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Jean Baudrillard, o filósofo diferente

Kathleen Gomes
8 de Março de 2007, 0:00
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Recusou fazer parte de um filme pop - Matrix - como recusou tudo o que fosse
mainstream. Era um provocador, um não-alinhado. E - o que também contribuiu para a
sua obra - tinha casa em Alfama.

a Jean Baudrillard tinha um apartamento em Alfama.A primeira coisa que fazia quando
chegava a Lisboa, diz o filósofo José Gil, era apanhar um táxi e ir directamente para a
Fonte da Telha, que considerava uma das suas praias de eleição.
"Gostava muito de Portugal, conhecia muito bem Lisboa", diz Gil, que teve Baudrillard
entre a assistência, quando deu aulas no Collège Internationale de Philosophie, em
Paris, nos anos 80. Portugal surge como um dos destinos favoritos no quarto volume das
suas Cool Memories (cinco livros publicados de 1987 a 2005).
O destino favorito não soube retribuir.
"Era um grande desconhecido aqui em Portugal", diz José Gil, acrescentando, a título de
comparação: "Digamos que se o Derrida tivesse uma casa em Alfama e descesse do
avião para ir à Fonte da Telha, saber-se-ia quase de certeza."
A filosofia também tem o seu star-system.
Jean Baudrillard, figura tutelar do pós-modernismo francês, morreu anteontem aos 77
anos, vítima de doença prolongada - o anúncio foi feito por Michel Delorme, director da
Galilée, a sua editora desde final dos anos 70.
Nuno Nabais, professor de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e dono da livraria
de filosofia e teatro Eterno Retorno, nota que "em Portugal ninguém lê Baudrillard".
(Esta declaração, por si só, arrisca-se a ser tomada como um insulto para os estudantes
de Ciências da Comunicação que leram Baudrillard na faculdade, mas não é a isso que
ele se refere). "Todos nós temos o nosso mito privado. Eu tenho o mito de que não
pertenço à comunidade filosófica em Portugal. Sou um pária. E alimento esse mito
lendo Baudrillard. O seu impacto cá é nenhum", diz Nuno Nabais.
José Gil adianta algumas explicações para o facto de o filósofo francês não ser "um
nome de referência como foram tantos outros da mesma geração": "por causa das
próprias ideias de Baudrillard" e pelo seu pensamento contra-corrente.
A geração de Baudrillard foi prodigiosa, um grupo de pensadores que ganhou influência
e notoriedade nos anos 60 e 70, notava ontem o New York Times, "apesar da densidade
e dificuldade do seu trabalho". Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Jean-
François Lyotard, Pierre Bourdieu, Gilles Deleuze.
Como afirma Nuno Nabais, Baudrillard "é um dos últimos moicanos de uma geração
onde escrever um livro era abrir mais uma trincheira no pensamento". E a posição dele
era a de franco-atirador, um não-alinhado. "Foi sempre alguém que teve ideias próprias,
diferentes, nunca esteve numa corrente", resume José Gil.
"Ele tinha uma certa distância face ao núcleo duro da filosofia contemporânea dos anos
60 e 70, o que fez da sua obra uma ilha teórica." O obituário do Libération, ontem,
assinalava: "fosse qual fosse o assunto abordado, Jean Baudrillard dizia sempre
qualquer coisa que nunca ninguém tinha dito".
Esquivou-se a correntes de pensamento como, de resto, recusou colaborar com um filme
que o poderia ter relançado como filósofo pop no século XXI - os irmãos Wachowski
tentaram por diversas vezes envolvê-lo nas sequelas de Matrix, depois de no filme
original, de 1999, o herói protagonizado por Keanu Reeves ser visto com um livro de
Baudrillard nas mãos, Simulacros e Simulação.
Teórico radical
Nascido a 20 de Julho de 1929 em Reims, Jean Baudrillard foi o primeiro da sua família
a prosseguir estudos universitários. Formado em Germânicas na prestigiada Sorbonne,
começou por trabalhar como professor de alemão no ensino secundário, sensivelmente
na mesma época em que assinou crítica literária na revista fundada e dirigida por Jean-
Paul Sartre, Les Temps Modernes, e traduziu Brecht e Marx, entre outros.
Retoma os estudos superiores, desta vez em Sociologia, onde defenderá uma tese
intitulada O Sistema dos Objectos, onde elabora a sua ideia de uma sociedade de
consumo actualizando Marx. Em 1968, a tese converte-se no seu primeiro livro, com o
mesmo título - hoje um clássico, ao lado de Mitologias, de Roland Barthes.
O seu livro seguinte, A Sociedade de Consumo, irá prosseguir uma leitura simbólica, e
negativa, do consumo - a ideia de que, para lá de uma lógica funcional (a satisfação de
uma necessidade), os consumidores também obedecem a uma lógica imaterial,
imaginária, associada ao preço, à marca ou design do produto, à publicidade, etc.
Nuno Nabais vê nessas teorias "uma certa histeria de denúncia de mecanismos
económicos e sociais" que, supostamente regulam a vida social.
O discurso de Baudrillard irá radicalizar-se, com a tese de que vivemos todos num
mundo em que a simulação substituiu a realidade. O real objectivo não existe, o que
existe é uma hiper-realidade onde predominam representações virtuais do mundo.
José Bragança de Miranda, professor de Comunicação na Faculdade de Ciências sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa - e um estudioso e teórico de conceitos
caros a Baudrillard, como a questão da imagem na sociedade contemporânea ou o
virtual - criticava ontem no PÚBLICO as teorias de Baudrillard, em particular a do
simulacro, considerando-as "exageradas" e antecipando que a sua obra não terá grande
futuro.
É verdade que eram exageradas, reconhece Nuno Nabais, mas isso fazia parte do seu
estilo. Era, digamos, a sua forma de se fazer ouvir. Sobretudo porque "teve o azar de
viver numa altura em que a França estava dominada por paradigmas teóricos quase
imperiais." Deleuze, Foucault, Derrida, etc... Baudrillard "inventou um não-lugar que o
torna intratável". Talvez por isso nunca tenha colhido grande simpatia entre a
comunidade filosófica portuguesa. Em todo o caso, o que Nabais admira nele é o "estar
sempre à margem do mainstream".
O Libération fazia ontem o elogio de um homem atento a tudo, de uma curiosidade sem
fim: "Ele não falhava nada, nenhum livro, nenhum artigo, nenhum gesto, nenhuma
paisagem, uma exposição, um filme, uma expressão num rosto, uma postura, um fato,
um lenço, um logotipo, uma sombra, um ecrã de televisão, um candeeiro a gás, o
alcatrão molhado da chuva, uma peça de teatro, um conflito político, uma guerra".
"A guerra do Golfo não aconteceu", declarou Baudrillard em 1991, quando os
americanos proclamavam vitória sobre Saddam Hussein na sequência da operação
Tempestade do Deserto. O argumento: a guerra não tinha sido mais do que um
simulacro, cuidadosamente orquestrado pelos media audiovisuais.
No espaço de um ano, após os ataques terroristas do 11 de Setembro, Baudrillard
publica vários ensaios no Le Monde, depois reunidos em livro, onde revela um
pensamento desalinhado - e provocador - e pouco solidário para com as vítimas da
tragédia. Por um lado, afirma que o 11 de Setembro constituiu um acontecimento com o
qual o mundo inteiro sonhara (dada a hegemonia americana), por outro lança a dúvida
sobre a origem islâmica da destruição do World Trade Center.
Polemista até ao fim, portanto.
Foi uma testemunha atenta da actualidade, do seu tempo - ao ponto de, em 2001, assinar
várias crónicas no Libération sobre a versão francesa do reality-show Big Brother.
Apesar da força e notoriedade de algumas das suas teses, "seria muito redutor" tentar
definir Baudrillard, defende António Pinto Ribeiro, formado em Filosofia e
Comunicação, programador artístico da Fundação Calouste Gulbenkian. "Ele tem várias
fases. Uma das suas riquezas é o facto de ter trabalhado em vários assuntos e várias
questões paralelamente. Nesse sentido, é um filósofo contemporâneo. Não tem um
sistema que encerre todos os problemas. É um autor da disseminação de ideias."

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