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Revista Espaço Acadêmico – Mensal – Nº 101 – Outubro de 2009 – ISSN 1519-6186

DOSSIÊ: 60 ANOS DA REVOLUÇÃO CHINESA


http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/index

Nenhum a menos –
Dos princípios educativos na filmografia chinesa!
Carlos Bauer*

Introdução e generosas utopias seriam capazes de


breve escopo prescrever para o futuro das sociedades.
teórico Mas, quando falamos da China, também
A trajetória nos interessa interrogar como as
histórica e a condições laborais, culturais, políticas
presença da de sua gente tem se desenvolvido na
China no cotidianidade?
concerto das Pelas nossas condições de trabalho
nações são acadêmico atual um objetivo como esse
de uma singularidade enigmática sem teria muita dificuldade de ser alcançado,
precedentes no mundo contemporâneo. pois envolveria o afastamento de toda e
Das jornadas anti-coloniais, de abundante verborragia apologética e
libertação nacional e revolucionárias pseudo-crítica das relações sino-
dos idos das décadas de 1920, 1930 e mundiais, a consulta sistemática da
1940, o seu alinhamento político, literatura pertinente ao tema e o
econômico e militar com a ex-URSS, o mergulho in loco nas fontes
papel de Mao Tsé Tung e sua revolução documentais, inclusive, orais que
cultural, a influência da Doutrina pudessem substanciar nossos objetivos
Truman e da guerra fria no seu de analisar as práticas cotidianas desses
afastamento da ONU, os conflitos sujeitos históricos, sobretudo, porque
permanentes com os EUA, por conta que nos interessa o espaço social da
das tensas relações com Formosa e a escola, uma vez que suas práticas
Coréia, passando também pelo seu diárias se realizam no intuito de
inusitado rompimento com os sobreviverem, subverterem,
soviéticos, a sua influência na urdidura socializarem e se inserirem em um
e consolidação dos países não-alinhados campo de poder instituído e, ao mesmo
e ditos terceiro-mundistas, até a sua tempo, diverso daquele que hegemoniza
aspiração à condição de potência as relações sociais.
mundial advinda com a conquista do
Por isso, lançamos mão da apresentação
seu próprio arsenal nuclear e inexorável
e análise da película Nenhum a menos,
abertura econômica e política ao
cientes de que o filme não ilustra, nem
ocidente não há uma só temática que se
reproduz mecanicamente a realidade das
produza no seu solo histórico e social
escolas públicas chinesas na
que não desperte a atenção dos analistas
contemporaneidade, mas é capaz de
em escala mundial.
reconstruí-la a partir de uma linguagem
As revoluções fazem com que a história específica, produto de um determinado
transcorra de forma vertiginosa e opera instante histórico. Possibilitando, assim,
transformações que nem mesmo as mais ao historiador da educação e a todos

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aqueles que procuram pensar sua formação docente incipiente. Mais


criticamente as questões educacionais do que, faz com que os seus dilemas
elaborar uma série de perguntas e pessoais, a prática cotidiana na sala de
questionamentos que a leitura das aula e o interacionismo social que passa
imagens deverão lhe proporcionar. a experimentar aos poucos sejam
(BAUER & DABUL, 2008) construídos diante de nossos olhos, com
isso nos oferece também um retrato
A esse propósito Marc Ferro (1988,
duro da resistência à degradação
1989 e 1992) observa que o filme
humana da qual nem sempre temos
produz uma representação do real e sua
visibilidade.
análise pressupõe considerá-lo como um
conjunto no qual cada elemento tem o Aliás, faz isso sem nenhum tipo rancor
seu próprio significado, ele possui um ou como uma denuncia barata, mas
texto visual que exige uma análise como uma poética lição de
interna e, como um artefato cultural, solidariedade, apego e persistência na
possui sua própria historicidade e um humanização e dignificação do homem
contexto social – com suas esteja ele onde estiver.
características e signos de uma época –
Contando a
no qual se desenvolve, residindo aí à
história do
complexidade da análise fílmica para os
filme – mas sem
historiadores que o toma como uma
atrapalhar a
fonte de estudo de um determinado
disposição de
instante histórico.
ninguém em
O cinema pode ser pensando como uma assisti-lo
fonte credível no entendimento das A China é um
ideologias e mentalidades dos sujeitos país milenar com
históricos. uma
Utilizando-se de filmes podemos buscar impressionante
evidencias que podem contribuir com população com mais de 1.300.000.000
nossa compreensão de determinados de habitantes e uma crescente influência
eventos e períodos históricos que estão econômica no mundo, inclusive, no que
contidos em sua narrativa, como se refere ao Brasil, apenas nos últimos
também a caracterização de anos, as exportações para esse país
determinados personagens, suas idéias, assistiram a um crescimento
práticas ou ideologias nos possibilitam impressionante, ultrapassando os 16
penetrar nas zonas ideológicas não- bilhões de dólares e ultrapassando os
visíveis da sociedade, nos permitem Estados Unidos, em valores de
perceber até mesmo o que seu importações de nossos produtos.
realizador não queria mostrar. (FERRO, Porém quase nunca se fala das suas
idem.) relações educacionais e muito menos
Assim, Zhang Yimou, com o filme daquelas que se produzem no seu
Nenhum a menos (Yi ge dou bu neng universo rural e as tensões que se
shao, China, 1999) nos oferece uma estabelecem por conta de sua irresístivel
leitura apurada e imagética sobre o dia a industrialização. Com o filme Nenhum a
dia e a rotina de trabalho de uma menos, de Zhang Yimou, somos
professora tão jovem quanto os seus brindados com essa oportunidade!A
próprios alunos e, por conta disso, com idéia de fazer o filme, segundo o seu

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realizador, surgiu das inúmeras havia deixado essa cotidianidade em


peregrinações de Yimou pelos rincões busca de trabalho na cidade grande e
mais afastados e desconhecidos do seu industrializada.
país, registrando as paisagens áridas, Até aí, nada de se estranhar,
desoladas e, o que é pior, o abandono principalmente, para nós brasileiros, que
social, identificados em suas lentes estamos acostumados a esse enredo e a
pelas crianças que trabalham para discutir as tensões escolares
colaborar com os seus pais na produção engendradas pela presença do trabalho
da renda familiar. infantil em praticamente todos os
São crianças famélicas, dispostas a estados do país. Ocorre que nossa
abandonar a escola e partirem em professora é uma criança, ela própria
direção das cidades em busca de também precocemente inserida no
trabalho ou, no limite da humilhação e trabalho docente.
degradação humana, esmolarem por
Sim, Wei Minzhi
comida que suas apuradas e coloridas é apenas menina
imagens nos permitem antever. e também
O resultado foi um filme de uma trabalha
simplicidade poética contagiante, uma bastante!
narrativa própria do trabalho de Contando
etnografia de um antropólogo. Yimou o aproximadament
produziu com um grupo de crianças que e treze anos de
estava longe de almejarem o estrelato idade,
cinematográfico, filmadoras de 16 mm, evidentemente,
microfones ocultos e uma equipe sem nenhuma
técnica invisível aos olhos dos experiência profissional, com
improvisados atores mirins e que, dificuldades em estabelecer um
portanto, podiam improvisar o tempo relacionamento mais profícuo com os
todo e muitas vezes nem mesmo sabiam seus alunos e a comunidade que a cerca,
que estavam sendo filmados. mas que está pronta para empreender
uma verdadeira odisséia para resgatar o
Nenhum a menos também tem um
seu pupilo do inferno urbano, com suas
enredo marcado pela candura e a poesia
relações de trabalho precário e do
que o cotidiano produz e nem sempre
subemprego que a todos
somos capazes de captar, passando
impiedosamente devora.
despercebido o lirismo que nele se
abriga, perdura e desenvolve aquilo que Zhang Yimou filma com delicadeza,
depois chamamos pomposamente de sem pieguices ou quaisquer apelos
história. melodramáticos, a impressionante
desenvoltura docente e o mergulho
A história que o filme conta traz como
intuitivo e altruísta dessa professora e
sua protagonista Wei Minzhi,
seus alunos numa cotidianidade
contratada para substituir o professor
perversamente banalizada e fadada ao
Gao, numa escola desprovida de todo e
esquecimento.
qualquer recurso – exceto do giz e de
um carcomido quadro negro – num Mas é preciso resgatar esses
ermo e desolado lugarejo do interior da personagens do limbo da história!
China e suas peripécias para resgatar Zhang Yimou tem esse compromisso e,
um dos seus alunos, no caso Zhang, que por conta disso, nos oferece uma

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portentosa crítica social de caráter O professor Gao e as crianças,


universal, francamente comprometido particularmente, Wei abruptamente
com o cinema neo-realista e o registro transformada em professora. Zhang, de
das histórias de vida, das vozes, gestos e aluno rebelde e briguento à vítima de
olhares desses personagens raramente um sistema povoado de injustiças e
lembrados nos compêndios oficiais, mas contradições, as alunas que nada tem,
que são fundamentais no processo de dormem e se alimentam na escola, aliás,
humanização do homem sob a face da é através do registro no diário que uma
terra. delas escreve que ficamos sabendo e,
imediatamente, pudéssemos
Nenhum a menos – algumas
redimensionar a importância e
possibilidades interpretativas e uma
significado do giz como um dos poucos
brevíssima conclusão.
recursos disponíveis na escola. E até
Na tentativa de operar uma análise do mesmo aquela aluna que escapa desses
filme Nenhum a menos, estabelecendo infortúnios, pelas suas qualidades
uma relação com o nosso propósito atléticas nos oferece uma gama muito
inicial de conhecer como as práticas grande de possibilidade interpretativa e
laborais, culturais, políticas tem se registro da história social que está num
desenvolvido na cotidianidade, partimos curso completamente avesso ao que os
de algumas premissas e categorias discursos oficiais proclamam e exaltam.
históricas que estão presente nas obras
A análise das práticas cotidianas,
de Michel Certeau (2001 e 1994).
segundo Certeau (1994), se realiza de
Esse autor argumenta que as variadas maneira a apresentar que os modelos
maneiras de “fabricar” e “reinventar” o culturais não determinam as relações
cotidiano pelo indivíduo comum é que sociais, e sim o contrário, se assentando
precisam ser estudadas, a fim de nos indivíduos de forma incoerente e
descortinar todo um movimento contraditória. Explica-nos o autor que a
subterrâneo existente e atuante nas questão central é descortinar as
sociedades. A cultura erudita, maneiras de fazer e ser dos indivíduos, e
propriedade da minoria dominante, e a não o indivíduo enquanto sujeito único.
cultura popular, formada por elementos
No filme isso fica muito claro quando
culturais que a primeira abandonou e
Zhang abandona a escola parte para a
eliminou do seu círculo, não possuem
cidade a procura do trabalho que possa
importância na sua perspectiva de
sustentá-lo e a sua família. Este é um
estudo.
instante épico e o momento que todos –
Concordamos com Michel Certeau, pois professora e alunos – parecem tomar o
também é preciso estudar as criações destino em suas próprias mãos.
dos indivíduos em seu ambiente
A compreensão de todos e que Wei
cotidiano, que são efêmeras e ocultas,
precisa resgatar Zhang e para isso todos
mas que se fazem presentes na
precisam colaborar na arrecadação de
sociedade, produzindo alternativas de
fundos, mesmo que para isso tenham
sobrevivência e resistência ante o
que submeter as agruras do trabalho
sistema dominante.
braçal numa rudimentar olaria. A
A esse propósito o filme de Zhang produção de tijolos por parte das
Yimou e seus personagens são crianças não aparece nem como uma
lapidares. denúncia, nem como uma visão
pragmática da necessidade do trabalho

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infantil na sociedade, mas como uma sobre o filme Nenhum a menos, é a


estratégia necessária a resistência a imagem das crianças bebendo e
evasão escolar que poderia se abater repartindo entre si duas ou três latinhas
sobre a vida de qualquer um dos que de Coca-cola. Fazem isso de uma
agora se mobilizavam e assumiam sua maneira tão singela e espontânea que
parte de responsabilidade no resgate do nos faz desejar que os valores da
colega. solidariedade humana e da socialização
As práticas cotidianas, segundo Certeau dos frutos do trabalho possam se
(1994), tais como: falar, escrever, consagrar como princípios inalienáveis
comer, ler, andar, passear, fazer na história da humanidade.
compras, escutar músicas, assistir
televisão; se configuram como táticas.
Ficha técnica
Nas maneiras de fazer cotidianas essas
táticas podem ser visualizadas na Filme Nenhum a menos (Yi ge dou bu neng
multiplicação dos espaços, antes shao, China, 1999)
fechados, como os de uma classe Direção: Zhang Yimou
Roteiro: Shi Xiangsheng
escolar, nos protestos contra o aumento Fotografia: Hou Yong
da passagem do transporte público ou, Elenco: Wei Minzhi, Zhang Huike, Tian
como no caso do filme, os múltiplos e Zhenda, Gao Enman
simultâneos aprendizados que os seus DVD Columbia
protagonistas passam a vivenciar e Duração: 106 minutos
reconhecer como importantes no
exercício de sua sociabilidade. Assim, Referencias
essas táticas auxiliam na subversão e
alteração dos produtos culturais BAUER, Carlos & DABUL, M. R. O cinema
como fonte documental em pesquisas
impostos pelo sistema dominante. educacionais: análise do filme "Anjos do
Esses procedimentos, que são as Arrabalde", de Carlos Reichenbach. São Paulo:
Dialogia, v. 7, p. 95-101, 2008.
maneiras de fazer e de ser dos
indivíduos – que também podem ser CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 2ª
denominadas de práticas cotidianas – edição. Campinas: Editora Papirus, 2001.
são produtores de espaços sociais, _______ A invenção do cotidiano. 4° edição.
diversos e diversificados, que fogem as Petrópolis: Vozes, 2 v., 1994.
determinações sociais estabelecidas FERRO, MARC. A história vigiada. Trad.
pelo poder dominante. Eles, por sua Doris Sanches Pinheiro. São Paulo: Martins
vez, geram lugares únicos e unívocos, Fontes, 1989.
despercebidos muitas vezes pelos _______. Cinema e história. Trad. Flávia
detentores dos mecanismos impositivos Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
da sociedade, porém, que existem e _______. "O filme, uma contra-análise da
coexistem no seio social. sociedade?", in História: novos objetos, dir.
Jacques Le Goff e Pierre Nora, 3ª ed., Rio de
E sobre isso, o que me vem à memória, Janeiro, Francisco Alves, 1988, p.201 e 202.
no momento de concluir esse artigo

*
Carlos Bauer é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove
de Julho – PPGE/UNINOVE. E-mail: carlosbauer@pesquisador.cnpq.br

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