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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DE DIREITO DA ___ª VARA DA

FAZENDA PÚBLICA-SP.

XXX XXX XXX, brasileiro, estado civil, profissã o, portador da


cédula de identidade R.G. nº XXX XXXX, CPF nº XXXX (doc. 01), residente e domiciliado à
Rua XXXX, nº XXX, bairro, CEP XXX, Sã o Paulo/SP, através da Defensora Pú blica infra-
assinada, dispensada da apresentaçã o de instrumento de mandato, pelo artigo 128, XI, da
Lei Complementar Federal 80/94, vem, com fundamento no artigo 37, §6 da Constituiçã o
Federal, propor a presente

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS

em face do ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito pú blico interno, com sede
no Palácio do Governo, à Av. Morumbi, 4.500, Sã o Paulo/SP, CEP: 05698-900, a ser citado
na pessoa do Procurador Geral do Estado Dr. Elival da Silva Ramos, à Rua Pamplona, 227,

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17º andar, Jardim Paulista, Sã o Paulo/SP, CEP: 01405-902, pelos motivos de fato e de
direito abaixo expostos.

DOS FATOS

XXXX, no dia XX de 2012, compareceu ao Nú cleo


Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pú blica do Estado de Sã o
Paulo, a fim de relatar o episó dio de agressã o a que foi submetido e solicitar deste ó rgã o
assistência jurídica, para a tomada das providências cabíveis (docs. XX)
No dia XXX de 2010, por volta das 22h, na Rua XXXX, os
policiais militares XXXX e XXXX submeteram o Sr. XXXX a intenso sofrimento físico e
psicoló gico, enquanto este permaneceu sob a guarda e poder dos agentes estatais, como
forma de aplicar-lhe castigo. A conduta corresponde à prevista no art. 1º, inciso II, da Lei
nº 9.455/1997.
XXXX, no referido dia, participava de uma festa de
aniversá rio, quando, ao término da confraternizaçã o, foi abordado por dois policiais (nã o
identificados), que alegaram a realizaçã o do cumprimento de diligência para verificar uma
possível perturbaçã o de sossego. Os policias, entã o, dirigiram-se ao requerente de maneira
desrespeitosa, dando ordens para que este se retirasse do local. Inconformado, XXX expô s
para os agentes estatais o seu direito constitucional de ir, vir e permanecer, demonstrando
que nã o havia motivo plausível - uma vez que nada fazia de errado - para ser coagido a
deixar o local. Como resposta, os militares disseram que nã o interessava, proferindo
agressõ es morais contra XXX, chamando-o de “maconheiro”, “playboy”, “bosta”. Em
seguida, passaram a praticar agressõ es físicas contra a vítima, com socos e pontapés,
sendo, na sequência, algemado e colocado em uma viatura.
Dentro da viatura, temendo por sua vida, compelido pela
necessidade de sobrevivência, XXXX conseguiu realizar ligaçã o para o “190”, narrando os
fatos. O atendente do COPOM pediu para se comunicar com os policiais, porém estes o
ignoraram. Em seguida, o atendente realizou comunicaçã o com os militares por rá dio.
Estes, entã o, afirmaram que se tratava de prisã o em flagrante por crime de desacato, e que
levariam XXXX para a Delegacia (SSS).

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Ao chegar à Delegacia de Polícia, o requerente pediu para
falar com a Autoridade Policial, que, de forma grosseira, mandou que este se calasse. XXX,
entã o, foi encaminhado ao Instituto Médico Legal (IML) para realizaçã o de exames, sendo
liberado apó s a lavratura de termo circunstanciado, em que figura como autor do crime de
desacato, e assinatura do termo de compromisso.
No dia seguinte, irresignado com aquela situaçã o, XXXX
dirigiu-se à Corregedoria da Polícia Militar, a fim de denunciar os policiais agressores. O
requerente, no local, conseguiu reconhecer um dos policiais por foto, descrevendo-os de
maneira detalhada em seu depoimento. Apó s ser ouvido, foi encaminhado para o HGE para
a realizaçã o de exames.
Para finalizar a situaçã o de abusos pelos agentes do Estado,
foi imputado o delito de desacato ao requerente. Em juízo, a transaçã o penal pelo
representante do Ministério Pú blico, mediante o cumprimento de serviços à comunidade.
Tal proposta foi aceita pelo requerente, tendo em vista os riscos de um processo penal,
que o poderia condenar injustamente, uma vez que, desde o início da confusã o, vá rias
arbitrariedades foram cometidas por agentes estatais, transformando-o de vítima em
autor de crime. Também houve a instauraçã o de procedimento investigató rio pela
Corregedoria da Polícia Militar, bem como Inquérito Policial Militar (a fim de averiguar
possível crime militar), e posterior arquivamento do procedimento investigató rio pela
Justiça Militar.
Diante das alegaçõ es, foi instaurado o Procedimento
Administrativo XXXX, para melhor avaliar as circunstâ ncias do caso, que, em razã o de suas
peculiaridades, insere-se no conjunto das atribuiçõ es institucionais deste Nú cleo. Afinal, o
artigo 4º da Lei Complementar XXXX, com a redaçã o que lhe foi dada pela Lei
Complementar Federal 132/2009, ao elencar as atribuiçõ es institucionais da Defensoria
Pú blica, refere-se expressamente à atuaçã o na preservaçã o e reparaçã o dos direitos de
pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminaçã o ou qualquer outra forma de
opressã o ou violência (inciso XVIII). Bem como, em seu Regimento Interno, é atribuído ao
Nú cleo (artigo 2º, incisos II, XVI e XVII) o recebimento de representaçõ es que contenham
denú ncias de violaçõ es de direitos humanos e a tomada de providências, inclusive em
âmbito judicial, para a tutela de direitos e interesses individuais, coletivos e difusos.

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No caso presente, foram apresentados como elementos
probató rios – constantes dos autos do P.A. XXXX (doc. XX) - o Laudo pericial de exame de
Constatação de Lesão Corporal, expedido pelo IML – Instituto Médico Legal, referente ao
Termo Circunstanciado nº XXX/XXXX, do XXº Distrito Policial do XXX, (doc. XX);
procedimento instaurado junto à Corregedoria da Polícia Militar – Registro de Denú ncia nº
CorregPM XXX/XXX/XXXX em que foi colhido depoimento do Sr. XXX e constatado, por
meio do Laudo de Exame de Corpo de Delito Nº XXX, “Esquimose violacia de um por um
centímetro no nariz, ferida corto contusa de aproximadamente meio centímetro na região
vestibular da mucosa oral à esquerda, esquimose hiperemica de aproximadamente meio por
dois centímetros na face posterior do punho direto”, dando origem à instauraçã o de
Inquérito Policial Militar (Portaria de IPM nº XXXX) – doc. XXX; Decisã o do CNMP referente
ao processo CNMP n. XXXXX (Reclamaçã o Disciplinar), em que se relata o reconhecimento
de infraçã o disciplinar dos policias militares: “Não é demais dizer que o membro do
Ministério Público oficiante perante a Xª Auditoria da Justiça Militar entendeu que o fato
constituía infração disciplinar e o Poder Judiciário se rendeu ao mesmo entendimento”
(doc. XX); decisã o da Corregedoria Geral de Justiça referente ao processo n. XXX – Comarca
de Sã o Paulo, em que na fundamentaçã o da decisã o informa que “o arquivamento
desclassificou o delito de lesão corporal levíssima para infração disciplinar, pois que
utilizada força desnecessária para a realização da prisão” (doc. XX).
As graves agressõ es físicas e psíquicas a que esteve o autor submetido
constituem, em tese, crimes comuns de tortura e abuso de autoridade.
Assim, como era de dever, e tendo em vista que os fatos narrados por
XXX passaram ao largo de qualquer investigaçã o por parte da polícia judiciá ria, assim
como passaram ao largo da atençã o do Sistema de Justiça comum.
Tendo procurado a Defensoria Pú blica do Estado de Sã o Paulo, o
interessado, por este meio, requereu a instauraçã o de inquérito policial para a apuraçã o
dos fatos.
Seguindo as leis processuais comuns, mais especificamente o artigo 5º
do Có digo de Processo Penal, optou-se por instar o MM. Juízo do Departamento de
Inquéritos Policiais (DIPO) para que o inquérito fosse instaurado, imaginando-se tratar de
providência simples, irrefutá vel e necessá ria.

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Ao invés de determinar a pronta instauraçã o do Inquérito, o d. juízo
entendeu por abrir vistas ao Ministério Pú blico, o qual, para grande surpresa, apó s pedir
algumas có pias à Justiça Militar, mesmo nã o tendo acesso à integralidade das
investigaçõ es do inquérito policial militar, requereu o arquivamento do expediente
uma vez que já havia sido instaurado Inquérito Policial Militar para a apuração do
ocorrido; na visã o da d. Promotora oficiante, tendo a Justiça Militar determinado o
arquivamento da investigação por ausência de irregularidade na conduta dos
policiais, não haveria porque a Justiça Comum requisitar a investigação de tais fatos.
Franqueada a palavra à Defensoria, foi feita longa e fundada explanaçã o
no sentido da independência entre a Justiça Comum e a Justiça Militar, recordando-
se que tortura e abuso de autoridade são crimes que só podem ser apurados,
investigados e punidos pela Justiça Comum Estadual, sendo certo que o objeto da
investigação que ocorrera na Corregedoria da Justiça Militar dizia respeito tão
somente ao crime militar previsto no artigo 209 do Código Penal Militar. Foi
inclusive trazido à baila direito sumulado pelo Eg. Superior Tribunal de Justiça no
sentido da independência das Justiças (Súmula 90) e da competência exclusiva da
Justiça para processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que
praticado em serviço (Sú mula 172).
Mesmo assim, a d. autoridade entendeu por acolher a manifestaçã o de
arquivamento do parquet e assim se recusou a determinar a abertura de inquérito policial
comum tendo em vista, uma vez que os fatos já teriam sido “...apurados nos respectivos
autos do inquérito policial militar, manifestando-se o titular da ação penal pelo
arquivamento do feito, o qual foi homologado pela Justiça Militar. Nem mesmo há de
se cogitar de que os delitos de tortura e abuso de autoridade nã o foram devidamente
apurados pela Justiça Militar em razã o de sua incompetência, pois os fatos em si foram
analisados concluindo-se pela ocorrência de exclusã o de ilicitude” (fls. XX do
procedimento iniciado pela notitia criminis).
Desta maneira, e por discordar da r. decisã o, nã o restou outra
alternativa senã o o acesso ao Eg. Tribunal em busca da reversã o da decisã o, através do
mandado de segurança. Argumentou-se que os crimes de tortura e de abuso de autoridade
nã o podem ser processados e julgados pela Justiça Militar, pois nã o sã o crimes militares,
nem pró prios – aqueles previstos no Có digo Penal Militar (CPM) e nã o existentes, ou
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formulados de maneira diversa, na legislaçã o penal comum -, nem impró prios – aqueles
previstos de maneira idêntica no CPM e na legislaçã o penal comum.
De maneira exaustiva, colocou-se a seguinte questã o: se a competência
para processar e julgar os crimes de tortura e abuso de autoridade pertence à Justiça
Comum, é a Polícia Judiciá ria que tem atribuiçã o para a investigaçã o criminal, mesmo que,
ao final desta, se constate nã o terem existido referidos crimes. “Dizer que tais crimes sã o
de incumbência da Justiça Comum significa dizer que cabe ao Sistema de Justiça Comum o
dever de investigar, processar e julgar. Nã o é dado ‘delegar’ uma parte de seu dever, ou
referendar o que foi feito por quem é absolutamente incompetente para tanto e o faz sob
outras regras. Fazer isso é deixar de cumprir com seu dever, é submeter-se a outra
jurisdiçã o que nã o lhe é superior” (fls. XXX do procedimento iniciado pela notitia criminis).
Em seguida, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Sã o Paulo (XXª
Câ mara de Direito Criminal – Rel. XXX) denegou a ordem, entendendo nã o haver direito
líquido e certo do impetrante em recorrer da decisã o do juízo a quo, uma vez que “[...] se
contra o pedido de arquivamento do inquérito o ofendido nã o pode insurgir-se, muito
menos o poderá em se tratando de mera notitia criminis – e nã o apresentada à polícia, mas
a quem competia, mais tarde, avaliar o resultado da investigaçã o” (fls. XX do procedimento
iniciado pela notitia criminis).

Diante deste quadro, XXXX XXXX, sentindo-se profundamente


prejudicado por conta dos ferimentos que sofreu, das dores que sentiu em decorrência das
agressõ es, do constrangimento e do sofrimento que lhe foram impostos, da omissã o do
Poder Judiciá rio em requisitar a instauraçã o de inquérito policial, intenta obter do Estado
o reparo que lhe cabe. Afinal, além da violência sofrida por agentes estatais, que deveriam
ter como funçã o precípua a segurança do cidadã o, houve enorme humilhaçã o e
constrangimento sofrido pelo requerente em consequência da açã o ilegal dos policiais
militares, do Delegado de Polícia, bem como do Poder Judiciá rio, que diante da notícia de
um crime comum, nã o tomou as medidas cabíveis.

I. DO DIREITO

1. PRELIMINARMENTE: DA VERDADEIRA NATUREZA DO ATO DE VIOLÊNCIA


PRATICADO PELOS AGENTES DO ESTADO
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Apesar da imputaçã o do crime de desacato1 ao requerente, nota-
se que houve clara inversã o de papéis. O Sr. XXXX XXXX foi vítima dos crimes de tortura e
abuso de autoridade, perpetradas por agentes do Estado, responsá veis pela segurança
pú blica. Embora registrado com desacato (doc. XX), os fatos narrados por XXXX XXXX se
subsumem, de maneira clara e em consonância com o princípio da especialidade, ao
artigo 1º, inciso I e II, da Lei 9.455 de 1997. Nã o se trata, nesse caso, de mera lesã o
corporal ou de uso de força necessá ria para conter o requerente. Trata-se de uma lesã o
corporal qualificada por sua brutalidade e pela severidade do sofrimento imposto.
XXX, desarmado, foi agredido, física e moralmente, e algemado, sem ao menos saber o
porquê de tal detençã o arbitrá ria. A conduta dos policiais militares enquadra-se no crime
de tortura:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informaçã o, declaraçã o ou confissã o da vítima ou
de terceira pessoa;
b) para provocar açã o ou omissã o de natureza criminosa;
c) em razã o de discriminaçã o racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com
emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico
ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de
caráter preventivo.
Pena - reclusã o, de dois a oito anos.
(...)
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o
dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um
a quatro anos.

1
Aliá s, note-se que o crime de desacato nã o está em consonância com o atual ordenamento jurídico
brasileiro, sendo incompatível com o art. 13 da Convençã o Americana de Direitos Humanos (5ª
SUBSEÇÃ O JUDICIÁ RIA DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL – 1 ª Vara Federal de Ponta Porã -
Açã o Penal - Processo nº0000951-45.2013.403.6005).

.
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§ 3º Se resulta lesã o corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é
de reclusã o de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusã o é de oito a
dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
(...)
Nã o é demais ressaltar que a ilegalidade, inicialmente perpetrada
pelos policiais militares, foi chancelada por diversos outros agentes estatais, como o
Delegado de Polícia, que se eximiu do seu dever de, tendo notícia de possível infraçã o
penal, colher todas as provas que serviriam para o esclarecimento do fato e suas
circunstâ ncias (art. 6º, III, do Có digo de Processo Penal), bem como o Ministério Pú blico e
o Poder Judiciá rio, que, ao terem notícia dos crimes cometidos pelos agentes estatais,
deixaram de determinar a mera investigaçã o dos crimes. O cidadã o, ao alegar ter direitos
bá sicos violados, tem o direito bá sico a que ocorra a devida apuraçã o dos fatos.
Conforme elucida a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos
Humanos, já consolidada no que concerne ao crime de tortura e à sua repressã o, a
caracterizaçã o deste crime, em diferenciaçã o ao de lesã o corporal, envolve um nível
determinado de severidade da agressã o, o qual, por sua vez, é relativo e considera as
circunstâ ncias do caso, a duraçã o do tratamento, seus efeitos físicos e psicoló gicos, o sexo
e a idade da vítima2.
Nã o restam dú vidas acerca da gravidade do ato e de sua
repercussã o, tampouco da situaçã o de vulnerabilidade em que se encontrava XXX diante
de seu agressor: uma autoridade armada.
O artigo 1º da Convençã o das Naçõ es Unidas contra a tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes de 1948 (CAT), já ratificada
pelo Brasil e, portanto, incorporada ao arcabouço jurídico pá trio, estabelece uma definiçã o
internacionalmente aceita dos atos que constituem “tortura”. Embora seja mais restrita
que a tipificada no Brasil, a disposiçã o nos serve, por demonstrar que o caso presente se
situa naquilo que se chama zona de certeza da norma: é um caso típico das prá ticas que se
quer abolir.

2
Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Tekin v. Turkey, julgamento de 09 de junho de 1998,
pp. 1517-18, §§ 52 e 53.
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Artigo 1º - Para fins da presente Convençã o, o termo tortura" designa
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou
mentais, sã o infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter,
dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la
por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita
de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras
pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de
qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos sã o infligidos por
um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções
públicas, ou por sua instigaçã o, ou com o seu consentimento ou
aquiescência. Nã o se considerará como tortura as dores ou sofrimentos
que sejam consequência unicamente de sançõ es legítimas, ou que sejam
inerentes a tais sançõ es ou delas decorram.

Logo, de acordo com os fatos narrados, o delito de tortura parece


plenamente verificado e cabia ao Estado, pelo ó rgã o encarregado de aplicar a lei penal (a
Justiça Comum, ú nica que pode apurar o crime de tortura), a investigaçã o.
Ora, trata-se de uma prá tica internacionalmente repudiada e
proibida em inú meros tratados, dos quais o Brasil é parte; e é parte comprometida a saná -
la de seu territó rio – vide o artigo 2º e 13º da Convençã o contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU / 1989).
A título de exemplo do compromisso, assumido interna e
internacionalmente, cabe mençã o à nossa Constituiçã o Federal (artigo 5º, incisos III e
XLIII) e à Lei 9455/97, que o tipifica. Quanto aos diplomas internacionais, há desde a
aclamada Declaraçã o Universal dos Direitos Humanos (ONU / 1948) 3,, passando pelo Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU / 1966)4, até chegar, mais recentemente,
na Convençã o Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes (ONU / 1989) – todos ratificados pelo Brasil. Tais documentos determinam
de forma progressiva a vedaçã o da tortura e culminam com a previsã o do dever de adotar
medidas para o enfrentamento do problema.
3
Artigo V - Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
4
Artigo 7º - Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre
consentimento, a experiências médicas ou científicas.
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Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes
Artigo 2º - Cada Estado tomará medidas eficazes de cará ter legislativo,
administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prá tica
de atos de tortura em qualquer territó rio sob sua jurisdiçã o.
Artigo 13 - Cada Estado-parte assegurará , a qualquer pessoa que alegue
ter sido submetida a tortura em qualquer territó rio sob sua jurisdiçã o, o
direito de apresentar queixa perante as autoridades competentes do
referido Estado, que procederã o imediatamente e com imparcialidade ao
exame do seu caso. Serã o tomadas medidas para assegurar a proteçã o
dos queixosos e das testemunhas contra qualquer mau tratamento ou
intimidaçã o, em consequência da queixa apresentada ou do depoimento
prestado.

Também neste sentido a CONVENÇÃ O INTERAMERICANA PARA


PREVENIR E PUNIR A TORTURA:

Artigo l
Os Estados Partes obrigam-se a prevenir e a punir a tortura, nos
termos desta Convençã o.

Artigo 6

Em conformidade com o disposto no artigo l, os Estados Partes


tomarã o medidas efetivas a fim de prevenir e punir a tortura no
âmbito de sua jurisdiçã o.
Os Estados Partes as segurar-s e-ao de que todos os atos de
tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam
considerados delitos em seu direito penal, estabelecendo penas
severas para sua puniçã o, que levem em conta sua gravidade.
Os Estados Partes obrigam-se também a tomar medidas efetivas
para prevenir e punir outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes, no âmbito de sua jurisdiçã o.

Artigo 8
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Os Estados Partes assegurarã o a qualquer pessoa que denunciar
haver sido submetida a tortura, no â mbito de sua jurisdiçã o, o
direito de que o caso seja examinado de maneira imparcial.
Quando houver denú ncia ou razã o fundada para supor que haja
sido cometido ato de tortura no â mbito de sua jurisdiçã o, os
Estados Partes garantirão que suas autoridades procederão
de ofício e imediatamente à realização de uma investigação
sobre o caso e iniciarão, se for cabível, o respectivo processo
penal.

Assim sendo, é esta introduçã o para dar nome aos fatos por que se
pede reparaçã o e para trazer à tona o compromisso assumido pelo Brasil, no que concerne
à sua aboliçã o. Um compromisso, aliá s, que revela o reconhecimento de sua ilicitude, de
sua imoralidade, de sua incompatibilidade com um Estado Democrá tico de Direito – o que
levou também à sua tipificaçã o como crime contra a humanidade no Estatuto de Roma
(artigo 7º, letra f). Isso posto, decorre que reparar a vítima de uma tal violaçã o - tendo o
Estado a ela dado causa, por meio de um de seus agentes – é um ó bvio imperativo da
coerência.

2. DA OMISSÃO DO PODER JUDICIÁRIO E DO DELEGADO DE POLÍCIA. DA AÇÃO


CRIMINOSA DOS POLICIAIS MILITARES.

Conforme já foi narrado em tó pico anterior, o Poder Judiciá rio, na


posse de todas as informaçõ es trazidas por este Nú cleo Especializado da Defensoria
Pú blica, que deixaram claro ao menos a existência de indícios dos crimes de tortura e
abuso de autoridade cometidos contra o requerente - crimes estes que nã o foram objetos
de investigaçã o pelo sistema de justiça comum -, manteve-se inerte.

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Observe-se que, conforme obrigaçã o internacional do Brasil
decorrente da CONVENÇÃ O INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA, o
Estado deveria proceder “de ofício e imediatamente à realizaçã o de uma investigaçã o
sobre o caso” e daí iniciar, se cabível, o respectivo processo penal (artigo 8º). Mas isto nã o
ocorreu, daí o interessado ter procurado assistência jurídica da Defensoria Pú blica para
fazê-lo.
A justificativa dada pelo Juiz de Direito foi a seguinte: os fatos já
foram apurados pelo sistema de justiça militar, portanto nã o há mais necessidade de
novas investigaçõ es.
Ocorre que os crimes de tortura e abuso de autoridade devem
ser processados e julgados pela Justiça Comum, desta forma a Polícia Judiciária é
quem possui atribuição para investigação de autoria e materialidade dos referidos
delitos.
A Justiça Militar é aquela prevista para processamento e
julgamento dos crimes militares, somente. Sua estrutura, ritos e tipos penais sã o
completamente diferentes da estrutura, ritos e tipos penais da Justiça Comum. Por terem
objetos e leis distintas, sã o independentes e nã o se comunicam.
A Constituiçã o Federal nã o trouxe a definiçã o de “crime militar”,
embora por diversas vezes mencione o termo. Foi o Có digo Penal Militar – Decreto-Lei nº
1.001/69, que se incumbiu da missã o, em seu artigo 9º.
Segundo o dispositivo, há uma divisã o entre os crimes
propriamente militares (inciso I) e os impropriamente militares (incisos II e III). Os
primeiros sã o aqueles previstos no Có digo Penal Militar e previstos de maneira diversa ou
nã o previstos na legislaçã o comum. Os segundos sã o aqueles previstos de maneira
idêntico no CPM e na legislaçã o comum, mas praticado em algumas situaçõ es específicas.
O crime de tortura, assim como o crime de abuso de
autoridade, portanto, não são crimes militares, nem próprios, nem impróprios, pois
não previstos no Código Penal Militar, seja com a mesma tipificação da legislação
comum, seja com tipificação diversa.
Assim, de acordo com a legislaçã o atual, presentes na prá tica do
ilícito as elementares do tipo penal "tortura" – ou eventualmente de abuso de autoridade,

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ainda que cometido o crime por militar em serviço, contra civil, nã o será o crime
considerado crime militar.
Tais crimes nã o sã o previstos no Có digo Penal Militar, e, portanto,
devem ser apurados pela Justiça Comum Estadual, nã o sendo possível considerar que a
Justiça Militar já o fez. Dizer que tais crimes sã o de incumbência da Justiça Comum
significa dizer que cabe ao Sistema de Justiça Comum o dever de investigar, processar e
julgar.
Nã o é dado à polícia judiciá ria “delegar” uma parte de seu dever,
ou referendar o que foi feito por quem é absolutamente incompetente para tanto e o faz
sob outras regras. Fazer isso é deixar de cumprir com seu dever, é submeter-se a outra
jurisdiçã o (competência).
Tampouco é possível fazer um paralelo com o instituto da “prova
emprestrada”, existente no processo civil: o material de inquérito é colhido de maneira
inquisitiva, sem as garantias do contraditó rio e da ampla defesa. Assim, nã o é dado à
Justiça Comum “aproveitar” a conclusã o e o material colhido pela Justiça Militar na íntegra,
dispensando totalmente apuraçã o pró pria, conduzida sob o crivo da legislaçã o comum.
No mais, o que restou apurado pela Corregedoria da Polícia
Militar foi apenas o crime de lesã o corporal leve, este sim previsto no artigo 209 do Có digo
Penal Militar. No entanto, os fatos narrados na peça inaugural do procedimento
(notitia criminis) dizem respeito a crimes simultâneos a este e dele diversos em
suas elementares, tipificados tão somente na Justiça Comum, devendo por esta serem
apurados. E nem mesmo é possível falar em bis in idem, muito menos em coisa julgada
nestes casos. Mesmo tendo sido o foco completamente diferente, a Justiça Comum decidiu
por nã o realizar a apuraçã o dos fatos sob a égide da Lei Comum.
Assim, era indubitá vel a competência da Justiça comum estadual,
eis que inexiste, no caso concreto, crime militar. Em consonâ ncia com este entendimento,
seguem as Sú mulas 90 e 172 do Superior Tribunal de Justiça:

“Súmula 90: Compete à Justiça Estadual Militar


processar e julgar o policial militar pela prática do
crime militar, e à Comum pela prática do crime comum
simultâneo àquele”.

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“Súmula 172: Compete à Justiça Comum processar e
julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda
que praticado em serviço.”

Ainda neste sentido, segue abaixo ampla jurisprudência relacionada,


sufragando o entendimento aqui explanado:

“Policiais militares que retém, aprisionam e espancam


indivíduo suspeito de prá tica de furto, causando-lhe lesõ es
corporais graves, como meio de lhe aplicar medida
penalizadora ou ‘corretivo’, segundo o jargã o popular,
indevidamente. Configuraçã o dos crimes de abuso de
autoridade pelo aprisionamento impró prio e ilegal e de
tortura-pena, em funçã o da infligência de acentuado
sofrimento físico e tormento desnecessá rio pelo
espancamento. Crimes nã o regulados ou previstos pela
legislaçã o penal militar. Delitos entã o que, nã o sendo
militares, sã o da competência do juízo penal comum e nã o o
militar. Inteligência do art. 1º, II, da Lei 9.455 de 1997”
(TJBA – CC 51.143-9/99 – rel. Benito Figueiredo. Julgado
em 16 de junho de 1999).
“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO
ORDINÁ RIO. DESCABIMENTO. RECENTE ORIENTAÇÃ O DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PENAL E PROCESSUAL
PENAL MILITAR. ABUSO DE AUTORIDADE. COMPETÊ NCIA
DA JUSTIÇA COMUM. TRANSAÇÃ O PENAL. COISA JULGADA.
LESÃ O CORPORAL LEVE (ART. 209 DO CPM).
DESARQUIVAMENTO DO INQÚ ERITO. INEXISTÊ NCIA DE
OFENSA AO PRINCÍPIO DA COISA JULGADA E DO NE BIS IN
IDEM. INTELIGÊ NCIA DAS SÚ MULAS 90 E 172 DO STJ.
WRIT NÃ O CONHECIDO. 1. Buscando dar efetividade à s
normas previstas no artigo 102, inciso II, alínea "a", da
Constituiçã o Federal, e aos artigos 30 a 32, ambos da Lei n.º
8.038/90, a mais recente jurisprudência do Supremo
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Tribunal Federal passou a nã o mais admitir o manejo do
habeas corpus em substituiçã o a recursos ordiná rios
(apelaçã o, agravo em execuçã o, recurso especial),
tampouco como sucedâ neo de revisã o criminal. 2. O
Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova
jurisprudência da Colenda Corte, passou também a
restringir as hipó teses de cabimento do habeas corpus, nã o
admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em
substituiçã o do recurso cabível. 3. A transaçã o penal
efetivada no Juízo Comum, relativa ao crime de abuso de
autoridade, nã o impede a açã o penal militar quanto ao
delito do art. 209 do CPM. 4. Com efeito, porquanto
inafastá vel a regra da competência absoluta em razã o da
matéria, o processamento da causa exige o julgamento em
apartado dos delitos, sendo essa, portanto, uma das
exceçõ es à regra do simultaneus processus (art. 79, inciso I,
do CPP), nã o havendo que se falar em ofensa aos princípios
da intangibilidade da coisa julgada e do ne bis in idem.
(Inteligência das Sú mulas 90 e 172 do STJ). 5. Habeas
Corpus nã o conhecido.” (HC 135.760/RS, Rel. Ministro
CAMPOS MARQUES Quinta Turma, julgado em
19/02/2013)

“- COMPETENCIA E PROCESSO PENAL. POLICIAIS


MILITARES. LESÕ ES CORPORAIS E ABUSO DE
AUTORIDADE. DIVERSIDADE DE JURISDIÇÃ O. UNIDADE DE
PROCESSO E JULGAMENTO EXCLUIDA PELA INCIDENCIA
DO ART. 79, I, DO CPP. SUMULA 172-STJ. - POR CRIMES
DISTINTOS DENUNCIADOS OS POLICIAIS MILITARES,
CONCOMITANTEMENTE NA JUSTIÇA COMUM E NA
JUSTIÇA MILITAR, A ESTA COMPETE PROCESSA-LOS E
JULGA-LOS PELO DELITO DE LESÕ ES CORPORAIS, POIS,
PRATICADO NO DESEMPENHO DAS ATIVIDADES DE
POLICIAMENTO, E AQUELA, PROCESSA-LOS E JULGA-LOS
PELO DELITO DE ABUSO DE AUTORIDADE, NÃ O PREVISTO

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NO CODIGO PENAL MILITAR. - DIVERSIDADE DE
JURISDIÇÃ O INFORMADA PELA REGRA DO ART. 79, I, DO
CODIGO DE PROCESSO PENAL.- JURISPRUDENCIA DO STJ
(SUMULA 172). - CONFLITO CONHECIDO.” (CC 3.782/MG,
Rel. Ministro WILLIAM PATTERSON, TERCEIRA SEÇÃ O,
julgado em 28/05/1997)

“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE


LESÃ O CORPORAL (ART. 209 DO CPM) TORTURA CONTRA
ADOLESCENTES (ART. 233 DA LEI 8069/90), ATRIBUIDOS
A POLICIAIS MILITARES, EM SERVIÇO, NO DESEMPENHO
DE POLICIAMENTO CIVIL. COMPETENCIA DA JUSTIÇA
MILITAR DO ESTADO PARA JULGAMENTO DO CRIME DE
LESÃ O CORPORAL COMETIDO POR POLICIAL MILITAR EM
SERVIÇO (ART. 125, PARAGRAFO 4., DA CONSTITUIÇÃ O
FEDERAL, 9., II, "C", E 209 DO CPM) E DA JUSTIÇA COMUM
ESTADUAL PARA JULGAMENTO DO CRIME DE TORTURA.
PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.” (CC 3.532/SP, Rel.
Ministro JESUS COSTA LIMA, Rel. p/ Acó rdã o Ministro Assis
Toledo, Terceira Seçã o, julgado em 19/11/1992)

“ARQUIVAMENTO DE INQUÉ RITO POLICIAL MILITAR, POR


INEXISTÊ NCIA DE CRIME MILITAR. CORREIÇÃ O PARCIAL
REQUERIDA PELO JUIZ-AUDITOR CORREGEDOR DA
JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃ O. ALEGAÇÃ O DE OCORRÊ NCIA
DE CRIME DE TORTURA. CRIME COMUM. INCOMPETÊ NCIA
DA JUSTIÇA MILITAR. INTELEGÊ NCIA DO ARTIGO 124 DA
CONSTITUIÇÃ O FEDERAL” . (STF – 2ª Turma. RE 407.721.
Relator Gilmar Mendes. Julgado em 16 de novembro de
2004).

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃ O ENTRE O JUÍZO DA


JUSTIÇA MILITAR E O JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.
COMPETÊ NCIA PARA O PROCESSAMENTO E JULGAMENTO
DE CRIME SUPOSTAMENTE PRATICADO POR POLICIAIS

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MILITARES. ELEMENTOS INDICIÁ RIOS COMPATÍVEL, EM
TESE, COM OS DELITOS DE TORTURA, PORQUANTO
APARENTE CONSTRANGIMENTO COM O INTUITO DE
OBTER INFORMAÇÃ O, E O DE ABUSO DE AUTORIDADE.
PRÁ TICAS DELITIVAS DE COMPETÊ NCIA DA JUSTIÇA
COMUM. AFASTADA, ASSIM, A COMPETÊ NCIA DA JUSTIÇA
CASTRENSE E TAMBÉ M DO JUÍZO SUSCITADO (JUIZADO
ESPECIAL CRIMINAL), ESTE Ú LTIMO, EM RAZÃ O DA SOMA
DAS PENAS MÁ XIMAS COMINADAS SER SUPERIOR AO
MONTANTE PREVISTO PARA CONFIGURAÇÃ O DE CRIME
DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. DETERMINAÇÃ O, DE
OFÍCIO, DE COMPETÊ NCIA DO JUÍZO COMUM PARA O
PROCESSAMENTO DO FEITO. NECESSIDADE, CONTUDO,
DE MODIFICAÇÃ O DA DEFINIÇÃ O JURÍDICA DA CONDUTA,
EM DECORRÊ NCIA DE ELEMENTOS DE FATOS NÃ O
CONTIDOS NA PEÇA VESTIBULAR. HIPÓ TESE
EXCEPCIONAL NA QUAL O MAGISTRADO ESTÁ
AUTORIZADO A ULTRAPASSAR O JUÍZO DE
ADMISSIBILIDADE NA PRESENTE FASE PROCESSUAL, UMA
VEZ QUE ABRANGE QUESTÃ O DE FIXAÇÃ O DA
COMPETÊ NCIA. CONFLITO PROCEDENTE. Verificada a
existência de elementos indiciá rios capazes de justificar a
persecuçã o criminal no que concerne aos delitos de tortura
e abuso de autoridade, nã o cabe à Justiça Militar o processo
e julgamento do feito, porquanto ambas as prá ticas
delitivas sã o de competência da Justiça Comum. (TJ-SC - CJ:
20130558116 SC 2013.055811-6 (Acó rdã o), Relator: Paulo
Roberto Sartorato, Data de Julgamento: 17/11/2014,
Primeira Câ mara Criminal Julgado, ).

Com isso, nã o é possível argumentar como justificativa para o


arquivamento da requisiçã o de abertura de investigaçã o comum apenas que os fatos já
teriam sido apurados pela Justiça Militar, já que esta nã o seria competente para verificar a
prá tica da tortura realizada pelos policiais militares, ou mesmo o abuso de autoridade por

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eles em tese perpetrado, os quais, de qualquer forma, sequer foram foco da investigaçã o
militar.
Tampouco se pode esquecer que a conduçã o do Inquérito Policial
Militar e a colheita de provas naquela seara sã o regidas pelas regras do Có digo de
Processo Penal Militar (Decreto- Lei 1.002, de 21/10/69), diploma que nã o prevê em
específico, por exemplo, a identificaçã o de testemunhas oculares, a oitiva do ofendido,
reproduçã o simulada dos fatos, todas providências indispensá veis na conduçã o de
Inquérito Policial Comum, regido pelo Có digo de Processo Penal (artigo 6º).
A propó sito, no IPM é revelado que no local estava acontecendo uma
festa, que havia mais de 30 (trinta) testemunhas das agressões sofridas pela vítima
(fls. 86 dos autos), e, ao que consta, não foi realizada a diligência, habitual na polícia
judiciária e prevista no Código de Processo Penal, de localização de todas ou grande
parte dessas testemunhas oculares, que, na narrativa, abundavam. Nã o se olvide que
a d. autoridade ora apontada como coatora chegou à conclusã o de que a investigaçã o na
seara militar fora “exaustiva” sem sequer ter acesso à integralidade do Inquérito Policial
Militar (o expediente do DIPO é aqui juntado na íntegra, em sequencia numérica de folhas,
para permitir essa conclusã o – DOC. XX).
O interessante (e espantoso) do que aqui se constata é que, sem sequer
saber ao certo como foram conduzidas as investigaçõ es na seara militar, a conclusã o de
existência de excludente de ilicitude na conduta do Policiais tidos como violadores da lei,
tirada pela Justiça Castrense, foi referendada pela Justiça Comum.
Nã o se quer dizer aqui que Justiça Militar e a Justiça Comum nã o podem
chegar coincidentemente a uma mesma conclusã o: apenas quer-se dizer que isso pode
acontecer TÃ O SOMENTE apó s percurso independente de investigaçã o de cada qual em
sua pró pria esfera, através de suas regras específicas e ú nicas. É teratoló gico imaginar a
Justiça Militar abrindo mã o de providências investigativas conforme seu rito pró prio
porque a Justiça Comum já chegou a um termo e conclusã o finais; da mesma forma, é
teratoló gico permitir que a Justiça Comum rasgue os diplomas investigativos da lei civil e
simplesmente referende os trabalhos da Justiça Militar sem proceder a seu pró prio e
independente trabalho investigativo. As jurisdiçõ es sã o independentes e incomunicá veis,
posto que atravessadas por ritos distintos e objetos diversos.

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Assim fazendo, devida vênia, delegando e terceirizando à Justiça
incompetente e regida por outras regras o seu dever, atingiu-se um dos caros pilares de
sustentaçã o do Estado de Direito, que veda a denegaçã o de jurisdiçã o, sedimentando que o
Poder Judiciá rio é inafastá vel, assim como é garantido o acesso à Justiça (CF. artigo 5,
XXXV).
Mas nã o é só . A um só tempo, quando o Sistema de Justiça Comum nega
o que lhe era de dever, delegando à Justiça incompetente a tarefa de fazê-lo, fere-se
também a garantia do juiz natural, insculpida no artigo 5º, LIII, da Constituiçã o Federal.
No mais, os princípios, regras e a jurisprudência que permeiam a Justiça
Castrense sã o bastante distintos daqueles que permeiam a Justiça Comum. Assim, se na
Justiça Castrense, como foi dito na promoçã o de arquivamento deste caso naquela seara, a
palavra da vítima em crimes que envolvem agentes do Estado nã o adquire muita
relevâ ncia, “restando isolada nos autos”, na Justiça Comum, a palavra da vítima em crimes
de tortura ou mesmo de abuso de autoridade assumem papel de singular relevâ ncia, já que
normalmente sã o praticados em locais restritos à vítima e aos executores, e por isso acaba
servindo de base para a condenaçã o, quando acrescentada a outros elementos de
convicçã o. Neste sentido, posicionam-se os julgados abaixo:
“APELAÇÃ O CRIMINAL - TORTURA - RECURSOS
DEFENSIVOS - NEGATIVA DE AUTORIA - PALAVRA DA
VÍTIMA EM CONSONÂ NCIA COM O CONJUNTO
PROBATÓ RIO - LAUDO PERICIAL COMPROBATÓ RIO DAS
LESÕ ES - RECURSOS CONHECIDOS - PROVIDO UM E
PARCIALMENTE PROVIDO OUTRO. Nos crimes de tortura,
que guardam em sua essência a clandestinidade, sobretudo
quando praticados por policiais, a palavra da vítima assume
especial relevâ ncia, principalmente em consonâ ncia com os
demais elementos probató rios amealhados nos autos.
Adotando-se o conceito de autoridade como elemento
normativo do tipo, previsto no art. 5.º, da Lei n.º
4.898/1965, a aplicaçã o à espécie da majorante de pena
(""se o crime é cometido por agente pú blico""),
estabelecida no art. 1.º, § 4.º, inc. II, da Lei n.º 9.455/1997,
constitui evidente ""bis in idem""na valoraçã o da condiçã o

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pessoal do sujeito ativo, e que deve ser afastado. Conquanto
a absolviçã o realmente nã o atenda o interesse da
coletividade, uma condenaçã o que nã o se baseia em provas
concretas, estremes de dú vida e produzidas sob o crivo do
contraditó rio também nã o pode ocorrer, sob pena de se
cometer um erro judiciá rio, que repugna a toda sociedade.
V.V.P. APELAÇÃ O CRIMINAL - TORTURA - RECURSOS
DEFENSIVOS - AUSÊ NCIA DE ELEMENTOS APTOS A
FUNDAR A CONDENAÇÃ O - INEXISTÊ NCIA DE PROVAS DA
EXISTÊ NCIA DO FATO - NEGATIVA DE AUTORIA -
IMPROCEDÊ NCIA - LAUDO PERICIAL COMPROVADOR DA
EXISTÊ NCIA DE LESÕ ES - PALAVRA DA VÍTIMA FIRME E
COERENTE, CORROBORADA POR PROVA TESTEMUNHAL -
RECURSOS CONHECIDOS E IMPROVIDOS. Nos crimes de
tortura, que guardam em sua essência a clandestinidade,
má xime quando perpetrados por policiais, a palavra da
vítima há de ser vista com especial valoraçã o,
especialmente se condizente com prova pericial e
depoimento de testemunha que acompanhou seu martírio
posterior à violência. Precedentes.” (Apelaçã o Criminal
1.0024.01.038678-7/001, Relator(a): Des.(a) Má rcia
Milanez , Relator(a) para o acó rdã o: Des.(a) Sérgio Braga ,
1ª CÂ MARA CRIMINAL, julgamento em 23/08/2005)

“PROCESSUAL PENAL. ABUSO DE AUTORIDADE.


INVESTIGAÇÃ O À MARGEM DA LEI. TORTURA.
DEPOIMENTO DAS VÍTIMAS. RELEVO. APENAÇÃ O.
REPRESSÃ O GERAL E ESPECÍFICA - Em se tratando de
delito praticado à s escuras, como ocorre nas investigaçõ es
policiais à margem da lei, em que suspeitos de delitos sã o
convidados a falar mediante agressõ es mú ltiplas, a palavra
da vítima assume grande relevo, mormente quando
corroborada por ACD. Ao impor a pena, deve o magistrado
considerar nã o só a repressã o específica, mas também a
genérica.”   (Apelaçã o Criminal  1.0000.00.167929-9/000,

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Relator(a): Des.(a) Roney Oliveira , 2ª CÂ MARA CRIMINAL,
julgamento em 13/04/2000)

“PROVA - CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE - PALAVRAS


DA VÍTIMA - VALOR - ENTENDIMENTO - Em se tratando de
crime de abuso de autoridade acontecido no recinto de
delegacia de policia, longe das vistas de testemunhas, a
oposiçã o entre a versã o do acusado e a do ofendido resolve-
se por meio da prova indiciá ria, sendo apto a condenaçã o a
incriminaçã o feita pelo sujeito passivo, que, harmô nico e
coerente, permaneceu inabalado durante todos os trâ mites
processuais.” (TACRIMSP - ACr 716.883 - 2ª C. - Rel. Juiz
Haroldo Luz - J. 06.08.1992)

Ademais, os fatos aqui narrados trazem uma situaçã o, infelizmente,


muito usual na atuaçã o policial, que demonstra a clara disparidade de forças entre os
cidadã os e o Estado. O tema é de grande relevâ ncia, sendo que o encaminhamento
adequado em casos como estes é de extrema urgência e necessita da atuaçã o efetiva das
autoridades, sob pena de transformar a Constituiçã o Federal, com todos os seus princípios
regentes dentro do Estado Democrá tico de Direito, numa mera carta de intençõ es.
Nã o se olvide que o Brasil assumiu por diversas vezes o compromisso
internacional de prevenir, reprimir e vedar a tortura, o que fez, por exemplo, desde a
subscriçã o da aclamada Declaraçã o Universal dos Direitos Humanos (ONU / 1948) 5,
passando pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU / 1966) 6 até chegar,
mais recentemente, a ser signatá rio da Convençã o Contra a Tortura e Outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU / 1989).
Este ú ltimo diploma, por exemplo, prevê, expressamente, o
compromisso de os Estados adotarem medidas para o enfrentamento do problema da
tortura. Nesse sentido, fica sedimentado que é dever o impedimento da prá tica de novos
atos e de assegurar a qualquer pessoa o direito de apresentar queixa perante as
5
Artigo V - Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
6
Artigo 7º - Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre
consentimento, a experiências médicas ou científicas.
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autoridades competentes do Estado, a exemplo do exposto no artigo 2º e 13º da
Convençã o do Sistema ONU, já mencionada:
Quanto ao dever de controle e correiçã o, trata-se de poder-dever
atribuído ao Judiciá rio, que se constitui instrumento de efetivaçã o de inú meros direitos e
garantias constitucionais, alguns deles mencionados aqui, quais sejam os constantes do
artigo 5º, incisos III e XLIX.
Desta forma, demonstrado está que houve omissã o do Poder Judiciá rio,
que perpetuou ainda mais o sofrimento do autor.
No que se refere ao comportamento da Polícia Judiciá ria,
constatou-se ter ocorrido diversas ilegalidades. Segundo o Có digo de Processo Penal, o
Delegado de Polícia, ao tomar conhecimento da existência, em tese, de infraçã o penal
deverá tomar algumas providências:

“Art. 6º  Logo que tiver conhecimento da prá tica da infraçã o penal,


a autoridade policial deverá :
 I - dirigir-se ao local, providenciando para que nã o se alterem o
estado e conservaçã o das coisas, até a chegada dos peritos criminais; 
 II - apreender os objetos que tiverem relaçã o com o fato, apó s
liberados pelos peritos criminais; 
 III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do
fato e suas circunstâ ncias;
 IV - ouvir o ofendido;
 V - ouvir o indiciado, com observâ ncia, no que for aplicá vel, do
disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado
por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;
 VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a
acareaçõ es;
 VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de
delito e a quaisquer outras perícias;
 VIII - ordenar a identificaçã o do indiciado pelo processo
datiloscó pico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;
  IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista
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individual, familiar e social, sua condiçã o econô mica, sua atitude e estado de â nimo antes e
depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a
apreciaçã o do seu temperamento e cará ter”.
O requerente, logo apó s ser agredido por policiais militares, ao
tentar contato com o Delegado de Polícia para relatar o ocorrido, foi duramente
repreendido por este, que, de forma ilegal e desrespeitosa, mandou XXX se calar.
As únicas provas colhidas pela Autoridade Policial foram as
declarações dos policiais militares que agrediram XXXX, sendo que, por força do art.
6º, III, do CPP, deveria colher todas as provas (no caso, existiam várias pessoas que
presenciaram as agressões, mas não foram ouvidas).
Como pode se observar, ao requerente, desde a abordagem
policial violenta, passando pela leniência do Delegado de Polícia, até a omissã o do Poder
Judiciá rio, foi-lhe aplicado a presunçã o da culpa. Nã o se quer dizer que declaraçõ es de
policiais militares nã o devam ser levadas em consideraçã o, mas sim que o indivíduo, de
acordo com a Constituiçã o Federal, possui garantias fundamentais, entre elas a da
presunçã o de inocência, bem como a de nã o ser privado de sua liberdade (salvo em
flagrante delito ou por mandado judicial, obedecidos os procedimentos constitucionais e
legais).
O requerente afirmou ter sido agredido, física e moralmente, por
agentes estatais responsá veis pela segurança pú blica. Ao ser preso por policiais militares
(sem identificaçã o), nã o estando cometendo nenhum delito, nã o existindo mandado de
prisã o expedido pela justiça contra sua pessoa, evidente que direitos fundamentais do
indivíduo foram violados.

Nã o foi sequer investigado o porquê das agressõ es físicas e morais


a que o requerente foi submetido. Evidente que a Autoridade Policial, neste caso, deveria
apurar os fatos para concluir se houve abuso, excesso de força utilizado na abordagem dos
policiais militares. Ressalta-se que a própria justiça militar reconheceu a existência de
excesso por parte dos militares, caracterizando infração disciplinar.
No que tange a açã o dos policiais militares agressores, como já
amplamente colocado, trata-se de comportamento ilegal e desproporcional (a justiça
militar, inclusive, reconheceu os excessos). Os agentes estatais, ao obrigarem o requerente
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a nã o permanecer no local em que se encontrava, já iniciaram a abordagem violando
direitos fundamentais de XXXX7. Se nã o bastasse o primeiro abuso, ao nã o obedecer ordem
manifestamente inconstitucional e ilegal dos policiais, o requerente foi agredido física e
moralmente, além de ser preso por “desacato”.
Por grande semelhança com o caso em tela, peço vênia para trazer
trechos do lapidar voto do Des. Joenildo de Sousa Chaves (TJ-MS – Apelaçã o Cível: AC 1553
MS 2008.001553-1):
“Além de causar indignaçã o, a truculência policial provoca
perplexidade, visto que indica que os policiais que participaram
do evento têm um total desprezo à s garantias constitucionais do
cidadã o.
É certo que, para coibir a marginalidade, a polícia nã o deve agir ao
arrepio da lei e das garantias constitucionais, pois o que diferencia
um policial de um marginal, quando ambos fazem o uso da força, é
que o primeiro age com respeito à lei e o segundo nã o, daí
decorrer a legitimidade da força policial. Aceitar que a polícia use
a força sem obediência à s garantias constitucionais é subverter os
princípios do Estado Democrá tico de Direito e admitir que ela aja
como um marginal.
In casu, a açã o policial abalou o patrimô nio moral do apelado, pois
nã o há como nã o reconhecer que ele foi agredido, constrangido,
rebaixado e ameaçado.
Imagino o constrangimento, a dor e a humilhaçã o pelos quais
passou o apelado, quando, na frente de diversos transeuntes e
curiosos que estavam no local, foi jogado no chã o e golpeado
vá rias vezes com cacetete, e depois arrastado e atirado dentro de
uma viatura policial, na qual permaneceu ilegalmente algemado e
continuou a sofrer agressõ es de ordem psicoló gica, e, pelo tipo de
constrangimento a ele imposto (detençã o), sofreu desmoralizaçã o
7
CFRB 88 - Art. 5º Todos sã o iguais perante a lei, sem distinçã o de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XV - é livre a locomoçã o no
territó rio nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
permanecer ou dele sair com seus bens.
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de sua conduta social, afetando a sua honra e prestígio perante os
seus semelhantes e superiores, gerando constrangimento de
ordem moral.
Certamente, ainda que as agressõ es físicas tenham sido superadas
com cuidados médicos, as agressõ es na alma continuarã o, para
sempre, abalando o patrimô nio moral do apelado, pois a barbá rie
policial jamais será esquecida”.

Além disso, ressalta-se que nã o se trata de qualquer violência


cometida contra o indivíduo, mas sim, pela forma como se deu, pelas características que o
caso apresenta, de crimes de tortura e abuso de autoridade, cometidos pelos agentes
estatais. Infelizmente, referidos delitos sequer foram investigados na esfera criminal,
causando dor e sofrimento maiores ainda ao requerente diante de tamanha injustiça.
Existem dois laudos que comprovam as agressõ es sofridas por
XXX. É sabido de todos que o Estado, ao ter um cidadã o sob sua responsabilidade, nã o
pode violentá -lo e, o que é pior, nã o apurar eventual violaçã o. Cabia ao Estado, como é
evidente, justificar o porquê das agressõ es, se elas foram necessá rias e se nã o houve
abusos por parte de seus agentes.

3. DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO

Do que consta, XXXX foi vítima de açã o ilegal e excessiva


perpetrada por agentes policiais do Estado de Sã o Paulo. O ato é, portanto, ilícito,
criminoso e contraria preceitos fundamentais da ordem jurídica interna e internacional.
No entanto, nã o sã o só as normas que visam a proibir a tortura e
as que estabelecem o direito de todo o cidadã o à integridade física e psíquica que estã o em
confronto com o comportamento verificado. Refiro-me à Lei nº 4.898/65, que define os
limites da atuaçã o regular, ao determinar em seu art. 3º, letras “a” e “i”, ser abuso
qualquer ato atentató rio da liberdade de locomoçã o e da incolumidade física do indivíduo.
Também preceitua o art. 4º, “b”, da mencionada, que se trata de abuso submeter pessoa
sob sua guarda ou custó dia a vexame ou constrangimento nã o autorizado em lei. Afinal, ao
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policial militar nã o sã o concedidos poderes amplos e irrestritos, mas, ao contrá rio, sua
atuaçã o deve observar a legalidade e os demais princípios da administraçã o pú blica, no
desenvolvimento da atividade de polícia ostensiva e de preservaçã o da ordem pú blica
(artigo 144, §5º da Constituiçã o Federal). Ora, a abordagem a que XXXX foi submetido foi
violenta, vexató ria, desproporcional. Logo, foi abusiva e - como evidência de falta de justa
motivaçã o – dela nã o resultou nenhuma providência regular.
Trata-se, portanto, a partir de todas as perspectivas possíveis, de
ato ilícito, nã o abarcado – pela desnecessidade e excesso – nas hipó teses excludentes de
ilicitude do artigo 188 do Có digo Civil. Trata-se de descumprimento de dever legal e nã o
de seu estrito cumprimento.
Art. 186. Aquele que por açã o ou omissã o voluntá ria, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 188. Nã o constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido;
II - a deterioraçã o ou destruiçã o da coisa alheia, ou a lesã o a pessoa, a fim
de remover perigo iminente.
Pará grafo ú nico. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando
as circunstâ ncias o tornarem absolutamente necessá rio, nã o excedendo
os limites do indispensá vel para a remoçã o do perigo.

Da conduta irregular, ou seja, do ato ilícito, resultaram danos,


acerca dos quais se discorrerá adiante em detalhe.
No caso, incide a norma do artigo 37, § 6º da Constituiçã o Federal,
segundo o qual:
“As pessoas de direito público e as de direito privado prestadoras de
serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nesta
qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o
responsável nos casos de dolo e culpa”.

Como o ordena o texto constitucional e o artigo 927, §ú nico, do


Có digo Civil, deve o Estado de Sã o Paulo, de quem os policiais sã o longa manus,
responder pelos atos praticados por seus agentes, no exercício da funçã o pú blica que lhes
incumbiu, por terem causado prejuízo a terceiro. Essa responsabilidade, segundo
entendimento doutriná rio e jurisdicional pacífico, é objetiva, de forma que o ente pú blico
nã o se exime do dever de indenizar caso o agente causador nã o tenha agido com dolo ou

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culpa – razã o por que é indiferente para o provimento desta que nã o tenham sido
identificados os policiais envolvidos na investigaçã o militar, nem haja sentença transitada
em julgado em sede criminal. A Constituiçã o Federal é clara ao plasmar a
responsabilizaçã o estatal objetiva, sem perquiriçõ es sobre o animus estatal ou de seus
agentes.
No plano da responsabilidade objetiva do direito brasileiro, o dano
ressarcível tanto resulta de um ato doloso ou culposo do agente
público como, também, de ato que, embora não culposo ou
revelador de falha da máquina administrativa ou do serviço, tenha-
se caracterizado como injusto para o particular, como lesivo ao seu
direito subjetivo.8

Em outras palavras, se ao exercer suas atribuiçõ es, ao selecionar


um contingente policial, ao armá-lo, possibilitando-lhe a atuaçã o, ao conferir-lhe
autoridade, o Estado cria e oferece risco aos particulares, deve também garantir que os
prejuízos serã o ressarcidos. É esse o fundamento da denominada Teoria do Risco
Administrativo.
Transportando essas premissas para o presente caso, conclui-se
que o poder de polícia exercido por agentes do Estado, que agiram em nome deste,
culminou com a violaçã o de direitos subjetivos de XXXX, por meio dos atos de tortura
praticados. Logo, é dever do ente pú blico indenizar os danos materiais e morais daí
decorrentes.
Ainda que nã o seja esse o entendimento ora esposado, ou seja,
ainda que se quisesse perscrutar a disposiçã o subjetiva dos agentes, seria caso de
indenizar o cidadã o lesado.
Isso, porque já se verificou a existência de um dever legal
descumprido, qual seja, a nã o investigaçã o, o que implica na denegaçã o de jurisdiçã o e na
negativa de acesso à Justiça.
Além disso, conforme a narraçã o bastante de XXXX, bem como do
Inquérito Policial Militar (é ler o parecer do MP Militar e a decisã o da Justiça Militar),
cometeram em sua abordagem excesso, por meio de violência, ameaça, intimidaçã o, num
contexto em que nã o foi constatada resistência, ou qualquer oposiçã o (ao que serve de
evidência a ausência de providências regulares).

8
Cahali, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. Ed. Sã o Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2007.
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Aliá s, quanto à possível contestaçã o das abundantes provas coligidas,
tem-se, também advindo da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, que a
presunçã o de inocência do agente nã o exime o Estado de reparar o dano causado. O
Estado, naquela Corte, e de maneira progressiva também em outras jurisdiçõ es, é visto,
por força dos tratados assinados e do compromisso assumido contra a tortura, como
titular do dever de apontar causas plausíveis para as lesõ es sofridas no período em que
uma pessoa permaneça sob sua guarda e responsabilidade. Nesse sentido, o excerto
abaixo, reafirma que havendo indícios de tortura e maus-tratos cabe à s autoridades
pú blicas oferecer explicaçã o alternativa e convincente. Em esta nã o havendo, prevalece a
versã o do ofendido.9
Por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem afirmado que
‘quando um indivíduo é levado em custódia em boas condições de
saúde, mas se encontra ferido no momento da liberação, é
incumbência do Estado oferecer uma explicação plausível sobre a
causa dos ferimentos’. A presunçã o que as lesõ es sofridas por um
detento sã o resultado de tortura ou outra forma proibida de maus tratos
pode ser afastada se existe uma explicaçã o alternativa plausível, mas
cabe à s autoridades e aos supostos perpetradores demonstrarem de
forma convincente que as alegaçõ es sã o infundadas.10

Voltando ao excesso, ensina Jú lio Fabbrini Mirabete que o


“excesso pode ser doloso, hipó tese em que o sujeito, apó s iniciar sua conduta conforme o
direito, extrapola seus limites de conduta, querendo um resultado antijurídico

9
Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Ribitsch v. Á ustria, julgamento de 04 de dezembro de
1995, §34: “Nã o se contesta que as lesõ es Sr. Ribitsch foram causadas durante o período de
detençã o, que era de todo o modo ilegal, sob custó dia da polícia, mantido sob seu controle. A
absolviçã o do policial Markl no processo penal num tribunal vinculado ao princípio da presunçã o
de inocência nã o absolve a Á ustria da sua responsabilidade no â mbito da Convençã o. O Governo,
portanto, era obrigado a fornecer uma explicaçã o plausível de como os ferimentos do recorrente
foram causados. Mas o Governo nã o fez mais do que se referir ao resultado do processo penal
interno, onde o alto padrã o de prova necessá ria para assegurar uma condenaçã o penal nã o foi
encontrado para ter sido satisfeita. (...) Com base em todo o material apresentado, o Tribunal
conclui nã o ter o Governo provado satisfatoriamente que as lesõ es do peticioná rio nã o foram
causadas - inteiramente, principalmente, ou em parte - pelo tratamento que ele sofreu enquanto
estava sob custó dia policial”.
10
FOLEY, Conor. Protegendo os brasileiros contra a tortura: Um manual para Juízes, Promotores,
Defensores Pú blicos e Advogados, 1ª ed., Brasília: IBAHRI, Ministério das Relaçõ es Exteriores
Britâ nico e Embaixada Britânica no Brasil, 2011, p. 76.
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desnecessá rio ou nã o autorizado legalmente. Excluída a descriminante quanto a esse
resultado, responderá o agente por crime doloso pelo evento causado no excesso. Assim,
aquele que, podendo apenas ferir, mata a vítima, responderá por homicídio; o que podia
evitar a agressã o através das vias de fato e causou lesã o responderá por esta”.11 Ora, se,
nesse caso, foi inicialmente legítima a abordagem, logo deixou de sê-lo por obra da
intimidaçã o consciente e desejada, assim como nã o poderiam deixar de serem os socos,
xingamentos e perguntas agressivas, que tiveram como vítima um cidadã o desarmado.
Trata-se, sim, conforme a narraçã o do caso, de excesso doloso no
cumprimento do dever legal – ainda que nã o seja possível a identificaçã o do indivíduo que
o praticou. Os policiais extrapolaram os limites de uma açã o regular, como evidencia o
texto da Lei nº 4.898/65, acima referido, e alcançaram um resultado absolutamente
antijurídico e desnecessá rio.
Está evidenciado, portanto, que é dever do Estado indenizar o
requerente pelos prejuízos, de ordem moral, causados pelos policiais militares que agiram
em seu nome.

4. DOS DANOS E DO QUANTUM DO RESSARCIMENTO

A situaçã o a que foi exposto o peticioná rio, já que nã o pô de ser


evitada, merece reparo pelos danos sofridos, conforme disposto no artigo 5º, inciso V, da
Constituiçã o Federal:

Art. 5º Todos sã o iguais perante a lei, sem distinçã o de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenizaçã o por dano material, moral ou à imagem;

Tais fatos, somados à narrativa dos acontecimentos em si torna


evidente a existência de danos morais. Afinal, a agressã o em via pú blica, sem qualquer
possibilidade de autodefesa, envolveu humilhaçã o, intimidaçã o, incriminaçã o, lesã o
corporal, revolta e, certamente, a sensaçã o de impotência de nã o poder reivindicar o seu
11
MIRABETE, Jú lio Fabrini. Manual de Direito Penal: parte especial, arts. 121 a 234 do CP, 26ª
ediçã o, Sã o Paulo, Atlas, 2009.

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direito claro, diante de uma autoridade nã o razoá vel. Aliá s, seus efeitos perduram, na
sensaçã o de injustiça e vulnerabilidade.
(...) todo fato resultante de um ato contrá rio ao Direito, que afete de
alguma forma a integridade psíquica do indivíduo, provocando-lhe a
infelicidade, transitória ou não no tempo, no plano jurídico, é um
dano moral puro. É certo que os exemplos mais comuns de dano moral
puro sã o identificados pela dor ou sofrimento experimentado pelo
indivíduo. Assim, são os decorrentes da perda de um ente querido,
da mutilação, da lesão física, da desonra, da humilhação, da
depressão, da angústia.12

Ademais, a configuraçã o de tortura e a sua devida reparaçã o


prescindem de laudo que ateste serem – necessariamente - graves as lesõ es sofridas.
Como decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Sã o Paulo num semelhante caso de
tortura perpetrada por agentes policiais, o ato de violência abusiva, o ato de tortura, é, em
si, apto a ensejar a reparaçã o, embora sejam as repercussõ es físicas e psicoló gicas também
importantes no arbítrio de seu valor.
Pouco importa, também, que ao autor tenha sido impingida lesão
corporal leve, a par do resultado do exame de corpo de delito. Leve,
grave ou gravíssima, as provas evidenciam que o autor nã o tentou fugir e
foi agredido quando já se encontrava deitado no chã o e algemado. O
abuso de autoridade é inequívoco, confirmando ainda mais a
obrigaçã o do Estado de reparar os danos causados por seus agentes,
posto que é de sua exclusiva responsabilidade o recrutamento de
pessoas para o efetivo.
(Apelaçã o 0011475-08.2009.8.26.0302 TJSP, Relator: Ferraz de Arruda,
13º Câ mara de Direito Pú blico, Data do Julgamento: 28/11/2012, Data
de Publicaçã o: 04/12/2012, p. 14-15)

Nesse mesmo sentido decisõ es sã o proferidas por diversos


Tribunais de Justiça que ratificam o dever de indenizaçã o por parte do Estado mediante
abusos perpetrados por agentes policiais:

APELAÇÃ O CÍVEL - DANOS MORAIS - VIOLÊ NCIA POLICIAL -


RESPONSABILIDADE DO ESTADO - DETENÇÃ O INJUSTA - AGRESSÕ ES
FÍSICAS E PSICOLÓ GICAS - APELADO QUE RECEBEU VÁ RIOS GOLPES DE
12
ARRUDA, Augusto F.M. Ferraz de. Dano moral puro ou psíquico. Sã o Paulo: Editora Juarez de
Oliveira,1999, p.29.
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CASSETETE - DANO MORAL CONFIGURADO - EXTENSÃ O DO VALOR
INDENIZATÓ RIO - QUANTUM FIXADO PELO JUÍZO A QUO MANTIDO -
RECURSO IMPROVIDO. (TJ-MS - AC: 1553 MS 2008.001553-1, Relator:
Des. Joenildo de Sousa Chaves, Data de Julgamento: 29/04/2008, 1ª
Turma Cível, Data de Publicaçã o: 29/05/2008)

APELAÇÃ O CÍVEL. AÇÃ O DE REPARAÇÃ O DE DANOS MORAIS.


RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ART. 37, § 6º DA
CONSTITUIÇÃ O FEDERAL. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO.
BARREIRA POLICIAL OU BLITZ. AUTOR VÍTIMA DE AGRESSÕ ES FÍSICAS
PERPETRADAS POR POLICIAIS MILITARES. LESÕ ES CORPORAIS.
VIOLÊ NCIA POLICIAL. RAPAZ CONFUNDIDO COM FORAGIDO
ALGEMADO E CONDUZIDO À POLÍCIA CIVIL COMO SE FOSSE
PROCURADO. CONSTATAÇÃ O DE QUE NADA HAVIA CONTRA ELE.
ACUSAÇÃ O DA PRÁ TICA DE DESACATO E RESISTÊ NCIA VISANDO
JUSTIFICAR AS AGRESSÕ ES PRATICADAS. SITUAÇÃ O DE FLAGRANTE
DELITO NÃ O CONFIGURADA. UTILIZAÇÃ O DE ALGEMAS. PRÁ TICA
VEXATÓ RIA. SÚ MULA VINCULANTE Nº 11 DO STF. ILICITUDE.
ATUAÇÃ O EXORBITANTE E DESPROPORCIONAL DOS AGENTES DA
BRIGADA MILITAR. CONDUTA QUE EXTRAPOLA O ESTRITO
CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
OFENSA. VIOLAÇÃ O A DIREITOS DA PERSONALIDADE. DANO MORAL
CARACTERIZADO. O Estado "lato sensu" obriga-se a reparar prejuízos
materiais e morais decorrentes de comportamentos comissivos ou
omissivos que lhe sã o imputá veis, nos termos do pará grafo 6º do artigo
37 da Constituiçã o Federal. A responsabilidade dos entes pú blicos
independe da prova do elemento subjetivo (dolo ou culpa), sendo
suficiente a demonstraçã o do dano e do nexo causal. Ao ente pú blico
compete demonstrar a existência de uma das causas de exclusã o da
responsabilidade civil objetiva, como a culpa exclusiva da vítima, o caso
fortuito, a força maior ou a ausência do nexo causal entre o dano e o
evento. Situaçã o concreta em que configurada prisã o ilegal, ausente
flagrante delito, e patenteado o abuso de autoridade, pois a conduta
adotada pelos policiais militares descambou para violência e agressõ es
físicas despropositadas e desproporcionais. Excesso cometido no

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exercício da atividade policial militar que extrapola o estrito
cumprimento do dever legal e envereda para o campo da ilicitude e do
abuso de autoridade. Vítima submetida a agressõ es físicas significativas,
a sério constrangimento e grave humilhaçã o em local pú blico. DANOS
MORAIS "IN RE IPSA". Independem de prova os danos morais no
contexto verificado nos autos, eis que se tem por caracterizados "in re
ipsa", pois a vítima sofreu inequívoca violaçã o a sua integridade
corporal. ARBITRAMENTO DO "QUANTUM" INDENIZATÓ RIO. Montante
da indenizaçã o arbitrado em atençã o aos critérios de proporcionalidade
e razoabilidade, bem assim à s peculiaridades do caso concreto.
CONSECTÁ RIOS LEGAIS. APLICAÇÃ O DA LEI Nº 11.960/09. A Segunda
Seçã o do e. Superior Tribunal de Justiça, apreciando o tema sob a
sistemá tica do artigo 543-C do CPC (no REsp Nº 1.270.439/PR),
estabeleceu critérios para correçã o das condenaçõ es impostas à Fazenda
Pú blica, apó s a entrada em vigor da Lei nº 11.960/2009, procurando
compatibilizá -los com o entendimento adotado pelo STF ao julgar a ADI
nº 4.537-DF. Em vista disso, passa-se a aplicar o IPCA, como critério de
correçã o monetá ria a incidir sobre o principal da condenaçã o. No tocante
aos juros de mora, considerando que a declaraçã o de
inconstitucionalidade pelo Excelso Pretó rio, por arrastamento, em
relaçã o ao art. 5º daquele diploma legal, ficou restrita à correçã o
monetá ria, permanece a incidência dos juros aplicados à caderneta de
poupança, nos termos do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com redaçã o dada
pela Lei nº 11.960/09. APELO PROVIDO EM PARTE. (Apelaçã o Cível Nº
70058417353, Nona Câ mara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Miguel  ngelo da Silva, Julgado em 27/08/2014) (TJ-RS - AC:
70058417353 RS, Relator: Miguel  ngelo da Silva, Data de Julgamento:
27/08/2014, Nona Câ mara Cível, Data de Publicaçã o: Diá rio da Justiça do
dia 01/09/2014)

As agressõ es restaram comprovadas por dois laudos, um do IML,


quando da lavratura do termo circunstanciado por suposto crime de desacato, e outro pelo
HME, da Polícia Militar, quando de procedimento investigató rio realizado pela
corregedoria da PM. Além disso, a narrativa do requerente é compatível com aquilo
apresentado no resultado dos exames. Ainda, a pró pria Justiça Militar, apesar de nã o
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reconhecer a conduta dos polícias como lesã o corporal, confirmou a infraçã o
administrativa, apontando excessos na abordagem policial.
Pois bem, no tocante à quantificaçã o, em que pese a dificuldade de
aferir-se e parametrizar o valor da dor e degradaçã o, a doutrina e a jurisprudência têm
apontado balizas, tais como capacidade econô mica das partes e o imperativo de
compensaçã o da vítima e de desestímulo ao responsá vel. Nesse sentido, corrobora Carlos
Alberto Bittar a argumentaçã o aqui esposada, o que, diante das particularidades do caso
em tela, leva-nos à s conclusõ es apresentadas em seguida.

(...) a reparaçã o de danos morais exerce funçã o diversa daquela dos


danos materiais. Enquanto estes se voltam para a recomposiçã o do
patrimô nio ofendido, através da aplicaçã o da fó rmula danos emergentes
e lucros cessantes (Có digo Civil de 1916, art. 1.059), aqueles procuram
oferecer compensaçã o ao lesado, para atenuaçã o do sofrimento havido.
De outra parte, quanto ao lesante, objetiva a reparaçã o impingir-lhe
sançã o, a fim de que nã o volte a praticar atos lesivos à personalidade de
outrem.13

Quanto à capacidade econô mica, em que pese de um lado tratar-se


de requerente com renda mensal em torno 1,5 salá rio mínimo, estar-se-á
responsabilizando o Estado de Sã o Paulo, o mais rico da federaçã o e o 2º orçamento
brasileiro, ficando atrá s somente da Uniã o Federal, com orçamento para 2013 no valor
aproximado de R$ 173,1 bilhõ es, dos quais R$ 15.604.907.591 estã o destinados para
segurança pú blica e especificamente R$ 10.795.956.421 para a polícia militar.14 Ora, a
tortura e a letalidade policial em Sã o Paulo vêm se tornando tema corriqueiro de notícia e
mote de reivindicaçõ es populares, de modo que urge uma tomada de providências pelo
Estado e de uma postura clara de desestímulo de tais condutas, por meio do Judiciá rio
Paulista, comprometido por força da lei e com o fim da tortura.

13
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais: a questão da fixação do valor. Tribuna
da Magistratura: Informativo da Associaçã o Paulista de Magistrados - Caderno de Doutrina, Sã o
Paulo, jul. 1996, p. 35.
14
Disponível em: < http://www.planejamento.sp.gov.br/noti_anexo/files/Lei_14925_de_28-12-
12.pdf >.
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O combate à tortura exige que magistrados e promotores manejem com
destreza tanto o escudo quanto a espada da lei. O escudo que eles devem
proporcionar consiste em respeitar as salvaguardas nacionais e
internacionais destinadas a proteger as pessoas que se encontram nas
mã os dos responsá veis pela aplicaçã o da lei, de modo a impedir que elas
sejam submetidas a tortura e a maus tratos semelhantes e proibidos. A
espada que eles devem brandir consiste em responsabilizar aqueles que
perpetram tais atos pela violaçã o da lei.15

Considerando, portanto, a grande capacidade econô mica do


Estado de Sã o Paulo, a gravidade da conduta dos agentes estatais, a sua repercussã o no
entã o adolescente, e, por fim, o parâ metro oferecido em caso aná logo - qual seja o Recurso
Especial nº 487749, oriundo do Estado do Rio Grande do Sul e relatado pela Ministra
Eliana Calmon - entende-se por adequada quantia nã o inferior a 200 salá rios mínimos, a
título de indenizaçã o por danos morais.

PROCESSUAL CIVIL – INDENIZAÇÃ O POR DANO MORAL –


INAPLICABILIDADE DA SÚ MULA 7/STJ – VALORAÇÃ O DAS
CIRCUNSTÂ NCIAS FÁ TICAS DELINEADAS SOBERANAMENTE PELA
INSTÂ NCIA ORDINÁ RIA – TORTURA COMETIDA POR POLICIAIS CIVIS.
1. Nã o incidência da sú mula 7/STJ a hipó tese em comento, por nã o se
tratar de reexame do contexto fá tico-probató rio e sim de sua valoraçã o.
2. Cabe ao Superior Tribunal de Justiça o controle do valor fixado a título
de indenizaçã o por dano moral, que nã o pode ser ínfimo ou abusivo,
diante das peculiaridades de cada caso, mas sim proporcional à dú plice
funçã o deste intuito: reparaçã o do dano, buscando minimizar a dor da
vítima, e puniçã o do ofensor, para que nã o volte a reincidir.
3. Quantia de 200 (duzentos) salários-mínimos, fixada pela
sentença e confirmada pelo Tribunal Estadual, que se apresenta
razoável, diante da grave situação fática descrita nos autos,
consubstanciada na tortura praticada por policiais civis.
4. Recurso especial improvido.

Posto isso, é a presente açã o indenizató ria para requerer que seja
paga quantia nã o inferior a 200 salá rios mínimos paulistas em indenizaçã o pelos danos
infligidos a XXX por policiais militares deste Estado.
15
FOLEY, Conor. Protegendo os brasileiros contra a tortura: Um manual para Juízes, Promotores,
Defensores Públicos e Advogados, 1ª ed., Brasília: IBAHRI, Ministério das Relaçõ es Exteriores
Britâ nico e Embaixada Britânica no Brasil, 2011.

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II. PEDIDOS
Por todo o exposto, requer o autor:
a. A concessã o dos benefícios da Justiça Gratuita, tendo em vista a
declaraçã o de situaçã o financeira anexa, nos termos do art. 3º da
Lei 1.060/50;
b. A citaçã o do réu, na pessoa do Procurador Geral do Estado de Sã o
Paulo, para, querendo, apresentar contestaçã o no prazo legal;
c. O julgamento totalmente procedente da açã o para que seja o réu
condenado ao pagamento do equivalente a 200 salá rios mínimos,
como forma de reparaçã o dos danos morais sofridos;
d. A condenaçã o do réu nas verbas de sucumbências;
e. A intimaçã o pessoal da Defensoria Pú blica de todos os atos do
processo, bem como a observâ ncia da contagem em dobro de
todos os atos processuais, com fundamento no art. 128, inciso I, da
Lei Complementar Federal 80/94;
f. Protesta provar o alegado por todos os meios de provas em
direito admitidos, notadamente provas documentais, oitiva de
testemunhas, as quais serã o arroladas no prazo do artigo 407 do
Có digo de Processo Civil.
g. A juntada dos documentos que acompanham esta inicial.

Atribui-se à causa o valor de R$ 176.000,00 (cento e setenta e seis


mil reais).

Sã o Paulo, data.

Defensor(a) Pú blico(a)

Unidade de XXXXXXXXXXX

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