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INSTITUTO DE HISTÓRIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NITERÓI
2019
ESTEVÃO BALADO PEREIRA
NITERÓI
2019
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ESTEVÃO BALADO PEREIRA
Banca Examinadora
NITERÓI
2019
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AGRADECIMENTOS
O presente trabalho, de cunho ensaístico, busca realizar uma análise das novas perspectivas
relativas à Educação. Após um breve apanhado histórico dos processos e mentalidades que
formaram a escolarização ocidental ao longo da História, consideramos mais detidamente as novas
alternativas de Educação que têm emergido, principalmente no Sul Global, e mais especificamente
na América Latina, que contatamos presencialmente, para concluir com o recente projeto de criação
da Escola Democrática de Niterói. Apoiamo-nos em autores como Michel Foucault, Paulo Freire,
Ivan Illich, Jorge Larrosa, Fernández Enguita e Alexander Neill para estabelecer estas críticas, e
também nas experiências pessoais do autor acumuladas ao longo de seus processos de formação e
pesquisa. Com depoimentos de estudantes, famílias e educadores de diversos projetos alternativos
de educação na América Latina, pretendemos, ainda, destacar a força destas novas propostas
pedagógicas, e chamar a atenção para a importância e urgência de uma transformação radical da
Escola e da Educação.
This work is an essay that aims to analyze new perspectives in the field of Education. After a brief
historical review of the process and ideas that shaped western schools throughout History, we do a
more comprehensive consideration of the new Education alternatives that continue to emerge,
particularly in the Southern Hemisphere, and more precisely in Latin America, who we contacted in
person, as a conclusion of the recent project to create our school Escola Democrática de Niterói.
Our criticism is based on authors such as Michel Foucault, Paulo Freire, Ivan Illich, Jorge Larrosa,
Fernández Enguita and Alexander Neill, and is also informed by the author's personal experience,
accumulated throughout his entire academic education and research. Through the use of personal
accounts from students, families, and educators from a wide variety of alternative education
projects in Latin America, we aim to highlight the strengths of these new pedagogic perspectives,
and draw attention to the essential, urgent need for a radical transformation of Education as a whole.
Introdução.............................................................................................................................................1
Capítulo 1: Sobre a Educação: um diagnóstico do que falece e uma amostra do que floresce............5
Capítulo 2: Sobre a forma de educar: um movimento que reverbera, e uma escola que eu
quisera................................................................................................................................................17
Considerações Finais..........................................................................................................................52
Referências Bibliográficas..................................................................................................................54
1
INTRODUÇÃO
A afirmação é de António Nóvoa, numa entrevista. Isto não trataria apenas da escola, pois
poderia aplicar-se também à Universidade, embora aqui muitos dos professores “limpem as mãos”,
jogando toda a carga de responsabilidade para os alunos, que, teoricamente, já são maduros o
bastante para tomar suas decisões, afinal “foram formados com louvor nas nossas excelentes redes
de ensino”. Mas será que existe isso de ‘alunos que não querem aprender’?
Apenas para ilustrar, cito uma pesquisa realizada no Reino Unido em 2013 pela One Poll 2,
que aponta que crianças entre 2 e 10 anos fazem uma média de 288 perguntas por dia às suas mães,
das 07:19h até 19:59, o que resulta, neste intervalo de tempo, em 23 perguntas por hora. As cinco
perguntas mais frequentes são: Por que a água é molhada? Onde termina o céu? De que são feitas as
sombras? Por que o céu é azul? Como os peixes respiram debaixo da água? Percebem?... O que é
aprender?...
Estar sentado numa cadeira, ouvindo um professor? Ler um livro? O que é ensinar?
Discorrer sobre alguma verdade? Convencer alguém de algo? Será que estes alunos aos quais
António Nóvoa se refere, assim como tantos outros atores que ele cita, sentem-se respeitados nestes
espaços escolares? Será que se sentem acolhidos? Será que compreendem as razões que levaram
seus pais, um dia, a deixá-los em um prédio completamente estranho, com pessoas absolutamente
desconhecidas, provavelmente chorando, e voltarem apenas horas depois? Será que sabem por que
esta experiência obrigatoriamente se repetiria pelas primeiras duas décadas de sua vida?
Meu nome é Estevão Balado Pereira, 26 anos, filho caçula de uma mãe solteira, com duas
irmãs mais velhas e agora dois sobrinhos. Escrevo ficção e ingressei no curso de Graduação em
História, em meio a outras possibilidades (como Biologia, Arquitetura, Física, Nutrição, Relações
Internacionais e Letras, para citar alguns exemplos), porque achava que me ajudaria a contar
histórias melhor. Atuo como educador desde os 16 anos, já fui monitor de datilografia num curso de
informática, professor particular de Matemática, Química, Física, Português, Inglês, Espanhol e até
de História, lecionei também em projetos de aprendizagem através de jogos de mesa, digitais e
RPG, e no momento atuo na Escola Democrática. Estudei teatro, fotografia, cinema, gamedesign,
1 LICÍNIO, Lucíola S. Entrevista com o Professor António Nóvoa. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 4, n. 1,
jan./jun. 2013, p. 235.
2 <https://www.telegraph.co.uk/news/uknews/9959026/Mothers-asked-nearly-300-questions-a-day-study-finds.html>.
Acesso em 30/12/2019.
2
canto, violino, algumas línguas... Trabalhei como Bartender por outros 4 anos, até tive meu próprio
restaurante por 3 deles. E, neste tempo todo, não consegui terminar a minha faculdade, e me
questionei muito tempo se continuaria a cursá-la ou não, pois raramente me sentia acolhido neste
espaço como eu me sentia em todos os outros, por mais efêmeros que fossem.
Cada disciplina na faculdade dura 6 meses, em geral 60 horas, e via de regra seguem a
mesma estrutura escolar padronizada e institucionalizada há tantos anos. É sintomático nas
instituições de ensino o desejo muito grande de falar daqueles que estão responsáveis pelo fazer
pedagógico, e uma preocupação muito pequena com a escuta. Ou melhor, hierarquicamente
distribuem-se os “espaços de fala”. Sendo que os estudantes, na base disso, não são ouvidos. São
educados a calar-se e obedecer. Crescem e reproduzem isso com os mais jovens. E, no nosso
processo de formação docente, somos tratados da mesma forma. Como escutaremos os estudantes
se somos ensinados a vida toda que eles é quem devem escutar? E, agora que somos professores,
com tudo aquilo que sempre quisemos dizer, alcançamos este tão cobiçado “espaço de fala” e
perpetuamos este sistema castrador, violento, competitivo e meritocrático.
Minha mãe e minhas irmãs se formaram educadoras antes de mim, mesmo que eu e minhas
irmãs tenhamos estudado concomitantemente na Universidade. Só estou demorando muito mais
para sair. Eu só fui de fato discutir educação com elas pela primeira vez há pouco tempo atrás. Elas
não me ouviam ou, ao menos, eu não me sentia ouvido.
Talvez não com a melhor das intenções, a escola onde fiz o primeiro estágio, em Niterói, no
ano de 2014, reservava – creio que ainda reserve – um horário para uma “disciplina” chamada
Cidadania, mas, pelas conversas que tive com vários dos alunos que a cursaram, ela era vista como
um lugar de debates para uns e ‘tempo vago’ para outros. Essa foi a forma que o corpo docente
desta escola encontrou para tratar das “questões sociais” sem sair do programa geral das disciplinas
“importantes” e mais valorizadas. Porém, junto com o professor de História desta escola, Henrique
Vieira (ator, poeta, palhaço e pastor, além de educador), produzimos e pensamos uma atividade para
fazer com os alunos, completamente alheia aos chamados saberes escolares, aquém de programas e
avaliações. E dar-lhes espaço para falarem, se escutarem e se conhecerem.
Um espaço mais pessoal que gerasse autocrítica, construísse uma percepção mais profunda
de si, para melhor perceber o outro, e assim manter-se sensível à visão histórica e política mais
humanizada. Tentamos deixar claro que os ‘personagens’ históricos dos livros didáticos, os das
reportagens, os das manchetes de jornal, os seus colegas de classe e as pessoas na rua não são, como
diz Renato Russo, apenas personagens, mas gente de verdade.3
Demos início à atividade construindo com eles um quadro de características pessoais que
pautariam nosso trabalho. As seguintes questões o compunham: quais suas músicas ou bandas
favoritas? filmes e livros que alteraram sua vida? uma pessoa que os inspire? o que lhes dá medo?
3 LEGIÃO URBANA. Vamos fazer um filme. O descobrimento do brasil, faixa 8. EMI, 1993, 51:33min.
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quais são seus sonhos? o que os faz sorrir? o que os faz chorar? qual sua definição de felicidade e de
amizade? do que sentem saudade? qual seria o título do livro de suas vidas? e “se a vida é rara e o
tempo passa, então?...”. Algumas destas perguntas foram sugeridas pelos alunos, algumas por nós.
Os trabalhos que desenvolvemos juntos a partir destas questões foram inspiradores e
transformadores. Mantenho contato com alguns destes jovens ainda hoje, anos passados. É claro
que não foi perfeito, mas foi mais sincero, democrático e respeitoso do que qualquer outro trabalho
que eu me lembre de ter feito na minha época de estudante. Rie chinito
A escola onde fiz meus dois primeiros estágios vive a “síndrome dos papéis”, eu diria. Tal
escola é conhecida em Niterói por ser capaz de realizar um trabalho inclusivo com os alunos que
possuam algum tipo de “deficiência” cognitiva. E como provar esta deficiência? Com um laudo
médico. Discalculia, TDAH, dislexia... Mas também é conhecida como uma escola menos severa
em termos de nota e desgaste dos alunos (questão que mereceria uma densa discussão), pois
possuem algumas “facilidades” como dependências, recuperações... Enfim, possui um sistema de
avaliação menos complexo e mais capaz de recuperar alunos cujas notas – forma última de
avaliação de seres humanos neste obsoleto sistema educacional – em outras instituições, poderiam
mantê-los amarrados a uma determinada série.
Tendo isso em vista, pode-se supor de antemão o que se comprova na prática. Muitos dos
alunos desta escola apresentam grandes dificuldades em determinadas disciplinas, ou um quadro de
repetências ou dependências das escolas de onde vieram, o que às vezes gera um sentimento
coletivo de impotência frente ao sistema de ensino (e isso vai ficando mais claro quanto mais
“próxima” do vestibular está a turma). Muitos alunos acabam perdendo o interesse pela escola pela
falta de sentido que veem nela, em suas disciplinas, na forma como são apresentados a elas... Mas
isso não é um problema desta escola em si, ou de seus alunos, e sim uma questão cultural que vem
pautando nosso aprendizado visando o sucesso intelectual e financeiro dos jovens, no vestibular, nas
universidades públicas e num emprego idealizado.
Na escola, os alunos são obrigados a usar uniformes e apresentar a carteirinha do colégio na
entrada, para terem sua presença controlada. Não existe tolerância para atrasos dos estudantes,
sendo que as aulas têm início às 7:20 da manhã. Aqueles que chegam dois minutos depois têm de
esperar no pátio pelo início da aula seguinte, passando o tempo com música ou conversas, entre si
ou com os funcionários que ficam por ali.
Achei graça de um papel afixado no mural de cada sala descrevendo os deveres e
responsabilidades dos representantes. Intrigou-me o fato de não estarem ali seus direitos, e do fato
de que as responsabilidades eram morais, como obedecer às regras da escola para dar exemplo aos
demais, tirar boas notas, ser gentil com os colegas, ser educado e respeitoso...
Que mundo estamos construindo ou mantendo com esta prática educativa? A que interesses
ela atende? Como poderíamos transformá-la? E que papel o ensino de história pode ou deve ter
4
nessas transformações?
Eu comecei a me fazer todas estas perguntas e a me interessar por autores que se faziam
estas mesmas perguntas. Assim, voltei para a faculdade. Desde 2012 também faço parte de um
coletivo de educadores que integram o Projeto Construindo Saber (Icaraí, Niterói). Nele, debatemos
cotidianamente educação. Dele surgiu o [Re]Considere – coletivo independente de debate sobre
educação através da arte e de intervenções – onde comecei a atuar como câmera, fotógrafo e editor,
além de participar também da construção dos projetos e dos debates em si. O fato é que foi aí que a
minha percepção sobre o processo mudou. E eu descobri que, durante todo este tempo, eu estava me
formando. Por conta dos Encontros, da Troca e do Outro.
Este trabalho que o leitor tem em mãos pretende refletir historicamente sobre qual tem sido
e qual pode ser o papel da Escola, da formação escolar e do conhecimento histórico na construção
das sociedades à luz das reflexões que estes distintos atores e autores me proporcionaram. No
primeiro capítulo tentarei construir um breve panorama do que foram os processos de educação e
escolarização ao longo da história das sociedades ocidentais, usando como referência principal o
livro A face oculta da Escola: Educação e Trabalho no capitalismo, de Mariano Fernández Enguita.
Além disso, pretendo elencar os principais elementos que caracterizaram a educação tradicional
para no segundo capítulo questioná-las, apresentando algumas alternativas práticas e teóricas. Neste
segundo capítulo, trarei referências de uma web série 4 documental sobre educação alternativa,
produzida em uma viagem que fiz com o [Re]considere, em 2016, por 6 países da América Latina.
No terceiro capítulo farei algumas reflexões sobre o que é esta escola que buscamo e trarei materiais
desenvolvidos na Escola Democrática, que recém abrimos, em Niterói, em 2019, para na conclusão,
fazer um balanço da convergência destas reflexões e de possíveis caminhos para uma educação
democrática mais ampla.
4 [RE]CONSIDERE. O que eles têm para nos dizer? Youtube, Canal Reconsidere, Brasil, 2016. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=RosYXvHZip0&list=PL7XBpzQRvnW0syqKImyQpqCRXpWDk_H7L>
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CAPÍTULO 1
Sobre a Educação: um diagnóstico do que falece e uma amostra do que floresce
Este longo trecho introdutório de um dos livros mais famosos do filósofo austríaco Ivan
Illich tenta retratar alguns aspectos da sociedade contemporânea a partir do papel que a escola tem
cumprido não só em sua conformação, mas também em sua manutenção. Neste retrato vemos a
fragilidade deste modelo escolar. Modelo este historicamente construído num contexto de intensa
transformação social do mundo ocidental, que foi a chamada Idade Moderna. Esta escola carrega
estruturas do século XIX, com professores do século XX e estudantes do século XXI. Não me refiro
a uma hierarquização do tempo, nem pretendo reforçar a ideia de que o mais moderno é o melhor,
mas é importante observar esse largo espaço de tempo que separa os cenários e os atores destes
ambientes, e daí podermos supor a complexidade que os circunscreve em suas relações.
No entanto, numa breve análise de como a ideia de Escola foi se constituindo ao longo da
história ocidental, percebemos que, mesmo muito antes do século XIX, as relações de
aprendizagem, principalmente no que diz respeito às crianças, refletem e justificam muitos dos
simbolismos contidos nas escolas e no ideário por trás delas, mesmo na contemporaneidade. E
assim poderemos tratar da infância, das relações sociais de produção e da formação de uma
sociedade que confunde liberdade com propriedade – processo com substância –, como sugere
Illich.
Sempre existiu algum processo preparatório para a integração nas relações sociais
de produção, e com frequência, alguma outra instituição que não a própria
produção em que se efetuou esse processo. Nas sociedades primitivas podem ser os
jogos ou as fratrias de adolescentes, marcando seu desenvolvimento por algum que
outro rito de iniciação. Em alguns casos, a iniciação de crianças e adolescentes é
5 ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 16.
6
responsabilidade dos adultos em geral ou dos anciões; em outras, de estruturas
mais ou menos fechadas de parentesco ou da família, que é de qualquer forma urna
estrutura ampliada.6
No livro A face oculta da Escola, Mariano Fernández Enguita faz uma análise muito
interessante sobre a conformação da Escola ao longo da História, atentando às relações de trabalho
no Ocidente, à liberdade e às formas que esses fenômenos foram tomando no mundo capitalista,
“que hoje nos aparece como a mais natural do mundo, mas que não foi vista do mesmo modo por
aqueles que haviam conhecido outras e foram subitamente arrancados delas.” 7 É como afirma em
seu prefácio.
Na antiga Roma, o aprendizado das crianças, em geral, mesclava-se entre o convívio em
casa e com a família e participação na vida adulta e nos espaços públicos da sociedade. Os meninos
acompanhavam o pai no trabalho, na cidade ou no campo, na política ou na guerra, enquanto as
meninas auxiliavam e aprendiam com as mães as tarefas domésticas e atividades necessárias às suas
vidas. Assim se dava com as gentes livres das classes pobres. Os filhos de ricos e dos patrícios
muitas vezes tinham tutores, aprendiam a ler, escrever, estudavam filosofia e diversas formas de
arte.
Tratando da maioria da população, que eram os camponeses, durante a Idade Média o
aprendizado ainda acontecia de forma muito parecida, no seio familiar. Com o domínio do
Cristianismo, muito da educação também estava pautada na formação da fé e da moral cristã. No
entanto, havia o costume também, em muitos lugares, de enviar os filhos para os cuidados de outra
família, muitas vezes com interesses políticos ou por outros laços sociais.
Sobre isso, Philippe Ariès recolhe um texto italiano sobre a família medieval inglesa no séc
XV:
Vemos que, nestes casos, as crianças já estão desde cedo, em todo seu processo de
6 FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: Educação e trabalho no capitalismo. Trad. de Tomaz
Tadeu da Silva. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989, p. 105.
7 Ibidem, p. II.
8 ARIÈS, Philippe, 1973 apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 106.
7
formação, sendo preparadas para a vida adulta, para a vida de trabalho, para serem produtivas e
atender às demandas sociais e às expectativas dos adultos, principalmente as de suas famílias.
Já na Idade Média também podemos observar muitos artesãos recebendo pequenos grupos
de aprendizes, que exerciam o trabalho com eles, aprendiam e auxiliavam. Ligavam-se em relações
de mútua obrigação em que o aprendiz, para além da oficina, auxiliava seu mestre na vida
doméstica, enquanto este estava obrigado a alimentar, vestir, ensinar e formar moral e
religiosamente seus aprendizes.9
Enguita chama-nos atenção para algo interessante:
[...] nestes reinos de seis anos a esta parte, pessoas piedosas têm dado ordem para
que haja colégios de meninos e meninas, desejando dar remédio a grande perdição
que de vagabundos, órfãos e crianças desamparadas havia, (…) porque é certo que
ao se remediar estas crianças perdidas põe-se obstáculo aos latrocínios, delitos
graves, e enormes, que por se criarem livres e sem dono, aumentam, porque se
tendo criado em liberdade de necessidade hão de ser, quando grandes, gente
indomável, destruidora do bem público, corrompedora dos bons costumes,
contaminadora das gentes e povos. 12
Neste contexto, com a mentalidade da época, as crianças passavam a ser um insumo bastante
cobiçado para o desenvolvimento da indústria, já que poderiam ser educadas para isso. Formadas
para isso.13 Já no século XVIII, elas eram usadas como mão de obra barata. Meio milhar de crianças
de asilos de Edimburgo e Glasgow foram a base de New Lanark, um vilarejo fundado por David
Dale e Robert Owen, focado em moinhos de água. Lá, estas crianças trabalhavam nos moinhos. 14
Neste vilarejo foi construída, não por acaso, a primeira Infant's School da Inglaterra em 1817, e no
ano anterior o Instituto para a Formação do Caráter.
Na Inglaterra, as workhouses (casas de trabalho) converteram-se em Schools of Industry
(Escolas da Indústria) ou Colleges of Labour (Academia de Trabalho). Sir Josiah Child, um
proponente do mercantilismo que viveu no século XVII, em seu New Discourse on Trade afirma o
seguinte: “Que produzam lucros ou não, é algo que não importa muito; o grande problema da nação
é, em primeiro lugar, afastar o pobre da mendicidade e da inanição e assegurar-se de que todos os
que sejam capazes de trabalhar possam ser, no futuro, membros úteis para o reino”.15
Na França não foi diferente: “O industrial Boyer-Fonfrade, de Tolouse, reclamava
quinhentos órfãos de diversos orfanatos, convencido de que estas ‘crianças’ lhe prometem uma
grande vantagem como mão de obra, graças à vida comunitária, à sua obediência e a seu hábito de
trabalhar”16. Esta é a mentalidade que começa a despontar nesse período. Enguita traz vários nomes
para exemplificar, dentre eles William Temple que propõe que:
Quando estas crianças tiverem quatro anos, serão enviadas a uma casa de trabalho
rural e, ali, ensinadas a ler duas horas ao dia e mantidas plenamente ocupadas o
resto de seu tempo em qualquer das manufaturas da casa (…). É de considerável
utilidade que estejam, de um modo ou outro, constantemente ocupadas ao menos
doze horas ao dia, quer ganhem a vida ou não; pois, por este meio, esperamos que a
geração que está crescendo estará tão habituada a ocupação constante que, em
geral, lhe será agradável e divertida […]. 17
Por um lado, necessitavam recorrer a ela para preparar ou garantir seu poder, para
reduzir o da igreja e, em geral, para conseguir a aceitação da nova ordem. Por
outro, entretanto, temiam as consequências de ilustrar demasiadamente aqueles
que, ao fim e ao cabo, iam continuar ocupando os níveis mais baixos da sociedade,
pois isto poderia alimentar neles ambições indesejáveis. 19
Enguita, em seu livro, traz à luz, com certa dose de acidez, o verdadeiro interesse de muitos
dos pensadores iluministas. Nos lembra que membros desse setor de laboratores, o famoso Terceiro
Estado medieval, em geral eram mais ricos do que alguns dos bellatores ou Oratores, Segundo e
Primeiro Estado, respectivamente. Assim, ocupavam também cargos, terras e honrarias superiores à
maioria da população, verdadeiramente de laboratores, trabalhadora e pobre – daí terem também
interesses muito distintos.
John Locke, por exemplo, inspirador da educação moderna e liberal, ao mesmo tempo em
que discorre sobre como deveria ser a educação de um gentleman, propõe o internamento das
crianças pobres, e ainda declara: “Ninguém está obrigado a saber tudo. O estudo das ciências em
geral é assunto daqueles que vivem confortavelmente e dispõem de tempo livre. Os que têm
empregos particulares devem entender as funções; e não é insensato exigir que pensem e raciocinem
apenas sobre o que forma sua ocupação cotidiana”.20
Os projetos de lei que pretendiam assegurar um mínimo de instrução literária foram
18 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro
Gráfico, 1988. Artigo 227º. <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_06.06.2017/art_227_.asp>
Acesso em 30/12/2019
19 FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: Educação e trabalho no capitalismo. Trad. de
Tomaz Tadeu da Silva. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989, p. 110
20 LOCKE, s.d.: III, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 111.
10
sistematicamente rejeitados durante grande parte do século XIX. 21 Mas isso nos mostra então que
havia ainda movimentos de pressão para a transformação da educação e da Escola. O perigo é achar
que qualquer reforma seria, necessariamente, positiva para o povo, afinal a vida em sociedade acaba
sendo uma disputa constante de interesses pessoais e coletivos, de diferentes grupos, e mesmo
dentro deles.
Condorcet, por exemplo, falava sobre uma educação que diminuísse o perigo dos
movimentos do povo.22 Gradativamente um meio termo foi se consolidando: “Educá-los, mas não
demasiadamente. O bastante para que aprendessem a respeitar a ordem social, mas não tanto que
pudessem questioná-la.”23 E, para alcançar este objetivo, o caminho foi a religião. Além de um
movimento anterior, de Sunday Schools – escolas dominicais que ensinavam mais sobre moral
religiosa do que qualquer outra coisa – Napoleão levou-a à prática, deixando o ensino primário sob
responsabilidade das ordens religiosas, enquanto o secundário e universitário seriam monopólio do
Estado laico.24 “Somos de opinião que é mais adequado para o bem-estar de nosso povo esforçar-se
em fazer deles cristãos ilustrados que sábios no conhecimento mundano; não queremos estadistas
em nossas fábricas, mas indivíduos de ordem”.25
Do doutrinamento à disciplina, gradativamente, a visão dos que defendiam o mínimo de
instrução às crianças, numa sociedade que se transformava rapidamente, foi se adaptando também.
O novo tipo de produção, e a proliferação da indústria iam demandando um novo tipo de
trabalhador. A ideia de um adulto piedoso e resignado, humilde e crente na salvação do reino dos
céus ainda era conveniente, mas já não mais suficiente para a submissão que o trabalho industrial
exige de seus operários assalariados.26 Nada melhor do que moldar esses adultos desde a infância,
para atender a essas necessidades.
E, é claro que a função da Escola não seria exclusivamente essa. Cada conjunto de pessoas,
por mais parecido que queiram desenvolver um trabalho, sempre conterá suas particularidades.
Pouco a pouco o eixo de orientação dessa formação foi se afastando da religiosidade para se
aproximar da disciplina material, da organização da experiência escolar como formante de hábitos,
comportamentos, disposições e traços de caráter mais úteis à indústria.
Enguita consegue arrebanhar uma série de exemplos de declarações de empresários e
patrões de diversas partes da Europa ocidental, sobre a eficácia das escolas, algumas que eles
mesmos montaram, para formar trabalhadores para seus negócios, e elogiam o sucesso da
escolarização afirmando, por exemplo, que ela havia melhorado
Essa, em meio a tantos exemplos, é uma fala que ilustra bem a mentalidade de menos de 200
anos atrás, quando a educação estava sendo cada vez mais difundida entre a população com um
objetivo muito claro (pelo menos da parte de quem as financiava). Mesmo que frequentemente estes
objetivos pudessem estar escondidos sob o funcionamento de outros processos: equiparava-se
educação com moralidade e docilidade.
A questão da “docilidade” e da constituição dos corpos dóceis são referências centrais nas
discussões do Michel Foucault, filósofo francês do século XX, que vê a sociedade em sua lógica
disciplinadora contendo instituições de sequestro de corpos, e a escola seria uma delas.
É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que poder ser
transformado e aperfeiçoado. [...] Nesses esquemas de docilidade, em que o século
XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente,
que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações.28
Além do questionamento importante, o autor traz trechos que tratam dos diversos
conhecimentos que os trabalhadores manipulavam, não só relativos ao seu ofício, mas a qualquer
possível interesse que tivessem. Supormos que todos os seres humanos simplesmente aceitariam
essa vida que lhes parece ter sido imposta e não desenvolveriam suas diversas áreas de interesse
pessoal, acaba estreitando muito a nossa visão e os próprios seres humanos que tentamos observar.
Quero dizer que não podemos crer, portanto, que os trabalhadores simplesmente aceitariam estes
modelos de opressão e controle, sem resistir e criar outros mecanismos de produção, aprendizagem
e troca. Enguita aventa a possibilidade de que fossem poetas, biólogos, músicos, geólogos,
botânicos… De serem excepcionais em seus ofícios, a ponto de calcular a velocidade, resistência e
potência das máquinas, desenhar em planos e em seções… Tudo isso se dava através de redes
formais e informais de formação.
Havia escolas de iniciativa popular e uma série de iniciativas de autoinstrução. No entanto,
pouco a pouco estas iniciativas foram desaparecendo por conta de leis que iam surgindo em vários
países para limitar os processos educativos, que poderiam acabar fugindo do controle das
autoridades. Enguita ainda afirma que o “fator importante dessa substituição foi, sem dúvida, a
29 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999. p119.
30 FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: Educação e trabalho no capitalismo. Trad. de
Tomaz Tadeu da Silva. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989, p. 119.
13
ingênua confiança do movimento operário nas virtudes reformadoras e progressistas da educação
em geral.”31
No Novo Mundo, a escola cumpriu um papel fundamental na assimilação da população às
novas relações de trabalho industriais. Sucessivas levas de imigrantes não habituados ao trabalho
industrial iam chegando, e, segundo Enguita, a escola foi o principal mecanismo de
‘americanização’ dessas populações, apagando seu passado, tradições culturais e língua. Além disso,
era necessário habituar os recém-chegados à organização do tempo exigida pela indústria. E a alta
classe “nativa” tinha consciência de que seus privilégios dependiam de uma extensa base de mão de
obra barata.
Bem, tudo isso aponta para a mentalidade por trás da criação e manutenção da Escola como
instituição. Enguita traz outros nomes que defendem neste contexto a universalização da educação,
que falam sobre como a escola é mais barata que a prisão 34, sobre como os livros e os professores
contribuem mais para a segurança do que os próprios agentes da polícia, que seriam elas que
tirariam os “vagabundos”35 das ruas, e que organizariam a massa trabalhadora de maneira ordeira,
respeitosa e subserviente.
Conforme a própria industrialização vai evoluindo, as demandas também vão se
transformando, e logo chegam às escolas as reformas que manteriam essas relações emparelhadas.
Com o desenvolvimento do Taylorismo e a transição do eixo industrial para os Estados Unidos da
31 FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: Educação e trabalho no capitalismo. Trad. de
Tomaz Tadeu da Silva. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989, p. 121.
32 TYACK, 1974 apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 122.
33 Ibidem, p. 122.
34 GURMAN, 1976, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 123.
35 TYACK, 1974, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 123.
14
América, a educação norte-americana passou também a servir de exemplo para a Europa. 36 Grandes
empresários foram os principais responsáveis por fundações educacionais. O próprio modus
operandi da indústria taylorista de controle absoluto dos produtos e processos, dos tempos e das
formas tentou ser traduzida para a Educação por reformadores como Spaulding, Bobbit ou
Cubberley, que defendiam que as escolas deviam servir à comunidade, no entanto entendiam
‘comunidade’ como a forma de funcionamento do trabalho e da produção, ou seja, as escolas
deveriam servir às empresas.
Frank Spaulding propôs:
que se avaliasse o produto das escolas com medidas tais como a proporção de
jovens de determinada faixa de idade nela matriculados, os dias de frequência por
ano, o tempo necessário por aluno para realizar um determinado trabalho, a
porcentagem de promoções etc. Tudo isto, obviamente, sem prestar nenhuma
atenção ao contexto social ou as peculiares características pessoais ou grupais dos
alunos.37
Já Franklin Bobbitt deixa a escola ainda mais parecida com a que temos hoje, estipulando
alguns princípios de trabalho, de organização e de formação do professor:
E, por fim, a contribuição de Ellwood P. Cubberley para o sucesso inigualável da Escola foi
introduzir uma figura correspondente ao especialista em eficiência das indústrias tayloristas. Ele se
perguntava: “Por acaso supõe-se que os educadores são tão competentes, que seus métodos não
podem ser melhorados?”39 Seria dever deste especialista estudar e gerar avaliações, reflexões e
dados sobre cada parte do processo educacional, as necessidades da sociedade e da indústria, o
36 FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: Educação e trabalho no capitalismo. Trad. de
Tomaz Tadeu da Silva. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989, p. 125.
37 CALLAHAN, 1962, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 126-127.
38 BOBBITT, 1913, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 127.
39 CALLAHAN, 1962, apud FERNÁNDEZ ENGUITA, 1989, p. 127.
15
estado do produto (o aluno) em cada uma de suas etapas, a eficiência dos métodos pedagógicos e o
custo-benefício de todo este trabalho.
Toda esta história tenta refletir sobre o fato de as escolas terem precedido o capitalismo, e
sobre a forma como elas continuam sendo parte fundamental da nossa sociedade. Tentei apresentar,
com a ajuda de Enguita, não só as reformas pelas quais os processos educacionais passaram, mas
também as mentalidades que acompanhavam esses processos, até sua institucionalização.
Foucault40 defende que “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma
possibilidade de resistência”. Assim, é claro que ao longo de todo este período devem ter havido
muitas vozes destoantes que disputavam por outras concepções de Escola que não a de
“domesticação da humanidade a serviço dos poderosos”41, mas a História nos mostra que durante
muito tempo estas vozes foram silenciadas e não tiveram espaço o bastante para se fazerem ouvir.
No entanto, em algum momento criamos brechas amplas o suficiente para questionar essa escola e
seu processo de escolarização.
Começamos a questionar sua forma, sua ordem, seus objetivos explícitos e implícitos,
começamos a questionar o fazer pedagógico, as ferramentas pedagógicas, os profissionais
envolvidos, as estruturas físicas dos espaços, começamos até a questionar a continuidade ou não da
existência destas instituições!
Só assim fomos capazes de pensar numa escola diferente. Não é simplesmente sobre o que
se ensina na escola, ou sobre as formas e estatísticas de acesso a ela, mas sobre a forma como estas
coisas se dão, sobre as relações que nela se estabelecem, e que ela e a sociedade estabelecem entre
si.
O sistema brasileiro de ensino ainda funciona de forma muito industrial. E embora existam
pensadores, professores, estudantes e até mesmo escolas inteiras lutando contra a maré, de forma
geral, ainda vemos que:
Atualmente, ações como o “Escola sem Partido” e as reformas curriculares que vêm sendo
propostas – interferências diretas no ‘conteúdo que é entregue’ nas escolas – curiosamente nos
40 FOUCAULT, Michel. Não ao sexo rei. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições
Graal Ltda., 2004, pp. 229-242, p. 241.
41 FERNÁNDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: Educação e trabalho no capitalismo. Trad. de
Tomaz Tadeu da Silva. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989, p. 131.
42 YOUNG, Michael. Para que servem as escolas?. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 101, p. 1287-1302, set./dez.
2007. p. 1291.
16
mostram que, dependendo do contexto e das demandas de alguns grupos sociais, presta-se muita
atenção, atenção demasiada, na verdade, aos conteúdos, de modo a formar pessoas moralmente de
uma determinada maneira.
Outra situação que faz com que nossas escolas acabem focando mais no conteúdo do que
nas pessoas e nos processos de aprendizagem é o vestibular. A sociedade, de modo geral, ainda tem
estado muito preocupada com o vestibular, que significa o ingresso nas universidades, e tem
depositado suas esperanças no sistema privado de ensino, que em Niterói (RJ), por exemplo, chega
a superar em quase o dobro o ensino básico público.43
O enfoque tão centrado no vestibular acaba engessando um currículo e a aprendizagem,
como se o objetivo fosse exclusivamente cumprir com as demandas da substância final, vestibular, e
não o processo, no qual se encontra a verdadeira aprendizagem, como destaquei com a citação de
Illich que dá início a este capítulo. A consequência passa a ser causa e o conhecimento se torna
meramente instrumental, mecânico e repetitivo.
Se os dados mostram que a população de Niterói está concentrada nas escolas privadas, que
supostamente serão os meios mais eficientes de garantir o sucesso dos jovens no vestibular, para
ingressarem nas universidades públicas e, então, terem mais chances no mercado de trabalho, eles
também nos falam sobre a divisão de classes e à quem as escolas atendem.
A educação torna-se mercadoria, e, por isso, deixa de poder ser universal, contribuindo para
a manutenção de uma sociedade de classes. Talvez o que o trabalho tente mostrar até aqui, portanto,
é que os processos de educação hegemônicos nunca foram pensados igualmente para todos e todas.
E o papel que cumpre acaba sendo de manter em seus lugares a elite e o povo.
Paulo Freire, com seu viés marxista forte, foi uma importante referência de resistência,
contribuindo com suas obras para a diminuição do caráter opressor e conservador da educação. No
livro de Moacir Gadotti, do qual extraio esta famosa fala de Paulo Freire, intitulado História das
Idéias Pedagógicas, o autor, logo em sua apresentação, chama a atenção do leitor para a
importância de se pensar sobre a educação e do papel fundamental que a mentalidade com a qual os
educadores ensinam afeta profundamente os próprios processos da educação. Refletir sobre a escola
e sobre o fazer pedagógico é, e deve ser, radical, devemos estar sempre olhando e questionando as
raízes destes processos. “A filosofia, a história e a sociologia da educação oferecem os elementos
básicos para que compreendamos melhor nossa prática educativa e possamos transformá-la”, e
questioná-la! “Evidenciam o fato de não podermos nos omitir diante dos problemas atuais. E mais:
oferecem recursos para que os enfrentemos com rigor, lucidez e firmeza.”45
Como professor de História e de Filosofia de Educação, neste livro, o autor faz um recorrido
pelos diversos pensadores e autores que marcaram suas épocas, do oriente ao ocidente, da
antiguidade à contemporaneidade, dando ênfase aos autores contemporâneos do terceiro mundo, em
especial aos brasileiros.
Ele faz apontamentos interessantes ao diferenciar a história das ciências – em que
normalmente as novas descobertas vão tornando as antigas obsoletas – da história das ideias, que é
descontínua e se manifesta em seus contextos. E ele ainda acrescenta que:
Além disso, o autor reforça a importância de fazer da teoria e da prática partes constituintes
44 GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. Editora Ática, São Paulo, 2003. Parte final da fala de Paulo
Freire, no Simpósio Internacional para a Alfabetização, em Persépolis, Irã, setembro de 1975, p. 255.
45 Ibidem, p. 16.
46 GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. Editora Ática, São Paulo, 2003, p. 18.
18
e inseparáveis do fazer pedagógico. Para tornarmos e mantermos vivo o pensamento e a reflexão,
não por puro pedantismo, mas para que teoria e prática se confrontem cotidianamente, se
transformem e possam ser apropriados por todos os agentes envolvidos.
Contemplando um pouco dos processos históricos da educação e da escolarização no Brasil,
é natural pensar que muito do que tratamos acima reverberou nessa, então, colônia europeia. Com a
educação a serviço da religião, e, no nosso caso, muito daquela mentalidade de integrar os nativos
ao mundo cristão. Num contexto de povoamento, suprimir o modo de vida “selvagem” do indígena
era prioridade para que ele pudesse fazer “parte da sociedade”, através da exploração de sua força
de trabalho:
Não foram ataques injustos que abalaram o prestígio das instituições antigas; foram
essas instituições criações artificiais ou deformadas pelo egoísmo e pela rotina, a
que serviram de abrigo, que tornaram inevitáveis os ataques contra elas. […] À
escola antiga, presumida da importância do seu papel e fechada no seu
47 XAVIER, Maria Elizabete, RIBEIRO, Maria Luiza e NORONHA, Olinda Maria. História da educação: a escola no
Brasil. São Paulo: FTD, 1994. p. 43 apud FUSINATO E KRAEMER, 2013 p. 21017.
48 FUSINATO, Claudia Vanielle, KRAEMER, Celso. A invenção da Escola e Escolarização no Brasil. XI Congresso
Nacional de Educação. PUC do Paraná, Curitiba de 23 a 26/9/2013. p. 21018.
49 GHIRALDELLI, 1994, RIBEIRO, 1994a apud FUSINATO E KRAEMER, 2013, p. 21018.
50 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. 1932. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. especial, p.188–
204, ago. 2006 - ISSN: 1676-2584,<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf> Acesso em
30/12/2019.
19
exclusivismo acanhado e estéril, sem o indispensável complemento e concurso de
todas as outras instituições sociais, se sucederá a escola moderna aparelhada de
todos os recursos para estender e fecundar a sua ação na solidariedade com o meio
social, em que então, e só então, se tornará capaz de influir, transformando-se num
centro poderoso de criação, atração e irradiação de todas as forças e atividades
educativas. - O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. 51
No entanto, como apontava Enguita em seu trabalho, muitas vezes, mesmo as críticas “bem-
intencionadas” e que se acreditam revolucionárias, trazem em si um pouco do que é de seu tempo e
de seu sistema. Isso pode parecer óbvio, natural e desimportante, mas quero exemplificar com outro
trecho do manifesto, de um de seus capítulos chamado “Valores mutáveis e valores Permanentes”:
Mas, por menos que pareça, nessa concepção educacional, cujo embrião já se disse
ter-se gerado no seio das usinas e de que se impregnam a carne e o sangue de tudo
que seja objeto da ação educativa, não se rompeu nem está a pique de romper-se o
equilíbrio entre os valores mutáveis e os valores permanentes da vida humana. […]
É certo que é preciso fazer homens, antes de fazer instrumentos de produção. Mas,
o trabalho que foi sempre a maior escola de formação da personalidade moral, não
é apenas o método que realiza o acréscimo da produção social, é o único método
susceptível de fazer homens cultivados e úteis sob todos os aspectos. O trabalho, a
solidariedade social e a cooperação, em que repousa a ampla utilidade das
experiências; a consciência social que nos leva a compreender as necessidades do
indivíduo através das da comunidade, e o espírito de justiça, de renúncia e de
disciplina, não são, aliás, grandes “valores permanentes” que elevam a alma,
enobrecem o coração e fortificam a vontade, dando expressão e valor à vida
humana?52
Este “equilíbrio” ao qual se referem me soa muito pacificador e tranquilizador, não de forma
positiva, já que sendo “única, pública, laica, obrigatória e gratuita” e propondo-se revolucionária,
acaba servindo mais ao “desenvolvimento econômico” ao qual Enguita se refere, do que à própria
vida humana, de fato. Embora, me pareça justamente que o “desenvolvimento econômico” seja o
que eles consideram “vida humana”. E, neste momento, me pergunto se minha concepção de
“desenvolvimento da vida humana” difere tanto assim das pessoas em geral e dos cientistas, já que
historicamente o chamado desenvolvimento esteve sempre tão ligado à técnica, à tecnologia e aos
meios de produção do que à própria experiência de viver, estar vivo, interagir com o mundo e com
os outros, reconhecer-se na História e atravessar a vida como um ser que pensa, vive e sente, e que
até produz e transforma a natureza – trabalha – mas não apenas isso.
Neste contexto, Getúlio Vargas, o então presidente, viu as propostas do manifesto como
complementares à sua política governamental.53 Além disso, neste período surgiram pelo mundo as
propostas libertárias, com fundos anarquistas, e a Escola Nova, que teve maior repercussão no
51 Ibidem p. 2.
52 Ibidem p. 5.
53 RIBEIRO, 1994a, GHARALDELLI, 1994 apud FUSINATO e KRAEMER, 2013 p. 21018.
20
Brasil. Segundo Ghiardelli Junior, a Escola Nova
O período de redemocratização que nossa sociedade viveu nestes últimos 50 anos, e que
periga com as novas ondas conservadoras que se apresentam no cenário político nacional e
internacional, fomentou novas pequenas transformações nas nossas escolas, mesmo que ainda
mantendo um caráter autoritário e conservador. Então, desde a nossa mais recente Constituição de
1988, pensadores, educadores e até mesmo alguns políticos vem lutando por transformações ainda
mais contundentes.
Temos estado em busca dessa verdadeira democracia no fazer educativo. Temos nos
perguntado então o que fazer com as escolas, e como fazer com que elas deixem de ser instrumentos
de opressão e formação a serviço da indústria e do capitalismo por si só. Temos batido cabeça,
lutado nas ruas e nos espaços legislativos, ocupado escolas e clamado por Democracia. E coisas
bonitas têm surgido por aí, às vezes difíceis de ver, e sempre difíceis de fazer… Mas estão
começando a acontecer, de formas mirabolantes.
Muitas críticas têm sido feitas à instituição escolar, por conta de muito do que foi exposto
até aqui. De um lado, setores conservadores que têm achado a escola um espaço de “doutrinação”, e
daí proposto projetos de lei como a reforma do ensino médio ou o ‘escola sem partido’. De outro,
setores mais revolucionários, propondo novas formas de fazer educação. No entanto, em ambos os
casos é muito comum vermos nas famílias que buscam uma ou outra escola para seus filhos
discursos parecidos sobre quererem que a escola legitime suas opiniões políticas, construa os
conhecimentos que eles julgam legítimos, ou educar da forma como eles educam em casa.
Jorge Larrosa, espanhol, professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona,
tem contribuído muito para este novo panorama de reflexões sobre educação. Em livros como
Elogio da Escola, Tremores e Pedagogia Profana este autor reflete sobre os conceitos de
experiência, tempo e alteridade. Por mais que ele defenda a existência da escola, defende também
uma reflexão importantíssima para ela: a escola não pode ser um lugar de familiaridade, mas sim de
alteridade.
58 Ibidem, p. 21023.
59 SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas, São Paulo. Autores associados, 2008. Coleção Educação
Contemporânea, Edição Comemorativa, p. 62.
<https://www.slideshare.net/abelferreirajunior/saviani-dermeval-escola-e-democracia-campinas-so-paulo-autores-
associados-2008-coleo-educao-contempornea-edio-comemorativa> Acesso em 30/12/2019
22
a educação sempre tem a ver com uma vida que está mais além de nossa própria
vida, com um tempo que está mais além de nosso próprio tempo, com um mundo
que está mais além de nosso próprio mundo… e como não gostamos desta vida,
nem deste tempo, nem deste mundo, queríamos que os novos, os que vêm à vida,
ao tempo e ao mundo, os que recebem de nós a vida, o tempo e o mundo, os que
viverão uma vida que não será a nossa e em um tempo que não será o nosso e em
um mundo que não será o nosso, porém uma vida, um tempo, um mundo que, de
alguma maneira, nós lhe damos60
Já Illich, filósofo austríaco, em seu livro Sociedade sem Escolas, defende o desaparecimento
destas instituições e uma nova forma de relacionar-se com o conhecimento. Uma forma que não
dependa de formatos e estruturas fechadas, que se paute nas relações do indivíduo com o seu
entorno e nos seus próprios interesses ou suas próprias demandas.
Sem dúvidas, este novo olhar para o conhecimento, para o aprendizado e para a
emancipação dos indivíduos em suas educações deve ser alvo de reflexão. No entanto, tento
considerar o tema com cuidado, talvez com um certo receio de ser irresponsável com essa proposta
de desinstitucionalização, porque facilmente um governo neoliberal poderia usar disso para não se
comprometer com a Educação, mesmo que essa se desse através de museus, bibliotecas, parques,
cinemas ou qualquer outro meio que não as escolas.
E se, ao invés de ressignificar a Educação e desvinculá-la da Escola como instituição, nós
ressignificássemos tanto a Educação quanto a própria Escola!? E usássemos esses espaços de
encontro para construir uma outra relação social com o conhecimento? E se os professores aqui não
fossem os mesmos que Illich descreve em seu livro? E se os estudantes não estivessem passivos
nesse processo para as experiências que ele pode lhes proporcionar? E se a Escola passasse a ser
nada mais nada menos do que um catalisador destas relações com o conhecimento, com o outro e
com o mundo? Afinal, o próprio Illich chama a atenção, no trecho acima, para os conhecimentos
60 LARROSA, Jorge. Tremores. Escritos sobre experiência. Tradução Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi -
Belo Horizonte, Autêntica, 2016, p. 36-37.
61 ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 83
23
que se desenvolvem ao conversarmos com alguém, ou ao ver televisão...
O que quero dizer é que talvez haja uma forma de criar um espaço escolar livre, onde
fôssemos capazes de observar, produzir, construir e praticar uma educação e um aprendizado como
Illich defende. Alexander Neill, educador escocês, em 1921, fundou a Sumerhill School na
Inglaterra, conhecida por sua abordagem libertária, e, mais tarde, escreveu várias de suas reflexões e
experiências no livro Summerhill: A Radical Approach to Child Rearing:
The difficult child is the child who is unhappy. He is at war with himself; and in
consequence, he is at war with the world. The difficult adult is in the same boat. No
happy man ever disturbed a meeting or preached a war, or lynched a Negro. No
happy woman ever nagged her husband or her children. No happy man ever
committed a murder or a theft. No happy employer ever frightened his employees.
All crimes, all hatred, all wars can be reduced to unhappiness. This book is an
attempt to show how unhappiness arises, how it ruins human lives, and how
children can be reared so that much of this unhappiness will never arise.”. 62
62 NEILL, Alexander S. Summerhill: A Radical Approach to Child Rearing. New York: Hart Publishing Company.
28 October 2013, p. 12.
63 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Apresentação de Ana Maria
Araújo Freire. Carta-prefácio de Balduino A. Andreola. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 67.
24
Pode parecer difícil imaginar de forma mais clara ou prática isso a que chamo de escola, por
termos sido escolarizados num processo completamente diferente e vivermos numa sociedade que
ainda tem muitas dificuldades em conceber uma escola distinta das que nos têm sido apresentadas
nas últimas décadas.
No entanto, junto ao [Re]Considere, coletivo do qual faço parte desde 2013, me dei conta de
que não é necessário olhar para tão longe, como para a Europa, para ver emergir experiências
libertárias e transformadoras de educação. Nós mesmos fomos atrás destas experiências, a fim de
conhecê-las no seio da América Latina. Documentamos e aprendemos muito sobre o tema com
atores e atrizes de contextos diversos, em territórios também colonizados, repletos de influências de
potências externas, contradições internas e uma incrível força de luta, resistência e transformação.
Tentarei trazer algumas de suas reflexões para este debate, a partir do material audiovisual que
gravamos em 2016, editamos e produzimos desde então. Todo este material está disponibilizado
online, em nosso canal no youtube.64
Ao nos debruçarmos sobre mais de 12 experiências bem distintas entre si, espalhadas apenas
pelo nosso continente, já podemos nos dar conta de como estes ideais, que para muitos soam
utópicos, não são tão impossíveis assim. Existem muitas pessoas que estão fazendo as utopias
deixarem de ser utopias. Que estão fazendo com que a democracia, a transformação social e a voz
das crianças e dos adultos ecoem alto, na transformação das nossas realidades.
E como são estas escolas? Cada uma de um jeito, como havia de ser. Casonas bem grandes,
onde muitos adultos e muitas crianças de uma área cujos recursos naturais estão sendo explorados
de forma danosa, são forçados a conviver com a desigualdade social gritante, mas, através de uma
pedagogia de projetos aprendem a ler e escrever enquanto fazem um bolo. Aprendem Biologia e
Ciências Naturais cuidando de uma horta. Aprendem Química estudando os efeitos dos produtos
utilizados nas minas ilegais onde muitos deles tiveram que trabalhar antes de conhecer a escola, e
talvez até mesmo depois disso. Ou aprendem sobre seus direitos, convívio social e respeito em
assembleias semanais, nas quais adultos e crianças têm a mesma voz – como é o caso da Escuela
Democrática de Huamachuco, que já leva dez anos transformando a realidade de muitas crianças do
interior norte do Peru.
Casinhas pequenas, onde uns poucos adultos e umas tantas crianças se encontram
diariamente, no período da tarde, e compartilham suas experiências, seus conhecimentos, jogam e
brincam juntos sem se obrigar a nada, escutando-se e respeitando-se. Reunindo-se para dialogar ao
resolver conflitos, às vezes não conseguindo resolvê-los e tendo que aprender a viver com eles até
que se resolvam de alguma forma – como é o caso do projeto Tierra Fertil na Argentina – que tem
apenas três anos.
Instituições de ensino privadas reconhecidas pelo estado há mais de 40 anos, que abrangem
64 Disponível em <https://www.youtube.com/user/coletivoreconsidere>.
25
desde o Ensino Infantil ao Ensino Médio, em que cada educando tem o direito de gerenciar o
próprio aprendizado através dos projetos propostos pelo corpo docente da escola. Sendo
incentivados diariamente a se expressar através das distintas formas de arte e das diferentes
linguagens, a cuidar do território no qual estão inseridos, a relacionar-se com a cultura nativa da
terra onde vivem, e a transformar a realidade social de sua comunidade – como é o caso da Escuela
Pedagógica Experimental –, o projeto alternativo de educação mais antigo da América Latina, na
Colômbia.
Grupos de jovens universitários voluntários, que usam as sedes das associações de
moradores de bairros periféricos de suas cidades para estarem aos sábados com as crianças de lá,
ajudando-os a darem-se conta de que o tráfico não é o único caminho para o dinheiro, assim como a
escola e a universidade não são o único caminho para que ‘sejam alguém na vida’ – como é o caso
do projeto La Otra Educación – que se transformou numa rede de voluntariado em várias cidades
do Chile.
Há ainda famílias que estão lutando pela transformação da educação pública e pela sua
verdadeira democratização junto à Secretaria de Educação de sua cidade, além de gestoras e
educadoras interessadas em oferecer uma educação emancipatória e libertária para suas crianças,
como tem resultado do trabalho do Coletivo Escola-Família Amazonas, em Manaus, no Brasil,
desde 2015.
Para mim, eu acho boa porque é a única aqui no Peru que não precisamos usar
uniformes, cadernos…66
E, pra mim, acho boa porque é a primeira escola democrática, e também porque,
como disse meu amigo, não trazemos cadernos, e aprendemos em liberdade. 67
Em outras escolas, quando eu dizia a alguém que eu não tinha gostado do que ele
tinha me feito, ficavam irritados comigo e não me falavam mais. Mas, aqui, as
pessoas gostam que a gente fale o que eles fizeram de errado, para mudarem. E
ninguém se incomoda com isso.68
Nas falas destas crianças, ainda mais no vídeo completo, fica clara a consciência de
diferença entre o espaço escolar e o espaço de casa, elas apontam suas diferenças e as justificam.
Elas se apropriam de cada transformação e as compreendem como parte do processo de apreender o
mundo de diferentes maneiras, em que elas mesmas têm opiniões, gerenciam o próprio tempo e
aprendem, com gosto pelo processo, e não apenas focando na substância final.
Eu aprendi a ler aos 7 anos, mas porque eu quis. Eu aprendi a ler aos 7 anos,
porque eu me interessei.69
E não é necessário fazer provas, porque aqui nós somos livres, e não é ‘faça esta
prova e é o melhor da escola’. Aqui todos nos tratamos de igual para igual. 70
As mães, que acompanham seus filhos nestes processos, também se dão conta desta
dicotomia: processo – substância. E vão em busca de alternativas para a vida das crianças. Aqui,
digo “mães”, porque esse ainda acaba sendo o recorte de gênero destes contextos nas nossas
sociedades.
Também entrevistamos jovens que já tinham deixado as escolas, para tentar entender como
estas pressões sociais com relação às universidades se aplicam às suas vidas e que tipo de opinião
desenvolveram quanto a isso. “Esse tipo de educação, pois, me permitiu tomar decisões sobre a
minha vida sem o peso da minha família, do meu grupo de amigos, ou, não sei, inclusive da própria
escola… ou do que a sociedade espera que a gente faça.”74”
Tentar superar o que Illich nos traz como desafio, no início do capítulo 1, e encontrar
caminhos para que a Educação nada tenha que ver com apenas notas e substâncias finais, obtenção
de graus, diplomas e sucesso econômico é uma constante nestes projetos, por conta da forma como
se estrutura a nossa sociedade, segundo uma das educadoras do La outra educación, do Chile:
Uma educadora que, na época, havia pouco tempo que começara a compor o corpo docente
do projeto, complementa:
Se acha que aqui é só brincadeira? Acho ótimo que seja, e é mesmo. Só que as
pessoas não encaram isso como aprendizado, mas é. Na minha opinião é. Tá
aprendendo muito mais até do que lá, talvez. Eu acho mesmo, tá? É um puta
73 IRIBARREN, Paz, [Re]considere, 2017(b), 1:44 a 2:00. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
74 ZAPATA, Milena, [Re]considere, 2017(c), 6:13 a 6:40. Disponível em <https://tinyurl.com/tt2rm4t>
75 CASTILLO, Bárbara, [Re]considere, 2019(b), 0:36 a 1:14. Disponível em <https://tinyurl.com/wae2dv8>
76 FERREIRA, Eduardo e VITOR, Emanuel, [Re]considere, 2019(a), 22:10 a 22:40. Disponível em
<https://tinyurl.com/sr7vf2w>
28
exercício de liberdade e de aprendizagem. Tudo bem, você não acha que é? Não
tem problema. A gente vai vir aqui, eu acho que é, eu to aprendendo também, um
monte… Não tem problemas se eles acharem que isso é só diversão. A gente tem
um cuidado que é sutil, né? É um trabalho muito sutil. Então, pouca gente vê. 77
No entanto, até mesmo famílias que chegam a compor estes projetos em algum momento
podem ceder às pressões sociais e acabam limitando este tipo de aprendizagem apenas às crianças
menores, como é o caso de uma das mães do Tierra Fertil, na Argentina, que ficou lá com seus
filhos algum tempo até eles ficarem um pouquinho maiores:
Acredito que esse seja o grande desafio, não? O conteúdo tem que ser
desenvolvido. Tem que desenvolvê-lo com interesse. A verdade é que alguém pode
se interessar por coisas e desenvolver um interesse à medida que conhece coisas.
Tem que gerar estímulos, não sobre estimular, mas sim gerar estímulos, para que as
crianças se entusiasmem com algo, porque senão acabam caindo todo o tempo nas
brincadeiras, que para os 6 anos está bem. Aos 7 anos, pode estar bem. Aos 10
anos, já não sei se está tão bem…78
Já para uma das famílias que teve muitas dificuldades na escola tradicional, o discurso é o
seguinte:
Não me preocupa realmente, porque, na balança, pesa tão mais que ela esteja feliz
que fica como um assunto menor, mas igualmente vamos encarar em algum
momento, mas vamos vendo isso com o tempo. Neste momento priorizamos que
ela está muito bem, muito contente, e muito bem. Sobretudo, pondo do outro lado
que já houve momentos onde não a vimos bem, assim que, não muito mais o que
analisar, da nossa parte.79
No final deste episódio essa reflexão é proposta para as crianças. E algumas dizem que
gostariam sim de experimentar uma outra forma de aprendizagem, porque nunca antes estiveram em
outras escolas, e acham que seria bom para elas aprender de outras maneiras. Algumas dizem que
não voltariam para a escola tradicional, outras, que não sabem.
Com isso retomo, para questionar, a ideia antiga, e ainda presente em nossa sociedade, que
muitos dos autores trazidos no capítulo 1 defendem, de que a Educação, ou, mais ainda, a Escola,
tem a responsabilidade de formar as pessoas para o mercado de trabalho. As escolas que trago aqui
negam esta perspectiva. No entanto isto ainda é algo muito presente na mentalidade social da nossa
época e é difícil até para os próprios educadores e educadoras destes projetos, se desapegar
completamente destes conceitos tão enraizados em nós. Por isso, um perigo que ronda
constantemente estes projetos é o de caírem na armadilha de tentar fazer algo diferente, e estarem
77 SAMPAIO, Luciana, [Re]considere, 2019(a), 22:40 a 23:18. Disponível em <https://tinyurl.com/sr7vf2w>
78 GARRIGA, Marcela, [Re]considere, 2017(b), 25:35 a 26:12. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
79 LUCHIA PUIG, Milagros, [Re]considere, 2017(b), 26:14 a 26:44. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
29
apenas criando um novo tipo de mão de obra especializada. O discurso de uma educação para a
criatividade, autonomia ou proatividade é tomado por muitas escolas de elite que tentam oferecer
uma “educação para o futuro”, cobrando mensalidades caríssimas e, supostamente, desenvolvendo
empreendedores de sucesso. Mas, em coletivos como o CEFA, que atua nas escolas públicas de
Manaus, estas reflexões não são ignoradas, e tornam-se pauta constante de seus debates.
E estes espaços não negam o trabalho. Pelo contrário, questionam as relações sociais de
produção atuais e tentam construir relações outras com o trabalho, e levar seus estudantes a
perceberem os interesses que realmente têm em suas vidas, para que façam aquilo que realmente
lhes mobiliza, e contribuam com toda sua energia para o mundo, sem passar por cima dos próprios
desejos e desta forma serem seres ativos e solidários.
Com estes temas soltos, talvez continue difícil entender bem como estes projetos de
educação funcionam, e como eles constroem estas reflexões. Por isso, escolhi o projeto do nosso
primeiro episódio, a Escuela Democrática de Huamachuco, para contar um pouco sobre sua rotina e
funcionamento, embora recomende ainda assistirem ao vídeo, que ajudará a construir uma imagem
E, talvez uma das coisas mais importantes para o desenvolvimento de seus aprendizados, é
que não só os educadores mas as próprias crianças estão todos preparados para entender que toda
experiência é capaz de gerar aprendizado. Desde a confecção de um bolo, até a leitura de uma
história, uma partida de futebol, ou o sistema de rega das plantas. Não é incomum vê-los
trabalhando por conta própria, brincando, lendo livros, estudando, preparando um trabalho para um
projeto que ainda vai acontecer, ou depositando propostas na “Caixa da Assembleia”.
Todo este processo, e já adianto que foi assim em todos os espaços que visitamos, é muito
fácil e direto para as crianças, somos nós adultos, já escolarizados, que em geral temos mais
dificuldade em nos adaptarmos a estas formas de aprender e de liberdade.
Inclusive os próprios conflitos cotidianos são mediados pelas crianças, neste projeto. Existe
um projeto de Conciliadores, onde os que fazem parte deste grupo se encontram semanalmente para
discutir e compartilhar suas experiências ao longo da semana. Assim como em cada outro projeto,
são auxiliados por um educador que faz suas contribuições pedagógicas para o desenvolvimento de
cada um.
O dia termina à tarde, depois de lancharem 2 vezes e almoçarem, com 3 horários de projetos
alternados. As crianças lavam a própria louça, arrumam a escola no fim de cada dia, em conjunto
com os adultos se organizam em turnos para isto, de modo que todos façam de tudo alguma vez.
Eles são livres para escolherem muitas coisas, dentro dos limites que eles mesmos criam para a
comunidade ao longo de seus processos democráticos. Quando tem algum desconforto o levam para
a assembleia, ou tratam com algum tutor.
Tutores, nesta escola, são educadores, que as crianças escolhem para acompanhá-las a cada
ano, pessoas em quem querem confiar e com quem discutem seus processos ao longo dos dias na
escola.
Indo num outro extremo de projeto, temos o CEFA, Coletivo Escola-Família Amazonas, em
Manaus, que atua em parceria com a secretaria municipal de educação e 3 escolas públicas, na
época que visitamos, sendo uma delas, um projeto piloto.
É muito interessante ver neste projeto, esta busca pela transformação do fazer pedagógico
por dentro do próprio aparelho de educação pública, no município de Manaus. Diferentemente do
Tierra Fértil onde os pais se reuniram para criar o próprio projeto de educação, o CEFA está
tentando impactar crianças de famílias que nem os conhecem, a partir das escolas já existentes. Ao
entrevistarmos as crianças destas escolas, muitas delas sequer ouviram falar no CEFA, mas mesmo
assim, sabem descrever com precisão as mudanças que ocorreram em seus espaços desde que a
Uma viagem foi organizada pelo CEFA para com as diretoras e educadoras das escolas para
visitar algumas escolas públicas de referência em São Paulo, como a Campos Salles, localizada na
comunidade de Heliópolis, idealizada por Braz Rodrigues. As salas foram transformadas, e as
crianças passaram a trabalhar em grupo, o horário integral deixou de ser maçante e apenas
reproduzir as aulas da manhã à tarde, desenvolvendo novos projetos que visavam a
interdisciplinaridade e a autonomia das crianças. E começaram também a fazer assembleias
semanais, para dar espaço de questionamentos e decisão para toda a comunidade escolar.
E, por mais que seja claro para todos e todas que é um processo lento e gradual de
transformação e adaptação, principalmente para os adultos (como sempre), por mais que vários
conflitos e desafios tenham surgido, por mais que seja muito mais difícil e trabalhoso educar em
liberdade: “Elas falam assim: ‘parece que tem mais trabalho, mas ao mesmo tempo não, porque é
menos estressante.’ E hoje elas também não adoecem.”94
Mas os desafios e contradições sempre permanecem em processos assim, o desafio é estar
pronto para superá-los coletivamente e democraticamente, com respeito e diálogo.
Nós temos que ter um discurso que seja coerente. Porque a gente fala da
democracia, fala do respeito, da solidariedade, da responsabilidade, da afetividade,
mas na hora mesmo em que a gente – Adulto –, nós adultos, não estamos
- Assim, alguns pais são muito ricos, e querem o melhor pro filho também, né?
Tipo assim, aula particular
- Escola de Príncipes.
- Isso não existe.
- Existe.
- Tá… Então, você pode fazer isso tudo, mas… uma coisa: A escola sempre pode
ser charmosa, bonita… toda particular… muito bonita… Mas você nunca vai ter a
felicidade que nas escolas públicas têm também.
- O que importa é a educação.
- É, e não ter uma escola chique, toda pintadinha… Olha aqui, o negócio tá todo
negócio, mas a gente tem, pelo menos, amigos aqui.
- Hahaha, ‘o negócio tá todo negócio’.102
102 CARDOSO, Giovanna, CÉSAR, Vinicius e DOS SANTOS, Matheus, [Re]considere, 2017(e), 31:17 a 31:59.
Disponível em <https://tinyurl.com/qrhujym>
36
CAPÍTULO 3
Sobre os meus caminhos na educação: um processo de formação, desconstrução e sua
ressignificação
Estas escolas que acabamos de referir no capítulo anterior não apresentam os medos que
muitos dos pensadores da Escola, trazidos no primeiro capítulo, tinham. As crianças têm uma
clareza muito grande disso. Aqui não temos medo da cidade e de derrubar os muros das escolas para
que quem esteja dentro dela possa ver o mundo lá fora, ou os lá de fora possam usufruir de seus
espaços. Não temos medo de afetar o outro, e de trabalhar e educar com afeto, pois entendemos que
este é um ingrediente fundamental para a valorização e fortalecimento dos laços comunitários.
Alguns meninos e meninas se dão tão bem com as educadoras que até as abraçam.
Gostam delas como se fossem suas primas, suas tias… ou mamães. 105
Acho que deveríamos pensar que a vida é uma pedagogia integral, o tempo todo. E
bem, embora nós não sejamos especialistas em nenhum tipo de pedagogia, se
tivermos de recorrer a alguma, ou se tivéssemos que definir a Casa Taller com uma
– que não sei se existe – seria a pedagogia do amor. Porque é a única coisa que
acredito que eu possa dar. Amor. E acho que, de resto, a gente vai construindo entre
todos.106
Não temos medo do conflito, da opinião das crianças e do que elas podem trazer de casa. Os
conflitos são parte da vida e devem ser parte dos processos pedagógicos, não podemos fingir que
eles não existem. A escola não deve ser uma simples ferramenta de controle para evitar a violência e
a desordem, mas uma ferramenta de desenvolvimento de autonomia e solidariedade para que a
violência e a desordem sejam manejadas com respeito e coerência.
Eu penso que as crianças deviam ser mais escutadas, por causa que elas podem ter
uma memória melhor que a dos adultos, porque eles sempre pensam… é diferente.
Na mente dos adultos tem mais trabalho, mais confusão, e na criança… a criança,
ela tem um jeito de se expressar, ela é mais verdadeira. E os adultos eles são…
mentem, não são verdadeiros. Eles acham que eles que comandam as crianças.
103 CRESTA, Luzmarina, [Re]considere, 2017(b), 27:00 a 27:24. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
104 PIZARRO, Carlos, [Re]considere, 2019(b), 11:03 a 11:17. Disponível em <https://tinyurl.com/wae2dv8>
105 CRISTÓFALO, Vito, [Re]considere, 2017(b), 13:07 a 13:22. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
106 DÍAZ, Nicolasa, [Re]considere, 2019(c), 19:55 a 20:26. Disponível em <https://tinyurl.com/vnp2l8x>
37
Porque, pra pessoa ser alguém, assim, ela tem que saber ser ela mesma. Ela não
pode estar no comando de alguém.107
- Antes, Enrique [educador da escola] chegou aqui muito machista. Então nós o
ensinamos que não fosse machista.
- Então ele disse: desculpa também, e eu não vou voltar a fazer. E, com a nossa
ajuda, Enrique agora não é mais assim, e mudou.108
Não temos medo da liberdade, pois a verdadeira liberdade não habita no egoísmo e sim na
coletividade. É na liberdade que a autonomia, as expressões individuais e as singularidades de cada
indivíduo podem florescer, em consonância com a comunidade.
Não temos medo de repensar nossas práticas pedagógicas e questionar nossas intenções,
receber críticas e criticar. As expectativas dos adultos não devem engessar o processo de educação e
de formação das crianças.
Existe uma expectativa né? Mas não uma obrigatoriedade. Ainda, não sei… Pode
chegar um momento que a gente diga: ‘não. É obrigado a estar na roda.’ Acho até
que é um elemento de transformação. Se uma criança na roda falar: ‘Ó, acho que a
partir de agora a roda tem que ser obrigatória.’ e todos aceitarem, é isso. Vai ser
obrigatório.112
Não temos medo do presente e nem do futuro, para estarmos tão preocupados em preparar
os estudantes apenas para algo que ainda possa estar por vir, a ponto de esquecermos quem são no
agora, o que querem, o que desejam, o que estão fazendo e como estão fazendo.
Não temos medo do ócio e o aproveitamos como parte do processo de viver e aprender. Não
queremos manter e reproduzir uma sociedade de consumo, produtivista e focada no imediatismo e
na compulsão pelo controle do tempo e da falta dele.
Sabemos que as crianças aprendem com seus pares, que aprendem do ambiente,
que aprendem dos materiais, e dos adultos que estamos com eles. Então, brincamos
com estas variáveis. Sabemos que a aprendizagem é integral, de verdade, então
fazemos com que as coisas aconteçam e acompanhamos. Valorizamos sobretudo a
brincadeira livre, as atividades iniciadas pelas crianças, de acordo com seus
interesses, de acordo com seus grupos e para nós isso é o essencial. Isso é o que
acontece na maior parte do dia no Terra Fértil. 114
“- Creio que esse projeto é bem sucedido se o aluno está disposto a aproveitar a
oportunidade.
- Sim, tem que aproveitar o que te dão.
- Porque, por exemplo, eu, no primeiro ano que entrei, não fazia nada. Entrava e
ficava nas árvores, olhando pras nuvens e… ou ficava à toa, basicamente. Mas
depois, começa a se dar conta que isso não te leva a nada, que seria bom que…
fizesse alguma coisa. E aproveitar o que se tem aqui. Ou em qualquer lugar,
digamos, como uma lição de vida.115
Não temos medo de “ilustrar demais” nenhum ser humano. Pois o conhecimento é um
direito de todos e todas, e disponibilizá-lo para a comunidade é empoderá-la, e, desta forma, dirimir
a opressão e a desigualdade.
Eu acho que não existe educação que seja libertadora e que seja para poucos,
porque a todo momento as crianças estão interagindo, estão crescendo, conhecendo
outras coisas… Então a educação, só vai ser realmente libertadora, quando for pra
todo mundo. Quando todo mundo tiver acesso a coisas de qualidade... 116
Não temos medo de notas e indicadores, pois eles servem meramente como instrumento
estatístico, objetivo, parcial e reducionista, incapaz de dimensionar todas as facetas dos processos
humanos. Não entendemos a Escola como uma simplória fornecedora de serviços, ou a educação
como um mero produto.
Creio que se não começa com alguma coisa, não se começará nunca. Para
mudarmos alguma coisa, precisamos primeiro mudar a nós mesmos, para
chegarmos a sermos grandes. Se queremos uma mudança global, temos que mudar
113 BULIT, Dolores, [Re]considere, 2017(b), 7:49 a 8:09. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
114 BULIT, Dolores, [Re]considere, 2017(b), 11:00 a 11:31. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
115 INGARAMO, Athina, KOWAL, Azul e RAMOS, Milton, [Re]considere, 2017(c), 12:21 a 12:49. Disponível em
<https://tinyurl.com/tt2rm4t>
116 ALEIXO, Izabela, [Re]considere, 2017(e), 11:01 a 11:22. Disponível em <https://tinyurl.com/qrhujym>
39
desde o pequeno, porque assim, se falamos do macro, jamais poderemos fazer. E
não vai ser difícil adaptar-se, penso eu, com esse tipo de educação. Vão ser pessoas
mais seguras de si mesmas, vão saber resolver seus conflitos, vão saber resolver os
conflitos dos demais, que é o mais importante, não? Fazer a paz… vão saber como
fazer a paz e não a guerra. E é isso que o mundo quer. 117
Não estou interessada que meus filhos se adaptem a essa sociedade, mas sim que a
transformem.118
Não temos medo do sistema tradicional de ensino, porque ele possui brechas impossíveis de
serem fechadas, por onde todos os descabentes terão ainda a possibilidade de questioná-lo e resistir
a ele.
Uma mamãe se propôs a fazer uma escola, mas de outro modo. E então foi
chamando amigas para ver se queriam fazer a escola com ela. Algumas disseram
sim, outras não. E assim surgiu a escola. Cada vez fomos comprando mais e mais
materiais, e cada vez foi crescendo mais: Os ambientes, os materiais, as crianças e
assim se formou.119
Abandonei a primeira escola onde estive. Era muito chato. Na outra escola estavam
mandando em mim o dia todo. Aqui não mandam em mim o dia todo. 120
A gente tentou várias escolas… não tava dando certo… até que a gente teve a ideia
de fazer uma escola. Quando eu digo fazer, não construir com tijolos, fazer
programando ela. Como se fosse um filme que estavam lançando. 121
Eu acho que este colégio é muito mais livre e que tem mais opções, para fazer
coisas diferentes. E em outros colégios não tem tantas possibilidades de fazer o que
você quer. Por exemplo, aqui você não pode fazer o que quiser, mas pode fazer
coisas que em outros colégios você não pode. 122
Uma escola que rompa como os muros físicos e simbólicos, que rompa com a
hierarquia piramidal das instituições e que acredite inteiramente na potência da
construção coletiva. Uma escola que valorize as potencialidades, sonhos,
curiosidades e inquietações de cada educando e educador. Uma escola que não
esteja centrada no professor e nem no aluno, mas na relação estabelecida entre eles.
Uma escola que vê nos problemas e conflitos fontes ricas de aprendizagem e de
crescimento pessoal. Uma escola que estimule seus estudantes a maiores níveis de
autonomia, horizontalidade, criatividade e aprendizagem significativa. Uma escola
que tem como princípio combater todas as formas de preconceito em nossa
sociedade. Uma escola que estará sempre por fazer, pois nunca estará pronta. 123
117 MAURICIO, Roberth, [Re]considere, 2017(a), 38:02 a 38:54. Disponível em <https://tinyurl.com/vxv6e5n>
118 ERHART, María Laura, [Re]considere, 2017(b), 28:44 a 28:50. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
119 CRESTA, Luzmarina, [Re]considere, 2017(b), 6:33 a 7:15. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
120 DI RAIMONDO, Simon, [Re]considere, 2017(b), 00:06 a 00:32. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
121 BOCCHINI, João, [Re]considere, 2017(e), 4:19 a 4:40. Disponível em <https://tinyurl.com/qrhujym>
122 CASTRO, Antonia, [Re]considere, 2017(b), 1:02 a 1:20. Disponível em <https://tinyurl.com/w3z979w>
123 Projeto Político Pedagógico da Escola Democrática de Niterói, Niterói, 2019 (texto mimeografado). p. 5.
40
Em 2013 a proposta já tinha tomado uma forma mais concreta, mas, refletindo sobre ela, nos
deparamos com o abismo que havia entre nossa proposta e as aspirações que observávamos na
sociedade niteroiense. Muitos de nós estávamos metidos nas escolas da cidade, públicas e privadas,
e sabíamos da demanda “vestibuleira” gigantesca, víamos escolas com propostas mais humanas e de
valorização das individualidades fechando suas portas e as redes de pré-vestibulares psicóticos e
escolas “fortes” ganhando cada vez mais espaço.
Decidimos que para isso precisávamos debater com a sociedade aquilo que debatíamos entre
nós. Assim surgiu o [Re]Considere, coletivo independente, sem fins lucrativos, cujo objetivo inicial
era questionar o sistema tradicional de educação através da arte e intervenções na rua, e, logo
começamos a mostrar que existiam outras formas possíveis de se fazer educação.
Com um financiamento coletivo bem-sucedido, o [Re]Considere, em 2016, viajou pela
América do Sul, para visitar e documentar para a sociedade, 12 projetos alternativos de educação
em 6 países diferentes. Estes episódios, até o 8º, por enquanto, estão hoje disponíveis no Youtube,
no canal do coletivo. Eles têm gerado impactos incríveis, sendo usados como material de debate, e
de aulas em universidades, escolas e outros lugares, em diversos países, não só da América do Sul.
E ainda estão sendo lançados materiais frutos da viagem.
Quando voltamos, no meio das crises políticas e financeiras que nos pegaram desprevenidos,
tivemos algumas perdas nas economias do projeto, que continuou sendo tocado democrática e
coletivamente pelos membros do coletivo que permaneceram no Brasil.
No entanto, colhemos os frutos da nossa aposta no debate. O material do [Re]Considere foi
cumprindo seu papel, ao mesmo tempo que os movimentos populares e sociais foram também
trazendo novas discussões para a sociedade, como as questões de gênero e sexualidade, o golpe ou
não golpe, as questões de direitos humanos, e tudo isso passava por um intenso debate nas escolas e
sobre educação. A ponto de mobilizar discursos contrários, como o da reforma do ensino médio e o
do 'escola sem partido'.
Começamos a fazer reuniões abertas para discutir o projeto político pedagógico da escola e
começamos a ser convidados para fazer isso em escolas, privadas e públicas, e o fizemos. Muitos
dos educadores que trabalham hoje conosco se juntaram a nós nesse processo, de modo que da
equipe inicial apenas o Franco de Castro, idealizador do projeto, está presente no coletivo, e eu sou
o segundo mais velho lá dentro.
42
Em 2017, começamos a promover cursos também para os adultos, já com a proposta
pedagógica da escola, de (des)formação docente. O AMÃ, que tem sido um sucesso, já formou sua
quarta turma (2019.1), tem como objetivo desconstruir os processos de escolarização pelos quais
passamos por toda a nossa vida, e acabamos reproduzindo cotidianamente. E o Imagine, ministrado
por mim, foi um curso de formação para o trabalho com jogos e educação, que teve apenas uma
edição em 2018, com possibilidades de haver mais. Nesse usava o conceito de Experiência do
Larrosa, para construir conhecimentos e reflexões a partir de jogos.
Em 2018, em meio à conjuntura política, decidimos que não podíamos mais esperar e demos
o último passo na concretização da ideia da escola. Começamos a reunir famílias e deliberar mais
praticamente na construção da escola. Tivemos muitas reuniões internas e parimos o documento do
Projeto Político Pedagógico para apresentar à comunidade escolar que ia se formando.
Agora temos a Escola Democrática, que em 2019 ainda não tinha sido regularizada, que
contou com a participação de 11 crianças no início do ano e 16 no final. Embora não fosse nosso
plano começar com educação infantil, foi o que aconteceu. Nossa menor criança tinha 2,5 anos e a
maior 5. E, no fim das contas, nada poderia fazer mais sentido.
Nesse sentido o papel da nossa escola não é formar cidadãos para o exercício da
cidadania, mas sim no exercício dela. Não é formar cidadãos autônomos no futuro,
mas fazer da autonomia condição essencial do processo de vida. Não é formar
cidadãos que pensarão que a política está desconectada de suas vidas, ou que o
nosso papel é relembrá-la de 4 em 4 anos, mas sim potencializar indivíduos que
cotidianamente serão inspirados, desafiados e escutados para que aprendam a
reconhecer o poder de suas ideias e da força dos processos coletivos. 125
Não só como educador, mas também como aluno, fui capaz de perceber a dificuldade de se
“compreender” a História. E aqui considero não só a que é chamada pela maior parte dos autores de
“história escolar”, como também a acadêmica. A maior parte das pessoas declara não ver muita
razão no estudo do passado, e quanto mais distante do presente pior. Em alguns casos, ainda, usam a
história como exemplo, ou como lembrete para que não se repita no hoje e no amanhã os erros do
ontem.
Em suma: a maior parte das pessoas veem a história, simploriamente, como um estudo do
passado. E, vendo-a assim, não conseguem conceber muitas das suas potências para o presente e,
menos ainda, para o futuro.
Nas escolas, por conta da forma tradicional pela qual os estudantes são levados a se
relacionarem com o conhecimento histórico – e isto ainda acontece, embora um pouco menos, em
determinadas áreas da academia – é muito comum a visão do passado como algo muito distante.
Mesmo para o passado mais próximo, mas já não vivido e experimentado plenamente pelo
125 Projeto Político Pedagógico da Escola Democrática de Niterói, Niterói, 2019 (texto mimeografado). p. 9.
43
estudante, há uma tendência a considerar a História como uma narrativa ficcional, objetificada,
desumanizada e, por isso, muitas vezes irrelevante ou, num dos melhores casos, curiosa e instigante.
Foi o meu caso, e a razão pela qual, entre 13 outros cursos universitários, aos meus
dezessete anos, escolher estudar História. Eu queria me nutrir, arrogantemente, de todo o
conhecimento do passado, e ensinar, não menos arrogantemente, tudo aquilo que eu teria aprendido
para os jovens. Desapontei-me profundamente nos primeiros semestres da universidade,
questionando minha permanência nela. A História que a mim era ensinada ali não tinha
absolutamente nada a ver com a História que eu tinha aprendido ao longo de toda minha vida
escolar, ou seja, toda a minha vida. Mas logo fui capaz de entender um pouco melhor o que estava
acontecendo.
Motivado a questionar duramente a escolarização tradicional eu pude começar a
desconstruir a escola que existia em mim, a arrogância de querer saber de tudo. Me dei conta de que
História pode e deve ser algo tão mais abrangente do que eu imaginava ao ingressar na
Universidade, que minha motivação como docente já não era mais transmitir um conjunto infinito
de saberes históricos aos estudantes com quem porventura me encontraria.
No entanto, observo aqui que a Universidade em si teve um papel passivo nisso. Ela apenas
se apresentou como barreira e obstáculo. Foi graças às minhas outras vivências que pude ter o
discernimento e o desejo de continuar enfrentando-a, e usufruindo do que ela tinha para me oferecer
de maneira mais consciente.
Numa aula de Psicologia da Educação, contemporânea à minha primeira PPE 126, e, ainda, ao
meu primeiro estágio, li meu primeiro texto de Jorge Larrosa, Elogio do Riso127. Fui
verdadeiramente tocado por este texto. Afinal, como o próprio autor aponta: Que textos de
pedagogia viriam falar do riso? Gosto de pensar sobre os diferentes tipos de riso, assim como os
diferentes tipos de silêncio, ou os diferentes tipos de fala, de gestos… E até aquele momento não
havia parado para refletir dessa maneira sobre o riso.
Este texto chamou minha atenção para a minha seriedade, mas eu também fui forçado a rir
de diversas lembranças que tive sobre pessoas moralizando outras. Moralizando-me, ou as minhas
escolhas, ou minhas ações. Nunca esqueci como o professor que acompanhava no estágio de PPE,
que havia sido meu professor no Ensino Médio também, Henrique Vieira, fazia isso tão bem: isso
de se vestir com o chapéu de Guizos, do qual fala Larrosa. De deixar-se, estupidamente,
desmascarar e desconstruir as falsas seriedades que nos cercam.
De modo geral, os alunos e este professor possuíam laços estreitos de afinidade, brincavam e
faziam piadas, cantarolavam e assoviavam, tentando desconstruir a carga de seriedade nociva que às
vezes se instaurava na sala, uma seriedade apática e desestimulante. A atmosfera ao redor dele era
126 Disciplina obrigatória de estágio, da licenciatura em História na UFF: Pesquisa e Práticas de Ensino. São 4 no total,
com diferentes professores e perspectivas do fazer educativo de História nas Escolas.
127 LARROSA, Jorge. Elogio do Riso. In: Pedagogia profana. Porto Alegre: Contrabando, 1998, trad. Alfredo Veiga-
Neto.
44
sempre risível.
Minha postura em diversos aspectos alterou-se por conta da leitura deste texto, e minha
visão sobre muitas coisas sofreu o mesmo impacto. Eu reparei que possuía um tanto deste orgulho
de ser professor, desta postura engravatada entranhada profundamente no meu ser. Bastante
característico de quem quer parecer sério, ou respeitável. Por isso tenho tentado não me esquecer
dos guizos.
Em contrapartida, as aulas que eu ministrava sempre foram permeadas deste riso,
estranhamente a minha toga de professor era mais para mim do que para os estudantes com quem
interagia, e ainda mais para aqueles que um dia foram meus tutores do que para eu mesmo, pois
queria provar algo que julgava necessário ser provado. E disso também rio.
Fico me perguntando como foi que chegamos nesta sociedade tão carente por legitimidades:
papéis comprovando o que sabemos, cargos que nos permitem tomar decisões, concessões e
cerceamentos… Os acadêmicos detêm a ciência, os advogados e juízes detém a justiça, os artistas
renomados detêm a arte, os professores, o conhecimento, os adultos as certezas, e o estado, o poder.
E, de repente, eu que podia escrever, não sou escritor, que podia cantar, não sou cantor, que podia
ensinar, não sou professor. Preciso de provas a todo o tempo.
Tenho trazido as minhas experiências de estágio e PPE para tentar resgatar e ilustrar os
processos pelos quais a Universidade, de alguma maneira, me fez passar e como, mesmo através de
uma instituição ainda um tanto tradicional, tive espaço para desenvolver em liberdade uma porção
de aspectos fundamentais para a minha formação como historiador e professor.
A época da minha PPE 1 foi um momento de observar e questionar o espaço escolar. Por
conta de tudo o que acontecia. Fui convidado pela professora de Psicologia da Educação a
desenvolver um projeto no Coluni que alterou minha forma de ver a História. Transformação que
seguiu acentuadíssima no semestre seguinte, quando fiz PPE 2, e minha percepção sobre o saber
histórico tornou-se outra.
Para mim, a História passa a ter, como ciência humana, a função escolar de aguçar o olhar
para o outro. Neste sentido, nos aproximamos da alteridade para o próprio desenvolvimento do
homem e o relacionamento dos indivíduos entre si e com a sociedade. Nosso papel como professor
de História, no espaço escolar, tido como espaço intermediário de formação geral do indivíduo é
contribuir para o desenvolvimento pessoal e coletivo dos indivíduos que acompanharmos. O saber
histórico escolar não se propõe tão especializado como na universidade e nem devia, assim a função
do educador deixa de ser transmitir uma carga enorme de conhecimentos específicos, para tornar-se:
compartilhar conhecimentos, dialogar e refletir sobre eles e suas metodologias de produção,
incentivar o aprendizado, a pesquisa, a crítica e a curiosidade.
Isso é um pouco do que Jorn Rüsen aborda em seu trabalho sobre Consciência Histórica, 128
128 RÜSEN, Jorn. El desarrollo de la competência narrativa en el aprendiaje histórico. Una hipótesis
ontogenética relativa a la conciencia moral. Revista Propuesta Educativa, Buenos Aires, Ano 4, n.7, p.27-36.
45
embora eu discorde um pouco de sua tipologia, por achá-la um tanto limitante. Ao invés de
desenvolver seu conhecimento histórico de acordo com ‘o quanto você sabe sobre o passado’, trata-
se de desenvolver o seu ser, de modo a aprimorar a forma como você se relaciona com o tempo
passado, presente e futuro. Fazer isso através de debates, investigações, pesquisas, passeios,
leituras… De todas as maneiras possíveis, mas, acima de todas, relacionando-se com o Outro.
Porém, mais do que isso, para que um trabalho verdadeiramente amplo seja feito nas escolas
na área de História, deveremos valorizar ainda mais a História Pública em seus diferentes vieses. A
História deve se tornar mais acessível, a produção de saberes históricos menos catedrática, seu
cunho absolutamente multidisciplinar mais bem aproveitado e, antes, mais bem compreendido pelas
pessoas, primariamente pelos próprios produtores deste conhecimento e responsáveis pela formação
dos que virão a seguir.
E, se Rosenstone, em seu livro A história nos filmes, os filmes na história’129 – onde
investiga possíveis metodologias utilizadas nas produções audiovisuais e as compara com o fazer
histórico científico – defende que determinados cineastas são historiadores por conta da
metodologia que utilizam de: visualizar, contestar, revisar e provocar, que outro lugar, que não a
universidade, melhor que a escola para que conhecimento histórico seja de fato produzido? Por
todos. E não apenas transmitido por alguns.
A aprendizagem não tem hora para começar, nem hora para acabar, muito menos
lugar específico para acontecer e número de pessoas para se dar. O que não quer
dizer que a escola não deva assumir sua função de estruturação de como essa
aprendizagem pode ser potencializada. Se há 7 bilhões de pessoas no mundo, há 7
bilhões de formas de ser no mundo, o que significa uma infinidade de formas de
aprendizagem. Em nossa escola não queremos limitar, reduzir ou anular as
possibilidades de se aprender – pelo contrário, nosso desejo é maximizá-las. 130
Na Escola Democrática de Niterói, cuja trajetória iniciamos agora em 2019, a história não é
vista apenas como uma disciplina, mas também como um conhecimento que atravessa a vida,
cotidianamente. Sendo assim, por mais que não neguemos a prática expositiva, ela não é a nossa
principal ferramenta de diálogo e construção de conhecimentos.
Nossa escola funciona através de roteiros de estudo, oficinas e projetos.
131 Projeto Político Pedagógico da Escola Democrática de Niterói, Niterói, 2019 (texto mimeografado). p. 21.
132 Ibidem. p. 24.
47
critérios de escolha que guiaram os professores, administradores, curriculistas etc.
que montaram aquele currículo. Esse é o motivo pelo qual o currículo se situa no
cruzamento entre a escola e a cultura. 133
Além disso, organizamos nosso currículo de forma não linear. Tendo em vista que os
estudantes escolhem como, quando, onde e com quem vão aprender, desenvolvendo seus roteiros,
decidindo de qual projetos e oficinas participará, seria não só contraditório, mas impossível que
tentássemos manter a aprendizagem reta e idêntica para todos os estudantes. O conhecimento não
funciona dessa forma. Por isso, pegamos o conceito de ‘rizoma’, originalmente da botânica, já
apropriado por Deleuze e Guatarri, em seus livros Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, onde
afirmam que: “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É
muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” 134 e utilizamos para
caracterizar o nosso currículo:
133 VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura e Currículo. in. Contrapontos - ano 2 - n. 4 - Itajaí, jan/abr 2002, pgs. 43-51, p.
44
134 DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Tradução de Aurélio
Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 14 - Disponível em <http://escolanomade.org/wp-
content/downloads/deleuze-guattari-mil-platos-vol1.pdf>
135 Projeto Político Pedagógico da Escola Democrática de Niterói, Niterói, 2019 (texto mimeografado). p. 25.
48
Tive muita dificuldade em encontrar qualquer escola para estagiar, por que estava
procurando alguma cujo professor(a) me permitisse participar de algo em sala com ele, de modo
que eu tivesse a oportunidade de transformar qualquer teoria em alguma experiência prática, de
fato. Até que uma amiga, Katiuscia Quirino Barbosa, doutoranda da UFF, que conheci quando
lecionou uma matéria de eixo para nós, me convidou para estagiar com ela em uma escola onde
trabalhava.
Nunca antes estive numa escola de campo, e aprendi que o Coluni, embora público, difere
muito de outras experiências de escola pública. Só por isso já fiquei muito empolgado. Ficava muito
longe de onde moro, e mesmo havendo um milhão de escolas a menos de 30 minutos da minha casa
eu escolhi ir àquela aquela que ficava a 4h de distância e me levava a tomar 4 conduções para lá
chegar. A professora trabalhava com turmas do sexto, oitavo e nono ano da Escola Vale do Tinguá,
todas as segundas e terça-feiras. Ela propôs que toda segunda eu fosse para lá com ela e ficasse os
cinco tempos, de 7:30 até 12:10.
Ela dizia ter muita dificuldade de trabalhar com o sexto ano, e que gostaria de aproveitar
melhor o espaço da escola para trabalhar História com eles. Muitos deles tinham dificuldades de
escrita e leitura, o que acabava dificultando o trabalho dela e por mais que se esforçasse para
desenvolver atividades diferentes com eles, não costumava dar certo, ou por desorganização e
descomprometimento dos estudantes ou às vezes até dela mesma, dentro da rotina psicótica que um
professor da rede pública acaba tendo que enfrentar.
Poderia, portanto, dissertar sobre a falta de aparelhagem, suporte da direção, descaso das
cozinheiras terceirizadas, e um monte de outras questões que uma escola pública e ainda por cima
de campo, do interior de Nova Iguaçu enfrenta, mas prefiro focar na minha relação com os
estudantes, que é muito mais palpável e alterável do que estas outras questões, que não deixam de
ser importantes.
Para resumir um pouco o trabalho que fizemos juntos através das aulas de história, com a
turma do nono ano, que era bem reduzida e estava muito empolgada com o tema na época de Brasil
Colônia, fizemos rodas de debate, daí surgiram dúvidas e interesses, e a decisão de apresentar um
trabalho em formas de esquetes teatrais sobre eventos da época. Ao mesmo tempo que éramos
levados a discutir questões contemporâneas como racismo, homofobia, violência e desigualdade.
Com a turma do sexto ano, que era tida por toda a escola como a “turma problema”, de fato
foi muito difícil começarmos a estabelecer vínculos reais de respeito mútuo, por conta,
aparentemente, dos traumas que as crianças tinham das suas relações com outros adultos naquele
espaço. Mas conseguimos fazer discussões muito interessantes sobre direitos individuais e
coletivos, montar um quadro de combinados da turma e trabalhar a lógica política por trás de suas
ações.
Mas estou querendo priorizar a relação humana que desenvolvi com cada um dos estudantes.
49
E como são estas as coisas que acabam fazendo toda a diferença, na nossa vida e nas deles – as
relações de afeto que se estabelecem – é sobre elas que vou me debruçar.
Havia uma jovenzinha, muito pequenininha, com seus 7 anos, que certa vez entrou na sala
do nono ano enquanto eles apresentavam seus esquetes – trabalho de Teatro e História que
decidimos realizar com eles. E ela me desprezou com toda a força que podia. Xingou-me, disse que
eu era chato e que tudo que eu estava fazendo ali era uma droga. Eu mantive o sorriso, embora um
pouco confuso com a violência gratuita. Dias depois descobri que ela era irmã de uma menina do
sexto ano, que se relacionava comigo de maneira igualmente amarga, mas que eu tinha conquistado
com algum carinho. Procurei saber da História delas e fiquei um tanto constrangido.
Quando encontrei novamente a pequenina pelos corredores, me olhando com aqueles olhos
que imitavam os de adultos, com desprezo, eu sorri pra ela e disse que tinha adorado o penteado
dela. Ela achou estranho, levou a mão aos cabelos e sorriu – Posso te dar um abraço? – Perguntei.
Ela não respondeu, então eu a abracei.
Ela me abraçou de volta. Foi embora e, mais tarde, quando fui dar aula para o nono ano uma
estudante que a conhecia disse que ela havia dito: “Até que aquele tio é legal… tô começando a
gostar dele.”
Eu me dei conta de que aceitar um estado onde as coisas ‘são’, ao invés de ‘podem ser’, é
um tanto perigoso. É duro. É insuficiente para alcançar e abranger toda a magnífica gama de
possibilidades que perpassam as mentes dos indivíduos envolvidos na tal coisa, que pode ser uma
ou outra: o que eu penso, ou o que o outro pensa e até mesmo o que ninguém pensou ainda. E isso
altera minha relação com a família, com os amigos, com os estudantes e com quem não conheço
também.
Quando falo sobre isso e relaciono essas percepções e reflexões com o fazer histórico,
muitos questionam a coerência dessa relação, mas para mim é muito nítida: como historiadores, nós
tentamos refinar cada vez mais nossa capacidade de análise, reflexão, debate e (ao menos
deveríamos) autocrítica. Sempre senti isso ao escrever aqueles trabalhos mais complexos para a
faculdade, que dependiam de análise de fontes, comparações e proposições teóricas. Ao falar da
formação de poderes nas sociedades protohistóricas, refletir sobre revoltas no nordeste brasileiro, ou
analisar a vida de santos da Idade Média.
Mas tive sorte de estar engajado em outros movimentos, simultaneamente à Universidade,
pois assim pude experimentar essas reflexões que saíam frescas do interior das quatro paredes de
uma salinha qualquer da enorme torre de marfim, e pô-las à prova no mundo contemporâneo.
Realizando, assim, o que estava começando naquela época a entender como ‘educação em
liberdade’. Misturando prática e teoria através dos meus interesses e das demandas que chegavam a
mim.
Com o [Re]Considere tive a oportunidade de conhecer muitas práticas pedagógicas
50
completamente diferentes das tradicionais, e através delas refletir sobre um milhão de coisas que
autor nenhum nos contaria, por que apenas aquelas pessoas, naqueles lugares fazendo aquelas
coisas poderiam nos contar.
Ao longo desta trajetória voltei ao Peru em 2017 para um encontro de educação, Kuska
Risunchis (Vamos Juntos), no local da Escola Democrática de Huamachuco, um dos projetos que
tínhamos visitado na viagem. Pessoas do mundo todo estavam lá. Este novo retorno a um dos
projetos que mais me chamou a atenção, depois de já ter terminado a viagem de pesquisa e
investigação, deu-me a possibilidade de refletir uma vez mais sobre os mais diversos temas. E
lembrar-me que, claro, até mesmo estes projetos têm seus problemas e suas contradições para
enfrentar.
Por exemplo: o desafio de não se impor o outro, não enchendo o outro dos nossos conceitos
e preconceitos, “não faça isso, ou vai se machucar”. Ou o perigo de hierarquizar espaços, e fazer da
escola um espaço tão distinto dos outros, talvez tão mais livre, agradável e prazeroso, que leve os
jovens a quererem estar mais lá do que em casa, com suas próprias famílias. Ou então de virarem
bolhas alternativas que não correspondam, ou pior, que não participem das questões sociais…
Estas são apenas algumas questões, a que cada projeto responde de uma maneira. Sendo isso
um processo constante de revisão e desconstrução de si mesmo. Nós, como professores, famílias,
adultos, somos pressionados a agir de determinada forma, mesmo discordando dela. Por isso,
muitas vezes, cabe-nos ser mais sinceros conosco e com o outro.
E, ao notar que estas reflexões todas também deviam aplicar-se a mim – e à minha
existência, como à minha visão, ou a de qualquer outro, sobre eu mesmo – fico vulnerável, mas, ao
mesmo tempo, leve e contente por saber que não sou algo permanente, que as expectativas não
serão alcançadas, que os planos traçados enfrentarão problemas, que minhas ideias vão mudar e
minhas visões estarão em constante transformação, graças ao fato de não me deixar deter. De estar
sempre instigando um questionamento sobre mim mesmo, rindo sempre de mim mesmo, e
duvidando.
Por isso inconstante no meu caminho, criança na minha vida adulta, e sonhador na minha
lucidez. Risonho nas minhas teorias, e feliz na minha liberdade e na minha constante formação,
como professor, como historiador, como tudo o mais que eu venha a ser… como humano e como
Estevão, sigo caminho e tento finalizar essa formação.
Refletindo sobre todas as contradições de ao mesmo tempo desejar esse papel e essa
legitimidade e, de peito aberto e leve, desconstruir cotidianamente os determinismos históricos
impregnados em nós.
É nesse contexto que a própria Escola Democrática de Niterói sai do papel. E é finalmente
nela que me encontro com o maior conflito já enfrentado por mim entre prática e teoria. É nela que
me ponho a prova cotidianamente enquanto lido com cada criança e cada adulto que a compõe. É
51
nela que reflito sobre liberdade, autonomia, aprendizagem significativa, prática pedagógica,
autoridade e poder, dever e ócio…
E, por mais que esteja trabalhando nesta formação em História, entendo que as relações
estabelecidas ali extrapolam em muito meus conhecimentos científicos. Eu preciso aprender sobre
mim mesmo neste processo. E é muito bonito ver que esse aprendizado eu só consigo com o outro,
e que os outros são, muitas vezes, as crianças que me põe contra a parede em minhas crenças, que
desfiam os combinados coletivos e que mostram que construir educação em democracia não é nada
simples ou direto.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho pudemos ver a forma como a educação foi sendo utilizada ao longo da
história ocidental, em diferentes contextos sociais, para construir laços comunitários, formar
pessoas para o mercado de trabalho, instruir nos conhecimentos historicamente produzidos pela
humanidade, engessar mentes e corpos… Vimos como a concepção de infância foi se alterando ao
longo do tempo, e através das diferentes disputas de concepção. Refletimos sobre como a educação
influenciava e era influenciada por conceitos como produção e trabalho, violência e segurança,
ordem, marginalidade e tempo. Discutimos a ideia de Escola e escolarização, ensino, aprendizagem
e conhecimento. Falamos também sobre a institucionalização dos saberes e do fazer educativo como
função social, pública, coletiva, universal e/ou democrática.
Apresentamos conceitos tradicionais de Educação, suas conformações e lógicas práticas,
suas intencionalidades e finalidades, os discursos daqueles que as defendiam em seus contextos
específicos e as forças de resistência que atuavam em ambas as direções. Fizemos questão de
ressaltar as mentalidades políticas correspondentes a estes processos e também aos que vieram para
solapar estas estruturas.
Observando que a educação sempre foi um território de disputa e reflexão tentamos discutir
suas permanências e transformações, entendendo que suas estruturas nunca foram coesas ou
inquestionáveis, pelo contrário, sempre foram repletas de contradições, por mais rígidas que
tentassem ser em determinados momentos.
Neste histórico de transformações do fazer pedagógico e do entendimento da infância,
chegamos a um momento histórico no qual discursos anarquistas e democráticos passam a
convergir numa proposição diferente de escola e aprendizagem, trabalhando a concepção de
liberdade coletiva. Passam a falar mais sobre processos e menos sobre resultados – que, até então,
mesmo nas propostas mais progressistas de Educação era a forma de caracterizar o sucesso dos
processos educativos. Passam a defender uma ideia de sociedade diferente, assumindo um caráter
político contra-hegemônico muito forte.
E o interessante é ver que muito do que foi construído como relações de aprendizagem ao
longo da História vai sendo recuperado e adaptado para estas novas propostas. Elas ainda estão
começando a ganhar espaço, e, como vimos, ainda correm o risco de serem mal interpretadas e
postas a serviço do sistema, que em um princípio questionam.
Esta nova proposta de educação está muito pautada nas relações, na desconstrução das
hierarquias e das forças opressoras, da descentralização do adulto no processo, na crítica e na
autocrítica, na liberdade solidária, que supõe que um ser é tão livre quanto o que está ao seu lado.
O trabalho tenta elencar a partir da experiência do autor, amostras de projetos educativos do
sul global, mais especificamente da América Latina, com um conjunto de episódios de uma Web-
53
série que documenta e apresenta projetos alternativos de educação, com falas de crianças, adultos,
jovens, educadores, estudantes, pais e mães e mais um monte de atores sociais que os compõe…
Fala ainda da experiência inicial do autor ao começar a construir uma Escola Democrática
na cidade de Niterói e suas reflexões acerca deste processo, tentando entender como a sua formação
universitária contribui e se estrutura de forma ampla e livre em consonância com todas estas
reflexões.
Parece, portanto, que a educação é um tema que deve estar sendo sempre revisitada e
questionada. Um tema que deve ser entendido como parte fundamental da conformação social e
comunitária e indissociável de sua continuidade e desenvolvimento. Sendo assim, entendemos
educação como algo mutável e que nunca estará pronta, mas passamos a estabelecer alguns
princípios básicos que deveria ter em mente ao ser feita, como o respeito aos indivíduos, às suas
histórias e conhecimentos, a não opressão e repressão de suas expressões individuais, se, claro, não
for atentar aos direitos e liberdades dos demais, situação na qual, democrática e amorosamente,
atitudes não violentas devem ser tomadas para a verdadeira inclusão deste indivíduo na comunidade
da qual faz parte, entendendo que a educação não significa escola e que a escola não educa sozinha.
Com um caráter mais reflexivo e ensaístico este trabalho tenta cumprir mais um papel de
levantar questões e apresentar possibilidades do que responder perguntas ou encontrar uma forma
única de fazer Educação. A partir daí podemos aprofundar o debate analisando práticas trazidas
aqui, ou a própria formação, construção e prática da Escola Democrática de Niterói, seja através do
viés do ensino de história, quando do da historicidade do ensino.
54
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