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Huberto Rohden - Jesus Nazareno PDF
Huberto Rohden - Jesus Nazareno PDF
JESUS
NAZARENO
Como os evangelhos o descreveram e
como minha alma o contempla
UNIVERSALISMO
Índice
Advertência
Prefácio para a primeira edição
Prefácio para a sétima edição
JESUS NAZARENO
Primeira Parte – Solidão e Trabalho
João, o precursor
Maria, a mãe
Maria visita Isabel
O profeta do deserto
De Nazaré a Belém
Nascimento de Jesus
Os pastores
Apresentação no templo
O vidente Simeão
Magos do Oriente
Jesus fugitivo
Regresso à pátria
Entre os doutores
Onde esteve Jesus dos doze aos trinta anos?
Dados biográficos
Relação de obras do Prof. Huberto Rohden
Advertência
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se
aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa,
mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Os homens não querem conceder a sua cegueira. Não querem rezar o sincero
“confiteor” das suas culpas.
Mas ai de nós!... Jesus e a sua doutrina são um par de grandes incógnitas, não
só para o mundo pagão, mas também para milhões de cristãos dos nossos
dias...
– para a nossa inteligência é Cristo o sol da verdade; sem ele, tudo é noite e
treva...
“Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que descanse
em ti” (Agostinho).
Prefácio para a sétima edição
É este um dos meus livros mais antigos sobre o maior homem da história, livro
agora completamente atualizado. Narra singelamente a vida de Jesus de
Nazaré, segundo os quatro Evangelhos, sincronizados numa narrativa contínua
e sem intermitência.
O leitor que queira penetrar mais profundamente no espírito do Cristo fará bem
em ler o meu livro Sabedoria das Parábolas, ou então os quatro volumes da
Sabedoria do Evangelho, intitulados: 1 – Filosofia Cósmica do Evangelho; 2 –
O Sermão da Montanha; 3 – Assim Dizia o Mestre; 4 – O Triunfo da Vida Sobre
a Morte.
Também o meu livro Que vos Parece do Cristo? toma uma perspectiva mais
profunda e metafísica em face do Cristo Cósmico, que se revelou, aqui na
terra, na pessoa de Jesus de Nazaré.
“Da sua plenitude”, diz João, “todos nós recebemos graça e mais graça”; a
plenitude do Cristo Cósmico transbordou em beneficio da humanidade,
segundo a abertura ou receptividade de cada homem.
SOLIDÃO E TRABALHO
João, o precursor
“Eis que envio o meu arauto ante a tua face”, dissera Malaquias, “a fim de
preparar-te os caminhos. Uma voz clama no deserto: Preparai os caminhos do
Senhor! Endireitai as suas veredas!”
***
– Não temas, Zacarias – diz-lhe com voz calma o desconhecido –, foi atendida
a tua oração; eis que tua esposa Isabel terá um filho, a quem porás o nome de
João. Será grande aos olhos de Deus e repleto dum espírito santo desde o seio
de sua mãe; converterá e fará voltar a Deus a muitos dos filhos de Israel.
O ancião, percebendo tão singular notícia, reflete por uns momentos, e surge-
lhe na mente ligeira dúvida sobre a possibilidade de semelhante promessa.
– Eu sou Gabriel, que assisto ante o trono de Deus, e fui enviado para
comunicar-te esta mensagem. Mas, como não deste fé às minhas palavras,
serás mudo e incapaz de proferir palavra, até o dia em que tudo isto se
realizará.
Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia para com Abraão e
seus descendentes para sempre – conforme prometera a nossos pais”.
***
João Batista, nascituro, adivinha a presença do Messias, assim como o tenro
germe no fundo da terra experimenta a proximidade do sol e começa a agitar-
se para ir ao encontro da luz. O Precursor já começa a desempenhar a sua
missão: exulta de júbilo no seio materno, e em sua alma resplandece a luz da
graça, antes mesmo que os seus olhos contemplem a “luz do mundo”.
***
E Maria oferece-se como serva a Isabel e fica em sua casa três meses,
prestando-lhe todos os serviços que uma simples empregada costuma prestar
à sua patroa...
“Aproximou-se o tempo em que Isabel devia dar à luz; e deu à luz um filho.
Ouviram os vizinhos e parentes que o Senhor lhe fizera mercê, e foram dar-lhe
os parabéns.
Aos grandes luzeiros do seu reino o próprio Deus lhes impõe o nome.
Sabia, sem dúvida, pelo marido, que esta era a ordem do celeste mensageiro.
Mas toda a gente discordava, dizendo: “Não há ninguém em tua parentela que
tenha este nome”.
É seu nome! Não sou eu que lho imponho; é o nome que ele recebeu de Deus.
Admiraram-se todos.
“Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo.
Suscitou-nos um Salvador poderoso na família de seu servo Davi, assim como,
há séculos, prometera por boca de seus santos profetas: para livrar-nos dos
nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam; para fazer
misericórdia aos nossos pais e recordar-se da sua santa aliança, do juramento
que fez a nosso pai, Abraão; para conceder-nos que, libertados das mãos dos
nossos inimigos, o servíssemos sem temor, em santidade e justiça, todos os
dias da nossa vida.
E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; irás ante a face do Senhor
para preparar-lhe o caminho, e fazer o seu povo conhecer a salvação, que
consiste na remissão dos pecados, graças à entranhável misericórdia de nosso
Deus; pois que das alturas nos visitou o sol nascente; a fim de alumiar aos que
jazem nas trevas sombrias da morte e dirigir os nossos passos a caminho da
paz”.
***
Nada diz o evangelista sobre a mocidade desse homem singular a não ser que
“o menino crescia e se fortalecia no espírito, e habitava no deserto até o dia em
que devia manifestar-se a Israel”.
Vida estranha, essa do Precursor. Passa uns vinte anos na solidão das plagas
inóspitas que se alargam, ermas e tristes, para as bandas do Mar Morto –
regiões quase completamente despidas de vegetação, rasgadas de profundos
precipícios, penhascos e cavernas, paradeiro favorito de solitários eremitas –
gente estranha, como lhes chama o escritor romano Plínio –, homens que
passam a existência sem dinheiro nem mulher, alheios à sociedade, só
conversando com as palmeiras da solidão.
Cerca de nove meses tinham decorrido desde aquele memorável dia em que o
anjo do Senhor aparecera a Maria, em Nazaré.
Mas não era em Nazaré da Galiléia que devia nascer Jesus. Quatro séculos
havia que o profeta Miquéias designara como torrão natal do Messias uma
modesta aldeia da Judéia, dizendo: “Tu, Belém de Éfrata, pequenina embora
entre as cidades principais de Judá, verás surgir o chefe de Israel, cuja origem
remonta aos dias da eternidade!” (Miquéias, 5,1).
***
Grande foi o alvoroço que o decreto de Tibério César despertou no meio dos
judeus. Fazia-lhes sentir dolorosamente a sua condição de povo tributário e
dependente de uma nação estrangeira – eles, filhos do povo eleito, súditos de
um imperador pagão?...
***
O recenseamento!...
Uma e muitas vezes, mormente naquelas últimas semanas, tinha ela lido e
meditado a profecia de Miquéias, que dava Belém como cidade natal do
Salvador, quando ela, que seria sua mãe, habitava em Nazaré. Até que, de
improviso, se lhe desvenda o mistério! O imperador romano servia de
instrumento nas mãos da Providência para realização dos seus planos!
Belém fica a umas duas horas para o sul de Jerusalém, à beira da estrada que
conduz a Hebron. A casaria derrama-se com pitoresca irregularidade sobre
duas colinas separadas uma da outra por uma ligeira depressão de terreno. Em
derredor das vivendas, vicejam abundantes olivais, vinhedos e figueiredos; e
para além se desdobram as férteis campinas de Beth-Sahur, quase sempre
pontuadas de grupos de ovelhas, ou rebanhos de cabras.
Beth-Iehem quer dizer: casa do pão, ou seja, celeiro de trigo. E, de fato, eram
vastos os trigais que cobriam essas zonas.
Baldados esforços. Por mais que José se esforçasse, por mais que batesse de
porta em porta, por mais que suplicasse e fizesse ver a necessidade de
descanso para sua esposa – não encontrou lugar nas hospedarias de Belém.
***
***
O peregrino que hoje, quase 2.000 anos após aquela noite bendita, visita a
gruta de Belém, encontra, erguido por cima da mesma, um templo magnífico.
Debaixo do altar se acham suspensas inúmeras lâmpadas, sempre acesas,
iluminando uma grande estrela de prata, embutida no pavimento de mármore.
Em torno dessa estrela – símbolo da luz do mundo que despontou à meia-noite
– fulgura a inscrição:
Os pastores, à vista dessa aparição, caem por terra, transidos de terror. Outros
fogem, espavoridos...
“Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que caberá a todo
o povo: hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo,
o Senhor. E isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em
faixas e reclinado numa manjedoura”.
1. O texto conhecido “aos homens de boa vontade” não corresponde ao original grego, onde a
“boa vontade” (ou benevolência) se refere a Deus.
Nesta mesma ocasião, foi-lhe imposto o nome de Jesus, que significa: Deus-
Salvador, nome que o anjo revelara com antecipação a Maria.
***
Mandava a lei de Moisés que a mulher, depois de dar à luz um filho, ficasse em
casa 40 dias (60 dias, se era filha), não tocasse em objeto sagrado nem
entrasse no templo de Deus.
Ao mesmo tempo, oferece José um par de pombos, que era a oferta tradicional
que as famílias pobres faziam ao templo, por essa ocasião.
José penetra, pois, no átrio dos sacerdotes, onde o serventuário do culto ergue
o menino ao céu, oferecendo-o a Deus; depois do que o pai o resgata com o
modesto estipêndio de cinco siclos. E o sacerdote devolve o menino,
abençoando-o.
O vidente Simeão
Fora esta a oração matutina da sua juventude, e era ainda esta a prece
vespertina da sua extrema anciania.
Tivera revelação divina de que não veria a morte sem que primeiro
contemplasse o Redentor.
Eis senão quando, por uma voz íntima, reconhece no filho de Maria o alvo dos
seus anseios! Aproxima-se e pede à jovem nazarena lhe entregue o filhinho.
Já não tem delícias a vida para quem apertou ao coração aquele que é o
caminho, a verdade e a vida!
“A tua alma, porém, será transpassada por uma espada, para que se
manifestem os pensamentos que muitos ocultam em seu coração”...
A jovem mãe estremece como que atingida pela lâmina fria de um punhal; uma
visão de dores se lhe antolha.
***
Depois de muito sondar e muito observar, senta-se num tamborete, toma nas
mãos um pergaminho coberto de hieroglifos, e se abisma no estudo desse
escrito.
Eram pagãos, todos eles; mas sabiam que o Messias não seria apenas
Salvador de Israel, senão do mundo inteiro. É o que diziam os livros sagrados
dos hebreus.
No meio das suas lucubrações levanta Baltasar os olhos e vê despontar no
horizonte um fenômeno estranho. É uma estrela de intenso fulgor.
O chefe da tribo, porém, não se deixa dissuadir do seu intento; uma voz íntima
o impele irresistivelmente a seguir a estrela.
***
Mais tarde, os gregos davam o nome de magos aos feiticeiros. Nos livros
sacros do Novo Testamento encontramos alguns deles: Bar-jesu (At 13,6) e
Simeão (At 8,9).
De manhã, aos primeiros albores do dia, entoavam hinos a Deus, com os olhos
fitos na estrela, que parecia adivinhar-lhes os anseios do coração.
Que fazer?
Responderam eles:
“Em Belém de Judá; pois assim está escrito pelo profeta Miquéias: E tu,
Belém, na terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as
cidades principais de Judá; porque de ti surgirá o chefe que há de
governar o meu povo, Israel”.
Herodes não pensava senão num dominador político, que derrotasse os seus
adversários e restabelecesse o reino de Davi e Salomão.
E ele, Herodes?
Foi-se a estrela movendo lentamente diante deles, até parar sobre Belém,
rente à entrada de uma casinha modesta, à beira da povoação.
De resto, o texto grego diz que os magos vieram da anatolé, isto é, da origem,
o que pode indicar a intuição espiritual deles.
O Egito não deixava de ser para todo israelita uma terra santa. As venerandas
tradições do povo eleito radicavam nesse solo, intimamente irmanadas com o
país e a história dos faraós. Aí tinham vivido Jacó e Moisés. Em Heliópolis,
centro sulino de Gessen, tinham-se os filhos de Jacó desenvolvido numa nação
poderosa e florescente, mesmo sob o azorrague dos africanos.
Viviam eles em terra de exílio.
Regresso à pátria
A visita dos magos do Oriente e a subsequente fuga dos três para terras
longínquas ocorreram provavelmente no segundo ano da vida de Jesus.
Jesus, menino dos seus quatro a cinco anos, marchava ao lado de José, os
pés calçados de sandálias, um chapeuzinho de folha de palmeira na cabeça, e
uma bolsa de couro a tiracolo – primavera em flor todo ele!
Maria, montada no fiel jumentinho, seguia atrás. O sol africano lhe havia
amorenado a tez, fazendo-a parecer mais forte e vigorosa que dantes.
Era bem penosa a jornada ao longo do litoral, rumo a Gaza, Azoto e Ascalon,
teatro das proezas de Sansão.
***
Depois da oblação das primícias era permitido aos peregrinos regressarem aos
seus lares.
***
A primeira pousada foi em Beroth, um dia de viagem da capital. Mas quem não
aparecia era Jesus! Já entrara o sol, e as sombras da noite vinham
desdobrando-se sobre a terra – de Jesus nem vestígio!
Tudo debalde!
***
Jesus vê seus pais, mas não se perturba nem se lança aos braços de sua aflita
mãe. Levanta-se tranquilamente e, muito calmo e sério, os espera.
“Filho!”, exclama a mãe com dolorosa ternura, “por que nos fizeste isto?
Eis que teu pai e eu te vínhamos procurando cheios de aflição!”
Jesus percebe esta censura; mas dos lábios não lhe passa uma palavrinha de
desculpa nem um pedido de perdão; nenhuma nuvem de tristeza lhe tolda a
fronte, nem uma lágrima de comoção lhe cai dos olhos, nem um sorriso de
alegre satisfação lhe contrai os lábios...
“Por que me procuráveis? Não sabíeis que tenho de ocupar-me das coisas de
meu Pai?...”
Teu pai, diz Maria, referindo-se a José; mas Jesus responde com “meu Pai”,
referindo-se a Deus.
Desse longo período da vida de Jesus – mais da metade da sua vida terrestre
– nada referem os evangelistas. Lucas resume esses dezoito anos nas poucas
palavras:
“Subiu com seus pais a Nazaré e lhes estava sujeito; e foi crescendo em
idade e estatura, em sabedoria e graça perante Deus e os homens”.
“Donde lhe vem essa sabedoria? Pois não é ele o filho do carpinteiro
José? Não está entre nós a sua mãe, e não conhecemos nós seus
irmãos e suas irmãs?”
Se Jesus tivesse estado ausente tantos anos, não seria óbvio que seus
conterrâneos mencionassem o fato? E que procurassem relacionar a sua
sabedoria com essa longa ausência e possível permanência em outras partes
do globo? Nada disto, porém, acontece. Tacitamente, os nazarenos supõem
que Jesus não tenha estado ausente.
De resto, que necessidade tinha ele de se sentar aos pés dos outros mestres
humanos, ele que já aos doze anos possuía uma sabedoria espiritual maior que
os teólogos da sinagoga e do templo, encanecidos nos estudos das revelações
de Deus?
Ausência física não deve ter havido – mas certamente uma ausência
metafísica. Se aos doze anos Jesus eclipsava a sabedoria dos sábios de Israel
é provável que nos dezoito anos da sua vida anônima tenha feito viagens
espirituais ao Infinito, viagens cósmicas ao “Reino dos Céus”, palavra central
de todos os seus ensinamentos, durante a vida pública.
Ninguém pode, com tamanho amor e brilho, falar dessa realidade invisível sem
que a tenha experimentado, longa e intensamente, em sua própria alma.
É possível que Jesus tenha, por algum tempo, frequentado as reuniões dos
essênios, cujos ensinamentos, porém, não atingem as nlturas que se revelam
nas páginas dos Evangelhos.
Não havia, para o jovem carpinteiro, mestre humano no mundo – havia, porém,
o Mestre dos mestres, para além de todos os mundos conhecidos. E é provável
que Jesus tenha recebido a sua sabedoria diretamente da sua experiência
pessoal com Deus.
Segunda Parte
MESTRE E MÉDICO
O mergulho de Jesus
Aos trinta anos, mais ou menos, Jesus emerge do seu longo anonimato e
resolve iniciar a sua vida social, na Judéia e na Galiléia.
Cerca de três léguas para o sul do lago de Genesaré, transpôs Jesus o rio
sobre uma ponte de pedra e, acompanhando o curso das águas, prosseguiu na
margem oriental, em demanda das regiões de Jericó.
Nesse caminho, associou-se a outros peregrinos que, como ele, iam ter com o
profeta do deserto, do qual todo o mundo falava.
Jesus fez alto no ponto em que o rio descreve uma grande volta para o leste.
Era este o lugar em que o essênio João mergulhava os pecadores nas águas
do Jordão, exortando-os à metanóia (transmentalização) ou conversão de uma
vida de erros e pecado para uma vida de verdade e santidade.
Esse mergulho físico, ou batismo, não dava pureza espiritual, mas era um
símbolo material exterior que lembrava um simbolizado espiritual interior, que
João admitia como já realizado, ou então convidava os batizantes a realizá-lo.
O mergulho era pois um símbolo exotérico de um simbolizado esotérico,
confirmando o que já ocorrera com o iniciando.
A voz de João era forte, vibrante, dura mesmo; as suas palavras, breves e
incisivas; os seus gestos, parcos e rápidos; toda a sua atitude incutia terror e
confiança ao mesmo tempo.
– Como? Tu vens para ser mergulhado por mim?... Eu é que devia ser
mergulhado por ti...
– Permite, por ora, que assim aconteça; convém cumprirmos tudo o que é
justo.
– Este é o meu Filho muito querido, no qual tenho posto a minha complacência!
Vêm essas alturas rasgadas de cavernas, abertas pela natureza, ou por mão
humana, e que serviam antigamente de asilo aos eremitas. Consta aquele
monte de rochas calcárias, que apresentam aspecto triste e desolador:
nenhuma árvore, nem um arbusto sequer ameniza aquela fatigante monotonia.
Por todas as partes se escancaram negras quebradas e precipícios.
Quem sabe se esses antros não ofereceram também guarida, por algum
tempo, a João, o mergulhador?...
Foi nesse mesmo deserto, por entre esses mesmos penhascos, que Jesus
resolveu passar os quarenta dias que seguiram ao seu mergulho no Jordão. A
caverna em que se diz ter habitado se acha na escabrosa ladeira oriental do
monte.
Segundo cálculos humanos, não podia haver para o Nazareno momento mais
propício do que este para inaugurar a sua missão entre o povo, que ouvira as
palavras de João e presenciara os fenômenos às margens do Jordão; de um
golpe teria ele conquistado todas as simpatias.
***
Diz o texto que Jesus foi conduzido ao deserto pelo espírito de Deus com o fim
de ser tentado ou testado pelo “adversário” (em hebraico: satan; em grego:
diábolos).
Antes de iniciar a sua vida pública, Jesus se submete a esse teste dos dois
pólos da sua natureza humano-divina, teste do qual o seu Cristo saiu
plenamente vitorioso.
– Este é o homem do qual eu dizia: após mim virá alguém que existia antes de
mim; eu não o conhecia, mas vim para que ele fosse manifestado em Israel; e
é por isto que eu realizo o mergulho na água; aquele que me enviou para fazer
o mergulho na água me disse: sobre quem vires descer e permanecer o
espírito sagrado, esse é o que mergulha no espírito sagrado; ora, eu vi o
espírito sagrado descer do céu em forma de pomba e permanecer sobre Jesus;
e dei o testemunho dizendo: Este é o Filho de Deus.
***
Quando, pois, no dia imediato, Jesus tornava a passar pela praia e João o
indigitou novamente, animaram-se os dois a travar relação com ele.
Jesus, porém, que bem lhes conhecia as intenções, voltou-se para os dois, e
cumprimentou-os.
Mas nem com isto se lhes quebrou o enleio. Pelo que lhes perguntou:
– Que procurais?
Foram.
– Somos galileus – replicou André, cobrando animo. – Meu amigo João é filho
de Zebedeu, que tem pescaria no lago de Genesaré. Quanto a mim, chamo-me
André; sou filho de Jonas e irmão de Simão.
Foi este o primeiro encontro e o primeiro colóquio que com Jesus tiveram
André e João. Tão profunda foi a impressão, que para logo se tornaram
discípulos do reino do Cristo.
“Encontramos o Messias”
– Encontramos o Messias!
A história e a tradição no-lo dão como homem de brio e iniciativa, estatura meã,
compleição robusta, olhar vivo e gênio resoluto.
– Tu és Simão, filho de Jonas; daqui por diante, o teu nome será Kepha.
***
Natanael conhecia de perto esse modesto lugarejo da serra, pois fica a pouca
distância de Caná; e sabia que, por via de regra, os nazarenos não primavam
pela cultura e civilização, porém muito mais por seu espírito de bairrismo. Era
Nazaré uma aldeia tão sem importância histórica, que nem uma única vez
encontramos o nome no Antigo Testamento.
– Antes que Filipe te chamasse – volveu Jesus – te via eu, quando estavas
debaixo da figueira.
Três dias depois dessas ocorrências, retirou-se Jesus das margens do Jordão,
onde chamara os seus primeiros discípulos, atravessou a extensa planície de
Esdrelon e chegou à cidade de Cafarnaum.
Daí não tardou a dirigir-se para sudoeste e ficou em Caná. Era Caná uma
modesta povoação situada à beira da estrada que de Cafarnaum conduz a
Nazaré.
Numa dessas manhãs, chegou Jesus com seus discípulos, não somente para
atender ao amável convite dos nubentes, como ainda por motivo de ordem
superior.
Para a mãe de Jesus, porém, não foram nada enigmáticas essas palavras,
nem viu nisto recusa alguma; entendeu que equivaliam a um atendimento ao
seu pedido, por sinal que foi logo ter com os serventes e lhes recomendou
obediência, dizendo:
Água é água – terão murmurado com seus botões alguns deles, enquanto
enchiam a talha. – Mas o que a gente quer é vinho.
Trabalharam e encheram seis grandes talhas de pedra, cada uma das quais
comportava cerca de cem litros.
Seiscentos litros d’água! Para que tanta? Não bastariam alguns litros?...
Que pasmo o dos criados! Já não era água, era vinho genuíno.
Estas solenidades nada tinham que ver com a nossa Páscoa cristã, que ainda
não se dera. A Páscoa judaica (ou Pessach) era a comemoração anual da
independência nacional de Israel, da sua saída da longa escravidão do Egito.
Não tardou que se formassem dois partidos, pró e contra Jesus. Principalmente
os sacerdotes, fariseus e doutores da lei se encheram de inveja, porque o rabi
de Nazaré ensinava em público, sem haver, cursado as escolas deles, nem ter
para isto requerido autorização ao Sinédrio.
Em face dessa resistência, lançou Jesus mão de uma corda, que encontrou no
pavimento, dobrou-a em forma de azorrague, e bradou:
– Fora com estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma praça de
mercado!
***
Jesus ouviu esse protesto e essa intimação e prometeu aos adversários, a seu
tempo, provar-lhes com um milagre a sua missão superior.
Numa dessas noites, quando tudo era paz e silêncio, e a lua no quarto
minguante espargia dúbia claridade pelo espaço, passava pelas ruas de
Jerusalém um homem de notável ilustração e prestígio, por nome Nicodemos.
Era doutor da lei e membro do Sinédrio, Senado religioso de Israel. Vinha
embuçado no seu manto de rabi, e deitava olhares desconfiados para a direita
e para a esquerda, como se receasse ser visto por alguém.
Nicodemos, como se vê, estava impressionado com o que Jesus fazia, os tais
milagres, mas ignorava o mais importante, o que ele era.
Então passa o Mestre a mostrar a seu novel discípulo que o principal não é
fazer algo, mas ser alguém.
– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não pode ver o
Reino de Deus.
Nascer de novo? Nicodemos logo pensa em reencarnação material e replica:
– Será que pode voltar ao ventre de sua mãe e nascer mais uma vez?
– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo pelo espírito não
pode ver o Reino de Deus; quem nasce da carne é carne, mas o que nasce do
espírito é espírito; não te admires de eu te dizer: é necessário nascer de novo.
E Jesus acrescentou:
De água e espírito?
Aqui Jesus faz ver a Nicodemos que não é necessário renascer pela carne,
nem é suficiente renascer só pelo espírito, mas é necessário nascer de novo de
água e espírito, renascer também num corpo novo, não um material, mas um
corpo imaterial, porque o homem completo não é espírito nem matéria, mas é
espírito revestido de corpo, não mais de um corpo material como agora mas
revestido de um corpo imaterial.
A palavra “água” é usada nos livros sacros para dizer pura energia. Jesus fala
à samaritana de “água viva”, do corpo imaterial vivificado pelo espírito.
– O sopro sopra onde quer; bem lhe ouves o ruído, mas não sabes donde vem
e para onde vai. Assim também acontece a todo homem que renasce do
espírito.
Nicodemos ouve, profundamente pensativo, estas palavras e murmura a meia
voz:
E lhe faz ver incisivamente que ele não se baseia em crenças vagas e incertas,
mas numa experiência imediata e evidente:
Depois, acrescenta:
Uns três anos depois, Nicodemos reaparece como decidido discípulo de Jesus
embalsamando, juntamente com José de Arimatéia, o corpo de Jesus
crucificado.
O Precursor no cárcere
Não herdara o gênio cruel e sanguinário de seu pai; mas era homem ambicioso
e sensual.
A fim de evitar uma insurreição popular por este ato de violência, fez
transportar o importuno vingador da moralidade pública para o castelo de
Maqueronte, à margem oriental do Mar Morto.
“Água viva”
Retirou-se então para a Galiléia, porque não era chegada ainda a sua hora, e
não convinha acirrar com a sua presença os ódios dos seus inimigos.
***
À beira deste poço sentou-se Jesus, exausto da longa jornada e coberto de pó.
Jesus deixou-se ficar sozinho à beira do poço de Jacó, sentado sobre o largo
bocal. Parecia esperar alguém...
Não tardou a aparecer uma mulher samaritana, com um jarro ao ombro. Viu o
homem sentado; pelo trajo, devia ser um rabi judeu. A recém-chegada não lhe
prestou atenção. Aproximou-se do poço para tirar água; depois, voltaria para a
cidade e continuaria na sua vida de sempre.
– Como é que tu, um judeu, me pedes de beber, a mim, que sou samaritana? –
pergunta ela, admirada.
– Senhor, não tens com que tirar, e o poço é fundo. De onde, pois, tirar essa
água? Acaso és tu maior que nosso pai Jacó, que nos deu este poço?
Prosseguiu Jesus a falar nas águas vivas com que vinha dessedentar a
humanidade:
– Todo aquele que bebe desta água tornará a ter sede; mas quem beber da
água que eu lhe darei não terá mais sede eternamente. A água que eu lhe
darei se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna.
– Senhor, dá-me dessa água, para que nunca mais tenha sede, nem mais
precise vir cá tirar água.
– É verdade – replicou Jesus – quando dizes que não tens marido; cinco
maridos tiveste, e o homem que tens agora nem é teu marido.
E logo desvia a conversa de um ponto tão ingrato para ela, e entra em terrenos
de controvérsia religiosa, dizendo:
– Nossos pais adoravam Deus neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém
que se deve adorar.
– Será que virá o Messias que é chamado o Ungido, e ele nos anunciará toda a
verdade?...
Então a mulher abandonou o seu cântaro e foi correr toda a cidade, clamando:
– Vinde e vede um homem que me disse tudo o que tenho feito. Não será ele o
Cristo?
E acrescentou:
– Não é por causa das tuas palavras, mas porque nós mesmos o ouvimos e
sabemos que este é o salvador do mundo.
O filho do funcionário
Após uma permanência de dois dias em Sicar da Samaria, partiu Jesus rumo
ao norte, em demanda da Galiléia. Dirigiu-se primeiramente a Caná, onde, no
ano precedente, convertera água em vinho.
Resolveu então Jesus, antes de dar saúde ao corpo do filho, curar a alma
enferma do pai; exigiu-lhe uma prova real de fé, ordenando categoricamente:
Reconheceu o funcionário que era a mesma hora em que Jesus lhe dissera:
“Vai, que teu filho vive”.
Jesus em Nazaré
“Repousa sobre mim o espírito do Senhor; ungiu-me para anunciar a boa nova
aos pobres; enviou-me para curar os corações contritos, para libertar os
cativos, restituir aos cegos a luz dos olhos, proclamar aos oprimidos a
redenção, apregoar o ano salutar do Senhor e o dia da retribuição” (Is 61,1ss).
E fez ver que era em sua própria pessoa que se realizara o vaticínio de Isaías.
E tamanha era a sabedoria dos conceitos, tal a graça e a unção das suas
palavras, que muitos dos ouvintes o aplaudiram, ufanos de contarem entre os
seus conterrâneos um personagem tão inteligente e simpático. Outros, pelo
contrário, tomados de inveja se sentiam eclipsados pelos fulgores do seu
espírito. E diziam: “Não é esse o filho do carpinteiro José? Não conhecemos
nós a Maria, sua mãe? A Tiago, José, Judas e Simão, seus irmãos?”
Não ignorava Jesus a animosidade que contra ele nutriam muitos dos seus
conterrâneos.
Quer dizer: Se és, de fato, o profeta de que fala Isaías, prova-o com os
milagres a que ele alude; faze aqui o que fizeste alhures.
Os ouvintes estavam a par dos fatos; sabiam que Elias, no tempo do ímpio rei
Acab e da rainha Jezabel, tivera de fugir para o deserto, onde era sustentado
por um corvo. Depois, o enviara Deus à casa de uma viúva pagã em Sarepta,
para que ela alimentasse o profeta. Dera, assim, preferência a uma mulher
gentia às filhas de Israel, em vista da corrupção do povo eleito.
Estas palavras caíram como brasas nos corações dos nazarenos! Queriam um
Messias-taumaturgo, mas não um Messias-juiz que insistisse numa emenda da
vida.
– Fora! Que temos nós contigo, Jesus de Nazaré... Vieste para nos perder?...
Sei quem és: o Santo de Deus!
É a primeira vez, durante a sua vida pública, que Jesus se vê face a face com
esse mundo estranho em manifestação sensível.
– Cala-te!
***
Neste sentido, Jesus chama Pedro Satanás, revelando logo o que ele entende
por Satanás: “o teu modo de pensar não é de Deus, mas do homem”, porque
Pedro protestara à idéia da morte voluntária de Jesus. Mas não expulsou de
seu discípulo esse Satanás; o próprio Pedro o expulsou, quando se converteu.
4. Nem uma única vez refere o Evangelho que Jesus tenha expulsado um
diabo. Diabo, ou Satanás, é uma mentalidade criada por um ser mental
(humano ou sobre-humano).
Sendo que o corpo de Jesus estava sempre envolto numa vibração ou aura de
alta frequência, os demônios, de nível baixo, se sentem atormentados e
bradam: “Que temos nós contigo?” ou “Vieste atormentar-nos antes do tempo?”
“Não nos mandes para o abismo.”
7. Paulo de Tarso, na epístola aos Filipenses, diz que, em nome de Jesus, se
dobram todos os joelhos, dos celestes, dos terrestres e dos infraterrestres
(ínferos).
Desempenha esse lago um papel mui saliente na vida pública de Jesus. A sua
forma é de um gracioso oval, ou de um cacho de uvas pendente, como alguém
julga ter descoberto. Os filhos de Israel comparavam-nos a um kinnor, a uma
harpa. As margens orientais têm a forma de um arco, caindo em barrancos
abruptos e rudes escarpas. O litoral oposto desdobra-se numa sucessão de
golfos, enseadas e praias sinuosas. Grande número de colinas e coxilhas de
mediana altura, ora avançam até ao espelho das águas, ora recuam para o
interior, formando pequenos promontórios, entre cujas fraldas se abrigam três
planícies, cada qual mais bela e fecunda. A que fica no meio chama-se
Genesar e deu o nome ao lago.
Betsaida, torrão natal de Tiago e João, como ainda de alguns outros discípulos,
teve, provavelmente, a honra de ser o cenário do acontecimento seguinte.
Pedro, Tiago e João tinham tarrafeado a noite toda, sem resultado. Estavam
cansados do labor insano e numa disposição deprimente.
Chegado à praia, viu-se apertado pelas turbas, que porfiavam vê-lo e ouvi-lo.
Púlpito original, não menos prático que poético era esse galhardo batel a flutuar
airosamente sobre as azuladas ondas do Genesaré, ao sopro fagueiro das
auras matutinas! Lá na outra banda, o globo solar vinha emergindo
gradualmente das brumas do horizonte, desenhando movediça coluna de fogo
na superfície do lago.
Propôs Jesus, talvez nesta ocasião, as parábolas do joio entre o trigo, da rede
de pescar, e diversas outras.
Assim costumava ele principiar cada uma das suas palestras. Falava, às vezes,
uma, duas, três horas; mas ninguém se aborrecia, ninguém se cansava,
ninguém se movia do lugar.
Lá no fundo da canoa jazia a velha tarrafa de Pedro, velha, mas ainda boa,
depois de consertada.
Menos mal, se assim fora... Toda sorte de peixes?... Que trabalho insano o da
última noite!... E nada de peixe... Nem uma escama sequer!...
Sim, era tão bom seguir a Jesus, trabalhar e sofrer com ele e ele...
– Faze-te ao largo.
– Senhor – replicou Pedro –, temos trabalhado a noite toda, sem nada apanhar.
Assim fez.
Indescritível foi o assombro dos discípulos; nunca em dias de sua vida Ihes
sucedera coisa igual.
– Eu quero: sê limpo.
Era do número dessas ruínas humanas o desditoso israelita de que nos fala o
Evangelho. A sua moléstia achava-se numa fase bem adiantada; pois estava
“coberto de lepra” da cabeça aos pés.
Consistia esta oferta num par de avezinhas e um cordeiro. Uma das aves era
imolada em sacrifício, a outra, aspergida com o sangue da primeira, e posta em
liberdade.
“Apesar disto, divulgou-se cada vez mais a notícia do fato”, porque o felizardo
não cabia em si de contente e, impelido pelo sentimento de gratidão, foi
espalhar por toda a redondeza a notícia do favor que acabava de receber das
mãos do Nazareno.
Certo dia, estava Jesus a ensinar numa casa em Cafarnaum. Desta feita,
porém, não estavam aí a escutá-Io apenas só os bons galileus, senão também
numerosos fariseus e doutores da lei, que tinham vindo de Jerusalém e de
outras cidades, enviados pelo Sinédrio, a fim de observarem a conduta e
criticarem as palavras do profeta de Nazaré.
Enquanto Jesus ensinava no interior da casa, quatro homens tinham vindo com
um paralítico numa padiola. Procuraram introduzi-lo na casa e colocá-lo aos
pés do Mestre; mas não conseguiram romper caminho através da multidão
compacta que se apinhava nas portas e janelas e enchia até a escada e o
terreiro da casa. Recorreram então a um expediente original; subiram por uma
escada exterior ao terraço do edifício, retiraram umas peças móveis e arriaram
o enfermo rentinho aos pés de Jesus. Pois faziam consigo mesmos este
cálculo; basta que o Nazareno veja o estado lamentável deste homem, para
não deixá-lo sem recurso.
E não se enganaram.
Mas o olhar do Mestre enxergava não somente a moléstia corporal, via também
a paralisia espiritual daquela alma.
– Que estais aí a pensar mal em vossos corações?... Que é mais fácil dizer a
este homem: “os teus pecados te são perdoados” ou “levanta-te, toma o teu
leito e vai para casa”?
– Ora, haveis de ver que o Filho do Homem tem o poder de perdoar pecados
sobre a terra.
E disse ao paralítico:
Lá fora, porém, cercaram o homem que fora paralítico, fitando-o da cabeça aos
pés, mal acreditando nos seus olhos. E, regressando para casa, comentavam o
acontecimento, dizendo:
Apanhou nas malhas da sua lógica a orgulhosa descrença dos seus inimigos.
Aos olhos dos judeus, passava o publicano por um traidor da pátria, pelo fato
de colaborar com a dominação estrangeira e recordar a perda da
independência nacional. O israelita ortodoxo evitava qualquer contato com
esses “pecadores”.
Um destes era Levi, filho de Alfeu; levava o sobrenome Mateus, pelo qual o
apresentam os demais evangelistas. Já ouvira, certamente, da doutrina de
Jesus de Nazaré; não tivera ainda ensejo para travar relações pessoais com
ele.
Soou então para o publicano a hora da graça. Nesse mesmo dia em que Jesus
deixava Cafarnaum, estava Levi sentado à mesa da repartição a contar o seu
rico dinheiro e passar recibos aos negociantes, todo engolfado nos seus
cálculos interesseiros – quando, de improviso, vê diante de si Jesus...
De relance, compreendeu o publicano o sentido daquele olhar silencioso do
Nazareno.
Durante a refeição, passaram pelo caminho alguns dos fariseus e, vendo Jesus
no meio daquela gente, escandalizaram-se, menearam a cabeça e deram
largas aos seus sentimentos de despeito:
– Não necessitam de médico os que estão com saúde, mas, sim, os doentes.
Ainda estava Jesus à mesa do banquete oferecido por Levi, e com ele os seus
discípulos e numerosos publicanos.
– Por que é que os discípulos de João, bem como os dos fariseus, jejuam
frequentemente e fazem muitas orações, ao passo que os teus comem e
bebem?
Os anos que Jesus passa, visivelmente, com os homens são como que um
banquete nupcial; não convém obrigar os convivas a jejuar. É melhor que se
alegrem com o esposo, que recolham forças, alegria e entusiasmo para que,
mais tarde, no meio das perseguições, não desanimem e desfaleçam.
Queria dizer aos murmuradores que não procurassem encerrar a boa nova do
Evangelho nas normas antigas, que eles, os fariseus e os discípulos de João
Batista, seguiam. Terminara a estreiteza do Antigo Testamento, e principiava a
largueza da Nova Aliança.
Os meus discípulos, diz ele, são roupa nova, vinho recente; ao passo que vós
sois roupa velha, odres usados e meio rotos. Continuai, muito embora, a trilhar
o vosso caminho e a vossa rotina, mas deixai também que os meus discípulos
sigam o caminho que eu lhes tracei. Agora vos desagradam estes usos e
costumes, como o vinho novo não apraz ao paladar afeito ao vinho velho. Mas
virá o tempo em que este vinho novo do Evangelho será mais suave e eficaz
do que todas as vossas cerimônias e tradições. O meu Evangelho é a religião
da liberdade dos filhos de Deus, e não dos escravos da lei; o que vale é o
espírito interior, e não os ritos externos; desde que os meus discípulos se
achem compenetrados do meu espírito, não tardará esta alma a formar o corpo
das praxes correspondentes; os ramos, as folhas, flores e frutos, todas as
práticas do culto externo nascerão espontaneamente do princípio vital do culto
interno que eu ensino aos meus.
Com esta parábola, tão singela, deu Jesus por terminada a discussão com o
pedantismo rotineiro dos murmuradores, que se retiraram, silenciosos e
confusos, em face da superioridade do rabi da Galiléia.
O doente de 38 anos
Resolveu Jesus deixar a Galiléia e dirigir-se a Jerusalém, para tomar parte nas
solenidades litúrgicas.
Estendia-se em derredor dele uma espécie de galeria, que tinha cinco pórticos,
sempre repletos de doentes de todo gênero: cegos, surdos, mudos, coxos,
aleijados, paralíticos, etc. Aguardavam eles o movimento das águas para se
atirar à piscina. É que, de tempos em tempos, descia ao tanque um anjo do
Senhor, provavelmente em forma invisível, e agitava a água; e quem primeiro
descesse à piscina era curado, fosse qual fosse o seu mal.
Foi a este mais pobre dos pobres que Jesus tomou por alvo da sua caridade.
Nem esperou que o infeliz lhe fizesse um pedido, mas perguntou-lhe
espontaneamente:
Disse-lhe Jesus:
Deitou a correr pelas ruas da cidade como uma criança, com a sua esteira às
costas, pulando e saltitando de satisfação, pela primeira vez depois de 38 anos
de paralisia.
– Aquele homem que me restituiu a saúde ordenou-me que levasse o meu leito
– como se dissesse: Se esse homem tem o poder de me curar, há de também
ter o direito de permitir que eu carregue o meu catre em dia de sábado.
Mas o interpelado não soube dar resposta; ignorava o nome de seu benfeitor; a
cura fora obra de poucos momentos.
– Olha, não tornes a pecar, para que não te suceda coisa pior.
Imediatamente, foi o homem ter com os fariseus e contou-lhes que o seu
benfeitor era Jesus de Nazaré.
Com estas notícias, assanhou-se mais ainda o furor dos adversários. Quem
não respeitava o sábado não podia ser de Deus – diziam entre si; logo, os
milagres do Nazareno só podiam ser portentos de Satanás.
“Por esta razão perseguiam os judeus a Jesus” – isto é, pelo fato de ter curado
em dia de sábado aquele doente de 38 anos, e de lhe ter ordenado carregar o
seu leito, nesse mesmo dia.
Fez ver que ele é Deus, mas não é a Divindade que ele chama Pai. Deus, para
ele, é uma emanação individual da Divindade Universal, mas não é a própria
Divindade. Paulo de Tarso compreendeu isto quando escreveu que o Cristo é o
“primogênito de todas as creaturas”, logo é creatura.
Jesus faz ver aos seus adversários que ele, como a mais alta emanação
individual (Deus) da Divindade não é escravo, mas Senhor do sábado, e não
tem de obedecer a leis humanas.
Em todo esse diálogo com seus ouvintes, afirma Jesus que o seu Cristo é
Deus, mas que o Pai, que é a Divindade, é maior do que ele, o Cristo, a
primeira e mais alta emanação individual da Divindade Universal. Entretanto,
como os ouvintes não sabiam distinguir entre Deus e Divindade (Pai),
compreendem mal as palavras de Jesus. Ele, porém, continua a afirmar que
está na Divindade e a Divindade está nele, embora a Divindade seja maior do
que ele. Acrescenta que a Divindade também está em todos os homens, e
todos os homens estão na Divindade; por isto, todo homem é Deus, uma
emanação individual da Divindade, embora nenhum homem seja a própria
Divindade Universal.
Para ilustrar esta verdade, poderíamos fazer o seguinte paralelo. Um raio solar
pode dizer: Eu e o Sol somos um; o Sol está em mim, e eu estou no Sol – mas
o Sol é maior do que eu.
– Por que fazeis o que não é permitido fazer em dia de sábado? – verberam
logo os intolerantes, que, por acaso ou de indústria, seguiam o mesmo
caminho.
Calaram-se os fariseus. Não esperavam, decerto, por uma resposta tão pronta
e irretorquível.
Prosseguiu Jesus:
– O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do
sábado. Oxalá compreendêsseis o que quer dizer: Misericórdia é que eu quero,
e não sacrifícios; então não haveríeis de condenar a inocentes. O Filho do
homem é Senhor também do sábado.
Jesus viu o homem com a mão atrofiada, mas, a princípio, não lhe deu
atenção.
– Também eu vos quero fazer uma pergunta: é lícito fazer bem ou mal em dia
de sábado? Salvar uma vida ou deixá-la perecer?
Prosseguiu Jesus:
– Quem de vós, possuindo uma única ovelha, que lhe cai no fosso, em dia de
sábado, não lançará logo mão e a puxará para fora? Ora, quanto mais vale um
homem que uma ovelha! Logo, é permitido praticar o bem em dia de sábado.
Em seguida, fitando com olhar inquisidor a cada um dos seus adversários que
estavam à roda, disse ao homem com a mão atrofiada:
– Estende a mão!
Estendeu-a – e ei-la sã como a outra!
Aureolado dos raios do sol matutino, sentou-se Jesus numa pedra da colina,
nas rampas de Kurun Hattin. Ao pé dele, vem agrupar-se o “pequeno rebanho”
dos apóstolos recém-eleitos, e os outros discípulos; mais além, pelas fraldas do
outeiro, se acomoda a variegada multidão dos ouvintes, israelitas e gentios,
ávidos por ouvirem as revelações que iam brotar dos lábios do profeta de
Nazaré.
***
Ainda soava pelos rochedos circunvizinhos o eco da palavra “bem-
aventurados” – quando dos lábios de Jesus rompeu outra palavra: “Ai de vós”!
Dirige-se aos infelizes que procuram o céu na terra, à custa da verdade.
Ai de vós, quando os homens vos louvarem, porque isto mesmo fizeram seus
pais aos falsos profetas!...”
– Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal se desvirtuar, com que se lhe há de
restituir a virtude? Já não terá préstimo para coisa alguma; é lançado à rua e
pisado aos pés pela gente.
É certo que, naquela mesma noite que se seguiu ao dia das bem-
aventuranças, Jesus explicou a seus discípulos o sentido mais profundo de
cada uma dessas formosas alegorias.
– Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar oculta uma cidade situada num
monte. Nem se acende uma lâmpada para colocá-la debaixo do velador, mas,
sim, sobre o candelabro para que alumie a todos os que estão na casa. Assim
brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem a vosso Pai que está no céu.
Após a ligeira digressão em favor dos seus discípulos – sal da terra e luz do
mundo – torna Jesus a dirigir-se aos ouvintes em geral e expõe o corpo do seu
discurso.
Não veio, diz ele, para abolir a lei antiga, que Deus inspirara a Moisés; mas
para levá-la à suprema e última perfeição. O Antigo Testamento era como que
o germe da revelação divina – o Novo Testamento é a árvore na plenitude da
sua evolução e beleza; a lei antiga era a aurora – a lei evangélica é a flor em
todo o esplendor das suas cores e na doce fragrância dos seus perfumes.
– Não penseis que eu vim abolir a lei e os profetas; não, não os vim abolir, mas
completar. Pois declaro-vos, em verdade, que antes de passarem o céu e a
terra, não se tirará um jota1 nem um ápice da lei, enquanto não chegue tudo à
perfeição. Quem, pois, solver um desses mandamentos, embora mínimo, e
assim ensinar a gente, passará pelo ínfimo no reino dos céus; mas quem os
realizar e assim ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Pois
asseguro-vos que, se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e
fariseus, não entrareis no reino dos céus.
1. O jota é a letra mais pequenina do alfabeto hebraico, não passando de um traço semelhante
ao nosso apóstrofe.
Traçado este paralelo geral entre as duas leis, antiga e nova, principia Jesus a
descer aos pormenores, evidenciando a superioridade do Evangelho sobre o
código de Israel.
***
“Tendes ouvido o que foi dito aos antigos: Não matarás! e: Quem matar será
réu em juízo.
Eu, porém, vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão será réu em
juízo; e quem chamar a seu irmão ‘perverso’ será réu diante do conselho; e
quem apelidar a seu irmão de ‘desgraçado’, será réu do fogo do inferno.”
Eu, porém, vos digo que todo homem que lançar olhar cobiçoso a uma mulher,
já em seu coração cometeu adultério com ela. Se o teu olho direito te for
ocasião de pecado, arranca-o e lança-o de ti; porque melhor te é perecer um
dos teus órgãos do que ser todo o teu corpo lançado ao inferno. E, se a tua
mão direita te for ocasião de pecado, corta-a e lança-a de ti; porque melhor te é
perecer um dos teus membros do que ir todo o teu corpo para o inferno.
Ainda foi dito: Quem repudiar sua mulher passa-lhe carta de divórcio.
Eu, porém, vos digo que todo homem que repudiar sua mulher – salvo em caso
de adultério – a faz adulterar; e quem casar com a repudiada comete adultério.”
***
“Ouviste o que foi dito aos antigos: Não jurarás falso! e: Cumprirás o que
juraste ao Senhor!
Eu, porém, vos digo que não jureis de forma alguma; nem pelo céu, porque é o
trono de Deus; nem pela terra, porque é o escabelo dos teus pés; nem por
Jerusalém, porque é a cidade do grande rei; nem jurarás por tua cabeça,
porque não és capaz de tornar branco nem preto um só cabelinho. Seja o
vosso modo de falar um simples sim, um simples não; o que passa daí vem do
mal.”
***
“Tendes ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente.
Eu, porém, vos digo que não vos oponhais ao malévolo, mas antes, quando
alguém te ferir na face direita, apresenta-lhe também a outra. Se alguém quiser
pleitear contigo em juízo para tirar-te a túnica, cede-lhe também o manto. Se
alguém te obrigar a acompanhá-lo por mil passos, vai com ele dois mil.
***
“Tendes ouvido o que foi dito: Amarás a teu próximo e terás ódio a teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e
orai pelos que vos perseguem e caluniam, para que sejais filhos de vosso Pai
celeste, ele, que faz nascer seu sol sobre bons e maus e faz chover sobre
justos e injustos.
Pois, se amardes tão somente aos que vos amam, que prêmio mereceis? Não
fazem isto também os coletores? E, se saudardes apenas vossos amigos, que
fazeis nisto de especial? Porventura, não fazem isto também os gentios? Vós,
porém, sede perfeitos, assim como é perfeito vosso Pai celeste.”
***
“Cuidado que não pratiqueis as vossas boas obras diante dos homens, com o
fim de serdes vistos por eles! Do contrário, não tereis merecimento aos olhos
do vosso Pai celeste.
Quando deres esmola, não te ponhas a fazer grande alarde, a exemplo do que
fazem os hipócritas nas ruas, para serem elogiados pela gente. Em verdade
vos digo que receberam a sua recompensa. Quando, pois, deres esmola, não
saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que tua esmola fique às
ocultas; e teu Pai, que vê o que é oculto, te há de recompensar.”
***
Não os imiteis; porque vosso Pai sabe o que haveis mister, antes mesmo de
lho pedirdes. Assim é que haveis de orar:
Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha a nós o teu
reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de
cada dia nos dá hoje, perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós
perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair na tentação; mas
livra-nos do mal. Amém.
Se vós perdoardes aos homens as faltas deles, também vosso Pai celeste vos
perdoará vossos débitos. Se, pelo contrário, vós não perdoardes aos homens,
nem tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas faltas.”
***
***
Teu olho é a luz do teu corpo; se o teu olho for simples, estará em luz todo o
teu corpo. Se, porém, o teu olho for mau, estará em trevas todo o teu corpo. E
se tua luz se tornar em trevas, quão grande serão essas trevas!
***
“Não julgueis, e não sereis julgados. Pois do mesmo modo que julgardes assim
sereis julgados; e com a medida com que medirdes medir-vos-ão a vós. Por
que vês o argueiro no olho de teu irmão, ao passo que não enxergas a trave
em teu próprio olho? Ou, como podes dizer a teu irmão: Deixa-me tirar-te do
olho o argueiro, quando tens uma trave no teu olho? Hipócrita! Tira primeiro a
trave do teu olho, e depois verás como tirar o argueiro do olho do teu irmão.
Não deis as coisas santas aos cães, nem lanceis as vossas pérolas aos
porcos, para que não lhes metam as patas e, voltando-se, vos dilacerem.”
***
***
Tudo o que quereis que os homens vos façam fazei-o também a eles; pois é
nisto que consistem a lei e os profetas.
Entrai pela porta estreita; pois larga é a porta e espaçoso o caminho que
conduz à perdição – e são muitos os que o trilham. Quão apertada é a porta e
quão estreito o caminho que conduz à vida! – E são poucos os que acertam
com ele.
***
Então fez Jesus sinal com a mão e numa peroração magistral concitou as
turbas a não somente admirarem a sua doutrina, mas a traduzi-la na vida real e
prática.
– Por que me dizeis: Senhor! Senhor! e não fazeis o que vos digo? Nem todo
aquele que me disser: Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus; mas quem
fizer a vontade de meu Pai celeste, esse, sim, entrará no reino dos céus.
Muitos virão naquele dia dizer-me: Senhor! Senhor! porventura não
profetizamos em teu nome e fizemos tantos milagres e expulsamos demônios
em teu nome? Eu, porém, lhes direi: Não vos conheci jamais; apartai-vos de
mim, malfeitores!
– Mostrar-vos-ei com quem se parece aquele que vem a mim, ouve as minhas
palavras e as realiza. Parece-se com um homem sensato que edificou a sua
casa sobre a rocha. Desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram
os vendavais, dando de rijo contra aquela casa, mas ela não caiu, porque
estava construída sobre rocha.
Quem, pelo contrário, ouve estas minhas palavras, mas não as realiza, parece-
se com um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia.
Desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais, dando
de rijo contra aquela casa; e ela caiu, e foi grande a sua queda.
O centurião de Cafarnaum
Terminado o seu grande sermão, desceu Jesus das alturas de Kurun Hattin,
passou silencioso pelas multidões impressionadas – qual Moisés a descer o
Sinai com a fronte aureolada de estranhos fulgores – e, a largos passos, fez-se
rumo a Cafarnaum.
– Não te incomodes, Senhor, pois eu não sou digno que entres sob o meu teto.
Por esta razão também não me julguei digno de vir à tua presença; mas fala ao
Verbo, e meu servo será curado. Pois também eu, embora sujeito a outrem,
tenho soldados às minhas ordens; e digo a um: vai acolá! e ele vai; e a outro:
vem cá! e ele vem; e a meu criado: faze isto! e ele o faz.
***
A tradução geral das palavras do centurião romano é: “dize uma palavra”; mas
tanto o texto grego como o latino permitem a nossa versão acima “fala ao
Verbo” (dic Verbo), entendendo-se por Verbo o Cristo, como no Evangelho de
João: “no princípio era o Verbo”. O centurião não acha necessidade que o
Jesus humano vá fisicamente ver o doente; basta dirigir-se ao seu Verbo ou
Cristo, a qualquer distância, e o doente será curado.
O texto, grego e latino, diz “ao Verbo”, “à palavra”, e não “o Verbo”, “a palavra”,
referindo-se, nos dativos, a uma pessoa viva, e não a uma vibração aérea
inerte.
O jovem de Naim
Naim quer dizer “formosa” ou “risonha”. E bem cabia este nome àquela
povoação da Galiléia.
Mas, à hora em que Jesus chegou às portas de Naim, não era nada risonho o
aspecto da cidade; pintou-se-lhe aos olhos um quadro doloroso; corriam muitas
lágrimas, e ouviam-se magoados ais, que brotavam dos lábios de uma viúva
desolada...
Que acontecerá?
– Não chores – disse ele à mãe. Tocou com a mão no féretro, e disse alto:
E todos diziam:
Entretanto, não ficava sem notícias de Jesus. Herodes estimava a João Batista
e permitia que os seus discípulos o visitassem no cárcere.
Destarte, continuava ele a ser uma “voz a clamar no deserto” – deserto lúgubre
da sua prisão; e continuava a “preparar os caminhos do Senhor” – ainda que
para ele já não houvesse outro caminho senão o trilho estreito que desemboca
na morte. A sua escola não se extinguiria com a extinção da sua liberdade –
tamanha era a força do seu espírito.
Por mais que João lhes explicasse que assim é que devia ser, e que Jesus era,
de fato, o Messias prometido na lei antiga, boa parte dos seus discípulos não
tinha ainda chegado a convencer-se desta verdade; nem podia abandonar o
“amigo do esposo”, a fim de seguir o próprio “esposo”, como tinham feito André
e João Evangelista, antigos discípulos do mesmo Precursor.
Numa destas ocasiões, quando os discípulos de João vieram visitar o mestre
no cárcere, e novamente discutiam estas idéias, resolveu o prisioneiro lançar
mão de um expediente que acabasse de vez com todas as dúvidas e
discussões. Chamou a si dois dos seus discípulos e mandou-os a Jesus para
lhe fazerem esta pergunta: “És tu aquele que devia vir, ou devemos esperar por
outro?”
“Aquele que devia vir” era na língua do povo o nome do Messias, profetizado
havia séculos como o salvador vindouro.
Jesus sabia perfeitamente que a dúvida não era do Precursor, que já no ano
anterior fizera solene a pública profissão de fé, dizendo: “Eis aí o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo!”
– Ide e contai a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam,
os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres
é pregado o Evangelho. É ditoso o homem que não se escandalizar de mim.
Resposta magistral! Era precisamente isto que João queria que seus discípulos
vissem e ouvissem. Era o mesmo que dizer-lhes: Ide e dizei ao vosso mestre
que estou cumprindo o que o profeta Isaías predisse do Cristo, como não
ignorais, a saber: “Naquele tempo, se hão de iluminar os olhos dos cegos,
serão abertos os ouvidos dos surdos, o coxo saltará como um veado, soltar-se-
á a língua do mudo, e aos pobres será anunciado o Evangelho”.
Jesus elogia o Precursor
Prosseguiu Jesus:
Novas vozes no auditório; risadas talvez; porque o pêlo hirsuto de camelo que
o cobria não merecia, certamente, o nome de “roupa delicada”.
– Com efeito, os que vestem roupas delicadas e vivem com luxo se encontram
nos palácios dos reis.
O “luxo” do Batista eram gafanhotos e mel silvestre, e o seu “palácio real” era o
deserto inóspito da Judéia...
– Um profeta? – respondeu Jesus. – Sim, digo-vos eu, e mais que profeta! Este
é de quem está escrito: Eis que envio a preceder-te o meu arauto, a fim de
preparar o meu caminho diante de ti. Declaro-vos que entre os filhos de mulher
não há maior do que João Batista.
Caprichos pueris
Ainda estava Jesus a falar de João Batista, quando viu entre os seus ouvintes
diversos fariseus e doutores da lei, que trocavam olhares significativos,
escarnecendo do Nazareno e da sua doutrina; porque, afinal de contas, os
mestres de Israel eram eles, ao passo que o rabi da Galiléia não passava de
um pobre carpinteiro, que não frequentara nenhuma das escolas em voga.
– Com que hei de comparar esta raça de gente? Com que se parecem eles?
Parecem-se com crianças sentadas na praça a gritarem umas às outras:
– Veio João Batista, que não comia nem bebia – e dissestes: Está possesso do
demônio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe – e dizeis: Eis aí um
comilão e bebedor de vinho e amigo de publicanos e pescadores!
A nós, filhos do século XX, fazem estas palavras lembrar a conhecida história
“do velho, do rapaz e do burro”...
É mais provável que a famosa pecadora Madalena tenha sido outra Maria.
Como Mágdala tinha uma guarnição romana, é possível que Maria se tenha
entregue a uns desses garbosos e poderosos dominadores do Império
Romano, que abrangia a Europa, a Ásia e a África. Mas, depois de assistir a
um dos sermões de Jesus, abandonou a sua vida desregrada e esperava por
uma oportunidade para testemunhar a sua gratidão ao Mestre, que a iniciara
numa vida nova e feliz.
Quando Jesus estava em casa de Simão, Maria entrou silenciosa, sem dizer
uma palavra, testemunhou com lágrimas e beijos seu amor e sua gratidão a
seu Mestre e Salvador. Ajoelhou-se aos pés de Jesus e, em silêncio, os cobriu
com abundantes lágrimas.
Era fácil este ato, porque os judeus já haviam adotado o costume romano de
reclinar numa espécie de sofá apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo, e as
mãos voltadas para fora. Nesta posição estava Jesus, quando Maria lhe lavou
os pés com suas lágrimas e os beijou. Depois enxugou-lhe os pés com sua
formosa cabeleira e os ungiu com uma essência preciosa que trouxera num
recipiente de fino alabastro, deitando o resto do perfume sobre a cabeça de
Jesus, que permitiu calmamente todas estas homenagens.
O doutor da lei estava indignado com aquele hóspede que permitia aquela
atitude da parte de uma pecadora conhecida como tal em toda a cidade.
***
Começou Jesus a contar uma das suas parábolas, e parábola bem singela.
Até aqui a parábola era inofensiva. E Simão não atinava ainda com o porquê
da digressão. Menos ainda sabia que proferia sentença contra si mesmo.
Se ele a via!... Era por demais visível, e visível demais tinha sido sempre nas
ruas da cidade.
Prosseguiu Jesus, em tom pausado e firme, assim como o divino juiz, no fim do
mundo, quando ler os atos dos pecadores, do livro da vida eterna.
– Entrei em tua casa – disse – e não me deste água para os pés; ela, porém,
banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com seus cabelos. Não
me deste o ósculo – ela, porém, não cessou de beijar-me os pés desde que
entrou. Não me ungiste a cabeça com óleo – ela, porém, ungiu-me os pés com
bálsamo. Por isso te digo que lhe são perdoados os seus muitos pecados,
porque muito amou; ao passo que a quem pouco se perdoa pouco ama.
Simão cuidou ver a casa desabar-lhe sobre a cabeça! Estava aniquilado!... Ele,
que se julgava infinitamente superior àquela “pecadora” – ver-se subitamente
nivelado com ela? Colocado até abaixo dela?... Madalena, a impura, é mais
pura aos olhos de Jesus do que o puríssimo fariseu!... E por quê? Porque ela
possui um grande amor, ao passo que Simão não tem quase amor algum.
Verdade é que Madalena cometera pecados maiores que o fariseu; porque era
uma jovem de paixões veementes, tinha um coração dotado de uma ilimitada
energia afetiva, capaz de descer às tenebrosas profundezas do vício – mas
capaz também de ascender às excelsas culminâncias do amor e do heroísmo.
Simão, pelo contrário, não era réu de grandes prevaricações, não por
merecimento seu, mas pelo fato de ser uma alma vulgar, sem potencialidade;
um homem medíocre, que não conhecia grandes precipícios, nem grandes
alturas; era, por assim dizer, terra plana todo ele, ao passo que a alma de
Madalena era uma região montanhosa, cheia de altos e baixos, cheia de
sombras e de luzes; a vida de Simão era honestamente vulgar e
indolentemente serena, era como um rio que se arrasta pesadamente por uma
planície arenosa, sem quedas nem cachoeiras, sem riscos nem possibilidades
para lances dramáticos – enquanto a vida da jovem de Mágdala se
assemelhava a uma torrente caudalosa, que nascia em misteriosas alturas e se
lançava, escachoante, monte abaixo, arrasando todos os diques – até se
encontrar com o divino engenheiro de Nazaré, o qual, longe de lhe paralisar a
irresistível veemência, lhe canalizou as forças vivas, transformando-as em
maravilhas de ordem, harmonia e beleza!...
Também Jesus se levantou. Por ora, nada mais “tinha que dizer” a Simão...
Jesus aliado de Satanás
Nisto apareceram à porta alguns dos seus parentes receosos de que acabasse
mal aquele alvoroço popular, que não podia deixar de acirrar os ódios dos seus
inimigos. Por isso, tentaram levá-lo consigo à força.
Beelzebub era o nome de uma divindade pagã; os judeus davam esta alcunha
ao chefe dos espíritos malignos.
A acusação era gravíssima: Jesus fez aliança secreta com o mais poderoso
dos inimigos de Deus, a fim de expulsar os próprios demônios.
Era intuitiva a lógica deste argumento, tão intuitiva e clara que nenhum dos
adversários achou o que replicar.
Prosseguiu Jesus, mostrando por uma comparação que ele é mais forte que
Satanás, tanto assim que expulsava os demônios.
Entrementes, chegara também sua mãe, cheia de solicitude pela sorte do filho.
– Eis aqui minha mãe e meus irmãos! Pois todo aquele que cumpre a vontade
de meu Pai celeste me é irmão, irmã e mãe.
Uma classe tem por objeto a natureza e as vicissitudes do reino de Deus neste
mundo – são as parábolas do semeador, da sementeira a crescer, da erva
daninha entre o trigo, do grão de mostarda, do fermento, do tesouro oculto, da
pérola preciosa e da rede de pescar.
Um maravilhoso trio de parábolas tem por foco e centro a grande lei do amor –
são as do rico gozador e do pobre Lázaro, a do bom samaritano e a dos dois
devedores.
***
Pela tarde, quando Jesus se achava a sós com os seus, aproximaram-se dele
alguns dos discípulos e, desejosos de conhecimento mais profundo, pediram
ao Mestre que lhes explicasse o sentido da parábola da manhã.
***
Só a última, a ditosa,
Que em bom terreno caiu,
Vingou bela, vigorosa,
E frutos bons produziu.”4
4. Amélia Rodrigues.
A sementeira a crescer
Nada mais?!
Não! Isto é apenas o corpo, o esqueleto visível, mas não a alma do grão de
trigo. É certo que ele tem uma alma – ou, se preferirem, um princípio vital –
mas esse ser misterioso se subtrai a todas as nossas pesquisas e
investigações. Pode a Ciência compor um grão de trigo perfeitamente igual ao
que a Natureza produz; pode dispor todos os componentes materiais, com
número, peso e medida, na mais rigorosa proporção – será sempre um cadáver
de semente, e nunca uma sementinha viva e viável; falta-lhe nada menos que o
principal: a alma, o princípio vital.
Deite-se a terra uma semente natural – eis que nasce a maravilha esmeraldina
de uma planta, encerrando no seio a inexplicável propriedade de se reproduzir
a si mesma.
Deite-se à terra uma semente artificial – não tardará a apodrecer, sem deixar
vestígio de si.
Eis o que acontece com o reino de Deus – eis o que sucede com as criações
humanas!
O reino de Deus possui uma misteriosa força intrínseca, invisível, mas real. O
olhar do homem nada disto compreende, porque lhe falta a visão espiritual.
***
O grãozinho que se deita à terra não tem haste, nem folhas, nem flores, nem
frutos; mas todas essas maravilhas orgânicas se acham latentes,
potencialmente inclusas, nessa sementinha. Brotam-lhe do seio com
espontânea e irresistível necessidade. A planta perfeita, com todas as suas
partes e os seus órgãos, não é uma falsificação da semente; é, sim, seu
desenvolvimento natural.
O reino de Deus em nossos dias tem aspecto algo diverso do que existia no
tempo dos apóstolos e dos cristãos das catacumbas.
Pela primeira vez, recorre Jesus a sua imagem predileta, comparando o seu
Evangelho, neste mundo, a um trigal.
Mas por entre o trigal não tardam a introduzir-se outras ervas, que lhe roubam
parte das seivas.
– Acontece com o reino dos céus o que sucedeu a um homem que semeara
boa semente no seu campo: enquanto a gente dormia, veio seu inimigo e
semeou joio no meio do trigo, e foi-se embora. Quando, pois, cresceu a
sementeira e deitou espigas, apareceu também o joio. Apresentaram-se então
os servos do dono da casa e lhe disseram: Senhor, não semeaste, porventura,
boa semente no teu campo? De onde lhe vem, pois, o joio? Foi meu inimigo
que isto fez – respondeu o dono. Tornaram os servos: Queres que vamos
arrancá-lo? Não – replicou ele – para que não aconteça que, arrancando o joio,
arranqueis juntamente com ele também o trigo. Deixai crescer um e outro até a
colheita, e no tempo da colheita direi aos meus ceifadores: Colhei o joio e atai-
o em molhos para queimar; o trigo, porém, recolhei-o nos meus celeiros.
O joio de que Jesus fala é uma erva daninha muito conhecida no Oriente.
Antes de frutificar, se parece a tal ponto com o trigo, que é impossível distingui-
lo. Só mais tarde, quando espigado, é que se acentuam as diferenças entre as
duas plantas; pois, enquanto o trigo produz umas espigas grandes e louras,
situadas no ponto mais alto da haste, o joio dá umas espiguinhas miúdas, que
assentam nos ângulos das folhas e contêm uns grãozinhos pretos ou
cinzentos, que, ingeridos, causam vertigens ou uma espécie de intoxicação. Os
semitas lhe chamam zizania; os latinos, lolium, o que deu joio, em nossa
língua.
***
Segundo as inexoráveis leis cósmicas, quem pode deve e quem pode e deve
não faz, cria débito – e todo débito gera sofrimento.
Nem a vida eterna nem a morte eterna, ou extinção, são creadas por Deus,
mas são creação do próprio livre-arbítrio humano, como vem ilustrada pela
parábola dos talentos, onde os dois primeiros servos entraram no gozo de seu
Senhor; e o terceiro perdeu a própria individualidade humana.
Esse destino final não coincide com os poucos decênios da vida terrestre, mas
é o ponto final de todo o ciclo evolutivo da existência humana, que pode levar
milhares ou milhões de anos ou séculos.
O joio se separa do trigo, por sua própria evolução intrínseca, e não por alguma
intenção extrínseca.
O grão de mostarda
Fizera Jesus ver na parábola do semeador que apenas uma pequena parte da
semente evangélica chegava a produzir fruto, ao passo que o resto pereceria
infrutífero.
Mostrara ainda, na parábola do joio entre o trigo, que até essa pequena
percentagem que encontrara terreno propício tinha os seus inimigos, a cizânia,
que tentava roubar-lhe a seiva da terra e a luz do céu.
– Com que coisa diremos se parece o reino dos céus? Ou sob que parábola o
representaremos?
Assim, diz o Mestre, há de acontecer com o meu reino. Ainda agora é ele um
grãozinho de mostarda; um punhado de homens, e nada mais. Mas a virtude
que a semente evangélica encerra é grande e o terreno em que foi semeada é
de uma extraordinária fertilidade. Por isso, há de em breve expandir os seus
ramos, muito além das balizas desta pequena horta doméstica da Palestina, e
abranger todos os países do mundo, convidando milhares e milhares de almas
a descansar à sombra das suas frondes, comer dos seus frutos e aninhar-se
por entre a viridente folhagem.
O fermento
“O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher toma e mistura
com três medidas de farinha, até ficar levedada toda massa.”
Quem de nós teria ousado traçar um paralelo entre o reino de Deus e um grão
de mostarda? E até um punhado de fermento?
“O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher toma e mete em
três medidas de farinha, até ficar levedada toda a massa.”
E essa diferença tão notável provém de uma força oculta, invisível, que
transforma toda a massa, por maior que ela seja; produz efeitos poderosos
sem aparecer; o fenômeno é bem visível enquanto a causa continua latente e
misteriosa. Pois, ainda que a Ciência nos diga e rediga que este processo
consiste na atividade de pequenos fungos, nem por isso está solucionado o
problema, e a fermentação continua a ser um enigma.
Passa, depois, a ilustrar o valor do reino de Deus, que, apesar de tão modesto
ainda, é contudo merecedor de todos os esforços e dos maiores sacrifícios.
Quem o conquista é homem feito e pode tranquilamente abrir mão de todos os
bens terrenos; porque, possuindo em si o reino de Deus, possui muito mais do
que o mundo todo lhe possa dar. Nada pode perder quem tudo possui em
Deus.
***
Era grande, no Oriente, o comércio de pérolas preciosas. Segundo o
historiador romano, Plínio, na escala de valores vinha a pérola genuína logo
após o diamante; segundo outros, era-lhe mesmo superior. A pérola, como é
sabido, nasce nas profundezas do mar, na escuridão de uma concha. Os
antigos pescavam-na principalmente no Golfo Pérsico e nas costas da Arábia,
bem como nas vizinhanças da ilha de Ceilão, ou nos mares Vermelho e Índico.
A sua exploração é uma empresa cheia de trabalhos e perigos. Mas quem tem
a sorte de pescar uma pérola perfeita e de primeira qualidade torna-se um
homem rico de um dia para outro.
O feliz negociante que encontra uma preciosidade destas nas mãos dos
pescadores vai para casa, vende toda a sua fortuna, e procura adquirir quanto
antes este tesouro, com medo de que outro lho arrebate.
***
Tesouro assim, pérola de tão subido valor, diz Jesus, é o reino de Deus. Todos
os outros objetos têm valor apenas para alguns anos ou decênios, até a hora
da morte; para além destas fronteiras não circulam valores materiais; ali o mais
belo dos brilhantes, a mais perfeita das pérolas são coisas tão sem valor como
uma folha seca que o vento leva, ou um caco de vidro colorido.
Por isso, por mais pequenino que pareça o reino de Deus na terra, vale a pena
sacrificar todas as riquezas do mundo, todas as honras e elogios dos homens,
todos os prazeres da vida, a saúde e a própria vida, para conquistá-lo.
A rede
Termina Jesus a primeira série das suas parábolas sobre o reino de Deus com
um símile tirado da vida dos pescadores: Pedro, André, Tiago, João, Tomé,
Natanael; também Filipe era natural da aldeia marítima de Betsaida e, por isso,
exercia provavelmente a mesma profissão. Pão e peixe era o passadio dos
galileus que habitavam nas vizinhanças do grande lago de Genesaré, tão rico
em todo gênero de peixes.
Achava-se Jesus, talvez, numa barca, sobre as águas do lago, quando propôs
esta parábola. Os ouvintes agrupados pela praia escutavam, atentos e
interessados:
– O reino dos céus é semelhante a uma rede de pescar que se deita ao mar e
que recolhe toda sorte de peixes. Quando cheia, puxam-na fora, e, sentando-
se na praia, os pescadores recolhem os peixes bons nos seus vasos, e lançam
fora os maus. O mesmo sucederá no fim do mundo; sairão os anjos e
separarão os maus do meio dos justos, lançando-os à fornalha de fogo; ali
haverá choro e ranger de dentes.
A rede de que fala a parábola não é uma pequena tarrafa, dessas que uma
pessoa maneja com facilidade; mas é uma rede de arrasto, rede que mede
geralmente centenas de metros. Para deitá-la ao mar e para recolhê-la à praia
são necessárias muitas pessoas; enquanto está dentro d’água ninguém sabe o
que ela contém, só quando chega à praia é que aparece o conteúdo.
Tempestade no lago
Por fim, despediu o povo e deu ordem aos discípulos para se fazerem de voga,
rumo à banda oriental do lago de Genesaré.
A hora não era favorável para esta travessia; todo pescador da Galiléia,
atendendo à direção dos ventos, demandava de manhã à margem oriental e
voltava de tarde.
Após uma boa hora de voga, estava o barco quase no meio do lago, a zona
mais perigosa, porque mais exposta aos ventos.
A intrépida maruja lutava com quantas forças tinha, bordejando com destreza,
equilibrando a nau, aparando com o leme e a palamenta o sanhudo embate
das vagas.
E o Mestre?
Dormia a bom dormir. Parecia ignorar por completo o que se passava em torno
dele...
Por que abandonava ele assim os discípulos, que por ordem dele tinham
empreendido a travessia?
Ao terror que se apoderara dos apóstolos se associou ainda uma tal ou qual
desconfiança, ao verem o Mestre dormindo. Tinham fé no poder dele; mas não
o criam assaz poderoso para lhes valer naquele perigo, ele, submerso no sono.
Depois de muito hesitar, vendo o perigo tocar o auge, um dos discípulos correu
ao tombadilho, agarrou o Mestre por um braço, sacudiu-o fortemente e bradou
em tom angustioso:
– Cala-te!
E disse ao mar:
– Sossega!
Nem mais um sopro, nem mais uma vaga; silêncio nos ares, silêncio no mar; o
lago dormia e as estrelas do céu se espelhavam na serena placidez da sua
superfície...
É bem notável esta visita de Jesus às terras do paganismo, quando, por via de
regra, se limitava a falar aos filhos de Israel. Justo era, entretanto, que também
os pagãos recebessem algumas “migalhas” do lauto festim do Evangelho; mas
tarde seriam eles os convivas principais.
Mal havia Jesus saltado em terra com os seus apóstolos, quando se viram em
face de um espetáculo mais terrível que os horrores da tempestade que
acabavam de presenciar; já não eram os elementos desencadeados, era a
tirania dos demônios a intervir nos destinos da vida humana. Jesus, porém, que
se mostrara senhor da tormenta, havia também de revelar-se superior às
potências maléficas.
Da margem do lago, conduzia uma estrada larga para Gerasa; mas Jesus, mui
de propósito, escolheu um trilho solitário pelas montanhas. Por quê? Talvez
para se encontrar com aquelas vítimas do demônio.
“Estava possesso de um espírito impuro. Havia muito tempo que não vestia
roupa, nem habitava em casa, mas vivia nos sepulcros”...
“Haviam-no já trazido preso, de pés e mãos, com grilhões e cadeias, mas ele
rompia os liames, e era impelido pelo espírito maligno para o deserto. Ninguém
o podia dominar. Passava dia e noite nos sepulcros ou nos montes, gritando e
ferindo-se com pedras. Era tão perigoso que já ninguém ousava transitar por
aquele caminho.”
Quando avistou a Jesus, veio correndo e prostrou-se aos pés dele com um
grito estridente:
– Que temos nós contigo, Jesus, filho do Altíssimo? Vieste para atormentar-nos
antes do tempo?
Ora, andava pastando por ali no monte uma manada de porcos. Começaram,
pois, os espíritos a rogar a Jesus que não os expulsasse daquela região, nem
os mandasse para o abismo, mas que lhes permitisse entrar nos porcos.
Eles, saindo do homem, entraram nos porcos. E logo toda a manada, que eram
uns dois mil, se precipitou ladeira abaixo, para dentro do lago, onde se afogou.
Saíram então os habitantes a ver o que acontecera, e foram ter com Jesus. E
encontraram, sentado a seus pés, o homem do qual tinham saído os demônios,
vestido e de perfeito juízo.
E os que haviam presenciado o fato foram contar aos outros o que se tinha
passado com o possesso, como ficara livre da legião, e a cena com os porcos.
Então toda a população do país dos gerasenos rogou a Jesus que se retirasse
do meio deles porque estavam possuídos de grande terror.
Jesus embarcou, mas, no momento em que ele ia subir à barca, veio o homem
do qual tinham saído os espíritos malignos e solicitou-lhe a permissão de ficar
com ele. Jesus, porém, o despediu com estas palavras:
– Volta para casa e conta aos teus que grandes coisas te fez o Senhor e como
se compadeceu de ti.
Foi-se ele e pôs-se a apregoar pela cidade em toda a Decápole o que lhe fizera
Jesus.
E Jesus embarcou. Parece que esta ligeira estada na margem oriental do lago
não tinha outro fim senão o de curar esses pobres homens e patentear o seu
poder sobre as potências dos abismos. Não consta que tenha ensinado nessa
região pagã. Em todo o caso, lhes deixou um apóstolo na pessoa de um dos
seus patrícios, e precisamente aquele que fora o mais infeliz de todos.
Pode Deus suscitar das pedras filhos a Abraão – e dos endemoninhados pode
fazer apóstolos do seu reino.
A mulher hemorroíssa
Foi, pois, com vivo alvoroço e grande júbilo que viram chegar a Jesus, são e
salvo, com todos os seus apóstolos.
Torna Jesus a dar-lhes a mesma resposta que já lhes dera em outra ocasião.
– Senhor! Minha filha está para morrer!... Mas vem, impõe-lhe a mão, e ela
será salva...
Chamava-se Jairo esse homem, e era chefe da sinagoga do lugar; sem dúvida,
aquela mesma sinagoga que lhes mandara edificar o centurião romano, cujo
servo fora, pouco antes, curado por Jesus. Por isso, é bem de crer que Jairo
fosse amigo do centurião e tivesse notícia daquele prodígio, bem como do
outro que Jesus operara, anteriormente, na pessoa do filho moribundo do
funcionário real da mesma cidade. Era, pois, grande a confiança que o chefe
da sinagoga tinha no poder e na bondade do profeta de Nazaré, embora a sua
fé não igualasse a do comandante da guarnição romana; julgava indispensável,
para obter a cura de sua filha, a presença corporal de Jesus.
Mas sua alegria foi algo turbada pelas palavras do Mestre, que parou, olhou em
derredor e perguntou em tom severo:
Todos negaram.
Bem sabia ele o que acontecera; mas procedeu deste modo por motivos
especiais, como costumava fazer frequentemente.
Vendo então a mulher que não podia ficar oculta e sentindo os olhos de Jesus
fitos em si, apresentou-se cheia de medo, prostrou-se-lhe aos pés,
confessando o que fizera e como ficara curada no mesmo instante.
– Tem confiança, minha filha! Tua fé te curou, vai-te em paz, e fica livre da tua
enfermidade!...
Devia Jairo estar bem contrariado com todas essas demoras. O incidente com
a hemorroíssa fizera Jesus perder bastante tempo, detendo-o em plena
estrada. Mas o Mestre, mesmo nos casos mais urgentes, nunca dá sinal de
pressa ou afobamento; sempre a mesma calma e serenidade, como quem se
sente perfeitamente senhor da situação, e não precisa precipitar-se ao
encontro do termo, porque está a cada instante no ponto final da jornada.
E saber sua filha doente, às portas da morte – que ânsias, que angústias para
a alma do pai!
Enquanto Jesus ainda estava falando com a mulher que acabava de sarar, veio
correndo um mensageiro da cidade e disse a Jairo:
Todo israelita, por mais pobre que fosse, contratava para as exéquias de uma
pessoa da família ao menos dois flautistas e uma carpideira. Em casa de Jairo,
homem conspícuo e chefe da sinagoga, não faltava, certamente, uma boa
dúzia de carpideiras. Os músicos tangiam elegias fúnebres, as mulheres
choravam e lamentavam em altas vozes, torcendo as mãos e desgrenhando as
cabeleiras.
– Por que esse alvoroço e esse choro?... A menina não está morta, dorme
apenas!...
Riram-se e escarneceram dele, porque sabiam que ela estava morta. Jesus
também o sabia, mas para o seu poder era tão fácil ressuscitar do sono da
morte um defunto, como despertar do sono natural um adormecido qualquer. O
mesmo dissera ele por ocasião da morte de Lázaro: Nosso amigo Lázaro
dorme; mas eu vou despertá-lo do sono. E despertou-o.
Jesus dirigiu-se a largos passos para a casa de Simão Pedro, à beira do lago,
onde, parece, residia habitualmente.
Pelo caminho, vieram atrás dele, às apalpadelas, dois cegos, que começaram
a bradar em altas vozes:
Tinham ouvido que passava Jesus de Nazaré, o grande profeta. “Filho de Davi”
é o título oficial e clássico pelo qual o Antigo Testamento designa o Messias,
que os profetas tinham vaticinado como sendo da estirpe real de Davi. É a
primeira vez que nos Evangelhos aparece este nome – e vem dos lábios de
homens cegos! Parece que os cegos viam melhor do que os que tinham dois
olhos...
Jesus segue o seu caminho, sem lhes prestar atenção. Assim ao menos
parecia. Chegou à casa que demandava. Mas os cegos não o largaram. O
tristíssimo estado em que viviam, sabe Deus havia quantos anos, tornava-os
ousados e os impelia a recursos extremos. E, apesar das repetidas quedas,
chegaram à casa de Simão Pedro, sempre aos gritos de: “Jesus, filho de Davi,
tem piedade de nós! Tem piedade de nós!”...
Pela segunda vez, foi Jesus visitar os seus conterrâneos de Nazaré, e pela
segunda vez encontrou neles tão grande falta de fé, que não lhe foi possível
operar aí muitos milagres, como diz o evangelista.
Os nazarenos não crêem que Jesus seja mais do que eles; pois o conhecem
desde pequeno como o filho do carpinteiro José, sem nenhum poder superior
que manifestasse durante aqueles trinta anos!
Retirou-se, pois, de Nazaré, não sem tristeza no coração, pois amava os seus
conterrâneos, os companheiros da sua juventude; e pôs-se a percorrer, em
companhia dos apóstolos, as cidades e povoações da Galiléia.
Certo dia, viu-se ele rodeado de uma grande multidão de povo, e todos a olhá-
lo, famintos e sequiosos, todos ávidos de ouvirem alguma notícia daquele
misterioso reino de que sempre falava, e no qual cada um deles esperava
entrar um dia.
Assim era aquele povo. Tinha, sim, os seus pastores, que todos os sábados,
na sinagoga, lhe ofereciam repasto espiritual. Mas que tristes pastores eram
eles, e que alimento apresentavam, por via de regra, àquele povo, que ansiava
por uma coisa melhor!... Apascentavam mais a si mesmos do que ao rebanho,
como diz Isaías. Em vez das grandes revelações de Deus, vinham com as suas
mesquinhas tradições humanas. Até a idéia do Messias fora adulterada por
esses pastores, de modo que Israel não reconheceu o seu Salvador, quando
lhe apareceu. Tinham roubado a chave da ciência – eles mesmos não
entravam no reino de Deus, nem deixavam entrar aos que o desejavam.
Em face desse doloroso espetáculo, se voltou Jesus aos seus discípulos e lhes
disse:
O “senhor da messe” era o Pai celeste; ele, Jesus, era, por assim dizer, o
administrador da lavoura evangélica.
Em seguida, impelido pelo amor às almas e pelo desejo de salvá-las da ruína,
convoca os doze discípulos, comunica-lhes os seus poderes, dá-lhes várias
diretivas e os envia, dois a dois, pelo mundo afora, a fim de trabalharem como
operários na seara das almas.
“Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis nas cidades dos samaritanos; mas
ide ante as ovelhas que se perderem da casa de Israel”.
Mais tarde, a ordem seria esta: “Ide pelo mundo inteiro, pregai o Evangelho a
todos os povos!” Mas não era prudente que, desde o início, os apóstolos
enfrentassem com todo esse mundo de dificuldades, para não caírem vítimas
do pessimismo. Por isso, para inaugurarem o seu apostolado, convinha que em
primeiro lugar se dirigissem aos seus patrícios, aos israelitas, que com eles
partilhavam a mesma fé num só Deus, e professavam as mesmas verdades
reveladas. É a judiciosa pedagogia do Mestre.
Qual o objeto da sua pregação? Deviam levar a Israel a mais consoladora das
mensagens:
“De graça recebestes – de graça dai! Não leveis coisa alguma para a viagem,
nem ouro, nem prata, nem dinheiro nas vossas cintas; não leveis bolsa nem
duas túnicas, nem calçado, nem bordão; porque o operário bem merece o seu
sustento.” Quer dizer, tendes direito a receber o sustento material das mãos
daqueles a quem dais o alimento espiritual. Se de graça dais os dons de Deus,
é justo que de graça vos dê o povo os dons da terra para a vida.
“Quando entrardes numa cidade ou aldeia, informai-vos quem há nela que seja
digno; e aí ficai até seguirdes viagem. Entrai nessa casa e dizei: A paz seja
com esta casa!”
“Onde não vos quiserem receber, nem vos ouvirem, deixai essa casa ou essa
cidade, e sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade
vos digo que melhor sorte caberá, no dia do juízo, à terra de Sodoma do que a
uma cidade assim!”
Bem dissera Jesus que o seu precursor não era nenhum caniço agitado pelo
vento. Não! Ele não se dobrava aos caprichos do rei; sucumbisse embora o
corpo à violência, à força bruta, a alma resistiria invicta a todas as
tempestades. Ele, o grande engenheiro de Deus, era enviado para preparar os
caminhos do Messias, remover os obstáculos que impedissem a passagem. E
que maior óbice havia a entravar a vitória do Evangelho da pureza do que o
adúltero e incestuoso no trono da Galiléia?
Além dos motivos interiores, Herodes receava as iras do povo, que venerava o
Batista como um profeta. À morte violenta de João, era de temer que o povo da
Galiléia se aliasse a Aretas, rei dos Árabes e pai da legítima esposa repudiada
pelo tetrarca adúltero.
Eis senão quando, pelo fim do banquete, aparece na sala uma mocinha gentil,
e põe-se a executar, por entre as mesas, uma daquelas danças tão usadas em
Roma e nos países orientais, em ocasiões festivas. Chama-se Salomé a
bailarina, diz-nos a tradição, e era filha de Herodias com seu legítimo esposo,
Filipe...
– Que pedirei?
– Quero que me dês, agora mesmo, nesta bandeja, a cabeça de João Batista!
E assim se fez.
Diz São Jerônimo que aquela mulher perversa, a exemplo do que fizera Fúlvia
com a língua de Cícero, lançou mão de uma agulha e pôs-se a picar
furiosamente a língua do profeta; porque ainda lhe soavam aos ouvidos
aquelas palavras: “Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão”. Já não era
aquela língua que as proferia, mas era a consciência de Herodias que as
repetia sem cessar: Não te é lícito... Não te é lícito... E o verme da má
consciência não se mata nem à força de agulhadas, nem a golpe de espada.
Ignoramos que fim levou a cabeça do Precursor; em que abismo a terá lançado
aquela adúltera? Sabemos tão-somente que vieram os discípulos de João e
sepultaram o corpo com todas as honras.
***
Deixa correr as coisas a bom correr. Não parece estranho que não se interesse
pela sorte de seu precursor, de seu grande e abnegado amigo?... Nenhuma
visita, nenhuma palavra de conforto, nenhum milagre para o libertar – quando
qualquer mendigo da rua lhe merece um prodígio do seu poder, uma maravilha
do seu querer!... Ressuscita da morte pessoas sem importância – e para João
Batista nada, nada absolutamente!...
Não se compreende – admira-se! É que um herói como João não tinha disto
necessidade; toda a sua consolação, todo o seu paraíso na terra estava em ter
preparado os caminhos do Senhor e em poder regar com o próprio sangue o
caminho que o Messias não tardaria a ruborizar com o seu. Preparara os
caminhos do Nazareno em vida, esse grande arauto de Deus – e mais ainda os
preparou com a sua morte...
Por isso, nenhuma queixa passa dos lábios do Precursor, nenhuma tristeza lhe
invade a alma, nenhum ressentimento se aninha no seu coração.
E Jesus, que de tudo sabia, parece indiferente à sorte de seu grande precursor,
que ele denominou, um dia, o maior entre os “filhos de mulher”. Não o visita,
não o preserva da morte.
João, porém, era um vidente cósmico; por isto não se queixa da aparente
indiferença de Jesus, mas sofre em silêncio, na escura masmorra, até a morte
violenta.
Primeira multiplicação dos pães
No meio dessas alegrias, caiu como sombra lúgubre a notícia da morte violenta
do Precursor. E Herodes, instigado por Herodias, armava ciladas também a
Jesus; porque bem sabia que as idéias que o Batista nutrira, no tocante à vida
do tetrarca e da sua amante, eram também as do Nazareno.
Entretanto, o homem põe e Deus dispõe. Para Jesus, não era ainda chegada a
hora. E, enquanto não chegasse essa hora, ninguém lhe podia fazer mal.
Contudo, para não exasperar desnecessariamente a seus inimigos, lançou mão
do expediente que a prudência lhe sugeria: retirou-se para uma região solitária.
Pelo que Jesus os convidou para passarem com ele à margem oriental do lago
de Genesaré.
A maior parte dos ouvintes tinha vindo de longe. As provisões de boca, que
alguns levavam consigo, não passavam de umas broas de pão e umas
tâmaras.
Filipe, um dos mais familiares de Jesus, inquiriu se era realmente desejo dele
que os discípulos fossem comprar pão para todo aquele povo.
Voltou-se Jesus para Filipe, o qual, parece, estava quebrando a cabeça com a
solução do difícil problema econômico, e perguntou-lhe:
– Duzentos denários de pão não seriam suficientes para dar um bocado a cada
um.
***
O que Jesus fez na verdade foi materializar a luz cósmica em forma de pão e
de peixe. Sabemos hoje pela ciência atômica que toda a matéria é energia
congelada, e a energia é luz condensada.
Quem tem poder sobre as leis da natureza pode transformar a luz em qualquer
matéria.
Na chamada multiplicação de pães e de peixes, transformou Jesus a luz
cósmica do Universo em matéria de pão e de peixe. A ciência de hoje sabe que
todas as matérias do Universo são luz invisível transformada em matéria
visível. Uma creatura que possui esse poder pode materializar a luz, e pode
também lucificar a matéria.
Jesus caminha sobre as águas
Apenas viu crescer o entusiasmo popular, deu ordem categórica aos seus
discípulos para embarcarem imediatamente, e passarem à margem ocidental
do lago.
“Compeliu-os”, diz o Evangelista, por sinal que quase à força os obrigou a
embarcarem; nem lhes permitiu que despedissem o povo; ele mesmo ia
despedi-lo.
Até pelas 3 horas da madrugada passou ele em colóquio com o Pai, nas
alturas daquele monte.
Depois, como que voltando a si das regiões do infinito, correu o olhar pelas
bandas do oeste. Ao pálido clarão da lua, divisou uma embarcação que se
achava no meio do lago. Eram os seus discípulos. Estavam em luta com forte
vendaval. A travessia do Genesaré comportava, aliás, umas duas a três horas
de voga. Em circunstâncias normais, já deviam os nautas ter arribado à
margem oposta; mas, com aquele vento pela proa, mal tinham vencido meia
distância; 25 estádios, diz o historiador, quer dizer, cerca de légua e meia em 7
a 8 horas de labor insano!
Ora, vendo Jesus o muito que os bons discípulos se afadigavam, teve pena
deles. Tinham lá suas idéias mundanas sobre o reino de Deus, é verdade; mas
eram bons e mostravam-se sempre obedientes e humildes – e Jesus lhes
queria bem, muito bem. Resolveu consolá-los.
– Um fantasma! Um fantasma!
Simão Pedro, homem dinâmico, não se contentava com ver e olhar; era
necessário agir.
Respondeu-lhes Jesus:
Respondeu-lhes Jesus:
Tornaram-lhe os judeus:
– Que sinal nos dás, para que vejamos e possamos ter fé? Qual a tua obra?
Nossos pais comeram o maná, no deserto, conforme está escrito: Do céu lhes
deste pão para comer.
Respondeu-lhes Jesus:
– Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés que vos deu o pão do céu;
meu Pai é que vos dará o verdadeiro pão divino que desce do céu e que dá a
vida ao mundo.
– Eu sou o pão da vida; quem vem a mim já não terá fome; e quem tiver fé em
mim, jamais terá sede. Mas bem vos dizia eu que não tendes fé, ainda que me
tenhais visto. Tudo quanto o Pai me dá vem a mim; e eu não repelirei a quem
vier a mim; porque desci do céu, não para cumprir a minha vontade, mas, sim,
a vontade daquele que me enviou. A vontade daquele que me enviou é esta:
que eu não deixe perecer nada de quanto me confiou; mas que o ressuscite no
último dia. Sim, a vontade de meu Pai é esta: que todo homem que vir o Filho e
nele tiver fé, tenha a vida eterna – e eu o ressuscitarei no último dia.
Murmuraram então os judeus contra ele, por ter dito: Eu sou o pão vivo que
desceu do céu. E diziam: Porventura, não é este Jesus filho de José? E não lhe
conhecemos nós o pai e a mãe? Como diz, pois: Eu desci do céu?
Vendo Jesus que, apesar de tudo, os judeus se guiavam pelos sentidos, tornou
a insistir na necessidade da fé, dizendo:
– Ninguém pode vir a mim, se não for atraído pelo Pai que me enviou; e eu o
ressuscitarei no último dia. Quem tem fé em mim tem a vida eterna. Eu sou o
pão da vida. Vossos pais comeram o maná, no deserto; porém morreram. Mas
este é o pão que desce do céu, para que quem dele comer não morra. Eu sou
o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. O
pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo.
Replicou Jesus:
Disseram os ouvintes:
Disse Jesus:
“É que ele sabia desde o princípio”, diz o evangelista, “quem eram os sem-fé e
quem havia de entregá-lo.”
“A partir daí, muitos dos seus discípulos se retiraram, e não mais andavam com
ele.”
O Mestre corre um olhar perscrutador pela roda dos doze – e acaba por fitá-los
na pessoa de Judas Iscariotes, dizendo:
***
Por meio de todas estas palavras sobre o “pão do céu” recorre Jesus a uma
parábola de difícil interpretação. E quando os ouvintes julgavam que deviam
comer a carne física de Jesus, respondeu-lhes ele que era sua carne em
sentido metafísico, o seu Cristo:
“As palavras que vos digo são espírito e vida – a carne de nada vale”.
Na última quinta-feira, na santa ceia, repete Jesus esta mesma parábola, que
até hoje está sendo interpretada em sentido físico, como se o homem devesse
comer a carne e beber o sangue de Jesus.
Mandamentos divinos e
tradições humanas
Um dos pecados mais monstruosos que um homem podia cometer aos olhos
de Jesus era a ostentação religiosa; alardear virtudes e boas obras; gloriar-se
da sua piedade; fazer parada com jejuns, esmolas e obras de caridade – era
isto, na linguagem de Jesus, o mesmo que ser sepulcro caiado.
Aí estava uma das maiores preocupações desses homens sem alma! “Coavam
mosquitos – e engoliam camelos”...
No dia da morte de Jesus, Páscoa judaica, não ousam eles entrar no pretório
de Pilatos, com medo de se “contaminarem” no ambiente pagão desse goim –
mas não lhes causa escrúpulo algum condenarem à morte um homem justo.
É por causa dessa duplicidade de consciência que Jesus lhes lança a censura
veemente de coarem mosquitos e engolirem camelos.
A lei natural e divina prescreve que os filhos honrem seus pais e lhes acudam
em suas necessidades temporais – mas o formalismo casuístico dos fariseus
declarava que esta lei era suficientemente cumprida quando o filho dava uma
oferta ao templo e fazia os pais participarem das bênçãos dos sacrifícios, sem
se importar com as necessidades materiais dos progenitores – sacrificando,
assim, uma lei natural e um mandamento divino a uma instituição puramente
ritual.
– Escutai e compreendei bem: o que entra pela boca não torna o homem
impuro; mas sim o que sai da boca, isto é que torna o homem impuro.
– Toda planta que não for plantada por meu Pai celeste será exterminada!
Deixai-os! São cegos e guias de cegos! Mas, quando um cego guia outro cego,
ambos vêm a cair na cova.
Disse-lhes Jesus:
– Também vós estais ainda sem compreensão?! Não compreendeis que tudo
que entra pela boca vai para o estômago, e daí é lançado fora? Mas o que sai
da boca vem do coração, e isto é que mancha o homem; porque do coração é
que vêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, a luxúria, os
furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias – e são estas coisas que
mancham o homem. Mas isto de comer sem lavar as mãos não torna o homem
impuro.
A mulher cananéia
Por isso, o Mestre não quis levar ao extremo a indignação dos seus
adversários; teve por bem avisado retirar-se, por algum tempo, do meio deles e
passar para território gentio.
Mas nem assim pôde ficar oculta a sua passagem; porque uma mulher pagã,
mal ouviu da presença do taumaturgo de Israel, seguiu no encalço dele,
suplicando em altos brados:
– Senhor, filho de Davi! Tem piedade de minha filha, que está muito
atormentada por um espírito maligno.
Mas a mulher não desanimou com este indiferentismo do rabi judeu. Continuou
a pedir, a bradar, a suplicar, com essa tenacidade característica da mulher e da
mãe. Estava firmemente resolvida a não deixar fugir aquela ocasião única,
último raio de esperança de um coração atribulado. Redobrou de clamores,
interpelando, ora o Mestre, ora os discípulos, a tal ponto que estes últimos,
aborrecidos com a importunação, disseram a Jesus:
Não foi, decerto, por amor dela, mas por amor de si mesmos que os discípulos
pediram ao Mestre “despachasse” aquela mulher.
Tornou-lhes Jesus:
Mas a vontade do Pai não era esta, e Jesus não queria um apostolado, por
mais deslumbrante, que não fosse conforme à vontade de Deus.
Daí a aparente indiferença que faz sentir à mulher pagã da Siro-Fenícia. Impôs
silêncio ao próprio coração para não exorbitar do plano traçado pelo “Senhor
da seara”.
Nada disto, porém, foi capaz de quebrar a tenacidade da pobre mãe. Ela não
pedia para si, pedia para uma infeliz creatura atormentada pelo demônio. Foi
no encalço do Mestre um bom trecho da estrada, repetindo sempre as mesmas
palavras repassadas de angustia:
Mas assim não aconteceu. Ela também entrou na mesma casa, afoitamente,
com a coragem que a angústia lhe inspirava. A dor não conhece convenções
sociais: lançou-se aos pés de Jesus e bradou:
– Ajuda-me, Senhor!
Mas o coração de Jesus parecia de pedra; não se rendeu à mais comovente
das súplicas. Os próprios discípulos estranharam a insensibilidade do Mestre.
– Não convém – disse em tom glacial – tirar o pão aos filhos e lançá-los aos
cachorrinhos!...
Tão cruel parecia-lhe a ele mesmo esta comparação, que não conseguiu
proferir a palavra “cães”, mas disse “cachorrinhos”, porque não sugeria o
coração usar daquela designação. Mas, mesmo assim, a sentença era dura,
desumanamente dura.
A resposta era dura – porém mais dura e dolorosa ainda era a situação da
suplicante. Não se deu por vencida, nem por ofendida. Só tinha no coração um
sentimento, a dor de saber a sua filha cruelmente atormentada por um espírito,
sabe Deus quantos anos! Tudo faria, tudo sofreria, contanto que sua filha fosse
libertada daquele estado.
E que faz essa mulher pagã ao ouvir as palavras de Jesus? Ao saber que ela
não passava de um cachorrinho aos olhos dele, que faz ela? Tira daí mesmo
um argumento em seu favor; responde com uma lógica admirável:
– Ó mulher! Grande é a tua fé! Faça-se contigo assim como pedes! Por causa
desta palavra, vai-te, que o demônio abandonou tua filha!...
Chegando a casa, encontrou ela a filha estendida no leito, livre do espírito
maligno.
Breve foi a demora de Jesus nas regiões de Tiro e Sidon. Nem consta que
tenha ali feito outro milagre, afora a expulsão do demônio da filha da Cananéia.
Jesus o tomou à parte, para fora da turba, pôs-lhe os dedos nos ouvidos,
tocou-lhe com saliva a língua, levantou os olhos ao céu, deu um suspiro e
disse: Éphpheta, que quer dizer: abre-te! E no mesmo instante abriram-se-lhe
os ouvidos e soltou-se-lhe a prisão da língua, e falava corretamente.
O homem não é puro espírito. Deseja perceber pelos sentidos corporais o que
se passa nos recônditos da alma. Se Jesus tivesse proclamado o reino de
Deus aos anjos do céu, certamente não o teria engastado nessa multiplicidade
de cerimônias e ritos; teria apresentado a sua revelação despida de qualquer
engaste material. Mas, como a religião cristã é destinada aos homens, deve ela
corresponder à natureza humana, que é espiritual-material. A religião deve
concordar com a natureza humana; deve ser um organismo harmônico
informado por um princípio vital que o anime e vivifique – um culto espiritual-
material.
Para o homem comum, uma religião puramente interna não seria um culto “em
espírito e verdade”, como exige o divino Mestre, mas, quando muito, um culto
em espírito.
Por outro lado, uma religião puramente externa não seria um culto em espírito
nem um culto em verdade.
Muitos, porém, compreendiam melhor a petição “o pão nosso de cada dia nos
dá hoje”, ou esta outra: “livrai-nos do mal”, do que a súplica: “venha a nós o teu
reino”. O reino da terra e o bem-estar corporal lhes pareciam coisas mais
concretas do que a abstrata realidade do reino de Deus. Não tardou, pois,
Jesus a ver-se cercado de numerosas pessoas que pediam alguma coisa para
esta vida: doentes, cegos, surdos, mudos, coxos, aleijados, paralíticos – todos
eles à espera da saúde corporal: “Livra-nos do mal”!
Depois de ter dado alimento às almas famintas, e restituído a saúde aos corpos
enfermos, resolveu Jesus beneficiar também os corpos daqueles que estavam
com saúde e o tinham excitado. Pois havia três dias que ele se encontrava
naquelas regiões e três dias havia que o povo lhe bebia dos lábios as palavras
da vida eterna.
Era tempo de receberem das suas mãos também o pão da vida temporal.
Nesta travessia, ocorreu um incidente que bem mostra o caráter simples dos
discípulos, a morosidade da sua compreensão, a ingenuidade natural da sua
alma, como também a grande vontade e paciência do divino pedagogo.
Não tinham levado pão para a viagem. Teria sido fácil guardarem alguns
daqueles fragmentos que recolheram, depois do milagre da multiplicação; mas,
esquecidos e imprevidentes, nada tinham levado.
– Que estais aí a discorrer entre vós, por não terdes pão? Homens de pouca fé!
Ainda estais sem juízo nem compreensão? Ainda tendes o coração cego?
Tendes olhos e não vedes? Tendes ouvidos e não ouvis, nem guardais
lembrança? Quando distribuí cinco pães a cinco mil homens, quantos cestos de
sobejo recolhestes?
Queria Jesus fazer-lhes ver que nenhum motivo de inquietação havia por falta
de pão; pois quem pode fazer prodígios tão grandes, não os poderia fazer
menores, se necessário fosse?
Depois lhes explicou o sentido da palavra “fermento”, que nada tinha que ver
com o pão dos fariseus.
– E não compreendeis que, quando vos digo “cuidado com o fermento dos
fariseus e saduceus”, não quis referir-me ao pão?
Certo dia, foi Jesus em demanda do extremo norte da Palestina, longe das
grandes cidades e do tumulto da sociedade. Transpôs as fronteiras e internou-
se com os seus discípulos em território pagão, rumo ao grande Hermon, cujos
píncaros continuavam listrados de glaciares e neves, mesmo em pleno estio.
–?
Destarte, chegaram eles a saber o que a gente dizia de Jesus: achavam uns
que Jesus fosse João Batista redivivo; outros o identificavam com Elias; outros
ainda o davam por Jeremias reencarnado, ou algum dos profetas antigos.
Numa palavra, todos os que tinham visto o Nazareno, ou ouvido dos seus feitos
e da sua doutrina, estavam convencidos de que se tratava de homem
extraordinário, de um ser dotado de poderes sobre-humanos.
Responderam eles:
Dizem uns que é João Batista; outros, Elias; ainda outros, Jeremias, ou algum
dos profetas antigos que tenha ressuscitado.
Conhecimento tão claro não podia provir das luzes humanas, mas era efeito de
uma revelação sobrenatural, como Jesus afirma:
– Bem-aventurado és tu, Simão Pedro! Porque não foi a carne e o sangue que
to revelaram, mas, sim, meu Pai que está no céu.
Em tradução vernácula:
Até aqui Agostinho era como porta-voz da doutrina quase geral naqueles
tempos.
É claro, à luz do texto do Evangelho, que Jesus não fundou sua igreja sobre a
pessoa humana (carne e sangue) de Pedro, mas sobre a revelação divina que
Pedro acabava de receber: essa revelação divina é que é chamada a “pedra”
ou rocha da Igreja.
Como pessoa, pode Pedro ter sucessores; mas a revelação divina não tem
sucessores pessoais – ou melhor, todos os que professam a divindade do
Cristo, dentro ou fora da hierarquia eclesiástica, são edificados sobre a pedra.
Refere o evangelista:
Foi como um eclipse solar em pleno meio-dia! A linguagem do Mestre era clara
e não deixava margem a dúvidas; mas era dura... Os discípulos fixaram toda a
atenção nas palavras lúgubres “padecer”, “morrer”, e nada viram dos fulgores
que aureolavam a palavrinha “ressurgir”.
Calaram-se, tristes, como que aniquilados. Não sabiam o que dizer ou pensar...
Contradizerem ao Mestre?... Resignarem-se àquela triste situação?...
Somente Pedro, que sempre trazia o coração à flor dos lábios, se animou a
manifestar, desassombradamente, a sua estranheza e desaprovação, assim
como, dias antes, fora o único a professar rasgadamente a sua fé e o seu amor
pelo divino Mestre Jesus, que nos últimos dias lhe parecia vítima de negro
pessimismo, de uma tal ou qual disposição derrotista a respeito do seu futuro.
De volta à Galiléia, tomou Jesus rumo do monte Tabor, que se ergue à beira da
extensa planície de Esdrelon, umas duas léguas distante de Nazaré. Mede 600
metros de altura, e tem a forma de uma pirâmide achatada no vértice. O
espírito religioso do povo lhe deu o nome de Tabor, que quer dizer altar.
Era pela tarde daquele dia, quando atingiam as fraldas setentrionais do monte.
Deviam estar exaustos de fadiga, tanto Jesus como seus discípulos, porque o
trajeto Cesaréia-Tabor comporta nada menos de 20 léguas.
A sua voz traduzia grande ardor e intimidade, e os seus olhos brilhavam num
fulgor estranho. Por algum tempo, escutaram os discípulos, num misto de
alegria e de dor. Depois, exaustos de fadiga, adormeceram, reclinados sobre
os rochedos circunjacentes.
O Mestre começou a falar com eles sobre sua paixão e morte e o seu regresso
ao Pai. Com viva admiração ouviram que o Filho do Homem devia ser
suspenso na cruz, a exemplo do que Moisés fizera com a serpente no deserto.
Tão intensa brilhava a alvura das vestimentas de Jesus que era impossível fitar
nelas o olhar. O seu rosto coruscava como o sol do meio-dia; e uns como
lampejos de luz branca e azulada fuzilavam pelas nuvens em torno dele; tudo
parecia diáfano e transparente como cristal.
Os três discípulos tentaram cravar os olhos em Jesus, mas caíram por terra,
fulminados pela veemência dos fulgores. Pedro, inebriado de delícia, não pôde
represar no íntimo a abundância dos seus sentimentos, e começou a balbuciar
como um sonâmbulo:
– Se quiseres, vamos armar aqui três tendas... Uma para ti... Outra para
Moisés... E outra para Elias...
É que não sabia o que dizia, acrescenta Marcos. Pois, para que aquelas
tendas? Para Jesus, que pairava nos ares?... Para os dois profetas que havia
séculos tinham deixado os tabernáculos da terra?... De si mesmo não se
lembrou Pedro, nem dos dois companheiros; eram eles os únicos que
necessitavam ainda de tendas. Estava extasiado de gozo; tinha a sensação de
que aquelas glórias eram a suprema beatitude do paraíso, aquela que nem
olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano,
mas que Deus preparou àqueles que o amam...
Nisto desapareceram Moisés e Elias. E eis que uma nuvem tecida de luz
envolveu a pessoa do Mestre. Da nuvem se lançava às regiões etéreas uma
deslumbrante esteira de claridade – ponte imensa entre o céu e a terra – e do
interior da nuvem ecoou uma voz que dizia:
– Este é meu filho muito querido, no qual pus a minha complacência – ouvi-o!
***
Que sucedera?
Nisto aparece Jesus com os três, descendo do monte. Todo o povo se precipita
ao encontro dele para saudá-lo e invocar o seu poder no meio daquela
confusão babélica; a chegada de Jesus era como um íris de paz no meio da
tempestade, e todos respiraram esperançados; a cena que tinham presenciado
era por demais tenebrosa e terrífica...
Por quê?
Avançou Jesus, silencioso, até ao meio da turba, que abriu caminho à sua
passagem. E perguntou aos discípulos:
– Ó raça incrédula e perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos
suportarei?...
Das glórias do Tabor tombara ele quase nas fauces do inferno – e o seu
coração devia estar cansado dos homens e enojado desta terra de misérias...
Lembrava-se o pobre pai dos vãos tentames dos discípulos, que tinham
falhado.
– Tenho fé! – exclamou o pai entre lágrimas. – Ajuda a minha falta de fé!
Vendo Jesus que o povo se aglomerava cada vez mais numeroso, ameaçou ao
espírito impuro, dizendo:
Jesus, porém, tomou-o pela mão e levantou-o, e ele se pôs de pé. Estava de
saúde desde essa hora.
Estes, porém, não contentes com o simples fato, queriam saber por que razão
não puderam eles expulsar aquele espírito.
Respondeu-lhes Jesus:
Partiram daí (do monte Tabor) e foram percorrendo a Galiléia, Jesus queria que
ninguém o soubesse.
Estava todo o mundo maravilhado, refere Lucas, dos prodígios que Jesus fazia
e encantado com a doutrina dele.
No meio dessas apoteoses todas, torna ele a predizer a sua paixão e morte,
como também a sua ressurreição, e com palavras tão claras que já ninguém
podia deixar de as compreender. Disse então a seu discípulos:
– Gravai bem no vosso coração estas palavras: o Filho do Homem vai ser
entregue às mãos dos homens; hão de matá-lo; no terceiro dia, porém,
ressurgirá.
“Eles, porém, não atinaram com o sentido destas palavras; era para eles um
mistério: mas tinham medo de interrogá-lo. E isto os enchia de profunda
tristeza”.
1. Páscoa (ou Phase) era, para o judeu, a saída da longa escravidão no Egito, o êxodo, ou
independência nacional.
Jesus paga tributo
Havia largo tempo que Jesus não aparecia em Cafarnaum. Por espaço de
meses tinha andado a cruzar as terras da Galiléia, fazendo ainda uma ligeira
digressão pelos países pagãos da Decápole.
Era lei que todo israelita, a principiar do vigésimo ano, pagasse, para a
manutenção do templo e do culto, um tributo anual de meio siclo ou uma
didracma. Cobrava-se esta contribuição, geralmente, no mês de Adar (março),
pouco antes de principiarem as solenidades pascais, que ocorriam em Nisan
(abril), primeiro mês do ano israelítico.
Mal entrara ele em casa, quando Jesus lhe atalhou a palavra, perguntando:
– Entretanto, não lhes demos motivo de tropeço. Vai ao lago, lança anzol e
toma o primeiro peixe que apanhares, abre-lhe a boca, e nela encontrarás um
estáter; com ele paga por mim e por ti.
Um estáter eram duas didracmas. Não era muito. Mas nem esse pouco
possuía Jesus; e Pedro participava da pobreza do Mestre. Por isso, o Senhor
lhe fez a honra de o igualar a si mesmo, apelando para o seu poder em favor
dos dois e mandando pagar por ambos ao mesmo tempo.
Não diz o Evangelho quais os títulos que os discípulos fizeram valer para sua
suposta precedência. Mas é fácil imaginá-lo.
Pedro terá invocado o fato de ser sempre nomeado em primeiro lugar, como
chefe da turma.
Tiago deve ter apelado para o seu parentesco, pois era primo de Jesus.
João, se não era ainda o místico, terá lembrado que Jesus o chamava sempre
o discípulo amado.
Mateus deve ter dito que ele tinha sido um funcionário do Império Romano,
como coletor de impostos em Cafarnaum. E assim por diante, numa discussão
genuinamente humana, deploravelmente mundana. Faltava-lhes ainda, aos
bons discípulos, aquele poder do alto que, no dia de Pentecostes, os devia
transformar definitivamente em verdadeiros arautos do reino de Deus.
Chegaram à casa em que iam hospedar-se, uma casa de família onde não
faltavam crianças.
Ao pé da casa, os doze esperavam por Jesus, que tinha ficado para trás,
sozinho, talvez entretido em colóquio com o Pai celeste, como costumava
fazer, muitas vezes, nessas longas caminhadas.
– Em verdade vos digo, se não vos converterdes e vos tornardes como esta
criança, não entrareis no reino dos céus. Mas quem se tornar humilde como
esta criança, esse é o maior no reino de Deus.
E acrescentou:
Deste modo, inverteu o Mestre toda a política mundana dos discípulos pela
sabedoria do Evangelho; grandeza não é ser servido, grandeza é servir
voluntariamente.
Ai do sedutor da inocência
Bom seria que toda a cristandade desses quase dois mil anos tivesse ouvido
essas palavras de Jesus, que proclamam que toda criança tem fé nele, isto é,
está no reino dos céus – quando os nossos teólogos afirmam que toda criança
é concebida e nasce pecado; “sai desta alma, Satanás”, diz o rito batismal, “e
dá lugar ao Cristo”. E tentam com um copo de água, ou com um mergulho num
piscina, expulsar o suposto diabo e introduzir o Cristo na alma humana.
Por espaço de quarenta longos anos, peregrinara o povo hebreu pelo deserto,
rumo à terra da Promissão, habitando em tendas, ou à sombra de ranchos de
ramagens improvisados à beira do caminho. E em grata recordação desse
período histórico celebravam os hebreus, todos os anos, a festa das Tendas ou
Tabernáculos.
Tudo era vida e alegria nesses dias. Saqueavam as frondes das árvores, e com
elas armavam pavilhões primitivos nos arredores de Jerusalém, neles
habitando por espaço de oito dias. A temperatura outonal favorecia essa vida
ao ar livre, à sombra de verde folhagem.
Pela lei, só os homens tinham obrigação de viver nessas tendas; nelas também
comiam e dormiam. Conta-se que ao rabi Gamaliel foram oferecidos duas
tâmaras e um vaso de água em sua casa; mas ele mandou que os levassem
para a tenda – tão escrupuloso era o mestre na observância da lei, durante a
semana dos Tabernáculos.
Cinco dias antes do início dos festejos, celebrava-se a “Expiação”, dia de jejum,
dia de sacrifícios, e de caráter profundamente significativo. O sumo sacerdote
tomava dois carneiros ou bodes, e sacrificava um deles. Depois, colocava as
mãos na própria cabeça e proferia determinadas fórmulas litúrgicas
confessando os pecados do povo e suplicando perdão; em seguida, colocava
as mãos sobre a cabeça do animal, simbolizando assim a transferência para o
mesmo de todos os delitos de Israel. Logo, um dos levitas tangia o “bode
expiatório” para o deserto até a beira de um precipício, distante 18 quilômetros
de Jerusalém, no qual era abismado o animal.
A primeira noite representava o que havia de mais belo para os olhos e para a
alma de um genuíno israelita. Enquanto de todos os terraços, das cimalhas das
casas e dos peitoris das janelas ardiam milhares de lâmpadas, e de
gigantescos candelabros se erguiam labaredas, cantava o coro dos levitas, do
alto da escadaria semicircular de quinze degraus, os Salmos de Davi sobre as
glórias e as liberalidades de Deus.
Corria o provérbio: Quem não viu o júbilo de Siloé não viu júbilo.
– Retira-te daqui e vai para a Judéia, para que também os teus discípulos
vejam as obras que fazes; pois ninguém que deseja ser conhecido em público
trabalha às ocultas. Uma vez que realizas tão grandes coisas, manifesta-te ao
mundo!
Assim falavam os seus irmãos, observa o evangelista, porque nem eles tinham
fé em Jesus. Não formavam idéia exata da sua missão.
Respondeu-lhes ele:
– O meu tempo ainda não chegou. Para vós, sim, sempre é tempo oportuno; a
vós não vos pode o mundo odiar; a mim, porém, me odeia, porque eu dou
testemunho de que as suas obras são más. Subi vós à festa; eu não subo à
festa, porque ainda não chegou o meu tempo.
Mais tarde, também Jesus iria a Jerusalém, não em público, mas ocultamente.
É o que ele queria dizer: que não ia como peregrino com a caravana, mas em
caráter particular, para não causar reparo demasiado; pois não chegara ainda a
hora da sua morte; numa outra solenidade, sim, iria publicamente a Jerusalém
para ser crucificado.
De modo que a festa dos Tabernáculos desse ano tinha as suas nuvens... Não
reinava a mesma alegria expansiva e franca dos anos anteriores; uma tensão
nervosa ocupava todos os espíritos... Que seria de Jesus?... Que aconteceria
ao profeta de Nazaré?... A sanha dos seus inimigos não conhecia limites...
Ansiosamente aguardavam a chegada do Nazareno...
Despedida da Galiléia,
maldição das cidades impenitentes
Pela última vez, lança Jesus um olhar sobre Cafarnaum e o lago de Genesaré
– olhar cheio de dor, cheio de amor, de amor incompreendido!... Quase três
anos havia ele trabalhado na Galiléia, e Cafarnaum tornara-se a “sua cidade”; o
Genesaré era o lago de Jesus e dos discípulos, pois todos eles eram galileus à
exceção de Iscariotes.
E Jesus se despede...
Seu grande e incompreendido amor lhe confrange o coração, faz-lhe brotar dos
lábios palavras repassadas de saudades e de amargura... Não há no mundo
martírio mais atroz do que um grande amor retribuído com indiferença, ou com
desprezo... E coração do Nazareno sorveu até a lia o cálice desta amargura.
E, olhando para Cafarnaum, que jazia a seus pés ruidosa e profana, exclamou
Jesus:
– Ai de ti, Cafarnaum! Tu, que foste elevada até ao céu – até ao inferno serás
abismada. Porque, se em Sodoma se tivessem feito os prodígios que em ti se
fizeram, até ao presente subsistiria! Pois declaro-te que sentença mais benigna
terá Sodoma, no dia do juízo, do que tu!
Sim, Cafarnaum fora elevada até ao céu, porque por espaço de longos anos
residira nos seus muros aquele que é o centro e a essência do paraíso. A
cidade de Sodoma era pecadora, mas Cafarnaum é tanto mais pecadora,
quanto maior o número de graças que recebeu e não aproveitou.
Refere Lucas:
***
Não havia para o samaritano espetáculo mais irritante do que ver os israelitas
encaminharem-se para Jerusalém, pelo tempo das festividades religiosas. Os
samaritanos, nessa época, já não possuíam templo, mas adoravam a Deus no
monte Garizin; e exasperava-os o pensamento de que os judeus os
considerassem hereges e se arrogassem o privilégio exclusivo do verdadeiro
culto.
Por isso, não quiseram dar pousada a Jesus e seus discípulos, sabendo que
eles iam para as festas dos Tabernáculos.
– Não sabeis que espírito vos anima! Pois o Filho do Homem não veio para
perder os homens mas, sim, para salvá-los.
Certo dia, nessa mesma viagem, apresentou-se a Jesus um dos escribas que o
tinha ouvido falar, e exclamou entusiasticamente:
Queria dizer: Meu amigo, se queres de fato ser meu discípulo e seguir-me
aonde eu for, lembra-te de que terás de partilhar a minha sorte; terás de viver
como eu vivo, desprendido de tudo e de todos, sem propriedade, sem casa,
sem mesa, sem família nem lar; deves estar pronto a sacrificar tudo o que o
homem pode possuir e gozar; terás de tornar-te mais pobre que as raposas do
mato e as aves espaço...
Jesus não tem casa... Desde que deixou a carpintaria de Nazaré, é ele um
nômade!... De dia, cruzando aldeias e descampados, sempre a espalhar a
semente do Evangelho do reino de Deus, sempre a curar enfermidades,
sempre a consolar os aflitos e sobrecarregados; de noite, em colóquio com o
Pai celeste, na solidão do deserto e nas alturas das montanhas, ou fruindo
umas horas de descanso, em casa alheia, ao pé de uma árvore ou à beira da
estrada...
Tal é a vida do Nazareno.
O seu vestuário é singelo; a sua mesa, incerta; não leva dinheiro no bolso; não
conhece mão carinhosa que lhe enxugue o suor da fronte ou lhe componha a
cabeleira em desalinho; não tem no mundo alma que o compreenda, que lhe
faça companhia nos caminhos solitários do seu idealismo... Nasceu numa gruta
– mas a gruta era de todos. Foi reclinado numa manjedoura – mas a
manjedoura era dos pastores. Expirou numa cruz – mas a cruz não era dele. E
ainda após o derradeiro suspiro não teve onde reclinar a cabeça – e a sua
cabaça ficou suspensa no ar, entre o céu e a terra. Depois de morto, encontrou
onde reclinar a cabeça – mas foi em sepulcro alheio. O próprio corpo exangue
não lhe pertencia – era da autoridade pública, da qual o requereram os
discípulos. Nem mesmo a sua alma lhe pertencia, era creatura de Deus e ele a
entregou ao Pai celeste – “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!” E o seu
coração pertence a toda a humanidade...
***
Por mais natural e humanitário que parecesse este pedido, Jesus não lho
concedeu; mas respondeu em tom enérgico:
– Deixa que os mortos sepultem seus mortos! Tu, porém, vai e anuncia o reino
de Deus!
***
Depois de algum tempo, chegou a caravana apostólica a uma encruzilhada.
Disse então um dos discípulos a Jesus:
Que coisa mais natural? A casa não ficava longe, e o futuro missionário, antes
de empreender a sua missão, queria dar os adeuses à família e aos parentes.
Mas teve de ouvir dos lábios do Mestre as palavras incisivas:
– Quem empunha o arado e olha para trás não é idôneo para o reino de Deus.
Fazem estas palavras suspeitar que não se tratava de uma simples despedida.
O coração daquele discípulo, parece, estava dolorido de saudades de alguma
pessoa querida que tinha entre seus parentes ou suas parentas; queria vê-la e
falar-lhe ainda uma última vez. Jesus, porém, sabia que o coração tem razões
de que a razão nada sabe, e que aquela despedida da sua “gente” podia vir a
ser, para esse moço, a despedida do apostolado e do seu idealismo religioso.
Jesus não admite para colaborador qualquer homem; é necessário que seja
possuidor de predicados especiais, que tenha uma vontade firme e
inquebrantável; a liberdade de espírito de se emancipar de toda a escravidão
das creaturas, ainda a mais doce e querida, o heroísmo de renunciar de vez e
para sempre a tudo que possa vir a paralisar-lhe os surtos da alma, ou desviar-
lhe as energias do coração.
É o que Jesus exige aos seus discípulos; queimar os navios do mundo! Não
pensar jamais em regresso nem deserção! A vida do apóstolo está definitiva e
irrevogavelmente entregue à discrição do seu divino soberano. A divisa é:
Vencer ou morrer!
Quem empunha o arado e olha para trás não presta para o reino Deus!
Missão e regresso dos discípulos
No dia marcado voltaram para junto de Jesus. E logo, com uma familiaridade
confidencial, se puseram a contar as aventuras e peripécias que tinham
passado no ministério evangélico. Quanta coisa nova e interessante não lhes
sucedera!... Horas e horas estiveram contando...
2. Para Jesus, Satan (diabo, belzebu) não é o demônio, que são entidades invisíveis da
natureza. Satan, ou Satanás, segundo o Evangelho, é o “forte” ou chefe dos demônios, que
são chamados “utensílios” e “armas” dele. Quando os discípulos de Jesus expulsaram os
demônios, Satan se viu privado de seus utensílios e armas e perdeu o seu poder. Segundo
Jesus, Satan ou o diabo é uma creação mental do homem antidivino. Neste sentido, Pedro,
quando se opôs ao espírito de Jesus, é chamado Satan, palavra hebraica para adversário; e
Judas, quando não tinha fé nas palavras do Mestre, é tachado de diabo, palavra grega para
opositor. É quase geral, no Ocidente, a confusão entre diabo e demônio; Evangelho, porém,
nenhuma vez identifica Satan ou o diabo com os demônios. Jesus nunca expulsou o diabo,
mas expulsou muitos demônios. Aliás, Satan ou diabo nunca aparece no plural, como os
demônios.
– Eis que vos dei poder de calcar serpentes e escorpiões, e poder sobre todas
as potências adversas; coisa nenhuma vos fará mal. Entretanto, não seja esta
a vossa alegria, que se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos antes porque os
vossos nomes estão escritos nos céus.
– Glorifico-te, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque ocultaste estas coisas
aos dutos e aos eruditos e as revelaste aos simples. Sim, meu Pai, assim foi do
teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém senão o Pai sabe
quem é o Filho; e ninguém sabe quem é o Pai senão o Filho, e aquele a quem
o Filho o quiser revelar.
– Ditosos os olhos que vêem o que vós vedes, pois eu vos declaro que muitos
profetas e reis desejaram ver o que vós vedes, e não o viram; e ouvir o que vós
ouvis, e não o ouviram.
Depois, correndo o olhar pela roda dos circunstantes, e vendo aqueles homens
cobertos de pó e fatigados do exaustivo labor, disse:
Tornou o doutor:
– Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de
toda a tua mente e com todas as tuas forças; e amarás o próximo como a ti
mesmo.
O doutor da lei calou-se, um tanto perplexo. Pois, pela resposta que ele próprio
dera, tão prontamente, bem se via que a pergunta nada tinha de singular e
difícil; qualquer menino israelita saberia respondê-la, assim como as crianças
do século XX; bem doutrinadas, sabem recitar, na pontinha da língua, os dez
mandamentos da lei de Deus. Tratava-se de um dos textos sacros mais
conhecidos e familiares do Pentateuco. Aquele diálogo tinha visos de lição de
catecismo ou escola dominical; mas o doutor não era decerto nenhum aluno de
escola, e, sim, um mestre em Israel. E de um homem tão instruído como ele se
devia esperar, propriamente, algo de mais difícil e intrincado, alguma questão
sutil, alguma das célebres controvérsias que entre si agitavam as famosas
escolas de Hillel e Shammai, ou coisa análoga, mas não uma verdade palmar
como esta, que os rabis de Israel até levavam escrita nos seus filactérios e a
cada passo recitavam.
Por isso, para não fazer má figura, procurou o doutor da lei uma saída mais
honrosa; queria “justificar-se”, diz o evangelista, queria mostrar que não
perguntara sem razão; porquanto o caso tinha os seus quês, que o Nazareno,
bisonho no programa das escolas em voga, talvez nem suspeitasse. Propôs,
portanto, uma questão que lhe parecia bem mais complicada, dizendo com
ares de entendido:
Agora sim, pisava terreno firme; estava no seu elemento; porque esta pergunta
dava margem a discussões e controvérsias sem fim.
– Descia um homem de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos dos ladrões. Estes
o despojaram, cobriram-no de feridas e, deixando-o meio morto, foram-se
embora. Aconteceu descer pelo mesmo caminho um sacerdote; viu-o – e
passou de largo. Igualmente, chegou ao lugar um levita; viu-o – e passou de
largo. Chegou ao pé dele, também, um samaritano, que ia de viagem, viu-o – e
moveu-se à compaixão; aproximou-se, deitou-lhe óleo e vinho nas chagas e
ligou-as; em seguida, fê-lo montar no seu jumento, conduziu-o a uma
hospedaria e teve cuidado dele. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os
ao hospedeiro, dizendo: Tem cuidado dele, e o que gastares a mais, pagar-te-
ei na volta.
Nesta altura, dirigiu-se Jesus ao doutor da lei, que o estava escutando, sem
atinar com o porquê dessa história, e perguntou-lhe:
– Qual desses três se houve como próximo daquele que caiu nas mãos dos
ladrões?
Marta, tipo da mulher ativa, que não se sentia satisfeita enquanto não
oferecesse ao amigo o melhor da sua casa, o refrigério mais confortável, o
prato mais saboroso, o vinho mais puro.
Desta vez, parece, estava Lázaro ausente; o evangelista não lhe menciona a
presença com uma só palavra. Achavam-se em casa apenas as duas irmãs,
Marta e Maria; dedicadíssimas ao divino Mestre, ainda que de gênio e índole
totalmente diversos. O amor de Marta, dona de casa, traduz-se numa atividade
intensa para servir ao querido hóspede; o amor de Maria revela-se num enlevo
contemplativo, que a mantém sentada aos pés do Mestre, bebendo cada uma
daquelas palavras que lhe brotavam dos lábios, como centelhas de luz...
Enquanto o divino Mestre, cercado dos discípulos e com Maria sentada a seus
pés, falava do reino de Deus, Marta girava na lida afanosa, solícita, irrequieta,
já na horta, já cozinha, já na dispensa; o trabalho era muito pouco e os
hóspedes assaz numerosos.
Em dado momento, pára no limiar da porta da varanda, onde se achava Jesus
com os seus ouvintes e, lançando um olhar significativo a Maria, diz ao Mestre:
– Não te importa, Senhor, que minha irmã me deixe só com o serviço? Dize-
lhe, pois, que me ajude.
Mas Jesus não deu a ordem sugerida por Marta; antes, tranquilizou a
consciência de Maria, justificou-lhe a conduta, e suavemente repreendeu a
interpelante:
– Marta, Marta, andas solícita e irrequieta com muitas coisas; entretanto, uma
só coisa é necessária: Maria escolheu a parte boa, que não lhe será tirada.
O que Jesus censura em Marta não é o trabalho em si. O que ele repreende é
a solicitude excessiva e o modo irrequieto que se revelam nos atos de Marta.
Jesus na festa dos Tabernáculos
Falava-se muito no profeta de Nazaré. Não viria à festa?... ele, homem tão
religioso...
Iniciou, então, Jesus uma série de discussões em torno da sua missão divina.
Dessas dissertações nos conservou o evangelista João um esboço incompleto,
de modo que nem sempre é fácil seguir os vôos do espírito do Mestre. São
fragmentos dispersos, apontamentos avulsos, apanhados a esmo ou
reproduzidos de memória. Mas, ainda assim, fazem transparecer a relevância
do assunto e os fulgores do espírito de Jesus.
Percebeu Jesus o aparte, e tomou-o por ponto de partida para uma elucidação,
dizendo:
– Eu não tenho de mim mesmo a minha doutrina, mas, sim daquele que me
enviou. Quem quiser cumprir a minha vontade conhecerá se a minha doutrina
vem de Deus, ou se falo de mim mesmo. Quem fala de si mesmo procura a sua
própria glória; mas quem procura a glória daquele que o enviou fala a verdade
de quem o enviou, e nesse não há falsidade.
Interrompeu Jesus o seu discurso para curar um doente que lhe apresentaram.
Mas era dia de sábado – e logo os judeus o acoimaram de profanador do
descanso sabatino. Mas ele refutou com tanto vigor essa acusação, que alguns
dos judeus, sobrevindo na ocasião, observaram:
– Qual! – replicaram outros – nós sabemos de onde vem esse homem; mas,
quando vier o Cristo, ninguém saberá de onde vem.
Não era exata esta opinião; os profetas tinham dito claramente que o Messias
nasceria em Belém de Judá. Mas era idéia corrente entre os judeus, baseados
em interpretações falsas, que o Messias apareceria de improviso, sem que
ninguém soubesse como nem de onde. O Nazareno, porém, era filho da
Galiléia, diziam eles, e todos conheciam os pais e os parentes dele.
Formaram-se dois partidos, pró e contra Cristo. Muitas pessoas do povo bem-
intencionadas criam nele e, a despeito das iras do Sinédrio, ousavam externar
a sua opinião.
– Aonde pretende ir, que não possamos encontrá-lo? Será que demandará às
regiões onde os filhos de Israel vivem dispersos entre os gentios?
Despontou o último dia da festa, o mais solene de todos. Veio também Jesus
assistir às cerimônias litúrgicas, no meio do povo. Acompanhou a deslumbrante
procissão que, do alto de Moriá, descia até a fonte de Siloé; viu como o
sacerdote, por entre o clangor das trombetas e o júbilo do “grande Hallel”,
colhia água em um vaso de ouro, tornava a subir a colina do templo e
derramava o líquido, misturado com vinho, no altar dos holocaustos.
– Quem tiver sede venha a mim e beba! Quem tiver fé em mim, brotar-lhe-ão
do interior torrentes de águas vivas!
– Este é o Cristo!
– Acaso a nossa lei condena um homem sem primeiro o ouvir e inquirir o que
fez?
– És também tu galileu?
Parece que Nicodemos não era o único no Senado religioso de Israel a tomar
partido em favor de Jesus, tanto assim que veio a se travar entre os sinedristas
uma discussão acalorada sobre a pessoa e natureza do rabi de Nazaré.
A ocasião não podia ser mais propícia. Não faltavam testemunhas para
presenciar a “derrota do Nazareno”. A trama estava muito bem urdida; o plano
tinha requintes de astúcia e não podia falhar.
Momentos de silêncio...
Expectativa geral...
– Aquele dentre vós que não tem pecado atire-lhe a primeira pedra!
Como um raio em céu sereno caiu esta palavra na consciência dos fariseus...
Estremeceram... Por essa não esperavam eles... O Nazareno concorda em que
a criminosa seja apedrejada, conforme a lei – mas por mãos impolutas.
E onde estavam essas mãos bastante puras para lançarem a primeira pedra
àquela mulher impura?
Os zeladores da lei entreolharam-se, mudos, perplexos; cada um esperava que
o vizinho se abaixasse para levantar a primeira pedra. Mas ninguém se atrevia,
ninguém queria ser o primeiro; todos tinham a sensação de que aqueles dois
olhos devassavam os mistérios da consciência deles como tantas vezes dera a
entender o Nazareno...
Já não tinha razão de ser esse candelabro; era tempo de empalidecer a estrela
noturna da lei antiga, porque despontava o astro diurno da nova aliança e
traçava a sua trajetória pela Palestina. Israel, porém, dormia... dormia...
dormia...
– Eu sou a luz do mundo! Quem me segue não anda em trevas, mas tem a luz
da vida.
Inquiriram os fariseus:
Observaram os judeus:
– Será que vai suicidar-se, uma vez que diz: Aonde eu vou, lá não podeis ir
vós?
Disse-lhes Jesus:
– Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois deste mundo; eu não sou
deste mundo. Disse-vos que morrereis nos vossos pecados; sim, se não
crerdes quem sou eu, morrereis nos vossos pecados.
Perguntaram-lhe eles:
Tornou-lhes Jesus:
– Por que, afinal, estou a falar-vos? Muitas coisas teria a dizer-vos ainda, e
muita coisa a julgar, mas quem me enviou é verdadeiro, e eu não anuncio ao
mundo senão o que ouvi dele.
Não atinaram eles que lhes falava do Pai. Prosseguiu Jesus, aludindo à sua
morte:
Toda a discussão que Jesus travara no templo com seus adversários girava em
torno da verdade fundamental do Cristianismo: a realidade do seu Cristo divino.
– Mestre, quem foi que pecou para esse homem nascer cego, ele ou seus
pais?
Jesus, porém, não aceita nem esta nem aquela alternativa. Responde
calmamente:
– Nem ele pecou nem seus pais pecaram para ele nascer cego; mas isto lhe
aconteceu para que nele se manifestassem as obras de Deus.
As obras de Deus são a evolução espiritual desse homem. Os discípulos só
conheciam sofrimento-débito, ao passo que o Mestre fala em sofrimento-
crédito. O grande sofredor Jó não sofria por débitos, mas para acumular
crédito. O próprio Jesus declara ao discípulos de Emaús que ele sofreu tudo
aquilo “para assim entrar em sua glória”, isto é, pela plena auto-realização do
seu Jesus humano, pelo poder do seu Cristo divino.
Em seguida, diz o texto, Jesus cuspiu na terra, fez com a saliva um lodo,
aplicou-o aos olhos do cego e disse-lhe:
– Não é este o homem que estava sentado à porta do templo, pedindo esmola?
Respondeu-lhes:
– Aquele homem que se chama Jesus fez um lodo e aplicou-mo aos olhos e
disse-me: Vai lavar-te no tanque de Siloé! Fui, lavei-me e vejo.
Ora, era precisamente em dia de sábado que Jesus abrira os olhos ao cego de
nascença.
Os fariseus, por seu turno, renovaram o interrogatório para saber dos lábios do
felizardo como recuperara a luz dos olhos.
Respondeu-lhes:
Era fútil a acusação, uma vez que não existia violação do descanso sabatino.
Mas a descrença encontra sempre dificuldades onde não existem.
Pelo que os fariseus foram de novo ter com o homem que era objeto dessa
discussão, e lhe perguntaram:
– É este vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é então que agora vê?
Responderam os pais:
– Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; mas, como é que agora
vê, não o sabemos, nem tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos.
Perguntai a ele mesmo, tem idade; que dê informações sobre si mesmo.
– Se é um pecador, não sei; só o que sei é que eu estava cego e agora vejo.
– Que foi que te fez? – perguntaram-lhes eles – como foi que te abriu os olhos?
– Pois é bem estranho que não saibais de onde vem esse homem, quando me
abriu os olhos! É sabido que Deus não atende aos pecadores; mas quem teme
a Deus e lhe cumpre a vontade, a esse Deus o atende. Desde o princípio do
mundo, não se ouviu dizer que alguém tivesse aberto os olhos a um cego de
nascença! Se esse homem não fosse de Deus não poderia fazer coisa alguma.
Era irretorquível o argumento, e os fariseus, mau grado seu, bem lhe sentiram
a força. Mas, em vez de se darem por vencidos e crerem humildemente no
poder do Nazareno, recorreram a um expediente a que soem recorrer todos os
inimigos da Verdade, quando lhes faltam argumentos mais dignos: cobrirem de
injúrias o arauto da Verdade, exclamando:
Respondeu o homem:
Tornou-lhe Jesus:
Tornaram-lhe os fariseus:
Replicou-lhes Jesus:
Quer dizer: Se fosse sem culpa pessoal a cegueira do vosso espírito, como a
cegueira desse homem que acabo de curar, teria escusa a vossa
incredulidade. Mas não é o que acontece: a vossa cegueira é culpável; sóis
incrédulos, não por falta de motivos de credibilidade, mas por falta de boa
vontade! Ha anos que os meus prodígios vos estão a provar a minha missão
divina.
Hoje, como naquele tempo, continua Jesus a ser condenado pelo orgulho dos
espíritos impenitentes, através de todos os séculos e milênios da História.
O bom pastor
Punha-se, então, o pastor à testa do bando e conduzia-o para fora, aos ricos
vargedos que se alargavam para as bandas de Beth-Sahur, ou às planícies de
Esdrelon.
Quantas vezes não tinha Jesus presenciado estas cenas bucólicas na sua terra
natal! E, como costumava tomar argumento das coisas concretas para elucidar
verdades espirituais, em uma dessas tardes começou a tecer comentários
sobre a sua missão de pastor de almas.
– Em verdade, em verdade vos digo: quem não entra pela porta, mas sobe por
outra parte, é ladrão e salteador; só quem entra pela porta do redil, este é o
pastor das ovelhas. A este o porteiro lhe abre, e as ovelhas lhe compreendem
a voz; e ele chama pelo nome as que são suas e as leva para fora. Depois de
conduzir fora as suas ovelhas, vai adiante delas, e elas o seguem, porque lhe
conhecem a voz. Ao estranho, porém, não o seguem, mas fogem dele, porque
não conhecem a voz dos estranhos.
Depois de descrever esta cena real de cada dia, Jesus faz a sua aplicação
espiritual, dizendo:
E prosseguiu, dizendo:
– Eu sou a porta: quem entrar por mim se salvará; entrará e sairá e encontrará
pasto. O ladrão não vem senão para matar e destroçar. Eu vim para que
tenham a vida, e a tenham mais abundante. Eu sou o bom pastor. O bom
pastor põe a sua vida a serviço das suas ovelhas. O mercenário, porém, que
não é pastor e ao qual não pertencem as ovelhas, vê chegar o lobo, e foge; e o
lobo dispersa e arrebata as ovelhas. O mercenário foge, porque é mercenário e
não tem interesse pelas ovelhas. Eu sou o bom pastor. Eu conheço as minhas
ovelhas, e as minhas ovelhas conhecem a mim, assim como me conhece meu
Pai, e como eu conheço o Pai. Eu ponho a minha vida a serviço das minhas
ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas, que não são deste aprisco. Também a
estas devo trazê-las; e ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só
pastor.
***
“Dar a sua vida” pode significar “morrer”; mas pode significar também, como se
depreende do texto grego, “pôr a sua vida a serviço dos outros”. De fato, é
maior prova de amor pôr toda a sua vida terrestre a serviço de seus
semelhantes, do que morrer por eles de uma vez.
A pérola das orações
Respondeu-lhes Jesus:
– Quando orardes, dizei: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu
nome; venha a nós o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como
nos céus; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa-nos as nossas dívidas,
assim como também nós perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes
cair em tentação; mas livra-nos do mal.
***
“Orar” quer dizer literalmente “abrir a boca” (do latim os, oris, boca). A
verdadeira oração é uma atitude da alma, um abrimento do espírito humano
rumo ao espírito divino. Por vezes, esta permanente atitude interior pode
manifestar-se em transitórios atos exteriores; mas o principal é a atitude
interna. Neste sentido, diz o Mestre: “Orai sempre, e nunca deixeis de orar”.
Neste sentido diz ele: “Pedi e recebereis; procurai, e achareis; batei, e abrir-se-
vos-á”.
A oração não tem por fim pedir algo a Deus, ou lembrar a Deus que nos falta
isto ou aquilo, porquanto “vosso Pai celeste sabe que de tudo isto haveis
mister”. A finalidade da oração é crear no homem um estado de receptividade
própria em face de Deus, para que lhe possa acontecer o que lhe deve
acontecer.
Depois de mostrar aos seus discípulos o que deviam pedir a Deus nas suas
orações, passou Jesus a concretizar, em diversas parábolas, o modo como se
deve orar.
***
– Ó de casa!
– Quem é?
– Que deseja?
– Sim; porque chegou à minha casa um amigo que estava de viagem, e eu não
tenho o que servir-lhe.
Momentos de silêncio:
Mas os ouvintes de Jesus já sabiam como ia terminar a história dos três pães à
meia-noite; o de fora não estaria com vontade de render-se e deixar o amigo
viajante diante da mesa vazia. Por isso, continuaria a bater, a insistir e a
importunar o camarada de dentro – até que por fim de contas este se levantaria
e lhe daria quanto quisesse, se não pelo fato de ser seu amigo, em todo o caso
para se ver livre dele e da importunação.
– Assim vos digo eu: “Pedi, e recebereis; procurais, e achareis; batei, e abrir-
se-vos-á. Sim, quem pede recebe; quem procura acha; a quem bate abrir-se-
lhe-á”...
Por fim, traçando um paralelo entre o pai humano e o Pai divino conclui:
– Haverá entre vós um pai que dê a seu filho uma pedra, quando este lhe pede
pão? Que lhe dê uma serpente, quando lhe pede peixe? Que lhe dê um
escorpião, quando lhe pede um ovo? Se, pois, vós, apesar de maus, sabeis dar
coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai celeste dará o espírito
santo aos que lhe pedirem!
Fez Jesus ver, em outra parábola, que importa orar sempre e não desfalecer.
Disse:
– Vivia em uma cidade um juiz, que não temia a Deus nem respeitava homem
algum. Havia na mesma cidade uma viúva, que foi ter com ele e lhe disse:
Reivindico os meus direitos contra meu adversário! Negou-se ele a atendê-la
por algum tempo. No fim de contas, porém, disse consigo mesmo: “Verdade é
que não temo a Deus nem respeito homem algum; mas essa viúva tanto me
importuna, que lhe farei justiça, para que não acabe por vir cá meter-me as
unhas na cara”.
Era esse juiz déspota e tirano. Cônscio da sua superioridade, não tinha que dar
satisfação nem a Deus nem aos homens. Desprezava a plebe, observando
fielmente a máxima do poeta romano: Odi prolanum valgus et arceo – “odeio o
vulgacho profano e dele me afasto”.
Eis que lhe aparece a pobre viúva, defrandada nos seus bens por um homem
sem justiça nem caridade. Com a saída da casa paterna ficara ela sem a
proteção de pai e mãe, e com a morte do marido se via reduzida à completa
falta de recursos.
Mas essa mulher tinha as suas armas: tenacidade e perseverança sem limites.
Todo o mundo temia o juiz – ela não! O medo nos outros, era audácia nessa
mulher.
Ela, porém, não sabia o que fosse desânimo, e por vezes eram tão veementes
as suas palavras, tão expressivos os seus gestos, que o juiz receava um
encontro desagradável com aquela mulher tão persistente.
– “Verdade é que não temo a Deus, nem respeito homem algum; mas essa
viúva tanto me importuna, que lhe farei justiça, para que não acabe por vir cá
meter-me as unhas na cara.”
– E Deus não faria justiça a seus eleitos, quando dia e noite clamarem a ele?
Deixá-los-ia esperar muito tempo? Digo-vos que bem depressa lhes fará
justiça.
Pois, se até um juiz injusto resolve fazer justiça a quem lhe pede com
perseverança, como deixaria o Deus da justiça e do amor de atender às
súplicas de seus filhos?
Sem uma fé viva não é possível uma confiança perfeita e uma perseverança
sem desfalecimentos.
O fariseu e o publicano
Israel queria salvar-se à força de observâncias legais e não pelo amor de Deus
revelado em ética humana.
Deus, porém, resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes.
– Dois homens subiram ao templo para fazer oração: um era fariseu, o outro
publicano. O fariseu, em pé, orava assim consigo mesmo: “Eu te dou graças,
meu Deus, por não ser como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros,
nem mesmo como esse publicano aí. Eu jejuo duas vezes por semana e dou o
dízimo de tudo dos meus haveres”. O publicano, porém, conservando-se à
distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito,
dizendo: “Meus Deus, tem piedade de mim, pecador!” Digo-vos que este voltou
para casa ajustado e não o outro. Porque todo aquele que se exalta será
humilhado, e todo aquele que se humilha será exaltado.
E, assim, o perfil destes dois homens representa duas classes típicas tão
antigas como a humanidade.
O argumento era sem réplica. Era ilógico e absurdo supor que Satanás
guerreasse os seus auxiliares. É o que o Mestre faz ver aos seus insolentes
opositores.
Numerosos prodígios havia Jesus realizado aos olhos dos judeus, para provar
a sua missão divina.
Ainda assim, atrevem-se eles a exigir-lhe “sinal do céu”, como se para Jesus
fosse mais difícil produzir um sinal mirífico nas alturas do céu do que nas
profundezas da terra ou na amplidão do Universo!
– Raça perversa, essa raça – exclamou ele –; pedem um sinal!... Mas não lhes
será dado outro sinal senão o sinal do profeta Jonas. Do mesmo modo que
Jonas esteve três dias e três noites nas entranhas do monstro marinho, assim
há de também o Filho do Homem ficar três dias e três noites nas entranhas da
terra. E, assim como Jonas veio a ser um sinal para os ninivitas, assim também
o será o Filho do Homem para esta raça.
“Três dias e três noites”, ou, como diz o texto original, “três noites-dias”,
significam três períodos de luz e treva, completos ou incompletos. Pois Jesus
não esteve três dias e três noites no seio da terra.
– Ninguém acende uma luz – dizia ele – e a põe em lugar oculto, nem debaixo
do velador, mas sim sobre o candelabro, para que os que entram em casa lhe
vejam o fulgor. A luz do teu corpo é o teu olho; enquanto o teu olho for simples
estará em luz todo o teu corpo; mas, se o teu olho for mau, todo o teu corpo
estará em trevas. Cuidado, portanto, que não se torne em trevas a luz que em
ti está! Se essa luz se tornar em trevas, quão grande será essa escuridão! Mas,
se todo o teu corpo for luminoso, sem nenhum ponto escuro, então, sim, estará
tudo em plena luz, como quando o sol te ilumina com os seus fulgores.
Aqui alude Jesus, parece, ao “terceiro olho” dos iniciados, que, quando
despertado, lucifica toda a natureza humana.
Questão da herança, cuidado com a cobiça
Replicou-lhe Jesus:
Sabia Jesus que aquele grito representava a mentalidade de muitos dos seus
ouvintes, mais afeiçoados aos bens da terra do que aos tesouros do céu. Por
isso acrescentou:
– Cuidado e cautela com toda a cobiça! Ainda que alguém viva na abundância,
não é da sua fortuna que depende a vida.
– Um homem possuía um campo que lhe produzira fruto abundante. Ao que ele
se pôs a pensar consigo mesmo: “Que farei? Não tenho onde recolher os meus
frutos... Isto é que farei! Vou demolir os meus celeiros e construí-los maiores,
para abrigar toda a colheita e os meus bens. Então direi à minha alma: Agora
sim, minha alma, tens em depósito grande quantidade de bens para muitos
anos! Descansa, come, bebe, regala-te!”
Que terá pensado aquele homem que vinha pleitear questões de herança junto
ao Mestre de Nazaré?...
A providência de Deus e a
previdência dos homens
– Não vos dê cuidados a vida, o que haveis de comer; nem o corpo, o que
haveis de vestir...
Silêncio profundo...
– Considerai as aves do céu! Não semeiam, nem ceifam, não têm nem
despensa nem celeiros – Deus é que lhes dá de comer. Ora, não valeis vós
muito mais que as aves? Quem de vós pode, com todos os seus cuidados,
prolongar a sua vida por um palmo sequer? Se, pois, não sois capazes de
coisa tão pequenina, por que vos dais cuidados do mais?...
Que são as mais perfeitas obras de arte fabricadas por mãos humanas,
comparadas com as obras-primas da natureza, com as maravilhas do Creador?
– Se, portanto, Deus veste assim a erva que hoje está no campo, e amanhã
será lançada ao forno, quanto mais fará a vós, homens de pouca fé! Não
pergunteis, portanto, o que haveis de comer, o que haveis de beber, e o que
haveis de vestir; nem vos inquieteis. Os mundanos é que se entregam a esses
cuidados. Vosso Pai bem sabe que disto haveis mister. Procurai, pois, em
primeiro lugar, o reino de Deus e a sua harmonia – e tudo aquilo vos será dado
de acréscimo.
Sempre alerta
– Não temais, pequenino rebanho, pois aprouve a vosso Pai dar-vos o reino!
– Vendei os vossos haveres e dai esmola. Tratai de adquirir bolsas que não
envelheçam, e um tesouro imperecível nos céus, que o ladrão não rouba nem a
traça corrói; porque, onde está o vosso tesouro, aí está também o vosso
coração.
Pelo que tinham ouvido, bem podiam os discípulos concluir que seu Mestre não
viera ao mundo para levar uma vida cômoda e regalada, mas que o seu destino
era o de servir.
E esta mesma sorte lhes caberia também a eles, se é que queriam ser dignos
discípulos dele; pois, como dizia Jesus, o discípulo não está acima de seu
mestre, nem o servo é mais que seu senhor.
– Pensais que vim trazer paz à terra? Não, digo-vos eu, mas a separação!
Daqui por diante, haverá discórdia entre cinco que se acharem na mesma
casa; três contra dois, e dois contra três; pai contra filho, e filho contra pai, mãe
contra filha, e filha contra mãe; sogra contra nora, e nora contra sogra. Há de o
irmão entregar à morte o irmão, e o pai ao filho; há de o filho revoltar-se contra
o pai e tirar-lhe a vida. Por causa de meu nome sereis odiados de todos. Mas
quem perseverar até o fim, esse será salvo.
Jesus, certamente, é o príncipe da paz, e nem a sua vida nem a sua doutrina
desmentiram jamais o jubiloso hino entoado pelos mensageiros celestes sobre
a gruta de Belém: “Paz na terra aos homens de boa vontade!” A saudação de
Jesus é invariavelmente esta: “A paz seja convosco!” As instruções e diretivas
que ele dá a seus missionários são a mesma recomendação: “Quando
entrardes numa casa dizei em primeiro lugar: A paz seja com esta casa”. E, na
hora fatídica do Getsêmani, quando Simão Pedro arrancou da espada, teve de
ouvir dos lábios do Mestre a ordem categórica de embainhar a espada, porque
o cordeiro de Deus queria ir ao matadouro, sem uma palavra de protesto, sem
um gesto de defesa.
Pouco antes da sua morte, deixou Jesus este testamento de paz e de alegria a
seus discípulos: “Eu vos dou a paz; eu vos deixo a minha paz, para que a
minha alegria esteja em vós; e seja perfeita a vossa alegria, e nunca ninguém
tire de vós a vossa alegria”.
Sim, Jesus vinha trazer a paz ao mundo, mas não era amigo de uma “paz
podre”, de uma paz covarde e cômoda, e sim da paz da consciência
conquistada e mantida à custa de sacrifícios e renúncias. “Deixo-vos a paz,
dou-vos a minha paz; mas não a dou como o mundo a dá...”
Viera ele à terra trazer o gládio cortante dos grandes heroísmos, espada
flamejante do idealismo, o fogo divino do entusiasmo que, qual incêndio
mundial, abrasasse os corações e envolvesse tudo nas suas labaredas.
– Eu vim para lançar o fogo à terra – e que quero eu senão que arda?
Por isso, suspirava Jesus por ver chegada essa hora bendita do sacrifício final:
Os galileus eram de gênio vivo e fogoso. Por ocasião das grandes solenidades
de Israel, manifestava-se não raro, em explosões de entusiasmo religioso-
nacional, a índole desse povo teocrático, que sentia ferver o ódio aos
usurpadores de além-mar. Qual afronta perene e desafio ao patriotismo de
Israel, lá estava encravada em um ângulo da muralha do templo a fortaleza
romana, o ominioso “castelo Antônia”, com a guarnição militar dos Césares
sempre pronta a acudir ao primeiro aceno do governador pagão, chamar à
ordem os judeus, e fazer-lhes sentir que eram escravos de uma dominação
estrangeira. Repetidas vezes mencionam os historiadores desordens e motins,
por ocasião de grande afluência popular em Jerusalém. Em vista disso,
costumavam os governadores romanos transferir a sua residência, nesses
dias, de Cesaréia para Jerusalém, ocupando o palácio de Herodes, ou a
referida fortaleza.
Foi provavelmente por ocasião de uma dessas festas que Pilatos fez matar
bom número de galileus desordeiros, no próprio templo, misturando o sangue
deles com o sangue das vítimas que jaziam sobre o altar dos holocaustos. Não
é crível que o governador os tratasse tão duramente se eles não tivessem
provocado algum motim. É possível que Herodes Antipas se desgostasse do
modo sumário por que foram mortos súditos seus, nesta ocasião; pois
sabemos que os dois soberanos se desavieram e só se reconciliaram por
ocasião do processo de Jesus, na sexta-feira daquela Páscoa.
– Pensais vós que esses galileus eram pecadores maiores do que os demais
galileus, por terem sofrido isto? De modo nenhum, vos digo eu. Mas, se vós
não vos converterdes, perecereis também vós.
Mas isso de conversão era palavra dura aos ouvidos dos judeus.
Resolveu, então, Jesus, propor uma parábola incisiva sobre este assunto: a
impenitência de Israel através dos séculos.
A figueira estéril
Dizia o Mestre:
– Um homem tinha uma figueira plantada no meio de uma vinha. Veio buscar-
lhe fruto, mas não o encontrou. Disse então ao jardineiro: Há três anos que
venho procurando fruto nesta árvore e não o encontro. Corta-a, pois; para que
ocupa ainda o terreno?
Respondeu-lhe o jardineiro:
– Senhor, deixa-a ainda este ano; vou cavar em derredor e deitar adubo, a ver
se chega a frutificar; se não, corto-a depois.
***
Nunca existiu no mundo um povo que tenha sido tão cumulado de favores
como o de Israel. Séculos e milênios de milagres, profecias e revelações...
Para que deixar ainda viver essa árvore? Rouba a seiva às videiras, e a
ninguém é proveitosa. Melhor é cortá-la e lançá-la ao fogo. Não merece o lugar
que ocupa...
E foi ele mesmo cavando o terreno daqueles corações. Rasgou-o com o arado
férreo das suas ameaças: “Ai de vós, fariseus hipócritas! Não escapareis à ira
de Deus.”
Iluminou aquela figueira estéril com a luz da sua doutrina. “Eu sou a luz do
mundo; quem me segue não anda em trevas.”
Respondeu-lhes Jesus:
– Bem vo-lo disse, mas não tendes fé. As obras que faço em nome do meu Pai
é que dão testemunho de mim. Vós, porém, não tendes fé, porque não sois do
número das minhas ovelhas. As minhas ovelhas prestam ouvido a minha voz;
eu as conheço, e elas me seguem; dou-lhes a vida eterna, e não se perderão
eternamente, e ninguém as arrebata da minha mão. Meu Pai, que mas deu, é
maior que todos, e ninguém as pode arrebatar das mãos de meu Pai. Eu e o
Pai somos um.
Tinham os judeus pedido uma resposta clara sobre a natureza de Jesus, e ele
lha deu, insofismável: “Eu e o Pai somos um”.
Os judeus não tenham idéia exata do Cristo cósmico; para eles só existia o
Jesus humano, como até hoje acontece em muitas sociedades teológicas e
espiritualistas. Evidentemente, a pessoa humana de Jesus não era Deus. O
Cristo, porém, é a primeira e mais perfeita individuação da Divindade Universal,
que se pode chamar Deus: neste sentido Jesus chama “deuses” todos os
homens, como emanações individuais da Divindade.
Quem confunde Deus com Divindade e Jesus com o Cristo não pode
compreender o Evangelho.
– Muitas boas obras vos tenho mostrado pela virtude de meu Pai; por qual
dessas obras quereis apedrejar-me?
Replicaram-lhe os judeus:
– Não é por nenhuma boa obra que te apedrejamos, mas, sim, por causa da
blasfêmia, porque tu, sendo homem, te fazes Deus.
De maneira que o motivo último e decisivo por que mataram Jesus foi a
profissão do seu Cristo. Caifás, em plena sessão do Sinédrio, dirige ao
acusado esta intimação solene: “Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se
tu és o Cristo, o Filho de Deu bendito!” E Jesus responde de modo claro e
conciso: “Sim, eu o sou”. E Caifás exclama: “Blasfemou! É réu de morte!”
– Não está escrito na vossa lei: “Disse eu: Vós sois deuses”? Ora, se a
Escritura chama deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus – e não
é possível abolir a Escritura –, acaso podeis afirmar que blasfema aquele a
quem o Pai santificou e enviou ao mundo, por eu dizer: Eu sou Filho de Deus?
Retirada para Peréia
Mais uma vez procuraram os judeus prender a Jesus – por ter afirmado ser
Deus – “ele, porém, lhes fugiu das mãos”.
E deixou-se ficar por algum tempo nessa região, mais tranquila, longe do foco
das hostilidades. Denominava-se Peréia esse território, e estendia-se desde as
margens do lago de Genesaré até o litoral do Mar Morto, ocupando toda a zona
oriental d’além-Jordão. Era da jurisdição de Herodes Antipas, tetrarca da
Galiléia.
Ainda estava bem viva na memória do povo a pregação de João Batista, que
por ali andara como uma tempestade de Deus, falando em Jesus.
– Verdade é que João não fez milagres, mas tudo que disse a respeito dele
está se comprovando verdadeiro.
***
Pergunta infinitas vezes repetida, desde que a boa nova da Redenção soou
pelas terras da Palestina. Mil vezes foi suscitada esta pergunta, tão momentosa
quão ociosa: são poucos os que se salvam?
O único homem que nos poderia dar resposta certa seria Jesus. Mas ele nunca
respondeu a semelhante pergunta, do mesmo modo que não quis indicar o
tempo do juízo final.
É esta a solução ética da questão sobre o pequeno ou grande número dos que
se salvam.
Não viam os fariseus com bons olhos a atividade apostólica de Jesus nas
regiões da Peréia, onde o povo simples do campo o escutava com avidez, e
frustrava qualquer atentado contra ele. Os inimigos do Nazareno suspiravam
pelo dia em que o pudessem prender clandestinamente em Jerusalém, sem
alarmar o povo, sempre amigo dele, “essa plebe maldita que não conhece a
lei”, como se dizia no Sinédrio.
Foram, pois, ter com Jesus, mascarados como sempre, e lhe disseram com
fingida solicitude:
Jesus ouve tranquilamente a ameaça; mas não se perturba; vai à morte, sim,
mas vai quando ele quer, e não quando o querem os seus inimigos; a sua obra
é obra de Deus, e não dos homens.
– Ide, e dizei a essa raposa: Eis que vou expulsando demônios e realizando
curas, hoje e amanhã; no terceiro dia, porém, estarei no termo. Mas, hoje,
amanhã e no dia seguinte tenho de caminhar; porque não convém que um
profeta pereça fora de Jerusalém...
Vibra nestas últimas palavras uma discreta ironia. Jerusalém gozará do triste
privilégio de assassinar o Filho Unigênito de Deus, assim como assassinou os
mensageiros de Deus, no Antigo Testamento. Por isso, independentemente
das ameaças desse homem astuto que é Herodes, não tardará o Cordeiro de
Deus a demandar a capital dos pais, para se apresentar no matadouro...
– Declaro-vos que já não me vereis até que chegue o tempo em que direis:
“Bendito seja o que vem em nome do Senhor!”
Cura de um hidrópico.
Os primeiros lugares
Certo dia, ainda na Peréia, foi Jesus convidado a um banquete por um dos
fariseus do lugar. Era em dia de sábado.
– Se a algum de vós cair no poço um burro ou um boi, não o tirará logo, mesmo
em dia de sábado? Se é lícito – e quem ousaria negá-lo? – acudir a uma
creatura irracional, em dia de sábado, por que seria pecado arrancar de uma
longa enfermidade uma creatura racional?
***
– Pois todo aquele que se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será
exaltado.
Caridade social desinteressada
– Quando tiveres convivas à tua mesa, não sejam eles teus amigos, nem teus
irmãos, nem teus parentes, nem os vizinhos ricos; para que não te convidem
eles, por seu turno, e assim te paguem. Não, quando deres um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Feliz de ti! Porque esses
não têm com que te retribuir; mas terás a tua retribuição na ressurreição dos
justos.
– Sai pelos caminhos e cercados, e obriga a gente a entrar, para que se encha
a minha casa. Pois declaro-vos que nenhum daqueles homens que tinham sido
convidados provará o meu banquete.
***
Nada mudou nestes quase dois mil anos; os homens profanos são os mesmos.
Para que alguém aceite com gosto o banquete do mundo espiritual, deve ele
ter uma profunda experiência de si mesmo; deve ser um “iniciado”, deve ter
autoconhecimento – e quantos o têm?
Parábola da torre e da empresa bélica
Jesus reconhece a boa vontade desses homens; mas logo lhes faz ver que o
seu apostolado neste mundo não desliza por entre flores e salas de banquetes,
mas é um campo de batalha cheio de sangue, é um caminho estreito cheio de
espinhos.
Passa o Mestre a ilustrar essa verdade por meio de duas comparações tiradas,
uma, da vida dos arquitetos, a outra do ambiente militar.
– Qual de vós, querendo construir uma torre, não fará primeiro, mui de assento,
o orçamento, a ver se dispõe dos meios necessários para a obra? Senão,
depois de lançar os fundamentos, lhe será impossível terminar a obra, e toda a
gente que o vir zombará dele, dizendo: Este homem começou uma construção,
e não a pôde levar a cabo.
– Qual o rei que, indo empreender uma guerra contra outro rei, não calcula
primeiro, mui de assento, se com dez mil homens pode sair a campo contra
quem vem atacá-lo com vinte mil? No caso contrário, mandará uma embaixada
enquanto o outro ainda está longe, solicitando convênios de paz.
Do mesmo modo, não pode nenhum de vós ser meu discípulo, se não
renunciar a tudo quanto possui.
***
– Qual de vós, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa
e nove no deserto e vai no encalço da que se perdeu até a encontrar? E,
tendo-a encontrado, põe-na aos ombros cheio de alegria e, de volta a casa,
reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Congratulai-vos comigo, porque
encontrei a ovelha que se perdera. Digo-vos que, do mesmo modo, haverá
maior júbilo nos céus por um pecador que se converte do que por noventa e
nove justos que não necessitam de conversão.
– Qual a mulher que, possuindo dez dracmas e perdendo uma, não acende a
candeia, não varre a casa e procura com afinco até a encontrar? E, tendo-a
encontrado, convoca as suas amigas e vizinhas, dizendo: Congratulai-vos
comigo, porque encontrei a dracma que perdera.
Deus não somente quer bem à humanidade em globo, mas a cada homem em
particular; cada alma lhe merece tão vivo interesse, como se outras não
existissem.
O filho pródigo
Passados poucos dias, o filho mais moço juntou todos os seus haveres e partiu
para uma terra longínqua. Aí esbanjou a sua fortuna em uma vida dissoluta.
Depois de haver dissipado tudo, sobreveio uma grande fome àquele país, e ele
começou a sofrer necessidade. Retirou-se então e pôs-se a serviço de um dos
cidadãos da terra, o qual o mandou para os seus campos guardar os porcos.
Ansiava ele por encher o estômago com as vagens que os porcos comiam;
mas ninguém lhas dava.
O pai, porém, ordenou a seus servos: “Depressa, trazei o mais precioso traje e
vesti-o! Ponde-lhe um anel no dedo e sapatos nos pés. Buscai também o
novilho gordo e carneai-o. Comamos e banqueteemo-nos porque este meu
filho estava morto e ressuscitou; andava perdido e foi encontrado”.
E começaram a banquetear-se.
Indignou-se ele e não quis entrar. Saiu então o pai e começou a insistir com
ele. O filho, porém, respondeu: – Há tantos anos que te sirvo e nunca
transgredi nenhum dos teus mandamentos; e jamais me deste um cabrito para
eu me banquetear com meus amigos. Mas, logo que chegou este teu filho, que
dissipou os teus bens com meretrizes, mandaste-lhe carnear o novilho gordo.
– Meu filho – tornou-lhe o pai –, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é
teu. Mas não podíamos deixar de celebrar festa e banquete; porque este teu
irmão estava morto, e reviveu; andava perdido, e foi encontrado.
***
Nesta rainha das parábolas representa Jesus dois homens, ou melhor, duas
humanidades: uma que passou pela evolução do ego mental e atingiu as
alturas do Eu espiritual, e outra que estagnou no plano pré-evolutivo.
O filho pródigo passou pela “culpa feliz” e pelo “pecado necessário” de que fala
o hino pascal do Exultat; chegou ao autoconhecimento e à auto-realização, e
por isto o pai (Deus) lhe faz tamanha festa, que naturalmente não pode ser
compreendida pelo homem que ainda não passou pelo autoconhecimento e
pela auto-realização. Por isto, o filho não-realizado não chama o outro de
“irmão”, porque não havia afinidade entre os dois.
É natural que o pai (Deus) não dissuada o filho de iniciar a sua vida-ego; nem
aparece em toda a história uma mãe.
Tornou aquele: “Rogo-te, pai, que o mandes à minha casa paterna; tenho cinco
irmãos; que os previna para que não venham também eles parar neste lugar de
tormentos”.
“Não, pai Abraão”, replicou ele; “mas, se um dos defuntos for ter com eles,
converter-se-ão.” Disse-lhe Abraão: “Se eles não dão ouvidos a Moisés e aos
profetas, tampouco se converterão quando alguém ressuscitar dos mortos”.
***
Nesta bela parábola, como acontece sempre nas do gênero doutrinário, muitas
verdades aparecem em rajos metafóricos.
Para exprimir que o condenado é privado até do mais insignificante alívio, diz
Jesus, concreta e plasticamente, que não lhe foi concedida sequer uma gotinha
d’água para refrescar a ponta da língua – a língua, o paladar, de que tanto
abusara nos lautos banquetes, sem atender às necessidades dos indigentes.
Simão Pedro, gênio impetuoso e sempre pronto a avantajar-se aos outros, quis
mostrar-se ótimo discípulo de tão grande mestre e, saindo da roda dos
companheiros, perguntou, como num acesso de generosidade:
– Senhor, quantas vezes tenho de perdoar a meu irmão que me ofender? Até
sete vezes?
Cuidava ele que isto fosse o máximo do heroísmo: perdoar sete vezes a seu
ofensor!
Traduzindo esta locução aramaica em nossa língua diríamos: Mil vezes deves
perdoar, isto é, todas as vezes que teu ofensor te pedir sinceramente.
– O reino dos céus é semelhante a um rei que quis tomar contas a seus servos.
E, ao começar a tomada de contas, apresentaram-lhe um que lhe devia dez mil
talentos. Mas, como não tivesse com que pagar, ordenou seu senhor que o
vendessem, ele, sua mulher e seus filhos, todos os seus haveres, e com isso
saldassem a dívida. O servo, porém, lançou-se-lhe aos pés, suplicando: “Tem
paciência comigo, que te pagarei tudo!” Compadecido do servo, o rei o pôs em
liberdade e perdoou-lhe a dívida! Saindo fora, encontrou o servo um dos seus
companheiros, que lhe devia cem denários. Agrediu-o e ameaçou estrangulá-
lo, dizendo: paga o que me deves! “O companheiro prostou-se-lhe aos pés,
suplicando: “Tem paciência comigo, que te pagarei tudo!” O outro, porém, não
quis; mas foi-se e o mandou lançar ao cárcere até que houvesse pago a dívida.
Contristaram-se profundamente os outros servos, que tinham presenciado o
caso, e foram dar parte a seu senhor de tudo o que acabava de acontecer.
Então o senhor o mandou vir à sua presença e assim lhe falou: “Servo mau!
Perdoei-te toda a dívida, porque me pediste: não devias, portanto, também tu
ter compaixão de teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” E,
indignado, entregou-o aos carrascos, até que houvesse pago toda a dívida.
Era no mês de fevereiro do último ano da vida terrestre de Jesus. Estava para
terminar a sua missão na Peréia. Enquanto o Mestre ia dando as suas últimas
instruções àquela gente simples e reta d’além Jordão, chegou um homem,
exausto de fadiga e coberto de pó, e a largos passos se aproximou do Mestre.
Parecia trazer algum recado urgente.
Fora enviado por Marta e Maria, para cientificar o divino Mestre da moléstia de
Lázaro, irmão das duas.
“Aquele que amas” – era argumento suficiente. Poderá, acaso, o amigo deixar
sofrer a seu amigo querido?
– Esta enfermidade não leva à morte, mas é pela glória de Deus, para que por
ela seja glorificado o Filho de Deus.
– Não são doze as horas do dia? Quem caminha de dia não tropeça, porque vê
a luz deste mundo; mas quem caminha de noite tropeça, porque lhe falta a luz.
O “dia” era para Jesus o tempo da sua vida terrestre: a “noite” era a morte.
Enquanto a luz serena do dia iluminava os caminhos que o Pai lhe marcara,
nenhum perigo havia para o solitário viandante, nem escribas, nem fariseus,
nem sacerdotes, nem doutores da lei, inimigo algum lhe podia fazer mal,
porque o Pai não o permitia, e em face da onipotência divina toda a potência
humana é impotência. Mais tarde, porém, o Pai permitiria que caíssem sobre
Jesus as sombras crepusculares do sofrimento e a noite cerrada da morte. E já
não vinha longe essa hora do declínio. Por isso disse Jesus: – Vamos a
Jerusalém!
E acrescentou:
– Lázaro morreu. E eu folgo, por causa de vós, de não ter estado presente,
para que tenhais fé.
– Vamos vê-lo!
Entreolharam-se os discípulos, hesitantes e apreensivos. Rumo a Jerusalém?...
Desafiar seus mortais inimigos?
Ia, então, Jesus ao encontro da morte, calmo, resoluto e firme, assim como os
heróis marcham em demanda do seu destino.
“Muitos judeus tinham vindo visitar Maria e Marta para as consolar da morte de
seu irmão” – pois era uma família distinta e estimada de todos. Ninguém
deixara de dar os pêsames às boas irmãs do extinto. Todos se mostravam
amigos – só Jesus não atendera ao discreto apelo que lhe fora dirigido por
aqueles corações dedicados e doloridos... Nem mesmo comparecera ao
enterro do amigo... Tão dolorosa é, muitas vezes, a pedagogia de Deus com as
almas que mais o amam...
– Mas também agora sei que Deus te concederá tudo o que lhe pedires...
Respondeu-lhe Jesus:
Jesus profere corajosamente aquela palavra que Marta não ousara pôr-lhe na
boca: a palavrinha “ressurgirá”! Mas... esta palavra podia ter sentido duplo... e
Marta desejaria tanto ter resposta clara e indubitável...
Por isso, em vez de perguntar explicitamente o que lhe pedia o seu amor de
irmã, responde a Jesus o que lhe ditava a sua reverente discrição.
Jesus não lhe satisfaz a tácita pergunta. Em vez disso responde com uma frase
evasiva:
– Eu sou a ressurreição e a vida; quem tem fé em mim viverá, ainda que tenha
morrido; e quem em vida tem fé em mim não morrerá eternamente.
– Tens fé nisto?
– Sim, Senhor, eu tenho fé que tu és o Cristo, Filho de Deus vivo, que devia vir
ao mundo.
***
Mandou Jesus a Marta que chamasse sua irmã. E ela, pressurosa, foi ter com
Maria, sentada em casa, no meio de pessoas amigas, e lhe disse baixinho ao
ouvido:
Repete as mesmas palavras que Marta proferira; pois era este o estribilho que,
dia e noite, tinham trocado entre si aquelas duas almas angustiadas: Se o
Mestre estivesse aqui, não morreria nosso irmão...
Não lho sofreria o bondoso coração... Tê-lo-ia curado, como curou tantos
outros...
Tão dolorosa e emocionante era a cena, que no meio daquele grande silêncio
só se ouviam soluços e prantos...
– Onde o colocaste?
Tornou-lhe Jesus:
– Meu Pai! Eu te dou graças porque me atendeste! Eu bem sabia que sempre
me atendes; mas por causa do povo que está em derredor é que o disse para
que tenham fé que tu me enviaste.
“Saiu incontinenti o que estivera morto, trazendo os pés e as mãos ligados com
ataduras, e o rosto envolto em um sudário.”
***
Onde o milagre acordou ecos mais lúgubres foi no interior do Sinédrio, Senado
e Supremo Tribunal Religioso de Israel. Os sacerdotes viam no crescente
prestígio do Nazareno uma ameaça e um perigo para a sua posição e
influência.
– Que faremos? Pois esse homem faz tantos milagres! Se o deixarmos nesse
andar, acabarão todos por crer nele; e então virão os romanos tirar-nos a
nossa terra e a nossa gente.
Conclusão estranha! Que tinha que ver a política com os prodígios de Jesus? A
que vem essa alusão ao dominador estrangeiro?
Isto diziam eles à boca cheia; mas lá entre si discutiam outros motivos, ditados
pela ambição e pelo amor-próprio.
– Vós não sabeis coisa alguma! Nem considerais que mais vos convém morrer
um homem pelo povo do que perecer toda a nação!
O que Caifás queria dizer era ser preferível matar Jesus a expor ao perigo de
uma sublevação e consequente extermínio todo o povo de Israel.
Jesus sabia de tudo; mas não se perturbou com as tramas dos seus
adversários; continuou a cruzar as terras da Palestina, espalhando a sua
doutrina.
Mas essa retirada e essa solidão não passavam da calma lúgubre que costuma
preceder a tempestade.
A lepra é uma das moléstias mais terríveis que há; faz apodrecer aos poucos
os tecidos orgânicos, desfigura a pessoa e embota as faculdades mentais.
Naquele tempo, eram os leprosos banidos da sociedade humana, em vista do
caráter contagioso dessa moléstia; viviam na solidão dos desertos; tinham
lugares determinados onde vinham procurar o alimento previamente colocado
por almas piedosas; quando avistavam uma pessoa na vizinhança, tinham de
bradar: impuro! impuro! a fim de a pôr de sobreaviso. Segundo a lei mosaica,
passava o leproso, além de enfermo, também por legalmente impuro; era-lhe
vedado pôr os pés em lugar sagrado ou tocar em qualquer objeto destinado ao
culto divino. Levados pelo instinto de sociabilidade, e impelidos pela miséria
comum, arrebanhavam-se os infelizes, formando grupos.
E a sorte lhes foi propícia. Não tardou que transitasse por ali o Nazareno
acompanhado dos seus discípulos.
Jesus parou e escutou por alguns momentos aquele concerto trágico de vozes
rouquenhas, e contemplou os gestos convulsivos que aquelas mãos
estropiadas executavam no ar, a fim de realçarem a veemência da súplica. Mas
– coisa estranha! – em vez de proferir a palavra salvadora: “Eu quero, sede
limpos!” ou esta outra: “Ide em paz, a vossa fé vos salvou!”, em vez disto, dá-
lhes a ordem lacônica e fria:
Apenas um dos dez, impelido pelo sentimento de gratidão, foi ter com Jesus e,
prostrando-se-lhe aos pés, lhe agradeceu a cura... E este era samaritano.
Perguntou Jesus: “Não ficaram limpos os dez? E os nove onde estão? Não
houve quem voltasse e desse glória a Deus senão só esse forasteiro?”
– O reino de Deus não vem com aparato exterior; nem se pode dizer: Ei-lo
aqui! ou: Ei-lo acolá! porque o reino de Deus está dentro de vós.
Uma e muitas vezes inculca Jesus a idéia de que o reino de Deus consiste na
realização integral do indivíduo; e isto não se faz com espalhafato e aparato
exterior, senão por meio de uma profunda compreensão interior. O reino de
Deus principia com autoconhecimento e culmina em auto-realização.
Assim como o fermento penetra toda a massa, sem que ninguém possa ver
nem apalpar essa misteriosa força transformadora; assim como o princípio vital
de um grãozinho vivo atua ab intrinseco, fazendo crescer a planta, em um lento
e progressivo aperfeiçoamento de cada uma das suas células, de cada um dos
seus órgãos – assim acontece também com o reino messiânico, aqui no
mundo: a sua atividade é toda de dentro para fora; a sua causa é invisível, mas
os seus efeitos patenteiam-se aos olhos de todos.
Naqueles dias, um homem conspícuo repudiou sua mulher, por motivo fútil,
causando grande alvoroço e comentários. Logo se formaram partidos pró e
contra ele.
Uma das questões mais debatidas era a do divórcio e suas causas legítimas.
Replicou-lhes Jesus: “Por causa da dureza dos vossos corações é que Moisés
vos deu esta permissão. Mas não lestes que no princípio da creação, quando
Deus fez os homens, os fez varão e mulher? E disse: Por isso deixará o varão
pai e mãe para aderir à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne.
Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Ora, o que Deus uniu, não é
permitido ao homem separá-lo”.
Os discípulos fizeram ver às mães que o Mestre estava cansado e não podia
atender às crianças. Por via de regra, os grandes deste mundo, os que brilham
nos pináculos da História e dirigem os destinos da humanidade, não têm tempo
a perder com os pequeninos; cada minuto vale ouro.
Jesus, porém, tem tempo de sobra para se entreter com crianças, brincar com
elas, fazer-se pequeno com os pequenos, “perder o seu tempo”.
– Deixai que venham a mim as crianças, e não lhas embargueis; porque de tais
é o reino dos céus.
Toda criança é filha de Deus, e não do diabo. O Mestre ignora totalmente o tal
“pecado original”.
O jovem rico
Quando se dispunha a sair – eis que acorre a ele um jovem distinto, prostra-se
aos pés e exclama:
– Bom Mestre, que bem devo praticar para alcançar a vida eterna?
A julgar pela atitude, esse jovem se achava sob a impressão de algum grande
acontecimento; talvez tivesse lutado consigo mesmo, até que de repente lhe
despontara na alma uma grande luz; e ele, com o coração a transbordar de
emoção, foi ter com o Mestre, encontrando-o justamente a ponto de deixar a
casa.
A resolução do moço parecia não admitir delongas. Não pede licença, não
pergunta se a ocasião é propícia – precisa falar a Jesus com urgência!...
Respondeu-lhe Jesus:
– Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não levantarás falso
testemunho, honrarás pai e mãe, amarás o próximo como a ti mesmo...
Grande decepção!
Parece que esse jovem ainda ignorava que a suprema sabedoria se revela, de
preferência, na extrema simplicidade.
Falava a verdade. Tinha sido uma criança modelo, um menino exemplar; nem
mesmo as tentações da mocidade tinham conseguido manchar-lhe a alma.
E acrescentou ansioso:
– Se queres ser perfeito, vai, vende todos os teus bens e dá-os aos pobres – e
terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me.
Jesus seguiu-o com os olhos, taciturno, até perdê-lo de vista numa volta do
caminho...
Depois da retirada do jovem rico, quedou-se Jesus ainda por algum tempo,
como que absorto em dolorosas cogitações.
– Como é difícil, filhos meus, entrarem no reino de Deus os que põem a sua
confiança nas riquezas!... Mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma
agulha do que entrar um rico no reino de Deus!...
Quando os discípulos ouviram que mais difícil era entrar um rico no céu do que
passar um camelo pelo fundo de uma agulha, ainda mais se aterraram e
começaram a dizer uns aos outros:
– Para os homens é isto impossível – respondeu Jesus –, mas não para Deus;
porque a Deus tudo é possível.
Quer dizer: Deus pode fazer com que um escravo do dinheiro se converta num
homem “pobre pelo espírito”, livre e desapegado dos bens caducos da terra.
Mas, enquanto o homem continuar a “pôr a sua confiança nas riquezas” e fazer
delas o seu ídolo, nem Deus o pode salvar; a boa vontade do homem é
indispensável.
Não era muito esse tudo que o pescador da Galiléia deixara: uma velha barca,
umas redes rotas, alguns remos e pouco mais; mas, afinal de contas, era tudo;
e para alguém muito pobre é mais difícil abandonar a sua querida choupana do
que para o ricaço deixar os seus suntuosos palácios; e mais duro nos pode ser
renunciar ao pouco que sonhávamos ganhar do que ao muito que possuíamos;
porque muitas vezes a esperança do futuro é mais deliciosa do que o fausto do
presente.
Respondeu Jesus:
– Em verdade vos digo que todo aquele que por causa de mim e do Evangelho
deixar casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filho, ou campo –
receberá, já nesta vida, não obstante perseguições, o cêntuplo e, no mundo
futuro, terá a vida eterna.
Os trabalhadores da vinha
O trabalho do homem nunca é causa daquilo que Deus lhe dá, mas simples
condição; a causa é unicamente Deus. Nenhum homem tem direito, e Deus
não tem obrigação alguma.
Nenhum homem pode merecer o céu, porque não vigoram entre o homem e
Deus relações de ordem jurídica. O que Deus dá é graça imerecida, que o
homem não pode causar ou merecer.
A pretensão dos filhos de Zebedeu
Diversas vezes já tinha Jesus falado da sua morte. Desta vez, porém, o quadro
saiu mais negro que nunca, em atenção às coisas horrorosas que iam preceder
o seu fim trágico.
Perguntou-lhe Jesus:
Respondeu a consulente:
– Ordena que meus dois filhos, no reino da tua glória, se sentem um à direita, e
outro à esquerda.
Não era pouco o que Salomé pedia para seus filhos; nada menos que os
postos de primeiro e segundo ministros do reino que ia fundar. Coração de mãe
não conhece limites quando se trata do bem de seus filhos – e aqueles dois
moços eram inegavelmente, a seus olhos, os dois homens mais competentes e
como que talhados para ocupar as pastas de “Ministro do Exterior” e de
“Ministro da Fazenda” no glorioso reino em perspectiva...
Não faz referência à pessoa de Simão Pedro, embora tivesse em mente esse
perigoso rival de seus filhos; evita delicadamente aludir a um homem que
ocupava lugar saliente nos planos do Nazareno.
Bem sabia Jesus que a petição não era somente da mãe, mas antes de tudo
de Tiago e de João; por isso, dirigindo-se a esses lhes disse:
– Podeis beber o cálice que eu vou beber? E ser mergulhados como eu vou
ser?
Estava Jesus para beber o cálice mais amargoso que já sorveram lábios
humanos... Todas as angústias do Getsêmani, todos os horrores do pretório
iam penetrar as fibras do seu ser, assim como uma bebida venenosa ateia
incêndios nas entranhas de quem a ingere...
“Não sabeis o que pedis”, dissera Jesus; e bem pudera acrescentar: “Não
sabeis o que prometeis”.
– Sim, bebereis o cálice que eu vou beber; fareis o mergulho que eu vou fazer;
mas isto de vos conceder os lugares à minha direita e à minha esquerda não é
comigo: compete àqueles a quem meu Pai os destinou.
Pelo que Jesus os chamou a si e lhes disse: “Sabeis que os príncipes dos
gentios dominam os seus súditos, e os grandes exercem poder sobre eles.
Entre vós, porém, não há de ser assim, mas quem dentre vós quiser ser o
primeiro seja o servidor de todos. Também o Filho do Homem não veio para
ser servido, mas, sim, para servir e pôr a sua vida a serviço de muitos”.
O cego à entrada de Jericó
Não era por acaso que o pobre homem lá estava; porque aquela estrada, uma
das mais frequentadas, fervilhava de peregrinos com destino a Jerusalém,
onde iam assistir às solenidades pascais. O mendigo de olhos apagados
contava ganhar, nesses dias movimentados, uns bons punhados de siclos com
que prolongar a sua existência triste.
Ouvindo o tropel de gente que passava, perguntou o que era aquilo. Disseram-
lhe que vinha passando Jesus de Nazaré.
Esse nome não lhe era desconhecido; mais de uma vez tinha ouvido falar
nesse taumaturgo, que restituíra a luz dos olhos a diversos companheiros seus
de infortúnio.
“Filho de Davi” era o título oficial do Messias prometido na lei antiga; pois,
como homem, era Jesus descendente da estirpe davídica. Parece que este
cego via mais claro que muitos dos judeus dotados de dois olhos.
“Os que vinham à frente repreenderam-no, para que se calasse. Ele, porém,
clamava cada vez mais: – Filho de Davi, tem piedade de mim!”
Mal soube Zaqueu que Jesus vinha entrando na cidade, abriu mão da sua
papelada e correu à rua para vê-lo.
Mas, como era de pequena estatura, não logrou o seu intento; só viu em
derredor de si corpos humanos, que lhe tolhiam a perspectiva. Zaqueu, porém,
era homem habituado a achar solução a todas as dificuldades. Resolutamente,
o diretor da alfândega de Jericó correu para diante, onde existia uma figueira –
e, lesto como um garoto, subiu pelo tronco da árvore e encarapitou-se num dos
galhos aguardando o momento em que Jesus passasse ao pé do seu
observatório improvisado.
Também Zaqueu tinha a intuição de que aquela casa não era o lugar mais
apropriado para hospedar um profeta como Jesus. E fez o que no momento lhe
foi possível para tornar a sua vivenda um pouco menos indigna; à entrada pôs-
se diante do Mestre e disse-lhe:
– Senhor, darei aos pobres metade da minha fortuna e, se defraudei alguém,
restituirei o quádruplo.
Restituir quatro vezes mais era a pena que a lei romana e, em certos casos,
também o código de Israel impunham aos ladrões arguidos de injustiças.
Zaqueu é juiz e acusador de si próprio.
– Hoje entrou a salvação nesta casa, porque também ele é filho de Abraão.
Pois o Filho do Homem veio para procurar e salvar o que se perdera.
As dez minas
Resolveu Jesus deitar água na fervura, fazendo ver que cada um dos seus
discípulos teria de passar por um período de prova e crise, antes de entrar no
reino da glória. E, revestindo de trajos alegóricos o seu pensamento, propôs a
seguinte parábola:
E mandou chamar os servos aos quais entregara o dinheiro para saber que
negócio fizera cada um.
Prosseguiu Jesus:
– Veio o primeiro servo e disse: – Senhor, a tua mina rendeu mais dez minas.
– Muito bem, servo bom – respondeu-lhe ele –, porque foste fiel no pouco,
serás senhor de dez cidades.
Vê-se que esses servos têm modos e educação; não dizem: Eu ganhei dez,
cinco minas, mas sim: A tua mina ganhou...
Veio o terceiro e disse: – Eis aqui, Senhor, a tua mina! Guardei-a envolta no
lenço; porque tinha medo de ti, que és homem severo; tiras o que não
colocaste e colhes o que não semeaste.
– Com as tuas próprias palavras eu te condeno, servo mau! Sabias que sou
homem severo, que tiro o que não coloquei, e colho o que não semeei; por
que, então, não colocaste o meu dinheiro para render para que, ao voltar, o
recebesse eu com juros?
“Quanto aos meus inimigos, que não me quiseram como rei, trazei-mos cá e
matai-os ante os meus olhos!”
Aquele homem que se ausentou para um país longínquo era Jesus mesmo.
Estava prestes a partir. Tinha dado as suas ordens. Mais tarde, voltaria. E ai
daqueles que tivessem ficado ociosos e se lhe apresentassem de mãos vazias!
Castigá-los-ia com penas terríveis. Ai também daqueles que se revoltassem
contra o seu domínio e sua realeza!
Jesus foi convidado a jantar por um tal Simão, apelidado o Leproso. Talvez
fosse um daqueles que Jesus curara ultimamente, da lepra, e ele, em sinal de
gratidão, deu um banquete a seu benfeitor, a exemplo do que fizera Levi,
quando fora chamado ao apostolado.
Assim é que os três amigos de Jesus, Lázaro, Marta e Maria, tiveram de ceder
essa honra ao vizinho Simão. Mas não lhes sofria o coração conservarem-se
inativos. Marta ofereceu-se para servir à mesa em casa de Simão; Maria
deliberava consigo mesma como dar ao amigo e mestre uma prova de sua
grande dedicação; Lázaro fora convidado para tomar lugar à mesa, pois não
convinha faltasse personagem tão especial, havia pouco ressuscitado da
morte, e em torno do qual giravam todas as conversas.
É certo que em Betânia se tinha notícia das palavras lúgubres que Jesus
proferira em caminho, a respeito da sua morte iminente.
Enquanto Jesus estava à mesa, fez Maria a sua despedida; foi buscar a casa
um vaso de alabastro cheio de perfume de nardo genuíno; pesava quase uma
libra, ou seja, 350 gramas. Entrou na sala, colocou-se ao lado do reclinatório de
Jesus e começou a destilar-lhe cautelosamente sobre a cabeleira a preciosa
essência.
Era tão puro esse perfume como a sensibilidade do seu coração. E, se aquele
frasco lhe custasse a fortuna toda, por muito bem empregada daria a discípula
essa despesa.
Quando Judas Iscariotes viu o que Maria estava fazendo, observou com
aspereza:
– Para que esse desperdício? Por que não se vendeu esse bálsamo por
trezentos denários para dar aos pobres?
“Isto dizia Judas, não porque lhe interessassem os pobres, mas porque era
ladrão, e, como levava a bolsa, surrupiava o que nela entrava”.
Por isso, Iscariotes, já interiormente frio e sem fé, sentia como ofensa pessoal
todo ato de amor que alguém prestasse ao Nazareno.
Como da outra vez, assim também agora defende Jesus a sua generosa
discípula, dizendo aos murmuradores, pois alguns outros discípulos faziam
coro a Judas:
– Deixai-a em paz! Por que molestais essa mulher? Praticou uma boa obra
para comigo. Pobres sempre os tendes convosco, e podeis fazer-lhes bem
quando quiserdes; a mim, porém, nem sempre me tendes. Ela, derramando
sobre o meu corpo este bálsamo, preparou-me para a sepultura. Em verdade
vos digo que, onde quer que for pregado este Evangelho, em todo o mundo,
será contado também em sua memória o que ela fez.
Jesus proclamado Messias
Era a primeira vez em sua vida, parece, que Jesus se servia de uma
cavalgadura; por via de regra, andava a pé. Mas este dia era de grande
solenidade.
– Estais vendo que nada adiantamos? Todo o mundo vai atrás dele!... E tinham
trabalhado tanto, tanto... Tinham movido céus terra, tinham espalhado calúnias
e mais calúnias para destruir o prestígio do Nazareno... E agora?...
– Quem é este? Quem é esse que está sendo assim ovacionado e aclamado
como rei de Israel, como bendito do Senhor? Quem é o alvo dessa
deslumbrante manifestação?
Jesus era de todos conhecido, mas, como até aí nunca permitira que lhe
fizessem semelhante demonstração de apreço, já nem parecia o mesmo
Nazareno, manso e humilde de coração.
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Por fim, apelaram diretamente para Jesus, e em tom de severa intimação lhe
disseram:
E logo faz ver que até este incidente era profetizado nos livros sagrados que
eles, os solícitos zeladores da lei, manuseavam dia e noite; pois, assim dizia o
Salmo 8: “Dos lábios dos meninos e das crianças de peito fizeste brotar louvor
sublime, a despeito dos teus adversários”.
– Nunca jamais alguém coma fruto de ti! Nunca nasça em ti coisa alguma!
É esta a segunda ou a terceira vez que Jesus compara Israel a uma figueira, e
figueira infrutífera. Quase todas as doutrinas e parábolas que ele propõe,
durante esta última semana da sua vida mortal, têm por fim mostrar a
voluntária esterilidade espiritual do judaísmo.
Aquela árvore, certamente, não tinha culpa de não haver produzido fruto, tanto
que nem era tempo de figos; mas todo este episódio simboliza a história e o
estado do povo de Israel; em uma realidade concreta, apresenta o Mestre o
retrato daquela nação tão cheia de formalidades exteriores, e tão destituída dos
frutos de verdadeira religiosidade.
Quando Jesus subiu às alturas de Sião e pôs pé no átrio dos gentios, que
circundava o templo, viu-se subitamente em um mercado de gados e de frutas.
Novilhos e ovelhas, pombas e cereais aí estavam à venda; e à entrada tinham
os cambistas armado as suas mesas cobertas de moedas de toda espécie.
Tudo isto era, até certo ponto, explicável; pois os israelitas necessitavam
comprar animais e gêneros para as suas oferendas e os seus holocaustos, e
os peregrinos de outras províncias tinham de trocar o seu dinheiro, para
poderem pagar ao templo o tributo anual em “moeda sagrada”. Mas não havia,
porventura, lugar suficiente do lado de fora do muro e nas praças da cidade?
Por que cercar o santuário de Deus com os padrões de interesse e ganância?
– Está escrito que a casa de meu Pai é casa de oração – e vós fizestes dela
um covil de ladrões.
Ao que Jesus repetiu o que já em outra ocasião lhes dissera sobre a eficácia
da fé:
Também Jesus andava pelo átrio dos gentios, e logo se viu cercado de
numerosos ouvintes.
– Dize-nos, com que autoridade fazes estas coisas? Ou quem te deu o direito
para procederes assim?
Enfim, depois de muito pensar e refletir acharam mais prudente escolher uma
evasiva e responderam a Jesus:
– Não sabemos.
Disse-lhes Jesus:
– Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes entrarão no reino dos céus
antes que vós. João vos apontou o caminho verdadeiro; vós, porém, não lhes
destes fé, ao passo que publicanos e meretrizes tiveram fé nas suas palavras.
Vós o vistes, mas nem assim vos convertestes para lhe dardes fé.
Com esta veemente censura despediu Jesus a comissão que lhe viera pedir
satisfação dos seus atos.
Os vinhateiros perversos
Nessa mesma ocasião, colocou Jesus diante dos olhos dos seus inimigos um
espelho que lhes mostrava a sua perversidade.
– Certo homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, cavou nela um lagar
e levantou uma torre. Em seguida, arrendou-a a uns lavradores, e saiu a viajar.
A seu tempo, enviou um servo aos lavradores, a fim de receber deles a porção
dos frutos da vinha. Eles, porém, o prenderam, feriram e despediram de mãos
vazias. Pela segunda vez lhes enviou outro servo. E maltrataram também a
este, cobrindo-o de afrontas. Mandou-lhes ainda um terceiro. Mas a este até o
mataram e lançaram fora. O mesmo fizeram ainda a muitos outros, que em
parte feriram, em parte mataram. Ora, tinha ele um filho muito querido, o qual
lhes mandou por último, dizendo consigo mesmo: – Não deixarão de respeitar
meu filho, quando o virem. Os lavradores, porém, quando o avistaram,
disseram: – Este é o herdeiro, vamos dar cabo dele, e será nossa a herança.
Prenderam-no, pois, mataram-no e lançaram-no fora da vinha.
A esta altura, abriu Jesus uma pausa e cravou os olhos em certa classe dos
seus ouvintes que se achavam no templo.
E exclamaram alvoroçados:
Alguns dos ouvintes olharam para os blocos de pedra que jaziam no átrio do
templo, ao longo dos muros; pois até aquele ano se trabalhara na construção
do edifício. Conheciam todos o Salmo 17, onde o Messias é chamado “pedra
angular” do templo de Deus.
Mas nem todos os que se acham nesta sala têm a veste nupcial.
– Mestre – dizem eles –, nós sabemos que tu és amigo da verdade, que não
fazes acepção de pessoas; que ensinas o caminho de Deus segundo a
verdade.
Se Jesus dissesse: “É lícito, deveis pagar”, seria por eles estigmatizado como
inimigo do povo e traidor de Israel; pois a questão do imposto que os judeus
pagavam ao dominador estrangeiro era uma das mais dolorosas chagas de
que sangrava o organismo social de Israel.
Se Jesus dissesse que não era lícito, nem havia obrigação de pagarem
imposto a César – aí estavam os herodianos relacionados com o governador
romano, que não perderiam a oportunidade para denunciar o Nazareno como
subversivo. Os romanos, tão tolerantes em outros pontos, eram de uma
intransigência férrea em matéria de imposto; e, tratando-se de um galileu,
crescia de pronto a sua desconfiança, porque ainda estava na memória de
todos a “greve tributária” que o famoso Judas Galileu organizara, não havia
muito, contra a opressão dos poderosos de Roma.
Diz o Evangelista:
“Eles, quando ouviram isto, não sabiam que replicar, e admirados da resposta
de Jesus calaram-se e foram embora”.
Os escarnecedores da ressurreição
Parece que nesses últimos dias da sua vida mortal faz Jesus questão de
desbaratar com o gládio do espírito, um após outro, todos os esquadrões dos
seus adversários. E, para vergonha deles, todas essas derrotas se deram no
próprio reduto do judaísmo, no templo de Jerusalém.
E prosseguem:
Respondeu-lhes Jesus:
Prosseguiu o Mestre:
Portanto, onde não há morte não é necessário que haja procriação de novos
seres humanos, razão do matrimônio.
Disse-lhes:
– Mas que os mortos hajam de ressuscitar, indicou-o igualmente Moisés
naquilo da sarça ardente, quando chamou ao Senhor: – Deus de Abraão, Deus
de Isaac e Deus de Jacó. Ora, Deus não é Deus dos mortos, mas sim dos
vivos; porque para ele todos são vivos.
Ainda naquele mesmo dia, após a derrota dos fariseus, herodianos e saduceus,
apresentou-se a Jesus um escriba e doutor da lei. Parecia encantado com o
vigor e a clareza da doutrina do Nazareno, e lhe fez esta pergunta sincera:
Em face dessa resposta, que ele dera tão sensata, disse-lhe Jesus:
Disse Jesus:
Ele, porém, replicou: – Em verdade vos digo que não vos conheço.
Ficai, pois, alerta, porque não sabeis nem o dia nem a hora!
Cristo, Filho e Senhor de Davi
Aproveitou Jesus a ocasião e o pouco tempo que ainda lhe restava para
espalhar entre os intelectuais de Israel as centelhas do seu Evangelho.
Disse Jesus:
– Como, pois, Davi em espírito lhe chama seu senhor, dizendo: – Diz o Senhor
a meu senhor: – Senta-te à minha direita até que eu reduza os teus inimigos a
escabelo dos teus pés. Se, pois, Davi lhe chama Senhor, como é que é seu
filho?
A resposta não era difícil, pois Jesus, como homem, era filho de Davi, e o
Cristo divino era senhor de Davi. Os mestres de Israel, porém, tinham
adulterado o conceito genuíno da messianidade e obliterado o seu caráter
divino; só esperavam um soberano temporal que os viesse libertar da
dependência política e esmagasse os seus inimigos.
– Tudo o que fazem é para serem vistos da gente; por isso é que usam
filactérios muito largos e borlas volumosas; gostam de ocupar lugar de honra
nos banquetes e nas sinagogas; fazem questão de ser cumprimentados nas
praças e chamados mestres.
Os filactérios eram umas membranas ou pergaminhos, nos quais se achavam
escritas sentenças do livro da lei de Moisés e que se usavam suspensos na
fronte ou enrolados nos braços. A caixinha usada na fronte tinha quatro
compartimentos, em cada um dos quais se colocava uma tira com uma
passagem da Sagrada Escritura. Os tópicos em questão eram os seguintes:
Êxodo 13, 2-10, onde os hebreus são exortados e instruídos sobre o motivo e o
modo de celebrarem a Páscoa, em recordação da saída do Egito; Êxodo 13,
11-17, que trata da consagração dos primogênitos; Deuteronômio 6, 4-9, que
inculca o grande mandamento do amor de Deus; Deuteronômio 11, 13-27,
onde Deus promete ricas bênçãos aos que observarem o grande mandamento,
e ameaça com castigos aos que o desprezarem.
Mandara Deus que os seus preceitos andassem sempre ante os olhos e nas
mãos dos filhos de Israel, e os judeus, para não se esquecerem um só instante
dessa ordem, executavam-na ao pé da letra, cumprindo assim o corpo, mas
nem sempre o espírito da lei. Quando algum israelita fazia questão de passar
por muito religioso e amigo da lei, aumentava as dimensões de sua caixinha de
filactérios.
Mas os judeus faziam com essas borlas o mesmo que faziam com os
filactérios: avolumavam-nas desmesuradamente para assim simbolizarem a
intensidade do seu espírito religioso.
***
Respondeu-lhes Jesus:
– Estais a contemplar essas construções? Pois eu vos digo que não ficará
pedra sobre pedra – será tudo arrasado!...
Estupefatos, entreolharam-se os discípulos. O templo seria destruído?... E para
sempre?... Não havia dor mais acerba para o coração de um israelita do que
esta... Para os discípulos era o fim do mundo...
Desceram para o vale de Cedron, e daí subiram, pelo lado oposto, ao Monte
das Oliveiras.
Ali chegados, sentou-se Jesus sobre uma pedra com o rosto voltado para o
templo, como se lhe custasse separar-se dele, e apagar da imaginação os
últimos vestígios do passado...
– Ficai alerta! Que ninguém vos iluda! Muitos virão em meu nome e dirão: Eu
sou o Cristo! E a muitos levarão a apostasia. Quando ouvirdes de guerras e
boatos de guerras, não vos perturbeis. Sobrevirão todas estas coisas; mas
ainda não é o fim. Levantar-se-á povo contra povo, e reino contra reino; haverá
terremotos e fome, ora aqui, ora acolá. Mas estas coisas serão apenas os
prenúncios da tribulação.
Entretanto, não eram essas perturbações de ordem social que mais deviam
temer os discípulos; provações mais dolorosas os aguardavam.
– Cuidado convosco mesmos! – adverte-os Jesus. – Por minha causa vos hão
de entregar aos tribunais, açoitar-vos nas sinagogas e levar-vos à presença de
reis e governadores, em testemunho a eles. Mas primeiro será pregado o
Evangelho a todos os povos.
– Quando vos levarem aos tribunais, não vos preocupeis com o que houverdes
de dizer; mas dizei o que naquela hora vos for inspirado; porque não sois vós
que falais, mas sim o espírito de meu Pai. Há de o irmão entregar à morte o
irmão, e o pai ao filho, hão de os filhos revoltar-se contra os pais e tirar-lhes a
vida. Por causa do meu nome sereis odiados de todos. Mas quem preservar
até o fim será salvo.
– Quando então alguém vos disser: Eis o Cristo! Ei-lo acolá – não o acrediteis;
porque aparecerão falsos Cristos e falsos profetas, que farão grandes sinais e
prodígios, a ponto de enganarem até os escolhidos, se possível fosse. Eis que
vos ponho de sobreaviso!
Depois da tribulação daqueles dias escurecerá o sol, e a lua já não dará a sua
claridade, e as estrelas cairão do céu, e serão abaladas as energias do
firmamento.
– Aprendei isto por uma semelhança tirada da figueira: quando os seus ramos
se vão enchendo de seivas e brotando folhas, sabeis que está próximo o verão.
Do mesmo modo, quando presenciardes tudo isso, sabereis que as coisas
estão à porta.
O juízo final
Quando Jesus começou a falar do juízo final, estava sentado no Monte das
Oliveiras, no meio dos seus discípulos. Pedras calcárias, espalhadas aqui e
acolá, brancas como ossadas de defuntos serviam-lhes de assento.
Era noite...
Mas não era escuro. A Páscoa judaica incidia na primeira lua cheia da
primavera. Mal expirou no poente o ouro fulvo do rei do dia quando, no
horizonte oposto, emerge a face pálida da rainha da noite, espargindo a sua
prata líquida sobre a folhagem cinzenta das oliveiras do Getsêrnani, orlando
discretamente os rochedos, projetando faixas negras por detrás dos troncos, e
deslizando suavemente pelas faces e pelas roupas daqueles treze homens
sentados na encosta do monte, silenciosos, absortos em profundo cismar...
Nunca talvez, em todo o decurso da sua vida mortal, proferiu Jesus palavras
tão em contraste com as circunstâncias e o ambiente, como nessa noite de
primavera.
Quando os profetas da lei antiga descreviam o juízo final, apelavam para todos
os recursos da fantasia, jogavam ao cenário todas as grandiosidades de estilo.
Então perguntarão os justos: “Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, e te
demos de comer? Quando com sede, e te demos de beber? Quando te vimos
forasteiro, e te demos agasalho? Quando nu, e te vestimos? Quando te vimos
doente ou preso, e te fomos visitar?”
Responder-lhes-á o rei: “Em verdade vos digo que o que fizestes a algum dos
meus irmãos mais pequeninos, a mim é que o fizestes”.
Perguntarão também estes: “Quando foi, Senhor, que te vimos com fome, ou
com sede, ou forasteiro, ou nu, ou doente ou preso, e deixamos de acudir-te?”
Ao que ele lhes responderá: “Em verdade vos digo que o que deixastes de
fazer a algum destes mais pequeninos, a mim é que deixastes de o fazer”.
E virão estes para o suplício eterno; os justos, porém, para a vida eterna.
Silêncio... Silêncio profundo acolheu estas palavras de Jesus... Tão grande era
a quietude daquela noite de primavera, por entre as oliveiras e as pedras do
Getsêmani, que se julgava perceber o descrito caminhar da luz fosfórea sobre
a relva macia que atapetava o solo, e em torno das rochas calcárias que
alvejavam por entre a vegetação...
Quinta- feira.
Devia ser pela manhã, quando alguns dos discípulos se dirigiram ao Mestre
com esta pergunta:
Não vinha sem motivo esta pergunta, pois, segundo a lei, devia-se comer o
cordeiro pascal dentro dos muros de Jerusalém. Mas essa cidade era para o
Nazareno um campo de batalha semeado de inimigos traiçoeiros; de noite
costumava ele retirar-se invariavelmente para Betânia. Nesta noite, porém,
teria de ficar em Jerusalém, porque aquela cerimônia se celebrava depois do
pôr-do-sol. Convinha, assim, que o próprio Mestre designasse o lugar para a
solenidade.
Respondeu-lhes Jesus:
Ao reclinar-se à mesa da sala, para celebrar a ceia pascal, disse Jesus a seus
discípulos:
Ao dar-lhes o último copo de vinho com água, conforme o ritual, disse Jesus:
– Tomai e reparti-o entre vós. Digo-vos que, a partir desta hora, não mais
beberei do fruto da vida, até que venha o reino de Deus.
Jesus ouvia tudo isto. Não disse palavra. Levantou-se do seu reclinatório,
depôs o manto, foi buscar uma toalha, cingiu-a ao redor do corpo, pegou com a
mão direita um jarro de água e com a esquerda uma bacia – estavam à mão
esses objetos, pois serviam nas abluções rituais – e, aproximando-se dos
discípulos litigantes, começou a deitar-lhes água sobre os pés e lavá-los dentro
da bacia.
Protestou Simão Pedro contra essa suposta humilhação de seu Mestre, retirou
os pés, ergueu-se no seu reclinatório e, com enérgico gesto de repulsa,
exclamou:
Foi quanto bastou para que Pedro mudasse de atitude. Não ter parte com o
Mestre era para o seu coração o maior dos castigos que podia imaginar; queria
ter parte com Jesus, e muita, muitíssima. Por isso, estendeu as mãos a Jesus e
disse-lhe:
– Neste caso, Senhor, lava-me não somente os pés, mas também as mãos e a
cabeça.
Respondeu-lhe Jesus:
– Quem tomou banho não necessita senão lavar os pés, e todo ele está limpo.
– Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem,
porque eu o sou. Se, pois, eu vos lavei os pés, eu, vosso Senhor e Mestre,
deveis também vós lavar-vos os pés uns aos outros. Em verdade, em verdade
vos digo: não está o servo acima de seu senhor, nem o embaixador acima de
quem o enviou. Felizes de vós se isto compreenderdes e o puserdes por obra!
Nem de todos vós afirmo isto; sei a quem escolhi. Entretanto, força é que se
cumpra a Escritura: Quem come comigo o pão levanta contra mim o calcanhar.
Já agora, antes de suceder, vo-lo digo, para que, quando suceder, creiais que
sou eu. Em verdade vos digo: – Quem recebe a mim recebe àquele que me
enviou.
– Um dos doze que comigo mete a mão no prato, esse é. O Filho do Homem
vai ser atraiçoado, sim, como dele está escrito, mas ai do homem por quem for
atraiçoado o Filho do Homem! Melhor fora a esse homem não ter nascido...
Este, voltando-se para trás, pediu a João que perguntasse a Jesus quem era o
traidor.
– Quem é, Senhor?
Depois do último cálice de vinho com água, prescrito pelo ritual da ceia pascal,
era costume dos israelitas, após a celebração do cordeiro pascal,
conservarem-se ainda reunidos em derredor da mesa.
Esta passagem, a par da outra, “Tu és Pedro”, tem servido através dos séculos
para consolidar o prestígio da classe sacerdotal. Segundo essa teologia, teria
Jesus conferido a determinados homens o poder de transmudar pão e vinho no
corpo e sangue de Jesus.
Jesus traça um paralelo entre o que acontece com o alimento material (pão e
vinho) quando ingerido e assimilado pelo homem – e o alimento espiritual que
ele estava oferecendo à humanidade, nesses dias. Assim como o alimento
material, para ser vitalizado por nós, tem de ser primeiramente destruído
(morto), e só depois disto ressurge em nossas veias como força vital – assim
deve também a vida física de Jesus ser destruída a fim de poder ser assimilada
pela alma, na forma visível do Cristo.
Em toda esta parábola simbólica, frisa Jesus que ele deve substituir os erros
antigos de derramar o sangue físico de um cordeiro para anular pecados; este,
porém, é o sangue simbólico do Novo Testamento para remoção dos erros do
Antigo Testamento; o amor espiritual substitui a morte material.
Bem disse o Mestre: “As palavras que vos digo são espírito e vida, a carne de
nada vale”.
– Um novo mandamento vos dou: “Que vos ameis uns aos outros, assim como
vos tenho amado; por isso que há de o mundo conhecer que sois meus
discípulos, em vos amardes uns aos outros”.
Perspectivas sinistras
– Quando vos enviei sem bolsa, sem alforje, nem calçado, faltou-vos alguma
coisa?
Prosseguiu o Mestre:
– Agora, porém, quem tem uma bolsa, tome-a consigo; da mesma forma, quem
possui um alforje; e quem não tem, venda o seu manto e compre uma espada.
Porque vos digo que há de cumprir-se a palavra da Escritura: foi contado entre
os malfeitores. Porquanto as coisas que me dizem respeito estão em vias de
cumprimento.
– Basta!...
Perspectivas luminosas
Disse-lhe Tomé:
Respondeu-lhe Jesus:
– Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim.
Se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai. E desde agora o
conheceis e o vistes.
Disse-lhe Filipe:
Respondeu-Ihes Jesus:
Não vos deixarei órfãos: tornarei a vós. Ainda um pouco de tempo, e o mundo
já não me verá. Vós, porém, me vedes, porque eu vivo, e também vós vivereis.
Naquele dia, sim, compreendereis que eu estou em meu Pai, que vós estais
em mim e eu em vós. Quem tem os meus mandamentos e os guarda, esse é
que me ama; mas quem me ama será amado por meu Pai, e também eu o
amarei e me manifestarei a ele.”
Respondeu-lhe Jesus:
– Quem me ama guardará a minha palavra; meu Pai o amará e viremos a ele e
faremos nele habitação. Quem não me ama, não guarda as minhas palavras. A
palavra que acabais de ouvir não é minha, mas a do Pai que me enviou. Isto
vos digo enquanto estou convosco, mas o Consolador, o Espírito Santo, que o
Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos lembrará tudo
quanto vos tenho dito.
A paz do Cristo
– Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; não a dou como o mundo a dá. Não
se perturbe nem se atemorize o vosso coração. Ouvistes que vos disse: Vou, e
torno a vós. Se me amásseis, folgaríeis de que vou ter com o Pai, porque o Pai
é maior que eu. Disse-vo-lo agora, antes de suceder, para que, depois de
sucedido, tenhais fé. Já não falarei muito convosco; porque vem o dominador
deste mundo. Sobre mim não tem poder algum; mas há de o mundo conhecer
que amo o Pai e que faço assim como o Pai me ordenou. Levantai-vos. Vamos!
Se os discípulos de Cristo são ramos do mesmo tronco, como o Mestre diz, são
também irmãos entre si; e, como a sua seiva deriva de uma fonte única, devem
também eles ser entre si um só coração e uma só alma. A caridade do próximo
tem como base essencial o amor de Deus. É pelo amor do Pai que Jesus ama
os homens, feitos à imagem e semelhança de Deus; pelo mesmo motivo
devem os homens amar-se uns aos outros.
– Assim como meu Pai me amou, assim vos tenho eu amado. Permanecei no
meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu
amor, assim como eu também permaneço no amor do Pai, guardando-lhe os
mandamentos. Disse-vos isto para que minha alegria esteja em vós e se torne
perfeita a vossa alegria. Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros
assim como eu vos tenho amado. Ninguém tem maior amor do que aquele que
dá a própria vida por seus amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que
vos mando. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu
senhor; amigos é que vos chamei, porque vos dei a conhecer tudo quanto ouvi
de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes, mas eu é que vos escolhi e
encarreguei de irdes e produzirdes fruto: para que seja duradouro o vosso
fruto. Então o pai vos concederá tudo o que pedirdes. Eu vos preceituo: amai-
vos uns aos outros.
O ódio do mundo
– Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro que a vós, me odiou a mim. Se
vós fôsseis do mundo, amaria o mundo o que era seu; mas, como não sois do
mundo – antes eu vos escolhi do mundo –, por isso é que o mundo vos odeia.
Lembrai-vos da palavra que vos disse: Não está o servo acima de seu Senhor.
Se, pois, me perseguiram a mim, também vos perseguirão a vós; e, se
guardaram a minha palavra, guardarão também a vossa. Ora, tudo isto vos
farão por causa do meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou.
Se eu não viera e Ihes falara, não teriam culpa; agora, porém, não têm
desculpa do seu pecado. Quem me odeia a mim, odeia também a meu Pai.
Não realizasse eu, no meio deles, obras que nenhum outro fez, estariam sem
culpa; agora, porém, viram-nas e contudo me odeiam, a mim e ao Pai.
Entretanto, convinha se cumprisse a palavra que está escrita em sua lei:
Odiariam-me sem motivo. Quando vier o Consolador, que eu vos enviarei do
Pai – o Espírito da Verdade que do Pai procede –, dará testemunho de mim; e
também vós dareis testemunho, porque desde o princípio estais comigo.
Perseguições
– Isto eu vos disse para que não vos escandalizeis. Expulsar-vos-ão das
sinagogas, e chegará a hora em que todo homem que vos matar julgará prestar
serviço a Deus. Isto vos farão porque não conhecem nem ao Pai nem a mim.
Disse-vos estas coisas para que, quando chegar a hora, vos lembreis das
minhas palavras. Não vo-las disse desde o princípio, porque ainda estava
convosco.
Agora, porém, vou ter com aquele que me enviou; e ninguém de vós me
pergunta: Aonde vais? – de tão pesaroso que trazeis o coração pelo que vos
disse.
Ainda muitas coisas tenho a dizer-vos; mas não as podeis suportar agora.
Quando, porém, vier aquele, o Espírito da Verdade, iniciar-vos-á em toda a
verdade. Pois não falará por conta própria; mas dirá o que ouve, e o anunciará.
Tudo o que o Pai tem é meu; por isso eu vos disse: Tomará do que é meu e vo-
lo anunciará.
Conversão da tristeza em gozo
Perguntaram entre si alguns dos discípulos: “Que quer dizer com estas
palavras: Ainda um pouco de tempo e já não me vereis; e mais um pouco de
tempo e tornareis a ver-me? E isto: Vou para meu Pai?” Diziam, então: “Que
quer dizer com estas palavras: Ainda um pouco de tempo? Não sabemos o que
ele quer dizer”.
– Estais a perguntar uns aos outros por que é que vos disse: Ainda um pouco
de tempo, e já não me vereis; e mais um pouco de tempo, e tornareis a ver-
me? Em verdade, em verdade vos digo que havereis de chorar e gemer, ao
passo que o mundo estará alegre; andareis tristes, sim, mas a vossa tristeza se
converterá em alegria. Quando a mulher está para dar à luz entristece-se,
porque chegou a sua hora; mas, depois de dar à luz um filho, já não se lembra
das angústias, pela satisfação que sente de ter nascido ao mundo um homem.
Assim também vós andais aflitos agora; mas tornarei a ver-vos e alegrar-se-á o
vosso coração, e já ninguém vos tirará a vossa alegria. Naquele dia já não me
perguntareis coisa alguma.
“Em verdade, em verdade vos digo: Se pedirdes alguma coisa ao Pai em meu
nome, vo-lo dará.”
Conclusão das exortações aos discípulos
Sim, saí do Pai e vim ao mundo; deixo agora o mundo e torno para o Pai.
Observaram então os discípulos: – Eis que agora falas claro e já não te serves
de parábolas. Agora sabemos que sabes tudo e não necessitas das perguntas
de ninguém. Por isso cremos que saíste de Deus.
– Pai, é chegada a hora!... Glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique!...
Deste-lhe poder sobre todos os homens, a fim de que dê a vida eterna a todos
os que lhe confiaste. A vida eterna, porém, é esta: conhecerem-te a ti, o único
Deus verdadeiro, e a Jesus, o Cristo, que enviaste. Glorifiquei-te sobre a terra,
levando a termo a obra que me confiaste. Glorifica-me, pois, agora contigo, Pai,
com aquela glória que eu tinha em ti antes que houvesse mundo!...
Tenho manifestado o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram
teus, tu mos confiaste, e guardaram a tua palavra. Agora sabem eles que vem
de ti tudo quanto me deste, porque lhes dei as palavras que tu me deras e
aceitaram-nas e em verdade conheceram que saí de ti, e creram que tu me
enviaste. Por eles é que rogo. Não rogo pelo mundo, mas pelos que me deste,
porque são teus. Tudo o que é meu é teu e tudo o que é teu é meu. Neles é
que sou glorificado. Já não fico no mundo – eles, porém, ficam no mundo –
porque vou ter contigo. Pai santo, guarda em teu nome os que me deste, para
que sejam um, assim como o somos nós. Enquanto estava com eles guardei
em teu nome os que me deste; tenho-os amparado, e nenhum deles se perdeu,
a não ser o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. Agora, porém,
vou para ti. Digo isto, enquanto estou no mundo, para que eles tenham em si
mesmos a plenitude do meu gozo. Transmiti-lhes a tua palavra; mas o mundo
lhes teve ódio, porque eles não são do mundo, assim como nem eu sou do
mundo. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do mal. Eles não
são do mundo, assim como também eu não sou do mundo. Santifica-os para a
verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo,
também eu os enviei ao mundo. Por eles é que me santifico, para que sejam
santificados na verdade.
Mas não rogo somente por eles, senão também pelos que por sua palavra
chegarem a crer em mim, para que sejam todos um, assim como tu, Pai, estás
em mim, e eu em ti – que assim também eles sejam um em nós, para que o
mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que
sejam um, assim como também nós somos um: eu neles e tu em mim, para
que sejam perfeitamente um, e para que o mundo conheça que tu me enviaste
e os amaste, assim como me amaste a mim. Pai, quero que os que me deste
estejam onde eu estou, para contemplarem a glória que me deste, pois que me
amaste antes da creação do mundo.
***
E Jesus foi ao encontro dessa noite de mistérios e de dores, com o passo firme
do herói que cumpre a sua missão, e não desvia um passo do caminho que a
vontade divina lhe traçou.
Terceira Parte
DORES E GLÓRIA
Getsêmani
Iscariotes não ignorava esse dispositivo legal, e sobre ele baseara o seu plano
sinistro.
Havia naquela rampa uma granja, por nome Getsêmani, que quer dizer “horto
de prensa de olivas”.
Entraram.
– Minha alma está numa tristeza mortal. Ficai aqui e vigiai comigo...
Distanciou-se deles uns cem passos, prostrou-se de face por terra e, tremendo
em todo o corpo, soltava gemidos de angústia.
Não se conhecia mais aquele homem intrépido e corajoso dos outros dias. O
impávido herói, que marchava ao encontro da morte com passo firme e
resoluto, jaz agora por terra como que aniquilado em face dos horrores de que,
como sabia, estavam cheios aquela noite e o dia imediato. Era verdadeiro
homem e não podia deixar de horrorizar-se ante o aspecto sinistro da morte – e
morte crudelíssima em pleno vigor de seus 33 anos...
Tão imensa era a angústia do seu coração, que dos lábios lhe rompeu este
brado de socorro:
– Meu Pai! Se é possível, passa de mim este cálice sem que eu o beba!...
O próprio Pai celeste parece ter abandonado o seu Filho Unigênito; não lhe
responde aos brados de angústia...
– Como?... Estais a dormir? Não pudestes então vigiar comigo uma hora?...
vigiai e orai para não cairdes em tentação!...
É tão doloroso sermos abandonados dos nossos amigos na hora em que mais
precisamos deles! Jesus sentiu o amargo dessa apatia e dessa
incompreensão; mas, ainda assim, desculpou os discípulos, dizendo:
E o mesmo silêncio acolheu os brados da sua angústia. Não era possível que
passasse dele o cálice do sofrimento e da morte. Era esta a vontade firme da
natureza divina do Cristo, nem Jamais vacilou neste propósito; o que relutava
era tão-somente a sua natureza humana, o sentimento natural de horror e
aversão que todo homem normal experimenta em face de tão pavorosa
perspectiva. Jesus era homem – homem humano e genuíno.
Pela segunda vez foi procurar companhia e consolação com os seus amigos, e
pela segunda vez voltou decepcionado: encontrou-os novamente submersos
no sono.
– Meu Pai!... Não é possível que passe de mim este cálice sem que eu o
beba?...
Passou a crise. Desde esse momento, o Nazareno não mais vacila, não mais
se queixa, não mais recua diante de sofrimento algum; aceita tudo, como se
nada mais sentisse.
Levantou-se da terra, foi ter com os seus discípulos e lhes disse em tom
resoluto e enérgico:
Era noite de luar. Mas à sombra das oliveiras do Getsêmani não era fácil
distinguir um vulto do outro; as roupagens amplas e roçagantes usadas pelos
palestinenses daquele tempo, e o pano que em pregas flutuantes caía da
cabeça sobre as espáduas, e em parte sobre o rosto, não permitiam um
reconhecimento rápido; e Jesus achava-se no meio dos seus discípulos.
Por isso, tinha Judas combinado com os esbirros do Sinédrio esta senha:
– Salve, Mestre!
Jesus contempla por uns momentos o semblante de Iscariotes; pela última vez
se cruzam os olhos do Nazareno com os olhos do traidor; pela vez derradeira
ecoa o timbre da sua voz aos ouvidos do traidor.
Nenhuma resposta!
Então, para mostrar a Judas que conhecia os seus planos e não fora colhido de
surpresa, acrescentou Jesus:
– A quem procurais?
Eis que, no mesmo instante, todos recuaram e caíram de costas por terra.
Repetiu Jesus a mesma pergunta e teve a mesma resposta. Então permitiu aos
seus adversários que se levantassem.
– Já vos disse que sou eu; se, então, me procurais a mim, deixai em paz a
esses!
Conforme menção anterior, possuíam eles duas espadas, sendo uma delas de
Simão Pedro. Este, sem aguardar ordem do chefe, arrancou a espada e,
vibrando-a contra o inimigo mais próximo, cortou-lhe uma orelha. Chamava-se
Malco, e era servo do sumo sacerdote. Era, naturalmente, intenção do exaltado
pescador galileu cortar-lhe mais, porém, no momento em que Pedro vibrava o
golpe, desviou Malco a cabeça para a esquerda, de maneira que escapou são
e salvo, à exceção da orelha direita, que caiu por terra decepada.
Com esta indicação, manifesta Jesus mais uma vez a absoluta liberdade com
que se entrega à morte; morre porque assim o seu Cristo o quer, mas não cai
vítima de nenhuma prepotência humana; os esbirros que o prendem são
simples instrumentos nas mãos de um poder superior.
Também eles deviam ouvir dos lábios de Jesus que ia ao encontro da morte
porque ele o queria, e não porque eles o quisessem. Disse-lhes:
A Simão Pedro, porém, não lhe sofria o coração deixar o Mestre sozinho nas
mãos dos inimigos. Por isso, foi seguindo-o de longe, de modo que não
causasse reparo aos fariseus, mas não perdesse de vista a pessoa do
Nazareno. Em sua alma tumultuavam os pensamentos mais desencontrados...
Estava completamente desorientado... Onde ficara o poder do Mestre?... Por
que se deixou prender?... E não tentaria romper os grilhões?...
Simão Pedro, ansioso por ver que fim levaria o processo contra Jesus, achou
que não podia fazer coisa melhor, para justificar a sua presença e disfarçar o
seu interesse, do que fingir indiferença e associar-se aos soldados que se
agrupavam em torno da fogueira acesa no pátio.
A porteira da casa de Anás não tirava os olhos de cima de Pedro desde que ele
pusera os pés no pátio. Mal se ausentara aquele outro discípulo, deixando o
pescador no meio dos soldados, animou-se ela a acercar-se do galileu, mediu-
o com um olhar inquisitorial, encarou-o e disse:
– Não sou!
Coisa tão pueril só profere quem não sabe o que diz, de tão perturbado: não
sei o que estás dizendo...
De repente, ouviu cantar um galo. Devia, pois, ser entre uma e duas horas da
noite.
Respondeu Pedro e jurou que não era discípulo de Jesus e que não sabia de
quem se tratava; e, a fim de aparentar calma e indiferença, sentou-se ao
braseiro e, estendendo as mãos, pôs-se a aquecer-se tranquilamente, como se
“aquele homem” lhe fosse a coisa mais indiferente do mundo.
De repente, observou um dos soldados:
Pedro sentia o solo fugir-lhe debaixo dos pés, quando interveio outro soldado,
levando ao auge a sua perturbação. Era parente daquele MaIco a quem Pedro
cortara a orelha no Getsêmani. Reconhecendo, ao clarão do braseiro, a
fisionomia do galileu, exclamou:
Que de louvável poderia Jesus dizer dos seus discípulos? Se todos o haviam
abandonado covardemente?... Preferiu silenciar este ponto, limitando-se a
frisar o caráter público e notório da sua doutrina; não era nenhum agitador,
nenhum fundador de sociedade secreta:
Seria pelas três horas da noite quando Jesus foi conduzido da casa de Anás
pelo pátio interno rumo a um cárcere, onde devia aguardar a sessão do tribunal
em casa do sumo sacerdote Caifás.
– Nós mesmos ouvimos esse homem dizer: Destruirei este templo, obra de
mãos humanas, e em três dias edificarei outro, que não será obra de mãos
humanas.
Mas nem as palavras, nem o sentido delas eram exatos. Quando, por ocasião
da purificação do templo, Jesus proferira palavras análogas, não se referia ao
templo de Jerusalém, como lembra expressamente o historiador, mas sim ao
templo vivo do seu corpo, quer seria demolido por mãos alheias e reedificado
pelo poder do Cristo.
Nem dissera “destruirei”, mas “destruí” este templo. Mal terminara a primeira
testemunha de proferir esse depoimento, estigmatizando Jesus como inimigo
do santuário nacional de Israel, quando interveio a segunda, protestando contra
o colega, corrigindo e modificando o teor das palavras.
Jesus, porém, permaneceu calado. Tinha dito tudo o que tinha a dizer.
Então assumiu Caifás uma atitude teatral; em todo o esplendor do seu ornato
pontifício, com voz majestosa e lenta, erguendo ao céu a mão direita,
exclamou:
– Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos diga se tu és o Cristo, o Filho de Deus
bendito!
Respondeu Jesus:
E, como que para tirar qualquer dúvida sobre a significação exata da expressão
“Filho de Deus”, acrescenta Jesus:
– Eu vos digo que mais tarde vereis o Filho do Homem sentado à direita de
Deus todo-poderoso, vindo sobre as nuvens do céu.
Era uma alusão à profecia de Daniel que deste modo descrevia a vinda do
Cristo no fim do mundo para julgar os vivos e os mortos.
Eu o sou!
Caifás agarrou com ambas as mãos a costura da sua túnica à altura do peito –
e soou pelo silêncio da sala o som agudo de um tecido violentamente rasgado!
Rasgar a túnica era sinal de dor suprema, de um coração despedaçado de dor.
Mais tarde, diante de Pilatos, o Sinédrio torna a jogar com este argumento,
dizendo:
– Nós temos uma lei, e segundo a lei deve morrer, porque se fez Filho de
Deus!
O fim do traidor
“Os homens que traziam preso Jesus faziam escárnio dele e maltratavam-no.
Cuspiam-lhe na face, vendavam-lhe os olhos, davam-lhe no rosto e diziam:
Como se explica isso? Não contava Judas com esse desfecho? Estaria ele
convencido de que o Mestre se libertaria dos grilhões e escaparia à morte por
meio de um daqueles prodígios que todos lhe conheciam? E ele, o astucioso
traidor, faria bom negócio ficando com as trinta moedas de prata?... O certo é
que Judas sentiu repentinamente despertar a voz da consciência e a gravidade
do passo que dera...
Convém conhecermos mais de perto sua vida, sua pessoa, e que papel tão
importante desempenha no drama da morte de Jesus.
Segundo o Evangelho, tinha essa área o nome grego de Lithóstrotos, que quer
dizer empedrado; ao passo que em hebraico se chamava Gábbota, que
significa altura, por se achar elevada sobre o nível do solo.
O governador da Judéia não podia ter deixado de ouvir falar nesse homem
singular que, havia três anos, cruzava as terras da Palestina, causando
sensação geral. Ainda naquela mesma noite, alguns dos soldados romanos
que tinham estado no Getsêmani lhe haviam dado notícia da prisão do
Nazareno.
– A nós não nos é permitido matar alguém – responderam, mau grado seu,
confessando a sua dependência do governo estrangeiro. E logo acodem com
três acusações:
Perguntou Jesus:
– O meu reino não é deste mundo. Se deste mundo fosse o meu reino, os
meus partidários, sem dúvida, pelejariam para que eu não fosse entregue aos
judeus. Entretanto, o meu reino não é daqui.
O céptico de Roma ouve falar de um “reino que não é deste mundo”, e talvez
lhe tenha acudido à mente o que referiam as fábulas da mitologia sobre reis e
príncipes fantásticos. Sabia também que o Nazareno não permitira, na noite
anterior, que os seus discípulos o defendessem à força de espada. Fosse
como fosse, de uma coisa se convenceu Pilatos: que o tal reino ao qual se
referia o acusado não punha em risco a soberania dos Césares; eram sonhos
inofensivos e divagações metafísicas. Entretanto, para não deixar pairar a
menor sombra sobre o caráter da pretensa realeza do Nazareno, insistiu,
perguntando:
– Logo, tu és rei?
Respondeu-lhe Jesus:
– É como dizes; eu sou rei. Foi por isso que nasci e vim ao mundo, para dar
testemunho à verdade. Todo aquele que é filho da verdade ouve a minha voz.
Foi óleo no fogo! Como? O procurador não achava culpado aquele homem? E
estava com vontade de soltá-lo? Nunca!
E uma idéia feliz passou pela mente do governador: remeteria o réu a Herodes,
tetrarca da Galiléia, que, precisamente nesses dias, se achava em Jerusalém
para assistir às solenidades pascais. Havia tempo que os dois soberanos
viviam em discórdia. A ocasião era propícia para fazerem as pazes. Herodes se
sentiria honrado com a atenção de Pilatos, e este se veria livre do processo,
que tão ingrato lhe era.
Havia anos que o tetrarca da Galiléia vivia em adultério com Herodias, sua
cunhada, mulher de Filipe. O Precursor de Jesus caíra vítima das intrigas
dessa mulher cruel e desse homem covarde.
Herodes pertencia àquela categoria de homens que mais crêem nas palpáveis
realidades da matéria do que na imponderável ideologia do espírito; homens
que se timbram de espíritos emancipados e se riem da crença num mundo
sobrenatural – mas nem por isso deixam de se interessar por toda espécie de
ocultismo.
Jesus ouviu tudo – mas não respondeu uma só palavra... Imóvel como uma
estátua, sereno e calmo, de olhos baixos e mãos algemadas, deixou desabar
sobre si toda aquela verborréia do régio palrador.
Apesar de todos os recursos da sua dialética e da sua astúcia, não conseguiu
aquela “raposa” arrancar uma sílaba dos lábios do Nazareno; não chegou a
ver-lhe a cor dos olhos, não chegou a ouvir-lhe o timbre da voz...
Que fazer?
Resolveu, pois, o tetrarca dar expressão ao despeito que lhe fervia na alma:
mandou buscar um farrapo branco e lançá-lo aos ombros do Nazareno.
Naquele tempo, o pretendente a algum cargo público costumava vestir uma
espécie de túnica branca e com ela se apresentava em público; era então
“candidatos” (branqueado). Ora, sabendo Herodes que Jesus se intitulara rei,
entendeu de fazer espírito e parodiar a candidatura dele; cobrindo-o com
aquele manto branco e mandando-o pelas ruas da capital, por entre as
gargalhadas da plebe, culta e inculta, e as valas do vulgacho sempre ávido de
sensação.
Perguntou-lhes, então:
– Qual dos dois vós quereis que solte? Barrabás ou Jesus, que se chama o
Cristo?
Mas, antes que se resolvesse este primeiro caso, ocorre outro incidente,
sumamente misterioso. Aparece diante de Pilatos um mensageiro enviado pela
esposa do governador, com este recado urgente:
– Nada tenhas que ver com esse justo, porque muito padeci hoje, em sonhos,
por causa dele...
Cláudia Prócula tinha ouvido, sem dúvida, da prisão do célebre rabi da Galiléia;
sabia que seu marido pusera à disposição do Sinédrio um destacamento de
soldados; nem ignorava que nessa manhã fatídica fora ele chamado muito
cedo para processar aquele homem singular, de cuja fama andava cheio o
país. É possível que algumas das discípulas do Mestre tenham dado notícias
mais minuciosas à esposa do governador romano. E não teria ela ouvido do
prodígio que o taumaturgo realizara na pessoa de um dos servos do centurião
de Cafarnaum, oficial de Pilatos?
Não sabemos qual a resposta que Pilatos deu à advertência da esposa solícita.
O tempo urgia. O tumulto e o vozerio da praça não lhe permitiam uma reflexão
serena e calma.
– Fora com este! Solta-nos Barrabás! – tais eram os gritos que cruzavam de
todos os lados.
Além disto, milhares de judeus dependiam das boas graças dos chefes da
sinagoga, e receavam incompatibilizar-se com os mesmos.
Acabaram por convencer-se de que o Sinédrio tinha razão: Jesus não era o
Messias prometido; os seus milagres não passavam de portentos mágicos.
Deus mesmo o tinha abandonado às mãos dos seus inimigos...
O povo é assim; não se guia tanto pelas razões e raciocínios como pela força
da impressão momentânea e pela violência brutal dos fatos – e todos os fatos
pareciam depor contra Jesus.
Pilatos, convencido da inocência de Jesus, tenta mais uma vez libertá-lo,
apelando para a vontade do povo, em vez de obedecer ao imperativo da
consciência e aos ditames da justiça:
– Crucificai-o! Crucificai-o!
– Crucifica-o! Crucifica-o!
Flagelação
Pela quinta ou sexta vez declara o governador romano que não encontra culpa
em Jesus de Nazaré e, renegando todos os ditames da lógica e da justiça,
conclui:
Por isso? Por não encontrares nele culpa alguma, por isso o mandas açoitar?
Que lógica é essa, Pilatos? Se ele é inocente, só poderás pô-lo em liberdade,
mas não condenar a tão horroroso tormento. Protestam contra isto o bom
senso, a tua consciência e as próprias leis do Império Romano!
***
A lei romana não estatuía limite algum. Afirma Ulpiano que não era permitido
condenar alguém à “morte por flagelação”. Entretanto, eram frequentes os
casos em que a vítima sucumbia à horrorosa tortura, ao passo que outras
morriam lentamente em consequência desse martírio e da perda de sangue.
Flagelava-se com vergas flexíveis ou correias de couro, com cordas
entretecidas de fragmentos de ossos ou correntes de ferro guarnecidas de
ganchinhos, rodízios e bolas de chumbo. Refere a testemunha ocular Flávio
Josefo que esses instrumentos rasgavam as carnes da vítima a ponto de
porem à mostra os ossos. Quem escapava vivo, escreve Filo, ficava reduzido a
um aleijão para o resto da existência.
Não é de supor que fosse mais benigna a pena infligida a Jesus, na praça do
Pretório romano.
Logo após a ordem de Pilatos: “I, lictor, collige manus virgis caedito!”,
apoderou-se o lictor do condenado, atou-lhe as mãos a uma coluna baixa de
modo a ficar com as costas recurvadas, e os soldados romanos, afeitos a todas
as cruezas da guerra, empunharam açoites, vibrando-os sobre as carnes do
Nazareno.
Só uma coisa lhes ficou na mente: que aquele homem andava com pruridos de
realeza; era, portanto, um rebelde, um agitador contra o governo de Roma.
Pilatos tardava no interior do Pretório. Era intuito dele satisfazer o povo com a
flagelação do Nazareno, e pô-lo depois em liberdade.
Fizeram sentar-se Jesus sobre uma pedra – era o trono real! Encontraram num
rincão do castelo um farrapo escarlate, que em tempos antigos servira de
manto a algum soldado da guarnição romana, e lançaram-no aos ombros do
sentenciado – que esplêndida púrpura real! Por entre a lenha amontoada num
ângulo da fortaleza encontraram gravetos ou baraços espinhosos, teceram
deles uma espécie de coroa e a colocaram sobre a cabeça de Jesus – jamais
um César do império tivera diadema tão original! No mesmo lugar descobriram
também um pedaço de taquara, que puseram na mão algemada do réu, como
cetro, e estava pronta a figura do rei!
Reparou um dos soldados que a coroa de espinhos não estava bem firme à
cabeça do “rei dos judeus” e, com a motivação de consolidar o reino
messiânico, arrancou-lhe o cetro de taquara e com ele deu violentamente sobre
a coroa, enterrando-a mais na cabeça.
Novas gargalhadas de cinismo!... Bela figura de rei que se deixa ferir com o
próprio cetro!... Herodes tinha carradas de razão, tratava-se de um pobre
louco...
– Eis que vo-lo trago fora para que conheçais que não encontro nele crime
algum.
Responderam os judeus:
– Nós temos uma lei, e segundo a lei ele deve morrer, porque se fez filho de
Deus!
– De onde és tu?...
Já sabia que Jesus era da Galiléia. Mas não lhe bastava esta informação,
queria saber mais; as palavras dos sacerdotes “ele se fez filho de Deus” tinham
tornado pensativo o pagão de Roma. Dissera-lhe Jesus, pouco antes, que o
seu reino não era deste mundo; que ele viera ao mundo para dar testemunho à
verdade... Qual, então, a sua verdadeira origem?...
Jesus, porém, não deu resposta ao interpelante. Também, para que falar da
sua origem eterna do seio do Pai? Que compreenderia o pobre gentio das
excelsitudes do Verbo, que no princípio estava com Deus e que era Deus? Não
o tinha Pilatos declarado inocente? E não era suficiente saber que não
cometera crime algum digno de morte?...
Firme e conciso, quase geométrico, como o passo cadenciado das legiões dos
Césares, soa o texto latino do direito romano: potestatem habeo crufigere te, et
potestatem habeo dimittere te! Pilatos sente-se na plenitude dessa potestas,
desse poder sobre a vida e a morte; a sorte do acusado está nas suas mãos.
Jesus, porém, faz-lhe ver discretamente que não é ele a fonte suprema desse
poder, nem mesmo o César de Roma, mas Deus, o Senhor do Universo.
– Não terias poder algum sobre mim – lhe diz – se não te fora dado do alto...
– Por isso, maior culpa tem aquele que me entregou às tuas mãos... Tu és
pecador – mais pecadora é a sinagoga.
Esta resposta serena ainda mais impressionou a Pilatos. Diz o evangelista que
a partir daí forcejava por libertar Jesus.
– Se soltares esse homem, não és amigo de César! Porque todo aquele que se
faz rei vai de encontro a César!
Golpe de mestre!
Ao ouvir essa terrível ameaça, sentiu Pilatos quebrada toda a sua resistência,
aniquiladas todas as suas forças; qual golpe de clava caíram aquelas palavras
sobre o seu espírito frágil e indeciso...
“Quando Pilatos ouviu estas palavras”, escreve, “conduziu Jesus para fora e
sentou-se no tribunal, no lugar chamado Lithóstrotos, em hebraico Gábbuta.
Era o dia de preparativos da Páscoa, por volta das doze horas, quando Pilatos
disse aos judeus: – Eis o vosso rei!”
É com pungente sarcasmo que Pilatos lança ao meio das massas estas
palavras:
E eles:
O povo, cônscio da sua vitória, ébrio de ódio, rompe nesta maldição terrível:
E até o presente dia pesa sobre os filhos de Israel o sangue daquele justo...
Pilatos chama um dos lictores, arranca do feixe cerrado uma das varas
simbólicas, quebra-a contra o joelho e atira-a aos pés de Jesus, como que a
dizer:
lbs ad crucem!
Estavam em uso quatro formas de cruz: a cruz simples, que não passava de
um tronco vertical – em que se pregavam as mãos e os pés do condenado; a
cruz commissa, em forma de T; a cruz immissa, na forma conhecida entre nós;
e a cruz aspada, chamada vulgarmente cruz de Santo André.
A cruz do Cristo media uns três metros de altura, de maneira que, depois de
plantada no solo, deixava os pés do crucificado um bom pedaço acima do nível
do chão.
Chefiado pelo centurião romano Longino, partiu, então, o sinistro cortejo da
praça do Pretório em demanda de uma colina próxima às portas da cidade.
A distância que medeia entre o Pretório e o Gólgota orça por 600 a 700 metros.
É a célebre via crucis, via-sacra, ou rua da Amargura.
Era costume romano executar os criminosos perto das portas da cidade, para
escarmento dos transeuntes.
O trajeto, embora pouco extenso, deve ter levado bastante tempo; pois, em
vista das solenidades pascais, as ruas estreitas de Jerusalém regurgitavam de
gente que, sobretudo nesta hora sensacional, se atropelavam caoticamente,
dificultando a passagem aos sentenciados, que arrastavam os pesados
instrumentos do seu suplício. Convém lembrar que não se tratava de ruas bem
calçadas, como as das capitais modernas. Se a tradição cristã fala de três
quedas sucessivas que Jesus teria levado nesse caminho, é isto bem possível;
mesmo um homem forte e de corpo intato corria perigo de tropeços naquelas
ruas acidentadas, ora em declive, ora em subida, e por entre os empurrões de
milhares de transeuntes.
O pregoeiro que seguia diante de Jesus ostentava uma tabuleta com estes
dizeres exarados em latim, grego e hebraico:
JESUS NAZARENO,
REI DOS JUDEUS.
A crucificação
Algumas mulheres piedosas ainda tiveram tempo de oferecer a Jesus uma taça
de narcótico amargoso, a fim de lhe diminuir a sensação da dor. Jesus provou
da bebida para obsequiar as caridosas ofertantes; mas não a sorveu, porque
queria morrer de espírito vigil e plenamente cônscio de si.
Mal os fariseus deram pelo caráter ambíguo desse letreiro – pois eram mestres
em descobrir erros de forma –, mandaram logo uma embaixada ao Pretório
romano a fim de solicitar ao governador que modificasse a inscrição desta
forma: – Eu sou o rei dos judeus.
***
***
– Ajudou aos outros, e a si mesmo não se pode ajudar, ele, o Messias, o Rei
de Israel. Desça agora da cruz, e creremos nele!...
Ouvindo que seu colega continuava a insultar Jesus – talvez por ter com a sua
condenação acelerado a execução deles, marcada para depois da Páscoa –
disse aquele ladrão, iluminado por uma luz superior:
Bem sabia Jesus: antes que amanheça o novo dia, nós dois já não seremos do
mundo dos vivos, mas havemos de nos reencontrar nas regiões do além...
Vendo Jesus sua mãe, teve pena dela, por vê-la sozinha e sem proteção no
mundo: José morrera, havia anos, e Maria não tinha ninguém.
Eis senão quando também Deus lhe é arrebatado!... Aconteceu neste momento
o que nenhum homem acharia possível nem crível, se não viesse nas páginas
sagradas do Evangelho.
– Eli, Eli, lamma sabacthani?... meu Deus, meu Deus! Por que me
desamparaste?...
Que acontecera?
Jesus não responde. Quer morrer física e moralmente aniquilado aos olhos do
mundo.
Alguns dos circunstantes, ouvindo duas vezes a palavra Eli5 (meu Deus),
escarneceram de Jesus, dizendo:
5. Um evangelista escreve “Eli”, outro “Elói”; aquela é a forma hebraica, esta a aramaica de
“meu Deus”, palavra derivada de “El” (Deus).
Desde a ceia da quinta-feira havia Jesus passado sem alimento nem bebida
alguma. As abundantes perdas de sangue tinham-lhe acendido nas carnes
dilaceradas uma sede tão grande que a língua abrasava-lhe; e de súbito vibrou
pelos ares este grito estridente:
– Tenho sede!
Nos campos de batalha, após uma peleja, só se ouve uma palavra: Água!
Água!... Os soldados feridos e mutilados esquecem-se de todas as suas dores
e só sentem a sede que os devora, em consequência da perda de sangue.
– Está consumado!...
Qual suave arrebol vespertino a rematar por um dia de ardor estival; qual
longínquo tanger de sinos a preludiarem uma grande solenidade; qual retorno
do filho ao pátrio lar após uma jornada penosa em terras estranhas – tais
soavam estas palavras segredadas pela divina vítima: Está consumado!...
Finalmente, Jesus murmura:
Que acontecera?
Mão invisível rasgara de alto a baixo o espesso véu que separava o santo do
santíssimo. Era um tecido precioso e forte de jacinto, escarlate e púrpura.
***
Pilatos logo cedeu o corpo ao senador, gratuitamente, o que nem sempre fazia
aos outros pedintes, em ocasião análoga. Mas nesta hora devia o governador
da Judéia achar-se numa disposição psíquica muito singular e dolente. A
condenação de um homem reconhecidamente inocente; o recado urgente de
sua esposa; as palavras misteriosas do Nazareno; os fenômenos estranhos da
natureza – tudo isso abalara profundamente o espírito de Pilatos, evocando-lhe
à mente as palavras do acusado: “Eu sou rei... mas o meu reino não é deste
mundo... Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade”... Teria ele
regressado àquele reino invisível?... Seria, de fato, algum deus, algum ser
divino baixado à terra?...
O tempo urgia.
Era costume dos orientais – que em parte perdura até hoje – mandarem
preparar em vida o jazigo do seu cadáver; e, não raro, ligavam maior
importância a essa moradia do corpo morto do que à casa do corpo vivo.
O embalsamento usado pelos judeus não era geralmente tão perfeito como o
dos egípcios, a ponto de evitar a decomposição do cadáver. Lázaro, apesar de
embalsamado, estava em via de putrefação ao quarto dia após a morte, como
lembra sua irmã Marta.
– Manda, pois, guardar o sepulcro até o terceiro dia; do contrário, poderiam vir
os seus discípulos roubar o corpo e dizer ao povo: Ressuscitou dos mortos! E
assim viria o último embuste a ser pior que o primeiro.
Depois se retiraram para a cidade esses pigmeus, que com as suas teias de
aranha cuidavam ter ligado a força imortal daquele gigante que disse: “A mim
me foi dado todo o poder no céu e na terra...”
Muito antes do nascer do sol, o Nazareno sai do sepulcro, sem revolver a laje
que obstruía a boca do mesmo, sem lesar os sigilos dos seus inimigos;
silencioso como a luz solar a penetrar um cristal, assim atravessa o corpo
redivivo as substâncias compactas da matéria, abandonando a câmara talhada
na rocha viva.
Mas – o coração tem razões de que a razão nada sabe! O coração não pensa,
não calcula, não raciocina – ama simplesmente, e muitas vezes possui o amor
uma intuição mais segura da verdade das coisas que o intelecto com todo o
arsenal dos seus argumentos.
Só uma coisa sabiam elas: que o Nazareno – Deus ou homem, vivo ou morto –
era uma personalidade extraordinária, digna de todo o amor e todo o
entusiasmo dos seus corações.
Eis senão quando, um dos dois fenômenos em figura humana começa a falar
às mulheres, dizendo-lhes com voz suave e cariciosa:
– Não temais! Sei que procurais a Jesus, o crucificado; não está aqui;
ressuscitou, como disse. Vinde e vede o lugar onde esteve colocado o Mestre.
Ide depressa e dizei a seus discípulos que ressuscitou dos mortos; irá diante
de vós para a Galiléia; aí o vereis. Eis que vo-lo disse!
Por mais alviçareira que fosse esta notícia; por mais calmo que fosse o tom em
que eram proferidas estas palavras – as mulheres fugiram de medo e correram
à cidade para dar parte aos discípulos. Não se tinham encontrado ainda com
Madalena.
Pedro e João ouviram dos lábios de Madalena a primeira notícia das estranhas
ocorrências no jardim de José de Arimatéia.
João, diz o historiador com muita graça e espírito de observação, corria mais
rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; mas não entrou, deixando a
dianteira ao mais velho.
Ficara só Madalena.
Pergunta estranha! Como se neste dia se pudesse chorar por outro motivo que
não aquele... Que seres seriam esses que não compreendiam o porquê da sua
grande dor?...
Nisso percebe passos; alguém se lhe aproximou por detrás. Devia ser o
jardineiro. Ela, porém, não quer falar com homem algum, desde que não seja
aquele homem de Nazaré.
Ouve perto de si uma voz que repete a mesma pergunta dos anjos:
A força do seu amor excedia, sem dúvida, o vigor dos seus músculos; e esse
amor ia “buscar” aquele corpo, fosse qual fosse o seu peso...
Se tu o tiraste! – De fato, era aquele mesmo homem que havia tirado o corpo
do crucificado...
– Maria!
– Não me segures! Porque ainda não subi para meu Pai; mas vai ter com meus
irmãos e dize-lhes que subirei para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e
vosso Deus.
E começou a contar.
Bem lhes dizia a consciência que tudo aquilo não era senão o cumprimento das
palavras do Nazareno: No terceiro dia ressurgirei. Mas os gritos da paixão
fizeram calar as vozes da razão.
Que fazer?
Apagar quanto antes a perigosa centelha; não permitir que se alastrasse pela
cidade tão ingrata notícia. Inculcaram, pois, aos guardas:
A política, como se vê, foi desde o princípio um dos argumentos principais dos
inimigos do Cristianismo. Os sacerdotes conheciam os “fracos” do
governador...
Parece que ainda assim os guardas hesitaram, indecisos; afigurava-se-lhes por
demais absurdo espalhar esse boato: Enquanto nós dormíamos vieram os seus
discípulos e roubaram o corpo... Pois, se dormiam, não podiam ver chegar os
discípulos; e se mesmo assim os tivessem visto, por que não impediram o
roubo?... Três absurdos numa única frase!...
Mas o que não valera o poder da política alcançou-o a força do dinheiro. Deram
aos guardas uma grande soma de dinheiro, diz o historiador, para que
divulgassem essa notícia.
É esta descrição uma das mais deliciosas que encontramos nos Evangelhos;
verdadeira obra-prima de espontânea naturalidade, envolta no colorido
característico de uma insofismável autenticidade. Quem nos deixou a primeira
narração deste fato deve ter sido testemunha presencial das ocorrências.
Escritor que tal cena inventasse seria maior que seu próprio herói.
Emaús é uma pequena aldeia que fica ao oeste de Jerusalém, uns doze
quilômetros, ou sejam, duas léguas de caminho.
Páscoa, de tarde...
Primavera em flor.
É que para esses dois caminheiros não despontara ainda o sol da Páscoa.
Discípulos do Nazareno, tinham presenciado o drama sangrento da
crucificação e morte dele, e suas almas gemiam ainda sob o peso da catástrofe
do Gólgota... Três anos de doce ilusão, e agora essa inesperada desilusão dos
seus sonhos!... Dia por dia, aguardavam eles a proclamação do reino de Deus
– e, agora, este completo fracasso!... Com que santo entusiasmo haviam esses
discípulos aplaudido os prodígios do grande Mestre, enlevados com a sua
doutrina, encantados com a sua personalidade – e, agora, tudo acabado!...
Para que ficar ainda em Jerusalém?
Por maior que fosse a perplexidade dos dois viajores, uma coisa era certa:
Jesus não era o Messias prometido; era, portanto, inútil esperar ainda por seu
reino. Não falara ele em ressurreição no terceiro dia? Mas esse terceiro dia
estava prestes a findar – e nada de ressurreição...
– Que conversas são essas que entretendes um com o outro e por que andais
tão tristes?
Calaram-se eles. Que tinha esse estranho que ver com os seus dolorosos
segredos?
Até que, finalmente, um deles, por nome Cléofas, observou com um gesto de
estranheza:
Pois não se falava de outra coisa, na capital, senão da morte trágica do profeta
de Nazaré, que nas Páscoas anteriores formara o centro de todas as atenções.
Os dois discípulos não compreendiam que de outra coisa pudesse alguém falar
nesses dias e estranharam a pergunta do recém-chegado.
É lei psicológica que o homem, quando anda com a alma em chaga viva, evite
formular vocábulos que lhe exacerbem as feridas; recorre a termos gerais ou
discretos circunlóquios. Assim, em lugar da palavra “morte”, preferem os dois
dizer veladamente “aquilo”?...
Pausa...
Cabisbaixos seguem o seu caminho... Era tão pesado o luto das suas almas...
Até que um deles, quebrando o doloroso silêncio, prossegue:
Alongam-se cada vez mais as sombras que as colunas esguias dos ciprestes
projetam sobre o caminho.
– Oh! Homens sem critério, quão tardos de coração para crer tudo o que os
profetas disseram!...
Não era então necessário que o Cristo padecesse tudo aquilo para assim
entrar em sua glória?...
Afinal de contas, ainda não estava tudo perdido... O Nazareno – quem sabe? –
podia ainda ser o Messias, o salvador de Israel!...
– Não se nos abrasava o coração quando, pelo caminho, nos falava e nos
explicava as escrituras?
Sim, um espírito!... Pois, como podia um corpo penetrar naquele recinto com
todas as aberturas fechadas?
– A que vem esse medo? E por que essas dúvidas nos vossos corações?
Jesus tomou do peixe e do mel que lhe ofereceram, comeu à vista deles e
restituiu-lhes o resto.
Não compreendiam ainda que o corpo fluídico, sem deixar de ser verdadeiro
corpo humano, se revestisse de propriedades que o isentavam das acanhadas
leis da matéria.
Não sabemos.
Terá sido simples heroísmo que inspirou essas palavras? Não vibra nelas um
quê de derrotismo, que considera tudo perdido e se sujeita a um destino
inevitável?
– Se eu não lhe vir nos punhos as marcas dos cravos, se não lhe introduzir a
mão no lado não acreditarei!
– Introduze teu dedo aqui e vê os meus pulsos; vem com tua mão e mete-a no
meu lado, e não sejas descrente, mas crente.
– Tens fé porque viste. Bem-aventurado os que não viram, e contudo têm fé.
Tanto das palavras de Tomé como das de Jesus se depreende que a chaga do
lado era da largura de uma mão, correspondente à lança do soldado romano.
Pareciam ter voltado os tempos de outrora. Mas quão grande era a diferença!...
Uma estranha metamorfose se operara na alma daqueles homens. Pescavam,
lançavam as suas tarrafas, afadigavam-se na faina – mas sentiam-se alheios a
essa ocupação. O corpo lá estava – o espírito, porém, vagava longe, muito
longe...
Nesses três anos tinha a alma dos discípulos percorrido distâncias de infinita
extensão... Tinham recebido algo do espírito de Jesus, e desde então sentiam
dentro de si o anseio do infinito, o tormento de Deus, a nostalgia da
eternidade...
***
Certa tarde, disse Simão Pedro aos companheiros hospedados em sua casa:
– Vou pescar.
Responderam eles:
Com que saudades não terão evocado as travessias do lago tantas vezes
empreendidas em companhia do Mestre!... E agora, sozinhos, sem ele!...
Ao clarear do dia foram em demanda da praia, com a barca tão vazia como à
noite.
Assim que Pedro ouviu dizer que era o Mestre, cobriu-se com a túnica e
lançou-se ao mar.
Disse-lhes Jesus:
Entrou Simão Pedro na barca e puxou para a terra a rede repleta de 153 peixes
grandes. E, com serem tantos, não se rompeu a rede – acrescenta João
Evangelista, maravilhado. Tão profunda foi a impressão deste prodígio que,
quase centenário, ainda se recordava o discípulo predileto do número exato
dos peixes – 153 –, e todos eles muito grandes – caso virgem nos anais da
pescaria palestinense!
Não era deste mundo... Era apenas um hóspede passageiro vindo de regiões
longínquas cheias de enigmas...
Pedro e o pastor
Simão respondeu:
6. O texto grego distingue expressamente entre a palavra agapein (amar) e philein (querer). É
de supor que também no aramaico Jesus e Pedro tenham empregado duas palavras
correspondentes.
Respondeu-lhe o Mestre:
E pela terceira vez insiste o Mestre na mesma pergunta, usando desta vez
também a palavra “querer”, com que Pedro respondera invariavelmente:
***
Com estas palavras aludia Jesus ao gênero de morte (crucifixão) que Pedro ia
ter. Depois acrescentou:
– Segue-me!
Por isso, quando o velho galileu ouviu dos lábios de Jesus qual seria o gênero
da sua morte, ardia de impaciência por saber da sorte final de seu companheiro
e sócio João, e afoitamente interrogou o mestre:
– Se eu quero que ele fique até a minha volta, que tens tu com isto?... Quanto
a ti – segue-me!
Missão mundial dos discípulos.
Ascensão de Jesus
Após a sua ressurreição, passou Jesus ainda quarenta dias aqui no mundo,
aparecendo e desaparecendo, instruindo os seus sobre o seu reino a abrindo-
lhes a compreensão das Escrituras.
Era pleno verão quando Jesus resolveu deixar a Galiléia e regressar para a
Judéia. Nascera e morrera em terras de Judá, e ali é que poderia rematar a sua
carreira.
E continuou, dizendo:
– A mim me foi dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, e fazei discípulos
meus todos os povos, mergulhando em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, e ensinando-os a observar tudo quanto eu vos tenho mandado. E eis
que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos.
– Homens da Galiléia! Que estais aqui a contemplar o céu? Este mesmo Jesus,
que acaba de ser assumido ao céu, de lá voltará assim como o vistes subir.
Há longos meses, meu querido Mestre, que venho seguindo a teu lado, pelas
montanhas da Galiléia, pelas campinas da Samaria, pelas cidades da Judéia,
pelas ruas de Jerusalém.
No fim destas páginas, que vivi e sofri contigo e por ti, só me resta pedir-te
perdão das inúmeras falhas e imperfeições de que elas vêm repletas, e rogar-
te que, com a tua divina sabedoria, supras a minha humana ignorância.
Jesus Nazareno!... Torna a ser para os filhos do século XX o que foste para os
cristãos das catacumbas, para os mártires do Coliseu, para os místicos do
ermo.
Os lscariotes atraiçoam-te...
Os fariseus insultam-te...
Os discípulos abandonam-te...
***
Tu sabes, meu querido Rabi, quão difícil é descobrir através dos nevoeiros do
presente século o FULGOR DOS TEUS OLHOS...
O teu Evangelho foi substituído pelas teologias. A tua bandeira flutua sobre o
quartel-general do anticristo.
***
Volta, pois, Jesus Nazareno! Volta a este mundo que só tu podes salvar...
Por isso, meu Jesus, serás crucificado pelos fariseus do nosso século.
Os judeus crucificaram uma vez o teu corpo – mas os cristãos crucificam o teu
espírito há quase vinte séculos.
O que importa, Senhor, é que venhas quanto antes para infundir vida nova a
este organismo languescente e doente da sociedade moderna...
Huberto Rohden
Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).
Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.
Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.
Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.
Maravilhas do Universo
Alegorias
Ísis
Por mundos ignotos
Coleção Biografias
Paulo de Tarso
Agostinho
Por um ideal – 2 vols. autobiografia
Mahatma Gandhi
Jesus Nazareno
Einstein – o enigma do Universo
Pascal
Myriam
Coleção Opúsculos
Catecismo da filosofia
Saúde e felicidade pela cosmo-meditação
Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos)
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, milagre e oração são compatíveis?
Autoiniciação e cosmo-meditação
Filosofia univérsica – sua origem sua natureza e sua finalidade