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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

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APRESENTAÇÃO 5
UM BECO DE MEMÓRIAS: UM ESTUDO ACERCA 13
DA HISTÓRIA DO BECO DOS COCOS
Elayne Messias Passos

O QUE ACONTECE EMBAIXO DA PONTE? 33


JUVENTUDES E OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS
Renata de Mello Cerqueira Pereira

TERRITÓRIOS E TRABALHO SEXUAL MASCULINO 55


NO CENTRO DE ARACAJU
José Welington de Jesus, Ulisses Neves Rafael

COPOS, EMOÇÕES, CORPOS E SOCIABILIDADES: 75


FORRÓ NO BAR
Luciana Chianca, Ruanna Gonçalves da Silva

O MARACATU ALAGOANO 104


E SEUS MAIS DE 110 ANOS DE EXISTÊNCIA
Cadu Ávila

ENTRE OS BECOS E OS BOULEVARDS: TENSÕES SOCIAIS 122


E INTELECTUAIS NA DEFINIÇÃO DA REPRESENTAÇÃO
DO RIO DE JANEIRO DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Ulisses Neves Rafael, Victor Marcell Gomes Barbosa

O SEXO COMO “IDIOMA DO FORRÓ” 145


– DE GONZAGA A SAFADÃO
Amanda Scott, Luciana Chianca

O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO E A CONSTITUIÇÃO 168


DO PATRIMÔNIO IMATERIAL NO BRASIL:
NOTAS SOBRE OS USOS DA NOÇÃO DE SISTEMA
Marina Zacchi

NO MIOLO DE FEIRA TEM “MUÍDO”: A FOLCLORIZAÇÃO 193


DA CULTURA POPULAR NA PATRIMONIALIZAÇÃO
DA FEIRA DE CAMPINA GRANDE
Lucas Neiva Peregrino
APRESENTAÇÃO
Reunimos neste livro um conjunto de artigos que, sob variados enfo-
ques, gira em torno de três temas: cidades, memórias e patrimônios.
Cada um desses termos encerra uma profusão de significados e re-
cebeu, ao longo do tempo, copiosas reflexão e análise, a maioria de
incontestável plausibilidade.

O primeiro desses temas, a cidade, é indiscutivelmente central na


Sociologia, e resultou em primorosos estudos e teorias, cuja recons-
tituição passa ao largo dos nossos objetivos no presente livro. Des-
de a Revolução Industrial – que acarretou processos migratórios de
variadas escalas e expansão radical das áreas urbanas –, a cidade se
tornou lócus privilegiado da Sociologia Clássica.

A memória é mais comumente associada à historiografia, embora a


discussão em torno de seu dinamismo extrapole esse campo de conhe-
cimento. Interessa-nos, aqui, remontar à ideia de memória enquanto
espaço de confrontos e de disputas, por um lado, mas também de con-
fluência e de convergência de interesses, por outro. Ela está na inter-
seção entre a inclinação ao esquecimento e a urgência da lembrança.

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O patrimônio, por sua vez, situa-se no cruzamento entre os dois cam-
pos destacados – a cidade e a memória – e recebe grande atenção
dos antropólogos contemporâneos, constituindo área privilegiada
da pesquisa etnográfica nos últimos anos, o que talvez seja decor-
rente da grande proximidade entre as concepções antropológicas
de cultura e de patrimônio intangível. Não por acaso, é da Antropo-
logia que decorrem as principais orientações para a elaboração de
metodologias atuais de inventário de referências culturais. Também
se inicia com os antropólogos a discussão acerca dos riscos de reifi-
cação das práticas e de conhecimentos patrimonializáveis.

Isso posto, restaria ainda aberta a justificativa para a realização de


uma coletânea como esta, que visa reunir trabalhos sobre temas tão
densos e tão abundantemente cotejados. Como transpor o desafio
de não ser repetitivo e enfadonho? Qual abordagem ainda restaria
como alternativa à profusão de tratados? Quais aportes encontra-
riam ainda ensejo para vir a lume?

Considerando que os temas aqui discutidos alcançam três áreas de


conhecimento de grande envergadura (Sociologia, História e Antro-
pologia), cumprimos o desafio epistemológico de aproximá-los. Para
isso, reunimos, neste livro, reflexões cuja maior marca são pesquisas
de campo envolvendo observação direta. A contribuição desta obra
advém da especificidade dos recortes aqui apresentados, que com-
binam, de modo criativo e original, os conceitos de cidade, memória
e patrimônio, fornecidos por essas áreas de conhecimento, e que, re-
conhecemos, têm fronteiras marcadamente porosas e comunicantes.

6/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO


Cidades, memórias e patrimônios é um livro que apresenta textos
inéditos de pesquisas que exigiram empenho e dedicação ao longo
de trajetórias acadêmicas com duração de dois ou três anos, reali-
zadas por alunos de graduação ou de pós-graduação em Antropo-
logia e em Sociologia. Trabalhos que repercutiram nas trajetórias
de seus orientadores, instados a repensar também seus objetos e
temas de pesquisas. Trata-se, portanto, de conclusões ou de trechos
mais extensos de dissertações e monografias, apresentados em ver-
são reduzida para os fins desta publicação. Não carecem de riqueza
reflexiva e etnográfica, como se poderá constatar: o material aqui
exposto se revela de proveitosa utilidade e provoca leitores além
do circuito acadêmico, posto que envolve situações e contextos de
grande oportunidade e interesse.

O critério aplicado na seleção dos textos obedece, a princípio, ao


desejo de fortalecimento da parceria interinstitucional entre a Uni-
versidade Federal de Sergipe e a Universidade Federal da Paraíba. A
parceria, firmada por meio de interlocução antiga entre os organi-
zadores da coletânea, agora se estende para incorporar orientandos
e ex-alunos cujas pesquisas se realizaram em torno dos temas que
norteiam esta obra – cidade, memória e patrimônio.

Esta coletânea tem início com o seminal artigo de Elayne Messias


Passos, Um beco de memórias: um estudo acerca da história do Beco
dos Cocos. A autora traz uma provocante apreciação sobre o beco,
lugar marginalizado, inclusive, dentro da própria antropologia ur-
bana brasileira, em que é categoria flagrantemente desprezada. Seu

7/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO


objeto específico é o Beco dos Cocos, um refugo no conjunto arqui-
tetônico que caracteriza o Centro Histórico de Aracaju, capital ser-
gipana. Passos mostra, contudo, que, embora se trate de área des-
prezada pela lógica dos planejadores urbanos e insuficientemente
debatida em termos acadêmicos, essa parte excessivamente peque-
na da cidade se encontra carregada de sentidos e mostra-se como
um expressivo espaço de ressignificações acerca das noções locais
de centralidade e de enobrecimento.

Renata de Mello Cerqueira Pereira, com o seu instigante O que aconte-


ce embaixo da ponte? Juventudes e ocupação de espaços públicos nos
conduz por outra região também secundária da capital sergipana.
Trata-se do bairro Industrial, antiga região fabril da cidade, que, ao
longo do tempo, sofreu intensas e significativas transformações em
sua dinâmica e estrutura, sobretudo com a construção da ponte que
liga a capital ao vizinho município de Barra dos Coqueiros, do outro
lado do rio Sergipe. A autora, contudo, não se rende às impressões
de decadência associadas ao antigo bairro fabril e volta-se para as
estratégias de ressignificação e de ocupação por parte da população
jovem do bairro, que desenvolve variadas maneiras criativas de ocu-
pação do lugar, inclusive, com usos do repertório da cultura hip-hop.

De volta ao centro da cidade, José Welington de Jesus e Ulisses Ne-


ves Rafael nos conduzem pelo secreto universo das interações so-
ciais que ocorrem entre homens que fazem sexo com homens, os
chamados “garotos de programa”, e seus clientes. O artigo nos apre-
senta determinados territórios propícios aos intercursos sexuais

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ocasionais e fortuitos não-contratuais, que ocorrem sem a presen-
ça de vínculo amoroso prévio e sem, necessariamente, a prestação
financeira. Em Territórios e trabalho sexual masculino no centro de
Aracaju, os autores realizam o levantamento dessas “zonas morais”
ou “territórios marginais”, cujo tamanho se estende para além do
centro da cidade e atinge também as regiões das praias, em espe-
cial, Atalaia Velha e Coroa do Meio.

Em João Pessoa (PB), Luciana Chianca e Ruanna Gonçalves da Silva,


em Copos, emoções, corpos e sociabilidades: forró no bar, analisam
o ambiente e algumas situações de interação em um bar da cidade,
observando, por meio de pesquisa participante, seus “dias de forró”.
Nesse artigo original, o foco ultrapassa o discurso dos músicos de
forró e atinge a sua própria experiência de trabalho e o constante
dilema sobre a escolha das músicas a serem executadas. Seguindo a
teoria da performance, o artigo busca revelar o que a linguagem mu-
sical (letras e sons) e sua execução pública representam para esses
músicos e qual mensagem pretendem transmitir. A participação do
público em tais performances musicais também é analisada.

O artigo da lavra de Cadu Ávila: O maracatu alagoano e seus mais de


110 anos de existência se presta a resgatar os motivos do desapare-
cimento dessa modalidade artístico-cultural no contexto alagoano,
sobretudo a partir do “Quebra de 1912”. Trata-se de episódio de ex-
trema violência contra as principais casas de cultos de presença afri-
cana em Alagoas e que teve função decisiva também no sumiço dos
maracatus, os quais mantinham estreitas relações com os terreiros

9/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO


alagoanos de Xangô. O autor realiza um importante levantamento
das notícias acerca da presença festiva dos maracatus nos carnavais
de Maceió nas primeiras décadas do século XX e do seu súbito desa-
parecimento da vida pública e da crônica local.

Victor Marcell Gomes Barbosa, no artigo Entre os becos e os boule-


vards: tensão social e intelectual na definição da representação do Rio
de Janeiro da Primeira República também se debruça sobre período
semelhante ao do artigo anterior para analisar o fenômeno que se
denominou “boemia literária”, no Rio de Janeiro, na passagem entre
os séculos XIX e XX. Por um lado, o autor tem interesse pelo clima de
tensão social que envolve a parcela pobre da então capital federal,
frente aos processos de disciplinarização e de controle exercidos pelo
Estado à época. Também analisa, por outro lado, o papel da chamada
“boemia carioca” e o posicionamento da elite intelectual na defesa
dos preceitos higienistas frente à dura realidade social brasileira.

Contemplando a memória musical do Nordeste brasileiro, represen-


tada, aqui, pelo forró, desde suas origens até uma de suas expressões
mais contemporâneas, o forró eletrônico, Amanda Scott e Luciana
Chianca trazem o artigo O sexo como “idioma do forró”, de Gonzaga
a Safadão. Parafraseando Evans-Pritchard (1978), que identificou o
gado como “idioma” dos Nuer, as autoras revelam que o sexo é o
idioma do forró desde sua invenção no qual a sociedade “fala sobre
si”. Elas partem de Luiz Gonzaga, que mantinha um jogo discreto e
disfarçado com o sexo e o erotismo em suas canções, e chegam às
atuais músicas do forró eletrônico, quando o caráter sexual das rela-

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ções afetivas é desmascarado. Nesse sentido, o forró eletrônico não
aponta para rupturas com os demais estilos de forró; ao contrário,
guarda uma vital continuidade com suas raízes mais profundas, nas
quais o amor, o sexo e o romance mantêm um lugar privilegiado in-
dependentemente de suas inovações estéticas e sociais.

Temos a elegante reflexão de Marina Zacchi, O trabalho do antropó-


logo e a constituição do patrimônio imaterial no Brasil: notas sobre
os usos da noção de sistema, na qual a autora se dispõe a tratar das
maneiras pelas quais os usos da noção de sistema possibilitam (ou
não) a constituição do patrimônio cultural de natureza imaterial, es-
capando à materialização da cultura. Para tanto, Zacchi destaca os
usos dessa noção nos dossiês do Registro da Arte Kusiwa – pintura
corporal e arte gráfica Waiãpi; do Ofício das Baianas de Acarajé; e do
Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro.

E por fim, o artigo de Lucas Peregrino também aborda a constituição


dos patrimônios, desta feita através do caso do Registro da Feira de
Campina Grande (PB). Em No miolo de feira tem “muído”: a folclori-
zação da cultura popular na patrimonialização da Feira de Campina
Grande, o “miolo” é um território vivo e muito dinâmico onde se rea-
lizam negociações de diversas ordens – de produtos e serviços con-
sagrados (como raizeiros, venda de flores, carnes, comidas prontas),
até produtos industrializados, como roupas e sapatos, pen drives
de músicas de sucesso etc. O “muído” da feira são as negociações
em torno da definição desse patrimônio cultural nacional: acompa-
nhando os momentos finais desse registro, o autor identifica uma

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importante tensão (e, por vezes, cisão) entre a transformação e a
modernização da feira versus a folclorização e a estereotipização de
algumas de suas expressões.

Este livro é, portanto, uma obra que revela a atualidade e a pujança


dos estudos de antropologia em torno da cidade, do patrimônio e da
memória, tomando como foco a produção de jovens pesquisadores
de duas universidades públicas federais nordestinas, a de Sergipe e
da Paraíba. Ensejamos que esta publicação contribua para o debate
em torno desses importantes temas com perspectivas que deverão
cativar estudiosos e outros leitores interessados em conhecer me-
lhor a diversidade cultural do Nordeste do Brasil e os modos como
tal diversidade vem sendo discutida localmente na atualidade.

Luciana Chianca (UFPB)


Ulisses Neves Rafael (UFS)

Aracaju/João Pessoa, 23 de agosto de 2020.

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UM BECO DE MEMÓRIAS: UM ESTUDO ACERCA
DA HISTÓRIA DO BECO DOS COCOS
Elayne Messias Passos1

INTRODUÇÃO

Aracaju, capital sergipana, foi fundada em 17 de março de 1855, a par-


tir de um projeto arquitetônico peculiar, que estruturava a cidade tal
qual um tabuleiro de xadrez. O traçado rigoroso atribuído ao local era
estratégico para reunir os prédios públicos e as residências da alta so-
ciedade, evitando o soerguimento de espaços desordenados que pu-
dessem ser ocupados de forma tumultuada aos olhos dos gestores da
época. Tal planejamento urbano acabou, de certo modo, privilegian-
do as classes mais abastadas socialmente, em detrimento dos grupos
menos favorecidos, excluídos das principais regiões da urbe.

A despeito da rigidez do projeto, nesse mesmo horizonte histórico, sur-


giu o Beco dos Cocos, travessa constituída justamente numa “sobra” de
espaço no coração do centro aracajuano, que funcionava, primordial-
mente, como rota de passagem para o desembarque e o abastecimen-

1 Antropóloga. Professora da Rede Pública Estadual de Sergipe/Técnica em educação da


Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe (SEDUC). Doutoran-
da em Antropologia (PPGA/UFBA).

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to de cocos no incipiente comércio central da cidade. No curso dos tem-
pos, o Beco transformou-se desse simples local de passagem de cargas
a um reduto boêmio, endereço de famosos cabarés, convertendo-se,
depois, também em uma das maiores zonas de tráfico de entorpecen-
tes da capital sergipana, até se tornar o que é hoje, estacionamento de
veículos ciclomotores e quase um banheiro a céu aberto.

Este artigo procura investir na reflexão acerca da vida urbana de Ara-


caju e na compreensão do funcionamento da cidade sob a ótica da
história do Beco dos Cocos. Trata-se de desdobramento de pesquisa
desenvolvida por ocasião do mestrado realizado junto ao Programa
de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Ser-
gipe, a qual buscou percorrer a origem e as transformações ocorridas
no Beco dos Cocos simultaneamente ao desenvolvimento de Aracaju,
para, assim, entender os processos que levaram a comunidade ara-
cajuana a se transformar no que ela é atualmente. A diferença deste
estudo para outros inseridos na Antropologia Urbana está na opção
pelo beco como objeto para obtenção das respostas pretendidas, já
que a categoria escolhida é flagrantemente pouco frequentada na
comparação com outros grupos de observação, tais quais o bairro ou
a rua, apenas para citar dois exemplos muito mais visitados.

A peculiaridade desta proposta, portanto, pauta-se no fato de focali-


zar a análise do beco, uma parte excessivamente pequena da cidade e
insuficientemente debatida em termos acadêmicos. Nesse contexto,
o uso do Beco dos Cocos como laboratório de estudo é de grande uti-
lidade, haja vista as várias ressignificações do local, o qual experimen-
tou momentos de apogeu e hoje se encontra abandonado.

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Nesse ponto, cumpre salientar que o destaque atribuído ao ocaso do
Beco dos Cocos não representa, absolutamente, um alinhamento às
visões superficiais e estigmatizantes sobre as localidades marginais
e secundárias dos centros urbanos. Ao mostrar a decadência do lu-
gar, acreditamos estar fazendo ver a característica “sanitária” que
foi imputada, quase que forçosamente, àquele local, no sentido de
que ele foi, paulatinamente, colocado em esquecimento para que,
relegado, pudesse cumprir missões menos “nobres” às vistas da so-
ciedade e do Estado, a exemplo de reunir, em toda a sua cercania, o
consumo de drogas e serviços sexuais, além de servir de refúgio aos
desabrigados, características tais que, desnecessário dizer, são, de
maneira geral, negligenciadas.

Assim sendo, a manutenção dos becos como ocupações clandesti-


nas, sujas, escuras e, enfim, repulsivas e desordenadas simboliza o
contraponto aos espaços da cidade que trilham o caminho do de-
senvolvimento e que, nessa condição, repelem o atraso econômico
e as mazelas sociais, convenientemente escondidos nos becos.

O BECO EM ANALOGIA À RUA:


USO E APROPRIAÇÕES DO ESPAÇO

Historicamente, parece haver uma tendência em negligenciar, em


uma esfera mais intelectual, objetos considerados marginais. Como
observou Sandra Jatahy Pesavento ao categorizar alguns espaços
da cidade como “lugares malditos”, o beco faz parte de uma zona
estigmatizada da urbe (PESAVENTO, 1999, p. 196). Através da lingua-
gem, Pesavento traduz os aspectos da sociabilidade presente no vo-

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cabulário próprio da cidade, com foco na “especificidade da lingua-
gem da estigmatização urbana, que visualiza uma ‘cidade maldita’
ou ‘condenada’ dentro de uma cidade concreta, tomada para aná-
lise” (PESAVENTO, 1999, p. 196). É com essa perspectiva que o beco
por nós estudado se relaciona: um lugar marginal que se contrapõe
à ordem e à moral, representando, assim, um obstáculo à ideia de
modernização almejada pelas grandes cidades.

Segundo a historiadora gaúcha, o beco caminha na contramão das


perspectivas de intervenções urbanas propostas na época do seu
surgimento, que desejavam, além de equipar, expulsar desses espa-
ços o que ela chama de “socialidades2 indesejadas”. No caso, a sua
aniquilação seria a solução mais eficaz, visto que esses espaços não
existiriam sem que neles se apresentassem algumas práticas margi-
nais. Símbolos do atraso, os “becos” seriam o alvo de um discurso
moralista, que visava a varrer os pobres do centro da cidade e que
passava a ser veiculado com mais intensidade após a República, na
última década do século XIX (PESAVENTO, 1999, p. 198).

Nesse período, o termo beco passa a representar, como uma espé-


cie de estigma, os lugares marginalizados das cidades. O espaço era
considerado sinistro, sujo, perigoso e feio. “É o mau lugar, por onde
circulam personagens perigosas praticantes de ações condenáveis”
(PESAVENTO, 2001, p. 115). No imaginário popular, o beco era o re-

2 Em algumas passagens do texto a autora se utiliza do termo “socialidades”, que, de acor-


do com a nossa livre interpretação, remete ao conceito de “sociabilidade”, amplamente
aplicado nas Ciências Sociais.

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duto dos excluídos, como prostitutas, bêbados, criminosos etc., ou
seja, nessa localidade podiam-se encontrar os tipos mais “repug-
nantes” da sociedade. O beco correspondia, “de forma exemplar, a
uma bela demonstração do que poderíamos chamar a maneira con-
flitiva de construir o espaço público” (PESAVENTO, 2001, p. 115).

Topograficamente falando, o beco, por definição, é considerado um


assentamento supostamente subnormal, deveras encontrado em
regiões periféricas e ocupações clandestinas, ou seja, é uma via fora
do padrão, construída de forma desordenada. Segundo Sandra Ja-
tahy Pesavento, o “beco” é

[...] na sua acepção usual, uma rua estreita e curta, ge-


ralmente fechada num extremo. “Beco” poderá ainda,
numa acepção brasileira, designar esquina e, numa ex-
pressão figurada – “beco sem saída” – referir-se a uma
situação dificílima, embaraçosa. Quer parecer que, no
caso em pauta, os “becos” seriam tanto as ruas estrei-
tas e curtas, de designação genérica, quanto evocariam
o significado da expressão figurada, como lugares difí-
ceis e causadores de problemas a quem neles se aven-
turasse. (PESAVENTO, 1999, p. 198)

Assim, nosso objeto é visto por muitos como um lugar escuro e peri-
goso, digno de ser evitado, uma espécie de anomalia, um apêndice
prestes a supurar. Ou seja, o beco, sob um prisma polarizado, repre-
sentaria a desordem perante os lugares “legitimados” que desejam,
hipoteticamente, ordenar-se. Essa representação foi e é calcificada
diariamente no imaginário popular. O ideal de cidade desinfetada
da sordidez e da degradação se alia à tão sonhada modernidade.

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É dessa maneira que Bruno Halley percebe as travessas (e não mais
“becos”) e seu processo de higienização que, por sua vez, fora inicia-
do a partir da exclusão da forma pejorativa como esses lugares eram
denominados, ratificando a tese de Pesavento, que aloja o beco em
uma zona estigmatizada da cidade. O autor acredita que ao (re)ba-
tizá-los com os nomes de alguns heróis pernambucanos, as concep-
ções discriminatórias aos becos eram “materializadas, numa cidade
que buscava se modernizar eliminando feições coloniais e tropicais
do seu traçado urbano. Logo, a palavra beco fora apregoada como
um nome do passado” (HALLEY, 2012, p. 07).

Esse processo de “redenominação” dos becos, transformando-os


em travessas, também passou por Aracaju, de forma similar ao pro-
cesso ocorrido em Recife. No entanto, aqui, observamos o apadri-
nhamento desses lugares em homenagem a pessoas que, acredita-
mos nós, exerciam alguma influência na sociedade da época.

O BECO DOS COCOS E SEU ENTORNO

Como já se fez destacar, a região central de Aracaju foi designada origina-


riamente a receber as residências das classes mais abastadas, além de
prédios estatais. De imediato, porém, viu-se cercada por um público dife-
rente do previsto, formado, mormente, por migrantes, pequenos comer-
ciários e trabalhadores braçais, que se fixaram de maneira desalinhada.

A densa população ali concentrada, composta, sobretudo, de ho-


mens, logo fez surgir prostíbulos, estabelecimentos voltados à ex-
ploração de jogos de azar e outros pontos boêmios, que se assen-

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taram, preferencialmente, em espaços mais ocultos aos olhos da
sociedade conservadora. Dentre tais locais, veio a se sobressair o
Beco dos Cocos, o qual, muito bem situado no centro de Aracaju,
tornou-se, àquele momento, um dos principais destinos de diversão
e entretenimento da jovem capital.

O Beco é formado pela proximidade de dois quarteirões que fazem


fronteira com o prédio da Alfândega, antiga Mesa de Rendas Oficiais,
cujo valor simbólico é representado pelo fato de ter sido o primei-
ro prédio oficial construído em Aracaju, quando da transferência da
capital sergipana3. Um desses quarteirões foi ocupado ao longo do
tempo por diversas instituições oficiais, como a Secretaria de Esta-
do da Saúde, antiga cadeia pública. O outro quarteirão é estrutura-
do por uma extensa construção padronizada em torno de dois pisos,
com fachadas elegantes a ponto de ter sido comparada pelos pró-
prios moradores da região com o Vaticano. Assim, o Beco parte da
praça General Valadão, onde foi construído o prédio da Alfândega,
e estende-se até a rua Santa Rosa, o que revela a sua centralidade,
pelo menos em termos topográficos.

Sebastião Pirro foi o arquiteto responsável pelo projeto de fundação


da nova capital, que resultou no que depois seria denominado de
quadrilátero de Pirro. O projeto proposto para a edificação da nova
capital estabelecia medidas da largura das ruas e da distância entre
as casas e o meio fio. O que tal projeto também deixa antever é o

3 Antes, a capital sergipana era a cidade de São Cristóvão, localizada, atualmente, no que
se convencionou chamar de grande Aracaju.

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fato de que Pirro, a todo momento, buscou construir uma cidade
“moralizada”, no sentido da manutenção de uma ordem estética e
higiênica. No espaço urbanístico proposto pelo engenheiro não ca-
biam práticas “degradantes” como a prostituição.

Em contrapartida, os atores que usufruíam dessa região central


necessitavam de um local para a prática e o consumo do sexo, que
deveriam ser velados e escondidos. Mas a dificuldade de acesso
às “zonas de entretenimento adulto”, a exemplo da imposta pelo
Morro do Bonfim4 e suas dunas, prejudicava a “diversão” desses
“homens de bem” e “trabalhadores” que desejavam saciar os seus
impulsos sexuais. Talvez por isso, a proximidade do Beco de locais
que abrigavam diversos tipos de trabalhadores – como os carre-
gadores de coco, que lá desembarcavam carregamentos do fruto,
marinheiros, estivadores, além de personalidades da sociedade
“legítima”, como os políticos locais, dentre outros –, possibilitou a
instalação de cafés, boates e cabarés especializados na oferta do
sexo na região central de Aracaju.

Entre os anos de 1855 e 1860, Aracaju triplica o seu contingente po-


pulacional. Essa marca é alcançada graças à forte migração de tra-
balhadores oriundos da zona rural do estado. Trata-se de agricul-

4 O Morro do Bonfim era uma região composta por uma formação de dunas que circundava a
área mais habitada do centro, separando-a da parte mais a oeste da região, onde se verifica-
vam práticas escusas e renegadas, conforme registros do poeta sergipano Mario Cabral (2002).
Sua derrubada se deu na década de 1950 e representou um avanço considerável para o pla-
no urbanístico da cidade, já que no próprio espaço que correspondia ao Morro do Bonfim, foi
construída a primeira estação rodoviária da cidade, além de suas areias terem possibilitado o
aterramento de outras áreas de Aracaju, permitindo a criação de novas ruas e avenidas.

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tores que aqui se instalavam para ajudar a construir a nova capital,
mas esse grupo de operários não usufruía dos espaços projetados
da cidade, estabelecendo-se nas regiões adjacentes, formando uma
nova área precária e desestruturada (SANTOS, 2010, p. 96).

Aracaju delineava seu processo urbanístico em moldes segregacio-


nistas, como conclui Antônio Carlos Campos (2005) ao analisar a tese
do geógrafo sergipano Fernando Porto (1991) de que, mesmo tendo
sido construída à luz de ideais que propunham a liberdade, o mode-
lo adotado era excludente. Ou seja, os migrantes que se instalavam
na região “somente poderiam construir suas casas de palha no alto
das dunas e fora da área denominada como ‘Quadrado de Pirro’, res-
peitando as normas contidas no Código de Postura de 1856, uma
espécie de plano diretor da época” (SANTOS, 2010, p. 207).

Tendo em vista que Aracaju passa a se destacar (dentro do estado de


Sergipe) economicamente nos anos de 1900, são os primeiros trinta
anos do século XX que se enquadram como marco no desenvolvi-
mento da capital, que, por sua vez, recebe uma melhora nos seus
serviços públicos, na sua infraestrutura e em outros aspectos:

[...] na primeira metade do séc. XX, o crescimento eco-


nômico do Estado influenciou diretamente na vida da
cidade, quando houve o primeiro grande aumento da
população e dos investimentos das classes dominantes
na capital. Nessa época, o Estado iniciou a implantação
dos equipamentos urbanos importantes, como água
encanada e bondes a tração animal (1908), energia elé-
trica (1913), serviços de esgoto (1914), rede de telefonia
(1919) e bondes elétricos (1926). (CAMPOS, 2005, p. 208)

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O implemento de novas tecnologias, na década de 1930, permitiu
que Aracaju avançasse de forma considerável no tocante ao de-
senvolvimento e à construção de uma rede de transportes, o que a
aproximou de algumas fronteiras interestaduais. É nesse momen-
to da história da capital sergipana que começamos a verificar in-
dícios substanciais da participação do Beco nesse processo, pois é
em meados de 1940 que o espaço começa a se caracterizar como
o maior reduto boêmio da capital, segundo os dados colhidos nas
obras de alguns memorialistas sergipanos.

O memorialista sergipano Murilo Melins, ao falar das Boates e dos


Cassinos aracajuanos nas décadas de 1940 e 1950, descreve o inte-
rior do Beco dos Cocos da seguinte maneira:

[...] no Beco dos Cocos, além do Cassino Bela Vista e o


Dancing Xangai, estava a Pensão de Marieta, a mais ele-
gante e seleta, frequentada por banqueiros, comercian-
tes, industriais e rapazes da elite, ali encontravam-se as
mais caras e bonitas damas da noite. Mulheres da vida,
mas que devido à descrição [sic] dos seus trajes e da
maquiagem, frequentavam normalmente o comércio
das Ruas João Pessoa e Laranjeiras, iam à matinês do
Rio Branco, Rex e Vitória, confundindo-se com as ma-
dames e senhoritas. Lembramos algumas, que por lá
passaram. Linda, a mais bonita de todas, Princesinha,
Verdinha, Fuenga, Tufi bela morena, bem educada e an-
tiga professora, Helena Jabá, Arlete, Maura e a famosa
Gilda, que possuía o maior número de vestidos, sapa-
tos e joias. Esse apelido foi dado, devido à aparência
física e porte, com a estrela do cinema americano Rita
Hayworth, que desempenhou em um filme a persona-
gem Gilda, título do filme. (MELINS, 2007, p. 365)

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Como se depreende dessa citação, o Beco dos Cocos havia se torna-
do uma das principais zonas de meretrício da cidade entre os anos
1940 e 1950, concentrando uma quantidade significativa de “caba-
rés”. Alguns muito sofisticados, outros com uma decoração particu-
lar e curiosa, como o Xangai, ornamentado com temas orientais.

Quanto aos atores envolvidos em tal ambiente, muitos dos que de-
veriam restringir sua circulação ao reduto escuso do Beco, a exem-
plo das “mulheres da vida”, travestiam-se de “moralidade”, com
roupas e maquiagem inspiradas nos trajes usados pelas “pessoas
de bem”, para conviver, mesmo que apenas nas sessões de cine-
ma, igualitariamente, a ponto de não ser possível diferenciar as
prostitutas das madames.

Quanto à clientela, o público frequentador daquele reduto não


se limitava apenas aos trabalhadores braçais e estivadores que
circulavam pelos arredores do Beco dos Cocos. Os cabarés loca-
lizados no Beco também recebiam comerciantes, banqueiros e
membros da elite sergipana.

Nesse período, meados dos anos 1940, o Beco dos Cocos passa a
reunir artistas, intelectuais e pessoas dos mais variados segmentos
da sociedade em busca de divertimento. Lá foi firmado um comple-
xo integrado de boates e prostíbulos. Os mais conhecidos da cidade,
além dos que já foram aqui mencionados, ficavam no próprio Beco
ou ao seu redor – o Miramar, o Night and Day, o Luz Vermelha e o
Fresca. Entre as motivações para frequentar as boates e os cafés do

23/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


local, além do interesse sexual, estava também o encontro com ami-
gos, evento muito apreciado e que atraiu para esses ambientes a eli-
te intelectual da cidade, o que corrobora a vocação boêmia do Beco.

Merece anotação especial, entre esses ambientes, o já mencionado


“Vaticano”. Trata-se de uma construção descomunal para os padrões
arquitetônicos da cidade, pois o edifício ocupava todo um quarteirão,
obedecendo sempre ao mesmo estilo na fachada. A intenção dos seus
proprietários era usar o prédio como ponto comercial e quiçá para resi-
dências. Porém, a sua ocupação atendeu a outros princípios. Tornou-se
espaço para o funcionamento de um sortido comércio e também serviu
de moradia para várias pessoas. Foi sob esse aspecto que ele perdeu a
sua característica inicial, conforme se depreende da citação abaixo:

[...] o Vaticano, “labirinto intricado”, concebido para


ser o maior prédio de Sergipe, obra invejável, acabou
tendo a sua imensidão tomada por operários, prosti-
tutas, marinheiros, “índios” e outros. Jogos, prostitui-
ção, bebedeiras, confusões. Tudo isto instalado numa
região próxima da sede do Governo, zona central da
cidade. (MAYNARD, 2009, p. 141)

Devido a suas dimensões e seu estilo arquitetônico, recebeu o nome


do Estado Papal (MELINS, 2007, p. 363). Lá estavam abrigados desde
comerciantes até prostitutas que ganhavam a vida nas adjacências
do prédio. Mário Cabral descreve com riqueza a arquitetura do pré-
dio e os tipos que lá habitavam:

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[...] o Vaticano (...) é um monstruoso prédio (...). O Va-
ticano de outrora sem as modificações introduzidas
posteriormente. Você penetraria um largo pórtico, pór-
tico de museu ou de igreja. E subiria, logo depois, uma
escadaria imponente. Ao chegar ao primeiro pavimen-
to você estaria perdida, desorientada, em um terrível
meandro de salas, quartos e corredores, sem saber
recuar ou prosseguir. Você atravessaria dezenas de sa-
las, dezenas de quartos, dezenas de corredores, você
subiria e desceria dezenas de pequenas escadas, mas,
ao fim de ingente esforço, você necessitaria do auxílio
de um morador no sentido de acertar com a porta da
saída. Eis o Vaticano, minha amiga. Uma multidão de
seres reside ali, naquele labirinto intrincado. Operários,
canoeiros, soldados, prostitutas e marinheiros. Em bai-
xo, no andar térreo, ficam os bilhares, as casas de jogo,
os bares frequentados pela gente do cais, pelos estiva-
dores e pelos maloqueiros. A cachaça corre com fartura
e rara noite não sucede um conflito, uma luta corporal,
luta de “peixeiras” afiadas e reluzentes. Mas, embora,
no centro da cidade, a ronda policial evita intervir nas
questões internas do Vaticano. Hoje o Vaticano está
modificado. O labirinto foi desfeito. Mas, assim mesmo,
é interessante percorrer as dependências. Você verá o
Vaticano de Aracaju. Lá não há luxo e esplendor, mas
sujeira e miséria. Os ratos, enormes, nojentos e agres-
sivos, também são donos do velho casarão. Assim é o
Vaticano da minha terra. (CABRAL, 2002, p. 132)

O Vaticano de Aracaju funcionou durante um período como uma es-


pécie de antítese à ordem moral que vigorava na sociedade araca-
juana. Batizar como Vaticano um prédio que abrigava famílias po-
bres, operários das fábricas de tecido próximas ao centro da cidade,
mas que também recebia prostitutas e contraventores, é algo, no

25/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


mínimo, curioso. Não acreditamos que o idealizador dessa obra, ao
elaborar o projeto do edifício, tenha tido a intenção de associá-lo a
uma edificação religiosa. Se houve alguma inspiração, acreditamos
que ela tenha ocorrido de forma inconsciente, mas, se a edificação
foi assim denominada, pode ter sido por pura chacota e ironia por
parte dos moradores e transeuntes da região.

Segundo o historiador e jornalista Luiz Antônio Barreto, o centro da


cidade “concentrava os navios e todos os tipos de embarcações, os
trens, os caminhões que abasteciam o Mercado, as marinetes, sendo
por isso mesmo área preferencial dos boêmios, notívagos” (BARRE-
TO, 2005, on-line). Devido a isso, essa região se consagrou por rece-
ber “os cabarés e zonas de meretrício, que ganharam fama ao longo
da história da cidade, marcando território para a boemia” (BARRE-
TO, 2005, on-line).

Além do entretenimento adulto, a região investigada também se orga-


niza em torno de outras atividades econômicas, dentre elas, prostíbu-
los e cassinos. Lá era possível encontrar também algumas “funilarias,
vendedores de cordas, fumo de rolo, querosene, fifós e os concorridos
‘bumbas’ que vendiam os vinhos de jenipapo, murici e jurubeba do
‘burril’ e ‘as cachaças de Zé Manequim’” (MELINS, 2007, p. 352).

Pouco a pouco, acompanhando as transformações da cidade, o


Beco dos Cocos, que antes fora um ponto de escoamento da produ-
ção de cocos do município e onde se localizavam muitos dos mais
afamados prostíbulos de Aracaju, inclusive pelo grau de sofisticação
e luxo, passou a funcionar como um ponto de comércio em franca

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decadência. Nesse particular, não se aponta um acontecimento es-
pecífico responsável pela decadência do Beco; sua trajetória, na ver-
dade, foi acompanhando as mudanças e contradições da cidade, a
ponto de, conforme relatam os comerciantes que ainda atuam na
área, esse local ter sido excluído das ações públicas, deixando de ser
uma preocupação das autoridades locais.

Mesmo com todas as evidências históricas da sua importância, o


Beco dos Cocos não está incluso no complexo que corresponde ao
Centro Histórico de Aracaju tombado pelo Patrimônio Histórico Es-
tadual e não participou de uma reforma considerável ocorrida no
seu entorno no final dos anos 1990. A área que foi restaurada por
meio de investimentos subsidiados pelo Banco do Nordeste (BNB)
através do Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste I
(PRODETUR/NE) só atingiu o Mercado Municipal, conforme a seguin-
te distribuição: restauração do Mercado Antonio Franco (5.500mm²)
e Mercado Thalles Ferraz (3.600 m²). Reurbanização e paisagismo
dos largos Misael Mendonça e Manoel M. Cardoso (2.400 m² cada) no
valor de U$ 2.174.754,76; e a área do Centro Histórico de Sergipe: Re-
forma /ampliação calçadas e rede de micro-drenagem (40.000 m².).
Reforma balaustrada Rio Sergipe (1.150 m), iluminação pública, mo-
biliário urbano e arborização (33,34,35), no valor de U$ 2.196.640,46.

Tais reformas apresentaram e geraram melhorias para os Mercados,


o que atraiu uma clientela de maior poder aquisitivo para a região,
fato que fomentou a consolidação do centro de Aracaju como a maior
zona de comércio estadual. Entretanto, o Poder Público optou pela

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não inclusão do Beco – uma das principais rotas de acesso aos Mer-
cados – nesse processo de revitalização. As melhorias na estrutura,
na higiene, dentre outros, permitiram que os Mercados Centrais se
formalizassem também como ponto de atração turística da capital
sergipana. Por outro lado, os mesmos investimentos públicos e pri-
vados não aportaram no Beco, que passou a concentrar “problemas
sociais”, principalmente à noite: a presença de mendigos, prostitu-
tas, viciados em drogas etc.

Portanto, assim podemos resumir a história do Beco: de um sim-


ples local de passagem de cargas a um reduto boêmio, endereço
de famosos cabarés, conhecido como uma das maiores zonas de
prostituição e tráfico de entorpecentes da capital sergipana, a qua-
se um banheiro a céu aberto.

CONCLUSÃO

São diversas as formas que nos levam a conhecer e a compreender


uma cidade. Aqui, optamos pelo viés apresentado pelo beco, mais
especificamente o Beco dos Cocos. Através da leitura dessa peque-
na ruela à luz do processo histórico de Aracaju, buscamos desvendar
alguns traços da complexidade da cidade presente nesse espaço.
Para nós, é interessante pensar como em uma cidade que sempre
enfatizou os traços de sua modernidade, tanto nos discursos quanto
na exploração de imagens que remetem ao modelo de primeira ca-
pital projetada do país, poderia existir um beco que representava o
contrário, o obsoleto, o antiquado.

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É sobre a desordem do traçado proposto por Pirro que nossas hipóte-
ses foram construídas, como a necessidade de atenção sobre os espa-
ços marginalizados de Aracaju, que tem no Beco dos Cocos o seu epi-
centro. É intrigante, na rememoração da história do Beco, identificar a
virada sofrida pelo local, que passou a ser marginalizado, abandonan-
do a imagem romântica e idealizada – que coletamos na fala de alguns
memorialistas sergipanos – para se tornar um verdadeiro problema.

Concluímos que a existência de um beco repleto de prostíbulos não


coadunava com ideia de modernidade que Aracaju buscava desde
a sua inauguração. E a melhor alternativa para a edificação de uma
cidade futurista seria apagar as marcas da história que a relacionas-
sem a um passado de “libertinagem”. Tanto que, seguindo o exem-
plo de outras cidades, o Beco dos Cocos teve a sua nomenclatura
alterada para travessa em meados dos anos 1940, quando passou
a ser chamado de Travessa Silva Ribeiro, em homenagem a um rico
comerciante da época, patrocinador da Academia Sergipana de
Letras (ASL). Claro que esse esforço não foi suficiente para apagar
da memória dos habitantes da cidade o passado relevante do local
nem para a conivência da população com o novo nome, já que ele
continua conhecido e aludido pela antiga referência.

Não identificamos com exatidão o momento em que Beco entra em


declínio total. Acreditamos que esse processo esteve atrelado ao
sucateamento do Centro Histórico, o qual o segmentou em dois po-
los, o sul, com o comércio voltado para artefatos de luxo, e o norte,
onde o Beco está localizado, voltado para o comércio informal, com
a presença de vendedores ambulantes e prostitutas.

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Mesmo quando houve a revitalização do centro comercial de Araca-
ju, no final da década de 1990, o Beco dos Cocos não foi agraciado
com as reformas. O local continuou a servir como um sanitário a céu
aberto, para evoluir até hoje, ano de 2019, para uma das maiores zo-
nas de tráfico de entorpecentes da capital, segundo a Secretaria de
Segurança Pública do Estado de Sergipe.

A última intervenção ocorrida no Beco aconteceu no ano de 2009,


e parece ter se constituído apenas numa maquiagem, já que não
buscou cuidar dos problemas estruturais do complexo. Ou seja, não
houve nenhuma intervenção patrimonial que buscasse restaurar os
edifícios históricos presentes no Beco. As paredes foram grafitadas
de forma aleatória, sem nenhum esquema prévio.

Este trabalho buscou na sua essência não encontrar conclusões en-


gessadas sobre a história do Beco dos Cocos, concomitante à edi-
ficação da suposta primeira capital planejada do Brasil, mas, sim,
apontar alguns passos que nos levem a compreender os processos
de interação social, históricos etc., ocorridos em uma cidade a partir
de suas zonas estigmatizadas. O que aqui fizemos foi implementar
algumas discussões sobre as possíveis mudanças ocorridas no ima-
ginário urbano, incluindo todos os elementos que o compõem.

Ou seja, buscamos resgatar o sentido que a interação com o beco


tem para cada indivíduo que o consome de alguma forma – um
transeunte usando-o como rota de passagem, um comerciante,
adquirindo o seu sustento diário. Para nós, o estudo do beco é
capaz de elucidar alguns desses questionamentos, fazendo-nos

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compreender, além da personificação real das transformações e
dos usos do nosso objeto, o modo como essas mudanças influen-
ciam na organização da cidade.

REFERÊNCIAS
BARRETO, Luiz Antônio. O cotidiano do lazer nos bares, cinemas
e cabarés. Aracaju: Infonet, 2005. Disponível em: http://clientes.
infonet.com.br/serigysite/ler.asp?id=7&titulo=Aracaju150anos.
Acesso em: 25 abr. 2019.
CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Banese, 2002.
CAMPOS, Antônio Carlos. O Estado e o urbano: os programas de constru-
ção de conjuntos habitacionais em Aracaju. Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, vol. 1, n. 34, p. 199-222, 2005.
HALLEY, Bruno Maia. Arruando pelo beco: um nome do passado evo-
cado no afeto e no desamor da gente da cidade. Revista de Geogra-
fia – PPGEO, Juiz de Fora, v. 2, n. 1, 2012.
MAYNARD, Andreza e MAYNARD, Dilton. Dias de luta: traços do cotidia-
no em Aracaju (1939-1945). OPSIS, Catalão, v. 9, n. 12. jan-jun 2009.
MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3 ed. Aracaju: UNIT, 2007.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Lugares malditos: a cidade do “outro”
no Sul brasileiro (Porto Alegre, passagem do século XIX ao século
XX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37, Sept. 1999.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Era uma vez o beco: origens de um mau
lugar. Maria Stella Bresciani (org.) In: Palavras da Cidade. Porto Ale-
gre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001.

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PORTO, Fernando Figueiredo. A cidade do Aracaju, 1855-1865: en-
saio de evolução urbana. 2 ed. Aracaju: Governo de Sergipe/FUN-
DESC, 1991.
SANTOS, Walderfrankly Rolim de Almeida. Modernidade e moradia:
aspectos do pensamento sobre a habitação popular no processo de
modernização das cidades sergipanas (1890 -1955). Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, vol. 40, n. 1, 2010.

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O QUE ACONTECE EMBAIXO DA PONTE?
JUVENTUDES E OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS
Renata de Mello Cerqueira Pereira1

INTRODUÇÃO

O crescimento da cidade de Aracaju proporciona questionamentos


acerca da ocupação dos espaços urbanos. No histórico da cidade, e
no caso desta pesquisa2, é no bairro Industrial que surge o ponto de
partida para o estudo do espaço cultural criado após a construção da
ponte que liga a capital Aracaju ao município Barra dos Coqueiros.
Mediante uma etnografia feita através de observação participante,
entrevistas e questionários, foram colhidas informações relevantes
a respeito do grupo “Sintonia Periférica”, um dos grupos que, em
manifestação artística e política, ocupa o espaço embaixo da ponte
com atividades que envolvem o movimento hip-hop.

Tal pesquisa teve como principal objetivo observar e analisar a


forma como os jovens dessa localidade vêm ocupando e transfor-
mando o espaço, e as relações entre as intervenções artísticas e a

1 Antropóloga. Doutoranda em Artes pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

2 Realizada entre os anos de 2014 e 2016 durante o mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Federal de Sergipe.

33/208
reurbanização e o crescimento da cidade. Perceber a dimensão das
relações e seus modos de ação consequentes da reestruturação ur-
bana demonstra as várias maneiras possíveis de novas formas de
organização social e estrutural da cidade. Assim, pretendemos con-
tribuir com a construção de conhecimentos não somente para área
acadêmica, mas também para a administração pública e para a co-
munidade em geral, pois ações como essas são respostas diárias à
maneira como a cidade vem sendo ordenada e às suas consequên-
cias na vida cotidiana de seus moradores.

PERCORRENDO A CIDADE

Os citadinos desenvolvem capacidades criativas para se integrar às


realidades em que vivem; acham brechas na organização social e
transformam problemáticas urbanas em atitudes revolucionárias.
Transitam, elaboram estratégias, criam e recriam em cima das ne-
cessidades de sobrevivência e das vontades de viver da melhor for-
ma possível dentro da cidade.

Aracaju, capital do estado de Sergipe, é uma cidade relativamente


nova, que cresce rapidamente. Em seus últimos dez anos, passou
por modificações espaciais significativas: novas construções, refor-
mulações no trânsito, revitalizações, reurbanizações, reformas in-
tensas em prol da modernização e da inovação da malha urbana.

Em minhas andanças pela cidade, sobretudo nas idas ao centro, per-


cebi a quantidade de casas antigas e abandonadas e o número redu-

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zido de residentes onde já foi um dos lugares mais bem localizados
para moradia. Percebi os movimentos variados do dia e da noite,
as sutilezas dos usos, a representatividade dos lugares e pude, tam-
bém, ressignificar minhas impressões em relação à cidade.

A mudança do olhar sobre os espaços e sobre as relações dos habi-


tantes com eles me fez rememorar experiências vividas em lugares
diferentes da cidade, os diferentes bairros em cada fase de minha
vida. Os caminhos percorridos entre mudanças e transformações, re-
conhecendo e reinventando não só os lugares onde morei, mas ou-
tros por onde andei, despertaram-me sobre como as transformações
da cidade criam possibilidades de relação com os espaços, geram
significados, sentimentos e mudanças em nosso comportamento.

Os questionamentos acerca das consequências das mudanças no es-


paço urbano se deram através das experiências que desenvolvi como
artista. A vontade de usar os espaços urbanos como palco me impul-
sionou a perceber os diferentes usos possíveis para a cidade. Através
da arte, pude encontrar pontos onde aconteciam movimentações ar-
tísticas que utilizavam o espaço público, e percebi em outras pessoas
e em outras partes da cidade a mesma vontade que pulsava em mim.

Foi assim que o espaço embaixo da ponte Aracaju-Barra, situado no


bairro Industrial, zona norte de Aracaju, apareceu nessas minhas ca-
minhadas. A estética do lugar, a imponência da ponte e sua locali-
zação geraram indagações sobre a relação entre os moradores da
região e esse espaço que se abriu após sua construção. Foi lá que
conheci o evento chamado Sintonia Periférica, que utilizei como

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objeto de estudo para tecer considerações sobre relações de res-
significações dos espaços. O evento acontece embaixo da ponte e
tem como proposta a conscientização política das juventudes das
periferias de Aracaju. Busca, através da arte, levar conhecimento e,
também, discutir temáticas que envolvem as realidades dos jovens
em suas comunidades, por meio de palestras, shows de rap, reggae,
exposição de documentários, discotecagem, poesia, dança, grafite e
variadas atividades inseridas na cultura hip-hop, que abrem espaço
para exposições das produções artísticas dos participantes.

O espaço e a manifestação cultural demonstraram uma íntima rela-


ção com o modo de arrumação da cidade. As revitalizações e a reur-
banização no bairro apresentaram influências diretas na maneira
como a comunidade se relaciona com os espaços transformados.
Isso demonstra a necessidade de entender, através desses proces-
sos, a relação do crescimento da cidade com as manifestações so-
ciais que ocupam os espaços e seus usos cotidianos.

No livro Roteiro de Aracaju, Mário Cabral lança seu olhar para as


pontes da cidade. O autor fala de outras pontes, mas com o mesmo
olhar sensível às manifestações artísticas embaixo delas:
Quero falar [...] das pontes pobres e tôscas, mas que tem
vida própria. Se for noite de lua você ouvirá, de cima do cáis,
na Avenida Rio Branco, uma canção plena de nostalgia, uma
canção que falará de amor e de morte. Você pensará, tal-
vez, que aquela música venha do fundo da terra ou do fun-
do do mar. Na verdade a música virá dos maloqueiros. Virá
de debaixo das pontes da Cidade de Aracaju, dôce música
dos infelizes, dos que não têm nada na sociedade, mas que
parecem ser donos da região, donos das feiras, donos do
mar, donos da capital sergipana. (CABRAL, 1948, p. 119-120)

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Nesta pesquisa, tratamos especificamente da ponte Construtor João
Alves. Com 1,8 km de extensão e localizada no bairro Industrial, liga
a capital sergipana à cidade Barra dos Coqueiros. Os dois municípios
são separados pelo rio Sergipe; à margem direita, situa-se Aracaju e,
à esquerda, o município Barra dos Coqueiros. Com a dificuldade de
deslocamento apresentada pela presença do rio entre as duas cida-
des e, principalmente, pelo fato de a Barra dos Coqueiros possuir um
porto marítimo desde 1985, por muitos anos e por muitas administra-
ções municipais, cogitou-se a possibilidade de construção da ponte
para facilitar o transporte de mercadorias entre o porto e a capital e,
também, o acesso a outros municípios do litoral sul do estado.

O bairro Industrial, como é conhecido desde a chegada das fábricas


de tecido na cidade em 1884, possui uma população de 18.007 habi-
tantes, com uma área de 1.7097 km², a maior parte dela constituída
por indivíduos com idade entre 15 a 64 anos3. Situado ao norte da
cidade, divide suas limitações territoriais ao sul com o bairro Centro,
ao norte com o bairro Porto Dantas, a oeste com o bairro Santo An-
tônio, e a leste com o rio Sergipe. Esse bairro traz consigo uma vasta
e importante bagagem histórico-cultural, e é diante dessas caracte-
rísticas que a investigação se conduziu.

“Entre o sopé da colina e o rio Sergipe encontravam-se uma faixa de


manguezal e outra habitada por esparsas moradias”4 (SANTOS et al,

3 Disponível em: http://www.populacao.net.br/. Acesso em: 26 abr. 2019.

4 Relatório escrito por múltiplos autores para uma matéria de graduação em Geografia da
Universidade Federal de Sergipe. Disponível em http://cadernoestudante.blogspot.com.

37/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


2011), principalmente ocupadas por pescadores, o Maçaranduba,
como era conhecida a região que crescia após a mudança da capi-
tal, de São Cristóvão para Aracaju, em 1855, e onde hoje se localiza o
bairro Industrial. Essa extensão era zona de escoamento açucareiro,
já que era o lugar mais próximo do oceano, pelo rio Sergipe. Um
ano antes da mudança definitiva da capital para a praia do Aracaju,
o Presidente da província Inácio Barbosa transferiu a sede dos Cor-
reios e instalou uma subdelegacia na região, fazendo-se necessário
aterrar uma via – onde hoje é a Av. João Ribeiro – para facilitar o des-
locamento na nova capital. Ante a essa situação, outras habitações,
becos e ruelas foram surgindo na região (GRAÇA, 2005, p. 28-30).

Desde a confirmação de Aracaju como nova capital e a construção


do Centro da cidade, o bairro Industrial ficou fora do projeto urbano,
fora do “Quadrado de Pirro”, tal como ficou conhecido o trabalho
feito pelo engenheiro Sebastião Basílio Pirro, que idealizou o centro,
da cidade de Aracaju fazendo alusão a um tabuleiro de xadrez. O
bairro Industrial parecia já ter seus limites e fronteiras delimitados
física e socialmente desde a fundação da capital. No decorrer de seu
desenvolvimento, o Centro se fortaleceu como núcleo político admi-
nistrativo da cidade e o bairro mais uma vez mudou de nome, fican-
do conhecido, na década de cinquenta, como Chica Chaves – “uma
simpática mulata” muito querida pelos moradores da região. Não se
sabe ao certo sobre a existência dessa personagem, há somente um
registro bibliográfico no livro Diário de Chica Chaves, de Nobre La-
cerda, obra de ficção da literatura Sergipana (GRAÇA, 2005, p. 153).

br/2011/02/relatoriobairro-industrial.html . Acesso em: 01 mai. 2019.

38/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Transformações intensas e significativas, sobretudo para a econo-
mia da cidade, ocorreram com a chegada das fábricas de tecido a
essa região. A Sergipe Industrial e a Fábrica de Fiação e Tecelagem
Confiança foram indústrias que desempenharam papéis importan-
tes na configuração do bairro. Thales Ferraz, um dos administrado-
res da Sergipe Industrial, teve uma significativa distinção na história
local, pois foi idealizador e criador de uma área de cultura e lazer
para os operários das fábricas. O Parque Sergipe Industrial foi o pri-
meiro complexo cultural da cidade, nele, além de quadras de espor-
tes, havia cinema, teatro, palco para apresentações musicais, entre
outras atividades disponibilizadas para os operários (GRAÇA, 2005).

A fábrica de tecidos Confiança também interferiu no desenvolvi-


mento urbano do bairro, construindo casas populares para abri-
gar os operários. Assim surgiu a Vila Operária. Com a iniciativa
de Sabino Ribeiro, proprietário da fábrica, também foram criadas
uma policlínica, creches e escolas, além da bastante conhecida
agremiação de futebol, a Associação Desportiva Confiança, que
perdura até hoje como uma das mais importantes instituições es-
portivas do estado (GRAÇA, 2005).

Por muitos anos, os trabalhadores das fábricas constituíram a popu-


lação do então bairro Industrial de Aracaju; por mais de cinco déca-
das, essa foi a característica social, econômica e espacial do lugar.
Entre os anos de 1970 e 80, houve um grande aumento de constru-
ções de conjuntos habitacionais, o que gerou um crescimento da po-
pulação do bairro e modificações em suas dinâmicas sociais. Outro

39/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


fator de agitação foi a ida de grandes empresas para esse distrito,
como a Construtora Celi e a Viação Halley, e o aparecimento de em-
presas locais de médio porte, como a Casa do Panificador e a Distri-
buidora de bebidas Raimundo Juliano, que também incentivaram o
desenvolvimento econômico do bairro (GRAÇA, 2005, p. 61-68).

Na década de 80 surgem novos loteamentos nas proximidades de


“São Sebastião, Novo Paraíso, o conjunto habitacional João Pau-
lo II construído para abrigar os moradores da favela do Bonfim”
(GRAÇA, 2005, p. 55). Outras habitações também foram construí-
das nas redondezas, incentivadas pela COHAB-SE (Companhia de
Habitação Popular de Sergipe). Os espaços vazios aos poucos fo-
ram sendo ocupados, e o bairro se ampliando e modificando junto
com suas características sociais.

Em 2001, uma obra de revitalização da Orlinha estimulou outro setor


de desenvolvimento da localidade, o turismo. A revitalização teve
como objetivo torná-la mais um cartão postal da cidade, salientar
as memórias do bairro impulsionando uma conexão com o passado,
incentivar a apreciação das belezas natural e cultural do lugar, além
de melhorar as instalações, calçadas, bares e os acessos às ruas, tor-
nando a região mais atrativa. Na apresentação do livro da professora
Tereza Cristina da Graça, o ex-governador Marcelo Deda – na época
das obras, o então prefeito e idealizador do projeto – faz de maneira
emotiva um convite à população para conhecer a “Nova orlinha”:

40/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Venha conosco. Sente-se num desses banquinhos da
Nova Orlinha e abra seu livro. Você desfrutará de uma
agradável viagem ao passado, onde poderá conversar
com Chica Chaves no alpendre do Maçaranduba, tomar
um bonde e visitar as fábricas [...] compartilhando os
sofrimentos e as alegrias dos operários. Dê uma passa-
dinha na Feirinha do Tecido, experimente uma cocada,
mas cuidado com o anel de ouro que o “turco” lhe ofe-
recer! Pegue uma tocha e acompanhe o 1°de Maio de
1911 ou suba no carro alegórico do Bloco Papai saco-
de. [...] Converse com um pescador e acerte sua canoa
para acompanhar a Festa de Bom Jesus dos Navegan-
tes. Pegue na mão de Dona Finha e assista a uma par-
tida de futebol no campo do Confiança. [...] São tantas
pessoas e lugares para visitar... Pare um pouco, e res-
pire esse ar gostoso e contemple orgulhoso esse novo
lugar, um velho e amado lugar que ficou novo e mais
bonito para todos! (GRAÇA, 2005, p. 11)

As “modernizações” desencadearam alterações de hábitos; os bares


à beira-rio ganharam estruturas maiores e com mais espaço; foram
construídos quiosques, quadras, um centro de artesanato. Uma re-
novação aparente e funcional, que transformou o cotidiano de quem
morava e andava por ali e de toda a cidade.

O bairro continuou a passar por constantes modificações estrutu-


rais, como uma nova revitalização, a “Segunda etapa da orlinha”,
que iniciou em 20155 e foi entregue à população em 20166. Também

5 Dado retirado do site do Governo de Sergipe. Disponível em: http://www.agencia.se.gov.


br/noticias/governo/especial-aracaju-zona-norte-da-capital-tera-nova-paisagem. Acesso
em: 01 mai. 2019.

6 Dado retirado do site da Secretaria de Infraestrutura e Urbanização de Sergipe. Disponível


em: http://www.seinfra.se.gov.br/index.php?pag=8&id=2&cod=372. Acesso em: 01 mai. 2019.

41/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


em 2015, o prédio da antiga fábrica Sergipe Industrial foi demolido
para dar lugar a um shopping. Um fato curioso foi que a população
em geral não se chocou com a demolição completa da fábrica, pou-
cos enxergavam a importância da construção antiga como patrimô-
nio histórico e cultural. Entretanto, a possibilidade de demolição da
capela da Paróquia São Pedro Pescador, que existia dentro das ins-
talações da fábrica, gerou mobilização de muitos moradores, que
prontamente fizeram um abaixo assinado para que se mantivesse a
pequena igreja dentro do shopping. As obras do novo ponto comer-
cial no bairro foram iniciadas no mesmo ano e a capela foi incorpo-
rada à planta por manter o seu valor simbólico-religioso e atender
as reivindicações da população do bairro7. Através dessas modifica-
ções, pude ver como o bairro e, consequentemente, a cidade vem
interagindo com os sujeitos que nela vivem, como os indivíduos a
enxergam, o que esperam e o que devolvem para ela.

EMBAIXO DA PONTE

Andando pela orlinha ou seguindo pela avenida paralela, é possível


chegar à parte debaixo da ponte. O espaço hoje é limitado por duas
ruas em suas laterais, ambas com o nome Sabino Ribeiro. Da rua nor-
te, bifurcam-se três ruas sem saída, e perpendiculares a elas, do lado
sul, existe um grande muro da instalação da indústria têxtil Santa
Mônica, repleta de grafite em toda sua extensão. A leste, passa a ave-

7 Informação retirada da Revista Rever. Disponível em: https://reveronline.com/2015/01/26/


bairro-industrial-de-aracaju-e-o-conflito-entre-a-historia-e-o-desenvolvimento/.
Acesso em: 01 mai. 2019.

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nida da orlinha, Av. General Calazans, que recentemente foi ampliada,
e a oeste, a Av. João Rodrigues. As vias se dispõem de tal maneira que
se forma um grande canteiro retangular no meio, exatamente embai-
xo da rampa de saída e chegada da ponte na parte de Aracaju. Nesse
lugar foram construídos uma quadra, um espaço com mesas de jogos
de tabuleiro, um espaço para apresentações artísticas com uma ar-
quibancada e um palco, uma pista de skate e um ringue de boxe.

Essa estrutura fez parte do projeto do governo do estado inaugura-


do em 2011, o “Complexo Esportivo Dona Finha”, que fica no lado
norte do canteiro. Na época da pesquisa, o complexo tinha como
coordenador o ex-pugilista Valter Duarte, do projeto social Punhos
de Ouro8. Em todas as idas a campo, só presenciei o funcionamento
do centro em parceria com o projeto Academia da Cidade, da pre-
feitura de Aracaju, cujo foco é organizar atividades físicas supervi-
sionadas para a terceira idade e que tem o bairro Industrial como
polo da região norte da cidade. O centro também possui controle da
iluminação elétrica embaixo da ponte, que nem sempre fica ligada
por completo, apenas quando solicitado formalmente por meio de
ofício para eventos programados no local.

No entorno desse canteiro, no lado oposto ao muro com as artes


urbanas, há algumas casas (principalmente nas três ruas perpendi-
culares), o centro de esportes e um pequeno prédio chamado Re-

8 Dado retirado do Site da Punhos de Ouro. Disponível em: http://punhosdeouro.blogspot.


com.br/. Acesso em: 01 mai. 2019.

43/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


sidencial Jardim Confiança, que foi construído para hospedar os
engenheiros na época da construção da ponte, segundo os atuais
moradores. Há controvérsias sobre a forma de ocupação atual, mas
algumas famílias se empilham nas pequenas quitinetes, pratica-
mente embaixo da ponte. Os moradores desse condomínio são de
grande importância para as atividades do evento Sintonia Periférica,
pois são eles que forneciam energia para ligação da aparelhagem de
som da maioria dos eventos que acompanhei.

O lugar tem características peculiares sob as estruturas grandiosas


da ponte. Nele, aparecem pinturas e “pixações”9 indecifráveis – uma
linguagem que sobressai das superfícies dos muros e parece tomar
vida ali embaixo. O que para alguns pode parecer uma poluição
visual, para outros, é uma maneira de se comunicar. “Acredita-se,
porém, que o pichador não tem como objetivo poluir visualmente
a cidade quando marca os muros, e, sim, afirmar sua presença em
uma disputa privada por visibilidade de uma tribo urbana” (SPINEL-
LI, 2007, on-line). As tintas “coloridas das paredes podem desvendar
informações sobre a memória da cidade e a vida social que passou

9 Preferi usar a grafia “pixação” por possuir uma maior representatividade no movimento
de arte urbana brasileiro, que vai além do significado básico da palavra escrita corretamen-
te e encontrado nos dicionários, e possui características diferentes do Graffiti. Segundo o
dicionário Michaelis, Pichação: s.f. ato ou efeito de untar com piche; pichamento. A maneira
informal de escrever pichação vem do movimento do “Pixo” na cidade de São Paulo, que
consiste em aplicar escritas nos muros. Para melhor entender o movimento do Pixo em São
Paulo e no Brasil, recomenda-se assistir ao documentário “PIXO”. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=skGyFowTzew. Acesso em: 01 mai. 2019.

44/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


por ali” (SPINELLI, 2007, on-line). Esse cenário se constrói e modifica
-se a cada dia, as cores e as formas são expressão da variedade dos
usos e de indivíduos que juntos dão sentido ao lugar.

O espaço parece ser um lugar que traz liberdade para seus frequen-
tadores. Há uma concessão informal relativa aos horários e aos usos
pelos diferentes grupos de usuários. Pela manhã, logo cedo, ocorre
a atividade da Academia da Cidade; no início da tarde, as crianças
tomam conta do ambiente conjuntamente com alguns skatistas; no
final da tarde, quando as crianças começam a ir para casa e mais
uma turma da Academia da Cidade vem fazer aula de ginástica, che-
gam os adolescentes para fazer uso da maconha e conversar. Essas
práticas habituais se contrapõem frente ao dia a dia das obrigações
com a escola ou com o trabalho e proporcionam variadas formas de
lazer e de utilização do lugar.

Dessa relação micro com o espaço embaixo da ponte, pude identi-


ficar uma relação maior ainda com a cidade, suas fronteiras e suas
construções cheias de significados e representações. Foi por meio
da observação das expressões estéticas associadas às situações co-
tidianas que vi aflorar a vida da cidade sob uma perspectiva subjeti-
va e sentimental daqueles que fazem uso do lugar.

Minhas visitas iniciais ao local me transformam diretamente como


indivíduo. A escolha desse objeto se deu, inicialmente, pelo distan-
ciamento daquela realidade, mas estar lá me mostrou quão inserida
eu me sentia, o quanto as expressões me estimulavam criativa e po-
liticamente como artista e pesquisadora.

45/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Nesse espaço comum, cotidianamente trilhado, vão
sendo construídas coletivamente as fronteiras simbó-
licas que separam, aproximam, nivelam hierarquizam
ou, em uma palavra, ordenam as categorias e os grupos
sociais nas suas mútuas relações. Por esse processo,
ruas, praças e monumentos transformam-se em supor-
tes físicos de significados compartilhadas. Penso que
lugares sociais assim construídos não estão simples-
mente justapostos uns aos outros como se fossem um
grande mosaico. A meu ver, sobrepõem-se e, entrecru-
zando-se de um modo complexo, formam zonas simbó-
licas de transição[...]. (ARANTES, 1994, p. 191)

Espaços de transição, zona liminares, onde os indivíduos e o espaço


interagem e criam conexões. Romper a linha simbólica “zona sul/
zona norte” com a qual eu convivi por anos me colocou em contato
com a minha própria cidade. Percebi que fui aos poucos estabele-
cendo novas relações, com outras pessoas e com o espaço.

A paisagem da ponte vista de longe do bairro Industrial chama a


atenção pela imponência, mas quando se chega perto dela surge
uma sensação de discordância com o resto do ambiente. O antago-
nismo dos pilares de sustentação da ponte entra em conflito visual
com a arquitetura das outras construções do entorno, como se em
algum momento tivessem aberto um buraco no bairro e a encaixa-
do, ficando nítida a discrepância entre um “antigo” e um “novo”, en-
tre o que estava ali e o que não está mais.

Em uma das visitas ao campo, circulei pela orlinha, fiz um lanche em


um dos restaurantes à beira do rio e percebi que havia muitas pessoas

46/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


na porta de um galpão com um letreiro grande escrito “Alma Viva”,
que – só em outro momento tive conhecimento – é uma empresa
de telemarketing. Muitos carros e motos, um fluxo grande de gente
saindo e entrando; eu não fazia ideia de que essa empresa era tão
movimentada e que se localizava lá no entorno da ponte. Durante
todo meu processo de trabalho, não percebi nenhuma interação das
pessoas que trabalhavam nessa empresa com o ambiente da ponte.

Noutro dia, sentada no bar chamado Iemanjá, que fica bem no fim
da orla e no início do canteiro central embaixo da ponte, pude ver
o que acontecia embaixo dela, em um horário diferente do que eu
costumava passar. Nos primeiros dias, percebi que poucas pessoas
circulavam no espaço à noite – lembrava uma praça pouco ilumina-
da e quase sem movimento, só a luz da parte leste da ponte estava
ligada para clarear a avenida que dá seguimento à orla. A fraca lumi-
nosidade parecia intimidar mais ainda a ida ao lugar.

Em outro momento, sentada no ringue de boxe com uns amigos, co-


nhecemos “Carequinha”, vestido somente com uma bermuda, des-
calço e aparentemente andando sem direção. Quando nos viu, logo
puxou uma brincadeira: ele cantava uma música e nós continuáva-
mos. Cantou algumas canções e contou sobre ser bastante “famoso”
na redondeza; disse-nos que se apresentava toda semana no bar O
Sapatão, um dos bares mais conhecidos do bairro e que estava fe-
chado há alguns anos. Por não ter mais onde cantar, ele cantava na
rua para as pessoas. Após algumas canções, saiu em direção à orla.
Não o encontrei novamente em minhas visitas a campo e nunca sou-

47/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


be se ele era de fato uma figura conhecida no bairro ou se aquele en-
contro casual o proporcionou a apresentação de suas experiências.

O que essas experiências em campo fizeram perceber é que em Ara-


caju as transformações são em prol da cidade como entidade maior,
colocada à frente das pessoas. É mais importante a estrutura físi-
ca com boa qualidade e exuberância do que funcionalidade para a
população. Tudo sem muita cautela com as dinâmicas sociais, com
a história ou com a questão ambiental. Acredito que tais circuns-
tâncias não sejam exclusividade da capital aracajuana e, sim, uma
característica constante diante do modelo de organização pública,
estrutural e do sistema político do qual fazemos parte.

Através das entrevistas, pude perceber que o grupo Família Milgrau,


organizador do evento Sintonia Periférica, já atuava com manifes-
tações desse caráter antes mesmo da explosão de atividades desse
tipo em outras partes da cidade. Acredito que o meu desconheci-
mento se dava principalmente pelas fronteiras socioeconômicas e
culturais demarcadas pela organização social. Percebi que certas
localidades, como o bairro pesquisado, já realizavam atividades de
lazer e festas em suas proximidades, em razão, principalmente, da
falta de políticas públicas que abarcassem a diversidade dos estilos
musicais e das dinâmica das festas, que são diferentes em outros
locais da cidade tidos como mais “nobres”, onde prevalece a cultura
de massa legitimada pela mídia.

Apesar de não ser considerada um grande centro urbano, Aracaju apre-


senta as seguintes características, descritas por Magnani (1998, p. 29-30):

48/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


as populações dos bairros da periferia dos grandes
centros urbanos são em sua maioria constituídas por
trabalhadores de baixa renda, de origem rural recente
ou remota, inseridos de diferentes maneiras no apa-
relho produtivo capitalista, sujeitos à ação dos media
– membros, enfim de uma sociedade complexa, nela
ocupando, não sem conflitos, os últimos escalões da
estratificação social.

A ocupação de espaços públicos como lugar para apresentações artís-


ticas tem sido uma saída, principalmente para alguns estilos culturais
alternativos que não acham espaços favoráveis para suas apresenta-
ções em locais privados. Essas ocupações são, também, uma posição
política em relação à maneira como a cidade vem reorganizando seus
espaços de sociabilização e cultura, especificamente as festas.

Durante minhas visitas a outros eventos, pude perceber que a prin-


cipal diferença entre eles – os eventos de ocupação de espaço pú-
blico na periferia e os eventos da classe média – é a escolha do lu-
gar na cidade. Ambos parecem ter total consciência política sobre
a ação de interagir com o espaço público; ao menos aqueles que
organizam têm essa proposta de manifestar seu posicionamen-
to com relação às mudanças da cidade e, consequentemente, as
mudanças das relações sociais. As escolhas feitas pelos grupos da
periferia que atuam através de manifestações como o Sintonia Pe-
riférica prezam por um ponto de encontro acessível para a maioria
das pessoas que participam, normalmente as praças do bairro. Já
os grupos de classe média escolhem lugares representativos his-
toricamente ou lugares turísticos, como a Orla da cidade, a praça
Fausto Cardoso, o Viaduto do DIA - Distrito Industrial de Aracaju.

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Em dados colhidos nas entrevistas, chamou atenção o fato de que
nenhum dos jovens que participou assiduamente das atividades
embaixo da ponte possuía ensino superior completo, mesmo ten-
do idade suficiente para a sua conclusão. Somente sete deles es-
tavam cursando o ensino superior e a maioria continua no ensino
fundamental, o que comprova a dificuldade no acesso a espaços
institucionais de escolarização. “O sistema escolar contribui para
reproduzir os privilégios dentro da sociedade, manipula aspirações
e modifica a qualidade social daqueles que detêm a titulação ge-
rando expectativas diante do futuro” (BOURDIEU, 1983, p. 112-121).
É visível a diferença no grau de escolaridade entre os participantes/
organizadores dos eventos na periferia e os dos eventos em locais
mais frequentados pela classe média da cidade, confirmando a tese
de Bourdieu sobre os privilégios sociais da educação.

CONCLUSÃO
O crescimento das cidades vem causando uma separação espacial
entre seus habitantes e mudando o caráter das relações interpessoais
e dos indivíduos com as instituições sociais, gerando alterações de
comportamento na sociedade contemporânea. As juventudes vêm
desenvolvendo maneiras de acompanhar essas mudanças, criando
táticas de subversão e de interferência no cenário urbano de acordo
com as situações do dia a dia. A carência em vários setores da vida
social começa a produzir inquietações, necessidades de trocas de per-
cepções e dissolução de alguns paradigmas. Uma nova maneira de
estar e agir no mundo germina através de associações de sentimentos
e de práxis equivalentes com o desejo de alterar a ordem cotidiana.

50/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Questionamentos relativos às problemáticas sociais aparecem
diante das circunstâncias em que a nossa sociedade se encontra, no
tocante à política, à educação, à mobilidade urbana, ao incentivo
à cultura e à arte etc. Em Aracaju, essas indagações também aconte-
cem mediante a busca pela ocupação e ressignificação dos espaços
públicos. A rua se torna cada vez mais um lugar de posicionamento
político e de possibilidades artístico-culturais para os jovens que al-
mejam mudança diante do padrão cultural hegemônico da cidade.

Atreladas a essa nova maneira de se relacionar com o meio urbano,


aparecem também novas possibilidades de espaços que podem ser
usados para a cultura, para o lazer e para a difusão artística na cidade.
O espaço embaixo da ponte é representativo por apontar variadas si-
tuações e reações referentes às dinâmicas sociais da cidade, do bairro
Industrial e do evento Sintonia Periférica. Pude visualizar diretamente
algumas consequências que a reurbanização da cidade acarreta para
a vivência social do local e como essa interação sujeitos-espaço cria
experiências que são adicionadas aos comportamentos. As ações dos
sujeitos nos espaços urbanos criam experiências que representam
sua relação com o mundo e com os outros. Os espaços urbanos pro-
jetam as relações sociais existentes nas comunidades, transformando
um simples lugar em uma interação de lugares no espaço comum, le-
gitimando o meio urbano como campo de pesquisa.

A princípio, pensei que as manifestações em espaços públicos eram


uma reação intensa, principalmente política, à maneira como Ara-
caju vem crescendo e, muitas vezes, dificultando a utilização da ci-
dade para alguns, normalmente aqueles que se encontram numa
camada social mais baixa e que moram nas regiões mais periféricas.

51/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Isso de fato aconteceu, mas em uma proporção menos intensa do
que imaginei quando iniciei a pesquisa. Os esclarecimentos políti-
cos frente às utilizações dos espaços públicos são mais percebidos
nos sujeitos que idealizam e organizam as manifestações. Isso não
exclui a percepção política dos sujeitos que apenas participam even-
tualmente dos eventos, mas aponta a diferença entre as intenções e
os modos de ações entre esses sujeitos.

A fragmentação da cidade decorrente do crescimento e atrelada à


divisão de classes por território dificulta, mas não impede que haja
uma interação entre as participações dos sujeitos nos eventos lo-
cais. Como afirma Hall (2003, p. 131),

o que importa são as rupturas significativas, nas quais


as velhas correntes de pensamentos são rompidas, e
os novos elementos se reagrupam aos velhos ao redor
de uma nova gama de premissas e temas. As mudanças
nas perspectivas refletem nos resultados do trabalho
intelectual e na maneira como se desenvolvem as trans-
formações históricas. Essa relação entre pensamento e
realidade histórica reflete nas categorias sociais geran-
do novas formas de conhecimento.

Novas experiências, trocas e interações desencadeiam diferentes


formas de conhecimentos produzidos cotidianamente, não só pe-
las juventudes, mas por todos os sujeitos que vivem nas cidades.
As inquietações estimulam a diversidade que enriquece a dinâmica
social, produzindo efeitos no sistema de organização. O movimen-
to pendular entre organização e desorganização, entre construção
e reconstrução, torna-se incentivo para que observemos o que de

52/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


fato é importante dentro desses processos urbanos que são as va-
riadas formas de interagir com situações que a dinâmica da cidade
incita. Lefebvre (2012) diz que nós citadinos precisamos de mais do
que saciar as necessidades básicas e sociais, temos necessidade da
criatividade, dos simbolismos, do imaginário.

A vida na cidade é movimento e, como diz o poeta sergipano Ma-


rio Jorge (1947), “é urgente o vexame”! Viver na cidade é viver em
constante vexame dentro do enxame urbano.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Antônio A. A guerra dos lugares: sobre fronteiras sim-


bólicas e liminaridades no espaço urbano. In: Revista do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, v. 1/23,
n.23, p. 190-203, 1994.
BOURDIEU, Pierre. Entrevista com Pierre Bourdieu. In: BOURDIEU,
Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
p. 112-121.
CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju: um guia sentimental da cidade.
Aracaju: Regina, 1948.
GRAÇA, Tereza C. C. De maçaranduba a industrial: história e memó-
ria de um lugar. Aracaju: Fundação Municipal de Cultura, Turismo e
esportes – FUNCAJU, 2005.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: UFMG, 2003.

53/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Lisboa: Livraria Letra livre, 2012.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço: Cultura popu-
lar e lazer na cidade. 2ª ed. São Paulo: Hucitec/UNESP, 1998.
SANTOS, Adeilton dos et al. Relatório da aula prática realizada no
bairro Industrial na cidade de Aracaju. Aracaju, 2011. Disponível em:
http://cadernoestudante.blogspot.com.br/2011/02/relatoriobairro-
-industrial.html. Acesso em: 13/07/2015.
SPINELLI, Luciano. Pichação e comunicação: um código sem re-
gra. 2007. Disponível em: http://www.graffiti.org/faq/spinelli/picha-
cao_e_comunicacao_um_codigo_sem_regra.html. Acesso em: 01
mai. 2019.

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TERRITÓRIOS E TRABALHO SEXUAL MASCULINO
NO CENTRO DE ARACAJU
José Welington de Jesus1
Ulisses Neves Rafael2

APRESENTAÇÃO

A pesquisa3 que resultou neste artigo teve como objetivo investigar as


interações sociais que ocorrem entre homens que fazem sexo com ho-
mens (garotos de programa) e seus clientes, em determinados espaços
da cidade de Aracaju, com ênfase nos territórios propícios às intera-
ções sexuais ocasionais e contratuais. Locais esses tidos pela literatura
como “regiões morais”4 ou mesmo como “territórios marginais”.

1 Bacharel em Ciências Sociais. Mestrando em Antropologia pelo Programa de Pós-gradu-


ação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe.

2 Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação


em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe. Doutor em Sociologia e Antropologia
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e-mail: ulisses38@hotmail.com.

3 Este trabalho é o desdobramento de pesquisa realizada por ocasião da Graduação em


Ciências Sociais na Universidade Federal de Sergipe (beneficiada com bolsa COPES/UFS
durantes os anos de 2013-2014).

4 A noção de “região moral” repousa numa concepção que divide o espaço urbano em cír-
culos concêntricos: uma faixa residencial, outra industrial e o centro – que serve ao mesmo
tempo como ponto de concentração administrativa e comercial e como lugar de reunião
das populações ambulantes que “soltam” ali seus impulsos reprimidos pela civilização
(PERLONGHER, 1987, p. 69).

55/208
Este trabalho pretende contribuir para o campo científico e social
através de estudos mais aprofundados sobre a categoria dos michês.
O interesse em pesquisar a prostituição masculina surgiu de inquie-
tações e observações cada vez mais explícitas em nosso cotidiano e
quase sempre relegadas a segundo plano pelas Ciências Sociais.

Para tanto, fazemos uso da perspectiva interacionista “individuo-so-


ciedade”, tal como aparece nos trabalhos de Erving Goffman (1982) e
Howard Becker (2008), que utilizam o conceito de estigma e desvio.
Essas categorias podem parecer, à primeira vista, uma maneira de
reificar a visão corrente da prostituição como um “problema social”.
No entanto, essas abordagens oferecem um contexto dos processos
de estigmatização, mostrando como os prostitutos e prostitutas se
movem entre diferentes papeis, nos quais sua atuação pouco difere
de outros grupos marginalizados.

Além do conceito de interações sociais na perspectiva da relação


“indivíduo – sociedade”, referendada pela Escola de Chicago, tra-
zemos autores e estudos que apontam para as particularidades e
possibilidades que o viver nos grandes centros urbanos nos ofere-
ce e que se representam para nós através de diversas dinâmicas de
interações. Mobilizamos, também, algumas categorias sociológicas,
como cidades; territórios; regiões morais e estigma.

Ao longo da pesquisa, foram realizadas diversas incursões nos ter-


ritórios da investigação etnográfica, tanto durante o período do
anoitecer como no período da madrugada, na tentativa de encon-

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trar formas de adentrar naqueles espaços, bem como no sentido de
encontrar algum informante que pudesse apresentar o campo.

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira parte, é apresen-


tado um breve percurso sobre a história do trabalho sexual mascu-
lino, desde seu surgimento até o seu funcionamento na sociedade
contemporânea. Na segunda parte, há uma cartografia dos espaços
de interações sexuais existentes na cidade de Aracaju, com enfoque
especial na região central da cidade. Na terceira parte se dá um trata-
mento especial à questão da dualidade existente entre as duas visões
do centro da cidade – “centro comercial” e “centro sexual” –, mostran-
do as dinâmicas que são impressas por esses atores. Por último, tem-
-se a síntese do resultado de todo o trabalho etnográfico, do momen-
to das primeiras análises até a compreensão das possíveis causas que
levam esses jovens ao viver e estar no trabalho sexual masculino.

O TRABALHO SEXUAL MASCULINO NA HISTÓRIA


A definição de trabalho sexual como “prostituição” se baseia em va-
lores culturais que diferem em várias sociedades e circunstâncias,
entretanto, geralmente se refere ao comércio sexual de mulheres
para satisfazer clientes masculinos. Também há, contudo, formas de
prostituição masculina entre os denominados “garotos de progra-
ma” ou “michês” – nosso objeto de pesquisa. Em ambos os casos, os
clientes podem ser masculinos ou femininos. Essa atividade tem um
caráter universal. Sua origem remonta à Antiguidade, segundo Ro-
berts (1998), com características distintas em cada lugar, oriundas
de fatores religiosos, sociais, econômicos, culturais e individuais.

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Tendo assumido, ao longo do tempo, as mais diversas simbologias
e definições, a prostituição chegou a fruir, inclusive, da condição de
sagrada. Nas sociedades pré-históricas, não havia distinção entre
cultura, religião e sexualidade. Tudo tinha origem no culto à deusa,
em especial à Afrodite. O sexo era considerado sagrado; inúmeros
rituais revelavam ser a atividade sexual uma forma de prestar reve-
rência à deusa e às sacerdotisas (ROBERTS, 1998).

Na perspectiva de Nestor Perlongher (1987, p. 253), a prostituição,


definida sob o ponto de vista da troca, é compreendida como “uma
estrutura de prestação de serviços sexuais”. Em relação à noção
usual de prostituição como concessão de favores sexuais visando a
recompensas materiais, poder-se-ia considerar a versão masculina
como uma forma recente de prostituição.

O trabalho sexual masculino começa a ser anunciado à sociedade no


início dos anos 1980 – de certa forma, por força da revolução sexual
da década de 60 – causando, ao mesmo tempo, perplexidade e curio-
sidade. A poderosa televisão, as artes, as ciências passaram a trazer
à tona a existência dessa prática durante tanto tempo negligenciada,
inclusive, como vimos, pelas Ciências Sociais. Ainda assim, essas prá-
ticas ocorriam em ambientes privados, como sanitários, conservando
uma posição marginal, estigmatizada e de caráter clandestino.

Perlongher (1987) afirma que a prostituição masculina é entendida


pela revelação do protagonismo masculino no comércio sexual, os
denominados “michês”, cujo termo carrega dois sentidos. O primei-

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ro se refere ao ato de se prostituir, “assim, fazer michê é a expressão
utilizada por quem se prostitui para se referir ao ato próprio da pros-
tituição” (PERLONGHER, 1987, p. 18-19). Já seu segundo sentido se
refere aos cultores da prostituição: “varões geralmente jovens que
se prostituem sem abdicar dos estereótipos gestuais e discursivos
da masculinidade em sua apresentação perante o cliente” (PERLON-
GHER, 1987, p. 18-19). Este último remete à ideia de “prostituição
viril”, termo utilizado por Perlongher (1987) para diferenciar essa
variante de prestação de serviços sexuais em troca de retribuição
econômica de outras formas vizinhas de prostituição homossexual,
tanto da exercida pela travesti, quanto da exercida pelo homosse-
xual efeminado ou pelo michê gay.

Cabe ressaltar, portanto, a diversidade de identidades e performan-


ces que constituem o cenário da prostituição masculina: há os que se
prostituem e que são hipermasculinos e consideram-se, via de regra, he-
terossexuais – os michês ou prostitutos viris; existem os homossexuais
assumidos, masculinos ou efeminados, conhecidos como bicha-boy;
tem os bissexuais; e, por fim, as travestis e transexuais.

Segundo Rigoletto (2001), o fator econômico é um dos determinan-


tes mais comuns para o ingresso no trabalho sexual, seguido pelo
abandono da família, associados à dificuldade de inserção no mer-
cado de trabalho. Geralmente existe a perspectiva por parte desses
garotos de que a permanência no trabalho sexual seja transitória,
alimentada pela esperança de conseguir outro tipo de trabalho, de
voltar a estudar, de encontrar um companheiro e casar. Assim, para a

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grande maioria dos profissionais do sexo, esse trabalho é ainda con-
siderado uma estratégia de curta duração, coincidindo com a tran-
sitoriedade das dificuldades encontradas na manutenção pessoal.
Entretanto, para aqueles que pertencem às camadas sociais mais
baixas, as perspectivas de mudança de atividade enfrentam obstá-
culos quase intransponíveis em virtude da baixa (ou nenhuma) es-
colaridade e da falta de qualquer qualificação profissional.

Esses dilemas e perspectivas demonstram a complexidade das redes


de sociabilidade nas interações sociais da prostituição masculina
nos grandes centros urbanos. Este trabalho surge, portanto, como
esforço em compreender quais os mecanismos orientam a inclusão
desses atores sociais nas pesquisas da Sócio-antropologia urbana,
bem como a maneira como dão significado a esses espaços.

CARTOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS ERÓTICOS


MASCULINOS DE ARACAJU

A atividade da prostituição masculina no espaço urbano de Aracaju,


tal como ocorre em praticamente todo lugar, é menos expressiva do
que a prostituição feminina. Todas as evidências apontam que so-
mente após os anos oitenta a prostituição masculina se estabeleceu
como atividade que marcou o espaço da cidade, através da cons-
tituição de territórios, com fronteiras simbolicamente demarcadas,
surgidas por meio da ocupação informal de espaços públicos e da
criação de locais privados específicos para esse fim.

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A partir de pesquisa de campo, foram identificados espaços propícios
a interações sociais sexuais entre homens, bem como espaços de en-
contros para práticas de sexos casuais sem necessariamente a nego-
ciação financeira (“pontos de pegação”). Em alguns locais, verifica-se
a prática de consumação sexual no próprio espaço público. Esses am-
bientes são predominantemente utilizados por garotos de programa5.

Em Aracaju, atualmente, os lugares conhecidos como “pontos de


pegação” estão localizados na região oeste da cidade, na praça Dom
José Tomaz, no bairro Siqueira Campos, mais precisamente em suas
imediações, nos equipamentos de esportes disponíveis no local, no
período da noite, a partir das 22h. Outros pontos se localizam às
margens da Praia da Coroa do Meio e nas areias da Praia de Atalaia
Velha, região sul da capital sergipana.

Pode-se dizer que a área da praça do bairro Siqueira Campos, conhe-


cida como praça Dom José Tomaz, tenha sido a área que mais sofreu
transformações ao longo dos tempos, segundo informações de alguns
frequentadores do local, haja vista ser um dos bairros com grande
concentração populacional e com um grande número de comércios.
Esse fato inibe certas práticas outrora bastante comuns no contexto
da composição dos agentes constituidores de significados diversos.

Percebemos nessa região, assim como em outras áreas de circula-


ção de garotos de programa, uma vigilância por parte dos órgãos
de segurança através de monitoramento eletrônico, bem como atra-

5 Ao longo de toda a pesquisa, não presenciei nem recebi informações que indicassem a
presença de mulheres nos lugares etnografados, exceto na praça Fausto Cardoso.

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vés de constantes rondas de viaturas policiais, que realizam batidas
inesperadas no local. Um dado que chama atenção é a circulação de
muitos jovens com idade inferior aos 18 anos.

A tática de aproximação para concretização da comercialização de


programas sexuais é sempre a mesma: a grande maioria dos garotos
de programa fica perambulando pelos equipamentos da praça, pra-
ticando exercícios ou algum tipo de insinuação sexual, como o uso
de camisas que deixam à mostra seus aparatos corporais e toda sua
masculinidade. Esses garotos permanecem circulando no espaço,
em um jogo incessante de exibição de toda essa virilidade na aposta
de um encontro casual com outros homens que transitam pelo am-
biente. Apesar da presença constante de viaturas da polícia, tudo se
passa com uma naturalidade ímpar.

Encontramos ainda outros dois territórios de prostituição mascu-


lina. O primeiro, na visão de alguns entrevistados, é considerado
como perigoso e decadente. Há relatos, inclusive, de agressões e
assaltos constantes. Trata-se da chamada Praia da Coroa do Meio,
em frente ao Shopping Riomar (popularmente conhecida como
Praia do Amendoim), às margens do rio Sergipe, no bairro Coroa
do Meio, zona sul da cidade.

Também nesse ponto as estratégias de aproximação para concre-


tização da comercialização de programas sexuais são as mesmas –
a grande maioria dos garotos de programa fica perambulando por
entre a vegetação encontrada no local. Diferente de como se passa
em outros pontos, aqui o horário de encontro para práticas sexuais

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tem seu início a partir das 9h da manhã até as 18h, diariamente. Os
clientes sempre chegam motorizados, com carros ou motos, e abor-
dam os garotos. Em sua grande maioria, são homens de meia idade,
solteiros, casados, em busca de aventuras com outros homens; é de
praxe que esses homens confiram os atributos corporais dos garo-
tos. A média de valor cobrado gira em torno de R$ 20,00 (vinte reais)
a R$ 50,00 (cinquenta reais), a depender do que fora combinado.

As incursões sexuais, em sua grande maioria, ocorrem majoritaria-


mente no próprio espaço da praia, dentro dos veículos, dentro dos
diversos arbustos existentes no local ou nas pedras de contenção
da praia. Existem relatos, inclusive, de práticas de sexo grupal nesse
local. Observamos também, segundo relatos de alguns informantes,
que os assaltos e agressões, comuns nessa área, são, muitas vezes,
praticados pelos próprios garotos de programa, mas não notificados
às autoridades policiais6.

O outro território é a praia de Atalaia Velha, mais precisamente a


região atrás do Kartódromo Nelson Piquet, e toda sua extensão, que
compreende o Kartódromo, a região dos lagos e a praça de eventos
até a região da Prainha, próximo ao Farol da praia. São praticados
intercursos sexuais também nos terrenos baldios atrás dos hotéis ali
localizados. Nesses locais, são praticados atos sexuais impessoais
entre homens e atos de “pegação”, com ou sem troca financeira.

6 Informações cedidas por alguns frequentadores do local. Não constam, entretanto, bole-
tins de ocorrência em relação a agressões ou a assaltos a homossexuais, segundo dados da
Secretaria de Estado da Segurança Pública de Sergipe.

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Uma prática específica desse segundo ponto é a realização de uma
fileira composta pelos garotos de programa, disponível para que, à
medida que os homossexuais cheguem, possam procurar aquele
gay com quem tenham mais afinidades. Observamos, dessa forma,
a introdução de novas práticas sexuais praticadas no local, mesmo
com toda a repressão feita pelo aparato institucional dos órgãos de
segurança do estado, através das constantes abordagens realizadas.
Nota-se que as abordagens não obtêm êxito, visto que, logo após,
esses personagens retornam às suas atividades.

Após essa breve localização e descrição dos territórios da prostitui-


ção masculina em Aracaju, passamos a uma análise das represen-
tações das atividades que os garotos de programa entrevistados
desempenham nesses lugares, mais precisamente no Centro de Ara-
caju, na praça Fausto Cardoso e na praça da Catedral, local de traba-
lho preferido pela maioria dos entrevistados.

CENTRO COMERCIAL E SEXUAL DA CAPITAL

Como vimos, somente a partir das últimas quatro décadas é que se


estabelece a inserção de outros atores no que diz respeito ao entre-
tenimento adulto em Aracaju, tal como destaca um jornal de 1998,
de circulação bastante considerável, com a seguinte manchete: “A
vez dos garotos de programa e do homossexualismo”7. Esses garo-
tos de programa representam, então, a grande novidade do Centro

7 Jornal Cinform, edição 812, de 02 a 08 de nov. de 1998, caderno Comportamento, p. 36-37.

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da cidade. Suas primeiras aparições enquanto sujeitos da prostitui-
ção se deram, portanto, em meados da década de 808, disseminan-
do-se com grande rapidez sob o aparato de condições liberais da
sexualidade masculina e feminina.

Ao lançarmos um olhar aprofundado sobre o centro comercial de


Aracaju, percebemos a introdução de novos personagens e elemen-
tos constituintes de uma dinâmica do espaço, pois todos esses per-
sonagens e elementos não passam de uma construção humana.
Percebemos com clareza como o homem é capaz de modificar suas
relações, dando a esses espaços novos significados e imprimindo
sobre eles um novo ritmo. Dessa forma, o Centro não é apenas um
lugar, ele é uma construção diária de elementos e personagens que
se articulam em um movimento que não tem fim.

O Centro do dia não é o mesmo Centro da noite, seus persona-


gens não são os mesmos, eles transitam em espaços contradi-
tórios, que colidem na legalidade e na ilegalidade. O uso desse
espaço pelo capital é tão cruel em ambos os momentos que se
torna difícil delimitar qual composição é a mais perversa, se a
do dia, afunilada pela exclusão, ou se a da noite, apropriada por
sujeitos discriminados pela sociedade.

O fenômeno do trabalho sexual masculino invade o centro da ci-


dade durante a noite, transformando o lugar do comércio, dos ne-
gócios, das instituições públicas, policiais, administrativas e judi-

8 Jornal Cinform, edição 812, de 02 a 08 de nov. de 1998, caderno Comportamento, p. 36-37.

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ciais. Estabelece outros códigos de significações, outras relações,
outras formas de poder, outros instrumentos de manutenção, bem
como outras territorialidades.

As ruas, assim como os espaços públicos em geral, são os locais pre-


diletos para a prática da prostituição, masculina ou feminina, pois
seu uso é gratuito e suas características de acesso livre e de movi-
mento potencializam o encontro com clientes e a realização de pro-
gramas. Embora as áreas de prostituição organizada se encontrem
espalhadas por diferentes espaços das grandes cidades, há uma
tendência à fixação no Centro e em sua circunvizinhança, onde é in-
tenso o fluxo de pessoas e a multidão favorece o anonimato.

Em Aracaju, a presença desses garotos de programa está mais con-


centrada na praça Fausto Cardoso, mais precisamente na travessa
Benjamim Constant, e nas imediações das ruas João Pessoa, La-
ranjeiras e São Cristóvão, próximas à antiga sede do Ministério do
Trabalho, até a avenida Rio Branco (conhecida como Rua da Fren-
te), alcançando o beco da travessa Deusdet Fontes e a praça Almi-
rante Tamandaré, popularmente conhecida como praça Olímpio
Campos ou praça da Catedral.

Em sua grande maioria, são garotos com idades entre 20 e 36 anos


que tomam as diversas esquinas do centro, buscando condições
favoráveis às suas atividades nos lugares vinculados a práticas de
encontros ocasionais ou de atrativos dos homossexuais. Nesse sen-
tido, o prolongamento da travessa Benjamim Constant até as ruas
ao redor da praça Olímpio Campos, popularmente conhecida como

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praça da Catedral Metropolitana, torna-se vitrine de exposição e de
conquista de clientes, onde se concentram as condições necessárias
para o alargamento desses territórios.

É comum o uso de equipamentos existentes no espaço público,


tais como coretos, banheiros públicos, estreitos das lojas, fundos
de bares. No Centro, frequenta-se principalmente os fundos da Ca-
tedral Metropolitana, a Galeria de Artes Álvaro Santos, os fundos
do Cacique Chá e os bares adjacentes. Esses territórios recebem as
mais diversas denominações, além de “zonas morais”, “pontos de
pegação” e “territórios de prostituição”.

Os garotos de programa estão cientes de que a rua é um local onde


se correm riscos, mas necessitam desses espaços para satisfação
das diversas possibilidades que esses ambientes podem lhes pro-
porcionar: paquerar, ganhar dinheiro, arranjar programas. Por isso,
apesar dos diferentes perigos – medo da polícia, de delinquentes e
ladrões –, preferem correr esses riscos.

Quando analisamos a questão das territorialidades, percebemos a


presença de outros atores atuando junto aos garotos de programa, as
travestis e as prostitutas. As travestis estão distribuidas entre a ave-
nida Ivo do Prado – popularmente conhecida como Rua da Frente – e
seus pronlongamentos até a Praça do Mini Golfe, no bairro São José.
As prostitutas, por sua vez, localizam-se em frente à Assembleia Le-
gislativa até a Câmara dos Vereadores de Aracaju. Dessa forma, cada
grupo detém o domínio do seu território, sem incomodar os demais.

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Um aspecto interessante diz respeito à ocorrência de assal-
tos aos clientes devido ao não pagamento dos serviços sexuais
estabelecidos. Ficou bastante nítido que para esse tipo de atitude
os garotos de programa exercem a mesma tática de atuação que a
de abordagem ao cliente. Isso nos permitir refletir sobre as razões
pelas quais eles são vistos como marginais ou delinquentes por uma
parte da sociedade. Não contestamos, entretanto, a presença de in-
divíduos de má índole.

O espaço do Centro da cidade passa a ser, segundo o intercurso


etnográfico, o locus das mais abrangentes possibilidades de inte-
rações e de apropriação pelos diversos grupos sociais que ali de-
sempenham suas significações e ressignificações. Desse modo,
configura-se uma relação de poder, sem que haja um intercruza-
mento de grupos que atrapalhe as diversas dinâmicas ali abarca-
das. Cada grupo exerce suas apropriações sem atrapalhar os ou-
tros grupos inseridos nesse mosaico. Dessa forma, fica evidente
como essa noção de espaço é de fato uma construção humana,
que a todo tempo está em constante transformação.

Nos dias atuais, observamos uma maior vigilância e monitoramento


eletrônico desses ambientes através de câmeras instaladas nas ruas.
Isso de certa forma inibe a presença dos garotos de programa, das tra-
vestis e das prostitutas quanto a realizarem seus intercursos sexuais.

No trabalho sexual masculino, a volatilidade dos elementos é o pon-


to diferencial em relação aos demais processos aqui abordados. O
garoto que agora se põe na esquina gesticulando e demonstrando

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seus dotes como garanhão, amanhã poderá estar inserido no mer-
cado de trabalho tradicional, atendendo em uma loja, manobrando
um elevador, vigiando uma portaria de prédio de classe média, tra-
balhando como flanelinha ou, a depender de seus contatos e pai-
xões, poderá circular com toda moralidade em um ambiente luxuo-
so de um shopping center da cidade.

Coube-nos, aqui, analisar as trajetórias e os percursos por onde esses


atores sociais imprimem suas formas de atuação e o modo como se
apropriam dos territórios enquanto sujeitos construtores de múltiplas
identidades. Analisamos, também, como são estabelecidas, nesses
ambientes, as relações entre espaço e poder que justificam a formação
do território dos garotos de programa dentro do Centro de Aracaju.

CAUSAS E MOTIVOS

São diversos os motivos que levam os garotos de programa a acessar


o mundo do trabalho sexual. Uma das justificadas é o ganho finan-
ceiro de forma rápida e sem muito esforço, como meio de conquista
dos seus mais vastos sonhos. Outro fator diz respeito à origem fa-
miliar desestruturada financeiramente. Por fim, há aqueles que ale-
gam gosta da prática sexual.

É fato que a maior parte dos garotos de programa do Centro da


cidade são vistos pela sociedade como “suburbanos”9 e, em geral,

9 Denominação dada pela sociedade em referência a indivíduos vindos de regiões populares e com
elevada densidade demográfica, onde quase sempre o poder público não tem grande atuação.

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tem um baixo nível de escolaridade. Muitos vêm de outros municí-
pios sergipanos e até de outros estados do Brasil. O que não lhes
faltam são atributos físicos, sejam estereotipados em um corpo
totalmente malhado (trabalhado nas academias) e carregados de
uma forte genética muscular, ou construídos sobre a forma de uma
poderosa “mala”10. Alguns garotos relatam que os clientes preferem
homens negros, por eles terem “malas avantajadas”.

A grande maioria reside fora do Centro da cidade, em geral em bair-


ros e conjuntos periféricos, e tem idade variando entre 20 e 36 anos,
como destacado por outros trabalhos relacionados à temática em
questão. Pelo que podemos perceber, sua inserção na prostituição
está, em geral, vinculada à condição financeira.

Quanto ao programa, o ato sexual e a abordagem aos clientes estão


sempre marcados por práticas de domínio de uma figura masculina
“ativa”11. Assim, o garoto de programa é muito mais incisivo do que os
demais sujeitos. Embora, tais práticas atendam mais aos homossexuais.

Vale destacar, ainda, que a prostituição apresenta diversas possibi-


lidades distintas de (auto) definição e que existem nomenclaturas
específicas nesse universo. Tais definições variam de acordo não só
com as práticas sexuais exercidas pelos garotos de programa, mas

10 Nomenclatura utilizada entre os michês, que indica “pênis avantajado”.

11 Classificação de representação de masculinidade na literatura homossexual. Designa-se


de “passivo” aquele que é penetrado, e de “ativo” aquele que penetra no outro; mesma
noção para efeminado ou não efeminado.

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também de acordo com outros critérios, como idade, postura, ci-
dade de origem etc. Nesse universo, as caracterizações são fluidas,
contextuais e podem se sobrepor. Nas observações em campo, fo-
ram encontradas categorias como “macho-biba”, “macho-gay”, “ati-
vo-passivo”, “ativo”, “passivo”, entre outras.

Pensando acerca da identidade, que define os sujeitos pela re-


presentação que eles próprios fazem da prática sexual que reali-
zam, ou por certo recorte privilegiado que o observador faz des-
sa prática, é interessante compreendê-la a partir de um ângulo
multifacetário e fragmentado e não como sistema classificatório.
Perlongher (1987) destaca que não podemos observar a questão
da identidade de forma simplista. À primeira vista, poderíamos di-
zer que esses garotos seriam de fato homossexuais, mas quando
adentramos nesse universo, percebemos existir uma flutuação dos
sujeitos por categorias sexuais que dependem do contexto em que
se encontram em cada momento.

Muitas vezes, esses garotos não se reconhecem como homossexuais,


mas como heterossexuais ou bissexuais, e isso ocorre devido à pos-
tura masculina e ativa nas relações sexuais. Em suas narrativas, a
postura masculina e o papel de ativo no ato sexual mostram uma
hierarquia, exaltando a superioridade do “homem” na relação.

É muito mais fácil que um garoto de programa aborde o cliente com


perguntas insinuosas – principalmente quando percebe ser o cliente
homossexual – do que para a prostituta ou a travesti, que, ao contrá-
rio, resguardam-se como sujeitos a serem abordados. Outra carac-

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terística marcante é que essa abordagem pode ser realizada tanto
por clientes que se apresentam motorizados, como por aqueles que
acertam os valores e as condições do programa em via pública, seja
em plena praça sentados ao banco, seja em outro ambiente.

Nesta pesquisa, apesar do esforço para coletar dados que pudessem for-
necer mais elementos constituidores dessa prática de comércio sexual,
percebemos o quanto são inesgotáveis as possibilidades de leituras
desses grupos. Por isso, na evolução da Antropologia Urbana, ainda é
necessário um expressivo número de trabalhos, pois esses grupos espe-
cíficos de garotos de programa carecem de análises mais aprofundadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho de pesquisa objetivou investigar e compreender as
percepções acerca dos territórios de trabalho sexual masculino na
região central de Aracaju. Procuramos esclarecer as vivências pelas
quais esses garotos de programa passam enquanto protagonistas
de um comércio sexual existente e ainda bastante promissor.

Apesar da cidade de Aracaju – assim como boa parte das cidades do


Brasil – está passando por um vigoroso processo de revitalização e
urbanização, a região central continua sendo um lugar de prostitui-
ção, ainda que tenha sofrido um nítido processo de decadência. A
cidade se expandiu para fora de sua zona urbana projetada, novas
centralidades foram criadas e, com isso, também a prostituição se
expandiu, conquistando novos espaços, mesmo que sem uma per-
manência que os transformasse em uma “região moral”.

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Algumas hipóteses reforçam essas transformações. A primeira diz
respeito à emergência de novas formas de configuração do trabalho
sexual, tais como anúncios em revistas e jornais, atendimento em
domicílio, acompanhantes de luxo, entre outros. A segunda pers-
pectiva diz respeito à emergência da prostituição de travestis e de
garotos de programa em outros tipos de estabelecimentos, aí pode-
ríamos citar: os shopping centers, os banheiros e parques públicos.
Por fim, tal como em outras atividades comerciais, na prostituição
as relações também se tornaram mais impessoais e profissionais.

A partir da pesquisa de campo, observou-se que os territórios de tra-


balho sexual masculino na cidade de Aracaju se concentram, atual-
mente, nas regiões das praias, em especial na Atalaia Velha e na
Coroa do Meio. A emergência de novas formas de comércio sexual
acentua o processo de decadência da região central da cidade, no
entanto, a permanência desse tipo de comércio ainda resiste. É fato
que também o processo de urbanização empreendido pelo poder
público (revitalização do Centro, instalação de câmeras) bem como
o tráfico de drogas também colaboram para esse processo de deca-
dência, ocasionando um movimento constante desses grupos.

De maneira geral, muitas hipóteses levantadas e confirmadas por


esta pesquisa dizem respeito às causas que levam esses garotos a
adentrarem no mundo do trabalho sexual. Uma das principais ra-
zões é a questão monetária (ganhos financeiros); muitos desses
garotos vivenciam dificuldades financeiras e/ou problemas de rela-
ções pessoais com a família, o que em maior ou menor grau possibi-
lita o ingresso deles no comércio sexual masculino. Um outro fator

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diz respeito ao anseio de alcançar melhores condições de vida e de
obter bens materiais (roupas de marca, equipamentos eletrônicos,
acesso às melhores baladas etc.) de forma rápida e sem esforço.

A pesquisa de campo mostrou que o trabalho sexual exercido por


homens apresenta um contexto bastante diverso e múltiplo, rico em
possibilidades analíticas. Nesse sentido, vale ressaltar a necessida-
de de outras pesquisas que abram espaço para trabalhar a subjeti-
vidade desses garotos de programa, tantas vezes renegados e invisí-
veis aos olhos das Ciências Sociais e da sociedade em geral.

REFERÊNCIAS
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Zahar, 2008.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. São Paulo:
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2001. Disponível em: http://www.sosdoutor.com.br/sossexualida-
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74/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


COPOS, EMOÇÕES, CORPOS E SOCIABILIDADES:
FORRÓ NO BAR
Luciana Chianca1
Ruanna Gonçalves da Silva2

Na dissertação de mestrado intitulada É de raiz? Expressões e sen-


tidos do Forró Pé de Serra (2017), objetivamos construir um tra-
balho que não focalizasse apenas no discurso dos músicos que se
propõem a tocar o forró, mas na própria experiência musical e no
dilema dos músicos sobre a escolha do tipo de música tocada. Se-
guindo algumas perguntas norteadoras, buscamos compreender
junto aos músicos o que é essa música para além dos discursos for-
mais: o que a linguagem musical (letras e sons) e sua performance
(execução pública) representam para eles e qual mensagem se pre-
tende transmitir a partir das performances musicais? Observamos
também, por meio de pesquisa participante, como o público reage
às performances musicais.

1 Professora Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação


em Antropologia Social da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Antropologia pela
Université Bordeaux II (França), e-mail: lucianachiancaufpb@yahoo.com.br.

2 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal


de Pernambuco e Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropo-
logia Social da Universidade Federal da Paraíba.

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Através de alguns conhecidos que nos informaram da apresentação
regular de músicos de forró no bar e restaurante Camarão do Baia-
no, procuramos visitar esse estabelecimento comercial. Chegamos
ao bar pela primeira vez numa sexta-feira e deparamo-nos com um
trio de forró pé de serra3 tocando sucessos de Luiz Gonzaga e de Flá-
vio José e também músicas contemporâneas de Wesley Safadão,
Aviões do Forró, dentre outras bandas. Depois dessa noite, nossa
observação se manteve de agosto de 2016 a janeiro de 2017; acom-
panhamos as apresentações dos trios às sextas ou aos sábados, das
21h até as 00h, quando o bar encerrava a apresentação do grupo
musical de forró.

O Camarão do Baiano está localizado no bairro Bancários, em João


Pessoa, setor conhecido por concentrar muitos residentes universitá-
rios, devido à proximidade da Universidade Federal da Paraíba e de
outra grande universidade privada. Atingindo um público de perfil só-
cio-cultural e econômico de camadas médias urbanas de formação
superior completa ou incompleta, o Camarão do Baiano está situa-
do em uma mancha de lazer (MAGNANI E TORRES, 1996) de bares e
restaurantes. Está próximo, também, ao Shopping Sul, a grandes su-
permercados do bairro e a artérias de circulação e trânsito, inclusive
de transporte público. Em suma, trata-se de um local incrustrado em
uma aéra de trânsito constante de moradores do bairro.

3 Pé de serra é como são conhecidos os grupos de forró compostos por sanfona, triângulo e
zabumba; às vezes acompanhados de voz ou de outros instrumentos percussivos, sem a pre-
sença de instrumentos elétricos, entretanto, seu som pode ser amplificado eletronicamente.

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A experiência de observação do Camarão do Baiano revela a dimen-
são extraordinária da situação de sociabilidade para os clientes e
frequentadores do bar, pois apesar das diferentes motivações pes-
soais, todos se distanciam da ideia linear de tempo quando ali es-
tão, seja pelo efeito das bebidas alcoólicas consumidas (cerveja e
cachaça, principalmente), seja pelo efeito das músicas executadas.
A sociabilidade que é gerada nesse contexto provoca situações de
partilha e de interação entre os presentes, que, com maior ou menor
euforia, extravasam suas emoções e desprendem-se de suas rotinas.

Referindo-se à noção de “pivotamento do sagrado” (VAN GENNEP,


1909), ou seja, à capacidade do sagrado de girar sobre seu próprio
eixo, M. Segalen (2002, p. 44) diz que “o rito domina o tempo, ou
tenta dominá-lo no retorno cíclico dos mesmos momentos”. O “pi-
votamento do sagrado” apresenta três fases sucessivas no ritual: 1)
o ser é separado do curso ordinário das coisas, 2) passa a levar uma
existência marginal ou liminar e 3) é reintegrado à vida normal num
novo estado. Segalen destaca a capacidade do retorno que o ritual
oferece, propiciando a seus integrantes “retornarem” ao curso or-
dinário, ainda que modificados após a experiência da liminaridade
– sua segunda e mais importante fase, aquela em que a vida social
entra num limite onde ela parece “suspensa”. Sendo assim, o sagra-
do pivota, gira através da liminaridade. Esse modelo ritual vai ser
desenvolvido por Victor Turner (1974).

Não consideramos que os momentos de sociabilidade no Camarão


do Baiano sejam rituais de transição ou de passagem, mas observa-
mos que essa experiência proporciona um afrouxamento dos estatu-

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tos e das marcas sociais atuantes cotidianamente. Isso leva algumas
situações a uma inversão de papéis durante o tempo liminar reco-
nhecido por todos por sua “alegria e festividade” (BAKHTIN, 1997).

Um fato que chama a atenção é a diversidade do público, composto


por frequentadores assíduos ou eventuais e de variadas faixas etá-
rias e gêneros. Há pessoas sozinhas, casais, conhecidos que se reen-
contram, grandes e pequenos grupos de amigos, estudantes univer-
sitários, trabalhadores identificados por seus uniformes.

Além da variação da rotina proporcionada pela liminaridade aci-


ma descrita, alguns clientes vão ao Camarão do Baiano em busca
de paquera, romance ou conquistas sexuais. Embora na maioria dos
casos o bar seja um espaço de encontros para beber cerveja e socia-
lizar com os amigos (festas, confraternizações, comemorações, lan-
çamento de candidaturas eleitorais, blocos de carnaval), podemos
dizer que a motivação mais comum é a fruição do forró – seja para
dançar, cantar ou escutá-lo num ambiente privado e ao mesmo tem-
po aberto ao público, reconhecido como alegre e dinâmico, sempre
com apresentação de novas atrações musicais.

O próprio espaço do Camarão do Baiano pode ser pensado como


representativo do imaginário local sobre os lugares do forró tradi-
cional, cujas características evocam a simplicidade, um tamanho
reduzido (aproximadamente 20m x 20m) e uma atmosfera intimista.
Seu ambiente é dividido em duas partes: uma coberta e outra des-
coberta. Na primeira funcionam a cozinha, o caixa, banheiros e um
espaço destinado aos trios de forró. Há também mesas distribuídas

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(geralmente seis), deixando livre um espaço para a circulação dos
garçons e para as evoluções dos dançarinos em frente aos músicos.
A parte descoberta fica no exterior do bar: mais espaçosa, é com-
posta por cerca de dez mesas plásticas postas sobre um chão de ter-
ra batida, no que se assemelha aos demais estabelecimentos desse
padrão instalados no bairro.

Pensar no momento da ida ao bar como escape da rotina e refle-


tir sobre o seu lugar na vida dos frequentadores nos aproxima da
ideia de Van Gennep (2011) sobre a análise de rituais. Van Gennep
critica o procedimento, frequente entre os estudiosos da religião
e da sociedade, que extrai rituais de sua sequência e de seu con-
texto, analisando-os isoladamente, desconfigurando, assim, as ra-
zões de sua existência e de sua lógica no conjunto dos processos
sociais. O autor classifica esse procedimento como “folclórico” ou
“antropológico”. Van Gennep recomenda, então, que as análises
situacionais de rituais comportem também perspectivas macroes-
truturais, o que nos parece fundamental para a compreensão da
fruição de um bar de forró como contraponto à rotina diária de
trabalho e de estudo de seus frequentadores.

A relação entre o contexto e a situação desse bar na sociabilidade


de seu diversificado público pode ser exemplificada pela escolha do
Camarão do Baiano para a promoção da candidatura à vereadora de
Sandra Marrocos4, uma figura local, em outubro de 2016. Em meio a

4 Sandra Marrocos foi eleita vereadora pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) na Câmara

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um extenso grupo de amigos e apoiadores, a candidata passava des-
percebida ao público, como uma frequentadora “comum” em busca
de diversão, apesar de haver ocupado o mesmo cargo em gestões
anteriores e recentes. Entretanto, como se tratava de um período
pré-eleitoral, esse anonimato não durou: sua presença foi publica-
mente anunciada ao microfone por uma de suas apoiadoras, que,
acompanhada dos músicos do Camarão do Baiano, cantou em sua
homenagem, mobilizando o público para acompanhá-la enquanto
enaltecia as qualidades da candidata.

Essa ocorrência evidencia a diluição das diferenças e desigualdades


nos momentos de sociabilidade do bar, provocando a liminaridade
ou communitas (TURNER, 1974) na experiência, pois a candidata re-
nunciara à sua posição hierárquica convencional até ser anunciada.
Sobre o bar e os grupos sociais de estratos inferiores, Silva (2011)
destaca a importância desses locais e sujeitos para a afirmação de
uma comunidade consumidora, possibilitando a criação de “profun-
dos laços comuns”, “relações de cooperação” econômica e controle
de conflitos entre essa comunidade, enquanto que a competição
se mantém em nível “pouco explicitado e aceitável”, além de atuar
como “fator de liberação da “consciência de inferioridade”, isto é, da
sua situação de classe trabalhadora urbana e de estudantes. Ainda
segundo Silva (2011), a comunidade que ali se cria é

Municipal de João Pessoa para mandato de 2017- 2020.

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Uma comunidade com roupagem nova: o “mundo” é a
cidade, o sistema urbano-industrial – muitíssimo mais
amplo que ela. Assim, o botequim como “comunidade”
transforma-se numa “ótica” que contribui para dar sen-
tido àquele mundo, interpretando-o [...]. O freguês sen-
te-se integrado e participante de um todo mais amplo,
enquanto parte de um microcosmo que é, ao mesmo
tempo, uma defesa contra o macrocosmo desconheci-
do e incompreensível. (SILVA, 2011, p. 135)

Assim, o bar se torna um local guiado pela afetação coletiva, que


compartilha o sentimento de pertencimento identitário durante as
execuções das músicas. Embora o foco analítico deste artigo seja a
performance dos músicos, sabemos que ela é construída a partir da
interação destes com os frequentadores, também performers. Se-
guimos, aqui, a noção de Schechner (2011), que considera a perfor-
mance como eventos em que saímos do “mundo habitual” através
de um “aquecimento” que nos conduz ao “mundo performativo”,
onde acessamos outra referência de tempo/espaço e somos trans-
portados de uma personalidade a outra, para depois voltarmos ao
“mundo habitual” após um “desaquecimento”.

A performance e o repertório escolhidos pelos músicos “aquecem”


e estimulam o público, seja através da dança ou, então, do canto
daqueles que permanecem sentados. Podemos sentir uma grande
vibração coletiva quando os músicos começam a execução de algu-
ma canção consagrada, como, por exemplo, a tão pedida “Saga do
Vaqueiro”5 ou as diversas músicas de Luiz Gonzaga, com as quais
as pessoas se identificam e cantam juntas.

5 Música composta e interpretada por Rita de Cássia; é cantada por diversas bandas de
forró, como Mastruz com Leite, Calango Aceso, Catuaba com Amendoim.

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Essa emoção coletiva pode ser associada a uma comoção, a um
sentimento de reconhecimento cultural através da partilha de uma
herança comum identificada como “nordestina”. Destaca-se nesse
contexto a noção de pertencimento a uma “família nordestina”: em-
bora sejam desconhecidos e não possuam vínculos sociais fora dali,
a música “aquece” e transporta o público para essa comunidade afe-
tiva e mnemônica. Essa situação também pode ser relacionada à
communitas (TURNER, 1974), uma vez que há homogeinização das
diferenças externas ao bar e a criação do mundo performativo de
que falava Schechner (2011).

O emblemático trio pé de serra e as músicas executadas por eles


constituem, portanto, objeto simbólico importante, ao qual músicos
e público se remetem como um modelo imagético. É necessário con-
siderar, entretanto, a dinamicidade de alguns dos símbolos nordes-
tinos ali estereotipados. Nesse sentido, observamos algumas modi-
ficações no campo do imaginário e dos arquétipos (DURAND, 2012)
que compõem essa imagem de Nordeste enquanto articuladora de
sentidos e dialeticamente construída no diálogo entre cosmologias
e visões de mundo subjetivas e objetivas. Um exemplo dessas modi-
ficações imagéticas é a incorporação de músicas do forró eletrônico,
alvos de críticas frequentes dos músicos de forró pé de serra que
as consideram “sem conteúdo” ou de “baixa qualidade”. Também
verificamos a forte incorporação de músicas de outros gêneros mu-
sicais, principalmente, o sertanejo e o samba.

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QUAL É A MÚSICA QUE TOCA?
Para tomar os aspectos sonoros como uma modalidade particular
de observação e análise das interações no bar, foi necessário trei-
nar o nosso papel de testemunhas auditivas. O som do forró, junto
a outros sons do ambiente que não aprendemos a ignorar – con-
versas, sons de carro passando e outros ruídos –, constroem “paisa-
gens sonoras” (SCHAFER, 2001). Definidas como “qualquer campo
de estudo acústico” (SCHAFER, 2001, p. 23), essas paisagens sonoras
são divididas entre naturais (provindas de fenômenos da natureza)
e culturais (resultado das atividades humanas).

Tendo em vista que uma paisagem sonora é composta por eventos es-
cutados (sem necessária relação com o visual) no Camarão do Baiano, a
paisagem dominada pelo forró contrasta e ao mesmo tempo se constrói
junto a outros elementos sonoros, como as conversas; risos; risadas; os
automóveis e seus motores; alarmes; buzinas; os sons dos copos de vidro
e das garrafas de cerveja sendo colocados e retirados das mesas; pessoas
chamando o garçom, pedindo “mais uma”, o tira-gosto e a conta.

Como experiência musical, a música é constituída pelo jogo entre som,


silêncio e ruído. Ela articula barulho e silêncio, selecionando e ordenan-
do determinados tipos de som através de pulsações articuladas:

O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do


mundo é ruído, o mundo se apresenta para nós a todo
momento através de frequências irregulares e caóticas
com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma
ordenação (ordenação que contém também margens
de instabilidade, com certos padrões sonoros interfe-
rindo sobre outros). (WISNIK, 1999, p. 33)

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Embora os grupos que tocam no Camarão do Baiano sejam variáveis
conforme a noite (tanto o grupo convidado quanto a composição
deste), observamos com maior frequência o Trio Forró do Lampião,
cujo zambumbeiro também se apresentou em outras formações,
revelando a constante rotatividade dos músicos nas formações dos
trios. Essas trocas aumentam a circulação entre músicos, que inva-
riavelmente se encontram tocando, e ocasionam também uma re-
petição de repertório e maior afinidade nas escolhas das músicas.

De modo geral, o repertório é predominantemente constituído por


músicas de ícones do forró, tais como Luiz Gonzaga, Dominguinhos
e Santanna, o Cantador. Entretanto, em determinados momentos
são tocados alguns sucessos do chamado Forró Romântico ou Das
Antigas e, também, sucessos atuais como as músicas de Wesley Sa-
fadão e as músicas sertanejas, solicitadas e apreciadas pelo públi-
co. Assim, apesar de os grupos serem formados apenas por trios de
pé de serra, os repertórios contêm músicas de diversas linhagens do
forró, permanecendo um espetáculo atrativo e aberto também às
propostas do público, inclusive, muitas vezes incorporando também
o pagode e o samba, devidamente adaptados ao forró.

As letras das músicas do forró pé de serra são compostas por des-


crições sobre o povo nordestino e sobre esse território comum. O
tom é ufanista, versando sobre as qualidades de seu povo e lugar
apesar das adversidades climáticas ou dos dramas de amor – vi-
venciados também pelo sujeito sertanejo (o “nordestino arquetí-
pico” do estereótipo imagético).

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Como um dos principais referenciais festivos da cultura nordestina,
o período das festas juninas é frequentemente referenciado pelos
trios, que inserem músicas tradicionais das festa em seus repertó-
rios. Durante esse período de festas, é comum, inclusive, a formação
de quadrilhas improvisadas no Camarão do Baiano.

Em uma das nossas primeiras incursões no bar, por exemplo, senti-


mos a já mencionada vibração coletiva quando o trio começou a tocar
a icônica música: “Olha pro céu, meu amor/Vê como ele está lindo/Olha
praquele balão multicor/Como no céu vai sumindo”6, uma evidente va-
lorização do São João como festa associada ao universo simbólico do
Nordeste e do Sertão (CHIANCA, 2013). Duas mulheres se posiciona-
ram à frente do palco, dançando passos de quadrilha; depois, outra
mulher se juntou a elas, formando uma dança a três, que aos pou-
cos incorporou mais pessoas. Todas, assim reunidas, dançaram jun-
tas alguns movimentos característicos de quadrilhas juninas. Na se-
quência, o trio entoou Pagode Russo7 de Luiz Gonzaga, aumentando
ainda mais o “aquecimento” do público, que, se não dançou, cantou
junto aos demais. Cerca de dez casais se movimentavam dançando
pela área coberta do bar. Passado esse momento de efusão junina,
o trio começou a tocar sucessos da banda Limão com Mel e outros
forrós “das antigas” e permaneceu efusivamente acompanhado pelos
casais. Com isso, o trio demonstrou que seu repertório não se restrin-
gia ao pé de serra, sendo dinâmico e transitando entre os diferentes
estilos reconhecidos como evoluções musicais do forró.

6 Olha Pro Céu (1951) – Compositores: José Fernandes e Luiz Gonzaga.

7 Música gravada em 1946 (em 1.78 rpm) e em 1984 por Luiz Gonzaga no LP “Danado de
Bom”. Composta por Luiz Gonzaga e João Silva.

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Nessas situações de maior interação coletiva, aumentam a intensi-
dade das atuações performáticas dos frequentadores do bar: muitas
vezes visualizamos pessoas desconhecidas juntarem suas mesas em
um gesto de hospitalidade e de abertura relacional, acompanhado
por diálogos e brincadeiras performatizadas durante alguma músi-
ca. Discorrendo sobre performance, Dawsey (2007) afirma que a An-
tropologia, como atividade que calcula o lugar olhado das coisas,
está constantemente observando as performances nas relações,
através de uma forma de olhar que busca analisar além da super-
ficialidade nas interações. Por isso, os estudos sobre performance
têm interesse também pelos ruídos do campo de pesquisa8.

No Camarão do Baiano, o público pode atuar junto ao trio, cantando,


tocando, recitando ou intervindo livremente; não verificamos nenhum
impedimento quando alguém se candidatava a “tomar o microfone”
ou posicionava-se à frente do palco para a realização de qualquer par-
ticipação. Era comum e mesmo desejável que as pessoas da audiên-
cia participassem junto aos músicos. Como exemplo, temos um senhor
que ao longo de quase todas as nossas observações portava um pan-
deiro, permanecendo sentado em uma mesa em frente ao trio, às vezes
acompanhando de lá o ritmo das músicas. De repente, ele se juntava
aos músicos, assumindo outra posição na performance: agora no palco.

8 Sobre performance, Dawsey (2007, p. 530) afirma que: “O conceito de performance adqui-
re formas variadas, cambiantes e híbridas. Há algo de não resolvido nesse conceito que re-
siste às tentativas de definições conclusivas ou delimitações disciplinares. Aquém ou além
de uma disciplina, ou até mesmo de um campo interdisciplinar, os estudos de performance
se configuram como uma espécie de antidisciplina”. Os estudos de performance podem ser
vistos como espelho da experiência no mundo contemporâneo revelando a fragmentação
das relações, o inacabamento das coisas, a dificuldade de significar o mundo, sendo assim
uma “antropologia da experiência”.

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Pela frequência com que ocorrem no Camarão do Baiano, essas in-
versões não causam estranhamento por parte do público. Tal como o
senhor do pandeiro, também presenciamos outras pessoas portando
instrumentos diversos. Em outra ocasião, uma mulher tocava choca-
lho e um homem acompanhava (timidamente) o triangulista do trio
com o seu próprio triângulo. Houve uma noite em que, após o término
do horário de apresentação do trio, os músicos se juntaram à mesa do
senhor do pandeiro e improvisaram com ele uma roda de samba.

Se a escolha das músicas que os trios tocam é variada, assim como a


forma como eles tocam, podemos dizer que esta depende não ape-
nas deles, mas da relação construída em cada noite de apresenta-
ção. A performance em palco no Camarão do Baiano precisa estar
aberta a pedidos de músicas e também aos pedidos de improvisa-
ção da plateia. Apesar de haver um repertório pré-estabelecido, os
músicos devem “se garantir” (ou seja, assegurar sua flexibilidade e
qualidade musical) para atender às demandas surgidas fora do pla-
nejamento inicial, pois a escolha da música executada pelo trio de-
pende do modo como ele tenha atingido emocionalmente o público
nessa experiência musical.

OS MOVIMENTOS CORPORAIS NO FORRÓ

Como vimos, a musicalidade do forró no Camarão do Baiano vai


além do som, pois ele consiste numa forma de comunicação total,
que envolve dança, performances visuais, olfatos, sabores, contatos
físicos e experiências de sociabilidades diretamente associadas ao

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sensorial corporal9. A popularidade do forró e sua disseminação são
facilitadas por se tratar de um ritmo dançante com passos básicos
considerados fáceis em relação a músicas de compassos binários –
com possibilidade de progressão até sequências e evoluções coreo-
gráficas mais complexas. Além de provocar estímulos nos corpos in-
dividuais, o forró também serve para agregar dois corpos e favorecer
o contato interpessoal, visto que é uma dança de pares.

Isso nos insta a refletir sobre os movimentos corporais do público e


dos músicos do forró. Como discorremos anteriormente, a perfor-
mance “transporta” seus participantes a “algum lugar” diferente do
seu cotidiano e depois do “desaquecimento” os devolve ao mundo or-
dinário (SCHECHNER, 2011). Esse deslocamento simbólico repercute
em uma reelaboração da experiência sensível do performer, transfor-
mando-o também corporalmente e revelando ao observador alguns
aspectos relativos às referências musicais e sociais evocadas durante
as execuções do forró nos contextos de sociabilidade rotineira.

Pensando, sobretudo, na performance musical em relação com os


músicos e com o público, Britto e Jacques (2012) utilizam a noção
de continuidade para refletir sobre a dinâmica entre corpo e espa-
ço. Essa relação estaria constantemente sofrendo reconfigurações
e, assim, estaria afastada de uma concepção essencialista da “iden-
tidade”, que, por sua vez, também seria deslocada de acordo com

9 Um exemplo de como a música afeta para além da audição é o trabalho de Magnani


(2007) sobre a vivência musical de surdos nas festas juninas. A pesquisa demonstra que as
vibrações sonoras geram estímulos rítmicos mesmo em pessoas incapazes de ouvir sons.

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o contexto relacional entre corporeidades e ambiências. Enquanto
campos de processos resultantes das próprias interações entre os su-
jeitos, as ambiências ultrapassam o espaço físico envolvendo os cor-
pos, que não são “apenas” um objeto da cultura, como lembra Sônia
Maluf (2001), mas são também dotados de agência própria, afinal, os
corpos são receptores de símbolos que produzem sentidos.

No Camarão do Baiano, a performance de palco do trio de forró tem


como referência a performance de Luiz Gonzaga, que se posiciona-
va centralizado no palco, manuseando a sanfona com uma postura
ereta, acompanhado em cada lado por pelo menos um triangulista e
um zabumbeiro. Gonzaga cantava projetando sua voz de forma for-
te, alta, articulada e proeminente, como cantor de ópera ou de circo.
Tocava a sanfona com o fole praticamente fechado, o que Gonza-
guinha, seu filho, questionou10, e Gonzaga respondeu, brincando: “É
porque lá no Norte nós somos fraquinho... Negócio de puxar muito a
sanfona cansa, e eu muito vivo achava que tocando com ela fechada
era mais econômico! (risos)”. E complementou: “Esse negócio de to-
car com a sanfona fechada aconteceu nesse número que se chamou
Xamego. Então eu queria tocar uma música com muita velocidade,
mas eu não tinha técnica, não tinha boa mecânica, e através do jogo
de fole consegui enrolar o povo e vou enrolando até hoje!”.

10 Em entrevista cedida ao programa “Proposta” da TV Cultura, em 1972. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=E6fsItmgm9k. Acesso em: 28 abr. 2019.

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A escolha pela execução da sanfona com o fole mais fechado se tornou
uma técnica corporal inspiradora dos músicos de forró que o sucede-
ram. Como técnica corporal (MAUSS, 1974), precisa ser tradicional e
eficaz, pois “não há técnica e não há transmissão se não houver tradi-
ção” (MAUSS, 1974, p. 407). Assim, durante as apresentações musicais
no Camarão do Baiano ocorre também essa reencenação estilística
de Gonzaga, pautada nas imagens do passado e reapresentando tra-
dições de práticas, valores e normas de comportamento que consti-
tuem uma continuidade histórica através da repetição.

Além dos gestos, outro fator corporal relevante nas performances


dos músicos de forró é o vestuário, composto por roupas e acessó-
rios que formam um sistema simbólico transmissor de mensagens
às pessoas de um mesmo grupo, partilhando significados (BURKE,
1989). As vestimentas dos trios do Camarão do Baiano não são
compostas por elementos tradicionalmente utilizados por forro-
zeiros (acessórios de couro, chinelas e o “chapéu de Lampião”). Os
tons escolhidos também não são terrosos como frequentemente
se vê (verde, caqui e marrom), mas cores vivas que remetem a um
conceito de moda urbano e moderno. São vestimentas cotidia-
nas de músicos que não se “fantasiam” para tocar, mas compare-
cem ao trabalho com suas vestimentas usuais. Essa divergência
imagética representa a distância entre a imagem “tradicional” do
músico de pé de serra, muito difundida especialmente pela mídia
televisiva, e a realidade profissional cotidiana dos músicos que
executam o forró profissionalmente em ambientes de sociabilida-
de como o Camarão do Baiano.

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Vale ressaltar que nenhuma performance musical se repete, embora
exista um roteiro musical a ser seguido. Além disso, os tocadores do
Camarão do Baiano não utilizam partituras ou cifras, tocando de cor
as melodias e harmonias, o que deve dificultar uma execução rigoro-
sa das músicas, visto que, como aponta Halbwachs (1990), a memória
dos músicos dificilmente consegue reter todas as particularidades das
composições. Assim, apesar da repetição de certos repertórios e dos
músicos executantes, cada incursão ao campo foi única e particular.

Nesse contexto, não se espera que haja virtuosismo nas execuções


vocais e instrumentais: mais importante para o público é a conexão
entre os músicos e com o ambiente, condições para o “aquecimento”
através da música. Por isso, as performances observadas no Cama-
rão do Baiano são marcadas pelos aspectos emocionais dos sujei-
tos que ali interagem. Como afirma Schechner (2011), a performance
não pertence apenas ao performer, mas constrói-se com agregado
tempo/espaço/espectador/performer. Mesmo se são pensadas com
antecedência, no momento de sua execução existe a possibilidade
de ocorrerem cortes ou acréscimos de conteúdos não previstos. O
sucesso das experimentações do performer é avaliado “no ato”, con-
forme as respostas do público, incluindo eventuais novas demandas.

Para o público, os músicos devem seguir um script em que não podem


faltar alguns títulos, como, por exemplo, a já citada “Saga do Vaquei-
ro”, canção que relata a trajetória amorosa de um vaqueiro apaixona-
do, reconhecida como “um dos principais hinos nordestinos”11. Além

11 Segundo clientes do Camarão do Baiano.

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do recurso a canções conhecidas e apreciadas pelo público, os músi-
cos conseguem afetá-los pela criatividade nos revezamentos no vocal,
improvisos instrumentais virtuosos na sanfona e “viradas de batida”
na zabumba e no triângulo – formas de demonstrar domínio rítmico.

Outra estratégia importante (envolvendo músicos e a administração


do estabelecimento) é a liberação de espaço junto aos músicos para
que pessoas possam experimentar o protagonismo ao tocar ou can-
tar junto com o trio, o que observamos em todas as ocasiões. Numa
delas, Thalita, uma mulher com cerca de vinte anos que estava em
nossa mesa, frequentadora assídua do Camarão do Baiano, decidiu
que iria cantar. Encheu o copo de cerveja e foi perguntar ao trio mu-
sical se poderia. Com o acordo, combinou as músicas que iria cantar.
Sua performance emocionou seus amigos (cerca de quinze pessoas
na mesma mesa) e os demais presentes no bar, pois outros frequen-
tadores também pararam para assisti a ela e incentivá-la, mesmo
que a cantoria denunciasse o efeito da bebida alcoólica12.

Noutra vez, Thalita estava numa mesa com uma dezena de mulhe-
res que contagiavam o ambiente com a sua animação – estava cho-
vendo e o bar, menos frequentado. Elas cantavam, bebiam e brinca-
vam entre si, fazendo um expressivo coro quando tocou a música de
Aviões do Forró: “eu não vou mais chorar, eu não vou mais chorar,
sofro até te esquecer”, brindando aos seus relacionamentos amoro-
sos mal sucedidos. No decorrer da noite, elas interagiram com pes-

12 Thalita é uma das personagens que encontramos constantemente no Camarão do Baia-


no, em quase todas as idas a campo.

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soas de outras mesas, e repentinamente três rapazes se juntaram à
mesa em que elas estavam. Um deles investiu na paquera com uma
das moças e todos foram bem recebidos. A noite seguiu seu curso.
Mais tarde, perguntei à Thalita se ela iria cantar naquela noite, e
ela respondeu que não, pois o trio que ali estava era “chato” e não
deixava “qualquer um” cantar, ou seja, era pouco receptivo às par-
ticipações do público. Ela revelou que prefere os trios mais abertos,
explicitando que a relação entre os músicos e o público é constante-
mente negociada, pois se os músicos buscam a aprovação dos ou-
vintes, precisam se adequar às suas demandas.

Assim, em outras idas ao Camarão do Baiano, observamos a não-


-correspondência dos músicos às expectativas do público: em uma
sexta-feira, estávamos acompanhadas por duas amigas quando as-
sistíamos à performance de um trio com erros perceptíveis até para
ouvidos menos treinados musicalmente. Ficou evidente a desapro-
vação das nossas acompanhantes, que reagiram dizendo que os
músicos daquela noite eram fracos e não sabiam tocar.

Nessa noite, repetiu-se um sistema que ja havíamos observado prece-


dentemente: os trios haviam modificado suas configurações originais, e
o zabumbeiro do Trio Forró do Lampião tocava acompanhando outros
músicos, formando um trio improvisado (sem nome) que se apresentava
naquele ambiente pela primeira vez desde que iniciáramos a pesquisa.

Por ter formação musical, procuramos não manifestar nossas impres-


sões técnicas em situações de campo, buscando observar como e se
todos percebiam os lapsos ou falhas dos músicos e, também, como

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estes lidavam com tais imprevistos durante suas performances. O
modo como os músicos e os leigos escutam as músicas é diferente:
treinados pela experiência técnica formal, os primeiros analisam rit-
mos, notas, acordes, estrutura melódica e harmônica, enquanto os
leigos conhecem melodia, letras ou refrão das músicas (ou partes
delas) quando estas lhes provocam alguma emoção mais forte. No
Camarão do Baiano, dificilmente eles observavam erros na execução
(de acordo com a lógica tonal) que merecessem comentários.

A musicalidade do forró envolve os corpos de diversas e complemen-


tares maneiras, não apenas através da forma como se escuta e como
se dança a música, mas também através da forma como ela é exe-
cutada: os movimentos, as posturas dos músicos, suas vestimentas e
acessórios são códigos comunicacionais determinantes para a cons-
trução da imagem que os músicos de forró desejam transmitir. Eles
recorrem, também, a falas de estímulo, pequenas mensagens direcio-
nadas aos ouvintes. Na comunicação bem-sucedida, o público reage
com mais dança, mais consumo de bebida, aumento no volume das
conversas, risadas e acompanhando o ritmo com pequenas batidas
na mesa, cantando os versos que remetem a suas identidades e expe-
riências de vida, especialmente quando relativas ao amor.

AS PERFORMANCES DE SUCESSO

Quando se é musicista, escutamos, muitas vezes, a seguinte pergun-


ta: “os músicos realmente sentem o que estão tocando, ou eles ape-
nas reproduzem o que está definido musicalmente?”. Sendo o senti-
mento associado a uma carga emocional que o músico revela e/ou

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provoca durante sua performance, ele precisa estar absorvido em
seu papel artístico para convencer o público (e também a si mesmo)
sobre a eficácia performática, pois a experiência musical é construí-
da no diálogo entre os músicos e a audiência. Então, se o público
percebe que o músico está preocupado somente com a técnica, sem
revelar suas emoções, dificilmente sua performance será bem vista,
porque não transmitirá a todos o seu sentimento. De sua parte, o
público espera ser contagiado pela música executada, de modo que
a performance do músico precisa convencer a plateia. A resposta à
pergunta inicial deste parágrafo é: “sim, de preferência sentimos.”

No Camarão do Baiano, também quando a performance do trio con-


vencia e afetava o público, vários casais se dirigiam à frente do trio
para dançar. A forma como alguns sujeitos dançavam gerava, às ve-
zes, estranheza no público; em particular, um casal de idosos fre-
quentadores assíduos do bar chamava a atenção pela forma efusiva
como se movimentavam, com corpos colados e deslocando-se por
todo o espaço coberto do bar.

Em contraste com os casais de dançarinos mais efusivos, também


vimos casais dançando de forma mais comedida, nas extremidades
do bar onde a iluminação é mais baixa e o ambiente mais intimis-
ta. Quando casais dançam em frente ao trio, fica subentendido que
está acontecendo um bom forró, já que a musicalidade afetou a pla-
teia. Isso “aquece” as pessoas – o que é uma dádiva para os músi-
cos! –, confirmando a aguardada reciprocidade de uma relação de
comunicação bem-sucedida e anunciando uma experiência noturna
prazerosa para todos os presentes.

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O campo de pesquisa no Camarão do Baiano revelou a importância
da reciprocidade público x artista para um bom forró. Um trio pode
executar as músicas de forma magistral, mas, se o público não se ma-
nifestar, se as pessoas não começarem a dançar, a noite será monóto-
na. Para romper esse círculo negativo, os cantores dos trios chamam
o público para dançar ou cantar juntos e, algumas vezes, chegam a
pedir palmas para chamar a atenção e empolgar os presentes.

Essa situação costuma acontecer quando as músicas não são bem


executadas ou quando os músicos demonstram insegurança ou sen-
tem vergonha. A vergonha, segundo Scheff (2000), é uma emoção es-
pecífica e central na sociabilidade e na cultura das sociedades com-
plexas, decorrentes do processo civilizador, em que o self produz e é
produzido num mundo onde opera a privatização das emoções e da
subjetividade. A vergonha reafirma a interdependência emocional
entre os sujeitos envolvidos, evocando o sentido de vínculo social
ante a ameaça de rejeição pessoal durante um processo emocional/
relacional. A estrutura social pode levar a compreensão das íntimas
ligações entre o self e a sociedade (KOURY & BARBOSA, 2015): o tabu
relacionado à vergonha se baseia na repressão social e psicológica
dessa emoção, produzindo a vergonha da vergonha.

O constrangimento do músico devido à performance não-convincen-


te surge de uma antecipação de papeis, em que ele vê a si mesmo a
partir do ponto de vista do outro, num processo de “autoespelho”
(COOLEY, 1922). Goffman (1963), seguindo essa noção de antecipa-
ção de papeis, abordou o funcionamento do constrangimento no

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comportamento interpessoal: trata-se pessoa de uma preocupação
constante com a imagem que se transmite aos outros, em um pro-
cesso de automonitoramento do self.

Goffman (1963) também utiliza a noção de consciência mútua para


falar sobre a capacidade de entendimento e leitura da mente do
outro durante uma interação, em momento de copresença: “Quan-
do cada um se encontra na presença do outro, então os indivíduos
se situam admiravelmente em situação de foco compartilhado de
atenção, de perceber que assim agem, e de perceber que assim per-
cebem” (GOFFMAN, 1963, p. 3). O autor identifica três níveis de cons-
ciência mútua: atenção compartilhada, percepção mútua da aten-
ção compartilhada e percepção mútua da percepção mútua.

A vergonha (ou embaraço) é vivenciada e transparecida a partir de


sensações físicas (alvoroços visíveis e invisíveis) que o sujeito reco-
nhece nos outros e em si mesmo, conectando uma emoção interior
com a superfície material observável – o corpo. Durante a perfor-
mance musical, o tocador está em risco maior de se envergonhar/
embaraçar, pois sabe que está sujeito aos julgamentos. A presença
em palco é marcada pela incorporação de sentimentos, pensamen-
tos e comportamentos; a autoestima do músico está em jogo e defi-
ne-se de acordo com reações do público.

Para vivenciar esse momento de exposição e como forma de aliviar


a tensão, os músicos frequentemente bebem cerveja durante a per-
formance – “não dá pra tocar de bico seco”, dizem frequentemente.
Às vezes, o zabumbeiro ou o triangulista chamava alguém das me-

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sas para tomar seu lugar junto ao trio e poder dar uma pausa para to-
mar um pouco de cerveja. O sanfoneiro, no entanto, nunca se afasta-
va de sua posição, o que talvez aconteça pela complexidade do tocar
sanfona (que exige muito conhecimento harmônico e destreza). Isso
faz do sanfoneiro um instrumentista de difícil substituição e de muita
concentração, e afastado do consumo do álcool enquanto trabalha.

Segundo os músicos interlocutores da pesquisa, o momento de to-


car é prazeroso, sendo apontado, inclusive, como “viciante”, embo-
ra também esteja sempre presente o medo de errar e de não agra-
dar o público. Como emoção básica da ação humana, o medo cria
expectativas e antecipa ações no espaço societal (KOURY & BARBO-
SA, 2015). Há um padrão de expectativas em relação aos tocadores,
fundamentalmente construído sobre uma boa execução de músicas
conhecidas, apreciadas e representativas do forró: isso é o que faz
com que eles consigam animar o bar.

Assim, durante a performance, os tocadores exercitam uma facha-


da, que pode ser definida como um valor social que a pessoa reivin-
dica para si mesma através da linha que os outros pressupõem que
ela assumiu. “A fachada é uma imagem do eu delineada em termos
de atributos sociais aprovados” (GOFFMAN, 2011, p. 13). Pode-se di-
zer que a pessoa tem, está ou mantém a fachada quando a linha que
ela assume apresenta uma imagem consistente, comunicada por
outros participantes e agências impessoais na situação. Assim, a fa-
chada não está dentro ou sobre o corpo, mas localiza-se no fluxo de
eventos dos encontros interpessoais.

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Quando a pessoa sente que está com a fachada, ela manifesta sen-
timentos de confiança e convicção diante dos outros. Ao contrário,
a fachada errada (ou estar fora da fachada) causa sensações de ver-
gonha e de inferioridade, ameaçando a reputação do participante
da relação que sente sua imagem em perigo. Assim, a falta de um
apoio apreciativo pode constrangê-la, chocá-la e deixá-la ficar com
a fachada da vergonha (shamefaced). O autor utiliza o termo aprumo
para se referir à capacidade de suprimir e esconder a tendência de
ficar com a fachada envergonhada durante encontros.

Mesmo quando a fachada dos músicos não corresponde às expecta-


tivas do público, este contribui para salvar a fachada daqueles, para
não gerar constrangimento no espaço e para que seja cumprida a
ideia de descontração esperada na visita a um bar. Isso é reforçado
pelo próprio ambiente do bar, que provoca relações de cooperação
e onde “os conflitos são controlados sem necessidade de fórmulas
impessoais e de modo quase sempre ‘pacífico e ameno’” (SILVA,
2011, p. 135). Dessa forma, o artista se apruma e controla o seu cons-
trangimento e também a vergonha da vergonha dos outros. Quando
alguém que está na plateia tem coragem de ir cantar junto ao trio, o
público se solidariza e, mesmo que a performance não seja tão boa,
aplaude e incentiva, pois existe a expectativa de que a apresentação
melhore a partir da cooperação entre os sujeitos no momento da
interação músico x público.

No Camarão do Baiano, quase sempre alguém do público se can-


didatou a tocar ou cantar. Em uma dessas situações, uma adoles-
cente que aparentemente estava acompanhada de familiares do

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zabumbeiro cantou várias músicas da banda Mastruz com Leite e
outras músicas do Forró Romântico. Ela possuía uma boa voz, mas
deixava transparecer seu nervosismo, aparentando ser a primeira
vez (ou uma das primeiras) que cantava em público. Quando co-
meçou a cantar, olhava fixamente para o celular em que estava a
letra da canção. Seu nervosismo também se manifestava através
de algumas falhas na voz, na postura estática junto ao trio e por
alguns alvoroços físicos.

Em uma mesa ao lado do trio, era possível ouvir os diálogos entre os


tocadores e a adolescente que estava insegura sobre as músicas que
escolhera para cantar, pedindo constantemente a opinião do trio.
Ao final de quatro canções, com os aplausos do público e apoio do
trio, a cantora já estava mais à vontade, com o corpo menos rígido e
arriscando encarar o público, sem muito recorrer ao celular.

O papel de executante também exige autocontrole dos músicos pro-


fissionais, não apenas dos estreantes: todos almejam convencer o
público com as suas performances. Os erros não devem ser revela-
dos ou, então, que sejam de forma descontraída para que não se sai-
ba que errar fez perder o controle. Ninguém quer enxergar a vergo-
nha do (e no) outro, sobretudo na função artística em que sentimos
vergonha de sentir vergonha (SCHEFF, 2003).

Por ser um espaço intimista propício a relações primárias, viabi-


lizando uma resolução imediata dos conflitos da vergonha, o am-
biente do Camarão do Baiano é considerado acolhedor, tanto para
os músicos quanto para quem deseja estrear no palco. Quando ex-

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perienciada, a música provoca estímulos que são compartilhados
num nível mais ampliado (de relações secundárias), para intera-
ções que podem acontecer para além dos círculos de relações mais
estendidas às mesas próximas, levando a uma abertura dos corpos
para o contato e para a fruição de energias e proporcionando uma
maior sensação de interação entre os músicos e ouvintes. Essa ex-
periência reforça os vínculos de memórias comuns, marcadas pelo
pertencimento a um lugar comum de referência: por isso duas pes-
soas comentavam, no Camarão do Baiano, que, onde estivesse to-
cando um forró, o nordestino se sentiria em casa, lembrando-se da
sua infância e de suas origens.

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103/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


O MARACATU ALAGOANO
E SEUS MAIS DE 110 ANOS DE EXISTÊNCIA
Cadu Ávila1

Nosso objetivo, neste artigo, é pensar o quadro histórico do Maraca-


tu em Alagoas a partir de três importantes momentos apontados por
documentos e textos aos quais tivemos acesso entre 2008 e 2009, oca-
sião em que nos encontrávamos vinculados ao Programa de Pós-gra-
duação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe.

Como um primeiro momento, pensamos a existência do Maracatu


em Alagoas antes do Quebra de 19122 a partir dos jornais e escritos
do período, que nos permitiram levantar a hipótese de uma mani-
festação original dessa modalidade artístico-cultural no estado.

1 Cientista social formado pela Universidade Federal de Alagoas; mestre em Antropologia


pela Universidade Federal de Sergipe e professor universitário. Produtor cultural, músico e
pesquisador.

2 As principais referências aqui contidas sobre o Quebra de 1912 foram obtidas a partir de
pesquisas anteriormente realizadas por Ulisses Neves Rafael e publicadas no livro Xangô
rezado baixo: religião e política na Primeira República (2012).

104/208
O segundo momento encontramos nos estudos de Théo Brandão e
Abelardo Duarte, de meados de 1950 até o fim dos anos 1970 e no
esforço do primeiro em recriar maracatus nos encontros de folclore
estaduais. Théo Brandão (1982), Abelardo Duarte (2010), Félix Lima
Júnior (2001), entre outros, ajudam a compor o cotidiano urbano
desse período, além de permitirem uma reconstituição histórica
dessa modalidade cultural no passado – reconstituição essa que
será objeto do primeiro tópico deste artigo.

Por fim, temos a retomada do Maracatu em Alagoas a partir da ofi-


cina ofertada por Wilson Santos no Centro de Arte de Alagoas (CE-
NART) em 2007, que resultou na criação do primeiro grupo percus-
sivo a executar músicas de maracatu nas ruas de Maceió, o Baque
Alagoano, composto em média por trinta percussionistas e que em
pouco tempo se tornou referência do ritmo no Estado. Por isso,
estamos chamando de “Reinvenção do Maracatu em Alagoas no
Século XXI” esse momento que tem início com a oficina do CENART
e que se estende até a coroação do Maracatu Nação A Corte de Airá,
em novembro de 2011. Nesse meio tempo, surgiram os grupos Ma-
racatu Baque Alagoano; Coletivo AfroCaeté; o próprio Maracatu Na-
ção A Corte de Airá; além do Maracatodos, que se reúne na Praça
da Faculdade, e do Batuque Yá, grupo de ritmistas mulheres, sur-
gido em 2012. Na cidade de Marechal, encontramos dois coletivos
de maracatu, o Maracutaia e o Batuque ao Redor, ligados a alunos
do Instituto Federal de Alagoas (IFAL). A atualidade vai, portanto,
desenhando sua identidade, rememorando a história do maracatu
em Alagoas e criando novas tradições.

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Nesse sentido, é possível encontrar o maracatu em diversos estados
e com diferentes formações, ritmos e danças. A dança, no maraca-
tu nação, representada pela calunga – boneca de caráter religioso
que compõe o corpo de dançantes –, é parte integrante do cortejo
real que desfila para mostrar à cidade e ao carnaval a sua beleza.
No ritmo feito pelos batuqueiros e/ou maracatuzeiros, utilizam-se
agogôs, gonguês, xequerês (ou abês), alfaias e caixas, contagiando
todos em longos e animados cortejos carnavalescos.

O QUEBRA DE 1912 E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Fato decisivo na história dos maracatus alagoanos foi o episódio co-


nhecido no estado como “Quebra de 1912”, diretamente relacionado
ao fim dessa manifestação nas primeiras décadas do século passado.
A relação das casas de cultos afro-brasileiros vítimas do ataque ocorri-
do em Maceió e em cidades adjacentes naquele ano com os maracatus
nos permite explicar o desaparecimento destes do contexto local após
a brutalidade e a violência cometidas contra os terreiros. As últimas
notícias sobre a presença dos maracatus em Alagoas remontam ao
carnaval de 1911, os quais, no ano seguinte, parecem ter sumido ou
impedidos de sair às ruas de Maceió para comemorar a festa de Momo.

Segundo a crônica local, entre os anos de 1902 e 1911, a presença


dos maracatus era marcante no carnaval da cidade, estando eles à
frente da festa profana como exemplos de alegria e prazer. Suas lide-
ranças tinham uma presença notável na vida social local, inclusive
com atuação destacada na esfera política. A maioria desses grupos

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estava associada às casas de culto de presença africana no estado,
razão pela qual desapareceram do calendário de manifestações pú-
blicas locais após a perseguição aos Xangôs em 1912.

O Quebra de 1912 consistiu em perseguição aos terreiros de matriz


africana, talvez a mais violenta de que se tem notícia na história des-
sa modalidade religiosa em nosso país. Foi provocada por questões
políticas locais e pela disputa pelo poder do estado, que se rever-
teu no ataque contra tais cultos, cujas práticas foram demonizadas
através dos jornais de oposição ao governador Euclides Malta – no
poder por mais de uma década e sobre quem pairava a suspeita de
frequentar essas casas religiosas.

Personagens importantes compuseram a trama social desse momen-


to histórico, como, por exemplo, a “Liga dos Republicanos Combaten-
tes em Homenagem a Miguel Omena”3, associação central na promo-
ção da violência contra as casas de Xangô, bem como a “Sociedade
Perseverança e Auxílio dos Empregados no Comércio”, agremiação
dos caixeiros viajantes de Maceió, para onde seriam destinadas as
peças oriundas da invasão às casas de culto e onde permaneceriam
expostas por muito tempo depois do ocorrido. Além, é claro, da pre-
sença dos grupos negros e de maracatus, que, até o carnaval de 1911,
marcavam as festas públicas com animados cortejos. São protagonis-
tas desse episódio também os pais e as mães de santo como João Ca-
tarina, Chico Foguinho, Mestra Bico Doce, Tia Marcelina, entre outros.

3 O nome é uma homenagem a um jornalista alagoano, talvez um dos primeiros a ter en-
frentado a iminente oligarquia maltina. Em razão de conflitos com a polícia, o jornalista
fugiu de Alagoas e foi assassinado no Paraná, provavelmente, por seus inimigos políticos.

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A Liga, formada por ex-militares e de caráter proletário, fundada em
fins de 1911, chegou a publicar um periódico chamado “O Comba-
tente”, no qual divulgava ideias e posição política contrárias ao Go-
verno de Euclides Malta. O jornal da Liga era conhecido por difamar
as pessoas; desse modo, constantemente se repetiam os problemas
de ordem pessoal na sede do impresso por parte daqueles que bus-
cavam tirar satisfação sobre as palavras publicadas no dia anterior.
Sua fama na cidade estava associada à violência, pelo modo agres-
sivo com que seus integrantes expressavam suas opiniões políticas,
motivo pelo qual as denominações que recaíam sobre o grupo eram
“famigerado”, “bárbaro”, “criminoso”, entre outras.

Dois exemplos demonstram a forma de agir da Liga: o ataque ao Mer-


cado Municipal, no dia 24 de dezembro de 1911, em pleno Natal, oca-
sião em que o estabelecimento foi obrigado a fechar as portas sob
a pressão das armas e da força política que a Liga representava; e o
assalto à casa do coronel Paes Pinto, ocorrido em 22 de dezembro de
1913. A casa do correligionário do Partido Republicano de Alagoas –
presidido durante muito tempo por Euclides Malta – foi totalmente
cercada e alvejada de balas até que estivessem descarregadas todas
as armas dos “combatentes”. Assim agiam os combatentes em Maceió.

Essa foi a organização que dirigiu o ataque aos terreiros junto com
populares e oposicionistas de Euclides Malta durante seu afasta-
mento do poder no final de janeiro de 1912. Embora não tenha sido
sua única ação, foi, sem dúvida, a mais significativa após a sua fun-
dação, motivo pelo qual seus integrantes galgaram posições decisi-

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vas nas gestões posteriores à de Euclides Malta, sobretudo durante
o governo de Fernandes Lima, de quem se dizia que a Liga era o “bra-
ço armado”. Quando não existiam mais inimigos a serem atacados
– políticos de oposição ao governo de Fernandes Lima ou casas de
Xangô a serem invadidas –, a Liga foi se tornando uma organização
social com outras funções, como a realização de festas e carnavais;
preparou, inclusive, uma chegança com temas de guerra, conflitos e
fardas militares, como é comum a esse tipo de folguedo.

A truculência sempre esteve presente nas ações da Liga. Sua vio-


lência e brutalidade contra os terreiros foi demasiadamente assus-
tadora; chegou a níveis absurdos, tais como a mutilação de pessoas
pelo simples fato de associarem a dominação política do governo
dos Malta às práticas religiosas dos cultos de Xangô. Os detalhes
da crueldade com que trataram os babalorixás de Maceió marcam
uma cena não louvável da história política e cultural local. Depois
das atrocidades realizadas e da propalada vitória contra os terrei-
ros, a Liga ofertou à Sociedade Perseverança as peças roubadas
que não queimaram nas inúmeras fogueiras realizadas pela agre-
miação. As peças foram aceitas e ali permaneceram por mais de
trinta anos, até caírem no esquecimento e serem, posteriormente,
recuperadas e transferidas para o Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas (IHGAL), onde estão até os dias atuais. Abelardo Duarte
e Théo Brandão, sócios efetivos da entidade, foram os responsá-
veis pela recuperação das peças, evitando a venda destas para es-
trangeiros interessados na história local.

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Quanto à participação da Sociedade Perseverança no episódio, não
se tem uma explicação mais detalhada para o fato de ela ter rece-
bido os objetos de culto dos Xangôs. Supomos que isso aconteceu
por se tratar do único museu da cidade em funcionamento no perío-
do ou, então, pela posição ideológica representada pela Sociedade,
afinada com o discurso higienista em voga na época. Sem dúvida,
ao receber os objetos da perseguição, a Perseverança entra para a
história como elemento do Quebra de Xangô na cidade de Maceió.

Os objetos foram motivo de mobilização na cidade no fim do ano de


1912, momento em que parte significativa da população local apre-
ciou o fim da prática do Xangô em Maceió através da visita à exposi-
ção dos despojos antes pertencentes às casas invadidas. Não é pos-
sível identificar uma ação direta da Perseverança no dia do Quebra,
mas é provável que alguns dos seus membros tenham se envolvido
com o episódio, embora tudo não passe de conjecturas. Os dados
disponíveis dizem respeito apenas à organização da exposição dos
objetos referentes ao Quebra, o que por si só já representa uma car-
ga ideológica perante o acontecido, mesmo que apenas de concor-
dância, mas, ainda sim, legitimadora do fato bárbaro.

Uma das causas motivadoras do Quebra-Quebra foi a suspeita de


que o então governador Euclides Malta mantinha ligações com as
casas de Xangô e de que seu sucesso na vida política, segundo a opi-
nião de seus opositores, devia-se a esse fato. Tal conjectura serviu de
combustível para o ataque contra os babalorixás. Entre dezembro de
1911 e março de 1912, período em que o governador ficou afastado

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do poder devido à pressão da oposição, os lugares sagrados foram
invadidos, pois pensava-se que, com a destruição desses espaços
de culto, a fonte de poder do governador se esgotaria. É provável,
também, que eles tenham sido quebrados por não contar mais com
o apoio de Euclides, que, no período, encontrava-se fora do estado.

Durante o Quebra, diversos pais de santo foram atacados pela Liga,


entre eles, Manoel Loló, João Catarina4, Maria da Cruz, Chico Fogui-
nho, Manoel Inglês, Manoel Guleijú e Benedito Brás Carneiro. Uma
figura se destacou historicamente e mantém-se como símbolo do
acontecimento até os dias atuais. Trata-se de Tia Marcelina5, uma
das principais vítimas da violência praticada contra os Xangôs ala-
goanos, que assumiu, assim, o papel de principal personagem do
acontecimento. Mãe de santo de procedência africana e principal re-
presentante do Xangô alagoano, teria atraído contra si a ação mais
bárbara desencadeada pelos integrantes da Liga. Possivelmente,
Tia Marcelina era a mãe de santo do governador licenciado.

4 Os jornais da época falam em “Catarina”, e Abelardo Duarte cita “Catirina” em seu texto
Folclore Negro das Alagoas (1974); é provável que sejam a mesma pessoa. João “Cata-
rina” foi um importante líder religioso de Maceió na época do Quebra de 1912, tinha um
terreiro com sede no bairro da Levada.

5 Tia Marcelina se tornou um mito e é referenciada como heroína do acontecimento do


Quebra. No momento da celebração do fato, que completou seus 100 anos em 2012, ela
foi reverenciada como mártir da perseguição aos terreiros. Os movimentos negros, grupos
culturais e demais artistas a legitimam como símbolo de luta contra o Quebra de 1912. Há,
inclusive, composições musicais com sua história, como a da banda Vibrações, que home-
nageou tia Marcelina com uma canção feita para o evento.

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Nos jornais como A tribuna e o Jornal de Alagoas, desenvolviam-
-se os ataques recíprocos entre os representantes dos dois partidos
em contenda na arena política da Primeira República. De um lado,
os correligionários de Euclides Malta, do outro, os oposicionistas
liderados por Fernandes Lima. A perseguição, como já dito, afetou
também os maracatus, modalidade da cultura popular formada por
negros pobres da cidade, cuja presença nos carnavais maceioenses
já vinha sendo objeto de ataques e de censuras nos jornais. Os tex-
tos jornalísticos utilizavam inúmeros epítetos depreciativos, alguns
com o propósito de reduzir a importância e o significado dos mara-
catus no contexto das festas públicas da capital.

OS MARACATUS ANTIGOS E AS CASAS DE XANGÔ


Tudo leva a crer, como vimos, que em algumas casas de Xangô se
praticava a brincadeira conhecida como maracatu, que se apresen-
tava durante o carnaval da cidade nos primeiros anos do século XX. É
provável que os próprios praticantes da vida religiosa afro-alagoana
compusessem parte desses grupos. Existiam diversos agrupamen-
tos na cidade para a brincadeira do carnaval, período em que os clu-
bes populares, como o Clube dos Morcegos, organizado por futuros
membros da Liga, com eles rivalizavam. Podemos ainda destacar
outras agremiações, como Caboclinhos, Vassourinhas, Altos de Na-
tal, Cabindas (maracatus mais antigos), Africanas e Bahianas.

Nos anos de 1903 e 1904, foram localizados inúmeros pedidos de


“autorização” para o funcionamento de folguedos populares, tais
como: congo, fandango, reisado, presépio, marujada e maracatu,

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sendo este último o mais próximo dos cultos de Xangô, tanto pelo
ritmo, como pela presença dos organizadores, muito ligados aos ter-
reiros. Um dos maracatus mais conhecidos era o do famoso Manoel
Inglês, “negro de boa fama”, detentor de grandes qualidades culiná-
rias, destacado cozinheiro. Manoel Inglês era o mestre do grupo que
desfilava pelos carnavais da cidade, desafiando as ordens do temido
capitão Braz Caroatá, subcomissário do Alto do Jacutinga6, em cujas
imediações supostamente se localizava o terreiro de Manoel Inglês,
onde também era babalaô. Sua ousadia vinha da relação que man-
tinha com o Governador – notória, aberta e recheada de prestígio.
Possivelmente, o seu grupo, reconhecido na cidade pela ousadia de
seu mestre, foi alvo dos fortes ataques da Liga. A liderança de Manoel
Inglês incomodava devido a seu forte trânsito nos bastidores da polí-
tica alagoana, uma pessoa articulada e de inserção na política local,
aspecto comprovado pela sua mudança para o Rio de Janeiro, em
1904, quando Euclides assumiu o posto de Senador Federal.

Por ocasião do Quebra, houve um desfile pela cidade com uma série
de objetos e imagens, muitos deles usados nos rituais religiosos, como
alfaias, adjás (chocalhos), agogôs e pandeiros, expostos na sede da
própria Liga, situada na rua do Sopapo. Os instrumentos presentes
nessa exposição representavam a vitória por parte da Liga em detri-
mento dos grupos de matriz africana que os utilizavam como elemen-
tos das cerimônias sagradas ou nas festas de rua. Os maracatus na
cidade tinham vida especificamente dentro do carnaval, coincidente-

6 Área de expansão da cidade de Maceió cujo acesso se dá pela ladeira da catedral. Na épo-
ca, era habitada por moradias de diversas camadas sociais. Hoje, é a área que vai entre a
ladeira da catedral e o Colégio Marista.

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mente, mesmo período em que se desencadeia a perseguição, cuja fi-
nalidade, provavelmente, entre tantas outras, era a de atacar, destruir
e silenciar os tambores, pondo, assim, fim a tais celebrações.

Em suma, diversos são os relatos da presença de maracatus nas ruas


de Maceió, muitos dos quais irônicos, pejorativos e demonstrando
ojeriza quanto ao modo de cantar e de tocar a “brincadeira”. Segundo
Rafael (2012), depois da devassa aos terreiros, já não se podia mais
ouvir os atabaques, silenciados como consequência da violência que
se abateu sobre as religiões de procedência africana. Essa afirmação é
que move o objeto de nossa pesquisa, pois revela que, após tal acon-
tecimento, os grupos percussivos e rituais que ocorriam com a pre-
sença do atabaque sumiram da cidade, fazendo-nos supor que isso se
deveu em razão da fuga dos seus mestres para outros estados. Os que
ficaram na capital desenvolveram uma modalidade de culto conheci-
da como “Xangô Rezado Baixo”, por não mais utilizar os tambores em
seus espaços sagrados: “depois disso nunca mais se teve notícia da
presença de maracatus nos carnavais de Maceió; seus mestres, con-
fundidos não sem razão, com os babalorixás dos terreiros persegui-
dos, já não se encontravam mais na cidade” (RAFAEL, 2012, p. 42-43).

Depois desse fatídico episódio, portanto, não tivemos mais notícias


a respeito da presença dos maracatus nos carnavais de Maceió. O
tema levanta considerações importantes acerca da cultura local:
é possível localizar trabalhos sobre o Quebra, porém, nenhum de-
les estabeleceu vinculações entre a perseguição dos terreiros e o
desaparecimento dos maracatus da paisagem cultural alagoana.

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Nesse sentido, escrever sobre o tema é trabalhar de maneira de-
cisiva para o debate e a ressignificação dos grupos de maracatu e
para a compreensão das relações que levaram ao desfecho de de-
saparecimento dessas expressões da identidade negra no Estado
há mais de 100 anos.

Quanto a esse silenciamento, é preciso considerar que,


historicamente, trata-se de uma modalidade cultural e socialmen-
te sempre significada como “menos recomendável”, motivo pelo
qual seu esquecimento não seria notado; há de se considerar, ain-
da, que o episódio que resultou nesse apagamento envolve pessoas
e referências cuja memória seria delicado recuperar. É inconteste,
entretanto, a decisiva relação entre a perseguição sofrida pelos
terreiros e o desaparecimento da brincadeira profana de origem
negra dos carnavais da pequena cidade de Maceió. Fatalmente, a
ofensiva contra as casas de Xangô influenciou o arrefecimento des-
sas expressões carnavalescas.

Nosso posicionamento é reforçado pela informação de que grupos


de maracatu e de coco localizados no município de Brejo Grande
(Sergipe) e em Olinda (Pernambuco), como a Nação Xambá, são de
origem alagoana e poderiam ser pensados como exemplos desse
êxodo cultural (ou, por assim dizer, diáspora) provocado pela vio-
lência de 1912 em Maceió. Portanto, correlacionar esses dois fatos
do início do século XX – o desaparecimento do maracatu em Alagoas
e o Quebra de Xangô de 1912 – é importantíssimo para a compreen-
são do desenvolvimento do maracatu alagoano na atualidade.

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O MARACATU NO CARNAVAL ALAGOANO
Entre os séculos XIX e XX, os maracatus iam às ruas e faziam parte
da festa momesca, representando, em forma de brincadeira carna-
valesca, parcela da sociedade que tinha como modo de vida a cons-
trução afro-alagoana. O maior desafio de desenvolver estudo sobre
o período decorre, principalmente, da escassez de informações e de
bibliografia sobre esses grupos.

Para tanto, lançamos mão de leituras de obras de ficção, tais como


romances, crônicas e diários, quando localizados. Trata-se de um tipo
de fonte cuja leitura de época é feita, muitas vezes, em primeira mão,
uma vez que o autor é alguém que esteve em contato direto com a
realidade narrada. Esse material nos permite ter acesso a aspectos
essenciais da mentalidade e dos modos de vida vigente. Aliada a essa
perspectiva investigativa, também utilizamos como fonte de pesquisa
os jornais da época, a partir dos quais buscamos reconstituir o coti-
diano da cidade e as expressões culturais populares ali localizadas.

O Jornal de Alagoas se constituiu uma das principais fontes con-


sultadas, por se tratar de um periódico diário de maior tempo em
circulação no estado na primeira década do século XX. Trata-se do
principal jornal de oposição na Era dos Maltas, período que marcou
a longa administração do último oligarca de Alagoas que governou
o Estado entre os anos de 1900 e 1912, quando foi impiedosamente
destituído do poder. O Jornal de Alagoas assumiu a tarefa de apontar
os desmandos administrativos do governador, responsabilizando-
-o pela condição calamitosa enfrentada pela população alagoana.
É nesse periódico em que se iniciam as acusações contra Euclides

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Malta por sua suposta relação com algumas casas de culto afro-ala-
goanas, em especial com a casa de Xangô da babalorixá Tia Marce-
lina, que se tornou símbolo de resistência do ataque àquelas casas.
Foi a partir dessa vinculação que Euclides teria sido denominado
pela imprensa oposicionista de “papa do Xangô alagoano” e, de for-
ma mais pejorativa, de Leba das Alagoas7, estereótipo que também
alcançava seus correligionários.

Foram nas páginas do Jornal de Alagoas que localizamos o material


mais detalhado sobre a perseguição às casas de culto afro-alagoanas.
As edições de fevereiro de 1912 publicaram uma série de matérias in-
titulada “Bruxaria”, além dos editoriais “Prato do Dia”, que comple-
mentam as informações acerca das devassas aos terreiros, trazendo
ainda magistrais registros do carnaval do período, comprovando o
desaparecimento dos negros e de seus grupos culturais da festa.

Outro periódico fartamente utilizado foi o jornal Gutemberg, fundado


em 1881. Seu editor, Eusébio de Andrade, era braço direito de Euclides
Malta em 1912, um dos poucos correligionários do governador que o
acompanhou em sua fuga do estado alagoano para o Rio de Janeiro.
Convém destacar o fato de que a tipografia do jornal era a mesma utili-
zada para a impressão dos relatórios provinciais do governo do estado,
o que aponta para a existência de uma relação de cooperação ou de ven-
da de serviços para o poder local, até a criação do Diário Oficial em 1911.

7 Leba, termo utilizado para atacar o governador Euclides Malta e seus correligionários, faz
referência a uma das principais entidades do Xangô alagoano, que corresponderia à figura
de Exu. O significado e a representação dessa figura no contexto político alagoano da épo-
ca em tela ainda será objeto de discussão adiante.

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O GOVERNADOR E SUA LIGAÇÃO
COM OS TERREIROS E MARACATUS

Segundo ilustram as matérias dos jornais do período, a gestão de Eu-


clides Malta (1900-1912) foi marcada pelos desmandos políticos e eco-
nômicos praticados de forma escancarada, com a confiança de quem
tinha convicção na impunidade. Contudo, são as acusações de ligação
com as casas de Xangô que concorrem de forma mais efetiva para de-
movê-lo do poder. A suposta vinculação do governante com os terrei-
ros de Maceió recai sobre sua reputação de forma fulminante, obrigan-
do-o a escapar pelos fundos do Palácio dos Martírios, sede oficial do
poder executivo no estado. As modalidades religiosas e suas variações
não sagradas foram severamente punidas durante a ausência do go-
vernante. Isso trouxe consequências desastrosas para essas expres-
sões culturais, entre as quais seu arrefecimento e silenciamento.

A repressão sofrida após a destituição do governador será tomada como


símbolo do fim da Era dos Maltas e, também, da interrupção e do silen-
ciamento de uma série de práticas culturais negras e populares. É pos-
sível dizer que o esforço e a disputa por visibilidade na arena pública,
por parte dessas expressões, foram notados de modo mais acentuado
no fatídico carnaval de 1912. Nesse ano, as brincadeiras e os folguedos
populares foram divididos entre legítimos e ilegítimos a partir de crité-
rios políticos ou do posicionamento partidário de seus integrantes – se
contra ou a favor do Leba das Alagoas, respectivamente.

Esse período e os conflitos ali vivenciados, tanto no plano religioso


quanto no político, de certo modo, podem representar a passagem

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entre dois momentos históricos da vida social alagoana e, em par-
ticular, maceioense, quais sejam: o abandono de práticas tradicio-
nais, como os Xangôs e os maracatus, considerados atrasados; e o
advento de uma “nova sociedade”, anunciada pelos arautos do pro-
jeto republicano, que preconizavam a igualdade política, o discurso
científico e a modernização das práticas sociais. Os periódicos pes-
quisados escreveram sobre o fim dos “sacudidos e felizes negros” e
suas expressões profanas na capital alagoana8.

Essas informações comprovam a existência do maracatu em Alagoas


há mais de 100 anos e demonstram um perpétuo caminho entre a
agitação da atualidade e uma linha de tempo e tradição fortemente
justificadas pela história dos grupos mais antigos. Dessa maneira, o
objetivo deste artigo é demostrar ao leitor essa existência, para iniciar
e suscitar o debate em torno da tradição do Maracatu em Alagoas e de
sua importância para a construção da identidade cultural local.

Menções ao maracatu só tornaram a aparecer nos jornais em 1940,


e logo voltaram a se desorganizar. Théo Brandão fez referência ao
caso no texto Folguedos Natalinos: O Maracatu (1973), alegando
que a perseguição aos terreiros africanos pode ter levado ao desa-
parecimento do maracatu nos anos seguintes ao Quebra-Quebra.
Portanto, a falta de registro ou de memória dessa “performance”
negra – já que envolve ritmo, dança, crença e música – se deve ao
silêncio imposto às manifestações populares de um modo geral.

8 A expressão “sacudidos” foi obtida a partir de uma edição do Jornal de Alagoas publicada
em 1912 e é uma demonstração do modo como os grupos carnavalescos populares alago-
anos apareciam na crônica local.

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Entre 1886 e os dias atuais, passaram-se mais de 133 anos de festas,
carnavais e brincadeiras de rua. Mascarados, clubes, troças, passis-
tas, mela-mela e a festa popular foram às ruas, porém, ficamos em
um vácuo de tempo e de cultura por 100 anos, momento em que se
esqueceu de colocar e vestir o maracatu. Nossa cultura se torna mais
pobre e com menos força após tamanha violência e silenciamento;
os maracatus somem da cidade junto com Tia Marcelina, Chico Fo-
guinho, Manoel Inglês e Mestra Bico Doce. Perdemos a festa popular
para substituir pelo carnaval branco da praça Deodoro, que exalta o
símbolo da república e deixa o povo carente de diversidade cultural.
Sendo assim, a política consegue destruir nossa raiz cultural negra,
especificamente ligada ao maracatu e aos terreiros.

Portanto, evidenciar essa existência centenária dos maracatus é


uma maneira de construir um caminho de uma nova identidade,
fortalecida no elo entre o passado e o presente, em que se resgata o
sentimento de pertencimento perdido entre o tempo e o espaço. É
nutrir, assim, o povo de cultura, de identidade e de festa: retradicio-
nalizar as ruas e as festas em Alagoas.

Evoé!

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Théo. Folguedos natalinos. Coleção folclórica da UFAL.
Maceió: Museu Théo Brandão, Conselho Federal de Cultura, 1973.
BRANDÃO, Théo. Folclore de Alagoas II. Maceió: Museu Théo
Brandão, Edufal, 1982.

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DUARTE, Abelardo. Folclore negro das Alagoas (áreas da cana-de-
-açúcar): pesquisa e interpretação. Maceió: EDUFAL, 2010.
LIMA, Carlos Eduardo Ávila Casado de. A reinvenção do maracatu
em Alagoas no século XXI. Trabalho de conclusão de curso – UFAL.
Maceió, 2011
LIMA JÚNIOR, Félix. Maceió de outrora: Obra póstuma. Maceió: Edu-
fal, 2001.
RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô rezado baixo: religião e política na
Primeira República. São Cristóvão: EDUFS; Maceió: EDUFAL, 2012.

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ENTRE OS BECOS E OS BOULEVARDS:
TENSÕES SOCIAIS E INTELECTUAIS NA DEFINIÇÃO
DA REPRESENTAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Ulisses Neves Rafael1
Victor Marcell Gomes Barbosa2

Este artigo é um desdobramento do trabalho apresentado para con-


clusão do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Ser-
gipe, realizado sob a orientação do Prof. Dr. Ulisses Neves Rafael. Na
ocasião, tínhamos por objetivo apresentar o fenômeno conhecido
como “boemia”: sua gênese na França e sua repercussão no Brasil
na passagem entre o final do Século XIX e começo do Século XX. Tal
fenômeno, para nossos estudos, constitui-se em importante ferra-
menta para acompanhar os conflitos e as tensões entre diferentes
grupos que coabitavam a cidade do Rio de Janeiro na Primeira Re-
pública, no século XIX. O recorte temporal se justificou por se tratar
de período crucial de nossa formação histórica como nação, no qual
o Estado, amparado em instituições consagradas como a medicina e
a antropologia criminal, por exemplo, instituiu uma política de iden-
tificação de certa camada da população sobre a qual recaíram mais
drasticamente as políticas de repressão (cf. CUNHA, 2002).

1 Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação


em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe. Doutor em Sociologia e Antropologia
pela Universidade Federal do Rio de janeiro, e-mail: ulisses38@hotmail.com.

2 Bacharel em Ciências Sociais e Mestrando em Antropologia pelo Programa de Pós-gradu-


ação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe.

122/208
Embora essa reflexão não seja objeto de observação empírica no
sentido lato, debruçamo-nos sobre exaustiva produção bibliográ-
fica de cunho histórico-antropológico, em torno da qual construi-
remos nossa análise das tensões sociais relativas ao segmento da
população formado por homens pobres e pretos e dos processos de
disciplinarização e controle exercidos pelo Estado à época. Quan-
to às tensões intelectuais envolvendo outro segmento denominado
de “boêmio”, utilizaremos o próprio registro de cronistas e literatos
brasileiros que assim se autodenominaram.

Iniciaremos nossa exposição com o resgate dos principais processos


de transformações urbanísticas na capital carioca de mais de um sé-
culo atrás e analisaremos de que maneira as reformas ali realizadas
concorreram para o incremento das tensões postas entre os diver-
sos grupos sociais por elas atingidos. Portanto, comecemos pelos
resultados alcançados pela construção de um Rio de Janeiro supos-
tamente moderno e civilizado.

A FABRICAÇÃO DO RIO DE JANEIRO CIVILIZADO


Todas as mudanças urbanas e sociais pelas quais a capital carioca
passou no início do século XIX estavam ligadas à materialização de
um ideal: modernizar o Brasil e atingir a “civilização”. Para uma elite
brasileira dos 1900, ligada à vida intelectual ou às políticas estatais,
era urgente seguir a França em sua “civilidade”. Para Pereira Passos
(1836-1915), um dos brasileiros responsáveis pela Belle Époque cario-
ca, assim como para seus colegas engenheiros, não havia como disso-
ciar planejamento urbano do exemplo francês dado por Haussmann
na gestão de Luís Napoleão.

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Filho do Barão de Mangaratiba, o engenheiro Pereira Passos se for-
mou na Escola Militar, inspirada em uma das grandes Écoles da Fran-
ça. Depois, graças a contatos familiares, foi nomeado attaché no con-
sulado de Paris, para onde seguiu em 1857, a fim de estudar na École
des Pontes et Chaussées. Lá, acompanhou de perto as transformações
urbanas causadas pela rede viária que se construía entre 1853 e 1858.

As reformas, autorizadas por Luís Napoleão e executadas por Haus-


smann, tinham como objetivo construir uma Paris moderna em
três programas integrados de demolição e construção, entre 1853
e 1870. Primeiramente, as antigas ruas estreitas, congestionadas e
mal articuladas, seriam adaptadas ou substituídas por sistemas de
circulação precisos e bem orquestrados. Em segundo lugar, as novas
vias desmembrariam os bairros tradicionais da classe operária, su-
perpovoados e insalubres, eliminando potenciais centros de revolta
e abrindo a cidade ao ar e à luz que, aliados ao novo sistema de
esgoto, combateriam as recentes epidemias de cólera. Em seguida,
Haussmann embelezou a cidade: grandes perspectivas, focalizadas
em grandes monumentos e edifícios, flanqueadas por fachadas que
compartilhavam padrões comuns de aparência, caracterizadas pelo
estilo Beaux-Arts. Por fim, adaptou o modelo de parque londrino
que recriava a natureza, com séries de grutas, regatos, caminhos si-
nuosos e cascatas. A Paris do Segundo Império era ao mesmo tempo
simbólica e prática: guiava o indivíduo pela glória dos monumentos
ao mesmo tempo em que articulava os bairros da metrópole indus-
trializada. Essa era a inspiração de Pereira Passos e dos engenheiros
brasileiros para a Belle Époque carioca (NEEDELL, 1993).

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Retornando ao Brasil em 1860, Passos ainda voltaria à Europa diver-
sas vezes nos anos seguintes para realizar estudos na Inglaterra e na
França. Nada disso garantiu que seus projetos de reformas urbanas
se concretizassem, embora o engenheiro tenha sido convidado, na
década de 1870, a traçar um plano abrangente de reformas na capi-
tal – reformas que nunca foram implementadas devido a crises po-
líticas e sociais que permaneceram frequentes desde o fim do Impé-
rio até a primeira década do século XX. Somente com Campos Sales
(1898-1902) no poder, políticas migratórias e urbanas puderam ser
colocadas em prática. Nessa época, Pereira Passos já tinha por volta
de setenta anos (SEVCENKO, 2003).

Além de empréstimos e de investimentos, incentivou-se a imigração


que, para a elite paulista, traria o desenvolvimento aos moldes eu-
ropeus. A capital, cartão postal da República, ganhava máxima im-
portância. Reformar o Rio de Janeiro se tornara urgente: era preciso
combater epidemias e melhorar a economia. Para tanto, voltaram-
-se os olhos à reforma do porto para atrair a imigração, o capital e o
comércio europeus (CHALHOUB, 1996; NEEDELL, 1993; SEVCENKO,
2003). Essa era a bandeira de Rodrigues Alves (1902-1906), sucessor
de Campos Sales e quinto presidente civil do Brasil. Como um de
seus primeiros atos, estava a nomeação de Pereira Passos para pre-
feito, com o qual grande parte do estreito, abafado e confuso mundo
proletário da Cidade Velha veio abaixo.

O setor norte do cais foi aterrado, melhorado tecnologicamente e


costeado por uma grande avenida que comunicava os bairros ope-

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rários e industriais da Zona Norte. A nova Avenida Central permitia
o trânsito entre o porto e o Centro da cidade, e dava acesso a uma
outra avenida, facilitando a chegada à Zona Sul. Ligadas à avenida,
estavam ainda quatro vias que articulavam áreas especificas da Ci-
dade Velha com outras da Zona Norte sem que se precisasse passar
pelas ruas principais ou pelo Centro. Pereira Passos também pavi-
mentou ruas, construiu calçadas e asfaltou estradas, abriu o túnel
do Leme, iniciou a avenida Atlântica, criou a avenida ligando Fla-
mengo e Botafogo, demoliu o mercado municipal e ergueu outro –
mais próximo às instalações portuárias e ao movimento da Cidade
Velha – e embelezou alguns quantos locais. Em meio a tudo isso,
atacou algumas tradições cariocas: proibiu a venda ambulante de
alimentos, o ato de cuspir no chão dos bondes, o comércio de leite
com vacas de porta em porta, a criação de porcos em limites urba-
nos, a exposição de carne em portas de açougues, a perambulação
de cães vadios, o descuido com a pintura das fachadas, a realização
do entrudo e dos cordões sem autorização no Carnaval e toda sorte
de costumes considerados incultos. Um movimento de mudanças
que, portanto, mais que meramente urbanas, eram também simbó-
licas (NEEDELL, 1993; SEVCENKO, 2003).

Para atingir a civilização, Rodrigues Alves e seus auxiliares concluí-


ram que o mapa da cidade e seu sistema de saneamento precisavam
não só de uma reforma, mas também de mudanças de costumes e
hábitos. O plano de ação poderia ser traduzido em quatro princí-
pios, inspirados em Haussmann:

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[...] condenação dos hábitos e costumes ligados pela
memória à sociedade tradicional [...] negação de todo e
qualquer elemento da cultura popular que pudesse ma-
cular a imagem civilizada da sociedade dominante [...]
política rigorosa de expulsão dos grupos populares da
área central da cidade, que será praticamente isolada
para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas [...]
e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identi-
ficado com a vida parisiense. (SEVCENKO, 2003, p. 42-43)

Graças ao cenário parisiense apresentado na Avenida Central, com suas


fachadas à Beaux-Arts, e ao consumo de artigos importados em voga,
aos consumidores perdulários, aos flaneurs elegantes e aos prédios
monumentais destinados a celebrar a alta cultura eurófila, a Avenida
Central tornou palpável a fantasia de Civilização. O Rio de Janeiro deixa-
ria para trás aquilo que muitos na elite carioca viam como um passado
colonial atravessado, convertendo-se em uma cidade que condenava
os aspectos raciais e culturais da realidade carioca daquele tempo. Nas
palavras de Olavo Bilac, a transformação se traduzia da seguinte forma:

Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso,


iniciaram os trabalhos de construção da Avenida Central,
pondo abaixo as primeiras casas condenadas [...] come-
çamos a caminhar para a reabilitação. [...] No aluir das pa-
redes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia um
longo gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Pas-
sado, do Atraso, do Opróbio. A cidade colonial, imunda,
retrógrada, emperrada em suas velhas tradições, estava
soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que
desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse
protesto impotente. [...] Com que alegria cantavam elas - as
picaretas regeneradoras! E como as almas das que ali esta-
vam compreendiam bem o que elas diziam, no seu clamor
incessante e crítico, celebrando a vitória da higiene, do bom
gosto e da arte! (BILAC, 1914, apud NEEDELL, 1993, p. 70)

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Não era uma simples condenação de ruas estreitas e imundas, mas
também de fachadas sem pintura, do novo modo de vida ligado à
vida agrária da colônia e dos aspectos “bárbaros” do Carnaval com
seus entrudos e cordões. Uma condenação de tudo que represen-
tasse uma parte da cultura afro-brasileira da qual a elite afinada
com padrões europeus se envergonhava, ainda que essa África fosse
“bem familiar à elite”, já que a “maior parte desta havia sido pro-
vavelmente acalentada por negras e vivia rodeada por empregados
negros, tendo testemunhado de perto a escravidão, abolida apenas
em 1888” (NEEDELL, 1993).

OS IMPACTOS DA “REGENERAÇÃO”

Obviamente, o atrito social gerado pela “Regeneração” se fez sentir


fortemente nos estratos sociais menos favorecidos. Para entender o
discurso utilizado pelos “regeneradores” como justificativa da cam-
panha civilizatória direcionada às camadas mais pobres – dos locais
onde moravam, de suas danças e festas, até mesmo à própria defini-
ção do que era, afinal, “sua natureza” –, é preciso entender o uso que
fizeram da categoria “classes perigosas”. Adotada ao final do século
XIX, essa categoria foi uma fabricação importada, tal como tantas ou-
tras que abordaremos ao longo deste trabalho. Fundamentada teo-
ricamente a partir do termo francês “classes dangereuses”, foi trazi-
da pelos deputados do Império do Brasil, preocupados com a ordem
pública e com a repressão à ociosidade logo após a abolição da es-
cravidão. A principal referência era M. A. Frégier, alto funcionário da
política de Paris e escritor de um influente livro publicado em 1840,

128/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


em que analisa as populações das grandes cidades através de inqué-
ritos e estatísticas policiais. O autor classifica, categoriza e organiza as
informações, acabando por detalhar muito mais as condições de vida
dos pobres parisienses que por determinar as fronteiras que separam
as “classes pobres” das “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996). A par-
tir de uma simplificação de seu estudo foi que se guiaram ideológica
e filosoficamente os legisladores brasileiros do período pós-abolição,
por uma linha de pensamento que se pode resumir em:

As classes pobres e viciosas [...] sempre foram e hão de


ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes
de malfeitores: são elas que se designam mais propria-
mente sob o título de – classes perigosas –; pois quan-
do mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o
fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui
um motivo justo de terror para a sociedade. O perigo
social cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à
medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício
e, o que é pior, pela ociosidade. (ANAIS DA CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1888 apud CHALHOUB, 1996, p. 21)

Além de carregarem consigo a má fama de criminosos e vagabun-


dos, os pobres ainda eram culpados pela manutenção de ambien-
tes que ofereciam perigo de contágio de várias doenças e vícios.
Nesse sentido, diversas leis foram aprovadas para regulamentar a
estrutura das casas. Os cortiços eram considerados “focos de ví-
cios”, porque facilitariam a transgressão “da moralidade e dos bons
costumes” e se converteriam em “asilos permanentes de infecções
deletérias da saúde pública” (CHALHOUB, 1996). O uso ideológico
do termo “classes perigosas” surgia como solução para problemas

129/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


sociais agudos no Rio de Janeiro do final do século XIX. Para enten-
der esses problemas, é preciso voltar um pouco mais no tempo, ao
pós-abolição da escravidão.

A abolição da escravidão significou uma expansão demográfica des-


controlada da então capital federal. A população dobrou por causa
da mão de obra escrava que foi jogada ao subemprego e ao desem-
prego e também pelo grande excedente populacional do campo e
de imigrantes portugueses. Em 1890, apenas 45% da população ca-
rioca havia nascido e crescido na cidade. Da população total, 56%
era composta de homens brancos e solteiros. Entre os principais
problemas dessa expansão estavam a falta de emprego, de moradia,
de saneamento básico e higiene, todos perfeitamente conectados
com as epidemias de varíola, febre amarela, malária e tuberculo-
se. Outra parte da população, composta por negros e pobres, logo
recebeu a fama de desocupados e vagabundos (CARVALHO, 1987).
Essas eram as classes perigosas. Vivendo, em sua maioria, nas ruas
centrais da Cidade Velha e em cortiços do Centro da cidade, englo-
bavam ladrões, prostitutas, malandros, desertores do Exército, da
Marinha e dos navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros,
criados, serventes de repartições públicas, ratoeiros, recebedores
de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores,
receptadores, pivetes e capoeiras.

Essas pessoas eram as que mais apareciam nas estatísticas crimi-


nais relacionadas à desordem, à vadiagem, aos jogos e à embria-
guez, contravenções que compunham 60% das prisões de pessoas
recolhidas à Casa de Detenção em 1890 (CARVALHO, 1987). Isso
porque a lógica do Estado era de que o homem de bem tinha gosto

130/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


pelo trabalho e pela poupança e acumulação financeira. Ele deveria
gastar somente com a manutenção de seu lar e precaver-se para os
tempos de dificuldades. A pobreza criaria condições para o vício e
para a criminalidade; todo indivíduo pobre, portanto, é suspeito até
que se prove o contrário (CHALHOUB, 1996).

Além da expansão demográfica, a mudança do modo de produ-


ção (do escravismo para o trabalho assalariado) levou à falência
muitos cafeicultores, alguns deles pertencentes às elites paulistas.
Para conseguir a simpatia desse setor, o governo imprimiu dinheiro
sem lastro, o que gerou uma febre especulativa nos anos de 1890 e
1891, permitindo rápido enriquecimento e falência – período mar-
cado e nomeado como Encilhamento. Como resultado, houve o
aumento da demanda por produtos importados e a consequente
ascensão de seus preços. Sendo o Brasil exportador de produtos
ligados ao campo e importador de bens de consumo e de produtos
de luxo, a elevação dos impostos de importação e sua cobrança
em ouro agravaram a situação muito mais do que a solucionaram,
porque o custo de vida aumentou consideravelmente. A imigração
amplificava a oferta de mão de obra e acirrava a luta pelos escas-
sos empregos disponíveis, também contribuindo para o aumento
no custo de vida. Ainda, a queda do preço de café gerou uma forte
deflação e recessão econômica que perdurou até o Governo Cam-
pos Sales, em 1900 (CARVALHO, 1987).

A falta de trabalho, a preferência por trazer imigrantes brancos ao


invés de incorporar os negros ao mercado de trabalho formal e a
febre especulativa gestada no Encilhamento proporcionaram um
tipo de capitalismo predatório que mudou os costumes: o enrique-

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cimento fácil e a trapaça não eram mais motivo de vergonha. Figu-
ras como jogadores, cocotes, bons vivants, fraudadores de corridas
e proprietários exploradores inundam as obras dos escritores em re-
vistas literárias e romances, ganhando nome e corporeidade. A con-
fiança na sorte, no enriquecimento sem esforço em contraposição
ao ganho da vida pelo trabalho honesto, parece ter sido incentivada
pelo surgimento do novo regime (CARVALHO, 1987). Para piorar a si-
tuação, a polícia se via em um incansável esforço contra as classes
perigosas que, pela vaga definição ideológica, confundia-se com os
pobres e ociosos e com aqueles que em sua maioria ocupavam esse
lugar na sociedade: jogados nas ruas, sem empregos formais e ten-
do que recorrer à informalidade, os negros se tornaram ainda mais
indesejáveis na capital. Era praticamente como se carregassem em
si mesmos a tendência ao crime. Os cortiços – moradias populares e
de aluguéis acessíveis para onde seguiu a maioria dos negros liber-
tos – logo se tornaram um dos pontos simbólicos de luta e de perse-
guição do Estado a essas populações (CHALHOUB, 1996).

O caso mais emblemático dessa perseguição sistemática do Esta-


do às classes perigosas ocorreu em 26 de janeiro de 1893. O cortiço
mais famoso da cidade, chamado de Cabeça de Porco, havia sido in-
terditado um ano antes pela Inspetoria Geral da Higiene. Intimados
pela Inspetoria, os proprietários do cortiço tiveram três dias para
notificar os moradores de seu despejo imediato, confirmando que o
cortiço seria demolido no prazo informado. Como os moradores se
recusaram a obedecer à ordem, uma tropa do primeiro batalhão da
infantaria comandada pelo tenente Santiago invadiu a estalagem
ao cair da noite, proibindo a saída ou a entrada de qualquer pes-
soa. Tropas se posicionaram nas ruas laterais e outras seguiram pelo

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fundo: os moradores estavam cercados. Pela manhã, começaram os
trabalhos de demolição, dos quais participaram o prefeito Barata
Ribeiro, empresários e funcionários da Empresa de Melhoramentos
Brasil, engenheiros, médicos, funcionários da Inspetoria Geral da Hi-
giene e da Intendência Municipal. Às populações pobres, agora sem
moradia, restaram a fuga ou a paralisia. Aqueles que não permane-
ceram firmemente dentro das casas em meio à demolição até que
estas fossem reduzidas a escombros pegaram tudo o que puderam
salvar: colchões, ripas, telhas e qualquer coisa que os pudesse aju-
dar a recomeçar em outro lugar. Seu destino, provavelmente, foram
os morros adjacentes à cidade (CHALHOUB, 1996).

Esse foi o auge do ataque às chamadas classes perigosas. O “bota-


-abaixo” do prefeito Pereira Passos expulsou a população do Centro da
cidade, empurrando-a para os morros circunvizinhos, para a Cidade
Nova ou para os subúrbios da Central. Estava inaugurado oficialmen-
te o período de um Brasil fascinado com a Europa, envergonhado de
si mesmo e, em especial, de sua população pobre e negra. Era o Brasil
que queria se ver branco, europeu e civilizado (CARVALHO, 1987).

A população, que já sofria com a carência de moradias e alojamen-


tos populares, com a falta de condições sanitárias, com as moléstias,
a carestia, a fome, os baixos salários, o desemprego e a miséria que
caracterizaram o rápido crescimento do final do século passado, viu
seu mundo revirado. Os salários baixíssimos não acompanhavam o
aumento dos preços. As condições de trabalho – longas horas de tra-
balho duro com baixa remuneração – tiveram como consequência

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as primeiras organizações populares e operárias, que pressionaram
o governo central através de encontros em praças públicas e comis-
sões, e também os industriais através das greves. Surgiram os pri-
meiros Centros e Associações de Resistência, assim como os primei-
ros partidos operários: dezessete movimentos grevistas irromperam
entre 1889 e 1906. A greve de 1903, reunindo diversas categorias, foi
a maior já realizada na cidade até então. A população não organi-
zada diretamente em partidos ou associações irrompia em motins
como a Revolta do Selo, em 1898 (SEVCENKO, 2003).

A população protestava contra o aumento dos preços e do custo de


vida e vivia em casas ou barracos feitos de telhas velhas, folhas de
zinco, latas de fósforo distendidas e bambu (mesmo que esse fosse
ainda muito caro para as condições de pobreza na qual se inseriam).
Os habitantes tomavam banho em bicas e não havia esgoto, expon-
do-os à varíola. Quando não era possível viver nos barracos, as “ca-
sas de cômodo” eram o destino dessa população: antigos casarões
afastados do Centro e abandonados, onde moravam até mais de
cinquenta pessoas e onde famílias inteiras dividiam o mesmo quar-
to. Essa população procurava sua subsistência no Centro da cidade.
Embarcavam em trens lotados, nos quais por vezes se apertava o
triplo de sua capacidade. Lá, estavam as habitações coletivas, pre-
cárias, insalubres e superpovoadas (SEVCENKO, 2003).

As demolições do governo para reforma do porto e construção do


cais, iniciadas em 1892 e com ápice em 1904, pioraram ainda mais a
situação. A mira recaiu sob os casarões da zona central, foco dos hi-
gienistas e dos especuladores imobiliários. A partir da expulsão das
populações pobres do Centro, sua redistribuição se deu nas zonas

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mais estreitas da cidade, como os becos e os “zungas” – hospedarias
baratas onde dormem dezenas de pessoas no mesmo quarto (CHA-
LHOUB, 1996; SEVCENKO, 2003).

Vivendo muitas vezes sem água ou esgoto, em quartinhos sem ven-


tilação e abarrotados de famílias, essa população não tinha muita
alternativa a não ser a submissão a essas moradias tão insalubres, já
que a legislação vigente, que considerava automaticamente como
vagabundos aqueles que não provassem ter residência fixa, conde-
nava-os à reclusão. A eficiente política carioca cumpria ferozmente
a regra, retirando essas pessoas de circulação. Somando-se à ausên-
cia de domicílio, havia o problema do desemprego, que compulso-
riamente transmutava muitos populares em vadios. Para sobreviver,
eles recorriam ao subemprego, à mendicância, à criminalidade e
aos “bicos”. Desses, apenas a mendicância era combatida com vigor
e dureza pela polícia. Cresciam o alcoolismo, a loucura, o suicídio e
a delinquência infantil e juvenil (SEVCENKO, 2003). Tais condições
se transformaram no estopim das revoltas populares que se alastra-
ram pela antiga capital federal:

Cerceados de suas cerimônias e manifestações culturais


tradicionais, expulsos de certas áreas da cidade, obstados
na sua circulação, empurrados para as regiões desvalo-
rizadas: pântanos, morros, bairros coloniais sem infraes-
trutura, subúrbios distantes, matas; ameaçados com os
isolamentos compulsórios das prisões, depósitos, colô-
nias, hospícios, isolamentos sanitários; degradados social
e moralmente, tanto quanto ao nível de vida; era virtual-
mente impossível contê-los quando explodiam em mo-
tins espontâneos. (SEVCENKO, 2003, p. 91)

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Quando essa população agia, “praticamente tudo era alvo do im-
pulso destrutivo: bondes, carroças, carruagens, vitrines, estabele-
cimentos comerciais, casas particulares, o calçamento das ruas, os
trilhos, os relógios e bancos” (SEVCENKO, 2003, p. 92). A Revolta das
Vacinas foi, provavelmente, um dos maiores símbolos de arroubo
popular do século XIX: reflexo do Regulamento da Vacina Obrigató-
ria, significava a invasão e a derrubada de prédios anti-higiênicos e a
invasão das casas por agentes de saúde e por soldados. Ao longo de
três dias, a cidade testemunhou um embate entre a polícia, o Exér-
cito, a Marinha e os estratos da população pobre. Carvalho (1987)
e Chalhoub (1996) narram a revolta, que não nos interessa aqui em
seus detalhes, mas cuja existência é importante demais para não
ser citada. O controle das revoltas por parte do governo tinha como
modo operante a violência, a brutalidade e a repressão policial. À
população, humilhada e sob a mira e abuso constantes das forças
do Estado, restava o sentimento de abandono e desprezo.

Enquanto a vida da Belle Époque era registrada em documentos ofi-


ciais e em “monumentos à civilização”, enquanto cresciam a vida
noturna e as áreas de lazer da cidade, uma memória oficial era cria-
da. A narrativa partia do abandono da ideia de um Rio de Janeiro
“inculto” e insalubre, povoado por uma população supostamente
ignorante, “perigosa” e “cheia de vícios”, para se chegar ao Rio dito
civilizado, com automóveis, avenidas, teatros; uma cidade que usava
a última moda parisiense, que se reunia para passeios nos parques
e boulevards. Seria a vitória da “modernidade”, estampada por todo
canto e entoada com orgulho pelos prefeitos e pelos jornalistas.

136/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


AS NARRATIVAS OFICIAIS E O PAPEL DOS LITERATOS

Reforçando essa memória oficial, estaria a participação de escri-


tores brasileiros cujas obras concorreram para a construção de
uma imagem depreciativa da população mais pobre. Retratadas
em crônicas de jornal a partir de seus hábitos curiosos ou esta-
pafúrdios, as classes perigosas só conseguem espaço na memória
desses escritores como coadjuvantes, o que pode até parecer um
avanço, já que antes sequer constavam nos documentos oficiais a
não ser em estatísticas de criminalidade. Com esses autores boê-
mios, as camadas menos aquinhoadas viriam compor o cenário de
crônicas, contos e romances; virariam parte do que se pode consi-
derar “sobrevivências” de um Brasil, com cuja existência parte da
população não queria mais conviver.

Tal perspectiva intelectual pode estar ligada ao fato de que, no


período em questão, era grande no Brasil a afluência das edições
francesas e portuguesas para um ávido público leitor de novida-
des literárias europeias. Uma importante obra, Scénes de la vie de
Bohéme, de Henry Murger, foi responsável em grande medida por
popularizar, tanto dentro quanto fora da França, a expressão bohé-
me, ligada a um grupo de intelectuais dedicados ao uso da litera-
tura como ferramenta de registro de suas vidas cotidianas e como
ferramenta política de atuação na sociedade em que viviam. O es-
critor Luís Edmundo, ao escrever sobre o Cidade do Rio, jornal de
José do Patrocínio, descreve-o como:

137/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


[...] uma simples gazeta de boêmios que se faz, um
pouco, pelas mesas da Pascoal e da Cailtau, entre co-
pos de cerveja e cálices de conhaque, grandes frases
de espírito, grandes gestos e as boutades gentis de
uma geração que romanticamente ainda vive o am-
biente sentimental dos contos de Murger. (EDMUNDO
apud RODRIGUES, 1998, p. 251).

Essa geração de boêmios, que atravessa o final do século XIX (1870-


90) habitando os cafés e as confeitarias, foi responsável por escrever
literatura em um tempo em que jornais e revistas literárias estavam
consolidando a popularização dos folhetins3. Fazer literatura no fi-
nal daquele século seria participar de uma missão: solidificar a lite-
ratura, fazer com que ela fosse uma arma revolucionária a favor do
movimento pela República e guiar a nação ao “progresso”. Portan-
to, esses boêmios que se abrigavam nos cafés literários do Rio po-
dem ser considerados fabricantes de narrativas e memórias que não
necessariamente se alinhavam àquelas engendradas pelo Estado,
porque traziam a profundidade do olhar à representação cotidiana
desses estratos mais pobres – nem sempre favorável a eles. De fato,
o que podemos ver sobre a cidade do Rio de Janeiro nessas obras é
muito mais fruto de como se relacionavam e do que pensavam so-
bre aqueles que se encontravam às margens (RODRIGUES, 1998).

Estamos nos referindo aqui à geração formada principalmente pelo


abolicionista José do Patrocínio, por Coelho Neto, pelo parnasiano
Olavo Bilac, por Aluísio Azevedo, por Guimarães Passos e por Paula

3 Trata-se, nas palavras de Yasmin Jamil Nadaf (2009), de “escritos de entretenimento”,


publicados inicialmente no rodapé dos jornais franceses, espaço ao qual davam o nome de

138/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Nei (RODRIGUES, 1998). Em fins do Século XIX, eles ganhavam trocados
nos jornais, o que lhes permitia sobreviver e dedicar a vida à arte, prin-
cípio básico da vida boêmia. Viviam a noite da cidade, frequentando os
cafés, com muito álcool e piadas. Precisavam lidar com a decepção de
um mundo onde fazer arte e criar beleza não dava dinheiro suficiente
para sobreviverem, enquanto o diploma de bacharelado abria as por-
tas para uma carreira estável, oposta à insegurança boêmia. Nem to-
dos, entretanto, continuaram nessa vida (RODRIGUES, 1998).

Seu sentido político era a luta cotidiana de afirmação da atividade


literária, tanto da consolidação da literatura nacional quanto da
construção política do país através dos movimentos abolicionista e
republicano. Boa parte dos literatos da geração de 1880 se desilu-
diu, entretanto, com a República, tomada por turbulências e lutas
internas. Durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894), inclu-
sive, foram perseguidos (RODRIGUES, 1998).

Em 1900, a estabilidade política garantiu calma e prosperidade – ao


menos na região central da cidade, onde se pretendia passar uma
imagem de “civilitè” e “finesse”. Ao final do ano de 1904, já se podia
percorrer a Avenida Central de uma ponta a outra em bondes so-
bre trilhos. A paisagem da cidade mudava, e a vida literária carioca,

feuillton
feuillton. Entre nós, o folhetim começa a ser publicado a partir de 1839, período em que a
própria arte brasileira se reestruturava, concomitantemente às ideias de construção de um
Estado Nacional decorrente da Maioridade de D. Pedro II. Tanto na política quanto na arte,
a referência básica continuava sendo os modelos franceses de literatura e as maneiras eu-
ropeizantes, tendência essa que se estenderia para além do período monárquico, atingin-
do, também, a nossa escrita ficcional já na segunda metade do Século XIX (Cf. Nadaf, Y. J. O
romance-folhetim francês no Brasil: um percurso histórico. Letras, v. 39, p. 119-138, 2009).

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desarticulada pela revolta da Armada e pela reação Florianista em
1893, reorganizava-se. A literatura andava, então, aliada ao “mun-
danismo”, incentivado pelo prefeito Pereira Passos para aplacar os
opositores. Na literatura, esse movimento se traduz nas colunas
de jornais, como a “Binóculo”, da Gazeta de Notícias, em que são
discutidos o último baile, a última recepção, entrelaçando-os com
notícias de uma conferência ou de um livro de versos. Para atrair o
público, a literatura usa da fotografia, das ilustrações, visualmente
se identificando com os interesses sociais e mundanos das revistas
de época. A transfiguração que sofrera a cidade fora acompanhada
pela importação de livros e revistas; o art nouveau predominava nas
armações, nos lustres e nas decorações de livrarias, confeitarias e
cafés. Ao escreverem sobre esse movimento, os escritores o exage-
ravam, criando um novo Rio em seus contos, romances e crônicas,
construindo ambientes que não existiam em realidade. Novos cos-
tumes se solidificavam e empurravam os velhos para o subúrbio: a
“cidade”, com seus bairros de gente elegante e civilizada, opunha-se
ao subúrbio, com sua pequena burguesia de costumes simples. A
vida acelerada, de incômodos encontrões e furtos era a estrela da
nova “grande literatura” (BROCA, 1960).

Durante esse período, as principais figuras da geração de 1880 já es-


tavam mudadas: Aluísio Azevedo era cônsul e havia abandonado a
literatura; Coelho Neto estava casado, com filhos e produzia de for-
ma metódica e regular; Olavo Bilac protestava na Revista Kosmos,
em 1904, contra a ideia do escritor à parte da sociedade, obrigado a
morrer de fome e sacrificar toda a vida em prol da arte. Broca (1956)

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considera a remodelação da cidade e a fundação da Academia Brasi-
leira de Letras, em 1896, como marcos importantes para que a velha
boemia dos cafés e confeitarias “acabasse”. A abertura da Avenida
Central demarca a transformação do caráter provinciano do Rio de
Janeiro, com a vida centralizada numa pequena área, onde todos se
encontravam e conheciam-se (BROCA, 1960).

Por volta de 1910, os boêmios do final do século passado estavam


em empregos formais, casados e com filhos, ocupando posições que
lhes exigiam postura e austeridade nas atitudes. A boemia se trans-
formara dos cafés para uma boemia dourada de salões. O tempo das
turbulências dos jovens boêmios do 1880 acabara. O impacto dessa
mudança de vida e a especialização da profissão de escritor, ago-
ra mais do que nunca associada ao trabalho nos jornais, também
muda a forma como a literatura retrata a cidade: a juventude dos
1900 nasceu em uma cidade afrancesada e urbana. Eram boêmios
que se vestiam de modo elegante, eram dândis e refinados, ligados
ao mundanismo, estrelando os figurinos mais recentes de Paris e de
Londres, os “jovens dourados” (jeunesse dorée). Os clubes e os sa-
lões chiques substituíram os cafés. A bebida oficial era o chá-das-
-cinco4. “O Rio civiliza-se”, pregava Figueiredo Pimentel no “Binócu-
lo”. Nessa boemia, destacam-se João do Rio e Figueiredo Pimentel.
Eram jovens “à procura do novo, do raro, com neuroses estéticas,
cansados de civilização. Neles, não subsiste o sentido do cotidiano:

4 Os chás eram “o pretexto, a intenção benevolente para a elegância das reuniões de esco-
la, da delícia da palestra surrada, em tête-à-tête, numa sala aromada de hortênsia, ilumina-
da a eletricidade, cheia de mulheres lindas” (FON-FON, 1911 apud BROCA, 1960).

141/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


surgem como criaturas meio exóticas na cidade que se vai moderni-
zando” (BROCA, 1960, p. 22). Seus lugares de socialização eram

[...] o Clube dos Políticos, na Praça Tiradentes [onde] os


Tenentes do Diabo [...] se enchiam desses intelectuais
superfinos que vinham, por vezes, das redações dos jor-
nais, dos teatros, ou dos primeiros cinematógrafos ins-
talados na Avenida, quando não dos music-halls, onde
lhes parecia chique buscar emoções fortes na última no-
vidade do século: a luta romana. [...] os clubes noturnos
ficavam, muitos deles, na Rua do Passeio, e eram centros
da jogatina, que então dominava o Rio; mas havia uma
parte destinada ao music-hall, com pista ao centro para
a dança. Por ali desfilavam, frequentemente, os exem-
plares mais típicos dos “Trezentos de Gedeão”, rótulo
que Bilac emprestara a essa grei: Guerra Durval, figura
suprema do mundanismo literário; Humberto Gottuzzo,
cronista social; Leão Veloso, Gil Vidal [do Correio da Ma-
nhã], João do Rio, Afonso de Montaury [Gazeta de Notí-
cias] e Henrique Chaves. (BROCA, 1960, p. 23)

A ordem de suas existências parecia ser:

[...] escandalizar os burgueses com suas atitudes arro-


gantes, forçando a nota ou adotando as últimas modas
do bulevar. Em Paris, os figurinos lançaram as casacas de
cores; logo Luís Edmundo, João do Rio e Guerra Durval
mandaram fazê-las idênticas, com elas se apresentando
no [Teatro] Municipal, onde enfrentaram, sem perturba-
ção, uma estrepitosa vaia. (BROCA, 1960, p. 23-24)

Que se fez da população mais pobre, então? Ela aparecia, como dito
anteriormente, nas estatísticas e nos livros administrativos do Esta-
do; aparecia como composição de cenário ou como objeto de exotis-

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mo e assombro nas crônicas jornalísticas e romances dos escritores
boêmios que se dedicaram a registrar a cidade do Rio de Janeiro.
Suas narrativas de mundo deixaram apenas rastros em outros cami-
nhos: livros de historiadores dedicados e de antropólogos curiosos,
canções, danças e tantos outros registros de movimentos e festas
populares. Suas memórias, parece lógico supor, pertencem ao cam-
po da oralidade: não escreveram sobre si mesmos.

CONCLUSÃO

Para compreender o todo que foi o Rio de Janeiro durante a Pri-


meira República, foi preciso falar por entre e sobre os labirintos das
narrativas: visitamos os livros daqueles que reviraram documentos
oficiais, lemos crônicas e romances dos que se dedicaram a repre-
sentar seu cotidiano, trouxemos os vestígios deixados pela popula-
ção quando se manifestava ludicamente nos festejos populares ou
violentamente como no caso da famosa Revolta das Vacinas (1904).
Permitindo-nos ouvir os ecos do passado, compreendemos que não
há “memória” da cidade do Rio de Janeiro, há “memórias”. E esse
plural, que tão incessantemente se tentou suprimir, deve ser obje-
to do olhar antropológico: as tensões apresentadas pelos desejos e
visões de mundo das elites, sempre se chocando com os modos de
vida das classes mais pobres, deixaram rastros – muitos deles, feitos
de suor e de sangue. É imperativo que se ouçam as vozes do passa-
do e que se sigam seus rastros para revelar, dentre os documentos
oficiais, as crônicas e os romances dos literatos e as manifestações
populares, esse todo completo que foi a cidade do Rio de Janeiro da
transição do Império para a Primeira República.

143/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


REFERÊNCIAS
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil 1900. São Paulo: Editora
José Olympio, 1960.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte
Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e gesto: pessoa, cor e a
produção cotidiana da (in) diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.
NADAF, Yasmin Janil. O romance-folhetim francês no Brasil: um per-
curso histórico. Letras, v. 39, p. 119-138, 2009.
NEEDELL, Jefferey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de
elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A geração boêmia: vida li-
terária em romances, memórias e biografias. In: CHALHOUB, Sidney
e PEREIRA, Leonaro A. de Miranda (eds.). A história contada: capítu-
los de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 1998.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação
cultural na Primeira República. 4. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995.

144/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


O SEXO COMO “IDIOMA DO FORRÓ”
– DE GONZAGA A SAFADÃO
Amanda Scott1
Luciana Chianca2

Polissêmico desde sua origem, o forró se construiu como musicali-


dade brasileira distinta nos anos 1940, sintetizando outros gêneros
musicais e com uma forma particular de execução, que tem como
base a sanfona acompanhada de outros instrumentos musicais. Sua
criação é o resultado de uma síntese musical capitaneada por Luiz
Gonzaga (1912-1989), músico pernambucano que detém a paterni-
dade reconhecida do forró e, por isso, é seu ícone maior. Sabemos
que Gonzaga tocava diversos ritmos e gêneros ao som da sanfona,
inspirando-se em seu pai Januário e em outros famosos sanfoneiros
do Nordeste, que ele conhecera em sua infância.

Segundo D. Dreyfuss (1996), Gonzaga chegou ao Rio de Janeiro com


sua sanfona, tocando valsas, marchas, polcas e mazurcas, e respon-
deu de modo original à demanda de nossa então capital federal,

1 Mestra em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba.

2 Professora Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação


em Antropologia Social da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Antropologia pela
Univesité Bordeaux II (França). E-mail: lucianachiancaufpb@yahoo.com.br.

145/208
ávida por uma musicalidade que identificasse o Nordeste naquela
cidade de numerosa população migrante nordestina. A partir de gê-
neros e de instrumentos musicais que lhe eram familiares (como o
schottish/xote, o xaxado e o baião), Luiz Gonzaga elaborou o forró,
que agradou ao público, fez sucesso e institucionalizou-se como gê-
nero musical nacional.

Nos dias de hoje, em grande parte do Nordeste brasileiro, o forró é


associado aos momentos festivos urbanos – festas juninas, vaqueja-
das e outras ocasiões públicas de grande afluência popular. Trata-se
de um gênero conhecido, apreciado e permanentemente reinven-
tado, tanto em seus aspectos musicais quanto na poética, nas co-
reografias e nas experiências festivas. Podemos identificá-lo como
música e como dança, ambos os aspectos integrados na sedução e
conquista amorosa ou sexual entre pares: o forró sempre é dançado
por casais que se entrelaçam com maior ou menor intensidade con-
forme sua confiança, sincronia e desejo. Enquanto isso, letra e músi-
ca dialogam ao sabor da criatividade artística de seus compositores
e executores (músicos), estimulando os dançarinos que serpenteiam
no salão com as suas criativas coreografias, sempre carregadas de
sensualidade – às vezes tingidas de um distinto pudor e recato, ou-
tras vezes transbordando provocação sexual. Em um registro mais
visual, o forró pode ser executado com técnica e expressão espeta-
culares, destacando a agilidade, a leveza e a graça dos pares.

Ao longo de sua breve história de menos de um século, o forró teve


descontinuidades que já foram apontadas por vários autores pre-

146/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


cedentemente, seja no plano estético ou no de suas sociabilidades.
Aqui, vamos problematizar a fundante componente sexual e eróti-
ca do forró, discutida como um “idioma” social (EVANS-PRITCHARD,
1994). Edward Evans-Pritchard, autor dessa noção, foi um importan-
te antropólogo inglês que observou de modo prolongado e partici-
pativo (entre 1930 e 1936) a vida da sociedade Nuer, um povo no
Norte da África. Ao longo de sua estadia, Evans-Pritchard pôde ob-
servar como a totalidade da vida social desse povo estava estrutura-
da em torno do gado e do pastoreio, seu principal elemento econô-
mico e nutricional. Essa relação não era meramente instrumental,
estendia-se a outros aspectos, chegando às alianças de parentesco,
migrações e relações políticas, além de outras dimensões daí decor-
rentes. Finalmente, Evans-Pritchard concluiu que o gado regulava e
articulava o conjunto das atividades e dimensões (inclusive espaço-
-temporal) mais importantes daquele povo, constituindo uma ver-
dadeira “língua” para os Nuer:

Eu já indiquei que semelhante obsessão (porque fi-


nalmente é assim que o estrangeiro percebe) – tem
por causa não somente o grande valor econômico dos
animais, mas também seu papel como elo em múlti-
plas relações sociais. Os Nuer, que colocam volunta-
riamente o gado na definição de todas as operações e
de todas as relações sociais, fizeram dele um idioma:
socialmente, eles falam o bovino. (EVANS-PRITCHARD,
1994, p. 36, tradução nossa)

Assim, tal como o gado para os Nuer, os diferentes elementos do for-


ró nos revelam que o forró fala a língua do sexo, ou seja, o forró cons-

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trói um idioma que revela uma trama de relações sociais e que tem
o sexo como substrato de sua sintaxe simbólica.

Para argumentar, inicialmente recorremos a Luiz Gonzaga, o “funda-


dor” do forró. Esse grande cantor, de voz inesquecível e inconfundí-
vel, era também exímio declamador de versos e de pequenas frases
que lançava aos ouvintes ao longo da execução das suas canções,
nos quais ele reforçava os trocadilhos, gemia, suspirava, sorria, insi-
nuando sensualidade e sexo quando a oportunidade se apresenta-
va, enquanto cantava ao vivo ou nas gravações de seus discos.

Partindo do mestre Gonzaga, alcançaremos a banda Garota Safada,


grupo de forró atuante nos anos 2000 e classificado como “eletrônico”.
Nosso intuito, aqui, é apresentar como os modos de abordar o amor e
o sexo variaram segundo as diversas tendências do forró, enquanto a
linguagem sexual foi se explicitando até que os grupos musicais con-
temporâneos se autodenominassem Calcinha Preta e Safadão.

Entre Gonzaga e o eletrônico, ocorreu uma lenta e progressiva trans-


formação no léxico e na sintaxe poética do forró. Nos primórdios, fa-
zia sucesso o duplo sentido de Genival Lacerda e seus seguidores (de
olho “na butique dela”). Depois, veio o forró romântico com seus en-
redos de traição e lágrimas, quando a Banda Magníficos pediu: “me
usa, me abusa, pois o meu maior prazer é ser tua mulher”. Em meio
à sedução e conquistas juvenis, o forró universitário do Falamansa se
perguntava por que “você é a única que não me dá valor”? Em outros
salões, Flávio José lembrava que no pé de serra “meu coração vai dar
uma festa e a porta vai estar sempre aberta na hora que você chegar”.

148/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Por isso, consideramos que o forró eletrônico explicitou a linguagem
sexual até então insinuada e marcada por um “romantismo pudico”
(TROTTA, 2009b), distanciando-se de todos os movimentos que lhe
antecederam. Através dessa diferenciação em relação ao pudor que
lhe precedeu, a distinção musical do forró eletrônico foi assegurada.
Propomos, aqui, discutir o que isso significa para o público desse
forró contemporâneo.

A SINTAXE DO SEXO NO FORRÓ

Tomando como marco primordial consensual do forró a música de


Luiz Gonzaga, pode-se constatar, analisando seu primeiro LP3 – Luiz
“Lua” Gonzaga (1961) pelo selo RCA Victor –, que a temática amo-
rosa é uma de suas principais temáticas: das doze canções, sete são
sobre amores vividos, prometidos ou desencontrados4. No ano se-
guinte, em seu segundo LP, uma canção chama nossa atenção pela
associação que realiza entre as reconciliações amorosas e as delí-
cias do paladar. A canção “Mané e Zabé”, de 1962, destaca o lugar
do romance nos conflitos de amor, apaziguando ânimos belicosos e
apontando para o entendimento cúmplice do casal:

3 LP - long plays, discos em acetato.

4 Nas canções “Baldrama Macia”, “Creuza Morena”, “Dedo Mindinho”, “Amor que não cho-
ra”, “Aroeira”, “Rosinha” e “Só se rindo”.

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Ô Zabé, não quero me humilhar/ Mas o amor de-
pois da briga/ É gostoso pra danar/ É o mel que cai
na boca/ De quem comeu saburá/ É chuva depois da
seca/ Nas terras do Ceará/ Por isso minha Zabezinha/
Não canso de te chamar/ ôi Zabé, ôi Mané, Ôi Zabé,
Ôi Mané/Ôi Zabé, Ôi Mané.

Sexualmente mais explícito é o “Desse Jeito Sim”, gravado no ano


seguinte, em 1963. Embora não seja literal, o contato físico e a
aproximação sexual estão aqui evidentes e devam ser evitados en-
quanto se dança:

Desse jeito sim/ Desse outro jeito não (bis)/ Aperta na


cintura/ Mas cuidado com essa mão./ Tu cum essa mão
boa/ Fazendo danação/ Só quer dançar/ No escuro do sa-
lão/ Vamo pro quilário [claro]/ Donde tá o lampião/ Des-
se jeito sim/ Desse outro jeito não.../ Desse jeito sim.../
Dançando afigurado/ Cum malinação/ Por causa disso/
Matáro o cabo João/ Vamo pro quilário [claro]/ Donde tá
o lampião./ Desse jeito sim/ Desse outro jeito não.

A poética cantada por Luiz Gonzaga é profícua nesses exemplos em


que o sexo é um elemento presente de modo muito explícito. Sem
encerrar o assunto, concluímos nossa argumentação com a canção
“Pisa no Pilão”, também de 1963, na qual (em uma ode telúrica ao
milho e ao labor rural) Gonzaga cantava num tom quase erótico:

Pisa no pilão, tum... Pisa no pilão/ Pisa no pilão, meu


bem/ pisa o milho pro xerém/ pra fazer fubá/ pisa no
pilão cabocla/ quero ver dentro da roupa tu sacolejar/
tum Tum Tum Tum/ joga as aconra pra frente e pra trás/
tum tum tum Tum/ Finca a mão no pilão bate mais.

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Adiante, Gonzaga descreve as saudades de sua infância brejeira:

No meu tempo de menino/ nas fazendas do sertão/ eu


gostava de espiar/ as caboca nos pilão/ sacudindo a
formosura/ dando murro como o quê/ duas negas no
meio do sol batendo caçula dá muito o quê ver.

Em razão de limitações de espaço e do escopo deste artigo, nossa pes-


quisa não se estende além desses três primeiros LPs do “pai do forró”.
Nossa escolha destaca, pois, a presença do sexo e do romance em sua
música desde os tempos mais incipientes, embora não venhamos a
recorrer a Cheiro da Carolina ou a Cossaco Fora, dois de seus maiores
sucessos musicais sexualmente ainda mais transparentes.

É por essa razão que discordamos dos autores que insistem em si-
tuar Gonzaga em um registro ingênuo e pueril, que cantaria a vida
rural sertaneja, o trabalho e seu cotidiano, como afirma Jean Costa
(2012, p. 122), para quem seus temas musicais

podiam ser ajuizados, quando tratavam dos proble-


mas do homem sertanejo, ou cômicos, quando fala-
vam dos detalhes do dia-a-dia. A música gonzaguea-
na às vezes lembra o aboio dos vaqueiros tangendo o
gado; às vezes lembra orações sobre o drama do ho-
mem pobre do sertão.

Costa ainda identifica quatro temas centrais na obra musical de


Gonzaga: a seca e a migração; a religiosidade; a relação homem/na-
tureza; e o retorno migratório. Costa cita Silva (2003, p. 88):

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Gonzaga cantou a seca; cantou a triste partida do povo
nordestino para as terras do Sul; cantou a chuva, gran-
de alegria do pobre agricultor sertanejo; cantou o verde
da mata, a aridez do agreste e as asperezas da caatinga;
cantou também os rios, a fauna [...] e a flora [...]; cantou
a geografia nordestina, homenageando cidades [...],
aspectos da cultura popular [...] e, como não poderia
faltar, cantou personagens típicos do cenário humano
nordestino, tais como cangaceiros (Lampião), violei-
ros, vaqueiros, viajantes, boiadeiros, romeiros, caçado-
res, Frei Damião, Padre Cícero e, é claro, o sanfoneiro.
Cantou também o São João [...] e fez também muitos
versos críticos [...] Denunciou a exploração do homem
sertanejo pelos fazendeiros e denunciou governos pela
inoperância para com os problemas mais imediatos do
Nordeste, sobretudo a seca, a fome e a violência.

Concluindo, não se menciona nada sobre amor e sexo. Apesar de


constantemente “esquecido”, o componente sexual e erótico é
um dos principais elementos do forró em todos os seus tempos
e expressões: é o nexo entre todos os tempos do forró, pois sua
insinuação está presente desde os seus primórdios. É esse apelo
romântico mais ou menos sexual que se renova e transforma-se
também no forró eletrônico, como revelaram Trotta (2009), Freire
(2012), Marques (2011) e Scott (2014).

Escutando Luiz Gonzaga com um ouvido criticamente treinado, não


nos parece surpreendente que Trotta (2009) detecte o trinômio fes-
ta-amor-sexo nas canções contemporâneas do forró eletrônico: “a
vertente eletrônica do forró se caracteriza por imprimir uma atmos-
fera jovem e urbana ao gênero, utilizando como estratégia discursi-

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va a apresentação explícita de temáticas sexuais” (TROTTA, 2009, p.
140). Por essa razão, Scott (2014) também destaca que Trotta anali-
sou o forró eletrônico

da perspectiva da música popular, moral e sexualidade.


Argumentou que o forró eletrônico trouxe visualidade
para a sexualidade antes camuflada em duplos senti-
dos, enquanto o pé-de-serra permanece num romantis-
mo pudico nas negociações morais com contradições
de discursos.” Assim, muitas “argumentações que des-
qualificam o forró eletrônico passam primordialmente
pela questão da sexualidade, o que coloca o debate
moral em primeiro plano no contexto do forró nordesti-
no, criticado como “Kama Sutra do Nordeste”, “forró de
plástico”, “bandas de bundas”. (SCOTT, 2014, p. 37)

Se nos primórdios foi o próprio Luiz Gonzaga que empregava troca-


dilhos e insinuações para falar de sexo, entre o forró de Gonzaga e
o forró eletrônico a linguagem sexual foi se evidenciando: se social-
mente o forró fala o sexo, o que o forró eletrônico tem a dizer sobre
o lugar social contemporâneo do amor e do erotismo, da conquista,
da sedução, das decepções, separações e superações?

CURTIR, PEGAR, LARGAR: UM PROCESSO RITUAL


Entre as importantes bandas do forró eletrônico da atualidade, des-
tacamos o grupo Garota Safada (cujo cantor Wesley Safadão, ao sair
da banda, fez carreira solo) como grupo de forró de muita aprovação
entre o público jovem no Nordeste, em crescente nacionalização da
carreira desde 2014 – garantida por sua constante aparição em pro-

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gramas televisivos, especialmente da Rede Globo. Por facilidade de
acesso a materiais anteriores à fase de sucesso, debruçamo-nos so-
bre suas canções, privilegiando a análise de conteúdo atrelada a ob-
servações realizadas em shows, a partir de dois importantes DVDs da
história da banda, “Uma Nova História” (2012) e “Garota Vip” (2013).

Nesses dois DVDs que apresentam os shows com imagens da banda


e de seu público em pleno espetáculo, percebemos a quase onipre-
sença de canções sobre amor e sexo, organizadas a partir de uma
lógica simbólica (uma gramática) que estrutura um léxico amoroso/
sexual, ao qual associamos o sistema ritual de Victor Turner (1974).

Para esse autor, que se inspira em Arnold Van Gennep (1853-1957), o


ritual é uma manifestação de simbologias e representações associa-
das a uma cosmologia ou a aspectos diretamente ligados ao cotidia-
no da sociedade. Não se trata de um evento “fechado”, ele comporta
três fases complementares e sucessivas que podem se desdobrar e
subdividir. Tais fases, nomeadas “separação”, “margem” e “agrega-
ção”, marcam o processo ritual, comportando uma margem entre a
separação e a agregação. Esse limiar é um espaço indefinido que ca-
racteriza as passagens e as mudanças de status, abrindo uma janela
diferenciada no social – que deixa de ser marcado pela estrutura e
se torna communitas: “a liminaridade implica que o alto não poderia
ser alto se o baixo não existisse, e quem está no alto deve experi-
mentar o que significa estar em baixo” (TURNER, 1974, p. 19).

Ainda segundo esse autor, a representação simbólica dos grupos na


communitas se expressa em movimentos, máscaras, canções e ou-

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tras produções, estabelecendo uma atmosfera ritual diferenciada
da realidade cotidiana onde e quando assistimos

a um momento situado dentro e fora do tempo, dentro


e fora da estrutura social profanam que revela, embo-
ra efemeramente, certo reconhecimento (no símbolo,
quando não na linguagem) de um vinculo social gene-
ralizado que deixou de existir, e contudo simultanea-
mente tem que ser fragmentado em uma multiplicida-
de de laços estruturais. (TURNER, 1974, p. 118)

Nos DVDs da Banda Garota Safada, a festa/show/espetáculo pode


ser compreendida como uma communitas, pois temos uma perfor-
mance envolvendo músicos, técnicos do espetáculo, comerciantes e
público com concentração de pessoas em espaços abertos de gran-
de afluência, mediante pagamento de ingresso.

Nos dois shows/DVDs aqui discutidos, percebemos que o amor/sexo


do forró contemporâneo se organiza em torno de um trinômio ritual
marcado por três momentos: curtir-pegar-largar. O primeiro é rela-
tivo a “gostar, querer ficar juntos e seduzir”; o segundo, “pegar”, é a
conquista física que pode envolver o ato sexual; e “largar” é a fase
final do ciclo, que representa a ruptura (consentida ou não), abrindo
perspectivas, então, para um eventual recomeço de ciclo.

Como no processo ritual identificado por A. Van Gennep e por Victor


Turner, temos um padrão circular que pode se desdobrar em outros
em seu interior, sempre envolvendo estágios de liminaridade duran-
te a passagem de um a outro. Nesses momentos liminares, os perso-
nagens envolvidos no ritual também

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são necessariamente ambíguos, uma vez que esta
condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à
rede de classificação que normalmente determina a
localização de estados e posições num espaço cultu-
ral. As entidades liminares não se situam aqui nem
lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e or-
denadas pela lei, pelos costumes, convenções e ceri-
monial. (TURNER, 1974, p. 117)

Assim, o ritual transporta tempo, espaço e indivíduos para uma ex-


periência diversa e oposta à vida cotidiana, sob a influência de uma
atmosfera simbólica que os ressignifica e transforma seus atributos
e status, na chamada fase liminar do ritual. Em seguida, a sociedade
retoma sua vida cotidiana, reassumindo-a e reagregando-se a ela.
Como liminaridade do ritual, o show/espetáculo da banda forma
uma communitas provisoriamente desprovida do status social pre-
cedente. Nesse momento, são propostas novas alternativas: curtir,
pegar ou largar? Embalados por Victor Turner (2008), realizaremos
aqui um “exercício interessante”, qual seja: vamos discutir o forró
eletrônico através de suas

palavras e expressões-chave dos grandes arquétipos


conceituais ou metáforas fundadoras, tanto nos perío-
dos em que elas surgiram, dentro de seu palco social
e cultural pleno, quanto em suas subseqüentes expan-
sões e modificações em campos de relações sociais em
mudança. (TURNER, 2008, p. 24)

Para considerar o poder das mensagens das músicas performatiza-


das nos shows, realizaremos uma análise de conteúdo mais detalha-
da, buscando as expressões e palavras-chave presentes no contexto

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dos dois shows. Assim, sua dimensão processual se torna manifes-
ta, dando ênfase a diferenciadas questões sobre relacionamentos
afetivos e sexuais e propiciando “relações sociais em mudança” na
communitas. Os temas recorrentes no ciclo ritual do forró eletrônico
incidem diferentemente ao longo do processo “curtir- pegar-largar”,
com incidências variáveis nas suas diversas situações.

BEBER E DANÇAR PARA CURTIR

Passemos a analisar as músicas dos dois DVDs, mais especificamen-


te as letras das canções da banda, em que vemos diferentes narrati-
vas sobre relacionamentos. Nessas canções, determinados elemen-
tos são mais valorizados em relação a outros de acordo com as fases
de relacionamento – curtir, pegar ou largar.

Nas canções dos dois DVDs, a fase “curtir” é marcada pela dança e
pelas bebidas alcoólicas, totalizando 64% das músicas (respectiva-
mente, 29% e 25%). Sobre a presença do tema do álcool no forró
elétrico, podemos citar Oliveira (2011), que analisa quatro músicas
da banda Saia Rodada e constata apologia à bebida pela identifica-
ção do sujeito que bebe a um ser “esperto”, “independente” e extro-
vertido. Em consonância com Trotta (2009), que identifica o trinômio
festa-amor-sexo no forró eletrônico, Oliveira sugere acréscimo deste
elemento (o álcool) para formar um quadrinômio festa-álcool-amor-
-sexo. Na banda Garota Safada, o quadrinômio também se confirma,
sobretudo no DVD “Garota Vip”, em que o tema predominou.

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Em conformidade com os estudos de Oliveira (2011), o masculino
(homem) se afirma como “esperto”, em músicas como “Vó, tô estou-
rado”, narrativa de um menino que aprendeu a lição do avô de que
curtir e beber e “safadar” é para os espertos. “Descendo e rebolan-
do” mostra um sujeito que tem muito dinheiro no bolso e valoriza
“beber até cair”, assim como em “Eu sou Cachorrão”, em que levan-
tar o copo de whisky marcaria o fato de afirmar para a mulher que é
“cachorrão”, safado na paquera e, por isso, esperto.

Um realce é dado à mulher, quando elas aguentam beber mais que


os homens e quando financiam a bebida: em “Mulherada na Lancha”,
o copo está na mão e há uma mistura de bebidas no momento da
curtição, tal como em “Mistura Louca”, em que as mulheres bebem
para entrar no clima, sinalizando um protagonismo feminino insinua-
do nesse tipo de forró, oportunamente apontado por Marques (2011).

Outra nuance pode ser observada na música “Panela de Pressão”: a


bebida alcoólica é algo que transforma a mulher, fazendo-a “descer
do salto” e tornar-se mais humilde, ou seja, mais maleável e suscetí-
vel às investidas masculinas. Beber em demasia faz a garota “perder
a noção” e dançar de um jeito diferente (em “Princesinha”). Na mú-
sica “Segunda Opção”, a mulher passa ao segundo plano como uma
distração passageira, tal como um lanche ou uma bebida.

Em “5 horas da manhã” e “Tô topando tudo”, a bebida é vista como algo


que faz superar limites de duas maneiras diferentes: seja pelo avançado
da hora em que as pessoas bebem em grupo e em público até ama-
nhecer, ou porque a bebida tornaria os sujeitos mais permissivos para

158/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


desfrutar, por exemplo, de sexo grupal em um quarto de motel (“Quarto
espelhado”) – sem que se revele se se trata de um homem só com diver-
sas mulheres ou se há vários homens ao mesmo tempo.

A dança é referida como arma da mulher para seduzir os homens,


quando se fala do seu rebolado. As vezes dançar é substituído por
“rebolar”, “empinar”, “balançar”, “sambar”, “não ficar parado”, “mo-
vimentar” e “montar”. Esses termos, cuja maioria tem conotação se-
xual explícita ou guarda ambiguidade entre os movimentos da dança
e do ato sexual, são presentes em “Vai no cavalinho”, “Empinadinha”,
“Bota bota” e “Louca Louquinha”. Beber e dançar, como visto, estão
atrelados à fase primeira da “curtição”, que é seguida da fase de “pe-
gação”, em que, por vezes, acontece o amor, sentimento desejado e
temido como um desvio de rota no ciclo “curtir-pegar-largar”.

PEGAR OU AMAR?

Música, dança e bebida potencializam a pegação, que é definida


pela conquista sexual e pode ser referida nas canções de três mo-
dos distintos. No primeiro, o homem é o pegador e está disponível
para qualquer que seja a mulher. No segundo, a mulher é qualifica-
da como deliciosa na pegação, sobretudo se estiver sob efeito de
álcool. No terceiro, o som (música) faz com que o clima de pegação
se instaure entre homens e mulheres.

Na modernidade líquida (BAUMAN, 2001), “pegar” e “largar” aconte-


ceriam naturalmente, pois o consumidor é um refém continuamente
exposto a novas tentações de êxtases do consumo (BAUMAN, 1999).

159/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


A brand Wesley Safadão/Garota Safada se torna marca comercial
com o papel de inscrever a diferença entre os grupos em seus modos
de vida compartilhados. Para garantir seu pertencimento, é preciso
ter a experiência da frequência a shows ou compartilhar a fruição
do som desses grupos, por exemplo, num carro (“paredão” ou não),
munido dos últimos hits da banda, que é sua marca predileta.

Nesse contexto, amar seria a “falha” no pegar, quando a liquidez das


relações daria lugar a um envolvimento maior, estranho ao consu-
mo orientado pela sedução em um estado de pulsão. Além do sexo
claramente citado, as referências ao amor aparecem em dezesseis
das vinte e três músicas do DVD “Uma Nova História” (2012). Já no
“Garota Vip” (2013), aparecem em apenas oito, contrariando estudo
de Freire (2012), que classificou as músicas de amor como a princi-
pal temática no forró elétrico em uma estação de rádio. Para nós,
importa ver qualitativamente, no DVD mais recente, como aparece o
amor, embora em menor incidência.

O amor surge ali em contextos diferenciados, sem rancor, sem mágoas,


através de declarações de amor incondicional de um homem para uma
mulher (em “Linha do Tempo” e “Só sei te amar”). Em “Mente pra mim”
e “Vai esperar”, o amor ultrapassa as dificuldades de uma relação afeti-
vamente desequilibrada, na qual uma parte se ressente da ausência da
outra, mesmo assim se mantém apaixonada. Trata-se de um apelo para
que a mulher reconheça e valorize os sentimentos do homem.

“Segunda Opção”, “Quebrou a cara” e “Vai e chora” falam de um


amor que já passou. O momento é de negar ou mesmo de ultrapas-

160/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


sar esse sentimento, recusando os apelos de amor da mulher ingra-
ta, mostrando (“passando na cara”) um novo amor. Em “Segunda
Opção”, a separação foi provocada pela mulher, e ela vai ser então
comparada a “uma bebida”, “um lanche”, coisa secundária na vida
do homem. Em “Vai e Chora”, ele deseja o sofrimento dela, esperan-
do, assim, “virar o jogo”.

“Tá com saudade de mim” é relativamente semelhante a essas três


últimas músicas. Fala de um sentimento de amor no passado e de-
seja-se o mal da mulher (“Vai morrer”), mas é interessante notar
que, apesar da relação duradoura, já era efêmera, como ele confes-
sa, pois tinha avisado que ia acabar.

Quando acontece o amor, ele é rancoroso, magoado e vingativo. Por


isso, existe tanta valorização do relacionamento furtivo, transitório
e carnal, só envolvendo prazer e gozo, ao contrário do amor, que
parece ilusão desfeita, fazendo sofrer. Esse forró revela a efemeri-
dade das relações na modernidade líquida, que torna tudo possível
com a contrapartida da recomposição de cada um após o “desvio de
rota”, nem que seja negando o sentimento, “pisando” ou desejando
a morte de quem tanto se amou.

LARGAR OU VINGAR?

Amor (32%) e vingança (28%) aparecem entrelaçados no momento


“largar”, chegando a compor 60% das canções. O sofrimento também
aparece de forma marcante, em 18% das canções. Isso nos leva a in-

161/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


ferir que o momento de largar seja o de relatar o amor para negá-lo,
reconhecer que sofreu, mas que chegou a vez da vingança. Esta é vista
como um movimento de volta à curtição, rompendo definitivamente
(se possível) com o relacionamento que envolveu a dor e a perda.

As formas de vingança são variáveis: simplesmente não “correr mais


atrás” e “sumir”, como em “Ficar sofrendo não dá” ou “Tá com sau-
dade de mim”. Em “Quebrou a cara”, a mulher é advertida de que
não ligue mais, porque ele já a substituiu, pois “ela pagou pra ver e
quebrou a cara”. Em “Segunda Opção” e “Beijar no meu pé”, a mu-
lher terá de se rebaixar caso ainda queira o amor do homem, seja
sendo tratada como mera “diversão” ou “se humilhando”, “comen-
do na mão” do homem, que, assim, vai se vingar.

A mulher está perdendo o homem em “Vai esperar” e em “Só sei te


amar”. A primeira tem um tom de advertência de que se esgotaram
todas as chances possíveis; a segunda, um tom mais reflexivo, pois
o homem quer entender em que errou, muito embora já coloque a
relação no passado. Em “Vai e chora”, há o desejo de fazer a mulher
sentir na pele o que fez o homem passar, e o claro desejo de que a
mulher chore e sofra pelo homem.

No ciclo do “curtir-pegar-largar”, vimos que o álcool e a dança estão


profundamente atrelados ao curtir, enquanto no pegar, para além
da relação efêmera, há o perigo de amar, o que torna o “largar” me-
nos líquido (BAUMAN, 2011) e mais rancoroso. Isso fica explicitado
nas diversas canções em que há vingança. Destaque-se o novo ciclo
que se inicia para aquele que volta a “curtir”, recomeçando o ciclo
ritual do sexo no forro eletrônico.

162/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


CONCLUSÃO

Através da linguagem do romance, do amor e do sexo, o forró ele-


trônico retoma o motivo preferido do forró, investindo agora numa
linguagem afetiva em que se destaca a efemeridade relacional em
contraposição ao amor idealizado ou romântico, no qual a ênfase
estava na reconciliação do casal, como vimos em “Mané e Zabé” de
Luiz Gonzaga (1962). Naquela canção, fica evidente que Mané não
quer “se humilhar”, mas não “cansa de chamar” Zabé, porque re-
conhece que “o amor depois da briga/ É gostoso pra danar/ É o mel
que cai na boca/ De quem comeu saburá/ É chuva depois da seca/
Nas terras do Ceará”.

No forró eletrônico, “a porta não fica muito tempo aberta”, incitando


a dança dos pares a uma incansável e permanente busca por outro
par. O forró eletrônico marca uma aparente cisão no cenário mu-
sical, sobretudo para artistas e intelectuais que reiteram uma das
mais repetidas críticas ao forró eletrônico como o lugar privilegia-
do do sexo, em uma leitura frequentemente acusada de “machista”,
apontada por muitos autores (COSTA A, 2013; COSTA J, 2012; FEI-
TOSA, 2011) e discutida por outros tantos (SCOTT, 2014; MARQUES,
2012; FREIRE, 2012; TROTTA, 2012, 2013).

Assim, em um esforço de compreensão e análise sócio histórica, bus-


camos perceber como o forró eletrônico se constrói em uma linha de
continuidade (e de renovação) sobre alguns dos elementos-chave
do alicerce já constituído do forró. Contrariamente ao forró tradicio-
nal, que se apresenta como uma reminiscência “rural”, comunitária,

163/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


autoral e de fruição gratuita, o forro eletrônico destaca as caracterís-
ticas mais modernas e urbanas da sociedade contemporânea, como
o apelo comercial e o monetário, a massificação/homogeneização
musical e a entronização dos componentes tecnológicos eletrônicos
na música. No forró eletrônico, a afetividade líquida tem sido um as-
pecto pouco destacado, embora permaneça o lugar privilegiado da
sensibilidade amorosa e sexual do forró contemporâneo.

Se a transformação da experiência festiva no forró eletrônico pas-


sou de uma sociabilidade restrita e circunscrita para a apologia ao
álcool, à orgia sexual e a todos os excessos próprios da festa, a se-
dução sexual e a conquista amorosa parecem ser um dos elementos
centrais na continuidade desse gênero musical. O sexo e seu correla-
to amor são a meta e o desvio, a estrutura e a communitas do forró,
e a liminaridade de suas fases rituais propicia a criação de novas
estruturas e novos ciclos rituais, como anunciava Turner (1974).

Além de ser uma dança de pares, o forró é uma dança de formação


de pares. Por essa razão, o tema do sexo entre pares e casais (ali se
juntando ou separando-se) é o elo que permite a comunicação entre
todas as linhagens do forró – das mais antigas às mais contempo-
râneas. Mesmo se a expressão da erotização é variável conforme as
épocas e os estilos do forró, o sexo é o elemento que garante o sen-
tido de continuidade do forró eletrônico com as demais linhagens
de forró que lhe antecedem, desde suas origens com Luiz Gonzaga.

164/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


REFERÊNCIAS
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COSTA, Amanda Abreu. Mulheres no forró: estilizações de gênero,
discurso e ideologia. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplica-
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COSTA, Jean Henrique. Indústria cultural e forró eletrônico no Rio
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São Paulo: Editora 34, 1996.
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Rio Grande do Norte, Natal, 2011.
FREIRE, Libny Silva. Forró eletrônico: uma análise sobre a repre-
sentação da figura feminina. 2012. Dissertação (Pós-graduação
em Estudos da Mídia – Universidade Federal do Rio Grande no
Norte, Natal, 2012.

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MARQUES, Roberto. Usos do som e instauração de paisagens sonoras
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MARQUES, Roberto. O Cariri do forró eletrônico: festa, gênero e criação
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OLIVEIRA, Jean Rodrigues de. O discurso do alcoolismo na música
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ção (Programa de Pós-graduação em Antropologia) – Universidade
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167/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO E A CONSTITUIÇÃO
DO PATRIMÔNIO IMATERIAL NO BRASIL:
NOTAS SOBRE OS USOS DA NOÇÃO DE SISTEMA
Marina Zacchi1

INTRODUÇÃO

A constituição do patrimônio cultural brasileiro, desde a instituição


do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial PNPI/IPHAN pelo
Decreto 3551/2000, passou a configurar um campo de trabalho pro-
fícuo para antropólogos. A transposição do arcabouço teórico da
Antropologia para a implantação dessa política pública em questão
precisa ser compreendida em suas potencialidades, e também em
seus limites e tensões.

Apoiada na análise de dossiês integrantes da instrução técnica dos


processos de Registro de bens culturais ditos de natureza imaterial
como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (IPHAN), apontei em outro momento2 qua-

1 Antropóloga. Gestora cultural. Autônoma. Mestra em Antropologia pelo Programa de Pós-


-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe.

2 O desenvolvimento de discussão sobre a transposição do arcabouço teórico da Antro-


pologia para a política de valorização e de promoção do patrimônio cultural de natureza
imaterial bem como uma apresentação das categorias pelas quais esta se processa podem
ser encontrados em ZACCHI, Marina Sallovitz. Contornos da cultura: representações sobre

168/208
tro categorias pelas quais me pareceu que a transposição conceitual
se processa e que acredito serem definidoras da orientação antropo-
lógica que se vem procurando imprimir à constituição do patrimônio
imaterial: bem cultural, sistema, interação e reflexividade.

A definição de patrimônio imaterial apresentada pela Convenção


para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003)
busca prever que, na apreensão da dimensão intangível das expres-
sões culturais em termos de um patrimônio imaterial, estejam asse-
guradas a consideração à sua dinâmica intrínseca e as condições de
sua reprodução. Não obstante, a constituição do patrimônio imate-
rial suscita, muitas vezes, forte desconfiança no que diz respeito às
suas implicações para o que Handler (1985) definiu como “objetifi-
cação cultural”, própria de uma lógica ocidental de “invenção de tra-
dições” associada à constituição dos modernos estados nacionais.

No sentido de tentar escapar à apreensão da cultura enquanto traços


descritíveis e colecionáveis, tem-se lançado mão da noção de siste-
ma na implantação da política brasileira de valorização e promoção
do patrimônio cultural de natureza imaterial. Proponho, aqui, re-
fletir acerca das maneiras pelas quais os usos da noção de sistema
possibilitam (ou não), no que diz respeito à constituição do patri-
mônio cultural de natureza imaterial, escapar à materialização da
cultura, ou superar as tentativas de (re)constituição de totalidades

o processual e o dinâmico no registro de bens culturais de natureza imaterial como patri-


mônio cultural do Brasil. São Cristóvão, SE. 142 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia)
- Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, 2017.

169/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


que organizaram e conformaram a Antropologia por muito tempo, e
das quais essa vem tentando se desvencilhar, por suas implicações
éticas e insuficiências analíticas para a apreensão das diferenças
culturais. Destacando os usos dessa noção nos dossiês de Registro
da Arte Kusiwa – pintura corporal e arte gráfica Waiãpi, do Ofício das
Baianas de Acarajé e do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro,
espero contribuir para as discussões sobre a prática do antropólogo
na colaboração com o Estado em ações de intervenção voltadas à
promoção da diversidade cultural.

A NOÇÃO DE SISTEMA NO PNPI

A utilização da noção de sistema não está explicitada enquanto


diretriz em nenhum dos dispositivos jurídico-administrativos que
regulam a implantação do Programa Nacional do Patrimônio Ima-
terial PNPI/IPHAN. Vinculações a essa noção podem ser deduzidas
de algumas definições que neles nos são apresentadas. Na Carta
de Fortaleza, entre as recomendações para a elaboração de uma
política pública voltada ao patrimônio imaterial consta “6. que a
preservação do patrimônio seja abordada de maneira global, bus-
cando valorizar as formas de produção e cognitiva” (IPHAN, 2006,
p. 49). Na Resolução IPHAN 001/2006, entre as especificações para
a instrução técnica dos processos de Registro de bens se tem “I.
descrição pormenorizada do bem que possibilite a apreensão de
sua complexidade e contemple a identificação de atores e signi-
ficados atribuídos ao bem” (IPHAN, 2006, p. 1). Na Portaria IPHAN
200/2016, encontramos a seguinte definição para Referência Cul-

170/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


tural: “são os sentidos e valores, de importância diferenciada, atri-
buídos aos diversos domínios e práticas da vida social [...] e que,
por isso mesmo, constituem-se em marcos de identidade e memó-
ria para determinado grupo social” (IPHAN, 2016, p. 1).

É no texto de apresentação da metodologia Inrc/Iphan – Para ler


o Inrc (IPHAN, 2000), de autoria do antropólogo Prof. Dr. Antônio
Augusto Arantes, que a previsão da noção de sistema na apreen-
são dos bens culturais é bem estabelecida. O texto aponta a im-
portância de assegurar a apreensão da vida social segundo acep-
ções adequadas que a percebem enquanto sentidos simbólicos,
que formam sistemas.

O maior desafio para a elaboração de uma metodologia de inven-


tário de referências culturais orientada pelo arcabouço teórico da
Antropologia seria, então, “manter a associação dos bens culturais
aos sistemas e contextos que lhes dão sentido” (IPHAN, 2000, p. 30).
Para isso, apontando que, tanto para a Linguística como para a An-
tropologia, os significados não pairam no vazio, propõe-se como
objeto de um inventário de referências culturais o que seriam suas
contrapartidas materiais – os domínios reconhecíveis da vida social,
de que é possível falar – particularmente os que constituem marcos
de identidade para grupos sociais determinados.

Na proposta do Inrc, a sistematicidade do inventário diz respeito


à construção operada pelo pesquisador. O inventário incide sobre
um recorte definido – temático, territorial ou grupo social específico
– envolvendo a especificação de critérios de inclusão e exclusão e,

171/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


assim, do conjunto de instâncias consideradas relevantes. Indican-
do que em um inventário de referências culturais esse conjunto diz
respeito aos elementos que se diferenciam no contexto das práticas
de uma comunidade, espera-se escapar da apreensão de traços cul-
turais fixos e assegurar a apreensão de sua dinâmica.

De fato, colocando em primeiro plano no desenho desta


metodologia os atores, as instituições reconhecidas por
sua cultura, as suas práticas, assim como as configura-
ções espaço-temporais produzidas por essas práticas
(com suas respectivas fronteiras simbólicas e marcos de
lugar), precavemo-nos do risco de tratar os chamados
“bens culturais” como coisas substantivas ou produtos
acabados. Antes, enfrentamos o desafio de identificar
o patrimônio e as referências culturais como produtos
históricos dinâmicos e mutáveis, o que se reflete na cir-
cunstância do INRC – ainda que atendendo ao critério de
exaustividade – de não produzir listas definitivas de itens
inventariados. (IPHAN, 2000, p. 30)

Para o apontamento de “objetos, práticas e lugares” a partir dos sig-


nificados que nele estão inscritos, o manual de aplicação da meto-
dologia Inrc/Iphan se apoia em abordagem definida pela Linguística
e pela Antropologia. Segundo essa abordagem, a conformação do
sistema é dada pelas relações de determinada natureza estabeleci-
das entre os diferentes significantes de um dado conjunto, de que
são deduzidos os significados.

Em que medida, entretanto, uma metodologia de inventário cultural,


no caso a metodologia Inrc/Iphan, pode possibilitar a apreensão das
relações estabelecidas entre os significantes e, assim, dos significados

172/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


inscritos nas expressões culturais? Quer dizer, em que medida uma
metodologia de inventário cultural, ou a metodologia Inrc/Iphan, pos-
sibilita a apreensão das expressões culturais de acordo com o que se-
ria uma acepção propriamente antropológica da categoria sistema?

APONTAMENTOS SOBRE A NOÇÃO DE SISTEMA


NA ANTROPOLOGIA

A noção de sistema – e depois a de estrutura – marcou o pensamen-


to científico produzido no curso do século XX. De maneiras variadas,
esteve presente na maior parte do pensamento antropológico pro-
duzido, mobilizada, sobretudo, no sentido de equacionar o dualis-
mo parte/todo. Em termos gerais, diz respeito à compreensão de um
dado fenômeno a partir das relações que as partes estabelecem en-
tre si e do modo pelo qual as partes se inscrevem no todo abrangen-
te a que estão subscritas. O que define uma abordagem enquanto
sistêmica não é, assim, o apontamento de traços culturais (ou dos
significantes e de suas variantes formais) e a descrição de sua in-
ter-relação, mas os nexos (de determinada natureza) estabelecidos
entre as partes de um todo.

Vejamos algumas acepções e transformações das noções de sistema


e estrutura na teoria antropológica.

No particularismo histórico proposto por Franz Boas, de acordo com


Stocking (2004, p. 19), nas diferentes culturas, a relação entre os ele-
mentos e a totalidade é dada pelo significado. A direção da relação

173/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


causal se dá da totalidade para o elemento e pode ser mais bem
descrita “não em termos de ‘estrutura’ ou ‘sistema’, mas de ‘signifi-
cado’, ‘foco’ ou ‘padrão’”.

No estruturalismo funcional, a noção de sistema se subscreve à abor-


dagem estrutural, caracterizada pela predicação dos termos nas re-
lações estabelecidas entre si. Voltado à compreensão da integração
social, a vinculação entre equilíbrio e estrutura social foi percebida
segundo diferentes acepções, por exemplo, nas contribuições de Ra-
dcliffe-Brown, Evans-Pritchard e Edmund Leach.

No estruturalismo simbólico, Levi-Strauss, tendo aplicado o método


estrutural a variados domínios do social, apontou um princípio de uni-
versalidade nas operações lógicas por trás de todo processo de cate-
gorização humana e de organização da vida social. Os significados se-
riam depreendidos das relações de oposição entre os significantes, dos
quais surgem relações invariantes por meio de uma transformação.

Há algumas décadas, a ideia de totalidade cultural passou a ser pos-


ta em questão, uma vez que, em vista da mundialização das relações,
os fenômenos sociais foram se tornando cada vez mais imbricados.
Encontramos em Cliford Geertz, Marshall Sahlins, Max Gluckman e
Victor Turner, entre outros, propostas de abordagens dos fenôme-
nos sociais que procuram abarcar sistemas abertos ou a interação
entre diferentes sistemas. Nessas abordagens, não obstante algu-
mas variações, os significados se definem nos contextos de enun-
ciação, em que a relação de oposição não é a única possível de ser
estabelecida para sua formação.

174/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Em uma abordagem inscrita no pós-estruturalismo em substituição
ao dualismo parte/todo, Deleuze & Guattari (2006) propõem a noção
de rizoma, definida como um modo não hierárquico, múltiplo, não
binário nem dicotômico de abordagem da relação entre fenômenos.
Nessa abordagem, conexões de causa/consequência são substituí-
das por nexos “planos” e semióticos de toda natureza, em que sujei-
tos e objetos de ordens e escalas diversas, heterogêneos, ligam-se
entre si por um ponto qualquer não pré-estabelecido.

No geral, as revisões pelas quais a noção de sistema passou estão re-


lacionadas ao princípio de complexidade. De acordo com esse prin-
cípio, a relação causa/efeito não é unívoca: de uma mesma causa
podem ser derivados diferentes efeitos, e de causas distintas pode
ser derivado um mesmo efeito.

Ainda, segundo acepções mais atuais do princípio de complexida-


de, alguns fenômenos só podem ser compreendidos em termos
de multicausalidade. Para Strathern (2004, p. 107 apud GUDJARD,
2008, p.14), we must pause over what is meant by ‘explanation’ to
realize that there are different types of explanation, of which cau-
sal connection is only one. Between different logical forms, any fit is
bound to appear partial. Edgar Morin (2008, p. 34 apud GUDJARD,
2008, p.14) afirma que jamais il ne faut appréhender les phénomè-
nes en termes de causalité lineaire, tout l’acte rejaillit sur les condi-
tions qui l’ont produit.

175/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


ALGUNS USOS DA NOÇÃO DE SISTEMA
NO REGISTRO DE BENS IMATERIAIS PELO IPHAN

Quando penso a metodologia Inrc/Iphan segundo as acepções mais


propriamente antropológicas da noção de sistema, muitas ques-
tões nos ocorrem. Em que medida é possível representar a cultura
não enquanto uma somatória de traços, mas enquanto significados
e contexto, posto um inventário ser, por definição, uma relação de
ocorrências que se quer exaustiva? E a indicação de um bem como
representativo não supõe, necessariamente, a ideia de uma totalida-
de que será designada, metonímica ou metaforicamente, mediante
sua materialização em um traço de cultura específico? Pode o in-
ventário, uma vez adotada a noção de sistema, abarcar a dinâmica
intrínseca aos processos culturais?

Em todo o caso, proponho aqui observar os usos da noção de siste-


ma não na aplicação da metodologia INRC, mas na elaboração dos
dossiês que integram a instrução técnica para o Registro de bens
culturais ditos de natureza imaterial como Patrimônio Cultural do
Brasil pelo IPHAN.

ARTE KUSIWA - PINTURA CORPORAL E ARTE GRÁFICA WAIÃPI

A solicitação de registro da Arte Kusiwa foi encaminhada ao IPHAN


pelo Conselho das Aldeias Waiãpi Apina e pelo Museu do Índio do Rio
de Janeiro/FUNAI em maio de 2002, motivada pela insatisfação dos
Waiãpi com o uso indiscriminado de seus padrões gráficos kusiwarã

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por empresas de vestuário. Por ocasião de uma reunião realizada na
Terra Indígena Waiãpi, com o intuito de discutir a proposta de reali-
zação de uma exposição, essa insatisfação foi apresentada ao dire-
tor do Museu do Índio do Rio de Janeiro/FUNAI, que lhes sugeriu o
recurso à política então recém-criada. Em dezembro do mesmo ano,
ocorreu a inscrição da Arte Kusiwa no Livro dos Saberes do Iphan,
tornando-a um dos primeiros bens de natureza imaterial a ser reco-
nhecido como Patrimônio Cultural do Brasil. Em novembro de 2003,
tornou-se o primeiro bem cultural brasileiro a receber da Unesco o
título de Patrimônio Imaterial da Humanidade.

No dossiê da Arte Kusiwa3, esta é abordada enquanto repertório co-


dificado ou sistema de padrões gráficos.

É descrita no dossiê uma série de aspectos que constituem a arte


Kusiwa: matérias primas (o vermelho claro é obtido com sementes
de urucum amassadas e misturadas com gordura de macaco ou
óleo de andiroba. O preto azulado é obtido com a oxidação do suco
de jenipapo verde misturado com carvão. O vermelho escuro é uma
laca preparada com diversas resinas de cheiro e urucum); ferramen-
tas (finas lascas de bambu ou de talos de folhas de palmeira, sobre
as quais são enrolados fios de algodão, são utilizados como pincel.
Partes do corpo podem ser decorados diretamente com o dedo ou
com chumaços de algodão embebidos de tinta); suportes (os corpos,

3 O dossiê que integra a instrução técnica do processo de Registro da Arte Kusiwa como
Patrimônio Cultural do Brasil pelo IPHAN foi elaborado pela Profa. Dra. Dominique Tilkin
Gallois, que desde a década de 1970 desenvolvia pesquisas junto aos Waiãpi do Amapá.

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mas, também, mais recentemente, cerâmicas, cuias, bolsas, tipóias
e cestos, assim como, inclusive, papel); técnicas (desenho, entalhe,
trançado, tecelagem); motivos (onças, sucuris, jibóias, peixes e bor-
boletas etc.); aplicações.

Embora dito que a arte Kusiwa “opera como um catalisador para a ex-
pressão de conhecimentos e de práticas que envolvem desde relações
sociais, crenças religiosas e tecnologias, até valores estéticos e morais”
(IPHAN, 2008, p. 87) o que define sua apreensão sistêmica não é a des-
crição do conjunto de traços culturais ou de aspectos do social que se
vinculam na ou através da prática de produção dos Kusiwarã para a de-
coração de corpos e objetos. A vinculação entre esses traços culturais e
aspectos do social é dada pela cosmologia a que os Waiãpi se reportam
para interpretar e agir sobre distintos domínios do universo.

Essa vinculação é patente na definição da função que a arte Kusiwa


cumpre enquanto expressão estética e no cotidiano dos Waiãpi:

Sua função principal [...] vai muito além do uso decorativo,


pois o manejo do repertório de padrões gráficos é um pris-
ma que reflete, de forma sintética e eficaz, a cosmologia
deste grupo, suas crenças religiosas e práticas xamanísti-
cas. Trata-se de uma forma de expressão que evidencia,
no seu uso cotidiano, o entrelaçamento entre a estética e
outros domínios do pensamento. (IPHAN, 2008, p.18)

É patente, também, no deslocamento que se observa, no dossiê, da


noção de função para a de eficácia: “Sua eficácia está na capacidade
de estabelecer comunicação com uma realidade de outra ordem, que
somente se pode conhecer na mitologia e pelo elenco codificado de

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padrões” (IPHAN, 2008, p. 18, grifo nosso). Ou ainda em: “Os grafismos
kusiwa têm, sobretudo, uma eficácia simbólica que atualiza perma-
nentemente um modo diferenciado de pensar e de experimentar a re-
lação com o outro, seja este animal, vegetal, humano ou não humano,
índio ou não índio, parceiro ou inimigo” (IPHAN, 2008, p. 88, grifo nos-
so). A ideia de eficácia é reiterada em diversos trechos – por exemplo,
no afastamento da arte Kusiwa de abordagens clássicas dos estudos de
cultura material, em que as pinturas corporais apresentam a função de
expressar posições sociais, categorias de indivíduos ou status.

A dinamicidade da prática cultural não é dada pelas variações in-


ternas dos Kusiwarã ou pela introdução de novos motivos, mas por
uma dinâmica semelhante à que se observa na oralidade, em que as
narrativas são atualizadas segundo o efeito que o narrador almeja
produzir, no contexto de enunciação, na interação com seu interlo-
cutor. Quer dizer, não é descrita como efeito de acontecimentos re-
lacionados ao contato estabelecido com a sociedade abrangente ou
inscritos em uma história que, narrada de modo a pôr em evidência
sua posição indígena, seria ainda uma história não indígena e não
Waiãpi. A arte Kusiwa é histórica, dinâmica e mutável, mas possui
uma forma própria de dinâmica, apoiada em uma construção singu-
lar sobre o tempo e sobre o arcabouço mítico, em que a apropriação
do elemento estranho é uma característica importante, o outro sen-
do incorporado sem que o sistema perca a integridade.

O que confere valor à arte Kusiwa não é sua associação à questão


identitária (seja a identidade nacional, a identidade de um grupo
específico, ou dos indivíduos que lhe estão subscritos), tampouco

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seu potencial enquanto recurso político ou econômico para o gru-
po, por propiciar acesso a direitos, assegurar sua coesão (embora
se observe que sua dimensão enquanto manifestação e represen-
tação que os Wajãpi do Amapá acionam para se diferenciar dos de-
mais grupos indígenas e da população não-indígena da região pas-
sou a ser relevante em vista da pressão que sofreram). É apontado
o risco de folclorização e de mercantilização nessa associação da
arte Kusiwa com a identidade. As preocupações são com o risco
de esvaziamento simbólico, com a impossibilidade de controle dos
Waiãpi sobre a difusão e as iniciativas comerciais, e com o enfra-
quecimento das lealdades culturais.

Ante os processos de mudança desencadeados pela inserção dos


Waiãpi do Amapá na sociedade abrangente, a diretriz geral de um
programa de intervenção que não está restrito ao Registro e Salva-
guarda da Arte Kusiwa, mas que já vinha sendo desenvolvido há al-
guns anos, com incidência sobre diferentes políticas públicas (nas
áreas de educação, saúde etc.), é de promover a discussão acerca
das mudanças e de seus impactos, e de estimular que os Waiãpi pro-
ponham medidas de controle. A proposta geral é a de redução de
impactos, particularmente da escola convencional, que restringe
a significação de algumas noções complexas, como Kusiwa (o ca-
minho do traço), já que sua amplitude só se realiza na abrangência
dos contextos de enunciação. O propósito geral não é o de viabilizar
a permanência da tradição Waiãpi, mas a possibilidade de que os
Waiãpi vivam segundo seus próprios termos.

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OFÍCIO DAS BAIANAS DE ACARAJÉ

O processo que culminou com o Registro do Ofício das Baianas de


Acarajé como Patrimônio Cultural do Brasil teve início com o inventá-
rio “Celebrações e saberes da Cultura Popular: acarajé em Salvador”,
realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (Cnfcp/
Iphan/MinC)4. Provocado por pesquisadores dessa instituição, um pe-
dido de registro do acarajé foi encaminhado ao IPHAN em 2002, tendo
como proponentes a Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do
Estado da Bahia, o Centro de Estudos Afro-orientais da Universidade
Federal da Bahia e o Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. A motivação para o
pedido estava relacionada a transformações no modo de comerciali-
zação do acarajé, que, tradicionalmente associado à prática e aos ri-
tos do candomblé, passou a ser comercializado também por adeptos
de religiões evangélicas, assim como em bares, em supermercados e
em outros estabelecimentos comerciais da cidade.

Da noção de sistema aplicada ao Ofício das Baianas de Acarajé nos


são apresentados alguns aspectos, como a articulação entre dife-
rentes dimensões da vida social, a ligação entre o sagrado e o pro-
fano e entre tradição e modernidade, e a abrangência dos universos
simbólicos e cosmológicos. O bem cultural é abordado enquanto
sistema culinário, de que nos é apresentado uma definição:

4 A pesquisa foi realizada entre setembro de 2001 e abril de 2004, sob a supervisão da Dra.
Letícia Costa Rodrigues e tendo como pesquisadores os antropólogos Raul Giovanni Mot-
ta Lody e Elizabeth de Castro Mendonça. O dossiê que instruiu tecnicamente o pedido foi
publicado em 2007. O dossiê sobre o qual trabalho, publicado e disponibilizado no site do
Iphan, é constituído por uma compilação de artigos elaborados pelos pesquisadores ao
longo do processo de pesquisa.

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Essa noção, por apresentar de modo estruturado os
itens constitutivos da alimentação e permitir que se
apreendam as várias etapas de um mesmo processo,
como o modo de obtenção, seleção, classificação e pre-
paro dos alimentos, assim como o modo de servi-los e
até mesmo de comê-los, mostrou-se a mais adequada
para dar conta da complexidade do universo do acara-
jé. (IPHAN, 2007, p. 58)

Ao tornar-se comida, o alimento deixa de ser conside-


rado por si mesmo e passa, então, a integrar um siste-
ma culinário, ou seja: torna-se ‘parte inseparável de um
sistema articulado de relações sociais e de significados
coletivamente partilhados’ (Gonçalves, 2002: 9), cujos
códigos reproduzem valores fundamentais da socieda-
de. (IPHAN, 2007, p. 59)

A descrição do Ofício das Baianas de Acarajé abrange: especificação


dos ingredientes (incluindo, em alguns casos, suas origens e varie-
dades, onde são adquiridos e simbologia associada); o modo de fa-
zer; receitas; instrumentos; utensílios de trabalho; modo de comer-
cialização; variedade de alimentos; modos de consumo; socialidade
e gênero; iniciação no ofício; indumentária e simbologia; espaços de
ocorrência; temporalidade (cotidiano, terreiros, festas); vinculação
religiosa (candomblé, catolicismo popular; sincretismo); e associa-
ção a uma cosmologia (enquanto possibilidade de significado e sen-
tido), expressa em um mito e em um rito.

Na descrição das mudanças, adquirem centralidade a produção,


a comercialização e o consumo urbanos do acarajé, mais que sua
ocorrência cosmológica ou ritual. Entre as transformações observa-

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das são mencionadas modificações: no modo de fazer (o feijão fradi-
nho era moído com um rolo cilíndrico em pilão de pedra áspera em
uma face, substituído atualmente pelo moinho elétrico); no modo
de comercialização (antes vendido em tabuleiros e gamelas levados
na cabeça, atualmente em tabuleiros dispostos em pontos fixos, re-
gulados pelo poder público, ou, ainda, semipronto, em supermerca-
dos e delicatesses da cidade; e no modo de consumo (antes servido
acompanhado apenas de pimenta, atualmente de vatapá, caruru,
salada vinagrete e camarão; antes preparado em casa, atualmente,
frito na rua; antes feito no formato de uma colher de sopa, atual-
mente, no de uma escumadeira).

É também apontada a profissionalização da atividade. Com a diminui-


ção do tempo de trabalho empregado no preparo do acarajé, possibi-
litada pela incorporação de novos instrumentos e tecnologias, a co-
mercialização adquiriu importância enquanto atividade econômica.
Assim, deixou de estar associada especificamente às obrigações com o
santo pelas filhas de Oyá, e passou a envolver profissionais de diferen-
tes vinculações religiosas, com a participação na atividade sendo re-
gida por entidades reguladoras. Ainda, sem que tenha deixado de ser
uma prática predominantemente feminina associada à autonomia das
mulheres, registra a participação de homens como baianos de acarajé.

Se o pedido de Registro foi inicialmente motivado por um conjunto


de baianas de acarajé, no dossiê, o Ofício das Baianas de Acarajé é
apreendido a partir de uma dupla vinculação identitária: aos terrei-
ros de Candomblé e à cidade de Salvador.

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Monumentos da cidade de Salvador, as baianas de acarajé desig-
nam espacialidades e temporalidades urbanas, e representam uma
identidade baiana, no que diz respeito a um estilo de vida, a uma
composição étnica e cultural e ao pertencimento a uma unidade re-
gional. Por sua vinculação ao Candomblé, mas também por se tratar
de uma atividade inicialmente realizada por mulheres descendentes
dos africanos trazidos ao Brasil, o acarajé está associado à identida-
de afro-brasileira, trazendo toda a complexidade da configuração
dessa identidade (memória da participação do afrodescendente na
história e na formação cultural do país; memória de uma ancestrali-
dade; pertencimento a uma cultura diferenciada; e etnicidade, com
diferentes elementos operando como diacríticos).

Nesse contexto, as baianas de acarajé integram e com-


põem o cenário urbano cotidiano e a paisagem social da-
quela cidade. Representam tradições afrodescendentes
fundamentais das identidades da população que mora e
transita nas áreas centrais e antigas, em que se destaca
o conjunto arquitetônico do Pelourinho. Assim, ao olhar
patrimonial une-se o olhar cidadão, no intuito de identi-
ficar ou pontuar na geografia urbana lugares tradicionais
pontos de venda onde, diariamente, é celebrado o hábito
de provar comida de santo e de gente. (IPHAN, 2007, p. 18)

No dossiê se procura abranger o que é chamado de o “alargamento


das possibilidades simbólicas”.

Imerso na dinâmica cultural das grandes cidades brasilei-


ras, sobretudo em Salvador, o acarajé está sujeito a varia-
dos processos de apropriações e ressignificações nos dife-
rentes segmentos da sociedade, sem, contudo, perder seu
vínculo com um universo cultural específico e fundamental
na formação da identidade brasileira. (IPHAN, 2007, p. 18)

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Observa-se, no dossiê do Ofício das Baianas de Acarajé, uma preo-
cupação com a instituição de uma política cultural inclusiva, que se
expressa na tentativa de abarcar todas as possibilidades de atribui-
ção de significado ao bem cultural ou de vinculação identitária. O
Ofício das Baianas de Acarajé designa a identidade brasileira, tanto
por sua participação em uma cultura geral, como pela participação
do negro enquanto grupo formador e segmento específico da so-
ciedade. O acarajé é tomado em referência aos praticantes do Can-
domblé, às mulheres afrodescendentes, aos afrodescendentes em
geral (a cuja memória o acarajé referencia), aos novos integrantes
do ofício vinculados a diferentes religiões, às identidades brasileira
e baiana, à população de Salvador que consome o acarajé nas ruas
da cidade, e, também, aos turistas.

SISTEMA AGRÍCOLA TRADICIONAL DO RIO NEGRO

O requerimento de Registro dos Sistemas Agrícolas Tradicionais do


Rio Negro como Patrimônio Cultural do Brasil foi encaminhado ao
IPHAN em junho de 2007, tendo como proponente a Associação das
Comunidades Indígenas do Rio Negro (ACIMRN). Sua inscrição no Li-
vro dos Saberes ocorreu em novembro de 20105. A proposta de reco-
nhecimento dos sistemas agrícolas como patrimônio cultural partiu

5 O processo teve início com a proposição, em 1997, de uma pesquisa acadêmica pelo PACTA –
Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais na Amazônia, um temático de
pesquisa realizado no contexto da Cooperação bilateral Brasil-França do CNPq, envolvendo a
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Institut de Recherche pour le Développe-
ment– IRD. Da elaboração do dossiê, participaram os pesquisadores Esther Katz, Joana Cabral
de Oliveira, Laure Emperaire, Lúcia van Velthem, Manuela Carneiro da Cunha e Carla Dias.

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de pesquisadores atuantes junto às populações do Rio Negro, e a
demanda foi construída na interlocução entre instituições governa-
mentais, organizações não governamentais e populações indígenas.
O interesse do IPHAN pela solicitação da ACIRMN se enquadrou em
uma perspectiva regional sobre o patrimônio cultural indígena que
teve como foco inicial o registro da Cachoeira de Iauareté, em 2006.

No Registro do Sistema Agrícola Tradicional do Alto Rio Negro, a noção


de sistema adquire evidente centralidade. No dossiê nos é indicado
que o enquadramento do bem cultural enquanto “sistema agrícola”
visou evitar destacar uma única expressão como designativa do con-
junto e, com isso, evitar alguns efeitos perversos, como a hierarquiza-
ção de significados ou a materialização da cultura. O Sistema Agríco-
la Tradicional do Alto Rio Negro é caracterizado por se constituir por
uma alta diversidade de plantas cultivadas, por saberes agrotécnicos,
uma rede de atores policêntrica e não hierarquizada, elaboração de
uma rica cultura material, relativa disponibilidade de terras cultivá-
veis, sistema alimentar diversificado e existência de um campo sim-
bólico embutido nas diversas atividades (IPHAN, 2010, p. 154).

O acionamento da noção de sistema aponta para a interdependên-


cia entre os diferentes elementos, dentre os quais manejo do espa-
ço, plantas cultivadas, cultura material e alimentos; interações com
o meio ambiente, produção e obtenção dos alimentos, ingredientes,
técnicas culinárias, receitas, “formas de comer” e relações sociais
construídas em torno da alimentação; além da cosmologia, simbo-
logia, crenças, ritos e mitos.

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Definida segundo proposição de Delatre (1994 apud IPHAN, 2010)
um conjunto de elementos em interação são apresentados como as-
pectos da noção de sistema empregada: “Trata-se de um sistema
aberto, construído em torno das relações sociedades-espaços-plan-
tas que incorpora certos elementos em função de contextos cultu-
rais, ecológicos, históricos ou políticos” (IPHAN, 2010, p. 20).

Na noção apresentada, há uma preocupação em presumir um espaço


para a circulação de saberes, a despeito de eventuais segmentações
ou clivagens. As relações definidas pelo sistema abrangem também
o não humano, incluindo os artefatos culturais, que são dotados de
intencionalidade, agência e eficácia.

O sistema agrícola tradicional é apresentado em sua historicidade,


em que elementos e espécies foram sendo incorporados segundo os
diferentes episódios de contato e de interação com a sociedade en-
volvente. A ação humana não é considerada necessariamente pre-
datória, uma vez que é produtora de biodiversidade. A diversidade
de espécies cultivadas é adotada como indicador da adaptabilidade
do sistema frente às mudanças ecológicas, culturais e econômicas.

A incidência da história sobre a prática regional é preferida à ideia de


significado, e a delimitação da área geográfica privilegia as relações
estabelecidas ao longo do tempo, que possibilitaram a produção, o
manejo e a conservação da agrobiodiversidade. Um aspecto inte-
ressante de destacar na elaboração do dossiê do bem em questão é
a alusão à interação entre dois diferentes sistemas de conhecimento
– o conhecimento tradicional indígena e o conhecimento científico.

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Na descrição e na caracterização apresentadas no dossiê não é fei-
ta muita alusão à questão identitária. Há uma rápida menção em
trecho que busca afirmar seu valor patrimonial, associado à sua es-
pecificidade, que singulariza os participantes dessa prática enquan-
to integrantes de um grupo cultural específico – diferente de outros
grupos culturais (não apenas enquanto linguagem através da qual
se busca comunicar a diferença) – e define a exemplaridade em sua
expressividade da diversidade brasileira.

Na descrição dos artefatos materiais que integram o sistema agrí-


cola – aqueles cujo fabrico se dá localmente –, estes operam na ex-
pressão de diferenças entre os grupos inter-relacionados, bem como
enquanto diacríticos de uma identidade indígena. A vinculação do
bem cultural à constituição de identidades étnicas é recusada, e é
priorizada a adoção de um recorte regional, pautado na perspectiva
da conformação de redes.

O que torna os Sistemas Agrícolas Tradicionais do Rio Negro um


bem cultural dotado de valor patrimonial é sua importância para a
autonomia alimentar das populações indígenas, bem como sua ca-
pacidade de ajuste à floresta e, assim, sua importância para a ma-
nutenção da agrobiodiversidade. Os sistemas agrícolas tradicionais
do Rio Negro são pensados em termos reativos à expansão de um
modelo agrícola pautado na monocultura, em grandes proprieda-
des e na produção para o mercado. Isso aponta para a necessida-
de de que outros aspectos sejam também considerados quando da
adoção de modelos de produção agrícola, tais como impactos sobre

188/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


o meio ambiente, manutenção de uma reserva de biodiversidade,
autonomia alimentar de diferentes populações, prevenção da am-
pliação de quadros de exclusão socioeconômica, entre outros.

É o temor pelo rompimento do equilíbrio que induz à proposição de


uma ação patrimonial. Embora o bem cultural esteja associado ao
que se costuma designar como populações tradicionais, a propos-
ta de intervenção se dá no sentido de sua valorização e promoção,
orientada para o futuro e pelos efeitos que se almeja produzir, em
acordo com proposições de convenções e recomendações de agên-
cias de cooperação multilateral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta breve apresentação sobre aspectos da transposição do arca-


bouço teórico da Antropologia para a implantação do Pnpi/Iphan,
procurei apontar alguns diferentes agenciamentos dos usos da no-
ção de sistema nos processos de Registro de bens culturais ditos de
natureza imaterial como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Iphan.
Visei, assim, contribuir para as reflexões sobre o trabalho do antro-
pólogo nos quadros do Estado ou em sua colaboração para a im-
plantação de políticas públicas voltadas à valorização e à promoção
da diversidade cultural.

Acredito ter trazido elementos que possibilitam refletir sobre os posi-


cionamentos epistemológicos e suas implicações políticas, no que diz
respeito aos variados sentidos atribuídos à diferença em tempos atuais.

189/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


É necessário que nos perguntemos sobre o lugar em que nos situa-
mos para olhar para a diferença, e pensamos aqui no que nos coloca
Viveiros de Castro (2002) acerca de se percebemos a diferença como
parte da sociedade nacional ou enquanto situada na sociedade na-
cional. Ou, ainda, se e em que medida a valorização da diversida-
de através de intervenções empreendidas pelo Estado consiste em
uma regulação das possibilidades em que a diferença pode se dar,
enquadrando as múltiplas formas da criatividade humana no tem-
po linear da história progressiva ocidental.

O equacionamento das diferenças em termos de cultura e a ênfase so-


bre os significados atribuídos aos bens culturais não seriam também
uma forma de etnocentrismo, ao perceber o outro segundo um modelo
de apreensão da diferença inscrito no pensamento acidental, conforme
apontado por Wagner (2010) em sua proposta de antropologia reversa?

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NO MIOLO DE FEIRA TEM “MUÍDO”: A FOLCLORIZAÇÃO
DA CULTURA POPULAR NA PATRIMONIALIZAÇÃO
DA FEIRA DE CAMPINA GRANDE
Lucas Neiva Peregrino1

INTRODUÇÃO

A Feira de Campina Grande é um lugar que provoca sensações de es-


tranheza e de familiaridade para o visitante. Os cheiros, as cores, os
sons, as sensações térmicas, o tato e as interações possibilitam uma
experiência diferente para aqueles que a visitam pela primeira vez. A
familiaridade está na percepção daquilo que é mais comum de aces-
sar no dia a dia ou, mais além, através da memória afetiva. É o cheiro
de comida fresquinha sendo preparada ou as fisionomias daqueles
que parecem com vizinhos ou com pessoas de uma fotografia no por-
ta-retratos da casa da avó.

Por outro lado, também é possível viver apenas a experiência do consu-


mo rápido. Pode-se facilmente comprar um produto nas margens dessa
feira – uma vez que sua extensão se aproxima dos 75 mil metros quadra-
dos – sem ter acesso a tantas emoções e interações. Contudo, vivenciar
o chamado “miolo da feira” no sábado garante a experiência completa.

1 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande. Pesquisador do


Observatório de Políticas Culturais da Universidade Federal da Paraíba - ObservaCult/UFPB.

193/208
A Feira de Campina Grande expressa a diversidade da cultura tradi-
cional e popular, mas, também, os empreendimentos da moderni-
zação; algumas expressões culturais deixaram de acontecer na Feira
em virtude das mudanças no cotidiano: urbanização, crescimento
dos supermercados, migrações etc. Entretanto, é possível encontrar
na Feira indivíduos e grupos detentores de saberes e fazeres her-
dados de seus antepassados e caracterizados por tradições de co-
nhecimento bem marcadas: repentistas, cordelistas, emboladores,
magaieiros, flandreleiros, cesteiros, fateiros, fazedores de cocho e
seleiros são algumas das atividades da Feira de Campina Grande.

A variedade das expressões culturais e a forte referência à me-


mória e à história dos grupos formadores das identidades local,
regional e nacional fundamentaram a entrega do título de patri-
mônio cultural do Brasil à Feira de Campina Grande em setembro
de 2017. O conturbado processo de registro perante o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reflete as nuan-
ces das intricadas redes formadas no campo do patrimônio, que,
muitas vezes, são excluídas das discussões em torno das expres-
sões culturais e do patrimônio cultural2.

A Feira é constantemente relacionada à cultura popular e à tradição


nordestina como lugar de reprodução de práticas individuais e co-
letivas arcaicas e próximas de extinção e, simultaneamente, como
um lugar de encontro com atividades comerciais contemporâneas.

2 Sobre o processo de registro da Feira de Campina Grande e essas nuances no campo do


patrimônio, cf. Peregrino (2018).

194/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


O local surge a partir das primeiras atividades comerciais no início
da vila que deu origem à Campina Grande, também chamada de ci-
dade-feira (PEREIRA JÚNIOR, 1977; ARAÚJO, 2006).

Busco, neste artigo, apresentar a Feira de Campina Grande como lu-


gar onde as expressões culturais são reproduzidas e transformadas,
refletindo criticamente sobre a folclorização e romantização de al-
gumas dessas expressões. Assim, o caso da Feira reflete um “muído”
– confusão ou problema – na medida em que se exalta o popular e
tradicional e, ao mesmo tempo, defende-se sua dinâmica cultural,
seu encontro e interação com a modernização.

CIDADE-FEIRA OU FEIRA-CIDADE

A cidade de Campina Grande se localiza no interior do estado da Pa-


raíba, a cerca de 120 km da capital, João Pessoa. É a segunda cidade
mais populosa do estado, com aproximadamente 400 mil habitantes
(IBGE, 2010). Sua fundação se relaciona com a história de dominação
do interior do país no século XVII. Com o movimento de expansão, a
cidade e a sua Feira nascem na mesma época, pelo mesmo motivo: lo-
cal de descanso para os que passavam para o sertão ou para o litoral.

No passado, a localidade era habitada por indígenas Cariri, que fo-


ram subjugados e/ou expulsos do território. O primeiro aldeamento
foi ali formado no final século XVII; a circulação de tropeiros, boia-
deiros e viajantes passa a acontecer mais tarde, no século XVIII.
Destaca-se essa circulação na região em virtude de sua localização,

195/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


propícia ao descanso dos que passavam a caminho do sertão ou do
litoral. Já com o crescimento do aldeamento, apontam-se as primei-
ras trocas comerciais, que mais tarde deram origem a uma pequena
feira, que se tornaria a Feira das Feiras (PEREIRA JÚNIOR, 1977). Ain-
da no século XVIII, é construída a primeira igreja da região e, assim,
forma-se o início das atividades de uma cidade embrionária, com
cadeia, comércio e administração política.

Tem-se registro de que a Feira era móvel, ocorria em ruas de acordo


com a vontade dos políticos e comerciantes. Local de trocas mate-
riais e simbólicas, a Feira foi e é objeto de lutas políticas (ALMEIDA,
1962; COSTA, 2003; OLIVEIRA, 2005; PEREGRINO, 2018). Os seus usuá-
rios frequentavam e frequentam a Feira para consumir os produtos
materiais, mas também para consumir o que há de imaterial: as in-
terações sociais. No lugar certo da Feira é possível descobrir o que
está acontecendo com a política de Campina Grande ou qual será a
próxima aquisição do time do Campinense e o que está acontecen-
do nas cidades circunvizinhas. Outro exemplo da condição política
da Feira se percebe nas épocas de eleição, quando candidatos a uti-
lizam como curral eleitoral.

Por essa razão, diversas revoltas populares tiveram a Feira de Cam-


pina Grande como palco de disputas. Exemplo disso é a Revolta do
Ronco das Abelhas entre 1851 e 1852 (OLIVEIRA, 2005) e a Revolta de
Quebra-Quilos em 1874 (LIMA V, 2009). Ainda no final do século XIX,
os dois partidos políticos (Conservador e Liberal), através dos seus re-
presentantes, mudavam o local de funcionamento da Feira conforme

196/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


se alternavam no poder. A concentração do comércio na frente do es-
tabelecimento comercial do político em exercício do mandato acarre-
tava maior controle social e crescimento da riqueza e de poder.

Atualmente, o local da Feira é fixo, localiza-se no bairro do Centro, nas


proximidades da avenida Floriano Peixoto, principal avenida da cida-
de. Seu comércio se distribui por nove ruas do bairro, em uma área de
aproximadamente 75 mil m² (ARAÚJO, 2011). Essas ruas são ocupadas
por mais de três mil pontos de comércio, além de grandes e médios es-
tabelecimentos comerciais que funcionam nos lotes dos quarteirões. A
maioria das barracas distribuídas nas ruas é feita de zinco, madeira ou
cimento, formando uma complexa rede de ruelas e becos labirínticos.

A FEIRA COMO EXPRESSÃO POPULAR


É grande a quantidade de feiras livres no Nordeste brasileiro3. Exis-
tem as feiras pequenas – encontradas no interior dos estados, nas
médias e pequenas cidades – e há as feiras maiores – encontradas
nas grandes cidades do interior ou nas capitais, como é o caso da
Feira de Campina Grande (PB), da Feira de Caruaru (PE) e da Feira de
São Cristóvão (BA), já no litoral.

As feiras livres são constantemente relacionadas às atividades co-


merciais (compra e venda de produtos) e à concentração de expres-
sões populares. Exemplos emblemáticos são o artesanato do Mestre
Vitalino e o cordel do Mestre Manuel Monteiro.

3 Muitos são os estudos sobre as feiras livres, cf. (MORAIS e ARAÚJO, 2006).

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Na Feira de Campina Grande, diversos tipos de produtos são ven-
didos: hortifrutigranjeiros, grãos, farinhas, roupas e calçados, ele-
trônicos, doces, lacticínios, carnes e peixes, materiais de construção,
móveis usados e novos, raízes, artesanatos em geral, flores, entre
outros. Duas músicas mais conhecidas eternizaram essa diversidade
de produtos encontrados nas grandes feiras, “Feira de Mangaio” de
Glorinha Gadêlha e Sivuca, e “A Feira de Caruaru” de Onildo Almeida.

As músicas trabalham o imaginário criado em torno dessas feiras.


Um imaginário produtor de uma das dimensões simbólicas da Feira,
lugar de memória “com efeito nos três sentidos da palavra, material,
simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diver-
sos” (NORA,1993, p. 21). Outras camadas desse simbólico são produ-
zidas pelos próprios agentes que vivem a feira e na feira – feirantes,
consumidores, comerciantes, transeuntes, moradores. A memória
social produzida por eles é capaz de selecionar fatos para constituir
imagens e imaginários da feira: “só é lugar de memória se a imagi-
nação o investe de uma aura simbólica” (NORA, 1993, p. 21). Assim,
a história e a memória da Feira de Campina Grande são construídas
a partir de seleções, voluntárias ou involuntárias, produtos de inte-
resses e disputas. Alguns fatos são lembrados, outros esquecidos.

As expressões culturais, nesse sentido, são relacionadas com as ativi-


dades mais tradicionais das feiras. As duas músicas, por exemplo, ci-
tam tanto os produtos comuns encontrados em qualquer feira como
aqueles mais característicos da cultura popular e do imaginário do
nordestino e do sertanejo: arreio de cangalha, lambu assado, rabicho-
la, tabaqueiro, caneco, “arcoviteiro”, “carça de arvorada”, nhandu.

198/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


O registro da Feira de Campina Grande como patrimônio imaterial
destacou as atividades que mais expressavam a cultura popular da
Feira. Por exemplo, os mangaieiros4 e os raizeiros – os ofícios mais
tradicionais e mais próximos de serem esquecidos – são objetos de
constantes exaltações.

Ao lado da preservação, o elemento midiático vem se tornando um


trunfo para os órgãos de proteção ao patrimônio. O bem registrado
ganha um “selo cultural” com um belo desenho5, que passa a ser
associado àquela marca, adentrando no mercado cultural com valor
agregado. A exaltação do popular e do tradicional é um elemento de
destaque na imagem pública do bem cultural. No caso de Campina
Grande, a exploração midiática e comercial do “Maior São João do
Mundo” já foi analisada:

Ela [a Festa de São João] é uma invenção da tradição,


porque cria o fenômeno e o espetáculo da festa juni-
na no espaço urbano, amparada na tríade: festa-po-
vo-cidade; e é uma apropriação da tradição enquanto
práticas e discursos que permitem a leitura do even-
to como um campo aberto a intencionalidades: nos
campos econômico, político, social, cultural e midiá-
tico. (LIMA E, 2013, p. 25)

4 Hoje, as feiras de mangaio são raras. São feiras itinerantes que vendem uma diversidade
de produtos. As feiras de mangaio são identificadas nas grandes feiras como o local onde
se encontram produtos artesanais, manufaturados e feitos com matéria prima vegetal e
animal – são poucos os produtos industriais e de plástico.

5 Sobre a marca Patrimônio Cultural Brasileiro, lançada pelo IPHAN em agosto de 2017, cf.
http://portal.iphan.gov.br/ccpi/noticias/detalhes/4273/lancado-o-emblema-do-patrimo-
nio-cultural-brasileiro

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A Feira, junto à festa de São João, torna-se símbolo de um tipo de
expressão cultural urbana que se reveste de transformações e de
hibridizações de elementos contraditórios para uma certa ideia de
preservação: o tradicional/rural/arcaico com o moderno/urbano/
atual. Por outro lado, a folclorização percebida em alguns processos
de patrimonialização passa a ser questionada, pois mascara o com-
plexo e o diverso com estereótipos simplificados.

DINÂMICA, CULTURA POPULAR E PATRIMÔNIO


A Feira reflete os dois domínios que Nora (1993, p. 21) aponta como
próprios dos lugares de memória: “os lugares de memória perten-
cem a dois domínios, que a tornam interessante, mas também com-
plexa: simples e ambíguos, naturais e artificiais, imediatamente
oferecidos à mais sensível experiência e, ao mesmo tempo, sobres-
saindo da mais abstrata elaboração”.

O encantamento produzido pela Feira de Campina Grande através


de seu imaginário se reflete como um olhar romântico sobre uma
expressão cultural. Como consequência desse encantamento, a
simbologia e as relações sociais estabelecidas entre os feirantes são
inseridas em um todo estático. Toji (2011, p. 73) alerta sobre os efei-
tos dessa romantização: “O perigo desse tipo de procedimento é a
reificação das presenças socioculturais, levando, em muitos casos, a
uma ‘folclorização’ de identidades e à naturalização de alteridades,
que [...] estão sempre em transformação”. A compreensão da dinâ-
mica cultural se choca com esses procedimentos, muitas vezes vem
associados a uma ideia de resgate.

200/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Além de confundir uma suposta “cultura do povo” (enten-
da-se “dos pobres”, “dos analfabetos”, “dos camponeses”
etc.) com uma “cultura popular” (em oposição à “cultura
erudita”), o discurso da “preservação” e do “resgate” nega
as dinâmicas culturais que constituem todo o processo
histórico de construção. (SILVA, 2008, p. 36, grifos nossos)

Apesar do debate que opõe a cultura popular e a cultura erudita, per-


cebe-se que a fronteira entre ambas talvez não seja algo facilmente
distinguível (CAVALCANTI, 2018). As elites sempre conviveram com o
povo na Feira de Campina Grande, sempre estiveram presentes como
consumidores e, algumas vezes, participando mais internamente como
empresários e comerciantes. Outras vezes, porém, essas mesmas elites
agiam como julgadoras, propagando o estigma da marginalização e da
pauperização da Feira. Agiram, como destaca Becker (1977), enquanto
empresários morais, produzindo uma cruzada higienizadora da cidade,
buscando impor códigos morais colonizadores. A Feira, portanto, deve-
ria se organizar, passar por uma limpeza (social e fisicamente).

Por outro lado, não há apenas a disputa entre uma elite e o povo, o
processo não é dual, ele se cruza com diversos elementos e dimen-
sões. O campo do patrimônio tangencia e mistura-se a outros cam-
pos: comércio, política, moral etc. Por exemplo, percebe-se dentro
do grupo dos feirantes uma variação de concentração de capital
financeiro. Há quem possua mais de um ponto de venda e alugue
seus pontos para outros feirantes, há quem possua nível superior
completo e capital financeiro para bancar a universidade particular
dos filhos (PEREGRINO, 2018) e/ou, ainda, capital cultural para pre-
sidir a Associação dos Feirantes.

201/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Handler (1984), refletindo sobre diferentes situações que ele viveu
em visita à província de Quebec, critica a ideia de que tradição e
mudança devem ser estudadas como “continuidade sociocultural”
(sociocultural continuity), isto é, como um processo de mudança e
reafirmação de identidades. O autor percebe que a construção des-
sa continuidade se origina na ideia de que as identidades culturais
são produtos da objetificação cultural.

A retórica dos processos de patrimonialização foi relacionada a essa


objetificação também por Gonçalves (1996). Na medida que é pre-
ciso enquadrar a “realidade” ou a cultura em uma entidade como
o patrimônio, privilegiam-se alguns “traços culturais” (cultural trai-
ts) e excluem-se outros (HANDLER, 1984), o que nos remete à ideia
da produção do imaginário folclórico da Feira. Esses traços culturais
são percebidos de forma integrada e organizada. Isso fica evidente
em alguns processos de patrimonialização que buscam a coerência
técnica para defesa da referência cultural – entendida como “um ob-
jeto único no mundo real” (HANDLER, 1984, p. 61, tradução nossa).

Um “muído” ocorre aqui: a patrimonialização não apresenta apenas


um imaginário da Feira, ela escolhe um dentre tantos e ajuda a re-
produzi-lo. Claro que não seria coerente valorizar o imaginário estig-
matizante produzido pela elite higienizadora do início do século XX.
Por outro lado, o registro do patrimônio imaterial não deve se utili-
zar da folclorização da cultura popular “no sentido de simplificação
através da eleição de certos estereótipos para fins de exploração co-
mercial, turística e midiática” (LEITE, 1999, p. 125).

202/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


O registro como um instrumento de salvaguarda do patrimônio imate-
rial deve buscar meios de exaltar aquilo que os detentores do bem cul-
tural trazem em seus discursos e práticas. É a organização e a análise
dos dados levantados, além da interpretação dos pesquisadores,
que serão capazes de fugir desses “muídos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS OU RESOLVENDO O “MUÍDO”


Desde a década de 1980, percebem-se as contribuições da Antro-
pologia para implementação das políticas de salvaguarda do patri-
mônio imaterial. Esse braço das políticas culturais está previsto na
Constituição Federal de 1988 e em diversas legislações, destacando
o Decreto 3.551/2000 que cria a Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial (PNPI)6 e o registro – instrumento análogo ao tombamento,
mas utilizado para o patrimônio intangível, isto é, para as expressões
culturais e valores produzidos pela comunidade produtora do bem.

O registro como Patrimônio Cultural ganha maior repercussão com


a legitimação das políticas internacionais de salvaguarda dos bens
imateriais. Nacionalmente, o IPHAN institui a política de salvaguarda,
propondo a participação da comunidade como fundamental. É unís-
sono que a salvaguarda, em sentido mais amplo, é vivenciada no dia a
dia da comunidade onde a referência cultural está: os feirantes, usuá-
rios e moradores salvaguardam a Feira na medida que continuam a
desempenhar suas atividades e a estabelecer relações nela.

6 Regulamentado apenas em 2016 através da Portaria 200/2016 do IPHAN. O programa diz


respeito a toda política desenvolvida pelo órgão referente ao patrimônio imaterial. Políti-
ca entendida, aqui, como policy (projeção e realização de metas) e não como politics – “a
atividade, a arte ou a ciência do governo de governar” (SOUZA LIMA e CASTRO, 2015, p. 19).

203/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


Dessa forma, a salvaguarda não está na atuação do órgão patrimo-
nial que, exercendo sua função, executa os instrumentos de preser-
vação (registro ou tombamento). É através de sua atuação, de sua
legislação e do desenvolvimento de suas bases teóricas (legitima-
das por profissionais com reconhecimento técnico) que o IPHAN es-
tabelece e legitima sua política de salvaguarda7.

Na aplicação do instrumento de registro, é importante que a atua-


ção/participação da comunidade ocorra em suas diversas fases: da
articulação para o pedido de registro – fase anterior ao processo ad-
ministrativo – até o Plano de Salvaguarda. A patrimonialização dos
bens intangíveis deve respeitar a autonomia e as dinâmicas dos in-
divíduos fazedores do bem cultural.

Os detentores da feira fazem emergir as mais diversas práticas que


envolvem saberes antigos passados de geração em geração – desde
ofícios a regras de postura –, que interagem com práticas mais recen-
tes de comércio e de socialização, trazidas pela industrialização e pela
modernização. Portanto, há um diálogo constante do passado com as
transformações do presente. Essa interação do passado com o pre-
sente dá sentido ao fluxo cultural, isto é, à constante transformação
da cultura (HANNERZ, 1992), e deve estar clara nos processos de patri-
monialização, pois não há bem cultural que não se transforme.

7 O trabalho desenvolvido pelo IPHAN é replicado nos níveis estaduais e municipais, nos
limites de seus orçamentos, competências e, mais importante, de interesses.

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Por algum tempo, a defesa do engessamento de expressões cultu-
rais foi objeto de um certo grupo de folcloristas, pois o contato com
a sociedade moderna faria desaparecer tais bens. Por outro lado,
quando falamos em folclorização, não nos referimos apenas a essa
exaltação, mas também à simplificação dessas expressões culturais,
como se fossem passíveis de engessamento. Assim, a folclorização
pode ser percebida como uma prática em que são repetidos hábi-
tos do senso comum, que, muitas vezes, podem levar à reprodução
de estereótipos socias, como, por exemplo, de que na Feira só tem
pobres e gente feia, de que ela é suja e desorganizada. Aceitam-se,
assim, simplificações onde há complexidade.

A simplificação dos “muídos” na construção da imagem da Feira


aparece em alguns momentos do seu processo de registro como pa-
trimônio cultural. Os problemas complexos de relação entre os fei-
rantes são diluídos em um objetivo maior: sua patrimonialização.
As atividades que não podem ser inseridas no mercado econômico
atual em virtude da industrialização são romantizadas e destacadas
como símbolos de uma Feira que já não é a mesma onde Manuel
Monteiro vendia seus cordéis.

Entretanto, independente do título de patrimônio, a Feira é perce-


bida e vivenciada pela comunidade local como um espaço de refe-
rência “à identidade, à ação, à memória” (BRASIL, 1988, Art. 216) da
sociedade local e regional. Ela é um lugar de construção de práticas
culturais diversificadas, onde o antigo e o novo, o tradicional e o mo-
derno convergem e dialogam.

205/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


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208/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Cidades, memórias e patrimônios [recurso eletrônico] / organi-


C568 zação, Luciana Chianca, Ulisses N. Rafael. – São Cristóvão, SE :
Editora UFS, 2020.
209 p.

ISBN: 978-65-86195-16-3

1. Sociologia urbana. 2. Antropologia. 3. Memória. 4. Patrimônio cultural. I.


Chianca, Luciana. II. Rafael, Ulisses N.
CDU 316.7

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