Você está na página 1de 5

RODRIGO SANTAELLA GONÇALVES

Discutindo a perspectiva da
esquerda latino-americana
REFERÊNCIA: SADER, E. A nova toupeira: os ca-
minhos da esquerda latino-americana. São Paulo:
Boitempo, 2009.

Depois do período de hegemonia supostamente “pós-neoliberais”.


do neoliberalismo, a América Latina A toupeira é “um animalzinho com
passou por profundas mudanças polí- problemas de visão, que circula em-
ticas. Na transição do século XX para baixo da terra sem nos darmos conta
o século XXI, em um curto período de de sua existência e que de repente ir-
tempo, lideranças de esquerda e cen- rompe onde menos se espera” (p.34).
tro-esquerda assumiram o governo na Utilizando-se desta metáfora para tra-
Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, tar da esquerda latino-americana, o
Bolívia, Nicarágua e Paraguai. Enten- autor inicia com o resgate dos “ciclos
der o significado e as perspectivas ge- da esquerda” latino-americana, passa
radas nesse processo foi o objetivo de pela hegemonia neoliberal e chega à
Emir Sader em seu novo livro. A obra, atualidade sempre buscando alterna-
dividida em cinco capítulos, traz refle- tivas. Três grandes irrupções da “tou-
xões sobre a história do Subcontinen- peira” no século XX são destacadas na
te, a “crise de hegemonia” vivenciada primeira parte da obra: os movimen-
atualmente, o governo Lula, as “defi- tos guerrilheiros entre 1959 e 1970, as
ciências” e “perspectivas” teóricas da vitórias institucionais no início dos
esquerda e o futuro desses projetos anos 1970 e a vitória sandinista na Ni-

Rodrigo Santaella Gonçalves: Concludente da gra-


duação em Ciências Sociais na Universidade Fede-
ral do Ceará.

309 World Tensions

tensoesX.pmd 309 30/8/2010, 08:33


RODRIGO SANTAELLA GONÇALVES

carágua em 1979. Todas elas, segundo neoliberais não conseguiram se legi-


Sader, foram seguidas por retrocessos: timar em virtude das suas grandes e
primeiro, o refluxo e a descrença nos facilmente perceptíveis consequências
movimentos guerrilheiros, depois, as sociais negativas. Entretanto, mesmo
ditaduras militares e, finalmente, o com poucos resultados efetivos, a
próprio neoliberalismo. grande vitória do neoliberalismo –
Uma das conexões interessantes uma constatação do autor – se deu no
feitas pelo autor para explicar o perío- plano político. Sader argumenta que
do de hegemonia neoliberal foi a as- a mentalidade individualista foi gene-
sociação da “capitulação” da social- ralizada e a organização coletiva de-
democracia às teorias liberais. Num sestimulada, passando a prevalecer a
mundo cada vez mais bipolar, os soci- rejeição a busca de interpretações to-
al-democratas sentiram a crescente talizantes para as questões sociais.
necessidade de optar por um dos la- Registra ainda a prevalência das idei-
dos – o do liberalismo norte-america- as de proteção ao consumidor em de-
no ou o comunismo soviético. Essa trimento da proteção ao cidadão bem
associação teria desfeito diversas ali- como de garantias ao interesse pri-
anças no continente latino-americano vado em detrimento do espaço públi-
e, somada à repressão sofrida pela es- co simbolizado através da expansão
querda durante as ditaduras, teria aber- dos shoppings centers.
to caminho para o neoliberalismo. Essa vitória ideológica do neolibe-
A combinação da repressão ditato- ralismo foi acompanhada pela impo-
rial com o neoliberalismo teria leva- sição do chamado “pensamento úni-
do, aos poucos, o nacionalismo e a co”, baseado no Consenso de Wa-
social-democracia a se apropriar dire- shington, que delimitou as bases so-
tamente da agenda e do projeto bre as quais as reformas neoliberais
neoliberal.Na argumentação de Sader, seriam implementadas nos países em
tal associação permitiu fosse a Améri- desenvolvimento, seguidas tanto pelo
ca Latina o primeiro laboratório do senso comum quanto por grande par-
neoliberalismo, experimentando a te dos intelectuais, muitos dos quais
transferência de renda direta do setor haviam se manifestado nacionalistas
público para o privado, a desregula- ou social-democratas ferrenhos alguns
mentação do mercado, a abertura to- anos antes.
tal da economia e a exclusão de direi- Com base nessas reflexões, Sader
tos formais dos trabalhadores. Com a explica como a passagem de um mun-
estabilização monetária, os governos do bipolar para um mundo de hege-

Tensões Mundiais
310

tensoesX.pmd 310 30/8/2010, 08:33


DISCUTINDO A PERSPECTIVA DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA

monia norte-americana ajudou a con- deles seria o dos assumidamente ne-


solidar os modelos neoliberais. Con- oliberais, como a Colômbia, o Peru e
tudo, em um contexto já não expansi- o México; o segundo, o das experiên-
vo do capital, o neoliberalismo logo cias mais ambíguas do continente, de
mostraria seus limites e o único setor governos ditos de esquerda, mas que
da esquerda que de fato demonstraria não romperiam de forma completa
resistência às reformas seriam os mo- com a lógica imposta pelo neolibera-
vimentos sociais. Tudo isso gerou uma lismo (Brasil, Argentina, Uruguai, Pa-
crise de hegemonia: enquanto o neo- raguai, entre outros). O terceiro e mais
liberalismo revelava seus limites, não radical bloco seria composto pelos
surgiam proposições alternativas con- países que tentam reformas mais efe-
cretas. Os movimentos sociais – MST tivas, como a Venezuela, a Bolívia e o
no Brasil, cocaleiros na Bolívia, zapa- Equador. Os dois últimos blocos teri-
tistas no México, etc. – resistiam, mas am em comum o fato de seus gover-
sem proposições programáticas claras. nantes terem sido eleitos a partir da
No segundo capítulo, Sader deba- insatisfação popular com o modelo
te a crise hegemônica propriamente neoliberal. O discurso e as origens
dita, ressaltando a ideia de que as desses governantes seriam antineoli-
duas grandes tendências políticas no berais e os projetos de alguns deles são
Subcontinente, no século XX, foram claramente pós-neoliberais, pregando
o desenvolvimentismo, a partir dos maior intervenção do Estado na eco-
anos 1950, e o neoliberalismo, a par- nomia e maior participação popular
tir dos anos 1980. A transição entre nas decisões.
estas tendências teria sido acelerada Por contar com duas das três mai-
pelas ditaduras militares e pela adap- ores economias do Subcontinente, o
tação de algumas correntes ideológi- segundo bloco é o que o autor consi-
cas ao liberalismo. Atualmente, po- dera decisivo quando se leva em con-
rém, a América Latina passaria por um ta as perspectivas pós-neoliberais, ape-
hiato hegemônico, no qual se pode sar do maior radicalismo do terceiro
apontar projetos supostamente pós- bloco. Por isso, o terceiro capítulo da
neoliberais em disputa com o mode- obra é destinado exclusivamente a
lo vigente até hoje. decifrar “o enigma Lula”. Sader resga-
Para efeito analítico, o autor divide ta a história do PT e da conjuntura bra-
a América Latina contemporânea em sileira nos últimos anos e aponta o que
três blocos de países segundo suas ten- seriam três grandes falhas no gover-
dências políticas: o primeiro e menor no brasileiro: o não enfrentamento da

311 World Tensions

tensoesX.pmd 311 30/8/2010, 08:33


RODRIGO SANTAELLA GONÇALVES

“questão agrária” (a prioridade teria refúgio do neoliberalismo no conti-


sido dada ao agronegócio), a política nente. Assim, conforme se pode infe-
macroeconômica de aliança eterna rir, os pontos falhos do projeto petis-
com o capital financeiro e a pouca von- ta não se apresentam como simples
tade política do Estado para a efetiva pendências, e sim como partes coe-
democratização da mídia. Estas seri- rentes de todo o projeto político.
am as questões pendentes do projeto Partindo desta reflexão, Sader afir-
político do PT para o Brasil. Nesse sen- ma que considerar o governo Lula
tido, o autor aponta uma crítica à es- mais neoliberal do que os anteriores,
querda que se coloca como oposição ou negar a existência de avanços, pode
a qualquer custo ao governo Lula, in- induzir ao erro de se fazer oposição a
dicando que o melhor caminho para qualquer custo e contribuir com o cres-
uma oposição à esquerda seria o de cimento da direita no país. “Em lugar
entender os avanços do projeto petista de atuar como um crítico de esquerda,
e apoiá-los sem omitir a crítica aos as- que apóia o que o governo tem de pro-
pectos mencionados. gressista, [a oposição de esquerda ao
Sader constrói uma discussão acer- governo Lula] ataca tudo e rifa a pos-
ca do governo Lula e dos seus limi- sibilidade de construir uma alternati-
tes. Contudo, quando passa da refle- va à esquerda do PT, relegada a si
xão para as conclusões, talvez por sua mesma, à intranscendência (sic) polí-
própria história de militância no PT, tica” (p.71). Isso é plenamente plausí-
não assume as consequências reais da vel, mas apostar todas as fichas em um
sua análise. Os pontos falhos que projeto que demonstra ter limites es-
aponta no governo Lula, e que o tor- truturais e que, justamente por conta
nariam um enigma, não parecem tra- das suas ambiguidades, termina por
tar-se de pendências a serem resolvi- fragmentar a esquerda partidária e os
das por um governo, mas limitações movimentos sociais, sugere uma apos-
de um projeto que não tem perspecti- ta em algo que tende a eternizar a es-
va de avançar nestes pontos. Ao afir- trutura social rejeitada pelo próprio
mar que “o modelo neoliberal e o blo- autor. O que Sader chama de “pendên-
co de forças que o protagoniza [...] só cias”, portanto, pode ser considerado
conseguem sobreviver se aplicados de como limites estruturais. Neste senti-
forma mitigada – como nos casos do do, o livro falha ao não levar em con-
Brasil, da Argentina e do Uruguai” ta a importância da existência de es-
(p.64), demonstra que esses modelos paços de organização que vislumbrem
ambíguos são na verdade o último e que demonstrem à população hori-

Tensões Mundiais
312

tensoesX.pmd 312 30/8/2010, 08:33


DISCUTINDO A PERSPECTIVA DA ESQUERDA LATINO-AMERICANA

zontes políticos diferentes do que está vro. Trata-se de uma obra de um soci-
posto, algo que o PT tornou-se inca- ólogo competente, extremamente di-
paz de fazer nos últimos anos. O “enig- dático e que tem muito a contribuir
ma Lula” é decifrado pelo autor de for- para o pensamento da esquerda na
ma clara, mas as consequências dessa América Latina. A principal conclusão
descoberta são omitidas ou distorcidas. é a de que vivemos uma crise da he-
O livro termina com uma discus- gemonia liberal e que não existe um
são sobre o desafio teórico da Améri- contraprojeto definido. Se passamos
ca Latina, na qual o autor enumera alguns anos “em busca do dissenso
algumas debilidades da esquerda du- perdido”, como afirmou José Luís Fio-
rante o século XX, afirmando que a ri, parece que agora o encontramos, e
maioria das experiências se deu com “A nova toupeira” contribui para en-
base em tentativas e erros. Traz nova- tender esse processo bem como os
mente a discussão entre reforma e re- caminhos que temos pela frente.
volução, afirmando que as reformas,
se feitas de maneira a mudar a estru-
tura da sociedade, podem caminhar
para um processo revolucionário. O
quarto capítulo traz, também, uma
classificação das três estratégias da
esquerda na América Latina: a demo-
crática, com governos desenvolvimen-
tistas, depois a guerra de guerrilhas e
por fim a atual, de refundação dos Es-
tados a partir de vitórias eleitorais, mas
que tentam ter como base e como par-
ticipantes ativos dos governos os mo-
vimentos sociais.
Sader contribui para a sistematiza-
ção do que existe de teoria na esquer-
da latino-americana. Algumas falhas
e omissões no relacionado à maneira
como se aborda o conceito de nação,
além de contradições entre a análise e
as proposições sobre o que fazer, não
tornam desnecessária a leitura do li-

313 World Tensions

tensoesX.pmd 313 30/8/2010, 08:33

Você também pode gostar