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FICÇÃO E HISTÓRIA EM A REVOLUÇÃO DOS BICHOS

Valdirene Leite[1]

RESUMO

Nesse texto buscamos um outro olhar não-convencional, sobre o texto A Revolução dos
Bichos. Partimos do pressuposto de que George Orwell não apresenta uma narrativa objetiva
sobre a União Soviética ao utilizar essa narrativa histórica como base para sua fábula. Nossa
hipótese é que a fábula é trotsquista e anticomunista. E assim ela foi utilizada durante a Guerra
Fria. Apesar disso, mesmo a esquerda continua a prestigiar o texto e não o aborda em termos
mais críticos. Ao analisar que narrativa histórica é essa que Revolução dos Bichos aborda,
notamos que é preciso repensar o seu uso em sala de aula, utilizando uma bibliografia a
respeito da União Soviética e buscando ser mais objetivo, em especial sobre as dicotomias
pobres entre Trotsky e Stálin que o texto A Revolução dos Bichos traz.

Palavras-chave: Orwell, Revolução dos Bichos, história, União Soviética, ficção, fábula

1 INTRODUÇÃO

            O livro A Revolução dos Bichos, de autoria de Eric Arthur Blair (mais conhecido pelo
pseudônimo de George Orwell) (1903-190), apresenta, através de uma fábula onde os animais
falam, uma crítica política totalizante a respeito da revolução russa, supomos, desde 1917 até
1943. O texto, publicado em 1945 no Reino Unido sob o nome de Animal Farm, foca
principalmente o governo de Stálin, adotando a hipótese (de origem trotsquista) de que foi
durante esse governo que a revolução se perverteu e se burocratizou.
            Nossa hipótese é que a fábula de Orwell apresenta as posições antissoviéticas de
Trotsky de forma ilustrada (e vai mais além). Por exemplo: a coletivização de 1933-34 é
representa pela situação do moinho de vento. O entusiamo de Bola de Neve pela construção
do moinho de vento e a oposição de Napoleão representaria a situação e a discussão na União
Soviética na altura de 1926, quando os trotsquistas propuseram a coletivização e ela foi
rejeitada.
            Assim, esse artigo buscará lançar um outro olhar sobre a obra de Orwell, considerando
que o objetivo de Revolução dos Bichos, de George Orwell, foi traçar paralelos entre o governo
do porco Napoleão e o de Stálin, na União Soviética. O objetivo aqui será entender e criticar
esses paralelos, assim como entender quais eram, historicamente, as posições de Trotsky e de
Stálin, representadas, na fábula, por Bola de Neve e Napoleão, respectivamente. A
contraposição entre os dois será objeto de debate nesse artigo. O livro não é isento: tende a
defender Bola de Neve, que era Trotsky. Pesquisando sobre história e ligando aos
acontecimentos do livro, pode-se dizer que Bola de Neve é Trotsky, Napoleão é Stálin, o
animalismo é o comunismo.
2 Ficção e história em A Revolução dos Bichos

A hipótese a ser articulada nesse artigo é de que Revolução dos Bichos não é uma


alegoria neutra do autoritarismo e sim uma ficção carregada de uma ideologia partidária, ou
seja, o narrador onisciente toma partido deliberadamente das explicações históricas de Trotsky
sobre a revolução russa. Atualmente, essas explicações históricas são totalmente hegemônicas
no Ocidente e formam o chamado paradigma histórico da Guerra Fria. Somente agora, nos
anos 2000, esse paradigma está sendo questionado por historiadores norte-americanos como
John Arch Getty, Mark Tauger e Grover Furr, e outros russos como Yuri Zhukov, assim como
ingleses, como Harpal Bar, dentre outros. Como o artigo é sobre literatura, nos concentramos
em recontar a história sem citar exaustivamente esses historiadores e autores, cujas obras
estão disponíveis na bibliografia (BAR, 1998, p. 12).
Essa pesquisa permite articular história e literatura e fazer uma leitura, sob um novo
olhar, da narrativa de Orwell, uma vez que ela está profundamente atrelada a uma determinada
versão da história. Optou-se, nesse trabalho, por lançar um outro olhar, vendo essa narrativa
de acordo com outra hipótese sobre a história: a hipótese da vertente maoísta do marxismo-
leninismo. Segundo essa vertente, a negação do marxismo-leninismo não ocorreu em 1929 (ou
seja, não ocorreu com Stálin) e sim em 1956 (ao tempo de Kruschev). A comparação entre as
figuras históricas e os personagens foi a seguinte, segundo Olgário Vogt:

O animalismo O socialismo ou o comunismo


O Solar dos Bichos União Soviética
O canto Bichos da Inglaterra A Internacional Socialista
Os porcos A burocracia soviética
Os homens A burguesia
Os animais O proletariado
Sr. Jones O Czar Nicolau II
O Velho Major Marx10
Napoleão Stálin
Bola de Neve (Snowball) Trotsky
As ovelhas A massa alienada
Os cachorros A polícia política (KGB)
Sansão (Boxer) O trabalhador iludido
O corvo Moisés A Igreja Ortodoxa
O porco Garganta (Squealer) A propaganda
A bandeira verde com o chifre e o
casco
A bandeira soviética com a foice
e o martelo (VOGT, 2007, p. 4).

Em Revolução dos Bichos, a narrativa histórica de Trotsky sobre os acontecimentos é


uma constante em todo o livro. O processo opera do seguinte modo: a coletivização, por
exemplo, é apresentada como sendo a passagem que se refere ao moinho de vento
na Fazenda Animal. A divergência entre Bola de Neve e Napoleão representa a forma como a
coletivização foi motivo de polêmica entre o grupo de Trotsky e o de Stálin. Tal passagem é
comentada nos seguintes termos em A Revolução  dos Bichos:

Bola de Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O Agricultor e o


Criador de Gado, encontrados na casa grande, e andava com a cabeça cheia de planos de
invenções e melhoramentos (...). Napoleão não fazia projetos próprios, apenas dizia com toda
calma que os de Bola de Neve não dariam em nada e parecia aguardar sua vez. De to das as
divergências, nenhum foi tão grave quanto a do moinho de vento (ORWELL, 2007, p. 43).

A narrativa histórica aqui visada é a coletivização da agricultura russa nos anos 30. O
problema era o seguinte: embora depois da revolução russa houvesse o fim do latifúndio,
continuaram existindo uma classe de fazendeiros ricos (os kulaks) e pequenos proprietários
empobrecidos. A solução sugerida por Lênin era a criação de fazendas de produção coletiva. A
partir da recusa dos kulaks em vender grãos ao governo soviético, a coletivização começou,
em 1926, ainda incipiente.
No entanto, de forma inconseqüente os trotsquistas sugeriram que a coletivização
fosse adotada rapidamente. O verdadeiro objetivo da oposição de esquerda era infringir uma
derrota ao poder soviético; a coletivização naquelas circunstâncias, quando ainda estava
apenas em seu início, provocaria novos e mais violentos boicotes por parte dos kulaks e
poderia ser derrotada por eles, pois provocaria desabastecimento e fome. A idéia foi recusada,
mas entre 1933-34, depois de uma grande fome na Ucrânia, quando a coletivização já estava
adiantada, ela foi posta em prática. Os fazendeiros ricos foram, então, derrotados. A forma
como a história aparece em A Revolução  dos Bichos dá a entender que Stálin (“Napoleão”) era
uma criatura maldosa que apenas roubou as ideias de Trotsky (“Bola de Neve”). As seguntes
palavras serviram para finalizar a questão do moinho de vento (que refigura o fato histórico da
coletivização):

Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca fora contra a
construção do moinho de vento (...). Aí estava a esperteza do camarada Napoleão (...). Ele
fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola de Neve,
que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa (ORWELL, 2007, p. 51).

            Assim, uma versão histórica do livro de Orwell que oculta que os trotsquistas, em 1926,
quiseram colocar, prematuramente, o poder soviético contra os kulaks, o que causaria sua
derrota. A conclusão que se tira é exatamente a contrária: a coletivização foi uma idéia de
Trotsky roubada por Stálin. Outro indício da tomada de partido é como a polêmica entre a
revolução permanente (Trotsky) e a revolução em um só país (Lênin e Stálin) é apresentada:

Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem que
sabiam que (...) segundo Napoleão, o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de
fogo e instruir-se em seu emprego. Bola de Neve achava que deveriam enviar mais e mais
pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas (ORWELL, 2007, p. 45).

Acima, a controvérsia entre a revolução permanente e a revolução em um só país é


apenas esboçada de forma pouco compreensível. A revolução em um só país foi teorizada por
Lênin como conseqüência do próprio capitalismo (a chamada lei do desenvolvimento desigual),
afirmando que dificilmente o socialismo venceria em vários países ao mesmo tempo e que era
necessário construir o socialismo assim mesmo, mas sem deixar de ajudar a desenvolver o
socialismo nas demais nações. Já Trotsky retomava, a propósito da revolução permanente,
idéias que ele já apresentara em 1906, quando estava no partido menchevique em oposição a
Lênin e aos bolcheviques. Ele condicionava a vitória da revolução na Rússia à vitória da
revolução na Europa.
Pode-se dizer que o dilema proposto por Trotsky era aventuras militares ou derrotismo:
a Rússia deveria mandar tropas para a Alemanha, ou seja, exportar a revolução ou retornar ao
que havia antes de outubro de 1917, entregando o país a um regime burguês. Essa visão foi
chamada de bonapartista em seu tempo e rejeitada pela maioria do partido. Não obstante,
Trotsky passou a chamar Stálin e seu grupo de bonapartista e fazer uma campanha cada vez
mais furiosa contra o poder soviético, culminando em sua expulsão do partido e do país em
1929.
E assim a narrativa prossegue: o papel de Bola de Neve na batalha do Estábulo é a
discussão sobre o papel de Trotsky na revolução russa (Krupskaia e Stálin acreditavam que
John Reed, autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo, exageraram ao dar um papel
preponderante a Trotsky). Trotsky aceitou a revolução russa de outubro como condição de que
ela fosse o estopim da revolução européia.
            O episódio da fome na Granja dos Bichos é outro exemplo de apresentação da história
da revolução russa, e, em especial do período Stálin, sob a mesma luz. Possivelmente o
episódio simboliza a grande fome na Ucrânia entre os anos 1932-33, causada por fatores
climáticos naturais e que tornou necessária a coletivização, privilegiando os camponeses
pobres em detrimento dos kulaks. Esse episódio da fome é descrito nos seguintes termos na
fábula de moral antistalinista:

Napoleão bem sabia dos maus resultados que poderiam advir, caso a verdadeira situação
alimentar da granja fosse conhecida, e resolveu utilizar o Sr. Whymper para divulgar uma
impressão contrária (ORWELL, 2007, p. 64).

            O que ocorreu não foi uma tentativa do governo da URSS de esconder o fato da fome e
sim a ampla divulgação da fome por nazistas alemães e reacionários da Polônia e da própria
Ucrânia como sendo causada intencionalmente pelo governo da União Soviética como forma
de exterminar o povo ucraniano, o chamado “holodomor” (em ucraniano, morte por fome). O
pesquisador e historiador Mark Tauger, de West Virginia, estudou recentemente a questão e
concluiu que a fome não foi causada pelo governo e sim por fatores naturais. Antes da
coletivização, sucediam-se ondas de fome em razão das más colheitas na Ucrânia. Tal fato, no
entanto, foi abundantemente usado para fazer propaganda antissoviética. Mais adiante, surge,
na Revolução dos Bichos, uma passagem que se referem às conspirações zinovievistas-
trotsquistas:

Subitamente, descobriu-se um fato alarmante. Bola de Neve estava freqüentando a granja à


noite, em segredo ! (...). Napoleão decretou uma ampla investigação sobre as atividades de
Bola de Neve. Com seus cachorros na atitude de alerta, saiu e fez uma cuidadosa inspeção
nos galpões da fazenda, com os outros animais a segui-lo a uma distância respeitosa. (...).
Bola de Neve vendeu-se a Frederick, da Granja Pinch Field, que neste mesmo instante está
planejando atacar-nos e tomar nossa granja! (...) Foi o tempo todo, agente de
Jones! (ORWELL, 2007, p. 69).

O texto acima só pode ser corretamente entendido se for apresentada a narrativa


histórica do período do governo de Stálin ao qual essa passagem se refere: embora Trotsky
tivesse se exilado do País, ainda tinha grupos fiéis a ele na União Soviética, assim como,
desde 1932, ele havia formado bloco junto com Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Começaram a
acontecer inúmeros atentados e sabotagens pelo país, causando muitas mortes, entre as quais
a do prefeito de Leningrado, segundo na hierarquia soviética. A partir de um esforço de
investigação, chegou-se ao grupo de Trotsky, Zinoviev e Bukharin, que ainda tinha muitos
integrantes em altos escalões do estado. Os acusados foram processados nos famosos
Julgamentos de Moscou, julgamentos abertos à imprensa internacional e muitos, como
Bukharin, foram fuzilados, outros, como Radek, foram condenados à prisão.
De acordo com o historiador norte-americano John Arch Getty, os expurgos que
produziram os famosos Julgamentos de Moscou foram mais para poder organizar um sistema
de poder que era caótico do que um exemplo de totalitarismo, de acordo com textos
como Origens dos Grandes Expurgos (livro inédito em português), do historiador norte-
americano Arch Getty. De acordo com esse historiador, até essa época, se alguém era expulso
do partido, bastava uma autocrítica verbal para poder voltar. Não foram apresentados, até hoje,
documentos comprovando a tortura dos acusados e as falsificações dos chamados
Julgamentos de Moscou. E existem, pelo contrário, evidências demonstrando que os
julgamentos foram justos. Comentou o historiador Grover Furr (também inédito em português),
de Montclair State University (New Jersey) a respeito desse assunto:

Durante a última década, muita evidência documental emergiu dos arquivos formais soviéticos
para contradizer o ponto de vista canônico desde o tempo de Kruschev de que os réus, nos
Processos de Moscou e na conspiração militar do “Caso Tukachevsky”, foram vítimas
inocentes forçadas a fazer confissões falsas. Nós publicamos e escrevemos um grande número
de trabalhos ou, ao pesquisar para publicar, podemos dizer que agora temos forte evidência de
que as confissões não eram falsas e que réus dos Processos de Moscou pareciam ter sido
verdadeiros em confessar as conspirações contra o governo soviético (FURR, 2010, p. 7).

Portanto, a narrativa histórica que Revolução dos Bichos supõe não é a mesma que


todos os historiadores registram, ou não é neutra como muitos imaginam. Dentre as revelações
nos julgamentos, ficou esclarecido que desde 1925 já existiam contatos entre Trotsky e Von
Seekt (representante do estado maior da Alemanha); os contatos prosseguiram e se tornavam
mais intensos quando da subida do nazismo ao poder. Hitler às claras anunciou seu ódio ao
bolchevismo e a necessidade que o povo alemão tinha de invadir a Ucrânia para conquistar
“espaço vital”.
            Jamais foi dito, portanto, que o papel de Trotsky foi negado. Ele foi é objeto de
denúncias e revelações. As conspirações, em A Revolução dos Bichos, são tidas como falsas,
ou seja, são mostradas como provocações criadas por Napoleão para que ele pudesse
conquistar o poder através do terror. Tal constatação pode ser lida no fragmento a seguir:

--Alerto a todos os animais desta fazenda para que mantenham os olhos bem abertos. Temos
motivos para pensar que alguns agentes secretos de Bola de Neve estão ocultos entre nós
neste momento (ORWELL, 2000, p. 71).

            A partir daí são descritas imagens de execuções que seriam, no entanto, imotivadas e
sem nenhum sentido a não ser perverterem os ideiais e a utopia, reforçando a autoridade
tirânica de Napoleão (“Stálin”). Pela natureza da relação entre os porcos e Napoleão, pode-se
dizer que eles representam Bukharin, Zinoviev e Kamenev:

[Os animais]eram os mesmos que haviam protestado quando Napoleão abolira as reuniões
dominicais. Sem mais demora, confessaram ter realizado contatos secretos com Bola-de-Neve
desde o dia de sua expulsão e haver colaborado com ele na destruição do moinho de vento
(...). Ao fim da confissão, os cachorros estraçalharam-lhes as gargantas e Napoleão, com voz
terrível, perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a confessar. As três galinhas que
haviam liderado a tentativa de reação sobre os ovos aproximaram-se e declararam que Bola-
de-Neve lhes aparecera em sonho, instigando-as a desobedecer às ordens de Napoleão.
Também foram degoladas (...). E assim prosseguiu a sesão de confissões e execuções, até
haver um montão de cadáveres aos pés de Napoleão e um pesado cheiro de sangue no ar,
coisa que não sucedia desde a expulsão de Jones (ORWELL, 2007, p. 73).
Assim, reforça-se a tese de que o marxismo-leninismo é idealismo ingênuo e que,
quando praticado, leva a uma terrível tirania. Acima, pode-se notar a leitura dos expurgos dos
anos 30 e dos Julgamentos de Moscou como o fuzilamento dos verdadeiros revolucionários.
            A teoria que Orwell apresenta, resumidamente ao final do texto, é que as teses
“stalinistas” destruíram as idéias de Marx. Essa mensagem é comentada quando a narrativa
trata das distorções nos pensamentos do personagem Major. O cavalo Sansão, por exemplo,
pode ser associado ao Bukhárin, ou seja, era um velho companheiro de Stálin. Por fim, o fato
final é a Conferência de Teerã, onde debatiam Roosevelt, Churchill e Stálin. A narrativa de
Orwell iguala soviéticos e as potências capitalistas nessa conferência. No entanto, nessa época
o nazismo ainda não tinha sido vencido. Parece-nos, inclusive, que mesmo que o nazismo
esteja representado nessa fábula por Frederik, da Granja Pich Field, pode-se dizer que faltou a
Orwell uma melhor compreensão da ameaça que representava o nazismo, em sua pressa de
criticar a União Soviética.
            Na Inglaterra atual, assim como no Brasil, é muito comum a presença da obra de
George Orwell nas escolas, onde ele é elogiado como um gênio literário, assim como é
celebrado como um escritor na linhagem de Swift e outros. A fábula costuma ser lida como
sobre “o totalitarismo em geral”.
No entanto, estudos como os de Stephen Spender e Jodi Bar analisam que aquilo que
é de fato avaliado em provas (quando o livro é cobrado na Inglaterra) é a habilidade de
regurgitar clichês da Guerra Fria. Para que a narrativa de A Revolução dos Bichos funcione, é
preciso concordar com a assertiva de que, embora os governantes de hoje sejam ruins,
expulse-os e teremos uma nova tirania ainda pior. Esse é, de fato, o pressuposto desse texto.
Embora hoje seja tido como crítica ao totalitarismo em geral, o texto de fato tem sido utilizado
como propaganda contra Stálin e a União Soviética.
Um leitor, ao ler Revolução dos Bichos, passa a pontificar a respeito da história da
União Soviética, embora na prática não esteja tendo acesso a uma versão preocupada com a
realidade objetiva. Na prática, está apenas repetindo a versão de Trotsky dos acontecimentos
da revolução de outubro e do período Stálin (mas sem saber que a narrativa é partidária). E a
versão de Trotsky é a adotada, em geral com ainda mais exageros negativos, pelo chamado
paradigma histórico da Guerra Fria, ou seja, o paradigma adotado pelas universidades norte-
americanas nos anos 40 e 50, tendo em vista combater ideologicamente os seus inimigos no
campo das democracias populares e socialistas.
            E porque o texto seria ainda tão popular e tão recomendado, se a Guerra Fria, na qual
ele foi largamente incentivado, tendo sido até objeto de uma adaptação para desenho animado
patrocinada pela CIA, terminou em 1989? O fato é que o comunismo ainda é uma ameaça para
a sociedade burguesa, com ou sem Guerra Fria. É preciso refutar as calúnias nos livros de
Orwell e orientar a juventude a buscar uma visão mais objetiva, distante dos clichês da Guerra
Fria, a respeito do que se passou na União Soviética.

3 REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO DOS BICHOS

            Os textos que foi possível encontrar na bibliografia brasileira respeito de A Revolução
dos Bichos (Teoria e suas implicações: compreensão da utilização doAnimalismo na
Revolução dos Bichos e do marxismo na URSS de Stálin, de autoria de Felipe Fontana, Olgário
Vogt) não buscam questionar o paradigma histórico da Guerra Fria, pelo contrário, o confirmam
e o acentuam. Em geral, o tom de celebração em torno de Orwell, o mito, é geral. Fontana se
baseia em Marilena Chauí, Simone Weil e José Paulo Netto (Chauí e Netto tendem bastante ao
trotsquismo) para concluir que o marxismo, no Leste Europeu, tornou-se uma ideologia (no
sentido de produzir falsa consciência). Tanto Fontana quanto Vogt não buscam novas
pesquisas históricas nem suspeitam da mensagem claramente partidária que é transmitida
em Revolução dos Bichos.
Olgário Vogt vai no mesmo sentido, supondo que Orwell está criticando “o totalitarismo
em geral”. Mais precavido do que Fontana, diante das evidências do uso da obra de Orwell na
Guerra Fria, Olgário insiste em afirma que Orwell era um esquerdista e o defende, afirmando
que ele desejava um socialismo “independente”.
Orwell é apresentado, nos livros didáticos ingleses, como um “herói”, um jornalista
“independente”, “objetivo”, “imparcial”, assim como é visto como exemplo de intelectual
engajado em causas sociais. Nos últimos anos, no entanto, têm sido fortes os questionamentos
acadêmicos a respeito do antissemitismo, homofobia e racismo presentes em seu texto. Como
escreve a respeito Alberto Escusa:

De todos os traços que tinha Orwell, teria que acrescentar alguns que não se comentam e que
tiveram grande peso em suas atitudes políticas, como sua fobia contra os homossexuais, seu
extremo conservadorismo e seu racismo escondido. Toda a combinação de experiências
vividas e concepções sociais nebulosas e abstratas, junto de suas fobias, foram levando
rapidamente Orwell a posições marcadamente direitistas, ainda que seguisse formalmente
sendo um escritor esquerdista. Um dos traços mais desconhecidos do escritor foram suas
manias de perseguição. Segundo Isaac Deutscher, que o conheceu pessoalmente, Orwell vivia
em um estado de angústia (...). Essa atitude, junto de sua incapacidade de perceber de
maneira científica e realista as questões sociais e políticas, o empurraram a converter-se em
um colaborador direto do imperialismo inglês.Até o final de sua vida, em 1949, decidiu
colaborar com pleno conhecimento de causa com os serviços britânicos de inteligência,
o Foreign Office, ou concretamente com o departamento de investigação de informação (IRD)
ao qual lhe entregou uma lista de 135 pessoas suspeitas de serem simpatizantes ou
companheiros de viagem dos comunistas. Nesta lista, ao lado dos nomes, anotou os principais
defeitos de cada um, revelando a natureza racista e homofóbica de Orwell, que tinha interesse
em mostrar traços pessoais dos acusados (ESCUSA, 2012, p. 22).

O antiimperialismo de Orwell, que sempre os comentadores afirmam que teria advindo


de suas experiências como policial na Birmânia, também tem sido posto em questão.
Outros elementos de sua trajetória têm sido desmistificados: de origem na classe média alta,
Orwell tinha uma arrogância típica das classes superiores inglesas; rejeitava o socialismo
realmente existente, mas propondo em seu lugar um “socialismo” vago, que se confundia com
desapego cristão. Ele também pregava contra os “marxistas dogmáticos”, no sentido de
valorizar a classe média e considerá-la parte dos proletários, assim como propunha o resgate
do heroísmo físico, o cavalheirismo, dentre outros valores que ele julgava que estavam sendo
esquecidos pelos intelectuais (e que também se aproximam dos valores da classe média
inglesa de onde ele se originou). Para escrever seus livros, passou algum tempo, embora
bastante rápido, entre os pobres em Paris e Londres, assim como foi, de passagem, às regiões
do Norte da Inglaterra. Sobre os pobres tirava conclusões dizendo que sua grande diferença
era o “odor”.
Orwell foi à Espanha como jornalista e participante do pequeno grupo de linha
trotsquista POUM. No entanto, seu conhecimento da situação política na Espanha era pequeno
e seu principal foco era fazer um livro. Orwell colaborou, com o livro Homenagem à Catalunha,
para fortalecer a versão dos anarquistas e dos trotsquistas de que a União Soviética e a Frente
Popular foram os responsáveis pela derrota da República na guerra civil. O título do livro
celebra um levante de anarquistas e trotsquistas contra a frente popular que, na época, foi
considerado uma punhalada pelas costas que favoreceu a Franco e a Hitler.
Assim como em A Revolução  dos Bichos, Orwell tomou partido pelo trotsquismo
Acontece que o trotsquismo é a base de boa parte do anticomunismo ocidental e dos ataques
feitos à URSS durante a Guerra Fria.
            Outro ponto que tem sido ressaltado são os conteúdos anticomunistas presentes na
obra, principalmente em seus últimos anos de vida, em plena Guerra Fria. Surgiu a denúncia
que Orwell trabalhou, durante a II Guerra, como informante do estado inglês, fazendo listas de
artistas que simpatizavam e militavam a favor do comunismo. O ensinamento que fica ao final
da leitura de A Revolução dos Bichos é que os homens não são melhores do que os animais. A
“natureza humana” decide tudo.
Os valores afirmados em um texto devem ser buscados a partir dos valores afirmados
ao seu final. Deve-se, então, analisar a cena final, que se refere à Conferência de Teerã,
representa o momento em que se reuniram Roosevelt, Churchill e Stálin:

Se vossas senhorias têm problemas com vossos animais inferiores, nós os temos com as
nossas classes inferiores (...). Doze vozes gritavam, cheia de ódio, e eram todas iguais. Não
havia dúvidas, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora
olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um
homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era
porco (ORWELL, 2007, p. 118).

            Orwell age como se estivesse criticando uma esquerda oficial apoiada pela União
Soviética e que, junto aos capitalistas e igual a eles, estivesse repartindo o mundo. No entanto,
qual era o contexto histórico no ano de 1943 em que Orwell terminou Revolução dos Bichos e
tentou publicar esse escrito antissoviético? Os nazistas haviam invadido a União Soviética e
matado milhões de russos, arrasando o país. Já havia acontecido a maior batalha da guerra,
Stalingrado, mas não se sabia quem venceria o conflito, se a Alemanha nazista ou os
soviéticos. Mas o que queria Orwell com seu Revolução dos Bichos? Ele ambicionava acabar
com o “mito” da União Soviética como estado socialista. Mas a quem beneficiava, em 1943,
essa postura de Orwell? É curioso como se esquece tão facilmente no Ocidente como a vitória
foi obtida com enormes sacrifícios pelo povo soviético e pelo exército vermelho.
            Se em 1943 ainda havia atitudes reticentes quanto à posição de Orwell, a ofensiva
contra o socialismo em 1945 as desfez e o mundo ocidental passou a ter uma postura favorável
com relação a ele, chegando até ao ponto de mistificá-lo. Os espiões de guerra nazistas foram
aproveitados por serviços de guerra norte-americanos, como por exemplo, o general alemão
das SS Reinhard Genhlen, cuja rede de espionagem passou inteiramente aos norte-
americanos e passou a agir no Leste da Europa. Essa rede foi uma das responsáveis pela
rebelião antissoviética em Berlim em 1953 e na Hungria em 1956.
            Em A Revolução  dos Bichos, o porco Napoleão é caracterizado como grande, feio, com
expressão agressiva e descrito como tirânico, rude, hipócrita, vaidoso, ou seja, (“Stálin”). Bola
de Neve é mostrado como jovem, bonito, com expressão inteligente e os seguintes atributos:
articulado, inovador, brihante, estrategista, modernizador, idealista (“Trotsky”). Não seria a hora
de questionar esse tipo de dicotomia pobre que termina sendo passado como aula de literatura
e história? Não chegou a hora de quebrar com esse corporativismo trotsquista que tem
protegido Orwell de ser criticado nesses últimos cinqüenta anos?
            Nossa hipótese, portanto, foi de que A Revolução dos Bichos é libelo antissoviético e
trotsquista, utilizado largamente como propaganda anticomunista, ao ponto mesmo de servir de
base para desenhos animados patrocinados pela CIA. George Orwell, ao escrevê-lo em 1948,
estava claramente obcecado por seus escritos antissoviéticos.

CONCLUSÃO

            Embora seja muito estudada e lida em sala de aula e na escola, A Revolução dos
Bichos é um livro que ainda pede uma releitura crítica. A narrativa histórica na qual ele se
baseia é uma narrativa fortemente partidária do anticomunismo, baseada principalmente em
Trotsky, embora ele não a apresente assim. Ele é lido como narrativa neutra que é capaz de
engajar e de politizar a juventude. Isso precisa ser questionado e uma visão mais objetiva, que
não repita, meramente, os clichês da Guerra Fria sobre o período Stálin precisa ser abordada
em sala de aula. No Brasil, os trabalhos disponíveis sobre Revolução dos Bichos, com os
textos de Felipe Fontana e Olgário Vogt, fixam-se totalmente no mito Orwell, celebrando sem
maiores críticas o “clássico”, repetindo elogios a respeito de sua biografia e vida, mas sem
aprofundar-se em sua obra. No entanto, na Inglaterra, novos estudos sobre Orwell o fazem
aparecer sob uma outra luz: antissemita, homofóbico, anticomunista que chegou a trabalhar
como informante do estado em plena Guerra Fria e delatar outros escritores. Igualmente,
historiadores como Grover Furr, Arch Getty, Yuri Zhukov e outros estão repensando a narrativa
do tempo da Guerra Fria. Como a narrativa sobre a coletização russa dos anos 30 está sendo
repensada, é importante verificar como ela foi apresentada em A Revolução dos Bichos. E ela
foi apresentada do ponto de vista trotsquista e antissoviético. O texto constrói uma dicotomia
pobre entre Stálin (“Napoleão”) e Trotsky (“Bola de Neve”). Não há dúvidas de que o texto
tomou claro partido por Trotsky e o anticomunismo. No entanto, os estudiosos brasileiros nunca
mostram isso, pelo contrário, dão à hipótese da neutralidade da narrativa o caráter de verdade
inquestionável. Nesse trabalho, adotamos a hipótese maoísta, ou seja, de que o abandono do
marxismo-leninismo pela União Soviética aconteceu em 1956.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VOGT, Olgário. A Revolução Russa através da Revolução dos Bichos. Revista Ágora, Vol. 13,
n. 1, 2007.

[1][1] Aluna do Curso de Letras (Fasf/UNISA, polo Luz/MG. RA: 2708931

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