do coco,

Da choupana onde um é pouco,

Dois é bom, três é demais [...]

(ALMEIDA, 1982, p. 91)

Deixem-me os meus leitores acrescentar que Duque Estrada pretendeu


honrar a figura emérita de Antônio Gonçalves Dias (1823-1865) tomando a se-
gunda estrofe da “Canção do exílio” nos seus três versos finais para a segunda
estrofe da segunda parte do nosso Hino: é pena que poucos percebam essa hon-
raria. Esses versos pertencem com certeza a uma das poesias mais emotivas do
nosso cancioneiro, em que o poeta externa a sua dor de estar longe do Brasil,
enquanto estudava em Portugal.

A “Canção do exílio”, publicada por Gonçalves Dias em 1847 no livro Primeiros


Cantos, tem versos de sete sílabas e aparece como segunda estrofe desse desa-
bafo de saudade os três versos que o autor do Hino Nacional aproveitou para a
sua gentil homenagem ao nosso maior romântico. A estrofe de Gonçalves Dias
é a seguinte, de que o primeiro verso foi desprezado numa troca infeliz do céu
pela terra

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores[...]

(GOLÇALVES DIAS, 1997, p. 27)

Este foi o aproveitamento que dessa estrofe fez Duque Estrada, substituindo
o céu do primeiro verso pela terra:

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida, [...]

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A estrofe original aparece deste modo em todas as suas edições, faltando as


aspas na segunda metade do segundo verso, certamente por um esquecimento
de Duque Estrada:

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos têm mais flores;

“Nossos bosques têm mais vida”,

“Nossa vida” no teu seio “mais amores”.

Lembro aos meus amáveis leitores que as linhas acima são um exercício de Fi-
lologia. Acrescento ainda que a recusa da palavra várzeas se deveu ao verso que
teria uma sílaba a mais com o feminino do possessivo tuas e o enxerto no quarto
verso foi motivado exclusivamente pela melodia do nosso Hino, que é 78 anos
mais velha que a sua letra. Enquanto a estrofe do poema de Gonçalves Dias tem
quatro versos de sete sílabas métricas, a do Hino Nacional tem versos ímpares
de sete sílabas e versos pares de onze sílabas. Assim, portanto, faltavam quatro
sílabas, que o autor teve de inventar: no teu seio. Do ponto de vista puramente
informativo, o resultado me parece medíocre, se considerarmos a oração desse
quarto verso com o verbo que fica subentendido:

Nossa vida [tem] no teu seio mais amores.

Devo, todavia, concordar que o enxerto produz uma metáfora congruente


com outras dentro do mesmo poema, o que o desculpa do pouco sentido acres-
cido pelas três palavras: no teu seio. Essas outras metáforas aparecem no terceto
que finaliza as duas estrofes do Hino Nacional:

Dos filhos deste solo és mãe gentil,

Pátria Amada,

Brasil!

A citação dos versos do nosso maior poeta romântico foi, entretanto, uma de-
licada mostra de carinho e admiração que Duque Estrada tinha pelo bardo mara-
nhense. Para finalizar, uma visão filológica me leva a ver na falta dos adjetivos do
poema de Gonçalves uma nítida hesitação entre a dor portuguesa e a saudade
brasileira: iria o poeta escolher adjetivos para as paisagens brasileiras, acerbando
a sua saudade, ou para as portuguesas, avolumando a sua dor? A melhor solução
foi eliminá-los – por ser menos penosa.

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Observe-se ainda que o nosso Hino Nacional apresenta no seu final também
uma diferença no canto do primeiro dos seus versos: a primeira sílaba da palavra
plácidas pode se ouvir cantar com uma de duas notas, sendo correta apenas a
mais baixa na escala musical.

Operações filológicas
O estudo das divergências entre línguas da mesma origem é que provocou o
aparecimento da Filologia em 1816 com a obra Sistema de Conjugação do Sâns-
crito em comparação com o Grego, o Latim, o Persa e o Germânico, escrita pelo
cientista alemão Franz Bopp (1791-1867). Todas essas línguas derivam de uma
protolíngua muito mais antiga e sem nenhum documento escrito: o indo-euro-
peu, língua de um povo que morava no centro do continente asiático no final do
Período Neolítico (7000-2500 a.C.) e que pouco mais de mil anos depois migrou
para as terras europeias e hindus: eram os ários.

Em suas novas terras, esses povos arianos certamente encontraram outros


povos e outras línguas que forçaram a evolução do idioma primitivo. Conser-
varam-se, entretanto, as palavras essenciais de uma língua, como pronomes e
nomes de parentesco, a conjugação dos verbos e a declinação, que é empre-
go de terminações para indicar na frase a função que têm as palavras: quem
dá (caso nominativo), a quem dá (caso dativo), o que é dado (caso acusativo),
de quem é o que é dado (caso genitivo), tempo ou modo de dar (caso ablati-
vo), quem é chamado (caso vocativo), onde se dá (caso locativo), meio que se
usa para dar (caso instrumental) e alguns outros. Nenhuma das línguas indo-
-europeias apresenta todos eles. As palavras fundamentais de qualquer cultura
constituem a prova mais forte, como a palavra madre, que as crianças da nossa
língua reduziram a mãe:

mütter em alemão / méter em grego / mater em latim / matka em polonês

A verdade é que incorporar os dados culturais possibilita e torna mais fácil de


explicar as mudanças semânticas com o aparato filológico, porque as mudanças
fonéticas ou sintáticas deixam rastros, mas as semânticas se apagam e desapare-
cem caso não sejam registradas nos dicionários da língua.

Essa maior facilidade de concluir à vista de textos escritos talvez tenha sido o
fator que retardou o aparecimento da Linguística moderna: enquanto a Filologia
moderna começa em 1816, a verdadeira Linguística moderna nasce exatamente
cem anos depois com a obra de Ferdinand de Saussure (1857-1913) Cours de Lin-

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guistique Générale (Curso de Linguística Geral), livro póstumo, de 1916, coligido


por seus alunos das aulas ministradas. Nele se define claramente o conceito de
língua e o método estruturalista de estudá-la.
Justamente por isso, Saussure chamou a atenção para o fato de que o pro-
cesso comunicativo tem duas vertentes: a fala (parole, no original), que é a parte
concreta do ato comunicativo, e a língua (langue, no original), que é a sua parte
abstrata. A importância que ele conferiu à fala passou a distinguir com toda a ni-
tidez o que é Linguística e o que é Filologia: o texto escrito é uma fala artificial.
Fundador do Estruturalismo, tem ainda o merecimento de suas ideias terem
servido também a outras ciências, tendo Claude Lévi-Strauss aplicado seu
método à Etnologia.
Tomo para comprovar as afirmações anteriores o exemplo do particípio do
verbo latino álere, sinônimo de édere, certamente raízes bem mais antigas da
protolíngua indo-europeia. O primeiro desses verbos desapareceu nas línguas
germânicas e bem mais tarde também no surgimento das neolatinas, enquanto
o segundo se conservou nas germânicas (essen, do alemão / eat, do inglês / eten,
do holandês) e reapareceu nas línguas ibéricas por um dos seus compostos (co-
médere: comer). Por sua evolução semântica, que o desgarrou do verbo primitivo,
o particípio do verbo álere conservou-se nas línguas germânicas e nas neolatinas,
que cito nas formas masculina, feminina e neutra da antiga língua romana:
altus, alta, altum (alimentado, alimentada).
Curiosamente, dado o capricho na evolução das línguas e a deriva particular
da língua portuguesa, que é a marcha costumeira de suas mudanças, o desapa-
recimento do verbo se deve ao resultado final de sua forma:
ego alo (eu como) > eo ao > eu au > eu ou
Por esse mesmo motivo de formas homonímicas (ou: 1. forma verbal. 2. con-
junção alternativa), o povo lusitano desprezou a primeira pessoa singular do
presente do indicativo do verbo ire, comum no mundo romano:
ego eo > eo eo > eu eu
Com isso, surgiu a necessidade de se achar um substituto para a forma inde-
sejável por sua enorme homonímia com outra mais usada e imprescindível pela
impossibilidade de a própria língua fornecer um equivalente: chama-se supleti-
vismo a esse ato. Essa forma conflitante foi substituída por outra bem diferente
do verbo vádere [caminhar]:

ego vado > eo vao > eu vau > eu vou


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O supletivismo é um caso específico de heteronímia, fato de haver mais de


um vocábulo ou palavra com significados iguais ou semelhantes. O caso acima é
o de um vocábulo que é uma forma irregular da palavra ir: o supletivismo é uma
heteronímia histórica. Mais comum é a heteronímia formada por sinônimos, pa-
lavras que têm um significado muito próximo e podem ser usadas no mesmo
contexto com muita facilidade, como estas:

belo / lindo / bonito

Embora seja uma digressão, acrescento que belo se diz da coisa rara e bonito
da coisa encontradiça, ficando lindo entre elas. Todas indicam, porém, alguma
coisa que agrada sob um julgamento pessoal.

Nenhum desses defeitos os nossos ancestrais encontraram no substantivo de


ação desse verbo:

alimentum [coisa de comer] > alimento.

De fato, esse substantivo foi um empréstimo tomado diretamente da língua


latina pelos clássicos do século XVI, enquanto o verbo alimentar é uma forma
vernácula.

Se o verbo ire tomou uma forma supletiva na sua passagem para as línguas
românicas, escapando assim de uma homonímia, ele mesmo produziu outra
homonímia curiosa, porque as suas formas de pretérito perfeito do indicativo
seriam desastrosas:

eu i / tu iste / ele iu

Os lusíadas se valeram do perfeito do verbo fúgere (1. fugir. 2. andar


depressa):

ego fugi > eo fui > eu fui.

E assim as mesmas formas servem ao verbo ir e também ao verbo ser, que


tem ainda radicais variados transmitidos diretamente do latim:

eu vou / eu ia / eu fui

eu sou / eu era / eu fui

Tanto nas línguas germânicas, mais antigas, quanto nas neolatinas, bem mais
recentes, o significado histórico de (bem) alimentado do particípio passado pas-
sivo altus, a, um se perdeu junto com o verbo, mas conservou-se um significado
que nascera de uma metonímia, que se produz pela troca do significado anterior
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por um significado posterior, que é consequência do ato anterior e tem o nome


de metonímia no campo da estética das línguas:

Se come bem (significado anterior),

Então cresce bem (significado posterior):

Portanto, fica alto!

Ou seja: o significado de alimentar evolui para a consequência desse ato: ali-


mentar-se faz crescer e crescer implica tornar-se cada vez mais alto, que é o sig-
nificado atual desse antigo particípio de línguas muito anteriores às de agora.

Principais autores
A Filologia românica começa com uma obra de extrema importância por
abrir um novo método de estudo, a Grammatik der Romanischen Sprachen (Gra-
mática das Línguas Românicas). Foi escrita pelo professor alemão Friedrich Diez
(1794-1876) entre 1836 e 1844. Conhecia a língua portuguesa e chegou a tradu-
zir muitos trechos de Os Lusíadas, certamente para o curso que deu em 1872 na
cidade de Bonn sobre a nossa epopeia. Além dessa obra capital, deixou-nos em
1863 um livro em que estuda a língua e a poesia anteclássica da nossa língua
portuguesa: Über die erste portugiesische Kunst- und Hofpoesie (Sobre a primitiva
poesia artística e palaciana portuguesa).

A Filologia portuguesa teve em Portugal, no seu início, o trabalho de autores


da maior importância, todos na mesma época. Um deles foi Augusto Epiphanio
da Silva Dias (1841-1916). Ele modernizou o ensino da língua portuguesa com
a sua Gramática prática da língua portuguesa (1870), mas tornou-se ainda mais
conhecido com a sua Sintaxe Histórica da Língua Portuguesa (1915).

Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1840-1914), por sua vez, tem uma impor-
tância capital para o aprimoramento da ortografia da língua portuguesa, que se
desembaraça dos aspectos da velha escrita dos romanos. O latim usava muitas
consoantes duplas, mas cada uma delas era pronunciada e, portanto, não trazia
dificuldade de escrita para os letrados: accommetter era um desses abusos. A sua
Ortografia Nacional, de 1904, tem sido um roteiro desde a sua publicação e res-
pondeu pelo primeiro decreto do Governo que a oficializava em 1911 em todo o
território português. Dele e dessa obra nos fala Houaiss (1991, p. 12).

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Os princípios de seu trabalho eram:

 eliminação dos símbolos de etimologia grega ph, ch (com o som de k), rh, y: pharmacia –
farmácia, estylo – estilo;

 eliminação das consoantes duplas, à exceção de rr e ss: chrystallino – cristalino;

 eliminação das consoantes “mudas”: sancto – santo; septe – sete;

 regularização da acentuação gráfica.

Seguem outros autores importantes que contribuíram para a história da Filo-


logia no mundo:

Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1933)

Nascida alemã, muda-se para Portugal em virtude de seu casamento. Do seu


trabalho nos veio em 1904 a edição crítica do Cancioneiro da Ajuda e Lições de Filo-
logia Portuguesa, em edição póstuma de 1946, entre muitos outros livros e artigos.

Francisco Adolfo Carneiro (1847-1919)

Deixou os portugueses muito horrorizados com as novas ideias que expôs


em sua obra de 1868: A Língua Portuguesa. Com ela divulgou as descobertas filo-
lógicas de Friedrich Diez, o filólogo alemão. Foi dos primeiros que estudou a fala
crioula e a língua portuguesa do Brasil. Os assuntos filológicos mais bem desen-
volvidos apareceram no seu livro de maior repercussão: Os Ciganos em Portugal,
de 1892. Tipicamente filológico, estuda a cultura e a língua desse povo errante.

José Joaquim Nunes (1859-1932)

Deixou-nos em 1906 a sua Crestomatia Arcaica [crestomatia é o mesmo que


antologia] e em 1919 o seu Compêncio de Gramática Histórica Portuguesa. Há
quem o critique por alguns erros deixados em suas obras.

José Leite de Vasconcelos (1858-1934)

Leite de Vasconcelos é o estudioso da língua portuguesa mais talentoso e


suas obras ainda hoje merecem o apreço que granjeou na sua época. De fato, na
sua primeira obra, escrita em 1882, os estudos filológicos da língua portuguesa
eram todos estrangeiros. Publica entre 1888-1903 as suas Contribuições para a
Dialectologia e doutora-se na Universidade de Paris a sua tese Esquisse d´Une
Dialectologie Portugaise no ano de 1901 e no mesmo ano publica os seus Estu-

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dos de Filologia Mirandesa. Abordou todos os campos da Filologia portuguesa,


além de descobrir e editar textos inéditos até a época. Além de tudo, editou duas
obras póstumas de companheiros: Estudos de Língua Portuguesa, de Júlio Morei-
ra, e Sintaxe História da Língua Portuguesa, de Epiphanio Dias.

Júlio Moreira (1854-1911)

O que Júlio Moreira escreveu vem reunido em seus Estudos da Língua Por-
tuguesa, um volume de 1911 e outro, póstumo, de 1918, editado por Leite de
Vasconcelos: os principais assuntos abordados são diversas questões de sintaxe
histórica e popular

A Filologia brasileira teve no seu início o trabalho de nomes da maior relevân-


cia social e intelectual todos no início do século passado:

Antenor de Veras Nascentes (1886-1972)

Foi com certeza o vulto mais admirado na história das letras do século pas-
sado com obras relevantes nas áreas da Dialetologia, Etimologia, Filologia e Le-
xicografia. Nascido e morto carioca, compreende-se com facilidade o motivo de
ele ter escrito uma obra marcante no campo dialetal: O Linguajar Carioca, de
1922. Importa ainda citar a sua obra de 1945: Tesouro da Freseologia Brasileira.

João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860-1934)

Foi o primeiro sergipano a entrar na Academia Brasileira de Letras. Poeta e


prosador, tradutor e filólogo, deixou-nos três gramáticas, respectivamente para
os ensinos primário [fundamental], médio e superior. Representou o Brasil em
1997 no Congresso organizado em Londres para organizar o Catálogo Interna-
cional. Como historiador, deu um novo rumo a essa ciência porque, segundo
Joaquim Ribeiro, seu filho, a história brasileira “deixou de ser a história de gover-
nadores, vice-reis e imperadores para ser a história natural do povo brasileiro”.

Joaquim Matoso Câmara Júnior (1904-1970)

Coloco aqui o seu nome, ainda que tenha feito menos no campo da Filolo-
gia, mas muito mais no da Linguística moderna, que introduziu no Brasil, dei-
xando-nos uma série de livros com suas ideias sobre a língua portuguesa, além
do ensino universitário. Cabe-lhe a honra e glória de ter publicado no Brasil o
primeiro livro da Linguística moderna em 1940: os seus Princípios de Linguística
Geral, que trazem para cá o Estruturalismo. Por sua importância, seus livros têm
edições sucessivas:

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Princípios de Linguística Geral. Rio de Janeiro: Padrão, 1977.

Problemas de Linguística Descritiva. São Paulo: Vozes, 1997.

Dicionário de Linguística e Gramática. São Paulo: Vozes, 2001.

Estrutura da Língua Portuguesa. São Paulo: Vozes, 2001.

As edições de seus livros pela Editora Vozes explica-se talvez por ele ter sido o
tempo todo professor universitário na cidade de Petrópolis, também sede dessa
Editora franciscana. A sua longa permanência fora do centro intelectual do país
sempre me deixou preocupado com o fato de que um autor e professor de méri-
tos incontestáveis não tenha sido chamado a uma das Instituições de Ensino da
cidade do Rio de Janeiro para onde acorriam os melhores, salvo ele.

Júlio César Ribeiro Vaughan (1845-1890)

Polêmico e escandaloso para a sua época, além de abolicionista e lutador por


suas convicções como jornalista e dono de jornais, Júlio Ribeiro é agora mais co-
nhecido por seu romance naturalista que por sua gramática, ainda que a segun-
da obra tenha trazido para o Brasil o melhor das ideias da Filologia do seu tempo,
apresentando ainda uma lição de língua mais bem acabada que as anteriores.

A sua Gramática Portuguesa, de 1881, segue o método da Filologia proposta


pelos autores alemães e merece ser lida ainda hoje. Tem dois romances impor-
tantes: O Padre Belchior de Pontes, em dois volumes de 1876 e 1877, e A Carne
(1888), naturalista, mas nada imoral e desestruturado como diziam dele as críti-
cas da época.

Manuel Ida Said Ali (1861-1953)

Muitos o consideram o maior filólogo brasileiro e a leitura de suas obras me


parece confirmar essa opinião, dada principalmente a utilidade do que escreveu que
importa não apenas para os estudiosos da língua, mas para os leitores comuns.

Entre suas obras notamos:

Vocabulário Ortográfico (1905).

Dificuldades da Língua Portuguesa (1908).

Lexiologia do Português Histórico (1921).

Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico (1923).

Gramática Secundária da Língua Portuguesa (1927).


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Meios de Expressão e Alterações Semânticas (1930).

Versificação Portuguesa (1949).

Acentuação e Versificação Latinas (1957), seu último livro.

A maioria dos seus livros deixa perceber não apenas o empenho com o lado cien-
tífico de suas pesquisas, mas ainda o desejo de aplicá-las para a melhoria do ensino.

Serafim da Silva Neto (1917-1960)

Dizem que os deuses têm ciúme de algumas criaturas que espalham magna-
nimamente o seu saber por onde andam e por isso os chamam mais cedo: foi o
que aconteceu a Serafim da Silva Neto, que escreveu a sua primeira obra sobre o
latim vulgar aos 17 anos. Foi diretor da Revista Brasileira de Filologia e deixou-nos
as seguintes obras:

Fontes do Latim Vulgar (escrito aos 17 anos e publicado em 1938).

Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (1950).

História da Língua Portuguesa (1952).

Ensaios de Filologia Portuguesa (1956).

Introdução ao Estudo da Filologia Portuguesa (1956).

Manual de Filologia Portuguesa (1957).

Guia para Estudos Dialectológicos (1957).

Bíblia Medieval Portuguesa (1958).

Texto complementar
Evolução e desagregação
(SILVA NETO, 1957, p. 13-16)

As línguas são resultados de complexa evolução histórica e se caracteri-


zam, no tempo e no espaço, por um feixe de tendências que se vão diversa-
mente efetuando aqui e além. O acúmulo e a integral realização delas depen-
de de condições sociológicas, pois, como é sabido, a estrutura da sociedade
é que determina a rapidez ou a lentidão das mudanças.

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A qualquer momento em que se observe uma língua, cumpre ter em


mente as suas faces anteriores. A história das línguas românicas, por exem-
plo, se entrosa com a do latim e a deste, através do itálico, vai acabar no
indo-europeu.

O latim falado no tempo de Énio não é o mesmo dos contemporâneos


de Cícero, nem o desse tempo é idêntico ao de São Jerônimo. O francês de
Villon não é o de Anatole France. O português de onde D. Dinis extraía as suas
cantigas de amor e de amigo não é o de Camões, nem o deste é o mesmo de
Herculano.

Nessa sucessão de frases há que distinguir, no entanto, entre evolução e


desagregação. Naquela não há descontinuidade; nesta há uma nítida cesura, a
transição de um estilo social para outro.

Para bem se compreender essa diferença, convém ajustar-lhe as noções


de época e estilo, tão bem formuladas pelo sociólogo alemão Theodor Geiger.
O estilo social é, precisamente, um complexo de caracteres estruturais básicos,
que tornam possível a afinidade dos diversos setores da vida social. É a per-
manência dele que caracteriza uma época, isto é, uma sequência evolutiva na
qual um estilo constitui o fundamento cultural.

Em caso contrário, ou seja, quando a mudança social (linguística) não se


resume no desenvolvimento de um estilo, estamos em face da desagregação,
da mudança de uma época para outra. É o caso, por exemplo, do latim, que
se desagregou nas dez línguas românicas. A fase do romanço representa
uma cesura, uma transição em que os estratos e linguísticos foram desintegra-
dos e, em seguida, reintegrados de maneira diferente.

As línguas estão, pois, em perpétua mudança, embora só o repouso seja


facilmente perceptível. A evolução explica-se, principalmente, pela descon-
tinuidade da transmissão e pela própria constância do uso.

Ao cabo de seu aprendizado, a criança fixa uma língua que não é exata-
mente a mesma das pessoas que lhe serviram de modelo. Essa diferença,
imperceptível numa geração, vai-se acumulando aos poucos.

Criação e difusão

O fato mesmo de ser imprescindível instrumento de comunicação acarre-


ta mudança à língua: as palavras mais frequentemente usadas são também

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as que mais transformações sofrem. Grupos de palavras acabam por se aglu-


tinar – e o desgaste vai provocando reações.

Por isso a todo instante surgem inovações, cujo destino vai depender da
estrutura social, ou seja, no caso, da força com que a língua, como instituição,
se impõe aos indivíduos.

A inovação, que parte do indivíduo, pode restringir-se a ele e, portanto,


abortar – ou, pelo contrário, generalizar-se na comunidade.

Em todo fato linguístico, há que distinguir, pois, a criação e a coletiviza-


ção. Dessarte a mudança depende da sucessão e da combinação da iniciati-
va individual com a aceitação coletiva.

E não se diga que o partir do indivíduo a inovação lhe confere os poderes


sobrenaturais de um deus ex machina: somente subsistem os esforços indivi-
duais realizados no sentido das tendências linguísticas.

O autor anônimo da inovação apenas interpreta a direção geral da língua,


há entre ele e a massa falante profunda e integral intercomunicação. Ele não
age como pessoa, mas como órgão da coletividade: isso explica a unificação
e generalização do fenômeno.

Em todo o caso, a difusão é fenômeno lento e complexo, sujeito a múlti-


plos e variadíssimos fatores, que a podem retardar ou apressar. Schuchardt
lembrara, há bastantes anos, que a frequência de certos grupos fonéticos
favorece a formação de grupos idênticos: em suma, a frequência de um pro-
cesso fonético acaba por generalizá-lo.

Atividades
1. Em que se distingue a Filologia e a Linguística?

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.
TEXTO 02
Fatores de dialetação do latim vulgar

A dialetação do latim vulgar é um movimento dentro da própria língua


latina, que continua língua latina da mesma maneira que os vários dia-
letos da língua portuguesa do Brasil continuam sendo a mesma língua
portuguesa do Brasil.

Fatores da evolução linguageira


Como produto e emprego social, a língua independe do indivíduo a
que é imposta pelas circunstâncias do nascimento ou dos azares da vida.
Se olharmos para uma comunidade linguística com um grande número
de falantes num território extenso, vamos perceber que existem modali-
dades de língua que dependem de fatores regionais ou sociais.

Os fatores regionais produzem variantes de língua que se chamam


dialetos. O dialeto é a parte concreta da língua porque pode ser observa-
do e estudado diretamente, enquanto a língua é a soma dos seus dialetos:
estudar uma língua depende da pesquisa direta nos seus dialetos. Assim, a
língua portuguesa é uma abstração que reúne as variedades que existem
nos oito países em que ela é a língua oficial. Pensando no mundo, os dois
principais dialetos da língua portuguesa são o dialeto brasileiro da língua
portuguesa e o dialeto português da língua portuguesa. Impor que o por-
tuguês de Portugal seja uma língua e o português do Brasil somente um
dialeto, me parece que seria o absurdo de sustentar que um país é dono
de uma língua e qualquer outro país tem apenas um dialeto dessa língua.

As comunidades linguísticas jamais são perfeitamente homogêneas.


Quanto maior for a extensão territorial ou quanto mais acentuadas as di-
visões sociais, maiores são as possibilidades de dialetação. A dialetação,
quer territorial ou social, é puro fruto das barreiras postas à comunicação e
à identificação entre as pessoas: enfim, à interação. Tudo o que diminua ou
cerceie a interação entre vizinhos é fator de dialetação: insegurança social,
dificuldade de deslocamento e crises religiosas, políticas ou econômicas,
fatores que definem o conflito interpessoal dentro de uma comunidade.
Além disso, a existência de línguas diversas dentro do mesmo território

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pode levar com facilidade a um intercâmbio de palavras e concorrer para o desa-


parecimento de uma delas, deixando a vencedora com profundos desgastes.

Ao contrário, o simples isolamento, social ou físico, pode ocorrer dentro de


uma comunidade coesa e pacífica, provocando a manutenção de uma forma
linguística que se tornou arcaica e desaparecida em outros ambientes. Esse fato
tem um exemplo brasileiro, que eu mesmo presenciei em 1955 quando visitei
Iguape e Cananeia, cidades do litoral paulista, até pouco antes alcançadas ex-
clusivamente por navio. Essa dificuldade de intercâmbio humano manteve um
sabor nitidamente arcaico na língua portuguesa daquelas cidades: nelas ouvi o
verbo ascuitar, que aparece nos trovadores do século XIII e pouco depois cedeu
o lugar ao moderno escutar. A situação deve estar bem mudada com a BR 116,
além da estrada até lá, e principalmente com a mídia que divulga as falas mais
comuns da nossa terra, mais precisamente o dialeto carioca e o paulista.

Conceito de língua e dialeto


Não há língua para lá dos dialetos. A língua é o conjunto de seus dialetos.
Cada língua de cultura tem um ou mais dialetos de maior prestígio, pelos quais
os demais se orientam. Essa, porém, é a realidade da Ciência da Linguagem,
porque o dialeto mais forte comumente se considera a língua.

Evidentemente, é necessário definir o que é um dialeto. Dialeto é cada uma


das variantes de uma língua, sempre que for possível dar regras para se passar
da língua para a forma dialetal. No caso de ser impossível essa transição, temos
ou duas línguas ou dois dialetos da mesma língua. Se ficarmos com a língua
portuguesa do Brasil, doravante chamada língua, aparecem-nos vários dialetos,
mas nos contentemos com alguns dos principais e suficientemente distintos: o
carioca, o gaúcho e o nordestino. Cada um deles tem marcadamente uma pro-
núncia própria, uma seleção diversa de palavras e uma sintaxe nem sempre con-
dizente com a da língua. A pronúncia de cada um deles é bem conhecida: as
vogais átonas abertas do nordestino (a glóriosa terra nórdestina), os chiados do
carioca (doich cópuj dji lêitchi quêntchi) e as vogais médias finais distintas do
gaúcho (doiss cópoz de lêitê quêntê), me limito a citar o que eu mesmo ouvi:
quem é maçante aborrece na língua, mas faz tudo devagar no nordestino, quem
é bombeiro apaga o fogo na língua e mexe com canos e torneiras no carioca e
quem está amuado precisa acalmar-se na língua e descansar no gaúcho [...]. Esse
terceiro aconteceu comigo quando o zelador me perguntou à noite depois de
onze horas de curso para uma turma numerosa de colegas professores:

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– O senhor não está amuado?

Eu respondi, meio espantado com a pergunta:

– Como eu poderia estar amuado se todos foram tão amáveis comigo, prin-
cipalmente você?

E ele:

– Não, professor! Estou perguntando se não estás cansado!

É bom lembrar que o interior do Estado de São Paulo possui um dialeto pró-
prio, falado também pelos professores de Língua Portuguesa.

O vocabulário diverso identifica o dialeto, mas não o define como tal, por
que a palavra dialetal pertence também à língua. O crescimento espantoso da
mídia vai aos poucos irmanando ou corrompendo – sabe Deus! – as formas dia-
letais. Aqui em Curitiba, onde agora escrevo este apanhado de ideias, ela matou
o dolé que eu chupava nos dias quentes, obrigando-me a contentar-me com um
picolé, mas tenho saudade!

Os fatores sociais produzem variantes de língua que se chamam socioletos.


Agora são as camadas da sociedade que definem essas variantes, não mais os
locais e as regiões da língua. A classe média tem um socioleto notadamente pa-
recido no país inteiro. A maioria dos moradores da periferia das grandes cidades
tem outro socioleto, que os professores de língua distinguem quando lecionam
em escolas centrais e distantes.

O ruim da escola é que os professores todos, a começar com os de língua,


ouvem a fala dialetal ou a socioletal e logo repreendem o aluno:

– Não fale assim que está errado!

As formas todas de uma língua são igualmente boas, perfeitas e legítimas, de-
safortunamente nunca com o mesmo prestígio. O aluno não deve entrar na escola
para largar a sua forma de língua, mas apenas para acrescentar-lhe outra, mais
ampla porque nacional, nem local nem mesmo regional. Como poderia ser errada
a forma que as crianças descobrem na fala da sua família e da sua comunidade? É
por isso que desde o começo do meu magistério, eu aconselho os meus colegas
a falarem em língua de escola e em língua de casa, cada uma delas certa e boa
no seu lugar e errada e ruim no outro: nenhum erro de língua, mas erro de lugar:
exatamente como uma roupa é errada e ruim na igreja e certa e boa na praia. Eles
aceitam que a língua de casa é errada na escola, mas nunca que a da escola seja
errada na casa dos seus alunos... o que se chama discriminação linguística!

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Apesar de faltar com a verdade da ciência, mas só para simplificar a com-


preensão, as línguas são como seres vivos que nascem, crescem, envelhecem
e morrem. Eventualmente renascem, como o hebraico no Estado de Israel. As
línguas crescem, porque cada nova geração concorre com pequeníssimos deta-
lhes que modificam a língua do dia-a-dia. Essas mudanças podem acumular-se e
todos passam a perceber que a língua evoluiu. É quase impossível dizer por que
o tempo afeta o estado de uma língua, mas é muito fácil perceber essas novida-
des e dar a eles um nome, que não explica a razão de aparecerem, mas oferecem
um meio de analisar a marcha desse crescimento que se afasta do passado e
busca um novo futuro: são os metaplasmos e as figuras de estilo.

Esse crescimento é favorecido pelo fato de que a língua falada se molda às cir-
cunstâncias da conversa: há uma língua de elite para o grupo dos letrados, impro-
priamente chamada norma culta, uma língua de povo para a maioria dos falantes,
impropriamente chamada língua popular, portanto inculta, quando se pensa na pri-
meira... Além disso, ocorrem modalidades, como a fala familiar ou a fala escolar.

Variação fonológica: metaplasmos


Metaplasmo é o nome genérico de toda mudança fonética que a língua sofre
enquanto evolui com a passagem do tempo: o metaplasmo nomeia, mas não
explica o fenômeno. O curioso é que as variantes dialetais e socioletais se dife-
renciem por esses mesmos desvios. E ainda mais curioso é que também a lingua-
gem das crianças bem pequenininhas venha cheia desses extravios linguísticos.

Os metaplasmos distinguem as possíveis mudanças que, ao longo do tempo,


ocorrem com os sons da fala de uma língua sujeita a fatores que apressam as
transformações linguísticas.

Há quatro possibilidades. O sinal de maior (>) indica a passagem de uma


forma antiga para outra mais nova: muda para. As principais seguem:

Acréscimo de som:
 no início da palavra / prótese: schola > escola.
 no meio da palavra / epêntese: brata > barata.
 no fim da palavra / paragoge: ante > antes.
Supressão (subtração) de som:

 no início da palavra / aférese: apotheca > abodega > bodega.

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 no meio da palavra / síncope: pulica > pulga.

 no fim da palavra / apócope: amare > amar

Deslocamento [transposição] de som:

 permuta de sons / metátese: [genuculu] > geolho > joelho.

 deslocamento de som / hipértese: capio > caibo.

 Troca condicionada: [transformação]:

 assimilação [duas diferenças se igualam]:

total: ipsu > isso.

parcial: auru > ouro.

Progressiva [a primeira muda a segunda]: nostu > nosso.

Regressiva [a segunda muda a primeira]: calente > caente > queente

 dissimilação [duas igualdades se distinguem]:

total: aratru > aradro > arado.

parcial: liliu > lírio.

Progressiva [a primeira muda a segunda]: matrastra > madrasta.

Regressiva [a segunda muda a primeira]: posponto > pesponto.

 Outros fenômenos:

 crase [unifica vogais iguais seguidas]

sedere [estar sentado] > seere > seer > ser [estar sem limites]

 ditongação [duas vogais na mesma sílaba]:

[tela] > tea > teia.

 haplologia [queda de uma de duas sílabas iguais ou parecidas]

[perdita] > pérdeda > perda.

 metafonia [troca de vogais na mesma sílaba]:

récapere > recípere >[receber]

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Figuras de estilo
Há duas figuras de estilo que permitem enriquecer a linguagem momenta-
neamente, mas se tornam meios de evolução quando todos se esquecem do
sentido primitivo e passam a usar a palavra no antigo sentido de puro embe-
lezamento do texto. Ambas dependem de uma sequência em que a palavra à
esquerda depende da palavra à direita. Em princípio, cada uma dessas palavras
pode assumir num texto o significado da outra, sendo muito mais comum a pri-
meira pegar o significado da segunda, produzindo uma metonímia, e bem mais
raro a segunda tomar o significado da primeira, permitindo uma sinédoque. A
mesma inferência pode produzir dois resultados distintos:

Se há sol, há calor.
O sol me faz mal [é o calor]: metonímia.
O calor acaba de desaparecer no horizonte [é o sol]: sinédoque.

O significado primitivo da palavra sinistro era esquerdo: por metonímia


passou a indicar o que é desastroso e o próprio desastre... Os dicionários conti-
nuam apresentando o significado antigo, mas quem se serve ainda desse signi-
ficado arcaico?

Havendo duas inferências, essa dupla acarreta um resultado, que é uma me-
táfora se for um embelezamento ou que é uma analogia se eliminar alguma irre-
gularidade da língua:

Metáfora
Se é flor, É linda.
Se é menina, É linda.
A menina é uma flor [comum]
A flor é uma menina. [raro]

Analogia
Se lamber, faz eu lambo.
saber, faz eu sabo.

Se partir, fica parti.


Vir, fica vi.

Se rubi, fica rubim.


vi [de vir], fica vim.

Portanto, pode vim...


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A metáfora pode produzir significados permanentes, mas fica sempre sujeita


ao tipo de relacionamento das inferências. O caso mais curioso da língua portu-
guesa encontra-se com o emprego metafórico do verbo curtir:

Até os anos 1960 curtia-se uma mágoa, uma desilusão amorosa, sempre
alguma coisa negativa e assim nada desejável. O motivo era simples: interessa-
va então o processo cansativo e doloroso de curtir o couro que se raspava e se
amaciava nessa tarefa sofria o trabalhador e o couro. Agora, curte-se um jantar à
luz de velas ou novas amizades. De novo, um motivo simples: interessa agora a
roupa linda e cara que vai ser invejada e admirada no próximo encontro.

A língua galego-portuguesa tinha muitos verbos anômalos com o perfeito


irregular nos primeiros séculos do milênio passado, aproximadamente entre os
anos 1000 e 1500.

Eu condusse [conduzi] o rapaz à casa dos avós e o condugo [conduzo] também


agora. E o hei [tenho] conduto [conduzido] desde muito tempo.

As crianças conseguiram eliminar a maioria deles, restando somente 17 deles:


caber [coube / coube], dar [dei / deu], dizer [disse / disse], estar [estive / esteve],
fazer [fiz / fez], haver [houve / houve], ir [fui / foi], poder [pude / pôde], pôr [pus /
pôs], prazer [prouve / prouve], querer [quis / quis], saber [soube / soube], ser [fui
/ foi], ter [tive / teve], trazer [trouxe / trouxe], ver [vi / viu], vir [vim / veio].

Baste-nos um exemplo de um dos verbos regularizados:

Eu arço de febre [ardo] / eu arse de febre [ardi] / el arso de febre [ele ardeu].

Entretanto, elas não conseguiram regularizar a terceira pessoa do singular de


um dos verbos anômalos: eu vim / ele veio...

Todos esses verbos foram regularizados por analogia. Foi esse mesmo me-
canismo de língua que deu uma forma verbal nova aos verbos regulares da fala
brasileira dialetal e socioletal:

Se hoje nós damos um passeio e ontem também demos,

então hoje nós andamos e ontem nós também andemos por lá...

Circunstâncias da evolução
Pode-se dizer calmamente que o ser humano é a língua que ele fala. A língua,
contudo, é um domínio comum, ainda que as inovações costumem aparecer de

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uma fonte individual que encontra imitadores imediatos sempre que vai ao en-
contro da deriva da língua, ou seja do desnível e da ladeira onde quase nunca se
pode parar. Um caso curioso é o do filólogo brasileiro Antônio de Castro Lopes
(1827-1901) que em livro de 1889 propôs uma série de neologismos para subs-
tituírem empréstimos principalmente da língua francesa: apenas dois deles –
cardápio e convescote – aparecem nos dicionários, também na quarta edição do
Dicionário Júnior da Língua Portuguesa, ainda que só o primeiro tenha amplo em-
prego, enquanto o segundo é pouco conhecido e nada usado.

Entretanto, existem dois tipos de evolução: a espontânea e a motivada.


Devo acrescentar que toda evolução é inconsciente, mas existem aquelas que
nunca podem ser explicadas e outras que nos deixam adivinhar a razão de
aparecerem.

E aparece uma pergunta inicial: Por que as línguas mudam?

A resposta é fácil. Sempre que uma comunidade de língua ocupa um territó-


rio muito grande ou existe uma grande diferença entre os seus grupos sociais,
cada um desses grupos da comunidade vai construindo pouco a pouco um falar
cada vez mais diferente do que usam os vizinhos.

Por outro lado, se vieram pessoas que falam outra língua e ficarem morando
na nova terra, todas elas acabam aprendendo a língua do lugar, porque preci-
sam dela, e a sua língua que veio com eles passa a ser uma língua de casa. Se o
número desses recém-chegados for muito grande, vai haver uma troca de pala-
vras e de aspectos gramaticais. Em 1947 na cidade do Rio Negro: morando no
seminário franciscano, eu tinha muitos colegas descendentes de alemães. Resul-
tado: eu não engraxava os meus sapatos: chimirava eles [é o menino que fala].

Um dos aspectos da modalidade de língua paranaense vem com certeza do


grande número de poloneses. A língua deles tem só um pronome reflexivo e
por isso, quando passaram a falar português, usaram a sintaxe da sua língua e a
introduziram na nossa, agora deles também:

eu se lavo / nós se lavamos...

Fatores de retardamento da evolução


Era este o aspecto da língua portuguesa arcaica em 1189, ano desta cantiga
trovadoresca, transcrita no Cancioneiro da Ajuda e dedicada pelo trovador Paio

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Soares de Taveirós a Dona Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, amante do rei Dom
Sancho I. É o mais antigo documento da nossa língua [branca de rosto e verme-
lha de roupa]:
No mundo non me sei parelha, No mundo não me sei par [estou sem par]

mentre me for como me vay enquanto me for como me está indo

ca já moiro por vos – e ay! pois já morro por vós – e ai!

mia senhor branca e vermelha minha senhora branca e vermelha,

queredes que vos retraya quereis que eu vos afaste [de mim]

quando vus eu vi en saya! quando eu vos vi numa saia!

Mau dia me levantei, Em mau dia me levantei –

que vus enton non vi fea! já que então eu não vos vi feia!

E, mia senhor, des aquel di´ ay! E, minha senhora, desde aquele dia, ai!

me foi a mi muyn mal, tudo esteve muito ruim para mim,

e vos, filha de don Paay e vós, filha de Dom Paio

Moniz, e ben vus semelha Monis, que bem vos pareça

d´aver eu por vos guarvaya eu ter de vós uma recompensa,

pois eu, mia senhor, d´ alfaya pois eu, minha senhora, para roupa

nunca de vos ouve nen ei nunca tive de vós nem tenho

valia d´ua correa. o valor de uma correia.

Contra essas modalidades de língua em cinco séculos aparece agora uma


única modalidade por mais cinco séculos, bastando-nos ver este soneto de
Camões (1524-1580), da segunda metade do século XVI, que transcrevo na or-
tografia de agora:

Sete anos de pastor Jacó servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela,

Mas não servia ao pai, servia a ela,

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Que a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

Passava, contentando-se com vê-la;

Porém o pai usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

Assim lhe era negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,

Dizendo: – Mais servira, se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!


(apud MOISÉS, 1987, p. 70)

As formas do mais-que-perfeito [tivera / servira / fora] resistiram até meados


do século passado, mas agora todos diriam: tivesse / serviria / fosse.

Todo leitor de hoje veria muito pouca coisa estranha nesse soneto velho de
450 anos, modernizada por Moisés: assi e pera... Para tanto tempo não é nada! E
vem com isso a pergunta inevitável:

– O que explicaria tanta mudança num igual período de tempo, enquanto


nada disso aconteceu nestes séculos posteriores?

O fator mais importante para a manutenção de um equilíbrio linguístico seja


a tranquilidade social quando o governo central, forte e aceito pelo povo, conse-
gue tornar a vida segura para todos. Além disso, ajuda imensamente a existência
de uma só língua com seus dialetos ocupando o mesmo território.

No momento presente, a rápida evolução de uma língua ou a transforma-


ção de um dialeto em língua parecem impossíveis por serem grandes os fatores
mantenedores da forma atual:

 Um governo central atuante.

 Uma política coerente em que os governantes se sucedam de maneira pa-


cífica sem perseguição e derramamento de sangue.

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Fatores de dialetação do latim vulgar

 Um sistema criterioso de distribuição da justiça que possa levar o cidadão


a confiar na lei e a sentir-se protegido contra o crime.

 A educação garantida pelos poderes constituídos.

 Os meios de comunicação que levam a variedade formal da língua a todos


os cantos do território.

 A possibilidade de ascensão social que permite a todos a possibilidade de


chegar ao ponto a que a sua capacidade o pode levar.

Fatores de aceleramento da evolução


Diferentemente dos últimos quinhentos anos da nossa História, os mil anos
anteriores viram a derrocada do Império Romano em 476 d.C. em todas as terras
conquistadas ao longo dos séculos anteriores, assistiram à chegada dos mouros
em 711 d.C., entristeceram-se com a destruição da retaguarda do exército de
Carlos Magno pelos montanheses bascos no desfiladeiro de Roncesvales em 778
e tiveram de suportar os mouros na Espanha até 1492 e em Portugal até 1249
quando o sul de Portugal foi reconquistado por Afonso III (1210-1279). As guer-
ras com a Espanha terminaram em 14 de agosto de 1385 com a vitória portu-
guesa em Aljubarrota sob o comando de Nuno Álvares Pereira (1360-1431), que
escolheu o campo de luta e derrotou os vinte mil soldados de Castelo com os
sete mil, que o rei Dom João I (1357-1433) conseguiu recrutar.
Assim, aceleram as mudanças linguísticas com a presença de mais de uma
língua no mesmo território ou a luta entre povos de línguas diferentes: portugue-
ses e castelhanos e portugueses e mouros que facilitam o contato entre as línguas.
Na história das línguas românicas, a língua invasora venceu, podia ter perdido ou
continuarem vencedores e vencidos cada um com a sua língua, havendo eventu-
ais intercâmbios. Exemplos dessa convivência linguageira temos na Suíça (alemão,
francês, italiano e rético) e no Canadá (francês e inglês), além de muitos outros.
Da mesma forma, a intranquilidade política, motivada por lutas internas ou
externas, agrava o aparecimento de mudanças, porque dificulta o acesso à edu-
cação e aumenta a pobreza.
E deve-se ainda levar em conta a corrupção dos dirigentes: beneficia uma mi-
noria e dificulta a vida da maioria. Até os fins da República Romana, os governan-
tes eram acusados de improbidade: o exemplo são os sete discursos de Marcus
Tullius Cicero (106-43 a.C.) contra Caius Licinius Verres (120-43 a.C.), governador
da província da Sicília.
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Dispersão do latim vulgar e sua dialetação


Duas grandes modalidades de língua tinham o povo romano: a variante de
elite [sermo classicus] e a variante de povo [sermo vulgaris]. A primeira resistiu por
muitos séculos após o desenvolvimento das línguas românicas: apenas em 1290
a língua portuguesa se tornou oficial, desbancando a latina com a decisão de rei
Dom Dinis (1261-1325).

De certo modo pode-se afirmar que a variante clássica da língua latina persis-
te até hoje com um reduzido contingente de falantes: língua oficial de um país
chamado Vaticano. Todo documento vindo do Vaticano tem um original latino
altamente parecido com os duzentos anos que cercam a fase de maior prestígio
da literatura latina entre 100 anos a.C. e 100 anos d.C.

O Império Romano era enorme desde antes da nossa Era Cristã: todas as
terras banhadas pelo Mediterrâneo, que era o Mare Nostrum [Nosso Mar], e todas
as terras abaixo do Rio Reno.

Em todas as províncias romanas, o latim era a língua oficial, coexistindo


sempre com a língua local e provocando um bilinguismo de interesse recíproco
entre vencedores e vencidos.

Desde 409 até a chegada dos árabes às terras ibéricas em 711, ocorriam os
atropelos causados pelas tribos germânicas: anglos, borgúndios, francos, godos,
lombardos, ostrogodos, saxões e vândalos foram empurrados pelos hunos, che-
fiados por Átila (406-453), para o interior das províncias romanas, provocando o
aparecimento de um trilinguismo.

A desorganização política, causada por essas invasões de bárbaros, enfraque-


ceu o poder romano e permitiu o uso sempre crescente de um latim popular, sujei-
to a muita influência das línguas locais na pronúncia, no vocabulário e na sintaxe.

Além disso, cada povo germânico fundou um reino distinto nos lugares onde
vencia e ficou bastante truncado o relacionamento entre esses diversos reinos
recém-fundados: entregues a si mesmos, cada um teve uma deriva diferente,
que corresponde a um declive que leva as coisas sempre na mesma direção. Foi
esse declive que pouco a pouco transformaria os dialetos do latim vulgar, formas
da mesma língua, em línguas diversas, ainda que aparentadas entre si.

O latim vulgar, que era coeso no tempo do livre trânsito entre as várias provin-
cias romanas, viu-se de repente separado de cada uma das outras e ao mesmo
tempo sujeito a línguas diferentes das várias nações germânicas: o resultado foi
uma diferenciação linguística cada vez maior.
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Fatores de dialetação do latim vulgar

Esse distanciamento de língua fica ampliado ainda pelo distanciamento das


terras ocupadas: Portugal e Galiza ficam lado a lado e dividem por alguns sé-
culos a mesma língua, Portugal e Castela têm um afastamento maior e línguas
também um pouco mais afastadas, Portugal e França ficam ainda mais longe e,
portanto, com línguas parecidas, mas bem menos, enquanto Portugal e Romê-
nia têm línguas bem distintas por estarem a uma distância muito maior.

Infelizmente, a maioria dos filólogos olha o latim vulgar como a língua do


povo menos instruído e coloca na mesma panela também um latim que se pode
chamar de familiar ou de conversa: não é vulgar, porque mantém todos os casos,
todas as formas verbais e se distingue fundamentalmente por usar a ordem
direta de sujeito, verbo e objeto.

Que a autora a seguir conhecia o latim clássico se reconhece por ela se ter
traído bem no começo:

In eo ergo loco [nesse portanto lugar]...

A esse latim familiar pertence o texto que segue, em que uma das palavras
deixa de ser traduzida por Lima Coutinho: penso que seja a palavra ascetes
[asceta], numa variante popular.

Texto complementar

III – A Peregrinatio
(COUTINHO, 1976, p. 38-40)

[...]

55. Para o conhecimento do latim vulgar hispânico tem esta obra parti-
cular importância. Nela conta a monja Egéria ou Etéria, natural da Península
Ibérica, a história da sua visita à Terra Santa. A princípio, foi atribuída à don-
zela aquitana Sílvia, irmã de Rufino, ministro do rei Arcádio. Está hoje, porém,
demonstrado que a sua verdadeira autora é a monja acima mencionada. Foi
redigida, segundo opinião provável, entre os anos 381 e 388. Vamos trans-
crever apenas um trecho, para que se veja o tom popular em que foi escrita,
revelador da pouca ilustração da freira:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Texto
In eo ergo loco est nunc ecclesia non grandis, quoniam et ipse lócus, id est
summitas montis, non satis grandis est: quae tamen ecclesia habet de se gratiam
grandem. Cum ergo, iubente Deo, persubissemus in ipsa simmitate, et peruenis-
semus ad hostium ipsius ecclesiae, ecce et occurrit presbyter ueniens de mo-
nasterio suo, qui ipsi ecclesiae deputabatur, senex integer et monachus a prima
uita, et ut hic dicunt ascitis, et quid plura? qualis dignus est esse in eo loco.

Tradução
Nesse lugar há, pois, agora uma igreja não grande, porque também o
mesmo lugar, isto é, o cimo do monte não é muito grande; contudo, a qual
igreja tem por si grande renome. Como, pois, ordenando Deus, subíssemos a
esse cimo e chegássemos à porta da igreja, eis que corre ao nosso encontro
um presbítero vindo do seu mosteiro, que estava à testa da mesma igreja,
velho virtuoso e monge desde cedo, como aqui dizem ascitis [asceta], e que
mais? O qual [ele] é digno de estar nesse lugar.

IV – As Glosas
56. São as glosas outro meio auxiliar excelente para o conhecimento da
lexicografia do latim. Foram feitas com o objetivo de facilitar a leitura dos
autores latinos. As palavras desconhecidas aparecem aí acompanhadas das
formas correspondentes semânticas mais familiares, às vezes tomadas à
língua viva da época. Daí a grande importância que têm para a elucidação
de certos problemas lexicográficos das línguas românicas. O maior repositó-
rio dessas glosas é o Corpus Glossariorum Latinorum de G. Loewe e G. Goetz,
editado em Leipzig (1889-1923) e o Glossaria latina, publicado por W. M. Lin-
dsay, por ordem da Academia Britânica (1926-1931).

São particularmente interessantes para o estudo das línguas neolatinas


as glosas de Reichenau, assim chamadas por ter sido o manuscrito, hoje em
Carlsruhe, muito tempo conservado na abadia de Reichenau. Consta este
glossário de duas partes: uma apensa ao texto da Bíblia e outra, sem referên-
cia a nenhum texto especial, onde as glosas estão dispostas em ordem alfa-
bética. De importância também são as glosas de Cássel, assim denominadas
por terem pertencido à biblioteca de Cássel. As palavras acham-se aí dispos-

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Fatores de dialetação do latim vulgar

tas segundo as coisas ou objetos a que se referem: partes do corpo humano,


animais domésticos, casa e seus pertences, vestimentas, utensílios etc.

Damos aqui uma mostra das glosas de Reichenau:

1. pulchra: bella

2. mares: masculi

3. optimum: valde bonum

4. anus: vetulae

5. semel: una vice

6. favillam: scintillam

7. femur: coxa

8. sevit: seminavit

9. emit: comparavit

10. flare: suflare

11. bellantes: pugnantes

12. crura: tíbia

13. onager: asinus selvaticus

14. iecore: ficato

15. canere: cantare

16. fletus: planctus

Atividades
1. Que motivos são essenciais para explicar por que as línguas se mudam com
o passar do tempo?

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua
Portuguesa. Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.
TEXTO 03
Origem e formação das línguas românicas

A expansão do poder romano


e seu patriotismo
As línguas românicas são um resultado da expansão territorial da antiga
cidade de Roma, fundada em 753 a.C., que dominou primeiro as cidades
vizinhas, depois as terras italianas continentais, em seguida as ilhas do Mar
Mediterrâneo. Esse império inicial estendeu-se em seguida para o resto
da Europa ocidental, para as terras litorâneas africanas e orientais, todas
banhadas pelo mesmo mar.

Evidentemente, a essa expansão territorial correspondeu um aumento


enorme de povos dominados não apenas pela força de exércitos formi-
dáveis, mas também pela maior cultura e melhor organização política. A
necessidade de se manterem obrigou esses povos a se tornarem bilíngues
apesar de serem a maioria em suas terras, acarretando o princípio de uma
evolução por estarem duas línguas, em contacto direto.

Houve somente duas terras que foram dominadas, mas não vencidas,
porque se submeteram ao governo romano, mas mantiveram as suas
tradições por serem altamente civilizados e conscientes do seu poder
intelectual.

O maior desses derrotados foram os gregos, que terminaram por se tor-


narem professores dos seus inimigos, a que legaram uma tradição de arte
e ciência que obrigou os vencedores a estudarem e dominarem a língua
grega: poucos eram os romanos cultos que continuaram monolíngues.

Entre esses, a história conservou o nome de Marcus Porcius Cato (234-


-149 a.C.), em nossa língua Márcio Pórcio Catão, homem austero e mo-
ralista, que firme na sua romanidade se negou por anos a fio a deixar-se
embriagar pelo encantamento grego, mas ao fim da vida capitulou. Além
dessa rendição e mais que ela, ficou conhecido por seus discursos inci-
tando os romanos a nova guerra contra a cidade de Cartago. Discursava
em todas as sessões do Senado Romano e terminava cada uma das suas
orações com a mesma frase:
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Caeterum censeo Carthaginem esse delendam [De resto eu opino que Cartago
deve ser destruída].

A guerra começou no ano de sua morte e em 146 a.C. Cartago foi arrasada
depois de três anos de cerco.

Catão se rendeu por ter confirmado que a influência grega tinha penetra-
do até na própria língua latina, recheada de termos gregos, principalmente no
campo das Ciências e das Artes, trazidos por escravos cultos que se tornaram
professores nas casas das famílias dos patrícios, a classe nobre da elite romana.
Incorporados no dia-a-dia do povo romano, não é de espantar que esses vocá-
bulos gregos com seus radicais, prefixos e sufixos tenham sido levados para as
terras conquistadas, cujos povos tomaram os empréstimos linguísticos necessá-
rios para o intercâmbio com os vencedores.

Foram subjugados pelos romanos, mas se mantiveram culturalmente inde-


pendentes os povos das terras orientais banhadas pelo Mar Mediterrâneo: entre
eles, os judeus, que acabaram expatriados na segunda metade do primeiro
século da nossa era cristã. Diferentemente do latim, que a própria Igreja Católica
abandonou com os últimos papas, a língua hebraica continuou viva num pu-
nhado de homens extremamente cultos por ser mais que a língua do povo, mas
a língua de Deus: desde os meados do século passado, esse povo conseguiu a
proeza de tornar popular o hebraico, língua oficial de Israel.

Também os povos árabes souberam sobreviver sem maiores mudanças ao


longo domínio romano. Ao mesmo tempo, quando conquistaram o norte da
África, foram eles que extinguiram a influência latina, a latinidade praticamente
ficou enterrada, ainda que poucos séculos antes da conquista muçulmana do
sul da Península Ibérica, a herança romana do norte africano era inteiramente
vívida, bastando-nos citar a figura de Santo Agostinho (354-430), nascido em Ta-
gasta, hoje Argélia, e morto em Hipona, quando os vândalos cercaram e derrota-
ram a cidade, de que era bispo: as suas Confessiones [em português, Confissões]
nos trazem um espírito lúcido que escreve em um latim evoluído, que desafortu-
nadamente os eruditos chamam decadente pela simples razão de ser diferente
daquele praticado por Caius Julius Caesar e Marcus Tulius Cicero, os dois maiores
prosadores da cultura romana. Seria o mesmo se disséssemos que Machado de
Assis (1839-1908) escrevia numa língua portuguesa decadente, menos bela que
a dos clássicos do século XVI. Outra coisa seria a língua do povo pouco ou nada
escolarizado, que teria enorme semelhança com a fala brasileira do povo, igual-
mente, pouco ou nada escolarizado.

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Origem e formação das línguas românicas

O Prof. Dr. Eurico Back e eu realizamos uma pesquisa à procura de uma linguís-
tica puramente brasileira. A nossa primeira discussão foi sobre significante e sig-
nificado. O primeiro nenhuma dúvida traz, porque é material, passível de se falar
e de se ouvir, de se escrever e de se gravar em disco. O segundo é imaterial. Eu
lia nesse meio tempo as Confessiones de Santo Agostinho e em uma das páginas
de suas Confissões, eu apontei o parágrafo em que ele falava da sua infância e de
como aprendia a língua falada. Disso veio a nossa definição de significado (BACK;
MATTOS, 1972, p. 15), a que acrescento um complemento para maior clareza:

Significado é a associação entre um significante e a situação [cultural em que


se realiza o diálogo].

É por isso que uma criança aprende a língua materna sem ninguém a ensinar:
ela ouve os significantes dentro de uma situação cultural, no caso uma situação
familiar que se repete dia por dia. Com isso, observa também que atos ocorrem
logo depois desse ruído que ouve – pois o ruído se transforma em palavra e frase
somente depois que se relaciona a fala com as suas consequências de praticidade.
A criança é um aluno sem professor, porque nenhum dos seus familiares lhe diz o
que significam as palavras que ela ouve: ativa, ela descobre e nunca mais esquece.

Essa ideia de baixa latinidade, de idade de ferro, depois de uma de prata que
seguiu uma primeira de ouro, deveria referir-se à desagregação populacional das
terras conquistadas pelos romanos que obrigaram os moradores ao uso da latim
e com isso o aprenderam desadequadamente, num primeiro momento com uma
quantidade maior de adultos. Outra coisa é a necessidade de considerar que artis-
tas perfeitos podem acontecer numa época e nenhum igualar-se depois dele.

Algo bem parecido aconteceu no Brasil nos séculos XVI e XVII quando negros
e índios passaram a usar a língua portuguesa: era uma língua atropelada pelas
línguas nativas daqueles falantes.

Nada disso aconteceu no norte da África até a chegada dos árabes. Assim, o
latim africano era apenas a evolução natural de uma língua. O fato de nenhum
dos seus autores ter tido o talento e o gênio de Publius Virgilius Maro – Virgílio
(70-19 a.C.) e Quintus Horatius Flaccus – Horácio (65-8 a.C.), ou de Caius Julius
Caesar – César (100-44 a.C.) e Marcus Tullius Cicero – Cícero (106-43 a.C.), essa é
uma fatalidade que nem os deuses explicam.

Do contrário, seríamos obrigados a reconhecer que o século XVI falava um


português perfeito, que os séculos posteriores fizeram desaparecer. Depois de
Camões (1524-1580) tivemos de esperar quatrocentos anos para termos outro
Camões na pessoa de Fernando Pessoa (1888-1935).
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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Línguas em conflito:
a língua latina e as línguas nativas
Qual seria a origem de um homem de sessenta anos?

A resposta parece única:

Se ficarmos com esse ser humano, nenhum sentido teria falarmos da sua
origem: todos eles nascem, se desenvolvem, amadurecem, se fragilizam e morrem.

Sempre me pareceu esquisito que ninguém tenha comparado a história das


línguas à das espécies de seres vivos: a evolução não mudou nenhum deles em
outro. Concordo, porém, que é mais cômodo dar um novo nome a um estágio
posterior de uma língua, pois seria mais longo e cansativo chamar a língua por-
tuguesa de língua latina portuguesa (evoluída desde o século VIII).

Por outro lado, se quisermos considerar as suas capacidades físicas, mentais


e sociais, deveremos analisar a sua convivência: os encontros e os desencontros
de suas atividades pessoais e interpessoais para sabermos o que faz que ele seja
quem ele é e o que ele pode.

Se, no entanto, sairmos para antes desse homem, aí temos a possibilidade de


investigar e assim descobrir a sua origem: o seu local de nascimento, a nacionali-
dade e a língua que ele herda, os seus pais, os seus avós, os seus bisavós, os seus
trisavós, os seus tetravós. Numa palavra: os seus ascendentes.

Eu bem sei que língua não é gente, mas é parte essencial de gente e, portan-
to, pode-se honestamente pensar num paralelo entre uma e outra.

Em consequência, parece-me um desacerto pensar que as línguas neolatinas


têm a sua origem na latina: seria o mesmo que o velho ter a sua origem na crian-
ça e não nos seus pais e ancestrais.

As línguas neolatinas são simplesmente uma continuação da latina que se


modificou com a passagem do tempo e com as trombadas em outras línguas
que deixou mortas ao longo do seu caminho.

O pídgin é uma língua de emergência que nasce para servir de veículo even-
tual de comunicação entre pessoas de línguas diferentes: não é nenhuma delas,
mas tem partes de cada uma delas. No momento em que se estruturar e passar
a ter uma comunidade que a fale nascimentos após nascimentos, dessa língua
podemos falar que tem a sua origem nas línguas matrizes por ela não ser nenhu-

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Origem e formação das línguas românicas

ma delas que a formaram: é filha de mães conhecidas. Essa semelhança nunca


existiu entre o latim que se transformou ao longo do tempo por uma história
de conflitos linguageiros. Vou ainda mais longe: a língua latina, a grega, a ger-
mânica, a eslava e várias outras continuam alguma língua muito mais antiga, a
que chamamos indo-europeia. E nessa lista deve-se agregar o sânscrito, a língua
indo-europeia mais antiga que tem uma literatura de alta qualidade que criou
por primeiro a epopeia.

Diferentemente da gente, as línguas envelhecem e morrem ou se infantili-


zam, rejuvenescem e se tornam adultas. Quer parecer-se que foram esses os fe-
nômenos que fizeram morrer a língua latina e criaram as neolatinas.

Comecemos citando as línguas românicas, aquelas que têm um povo que as fala
com uma continuidade temporal ininterrupta entre a derrocada do Império Romano
e a atualidade, além de apresentarem uma independência que as distinguem dos
diversos falares ou dialetos, possuem formas paralelas de uma mesma língua.

Se houver alguma regra que permita passar de uma modalidade linguística


para outra, do ponto de vista filológico e linguístico, ambas são dialetos, moda-
lidades da mesma língua, ainda que um deles possa ser mais importante que
o outro. Entre línguas que continuam uma forma bem mais antiga, há uma se-
melhança que é puramente um acidente do percurso porque se mantiveram os
caracteres essenciais do velho latim.

Eis as línguas românicas:

 Castelhano, falada na Espanha e em países de cultura espanhola.

 Catalão, falado na Catalunha.

 Dálmata, falado na antiga Dalmácia, desaparecido em 1898 com a morte


do seu último falante.

 Francês, falado na França e em países de cultura francesa.

 Galego, falado na Galiza.

 Italiano, falado na Itália.

 Português, falado em Portugal e em países de cultura portuguesa, sendo


o Brasil o de povo mais numeroso.

 Provençal, falado no sul da França.

 Rético, falado em parte da Suíça e da Itália.


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 Romeno, falado na Romênia.


 Sardo, falado na Sardenha.

Devo acrescentar que o galego talvez possa ser considerado uma colíngua
da portuguesa, mas existem fartas razões para as considerarem línguas diversas
apesar da semelhança impressionante entre ambas. Separadas politicamente
desde o século XIII e com o intercâmbio humano cada vez mais escasso, evolu-
ções diferentes as separaram, ainda que continuem perfeitamente compreensí-
veis para os falantes da outra.

A latinização e a formação
das línguas românicas
As línguas românicas resultam da história dos povos dominados pelo exérci-
to romano e pela convivência da língua nativa deles com a que lhes foi imposta
e sobreposta pela força e pela cultura mais avançada. Em todos os casos dessas
línguas, as línguas nativas resistiram algum tempo, sempre com menos falantes
e por fim sem nenhum, aparecendo mais uma língua morta de um povo venci-
do por uma outra cultura por lhe terem tirado o tempo necessário para o seu
avanço em direção ao futuro.

A evolução de uma língua pode fazer-se de duas maneiras: espontânea ou


motivada.

No caso da evolução da primitiva língua românica, ainda dialeto do latim, ne-


nhuma dificuldade se tem para distinguir as evoluções espontânea e motivada.

A evolução espontânea procura alguma facilidade em alguma parte da língua


e parece vir de preferência da boca das crianças. Foi ela que provocou o desapa-
recimento do futuro do presente [amabo: amarei] e do futuro anterior [amavero:
terei amado]: todas as línguas românicas perderam essas duas formas de futuro.

A evolução motivada nasce de alguma lacuna da própria língua, sentida pelos


falantes, ou depende de algum contato entre línguas, que força o aparecimento
de uma novidade.

A falta desses dois tempos do futuro foi sentida em toda parte e assim veio
a necessidade de se achar um meio de expressar esse tempo, o que foi feito por
uma evolução motivada que levou ao aparecimento de novas formas, mas não
únicas em todo povo românico.
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Origem e formação das línguas românicas

A evolução foi, portanto, motivada.

Língua portuguesa: eu morrerei.

Língua romena: eu vói murí.

A evolução espontânea provoca o aparecimento de um dialeto dentro da


mesma língua, enquanto a evolução motivada pouco a pouco modifica a língua
de maneira tão acentuada que se chega a um momento irreversível em que ne-
nhuma regra pode converter a forma de uma das modalidades em forma da
outra: a forma da mais antiga revela a da mais evoluída.

Formas da evolução
A língua do povo brasileiro faz alguns ditongos desaparecerem, mas se pode
dar uma regra porque acontece com o ditongo antes de determinadas consoan-
tes em palavras bem comuns na língua:

beijo > bejo / beira > bera / deixa > dexa.

A formação das línguas românicas tem a sua origem na evolução espontânea


da língua latina com transformações idênticas em todo o território, constituindo
assim um numeroso dialeto da língua latina. A fragmentação delas vem com a
evolução motivada.

A maioria das evoluções espontâneas ocorre quando a língua possui uma


grande redundância que garante o reconhecimento do significado que mais de
um dado linguístico assinala sem nenhuma dúvida.

A concordância nominal e verbal exemplificam a redundância:

Os [mais de um] bons [mais de um] alunos [mais de um] fazem provas [mais de
um] excelentes [mais de um].

Os bons alunos [mais de um] fazem [mais de um] provas excelentes.

O primeiro desses exemplos apresenta duas redundâncias de concordân-


cia nominal e o segundo uma redundância da concordância verbal. Em vista
disso nasceu na língua do povo o desejo de eliminar essas redundâncias e esse
desejo venceu:

Os bom aluno faz provas excelente.

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E permito-me ainda outro exemplo do dialeto popular da língua portuguesa


do Brasil com um hipotético diálogo entre dois caboclos:

– Nós vai amanhã ver o jogo?

– Claro que vamo.

A falta de redundância implica a obrigatoriedade do emprego da forma plural


do verbo, enquanto a presença do pronome a impede.

A proximidade do adjetivo com o seu substantivo e a forma do sujeito e a


terminação do verbo constituem elementos que garantem o significado.

A evolução espontânea, a que nenhuma língua escapa, se faz a cada dia em


seus sons, em suas palavras e em suas frases por iniciativa isolada de um dos
falantes, mas achada boa por outros que a divulgam e acabam por incorporá-la
primeiro na fala e mais tarde nos dicionários. O que acham os meus leitores?

– Beleza!

Trata-se de um exemplo de uma evolução espontânea: é uma nova interjei-


ção da nossa língua sempre com um significado afirmativo e aprobativo.

Esse sentido, parece que serei o primeiro a registrá-lo, pois trabalho na quarta
edição do meu Dicionário Júnior da Língua Portuguesa: desconhecem-no os di-
cionários de Antônio Houaiss (1915-1999) e de Aurélio Buarque de Holanda Fer-
reira (1910-1989).

Pode perfeitamente acontecer que o termo seja empregado por tanta gente
que o povo todo abandone o sentido substantivo dessa palavra e a troque por
outra: formosura ou lindeza, talvez.

E teria aparecido uma evolução semântica.

Há evoluções fonéticas. Uma delas existe em uma forma regional da língua


portuguesa das terras paulistas: em torno de Araras. Nessa variante houve uma
evolução espontânea, porque puramente local, em que a consoante lateral
depois de uma oclusiva tornou-se uma colidente [vibrante simples]:

claro > craro / plantar > prantar / atleta > atreta / glória > grória / bloco > broco.

Há evoluções vocabulares. A maioria delas ocorre por analogia, que é um tipo


de quarta proporcional em termos matemáticos aplicados aos linguísticos. Bons
exemplos nos dão as palavras populares perca e ponhar:

Se eu cato (1) faz a cata (2), então eu perco (3) deve fazer a perca (4)...
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Origem e formação das línguas românicas

Se eu sonho (1) faz sonhar (2), então eu ponho (3) deve fazer ponhar (4)...

Há evoluções sintáticas. Uma delas ocorreu ainda dentro da língua latina nos
séculos posteriores à queda do Império Romano: a ordem dos termos da oração
puxou o verbo para mais perto do sujeito criando uma nova ordem direta nesse
latim tardio. A língua anterior tinha uma liberdade imensa na ordem das pala-
vras, mas a ordem direta impunha o verbo como palavra derradeira:

Helvetii quoque reliquos Gallos virtute praecedunt [No latim clássico: os hel-
vécios também aos demais gauleses em força excedem] (CÉSAR apud MATTOS,
2001, p. 92)

A nova ordem direta deixava antes do verbo apenas o sujeito:

Helvetii praecedunt quoque reliquos Gallos virtute [No latim românico: os hel-
vécios excedem também os demais gauleses em força].

É claro que a nova ordem direta foi uma porta aberta para uma evolução mo-
tivada: a queda de um dos casos que uma regra espontânea já tinha reduzido a
dois dentro da România; nominativo e acusativo.

E acontece também em nossa língua portuguesa do Brasil. Outra vez a maio-


ria delas ocorre por analogia, mas envolvendo agora pares de frases, ainda numa
quarta proporcional:

Se eu amo meu marido (1) e meu marido me ama (2),

então eu amo ele (4) e ele me ama (3).

A evolução sintática e muitas vezes também a vocabular aparecem com faci-


lidade quando se conserva não mais que uma parte muito pequena de um fato
gramatical que era comum e rotineiro num estágio anterior da língua: o que era
regular e todos usavam passa a ser irregular e, por ser exceção, se torna frágil. As
frases anteriores tinham formas diferentes no latim falado pelo povo romano até
o século VI e pelos monges e pelas poucas pessoas cultas até o século XIII ou XIV:

Ego amo meum maritum et meus maritus me amat.

Ego amo illum et ille me amat.

Como pertencem a uma classe pequena e de intenso emprego, os pronomes


conservaram as formas do nominativo (ele), do dativo (lhe) e do acusativo (o) nas
três pessoas do singular e do plural. A irregularidade, porém, é tamanha que as
formas do objeto direto, vindas do acusativo latino, ainda persistem na primeira

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

e na segunda pessoa, também empregadas para o objeto indireto, vindas do


dativo, mas assimiladas às do objeto direto. O dativo da terceira pessoa passa na
língua do povo a se referir apenas a pessoas e assim toma a regência dupla dos
pronomes de primeira e segunda pessoa:

Eu já lhe [objeto indireto] falei que lhe [objeto direto] amo, meu bem!

Uma evolução vocabular praticamente vitoriosa na fala popular brasileira eli-


mina as formas irregulares do futuro do subjuntivo, dado que restam apenas
17 verbos e seus derivados em que elas se distinguem das formas do infinitivo,
agravando o problema escolar o uso raríssimo de alguns deles e penoso em dois
outros, que cito abaixo:

Se ele vir [vier] me ajudar, eu ficarei feliz.

Se eu ver [vir] você com eles, eu chamo a polícia.

E o número desses 17 cai bastante.

As irregularidades linguísticas podem manter-se somente com a pressão da


família, da escola e dos meios de comunicação de massa, todos ajudados por
uma ação enérgica do Governo nos vários setores sociais. Essa ação política é
praticamente a única arma contra o analfabetismo, que propicia enormemente o
aparecimento de formas regulares e a consequente morte das irregulares porque
na maioria das vezes o analfabetismo e a pobreza andam de mãos dadas.

Entretanto, se o fato gramatical abarca todas as palavras de uma língua, a evo-


lução espontânea fica bloqueada. Acontece com as línguas eslavas, que têm sete
casos contra os seis do latim e os quatro do alemão. E o mais grave é que o nominati-
vo [caso de pessoa de que se fala] e o vocativo [caso da pessoa que é chamada] com
extrema frequência têm formas diferentes com exemplo de uma palavra polonesa:

 A criança responde à pergunta sobre quem a trouxe para a escola:

– Mama.

 A criança cai e chama a mãe:

– Mamo!

Há evoluções semânticas, estas dependem da liberdade do falante que pode


por uma necessidade momentânea torcer o significado de uma palavra dentro
de um texto, falado ou escrito, em que fica comprovado que permanece o senti-
do comum, alterado aqui pelo falante por ter bons motivos para isso.

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Origem e formação das línguas românicas

 Metáfora de Drummond de Andrade (1969, p. 235):

Sorrimos também – mas sem interesse – para as mulheres

bojudas que passam, [grávidas]

cargueiros adernando em mar de promessa contínua.

 Metonímia de Drummond de Andrade (1969, p. 17):

Devagar... as janelas olham [os moradores].

 Sinédoque de Drummond de Andrade (1969, p. 60):

Do lado esquerdo carrego meus mortos [no coração].

Por isso caminho um pouco de banda.

Nesses três exemplos, o contexto provoca um segundo significado, embora


sem anular o habitual: cada um deles é, portanto, um recurso estilístico sem ne-
nhuma evolução de palavra da língua. Pode acontecer, porém, que qualquer
dessas figuras de estilo tenha um emprego tão intenso que se torne uma segun-
da acepção da palavra primitiva ou acabe matando o significado original.

O primeiro caso acontece muito nas línguas e tem o nome de catacrese.

 Catacrese com base na metáfora:

A mesa ficou bamba com a perna quebrada.

 Catacrese com base na metonímia:

Já foi dada a primeira mão de tinta.

A evolução espontânea certamente existe em todas as línguas do mundo


porque as crianças nascem e nunca repetem integralmente a fala dos pais e
avós. As mudanças linguísticas, contudo, levam séculos para serem percebidas.

A evolução motivada, ao contrário, depende primeiramente do contato de


línguas que disputam o mesmo território ou têm territórios vizinhos com grande
intercâmbio pessoal.

A evolução motivada faz as línguas se modificarem na medida da potência de


cada uma ou leva a mais fraca ao desaparecimento. Tem o exemplo da Suíça e do
Canadá, que disputam o mesmo território: este (Canadá) tem o francês e o inglês
disputando alguns territórios, enquanto aquela (Suíça) tem o alemão, o francês,

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o italiano e o rético, línguas que aparecem em ordem alfabética e também em


ordem decrescente de importância por mera coincidência.

A evolução espontânea tem limites precisos porque a distância política é


também uma fronteira para essas línguas em contato. Creio que há uma evolu-
ção puramente individual: um ou outro dos moradores toma alguma palavra ou
algum torneio da língua vizinha. Aconteceu um caso curioso na cidade boliviana
de Porto Suarez, vizinha de Corumbá, cidade do Mato Grosso do Sul. Havia um
vendedor que falava um espanhol perfeito, mas uma das suas palavras tinha
sido derrotada pela brasileira: em lugar da espanhola hasta ele usava sempre a
portuguesa até...

Depois dessa longa explanação, devo acrescentar que a língua latina atraves-
sou a evolução espontânea e também a motivada.

A espontânea tem merecido pouco ou nenhum destaque dos pesquisado-


res, mas foi ela que levou a língua arcaica ao esplendor dos duzentos anos que
cercam o início da Era Cristã.

Houve uma evolução fonética bem extensa, que mudou o aspecto sonoro da
língua, deixando o acento tônico na antepenúltima ou penúltima sílaba da pala-
vra, nunca mais na sua primeira sílaba, além de poder produzir metafonias:

cónducere > condúcere: conduzir

ínamicus > inimícus: inimigo

pérfacere > perficere: perfazer [ultimar]

Houve ainda mudanças nas declinações:

lupod > lupo: ao lobo

Apareceu depois dos anos de glória uma grande simplificação nas desinên-
cias nominais por uma evolução simultaneamente vocabular e sintática, ainda
espontânea, embora ocorrendo na língua do povo, conhecido como latim
vulgar, nome impróprio pelo sentido pejorativo que contaminou esse adjetivo e
o substantivo derivado: vulgar e vulgaridade.

As cinco declinações se reduziram a três em todas as terras da România, por


se incorporar a quarta na segunda e a quinta mais comumente na primeira:

A primeira em -a: lupa, plural lupae [lúpai].

A segunda em -us: lupus, plural lupi [lúpi].


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A terceira com outras terminações: rex, plural reges [regues].

Mais profunda foi a eliminação de quatro dos seis casos [nominativo: N / ge-
nitivo: G / dativo: D / acusativo: Ac / ablativo: Ab / vocativo: V], substituídos pelas
preposições que passaram a requerer um caso único, restando o nominativo e o
acusativo, o que também aconteceu em toda a România:

Número Singular Plural

Versão loba lobo rei lobas lobos reis

N lupa lupus rex lupae lupi reges

G de lupam de lupum de regem de lupas de lupos de reges

D ad lupam ad lupum ad regem ad lupas ad lupos ad reges

Ac lupam lupum regem lupas lupos reges

Ab cum lupam cum lupum cum regem cum lupas cum lupos cum reges

V o lupa o lupus o rex o lupae o lupi o reges

Essas foram as inovações populares na língua latina, iniciadas no século IV e


completadas no século VI: todas imotivadas, portanto independentes de con-
flitos entre línguas rivais, porque as línguas dos vencidos deviam estar pratica-
mente sem nenhuma força para interferir na marcha da língua vencedora.

Texto complementar

O imperativo no português e no espanhol


(CRUZ, 2008)

Por serem línguas-irmãs, originárias da mesma base latina, o português e


o espanhol possuem, certamente, várias estruturas formais comuns entre si,
tais como a morfossintaxe e a fonética. E as formas verbais parecem seguir
essa característica genética que possuem os irmãos, no caso as duas línguas
neolatinas.

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Para poder comprovar, ou não, a assertiva, anterior aqui será estudado um


pouco o verbo latino, mais especificamente seu modo imperativo, assim como
esse mesmo modo verbal na língua portuguesa e na espanhola, verificando as
semelhanças que se supõe existir pelo fato da base comum, tentando identificar
que semelhanças seriam essas e procurando apontar também as diferenças en-
contradas, que devem certamente existir por se tratarem de línguas diferentes.

Devemos nos lembrar sempre que o português e o espanhol, assim como


todas as línguas neolatinas, descendem diretamente do latim vulgar, não do
latim culto e literário. Por isso far-se-á primeiro um brevíssimo estudo do im-
perativo desse latim do vulgus, partindo depois para estudá-lo, comparativa-
mente, no português e no espanhol.

Na língua latina haviam dois tipos de imperativo, dos quais no chamado


imperativo II o futuro tinha um aspecto sobrevivente desde a época clássica,
não sendo mais encontrado em outras situações a não ser em fórmulas jurí-
dicas ou consagradas, não restando rastro dele nas línguas românicas.

O imperativo, com todo seu aspecto de futuro, sofre no decorrer do


tempo a influência do modo subjuntivo. Parte dos verbos latinos apresen-
tam, quando do surgimento do romance, a presença de formas do imperati-
vo que remontam ao subjuntivo. Em terceiras pessoas, que não têm o impe-
rativo, esta função se realiza através do subjuntivo.

A fala familiar tende a colocar o imperativo pelo presente do indicativo


quando se espera a execução imediata de uma ordem. É o presente do in-
dicativo latino que representa, por exemplo, o plural em francês chantez e o
provençal cantatz.

A prosa clássica utiliza como imperativo de proibição tanto ne + perfeito


do subjuntivo como a perífrase noli facere, enquanto ne + imperativo ou sub-
juntivo pertencem à linguagem popular e poética.

Na época pós-clássica aparece o uso do presente de infinitivo em função


de imperativo e em função de proibição da segunda pessoa singular com ne
(nom).

Visto um pouco do imperativo latino podemos passar para o imperativo da


língua espanhola, que possui oito formas verbais simples, que têm a característica
de serem formas verbais puras, não possuindo os denominados morfemas inten-
sos. As desinências constituem a característica extensa de nexo onde aparecem.

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Em espanhol, o imperativo não possui mais que duas formas, designa-


das pessoas, no modo imperativo, denominadas como segunda pessoa do
singular e segunda pessoa do plural. As outras formas, ainda que pareçam
cobrir o conteúdo do imperativo, não pertencem a esse modo, linguistica-
mente, pois têm outros valores e conteúdos.

O imperativo apresenta, no castelhano, uma base verbal e um elemento


desinencial, que adota em sua expressão as formas a, e, cero, ad, ed, id. A di-
ferenciação entre as três primeiras desinências e as três ultimas é a noção de
número, uma diferença morfêmica bastante importante.

Não existe mais que um elemento indicador de noção no imperativo do


verbo espanhol: o morfema extenso.

O imperativo deve constituir-se exclusivamente na forma verbal que vai


funcionar para a exortação e para a apelação. Ou seja, o imperativo espanhol
é um morfema extenso, com função puramente apelativa ou atuativa, que
tem determinação com o morfema desinencial de segunda pessoa e é indi-
ferente às diferenciações dos demais morfemas extensos.

Podemos dizer ainda, seguindo o pensamento de Moreno de Alba (1978,


p. 13), que o imperativo tem valor de futuro, pois é o modo no qual se ex-
pressam a ordem e a exortação, podendo a pessoa que a recebe somente
executá-la após tê-la recebido.

Vários autores, ainda segundo Alba, não aceitam o imperativo como


modo verbal, chegando a afirmar que o imperativo é um modo de fala, não
de língua. Não faz sentido a ideia de o imperativo não ser um modo de língua
porque a língua também é formada, além da sintaxe da escrita, de uma fala
que certamente vai influenciá-la, tornando-se, assim, um dos constituintes
linguísticos. Se o imperativo não for um dos modos verbais, em qual outra
categoria gramatical seria colocado? Aqui certamente não conseguirei res-
ponder essa indagação, mas certamente vale a pena fazê-la.

Em se tratando do vernáculo português, temos o uso do imperativo afir-


mativo e do negativo. Utiliza-se as duas formas somente nas orações absolu-
tas, nas principais ou nas orações coordenadas. Tanto o afirmativo quanto o
negativo podem exprimir:

1. uma ordem, ou comando;

2. uma exortação, ou conselho;

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3. um convite, uma solicitação; uma súplica.

Emprega-se o imperativo também para sugerir uma hipótese em lugar de


asserções condicionadas expressas por se + futuro do subjuntivo. Esses diver-
sos valores dependem da significação do verbo, do sentido geral do contex-
to e da entoação que se dá à frase imperativa.

Embora o imperativo esteja ligado ao vocábulo latino imperare, não é para


comando que usamos o imperativo em português, no comum das vezes,
mas para exortar nosso interlocutor a cumprir a ação indicada no verbo que
utilizamos. É, portanto, mais um modo de exortação que de comando.

Ao contrário do imperativo espanhol, o imperativo no português não


é contestado como modo verbal por se entender, de comum acordo, que
assim o seja.

Nas duas línguas neolatinas aqui apresentadas constatamos que o impe-


rativo se caracteriza por ter um número reduzido de formas, posto que se
pode dar ordens somente a quem se dirige a palavra.

Um contraste verificado entre o português e o espanhol é o fato de no


espanhol ser recomendado, até mesmo imposto, que o imperativo somente
se deva usar nas orações afirmativas, enquanto que no português coexistem
a forma afirmativa e negativa.

Comentando um pouco mais sobre as semelhanças de características


existentes entre as duas línguas neolatinas, verifica-se que nas duas o im-
perativo serve mais para a exortação que propriamente para se dar ordens
ao nosso interlocutor, tendo uma característica de futuro, porque a pessoa
somente pode atender a uma exortação depois de tê-la recebido.

Posto isso, verifica-se que, por causa de sua origem latina comum, o por-
tuguês e o espanhol apresentam imperativos com mais semelhanças que di-
ferenças. Como não poderia deixar de ser, temos algumas diferenças, apon-
tadas aqui na medida em que foi possível verificá-las.

Não se quis encerrar aqui o assunto, e tampouco se poderia, mas certa-


mente este estudo mostrou o quanto percorrer os (des)caminhos das línguas
pode se tornar apaixonante.

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.

TEXTO 04
Fragmentação da língua românica

A fragmentação da língua românica foi consequência de um grande


número de evoluções motivadas e, portanto, forçadas pelo encontro entre
línguas diversas no mesmo território.

Os substratos e os superstratos
da língua latina
Este é o momento de se falar em substrato e superstrato.

O substrato é o conjunto de línguas que uma língua de fora encontra


ao invadir um território de outro domínio linguístico. O latim encontrou
línguas que deixaram apenas alguns vocábulos como atestado da sua
existência: essas línguas formaram o substrato do latim. No Brasil, as lín-
guas indígenas formaram o nosso substrato.

Em cada uma das terras conquistadas os romanos encontraram línguas


diferentes e, portanto, a língua latina sofreu influências igualmente diversas.

Mais importante que o substrato é o superstrato, a língua que invade


o território de outra, mas perde a sua força ao longo do tempo e desapa-
rece, deixando, porém, marcas profundas na língua primitiva da terra. As
línguas germânicas no Ocidente da Europa, entre elas as dos viquingues,
e as eslavas no Oriente, foram o superstrato da língua românica primitiva
e a levaram a se romper em várias línguas diferentes.

O superstrato mais conhecido é o da língua francesa no território dos


anglos e dos saxões, ambos de línguas germânicas. Foi a língua derrotada,
embora tenha tido o prestígio do poder político: Guilherme o Conquis-
tador (cerca de 1028-1087), Duque da Normandia de 1035-1087 e rei da
Inglaterra de 1066-1087. A língua germânica perdeu a declinação inteira
e o seu plural, trocado pelo latino e francês, recebendo ainda um enorme
contingente de palavras francesas e latinas.

Os ítalos invadiram a Península Itálica aproximadamente 2000 anos a.C.


e se espalharam formando vários povos de línguas aparentadas, evolução
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particular do indo-europeu com alguma semelhança com o grego. Estabelece-


ram-se em pequenos povoados: latinos, samnitas, sabinos, volscos e úmbrios.

No século VIII a.C., os latinos fundaram uma cidade às margens do Rio Tibre,
a que chamaram Roma. Para explicarem a sua origem, apelaram para a lenda
de Rômulo e Remo, que a teriam fundado em 753 a.C. Rômulo teria ficado no
Monte Palatino e Remo no Aventino. Uma desavença entre eles teria causado o
primeiro assassínio da sua história: Rômulo matou Remo.

Parece ser mais plausível que a cidade de Roma tenha sido fundada pelos
etruscos, povo que chegou mais tarde ao norte da Itália e desceu no século VIII
a.C. até o Lácio, dominando os latinos. Corrobora esta hipótese o fato de alguns
reis de Roma terem origem etrusca entre 625 e 509 a.C., quando a República
romana é implantada.

Conquistas romanas
A República romana foi a responsável pela expansão territorial surpreenden-
te e conseguida por uma educação voltada para a guerra, que se comprova no
provérbio:

Dulce et decorum est pro patria mori [É doce e decoroso morrer pela pátria].

Favoreceram ainda o sucesso militar as políticas de governo, entre elas o exer-


cício da ditadura legal por um máximo de seis meses sempre que a pátria estives-
se em perigo. Foi assim com o camponês Lucius Quintus Cincinnatus (519-438),
que estava arando o campo quando soube que o tinham nomeado ditador para
vencer a guerra contra vários povos itálicos em 458: bastaram-lhe 16 dias. Che-
gando a Roma, não aceitou continuar no poder e voltou para o seu campo. Além
disso, havia um espírito de confiança no futuro que não deixava os romanos se
abaterem com as derrotas, nem com aquela que lhes impôs em Canas Aníbal,
(247-183 a.C.), o general cartaginês, aniquilando um exército com o dobro dos
soldados: o único comandante que voltou derrotado a Roma foi recebido com
honras, mas seria logo morto em Cartago.

De fato, até o tempo de César, Roma não tinha exército. Ele era formado para a
guerra e desmobilizado antes de entrar em Roma. A luta era um ato patriótico.

Conquistados os povos itálicos, os romanos se voltaram para o sul da Itália.


Algumas cidades gregas se aliaram aos romanos, com Nápoles. Desde aquela
época, os romanos já aplicavam a sua famosa máxima militar:
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Fragmentação da língua românica

Dívide et ímpera [divide e comanda]

Outras, porém, resistiram e foram conquistadas penosamente, apesar de


terem pedido a ajuda de Pirro (318-272 a.C.), rei de Épiro, agora terras albanesas.
Chamado para a defesa dos gregos, comemorou a primeira vitória em 279 a. C. e
derrotou os romanos por duas vezes seguidas. De fato, ele veio com um exército
de mais de vinte mil soldados, além de vinte elefantes. Ficou conhecido pelo que
disse depois da segunda vitória:

“– Mais uma vitória como esta, e eu estarei perdido!”

Essa terceira vitória nunca houve. De fato, suas tropas foram arrasadas no ter-
ceiro encontro e as cidades gregas se renderam em 272 a.C.: entre elas, Tarento,
que era a mais rica.

Vieram depois, uma a uma, outras conquistas territoriais, que parece terem
visado mais ao lucro que a divulgação da sua cultura (datas a.C.). Interessam-nos
aqui apenas as terras em que a língua latina evolui para as românicas:

 264-241 – Conquista da Sicília.

 259 – Córsega.

 238 – Conquista da Sardenha.

 219-201 – Conquista da Espanha depois da vitória sobre os cartagineses.

 149-146 – Conquista do norte da África com a queda de Cartago.

 149-133 – Conquista da Lusitânia, atual Portugal.

 133 – Tomada de Numância, capital da Espanha.

 58-51 – Conquista da Gália e parte da Germânia.

 33 – Conquista da Dalmácia, terras do outro lado do Mar Adriático, que as


separa das italianas.

A primeira conquista d.C. foi feita entre os governos de Caius Julius Caesar
Octavianus Augustus (63 a.C.-14 d.C.) e Tiberius Julius Caesar (42 a.C.-37 d.C.):

 20 – Récia, terras atuais entre a Itália e a Suíça.

Já no segundo século da nossa era, Marcus Ulpius Traianus (53-117), primeiro


imperador romano nascido fora da Itália, faz a última conquista romana e leva o
Império a sua maior extensão territorial:

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 106 d.C. – Conquista da Dácia, atual Romênia.

Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) escreveu um soneto


sobre a língua portuguesa:

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,


És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,


Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “Meu filho!


E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

(BILAC, 1978, p. 176)

Na verdade, a língua portuguesa nunca foi a última flor do Lácio, mas a penúl-
tima, depois da língua romena, porque tardiamente os romanos conquistaram
as terras da antiga Dácia, que equivalia às terras atuais dos países balcânicos,
depois da guerra entre 101 e 107 d.C. sob o comando de Marcus Ulpius Trajanus
(53-117), imperador romano entre 98 e 117. Fez um bom governo e foi o último
imperador a conquistar novas terras. Por outro lado, tudo leva a crer que a forma
popular da língua latina tenha resistido por mais tempo, surgindo assim o ro-
manço romeno bem depois do português.

No século VI chegaram os eslavos e se miscigenaram com os dácios que nessa


época já falavam latim.

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Fragmentação da língua românica

Línguas românicas: a formação dos


romanços e a persistência da latinidade
Creio que se pode afirmar que houve uma língua românica, ainda que com o
sentido de uma língua geral dos povos que falavam um latim tardio, seriamente
afetado pelas investidas dos bárbaros desde o século V. Sob esse aspecto, o pró-
prio latim de Roma e das províncias romanas das terras italianas seriam também
uma parte dessa língua românica, porque foram igualmente afetadas pela vinda
intempestiva e violenta dos povos germânicos em levas seguidas.

Essa língua seria o produto das evoluções espontâneas da língua romana e


teria funcionado como uma ponte entre a língua latina e as línguas neolatinas
posteriores.

No sentido mais comum, porém, esse termo nomeia as línguas que evoluí-
ram da língua latina quando as invasões bárbaras dissolveram a unidade impe-
rial desde o começo do século V d.C.

A evolução espontânea acompanhou a vida da língua latina pelo menos nos


primeiros quinhentos ou seiscentos anos da nossa era: as diferenças poderiam
constituir dialetos, nunca línguas.

O que acontece agora aconteceu também com as comunidades que perten-


ciam ao Império Romano, criado pelo primeiro imperador romano Caius Julius
Caesar [Cáisar] (100-44 a.C.) em 49 a.C., quando pela primeira vez na história
um exército entra em Roma mobilizado, e desaparecido em 476 da nossa era
quando o exército germano de Odoacro derruba Rômulo Augústulo, nascido em
462 e morto em data desconhecida, último imperador romano.

O romanço francês do século IX ainda tinha palavras paroxítonas que seriam


oxítonas na língua de agora na fala da prosa e paroxítonas na poesia:

poblo, nostro, damno.

Para conservarem a sílaba tônica, mudou-se a vogal final, porque a guarda


dessas vogais obrigaria à deslocação da tônica para a sílaba final:

peuple, nostre.

A terceira palavra morreu no caminho. Algum tempo depois, mudou-se a


pronúncia da segunda palavra, mas esquisitamente se deixou ficar a letra muda,

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ainda que em cima da vogal para ninguém a pronunciar por engano: nôtre.
Foram mudanças espontâneas.

As motivadas determinaram o encerramento da língua latina em toda a Ro-


mânia, salvo nas ilhas de igrejas e conventos. Ainda que inconscientemente
praticadas, elas costumeiramente servem para evitar alguma ambiguidade ou
provêm de empréstimos forçados entre línguas conflitantes.

No século IX, a fragmentação da antiga língua românica estava inteiramente


estabelecida, embora fosse ainda muito acentuada a semelhança de cada uma
delas com a língua românica que tinha sido praticamente a mesma em todos os
territórios da România.

Aqueles tempos de combates frequentes impediam um desenvolvimento


adequado da juventude, chamada muito cedo para as armas.

A esse estágio que medeia entre a língua latina e as modernas línguas neola-
tinas se chama romance ou romanço: a semelhança com o latim continua pelo
menos até o século X extremamente acentuada, como vai nos mostrar o docu-
mento abaixo.

Por esse motivo, compreende-se que a cultura daquela época andasse em


baixa: assim, ninguém deveria estranhar o doloroso fato de que Carlos Magno
[747-814], imperador da França e de um império além daquelas fronteiras, se
tenha alfabetizado em uma idade bem madura.

O documento mais antigo de uma língua românica é o juramento que os dois


filhos de Carlos Magno, Ludwig e Karle, trocam para se defenderem de Ludher, o
terceiro irmão. O herdeiro do trono francês jura em alemão e o do trono germâ-
nico em francês para os soldados do outro exército entenderem perfeitamente
o acordo realizado por seus chefes.

É conhecido como os Juramentos de Estrasburgo, ocorrido em um encontro


entre os dois exércitos no ano de 864:
Pro Deo amur et pro christian poblo et nostro commun salvament, d’ist di in avant, in quant Deus
savir et podir me dunat, si salvarai eo cist meon fadre Karlo et in aiudha et in cadhuna cosa, si
cum om per dreit son fadra salvar dift, in o quid il mi altresi fazet et ab Ludher nul plaid nunquam
prindrai, qui, meon vol, cist meon fadre Karle in damno sit.

[Pelo amor de Deus, tanto pelo povo cristão como [por] nossa salvação comum, desde este dia
em diante, enquanto Deus me der saber e poder, eu salvarei este meu irmão Karle tanto em
ajuda quanto em toda coisa, assim como a gente por direito deve salvar seu irmão, no caso de
ele fazer outrossim [também] por mim, e nunca tomarei a defesa de Ludher [no caso de] que,
por minha vontade, este meu irmão Karle fique com prejuízo.]

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Fragmentação da língua românica

Essa era uma língua muito mais próxima do latim e da primitiva língua româ-
nica que do francês, chamada romanço francês.

Tinha ainda o nominativo e o acusativo nos substantivos e nos adjetivos,


ainda que nestes falte comprovação escrita:

Deus / Karle – nominativo: Deus dunat [Deus dá] / Karle dunat [Carlos dá]

Deo / Karlo – acusativo.

As línguas românicas conservaram os casos principais do latim nos pronomes


pessoais, por serem de um emprego extremamente frequente: o nominativo, o
dativo e o acusativo.

A maioria das palavras pertenciam a declinações em que o dativo e o acusa-


tivo tinham pronúncia extremamente semelhante e por fim igualada quando a
pronúncia das vogais finais e átonas:

cosa / fadre / nostro

E no caso dos pronomes:

mi / ti / si – dativo

me / te / se – acusativo

Com isso, também esses pronomes se confundiram numa forma só, ficando o
dativo reservado para o emprego após as preposições:

pera mi / pera ti / pera si

As línguas românicas conservam, porém, o nominativo, o dativo da terceira


pessoa e o acusativo. Exemplifico com a portuguesa.

 masculino:
ille > ele – nominativo
illi > lhe – dativo
illum > o [lo / no] – acusativo

 feminino:
illa > ela – nominativo
illae > lhe – dativo
illam > a [la / na] – acusativo
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No texto francês dos Juramentos de Estrasburgo aparecem ainda formas ver-


bais tipicamente na forma latina:

dunat [em latim: donat]

fazet [em latim: facet]

in damno sit [em latim: in damno sit].

O caso mais curioso foi o da escolha do acusativo e a repulsa do nominativo


do romance franco, que é a única língua em que aparece documentada a exis-
tência dos dois casos no juramento francês de Estrasburgo:

Singular Plural
nominativo fils [filius: filho] fil [filii: filhos]

acusativo fil [filium: filho] fils [filios: filhos]

Inconscientemente, todos os falantes chegaram à conclusão de que era ruim


manter um nominativo singular igual a um acusativo plural e um acusativo sin-
gular igual a um nominativo plural:

fils – nominativo singular: filho [antes do verbo]

fils – acusativo singular: filhos [depois do verbo]

fil – acusativo singular: filho [depois do verbo]

fil – nominativo plural: filhos [antes do verbo]

Essas foram mudanças motivadas, porque não se distribuem em todas as


línguas da România. De fato, os romanços dálmata, italiano e romeno optaram
pelo nominativo terminado em vogal e a segunda dessas línguas conservou o
genitivo e o dativo, sendo a única língua neolatina que efetivamente tem uma
declinação, porque as formas declináveis dos pronomes pessoais constituem
apenas uma herança histórica, completamente mumificada, a ponto de o dia-
leto brasileiro da língua portuguesa e a fala das criancinhas usarem a chamada
forma reta, que é o antigo nominativo, também em lugar das formas oblíquas
do acusativo:

Tu leva eu, mamãe?

Entretanto, como as línguas românicas verdadeiramente continuam a língua


latina, o próprio latim dos grandes escritores da fase áurea, aproximadamente

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Fragmentação da língua românica

cem anos a.C. e cem anos depois, deixa a nós leitores de hoje alguma coisa de
familiar e estranhamente conhecido. Cito dois autores separados por mais de mil
e trezentos anos (MATTOS, 2001, p. 91-92):

 Caius Julis Caesar (100-44 ante Christum):

Gallia est omnis [toda] divisa in partes tres, quarum [das quais] unam incolunt
[habitam] Belgae, aliam Aquitani, tertiam qui ipsorum [deles] lingua Celtae, nostra
Galli appellantur [se chamam].

 Jacopone de Todi (1228-1306 post Christum):


Stabat mater dolorosa
justa [ao lado da] crucem lacrimosa
dum pendebat filius,
cuius animam gementem
contristatam et dolentem
pertransivit [transpassou] gladius.
O quam tristis et afflicta
fuit illa benedicta
mater unigenti!
Quae maerebat [se afligia] et dolebat [sofria]
pia [que cumpre o seu dever: consciencioso] mater, dum videbat [via]
nati poenas incliti.

O verso derradeiro tem mesmo um toque do estilo dos tempos da época de


ouro da latinidade:

[...] do nascido os sofrimentos afamado [os sofrimentos do nascido afamado] [...]

Nesse tempo, os poetas abusavam da ordem das palavras (MATTOS, 1977,


p. 270), como neste verso de Quintus Propertius (entre 55 e 47-16 a.C.), céle-
bre por suas elegias, que o aproximaram de Publius Virgilius Maro (70-16 a.C.)
e Quintus Horatius Flaccus (cerca de 65-8 a.C.) e Publius Ovidius Naso (43 a.C. a
17 ou 18 d.C.), os três poetas mais conhecidos e admirados do tempo de Caius
Julius Caesar Octavianus Augustus (63 a.C. a 14 d.C.), herdeiro de César e impe-
rador romano:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Omnia tu nostrae tempora laetitae.

1 2 3 4 5

[tu omnia tempora nostrae laetitiae / tu omnia tempora laetitiae nostrae]

2 1 4 3 5 2 1 4 5 3

tu (és) o tempo todo as nossas alegrias.

Numerando o verso de 1 a 5, com maior facilidade se pode notar o jogo de


palavras que o poeta Propércio emprega, com duas possibilidades da ordem
direta:

2–1–4–3–5 / 2–1–4–5–3

O Império Romano desaparece em 476 com a derrota de Rômulo Augústulo


(461 ou 462-511), último imperador romano, derrotado por Odoacro (cerca de
434-493), rei dos hérulos, um dos povos germânicos.

Esse foi o cenário em que se iniciou a evolução motivada, que deu o impulso
para dividir a România, conjunto dos territórios de fala latina, em dois grandes
grupos linguísticos, ambos reduzindo a um único os dois casos restantes:

 a persistência do nominativo

As línguas da parte da România mais próxima do Oriente europeu recusa-


ram o acusativo e ficaram com o nominativo singular e plural. É o caso típico do
italiano:

una lupa [uma loba] / due lupe [duas lobas]


un lupo [um lobo] / due lupi [dois lobos]

 a persistência do acusativo

As línguas da parte da România mais próxima do Ocidente europeu recusa-


ram o nominativo e ficaram com o acusativo singular e plural. É o caso típico do
francês:

une louve [uma loba] / deux louves [duas lobas]


un loup [um lobo] / deux loups [dois lobos]

O castelhano, o galego e o português também optaram pelo acusativo.

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Fragmentação da língua românica

O motivo parece fácil de descobrir:

 uma forma única de plural que se aplica a todas as palavras;

 a existência de poucas palavras com o singular e o plural idênticos.

Enquanto o italiano e o romeno preferiram a primeira e segunda declinações


com o seu nominativo de plural duplo, os outros povos romanizados preferiram a
terceira, em que bastava o acréscimo da mesma consoante ao singular, que tinha
perdido a consoante final. Havia um plural regular para as três declinações:

lupa[m] > lupas [loba > lobas]


lupo[m] > lupos [loba > lobas]
rege[m] > reges [rei > reis]
lege[m] > leges [lei > leis]

No singular da segunda declinação, o ablativo e o acusativo se confundiram,


porque eram iguais nas duas outras.

Em dois cantos houve influência de línguas não-germânicas, levando o latim


vulgar dessas terras a evoluções particulares:

 nas terras ibéricas o poderio mouro;


 nas romenas a presença do eslavo.

Com isso se explicam talvez as peculiaridades dessas línguas:

 a declinação do romeno;
 a conservação do gênero neutro no romeno;
 a quantidade imensa de empréstimos vocabulares eslavos e árabes;
 os dois verbos predicativos das línguas ibéricas: ser e estar.

Resumindo, parece-me agora que a fragmentação da antiga língua latina se


deve em parte ao substrato encontrado por ela nas regiões conquistadas, que
produziu a língua românica, e ao superstrato germânico e eslavo, que derrotou
a língua latina de maneira irreversível na fala dos povos dessas terras. E parece
evidente que a elite também a compreendia e falava porque precisava enorme-
mente do trabalho do povo.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Texto complementar

A fragmentação do império e as línguas


românicas (2008)
O processo de fragmentação linguística do Império Romano, responsável
pela formação das diversas línguas românicas – português, francês, espa-
nhol, italiano e romeno, principalmente – deve ser observado sob o ponto
de vista linguístico e político-social. O latim falado nas diferentes regiões do
Império Romano tinha uma realidade tão diversificada que, no século III da
nossa era, a unidade linguística do império já não existia. Essa imensa diferen-
ciação dialectal é uma das principais causas da transformação do latim nas
línguas românicas. A respeito do processo de dialectação, Mattoso Câmara
afirma: “a diferenciação dialectal explica-se, sempre, em parte, pela história
cultural e política e pelos movimentos de população e, por outra, pelas pró-
prias forças centrífugas da linguagem humana, que tendem a cristalizar as
variações e criar dialectos em qualquer território, relativamente amplo, e na
medida directa do maior ou menor isolamento das áreas regionais em re-
ferência ao centro linguístico irradiador” (MATTOSO CÂMARA, 1979). Várias
causas de caráter político-cultural são apontadas por Mattoso Câmara para a
diversificação linguística da România: o factor cronológico – as regiões foram
romanizadas em momentos diferentes, recebendo, portanto, o latim em di-
versos momentos de sua evolução; o contacto entre a cultura romana e as
diferentes culturas dos povos conquistados; a grande diversidade socioeco-
nômica das regiões conquistadas; contribuíram para acelerar o processo de
fragmentação linguística os seguintes factos históricos: o edito de Caracala
– que estabeleceu o direito de cidadania aos indivíduos livres do Império,
resultando perda de privilégios para Roma (212); a descentralização política
e administrativa do Império – com a criação de doze dioceses, Roma perde
o poder de ditar a norma linguística; a mudança da sede do Império para
Bizâncio (330); a divisão do Império Romano, provocada pela morte de Teo-
dósio (395), em Império do Oriente e Império do Ocidente (este não resiste
às inúmeras invasões).

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Fragmentação da língua românica

A formação do português

A romanização da península ibérica


Alguns factos históricos repercutiram-se na formação da língua portu-
guesa: a conquista romana da Península Ibérica, a invasão dos bárbaros ger-
manos, a constituição dos impérios bárbaros, como o visigótico, o domínio
árabe na Península, a luta da reconquista cristã, a formação do reino de Por-
tugal e a expansão ultramarina.

A România compreendia o conjunto de províncias do Império Romano


onde o latim veio a tornar-se a língua de civilização: as Gálias (França e parte
da Bélgica actuais), a Península Ibérica ou Hispânica, a Líbia, ou litoral medi-
terrânico da África e a Dácia, nos Balcãs (Romênia ou Rumânia actuais).

A implantação do latim na Península Ibérica constitui factor decisivo para


a formação da língua portuguesa, e ocorre no século II a.C., quando as legiões
de Roma, depois de longas lutas, conquistam a Hispânia (mapa da Penísu-
la Ibérica no século III a.C.) e impõem a sua civilização. Com excepção dos
bascos, todos os povos da Península adoptaram o latim como língua e se
cristianizaram. O território da Península Ibérica (século I a.C.) foi dividido, ini-
cialmente, em duas grandes províncias, Hispânia Citerior e Hispânia Ulterior.
Esta última sofreu nova divisão em duas outras províncias, a Bética e a Lusi-
tânia, onde se estendia uma antiga província romana, a Gallaecia.

A romanização da Península não se deu de maneira uniforme, mas pouco


a pouco o latim foi-se impondo, fazendo praticamente desaparecer as línguas
nativas. Os povos que habitavam a Península eram numerosos e apresentavam
língua e cultura bastante diversificadas. Havia duas camadas de população
muito diferenciadas: a mais antiga – Ibérica – e outra mais recente – os Celtas,
que tinham o seu centro de expansão nas Gálias. Muito pouco se conservou
das línguas pré-romanas. Há resquícios apenas na área do vocabulário.

Quando se deu a queda do Império Romano, a Península Ibérica estava


totalmente latinizada (no século I d.C.). Nesse quadro de mistura étnica, o
latim apresentava feições particulares, mesclado de elementos celtas e ibéri-
cos, basicamente no vocabulário.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

As invasões de bárbaros
e árabes – o romanço português
Por volta do século V, a Península sofreu invasão de povos bárbaros
germanos-suevos, vândalos, alanos e visigodos. Com o domínio visigótico,
(mapa da Europa do século V) a unidade romana rompe-se totalmente. Os
visigodos romanizaram-se: fundiram-se com a população românica, adop-
taram o cristianismo como religião e assimilaram o latim vulgar. Rodrigo, o
último rei godo, lutou até 711 contra a invasão árabe, defendendo a religião
cristã, tendo como língua o latim vulgar na sua feição hispano-românica.

O século V marca o início do Romanço – período que se estende até ao


começo do século IX, em que ocorre a grande diferenciação do latim numa
multiplicidade de falares. Trata-se de uma fase de transição, que resulta no
aparecimento de textos escritos nas diversas línguas românicas. Dentre esses
falares intermédios, é o romanço Lusitânico, bastante inovador, o que nos in-
teressa principalmente.

No século VIII, os povos muçulmanos invadiram a Península Ibérica. Com-


preendiam os árabes e os berberes e eram chamados de mouros pelos habi-
tantes da Península, que foi totalmente dominada. O árabe era a sua língua
de cultura e sua religião, o Islamismo. Tanto a língua como a religião eram
muito diferentes da língua falada na região e não houve imposição de uma
ou outra. A língua árabe era a oficial, mas o latim, já bastante diferenciado,
era a língua de uso.

Extremamente diversificado, o latim continuou a evoluir entre a popu-


lação submetida. Como resultado da interpenetração da língua árabe e da
língua popular de estrutura românica, o moçárabe era falado pela população
cristã que viveu sob o domínio árabe.

Nas montanhas das Astúrias (norte da Península) tem início, então, a Re-
conquista Cristã – guerra militar e santa, abençoada pela Igreja e que pro-
vocou importantes movimentos de populações. Partindo de um núcleo de
resistência (restos dos exércitos hispano-visigóticos e cristãos rebeldes), o
movimento foi alastrando para o sul, recuperando os territórios perdidos. Foi
então que se formaram os reinos de Leão, Aragão, Navarra e Castela. No rei-
nado dos reis católicos da Espanha, Fernando e Isabel, encerra-se o período
de dominação dos árabes, que durou sete séculos e teve o importante papel
de desencadear a formação de Portugal como Estado monárquico.

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Fragmentação da língua românica

Com a finalidade de libertar o território ibérico, nobres de diferentes re-


giões participaram da guerra santa. D. Henrique, conde de Borgonha, pelos
serviços prestados, recebeu do rei de Leão e Castela o Condado Portucalense
– território desmembrado da Galiza, junto ao rio Douro. A língua desse terri-
tório era a mesma da Galiza. Coube a seu filho, D. Afonso Henriques, iniciar a
nacionalidade portuguesa, como primeiro rei de Portugal, reconhecido por
Afonso VII, rei de Leão, e pelo papa Alexandre III. Ao se separar da Galiza, Por-
tugal vai estendendo os seus limites através de lutas contra os árabes e, com
a conquista do Algarve, fixa os limites actuais de Portugal. A língua falada
era o romanço galego-português, que apresentava relativa unidade e muita
variedade e dá origem ao galego e ao português [...].

(Disponível em: <www.lportuguesa.malha.net/content/view/15/44>.


Acesso em: 15 abr. 2008.)

Atividades
1. Por que falantes de duas línguas românicas diferentes, na maioria das vezes, têm
grande dificuldade de se compreenderem ou mesmo nenhuma possibilidade?

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.

TEXTO 05
Língua portuguesa arcaica

Discriminação dentro da linguística


Todo instrumento de trabalho toma a forma [ó] que a sua serventia lhe
faz ter: cabe a essa serventia prover a forma [ô] precisa a cada um deles, que
sempre têm aspectos altamente semelhantes, como o machado de hoje e o
do tempo da pedra polida do Período Neolítico: a forma [ó] depende da forma
[ô] que depende por sua vez do que se quer dela, assim como a forma [ó] de
um bolo depende da forma [ô] que a cozinheira ou o cozinheiro usam.

Ora, a língua é por excelência um instrumento de trabalho a serviço da


intercomunicabilidade social. Com isso, a forma de cada uma delas neces-
sariamente tem uma extrema semelhança de princípios na sua formação
e na sua evolução.

Se pensarmos agora num fato linguageiro recente, porque histórico e


comprovado, que é o das línguas em contato e das suas consequências, de-
vemos convir que o desenvolvimento dessas línguas não deve ser o primei-
ro na história das línguas. De acordo com Crioulo (apud HOUAISS, 2004).
Uma língua crioula diz-se de ou cada uma das línguas mistas nascidas do contato de
um idioma europeu com línguas nativas, ou importadas, e que se tornaram línguas
maternas de certas comunidades socioculturais: crioulos franceses (Haiti, Martinica,
Guadalupe), crioulos ingleses (Jamaica, Estados Unidos), crioulos portugueses (África,
Índia, China), crioulos neerlandeses (Indonésia). [Apesar de freq. serem crioulos
geograficamente afastados e oriundos de famílias linguísticas diferentes, apresentam
muitas semelhanças já que atendem a necessidades básicas de comunicação.]

Há uma evidente similaridade entre o aparecimento das línguas criou-


las e o nascimento das línguas românicas, que desgarraram da latina, por
a terem aprendido e aperfeiçoado de geração em geração, enquanto a
tardia língua latina se retirava para os conventos de padres e freiras, resis-
tindo ainda por alguns séculos.

Deriva da língua latina


Deveremos acordar que a língua latina começou a conquista de novas
terras em 396 a.C. com a tomada da cidade etrusca de Veios e a terminou
com a tomada da Dácia em 106-502 anos de lutas externas.
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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Em todos esses recantos, o procedimento dos vencedores deve ter sido igual
ao adotado na Dácia por Marcus Ulpius Traianus (53-117 d.C.) – Trajano, como in-
forma Flavius Eutropius – Eutrópio, em seu Breviarium ab Urbe Condita (Resumo
desde a fundação da cidade), citado por Bruno Fregni Bassetto (2008): “Traianus,
victa Dácia, ex toto orbe Romano infinitas eo copias hominum transtulerat ad agros
et urbes colendas” (Vencida a Dácia, Trajano transferira para lá uma imensa quan-
tidade de homens para cuidar dos campos e das cidades).

Em todas as terras conquistadas, houve a necessidade de os vencidos se comu-


nicarem com os vencedores e estes com aqueles, mas numa situação privilegiada.
Devem ter sido os primeiros que partiram para balbuciar a língua dos romanos e,
portanto, ter atravessado também as fases da língua crioula: houve o processo de
aquisição, houve a língua de prestígio e houve as particularidades gramaticais.

Agora, para saber se um fato inovador dependeu da língua latina dos vencedores ou
da língua latina dos vencidos, há um recurso único, nem sempre fácil de comprovar.

Pertencem à deriva da língua latina as novidades linguageiras que aparecem


em todas as línguas românicas: a redução das declinações a dois casos é anterior
às línguas românicas. O fato é que os descendentes dos primeiros romanos ainda
cultuavam a mesma tradição e até o fim do século IV ainda subsistiam visitas de
controle feita pelo poder central. A maioria das evoluções espontâneas parte das
crianças, que procuram regularizar todos os desvios provocados pelas mudanças
fonéticas: cada geração coloca uma pedrinha e de repente se avista a pedreira.

Pertencem à deriva de um grupo de línguas românicas as novidades lingua-


geiras que não aparecem em outros grupos de línguas românicas; a redução dos
dois casos a um caso único, ora o nominativo, ora o acusativo. Já pertence às
línguas românicas, coexistindo ainda uma língua tipicamente latina.

A língua portuguesa pertence ao grupo das línguas ibéricas, mas se distingue


acentuadamente da castelhana e da catalã, e bem menos da galega.

Evolução pré-clássica da língua portuguesa


Os primeiros cinco séculos da língua portuguesa assistiram a quatro modali-
dades de língua.

Num primeiro momento, o plural tinha uma regra única, pois bastava acres-
centar a consoante:
grado[s] / irmana[s] / mano[s] / pala[s] / pane[s] / razone[s] / male[s].
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Língua portuguesa arcaica

Essa modalidade de língua tinha a maioria absoluta das palavras terminadas


em vogal e poucas terminadas em consoante.

 Algumas preposições:

per [pelo meio de / por meio de] / por [em favor de / da parte de].

 Algumas formas verbais da segunda pessoa do singular e do plural, exceto


as do imperativo:

tu amas e vos amades / bebes e bebedes / pones e ponedes / partis e partides.

Contra a opinião dos pesquisadores, o imperativo sempre foi uma variante


enfática das respectivas formas de segunda pessoa do presente do subjuntivo
e se distingue dele pela queda da consoante final. Esse estatuto veio intacto e
ininterrupto da língua latina para a galego-portuguesa:

ama tu e amade vos / bebe e bebede / pone e ponede / parti e partide.

Variante morfemicamente determinada, o imperativo obedece a uma regra


bem singela em seu relacionamento com a forma do presente do subjuntivo.

 Se a forma verbal puder ser a primeira da frase, o imperativo deve substi-


tuir as formas do presente do subjuntivo:
Filho, ama teu padre e tua madre [ama teu padre e tua madre, filho].
Filhos, amade vosso padre e vossa madre [amade vosso padre e vossa ma-
dre, filhos].

 Sendo proibida essa antecipação, fica também inibido o emprego das for-
mas imperativas:
Oxalá amedes vosso padre e vossa madre [oxalá ameis...].

A interjeição é irredutível: sempre no início da frase.

Esse é o motivo de exigirem o presente do subjuntivo os pedidos ou as ordens


na forma negativa:

Bebe, mas não bebas demais.


Bebei, mas não bebais demais.

Evidentemente, fica impossível levar a forma verbal para o início da frase,


quando se fala a língua de escola [o asterisco marca a frase inaceitável]:

*Bebe isso não! /

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

A língua de casa o permite, entretanto:

Faz isso não, meu amigo!

Curiosamente, as crianças derrotaram os adultos, que tiveram de aceitar na


fala comum as formas carinhosas dos pequenininhos:

Filho, ama teu pai e tua mãe.

Tornadas formas da língua diária, esses pequenininhos não se contiveram e


criaram outras formas carinhosas:

papai / mamãe.

As formas herdadas diretamente da língua latina passaram a ter um signifi-


cado religioso:

padre: sacerdote católico;

madre: superiora de um convento.

Com o sentido antigo ficaram algumas expressões, mas em pouca gente se


ouve ou enxerga esse valor vencido:

O Santo Padre visitou o Brasil.

Eu creio na Santa Madre Igreja.

Num segundo momento, houve a redundância das consoantes nasais, que


nasalaram também a vogal anterior:

rana > rãna / irmana > irmãna / mano > mãno.

Houve mais tarde o enfraquecimento do sopro empregado para a fala e com


isso, as classes mais fracas de consoantes desapareceram, quando sonoras e
intervocálicas:

grao[s] / irmãa[s] / mão[s] / paa[s] / pãe[s] / razõe[s] / mae[s].

Com a queda dessas consoantes apareceu na língua uma grande quantidade


de hiatos que a fala logo transformou em ditongos orais ou monotongos por
meio da crase de vogais iguais seguidas:

grao[s] > grau[s] por ditongação / paa[s] > pá[s] por monotongação.

A palavra maes desapareceu, trocada pelo antigo plural males para evitar a
homonímia com o adjetivo e advérbio mais. No entanto, aparece no Cancionei-

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Língua portuguesa arcaica

ro Geral (1516), compilado por Garcia de Resende (1470-1536), que primeiro


que Camões, fez um poema sobre Inês de Castro (1320-1355), assassinada para
não se casar com o Dom Pedro, herdeiro do trono, que se vingou ferozmente
quando se tornou rei como Pedro I.

Diferentemente das outras consoantes transformadas em ditongos ou mo-


notongos, as nasais perderam a vogal final quando anterior e as vogais restantes
tinham o som das vogais das palavras lã e bom, diminuindo uma sílaba:

pãe [duas sílabas: pã.e] > pan / razõe [três sílabas: ra-zõ-e] > razon.

As palavras com a sílaba final em vogal posterior produziram ditongos:

mão [duas sílabas: mã.o] > mão [uma sílaba].

Num terceiro momento, os hiatos com nasais se transformaram num ditongo


idêntico, devendo se fazer uma lista de plurais por não haver agora nenhuma
regra disponível para o plural:

irmão > irmãos / pão > pães / razão > razões.

Num quarto momento, desapareceu a consoante da segunda pessoa do


plural, seguindo o exemplo das consoantes orais dos nomes e adjetivos:

amades > amaes > amais / amedes > amees > ameis / partides > parties >
partis [escrita monotonga e pronúncia ditonga].

Essa foi uma evolução tardia, acontecida já em pleno século XVI, o de Camões
(1524-1580) e de outros autores do Classicismo.

Pouco antes do Classicismo deve ter havido algumas evoluções espontâneas,


que foram tipicamente vocabulares. A mais esquisita aconteceu com os advér-
bios de companhia relativos aos pronomes pessoais. O povo deixou de perceber
na sílaba final a ideia de companhia:

me cum > mêcum > migo > com migo > comigo
te cum > têcum > tigo > com tigo > contigo
se cum > sêcum > sigo > com sigo > consigo
nobis cum > nobiscum > nosco > com nosco > conosco
vobis cum > vobíscum > vosco > com vosco > convosco

Os advérbios de primeira pessoa sofreram uma desnasalação da preposição.


Apesar da escrita, penso que todos eles continuam sendo um conjunto de duas
palavras, dado que podem funcionar como objeto indireto:
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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Ele concorda comigo.

Para concluir este ponto, permitam-me outro depoimento curioso, para o


qual ainda procuro uma melhor explicação. Trata-se do seguinte diálogo entre
mim e minha filha Karla, então com quatro anos:

– Agora eu vou à feira.

E ela:

– Migo também vai.

Deve ser uma analogia, mas sempre me pareceu alguma coisa de fantástico:

Se eu vou com ele, ele também vai.

Se ele vai comigo, migo também vai.

Evolução pós-clássica da língua portuguesa


Segue um soneto de Camões (1524-1580), necessário para explicar algumas
das mudanças acontecidas tardiamente depois dele, eventualmente já no século
XVII ou ainda em data posterior:

Sete anos de pastor Jacó servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


Assi lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,


Dizendo: – Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!

(CAMÕES, 1966, p. 77)


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Língua portuguesa arcaica

Ressalto em primeiro lugar a possível estranheza dos leitores modernos diante


da forma verbal dava do oitavo verso (imperfeito, portanto: ocorrendo): hoje a
forma comum seria deu (perfeito, portanto: ocorrido). O poeta tinha razão: o im-
perfeito indica o fato que se desenrola, enquanto o passado o enterra. Esse imper-
feito nos faz enxergar a tristeza e a revolta do enganado amante. E ninguém pense
numa possível tirania da métrica que exigiria o imperfeito para completar o decas-
sílabo: Camões tinha bastante engenho e arte se quisesse valer-se do perfeito:

Em lugar de Raquel só lhe deu Lia.

Houve uma evolução motivada:

mi > mim / si > sim / vi > vim.

Se fosse espontânea, essa evolução teria nasalado essa vogal em todas as


suas ocorrências, o que aconteceu com o galego, talvez por ser uma língua mais
antiga que a portuguesa:

pérdidi > perdidi > perdii > perdi > perdin / senti > sentin.

A motivação portuguesa foi a presença de vogal nasal na própria palavra ou


em palavra de certa forma vizinha dela:

A forma mi tinha a nasal inicial.

A forma si tinha o oposto com nasal: não.

A forma vi tinha diversas com nasal: vem / venha / vinha.

Entretanto, há algumas palavras em que as duas formas concorrem: surubi e


surubim, além de poucas outras.

De extrema importância foi outra evolução motivada, por facilitar a lingua-


gem, liberada da concordância, e ainda estender a novidade a todos os verbos,
não apenas aos transitivos. Camões ainda era obrigado a exprimir-se com a con-
cordância, usando o adjetivo:

Como se a não tivera merecida...

Foram então criados os particípios com um avultado enriquecimento da


conjugação e precisão de significado. O significado novo depende daquele do
antigo adjetivo, passando o particípio agora a dar uma ideia de passado em re-
lação às formas tradicionais da conjugação:

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 tenho feito – indica o fato repetido no passado, assim como a forma do


presente [faço] indica o fato repetido agora – Eu tenho feito o que pude,
mas agora desisto.

 tenha feito – indica ordem ou desejo no passado do mesmo modo que


a forma do presente do subjuntivo [faça] indica a ordem ou o desejo de
agora – Espero que ele tenha feito o que lhe pedi.

 tinha feito – indicava o fato repetido, anterior ao que se costumava fa-


zer e que se marcava com o imperfeito do indicativo [fazia], tendo evolu-
ído agora para substituir o mais-que-perfeito do indicativo [fizera], forma
nunca empregada na fala e cada vez mais rara na escrita – Eu tinha feito a
conta, mas perdi o papel.

 tivesse feito – indica a impossibilidade de ter feito – Esperei que ele tives-
se feito o que lhe pedi, mas me enganei.

 tiver feito – indica a possibilidade de ter feito – Eu pago a quem tiver feito
um bom trabalho.

 ter feito – indica o ato que se pratica no passado – Foi bom ter feito agora
esta viagem.

A evolução da forma tinha feito e congêneres quebrou uma regularidade da


língua e se precisa de outro torneio para indicar o significado antigo:

Eu tinha feita a conta, mas perdi o papel.

De fato, o significado da frase com o adjetivo (tinha feita) é o de um estado


no passado, enquanto o da forma composta (tinha feito) é o de um fato passado:
perdeu-se a ideia de estar pronto.

Aconteceu ainda outra evolução, que deve ser espontânea, porque parece
não haver explicação para ela, salvo o fato de ter acontecido.

Até o século XVI havia duas preposições com as respectivas aglutinações com
os artigos definidos e significados claramente distintos:

per: caminho [passar per uma floresta] / instrumento [indicar per um dedo].

por: defesa [lutar por uma ideia] / motivo [fez aquilo por querer].

per + o > pelo [pela floresta] / per + a > pela [pela mão].

por + o > polo [polo amor] / por + a > pola [pola ideia].

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Língua portuguesa arcaica

A primeira delas criou outra palavra por justaposição, motivada pela falta de
um termo para a finalidade ou a intencionalidade:

per + a > pera: [pera tão longo amor tão curta a vida].

Sabe Deus por que, mas os significados de cada uma das preposições im-
pregnaram também a outra e as duas ficaram inteiramente homônimas. Como
era uma homonímia puramente gramatical, entrou agora uma evolução motiva-
da, esquisitamente composta de parte de cada uma delas:

por: a caminho em [passar por uma floresta] / com o instrumento de [indicar


por um dedo] / em defesa de [lutar por uma ideia] / com o motivo de [fez aquilo
por querer].

per + lo > pello > pelo [pela floresta] / per + a > pela [pela mão].

E desapareceram:

per: a caminho em [passar per uma floresta] / com o instrumento de [indicar


per um dedo].

por + lo > pollo > polo [polo amor] / por + a > pola [pola ideia].

Texto complementar

Língua galego-portuguesa
(MATTOS, 1970, p. 73-77)

Por estudo sincrônico de uma língua entendemos o exame linguístico de


um período dado dessa língua. Aqui tentaremos o exame de alguns pontos da
língua portuguesa arcaica, que abrange um período de aproximadamente tre-
zentos anos (200-1500) de história atestada, mas seguramente duzentos anos
antes já era uma língua românica, e com menos irregularidades flexionais, in-
direta e parcialmente atestada em textos de tabeliães, que por lei tinham de
redigir em latim: faltando a palavra latina, apelavam para a língua do povo.

Características fônicas

Entre as principais notamos:

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a) a incrível abundância de hiatos:

– creer, fee, leer, nuu, pee, queente, seer, soo, veer;

– candea, cheio, feo;

– irmão (três sílabas), pães (duas sílabas), taes (duas sílabas).

b) as muitas vogais nasais: pan, razon.

c) a existência de três consoantes africadas: /ts/. /dz/ e /tx/; as letras cor-


respondentes eram: (ouç), z, ch.

Grande parte dos hiatos galego-portugueses surgiram porque, na trans-


formação do latim vulgar, uma consoante medial desapareceu; para saber
que consoante caiu na evolução do latim para o português, basta observar
a palavra erudita ou técnica: /d/ em creer (crédulo), /g/ em leer (legenda), /l/
em queente (calor), em soo (solitário) e em teer (tenente) .

Características vocabulares

O que mais impressiona na língua portuguesa arcaica é a ausência com-


pleta de palavras eruditas, empréstimos diretos ao latim feitos pelos escrito-
res principalmente do período clássico.

Os substantivos eram ou masculinos ou femininos, como hoje; havia


alguns de outro gênero: a fim, a planeta.

O feminino fazia-se pelo acréscimo de /-a/ a substantivos com vogal


final, com a queda desta vogal quando fraca: irmão - irmãa (ambos com três
sílabas).

Outros, terminados em consoante, eram todos invariáveis: omen por-


tuguês, molher português; omen sabedor, molher sabedor; o pastor, a
pastor.

O plural se fazia:

a) com o acréscimo de /-s/ em palavras terminadas por vogal oral ou di-


tongo: amigo, amigos; rei, reis; irmão, irmãos (três sílabas).

b) com o acréscimo de /-es/ em palavras terminadas por vogal nasal, /-s/


ou /z/: pan, pães (duas sílabas);

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Língua portuguesa arcaica

c) com o acréscimo de /-es/ e queda da consoante final: tal, taes (duas


sílabas).

O artigo (o, a) era curioso porque tinha a forma atual salvo quando apa-
receria depois da consoante -s:

– Eu vi o rei.

– Nós vimo lo rei.

Os demonstrativos tinham formas duplas:

Este Aqueste. (Este aqui)

Esse Aquesse.

Aquele Aquele.

O verbo apresentava as formas atuais, mesmo o infinitivo pessoal. Havia


diferenças, entretanto:

Amo.

Amas. Ama tu.

Ama.

Amamos.

Amades. Amade vós.

Aman.

Como na terceira pessoa do plural havia vogal nasal pura, distinguiam-se


perfeitamente:

El amou. – El amara.

Eles amaron. – Eles amaran.

Os verbos irregulares tinham um sufixo próprio para a terceira pessoa do


singular:

Eu disse. Eu adusse (eu aduzi). Eu quis Eu vin.

El disso. El adusso. El quiso El veo.

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Além disso, o fato mais notável do verbo era a existência de radical irregu-
lar para algumas formas verbais:

Aduzer – adugo (aduzo), aduga (aduza), aduzia; adusse (aduzi).

Arder – arço (ardo), arça (arda), ardia; arsi (ardi).

Conquerer – conquero (conquisto), conquera (conquiste), conqueria; con-


quis (conquistei).

Crecer – cresco (cresco), cresça (cresça), crecia; creci.

Erger – ergo, erga, ergia (erguia); ersi (ergui).

Jazer – jasco ou jaço (jazo), jasca ou jaça (jaza), jazia; jouve (jazi).

Mentir – menço (minto), mença (minta), mentia; menti.

Nacer – nasco (nasço), nasca (nasça), nacia; naci.

Perder – perço, (perco), perça (perca), perdia; perdi.

Prazer – praz, praza, prazia; prougue (prouve).

Prender – prendo, prenda, prendia; pris (prendi), pres (prendeu).

Seer – sejo, sees, see, seemos, seedes, seen; ou:

son, és, é, somos, sodes, son; seja;

sedia, siia, ou era; sevi, ou fui.

Obs.: eram formas concorrentes:

sejo, seja, sedia (ou siia), sevi: estar;

son, seja, era, fui: ser

Sedia m eu na ermida de San Simon

E cercaron mi as ondas: que grandes son!

senço (sinto), sença (sinta), sentia; senti.

Sentir – trago, traga, trazia; treide (trazei).

Trager – trouxe (pronuncie: trouche) e trougue...

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Vemos que as irregularidades eram grandes: erger, ergo, ersi; trager, trago,
trouxe; prender, pris.

O particípio da segunda e da terceira conjugação tinha forma especial:


perdudo (perdido), partudo (partido). Dessas formas nos restaram ainda
alguns particípios, transformados em substantivos: conteúdo, manteúdo.

Características sintáticas

Havia liberdade de concordância entre o predicado e o sujeito, como nos


provam estes exemplos:

Morreu grandes gentes.

O inorante e a cantea,

a si queima e aos outros alumea.

Os pronomes tinham colocação bem mais livre:

Eu vos direi ua ren (uma coisa.).

Eu dir vos ei ua ren.

Eu direi vos ua ren.

Na próclise, o pronome tendia a distanciar-se do verbo o mais possível:

Outrossi as todos fazen dizer mais.

... logo que os el rei teve vencidos.

... quando vos el rei non chamar.

Notemos o emprego dos pronomes el, ela, eles, elas como objeto: eu
vejo el, eu vejo ela. A tendência persiste até hoje na linguagem coloquial.

Notemos ainda que os pronomes me e te correspondiam ao pronome o:

El me viu.

El te viu.

El o viu.

Os pronomes mi e ti correspondiam ao pronome lhe, empregando-se

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também com os prepositivos:

El mi deu a casa.

El ti deu a casa.

El lhe deu a casa.

Falou pera mi.

É mais forte ca mi (mais forte do que eu).

Essa língua pode parecer-nos grosseira e inacabada. Entretanto, era o veí-


culo literário de todos os escritores da Península Ibérica: entre eles, o rei Dom
Afonso de Castela.

Atividades
1. Em que diferem a Filologia românica e a Filologia crioula?

2. Como puderam os romanos dominar tantas terras e manter-se nelas, impondo


a sua língua e a sua cultura, que permanecia viva ainda que eles mesmos se
tenham retirado ou enfraquecido, como aconteceu na Dácia e na Dalmácia?

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.
TEXTO 06

Línguas românicas contemporâneas

Processo e função das línguas


Quem quer construir uma casa pega um tijolo e o junta a outros para
fazer uma parede, pega uma parede e a junta a outras para fazer um apo-
sento, pega um aposento e o junta a outros para fazer um andar e por fim
pega um andar e o junta a outros para terminar a casa.

A casa e o terreno constituem a unidade maior que se junta a outras


para fazer a quadra, que se junta a outras para fazer o bairro, que se junta a
outros para fazer o município, que se junta a outros para fazer o estado, que
por fim se junta a outros para fazer o país, que é a nossa terra brasileira.

Da mesma forma, quem quer construir uma mensagem pega um mor-


fema [vale um tijolo] e o junta a outros para fazer um vocábulo, pega um
vocábulo [vale uma parede] e o junta a outros para fazer uma locução,
pega uma locução [vale um aposento] e a junta a outras para fazer uma
oração e por fim pega uma oração [vale um andar] e a junta a outras para
terminar a menor mensagem [vale uma casa], que é o período. O morfema
é feito de sons. Ou seja, as línguas são fáceis de aprender porque têm uma
regra básica que se repete da mesma maneira à medida que se vai cons-
truindo a frase que se forma na nossa mente: é também como uma rede,
que começa e termina da mesma maneira.

Diferentemente da casa, que é feita sobre um terreno, a mensagem é


feita dentro da nossa cabeça e atirada para as orelhas do nosso ouvinte.
Da mesma forma, porém, que a casa e o terreno, o período e a mensagem
podem estender-se entre um rápido cumprimento e um longo discurso
de algumas horas como os do cubano Fidel Castro ou do venezuelano
Hugo Chávez. Por outro lado, assim como a casa e o terreno se acham
dentro de um país, o diálogo e a mensagem se acham dentro da língua e
da respectiva comunidade.

A língua é o melhor meio para se conseguir uma troca de interesses


duplamente vantajosa, porque esta é quase sempre antecedida de uma
troca de mensagens: a primeira é uma troca efetiva enquanto a segunda é

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uma troca simbólica, ambas trocas interpessoais. O fato real é que a própria troca
intrapessoal é de certa forma também interpessoal no sentido de que a mesma
pessoa assume os papéis de falante e de ouvinte.

Por ser esse motivo da finalidade das línguas, verifica-se com facilidade que
o intercâmbio dentro do mesmo território linguístico é sempre muito maior que
entre dois de línguas diversas, decrescendo cada vez mais o intercâmbio, quanto
mais diferentes se tornam as línguas envolvidas.

Excetuando a língua italiana, que de certa maneira foi fixada por Dante Ali-
ghieri (1265-1321) com sua Divina Comédia e por Petrarca (1304-1374) com seus
sonetos e com a descoberta e cópia de manuscritos antigos. As línguas româ-
nicas chegaram, com alguns avanços ou retardos, à maturidade com a Renas-
cença, que começa em Roma no início do século XVI e ganha pouco a pouco os
países ocidentais da Europa.

Língua e criações românicas


A criação românica é a maneira de as novas línguas lidarem com as formas
latinas que desapareciam do uso por terem uma forma que colidia com outra
dos romanços ou por serem irregulares e complicadas na língua latina, havendo
assim uma evolução motivada. Pode ser também uma forma completamente
nova nas línguas românicas: sem nunca ter existido no latim, portanto.

Criação dos futuros


Cada forma verbal é uma parede, que é o vocábulo, e se faz com os tijolos, que
são os morfemas. Mais vivos que elas e eles, os vocábulos e os morfemas podem
alterar-se ao longo do tempo sem perderem, no entanto, a sua flexibilidade.

O latim tinha uma forma verbal do verbo mutare que mudou apenas o seu
radical na sua evolução para a língua portuguesa, mas em nada a terminação:

tu mutas > tu mudas

Pode também mudar só a terminação:

vos cantatis > vós cantadis > cantades > cantaes > cantais

E também as duas, claro:

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Línguas românicas contemporâneas

dederunt > dederon > deerom > derom > deram

A conjugação dos verbos latinos não veio inteira para as línguas românicas.
Os buracos abertos na conjugação tiveram de ser preenchidos por formas novas.
O exemplo mais claro é a formação do futuro, perdido na evolução das línguas
românicas que se distanciavam cada vez mais do latim [formas na terceira pessoa
do singular]:

credere > credere habet > credere ai > credere a

credere habebat > crédere abeba > credere ebebe > credere ebbe

E aparecem as formas italianas:

crederà [ele crerá]

crederebbe [ele creria]

Os futuros da língua portuguesa continuam sendo formas duplas, porque


se trata apenas da escrita junta, quando a verdade é que são palavras distintas,
comprovadas pela possibilidade da mesóclise:

amar-te-ei.

amar-te-ia.

São, portanto, formas compostas, exatamente como: tenho amado, tinha


amado ou tiver amado.

O desaparecimento do futuro foi causado por vários fatores:

 A homonímia na mesma conjugação. Os verbos da terceira conjugação,


como scríbere, teriam formas que o romance deixou iguais na fala: scribes
/ scribis.

 A homonímia entre conjugações: ames [que tu ames] / scribes [tu escre-


verás].

 A redundância de formas: amabo [amarei] / scribam [escreverei].

 A concorrência do presente do indicativo, muito mais simples.

Parece-me, entretanto, que o futuro deva ser a mais frágil das formas verbais
pelo menos por dois motivos.

 Um deles é a existência de verbos que por si só já indicam um futuro:

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Amanhã eu vou ao Rio.

 E o mais firme é que grande parte do povo brasileiro já produziu uma for-
ma perifrástica para esse tempo:

Se o filme é bom, amanhã eu vou ir ao cinema [perdão: eu vô i].

O ensino ajuda pouco porque os nomes mais atrapalham que ajudam:

 O futuro do pretérito nada tem de passado, mas de futuro negativo: se


eu tivesse tempo, eu iria significa efetivamente apenas que eu não tenho
tempo e não irei...

 O futuro do subjuntivo é um nome que nada informa, porque tem o sig-


nificado de um futuro anterior e lhe caberia melhor o nome de futuro de
pretérito: se ele vier, eu lhe pago significa que a vinda deve ser um passado
para essa pessoa receber o pagamento.

 Essa é a forma que a fala popular mais regulariza por pertencer a um res-
trito número de verbos anômalos que tem o perfeito irregular: se ele vir
[vier] e eu ver [vir] o que ele tem, aí eu compro [comprarei].

Aparecimento dos artigos


As línguas românicas desenvolveram um artigo definido e indefinido, que
nada mais são que demonstrativos impessoais.

Para isso tomaram o demonstrativo de terceira pessoa, que produziu formas


diferentes:

ille / illa [aquele / aquela]

Houve, portanto, mudança de significado, porque os artigos passaram a dar a


ideia de conhecimento prévio, sem nenhuma ligação com o significado locativo
anterior:

Língua castelhana: el rey / la reina.

Língua francesa: le roi / la reine.

Língua italiana: il re / la regina.

Língua portuguesa: o rei / a rainha.

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Línguas românicas contemporâneas

Língua romena: [rege] regele / a regina.

A curiosidade vem do romeno, que fica na contra-mão. O masculino é um


sufixo do substantivo ou uma palavra enclítica a ele, enquanto o feminino é uma
palavra comum.

Evolução dos particípios


O radical do particípio latino era homonímico, porque seria um significado ativo.
A forma do particípio latino tinha duas funções, que se distinguiam pelo significa-
do e forma de adjetivo, chamado particípio, ou de advérbio, chamado supino:

Lavatus, ille vestitur [lavado, ele se veste].

Intro lavatum [entro para me lavar].

As línguas românicas arcaicas continuaram com o significado adjetivo e tar-


diamente uma evolução motivada apagou o significado passivo e a particípio
passou a ter a função de constituir formas verbais que se perderam pela cultura
deficitária e pela pressão dos superstratos.

Como informou Julia Carâp (1923), amiga querida, o romeno perdeu a forma
simples de perfeito de indicativo e a supre com o particípio de verbos transitivos
ou intransitivos (CARÂP, 1996, p. 71-73):

El a plecát [literal: ele tem partido / traduzido: ele partiu].

Am lãsat acólo priéteni [lit.: tenho deixado lá amigos/ trad.: deixei lá amigos].

O verbo plicare do latim significava dobrar e reaparece no substantivo portu-


guês prega. O interessante é o significado que esse verbo tomou nas terras ro-
menas e portuguesas: no romeno significa o começo de viagem [partir], porque
os soldados dobravam as tendas para irem embora, enquanto em português
significa o fim de viagem [chegar] porque os soldados dobravam as velas para
saírem do navio. Nos dois casos, uma metonímia com resultados diversos:

Se dobra as tendas, está partindo [plicare > dobrar > partir].

Se dobra as velas, está chegando [plicare > dobrar > acabar de voltar].

O francês tem exatamente o mesmo comportamento do romeno, ainda que


mais verdadeiro seria dizer que o romeno tem o mesmo comportamento do
francês, que é bem mais antigo:

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II est arrivé [lit.: ele tem chegado / trad.: ele chegou].

Il a porté des lettres [lit.: ele tem trazido cartas / trad.: trouxe cartas].

O português maneja as duas formas, mas a composta indica uma ação repe-
tida até o momento da fala.

Há, contudo, uma relíquia que a língua francesa guarda com carinho. Quando
o objeto direto fica antes da forma composta do verbo, o particípio volta a ser
adjetivo e concorda em gênero e número com o objeto anterior:

Voici les lettres qu´il a portées [lit.: eis as cartas que ele tem trazidas / trad.: eis
as cartas que ele trouxe].

E aponto alguma coisa de herança comum: o romeno, o francês, o português


e o sardo tem para o ato de deixar o mesmo radical, como nos prova o texto do
Pai-nosso. E também o italiano, verso de Dante, na sua Divina Comédia (Inferno,
canto III, verso 9):

Lasciate ogni speranza voi ch´entrate [Deixai toda esperança vós que entrais].

Também na fala nordestina onde é bem vivo o advérbio acolá... Quem será
que copiou de quem? Provavelmente, nenhum deles: veio direto do latim vulgar
para os portugueses e os romenos.

Textos românicos
O texto comum que vou apresentar em seguida vai permitir verificar essa téc-
nica de juntar um elemento a outro e formar sucessivamente conjuntos que se
tornam elementos até chegar ao elemento que é a unidade do diálogo e somen-
te a soma deles há de constituir qualquer um dos textos de uma língua, orais ou
escritos, desde um recado singelo a um romance de centenas de páginas.

Escolho como texto a oração do Pai-Nosso por ser conhecido independente-


mente do credo que cada um de nós tenha. Alterei a pontuação de todas essas
preces seguindo a do rético, que colocou cada frase numa linha, principiando
pelo vocativo, que é uma frase à parte e vale para cada uma das posteriores.

E começo pelo texto latino para que seja possível observar o que passou dele para
a futura língua e o que ficou para trás, além de deixar um exemplo do que teria sido
essa língua latina. Como o latim não tem palavras oxítonas, acentuadas na sílaba final,
acentuo aqui somente as proparoxítonas, que têm o acento na antepenúltima.

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É curioso que apenas o dálmata e o rético tenham conservado inteiramen-


te o alfabeto latino, sem nenhum acréscimo de notação léxica, enquanto só o
romeno sofreu influência eslava em seu alfabeto.

Semelhanças e diferenças
É o texto da Vulgata, edição da Bíblia de São Jerônimo (347-419 ou 420), a
quem o Papa Dâmaso (366-384), pediu em 382 que revisse os textos antigos:

Peter noster qui [qüi] es in caelis [cai]:


Santificetur [quétur] nomen tuum.
Adveniat [ué] regnum tuum.
Fiat voluntas [uo] tua sicut in caelo et in terra.
Panem nostrum quotidianum da nobis hódie.
Et dimitte nobis débita nostra sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris.
Et ne nos inducas in tentationem. [E não nos leves a uma tentação,]
Sed líbera nos a malo. [mas livra-nos desse mal.]

Castelhano

Padre nuestro que estás en los cielos:


Santificado sea tu nombre.
Venga tu reino.
Sea hecha tu voluntad, como en el cielo así también en la tierra.
Danos hoy nuestro pan cotidiano.
Y perdónanos nuestras deudas, como también nosotros perdonamos a
nuestros deudores.
Y no nos metas en tentación.
Mas libranos del mal.

(Disponível em: <www.filologia.org.br/anais/anais>.)

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O castelhano tornou-se oficialmente a língua espanhola, ainda que haja


duas outras línguas neolatinas, o catalão e o galego, além do basco, língua sem
nenhum parentesco com as indo-europeias e ainda de origem desconhecida,
falada numa região montanhosa entre a Espanha e a França: o país basco, seu
território, pertence à Espanha, mas tem autonomia política. O castelhano é a
maior língua da América Latina.

Do ponto de vista da fonética, se distancia da língua portuguesa por não ter


ditongos nasais e por ter perdido três sons sonoros:

casa [cassa] / valor [balor] / gemir [remir].

Além disso, tem um som fricativo que se parece com o erre carioca, embora
seja surdo enquanto o carioca é sonoro:

general [regeral].

O efe latino era um som parecido com o de se apagar uma vela: ou seja, uma
consoante bilabial surda ou um sopro. Parece ter sido esse o som que o espanhol
herdou do latim no início da palavra, o que provocou a escrita com outra letra,
mas indicadora do novo som: facere > hacer.

Catalão

Pare nostre del cel,

Santifict el teu nom

Vingui el teu Regne, que es

Faci la teva voluntat aqui a la terra com es fa em el cel

dona’ns avui el nostre pa de cada dia

Perdona lês nostres ofenses, aixi com nosaltres perdonen els aqui ens
ofenen

No permitis que caiguem en la temptacio

I allibera’ns del mal. Amem

(Disponível em: <www.portaldascuriosidades.com/


forum/index.php?topic=26565.0_>.)

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O catalão perdeu as nasais no fim de palavras, conservando-as somente nas


formas verbais:

pa [pão] / temptació [tentação].

Perdonem [perdoemos].

Diferentemente do castelhano, tem palavras terminadas em consoantes


oclusivas:

Santificat [santificado] / voluntat [vontade].

Dálmata

Tuota nuester, che te sante intel sil

sait santificuot el naun to.

Vigna el raigno to.

Sait fuot la voluntuot toa, coisa in sil, coisa in tiara

Duote costa dai el pun nuester cotidiun

E remetiaj le nuestre debete, coisa nojiltri remetiaime a i nuestri


debetuar

E naun ne menur in tentatiaun

miu deleberiajne dal mal

(Disponível em: <http://articles.gourt.com/pt/l%C3%ADngua%20dalm%C3%A1tica>.)

Uma das palavras desta prece é mais curiosa e parece ser portuguesa, mas a
oração nos fornece o sentido verdadeiro dela:

coisa in sil, coisa in tiara [tanto no céu como na terra].

Língua bela e sonora, que desapareceu. Divide com o italiano e o romeno o


plural em vogal:

Le nuestre debete [as nossas dívidas].

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Francês

Notre Père qui es aux cieux:

Que ton nom soit sanctifié.

Que ton règne vienne.

Que ta volonté soit faite sur la terre comme au ciel.

Donne-nous aujourd’hui notre pain de ce jour.

Et remets-nous nos dettes [Pardonne-nos nos offenses], comme nous-


mêmes avons remis à nos débiteurs [comme nous pardonnons aussi à ceux
qui nous ont offensés].

Et ne nous soumets pas [laisse pas succomber] à la tentation.

Mais délivre-nous du mal.

(Disponível em : <www.filologia.org.br/anais/anais>.)

Em qualquer das versões, antiga ou moderna, falseia o texto evangélico, que


usa o presente do indicativo nos dois casos, permitindo que a gente deixe de
perdoar enquanto outra pessoa está nos ofendendo:

dimitte ... sicut et ... dimittimus [perdoa ... assim como ... perdoamos].

Comparada com o português, tem mais palavras monossílabas, dada a queda


da vogal final. Em compensação, tem a ambiguidade do verbo predicativo, que
é único:

La femme est aimée [a mulher é amada].

La porte est fermée [lit.: a porta é fechada / trad.: a porta está fechada].

Entretanto conservou dois pronomes que a língua portuguesa e a galega


perderam na sua evolução para a modernidade:

ibi > ii > i [nesse lugar: aí / ali]: elle y va [ela aí vai].

inde > ende > en [desse lugar: disso]: elle en a trois [ela tem três disso].

A língua portuguesa arcaica os usava com grande frequência.

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Línguas românicas contemporâneas

Galego

Noso Pai que estás no ceo:

Santificado sexa ja o teu nome.

Veña a nós o teu reino.

E fágase a túa vontade aquí na terra coma no ceo.

O noso pan de cada día dánolo hoxe.

E perdóanos as nosas ofensas como tamén perdoamos nós a quen nos


ten ofendido.

E non nos deixes caer na tentación.

Mais líbranos do mal.

(Disponível em: <www.pt.wikipedia.org/wiki>.)

Ainda que se perceba que a semelhança com a língua portuguesa é deveras


impressionante, a influência do castelhano se faz sentir em vários pontos.

 Influenciou a ortografia:

noso [nosso].

perdóanos [perdoa-nos].

quen [quem].

 Fez o galego perder alguns sons que dividia com o português nos séculos
de língua comum:

sexa [seja].

Rosa [rossa].

 Curiosamente há uma evolução que coincide com a que ocorre em diale-


tos brasileiros da zona rural:

tam bene > tambén > tammén > tamén.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Italiano

Padre nostro che sei nei cieli:

Sia santificato il tuo nome.

Venga il tuo regno.

Sia fatta la tua volontà anche in terra com’e fatta nel cielo.

Acci oggi il nostro pane cotidiano.

E rimettici i nostri debiti, come anche noi li abbiamo rimessi ai nostri


debitori.

E non ci esporre alla tentazione.

ma liberaci dal maligno.

(Disponível em: <www.filologia.org.br/anais/anais>.)

O italiano tornou-se talvez a língua neolatina mais melodiosa por terem


abandonado quase completamente as consoantes latinas finais das palavras: as
existentes se podem contar com os dedos de uma mão. Em compensação tem
um número impressionante de consoantes dobradas e a pronuncia de ambas, a
primeira como implosiva e a segunda como explosiva:

fatta / oggi / rimettici / abbiamo.

A primeira consoante é feita com um rápido fechar de boca e a segunda com


a súbita abertura dela. Creio que é a única língua românica que continuou fone-
ticamente a latina, porque esta tinha consoantes geminadas e as pronunciava
sempre, como no atual italiano: implosiva seguida da explosiva... E pode haver
um par delas na mesma palavra (MINNAJA, 1996, p. 1.258):

spacchettare [desempacotar].

O italiano tem uma analogia que nunca apareceu em português:

Se egli ama [ele ama] faz io amo [eu amo],

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Línguas românicas contemporâneas

Então egli amava [ele amava] deve fazer io amavo [eu amava].

E fez.

Português

Pai nosso que estás nos céus:

Santificado seja o teu nome.

Venha o teu reino.

Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.

O pão nosso de cada dia nos dá hoje.

E perdoa as nossas dívidas [perdoa-nos as nossas ofensas], assim como


nós perdoamos aos nossos devedores [assim como nós perdoamos a quem
nos tem ofendido].

E não nos conduzas à tentação.

Mas livra-nos do mal.

(Disponível em: <www.filologia.org.br/anais/anais>.)

Repito o que disse sobre a tradução francesa, que moderniza o texto latino
oficializado pela Igreja Católica.

Em qualquer das versões, antiga ou moderna, falseia o texto evangélico, que


usa o presente do indicativo nos dois casos, permitindo que a gente deixe de
perdoar enquanto outra pessoa está nos ofendendo:

dimitte ... sicut et ... dimittimus [perdoa ... assim como ... perdoamos].

O defeito da nossa é ainda maior, porque a forma tem ofendido implica ofen-
sas repetidas: assim, as de hoje eu nem preciso perdoar e as antigas, desde que
unitárias, também não. Essa negligência do clero e dos fiéis indica desafortuna-
damente que todos rezam maquinalmente sem pensarem no que estão a dizer.
E ainda têm a coragem de pedir que Deus lhes perdoe hoje as ofensas de ontem.
E as de hoje amanhã.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Provençal

Paire nòstre que siès dins lo cèl:

Que ton nom se santifique.

Que ton rènhe nos avenga.

Que ta volontat se faga que sus la tèrra coma dins lo cèl.

Dona-nos nòstre pan de cada jorn.

Perdona-nos nòstres deutes coma nosautres perdonam als nòstres


debitors.

E fai que tombèm pas dins la tentacion.

Mas deliura-nos del mal.

(Disponível em: <www.lportuguesa.malha.net/content/view/15/44/>.)

O provençal demonstra uma semelhança fonética com o francês por ter dei-
xado pelo caminho as palavras que terminavam em vogal média posterior [o]:

nostro > nóstre / caelo > cel / regno > rènhe.

Diferentemente acolhe consoante e grupo consonantal em fim de palavra:

volontat / als / dins.

Rético

Bab nos, ti che eis en tschiel:

Sogns vegni fatgs tiu num.

Tiu reginavel vegni neutier.

Tia veglia daventi sin tiara sco en tschiel.

ies paun de mintga gi dai a nus oz.

E perduna a nus nos puccaus, sco era nus perdunein a nos culponts.

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Línguas românicas contemporâneas

E meina nus bec en empruament.

Mo spendra nus dal mal.

(Disponível em: <www.filologia.org.br/anais/anais.>)

O texto nos faz crer que o superstrato do rético foi bastante diferente do que
tombou sobre as línguas vizinhas. Basta-nos citar a segunda linha que acolheu
apenas duas palavras tipicamente latinas:

Sogns vegni fatgs tiu num.

Romeno

Tatăl nostru care eşti în ceruri,

sfiinţească-Se numele Tău.

Vie Împărăţia Ta.

Facă-se voia Ta, precum în cer, aşa şi pe pământ

Pâinea noastră cea de toate zilele dă-ne-o nouă astăzi

Şi ne iartă nouă păcatele noastre,

precum şi noi iertăm greşiţilor noştri.

Şi nu ne duce pe noi în ispită

ci ne mântuieşte de cel rău

(Disponível em: <http://articles.gourt.com/pt/l%C3%ADngua%20dalm%C3%A1tica>.)

Valor das letras:

 as vogais acentuadas têm sons estranhos aos nossos ouvidos.

 ş vale o primeiro som da palavra chave.

 ţ vale o som das letras dobradas da palavra pizza.

 ce e ci tem o som da palavra tchau.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Bem mais que o rético, o romeno demonstra a presença eslava em seu voca-
bulário e em sua ortografia.

Sardo

Babbu nostru qui ses in sos chelos:

sanctificadu siat su nomen tou.

Benzat a nois su regnu tou.

Facta siat sa voluntade tua, comente in su chelu et in sa terra.

Su pane nostru de ogni die danoslu hoe.

Et perdonanos sos peccados nostros, comente et nois perdonamus ad


sos inimigos nostros.

Et nonnos lexas a reure in tentatione.

Ma liberanos dai male.

(Disponível em: <www.filologia.org.br/anais/anais>.)

O sardo apresenta uma grande surpresa, pois eu desconhecia tudo sobre ele,
embora imaginasse alguma coisa parecida com o italiano. Por outro lado, há
uma incrível conservação de aspectos da velha língua latina:

nostrum > nostru [singular] / omni die > ogni die / nostros > nostros [plural].

Apenas uma dúvida: Será que o artigo definido do sardo provém de um de-
monstrativo tardio? De fato, parece ser esta a etimologia:

ipsa > sa / ipsum > su

Mais que parece: de fato, é a explicação correta. Como o sardo é a mais antiga
ruptura da língua romana, a criação do artigo definido foi uma pressão das lín-
guas encontradas pela latina nas terras conquistadas.

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Línguas românicas contemporâneas

Texto complementar

Línguas românicas
(COUTINHO, 1976, p. 41-45)

[...]

57. Línguas românicas são as que conservam vestígios indeléveis de sua


filiação ao latim do vocabulário, na morfologia e na sintaxe.

Não basta só o vocabulário ou a sintaxe para caracterizar a filiação uma


língua. De outro modo, o romeno não seria idioma românico, porque no seu
vocabulário, predominam as palavras de fonte não latina.

O mesmo pode se dizer de outras línguas românicas. A sintaxe delas apre-


senta mais pontos de semelhança com alto-alemão ou com o grego que pro-
priamente com o latim.

58. Há dez línguas românicas: o português, o espanhol, o catalão, o fran-


cês, o provençal, o italiano, o reto-romano, o dalmático, o romeno e o sardo.

Estas línguas estão assim distribuídas:

o português, falado em Portugal, no Brasil, na ilha Madeira, no arquipé-


lago dos Açores, nas antigas e nas atuais colônias portuguesas da África, da
Ásia e da Oceania;

o espanhol , falado na Espanha e suas colônias, em quase toda a América


do Sul à exceção do Brasil e das Guianas, na América Central, no México, em
algumas ilhas do arquipélago das Antilhas e nas Filipinas;

o catalão, falado na Catalunha, nos vales de Andorra, no departamento


francês dos Pirineus orientais, na zona oriental de Aragão, na maior parte de
Valência, nas ilhas Baleares e na cidade de Alguer, situada na costa noroeste
da Sardenha;

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

o francês, falado em quase toda França, exceto no sul e na Bretanha, em


suas colônias da Ásia, da África, da América e Oceania, na Bélgica e Congo
Belga, na Suíça, em Mônaco, no Canadá, na Luisitânia e no Haiti;

o provençal, falado no sul da França (Provença);

o italiano, falado na Itália e nas ilhas adjacentes (Córsega, Sicília etc.), nas
antigas colônias italianas da Ásia e da África, e em S. Marinho;

o reto-romano, rético ou ladino, falado no Tirol, no Friul e no cantão dos


Grisões (Suíça);

o dalmático, outrora falado na Dalmácia;

o romeno ou valáquio, falado na România e na parte da Macedônia, pró-


xima ao monte Olimpo;

o sardo, falado na Sardenha.

A tenaz infiltração de elementos eslavos e venezianos na Dalmácia acar-


retou a morte do dalmático, que se falou até o século passado. Com o ve-
lhoto Udina, falecido em 1898, desapareceu, para sempre, esse rebento da
latinidade.

O território atual, em que se falam estes idiomas, oriundos do latim, não


coincide com os limites do Império Romano, antes da invasão dos bárbaros.

Há lugares em que o latim não conseguiu impor-se, outros em que ele


logrou implantar-se, mas depois teve que ceder à investida de idiomas estra-
nhos. Basta dizer que, não obstante a vasta área em que foi falado depois das
conquistas, só deixou representantes da Europa.

Aí mesmo, há regiões em que não conseguiu manter-se. Assim, muito pre-


cária foi a sua sorte nos países balcânicos, na ilha de Malta e na Inglaterra.

59. As línguas neolatinas não se derivaram diretamente do latim, mas entre


aquelas e este houve os vários romances, – assim se chamavam as modifica-
ções regionais do latim –, dos quais saíram então as línguas românicas.

Não se pode precisar a época exata da formação dos romances, nem a


do desaparecimento do latim vulgar. Segundo Grandgent, o período deste
estende-se do ano 200 a.C. até pouco mais ou menos o de 600 da Era Cristã.
Só então é que aparecem os romances.

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Línguas românicas contemporâneas

Diz Meyer-Lübke que as alterações características do sistema fonético das


línguas românicas se verificaram entre o IV e VI séculos.

Para tais modificações, além da diversidade de meio, da extensão terri-


torial e da topografia irregular dos vários domínios romanos, elementos
importantes na transformação de uma língua, outras causas costumam ser
invocadas: a) a histórica; b) a etnológica; c) a política.

60. A causa histórica – as conquistas romanas deram-se em diferentes


épocas. Roma não impôs o seu jugo simultaneamente a todos os povos.
Consumiu-lhe vários séculos a dominação do mundo.

Assim, a Sicília é convertida em província romana, no ano de 241 a.C.; a


Córsega e a Sardenha, no ano de 238 a.C.; a Hispânia, no de 197 a.C.; a Ilíria é
absorvida desde 197 a.C.; a África, a partir da vitória sobre Cartago, em 146
a.C.; a Gália meridional, em 120 a.C.; a Gália setentrional torna-se província
romana no ano de 50 a.C.; a Récia, desde o ano 15 a.C.; a Dácia sofre a coloni-
zação romana no ano de 107 da Era Cristã (1).

Por consequência, entre a conquista da Sardenha e a da Dácia, medeiam


aproximadamente quatro séculos.

Neste espaço de tempo, tinha sofrido a língua latina não poucas modifi-
cações. É a razão por que o sardo apresenta traços de um latim muito mais
antigo do que o italiano. Do mesmo modo, os povos que habitavam a Penín-
sula Ibérica receberam o sermo vulgaris primeiro que os da Gália.

Enquanto as primeiras terras romanizadas aprenderam uma linguagem


mais popular, as últimas conheceram um latim mais polido, ou seja “uma lin-
guagem mais oficial”.

Mas a causa histórica poderá explicar a diferenciação do latim; nunca,


porém, a das línguas românicas entre si.

Este fato é reconhecido por Meyer-Lubke: “a diferente antiguidade do


latim nos diversos países pode explicar diferenças dentro das línguas româ-
nicas, mas não a própria diferença destas línguas entre si”.

61. A causa etnológica – as várias regiões sobre que os romanos estende-


ram o seu domínio eram habitadas por povos de raças diferentes. Na própria
Itália, além do osco e umbro, de origem idêntica ao latim, eram falados outros

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

idiomas: o messápio, ao Sudeste; o grego, na Sicília e no sul; o etrusco, ao norte;


o céltico, na região do Pó; o ligúrico, ao noroeste; o vêneto, ao nordeste.

No território correspondente à França atual, foram idiomas usuais o ibéri-


co, o ligúrico e o céltico (gaulês).

Na região constituída modernamente por Portugal e Espanha, havia o


ibérico e o céltico. Em Portugal especialmente, habitavam as seguintes tribos:
turdetanos no sul, celtas no sul e no norte, túrdulos ao norte do Tejo, igedita-
nos na Beira, presuros ao sul do Douro, gróvios ao norte, brácaros, no Minho,
zelas em Trás-os-Montes – algumas nativas, outras resultantes do cruzamen-
to dos celtas e de outros povos com os lusitanos.

Era forçoso que a língua latina, na boca de gentes de índole e costumes


tão diversos, se modificasse também diversamente, em toda a România.

Ao receber o latim, cada povo o transformava a seu modo, de acordo com


os hábitos fonéticos próprios.

É esta a hipótese do substrato de que Áscoli se valeu para explicar certas


particularidades fonéticas do francês e do espanhol.

Poderia ela, quando muito, explicar a formação de dialetos na România,


não, porém, a de línguas tão diferentes como as neolatinas.

62. A causa política – de todas as causas aqui apontadas é, sem dúvida,


esta a mais importante da diferenciação das línguas.

Com efeito, enquanto um povo está politicamente sujeito a outro, man-


tém-se forte a unidade linguística.

Desde, porém, que se quebram os laços políticos, começam as divergên-


cias no que diz respeito à língua. Estas se vão avolumando à proporção que
os anos passam e diminuem as relações entre a antiga metrópole e a colô-
nia. Como consequência lógica, impõe-se a criação de dialetos, que poderão
transformar-se depois em línguas independentes.

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.

TEXTO 07
Características da língua portuguesa

A língua portuguesa se caracteriza por uma evolução especialíssima e


por uma intervenção cirúrgica feita por autores clássicos dos quinhentos,
talvez porque esse período quinhentista da nossa literatura tenha contado
com a aprovação e o incentivo da corte que muitos deles frequentavam.

A bem da verdade, devo acrescentar que boa parte dessas característi-


cas a língua portuguesa divide com as outras línguas ibéricas: castelhano,
catalão e galego. Entretanto, deve-se acentuar que Portugal e Brasil tri-
lharam caminhos diversos, porque a língua de lá é mais nova que a língua
de cá no vocabulário e principalmente na pronúncia, enquanto a nossa
espelha um estado bastante antigo da língua portuguesa.

O conjunto das mudanças da língua latina na sua caminhada para as


neolatinas fez desaparecer muitas formas e também permitiu a descober-
ta de outras.

Evolução fonológica
A língua portuguesa se distingue entre as ibéricas por ter uma corres-
pondência total entre consoantes surdas e sonoras com a mesma articu-
lação pós-glotal:

pasta / basta

casta / gasta

toca / doca

faca / vaca

selo / zelo

checa / jeca

Diferencia-se ainda das demais línguas românicas por dispor de sete


vogais e cinco nasais, além de haver vogais médias abertas e fechadas que
distinguem uma grande quantidade de palavras:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

esse [é] / esse [ê]

corte [ó] / corte [ô].

Evolução morfológica
Mais ainda que a castelhana, a língua portuguesa tem propriedades que a
distinguem dentro das línguas ibéricas. Grande parte delas, entretanto, apare-
cem também na língua galega, mais antiga que a portuguesa.

Evolução das formas verbais


O latim tinha o verbo extremamente bem organizado.

Formas inacabadas: infectum Formas acabadas: perfectum


Presente amo [1] amem [2] amaverim [2] amavi [1]
Passado amabam [3] amarem [4] amavissem [4] amaveram [3]
Futuro amabo [5] - amavero [5]

O equilíbrio era perfeito, porque a cada forma da esquerda respondia outra


da direita em ponto correspondente:

 três tempos [presente / passado / futuro];

 dois modos [preciso: indicativo / eventual: subjuntivo];

 dois aspectos [inacabado / acabado].

Tudo foi desarrumado com a evolução motivada pelo superstrato germânico


ou eslavo: a diferença do tipo de conjugar os verbos nas línguas dos vencedores
provocou a queda de algumas das formas latinas, instituindo um desequilíbrio
no novo esquema verbal:

Línguas ibéricas:

Formas inacabadas: infectum Formas acabadas: perfectum


Presente amo amem amaverim amavi
Passado amabam amavissem amaveram
Futuro

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Características da língua portuguesa

Sempre lastimo o pouco conhecimento do latim que os gramáticos das


línguas neolatinas revelam, pois nem perceberam que as palavras infectum e
perfectum significam apenas inacabado e acabado respectivamente, que cons-
tituem os significados essenciais das formas abaixo. Reconheço, contudo, que
eles erraram honestamente, levados pelas aparências, sem atentar devidamente
para os significados de infectum [não feito] e perfectum [feito até o fim]. Uma
metonímia levou a palavra ao significado moderno de ausência total de defeito,
mas o verbo continua com o sentido arcaico (MATTOS, 2005, p. 463):

“Perfazer v. ... 2. Fazer alguma coisa até o fim: acabar, concluir, terminar – Eu
perfiz o trabalho em uma semana.”

O perfeito latino é feito nos verbos regulares por um sufixo e nos irregula-
res com outra forma do mesmo radical, eventualmente com a reduplicação da
sílaba inicial, que o grego manteve de maneira regular:

Infectum Perfectum
amat amavit
dat dedit

O raciocínio desses gramáticos foi simplista: como desapareceu a sílaba que


gerava o perfeito, também desapareceu o significado dela. Só que as línguas são
sempre crianças e adoram brincar: desapareceu o sufixo do aspecto de acaba-
mento e por ironia desapareceu o significado de tempo, conservando-se o do
aspecto:

amaveras > amaras

amavisses > amasses

amaveris > amaris > amares

O sufixo de acabado ou perfeito era a terceira sílaba, que desapareceu nas


formas que nos vieram.

Verbo de língua portuguesa


O verbo de língua portuguesa não trabalha com o tempo, mas com o aspec-
to. Por isso pode acontecer este diálogo entre a secretária e um funcionário:

– Eu preciso falar com o diretor.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

– Espere um pouco que em 15 minutos ele já chegou.

O desajuste das línguas ibéricas, que foi consertado por um novo esquema,
que cito com as formas da língua portuguesa, salientando que o castelhano e
evidentemente também o galego têm o mesmo esquema verbal:

Inacabado Acabado
Efetivo Eventual Eventual Efetivo
Próximo amo (que) ame (se) amar amei
Remoto amava (que) amasse (se) amasse amara

As formas remotas significam essencialmente apenas afastadas da realidade,


enquanto as próximas vizinhas dela. Além disso, como acepção sinônima, as re-
motas indicam a impossibilidade de se usar a respectiva forma de cima:

Amava [não posso mais dizer: eu amo]

Essa foi a minha descoberta, publicada em 1967 na revista Minerva, da Uni-


versidade Estadual de Ponta Grossa.

A forma amasse, e todo imperfeito do subjuntivo da Nomenclatura da Gra-


matical Brasileira, é ambígua, porque responde ao presente do subjuntivo e
também ao futuro do subjuntivo. A prova é singela:

Que bom querer que ele me ame. Que bom, se ele me amar.
Que bom querer que ele me amasse. Que bom, se ele me amasse.

Ora, se duas formas aparentemente iguais [amasse / amasse] se ajustam per-


feitamente a duas outras formas evidentemente desiguais [ame / amar], o certo
é que as duas formas que parecem iguais são iguais na forma e diferentes em
significado: são palavras homônimas, exatamente como a lima que se pode des-
cascar com a faca e a lima que pode desgastar o ferro.

A troca de posição dessas duas formas da primeira linha geram frases inacei-
táveis na língua, marcadas pelo asterisco:

Que bom querer que ele me *amar. Que bom, se ele me *ame.
Que bom querer que ele me amasse. Que bom, se ele me amasse.

Essas duas formas verbais caracterizam fortemente a língua portuguesa e


demonstram o seu significado diferente quando podem ser trocadas no mesmo
ponto de uma frase, ainda que poucos falantes cheguem a distinguir tais filigranas:

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Características da língua portuguesa

Pago a quem ache o meu cachorro [pagamento antes de achar].

Pago a quem achar o meu cachorro [pagamento depois de achar].

A segunda dessas formas, homônima do infinitivo exceto nos nossos 17


verbos anômalos e seus derivados, é na realidade um pretérito do futuro e con-
tinua o futuro exato [realizado] da língua latina e faz parte do indicativo dela,
nunca do subjuntivo: engano dos nossos gramáticos.

Um bom exemplo do significado do próximo, que indica o provável, e do


remoto, que indica o improvável:

Se o dia esquentar, eu vou para a praia [acho que vou].

Se o dia esquentasse, eu ia para a praia [acho que não vou].

As formas nominais do verbo, o infinitivo, o gerúndio e o particípio, se encai-


xam exatamente no esquema anterior, produzindo também duas formas homô-
nimas, que anulam as diferenças entre as formas próximas e as remotas.

De fato, essas formas nominais do verbo constituem uma terceira linha que
deixa indistintas as diferenças entre as formas próximas ou prováveis e as remo-
tas ou improváveis.
Inacabado Acabado
Efetivo Eventual Eventual Efetivo
Próximo amo (que) ame (se) amar amei
Remoto amava (que) amasse (se) amasse amara
amar amando amando amado

Um exemplo esclarece o sentido diverso das formas mediais da última


linha, que implicam um gerúndio anterior [perfeito] e um gerúndio posterior
[imperfeito]:

Chovendo tanto [anterior], o rio transborda, alagando as ruas [posterior].

Tenho a impressão de que as línguas germânicas não possuem o gerúndio


posterior, devendo usar uma subordinada consecutiva:

[...] transborda de tal modo que alaga as ruas.

O significado do gerúndio posterior é o de uma consequência e parece a


todos mais elegante que a correspondente oração subordinada adverbial con-
secutiva, que se pode ler acima. Por isso, a construção é bastante apreciada e
usada na conversa e na literatura.

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As outras línguas românicas perderam algumas das formas do verbo latino


ou ainda as têm, mas arcaicas ou extremamente eruditas. Além disso, é comum
que formas compostas sejam mais usadas que as simples, de emprego quase
sempre da língua escrita, que é o caso do perfeito da língua francesa, sobre-
pujado pela forma composta com o verbo avoir [haver / ter], pois nesta língua
restaram apenas cinco formas simples do verbo latino.

Formas Inacabado: infectum Acabado: perfectum


Presente amo amem amavissem amavi
Passado amabam
Futuro

Criação dos futuros


Os buracos abertos na conjugação foram preenchidos por formas novas.

O exemplo mais claro é a formação do futuro, perdido na evolução das lín-


guas românicas que se distanciavam cada vez mais do latim:

amar habeo hei > amar haio > amar hai > amar hei > amarei

amar havia > amar haia > amar hia > amaria

Os futuros da língua portuguesa continuam sendo formas duplas, porque


se trata apenas da escrita junta, quando a verdade é que são palavras distintas,
comprovadas pela possibilidade da mesóclise :

amar-te-ei.

amar-te-ia.

Acrescenta-se que aqui se trata de um estudo diacrônico, ou seja ao longo do


tempo. Num estudo sincrônico da língua de agora, o mais correto é esquecer o
passado e olhar as formas presentes, como aconselha Drummond de Andrade
em seu Mãos Dadas (1964, p. 97):

“ O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

A vida presente.”

O chamado futuro do pretérito é costumeiramente um futuro e o imperfeito


do subjuntivo frequentemente é também um futuro:

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Características da língua portuguesa

Se ele estivesse aqui, ele viria te visitar, mas ele está viajando [futuro].

Na fala do povo, o futuro do pretérito é desprezado e lhe ocupa o lugar o


imperfeito do indicativo:

Se ele estivesse aqui, ele vinha te visitar, mas ele está viajando [imperfeito].

Entretanto, bons autores não se privam dessa forma, principalmente na fala


de personagens, como neste exemplo de Machado de Assis (1839-1908) em Me-
mórias Póstumas de Brás Cubas (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 201):

“Não escaparíamos; ele iria ter comigo e matava-me: do mesmo modo.”

E para findar este ponto, uma criação admirável simultaneamente portuguesa


e galega, que é o infinitivo pessoal, que concorda com as pessoas do pronome:

Língua galega Língua portuguesa


andar eu andar eu
andares tu andares tu
andare ele andar ele
andarmos nós andarmos nós
andardes vós andardes vós
andaren eles andarem eles

A queda do sufixo de perfeito [por que será que eu não disse: a síncope do
sufixo de perfeito?] deixou o latim vulgar com uma carga excessiva, de que tive-
ram de se desembaraçar:

amar [infinitivo] – amar [clássico: amare].

amar [imperfeito do subjuntivo] – que eu amasse [clássico: amarem].

amar [perfeito do subjuntivo] – que eu tenha amado [clássico: amaverim].

amar [futuro perfeito] – eu terei amado [clássico: amavero].

A maioria absoluta das línguas românicas recuaram ao máximo, ficando so-


mente com a forma de infinitivo, enquanto as ibéricas aceitaram a do infinitivo
e a do futuro perfeito:

Infinitivo: amar me deixa feliz.

Futuro perfeito: se eu amar, serei feliz.

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A língua galego-portuguesa levou em consideração a forma homônima do


infinitivo e do futuro perfeito na primeira pessoa do singular e ampliou essa ho-
monímia para as outras pessoas:

se eu amar, serei feliz.

amar me deixa feliz.

se tu amares, serás feliz.

amares te deixa feliz.

se nós amarmos, seremos felizes.

amarmos nos deixa felizes.

se vós amardes, sereis felizes.

amardes vos deixa felizes.

E assim o restante!

Evolução dos demonstrativos


A língua latina usava quatro demonstrativos:

hic / haec / hoc [pessoal: este].

iste / ista / istud [pessoal: esse].

ille / illa / illud [pessoal: aquele].

is / ea / id [impessoal: o de que se fala no momento / este ou esse].

O pronome de primeira pessoa, que é o primeiro citado, e o impessoal, que é


o último, desapareceram pelo mesmo motivo. Aclimatados às novas circunstân-
cias, teriam formas frágeis e colidentes com outras:

í / é / o [este / esta / isto].

eu / eia / i [o / a / o].

O impessoal era tipicamente referencial a palavra anterior e poderia eventu-


almente ter evoluído para as funções do artigo, se a isso não obstasse a fragili-
dade formal:

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Características da língua portuguesa

Si non esset hic malefactor, non tibi tradidissemus eum [se não fosse este (um)
malfeitor, não te entregaríamos ele / ... não te seria ele entregue].

Por ter usado aqui a língua popular, a única que me permitiu a tradução do
texto latino da Paixão de Cristo palavra por palavra, segue a tradução exata, mas
com um arcaísmo na fala brasileira, além de um pequeno desvio da linearidade
do texto romano:

Se não fosse este (um) malfeitor, não to entregaríamos.

Houve uma evolução linguística, motivada pela impossibilidade de manu-


tenção desses dois demonstrativos nas línguas românicas. Todas desmembra-
ram um dos demonstrativos, que eram pessoais, e o transformaram num impes-
soal, que passou a ser o pronome pessoal de terceira pessoa, semanticamente
um demonstrativo impessoal. Por isso, tenho a convicção que esse processo não
pertence às línguas neolatinas, mas se realizou dentro da língua latina entre os
séculos V e VII, evidentemente encampado pelos romanços que se formavam
nesse tempo:

Si non esset ille malefactor, non tibi tradidissemus illum.

É ainda uma característica da língua portuguesa o maior emprego dos arti-


gos, derivados das formas adjetivas do demonstrativo acusativo:

illum > lo > o / illam > la / a

Havendo a possibilidade da presença ou da ausência do artigo, a presença


dele contamina o texto de alguma afetividade positiva:

Pedro [linguagem formal] / o Pedro [linguagem afetiva].

Meu amigo [linguagem formal] / o meu amigo [linguagem afetiva].

Com o desaparecimento do demonstrativo de primeira pessoa, o de segunda


passou a ocupar a função dele, o que está acontecendo na língua portuguesa
do Brasil, em que o demonstrativo de primeira pessoa [este / esta / isto] está em
franca decadência, substituído pelo da segunda pessoa [esse/essa/isso]:

Pegue esse caderno e escreva [e o estende ao ouvinte].

O demonstrativo de segunda pessoa foi tomado de um adjetivo que ficou de-


susado, vencido por uma palavra nova [metipsimus / metipsima], que nos daria
as palavras mesmo e mesma.

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ipse > esse / ipsa > essa / ipsum > isso.

Esse mesmo adjetivo foi aproveitado pelo sardo para a forma dos seus
artigos, como se pode ver neste trecho do Pai-Nosso traduzido para a língua
dos Sardos:

[...] comente in su chelu et in sa terra [assim como no céu e na terra].

E apareceram os três demonstrativos da língua arcaica na fase proto-


-histórica:

este / esta / isto – demonstrativo de primeira pessoa.

esse / essa / isso – demonstrativo de segunda pessoa.

ele / ela / ilo – demonstrativo de terceira pessoa.

Já na fase histórica apareceram formas redundantes, que deveriam ter tido


um significado extremamente acentuado e enfático:

aqueste / aquesta / aquisto – demonstrativo enfático: de primeira pessoa.

aquesse / aquessa / aquisso – demonstrativo enfático: de segunda pessoa.

aquele / aquela / aquilo – demonstrativo enfático: de terceira pessoa.

O emprego explica o significado enfático [aquestas: estas aqui / estas de


agora] nesta cantiga de amigo, escrita por Juian Bolseiro (NUNES, 1973, p. 367):

Aquestas noytes tan longas

que Deus fez en grave dia

por mi, porque as non dormyo,

e por que as non fazia

no tempo que meu amigo

soia falar conmigo [...]

Perdendo a função adjetiva, o emprego do antigo demonstrativo de terceira


pessoa como pronome pessoal de terceira pessoa obrigou o demonstrativo en-
fático de terceira pessoa a perder a função de reforço e a encaixar-se na sequên-
cia dos demonstrativos:

este / esse / aquele.

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Características da língua portuguesa

Sem o apoio da terceira pessoa, as duas primeiras se enfraqueceram e o


desuso as fez esquecidas.

Particípios abundantes
A língua portuguesa recebeu muitos particípios com a forma da língua latina,
sujeitos à evolução fonética normal das outras palavras:

imprimere > impresso / impressa.

Alguns verbos anômalos têm particípios herdados diretamente, sem terem


desenvolvido formas regulares paralelas:

dizer > dito / escrever > escrito / fazer > feito / pôr > posto / ver > visto / vir >
vindo.

Verbos regulares e irregulares têm produzido ao lado da forma herdada


também uma forma regular:

aceitar > aceite > aceito > aceitado.

benzer > bento > benzido.

empregar > entregue > entregado.

inverter > inverso > invertido.

omitir > omisso > omitido.

romper > roto > rompido.

submergir > submerso > submergido.

O mais comum é usar-se o particípio herdado como marca de um estado, pri-


vilegiando o verbo estar e o emprego como adjetivo, e o particípio regular como
resultado de uma ação, com os verbos ter e ser:

houve nomes omissos / os nomes omissos.

Tinham omitido um dos nomes / um dos nomes foi omitido.

A evolução é viva na fala brasileira:

Ele tinha chego há pouco.

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Ele tem rego o jardim todo dia [ouvida por mim].

Por outro lado, há particípios regulares relegados pela língua da elite e aco-
lhidos pela língua do povo:

Tem gastado muito dinheiro.

Tinha ganhado muito dinheiro.

A forma reduzida do particípio do verbo ganhar é recente [a língua tem mais


de mil anos], porque Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) ainda escrevia, há
pouco mais de dois séculos:
E a quantos nos não mostra a sábia História
A quem mudou o fado em negro opróbrio
A mal ganhada fama.
... a quem o fado mudou a mal ganhada fama em negro opróbrio.
(GONZAGA, 2002, p. 62)

Diminutivos e aumentativos vocabulares


A língua portuguesa desenvolveu uma palavra enclítica que quase todos os
gramáticos consideram uma forma paralela do sufixo diminutivo, ainda que o
mesmo ocorra com o aumentativo.

Para facilitar a pronúncia passou a existir uma consoante de ligação entre


radical que termina em consoante e sufixo que começa por vogal: a eufonia co-
manda. Exemplo típico:

café + al > café + z + al > cafezal [fê]

No caso, a forma -zal passa a ser uma variante condicionada do sufixo -al por
ter regras para o seu emprego:

banana + al > bananal.

Esse emprego estendeu-se a outras palavras, mas ficamos com o mesmo


substantivo do exemplo anterior:

café > cafezinho.

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Agora, todavia, aparece alguma coisa diferente, que se deve considerar com
toda a seriedade, porque a palavra cafezal tem a sílaba medial fechada [fê],
enquanto a palavra cafezinho a tem aberta [fé]. A função é a mesma: quebra
do hiato.

Se formos agora para palavras terminadas em consoante e quisermos o plural


delas, vem-nos a surpresa:

canalzinho > canaizinhos / florzinha > florezinhas / anelzinho > aneizinhos.

E creio que se pode reconhecer que aparecem na pronúncia os dois sons sibi-
lantes, que correspondem a um alongamento dessa consoante fricativa:

canaiszinhos / floreszinhas / aneiszinhos.

O que vale também para o aumentativo:

portãozão > portõeszões > portõezões.

Evolução sintática
Ainda que haja várias características dentro da frase portuguesa, fico com a
mais nitidamente diferencial, que é a colocação das palavras dentro da frase.

Sujeito e verbo
Enquanto boa parte das línguas tem regras fixas, a portuguesa se vale da in-
versão para introduzir um significado específico.

A frase explicativa tem o sujeito à esquerda do verbo, indicando que se fala


do que dizem as palavras dele:

As meninas vieram [fala-se das meninas e nada mais...].

A frase restritiva tem o sujeito à direita do verbo, indicando que se fala de


alguma coisa a mais, além do que as palavras do sujeito revelam:

Vieram as meninas [fala-se das meninas e de quem era esperado e não


veio...].

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Adjetivo e substantivo
O conjunto explicativo tem o adjetivo à esquerda do substantivo, indicando
que se fala do que dizem as palavras dele:

O rapaz sorri às lindas moças que o acompanham [não se fala de mais ninguém:
todas lindas...].

O conjunto restritivo tem o adjetivo à direita do substantivo, indicando que


se fala de alguma coisa a mais, além do que o adjetivo revela:

O rapaz sorri às moças lindas que o acompanham [fala-se das lindas a quem ele
sorri, e das outras...].

Camões (1524-1580) tem um exemplo esplendoroso, que deixo à interpreta-


ção dos meus amáveis leitores:

Agora tu, Calíope, me ensina

O que contou ao rei o ilustre Gama;

Inspira imortal canto e voz divina

Neste peito mortal que tanto te ama.

(CAMÕES, 1970, p. 129)

Explico, entretanto, a honestidade do poeta com o mesmo jogo locativo:

imortal canto / peito mortal

O seu poema épico é imortal, mas não ele, que é o poeta. E note-se ainda
a bela antítese: imortal x mortal. E mais importante ainda: o primeiro adjetivo
antes do substantivo e o segundo depois dele.

Texto complementar
Língua portuguesa
A língua portuguesa, com mais de 215 milhões de falantes nativos, é a
quinta língua mais falada no mundo e a terceira mais falada no mundo oci-
dental. Idioma oficial de Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,

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Características da língua portuguesa

Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, sendo falada na antiga


Índia Portuguesa (Goa, Damão, Diu e Dadrá e Nagar-Aveli), Macau e Guiné
Equatorial, além de ter também estatuto oficial na União Europeia, no Mer-
cosul e na União Africana.

A situação da Galiza e do galego em relação ao português é controversa.


De um ponto de vista político e, portanto, oficial, o galego é uma língua
porque assim o determinam os organismos de Estado espanhol e da Região
Autónoma da Galiza, com legitimidade democrática. De um ponto de vista
científico, a ideia de que o galego é uma variedade dialectal da língua por-
tuguesa reúne hoje um vasto consenso, sendo estudado a par com as res-
tantes variedades do português nas universidades e centros de investiga-
ção linguística.

A língua portuguesa é uma língua românica (do grupo ibero-românico),


tal como o castelhano, catalão, italiano, francês, romeno e outros.

Assim como os outros idiomas, o português sofreu uma evolução histó-


rica, sendo influenciado por vários idiomas e dialetos, até chegar ao estado
conhecido atualmente. Deve-se considerar, porém, que o português de hoje
compreende vários dialetos e subdialetos, falares e subfalares, muitas vezes
bastante distintos, além de dois padrões reconhecidos internacionalmente
(português brasileiro e português europeu). No momento actual, o portu-
guês é a única língua do mundo ocidental falada por mais de cem milhões
de pessoas com duas ortografias oficiais (note-se que línguas como o inglês
têm diferenças de ortografia pontuais mas não ortografias oficiais divergen-
tes), situação a que o Acordo Ortográfico de 1990 pretende pôr cobro.

Segundo um levantamento feito pela Academia Brasileira de Letras, a


língua portuguesa tem, atualmente, cerca de 356 mil unidades lexicais.
Essas unidades estão dicionarizadas no Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa.

O português é conhecido como A língua de Camões (por causa de Luís


de Camões, autor de Os Lusíadas), A última flor do Lácio, expressão usada no
soneto Língua Portuguesa de Olavo Bilac ou ainda A doce língua por Miguel
de Cervantes.

Nos séculos XV e XVI, à medida que Portugal criava o primeiro império


colonial e comercial europeu, a língua portuguesa se espalhou pelo mundo,

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

estendendo-se desde a costa Africana até Macau, na China, ao Japão e ao


Brasil, nas Américas. Como resultado dessa expansão, o português é agora
língua oficial de oito países independentes além de Portugal, e é largamente
falado ou estudado como segunda língua noutros. Há, ainda, cerca de vinte
línguas crioulas de base portuguesa. É uma importante língua minoritária em
Andorra, Luxemburgo, Paraguai, Namíbia, Suíça e África do Sul. Encontram-
-se, também, numerosas comunidades de emigrantes, em várias cidades em
todo o mundo, onde se fala o português como Paris na França; Toronto, Ha-
milton, Montreal e Gatineau no Canadá; Boston, New Jersey e Miami nos EUA
e Nagoya e Hamamatsu no Japão.

(Disponível em: <www.br.answers.yahoo.com/


question/index?qid=20080427170058AAH8Wnc>.)

Atividades
1. Que aspectos fonológicos identificam a língua portuguesa?

2. Como os primeiros gramáticos das línguas ibéricas interpretaram o verbo


latino na sua passagem para as línguas românicas?

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua
Portuguesa. Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.
TEXTO 08
História externa da língua portuguesa

Início das conquistas portuguesas


Diferentemente da expansão romana, que se acomodou a certa altura,
embora houvesse ainda terras por conquistar, a expansão portuguesa não
parou: foi parada. E o motivo dessa sustação é Camões (1524-1580) que
nos diz com o verso final da estância 14 do canto VII (1973, p. 190):

Mas, entanto que cegos e sedentos

Andais de vosso sangue, ó gente insana,

Não faltaram Cristãos atrevimentos

Nesta pequena casa LUSITANA.

De África tem marítimos assentos;

É na Ásia mais que todas soberana;

Na quarta parte nova os campos ara;

E, se mais mundo houvera, lá chegara!

O sétimo verso a quarta parte nova fala do Brasil: a primeira parte é o


próprio Portugal, a segunda é a África, que teve as primeiras conquistas
fora da terra-mãe, a terceira é a Ásia, que foi visitada dois anos antes do
descobrimento do Brasil, e por fim a quarta somos nós: parte nova, de que
eles nem tinham notícia. A Oceania estava por ser descoberta.

A ordem dos lugares citados comprova a posição do quarto: Portugal,


África, Ásia e em quarto o Brasil.

O assentamento africano ficou comunicado duas vezes, aparecendo


pela primeira vez com a palavra assentos e pela segunda com a descida da
sexta silaba forte para a décima do verso com quatro degraus feitos por três
sílabas átonas, porque os portugueses desceram para as terras africanas:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

De África tem marítimos assentos.

A história moderna de Portugal começa com Henrique de Borgonha, que


veio lutar contra os mouros sob as ordens de Afonso VI, rei de Leão e Castela,
recebendo em 1095, como pagamento o pequeno Condado Portucalense e a
mão da filha dele. Afonso Henriques [Henriques: filho de Henrique / Álvares: filho
de Álvaro], seu filho, se recusa a reconhecer a soberania do rei de Leão e Castela
e funda o reino português em 1139, reconhecido independente em 1143 por
Afonso VII, rei de Leão e Castela. Com esse reconhecimento fica confirmada a
dinastia de Borgonha, a primeira do novo reino.

O povo lusíada, conduzido por seus reis, repetiu o feito dos romanos que
desde o início se propuseram à conquista de novos territórios. Curiosamente,
seguiram também o modelo romano de conquistar os campos e as cidades,
como nos conta Eutrópio, historiador romano da segunda metade do século IV
da nossa era: também os portugueses enviaram fartos contingentes humanos,
entre eles, alguns milhares de judeus, fugidos da Espanha e levados para as co-
lônias portuguesas. De fato, a santidade não faz conquistas materiais.

A primeira ação foi a conquista de Lisboa em 1147 seguida pela luta para
apossar-se das terras muçulmanas e moçárabes no Sul. No fim do século XIII,
Portugal tinha o seu território bem determinado e com um forte poder central.

A política do rei Dom Dinis (1261-1325) favoreceu a agricultura, o que lhe


valeu o nome de Rei Lavrador e, como tem mais de cento e trinta cantigas tro-
vadorescas, coube-lhe também o título de Rei Trovador. No campo cultural, ofi-
cializou a língua portuguesa abandonando a latina em que se redigiam todos os
documentos e incentivou a educação e a ciência fundando em 1290 a Universi-
dade de Lisboa, transferida mais tarde para Coimbra. Promoveu também o cres-
cimento econômico, que iria proporcionar os recursos financeiros necessários
para as conquistas marítimas do século XIV.

Em 1383 morre o rei Dom Fernando I (1354-1383) e aparece a possibilidade de


a coroa portuguesa passar para o rei de Castela: Dom Fernando estava à morte,
não tinha herdeiros e a filha única estava casada com Dom João I (1358-1390),
rei de Castela. A pequena nobreza, os lavradores, os armadores de navios e os
comerciantes apoiavam o novo rei, João I (1357-1433), que era o grão-mestre
da Ordem de Avis, fundada em 1147 por Dom Afonso Henriques (1110-1185),
primeiro rei de Portugal.

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História externa da língua portuguesa

Preparo da aventura expansionista


Dom João I funda a dinastia de Avis, a segunda do reino e a primeira portu-
guesa. Castela invade Portugal, mas a guerra acaba com a derrota dos castelha-
nos em Aljubarrota (1385), que garante a soberania portuguesa.

Em 1414, Dom João I resolve tomar Ceuta, porto importante das costas afri-
canas, e entrega a organização da campanha ao seu quinto filho, o infante Dom
Henrique (1394-1460), então com 20 anos. As razões para essa empreitada eram
religiosas: a dilatação da fé e a derrota dos muçulmanos. Na verdade, era a situa-
ção estratégica da cidade e do seu porto que impunha o empreendimento.

Ceuta, tomada em 1415, é a primeira conquista portuguesa fora da Europa.


Passando a viver na cidade de Lagos, a maior do Algarve naquele tempo, Dom
Henrique fundou perto do cabo de Sagres o Centro de Estudos de Náutica,
Astronomia, Cosmografia e Ciência para formar cosmógrafos e construtores
de navios.

Os recursos necessários para a escola e para as viagens ao mar vieram da


Ordem dos Templários, fundada em Jerusalém em 1119 para proteger os pere-
grinos que vinham aos lugares sagrados do Cristianismo. Por motivos políticos,
a Ordem dos Templários foi dissolvida pelo Papa Clemente e seus bens atribu-
ídos a outras ordens. O rei Dom Dinis (1261-1325) não concordou com a deci-
são papal, fundou em 1318 a Ordem de Cristo, que recebeu parte dos bens da
Ordem destituída. Esses fundos ajudaram para implantar a Escola de Sagres e
financiar as futuras viagens marítimas. Era preciso contar ainda com o mono-
pólio da pesca, indústria importante no Algarve, que pertencia ao Infante Dom
Henrique, além dos impostos cobrados aos fabricantes de tinta e sabão. Entre-
tanto, mais que todos esses eram ainda esperados os rendimentos das possíveis
descobertas. Convém lembrar o que diz José Manuel Garcia (1992, p. 135) sobre
esses recursos: “Como Governador do Algarve e de Ceuta, onde a navegação
e a pesca desempenhavam papel econômico de primeira grandeza, o infante
D. Henrique sabia muito bem dos lucros que o mar podia conceder, se conve-
nientemente explorado.”

A sua obra da Escola de Sagres chegou a ficar tão conhecida que Veneza,
famosa por seus navios e suas conquistas, mandou a Sagres emissários para uma
tentativa de compra, que nunca se realizou. Ele mesmo nunca saiu de Portu-
gal, mas deve-se a ele o aprimoramento necessário das forças navais e de seus
navios que permitiram a expansão portuguesa mundo afora.

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Ao morrer, deixou as costas africanas exploradas até o cabo das Palmas, pre-
parando Portugal para a aventura máxima do fim do século XV: a chegada às
Índias em 1498 com a esquadra de Vasco da Gama (cerca de 1460-1524).

Por todo esse cuidado de treinar marinheiros e construir os melhores barcos,


além de se aprimorarem nas ciências náuticas, é que se deve duvidar da hipó-
tese de a esquadra de Cabral se ter desviado do rumo e chegar por acaso às
terras brasileiras. De fato, se havia as terras africanas nos mares orientais, por que
elas não existiriam também mais abaixo no outro lado? Afinal, Colombo tinha
achado terras nos mares ocidentais.

Expansão ultramarina
A expansão portuguesa entre 1414 e 1517 custou sangue e suor, além das lá-
grimas de quem ficava com o grande medo do nenhum retorno dos amores que
se lançaram aos perigos, que eram enormes e ainda aumentados pelas lendas,
como nos fala Garcia (1992, p. 127-138):
Todas estas ilhas e terras, tanto reais como imaginárias, exerceram enorme influência nas viagens
dos Portugueses dos séculos XIV e XV. Constituíram um dos mais importantes estímulos e um
objectivo preciso para muitas expedições de descoberta, ao mesmo tempo que preenchiam
as mentes com descrições pormenorizadas das novas regiões. Eram um incentivo para toda
a gente, desde o homem culto e aristocrata até ao ignorante vilão. E haviam de persistir em
muitos topônimos das ilhas e continentes que vieram a ser de facto exploradas.

O reverso da medalha estava nas terríveis histórias que se contavam de semelhantes terras e
mares. Toda a classe de monstros, perigos e obstáculos povoavam o oceano Atlântico na crença
geral. Transmitida ou forjada pelos Árabes a lenda do Mar Tenebroso descrevia um oceano
habitado por seres estranhos e mergulhado em escuridão constante, onde todos os navios
naufragariam nas ondas medonhas ou nas águas ferventes. Outras superstições afrouxavam
a curiosidade e refreavam o desejo de presa. Durante muito tempo os portugueses da Idade
Média, como os Europeus em geral, hesitaram entre a vontade de seguir além, para ocidente e
para sul, e o temor de não regressar mais. Era necessária a pressão de grande número de forças
poderosas para vencer esse medo e forçá-los a ir.

Era verdade que o longo Cabo Bojador tinha um mar extremamente bravo
com ondas de 15 metros de altura e um estrondo terrível de arrebentação a que
nenhum navio resistia.

O Cabo das Tormentas deve ter sido usado por muita mãe para disciplinar
o filho desobediente e foi ultrapassado tardiamente em 1488 por Bartolomeu
Dias (1450-1500) que acompanhou Vasco da Gama às Índias, capitaneou um dos
navios da esquadra de Pedro Álvares Cabral e morre em 1500 no naufrágio do
seu navio ao largo do Cabo da Boa Esperança, que para ele novamente se tornou
Cabo das Tormentas.

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História externa da língua portuguesa

Nicolau Coelho (talvez 1450-1504) comandou um dos navios da frota na pri-


meira viagem para as Índias, tendo conseguido vencer um motim contra Vasco
da Gama, e comandou também um dos navios da esquadra de Pedro Álvares
Cabral na segunda viagem para o mesmo destino.

Entretanto, na volta da terceira viagem às Índias em 1504, uma violenta tem-


pestade dispersou os navios e ele mesmo nunca mais foi visto, nem se teve dele
alguma notícia.

Seguem os versos de Fernando Pessoa (1888-1935), que soube interpretar o


passado como se o estivesse vivendo (ortografia original):

MAR PORTUGUEZ
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu. (PESSOA, 1981, p. 42)

Calendário das conquistas


A seguir as principais datas dos fatos que enfeixam a marcha da expansão ma-
rítima dos portugueses. Em muitos desses lugares aonde aportou a esquadra por-
tuguesa e os seus falantes, a língua portuguesa continua viva, mas apenas em oito
países a língua portuguesa é oficial: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Mo-
çambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Além dessas, desenvol-
veram-se também novas línguas, impropriamente denominadas crioulas, que
nasceram pelo mesmo motivo que levou a única língua latina a diversas línguas
românicas.

A campanha marítima foi longa e penosa:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

 1415 – A conquista de Ceuta, cidade que fica do outro lado do cabo


de Sagres, foi a única em que Dom Henrique lutou pessoalmente, além de
organizar essa campanha. Ele talvez tenha percebido que a organização
que ele compôs funcionou perfeitamente. Assim, era para ele melhor or-
ganizar e deixar agirem os outros, cada qual fazendo aquilo que sabia de
melhor.

 1418 – Tristão Vaz e João Gonçalves Zarco descobrem o arquipélago da


Madeira.

 1419 – Os portugueses entram em Porto Santo, uma das ilhas do arqui-


pélago.

 1420 – Os portugueses entram na lha da Madeira, a maior ilha do arqui-


pélago.

 1424 – Dom Fernando de Castro comanda a expedição militar às Ilhas Ca-


nárias.

 1425 – O infante Dom Henrique comanda o início do povoamento do


arquipélago da Madeira, maior ilha do arquipélago que tem o mesmo
nome, e a Ilha de Porto Santo, além de dois grupos de rochas desabitadas:
as Desertas e as Selvagens.

 1427 – Descobrimento do arquipélago dos Açores por Diogo de Silves.

 1434 – Gil Eanes foi enviado para outra tentativa no mar por Dom Henri-
que conseguiu ultrapassar o Cabo Bojador depois de várias tentativas.

 1436 – Afonso Gonçalves Baldaia descobre a Pedra da Galé.

 1437 – Tentativa falhada da conquista de Tanger.

 1439 – Autorização para o início do povoamento dos Açores.

 1441 – Nuno Tristão descobre o Cabo Branco.

 1443 – O Infante Dom Henrique é autorizado a navegar para o sul do Cabo


Bojador.

Nuno Tristão descobre o arquipélago de Arguim.

 1444 – Nuno Tristão aproxima-se do Rio Senegal.

Dinis Dias chega ao Cabo Verde.

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História externa da língua portuguesa

 1445 – Álvaro Fernandes descobre o Cabo de Mastos.

 1446 – Álvaro Fernandes chega à Enseada do Varela, no extremo norte da


Guiné-Bissau, mas a colonização veio apenas no fim do século XVI.

 1452 – Diogo de Teive viaja no Atlântico Ocidental e descobre as ilhas aço-


rianas das Flores e do Corvo.

 1455 – A bula Romanus Pontifex [O Pontífice romano] do papa Nicolau V


(1447-1455) reconhece que Portugal tem direitos exclusivos à posse das
terras e rotas descobertas a sul das Ilhas Canárias.

 1456 – O arquipélago de Cabo Verde foi descoberto pelo veneziano Ca’ da


Mosto, a serviço de Portugal, tornando-se independente em 1975.

 1458 – Portugal conquista Alcácer Seguer.

 1460 – Os portugueses descobrem as ilhas orientais do arquipélago de


Cabo Verde.

 1460 – Pedro de Sintra descobre a Serra Leoa.

 1460 – Morre o Infante Dom Henrique, que nunca acompanhou as via-


gens ultramarinas, mas fez por elas um trabalho que o fez merecer o título
que lhe deram os ingleses: Dom Henrique, o Navegador de descoberta.

 1461-1462 – Diogo Afonso descobre as ilhas ocidentais do arquipélago


de Cabo Verde.

 1462 – Inicia-se o povoamento do arquipélago de Cabo Verde.

 1469 – Fernão Gomes é contratado para explorar o litoral africano para


adiante da Serra Leoa.

 1471 – João de Santarém e Pero Escobar descobrem a Costa da Mina, ago-


ra Gana, no golfo da Guiné.

 1474 – Rui de Sequeira ultrapassa o Equador e chega ao Cabo Catarina.

 1482 – Diogo Cão atraca na foz do rio e somente três anos depois chegam
missionários, que convertem o rei do Congo.

 1482-1486 – Viagens de Diogo Cão, em que se descobre o litoral do con-


tinente africano entre Cabo Catarina e a Serra Parda, contatando pela pri-
meira vez com o reino do Congo.

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 1487-1492 – Pero da Covilhã com o escudeiro Afonso de Paiva vai por


terra ao Oriente para colher e se informar sobre o caminho marítimo para
as Índias e para o reino de Preste [padre] João, rei lendário de quem os
portugueses esperavam ajuda. Chegados a Áden, que tem o melhor porto
de acesso às Índias, eles se separaram: Pero da Covilhã continua para as
Índias e Afonso de Paiva vai em busca do rei lendário.

 1487 – Bartolomeu Dias inicia a sua viagem.

 1488 – Bartolomeu Dias passa sem incidentes além do Cabo da Boa Espe-
rança, o antigo cabo das tormentas, e explora o extremo sul do continente
africano até o Rio do Infante. Doze anos depois, acompanha Pedro Álvares
Cabral na primeira viagem às Índias depois da de Vasco da Gama.

 1490 – Pero da Covilhã passa por Moçambique e se admira quando obser-


va que é uma terra prospera.

 1494 – O Tratado de Tordesilhas dividiu o mundo por descobrir entre Por-


tugal e Espanha: se tivesse sido respeitado pelos bandeirantes, o Brasil te-
ria os seus limites ocidentais marcados por uma linha entre as cidades de
Belém e Porto Alegre. Nossa maior perda se chamaria Amazonas.

 1497-1499 – Acontece a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, que


vai ser o assunto fundamental da epopeia de Camões: Os Lusíadas (1572).

 1498 – A caminho das Índias, Vasco da Gama e sua esquadra também pa-
ram em Moçambique. O destino, porém, os chama para as águas.

 1500 – Pedro Álvares Cabral (1467 ou 1448-1520) parte do Tejo em aproxi-


madamente 8 de março de 1500 com treze navios e mil e quinhentos ho-
mens, descobre o Brasil, deixa aqui os degredados e parte para as Índias.

Gaspar Corte Real vai à Terra Nova.

 1505 – Dom Lourenço de Almeida chega a Ceilão, atual Sri Lanka, e os


portugueses se estabelecem na terra, expulsos em 1656 pelos holandeses,
expulsos em 1796 pelos ingleses.

 1507 – Afonso de Albuquerque chega a Ormuz.

 1509 – Diogo Lopes de Sequeira chega a Sumatra, a segunda maior ilha


da Indonésia, e a Málaca, cidade e porto da Malásia.

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História externa da língua portuguesa

 1510 – Os portugueses, sob o comando de Afonso de Albuquerque, se-


gundo vice-rei da Índia, conquistam Goa, território da costa ocidental da
Índia, e a conservam até 1962: invadida pela Índia em 1961, é anexada no
ano seguinte. Apesar dessa volta ao seio materno, as vozes portuguesas
ainda sobem lá aos ventos suaves e saudosos.

 1511 – Os portugueses conquistam Málaca, agora cidade e porto da Ma-


lásia.

Duarte Fernandes é o primeiro português a chegar ao Sião, agora Tailândia.

 1512 – Rui Nunes chega ao Pegu, antigo estado da Birmânia.

Francisco Serrão chega às Molucas, arquipélago da Indonésia, cobiçadas


pela cultura de suas especiarias, agora praticamente desaparecida.

 1513 – Jorge Álvares chega à China.

 1514 – Chega à corte do xá da Pérsia a primeira embaixada portuguesa.

 1515 – Fica consolidado o protetorado português sobre Ormuz, ilha no


Golfo Pérsico, agora iraniana.

Os portugueses chegam a Timor, ilha da Indonésia. Uma parte da ilha é


agora o oitavo país da comunidade lusíada: Timor-Leste.

 1516 – João Coelho chega ao Rio Ganges na India.

 1517 – João de Meira chega a Baçorá.

 1520 – Chega à Etiópia a primeira embaixada portuguesa de Dom Rodri-


go de Lima ao Preste João.

Alguns portugueses estabeleceram-se no Timor e enfrentaram cem anos


depois a invasão dos holandeses, que acordaram tarde, mas com muita
força. Os portugueses se retiraram de Timor em 1975 e a Fretilin [Frente
de libertação do Timor-Leste] declarou a independência, mas nove dias
depois o país foi ocupado pela Indonésia e anexado no ano seguinte. De-
pois de violentos massacres, as Nações Unidas intervieram em 1999 sob a
chefia do brasileiro Sérgio Vieira de Melo, para preparar o território para a
independência: eleições em 2001.

 1528 - 1529 – Antônio Tenreiro realiza a primeira viagem de Ormuz para


Portugal.

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 1530-1533 – Martim Afonso de Sousa (1500-1564) e seu irmão Pero Lopes


de Sousa exploram o litoral brasileiro com uma frota de cinco navios e 400
homens e chegam, passa no Rio de Janeiro e para na ilha de Cananeia,
mandando para o litoral uma expedição, que é massacrada. Continuando,
chega perto da foz do Rio da Prata, seu navio afunda e ele se salva agar-
rado a uma tábua. Apesar disso, manda o irmão até o Rio da Prata para
tomá-lo em nome do rei. Na volta, ergue as duas primeiras vilas na nova
terra: São Vicente e Piratininga.

 1532-1536 – Dom João III (1502-1557) estabelece o sistema de capitanias


no Brasil, doadas pelo rei aos nobres que quisessem vir para a nova terra:
Martim Afonso de Sousa recebeu a capitania de São Vicente em 1534, mas
nunca veio para administrá-la.

 1542-1543 – Os portugueses chegam ao Japão. Alguma coisa ficou deles


nessa terra distante: pelo menos a palavra arigatô, que continua a nossa
obrigado.

 1549 – Os portugueses fundam a cidade de Salvador, primeira capital do


Brasil.

É claro que as terras invadidas pelos portugueses foram também invadi-


das pela língua portuguesa e a contaminaram com expressões suas que
chegaram até a metrópole, como chegou até lá a palavra capim, que é a
forma brasileira da palavra caá pii da língua tupi [mato fino].

Texto complementar

Domínio da língua portuguesa


(COUTINHO, 1976, p. 58-62)

[...]

82. O século XVI reservou a Portugal um papel saliente na história dos


descobrimentos marítimos e das conquistas territoriais.

A língua portuguesa, que servia nessa época, de instrumento a uma culta


e rica literatura, espalhou-se rapidamente pelas novas terras recém-desco-

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História externa da língua portuguesa

bertas, avassalando continentes e ilhas. Nenhum povo foi jamais tão longe
através dos mares, como o lusitano, cujas naus percorriam os oceanos em
todos os sentidos e cuja bandeira tremulava em todas as cinco partes do
mundo, porque em todas elas Portugal possuía colônias.

Transportado para terras tão distantes, em que o clima, a topografia, os


costumes, as crenças, as instituições sociais, os hábitos linguísticos, eram os
mais diversos, o português não pôde manter aspecto rigidamente uniforme,
mas fracionou-se numa porção de dialetos.

De que se falou, nas regiões conquistadas, um idioma muito semelhan-


te ao da metrópole, testemunha Duarte Nunes do Leão: “a qual (refere-se à
língua) tam puramente se fala em muitas cidades de África, que nosso jugo
são subjectas como no mesmo Portugal, e em muitas províncias da Etiópia,da
Pérsia e da índia, onde temos cidades e colônias, nos Sionitas, nos Malaios,
nos Maluqueses, Léqueos, e nos Brasis, e nas muitas e grandes ilhas com mar
oceano, e tantas outras partes que com razão se pode dizer por os portugue-
ses o que diz o salmista: In omnem terram exivit sonus sonus eorum, et in
fines orbisterrae verba eorum”.

A área territorial do português é muito dilatada. Poucas línguas do mundo


lhe levam vantagem neste ponto.

83. Leite de Vasconcelos, traçando o mapa dialetológico do idioma portu-


guês, classifica-lhe os dialetos em três grandes grupos:

1) Continentais, os existentes no continente europeu:

interamnense (Entre-Douro-e-Minho);

trasmontano (Trás-os-Montes);

beirão (Beira-Alta e Beira-Baixa);

meridional (sul de Portugal).

Dentro da mesma área dialetal, notam-se às vezes modificações regio-


nais, a que se pode dar o nome de subdialetos. O meridional, por exemplo,
compreende três subdialetos: o alentejano (Alentejo), o estremenho (Estre-
madura) e o algarvio (Algarve).

Ainda no continente europeu, mas fora de Portugal, é o português falado


em algumas cidades e aldeias fronteiriças, pertencentes à Espanha, tais

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

como: no concelho de Barrancos, extremo oriental do Alentejo, e em Oli-


vença, ao norte deste concelho (fala-se aí uma variedade de alentejano); em
Almendilha, na província de Salamanca (usa-se o português a par do espa-
nhol); em Ermisende, na província de Samora (a fala aí usada apresenta fenô-
menos comuns ao trasmontano), em San Martín de Trevejo, Eljas e Valverde
del Fresno, onde alternam o português e o espanhol.

2) Insulanos, os que são falados nas ilhas europeias:

açoriano (Açores);

madeirense (Madeira).

3) Ultramarinos, no ultramar:

dialeto brasileiro;

indo-português, que compreende:

dialeto crioulo de Diu;

dialeto crioulo de Damão;

dialeto norteiro (Bombaim, Baçaim, Caul etc.);

português de Goa;

dialeto crioulo de Mangalor;

dialeto crioulo de Cananos;

dialeto crioulo de Mãe;

dialeto crioulo de Cochim;

português da costa de Coromandel;

dialeto crioulo de Ceilão;

dialeto crioulo macaísta ou de Macau/

malaio-português:

dialeto crioulo de Java;

dialeto crioulo de Malaca e Singapura;

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História externa da língua portuguesa

português de Timor;

dialeto crioulo caboverdeano ou de Cabo Verde;

dialeto crioulo guinèense ou da Guiné;

dialetos crioulos do golfo da Guiné (Ilha de S. Tomé, Príncipe e Ano-Bom);

português das Costas d’África (Angola, Moçambique, Zanzibar, Mombaça,


Melinde, Quíloa).

É força convir que nem em todos esses lugares é o português língua ex-
clusiva. Em alguns pontos da África, Ásia e Oceania, fazem-lhe concorrência
séria os idiomas nativos. Sítios ou cidades há em que é somente por peque-
no núcleo de população, constituída de descendentes de antigos colonos
lusitanos.

Apesar da ação nefasta do tempo e da obra demolidora do homem, con-


tinua o idioma a resistir, em terras tão distantes, e a sua influência não se
apagará tão cedo da memória dos povos que o adotaram.

[...]

84. Em alguns desses lugares, apareceram os chamados crioulos. O primei-


ro que chamou a atenção dos estudiosos para a importância desses dialetos
foi Addison van Name. Num artigo intitulado “Contributions to Creole Gram-
mar” (1869-1870), ocupou-se exclusivamente dos crioulos francês, espanhol,
holandês e inglês. Sobre o crioulo português de Surinam fez Addison apenas
uma rápida alusão.

A mais antiga publicação sobre dialetologia crioula portuguesa, porém,


deve-se a E. Teza, que escreveu um trabalho intitulado Indoportoghese (1872),
em que tratou dos crioulos da Índia.
A propósito dos crioulos, assim se exprime Leite de Vasconcelos: “o estudo dos crioulos
tem muita importância, tanto no que toca à Psicologia da linguagem, como no que
toca à Filologia propriamente dita, porque eles revelam-nos operações notáveis do
desenvolvimento da fala humana, conservam por vezes formas obsoletas dos idiomas de
que descendem”.

São notáveis os trabalhos de Schuchardt, Adolfo Coelho, Gonçalves Viana,


Leite Vasconcellos e Rodolfo Dalgado acerca dos dialetos portugueses em
geral.

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa. Curitiba :
IESDE Brasil S.A. , 2012.

História da ortografia
TEXTO 09
da língua portuguesa

Desunião: acordos de 1943 e 1945


A escrita eterniza a mensagem e a própria língua. Enquanto a língua foi
uma criação espontânea e coletiva, e por isso mesmo toda língua é per-
feita, a escrita das línguas foi uma invenção pessoal e houve soluções de
diferentes qualidades. Parecem mais adequadas as escritas feitas com um
número relativamente pequeno de sinais: escritas alfabéticas.

As línguas indo-europeias comumente têm alfabetos que se derivam


do grego ou do latino. A escrita oficial com regras estabelecidas pelo cos-
tume ou pelo poder passa a ser uma ortografia, a que todos devem se
sujeitar.

O início dos anos 1980 viu crescer no Brasil e nos demais países de fala
lusitana o interesse por uma nova ortografia, dado que era penoso reco-
nhecer que a língua portuguesa se guiava na escrita por regras diversas:
havia a brasileira, obedecendo ao acordo de 1943, aceito por nós e recu-
sado por eles, e a portuguesa, obedecendo ao acordo de 1945, aceito por
eles e recusado por nós.

O prejuízo era maior para a literatura de arte e de ciência: os livros daqui


eram ruins para lá e os livros de lá eram ruins para cá.

O Ministério da Educação e Cultura escolheu em vários estados alguns


professores que dessem a sua opinião sobre o que seria viável e possível
para um novo acordo que permitisse uma única escrita para os países em
que a língua portuguesa era oficial. Para o estado do Paraná foram escolhi-
dos os professores Rosário Farâni Mansur Guérios (1907-1987) e Geraldo
Mattos Gomes dos Santos (1931).

O nosso interesse era total, por isso, nos reunimos várias vezes, dis-
cordamos, concordamos, discutimos ferrenhamente e chegamos a um
resultado surpreendente: até aquele momento, os acordos havidos eram
feitos para os estrangeiros, nunca para os nativos da língua portuguesa
nos seus sete países, o que implicava uma multidão de regras com suas

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

observações. Além desse equívoco de objetivo e alvo, os redatores do acordo


deixaram algumas derrapagens, como a da primeira observação à regra 12 que
lhes esqueceu completá-la, cabendo a quem escreve distinguir a primeira forma
verbal, que fica sem acento gráfico nenhum, e a segunda forma verbal, que fica
com acento agudo por ter sido omitida nessa observação infeliz, apesar de que
os dois verbos tenham o mesmo perfil tanto fonológico quanto morfológico:

delinqüir: tu delinqües / ele delinqüe / eles delinqüem [sem acento agudo].

desmilingüir-se: tu te desmilíngües / ele se desmilíngüe / eles se desmilín-


güem [com acento agudo].

E sobram ainda mais algumas palavras:

bilíngüe / monolíngüe / trilíngüe.

Os brasileiros seguiam um conjunto de 16 regras e 17 observações: como as


observações explicavam ou derrubavam alguma coisa das regras a que se ache-
gava, o fato lastimoso era que nos guiava na escrita um conjunto de 33 regras,
certamente demais para quem apenas se serve da escrita, sem ser professor de
língua portuguesa. Velho marinheiro da língua portuguesa, Geraldo Mattos con-
seguiu reduzir quase todos esses 33 casos de escrita a uma única regra com o
respectivo corolário, que serve também para outros sinais da escrita:

Regra:

Toda palavra escrita somente com letras tem uma única pronúncia, ressalva-
do o caso das vogais médias, que podem ser abertas ou fechadas.

Corolário:

Querendo outra pronúncia, é preciso marcá-la com o sinal conveniente.

Os exemplos sempre esclarecem mais que as regras. Neste caso, bem mais
que a regra. Têm a penúltima sílaba mais forte e se escrevem sem acento gráfico
as palavras que terminam da maneira seguinte:

levava / levavas / levavam / parede / paredes / imagem / imagens / caderno /


cadernos.

Têm a última sílaba mais forte e se escrevem sem acento gráfico as palavras
que não terminam como as citadas acima:

caqui / urubu / canal / lugar / capaz.

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História da ortografia da língua portuguesa

Querendo outra pronúncia qualquer, é preciso indicá-la com uma das marcas
seguintes, porque a falta de acento gráfico vai dar ao conjunto de letras uma das
pronúncias acima, ainda que esse conjunto de sons não exista na língua:

maça [maca] / mão [Mao: nome próprio] / médico [eu medico] / revólver [revol-
ver] / caí [cai] / baú [bau: inexiste na língua] / contem [contém / contêm] / argúi
[argui, como ergui] / argüi [argui, como ergui] / cará [cara] / bebê [bebe] / avôs [avos]
/ réis [reis] / ao léu [ele leu] / bói [boi].

Houve duas inutilidades nesse acordo de 1943, porque a pronúncia seria a


mesma com acento ou sem ele:

dêem / crêem / lêem / vêem e derivados.

o vôo / os vôos / eu vôo / eu perdôo.

E isso sem falar na palavra pêra, para distingui-la da preposição pera que
Camões empregava, pior ainda eram as palavras pólo e pôIo, para distingui-las
da palavra polo, contração da preposição por com o artigo definido, que os tro-
vadores usavam e desapareceu pouco mais de cem anos depois deles e bem
antes de Camões: é a terceira inutilidade.

Objetivo da escrita
Até agora nenhum acordo entre brasileiros e portugueses conseguiu dotar
a língua de uma escrita única por um motivo mais que ingênuo: todos pensam
que a escrita deve reproduzir a fala.

Ora, a escrita tem sons que podem ser reproduzidos com alguma fidelida-
de, tem uma melodia feita distintivamente de três intensidades diferentes, duas
quantidades, a longa e a breve, e a entoação com quatro notas distintivas. Des-
contada a pronúncia razoável dos sons e a possibilidade de distinguir frases de-
clarativas, interrogativas parciais, cuja resposta é uma das partes da frase, ou
totais, que indagam sobre a própria frase, a melodia da frase fica a cargo do
contexto que se baseia nos informes mínimos da pontuação. Frases que repe-
tem a mesma palavra permitem descobrir que a língua tem uma escala pelo
menos com quatro notas, que valem como se fossem dó [1], ré [2], mi [3], fá [4]
em um canto, mas essas quatro notas da língua têm uma distância bem menor
que o intervalo entre o mi e o fá ou o si e o dó. Segue uma pergunta com duas
possíveis respostas:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

É? – pergunta.

É, mas... – primeira resposta.

32

É. – segunda resposta.

Os falantes todos acertam essas minúcias porque dominam perfeitamente a


língua natal, mas a musicalidade desses quatro monossílabos nenhuma escrita
retrataria.

Essa reflexão que acabo de fazer permite concluir que brasileiros e portugue-
ses leriam de maneira diferente:

Ontem visitamos Antonio [esse é o nome que consta em sua certidão de


nascimento].

A primeira linha abaixo traz a pronúncia que os portugueses dariam e a se-


gunda a nossa:

Ontem visitámos António [vogais orais e abertas].

Ontem visitãmos Antõnio [vogais nasais e fechadas].

Da mesma forma, a palavra director da escrita portuguesa e a palavra dire-


tor da escrita brasileira seriam ambas bem pronunciadas na outra terra, sem
nenhum erro de consoante a mais ou a menos.

Por confundir escrita com pronúncia, Antônio Houaiss (1991, p. 13) pôde
subscrever o seguinte parágrafo (grifo do autor):
A unificação da ortografia não implica a uniformização do vocabulário da língua; pelo contrário,
respeitando-se as pronúncias cultas de cada país, passa-se a admitir duplas grafias, embora
as regras ortográficas sejam as mesmas para todos os países signatários do Acordo.

Evidente que é praticamente impossível haver as mesmas regras no caso de a or-


tografia ter de sujeitar-se às pronúncias de cada um dos países que falam a mesma
língua. O ideal seria que a escrita nunca permitisse identificar o país de origem do
texto, mas apenas o vocabulário e as peculiaridades sintáticas. Note-se que os gran-
des dicionários brasileiros trazem também as palavras típicas de Portugal.

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História da ortografia da língua portuguesa

Como a igualdade de direitos independe da quantidade populacional, dentro


em pouco poderemos ter escritas particulares de cada um dos outros sete países,
tomando para si os mesmos direitos que previamente portugueses e brasileiros
se arrogaram.

Necessidade de uma ortografia uniforme


A escrita de algumas palavras da língua portuguesa está documentada antes
do século XII nos textos escritos por funcionários dos cartórios: desconheciam os
termos latinos e os supriam pelos portugueses. A língua portuguesa entrou nos
tabelionatos somente no fim do século XIII com uma lei de 1290 que oficializa o
uso da língua portuguesa e se deve ao rei Dom Dinis (1261-1325), certamente
por ser também um excelente trovador.

Escrita arcaica
A escrita começa no século XII e vai até o começo do século XVI, quando se
inicia o período clássico em que o latim e o grego eram os modelos mais apre-
ciados de escrita e de léxico.

A primeira cantiga de amor, feita pelo trovador Paio Soares de Taveirós e


datada de 1189, já demonstra os princípios adotados nessa época e cito dois
versos de seus:

E, mia senhor, des aquel di´ ay!

me foi a mi muyn mal,

Bastam esses versos para nos deixar ver que a escrita se guiava pela pronún-
cia das palavras: ortografia fonética, que fica comprovada pela escrita da palavra
muyn.

Como não havia, entretanto, um poder central que determinasse uma das
possibilidades de escrita, havia escolhas diversas:

mha / mya [miá].

rei / rey / rrei //rrey.

oje / oye / oie.

mi / my.
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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

A primeira linha sempre me trouxe a ideia de que as letras h e y eram inter-


pretadas cada uma como o inverso da outra. A forma mia parece ter tido duas
pronúncias, como se depreende do número de sílabas de muitos versos:

mya [miá] – palavra monossílaba.

mia [mi-a] – palavra dissílaba.

A segunda forma é a origem do pronome feminino atual: minha. Houve nasa-


lação por influência da nasal inicial desse possessivo e da nasalação do pronome
oblíquo tônico:

mi > min > mim.

Desapareceram as consoantes geminadas do latim, que eram efetivamente


pronunciadas, a primeira implosiva, trancando a corrente de ar e mantendo a
boca na posição exigida pela consoante inicial, e a segunda explosiva, liberando
a corrente retida:

bellum > belu > belo.

Letra sem função auditiva era abandonada:

hodie > oie > oje.

Enquanto fosse possível manter as letras latinas, desde que interferissem na


pronúncia, eles as acolhiam na sua totalidade. Assim, as vogais nasais em fim de
palavra mantinham a consoante latina, como se nota neste verso de Ayras Nunes
(apud MATTOS, 1965, p. 2.2.2 f ), além de o verbo haver na escrita dessa época:

Non poden nunca nen un ben aver [não podem nunca nem um bem haver] ...

É bom a gente se lembrar de que nesse tempo o verbo haver tinha o senti-
do de ser dono de alguma coisa: ter. Ao contrário, o verbo ter significava o fato
de segurar alguma coisa, o que ainda agora se verifica nos seus derivados: ater,
conter, deter, reter. Ainda era vivo no tempo de Gil Vicente (1465-1536), como se
pode ler no início do seu bem humorado Todo Mundo e Ninguém (VICENTE, 1971,
p. 329), fragmento do Auto da Lusitânia, peça teatral perdida:

– Como hás nome, cavalheiro?

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História da ortografia da língua portuguesa

Escrita clássica
A escrita tem como data de início o aparecimento da primeira gramática da
língua portuguesa, escrita pelo padre Fernão de Oliveira (1507-1582), em 1536:
Grammatica da lingoagem portugueza. Note-se que o próprio título já trai os
olhos nas letras greco-romanas: grammatica, entretanto, é uma gramática ino-
vadora, que se queixa de todos imitarem os antigos.

Na realidade, foi o impacto da cultura greco-romana, assumida pela Renas-


cença, que começa nesse século e se espalha da Itália para o resto da Europa oci-
dental. Os autores clássicos introduziram na língua portuguesa uma quantidade
enorme de palavras:

alienar / besta / cálido / flama / geminar e muitas outras.

Promoveram adjetivos eruditos que desbancaram os nativos:

dedo > digital [matando o dedal].

cabeça > capital.

E introduziram o superlativo sintético do latim com suas formas irregulares,


porque o respectivo adjetivo veio para a nossa língua por via popular, ainda que
boa parte deles tenham também a forma regular como boníssimo, docíssimo,
magríssimo e pobríssimo:

Normal Superlativo Normal Superlativo

antigo antiquíssimo magro macérrimo


áspero aspérrimo mau péssimo
bom ótimo nu nudíssimo
célebre celebérrimo pobre paupérrimo
cru crudíssimo pulcro pulquérrimo
doce dulcíssimo sagrado sacratíssimo
livre libérrimo úbere ubérrimo

É triste que bons gramáticos, como Napoleão Mendes de Almeida (1911-


-1998) ou excelentes lexicólogos, como Antônio Houaiss (1915-1999), enxer-
guem o passado e se ceguem para a realidade da língua presente, falseando os
superlativos como o primeiro em sua gramática (ALMEIDA, 1965, p. 144) e o se-
gundo em seu dicionário (HOUAISS 2001, p. 433 - 1.812; 1.820) por indicarem os
seguintes exemplos de superlativos irregulares (tomo a ordem do dicionário):

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benévolo – benevolentíssimo

malédico – maledicentíssimo

magnífico – magnificentíssimo

A realidade é que esses três superlativos pertencem a outros adjetivos: be-


nevolente, maledicente e magnificente. O que se faz é tomar a forma de um
sinônimo regular para suprir a deficiência de uma dessas palavras. Assim, por
exemplo, seria ridículo dizer que a primeira pessoa do presente do indicativo do
verbo feder é: eu cheiro mal. Esse verbo é um defectivo da norma, porque nada
impediria de se dizer: eu fedo.

E o arremedo da latina continuou.

Sem se contentarem com essa enxurrada de novidades, passaram a escrever


as palavras portuguesas com a grafia das línguas grega e latina: a escrita foné-
tica do período arcaico se torna uma escrita etimológica no período moderno
da língua portuguesa, sendo derrotada somente no início do século passado,
quando os estudos de Gonçalves Viana contribuíram para que todos reconside-
rassem a necessidade de uma ortografia menos histórica e mais coerente, ainda
que respeitando a origem latina das palavras: Ortografia nacional (1904).

Antes desse livro, a própria escrita da palavra do título de livro de Gonçalves


Viana devia ser decorada trabalhosamente, como muitas outras de que exempli-
fico com uma única:

orthographia.

phthysico [tísico: tuberculoso].

O peso e a dificuldade de acerto de tais palavras era um evidente empecilho,


chegando uma dessas palavras ao exagero de três consoantes geminadas na
mesma palavra:

accommetter.

Pesquisa de Gonçalves Viana


O livro de Gonçalves Viana revolucionou a questão da ortografia da língua
portuguesa.

A Academia Brasileira de letras edita em 1907 as suas regras, que pouca gente
aceitou, continuando a maioria com a ortografia tradicional.
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História da ortografia da língua portuguesa

Em 1911 Portugal legaliza e oficializa o sistema proposto por Gonçalves


Viana, que o Brasil rejeita, entretanto. Até o momento presente, a escrita brasilei-
ra da língua portuguesa se pauta pelo Acordo de 1943 com uma ligeira alteração
em 1971, que elimina o chamado acento diferencial, sem considerar que todo
acento gráfico é diferencial. Com isso, a palavra forma passou a ser uma escrita
ambígua, como muitas outras, mas apenas essa dupla trazia problemas relevan-
tes pela semelhança de seus sentidos. Em sua A Criação Literária, um dos livros
de Massaud Moisés [1928], professor da Universidade de São Paulo, aparece esta
frase nas edições anteriores a 1971:

O soneto não é uma forma, mas uma fôrma.

O que fazer nas edições posteriores a 1971? O ideal seria adicionar um lem-
brete fora da palavra:

O soneto não é uma forma, mas uma forma [ô].

A lei de 1971 cautelosamente abriu uma exceção para distinguir a terceira


pessoa do singular do verbo poder no presente e no perfeito:

ele agora pode / ontem ele não pôde.

Acordo de 1990
Em 1990 veio finalmente outro Acordo, o primeiro entre os sete países em
que é oficial a língua portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Mo-
çambique, Portugal e São Tomé e Príncipe).

Ainda desta vez não se chegou a uma verdadeira unidade ortográfica por
se esquecerem todos de que a língua falada nada mais deve às línguas de que
vieram as suas palavras, enquanto a escrita tem ainda fortes raízes no passa-
do, sendo perfeitamente possível respeitar esses encargos de nascimento e ao
mesmo tempo irmanar a escrita dos agora oito países de língua portuguesa: a
escrita não ensina ninguém a falar.

Nenhum brasileiro devidamente alfabetizado iria estranhar a seguinte frase


com as formas portuguesa de duas palavras, diferentes das brasileiras, principal-
mente se olharmos as indicações do contexto:

A corrução e os corrutos lesam os direitos do povo inteiro.

Todos identificariam a corrupção e os corruptos. Entretanto, são poucas essas


palavras extremamente diferentes.
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As editoras brasileiras de livros didáticos que o Governo compra a intervalos


regulares têm o dever de atualizar seus livros para o ano que vem: o Acordo foi
aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente.

O Acordo de 1990, aprovado pelos sete países signatários, acolheu uma


grande parte das regras do Acordo de 1945, que o Brasil recusou, mas deixou
claro que ainda inexiste uma escrita comum porque o início já nos desilude,
quando lemos o segundo item da Base II das 21 Bases do Acordo:

2.º) As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais:

a) Em antropónimos/antropônimos originários de outras línguas e seus de-


rivados: Franklin, frankliniano;

Kant, kantisno; Darwin, darwinismo: Wagner, wagneriano, Byron, byroniano;


Taylor, taylorista;

b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados:

Kwanza; Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano;

E pode-se fazer duas perguntas intrigantes:

Por que a dupla das diversidades de escrita se inicia com a forma portuguesa?

O que se deve prestigiar: o passado da língua ou a realidade do presente?

Fazendo um ligeiro exame desse novo Acordo e examinando as vantagens e


as desvantagens.

O bom:

 Foi ótimo terem abandonado o trema, que a maioria dos brasileiros há


muito tempo deixara de usar, mas o seu desaparecimento provocou pelo
menos alguma dificuldade, quando se quer ler a palavra argui, que fica
dependente do contexto:

O professor agora argui o aluno.

Ontem eu argui esse mesmo aluno.

A dificuldade atinge também os casos de formas verbais que nunca tiveram


o trema e agora conflitam com as antigas formas tremadas. O verbo averiguar e
outros têm conjugações variantes e a segunda forma depende do contexto:

averíguo / averígues / averígue.


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averiguo / averigues / averigue [compare-se com ligues / ligue].

Averiguei [compare-se com cheguei].

Concedo, porém, que o contexto há de sugerir a leitura correta.

 Foi também ótimo terem abandonado o uso de acento diferencial em pa-


lavras escritas com as mesmas letras e com pronúncia diversa, deixando
ao contexto o encargo de indicar a verdadeira pronúncia para cada caso:

a sede [é] e a sede [ê] / eu troco [ó] e o troco [ô].

eu pelo e tu pelas [é] / ele pela e a pela [é] / o pelo e os pelos [ê].

ele para / a pera [ê].

 Foi ainda ótimo terem abandonado o acento circunflexo nos hiatos ee e


oo quando acentuados na primeira dessas vogais, uma vez que nenhuma
possibilidade existe de uma segunda pronúncia:

creem / deem / leem / veem.

eu perdoo / eu voo / o voo.

Evidentemente, outros pontos há que foram boas sugestões para melhorar e


simplificar a nossa escrita.

O mau:

Ao contrário, há casos que mereceriam maior atenção porque desmerecem


do resto desse Acordo.

 Um acordo ortográfico é uma lei em termos de língua e por isso, parece-


-me um verdadeiro absurdo um fim de regra como o seguinte:

Obs.: Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a


noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, man-
dachuva, pontapé, paraquedas, paraquedista etc.

Como um escrevente vai decidir que palavras nem parecem mais compostas
e portanto, se escrevem juntas, e sem hífen? Numa norma, ainda que linguagei-
ra, aquele etc. é um verdadeiro dislate, porque é uma porta aberta para irregu-
laridades sem meios de condená-las. Vem fatalmente a mesma pergunta que há
de preocupar muitos editores (a FTD já me perguntou):

– E o pára-brisa?

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– Fica parabrisa ou para-brisa?!

E o pior é que esse etc. aparece em mais de um lugar, o que me leva a citar
mais um, piorado com o emprego da expressão em geral, que por si mesma
alude a exceções:

Obs.: Nas formações com o prefixo co-, este aglutina-se em geral com o se-
gundo elemento mesmo quando iniciado por o: coobrigação, coocupante, coor-
denar, cooperação, cooperar etc.

Os verbos -quar e -quir ou -guar e -guir trazem problemas de leitura por terem
uma conjugação abundante:

apropínquo [cuo] / apropínqua [cua] / apropínque [cue].

apropinquo [cúo] / apropinqua [cúa] / apropinque [cúe].

delínquo [cúo] / delínqua [cúa] delíngue [cúe].

delínquo [cúo] / delinqua [cúa] delíngue [cúe].

enxáguo [guo] / enxágua [gua] / enxágüe [gue].

enxaguo [gúo]/ enxagua [gúa] / enxagüe [gúe].

averíguo [guo] / averígua [gua] / averígüe [gue].

averiguo [gúo]/ averigua [gúa] / averigüe [gúe].

desmelínguo-me [guo] / desmelíngua-se [gua] / desmelíngue-te [gue].

desmelinguo-me [gúo] / desmelingua-se [gúa] / desmelingue-te [gúe].

Nada, porém, que o contexto não remedeie.

Também me parece repreensível haver acentos facultativos, como o da pala-


vra forma com vogal tônica fechada ou o das formas verbais da primeira conju-
gação em que a primeira pessoa do presente do indicativo e a mesma pessoa do
pretérito perfeito.

Com essa liberdade, perde-se a uniformidade da escrita e além disso quase


sempre nós escrevemos para os outros e estes nunca podem adivinhar se as pa-
lavras sem acento gráfico tem o timbre aberto ou fechado. Melhor seria permitir
os parênteses depois da palavra de pronúncia dupla, quando necessário:

forma (ó) / forma (ô).

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Um acordo ortográfico nada tem que ver com a facilidade do ensino das
normas que emite, mas cabe-lhe apresentar um texto enxuto, o que este não
faz: importa haver regras positivas, nunca negativas.

Seguem duas das regras do Acordo:

BASE VIII

DA ACENTUAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS OXÍTONAS

1.º) Acentuam-se com acento agudo:

[...]
d) As palavras oxítonas com os ditongos abertos grafados -éi, éu ou ói, podendo estes dois
últimos ser seguidos ou não de -s: anéis, batéis, fiéis, papéis; céu(s), chapéu(s), ilhéu(s), véu(s);
corrói (de correr), herói(s), remói (de remoer), sóis.

BASE IX

DA ACENTUAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS PAROXÍTONAS


3.º) Não se acentuam graficamente os ditongos representados por ei e oi da sílaba tónica/tônica
das palavras paroxítonas, dado que existe oscilação em muitos casos entre o fechamento e a
abertura na sua articulação: assembleia, boleia, ideia, tal como aldeia, baleia, cadeia, cheia,
meia; coreico, epopeico, onomatopeico, proteico; alcaloide, apoio (do verbo apoiar), tal como
apoio (subst.), Azoia, hoia, boina, comboio (subst.), tal como comboio, comboias etc. (do
verbo comboiar), dezoito, estroina, heroico, introito, jiboia, moina, paranoico, zoina. (ACORDO
ORTOGRÁFICO, 1990)

A primeira é uma regra positiva e a segunda, negativa. Estas duas poderiam


perfeitamente desaparecer com um simples enxerto. Primeiro apresento o galho
onde há de entrar o enxerto:

BASE VIII

DA ACENTUAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS OXÍTONAS

1.º) Acentuam-se com acento agudo:

a) As palavras oxítonas terminadas nas vogais tónicas/tônicas abertas grafa-


das -a, -e ou -o, seguidas ou não de -s: está, estás, já, olá; até, é, és, olé, pontapé(s);
avó(s), dominó(s), paletó(s), só(s).

O enxerto entraria nessa letra a) e bastava esse ligeiro acréscimo para elimi-
nar uma regra da Base VIII e outra da Base IX:

a) As palavras oxítonas terminadas nas vogais tónicas/tônicas abertas gra-


fadas -a, -e, ou -o e os ditongos abertos com essas duas últimas vogais, segui-
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dos ou não de -s: está, estás, já, olá; até, é, és, olé, pontapé(s); avó(s), dominó(s),
paletó(s), só(s), anéis, batéis, fiéis, papéis; céu(s), chapéu(s), ilhéu(s), véu(s); corrói
(de correr), herói(s), remói (de remoer), sóis.

É claro que colocados no item das oxítonas, os ditongos abertos por si sós
nunca seriam acentuados graficamente nas palavras oxítonas.

Aqui, portanto, não se trata de alguma facilitação pedagógica, mas de uma


simplicidade de ciência.

Texto complementar

(HOUAISS, 1991, p. 10-13)

1. História externa da língua


Buscar a origem da língua que hoje falamos no Brasil, compreender sua
história externa, é encontrar a história de dois povos conquistadores: o
romano e o lusitano.

O Português originou-se da língua latina, a língua falada na região do


Lácio, na Península Itálica. Nesse local, em meados do século VIII a.C., foi fun-
dada Roma.

Dos romanos, destaca-se o caráter expansionista que levou as fronteiras


de suas terras para locais cada vez mais distantes.

No começo do segundo século de nossa era, o Império Romano abran-


gia a Península Ibérica, o centro-sul da Europa, o Oriente Próximo, o norte
da África.

Na parte ocidental da Península Ibérica, na região que hoje é Portugal,


habitavam os lusitanos. No século II d.C., os romanos submeteram esse povo
e impuseram-lhe sua língua, o Latim.

Através da fala dos soldados, por exemplo, o Latim vulgar é levado não
só para a Península Ibérica, mas espalha-se por todas as regiões dominadas.
Sobrepondo-se às línguas locais e usado por séculos, transforma-se no Ro-
manço ou Romance.

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Com a queda do Império Romano (século V d.C.), a unidade linguística


também se desfaz e começa a tomar forma o que se convencionou chamar
de línguas neolatinas: Português, Espanhol, Francês, Italiano, Romeno.

Aproximadamente à mesma época que o Português ganha status de


língua, Portugal surge como nação: o Galego-Português ganha feição literá-
ria no século XIII e Portugal delimita suas fronteiras em 1250.

Contudo, a partir do século XVI, Portugal (como Roma no passado) alar-


gará suas fronteiras, levando a língua portuguesa para regiões distantes.

Colônias se formam na África (Guiné, Moçambique, Angola), na Ásia (Cin-


gapura, Java), na América (Brasil), e a língua portuguesa espalha-se pelo
mundo (como antes acontecera com o Latim).

2. História interna da língua


Se a história de uma língua é traçada a partir do momento em que dela
encontramos registros escritos, o Português só terá história a partir do século
XIII. Antecedendo esse período, porém, é possível situar dois estágios evolu-
tivos: quando o idioma, embora falado, não possui registros – sua pré-histó-
ria – e quando as primeiras palavras começam a ser encontradas em textos
escritos – sua proto-história.

Esses três períodos podem ser assim delimitados para o Português:

Pré-histórico – das origens até o século IX. Sem documentação.

Proto-histórico – do século IX ao século XIII. Presença de palavras por-


tuguesas em textos latino-bárbaros (mistura de formas latina com formas
romances).

Histórico – do século XIII aos nossos dias. Textos totalmente escritos em


Português (ou Galego-Português).

Esse último período – o histórico –, por peculiaridades linguísticas que


apresenta, costuma ser dividido em duas fases: a arcaica, que vai do século
XIII ao XVI – momento em que se elabora, por exemplo, nossa primeira gra-
mática –, e a moderna, que vai do século XVI à atualidade.

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3. Fases da ortografia portuguesa


Analisando a ortografia do Português no período histórico da língua, que
vai do século XIII à atualidade, determinamos três fases:

A fase da ortografia fonética – do século XIII ao século XVI. Coincide com


o período arcaico da língua, quando os copistas procuravam escrever pau-
tando-se pela pronúncia. Exemplo: não se grafava letra não pronunciada: o
h inicial não existia.

No fim desse período, a influência latina se faz sentir, afastando a escrita


da pronúncia. Exemplos: nocte (por noite), fructo (por fruto).

A fase pseudoetimológica – do século XVI até 1904. Caracteriza-se pela in-


fluência greco-latina, advinda com o Renascimento. A escrita latina passa a
modelo da nossa, inserindo hábitos gráficos clássicos eruditos. Exemplo: rh,
th, ph e ch (som de k): theatro, chrystallino.

A escrita torna-se mais difícil e pseudo-entendidos determinam as histó-


rias das palavras, defendendo o emprego de grafias desusadas ou equivoca-
das. Exemplos: egreja, sancto, eschola.

No final desse período já existe uma busca de simplificação do sistema


ortográfico.

A fase simplificada – de 1904 até nossos dias. Está diretamente relaciona-


da ao trabalho que Gonçalves Viana publica em 1904, Ortografia Nacional,
que revela uma análise da história interna da língua bem como suas tendên-
cias fonéticas.

Os princípios de seu trabalho eram:

Eliminação dos símbolos de etimologia grega (th, ph, ch (com som de k),
rh, y): theatro-teatro; pharmacia-farmácia; estylo-estilo;

Eliminação de consoantes duplas, à exceção de rr e ss: chrystallino-


cristalino;

Eliminação de consoantes “mudas”: sancto-santo; septe-sete.

Regularização da acentuação gráfica.

Em 1911 o novo sistema tornou-se oficial por um decreto do governo


português.

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História da ortografia da língua portuguesa

4. A dupla ortográfica oficial


A ortografia brasileira seguiu de perto a de Portugal, mas, principalmente
na década de 1930, verificou-se grande número de discussões e propostas
ortográficas. A que está em vigor até hoje foi estabelecida em 1943 pela Aca-
demia Brasileira de Letras, e sofreu pequenas alterações em 1971.

Em Portugal, a ortografia vigente é resultado de um acordo elaborado e


negociado entre o Brasil e Portugal em 1945 e nunca ratificado pelo uso ou
por lei no Brasil.

Pode-se dizer que, embora as ortografias portuguesa e brasileira sigam


uma orientação semelhante (baseadas nas propostas de Gonçalves Viana),
não há uniformidade: cada país segue normas próprias.

A existência de duas grafias oficiais da língua acarreta problemas da re-


dação de documentos em tratações internacionais e na publicação de obras
de interesse público. Esse problema tornou-se ainda mais agudo a partir de
1975, com a independência política de São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau,
Cabo Verde, Angola e Moçambique, ex-colônias do Ultramar português. Am-
pliou-se para sete, portanto, o número de países que têm o Português como
língua oficial, formando uma comunidade de quase 200 milhões de pessoas
nos três continentes.

É natural que uma língua usada por população tão grande em localida-
des tão diversas apresente divergências linguísticas (fonéticas, morfológicas,
sintáticas, vocabulares etc.). O mesmo se pode dizer com relação à ortografia
oficial usada.

Portugal, o Brasil e os cinco países africanos de língua portuguesa reco-


nhecem que a inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas
dificuldades de natureza linguística, mas também de natureza política. Daí o
esforço desses países em efetivar o novo Acordo.

A unificação da ortografia não implica a uniformização do vocabulário


da língua; pelo contrário, respeitando-se as pronúncias cultas de cada país,
passa-se a admitir duplas grafias, embora as regras ortográficas sejam as
mesmas para todos os países signatários do Acordo.

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa. Curitiba :
IESDE Brasil S.A. , 2012.

TEXTO 10
Léxico da língua portuguesa

Sistema e norma
As línguas se formam quando há motivos internos e externos que obri-
gam uma de suas fases a interromper o seu equilíbrio e se transformar aos
poucos em outra modalidade de língua. Foi o que aconteceu com a língua
latina que teve o motivo interno da falta de coesão com a metrópole e o
externo com as invasões sucessivas de germanos e árabes que aceleraram
o processo de mudança.

Importa distinguir o sistema e a norma de uma língua, porque é um


impulso da norma que pouco a pouco pode ir alienando o sistema. E para
isso cedo a palavra a Santos em uma de suas teses (1986, p. 13-14):
A lógica de uma língua é a coerência do seu sistema, cerceada pelos impositivos da
norma. Se alguém quiser obedecer unicamente à lógica, dois perigos o espreitam:

a) O sistema da sua própria língua nativa lhe parece lógico, porque cada um raciocina
em termos dessa língua. Efetivamente, o sistema da língua é lógico, porque as
irregularidades pertencem à norma. A criança percebe mais cedo a coerência do sistema
que a excepcionalidade da norma, mas o esforço dos pais a leva irresistivelmente para
os trilhos da norma.

b) O sistema é apenas o esqueleto da língua, porque apresenta somente as linhas


fundamentais de suas possibilidades. Se alguém se guiar estritamente pela lógica,
certamente não incide em erro nenhum, mas se afasta de todos os outros falantes.

Foi também o que aconteceu já dentro da língua portuguesa, que tinha


um sistema, que é o seu esqueleto da língua, e uma norma, que é o corpo
que cobre esse esqueleto, ambos bem formados entre os séculos IX e X.

Por algum motivo houve uma rápida evolução fonológica que rompeu
o equilíbrio dessa fase e implicou uma nova forma de língua: a dos trova-
dores, em que, entretanto, já se notam detalhes que levariam a língua ao
século XVI.

Entre o fim do século XV e o começo do XVI aconteceu uma evolução


espontânea que modificou todas as formas verbais da segunda pessoa do
plural em que havia a consoante dental antecedida de vogal oral. Foram
somente as formas verbais as atingidas:

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[vós] paredes > parees > pareis [quero que pareis].

[as] paredes [mantida: é substantivo].

parades > paraes > parais.

parávades > parávaes > parávais > paráveis.

Apenas os infinitivos monossilábicos resistiram numa contraevolução moti-


vada, a fim de se evitarem formas iguais às da segunda pessoa do singular ou
parecidas com ela:

sodes > soes > sois [aceita com singular diferente: tu és].

rides > riis > ris [recusada pelo singular igual: tu ris]:

portanto, vós rides.

A língua grega é um exemplo para o mundo, pois conseguiu manter inter-


namente uma estabilidade: os gregos de hoje ainda compreendem a língua de
três mil anos atrás, o que certamente se deve ao natural orgulho desse passado.

Bem diferente deve ter sido a afetividade entre o cidadão do Império Romano que
adotou a língua do vencedor e o centro histórico de onde lhe veio a nova língua.

Dada a sabedoria política romana, pouco importava ao povo romano a origem


do cidadão, do Lácio ou de alguma das províncias, que era tratado conforme a sua
capacidade intelectual. Assim, Lucius Annaeus Seneca (Córdoba 60 a.C. – Roma
39 d.C.) – Sêneca, nascido na Hispânia, foi senador romano e um dos conselheiros
de Lucius Domitius Claudius Nero (37-38 d.C.): era filósofo e bom orador.

Entretanto, já que nem todos podem ser geniais, era bem menor que a grega
o apego sentimental entre a província e Roma.

Portugal seguiu esse prudente procedimento romano.

Formação dos sons


Toda língua tem um conjunto de sons que constitui os elementos, que juntos
produzem a palavra e o falante os produz com o apoio da intensidade, que distingue
palavras pela força posta sobre uma das sílabas, da tonalidade, que distingue frases
pelas notas musicais da língua, e da quantidade, que distingue frases interrogativas
e exclamativas de sons iguais pela demora na sílaba tônica da palavra interrogativa:

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A intensidade distingue as palavras de sons iguais:

fábrica.

fabrica.

A tonalidade distingue a frase declarativa da interrogativa:

Vieram?

Vieram.

A quantidade distingue a exclamativa da interrogativa:

Quantos vieram! [primeira sílaba longa: Nossa, quanta gente que veio.]

Quantos vieram? [primeira sílaba breve: É preciso contar o número deles.]

O latim era falado com sílabas longas e breves, o que permitiu a Virgílio (70-19
a.C.) indicar em sua epopeia Eneida o galope de um cavalo que parecia nem
tocar o chão, porque a palavra quatit [pisa] tem duas vogais brevíssimas como
que faltando tempo para encostar a pata no chão, além de acentuar com as síla-
bas longas a marcha regular desse animal:

Quadripedante putrem sonitu quatit ungula campum [o casco pisa o campo


podre com um som de quatro patas].

O verso tem 17 sílabas em que ocorrem 14 consoantes oclusivas que indicam


o ruído seco dos cascos do cavalo na terra: um terceiro recurso que entra com
um significado subliminar, além da leveza da marcha e de sua regularidade.

Além desse potencial, serviu desde cedo para os trocadilhos, como um reco-
lhido pela crítica da História, que narra a vingança feita pelos Metelos, poderosa
família romana, contra o poeta Gnaeus Naevius (270-201 a.C.), que os atacava com
seus versos. Uma vingança encomendada a outro poeta, em que havia este verso:

Dabunt malum Metelli Naevio poetae [Darão uma surra / uma maçã os Mete-
los a Névio, o poeta].

A língua portuguesa pode fazer coisa parecida usando as vogais medias em


palavras homógrafas [mesmas letras] e simultaneamente heterófonas [outros
sons], como forma [ó] e forma [ô] / sede [é] e sede [ê]:

fazer uma pessoa entrar em forma.

dar a uma pessoa uma sede maior que dois andares.

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A partir do século V, a quantidade desapareceu e a poesia era feita com o


mesmo número de sílabas em cada verso terminando com uma sílaba forte e
adotando a rima para suprir a musicalidade perdida. Segue a primeira estrofe
de um belo poema sobre a Eucaristia, com melodia em cantochão, em que os
versos ímpares têm oito sílabas com palavras finais paroxítonas [sacramentum]
e os versos pares sete sílabas com palavras finais oxítonas [cernuí], todos heptas-
sílabos na contagem moderna:

Tantum ergo sacramentum Assim, a tão grande sacramento


Veneremur cernui Honremos com a cabeça abaixada
Et antiquum documentum E o velho ensinamento
Novo cedat ritui Ceda o lugar à nova cerimônia religiosa.
Præstet fides suplementum Preste a fé uma ajuda
Sensuum defectui. À falha dos [nossos] sentidos.

As línguas românicas criaram novos sons consonantais, mas diminuíram o


número das vogais: de dez da língua latina para sete na portuguesa (a, é, ô, i, ó,
ô, u) e cinco em quase todas as outras línguas românicas.

Eu vejo, contudo, um grande ganho na troca da quantidade vocálica pela in-


tensidade: pois enquanto a poesia greco-romano tinha só ritmos binário e terná-
rio, a neolatina passou a ter ainda o quaternário.

Dessa nova possibilidade se valeu magistralmente Camões para um recurso


estilístico duplamente valioso por ser fônico e semântico, num de seus versos; o
verso a seguir:

De África tem ma / rítimos assentos

Formação das palavras


Toda língua tem um conjunto de palavras que pertencem a duas categorias
diferentes: gramaticais e lexicais.

Palavras gramaticais
As palavras gramaticais se distinguem por terem um significado inteiramente
dentro da língua, serem em número reduzido, permitirem a sua listagem comple-
ta feita sem muita dificuldade e funcionarem como ferramentas que trabalham

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Léxico da língua portuguesa

para outras palavras de que dependem para existirem: mais que ferramentas,
constituem a argamassa dos muros e das paredes da fala, que sem elas caem.
Dois exemplos em que a palavra do meio é gramatical:

Vou a Londrina.

Venho de Londrina.

A diferença de significado é fácil de reconhecer, desde que se pense no que


distingue cada um desses fatos:

... a Londrina: Londrina está à minha frente.

... de Londrina: Londrina está às minhas costas.

Esses dois significados ocorrem costumeiramente no emprego dessas pala-


vras, embora os dicionários procurem caminhos quase sempre gramaticais para
de algum modo interpretarem o que indicam dentro de uma frase essas e outras
palavras. A melhor maneira é sempre encontrar a essência do significado:

Estou a uma janela olhando a rua [estou à frente da janela].

Morreu de febre [a febre está às costas da morte].

Os dicionários e a gramática de uma língua têm o dever de apresentar a lista


completa dessas palavras. Numa definição simplista e simplória, mas razoável
para o entendimento, eu diria que as palavras gramaticais nunca aparecem em
foto ou filme:

Eu marcho por ruas desertas.

Fotos ou filmes mostrariam somente o seguinte:

uma pessoa [o falante].

uma faixa extensa de terra [rua].

ausência de gente [deserta].

Sobram duas palavras gramaticais, que fotos e filmes nunca conseguem


captar, ainda que seja genial o operador dessas máquinas:

eu [pessoa que está falando].

por [entre o início e o fim de alguma coisa].

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As palavras gramaticais opõem uma resistência muito grande a serem postas


de lado ou trocadas por outras.

Palavras lexicais
As palavras lexicais se distinguem por ter um significado no mundo, ou seja:
um significado fora da língua, indicando alguma coisa que pertence ao mundo.
A maioria absoluta das palavras são lexicais e pertencem a uma lista que nunca
se pode enumerar de maneira exaustiva por vários motivos:

 Nem todas as palavras aparecem nos dicionários;

 Novas palavras se formam com facilidade;

 Há palavras regionais ou locais e mesmo pessoais;

 Podem desaparecer ou acabarem trocadas por outras.

A gramática de uma língua pode e deve apresentar exemplos de algumas


dessas palavras, dado que é impossível enumerá-las todas.

O fato é que toda língua é simultaneamente um instrumento a sério e um


instrumento de brincadeira. Infelizmente, poucos são os professores que levam
seus alunos a descobrirem como se pode brincar com a língua: as crianças brin-
cam, mas a escola mais tarde as inibe de criar.

Segue um exemplo hipotético de que resulta a criação de uma nova palavra


puramente pessoal.

Uma pessoa recebe de outra um favor extraordinário e lhe responde pela


rede achando que uma palavra seria inteiramente insuficiente para se mostrar
grato. E termina o seu texto destarte:

Obrigado, penhorado, agradecido: OPA... Acabei de inventar um sexto sinônimo


para me mostrar reconhecido...

De fato, há pelo menos cinco palavras que dizem da nossa dívida por um
favor recebido de outrem: agradecido, grato, obrigado, penhorado, reconheci-
do. O sexto é recém-inventado: opa...

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Léxico da língua portuguesa

Origem do nosso vocabulário


O léxico de uma língua é formado por três camadas.

Uma camada de palavras extremamente antigas: é a base da língua.

Uma camada de palavras recentes e conhecidas, provindas do confronto com


outras línguas: são os empréstimos, voluntários ou forçados, numa evolução que
vem de fora.

Uma camada de palavras criadas com os recursos próprios da língua, enri-


quecimento por meio de uma evolução interna.

As palavras gramaticais e as lexicais constituem o léxico de uma língua, acom-


panhando e marcando a história dela.

Há um mínimo linguageiro que permite compreender a fala de outra pessoa


e pedir-lhe que explique o que fica sem ser entendido: é o conjunto de palavras
gramaticais e lexicais que se repetem dia por dia em casa de família. Ouvindo as
frases e presenciando as situações, a criança chega a descobrir a língua, primeiro
entendendo o que dizem e depois interferindo com as suas palavras para obter
o que quer.

Palavras gramaticais
As palavras gramaticais são as mais velhas da língua e constituem um legado
que resiste mais fortemente aos azares da história do povo que a fala. Efetivamen-
te, sobrevindo uma língua vencedora, a língua do povo vencido tem uma pro-
teção natural contra os empréstimos gramaticais, porque estes acompanharam
todas as diversas formas que a língua teve ao longo dos séculos: é por esse motivo
que as línguas eslavas, latinas e germânicas têm um pequeno conjunto de pala-
vras de origem comum que lhes chega de uma primitiva língua indo-europeia: os
pronomes, por exemplo.

A língua portuguesa perdeu os casos, que se reduziram a dois: o nominativo


e o acusativo. Em seguida, por pressão de muitas palavras que no plural tinham
iguais esses dois casos, também o singular os igualou. Apesar disso, algumas
palavras gramaticais os retiveram, ainda que de maneira bastante irregular:

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Nominativo ele ela que


Genitivo cujo
Dativo lhe lhe
Acusativo o a
Ablativo sigo / consigo sigo / consigo

A palavra sigo e também as palavras migo, tigo, nosco e vosco eram comuns
entre os trovadores, mas as formas evoluídas das latinas mecum, tecum, secum,
nobiscum e vobiscum diziam pouco sobre a ideia de companhia e o povo foi
levado a crer que eram sinônimos de mim, ti, si, nós e vós, passando a reforçar a
ideia do ir junto: comigo, contigo, consigo, conosco e convosco.

E nem ligaram para a homonímia da terceira pessoa:

tem consigo / eu consigo...

Palavras lexicais
As palavras lexicais se parecem com as roupas: tem roupa de dormir, tem
roupa de ir para a praia, tem roupa de ir para a escola, tem roupa domingueira
e tem roupa de gala. As roupas se rasgam e a gente remenda, envelhecem e a
gente aposenta, vai correndo a uma loja para comprar outra ou a uma alfaiataria
para tirar as medidas e mandá-la fazer.

As palavras, também.

Esta cantiga paralelística de Pero Anes Solaz (apud SANTOS, 1965, p. 71) do
Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, é um bom exemplo:

Eu sey la dona velida [linda]

que a torto foi ferida, [por erro]

ca non ama. [porque]

Eu sey la dona loada

que a torto foi malhada,

ca non ama.

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Léxico da língua portuguesa

A cantiga paralelística tem sempre um par de estrofes que se distinguem


apenas pela troca de rima e de palavras de sentido igual ou parecido: velida e
loada / ferida e malhada.

A imagem das roupas confere:

velida – envelheceu e morreu.

ca – envelheceu e morreu.

la – foi remendada.

loada – foi remendada.

Além disso, cada lugar pode ter palavras próprias que podem viver longe-
vas ou morrer na praia. Em Curitiba no ano 1954, existiam as palavras dindo
[dindinho, no Rio] e dolé [picolé, no Rio]: a segunda não existe mais. Entretan-
to, a palavra vina, que em Curitiba substitui a palavra salsicha, continua sendo
usada pela cidade inteira, ainda sem merecer a entrada em dicionários da língua
portuguesa.

Com muita facilidade as línguas recebem as novas palavras lexicais graças a


duas circunstâncias:

A língua não tem palavra para alguma coisa de novo.

O prestígio de uma cultura contagia a língua e a torna atraente para outras


comunidades linguísticas. Até a metade do século passado era a francesa.

Agora, é a inglesa, mais pela nossa precisão que o seu inegável prestígio.

O curioso é que os dois grandes dicionários da nossa língua – Novo Aurélio e


Houaiss – tenham acolhido um empréstimo do Esperanto: a palavra samideano
[ao pé da letra: pessoas que tem as mesmas ideias], termo aplicado a todos os
esperantistas, comum na fala entre os samideanos brasileiros, em que consta
ainda um sentimento de solidariedade internacional e um horror à discrimina-
ção linguística.

A língua arcaica perdeu muitas palavras, abandonadas pelos clássicos:

adur [dificilmente] / al [outra coisa] / ca [porque] / chus [mais] / coita [sofrimen-


to por amar sem ser amado: o derivado coitado sobrevive...] / eire [ontem] / ende
[disso] / endurar [suportar] / mandado [recado] / mentre [enquanto] / nojar [aborre-
cer] / punhar [lutar] / senlheiro [solitário] / velido [lindo].

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Muitas tiveram alterada a sua forma:

asconder [esconder] / fremoso [formoso] / frolido [florido] / leyxar [deixar] / moirer


[morrer] / peyor [pior.]

Entretanto, o mais curioso é que as palavras mortas podem ressuscitar. Em


uma de suas respostas às críticas do professor Ernesto Carneiro Ribeiro, Rui Bar-
bosa (1849-1923) escrevia em sua Réplica, de 1904 (apud MORAIS, 1950, p. 171):
VOCÁBULOS DADOS POR ARCAICOS EM DIVERSAS ÉPOCAS. – [Passavam por obsoletos] para o
cronista del rei D. Duarte, quando estampava a sua Origem e Ortografia da Língua Portuguesa,
os seguintes vocábulos [arranjo meu]:

Acoimar Aquecer Esmerar Possança


Afâ Arrefecer Estado Puridade
Aguçoso Atroar Falha Quebrantar
Albergar Aturar Finado Sagaz
Aleive Confortar Grado (vontade) Sanha
Alfageme Covilheira Grei Sanhudo
Algo Desempachar Haveres Talante
Algures Doesto Jogral Tanger
Alhures Encalçar Lidar Ufano
Vindita

E ainda continua com duas outras listas de arcaísmos fajutos (apud MORAIS,
1950, p. 171-173):
a primeira, de Francisco José Freire em 1765, com os arcaísmos acatar, amamentar e córrego
num total de 89, a maioria comuns hoje.
a segunda, de Antônio das Neves Pereira em 1793, com os arcaísmos embeber, enxergar e
ornamentar num total de 21, a maioria também comuns hoje.

O primeiro deles não se esmerava, o segundo, a mãe não o amamentou e o


terceiro não enxergava nada.

Justamente por serem roupas das nossas ideias, a atração de uma nova moda
pode levar o povo a adotá-la. Foram quase todas as palavras trazidas pelos inva-
sores ou tomadas pelos clássicos.

Os germanos foram os primeiros que deixaram palavras no romanço. Aponto


algumas:

 Substantivos: acha / arauto / arreio / agasalho / albergue / aleive / anca / aspa


/ banco / banho / brasa / dardo / escuma / elmo / espeto / estaca / espora / es-
tribo / fralda / feudo / feltro / galardão / ganso / garbo / grupo / guerra / guia /
guisa / lasca / leste / marco / norte / oeste / roupa / saga / sopa / sul / trégua.
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Léxico da língua portuguesa

 Adjetivos: branco / fresco / liso / morno / rico / ufano.

 Verbos: adular / agasalhar / ataviar / brandir / britar / brotar / esgrimir /


espiar / escarnecer / estampar / guardar / roubar / talar / tirar / trepar.

Em seguida, os árabes dominaram os povos ibéricos por longos séculos e


assim deixaram na língua portuguesa uma quantidade enorme de palavras
porque o contato foi longo e intenso. Até poucas décadas atrás tinha sido o
único a dar ao português uma interjeição:

Oxalá ele venha me visitar!...

Agora existem duas:

tchau [do italiano] / o. k. [do inglês].

A pequena diferença é que as duas mais novas podem ir a outras classes gra-
maticais, a primeira tornando-se um substantivo e a segunda um advérbio:

dar um tchau / estar tudo o. k.

Quase quatro quintos dos empréstimos árabes foram feitos com substantivos
precedidos pelo artigo definido al. Na lista a seguir começam pela primeira letra
do nosso alfabeto 89 das 111 palavras:

açacal, açafrão, acepipe, acéquia, acicate, açofeifa, açorda, açucena, adail,


adarga, adelo, aduana, aduar, adufe, alarde, alarido, alarife, alarve, alaúde, alava-
raz, albufeira, alcachofra, alcáçova, alcaide, álcali, alcatéia, alcatifa, alcavala, álcool,
alcouce, alcova, alcunha, aldeia, alecrim, aletria, alface, alfafa, alfageme, alfaiate,
alfanje, alfaqueque, alfaqui, alfarrábio, alfazema, alfeire, alféloa, alfena, alferce,
alferes, alforra, alganame, algar, algazarra, álgebra, algema, algibebe, algodão,
alicate, alifafe, aljava, aljube, almadia, almafre, almécega, almenara, almocadém,
almocreve, almofada, almofariz, almogavar, almôndega, almotacel, almotolia, al-
moxarife, almuadem, alqueire, alvanel, alvará, alvíssaras, anadel, anafil, aranzel,
armazém, arrabalde, arrabil, arrais, arroba, arsenal, atabale, azar, azeviche, azule-
jo, baldio, benjoim, bolota, borzeguim, cádi, cáfila, califa, cifra, emir, enxaqueca,
forro, gaita, garrido, gusta, javali, mesquinho, quintal, tambor, xarope.

Por fim, a criação com os recursos próprios de uma língua, um bom exem-
plo se encontra na revista Veja, em que se cria uma nova palavra para o nosso
idioma: hidropopulismo (ASSUNÇÃO, 2008, p. 78). Referia-se ao recém-eleito pre-
sidente do Paraguai que quer mudar o contrato sobre a Usina de Itaipu e cobrar
mais do Brasil pelo excedente de energia que nos vende.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Esse é um exemplo de palavra criada por composição, mas a língua portu-


guesa é especialmente fértil em tirar uma palavra de outra por um processo
derivacional.

Linha de derivadas é uma cadeia em que a palavra anterior gera a posterior


e assim sucessivamente. A mesma palavra pode produzir mais de uma dessas
linhas de derivadas:

fundo > fundar > fundação > fundacional.

fundo > fundar > fundado > fundador.

A derivação é um processo mais pródigo que a composição, embora esta


tenha um processo de verbo e objeto extremamente comum:

guarda-chuva / guarda-louça / guarda-sol / mata-burro / mata-piolho.

O regionalismo pode ser uma palavra própria, um significado próprio de pa-


lavra portuguesa ou o aportuguesamento de empréstimo usado em outro lugar
na sua forma original:

Bidê – papagaio em forma de caixa, antigamente comum em Curitiba e agora


desaparecido o brinquedo e também o seu nome.

Emeio [lida em Aracaju: correio eletrônico] – e-mail.

Mate – chimarrão quente.

Vina [da expressão alemã wiener Wurst – linguiça de Viena]: salsicha.

Texto complementar
Antônio Houaiss foi tradutor, crítico, escritor, lexicógrafo, diplomata, membro
da Academia de Ciências de Lisboa, presidente da Academia Brasileira de Letras
e ministro da Cultura. Faleceu em 1999, deixando quase completa a edição do
notável Dicionário Houaiss. O presente texto, com que homenageamos o autor,
é originalmente uma conferência para o Centro de Estudos Árabes da USP em
1986. Transcrição e org. de Cecília N. Adum.

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Léxico da língua portuguesa

As projeções da língua árabe na língua portuguesa


Quando se considera a influência árabe no português, o único aspecto
que ressalta é o da contribuição lexical, porque, realmente, não há razões –
não houve, pode ser que venha a haver – para suspeitar que qualquer coisa,
na área do sistema do árabe para o português, haja aparecido. Admitiu-se,
durante algum tempo, que certa aspiração que o espanhol apresenta pudes-
se, por acaso, haver provindo da forte influência árabe. Mas, para a língua
portuguesa, essa hipótese jamais foi formulada. Na área da sintaxe, nunca
se admitiu, em hipótese alguma, que algo pudesse haver vindo do árabe,
nem para o português nem para o espanhol. O único arabismo ou semitis-
mo sintático que nós temos é, evidentemente, de influência bem tardia e
extra-contato. É o caso de Rei dos Reis, Cântico dos Cânticos, um tipo sin-
tático tão integrado dentro da língua árabe, dentro do hebraico, dentro do
aramaico, que, no Ocidente, passou a existir como uma expressão de torneio
sintático sui generis, mas extensiva a todas as línguas de cultura ocidental.
Não se trata, por conseguinte, de um arabismo específico do árabe para o
português. É fato estilístico, talvez até posterior àquele contato, talvez até
expressão estilística de língua de cultura altamente elaborada.

Então, entre o árabe e o português, os únicos elementos evidentes cons-


tituem uma relação do tipo lexical. Entretanto, a partir do momento em que
passamos a preocupar-nos muito com o trânsito de uma língua natural para
uma língua de cultura, imediatamente começamos a ver que algo se havia
passado nesse entrelaçamento das línguas de cultura, da árabe e da cristã;
algo, aliás, de transcendente importância se havia passado na Península Ibé-
rica. Porque, quando fazemos a análise do vocabulário do português como
língua natural, vale dizer, quando fazemos a análise da emergência daquele
sistema românico que se foi, aos poucos, transformando numa das línguas
românicas, temos que, como termos básicos, o acervo primitivo do português
não vai além de três mil a três mil e duzentas palavras. E por que não vai? Por
tratar-se, efetivamente, de uma língua natural. Em que sentido era língua na-
tural? No sentido de que era uma língua com que não se pretendia fazer as
elaborações de cultura que somente a instituição da escrita iria permitir.

Quando estudamos filogeneticamente os sistemas de língua, reconhece-


mos que uma língua não é melhor que outra, nem mais potente que outra,
nem mais impotente que outra, enquanto a comparação se refere ao sistema.

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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

Como sistema, sabemos que as línguas se regulam com cerca de quinhentas a


mil regras; que elas têm um repertório fonemático limitado, extremamente limi-
tado, convenientemente limitado, economicamente limitado, para, mediante
combinatórios insignificantes chegar a combinações significantes de extrema
riqueza. Isto que ocorre com uma língua ocorre com as mais de dez mil línguas
ainda existentes no mundo. Língua por língua, todas as línguas se equivalem;
contudo, é visível que, no mundo contemporâneo e no mundo do passado,
nunca houve equivalência de línguas. Houve línguas que puderam transmitir
poder, que puderam transmitir cultura, que puderam transmitir ideias, que pu-
deram transmitir humanidade, muito mais intensamente que outras línguas.

O que houve de diferencial entre essas duas modalidades de línguas foi


o fato fundamental de que, em dado momento, a história perdulária do pas-
sado passou a ser uma história economizada. A partir do instante em que
a escrita se instituiu, as línguas deixaram de ser línguas morituras, capazes
de morrer. Passaram a ser línguas eternizadas. As estatísticas lexicais reve-
lam a diferença das línguas. Há línguas naturais, ágrafas – que ainda existem
em grande maioria na Humanidade – e nunca apresentam um repertório
superior a três mil vocábulos. À medida que elas passam a ser línguas com
mnemônica institucionalizada, como foi o celta, suspeita-se que esse reper-
tório de três mil palavras possa passar para quatro, cinco, seis, até sete mil
palavras. A partir do momento, todavia, em que essas palavras são escritas,
elas se transformam em palavras que ficam incorporadas na memória viva
da coletividade. É fenômeno interessante de consignar, e verificável nas lín-
guas do passado que tiveram alta literatura: o sânscrito está no caso; o latim
está no caso; o grego, evidentemente, está no caso; o hebraico está no caso,
e o árabe está no caso.

Quase todas essas línguas, ao cabo de um milênio de existência como


línguas escritas, acusavam um estoque de quarenta mil palavras, ainda vivas,
no sentido de que a elaboração cultural dessas línguas se permitia o luxo de
reportar-se a essas quarenta mil palavras.

Esse fenômeno passou a ter um significado ainda mais importante


quando começamos a ver que a história do Homem não se repete. Embora
metodologicamente todas as línguas de cultura atingissem um ponto de sa-
turação de quarenta mil palavras, em torno do fim do século XVIII e início
do século XIX – e a exemplificação é óbvia, quando se faz a lexicografia do
francês, do espanhol, do inglês, do português, do hebraico, a lexicografia das

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.

Contexto sócio-histórico TEXTO 11


e linguístico do Brasil colonial

Início da colonização
O Brasil começa no século XVI. O cultivo da terra brasileira começou
em 1530 quando Martim Afonso de Sousa (1500-1564) e seu irmão Pero
Lopes de Sousa (talvez entre 1497-1539) vieram para cá numa expedição
de cinco navios e quatrocentos homens.

Martim Afonso de Sousa ainda estava no Brasil quando o rei Dom João
III (1502-1557) aproveitou a experiência das capitanias hereditárias usadas
na Ilha da Madeira: a ele couberam a capitania de São Vicente e a do Rio de
Janeiro. Nunca trabalhou nelas, deixando-as completamente abandona-
das. Como um todo, as capitanias fracassaram porque o país era imenso,
se comparado aos 794 quilômetros quadrados do arquipélago da Madei-
ra. Duas apenas prosperaram: a de São Vicente, onde havia portugueses
trabalhando ainda que sem a presença do donatário, e a de Pernambuco,
do donatário Duarte Coelho Pereira.

A vantagem maior das capitanias hereditárias foi a proteção que o lito-


ral brasileiro recebeu, porque todas elas eram faixas de terra de 50 léguas
ao longo das costas brasileiras, com todo o respeito devido ao Tratado de
Tordesilhas, cidade castelhana onde se firmou o acordo em 7 de junho
de 1494.

Cada capitania tinha 278,760 km de extensão no litoral e as doze co-


briam juntas uma extensão de 3 343,200 km do litoral brasileiro. Era pre-
ciso ser muito rico para poder arcar com tamanha extensão de terras e
esse foi o motivo de vários donatários desistiram de iniciar os trabalhos
de ocupação, entre eles Martim Afonso de Sousa, que recebeu outros en-
cargos do rei, e João de Barros, que recebeu junto com Aires da Cunha as
capitanias do Rio Grande do Norte e o Maranhão. O primeiro mandou dois
navios em 1535, mas apenas um chegou e vistoriou as terras. Em 1555
houve uma segunda tentativa, mas os prejuízos foram grandes e tudo foi
abandonado.

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O Governo Geral é implantado em 1549 devido ao fracasso das capitanias he-


reditárias: Tomé de Sousa é o primeiro governador-geral (1549-1553) e também
fundador da cidade de Salvador, a primeira capital do Brasil. Foi seguido por
Duarte da Costa (1553-1556) e Mem de Sá (1557-1572). Logo depois houve por
um único mandato um governador para o Norte e outro para o Sul: respectiva-
mente, Manuel Teles Barreto (1573-1578) e Antônio de Salema (1574-1578).

Multilinguismo dos primeiros dois séculos


O nosso primeiro século viu o trabalho político dos governadores-gerais, o
trabalho evangélico dos beneditinos, dos dominicanos, dos franciscanos e prin-
cipalmente dos jesuítas, que mais que todos se interessaram pelos moradores
indígenas, pela política da posse da terra e simultaneamente pela moralização
da colônia e pela educação de todos, índios e brancos.

Acontece ainda que os portugueses encontraram aqui outras gentes e outras


línguas. Entre elas, a mais falada era a da família tupi-guarani, uma língua linda
e doce, porque praticamente tinha um único tipo de sílaba: consoante e vogal,
além de sílaba formada somente pela vogal, o que não parece ser outro tipo. É
uma família com mais de 50 línguas, mas a falada em toda a costa brasileira era
a dos tupinambás, mais conhecida como língua tupi. Havia poucas consoantes,
mas as cinco vogais orais e as cinco vogais nasais, além de uma sexta oral, davam
a musicalidade da frase.

Essa sexta vogal era muito penosa para a fala dos portugueses e brasileiros,
porque a nossa língua não a tinha nem a tem: é um som em que a língua fica
curvada para trás [pronúncia da vogal u] e os lábios ficam estendidos, nunca ar-
redondados [pronúncia da vogal i]. Esse som é marcado com a letra y. Por ser ine-
xistente na fala dos invasores, os empréstimos dependem do ouvido de quem
por primeiro propõe a palavra indígena:

tyba: lugar onde ficam muitas plantas ou bichos: -al [em português].

Curi: pinheiro-do-paraná.

Curitiba: grupo de pinheiros: pinheiral [cidade paranaense].

Guará: ave pernalta que vive em bandos no litoral.

Guaratuba: grupo de guarás [cidade paranaense].

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A língua francesa tem um som, marcado com a vogal u, que é o inverso do


som da língua tupi: a língua fica estendida para diante [pronúncia da vogal i] e os
lábios ficam arredondados, nunca estendidos [pronúncia da vogal u]. E acontece
o mesmo:

Tem gente que adora purê.

E tem gente que prefere pirê.

A pronúncia francesa não coincide com nenhuma das brasileiras.

As lendas indígenas eram desprezadas pelos catequizadores por conflito


com o cristianismo e desapareceram, mas a da origem da noite entre os tupis
sobreviveu e dela cito a primeira frase [a letra erre representa a consoante dental
da segunda sílaba da palavra cara em todos os ambientes: início, meio e eventu-
almente fim de palavra, creio que por força da queda da vogal]:

Yu.pi.ru.ngau.a ra.me in.ti ma.ã pi.tu.na. Pi.tu.na o.i.cô i.ri.ri.pi [No princípio não
havia noite. A noite estava dentro de um coco.].

O primeiro não-índio a falar, pregar e escrever nessa língua foi o padre José de
Anchieta (1534-1597), de origem basca. Veio pelo pedido de ajuda que o padre
Manuel da Nóbrega, que precisava de missionários, fez aos seus superiores.

Chegou ao Brasil em 1553, enviado pelo seu superior jesuíta, e no ano seguin-
te assiste à fundação do Colégio de São Paulo, núcleo de que sairia a cidade de
São Paulo.

Interessado pelas obras missionárias junto dos índios, aprendeu com eles a
língua e pôde compor para ela a sua primeira gramática. E foi um verdadeiro de-
fensor deles, que eram escravizados para o trabalho rural. No levante dos tamoios
não hesitou em tornar-se refém para os índios, para os portugueses poderem
conferenciar com liberdade e segurança. Durante esse cativeiro é que escreveu
uma epopeia sobre a Virgem Maria, usando a mesma língua e a mesma métrica
da epopeia Eneida, de Publius Virgilius Naro – Virgílio: o hexâmetro, verso com
seis dátilos [a palavra pétala é um dátilo: uma sílaba longa e mais forte seguida
de outra longa ou de duas breves]. Imitando o latino, troco a sílaba longa pela
acentuada por sua intensidade:

Todos os homens do mundo precisam amar sua terra!

O hexâmetro é um verso harmonioso pela possibilidade de uma sílaba longa


ocupar o lugar de duas breves, mas apenas nos quatro primeiros pés. A seguir o

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ritmo de um hexâmetro com cinco dátilos inteiros [sílaba longa seguida de duas
breves] e o sexto sempre truncado:
------
A troca de cada duas sílabas breves por uma longa torna o verso cada vez
mais pesado, indicando alguma coisa análoga no fato que o poeta narra:
-- -- -- -- --
A tradição insiste que Anchieta escrevia nas areias da praia e decorava o que
escrevera antes de se retirar. Vindo a cheia, ele olhava para as ondas do mar e
lhes dizia meigamente:

– Por favor parem, que eu ainda não decorei o que escrevi.

E elas paravam.

O padre José de Anchieta, beatificado pelo Papa João Paulo II em 1980, deixou
obras em muitas áreas:

Correspondência, linguística, história, lirismo, oratória sacra e teatro.

E nelas usou de quatro línguas:

castelhano, latim, português e tupi [algumas peças têm mais de uma


língua].

A carta que escreveu em 9 de julho de 1565 ao Padre Diogo Mirão conta que
os portugueses chegaram ao Rio de Janeiro e começaram a cortar árvores em 28
de fevereiro ou primeiro de março.

Algumas de suas obras foram estas:


1563 De gestis Mendi de Saa
1595 Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil
De Beata Virgine Dei Matre Maria
A primeira obra – De Gestis Mendi de Saa [trad. literal: Das façanhas de Mem
de Sá] – é uma epopeia sobre as lutas dos portugueses contra os holandeses,
comandados por Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571), que fundou a
França Antártica: o herói é o Governador-Geral Mem de Sá. Tem a honra de ser a
primeira epopeia quinhentista, aparecida no século XVI: nove anos antes de Os
Lusíadas, de Camões. Nela, ele é um historiador.

Foi impressa em Coimbra em 1563 e tem a honra de ser a primeira obra bra-
sileira impressa. A língua é a latina e o verso o hexâmetro.
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A segunda obra impressa em Coimbra em 1595 por Antonio de Mariz é o seu


livro sobre a língua dos tupinambás: Arte de Gramática da Língua mais Usada na
Costa do Brasil. Sempre achei curioso que os padres defendessem os índios, mas
tolerassem a escravidão dos negros. Além da proteção dos padres, tinham os
índios a proteção da própria terra: eles a conheciam e podiam sumir nela.

A cultura do século XVI privilegia o que era latino e romano. Assim, nenhum
leitor deve ficar consternado por ver que Anchieta encontrou os casos latinos do
nominativo, genitivo e outros também no tupi. Apesar disso, a lição que escreve
sobre essa língua indígena é verdadeira. Era o linguista.

O movimento de catequese influenciou seu teatro e sua poesia, resultando


na melhor produção literária do Quinhentismo brasileiro. Mais importante talvez
seja o teatro porque ensinava brincando e havia autos em que as línguas se mis-
turavam: certamente lembrança do provérbio latino: ludendo discimus [brincan-
do, se aprende].

A sua terceira obra – De Beata Virgine Dei Matre Maria [trad. literal: Da Beata
Virgem, Mãe de Deus, Maria] – é feita em hexâmetros, tem a forma de epopeia,
mas é o coração que fala de maneira amorosa, sem a violência de um guerreiro e
com a suavidade de um filho. É um poema lírico com a forma de epopeia.

Apenas as duas primeiras obras foram editadas em vida do autor. Cogita-se


agora de uma obra completa.

Autores do século XVII


Este século se abre com a epopeia de Bento Teixeira: Caramuru (1601). Le-
vou-o a essa empreitada o orgulho pela terra, mas imitou demais Camões e com
um assunto que não ajudava.

Devo citar dois brasileiros, ainda que o primeiro tenha nascido em Portugal,
ambos do século XVII, mas já imbuídos de um amor pela nova terra e também
prova nítida do bom ensino que já havia nesse tempo, como nos comprova Gil-
berto de Mello Freyre (1900-1987) em sua obra Casa-Grande e Senzala, de 1933
(FREYRE, 1933, p. 578):
Os pretos e pardos no Brasil não foram apenas companheiros dos meninos brancos nas aulas das
casas-grandes e até nos colégios; houve também meninos brancos que aprenderam a ler com
professores negros. A ler e a escrever e também a contar pelo sistema de tabuada cantada. Artur
Orlando refere que seu professor de primeiras letras, em Pernambuco, foi um preto chamado
Calisto.

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O primeiro é o padre Antônio Vieira (1608-1697), que veio para o Brasil antes
dos sete anos e estudou aqui e aqui se fez padre. Cultista e conceptista, continua
sendo um dos maiores pregadores da nossa literatura. Destacou-se pela defesa dos
índios, o que era comum a todos os jesuítas, o que ele também era desde 1623.

Em 1640 estava a esquadra holandesa à frente da cidade do Salvador, pronta


para o ataque que deixaria a terra inteira entregue ao inimigo, como pretendia
o governador Johann Mauritius van Nassau-Siegen – Maurício de Nassau (1604-
-1679), para a nossa História. Pernambuco já estava em seu poder e agora os ho-
landeses desejavam firmar-se ocupando a capital do Brasil. Povo religioso como
ainda agora, os baianos foram à quinzena que se fazia em todas as igrejas [já
eram muitas], pedindo a proteção de Deus, cabendo o sermão do último dia ao
padre Vieira na igreja de Nossa Senhora da Ajuda.

E o padre Vieira não deixou por menos:


Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar com os homens, mais alto hão de sair as
minhas palavras ou as minhas vozes: a vosso peito divino se há de dirigir todo o sermão.
É este o último de quinze dias contínuos, em que todas as igrejas desta Metrópole, a esse
mesmo trono de vossa patente Majestade, têm representado suas deprecações; e, pois, o
dia é o último, justo será que nele se acuda também ao último e único remédio. Todos estes
dias se cansaram debalde os oradores evangélicos em pregar penitência aos homens; e, pois,
eles se não converteram, quero eu, Senhor, converter-vos a vós. Tão presumido venho da
vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós somos os pecadores, vós haveis de ser o
arrependido. (VIEIRA, 1963, p. 404)

E assim a esquadra portuguesa arrasou a holandesa.

O segundo é o poeta Gregório de Matos.

Gregório de Matos Guerra (1623-1696), nascido na Bahia e morto no Recife,


foi o primeiro poeta a demonstrar o sentimento nativista em seus escritos e em
sua vida.

Vergastou sem piedade os desmandos da sociedade do seu tempo, criticando


o clero, o governo, a nobreza e o povo, o que lhe valeu o apelido de Boca do In-
ferno. Por seus repentes e improvisos, atrevidos e saborosos, se faz um pré-retrato
do curitibano Emílio de Menezes (1866-1918) por seu comportamento na vida e
suas obras satíricas.

Profundamente barroco, aliava os contrastes da escola: a sátira ferina e os


versos mais comoventes. Era, no entanto, generosamente humano, como se mos-
trou na defesa de um pobre coitado que se dirigira ao juiz de Igaraçu, tratando-o
por vós. O juiz se enfureceu e queria prendê-lo. O advogado Gregório de Matos
Guerra defendeu-o com uma pequena poesia (GUERRA apud REBELLO, 1881):

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Si tractam a Deus por tu,


E chamam a El-Rei por vós,
Como chamaremos nós
Ao Juiz de Igaraçú?
Tu e vós e vós e tu.

A sua veia satírica desrespeitava os amigos e muito mais os inimigos.

Comecemos pelos inimigos. Indisposto com um dos membros da Família


Mendonça Furtado, da nobreza baiana, que tinha na sua história um dos gover-
nadores do Brasil, e naquele momento o vice-rei Afonso Mendonça Furtado, es-
palhou um trocadilho malicioso sobre a família toda, o que deve ter concorrido
para ele ter sido expulso para o Recife.

E continuemos agora com os primeiros amigos. Sebastião da Rocha Pita


(1660-1738), membro da Academia Brasílica dos Esquecidos, escreveu em 1730
o livro História da América Portuguesa desde o Ano de 1500 do seu Descobrimento
até o de 1724, muito criticado por ele amar demais a sua terra.

Rocha Pita era amigo de Gregório de Matos e admirador da obra dele. Por isso,
um dia lhe pediu uma poesia e ouviu dele um insulto, mas em lugar de sentir-
-se ofendido, achou graça, porque a generosidade do historiador deu ao texto do
poeta o significado literal e não o metafórico que o pedinte desejara e merecia:

Gregório, faz uma rima para mim.

Capim.

Dele transcrevo o seguinte soneto, um dos mais apreciados pela beleza esté-
tica e moral, além do que nos pode ensinar sobre a língua da sua época:

Ao mesmo assunto e na mesma ocasião

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,


Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
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Se uma ovelha perdida, e já cobrada


Glória tal, e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada.


Cobrai-a, e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória. (MATOS, 1997, p. 18)

O título deste soneto alude ao de um soneto anterior, com um assunto se-


melhante de pecador arrependido: A Cristo S. N. Crucificado, estando o poeta na
última hora de sua vida.

O soneto transcrito nos revela que Gregório de Matos era um poeta barroco
na modalidade conceptista, porque os tercetos que finalizam o soneto consti-
tuem um silogismo perfeito:
A ovelha recuperada vos traz muita glória.
Eu sou essa ovelha.
Logo, salvai-me para não perder a vossa glória.

E note-se a forma imperativa negativa do verbo querer, que alguns gramáti-


cos dizem não existir: não queirais.

Esse soneto nos deixa compreender que a cultura portuguesa vinha total
para as terras brasileiras nessa época colonial e a língua era ainda inteiramente
a mesma, mas já tinha um aspecto que o Portugal da mesma época começava a
perder: o povo brasileiro ainda trazia a língua mais arcaica, em que as vogais se
mantinham intactas e igualmente demoradas em cada palavra.

Sebastião Rocha Pita não ganhou a rima do poeta, mas o seu amor ao povo,
que historiou, e o seu entusiasmo com a nova terra brasileira, que antecipa o livro
Porque me Ufano de meu País, de Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior (1860-
-1938), poeta desde os 15 anos, advogado, membro fundador da Academia Brasi-
leira de Letras e conde romano em 1905, se é que este não se abeberou daquele.

A excelência da língua escrita que os textos comprovam também comprovam


a boa qualidade do ensino dos beneditinos, dos dominicanos, dos franciscanos
e principalmente dos jesuítas, que eram os professores daquela época. Nesses
primeiros duzentos anos da nossa História muito pouco deve se ter mudado a
língua portuguesa falada nesta nova terra, mas eu posso talvez afirmar que já
havia alguma coisa que a distinguia da fala portuguesa nas terras de lá.
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Para a colônia vinham portugueses de diversas localidades, cada um deles


com um dialeto da língua portuguesa, provocando aqui um caldeamento dessas
falas diversas. Além disso, ainda devia haver uma linguagem mais antiga nos
povoados distantes dos grandes centros como Lisboa e Coimbra. Parece-me
também que o clima bem mais quente, principalmente nas terras do Nordeste,
deveria concorrer para uma fala mais pausada.

Os textos que apresentei são poucos, mas um deles nos traz uma pista impor-
tante, porque coloca um pronome átono numa posição que dificilmente teria
aceitação em Portugal. É o do historiador:

as estrelas são as mais benignas e se mostram sempre alegres.

A norma portuguesa, já naquele tempo, favorecia a ênclise por serem os pro-


nomes oblíquos palavras sem sílaba forte e por isso sempre se apunham ao fim de
uma palavra anterior. Assim distingue-se a pronúncia de frases da mesma escrita:

Quando-me visitas? [ênclise à palavra anterior: português de lá.]

Quando me-visitas? [próclise à palavra posterior: português de cá.]

Do ponto de vista fônico, a frase portuguesa tem duas palavras de três síla-
bas, enquanto a brasileira apresenta uma palavra de duas sílabas e a outra de
quatro.

O fim da frase apresentada anteriormente impede a ênclise porque a primei-


ra palavra da oração coordenada (e se mostram) também carece de sílaba forte.
Creio que a fala de lá exigiria:

[...] e mostram-se sempre alegres.

Creio que aos tupinambás devemos a queda da consoante final do infinitivo,


apoiada pelo fato de que a pronúncia oxítona bastava para distinguir o verbo de
qualquer outra palavra. Convém lembrar: o tupi tinha como regra só um padrão
silábico: Consoante vogal.

Houve ainda a influência da fala tupi provocando o desaparecimento dos di-


tongos que nunca se ouviam na fala indígena. Houve uma natural monotonga-
ção, continuando também a fala pausada em uma terra de sol quente:

deixa > dexa / frouxa > froxa.

Além disso, os índios nos deram palavras de coisas longe da casa, porque
donos da terra tinham nome para o que fosse dela:

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abacaxi, butiá, caju, guará, guaxinim, imbuia, mandioca, peroba, piranha, tatu,
tingui [palavra paranaense: tinguí].

Durante a maior parte desses primeiros dois séculos sentimos a presença dos
africanos, vindos para ficarem dentro da casa dos seus senhores ou perto dela,
na senzala ou no campo, mas foi pequena a contribuição à fala. Ao contrário,
boa quantidade de palavras nos vieram deles, sempre coisas pertinentes à casa
ou aos seus arredores. As palavras de cultura e tradição religiosa também vieram
para a portuguesa.

Bastem-nos alguns exemplos:

banguela, bagunça, bunda, caçamba, caçula, exu, moleque, orixá, xangô e


samba – porque eles cantavam e dançavam.

E chegamos por fim ao século XVIII.

Autores do século XVIII


Nesse mesmo século XVIII, a influência indígena desaba fortemente, prin-
cipalmente se pensarmos que nos dois primeiros séculos falavam o tupi dois
terços da população. Agora, houve nesse século uma avalanche de imigrantes
que aportaram aqui, além de uma medida do Marquês de Pombal que expul-
sava os jesuítas de todas as terras portuguesas. Era o ano de 1759, quando os
indígenas perdem o seu principal baluarte.

Deve-se ainda pensar que desde o nosso primeiro século teve um número
pequeno de brasileiros que foram a Portugal para se formarem em Coimbra. O
número aumentou no segundo século. No terceiro passou de um milhar.

Com isso, o assunto dos escritores brasileiros era diverso daquele dos poetas
portugueses, porque a vida e a terra eram outras, mas a língua era basicamente a
mesma, dado que os mais letrados vinham com uma educação superior lusitana.

Outra coisa era a língua falada em que um mundo de coisas nossas já pedia
palavras verdes para ervas, arbustos e árvores e multicores para bichos e aves da
nova terra, além da herança da fala tupi com que o povo falando português se
acostumou nos séculos em que a indígena era majoritária.

Fiquemos com dois poetas, ambos líricos:

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Cláudio Manuel da Costa (1729-1769) tem um livro de poemas: Obras, de


1768. Foi um bom sonetista.

Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), com o nome acadêmico de Dirceu,


apaixonou-se por Maria Doroteia Joaquina de Seixas, a sua Marília de Dirceu. Cito
uma estrofe de uma de suas liras XXVII:

Eu é que sou herói, Marília bela,

Seguindo da virtude a honrosa estrada:

Ganhei, ganhei um trono,

Ah! Não manchei a espada,

Não o roubei ao dono!

Ergui-o no teu peito e nos teus braços:

E valem muito mais que o mundo inteiro

Uns tão ditosos laços. (GONZAGA, 1997, p. 77)

E dois épicos:

José Basílio da Gama (1741-1795) é considerado um pré-romântico por sua


epopeia que se desgarra dos modelos clássicos, despreza a rima, abandona as es-
trofes repetidas, ficando somente com o verso decassílabo e adotando o maravi-
lhoso indígena em lugar do pagão ou do cristão: Uruguai (1769). O poema conta
a história das obras dos jesuítas nas missões do Uruguai, destruídas por motivos
inteiramente políticos, numa tentativa de agradar ao Marquês de Pombal, que
expulsara os jesuítas:

Fumam ainda nas desertas praias

Lagos de sangue tépidos, e impuros,

Em que ondeiam cadáveres despidos,

Pasto de corvos. Dura inda nos vales

O rouco som da irada artilharia. (GAMA, 1995, p. 1)

Mais velho que Tomás Antônio Gonzaga, Frei José de Santa Rita Durão (1722-
-1774) tem sua epopeia publicada depois da morte: Caramuru (1781). A forte
presença indígena deixa perceber alguma coisa de pré-romântico.

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Texto complementar

A língua comum no seu aspecto brasileiro


(português do Brasil) e as repercussões na
língua literária. Caráter conservador
da pronúncia padrão brasileira
Serafim da Silva Neto e por isso sou levado a perdoar-lhe o esquecimento de
que o maior poeta de língua portuguesa no século XVIII não foi nenhum daque-
les que ele inclui quando afirma no texto abaixo (SILVA NETO, 1986, p. 145-147)
a superioridade dos autores brasileiros nesse século e eu repito aqui:

Temos falado até aqui só da língua transmitida, a que se transmite por


via oral, sem necessidade de escrita. Mas é um fato da maior importância – e
igualmente característico da América espanhola, do português do Brasil
e do Inglês da América do Norte – que a língua comum e a língua literária
também aí foram introduzidas desde os primeiros tempos.

A língua comum, como se sabe, é o vínculo que torna possível a compre-


ensão de uns e outros, é o instrumento principal de comunicação social que
se sobrepõe às mil e uma variedades locais e profissionais. A língua literária
é sua utilização estética. Assim, a língua portuguesa escrita sobrepõe-se à
língua grosseira dos índios e dos negros, ao falar rústico e rude dos coloniza-
dores oriundos da província ou das baixas classes, como um meio superior
de manifestação e de comunicação. As escolas foram fundadas cedo, graças
à iniciativa particular ou ao trabalho pertinaz da Companhia de Jesus.

O português dos colonos da alta camada social manteve-se, por isso, com
um caráter muito conservador: em 1618, o autor dos diálogos das grandezas
dizia que o Brasil era Academia onde se sabia falar bem e que os jovens de
Lisboa e doutras partes do reino aí vinham para aprender as boas falas [...]
O número de brasileiros que iam formar-se na Universidade de Coimbra au-
mentava de século: 13 no século XVI, 354 no XVII e 1752 no século XVIII.

Houve desde o primeiro século quem se deliciasse com a leitura das maiores
obras de arte portuguesa tais como a Eufrosina e a Diana de Montemor, – houve
um poeta imitador de Camões: Bento Teixeira, autor da Prosopopeia, – houve

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entre outro escritores, a grande figura do padre Antônio Vieira, um dos maiores
prosadores da língua e um dos homens mais cultos da Europa do seu tempo.

O que há de melhor nas letras portuguesas do século XVIII, veio do Brasil.


Tomás Antônio Gonzaga (1744-1807), Cláudio Manuel da Costa (1729-1769),
José Basílio da Gama (1740-1795), José de Santa Rita Durão (1720-1784) e
Matias Aires (1705) são da colônia, ou aí vivem.

Mesmo depois da independência (1822), a fidelidade da pureza da língua


manteve-se. Fidelidade que muitas vezes chegou ao exagero, numa atitude
de purismo intransigente. Bastará recordar, no começo deste século, as dis-
cussões calorosas a propósito da legitimidade das formas vernáculas entre
Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro, entre Heráclito Graça e Cândido de Figueire-
do – entre dezenas de outros importantes. A nossa escola parnasiana carac-
terizou-se principalmente pela perfeição do vernáculo.

Os fatos indicam, por conseguinte, a persistência ininterrupta duma


norma gramatical rígida, à qual aspiravam todos os que, ao longo da história
colonial, procuravam subir socialmente. No Brasil – assim como em alguns
países na língua espanhola, tais como Peru e México – os modelos culturais
foram mantidos, de maneira que os mestiços que aumentaram a alta socie-
dade tinham os olhos postos na norma linguística.

Assim que foi constituído aos poucos um tipo de padrão brasileiro, na


pronúncia e na gramática. Os materiais são os seguintes:

1 – uma koiné de falares metropolitanos dos séculos XVI e XVII, alguns


deles muito conservadores;

2 – a língua comum e a língua escrita literária dos séculos XVI e XVII, cujos
autores foram escolhidos como critério de sintaxe.

É natural, pois, que o português das pessoas cultas do Brasil não vem a
coincidir rigorosamente com o das pessoas de Portugal:

1 – o vocabulário normal brasileiro em muitos casos é conservador: mantém


a palavra antiga, substituída em Portugal por uma inovação moderna;

2 – em outros casos a palavra normal no Brasil é regional em Portugal;

3 – ainda em outros casos a palavra normal no Brasil é empréstimo a al-


guns dos falares regionais nossos ou alguma das línguas ameríndias
ou africanas;
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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa

4 – finalmente, podemos considerar entre as diferenças as novas criações


que se cunham independentemente de um lado e doutro do Atlânti-
co: auto-carro (Lisboa), ônibus (Rio).

Na pronúncia, igualmente, o tempo foi acarretando diferenças, que aos


poucos se acentuaram, sobretudo depois do século XIX, quando Lisboa se
tornou importante foco inovador. Assim, a pronúncia brasileira, em geral,
repousa sobre um sistema fonético muito antigo e de aspecto urbano (o
que vale dizer, sem regionalismo) pois, como se viu, ela não apresenta, por
exemplo, nem as antigas africanas, nem as apicais, que muito provavelmente
já não existiam ou estavam em franca desagregação nas principais cidades
portuguesas nos séculos XVI e XVII. Faremos distinção de um lado, entre a
pronúncia culta do Rio de Janeiro (carioca) considerada padrão, e de outro,
entre várias pronúncias regionais. As razões da preferência pela carioca, con-
firmadas em dois congressos, são: ela é a mais rápida consequentemente a
mais incisiva de todas; ela é a de maior musicalidade; ela é a mais elegante e
mais urbana das pronúncias brasileiras; ela é uma síntese de colaboração de
todos os brasileiros e por isso mesmo a mais adaptável a todos eles: enfim, é
a que mais se difunde por todo o país.

Atividades
1. Que recurso o rei Dom João III usou para apressar a posse das terras brasileiras?

2. Qual foi a importância dos jesuítas que vieram para o Brasil?

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MATTOS, Geraldo. Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa.
Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2012.

Contexto social e linguageiro


TEXTO 12
do Brasil Independente

Consequências da vinda da Família Real


portuguesa para o Brasil
A chegada da família real ao Brasil foi acompanhada por alguns mi-
lhares de nobres num Rio de Janeiro bastante pequeno. O próprio aloja-
mento de tanta gente foi um ultraje, que só um dono pode cometer, pois
na porta das melhores casas aparecia de repente um aviso do Príncipe
Regente com suas duas iniciais: PR. O povo lia diferente, revelando desde
cedo a atitude galhofeira da tradição carioca: Ponha-se na Rua. Essa en-
chente deve ter interferido para manter a fala brasileira mais próxima da
de Portugal, ainda que não tenha influído na pronúncia das gentes da co-
lônia, porque esta era uma influência da antiga fala portuguesa anterior
aos clássicos.

De fato seria curioso e atraente estudar as palavras que entraram na


nossa fala por essa época. O Brasil deixa de ser colônia em 1815 e se torna
independente em 7 de setembro de 1822, mas essa é apenas uma data
e pelo menos por mais uns 30 anos todas as condições sociais eram as
mesmas dos últimos 300 anos, porque um grito de Dom Pedro I não foi
um milagre: a escravatura continuava, entre todos, sobressaíam os nobres
e os ricos e o relacionamento entre patrões e empregados era tipicamente
patriarcal.

Creio mesmo que essas condições chegaram até as primeiras déca-


das do século 20, porque me lembro das palavras de Ismael Gomes Braga
(1891-1969), espírita e esperantista, antigo contador do Cassino Quitandi-
nha na serra de Petrópolis, com quem morei recém-saído de um seminário
franciscano em fins de 1952. Ele me contou sobre o relacionamento na
casa comercial: chegava a hora do almoço, ficava o patrão à cabeceira da
mesa, cercado pela mulher e pelos filhos, e os outros lugares eram ocupa-
dos pelos empregados.

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Língua brasileira e língua portuguesa


Ressalvado o caso de palavras peculiares de coisas portuguesas ou brasilei-
ras, o português de lá e o português de cá tinham as mesmas construções e
ainda as têm, embora se deva notar que o nosso tem uma norma mais antiga
que a deles com o exemplo típico do tratamento diferencial do nosso gerúndio
e do infinitivo preposicionado deles:

Silêncio, que eu estou trabalhando! – gerúndio. (Brasil)

Silêncio, que eu estou a trabalhar! – infinitivo preposicionado. (Portugal)

A recíproca é verdadeira: a primeira é raríssima em Portugal e a segunda é


raríssima no Brasil. Parece-me, entretanto, que há duas formas diversas, mas
possíveis tanto lá como cá, desde que sem ter a função adjetiva de cima, mas a
adverbial que segue:

Caindo, perdeu a carteira.

Ao cair, perdeu a carteira.

Duvido que brasileiros e portugueses, cultos ou incultos, que os há cá e lá,


tenham alguma dificuldade em entender a maneira de falar do outro: achar es-
tranho e feio ou ainda pior é um direito de cada um dos falantes de uma dessas
variantes de língua, desde que o respeito impere. Afinal, língua é que nem filho:
para os pais, é uma maravilha.

Toda opinião é livre. Assim, não há qualquer insulto em os portugueses acha-


rem que nós brasileiros falamos arrastado e nós acharmos que eles falam atrope-
lando nossas orelhas. E as vogais fracas das suas palavras compridas, reduzindo
as nossas longuíssimas esperanças a uma curtíssima ´sp´rança.

Sou o bastante honesto para confessar que nem todos comungam essas
minhas ideias sobre a língua portuguesa do Brasil.

Apesar de tudo, estou convencido de que todos aceitavam até o centená-


rio da nossa Independência o fato de que a língua de Portugal e a língua do
Brasil eram uma única língua, mas desde essa data há vozes que defendem uma
língua de Portugal e outra língua do Brasil, raras no século XIX, mas frequentes
no século XX depois da vitória mais ou menos pacífica do Modernismo de 1922:
José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948) foi veementemente contra
essas novidades.

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Uma das vozes recentes e contrárias pertence ao professor Marcos Bagno


(1961), da Universidade do Brasília, que em seu livro comenta uma matéria da
revista Superinteressante sobre a língua portuguesa do Brasil, de que cito partes
avulsas (BAGNO, 2001, p. 167):
[...] a revista entrevistou linguistas que trabalham em diversas regiões do pais, todos
empenhados em projetos de pesquisa científica que visam descrever o português falado
no Brasil. Com base em suportes teóricos, todos eles são unânimes em afirmar que no Brasil,
definitivamente, se fala uma língua diferente da falada em Portugal.
Nessa mesma reportagem, a única voz dissonante – como era de se esperar – veio do
gramático Evanildo Bechara, para quem “não há nada no português brasileiro que não exista
em Portugal”.

Descontente ainda por haver uma voz dissonante, de que debocha com
aquela frase entre travessões – como era de se esperar de um gramático – Bagno
(2001, p. 168) continua com um caso dele mesmo:
[...] E no primeiro dia útil do ano 2001, fui ver no cinema o belo filme Capitães de Abril, dirigido e
estrelado pela atriz portuguesa Maria de Medeiros, e para minha grande surpresa – e alegria –
o filme não só era legendado, como também tinha sido traduzido para o português brasileiro:
todos os tu foram devidamente traduzidos por você, as construções imperativas do tipo
“espera-me” foram substituídas por “me espera”, e as expressões idiomáticas portuguesas foram
traduzidas por expressões idiomáticas brasileiras: “Queres que te dê uma boleia?” apareceu na
legenda como “Você quer que eu te dê uma carona?”[...] Agiram muito bem os distribuidores
ao fazer isso, porque, do contrário, o público brasileiro perderia grande parte do conteúdo dos
diálogos do filme, [...].

Primeiro, uma apreciação da linguagem de Bagno, com que ele procura cons-
cientemente seguir as suas ideias de português brasileiro e por isso, adota a sin-
taxe popular para o verbo visar: visam descrever, em lugar da literária visam a
descrever... Tudo bem! É um direito dele, ainda que haja passagens menos per-
doáveis, mas compreensíveis como algumas que cometo eu mesmo aqui, mas
puxando ao contrário.

Agora, largando o texto e voltando às ideias contidas, as legendas e a tradução


foram uma bofetada que a diretora desse filme deu no público brasileiro e me
admira que um professor universitário não tenha deduzido a intenção portugue-
sa: seus burros. Bagno ignora que grande parte dos gaúchos usam o pronome
de segunda pessoa do singular com o verbo no singular. Ou seja: “Queres que te
dê uma carona?” A outra parte usa o mesmo pronome com a terceira pessoa: “Tu
quer que eu te dê uma carona?” Além disso, esse pronome com a terceira pessoa
é comum em todos os estados brasileiros e predomina em alguns do Nordeste,
senão em todos, e constitui um verdadeiro sinônimo do pronome você. E nem
lembrou a Bagno que a palavra você parece ser inteiramente culta, porque a fala
do nosso povo tem continuado o antiquíssimo desgaste da expressão arcaica:

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vossa mercê > vosssemecê > vosmecê > você > ocê > cê...

E se chegou por fim ao impossível, além do que nada mais existe:

C´ é besta, home!

Diga-se de passagem que o pronome vosmecê desapareceu nos fins da


década de sessenta, pois o presidente da minha banca de Concurso de Livre-do-
cência e Doutorado na Universidade Federal do Paraná, o professor catedrático
Rosário Farâni Mansur Quérios (1907-1987), lendo a minha tese e me arguindo,
me criticou acerbamente:

– Professor Geraldo, vosmecê usa tanta vírgula que até parece asmático...

E há um pormenor que é um enorme pormaior: na fala portuguesa, tu é usado


entre iguais, você com os inferiores e o senhor ou a senhora com os superiores.

De outro ponto se esqueceu o professor Bagno: as crianças todas aprendem a


língua sem ninguém as ensinar, pois ouvem e veem o que ocorre, comparando e
deduzindo. Da mesma forma, o público brasileiro imediatamente compreende-
ria o que era boleia porque teria visto um carro e um motorista falando a outra
pessoa. E isso sem falar que essa palavra é comum na boca e nos ouvidos dos
caminhoneiros, mais comum entre eles que a palavra cabine: o significado por-
tuguês é uma singela metonímia, porque boleia é, antes de tudo, a cabine ou o
assento do cocheiro das antigas carruagens puxadas a bicho:

Se há boleia, há lugar na boleia.

O sentido de lugar gratuito na cabine ou na boleia provém das circunstâncias


da fala: quem oferece sem ser vendedor, está oferecendo de graça.

Comparando Portugal e Brasil


com Índia e Hindustão
E um outro item de Bagno (2001, 167). O linguista indiano Kanavillil Rajagopa-
lan, que trabalha há muitos anos no Brasil, diz que o “brasileiro” e o “português” têm
mais diferenças entre si que o hindi (falado na Índia) e o urdu (falado no Paquis-
tão) que no entanto são reconhecidos politicamente como línguas diferentes.

Deveras me surpreende esse apoio tomado por Bagno: um reconhecimento po-


lítico de que se trata de duas línguas nada vale em termos de Linguística. De qual-

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quer forma, escrevi para Probal Dasgupta (1953), hindu e doutor em Linguística, e
perguntei se efetivamente é uma língua só, recebi por correspondência pessoal
esta resposta, que traduzo abaixo:

Laŭ la lingvistoj, jes, sed kun la rimarkindaĵo, ke la kleraj vortprovizoj estas malsamaj - la eru-
diciaj vortoj en la hindia varianto venas de la sanskrita dum tiuj en la urdua varianto venas de
la persa kaj la araba - kaj ke la hindia varianto uzas la sanskritan skribsistemon dum la urdua
varianto uzas la araban.
Sed laŭ la uzantoj de la lingvoj, ili estas du malsamaj lingvoj, kun hazarde grandega interkom-
preneblo. Probal

Para os linguistas, sim, mas sendo dignos de atenção os diferentes conjuntos de palavras cultas:
as palavras eruditas da variante hindi vêm do sânscrito, enquanto as da variante urdu vêm do
persa e do árabe: a variante hindi usa o sistema de escrita do sânscrito enquanto a variante urdu
usa o do árabe.
Para os usuários das línguas, são duas línguas diferentes por acaso com uma grande intercom-
preensão. Probal

Novamente percebe-se que o hindi e o urdu são uma língua só: se as palavras
cultas os distinguem, segue-se que as comuns são iguais. E se derruba mais um
argumento de Bagno. Acrescento que também a língua portuguesa foi procurar
as suas palavras eruditas na cultura greco-romana.

E como prova final, pergunto ao meu leitor compatriota se não entende o


que o meu samideano português me escreve em resposta ao que lhe perguntei
em correspondência pessoal. Se eu tiver leitor gaúcho, acho que ele vai achar
que os portugueses são gaúchos:
Não consideres abuso de confiança o facto de te tratar por‘’tu’’mas em Portugal os amigos tratam-
-se por ‘’tu’’ e os desconhecidos por ‘’você’’. No entanto, estamos habituados a que os brasileiros
nos tratem por ‘’você’’, e sabemos que o ‘’você’’ brasileiro corresponde ao ‘’tu’’ português. Uma
coisa com que tens que contar nas relações luso-brasileiras é o facto dos portugueses estarem
mais bem informados do português do Brasil e da cultura brasileira do que o inverso. Além da
invasão telenovelesca, que habituou o ouvido português ao português brasileiro, em Portugal
encontramos brasileiros a cada esquina, mas o mesmo não se passa no Brasil.

(João José Santos)

Língua do século XIX


Dois fatos importantes aconteceram no Brasil recém-emancipado, que res-
ponderam por um impacto social extremamente relevante.

O primeiro fato trouxe um impacto literário com o marco histórico da publi-


cação em 1836 da primeira obra romântica brasileira em Paris, de autoria de Do-

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mingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882): Suspiros Poéticos e Saudades.


O prefácio divulga a nova estética literária.

O fato de que agora a influência de Portugal, aonde iam os brasileiros se abe-


berar da sua cultura, cedeu lugar à da França menos pelo livro que veio de lá e
muito mais pelas ideias da Nova Escola que vieram igualmente de lá.

Esse deslocamento vai abrir caminho à influência inglesa com a vida desgra-
çada e lendária de George Gordon (1780-1824), Lord Byron, e com o prestígio do
seu estilo e obras num momento posterior do nosso Romantismo, que teve em
Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1830-1851) a sua grande expressão: Lira
dos Vinte Anos, livro de poemas publicado postumamente em 1853. Ao morrer
de tuberculose, falou a seu pai:

“– Que fatalidade, meu pai.”

O segundo fato importou em um impacto político por um acesso popular de


descontentamento e de desgosto que produziu quatro levantes violentos numa
terra onde nunca havia ocorrido alguma coisa igual, salvo a Inconfidência Minei-
ra, que morreu antes de nascer, e as lutas logo depois de proclamada a indepen-
dência do Brasil contra as forças portuguesas.

 1832-1840 – Cabanada: revolta paraense de moradores em cabanas con-


tra a exploração da elite.

 1835-1845 – Guerra dos Farrapos: revolta gaúcha contra a Regência.

O mais sério de todos foi a Guerra dos Farrapos (1835-1845), chamada também
de Revolução Farroupilha, que começou em Porto Alegre com Bento Gonçalves,
coronel de milícias e deputado provincial, que tomou a cidade, reconquistada um
ano depois e obrigando os revoltosos a fugirem para o interior da Província, onde
proclamaram a República de Piratini, com Bento Gonçalves presidente. Aqui, o in-
centivo para a revolução foi político: o desejo de abandonar a monarquia e aceitar
o regime republicano. O Barão de Caxias assume em fins de 1842 a presidência
da Província e o comando das suas forças militares e leva dois anos e meio para
chegar a vitória final. Conta-se que um padre propôs ao Barão de Caxias celebrar
uma missa e se cantasse um te-déum pela vitória alcançada. O vencedor recusou.

 1837-1838 – Sabinada: revolta baiana contra a Regência, sob o comando


do médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira (1796-1846), com ob-
jetivos republicanos. Derrotado, foi desterrado e morreu no exílio.

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 1838-1841 – Balaiada: revolta maranhense contra a exploração pratica-


da pela elite, sob o comando de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira. A
Balaiada, revolta nas terras maranhenses entre 1838-1841, começa com
a tomada da cidade de Caxias pelos revoltosos no ano seguinte. Manuel
Francisco dos Anjos Ferreira, um dos chefes, tinha o apelido de Balaio e
dele veio o nome da revolta dos balaios, ou da balaiada, morrendo em
1839. A derrota deles levou o vencedor, coronel Luis Alves de Lima e Silva
(1803-1880), ao posto de general e lhe deu o título de Barão de Caxias. A
causa dessa revolta foi uma explosão de ódio contra as injustiças sociais:
uma luta do povo miúdo contra os magnatas.

Devemos ainda lembrar-nos dos cinco anos inteiros entre o fim de 1864 e
o começo de 1870 em que se travou a Guerra do Paraguai, em que soldados
negros tiveram uma atuação especial.

Se houve levantes no segundo Reinado, também os houve na República: o cerco


da Lapa até hoje está vivo nos corações paranaenses como um sangrento episódio
da Revolução Federalista entre 1893 e 1895. Entretanto, o período republicano viu
dezesseis pequenos ou grandes incidentes, com o maior deles em 1930, que trouxe
Getúlio Vargas (1882-1954) para o comando do Brasil por um quarto de século.

Uma literatura mais brasileira na língua e nos assuntos começa com os poetas
e os romancistas do Romantismo.

O início é a prosa com o romance de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882),


que ainda hoje se pode ler com prazer: A Moreninha (1844).

Pouco depois ocorre o início da poesia com Antônio Gonçalves Dias (1823-
1864) com o primeiro de seus livros: Primeiros Cantos (1846 na capa e 1847 na
edição). Morreu no naufrágio do Ville de Boulogne nas costas brasileiras.

A primeira opinião sobre o seu valor veio de Alexandre Herculano (1810-1877


apud DIAS, 1954, p. 16), poeta, romancista e historiador português, que chega a
citar um de seus poemas: “Julgamento crítico”.
Os primeiros cantos é um belo livro; são inspirações de um grande poeta. A terra de Santa
Cruz, que já conta outros no seu seio, pode abençoar mais um ilustre filho. O autor, não o
conhecemos, mas deve ser muito jovem. Tem os defeitos dos escritos ainda pouco amestrados
pela experiência: imperfeições de língua, de metrificação, de estilo. Porém o tempo apagará
essas máculas, e ficarão as nobres inspirações estampadas nas páginas deste formoso livro.

Acusado de não saber português, Gonçalvez Dias não deixou por menos.
Defende-se indiretamente, mas muito diretamente, escrevendo um livro inteiro
à moda dos velhos trovadores e na língua deles: Sextilhas de Frei Antão.

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Leio em Geraldo Mattos (1931) um parágrafo de um dos livros didáticos


(MATTOS, 1970, p. 172) sobre Gonçalves Dias: “foi um poeta culto e conhecedor
de toda a técnica do verso que cuidava ao extremo, mas tinha muita facilidade
em compor, tanto que, certa ocasião, num baile de máscara, improvisou para
uma dama, indecisa entre ele e um outro”:

Senhora, já que podeis


Dizer que não, ou que sim,
A ambos não magoeis:
Dizei – sim, mas não a ele;
Dizei – não, mas não a mim.

Um dos seus poemas é talvez o mais conhecido e admirado e proveio dos


sete anos que passou estudando em Portugal entre 1838 e 1845, depois de sair
do Brasil aos quinze anos: “Canção do exílio”. Ela abre seus Primeiros Cantos (DIAS,
1997, p. 27-28):

Minha terra tem palmeiras


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

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Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Vamos agora para o melhor romancista do Romantismo: José Martiniano de


Alencar (1829-1870). Ainda que o seu primeiro romance impresso seja Cinco Mi-
nutos, de 1856, o seu romance mais feliz é O Guarani, publicado em folhetins no
jornal Diário do Rio entre 1856 e 1857. Os seus romances como que acompanham
o território nacional e a história da terra brasileira desde a pré-cabralina: tem do sul
O Gaúcho (1870) e do nordeste O Sertanejo (1875), antes de Cabral Ubirajara (1874)
e depois dele As Minas de Prata em dois volumes (1865-1866) e muitos outros.

Ficou muito conhecida a polêmica que travou com Joaquim Nabuco, que ata-
cava na galhofa e se arrependeu mais velho (ALENCAR, 1978, p. 96-97):
O Sr. J. Nabuco não deve falar em estilo, ao menos por algumas semanas, enquanto não
esquece de todo o que escreveu acêrca do Tartufo. Afirmar com autoridade de pedagogo que
Molière é intraduzível na língua portuguêsa, só o podia fazer quem não conhece nosso rico
idioma, e apenas sabe usar dêle um traste para o serviço de sua pessoa.
No Guarani descreve-se a onça no momento do assalto “com o corpo direito e os dentes prestes
a cortar a jugular do índio”. O meu atilado crítico leu, pensou e concluiu que “o tigre devia ter
certo conhecimento de anatomia”.
Talvez haja quem se admire disto; eu, porém, acho tão naturais estas descaídas de um talento
precoce! Só estranho que, dizendo-se ter o tigre acometido o índio, não induzisse o crítico daí
que o animal também era versado em etnologia.

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E Alencar (1961, p. 105) vergastou1 ferrenhamente Gonçalves de Magalhães


pela epopeia lançada em 1856: Confederação dos Tamoios. Como parece que
todos concordaram com ele, a sua fama se fez em cima dessa crítica:
Bem sei que o Sr. Magalhães não teve pretensões de fazer uma Ilíada ou Odisseia americana;
mas quem não é Homero deve ao menos imitar o mestre; quem não é capaz de criar um
poema, deve ao menos criar no poema alguma.

O maior erro de Gonçalves de Magalhães foi o de tomar como assunto um


acontecimento que lhe dava poucas realidades e nenhuma delas extraordinária,
mas ao mesmo tempo exigindo dele uma vocação de romancista, de que certa-
mente ele carecia.

E findo o Romantismo com Antônio de Castro Alves (1847-1871) com seu


verso eloquentemente altissonante. Como Gonçalves Dias foi o poeto dos
índios, Castro Alves foi o poeta dos negros: Espumas Flutuantes (1870) e Os Es-
cravos (1883).

Depois do Romantismo, o Realismo e o Naturalismo produziram cada um o


seu romancista extraordinário:

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), é um completo romancista


por seu realismo na análise do caráter feminino em seu Dom Casmurro (1899),
pessimista e acabrunhante.

Em seu doloroso soneto “A Carolina”, em que a dor se escancara, Machado de


Assis nos deixa um exemplo de finíssima figura de estilo no verso que segue em
destaque (MATTOS, 1970, p. 34-35):

Querida, ao pé do leito derradeiro


Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro


Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pos um mundo inteiro.

1
Vergastar: golpear com vergasta; chicotear, chibatar, açoitar (HOUAISS, 2004).

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Trago-te flores, – restos arrancados


Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos


Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Para dizer da trágica separação sem falar dela, Machado de Assis distancia
dois elementos oracionais de maneira violenta, bastando comparar o verso em
destaque com a ordem direta e comum do nosso dia-a-dia:

E ora nos deixa mortos e separados.

A separação desses termos da oração leva o inconsciente do leitor à separa-


ção dos corpos do casal. Esta partição contrasta fortemente com o fim do verso
anterior, que mostra a antiga proximidade do casal: que nos viu passar unidos.
Muito bem bolado, desde que bem entendido.

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913) é o romancista dos


negros, com a dolorosa história do seu O Cortiço (1890). É preciso lembrar-nos
de que o fim da escravidão tinha acontecido quase que na véspera do apareci-
mento do romance: um assunto, portanto, plenamente contemporâneo. Como
naturalista, Aluísio de Azevedo sentia-se obrigado a escolher a exceção mais
cruel e colocar no fim do romance uma cena que nos corta o coração (AZEVEDO,
2004, p. 206-207):
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o
corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez
de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de
alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao
cativeiro.
Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando
escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.
– É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraça a segui-los. – Prendam-
-na! É escrava minha!
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão
e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então,
erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse
alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.

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João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas
que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

A escrava Bertoleza tinha servido a João Romão a vida inteira e o ajudara em


tudo a adquirir a riqueza que agora o afastava dela. Essa foi a sua paga.

Junto com o Realismo e o Naturalismo floresce o Parnasianismo, que adota o


purismo da linguagem e a perfeição do verso em sua métrica e na estrutura do
poema, além de se manter o poeta em suas torres de marfim alheio às necessi-
dades sociais. O maior dos seus poetas é Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac
(1865-1917), bom construtor de sonetos.

Pouco tempo depois do aparecimento do Realismo e do Naturalismo vêm os


poucos anos do Simbolismo, que abandona a técnica, a frieza e a materialidade
parnasiana para deixar-se levar pelo sonho e pela fantasia, ainda que cuidan-
do bem da linguagem. Essa escola deu-nos vários autores muito bons, mas um
deles merece aqui um destaque todo especial por ser um dos maiores poetas
brasileiros: João da Cruz e Sousa (1861-1898), filho de pais escravos, mas adota-
do pelos senhores de seus pais, teve uma boa educação, dedicou-se ao jornalis-
mo e viajou entre o Amazonas e o Rio Grande do Sul pregando o abolicionismo.
Publicou em 1893 as duas obras que o tornaram conhecido e admirado: Bro-
quéis, poemas, e Missal, prosa poética.

Língua do século XX
O século XX começa com uma polêmica que teve nesse tempo uma repercus-
são fantástica por envolver dois baianos: o professor Ernesto Carneiro Ribeiro e o
jurista Rui Barbosa. Depois de um primeiro confronto, houve uma Réplica de Rui
Barbosa, com 599 páginas, e uma Tréplica de Carneiro Ribeiro, com 889 páginas,
ambas sobre a redação do projeto do Código Civil da Câmara dos Deputados do
Rio de Janeiro.

O nosso primeiro século de independência termina em 1922 para a nossa


Literatura, mas para a nossa sociedade somente em 1943.

Fiquemos com a literatura, que inicia o seu Modernismo.

A procura de novos caminhos artísticos marca o princípio do século passa-


do em todo o mundo. Houve um cansaço tremendo e sentiu-se que diminuía a

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criação artística à medida que crescia assustadoramente a imitação do passado,


conduzindo todos a uma repetição monótona de velhos moldes de beleza. As
novas atitudes artísticas não puderam encontrar-se sem um longo período ico-
noclasta, uma derrubada completa dos ídolos passado, tamanhamente pesava
sobre todos a influência da arte velha.

O movimento brasileiro conheceu os congêneres europeus e, porventura,


deles lucrou a necessária coragem para erguer-se, agitar-se e irromper finalmen-
te, mas se mostrou nitidamente nacionalista e descompromissado com outros
levantes artísticos do velho mundo. Cumpre-nos, pois, uma rápida visão dessas
tentativas modernistas de outras terras.

O Cubismo nasceu em 1908 com Picasso (1881-1973) e Braque (1882-1963),


com a finalidade de tornar-se uma arte de pura criação, sem nenhuma imitação,
sob o princípio de que os sentidos deformam e apenas o espírito forma.

O Fulvismo aparece com o pintor Matisse (1869-1954), em 1905, e pretende


exprimir-se apenas através de cores puras, exaltando o sentimento e o pensa-
mento do artista diante da natureza.

O Futurismo parte de Marinetti (1876-1944), em 1909, renegando todo o


passado, celebra o homem mecânico e procura traduzir o enorme ruído da téc-
nica moderna pela desarmonia da linguagem, violada extremamente.

O Dramatismo, de 1912, tenta reproduzir o homem integral, do indivíduo


ao universo, compondo o poema com a simultaneidade de realidades diversas,
heterogêneas.

O Dadaísmo reúne um grupo de escritores do período posterior à Primeira


Guerra Mundial (1914), que negam qualquer relação entre o pensamento e a
sua expressão. O maior representante desta escola foi Tristan Tzara, que mais
tarde passaria para o Surrealismo, como muitos outros dadaístas; entre eles, o
próprio André Breton (1896-1966).

O Surrealismo, inaugurado em 1924 por André Breton (1896-1966), procura


externar o pensamento puro sem nenhum controle da razão.

Antecedentes do Modernismo brasileiro


Tasso da Silveira (1895-1968) chama Sincretismo aos primeiros vinte anos de
arte brasileira deste século: uma arte mista de técnicas parnasianas em simbolis-

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tas, frágil para firmar-se como escola, mas suficiente para lavrar a terra em pre-
paro da eclosão do Modernismo.

A prosa mostrou-nos Lima Barreto (1881-1922) – (Recordações de Isaías Ca-


minha, 1909) e Adelino Magalhães (1887-1969) – (Casos e Impressões, 1916). A
valorização da realidade brasileira com Euclides da Cunha (1866-1909) – (Os Ser-
tões, 1902), Oliveira Viana (1883-1951) – (Populações Meridionais do Brasil, 1920)
e Gilberto Amado (1887-1969). A própria linha nacionalista e, ainda mais, regio-
nalista do Modernismo remonta a Simões Lopes Neto (1865-1916) e a Monteiro
Lobato (1882-1948).

Além dessa prosa artística, houve ainda a didática em que se destaca a po-
lêmica entre o jurista Rui Barbosa e professor Ernesto Carneiro Ribeiro sobre a
redação do projeto do Código Civil. Dois livros surgiram desse embate de ideias,
que hoje nos parecem um tempo que se poderia aproveitar melhor: a Réplica de
Rui Barbosa, de 599 páginas, e a Tréplica de Carneiro Ribeiro, de 889 páginas.

Semana de Arte Moderna


O movimento modernista foi preparado por longos anos e pouco antes da
data oficial aparecem três obras importantes, já reveladoras do novo estado de
espírito que ia vencer nas letras: A Cinza das Horas (1917), de Manuel Bandeira
(1886-1968), Há uma Gota de Sangue em cada Poema (1917), de Mário de Andra-
de (1893-1945) e Juca Mulato (1917), de Menotti del Picchia (1892-1988).

Quando estava consciente a ideia da necessidade de reforma, paulistas e ca-


riocas se reuniram para uma apresentação pública no Teatro Municipal de São
Paulo, com sessões realizadas a 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Apareceram
pintores (Anita Malfatti (1889-1964) e Di Cavalcanti (1897-1976), músicos (Villa-
-Lobos (1887-1959) e Guiomar de Novaes (1894-1979) e escritores (Mário de An-
drade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954) e promoveram a Semana
de Arte Moderna para escândalo da arte tradicional da época.

A Graça Aranha (1868-1931) coube o discurso inaugural, emprestou ao mo-


vimento o seu prestígio pessoal e chegou a ser considerado, para desgosto dos
modernistas, orientador e chefe do movimento.

Mário de Andrade (1893-1945), um dos maiores batalhadores do Modernis-


mo, arrolou os objetivos do movimento:

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 ruptura das tradições acadêmicas;

 destruição do espírito conservador e conformista;

 demolição de tabus e preconceitos;

 obediência a três princípios:

 ao direito à pesquisa;

 à atualização da inteligência artística brasileira;

 à formação da consciência criadora nacional.

Desses objetivos advêm os caracteres modernistas:

 inteira liberdade formal de escolha de assunto e de construção da obra


de arte;

 consciência de brasilidade da linguagem e do assunto;

 com isso adotou-se a linguagem coloquial, mais próxima do povo, o verso


livre e o assunto cotidiano.

Os principais autores do início do nosso Modernismo, poetas e prosadores,


historiados e sociólogos, nasceram na sua maioria em fins do século XIX e por-
tanto, conscientemente optaram pelo Modernismo depois do escândalo da
Semana de Arte Moderna, o que se mostra claramente com os dois poemas de
Mário de Andrade, o primeiro modernista e o segundo com técnicas simbolistas
(ANDRADE, 1972, p. 93):

1.º

Meu gozo profundo ante a manhã Sol


a vida carnaval...
Amigos
Amores
Risadas
Os piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos
de artistas de cinema, desses que vêm nos maços de cigarros.
Me sinto a Assunção de Murilo!

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Já estou livre da dor...


Mas todo vibro da alegria de viver.

Eis porque minha alma inda é impura.

2.º
Platão! Por te seguir como eu quisera
De alegria da dor me libertando
Ser puro, igual aos deuses que a Quimera
Andou além da vida arquitetando!

Mas como não gozar alegre quando


Brilha esta alva manhã de primavera
– Mulher sensual que junto a mim passando
Meu desejo de gozos exaspera!

A vida é bela! Inúteis as teorias!


Mil vezes a nudeza em que resplendo
À clâmide da ciência, austera e calma!

E caminho entre aromas e harmonias


Amaldiçoando os sábios, bendizendo
A divina impureza de minha alma.

Na minha visão, tivemos com Manuel Bandeira Carneiro de Sousa Filho (1886-
-1968) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) os nossos maiores poetas
do século passado e com José Lins do Rego (1901-1975) e Jorge Amado de Faria
(1912-2001) os nossos maiores romancistas. E tem João Guimarães Rosa (1908-
-1967), que não queria entrar para a Academia Brasileira de Letras por medo de
morrer logo depois. E ele entrou bem. Ora, pois.

E também chega para a sociedade o segundo século da nossa independência


política, ainda que tardiamente: em primeiro de maio de 1943, quando foi assinado
por Getúlio Vargas e Alexandre Marcondes Filho o Decreto-Lei 5.452 que aprova a
Consolidação das Leis do Trabalho, encerrando o sistema patriarcal brasileiro.
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Texto complementar

A professora Neide Smolka nos premia com um texto nordestino que nos traz
palavras desconhecidas fora daquele local, mas a língua é a mesma, além de
também outros estados terem palavras só deles.

Nosso idioma
(SMOLKA, 2008)

Formação da Língua Portuguesa

[...] a história da nossa língua, por várias razões, é bem complexa e origi-
nal. Assim sendo, julgo mais interessante ater-me à problemática do desen-
volvimento da língua portuguesa especificamente no caso brasileiro, o que,
acredito, vai deixar mais claro o porquê, sob o ponto de vista filológico, da
abertura a “empréstimos”, necessários e desnecessários, que aqui existe.

Em primeiro lugar, de acordo com o que ensina Serafim da Silva Neto, em


seu livro Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (1950), pode-
mos dividir em três fases a sua história. A primeira fase começa com o início
da colonização (1532) até a expulsão dos holandeses de nossa terra (1654).
A segunda vai até a vinda da família real portuguesa para o Brasil (1808) e a
terceira, daquele momento até os nossos dias.

A primeira fase é representada, em sua grande parte, pelo uso da cha-


mada “língua geral”, baseada praticamente no tupi com influências de lín-
guas banto e sudanesas da África. O português era falado pelas famílias
lusitanas que para cá vinham e começou a ser ensinada pelos jesuítas aos
índios, tendo em vista a sua catequese. Criou-se, dessa forma, um “linguajar
de emergência”, uma linguagem especial falada pelos mamelucos e mulatos
e usada também pelos mercadores nas suas viagens e pelos bandeirantes e
outros aventureiros em suas expedições sertão a dentro.

Já na segunda fase, a “língua geral” vai sendo pouco a pouco desterrada,


limitando-se a ser falada nas povoações do interior e nos aldeamentos dos je-
suítas. Vai aumentando consideravelmente a quantidade de imigrantes lusita-
nos, e são, por isso, instalados, cada vez em maior número, colégios para aten-

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derem a essa população. Surgem estudiosos e professores de nossa língua,


como é o caso do Pe. Vieira. Ele próprio, em sua obra Sermões (1690), comenta
que a “língua geral” está desaparecendo e que se fala no Brasil, naquela época,
além dela, mais quatro línguas: a portuguesa, a etiópica (usada principalmen-
te na Bahia pelos padres para catequizar cerca de vinte e cinco mil negros que
lá viviam) e duas indígenas (tupi e tapuia, utilizadas no interior).

Essa segunda fase representa a real preparação para a instalação definiti-


va da língua portuguesa no Brasil, o que vai acontecer, de fato, com a vinda
da Família Real, em 1808, quando tem início a terceira fase que perdura até
os nossos dias.

Como se pode ver, a língua portuguesa foi entrando no Brasil gradativa-


mente, sofrendo influências indígenas e africanas, o que não impediu que,
principalmente pelo fato de não terem sido línguas escritas o tupi, o banto e
os vários falares sudaneses, o português saísse vitorioso como nossa língua e
mais, como o maior responsável pela unidade nacional de nosso país.

Aliás, no Brasil, não existem dialetos, mas apenas falares típicos em regi-
ões distintas. A estrutura gramatical é totalmente a mesma. As diferenças
regionais dizem respeito apenas à área da semântica.

A propósito, julgo interessante mostrar a vocês pelo menos um exemplo


de falar típico de um de nossos Estados. Há alguns anos estudei os falares de
alguns deles e pedi ao jornalista Walter Sampaio que criasse algumas estó-
rias em que aparecessem termos típicos de cada região. Vou ler uma delas
para vocês. Ouçam com atenção, pois assim vão ver praticamente a diferen-
ça entre dialeto e falar. Escolhi um trecho que apresenta o linguajar do Rio
Grande do Norte:

“Ele queria ser bandejo. Pensava que o melhor caminho era bancar o mi-
trado porque assim mostraria tenência e, quem sabe, as pessoas vissem nele
borogodó. Mas, o grande problema para atrapalhar seus planos é que ele
estava enfadado. E tinha também muita pissica...”

Vamos traduzir?

“Ele queria ser famoso. Pensava que o melhor caminho era bancar o ladino
porque assim mostraria sabedoria e, quem sabe, as pessoas vissem nele
algum atrativo. Mas, o grande problema para atrapalhar seus planos é que
ele estava em má situação financeira. E tinha também muita falta de sorte...”

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A meu ver, é bom salientar que, quando se estuda a formação de uma


língua, são utilizados, em filologia, três termos técnicos: stratum, substratum
e superstratum. Em Filologia Românica, por exemplo, o latim é o stratum, o
substratum, no caso específico da Península Ibérica, era a língua falada pelos
iberos e celtiberos quando os romanos lá chegaram e o superstratum foram
as línguas que influenciaram o latim já instalado na região.

Se estivermos tratando de Filologia portuguesa, o real substratum do por-


tuguês falado no Brasil foram as línguas indígenas, [...] sobretudo o tupi, uma
vez que os índios eram autóctones, e a primeira leva de escravos negros tra-
zidos para cá data de 1538. No século XVI, chegaram ao Brasil cerca de três
mil negros que foram espalhados por toda a colônia, num total de mais de
cinco milhões para aqui trazidos, entre aquele século e o século XIX.

Quanto aos superstratos que nos legaram influências de todo o tipo,


temos vários povos que aqui estiveram, primeiro lutando para conquistar
regiões de nosso país, como holandeses e franceses, por exemplo, e, depois,
imigrantes, principalmente italianos e alemães, que vieram para trabalhar
sobretudo na agricultura.

Atividades
1. Que fato extraordinário ocorreu no início do século XIX?

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