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Fenomenologia e subjetividade.

Análise fenomenológica do conhecimento:


representacionismo versus antirrepresentacionismo

Prof. Dr. António Costa


(Universidade Católica Portuguesa – Porto - Portugal)
amacosta@porto.ucp.pt

Resumo: O nosso objetivo neste ensaio é apresentar a teoria fenomenológica do conhecimento em


contraposição como a teoria pragmatista do conhecimento. Deste modo, avaliaremos essas duas posições
filosóficas apresentando as suas limitações e insuficiências mas também as suas potencialidades. Enquanto a
fenomenologia atribui valor ao sujeito transcendental e à consciência, na tentativa de atingir as coisas
mesmas e as suas essências e, assim, encontrar o fundamento último do real, o pragmatismo distancia-se
totalmente desta posição gnoseológica, procurando, não uma ciência exata, absoluta e universal, mas um
discurso que possibilita várias interpretações da realidade e novas formas de interrogação e de investigação.
Ou seja, o pragmatismo procura um discurso anormal, reativo que, no fundo, permita à linguagem e ao
pensamento renovarem-se, e com eles a filosofia.

Palavras-chave: Fenomenologia; Essências; Representacionismo; Antirepresentacismo; Linguagem;


Pragmatismo.

1. Considerações iniciais
Um dos aspetos mais interessantes ao abordar a problemática da teoria do conhecimento, no
âmbito da fenomenologia, é o fato de termos que ter em conta pelo menos dois aspetos que me
parecem serem fundamentais para o estudo aprofundado deste tema. Primeiro, não há uma
fenomenologia mas várias. Na análise fenomenológica do conhecimento o paradigma que
normalmente se parte é o do Filósofo Husserl, uma vez que este pensador é considerado como o
grande iniciador do método fenomenológico. Contudo, a partir dele ou por causa dele, surgiram um
conjunto de filósofos que também adotaram o método fenomenológico mas, por razões de
orientação, de escolha e de interesse filosófico diverso daquele que teve Husserl, adotaram o
método fenomenológico ajustado aos seus propósitos, ora numa perspectiva mais próxima do seu
iniciador, ora numa perspectiva mais distanciada de Husserl.
Um segundo aspeto a ter em conta na nossa abordagem desta questão é o fato de termos que
fazer uma desconstrução desse método e, por isso mesmo, novas questões surgem e que em muito
se distanciam daquelas que foram colocadas por Husserl e por alguns dos seus seguidores. Aliás,
uma vez que a teoria representacionista do conhecimento, apresentada por alguns filósofos do
conhecimento, parte de um pressuposto dualista, entre aquilo que chamam sujeito e aquilo qua
chamam objeto do conhecimento, entre outros dualismos, é natural que as questões que colocam,

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para descrever e explicar a sua teoria do conhecimento, sejam diversas e muito diferentes daquela
outra perspectiva, anti-representacionista, do conhecimento. Para isso, usaremos a teoria
pragmatista do conhecimento para desconstruir a teoria do conhecimento assente em bases
fenomenológicas, sobretudo a perspectiva apresentada por Richard Rorty e por alguns teóricos mais
conhecidos desta corrente filosófica alternativa e que, segundo nós, é bem mais interessante, maís
profícua e mais edificante1.
Neste sentido, iremos apresentar (de forma não muito desenvolvida) o método
fenomenológico de Husserl, para contextualizar a questão. Apresentaremos também outras correntes
fenomenológicas diversas daquela preconizada por Husserl para assim percebermos melhor os
problemas do conhecimento que aparecem, nomeadamente, em autores como Nicolai Hartmann e
Johann Hessen, entre outros. Só assim estaremos em condições de vermos a mudança de paradigma
gnoselógico apresentado pelas correntes pragmatistas em contraposição às correntes, mais
tradicionais, fenomenológicas do conhecimento.
Assim, o que aqui se vai propor é uma análise gnosiológica do conhecimento a partir de um
caso particular e, eventualmente, o mais ilustrativo, que é o método fenomenológico de Husserl,
passando um pouco pelo fenomenologia de Heidegger 2. Nesta viragem hermenêutica, da
fenomenologia para o pragmatismo, iremos contrapor as duas perspectivas filosóficas do
conhecimento e avançaremos para a interpretação pragmatista, no sentido de conceber o
conhecimento, não como a busca das essências, mas como um trabalho constante de reconstrução
da nossa imagem do mundo e, sobretudo, como uma procura de uma forma melhor e mais adequada
de lidar com o mundo e conosco próprios.

2. O método fenomenológico e a teoria do conhecimento de Husserl


A fenomenologia de Husserl é um método e um modo de ver e refere-se a uma pura

1 Não deixa de ser interessante que Husserl queira construir uma filosofia como ciência de rigor contra as perspectivas
filosóficas de então e outras já com alguma história tanto no campo da ciência, como no campo da filosofia
propriamente dita, tais como o positivismo, naturalismo, pragmatismo, historicismo e o relativismo. Este ponto de vista
é sobretudo relevante na obra de Husserl A Filosofia como ciência de rigor, (Philosophie als strenge Wissenschaft) de
1911. Por isso, pensar a Filosofia como ciência de rigor é, segundo Joaquim de Carvalho, pensá-la como «Filosofia
Absoluta», isto é, como indagação de verdades absolutas e que existem em si, e não como expressão de anseios e de
satisfações humanas. Cf. HUSSERL, Edmundo. A Filosofia como Ciência de rigor. Prefácio de Joaquim de Carvalho,
Trad. Albin Beau, Coimbra, 1965, p. XXVII.
2 Relativamente a esta questão, não podemos esquecer que Heidegger, sobretudo a partir de Sein und Zeit, marca uma
rutura como o método fenomenológico mais tradicional. A partir da sua outra obra, Carta sobre o Humanismo,
Heidegger oferece-nos uma outra interpretação (e retificação) acerca da fenomenologia. Cf. HEIDEGGER, Carta sobre
o Humanismo, Tradução revista, sobre a versão do Doutor Arnaldo Stein, de Pinharanda Gomes, Prefácio de Doutor
António José Brandão, Guimarães & C.ª Editores, Lisboa, 1980. Cf. ainda em, RESWEBER, Jean-Paul, O Pensamento
de Martins Heidegger, Trad. João Agostinho A. Santos, Livraria Almedina, Coimbra, 1979, p. 62-63.

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descrição daquilo que aparece, distanciando-se, deste modo, tanto da teoria do conhecimento
cartesiano como da kantiana. Como sabemos, tanto Descartes como Kant, cada um à sua maneira,
valorizaram o papel do sujeito no ato de conhecimento dando uma dimensão fundamental à questão
da subjetividade. A aproximação de Husserl a Descartes e mesmo a Kant tem assim os seus limites
bem definidos e como se verá isso é por demais evidente tanto na obra A ideia de Fenomenologia
como em A Filosofia como Ciência de Rigor e em (Ideen) para já não falar noutras obras anteriores
e posteriores a estas obras. Num lance rápido, a fenomenologia husserliana embora inspirada em
Descartes, Kant e Brentano, entre outros, não segue linearmente estes filósofos e, em muitos casos,
afasta-se deles no essencial da sua filosofia. Isto, penso, será evidente ao longo deste ensaio.
Contudo, no caso de Descartes e de Kant, Husserl nem procura uma filosofia como sistema, nem dá
à lógica o valor que Descartes e Kant lhe atribuíram. Por outro lado, a dúvida cartesiana, na qual
Husserl se inspirou na sua famosa Epoché, também não passou disso mesmo, de uma inspiração
para depois seguir outros caminhos bem diferentes. Uma vez que não podemos seguir por uma
atitude natural para se chegar ao autêntico conhecimento, e por isso temos que colocar o mundo
natural entre parênteses, a dúvida cartesiana, expressa na meditação cartesiana sobre a dúvida,
segue um caminho algo parecido àquele que Husserl percorreu, uma vez que, segundo Descartes,
não devemos aceitar nada que não se apresente ao nosso espírito como sendo certo e evidente, ou
seja rigoroso. Apesar da dúvida cartesiana colocar o conhecimento em causa, não o coloca, no
limite, todo o conhecimento. E, por isso, é como sabemos, não uma dúvida universal, mas uma
dúvida metódica e provisória.
Embora o pensamento de Descartes, como facilmente se percebe, fosse o que mais
influenciou Husserl, ao ponto de este ter chamado, na sua obra de 1931, Meditações cartesianas, ao
seu método fenomenológico, como um «neocartesianismo»3, o caso de Husserl é mais profundo. A
sua «dúvida» é mais radical e universal. Husserl ao colocar a realidade toda entre parenteses, quer
fazer uma crítica ao conhecimento, elucidar, clarificar e ilustrar a essência do conhecimento e a sua
pretensão à validade universal e absoluta. Ou seja, trazer a essência e dar-se a si mesma
diretamente. A intuição e a evidência husserliana têm muita mais força e razão de ser naquilo que se
refere aos objetivos que o método fenomenológica se propõe atingir. No caso de Kant, além daquilo
que foi dito, a grande crítica que Husserl lhe faz é o fato de Kant apesar de ter feito a distinção entre
juízos de perceção e juízos de experiência, que Husserl achou útil, diz que Kant “não atingiu a
intenção última da distinção aqui tão necessária, visto que lhe faltava o conceito de fenomenologia e
3 Cf. FRAGATA, Júlio. Problemas da Fenomenologia de Husserl. Livraria Cruz, Braga, 1962, p. 94-99, sobre as
semelhanças e diferenças entre a filosofia de Descartes e Husserl.

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de redução fenomenológica e porque não conseguiu desenvencilhar-se totalmente do psicologismo e
do antropologismo”4.
A perspetiva fenomenológica do conhecimento preconizada por Husserl vai num outro
sentido, afirmando a indissociação entre sujeito e objeto. Assim, no conhecimento, segundo esta
corrente filosófica, há uma copresença e uma correlação entre ambos, embora, como veremos
também, partindo sempre de um ponto de vista que há alguém que conhece e algo que é conhecido,
procurando sempre a essência da coisa que aparece. Como o próprio Husserl afirma: “Mostra-se,
pois, por toda a parte, esta admirável correlação entre o fenómeno do conhecimento e o objeto de
conhecimento”5.
Nesta linha de investigação, coloca-se sempre o problema da relação entre o sujeito que
conhece (sujeito cognoscente) e aquilo que é conhecido (objeto cognoscível, ou seja, a relação ente
sujeito e objeto, bem como com a relação ente o mundo interno (sujeito/consciência) e o mundo
externo (mundo)6. Todas estas questões prévias, mas fundamentais para se perceber estas
problemáticas, chocam com outra, que lhe está correlacionada diretamente, que é o problema da
verdade, que, como se sabe remonta, pelo menos, a S.Tomás de Aquino, quando este considerava a
verdade como uma «adequação do intelecto à coisa» (adequatio intelellectus et rei). O ângulo
teórico de análise do conhecimento defendido por Husserl não é o de saber da génese do
desenvolvimento do processo cognitivo humano, ao nível psicológico, mas, como dissemos
anteriormente, trata-se de descrever o próprio fenómeno do conhecimento tal como se apresenta à
nossa consciência, portanto, exige um reflexão ao nível filosófico e não psicológico. Trata-se de
saber se é a estrutura geral de todo o conhecimento que está em causa. Uma vez que para a
fenomenologia o importante é perspetivar o conhecimento como um fenómeno puro, desligado de
qualquer particularidade, não lhe interessa tanto saber se se conhece com os sentidos ou como a
razão (realismo ou idealismo), ou se se trata de um conhecimento científico ou mesmo do senso

4 HUSSERL, Edmund. A Ideia de Fenomenologia. op. cit., p. 75.


5 HUSSERL, Edmund. A Ideia de fenomenologia. Trad. Carlos Morujão, Lisboa, Ed. 70. 1989. (Título original, Die
Idee der Phänomenologie), p. 33.
6 Husserl distingue com clareza transcendente de transcendental. Estes dois mundos ou como lhe chamou Júlio Fragata
«duas espécies radicais de ser cuja distinção fundamental se impõe: O ser do mundo exterior, para o qual estamos
naturalmente orientados, que transcende a «consciência», os fenómenos, e por isso é caracterizado como transcendente;
O mundo interior ou de ser imanente no seu sentido radical, para o qual nos devemos orientar como filósofos, e que é
chamado transcendental. O primeiro é o ser real, mundano ou natural. O segundo é o reell. Cf. FRAGATA, Júlio. A
Fenomenologia de Husserl, op. cit., p. 9. E ainda em Ibidem, p. 24 e ainda em HUSSERL, Edmund. Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, de 1913, (Titulo original, Ideen zu einer reinen
Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie). Trad. Espanhola de José Gaos. Ideas relativas a una
fenomenología pura y una filosofía fenomenológica, Fondo de Cultura Económica, México-Buenos Aires, 1985, p. 10-
11,§76.

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comum. O importante para a fenomenologia, em especial a husserliana, é perspetivá-la como um
método que põe de lado todo o conhecimento natural para se poder constituir uma ciência rigorosa
que tenha em consideração apenas o conhecimento em si mesmo e a sua estrutura essencial. Este
filósofo pretendia assim uma filosofia mais rigorosa que todas as outras ciências e que removesse
de uma vez por todas o ceticismo, historicismo, positivismo, o pragmatismo e o relativismo. Através
da constituição de um fundo de ciência filosófica universal e absolutamente válida, Husserl viria a
constituir uma filosofia de rigor científico7. A filosofia de Husserl, assim considerada e constituída,
tem que se fundar desde a raiz como ciência exigindo que se remova, também o propósito do
sistema, tal como Descartes e Kant o conceberam. Assim, “Pensar a Filosofia como ciência de rigor
é pensá-la como «Filosofia Absoluta», isto é, como indagação de verdades absolutas e que existam
em si, e não como expressão de anseios e de satisfação humanas” 8. No fundo, o que a
fenomenologia transcendental husserliana, nas suas mais variadas formas, mas muito especialmente
a husserliana, pretende é descrever o processo de conhecimento como algo objetivo, rigoroso e
essencial, isento de parecer de ordem particular e subjetiva. Como dizia Júlio Fragata,

O fundamento da filosofia tem que ser de carácter radicalmente


absoluto, e portanto, ao mesmo tempo, um autofundamento que
precisa de se apresentar à aceitação de todos sem tergiversação. / -
Daqui as suas características fundamentais. / Uma aprioridade radical
que exclua absolutamente qualquer pressuposto e portanto comece
pelas «coisas» como se apresentam em si mesmas. / - Uma evidência
absoluta que se obtém pelas intuições das «coisas» na sua pureza
originária (FRAGATA, 1955, p.6).

A fenomenologia, enquanto ciência descritiva das essências e das vivências puras


transcendentais, tem como objetivo primeiro apreender eideticamente numa intuição pura, as coisas
mesmas9.
Como veremos mais tarde, é contra toda esta arquitetura de pensamento
filosófico/gnoseológico (Representacionista) que os pragmatistas (Antirrepresentacionista, anti-
essencialista) vão por em causa. Conceitos como essência/representação, interior/exterior,
forma/conteúdo, sujeito/objeto, a priori/a posteriori linguagem/realidade, objetivo/subjetivo,

7 Cf. CARVALHO, Joaquim. “Prefácio”, in HUSSERL, Edmundo, A Filosofia como Ciência de rigor, op. cit. p. VI e
VII.
8 CARVALHO, Joaquim. op. cit, p. XXVII.
9 Cf. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, de 1913, Titulo
original, Ideen zu einer reinen Phanomenologie und phanomenologischen Philosophie. Trad. Espanhola de José Gaos,
Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica, Fondo de Cultura Económica, México-
Buenos Aires, 1985, p.166 e 176.

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particular/universal etc, é uma linguagem estranha e a desconstruir por parte dessa corrente
filosófica que vem desde Sanders Pierce, William James, John Dewey, até Richard Rorty, Donald
Davidson etc10.
Comecemos por ver mais detalhadamente aquilo que Edmund Husserl entende por
fenomenologia, sobretudo nas suas grandes obras que retêm o essencial do seu método
fenomenológico e a fenomenologia como filosofia transcendental, como idealismo transcendental, e
que iremos seguir de perto, são elas A Ideia da fenomenologia, de 1907 e a Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, de 191311.
Nas Cinco Lições que deu origem à obra, A ideia da fenomenologia, Husserl traça as
grandes ideias que, de uma maneira indelével, vão determinar todo o seu pensamento filosófico
posterior. Assim, diz Husserl que “O pensamento natural, da vida e da ciência, despreocupado
quanto às dificuldades da possibilidade do conhecimento – o pensamento filosófico, definido pela
posição perante os problemas da possibilidade do conhecimento”12.
Aqui Husserl lança a primeira grande ideia diretriz que vai orientar todas as restantes Lições
e que tem a ver exatamente coma a possibilidade de o conhecimento atingir as coisas e estar
«atinente às próprias coisas», como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com as
coisas e como as pode atingir. Estas ideias são fundamentais para depois se perceber o que significa
a intencionalidade neste filósofo e da necessidade da chamada Epoché, e as outras reduções que
Husserl propõe como necessárias para se compreender o seu método fenomenológico. A
intencionalidade da consciência refere-se, para Husserl, “à relação que subsiste entre a consciência
e aquilo de que a consciência está consciente” 13. A fenomenologia transcendental husserliana tem
um caráter transcendental intencional, sem que isso se reduza a um mero ato psicológico, e cair
assim num psicologismo, que está longe do pensamento filosófico de Husserl 14. A exigência do «eu

10 Este ensaio poderia muito bem ter o seguinte título “A ruina do representacionismo”. Aliás, Emmmanuel Lévinas
utiliza, na sua crítica a Husserl, a frase, “ A ruina da representação (La Ruine de la representation), Cf. LÉVINAS,
Emmanuel. En Découvrant L´existance avec Husserl et Heidegger, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1967.
11 Cf. HUSSERL, Edmund. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. op. cit.
12 HUSSERL Edmund. A Ideia de fenomenologia. op. cit., p. 21.
13 SEVERINO, Emanuel. A Filosofia Contemporânea. Trad. José Eduardo Rodil, Edições 70, Lisboa, 1987, p. 208.
14 Cf. HUSSERL, Edmund, Investigações Lógicas, Fundamentação da Lógica e doutrina da Ciência, Obras. Primeiro
Vol. Prolegómenos à Lógica Pura, 2005. Trad. Diogo Ferrer, Segundo Vol. Parte I, Trad. Pedro M.S. Alves e Carlos
Aurélio Morujão, e Parte II, Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do conhecimento,2007, Trad. Carlos
Aurélio Morujão. Tradução aprovada pelos Arquivos-Husserl de Louvaina, Diretor, Pedro M.S. Alves, Lisboa. Husserl,
no primeiro vol. das Investigações Lógicas, p. 81-95 (§21 e 24), traça uma profunda crítica ao psicologismo. O
psicologismo tem fundamentos vagos e, por isso, só pode fundar regras vagas. Ver especialmente a refutação ao
psicologismo na obra referida anteriormente, nos pontos 1, 2 e 3. Para Husserl, a psicologia não fornece leis
apoditicamente evidentes e absolutamente exatas que constituem o núcleo de toda alógica. Cf. Ibidem, p. 84. Husserl no
começo das sua investigação filosófica, mais uma vez influenciado, pela Psicologia Experimental e pelo seu professor

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puro» que Husserl na primeira edição das Investigações Lógicas ainda não via necessidade, é agora
fundamental para se perceber todo o horizonte da sua fenomenologia e da identidade
subjetiva/transcendental. Ou seja:

[...] a consciência das coisas enquanto consciência intencional não é


uma produção ou criação das coisas de que e consciência mas é «visão
dada» que «entende » as coisas, que deixa ver as coisas e na qual as
coisas se mostram. (…) O objeto intencional da consciência, seja ele
real ou ideal, possível ou impossível «em geral não entra no conteúdo
real do ato correspondente» (isto é, não constitui o ato da consciência)
(SEVERINO, 1987. p. 208-209).

A questão da intencionalidade, que Husserl colheu em Brentano, é fundamental para se


perceber como é que se chega ao fenômeno puro, ou seja, o mundo dos atos da consciência
enquanto tais. Husserl partiu de Brentano, mas afastou-se da posição que este defendia a este
respeito. Para este filósofo a consciência é sempre consciência de alguma coisa, refere-se a algo
sobre o qual a consciência se projeta. A fenomenologia husserliana é a ciência do que aparece à
consciência, mas não no sentido psicológico do termo. Por isso, há uma relação e até um
paralelismo entre aquilo que Husserl chama noesis e noema. Para aquilo que nos interesse neste
ensaio, o importante é perceber que a noesis é o aspeto subjetivo do elemento noético, e o noema o
aspeto objetivo deste mesmo elemento15.
Husserl, na obra A Ideia da Fenomenologia, na sua primeira investigação, não procura
atingir um conhecimento de qualquer tipo, mas um conhecimento certo e rigoroso. A sua posição é
sempre de alguém que quer construir uma teoria do conhecimento como uma “tentativa de tomada
de posição científica perante estes problemas”16. Ou seja, não se pode construir uma teoria do
conhecimento baseada na incerteza, ma mera opinião particular, mas tem que se construir um saber
rigoroso, universal e certo, ou seja, das essências. Aqui, quanto à constituição de um saber
universal, Husserl segue as pisadas de Descartes, pisadas estas que Husserl não renuncia, embora
siga por um caminho bem diverso. No fundo, tanto Husserl como Descartes o que pretendem é a
reforma profunda do conhecimento humano, admirando tanto o rigor como a confiança nas
capacidades humanas e na sua capacidade de atingir a realidade, Descartes fazendo uso da razão,

Brentano, partira da convicção de que tanto a Lógica em geral, como a Lógica das ciências dedutivas deveriam esperar
a sua clarificação filosófica da psicologia. Embora, Husserl, na Obra Filosofia da Aritmética (Philosophie der
Arithmetik), de 1891, já desconfiasse que uma ciência experimental nunca poderia satisfazer as condições teóricas de
uma fundamentação radical.
15 Cf. HUSSERL, Edmund. Problemas da Fenomenologia de Husserl. op. cit., p. 33-34.
16 HUSSERL, Edmund. A Ideia da Fenomenologia. op. cit., p. 22.

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Husserl fazendo uso do seu método fenomenológico transcendental 17.
O conhecimento enquanto tal, não pode estar sujeito a qualquer forma de dúvida, por isso,
Husserl, ao questionar-se sobre o seu método, coloca a seguinte questão: se o conhecimento em
geral se põe em questão quanto ao seu sentido e à sua realização, como pode estabelecer-se uma
ciência do conhecimento? Que método pode ela levar até à meta? Neste sentido, Husserl afirma que
é necessária uma profunda crítica do conhecimento tido, até então, e criar um método que consiga
reformar o conhecimento que se falava anteriormente. É assim que Husserl diz que “O método da
crítica do conhecimento é o fenomenológico, a fenomenologia é a doutrina universal das essências,
em que se integra a ciência da essência do conhecimento” 18. Quer dizer que Husserl pretende criar
um saber cuja apreensibilidade seja absolutamente indubitável. Mais uma vez Husserl vai beber a
Descartes e à sua famosa dúvida metódica e provisória, no sentido de se construir um saber também
ele indubitável, rigoroso e universal. Ou seja, a dúvida aqui também funciona como uma base e um
instrumento à procura da verdade. A crítica ao conhecimento em Descartes tinha como finalidade
construir um pensamento em bases firmes, a dúvida metódica era apenas um meio para lá chegar,
tal como em Husserl a «Epoché» o foi. Em conclusão, como diz Júlio Fragata,

Para nos levar a esse contato íntimo com a realidade, ao campo


absoluto das evidências epidícticas, estabelecer Husserl a sua
fenomenologia. Esta será portanto primeiramente um método de
evidenciação. E como a evidência, entendida no sentido
apoditicamente reflexo e portanto uma «Selbstbesinnung» radical, é o
princípio absolutamente fundamental, a constituição da ciência
fenomenológica equivale para Husserl ao estabelecimento duma
«Filosofia primeira» (FRAGATA, 1959, p. 72).

Contudo, a questão mantém-se. Como pode o conhecimento ir além de si mesmo? Como


pode ele atingir um ser que não se encontra no âmbito da Consciência? Este caminho é o caminho
da atitude natural à atitude transcendental, o que implica uma redução psicológica e uma redução
transcendental ou fenomenológica19. Só pela via da redução fenomenológica se chega a um
conhecimento das essências das coisas. A procura das essências pressupõe uma crítica do
conhecimento e a construção de uma ciência rigorosa, no sentido de criar claridade e evidenciação.

17 É de salientar que Husserl altera totalmente o sentido da sua fenomenologia, sobretudo a partir da sua obra
Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen-1900). Nesta obra, Husserl ainda via a fenomenologia como um
prelúdio da psicologia empírica, como uma esfera de descrições «imanentes» de vivências psíquicas que se mantêm
rigorosamente dentro da esfera da experiência interna. Cf. HUSSERL, Edmund. Intoduction, in Ideas relativas a una
fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. op. cit., p. 7.
18 HUSSERL, Edmund, A Ideia da Fenomenologia, op. cit., p. 22.
19 Cf. HUSSERL, Edmund, A fenomenologia de Husserl. op. cit., p.10-19 e MORUJÂO, Alexandre Fradique – O
«Fenómeno Puro» ponto de partida da fenomenologia de Husserl, Lisboa, 1957.

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Esta claridade implica “fazer do conhecimento um dado evidente em si mesmo e quer aí intuir a
essência da efetuação não significa deduzir, induzir, calcular, etc., não significa inferir novas coisas
com fundamento a partir de coisas já dadas ou que valem como dadas” 20. Por isso, é importante a
redução fenomenológica, porque só assim se pode construir um conhecimento novo e não repetir o
conhecimento do passado e, eventualmente, cometer os mesmos erros e até agravá-los.
Assim Husserl muda de direção e de interesse ao colocar novas questões à medida que vai
avançando no seu pensamento filosófico. A questão – Como posso eu, este homem, atingir nas
minhas vivências um ser em si, fora de mim? Pergunta que leva alguma ambiguidade, pois tem uma
carga transcendente. Coloca-se, agora, uma outra bem mais interessante e que serve melhor os
interesses de uma análise fenomenológica do conhecimento tal como Husserl a vê. A questão é a
seguinte: Como pode o fenômeno puro do conhecimento atingir algo que lhe não é imanente? Como
pode o conhecimento (absolutamente dado em si mesmo) atingir algo que não se dá em si
absolutamente? E como pode compreender este atingir?21. Estas questões serão respondidas a partir
o método fenomenológico e da redução fenomenológica porque fica esclarecida o significado e o
alcance da imanência e da transcendência que já vinham sendo esclarecidos quando Husserl fez a
distinção entre reelle e reale22. Portanto, a partir da redução fenomenológica, não há uma exclusão
do verdadeiro transcendente, mas exclusão do transcendente em geral como de uma existência a
admitir, isto é, de tudo o que não é dado evidente no sentido genuíno, dado absoluto do ver puro 23.
Por isso, Husserl havia afirmado que “A crítica do conhecimento é, neste sentido, a condição da
possibilidade da metafísica”24. Ou seja, diz Husserl,

Assim, está agora caracterizado este campo, é um campo de


conhecimento absoluto, para o qual ficam indecisos o eu, o mundo,
Deus e as multiplicidades matemáticas e todas as objetividades
científicas, conhecimentos que, portanto, não são dependentes de
todas as coisas, valem o que valem, quer a respeito deles se seja cético
ou não. Tudo isto, portanto, se mantém. Porém, o fundamento de tudo
é a captação do estar do dado/ exclui toda a dúvida que tenha sentido,
numa palavra. A captação do sentido da evidência absolutamente
intuitiva, que a si mesma apreende (HUSSERL, 1989, p. 29).

Para constituir o seu método fenomenológico, Husserl quer ir mais longe procurando o
caminho que mais se adequa ao seu propósito. Por isso mesmo, começou por distinguir ciência

20 HUSSERL, Edmund, A Ideia da Fenomenologia, op. cit., p. 26.


21 Cf. Ibidem, p. 27. Ver aqui o que está na p. 24.
22 Ibidem, p. 24.
23 Ibidem, p. 29.
24 Ibidem, p. 22.

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natural e ciência filosófica, sendo que a primeira promana da atitude espiritual natural e a segunda
promana da atitude espiritual filosófica. Como também já se disse, esta distinção é importante no
sentido de se constituir uma Filosofia como ciência de rigor, e só se consegue a partir de uma forte
crítica do conhecimento, ou seja mudando de uma atitude natural para uma atitude filosófica. Claro
que Husserl tem plena consciência das dificuldades que esta atitude acarreta, uma vez que ao que
parece o mais natural ao homem é conhecer. Mas como? Colocando-se desde logo o problema da
possibilidade do próprio conhecimento. No entender de Husserl, “justamente graças ao
cumprimento desta tarefa se torna apta a teoria do conhecimento para ser crítica do conhecimento
ou, mais claramente, para ser crítica do conhecimento natural em todas as ciências naturais”25 e até
do próprio senso comum. A fenomenologia para Husserl «designa um método». É uma atitude
intelectual: uma atitude intelectual especificamente filosófica, o método especificamente filosófico.
Para que a filosofia husserliana possa prosseguir é necessário toda esta arquitetura filosófica e
conceitual, no sentido de se encontrar pontos de partida completamente novos e de um método
completamente novo face às filosofias que na época de Husserl reinavam, sobretudo um certo
historicismo, Dilthey e um certo pragmantismo, Peirce, William James e Dewey. Na nossa
perspectiva a ideia de Husserl era voltar a uma certa filosofia universal, à maneira de Descartes,
mas diferente deste e a um certo positivismo, sobretudo a necessidade de se voltar aos fatos, às
coisas, portanto, contra toda a espécie de se construir uma filosofia relativista.
A crítica do conhecimento que Husserl pretende levar a cabo tem um objetivo muito preciso
e radical. Ou seja, “elucidar, clarificar e ilustrar a do conhecimento e a pretensão de validade que
pertence à sua essência”26 o que, segundo Husserl, remete para a possibilidade de uma metafisica, a
ciência do ser em sentido absoluto e último. É todo este trabalho de reconstrução e de reflexão
crítica que Husserl vai levar a cabo através do seu método fenomenológico, até porque considera
que, naquilo que diz respeito à possibilidade do conhecimento,

O conhecimento é uma coisa distinta do objeto do conhecimento, o


conhecimento está dado, mas o objeto cognoscitivo não está dado; e,
no entanto, o conhecimento deve referir-se ao objeto, tem de o
conhecer. Como posso eu entender esta possibilidade? A resposta,
naturalmente, soa assim: só poderia compreendê-la se a própria
referência houvesse de se dar como algo susceptível de se ver 27
(HUSSERL, 1989, p. 63).

25 Ibidem, p. 45.
26 Ibidem, p. 57.
27 Ibidem, p. 63.

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Assim, coloca-se aqui o problema de saber como é que é possível o conhecimento do
transcendente e qual a relação entre imanente e transcendente.
Husserl tenta resolver este enigma dizendo que “no ato de ver o fenômeno puro, o objeto
não está fora do conhecimento, fora da «consciência» e, ao mesmo tempo, está dado no sentido da
absoluta autopresentação de algo puramente intuído”28. Tudo isto sem se cair num psicologismo que
naturalmente levaria à confusão entre o fenômeno puro e o fenômeno psicológico. Para isso,
Husserl usa de um «artifício», ou, como ele lhe chama também, «uma salvaguarda» que chama
redução gnoseológica, ou mais propriamente redução fenomenológica. Husserl recorre a esta
salvaguarda para que:

Por meio da redução gnoseológica , cuja essência metódica queremos


neste lugar estudar pela primeira vez in concreto. Necessitamos aqui
da redução, para que não se confunda a evidência do ser da cogitatio
com a evidência de que existe a minha cogitatio, com a evidência do
sum cogitans e coisas similares. Há que precaver-se da fundamental
confusão do fenômeno puro no sentido da fenomenologia com o
fenômeno psicológico, objeto da psicologia científico-natural
(HUSSERL, 1989, p. 70).

Só desta maneira Husserl consegue que o fenômeno puro, ou dado absoluto, apareça e se
revela à consciência, sem se confundir com o fato psicológico. Assim, a ciência dos fenômenos
puros, a fenomenologia está habilitada não só a fazer uma crítica do conhecimento, como dessa
crítica sairá o caminho para explorar a essência do conhecimento.
Desta maneira Husserl afasta-se da perspectiva gnosiológica de Kant no sentido em que o
filósofo alemão, apesar de ter feito a distinção entre juízos de percepção e juízos de experiência,
não atingiu a intenção última da distinção aqui necessária, visto que lhe faltava o conceito de
fenomenologia e de redução fenomenológica, não conseguindo, igualmente, desenvencilhar-se
totalmente do psicologismo e do antropologismo. Desta forma, os juízos formulados nas condições
que Husserl estabeleceu não são puramente subjetivos nem apenas subjetivamente válidos, embora
esta questão não seja totalmente pacífica para todos os críticos da filosofia husserliana. Mas isso
veremos mais tarde. Por ora, basta-nos para concluir esta parte dizer que Husserl pretende que a
fenomenologia seja ciência e método:

[...]a fenomenologia quer ser ciência e método a fim de elucidar


possibilidades, possibilidades do conhecimento, possibilidades de
valoração, e as elucidar a partir do seu fundamento essencial, são
possibilidades universais em questão e, portanto, as investigações
28 Ibidem, p. 69.

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fenomenológicas são investigações universais de essências.
(HUSSERL, 1989, p. 79).

A filosofia como ciência rigorosa que Husserl quer instaurar é assim muito diferente das
ciências puramente apriorísticas, como acontece em Kant. A análise fenomenológica de alguma
maneira também é apriorística. Não apriorística no sentido kantiano ou de uma pura dedução
lógico-matemática. O que distingue o método fenomenológico husserliano dos sistemas
apriorísticos é o seu método e o seu objetivo. Ou seja, a fenomenologia husserliana procede
elucidando visualmente, determinando e distinguindo o sentido. Por isso, também compara,
distingue, enlaça, põe em relação, separa em partes ou segrega momentos. Mas tudo no puro ver29.
Na última Lição da obra, A ideia da Fenomenologia, Husserl vai um pouco mais longe
chegando à evidência da cogitatio e afirma que:

Há que estudar tudo isto e estudá-lo na esfera da evidência pura, para


elucidar os grandes problemas da essência do conhecimento e do
sentido da correlação de conhecimento e objectalidade cognoscitiva.
O problema originário foi a relação entre a vivência subjetivamente
psicológica e a realidade nela aprendida, primeiro, a realidade efetiva
e, depois, também as realidades matemáticas e outros seres ideais.
(HUSSERL, 1989, p. 107 e p. 70-71).

Husserl vai levar a cabo ainda de forma mais intensa esse trabalho nas obras seguintes,
nomeadamente, em Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänonenologischen Philosophie e
em Die Krisis der europaischen Wissenschaften und die Tränszendentale Phänomenologie. Ein
Einleitung in die phänomenologische Philosophie30.

3. A teoria do conhecimento e as novas formas de Fenomenologia: Nicolai Hartmann, Johann


Hessen. A posição anti-representacionista de Richard Rorty
Quando falamos em conhecer de que é que estamos a falar? O que significa e que alcance
tem a análise fenomenológica do conhecimento? Que alternativas existem a esta posição? O que
acabamos de dizer no ponto anterior foi que o conhecimento para a fenomenologia husserliana era
no limite conhecer as essências, atingir um saber absoluto das coisas, através de todas as formas de
aproximação à realidade. Ora, o que se coloca aqui em debate é, exatamente, questionar essas
formas de conhecimentos, os instrumentos linguísticos e conceptuais para o atingir e as alternativas,

29 Cf. HUSSERL, Edmund. A Ideia da fenomenologia. op. cit., p. 97.


30 HUSSERL, Edmund, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia transcendental. Uma Introdução à
fenomenologia Fenomenológica, Trad. Diogo Falcão Ferrer, Direção científica, pedro M.S.Alves, Edição: Phainomenon
e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008.

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dentro e fora da fenomenologia, uma vez que não há uma mas várias fenomenologias, como a de
Heidegger, Mach, Hering, Meinog, Scheler, Hessen, Hartmann, etc.
Uma vez que não podemos, neste ensaio, tratar todas elas, vamos concentrar-nos em duas e
na alternativa proposta por Rorty, mas sempre em contraposição ao método fenomenológico
iniciado por Husserl e ao método fenomenológico aplicado à análise e descrição do ato de conhecer.
Tanto Hessen como Hartmann partem do princípio que o conhecimento pressupõe uma
relação entre um sujeito e um objeto, um cognoscente e um cognoscido, aliás, na linha da
fenomenologia husserliana, colocando o problema do conhecimento numa relação entre o interior e
o exterior, o mundo interno e o mundo externo. Hessen, na primeira parte da sua obra Teoria do
Conhecimento31, Investigação fenomenológica preliminar. O fenômeno do conhecimento e os
problemas nele contidos, afirma que:

A teoria do conhecimento é, como o seu nome indica, uma teoria, isto


é uma explicação ou interpretação filosófica do conhecimento
humano. Mas antes de filosofar sobre um objeto, é necessário
examinar escrupulosamente esse objeto. Uma exata observação e
descrição do objeto devem proceder qualquer explicação e
interpretação (HESSEN, 1952, p. 19).

Hessen apresenta o ato de conhecer como uma relação dicotómica sujeito-objeto, dizendo
mesmo que esta dicotomia é fundamental para o conhecimento racional, ou seja para o discurso
lógico-discursivo. Contudo, Hessen, continua a falar de essências, transcendente e imanente,
consciência e realidade, realidade e interpretação, na linha da fenomenologia tradicional, apenas
com algumas e pequenas variantes. Hessen afirma que o conhecimento apresenta-se como uma
transferência das propriedades do objeto para o sujeito, sendo que esta relação constitui o
instrumento pelo qual a consciência cognoscível apreende o seu objeto. O conceito de verdade está
também relacionado intimamente ligado com a essência do Conhecimento. A descrição
fenomenológica do conhecimento, enquanto método e ação preparatória pode e deve descobrir os
problemas que se apresentam nos fenômenos do conhecimento e fazer com que tomemos
consciência deles32. O que nos parece é que Hessen, na análise fenomenológica do conhecimento,
deixa de lado a análise crítica do conhecimento, e é isso mesmo que causa problemas ao próprio
conhecimento enquanto «objeto» de análise, caindo assim nos mesmos erros que Husserl caiu e, em
alguns casos, até os agravou, por exemplo, quando Hessen afirma que o que conhecemos é apenas

31 HESSEN, J. Teoria do Conhecimento. Trad. António Correia, Arménio Amado – Editor, Coimbra, 1952, p. 19.
32 Cf. Ibidem, p. 20-29.

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uma representação da realidade, seguindo numa linha também kantiana.
Também Nicolai Hartmann segue um percurso idêntico a Hessen. Na sua obra Les principes
d`une Métaphysique de la connaissance33, faz uma análise fenomenológica do conhecimento
apresentando sete pontos essenciais para a constituição da atividade cognoscitiva, ou seja, para a
apreensão do objeto por parte do sujeito. No fundo, o que Hartmann nos diz é que o conhecimento é
uma relação de representação. O sujeito é dotado de uma faculdade de representar o objeto e de lhe
reter a sua essência. Esta representação faz-se através de uma imagem ou através de um conceito.
Esta forma de representacionismo volta ao mesmo problema, que julgamos a fenomenologia mais
tradicional nunca saiu, que é o problema da dicotomia sujeito-objeto e com tudo o que isto implica
para a análise do conhecimento, particularmente, para as formas alternativas que Husserl tanto
criticou, como o pragmatismo. Além disso, podemos questionar se o simples processo de
evidenciação nos garante um conhecimento absoluto? Para a fenomenologia conhecer um objeto é
torná-lo objeto da consciência. Portanto, dizer que o sujeito apreende o objeto é, no fundo, dizer que
o objeto está representado no sujeito. Entra, como já se percebeu um terceiro elemento que é a
representação. Assim, coloca-se um problema, uma vez que o objeto apreendido, representado, não
é o objeto enquanto tal mas a sua imagem.
Nós sabemos que todo o conhecimento é interessado, tem que ser compreendido a partir de
um contexto mais vasto, ou como dizia Wittgenstein, dentro dos jogos de linguagem respetivos.
Tanto Wittgenstein34 como Ayer35, partindo de pressupostos filosóficos diferentes, chamam atenção
para estes aspetos que têm a ver com a teoria do conhecimento relacionados com o problema da
verdade como condição necessária para o conhecimento. Contudo, não nos vamos desviar do nosso
assunto e voltaremos ao problema aqui enfatizado; representacionismo versus
antirrepresentacionismo.
Apresentada a teoria representacionista do conhecimento vamos agora ver a outra
perspectiva gnoselógica, tendo como referência a teoria pragmatista de Richard Rorty36.
Para o pragmantismo rortyano toda a linguagem usada por qualquer teoria representacionista

33 HARTMANN, Nicolai. Les principes d`une Métaphysique de la connaissance, Tome I, Traduction et Préface de
Raymond Vancourt, Aubier, Éditions Montaigne, Paris, 1945, p. 87-92.
34 Sobretudo o segundo Wittgenstein.
35 Cf. AYER, Alfred Jules. O Problema do conhecimento. Um estudo sobre os principais problemas filosóficos
relacionados com a teoria do conhecimento, Editora, Ulisseia, Trad, Vieira de Almeida, Lisboa-Rio de Janeiro, p. 10-
32.
36 Vamos ter em conta nesta análise as seguintes obras de Rorty, RORTY, Richard, A filosofia e o Espelho da Natureza,
Publicações D. Quixote, Trad. João Pires, Lisboa, 1988 e ainda, RORTY, Richard. Objetividad relativismo y verdad,
Ediciones Paidós Ibérica, S.A, España, 1996.

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não é uma linguagem própria para se atacar o problema do conhecimento em todas as suas frentes e
até é uma linguagem pouco ou nada adequada pra o resolver. Por isso, toda aquela linguagem que se
refira ao essencialismo, representacionismo, transcendente, interior e exterior, linguagem e
realidade, realidade e aparência, e todos os demais dualismos são sempre maneiras pouco eficientes
de resolver os problemas relacionados com a teoria do conhecimento ou mesmo outro problema
qualquer filosófico. As teoria representacionistas, de origem helênicas, devem ser colocadas sob
grande reserva quando queremos pensar o conhecimento não como representação mas como uma
forma melhor de lidar com o mundo.
Assim, desde os gregos que a distinção entre aparência e realidade tem feito parte do senso
comum. Ou seja, há a crença que nunca podemos conhecer a realidade uma vez que «há sempre
uma barreira entre ela e nós» - «um véu de aparência» produzido pela interação entre sujeito e
objeto, entre a constituição dos nossos órgãos dos sentidos ou as nossas mentes e o modo como as
coisas são em si mesmas», sendo que a nossa linguagem constitui essa barreira ao impor categorias
aos objetos que podem não lhes ser intrínsecas. Por isso, toda a tradição pragmatista, desde C.S.
Peirce, William James, até ao neo-pragmatista como Hilary Putnam, Donald Davison, entre outros,
tentam desmontar esta crença ao substituírem questões sobre o que uma crença representa por
questões sobre a utilidade da crença.
Por conseguinte, uma abordagem antirepresentacionista, protagonizada por Rorty, sugere
que abandonemos a distinção entre aparência e realidade e a substituamos pela distinção entre os
meios de descrição do mundo que achamos úteis para certos propósitos e os meios que achamos
úteis para outros propósitos. O cerne da questão está exatamente aqui no confronto com a teoria
representacionista do conhecimento. A ideia de um véu de aparência entre nós (ou os nossos órgãos
sensoriais e mesmo a linguagem) não faz muito sentido para os pragmatistas, no sentido em que não
temos que os ter como meios de interposição entre nós e a realidade. Ou seja, entre o sujeito que
conhece e o objeto que é conhecido. Tanto os órgãos sensoriais como a linguagem não são meios
distorcedores da realidade mas muito simplesmente ferramentas que temos para manipular a
realidade. A linguagem não é um meio de representação mas uma troca de sinais levada a cabo para
alcançar propósitos específicos. Os pragmatistas querem mesmo destruir a distinção entre conhecer
e usar as coisas.
Os teóricos do representacionsmo partem do princípio que, mesmo ao nível do
conhecimento, a humanidade tem uma natureza intrínseca, que há algo de imutável chamado
«humano», que pode ser diferenciado do resto do universo. Por isso, pensam que é possível atingir a

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essência das coisas, ir às coisas mesmas. O certo é que para os essencialistas tem que haver um
conhecimento pré-linguístico da realidade e que a linguagem não é o único instrumento de acesso à
realidade37. Claro que os antiessencialista concordam que havia árvores e pedras antes de haver
linguagem. Contudo, esse fato em nada ajuda para a compreensão da realidade e do mundo, bem
pelo contrário. A crença numa «razão» como faculdade capaz de penetrar nas essências das coisas é
algo de muito estranho para qualquer pragmatista. Em vez de se falar de relações, os essencialistas
falam em natureza intrínseca de si própria. A linguagem não pode ser, assim, considerada como
uma terceira via, entre o sujeito e a realidade. Compreender a realidade como relação com outras
realidades não é descrevê-la simplesmente como algo isolado ou dicotômico, é compreender o
mundo e os meios de o usar de forma integrada, dentro (e não fora) das suas relações. A linguagem
faz parte do nosso corpo e do mundo que nos envolve. Não há representação nem nenhuma teoria
da correspondência quando se fala em conhecimento. No fundo, a teoria anti-representacionista do
conhecimento pretende construir um «sistema» para resolver os problemas e não continuar a criar
pseudo problemas insolúveis38.
Para um pragmatista, ao contrário de um essencialista, não há um único método para
descrever a realidade ou mais, concretamente, para lidar com ela. Foi um erro tentar aplicar o
método científico (único método científico) a toda a cultura, embora sempre houvesse um
reconhecimento que existiria uma linha de continuidade entre a ciência e a arte, a filosofia e a
religião, etc. Por isso, palavras como evidência, essência, exterior, interior, representação, não
parecem aos pragmatista (e aqui também há várias espécies de pragmatistas) as mais adequadas,
mais úteis, para resolver os problemas filosóficos, nomeadamente os que estão relacionados como
o conhecimento.
Esta perspectiva pragmatista e, mais concretamente rortyana, tem muito a ver com a sua
visão da filosofia não como um espelho da natureza mas como uma forma de repensar as nossas
formas de pensar o mundo de forma menos sistemática mas mais edificante. Ou seja, as teorias do
conhecimento sistemáticas, fundacionais, como é o caso da de Platão, de Husserl, Hessen e
Hartmann, só para dar alguns exemplos aqui estudados, estiveram mais preocupados em encontrar a
verdade do que encontrar novas formas hermenêuticas de a questionar. Por isso, os hermeneutas não
estão preocupados com a verdade auto-centrada e auto-enclausurada. Como diz Rorty:

37 Cf. RORTY, Richard. Objetividad, relativismo y verdad. Escritos filosóficos I, Ediciones Paidós, Ibérica, España,
1996, p. 19.
38 Cf. Ibidem, p. 18. Ver toda a perspectiva essencialista e anti-essencialista em Ibidem, p. 131-153.

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A hermenêutica vê as relações entre vários discursos como as dos fios
numa possível conversação, uma conversação que não pressuponha
nenhuma matriz disciplinar que una os locutores, mas onde nunca se
perde a esperança de acordo enquanto a conversação dure. Esta
esperança não é a esperança da descoberta de um terreno comum
anteriormente existente, mas simplesmente a esperança de acordo, ou,
pelo menos, de desacordo excitante e frutuoso (RORTY, 1988, p. 249).

Neste sentido, não há a tentativa de reconstruir o discurso filosófico sobre dados pré-
existente, o que o pragmatismo pretende é descentralizar o discurso e permitir que se chegue a um
acordo, em que todas as formas de inquirição e questionamento sejam avaliadas de forma mais
argumentativa e não demonstrativa, e que naturalmente esse discurso faça sentido. Não existe
também, a noção de «representação» exata, tal como pretendia as teorias representacionistas do
conhecimento anteriormente referidas. Para Rorty, esta linha holística de argumentação é bem mais
interessante do que qualquer teoria fundacional do conhecimento. Por isso, segundo este filósofo:

Esta noção de interpretação sugere que chegar a compreender é mais


como travar conhecimento com uma pessoa do que como seguir uma
demonstração. (…) A noção de cultura como uma conversação, em
vez de como uma estrurura erigida sobre fundações, ajuste-se bem a
esta noção hermenêutica do conhecimento, uma vez que entrar em
conversação com estranhos é, como adquirir uma nova virtude ou
perícia pela imitação de modelos […] (RORTY, 1988, p. 250).

Por isso, a hermenêutica é sempre uma tentativa de produzir um discurso «anormal» que
faça sentido. É sempre

[...] o estudo de um discurso anormal do ponto de vista de um


qualquer discurso normal – a tentativa de produzir algum sentido a
partir daquilo que se passa, num estádio em que nos encontramos
ainda demasiado incertos acerca dele para o descrevermos e, portanto,
para iniciarmos uma sua descrição epistemológica (RORTY, 1988, p.
251).

É a partir deste pressupostos que Rorty traça a linha entre filósofos sistemáticos,
fundacionais, essencialista, construtivos, e os filósofos periféricos, edificantes e reativos, que
desconfiam sempre quanto à noção de essências39.

39 Rorty ainda faz uma outra distinção importante entre filósofos normais e revolucionários. Esta distinção feita pelo
filósofo norte-americano é muito interessante para se perceber toda a sua argumentação contra as filosofias do
conhecimento essencialista e representacionista. Cf. RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza, op.cit., p.
285-288.

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4. Considerações finais.
A proposta filosófica aqui apresentada é também uma possibilidade que pode permitir a
continuação da conversação entre a comunidade de filósofos mas também entre outras pessoas, que
não sendo filósofas de formação acadêmica, se interessem por refletir acerca do mundo e, deste
modo, contribuírem para que o possamos compreender melhor e assim sabermos lidar melhor com
ele.
Vimos que a proposta essencialista e representacionista do conhecimento, embora
revolucionária, continua no paradigma da filosofia normal, institucionalizada, ou seja, dentro de
escolas nas quais se podia praticar aquele tipo de filosofia. Nesta linha de tradição filosófica
ocidental, estes filósofos, Descartes, Kant e Husserl, estão mais preocupados em possuir convicções
verdadeiras, justificadas e universais, do que encontrar forma de pensamento mais edificante, mais
interessantes e eventualmente menos segura. A corrente de filósofos edificantes, o último
Wittgenstein, o último Heidegger, e de um maneira geral os pragmatista, Rorty à cabeça, entendem
“o discurso não apenas como não sendo a externalização de representação íntimas, mas como não
sendo de todo uma representação”40, muito menos a procura das essências das coisas. Para os
representacionista interessa oferecer representações exatas do modo como as coisas são em si
mesmas na sua essência, objetivas. Para os filósofos anti-representacionistas, mais do que descobrir
a verdade objetiva é prosseguir a conversação. Assim, para estes, não há uma espécie de «olho de
Deus» que tudo pode ver e, assim, ter uma situação gnoseológica ou epistemológica privilegiada
acerca do mundo, que lhe permite fazer uma descrição exata e absoluta desse mundo. Usando uma
noção de Rorty, não há uma filosofia como espelho da natureza:

A noção de um Espelho da Natureza desobscurecido é a noção de um


espelho que não pudesse ser distinguido daquilo que era espelhado e
que, por conseguinte, não fosse de todo um espelho”. A noção de um
ser humano cuja mente é um tal espelho desobscurecido e que sabe
isso, é a imagem , como diz Sartre , de Deus. Um tal ser não se
confronta com qualquer coisa alheia que tomasse necessário que ele
escolhesse uma atitude perante ela ou uma sua descrição (RORTY,
1988, p. 291).

A noção do conhecimento como uma simples representação é uma ilusão e, como tal, pouco
edificante e proveitosa para a filosofia. Por isso, Rorty desconfia de qualquer tentativa de construir
uma filosofia universal e uma hermenêutica transcendental.

40 RORTY, Richard. A Filosofia e o espelho da natureza. op- cit., p. 288.

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SEVERINO, Emanuel. A Filosofia Contemporânea, Trad. José Eduardo Rodil. Lisboa : Edições 70,
1987

VALLENILLA, Ernesto Mayz. Fenomenologia del Conocimiento. El problema de la constitucion


del objeto en la filosofia de Husserl, Coleccion de tesis doctorales, Facultad de Humanidades y
Educacion. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1954.

Phenomenology and subjectivity. Phenomenological analysis of knowledge:


representationalism vs anti-representationalism

Abstract: Our goal in this essay is to present the phenomenological theory of knowledge as opposed to the
pragmatism theory of knowledge. That way we will evaluate those two philosophical positions presenting
their limitations and weaknesses but also their potential. While the phenomenology gives value to the
transcendental subject and the consciousness in an attempt to achieve the same things and their essences in
order to find the ultimate foundation of reality, the pragmatism stays completely away from this
gnoseological position not looking for an exact absolute and universal science but for a speech that allows
several interpretations of reality and new forms of interrogation and investigation, that is, the pragmatism
seeks a reactive and not normal speech that allows the language and the thought to renew themselves, and

Revista Estudos Filosóficos nº 13/2014 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967


http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos
DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG
Pág. 34 - 54
with them the philosophy.

Keywords: Phenomenology; Essences; Representationalism; Anti-representationalism; Language;


Pragmatism.

Data de registro: 25/06/2014


Data de aceite: 03/09/2014

Revista Estudos Filosóficos nº 13/2014 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967


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