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Natal: o que diz a Bíblia e a

História – incertezas e disputas


2 de dezembro de 2022

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A festa de Natal é uma das maiores festas da cristandade, contudo ainda é um dos fatos historicamente menos
conhecidos, inclusive pelos cristãos. Sabe-se que Jesus Cristo não nasceu no dia 25 de Dezembro, e não há
documento que indique em que dia, mês ou ano isso teria acontecido. Os Evangelhos não esclarecem muito a respeito.
Eles sequer foram escritos à época em que o nascimento teria ocorrido. Suas autorias foram muito posteriores à
morte de Jesus Cristo.

Calcula-se que, por volta do ano 100, no máximo, os quatro Evangelhos já existiam, mas não eram os únicos. Há
notícias de outros dez (ou mais), escritos ao longo do século II, entre eles o de Tomé, de Pedro, dos Hebreus e da
Verdade.

No final da década de 170, Taciano, o Assírio, reuniu os quatro evangelhos que se tornaram o texto padrão das igrejas
cristãs da Síria até o século IV. No século V, porém, houve nova mudança, com supressão e acréscimos de trechos que
levaram à definição de um novo “Novo Testamento”.

Daí concluir-se que, o Novo Testamento que lemos hoje com a história de Jesus, é um conjunto de livros que alguns
bispos cristãos aprovaram e confirmaram mais de trezentos anos depois da morte de Jesus.

Vamos examinar seis fontes e fatos sobre o nascimento de Jesus.

1. O nascimento de Jesus nos Evangelhos


Os quatro Evangelhos valeram-se das tradições orais acerca das palavras e da história de Jesus Cristo, algumas das
quais remontavam às memórias daqueles que o conheceram. O evangelho de Marcos é considerado, pelos
especialistas, como o mais antigo dos quatro. E, no entanto, ele nada diz sobre o nascimento de Jesus, pois começa
contando a história de Jesus com o seu batismo por João Batista. O evangelho de João também é reticente sobre o
assunto.

Os outros dois evangelhos trazem informações sobre o nascimento. O de Mat eus situa o nascimento de Jesus em
Belém e o relaciona aos últimos anos do rei Herodes, o Grande. O evangelho de Lucas faz o mesmo mas traz duas
informações novas: o recenseamento decretado pelo imperador romano e realizado quando Quirino era governador da
Síria.

‘Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo império romano.
Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria.” (Lucas, 2: 1-2).
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Jesus na manjedoura. Iluminura do Deliciarum Hortus de Herrad de Landsberg, séc. XII.

2. Os personagens históricos no nascimento de Jesus


O nascimento de Jesus liga-se, portanto a pessoas e fatos históricos: o imperador César Augusto, o rei Herodes, o
governador Quirino e o recenseamento da população do império. Cruzando esses dados pode-se determinar, afinal,
quando Jesus Cristo nasceu. Vamos examinar brevemente cada um deles.

César Augusto: primeiro imperador de Roma, Caio Otávio César Augusto, governou de 27 a.C. a 14 d.C. Portanto, o
nascimento e a infância de Jesus coincidem com o reinado de Augusto, como afirma o Evangelho de Lucas.

Quirino, governador da Síria: segundo o historiador judaico-romano Flávio Josefo (c.37-c.95), Quirino tornou-se
governador da Síria, com autoridade sobre a Judeia, no ano 6 d.C. Não tem como contestar a informação de Josefo,
pois foi um fato crucial para a história judaica: naquele ano a Judeia passou a ficar submetida ao controle direto de
Roma.

Herodes, o Grande: rei da Judeia, Galileia e Samaria de 40 a.C. até sua morte, ocorrida em 4 a.C., ano um pouco antes
do eclipse da Lua, datado pelos astrônomos entre 12-13 de março daquele ano.

O evangelho de Mat eus também informa que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes, o Grande (Mateus 2:1) e, que,
devido a ordem do massacre dos inocentes, José, Maria e Jesus fugiram para o Egito onde ficaram até a morte de
Herodes (Mateus 2: 15).

Temos aqui incoerências nas datações: o evangelho de Lucas presume que Quirino e Herodes tenham sido
contemporâneos, quando, na verdade, estavam separados por, no mínimo dez anos. O evangelho de Mat eus afirma que
a família sagrada ficou no Egito até a morte de Herodes mas, este morreu antes de Jesus nascer.

Assim, as informações sobre os governos da época não esclarecem, ao contrário, criam problemas para determinar a
data de nascimento de Jesus.

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3. O recenseamento mencionado na Bíblia

José e Maria em Belém para o censo. Mosaico, Igreja Chora, Istambul.

O evangelho de Lucas afirma que José junto com Maria, já grávida, viajou de Nazaré (na Galileia) para Belém (na Judeia)
para se registrar (Lucas 2:4-5). Este recenseamento é um dos problemas mais difíceis para os estudiosos da Bíblia.

Não há qualquer documento informando sobre um recenseamento no tempo de Herodes, o Grande. E mais: é duvidoso
que o imperador Augusto tenha emitido um decreto determinando um recenseamento universal, isto é, de todo império
romano.

Há três grandes recenseamentos bem documentados que foram ordenados por Augusto: em 28 a.C., em 8 a.C. e em
14 d.C. Mas nenhum deles, porém, foi decretado para todo o império. E, ainda, eles se limitavam aos cidadãos romanos
e José, sendo judeu, não era cidadão romano.

Flávio Josefo informa que na Judeia, sob o governo de Quirino, houve um recenseamento local realizado no ano 6 d.C.,
quando a província saiu das mãos da família Herodes para o governo direto de Roma. De fato, este foi o primeiro
recenseamento de Quirino (como afirma o evangelho de Lucas) mas ocorreu quando Herodes já estava morto havia dez
anos. Portanto, não se sustenta a informação de José e Maria terem ido a Belém para o recenseamento.

Outro dado intrigante nesse episódio, é a presença de Maria acompanhando José ao suposto recenseamento. Não
havia necessidade dela registrar-se junto com o marido. Bastava um dos moradores de cada casa fazer as
declarações devidas. Estranha-se o fato de Maria fazer uma viagem desnecessária estando no final de uma gravidez.

E mais um dado confuso é o fato da Galileia estar sob um governo independente no ano 6 d.C. e, portanto, não estava
sujeita a qualquer censo ou tributo romano (o que não era o caso da Judeia). Este fato é confirmado por Josefo, por
outros historiadores e pelas moedas correntes na época. Como galileu, José de Nazaré estava isento de ir à Belém
para se registrar.

A história de Lucas é historicamente impossível e internamente incoerente. O evangelista não estivera presente nos
primeiros anos de Jesus, como ele mesmo confessa (Lucas, 1: 1-2); escreveu a partir do que ouvira contar talvez trinta
anos ou mais depois da morte de Jesus.

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4. A estrela de Belém anunciou o nascimento de Jesus?

Reis magos. Mosaico, c.565, Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália.

O evangelho de Mat eus menciona o aparecimento de uma estrela à época do nascimento de Jesus e que
acompanhou os reis magos até o local onde estava o recém-nascido. O que diz a astronomia e os registros históricos
a respeito?

A “estrela de Belém” citada por Mateus poderia ser um cometa, fenômeno que os antigos observavam com frequência.
No outono de 12 a.C., há registros de que um cometa foi visto nos céus de Roma e também na Judeia, o que foi
considerado um fato benéfico de indicação dos deuses exaltando o templo de Herodes, recém-concluído. Registros
astronômicos chineses também se referem a este cometa.

Portanto, historicamente, a “estrela de Belém” brilhou doze anos antes do nascimento de Jesus.

Segundo os astrônomos atuais, o cometa de 12 a.C. era uma aparição grande e brilhante do cometa de Halley, o
mesmo que foi visto pela última vez em 1985-1986.

5. Quem eram os reis magos?


É o evangelho de Mat eus que menciona a visita de “magos vindos do Oriente”, guiados pela estrela, e trazendo
presentes de ouro, incenso e mirra (Mateus, 2:1-12). Diz que são magos, e não reis, não fornece os seus nomes e
sequer diz quantos são. Também não deixa claro quando isso ocorreu, isto é, quanto tempo depois do nascimento de
Jesus.

A falta de informações mais precisas alimentou explicações variadas e sem qualquer comprovação histórica.

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Os magos levam presentes ao menino Jesus. O livro de Mateus não os identifica como reis. Afresco em igreja
ortodoxa, Capadócia, T urquia.

O catolicismo ortodoxo da Síria afirmou que foram doze reis magos. Os cristãos chineses afirmam que um sábio
chinês também visitou o menino Jesus. Esses exemplos mostram como a tradição ganhou contornos locais.

Os nomes dos magos permaneceram desconhecidos até o século VI quando foi descoberto o manuscrito Excerpta
Latina Barbari, de Alexandria. O documento menciona o nome dos magos: eram Melchior, Gaspar e Baltazar. O
catolicismo etíope e o armênio, contudo, não concordam com esses nomes e batizaram os magos com outros nomes.

Foi somente no século IX, que o catolicismo ocidental associou os magos a reis e designou seus reinos: Melchior, rei da
Pérsia; Gaspar, rei da Índia; Baltazar, o único negro, rei da Arábia – sem qualquer comprovação histórica.

Enfim, a história de Mateus sobre os reis magos e a estrela de Belém possivelmente foi uma maneira de engrandecer o
nascimento de Jesus tornando-o a realização das profecias judaicas sobre a vinda de um Messias:

“Que os reis de Társis e das regiões litorâneas lhe tragam tributos; os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam
presentes. Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações”. (Salmo 72, 10-11).

“Eu o vejo, mas não agora; eu o avisto, mas não de perto. Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se levantará
de Israel”. (Números, 24:17).

6. Quem criou a data do 25 de Dezembro ?


Havia um festival muito popular em Roma antiga que ocorria no final de dezembro: as Saturnálias, em honra a Saturno.
O festival começava no dia 17 de dezembro e durava sete dias. No dia 25, era celebrado o Natalis Solis Invictus o
“nascimento do Sol Invencível”, homenagem ao deus Sol Invicto, culto procedente da Síria e introduzido pelo imperador
Aureliano no ano 274.

As Saturnálias e o culto ao Sol Invicto correspondiam ao período do solstício de inverno, no hemisfério norte, quando a
luz solar “renascia” por volta de 21 e 22 de dezembro, aumentando em tempo e intensidade a cada dia desde então.
Isso propiciaria a nova safra agrícola, a alimentação para o novo ciclo.

Os primeiros cristãos viram no Sol Invicto a representação simbólica de Jesus Cristo, “a luz do mundo”. Tão logo o
cristianismo foi liberado por Constantino (edito de Milão, em 313), os cristãos passaram a exercer abertamente seus
cultos. No ano 336, eles comemoraram, em Roma, a primeira celebração de Natal no dia 25 de dezembro.

Por um tempo, as Saturnálias e o Natal cristão coexistiram até que o Edito de Teodósio, em 380, oficializou o
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cristianismo e proibiu todas as demais religiões. A partir de então, a festa do Sol Invicto foi cristianizada tornando-se o
Natal, o nascimento de Jesus.

Contudo, nem todos os cristãos concordaram. Na parte oriental do Império, foi fixado o 6 de Janeiro como data de
nascimento de Jesus, dia de outra festa pagã destinada às crianças.
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Portanto, o 25 de Dezembro como Natal foi estabelecido no calendário cristão, não devido a uma certeza e nem foi
uma data inventada, mas “convencionada” pelos cristãos. Uma data ressignificada de tradições e crenças há séculos
enraizadas na sociedade romana. Isso foi, possivelmente, o fator do sucesso de sua difusão entre povos tão diversos
do Império Romano.

Natividade, pintura religiosa etíope. Na Etiópia, a comemoração do Natal ocorre em 7 de janeiro. O cristianismo
tornou-se a religião nacional do Reino de Axum etíope, sob o governo do rei Ezana no século IV. Surge, então a Igreja
Ortodoxa T ewahedo, uma das mais antigas do mundo.

Fonte
FOX, Robin Lane. Bíblia, verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Let ras, 1993.

Jesús, el niño que no nació el 25 de diciembre. Revist a Kindsein.com, de 9 dez 2006.

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