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A MORTE DE DANTON

DE GEORG BÜCHNER

DOSSIÊ PEDAGÓGICO
ÍNDICE

Ficha técnica 2

Distribui
Distribui ção 3

O Espetáculo 4

Representações de A Morte de Danton 5

Georg Büchner 6

Georg Büchner: cronologia 9

A Morte de Danton 12

Os Últimos Sobressaltos 24

Cronograma da Revolução Francesa 34

Súmula da Revolução Francesa até à Morte de Danton 42

Danton, Robespierre e a Revolução 54

Danton 59

Sugestão de Atividades 63

Equipa Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E. 65

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15 MAR – 22 ABR

SALA GARRETT
4ª a sáb. 21h | dom. 16h

FICHA TÉCNICA
de
GEORG BÜCHNER

tradução
MARIA ADÉLIA e JORGE SILVA MELO

com
MIGUEL BORGES JOÃO DELGADO VÂNIA RODRIGUES
PEDRO GIL JOSÉ NEVES
SYLVIE ROCHA LUÍS MOREIRA e estagiários da ESTC
JOÃO MEIRELES MAFALDA JARA
MARIA JOÃO PINHO MARCO TRINDADE BERNARDO NABAIS
RITA BRÜTT MIRRÓ PEREIRA DAMIÃO VIEIRA
AFONSO LAGARTO NUNO BERNARDO DANIEL VIANA
ALEXANDRA VIVEIROS NUNO PARDAL DIOGO TORMENTA
AMÉRICO SILVA PEDRO LUZINDRO FILIPE VELEZ
ANTÓNIO SIMÃO PEDRO MENDES ISAC GRAÇA
ELMANO SANCHO RICARDO NEVES- IVO SILVA
ESTÊVÃO ANTUNES NEVES JOÃO PEDRO MAMEDE
GUSTAVO VARGAS RÚBEN GOMES JOÃO VENTURA
HUGO SAMORA RUI REBELO PEDRO LOUREIRO
JOANA BARROS TIAGO MATIAS RAFAEL GOMES
JOÃO DE BRITO TIAGO NOGUEIRA RICARDO TEIXEIRA

encenação som
JORGE SILVA MELO ANDRÉ PIRES

cenografia e figurinos assistência de encenação


RITA LOPES ALVES LEONOR CABRAL
JOANA BARROS
luz
PEDRO DOMINGOS co produção
TEATRO NACIONAL D. MARIA II
direção musical
GUIMARÃES 2012 - CAPITAL EUROPEIA
RUI REBELO
DA CULTURA
ARTISTAS UNIDOS

M/ 12

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DISTRIBUIÇÃO
MIGUEL BORGES HUGO SAMORA TIAGO NOGUEIRA
GEORGES DANTON FOUQUIER TINVILLE, CANTOR AMBULANTE,
PEDRO LUZINDRO CARCEREIRO PRISIONEIRO,
LEGENDRE, FABRE MARCO TRINDADE CIDADÃO
D´EGLANTINE CIDADÃO, DEPUTADO, NUNO BERNARDO
JOÃO MEIRELES PRISIONEIRO, AMAR CIDADÃO
CAMILLE DESMOULINS PEDRO MENDES LUÍS MOREIRA
TIAGO MATIAS PARIS, DEPUTADO, CIDADÃO,
HÉRAULT-SÉCHELLES HERMANN TRANSEUNTE,
AMÉRICO SILVA ANTÓNIO SIMÃO DEPUTADO,
LACROIX SIMON, CARCEREIRO, PRISIONEIRO,
JOSÉ NEVES CARROCEIRO CARRASCO
PHILIPPEAU VÂNIA RODRIGUES
JOÃO DELGADO MULHER DE SIMON DEPUTADOS,
RAPAZ DO LENÇO, JOÃO DE BRITO CIDADÃOS,
MERCIER TRANSEUNTE, PRISIONEIROS,
RÚBEN GOMES LAFLOTTE CARCEREIROS,
THOMAS PAYNE RITA BRÜTT CARROCEIROS,
PEDRO GIL JULIE POPULARES:
ROBESPIERRE SYLVIE ROC HA PELO ELENCO E
ELMANO SANCHO MARION ESTAGIÁRIOS DA ESTC
SAINT-JUST MARIA JOÃO PINHO (BERNARDO NABAIS,
GUSTAVO VARGAS LUCILE DAMIÃO VIEIRA,
BARRÈRE ALEXANDRA VIVEIROS DANIEL
RICA RDO NEVES- ROSALIE VIANA, DIOGO
NEVES JOANA BARROS TORMENTA, FILIPE
COLLOT D´HERBOIS, ADELAIDE VELEZ, ISAC GRAÇA,
CARRASCO RUI REBELO IVO SILVA, JOÃO
AFON SO LAGARTO MENDIGO, LIONÊS PEDRO
CIDADÃO, BILLAUD MIRRÓ PEREIRA MAMEDE, JOÃO
VARENNES, DUMAS DAMA DAS CARTAS VENTURA, PEDRO
NUNO PARDAL MAFALDA JARA LOUREIRO, RAFAEL
CHAUMETTE MULHER DA VIELA GOMES, RICA RDO
ESTÊVÃO ANTUNES TEIXEIRA).
SOLDADO, CIDADÃO,
DILLON, CARROCEIRO

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O ESPETÁCULO

Pretender fazer A Morte de Danton, o enigmático texto de Georg Büchner, é desejo


profundo de quem começou a dirigir espetáculos nos velhos anos 70 daquele
outro século, sanguinário também. Porque é na Morte de Danton que se lançam
todas as questões do teatro que depois nos viria a interessar, é nela que a
herança de Shakespeare é ultrapassada e o seu sopro histórico absorvido. Peça
desequilibrada, insólita, premonitória, desarrumada, desalinhada - em que às
cenas de multidão se sucedem as insónias mais íntimas, em que a História é vista
como um pesadelo noturno, peça de um negro pessimismo, é a peça sangrenta de
um rapaz olhando a morte. E a mim sempre me interessaram os escritos de
juventude. Do jovem Brecht à jovem Sarah Kane, do jovem Harrower ao jovem
Fosse ou ao José Maria Vieira Mendes – tenho-me encontrado sistematicamente
entre aqueles que afinam ainda a voz, que ainda não encontraram o equilíbrio
formal, que ainda sangram.

E A Morte de Danton é esse texto: as convulsões da História vistas por um rapaz,


perplexo perante a morte.

Jorge Silva Melo

Fotografia de ensaios © Jorge Gonçalves

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REPRESENTAÇÕES DE
A MORTE DE DANTON
A obra teatral de Georg Büchner não foi representada a não ser postumamente. A
descoberta deve-se aos naturalistas (nomeadamente Gerhard Hauptmann e,
depois, aos expressionistas. Max Reinhardt virá a estrear A Morte de Danton em
1916 e posteriormente em 1921 e 1929, tendo nessa altura sido realizado um filme
com Fritz Kortner. Também Gustav Gründgens dirige a peça, em 1939. Fora do
mundo germânico, a peça conhece várias versões, nomeadamente a encenação de
Jean Vilar (Avignon, 1948), Bruno Bayen (Théâtre de la Cité Internationale, 1968),
Georges Wilson no TNP (Paris, 1971), a de Giorgio Strehler em Milão, e, mais
recentemente, as de Alexander Lang no Deutchses Theater de Berlim (1981), Klaus
Michael Grüber nos Amandiers em Nanterre (1989), Thomas Oestermaier na
Schaubúhne (2001) ou a de Georges Lavaudant no Odéon (2002), Jean François
Sivadier (Rennes, 2005) ou ainda Michael Grandage (numa versão bastante livre
de Howard Brenton, no National Theatre, Londres, 2010). A peça deu origem a uma
ópera de Gottfried von Einem estreada em Salzburgo em 1947, com direção de
Ferenc Fricsay. Em Portugal, A Morte de Danton estreou, numa tradução de Maria
Adélia Silva Melo (aqui revista), em 1989, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de João Quintão e interpretação de: António Marques (Danton); João
Vasco (Robespierre); Sérgio Silva (Camille Desmoulins); Carlos Freixo (Lacroix);
Paulo B (Saint Just); Anna Paula (Marion); Fernanda Neves (Lucile); Filomena
Gonçalves (Julie); Santos Manuel (Simon); Alice Luís; Ana Marques; António Pedro
Cerdeira; Carlos Pessoa; Diogo Infante; F. Pedro Oliveira; Marcantonio Del-Carlo.

João Vasco (Robespierre) e António Marques (Georges Danton),


em A Morte de Danton (enc. Carlos Avilez),
TEC, 1989 © César Cardoso

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GEORG BÜCHNER
STANLEY KAUFFMANN

Filho de um médico ilustre, nasceu em Goddelau, uma pequena cidade perto de


Darmstadt, na Alemanha, a 17 de outubro de 1813. De génio científico brilhante,
Georg, influenciado pelo pai, decidiu começar a estudar medicina em 1831, aos 18
anos. Dois anos mais tarde, contudo, a sua atenção virou-se para a história e a
filosofia, e envolveu-se profundamente nas lutas políticas do seu tempo. Isto levou
a que trocasse a Alemanha por Zurique, onde continuou a sua formação na
Universidade. Morreu a 19 de fevereiro de 1837, aos 23 anos, após sofrer de uma
das “febres” generalizadas do seu tempo, provavelmente tifo.

Büchner escreveu algumas das peças mais influentes da história do teatro


ocidental: A Morte de Danton (1835). Leôncio e Lena (1836) e o inacabado Woyzeck
(1837). Apesar de, na altura, o seu trabalho ter tido pouco impacto, influenciou um
espectro incrivelmente largo de práticas teatrais, desde a sua redescoberta por
Gerhardt Hauptmann nos finais do século XIX.

A Morte de Danton é a primeira peça escrita por Büchner, com 21 anos. A sua
pesquisa para a peça começou no final de 1834 e completou a primeira versão em
5 semanas já em 1835. A peça só estreou em 1902, muito após a morte de Büchner.

A Morte de Danton confronta-nos com os problemas mais graves da ideologia e da


crença. Os assuntos em A Morte de Danton são subtis e caracterizados com
mestria, emergindo de uma época particularmente problemática e dramática na
história dos movimentos democráticos no ocidente, a era da Revolução Francesa e
do Terror. A ação, que tem lugar depois da decapitação de Luís XVI e Maria
Antonieta, traça a queda do espírito democrático, a partir das alturas do idealismo
até às profundezas do desejo vingativo e sanguinário. A peça acompanha a
história de George Danton, um poderoso e carismático orador e líder das forças
antimonárquicas pós-revolucionárias, que se volta contra o poder exercido pelos
seus correligionários (nomeadamente Robespierre) e tenta parar as medidas
atrozes que trazem tanto sofrimento ao povo. Robespierre impede-o e usa o
Tribunal para condenar à Danton e toda a oposição à morte, consolidar o seu
poder e chacinar inúmeros milhares de homens, mulheres e crianças franceses. No
final, Danton é levado à guilhotina.

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“Büchner, apaixonadamente humano, politicamente rebelde, manifestando-se com
impaciência, queria claramente que a forma da sua peça se ajustasse às suas
visões radicais das personagens, da política e da história. A estrutura tradicional
teria sido limitadora, já que a peça que é precursora, filosoficamente, do
existencialismo do século vinte, que põe a nu o idealismo narcótico da ação
pública, e que explode com as injunções aristotelianas. A Morte de Danton é a
primeira peça a começar depois do seu clímax. O destino do protagonista – a sua
execução pelo grupo de Robespierre – já está mais que decidido antes de a peça
começar. A peça poderia igualmente chamar-se Danton a Morrer. Ele tenta
defender-se devido à pressão dos seus amigos; no entanto, desde o primeiro
momento da peça, o assunto está estabelecido na sua mente. Ele vai morrer.
Assim, a intenção dramática inconvencional de Büchner forçou-o a prescindir das
estruturas clássicas dos seus adorados Shakespeare e Goethe e a moldar a sua
peça de uma maneira tão inovadora e explorativa como o seu pensamento”. (…) “A
peça depende de um andamento, de um ritmo de progresso, de uma corrente de
cenários que agora associamos ao cinema e que parecia estar, antecipadamente,
na posse de Büchner. (...) Büchner, desprezando a prática teatral corrente,

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ultrapassou-a: respondeu a uma estética que ainda não existia. Consideremos
alguns pormenores. A peça não começa. Estas vidas já tinham estado a acontecer
durante algum tempo: nós apenas nos juntamos a elas. A cena um não começa
com o estabelecimento de tempo ou espaço – estes vão-se infiltrando à medida
que avançamos – mas com o sentido da nossa entrada num cenário de vidas em
progresso. (...) A peça ainda nem tem um minuto e já nós estamos completamente
imersos nela. Nós, que vivemos num mundo imerso em cinema, conseguimos
reconhecer o processo, usado aqui com um propósito excecional. (...) Ao longo da
peça, cenas longas e curtas, ativas e introspetivas quase se atropelam umas às
outras (...) A ideia da fusão de cenas através de mudanças de luzes e focos, algo
muito familiar ao teatro de hoje – e, claro, ao cinema – era rudimentar num teatro
que ainda não tinha, nem tinha sequer concebido, a iluminação elétrica”.

Stanley Kauffmann, in Büchner: A Revelation.

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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GEORG BÜCHNER:
CRONOLOGIA
1813 18 de outubro: Karl Georg Büchner nasce em Goddelau, Hesse, o primeiro
filho de Ernst Karl Büchner e da sua mulher, Caroline. (Dando seguimento a uma
tradição de muitas gerações, Ernst Büchner era médico; mais tarde entrou ao
serviço do grão-duque e conquistou por fim o título de Obermedizinalrat. O casal
teve mais cinco crianças; todas exceto uma – a mais velha das duas raparigas – se
distinguiram nas suas variadas áreas, particularmente Ludwig, o segundo mais
novo, que se tornou muito mais famoso que Georg no século XIX graças ao seu
livro Kraft und Stoff, que popularizou a filosofia materialista).

1816 A família muda-se para Darmstadt, capital do Grão-Ducado de Hessen-


Darmstadt.

1825 Depois de receber instrução primária em casa com a mãe e também numa
escola privada local, Büchner começa os estudos secundários no Ludwig-Georg-
Gymnasium em Darmstadt.

Georg Büchner, gravura de Aimbach


a partir de retrato de A. Hoffman

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1831 outubro: tendo deixado a escola em março, Büchner torna-se aluno na
Faculdade de Medicina da Universidade de Estrasburgo. Aloja-se em casa de um
pastor protestante viúvo, Johan Jakob Jaeglé, e começa um noivado secreto com
a sua filha Minna (Louise Wilhelmine, 1810-1880).

1833 Regulamentações governamentais obrigam Büchner a prosseguir os


estudos no Grão-Ducado, e assim ingressa em outubro na Universidade de
Giessen, na província do Alto Hesse. (Entre os seus professores, o grande químico
Justus von Liebig e J. B. Wilbrand, um dos expoentes máximos da
Naturphilosophie). Fins de novembro: ataque de meningite.

1834 Entre fins de fevereiro e inícios de março: sofre sérias crises de doença que
afetam o seu equilíbrio físico e mental. A meio de março (ou talvez mais cedo): a
carta “hediondo fatalismo” para Minna. Fins de março: escreve uma primeira
versão daquilo que viria a ser O Mensageiro de Hesse e funda a secção de Giessen
da sua Sociedade dos Direitos Humanos, núcleo revolucionário que incluía tanto
trabalhadores como membros da classe média; em abril, funda uma segunda
secção em Darmstadt.
Agosto: Carl Minnigerode é preso com grandes quantidades de recentes cópias
impressas de O Mensageiro de Hesse. Büchner escapa à prisão pela sua posição
social e familiar.
Setembro: Büchner abandona Giessen definitivamente e volta à segurança relativa
da casa familiar em Darmstadt.

1835 Entre fins de janeiro e fins de fevereiro: Büchner termina A Morte de Danton
“em cinco semanas no máximo”; neste período foi também provavelmente
chamado a depor.
Inícios de março: foge para Estrasburgo (rapidamente seguido, afinal, por uma
nota de captura).
Junho: A Morte de Danton é publicada em edição expurgada.
Outubro: Lenz está provavelmente concluída.

1836 31 de março: após agitados meses de trabalho, Büchner completa a tese em


Biologia, tendo lido excertos na Sociedade de História Natural de Estrasburgo, em
abril e princípios de maio.
Entre junho e outubro: outro intenso período de trabalho, no qual Büchner trabalha
alternadamente em Leôncio e Lena, em Woyzeck, num projeto de várias
conferências filosóficas e na “Lição Experimental” de Zurique; terá também
possivelmente planeado, redigido e terminado uma outra peça (de que não ficou
rasto), Pietro Aretino.

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Setembro: Büchner doutora-se pela nova Universidade de Zurique, tendo por base
a Memória sobre o sistema nervoso do barbo.
19 de outubro: após o seu vigésimo terceiro aniversário, celebrado no dia anterior,
Büchner viaja para Zurique com o objetivo de se tornar um Privatdozent na
Faculdade de Filosofia da Universidade (que incluía Anatomia Comparada).
5 de novembro: apresenta a sua “Lição experimental” e é formalmente aceite no
cargo; nas semanas seguintes dá o seu primeiro curso, “Anatomia comparada dos
peixes e anfíbios”; continua a trabalhar em Woyzeck.

1837 2 de fevereiro: Büchner adoece; é-lhe diagnosticada febre tifoide. A 17 de


fevereiro, Minna Jaeglé chega de Estrasburgo.
Büchner morre a 19 de fevereiro.

Fotografia de ensaios © Jorge Gonçalves

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A MORTE DE
DANTON
Georg Büchner é possivelmente o mais extraordinário fenómeno da literatura
moderna alemã. Ele chocou completamente com a consciência do seu próprio
século. Quando morreu em 1837, com apenas vinte e três anos (vítima de uma
epidemia de tifos), era praticamente desconhecido fora dos seus círculos – o que
não é surpreendente tendo em conta que apenas uma obra tinha sido publicada
com o seu nome (uma versão expurgada de A Morte de Danton).

Meio século depois ele não era certamente mais conhecido: apesar de a maioria
dos seus escritos terem aparecido, de uma forma ou de outra, tinham causado
pouco impacto; ele era mencionado na maioria dos manuais literários e
enciclopédias, mas como um pedaço obscuro da história, periférico e
frequentemente dúbio. Mais tarde, pelo final do século, a perceção alterou-se.
Outros escritores, em particular, começaram a responder à sua voz e a
reconhecer a sua modernidade surpreendente. Uma a uma, as suas peças foram
chegando aos palcos: Leôncio e Lena em 1895; A Morte de Danton em 1902;
Woyzeck em 1903 (e a ópera de Alban Berg, Wozzeck, em 1925). As edições
começaram a seguir-se. O gotejar inicial de monografias e teses transformou-se
num rio, e depois numa cheia. De repente Georg Büchner era um clássico. Mas
mais importante que isso, ele era – e é –, uma presença viva. Mais nenhum escritor
alemão antes de Brecht tinha apreendido tão vivamente a imaginação moderna –
ou é representado com mais frequência tanto na Alemanha como no estrangeiro.
Nenhum outro escritor é tão entusiasticamente saudado pelos seus sucessores
contemporâneos: Heinrich Boll falou da sua “singular relevância”, Gunter Grass da
sua força “incendiária”; para Christa Wolf, “a prosa germânica começa com o Lenz
de Büchner” – que constitui o seu “ideal absoluto”, a sua “experiência fundamental”
na literatura germânica; Wolf Biermann foi mais longe, descrevendo-o
simplesmente como “o maior escritor” da Alemanha (“unser grofter Dichter”).

Mas apesar de existir acordo universal em relação ao poder e imediaticidade da


voz de Büchner, têm havido pequenas disputas acerca do que essa voz realmente
diz. Isto é pouco surpreendente, tendo em conta variados fatores que
transformam Büchner num foco natural de controvérsia.

Começando pelo mais óbvio, temos a "pequenez" de escala e a interrupção


precoce da sua produção. Se ele tivesse chegado aos setenta anos (como o seu
pai e quatro dos seus irmãos, de entre os quais o mais novo viveu até ao século

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XX), os seus escritos mais prematuros não teriam sido apenas finalizados e
publicados, mas também, provavelmente, contextualizados como parte de uma
muito maior obra. Tendo em conta a forma como tudo aconteceu, eles
sobreviveram – se de todo – apenas em manuscritos rasurados, incompletos e
muitas vezes elegíveis, ou então em versões impressas que foram por variadas
vezes mutiladas, truncadas, expurgadas, sendo também quase inteiramente
póstumas e não autorizadas. Parece dificilmente credível, mas mesmo hoje em dia,
mais de um século e meio após a sua morte, não existe ainda uma edição
Histórico-Crítica definitiva da obra de Büchner.

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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Depois, há também a natureza provocatória dos seus temas e preocupações. O
sexo, para começar: a partir das primeiras linhas de A Morte de Danton, com a sua
imagem da duplamente "pretty lady" que oferece o seu coração ao marido e a
cona aos amantes, as "obscenidades" de Büchner garantem-lhe o título de "enfant
terrible". E no processo serviu para trair a visão de inúmeros críticos. A religião é
também um tema persistentemente irritante. Uma e outra vez, os deuses, Deus e
os espíritos são invocados pelas suas personagens, para serem desprezados,
negados, desafiados, rogados – servindo assim como um desafio constante ao
crente, semelhante ao agnóstico e ao ateu. Mas a mais explosiva de todas é talvez
a questão política. Este é um homem que foi indiscutivelmente o pensador
esquerdista mais radical da sua época em terras germânicas, um revolucionário
dedicado que – embora tenha entrado no panorama como propagandista
militante e ativista apenas durante um curto período de tempo – manteve-se
notavelmente comprometido durante o resto da sua vida à violenta subversão
daquilo a que assistiu enquanto membro da incapaz classe dirigente, parasita e
ilegítima, e ao ressurgimento e emancipação da viciosamente explorada massa
popular.

Tendo em conta a escassez e caráter duvidoso das evidências diretas, como as


cartas de Büchner (a maioria das quais sobreviveram - se de alguma forma -
apenas sob formas cortadas cuidadosamente extraídas e possivelmente
inofensivas), e também das evidências indiretas, como reminiscências de amigos e
conhecidos, ficheiros de polícia, registos de tribunal, etc, há uma considerável
margem para argumentos até relativos às suas atividades precisas e
posicionamento nas macro e micro realidades políticas da época. Mas tem havido
uma particularmente feroz controvérsia sobre a dedução das políticas dos seus
escritos (quase todos eles nascidos após o fiasco de O Mensageiro de Hesse, que
afetou profundamente o decorrer da sua vida - não apenas forçando-o ao exílio no
estrangeiro). As interpretações nesta área têm diferido de forma muito radical,
desde uns num extremo que encontram um revolucionarismo militante destemido
em qualquer fase da sua escrita, àqueles no extremo oposto defendendo que a
sua experiência desagradável o tinha impulsionado para um "niilismo absoluto",
que tinha sequencialmente contribuído para a sua completa despolitização. (Os
dois extremos são hoje bastante desacreditados).

À parte da escassez e incerteza do estado dos textos, e da natureza inflamatória


das questões lá contidas, há outro elemento muito mais fundamental no trabalho
de Büchner que encoraja a controvérsia, que é a própria natureza da sua escrita –
a linguagem, modos e estruturas que ele usa para expressar as suas
preocupações. Pela imagem oscilante que a sua escrita projeta, é profundamente
não- e mesmo anticlássica, assim como conscientemente longínqua das
convenções e expectativas prevalecentes na sua época. Tanto na linguagem como

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no humor, no enredo ou nas personagens, ele não oferece desenvolvimentos fixos
e constantes, nada que indique qualquer coisa cíclica, resolvida ou unificada. Em
vez de uma revelação que se dá a um ritmo claramente medido, os seus trabalhos
progridem através de uma sucessão de convulsões caleidoscópicas,
representando aquilo a que se tem chamado a "lei da descontinuidade". A
totalidade (“wholeness”) – quando aparece – é sempre falsa: uma pretensão, uma
ilusão, no máximo um estado transitório. São sempre partículas que tecem
grandes e discretos elementos que ele salienta num isolamento surpreendente, ou
em aglomerações díspares e combinações que criam uma ideia constante de
polivalência, mistério e paradoxo. Reside aqui o ponto alto da sua espetacular
modernidade: aquilo que ele já faz nos anos 30 do século XIX irá parecer
chocantemente original quando praticado pelos pintores, compositores e
escritores mais avant-guardes do início do século XX. Mas isto também o torna
especialmente difícil de interpretar. Em particular, coloca o problema da
perspetiva: sendo tão díspares e discretos, os elementos do seu trabalho mudam
de aspeto e de importância aparente de forma muito radical quando encarados
de diferentes pontos de vista.

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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É escusado dizer que a descontinuidade sistemática de Büchner não é um
acidente – e não é certamente, como já foi sugerido, uma marca de imaturidade –
mas uma característica central, até definidora, do seu trabalho. Se olharmos para
um exemplo do classicismo germânico como Maria Stuart de Schiller, vemos uma
complexidade magnífica – mas uma complexidade semelhante a uma fuga
barroca com a sua rica mas contida elaboração de lúcidos temas pré-
estabelecidos. A abordagem de Georg Büchner é fundamentalmente diferente. Ele
nunca se preocupa com o atingir de conclusões ou soluções. Em vez disso, a sua
escrita é como um género de "happening", uma busca constante, uma
promulgação dinâmica do próprio processo de argumentação e conflito, da colisão
e interação de possibilidades contrárias. O seu trabalho começa, mas nunca num
início; ele chega a um fim, mas nunca a uma conclusão. Isto consegue facilmente
provocar-nos alegria mas perplexidade – e deixar-nos propensos ao entendimento
de alguns elementos discretos e particulares como a soma do todo, ou como o
fixar definitivo de uma posição. Muitos críticos caíram nesta tentação, daí a
persistente deturpação de Büchner como sendo variavelmente um pessimista
programático e niilista, um fatalista programático, um cristão programático, um
revolucionário Jacobino programático. Há uma consistência e unidade subjacentes
em Büchner, mas só podem ser encontradas dentro e através das multiplicidades
do seu trabalho – e não apesar delas.

Ajuda se identificarmos qual é certamente o paradoxo dos paradoxos em Georg


Büchner: o seu modo disjuntivo com a sua insistência implacável nos fragmentos e
partículas é sempre a expressão de uma radiante visão da totalidade. Uma e outra
vez, em qualquer área da sua existência – a sua política, a sua ciência, a sua
estética, a sua escrita poética – encontramos um sentido ardente de totalidade,
mas quase sempre uma totalidade que é pungentemente elusiva: isto foi mas já
não é; ou vai ser mas ainda não é; ou – a mais pungente de todas – isto é no
presente, mas só pode ser possuído parcial ou transitoriamente. Büchner é assim
forçado a ser um fazedor de mosaicos. Mas quantas mais reentrâncias existirem
nos fragmentos desses mosaicos, mais vistosos serão eles na sua invocação do
todo – um padrão surgiu nas primeiras páginas do seu trabalho, quando uma sua
personagem em A Morte de Danton usava os seguintes termos para definir a
busca do protagonista por entre as tartes do Palais Royal: “Anda à procura dos
bocados da Vénus de Médicis (…), faz um mosaico, é o que ele diz (…). É pena que
a natureza tenha desmembrado a beleza (…) e depois dispersado os elementos
pelos corpos mais diversos”. Minutos mais tarde o tema ecoa e é intensificado na
resposta terna de Danton a Marion com o seu duplo enfoque na “totalidade” e na
respetiva impossibilidade de alcance: “Porque é que não posso absorver a tua
beleza, não posso abarcá-la toda?”. No início de Lenz encontramos a mesma
imagem essencial durante as loucas viagens do protagonista pelos Vosges: “Sentia

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dever atrair a si a tempestade, receber todas as coisas; estendia-se na terra,
cavava uma passagem no universo”. Em Leôncio e Lena é a totalidade do amor
que é fragmentada, despedaçada nas notas separadas da escala musical, as cores
separadas do arco-íris. Mas aqui, como sempre, a ênfase nos fragmentos implica
uma crença na totalidade. E assim, é precisamente a experiência de Leôncio de
um amor que inspira a totalidade do ser que é celebrada no intenso mas efémero
clímax da peça: “Todo o meu ser está neste mesmo momento… Mais é impossível”.

A centralidade desta visão de Büchner da totalidade torna-se clara mesmo quando


percebemos que também está presente no coração do seu trabalho enquanto
“cientista-filósofo”. Quando morreu em fevereiro de 1837, ele tinha acabado de
embarcar numa promissora carreira na nova Universidade de Zurique. A sua tese
de Estrasburgo sobre a anatomia do barbo, Memória sobre o sistema nervoso do
barbo, concedeu-lhe não apenas o doutoramento em Zurique mas também a
oferta de um cargo de docência como Privatdozent, tendo a 5 de novembro 1836
apresentado competentemente a sua “Lição Experimental” (um requerimento
obrigatório para a confirmação de posições como esta). Nas últimas linhas da sua
Memória ele deu a entender a sua visão do mundo natural enquanto um grande
todo harmonioso no qual mesmo as mais complexas entidades derivam de um
“tipo primitivo”; no qual “as formas mais elevadas e mais puras” são desenvolvidas
pela natureza de acordo com “o plano mais simples”. No prefácio da “Lição
Experimental” ele expande-se neste tema. Sumarizando a história recente da
anatomia comparada, salienta que “tudo estava a lutar na direção de uma certa
unidade, em direção à investigação de todas as formas desde o tipo mais simples
e primordial” (e isto era a essência da sua tentativa, na “Lição” e na Memória, de
provar a hipótese segundo a qual o crânio, cérebro e nervos cranianos, por toda a
sua suprema complexidade, se teriam desenvolvido originalmente a partir das
estruturas relativamente simples das vértebras). A frase final da Memória ecoa
especialmente na “Lição”, quando Büchner fala das “formas mais elevadas e puras”
como sendo produzidas a partir dos “mais simples contornos e padrões”; mas
onde ele se conteve na Memória a citar a Natureza como o agente deste processo,
ele é agora muito mais explícito. No coração da natureza, ele declara, tem de
haver uma “lei fundamental”, uma “lei primordial” que molda e forma o “mundo
orgânico inteiro”. Apenas isto é já suficientemente surpreendente; mas mais
surpreendente ainda é a proposta de Büchner segundo a qual essa “lei primordial”
assumida é nenhuma outra que não a “lei da beleza”, que produz necessariamente
“harmonia”de entre todas as suas manifestações. É possivelmente apenas contra
este fundo que apreciamos verdadeiramente a ânsia por beleza atribuída a
Danton quando este contempla Marion; ou as palavras climáticas de Leôncio (logo
a seguir ao seu “Mais é impossível”): “Do caos nasce a criação, irrompendo contra
mim, tão viva e nova, tão radiante de beleza”; ou – acima de tudo – as palavras

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concedidas a Lenz no decorrer da mais famosa declaração de Büchner sobre uma
posição estética: “As imagens mais bonitas, as harmonias mais ressonantes,
unem-se, dissolvem-se. Apenas uma coisa permanece: uma beleza infinita que
passa de uma forma a outra, eternamente mutável e novamente revelada”.

A solicitação de Büchner na “Lição Experimental” por uma ordem abrangente de


rica simplicidade, impulsionada pela beleza e harmoniosa nas suas ações, pode
parecer perfeitamente desconcertante, vinda de um homem que durante décadas
foi quase universalmente representado como um pessimista ou niilista supremo,
como dono de uma “forma extrema de pessimismo” que é “mais profunda e
obscura que qualquer outra na anterior história do pensamento alemão, com a
possível exceção de Schopenhauer” (M.B.Benn). Ainda que não consideremos esta
perspetiva tradicional (entretanto caída em desaprovação), deparamo-nos ainda
com um paradoxo estridente subjacente aos próprios textos: por um lado a bela
ordem e a harmonia tão calmamente propostas na “Lição Experimental”, mas por
outro as visões de desespero tão frequente e eloquentemente projetadas nos seus
trabalhos poéticos – o isolamento aterrador do anti-herói no final de Lenz, ou da
criança no “anticonto-defadas” de Woyzeck; o famoso grito de Danton “O mundo é
caos, insignificância devido a Messias”; os medos de Leôncio, de que todas as
imagens do nosso eu e do mundo possam ser meros delírios que mascam uma
realidade de puro vácuo. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Mas o
paradoxo é mesmo esse – um paradoxo; não é uma contradição. A angústia rouca
tão comum na escrita de Büchner não nega ou desmente esta crença na beleza
fundamental e na ordem: deriva inteiramente dela.

Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves

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A este respeito ele é inesperadamente antiquado: considerando que Lenz e as três
peças são magnificamente modernistas na sua articulação, a fé e a visão
subjacentes a elas são largamente fundamentadas num Zeitgeist que estava já
desatualizado quando Büchner o abarcou. À semelhança de tantos outros
escritores prévios pertencentes ao período febril que começa no Sturm und
Drang, passando pelo classicismo de Weimar e culminando no romantismo
alemão, ele foi abençoado e amaldiçoado com uma visão idealista da totalidade e
harmonia essenciais – mas num tempo em que a realidade prevalecente era, por
contraste, ainda mais ruidosamente discordante. Encontramos precisamente este
contraste numa das mais pungentes cartas de Büchner à sua amada noiva, Minna
Jaeglé, escrita em março de 1834 quando este recuperava de um período de
severa doença – e severa crise pessoal. Ele tinha “acabado de voltar do exterior”,
conta a Minna, onde “Um único tom ressonante vindo de uma centena de cotovias
estoura através do melancólico ar de verão, um pesado pedaço de nuvem vagueia
pela terra, o vento em expansão ressoa à semelhança do seu melodioso passo”. É
assim o vibrante e bonito presente de Büchner. Mas, ele continua, até ao momento
em que o ar primaveril o libertou e lhe deu vida outra vez, ele tinha sido há muito
trespassado por um género de rigor, por uma impressão de estar já morto,
enquanto tudo à sua volta se assemelhava a cadáveres com olhos de vidro e
bochechas de cera. Os “cadáveres” falavam e moviam-se, e com esta descrição
Büchner lança-se num dos seus característicos e emocionantes compassos de
desespero:

Então, quando toda a maquinaria começou a trabalhar com membros que se


sacudiam e vozes dissonantes a chiar, e eu ouvi a mesma velha melodia no órgão
a tralala e vi os pequenos dentes e os cilindros a zumbir na caixa do órgão – eu
amaldiçoei o concerto, a caixa, a melodia – oh, que pobres músicos gritantes
somos nós – será possível que os nossos gritos de agonia na estante apenas
existam para ressoar através de brechas entre as nuvens e, ecoando em contínuo,
morram como um suspiro melódico em ouvidos celestiais?

- Uma antífona enervante: na natureza, o vento e as cotovias e a sua


melodia libertadora; entre os homens, uma raspagem mecânica e mortífera, gritos
tortuosos extraídos talvez por qualquer divindade distante para sua excitação
privada. E é esta mesma trágica antífona que Büchner usa nove meses depois para
iniciar o grande clímax de ópera em A Morte de Danton:

PHILLIPPEAU: Meus amigos, não temos de nos erguer muito acima da terra
para perder de vista todo este vacilar, todas estas incertezas e encher os olhos de
uns grandes contornos divinos. Há um ouvido interior que ouve o clamor e a
discórdia, em que nos aturdimos, e os transforma numa torrente de harmonia.

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DANTON: Mas nós somos os pobres músicos e os nossos corpos são os
instrumentos. Tiramos deles estes acordes terríveis só para subirem cada vez mais
alto e se perderem envolvidos num suspiro de volúpia nos ouvidos celestiais?

Surge assim a questão: porque nos transformámos nós em tão “pobres músicos”,
tão longe da “corrente de harmonias”, dessa “harmonia necessária” supostamente
inscrita na natureza pela lei primordial da beleza? A imagem de deuses sádicos
que forçam em nós a discordância para seu bel-prazer é mais um florescer
retórico que uma afirmação séria. Büchner parece encontrar as razões
verdadeiras entranhadas na própria humanidade – e mais particularmente na
influência indevida da Mente e dos sistemas artificiais.

Outro paradoxo ainda é o facto deste homem, um herdeiro do Iluminismo, um


dedicado investigador científico, um intelectual voraz, um aspirante a académico
que queria acima de tudo ensinar filosofia na Universidade de Zurique, tenha sido
no entanto tão profundamente suspeito e desdenhoso da razão humana, e
especialmente das suas manifestações na filosofia racionalista. Tanto o desprezo
como os seus fundamentos estão muito claros no prefácio à "Lição Experimental".
Büchner defende que ainda nunca se teria provado ser possível "colmatar o fosso
entre [o dogmatismo dos filósofos racionalistas] e a vida natural tal como a
apreendemos diretamente", continuando: “A filosofia a priori ainda habita um
desolador e árido deserto; existe uma longa distância a separá-la da vida verde e
fresca, e é altamente questionável se algum dia preencherá essa lacuna".

Esta ideia da existência de um abismo absoluto entre o racionalismo e a Vida em


todo o seu vigor e exuberância diretamente apreensíveis é exatamente o que dá
alma às críticas fundamentais de Büchner a Descartes e ao seu cogito ergo sum.
Numa passagem crucial do seu longo e complexo comentário à filosofia de
Descartes, ele distingue categoricamente entre "ser" e "pensar". O que importa é o
nosso Ser; o pensamento não é mais que uma "atividade secundária". A
característica definidora do Ser é a sua imediaticidade: concede-nos verdades e
conhecimentos "imediatos" (ou "não-mediados"), assim como uma espontânea e
natural "consciência de que o eu existe". Este domínio primário do Ser é não
apenas independente dos processos do pensamento racionalista mas também –
de acordo com o entendimento radical de Büchner – inteiramente inacessível a
ele. Tendo em conta a primazia desta “não-mediação”, o Ser autêntico e a sua
inacessibilidade à racionalização, todo o edifício do racionalismo Cartesiano
parece subitamente falso, as suas reivindicações pela verdade apenas um
conjunto de ficções arbitrariamente construídas por e na mente lógica, distante da
realidade vivida, diretamente intuída. Indo ainda mais longe, Büchner sugere que a
lógica racionalista não pode sequer lidar adequadamente com os abismos
especificamente filosóficos sobre os quais afinal foi inteiramente construída. Isto

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aplica-se com força particular às supostas provas de Deus. Assim, o Deus de
Descartes é para Büchner um puro mecanismo de expediente, um dispositivo
especialmente maquinado para "preencher o abismo" entre pensamento e
conhecimento, para ser uma "ponte" entre o eu e o mundo, uma "escada" para
fugir ao "túmulo da filosofia", uma corda para escalar o "abismo da dúvida". Num
outro momento ele defende que enquanto a lógica da prova de Deus de Descartes
pode ser convincente nos seus próprios termos, nada nos convence a aceitar essa
lógica por si só; na verdade ela é contrariada pela experiência primária da nossa
mente e das as nossas emoções: "Assim que alguém entra na definição de Deus,
tem de admitir a existência Dele. Mas o que é que nos prova ao construirmos esta
definição? / A nossa mente? / Ela conhece a imperfeição. / As nossas emoções?
Elas conhecem a dor."

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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Mas porque interessariam estas questões? Porque não poderá o racionalismo ser
deixado aos seus próprios dispositivos no seu deserto de abstrações? Reside aqui
um problema crucial para Büchner: apesar do quão remota possa estar a
sistematização cartesiana da "vida verde e fresca" como nós diretamente a
apreendemos, as suas construções falsas – e outras de tipo similar – são
ameaçadoras de prevalecer, são ameaçadoras de condicionar a nossa
compreensão e forma de lidar com o mundo. Isto é particularmente claro dentro
da área da biologia de Büchner. Sob a enfraquecida mão de Descartes, o corpo
vivo é reduzido a mera máquina composta por porcas e parafusos. Ele realça que
em De homine, o tratado de Descartes sobre a psicologia, o ser humano é
"l'homme machine", uma colagem "artificial" de "parafusos, dentes e cilindros", de
"aparatos" mecânicos; e na "Lição Experimental" usa exatamente o mesmo tipo de
vocabulário para atacar o funcionalismo frio e redutivo daquilo a que ele chama
de escola "teleológica" em fisiologia e anatomia. Estava a lutar uma batalha
perdida: os "teleologistas" estavam em sintonia perfeita com uma era cada vez
mais conduzida pelo funcionalismo de qualquer tipo. Isto torna-se graficamente
claro quando nos apercebemos que a visão deles de um organismo vivo era a de
"uma máquina complexa provida de dispositivos funcionais que a permitem
sobreviver durante certo período de tempo", destacadamente próxima da mais
revolucionária e influente teoria biológica do século XIX: A Origem das Espécies,
de Charles Darwin, e a sua asserção segundo a qual as criaturas mais adaptáveis e
melhor equipadas seriam as que sobrevivem na "luta da vida" – de facto um grito
longínquo da crença inspiradora de Büchner (presente na sua Naturphilosophie)
numa lei primordial de beleza que produz uma riqueza perfeita, sublime, nobre,
bela, inspirada e harmoniosa, partindo de uma matriz de simplicidade essencial.
Apesar de tudo, ele mantém-se fiel à sua crença antiquada – e particularmente ao
seu entendimento do valor absoluto do individual. Esta é possivelmente a sua
crítica mais crucial aos "teleologistas" que, de acordo com o seu princípio único de
“a melhor aptidão possível para cada intenção”, entendem o individual "apenas
enquanto algo que deve atingir um propósito para além dele próprio". Para
Büchner, em contraste – e esta é indiscutivelmente a declaração mais
ontologicamente poderosa de toda a sua obra – "Tudo o que existe, existe por sua
própria causa".

Esta é a crença encerrada no centro da "Lição Experimental"; mas sugiro que é


também a crença no coração de toda a produção de Büchner. Na sua escrita
poética, assim como na sua filosofia científica ele mantém sagrada a plenitude da
Vida natural e “não-mediada” e a sua rica manifestação no ser de cada indivíduo.
O problema é que ele pode celebrar isso positivamente pela sua presença gloriosa
apenas por raras e fugazes ocasiões; maioritariamente deve celebrá-lo
negativamente pela sua ausência – através da lamúria rapsódica ou sardónica da

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sua perda, recusa, supressão. Particularmente, expõe publicamente de forma
inflexível qualquer tentativa de subordinar a vida aos sistemas – especialmente
sistemas intelectuais. Daí o escárnio ao racionalismo na figura do Rei Peter
(Leôncio e Lena); ao cientismo consumado no maníaco “Doutor-Professor”
(Woyzeck); ao moralismo no Capitão (Woyzeck); às ambições jacobinas para
reestruturação da humanidade (A Morte de Danton); ao reducionismo chocante
nas artes contemporâneas (A Morte de Danton). Simultaneamente ele também se
fixa repetidamente nos protagonistas – todos eles homens, quase por definição –
cujas mentes são demasiado ativas, protagonistas paralisados ou excitados pelo
facto de saberem e verem muito para além daquilo que seria bom para eles.

Mas todas estas reflexões são na pior das hipóteses enganadoras, na melhor
apenas parte da história. Georg Büchner é um dos mais elusivos e desafiantes
escritores. A sua vitalidade e multiplicidade podem apenas ser verdadeiramente
apreciadas dentro das suas palavras – e o propósito desta edição é deixá-las falar
por elas mesmas em todo o seu vigor e profundidade admiráveis.

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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OS ÚLTIMOS
SOBRESSALTOS DA
VIDA
JEAN-LOUIS BESSON

Em 1835, Karl Kutzov notava já que Büchner tinha escrito “em vez de um drama,
em vez de uma ação que se desenrola, se intensifica e enfraquece, os últimos
sobressaltos e os últimos estertores que precedem a morte”.

O sofrimento e a morte ocupam um lugar preponderante no drama, e são


evocados através das mais diversas expressões e metáforas: a morte seria uma
“doença que faz perder a memória”, ela é chamada “a dona Putrefação”, “o grande
manto debaixo do qual se apagam todos os corações e todos os olhos se fecham”.
“A melhor morte é um ataque de apoplexia, ou preferias adoecer primeiro?”, diz
Danton a Lacroix. Sofrer é um pensamento insuportável: “Não tenho medo da
morte, da dor sim”, diz Laflotte, ela “é o único pecado e o sofrimento o único vício”.
Esta presença constante da morte encontra um eco na correspondência de
Büchner quando tem de sair de Estrasburgo e regressar a Hesse: é assaltado por
interrogações sobre o sentido da vida, a ponto de se ter falado de uma profunda
depressão. O que o rodeia em Darmstadt parece-lhe “medonho, esmagador,
fastidioso (…), o deserto em todas as cabeças e em todos os corações”. Tudo é
“pequeno e acanhado. A natureza e os homens, os ambientes mais mesquinhos,
pelos quais não consigo sentir o menor interesse”, e sente-se “completamente só”;
refugia-se no trabalho e “lança-se com todas as forças na filosofia”. Em fevereiro
de 1834 acrescenta numa carta à noiva: “Estou só como se estivesse no túmulo (…),
os meus amigos abandonam-me, gritamos uns com os outros como se fôssemos
surdos; gostaria que fôssemos mudos, assim só poderíamos olhar-nos, e nestes
últimos tempos mal posso olhar para alguém sem que me venham as lágrimas aos
olhos (…). A neurastenia tenta ocupar o teu lugar, entrego-me a ela o dia inteiro”.
Passado um mês, quando a crise atinge o paroxismo, afirma ainda:

“A sensação de estar morto não me largava. Todos os seres me revelavam


um rosto doentio, olhos vítreos, faces macilentas, e quando depois todo
esse mecanismo começava a exprimir-se, quando as articulações
estalavam, a voz saía aos guinchos e eu ouvia a eterna cantilena do realejo,
cuja caixa deixava à mostra os pequenos rolos a girar e as pequenas

24
agulhas a saltitar… eu maldizia esse concerto, a caixa, a melodia, e… ah!
pobres músicos esganiçados que nós somos, será possível que os nossos
gemidos no cadafalso estejam lá apenas para passar através das nuvens e,
ressoando ao longe, irem morrer como um sopro melodioso em ouvidos
celestes? Seríamos nós, no ventre ardente do touro de Perillos, a vítima
cujo grito de morte soa como a explosão de alegria do deus touro a arder
nas chamas?”

Não é difícil detetar aqui certos motivos de A Morte de Danton, mesmo que a peça
tenha sido escrita mais tarde. Büchner recordou-se ou inspirou-se nos seus negros
pensamentos, retomando mesmo as imagens do pobre músico e do touro, e
atribuiu às suas personagens angústias e pensamentos profundos que se
assemelham aos seus. Ora ele coloca-os indiferentemente em qualquer campo:
Danton, Lacroix, Camille, Robespierre, e até o traidor Laflotte são afetados, como
se se tratasse de um sentimento geral e não apenas de características individuais.
Existe na peça um desfasamento entre a distância que Büchner toma em relação
às suas personagens no campo da ação política e a empatia que sente quando se
trata do fundo íntimo do ser. Isto explica em parte as dificuldades de
interpretação quando misturamos os dois níveis e pensamos que Büchner estaria
politicamente próximo deste ou daquele porque lhe coloca na boca um discurso
que poderia fazer ele próprio. O facto de esse discurso estar repartido entre os
dois campos tende a provar que as coisas não são bem assim, mesmo que estas
meditações sejam mais frequentes entre os partidários de Danton. A questão das
orientações políticas e a da experiência existencial cruzam-se, influenciando-se
mutuamente, mas estão longe de se misturar totalmente. Como se Büchner tivesse
querido mostrar que o sofrimento profundo do ser era exacerbado pela sua ação
na História, mas em muitos pontos separado das apostas desta última. O mundo
das experiências privadas das personagens em A Morte de Danton ultrapassa o
espaço espiritual e afetivo da ação, e daí o grande desfasamento entre esfera
pública e esfera privada.

Na peça, a questão do sofrimento é debatida sob a forma de uma discussão


filosófica entre diferentes presos. Liderados por Payne, os detidos trocam opiniões
sobre a não-existência de Deus. Depois de ter tentado demonstrar que Deus não
pode existir, pois a sua essência eterna é contrária à ideia de Criação, depois de
se ter lançado numa refutação vulgar do panteísmo de Spinoza, e depois de ter
perguntado se uma causa perfeita podia criar algo de imperfeito, Payne faz um
desmentido da Teodiceia, tendo em conta a presença do mal na terra:

“Acabai com a imperfeição, só assim se poderá provar a existência de Deus.


Espinosa tentou-o. Podemos negar o mal, mas não a dor. Só a razão pode
provar a existência de Deus, o sentimento revolta-se contra isso. Repara,

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Anaxágoras, porque é que eu sofro? Aqui nasce o rochedo do ateísmo. O
mais leve estremecimento da dor, mesmo que seja num átomo, destrói de
alto abaixo a criação.”

A argumentação prossegue, desenvolvendo o que Büchner aborda nas suas notas


sobre Espinosa. Ao comentar a afirmação XI da Ética, reconhece que somos
forçados a “chegar a qualquer coisa que só pode ser pensada como sendo”, mas
objeta: “O que é que nos dá o direito de, por essa razão, fazer dessa essência o
absolutamente perfeito, Deus?: O entendimento? Ele conhece o imperfeito; o
sentimento? Ele conhece a dor.”

Para Espinosa, nem o entendimento nem o sentimento podem demonstrar a


existência de Deus. Só o facto de Deus ser pensado permite pressupor que ele
existe. Payne inverte o argumento: segundo ele, o entendimento permitiria
demonstrar a existência de Deus. Mas como o entendimento não pode demonstrar
tudo, Deus e as outras coisas, isso significa que aquilo que ele pode demonstrar
não poderia chamar-se Deus. O entendimento pode tudo afirmar e tudo negar,
incluindo o bem e o mal. Só a dor seria então a prova da não-existência de Deus.
Porque, se o mal é um conceito abstrato que pode ser negado, a dor é sentida
fisicamente, o que a torna incontestável. Büchner tinha já encontrado este
argumento em Epicuro. Como é que um Deus perfeitamente bom e todo-poderoso
poderia tolerar o sofrimento? Se não pode impedi-lo, é porque não é todo-
poderoso; e, se não quer impedi-lo, é porque não é perfeitamente bom,
deleitando-se mesmo com ela, como os romanos se divertem com o flamejar das
cores dos peixes agonizantes. Esta questão do sofrimento, apresentada aqui como
“o rochedo do ateísmo”, não deixará de preocupar Büchner. Encontramos ainda
vestígios em Lenz onde o poeta declara ao pastor Oberlin: “Mas eu, se fosse todo-
poderoso, se fosse assim e não pudesse suportar o sofrimento, eu salvaria, pois só
desejo a calma, a calma…”

Robespierre, Danton e Marat

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Apesar da importância da “conversa dos filósofos”, em vão procuramos em A
Morte de Danton ou na obra de Büchner uma ilustração das teses de Espinosa ou
de Epicuro. Contudo, o tema da criatura sofredora num mundo abandonado pelos
deuses é retomado na peça sob inúmeras variações.

Robespierre, que fica só após a discussão com Danton, mergulha na incerteza “não
sei qual dos dois dentro de mim mente”, constata ele, como as palavras de Danton
na noite que precede a sua prisão. Até aqui, o Incorruptível identificara-se com a
Revolução: no seu discurso no Clube dos Jacobinos, utilizava a primeira pessoa do
plural para falar da sua ação. Agora, é como se tirasse a máscara. Pensamentos e
desejos “insuspeitáveis” que o homem público refreia “ganham forma e relevo e
deslizam na silenciosa morada do sonho”. Como observa Gérard Raulet: “O
republicano clássico, estoico, torna-se um ‘romântico’, para o qual a vida é um
sonho e o homem uma marioneta”. Este aspeto da personagem não está nas
fontes, é uma criação de Büchner.

Esta passagem cria um jogo de espelhos entre Danton e Robespierre. Os


adversários políticos revelam-se semelhantes na sua identidade profunda. Ambos
têm a sensação de que algo lhes escapa, que não dominam os seus atos, ou que se
criou um fosso entre o pensamento e o ato: “não seremos nós sonâmbulos, não
serão as nossa ações como as do sonho, só que mais nítidas, mais exatas, mais
completas?”. A diferença entre Danton e Robespierre é que este último prossegue
o combate. A chegada de Saint-Just vem arrancá-lo aos seus pensamentos
sombrios, relançando-o no coração da ação política. Mas aquele que até aqui
parecia decidido a ir até ao fim do terror surge irresoluto, como Danton. “Queres
hesitar ainda mais tempo?”, censura-o Saint-Just, “agiremos sem ti, já decidimos”.
A resposta de Robespierre “Que tencionais fazer?”, na qual o “vocês” se opõe ao
“nós” do discurso aos jacobinos, é a prova da sua hesitação em se identificar com
uma República terrorista, e sem dúvida revela também o seu medo de lhe ser
sacrificado, por seu turno. Essa hesitação transparece ainda quando Saint-Just
cita o nome de Camille entre as futuras vítimas. Apenas a leitura do Vieux
Cordelier (o jornal de Camille Desmoulins) põe fim aos escrúpulos de Robespierre,
não pelos argumentos políticos expostos, mas porque se sente pessoalmente
atacado quando é tratado por “Messias sanguinário, Robespierre, entre os dois
ladrões Couthon e Collot no seu Gólgota onde sacrifica e não é sacrificado”, isto é,
quando tocam no seu ponto fraco.

Todavia, a decisão de Robespierre de condenar à guilhotina os partidários de


Danton não o acalma. A frase de Camille ficou-lhe na memória, e leva-o a
comparar-se a Cristo: imagina-se a resgatar a humanidade e a assumir os
pecados do mundo. Mas a comparação é insustentável, pois Cristo “tinha a volúpia
da dor”. Esta declaração é como que um eco das palavras de Danton, que pouco

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antes afirmara que Cristo era o mais requintado dos epicuristas: o filho de Deus
conseguira transcender a sua dor e transformá-la em volúpia oferecendo-a para a
salvação dos homens. Robespierre, que não redime a humanidade com o seu
próprio sangue mas com o sangue dos outros, tem apenas “o tormento do
carrasco”. Depois de ter decidido sacrificar Danton e os seus partidários, continua
consumido pela dúvida: “nós todos suamos sangue no jardim das Oliveiras, mas
não há quem redima o outro com as suas chagas”. O sacrifício de Robespierre não
redimirá a humanidade, tal como a morte de Camille não redimirá Robespierre.
Deixá-lo-á apenas numa solidão terrível: “Todos se afastam de mim - está tudo
vazio e deserto - e eu estou só.”

O sofrimento do ser humano, as suas angústias e dúvidas ganham corpo quando


as construções abstratas se esboroam e o indivíduo se encontra face a si próprio.
Esta passagem humaniza a personagem do Incorruptível, considerado frio e
intratável, mostrando-o capaz de pensamentos íntimos e de interrogações sobre si
mesmo. Paralelamente, antecipa as queixas dos detidos na prisão, nos dois últimos
atos. É como que o eco da cena que precede a execução.

Se a morte está inscrita no título da peça, os dois últimos atos são dedicados ao
sofrimento de ter que morrer. No início, Danton mostra uma certa indiferença
perante a sua execução e a sua prisão. Contudo, o amor à vida, problemático que
seja, prevalece sobre o desgosto de viver. Se dá mostras de ceticismo em relação
às possibilidades de realização do programa da República epicurista exposto por
Camille e Phillipeau no primeiro ato, não deixa de aplicar a si próprio a moral
hedonista de que os seus amigos são arautos (Büchner mostra-o mais como um
debochado do que como um fino epicurista), e, face a Robespierre, desenvolve
argumentos semelhantes aos deles. Dar ao indivíduo a possibilidade de afirmar a
sua natureza parece-lhe ser a tarefa que agora compete à Revolução. Opõe assim
o gosto de viver e o desejo de prazer a essa máquina de morte que é o Terror.

O diálogo entre Danton e Marion apresenta uma variação sobre o tema do


epicurismo, o que lhe confere indiretamente uma função de comentário. Marion
está sentada aos pés de Danton. Essa situação evoca “Danton sentado num banco
ao pé de Julie” na primeira cena, e cria não tanto uma hierarquia entre as duas
mulheres (Danton aos pés da esposa, a prostituta aos pés de Danton), mas antes
um jogo de espelhos: nos dois casos cria-se uma relação íntima. Essa imagem é
relativizada, e até mesmo ridicularizada por Lacroix que, entrando pouco depois,
compara as duas personagens aos dois cães que acaba de ver na rua e que
estavam “um a tentar montar o outro”. A terna harmonia de um instante reduzida
à sua banalidade trivial.

Marion mantém com o mundo uma relação elementar e não oferece nenhuma
resistência aos sentimentos: na primavera deixa-se invadir por uma “atmosfera

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que era só minha”, e considera-se “muito sensível, é só através dos meus
sentimentos que estabeleço contacto com as coisas”. Alheia aos constrangimentos
e às obrigações da vida familiar, que não compreende, apenas escuta a natureza.
É sem dúvida também por isso que as palavras lhe saem naturalmente da boca:
não quer provar nada, nem demonstrar nada, nem impor nada, mas tão-só
contactar. A sua vida “não é pautada por conceitos como o vício ou a virtude, mas
antes em função da intensidade com que ela é vivida”, e o seu discurso é de uma
extrema simplicidade, sem floreados, sem pathos, o contrário da retórica
revolucionária. Igual a si mesma, Marion diz que “Sou sempre esta. Uma ansiedade
irreprimível, uma vontade de agarrar as coisas, um ardor, uma torrente. O crítico
Reinhold Grimm saúda nesta personagem o arquétipo da sensualidade pagã, que
ignora o antagonismo cristão entre eros e amor, entre prazer dos sentidos e
espiritualidade que se emancipa tanto da dicotomia tradicional da mulher
“enquanto objeto de adoração divina e enquanto objeto sexual”, como da oposição
burguesa “entre a prostituta e a esposa”.

O discurso de Marion não é apenas um momento de intimidade na peça: dando a


entender a verdade profunda de um ser, contrasta com os discursos
revolucionários que pretendem falar em nome do povo. É essa voz verdadeira que
a revolução não é capaz de ter. Como observou Jean-Christophe Bailly, “Marion é
uma mulher, e não é por acaso; ela opõe-se à virtude como qualquer coisa (sim)
de mais virtuoso ainda – de verdadeiro. Talvez pareça incrível que Büchner nos
fale já da guerra entre uma ordem do desejo e uma ordem do dever, que nos fale
da rutura que a incompatibilidade de espírito entre essas duas ordens provoca. A
vida extremamente calorosa por um lado, e incrivelmente rígida e fria pelo outro.”

Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves

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Mas em Büchner nenhuma personagem, por muito positiva que possa parecer, é
feita de uma só peça, e a imagem não é idílica. Por um lado, Marion continua a ser,
para Danton, uma cortesã que deve pedir ao seu interlocutor que a escute “por
uma vez”; por outro lado, ela só adquiriu essa liberdade de vida à custa da morte
do primeiro amante e da sua mãe. Também ela deixa cadáveres atrás de si.
Mesmo assim, ela é a única personagem na peça que mantém uma relação com o
mundo de acordo com a perceção que tem dele, e que ignora o sofrimento. Surge
apenas numa cena, como um meteoro num universo que não parece feito para ela.

No segundo ato, a consciência do inimigo, primeiro, e depois o sentimento de


culpa, apresentam a Danton a morte já não como um sofrimento, mas, pelo
contrário, como uma libertação. Ela parece mais suportável do que a vida, que
“não vale o trabalho que temos para a manter. A transição é brutal, e não é
motivada pela psicologia nem pela ação. Enquanto no primeiro ato Danton se
declarava pronto a agir – Não podemos perder nem um instante. Temos de nos
mostrar ao povo!” – parece agora apático, como se o discurso de Marion tivesse
abalado as suas últimas veleidades, fazendo-lhe entrever uma outra verdade, e
Lacroix censura-lhe as suas hesitações, que o condenam, bem como aos
companheiros. A partir desse momento, o drama da Revolução transforma-se num
questionamento metafísico sobre o lugar e o papel do homem no universo:

“Houve um erro quando fomos criados, há qualquer coisa errada, nem sei dizer o
quê. Mas não vamos encontrar isso que nos falta remexendo nas entranhas uns
dos outros. Porque havemos de rasgar os corpos uns dos outros? À procura de
quê?”. Aqui já não é o homem político que fala, é o ser humano confrontado com as
falhas da Criação.

A curta intervenção de Danton na cena “uma digressão” inscreve-se na


continuidade dessa reflexão. O mundo e os humanos que o habitam são de tal
forma imperfeitos que não merecem ser levados a sério: “Deviam rir bem alto à
janela e no túmulo, e o céu torcia-se todo, e a terra morria de tanto se rir.”

O mundo torna-se uma farsa e não vale a pena ninguém dar-se ao trabalho de o
melhorar. As pessoas deviam deter-se na rua “para rirem na cara umas das
outras”.

Mas a partir do terceiro ato, quando a morte se torna mais presente e parece
evidente que o julgamento perante o tribunal revolucionário não passa de um
simulacro, o tom volta a mudar. Quanto mais o tempo urge, mais se tornam
caducas as tentativas de dar um sentido a essa morte, ou para a esconjurar; resta
o indivíduo consumido pela angústia, o contrário de uma figura heroica: a

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presença da guilhotina, a sensação da lâmina a cair, o medo de sofrer e a imagem
da putrefação apoderam-se dos espíritos.

“Gritaste bem alto, Danton. Se te tivesses preocupado mais cedo com a tua vida
seria agora diferente. Quando a morte se aproxima, assim, insolente, e se sente o
fedor que lhe sai da boca, cada vez com mais insistência, é horrível, não é?”. As
cenas da prisão giram em torno deste mesmo tema, apresentando múltiplas
variações.

Büchner abandona aqui o terreno político, mesmo que por vezes regresse a ele
para se interessar pela criatura que sofre, para tentar compreender o que pode
passar-se no mais profundo do ser nos últimos instantes. A imagem é desprovida
de complacência, é progressivamente eliminado tudo o que possa desviar da
realidade concreta da execução iminente, quer se trate do sentimento de morrer
por uma causa justa, da crença num Além, do desprezo pela morte por uma
questão de bravata, ou da convicção de estar a agir no sentido da História. Assim,
quando os prisioneiros querem ver-se como vítimas da sua tentativa de salvar
inocentes, não conseguem convencer-se disso, e o argumento cai por si. Quando
Phillipeau evoca a possibilidade de encontrar a paz em Deus, os outros
permanecem surdos aos seus argumentos, pois só concebem a divindade como
insensível ao sofrimento terrestre. Quando Danton quer ironizar, Camille logo lhe
responde que nem por isso conseguirá “por mais que deites a língua de fora, não
consegues lamber o suor da morte do teu rosto”. Finalmente, quando Danton tenta
colocar o curso da História do seu lado “Quando, um dia, a história abrir as
catacumbas, o despotismo sufocará com o fedor dos nossos cadáveres”. Hérault
responde-lhe que ele está a construir “frases para a posteridade”, frases que
pouco interessam àqueles que vão morrer.

No momento em que a carroça vem buscar os condenados para os conduzir à


guilhotina, estes evocam de forma coral um mundo abandonado pelo divino. A
noite que cai adquire o valor de crepúsculo dos deuses: “As nuvens cobrem o
crepúsculo, é como um Olimpo que se extingue e onde aparecem, uma a uma, as
figuras dos deuses pálidos, atónitos”. Só o amor entre Lucile e Camille, entre
Danton e Julie, ou a amizade entre Camille e Danton – o calor humano, a
compreensão da dor do outro nas cenas de prisão – parecem poder dar ainda um
sentido à existência. “Poderás tu impedir que as nossas cabeças se beijem no
fundo do cesto?” diz Danton ao carrasco. Resta também, última escapatória, a
loucura de Lucile no final: último refúgio, paradoxal, contra um mundo insensato.

Esta conceção de um universo de onde os valores desertaram, e sentido como um


caos medonho, levou a crítica a ver em A Morte de Danton uma peça que advoga
o niilismo. Todavia, convém notar que o mundo aqui posto em causa não tem um
caráter absoluto. Não é o mundo em si que desaba, mas uma certa conceção que

31
até aí se faz dele: um universo ordenado, concebido para os homens e regido por
um princípio supremo. É ao desabar desse universo que os revolucionários de 1794
assistem, submetidos que estão ainda ao “ter que”. Surge então neles uma
sensação de vazio, exacerbada pela proximidade da morte: já que não se sabe por
que se morre, mais vale convencer-se de que o mundo que se deixa não tem
sentido, mais vale desvalorizar o que se perde para assim diminuir a perda.

Execução de Robespierre e os seus apoiantes


a 28 de julho de 1794.

Mas o desaparecimento dos valores aviva o sofrimento que, no último instante,


permanece a única realidade tangível. De modo absolutamente voluntário,
Büchner substitui a morte carregada de sentido e de futuro para a humanidade
por uma representação concreta da dor física no momento da decapitação. Não é
por acaso que, contrariamente a todas as regras da arte dramática em vigor na
época, ele imagina a guilhotina erguida no palco. Ela é a figuração concreta dessa
morte mecânica, inventada para tornar a execução “humana”, mas que não
suprime a dor moral e física. Num artigo publicado em 1992, Ingrid Oesterle
destacou os sinais, em A Morte de Danton, das leituras de Büchner sobre os efeitos
físicos da lâmina da guilhotina sobre os condenados. O mais marcante é esta
observação de Laflotte: “Pode doer, quem é que diz que não? Dizem que é um
segundo, mas a dor tem uma medida de tempo mais apurada: distingue décimos
de segundo”.

Mercier, em Le Nouveau Paris, dedicara um artigo aos debates da época sobre a


decapitação na guilhotina, a crença numa morte instantânea e sem dor fora posta
em causa perante observações feitas sobre os condenados. Mercier relata que

32
testemunhas julgaram ter visto “nos movimentos convulsivos dos músculos do
rosto, imediatamente após a execução, os sinais de uma dor aguda e um vestígio
de sensibilidade que ainda não se extinguiu.” Uma sobrevivência de alguns
instantes, acompanhada de sofrimento horrível após a decapitação, era, pois,
verosímil. É a essa eventualidade que Laflotte se refere aqui. Morrer continua a ser
um tormento, só a morte, com a rigidez do corpo, dá o repouso. É por isso que
Danton diz que “a guilhotina é o melhor médico”: uma vez passados os últimos
instantes, ela, ao tirar a vida, proporciona a única cura absoluta, na inconsciência
e no esquecimento.

Estes detalhes mórbidos dão uma imagem da morte totalmente diferente daquela
que até então se conhecia no teatro. Não que o sofrimento de morrer nunca
tivesse sido descrito, mas ele não constituía a realidade última. Büchner rompe
com toda a estetização da morte. Lança sobre o indivíduo que sofre um olhar
quase médico, que não é alheio aos seus estudos de biologia (não esqueçamos
que mais tarde ele irá estudar precisamente os nervos do crânio!), e que, no
teatro, transforma radicalmente a imagem do homem. O ser moral e consciente
dos seus atos dá lugar à criatura que sofre na carne, presa numa tormenta que a
arrasta e contra a qual luta em vão. O fim de A Morte de Danton anuncia Woyzeck.
O autor já não é um juiz no tribunal das instituições políticas e morais, mas um
clínico no seu laboratório, lançando um olhar compassivo sobre o sujeito de
análise.

Jean-Louis Besson, Le Théâtre de Georg Büchner: un jeu de masques,


Belfort, Éditions Circé, 2001. (trad. Manuela Torres)

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

33
CRONOGRAMA DA
REVOLUÇÃO
FRANCESA
LISA SPIRLING
Acontecimentos que conduziram à ação da peça:

O Iluminismo levou a que muitos escritores europeus criticassem a monarquia,


expondo ideias democráticas, liberais, nacionalistas e socialistas.

1774 – Coroação de Luís XVI em Reims.

1775 – Início da Guerra de independência dos Estados Unidos da América (1775–


1783)

1778 – A França declara guerra à Grã-Bretanha em solidariedade com as colónias


Americanas. A guerra subsequente agrava a já existente dívida financeira.

34
1783 – A erupção vulcânica do Laki na Islândia e o arrefecimento do clima
provocado pela Pequena Idade do Gelo, combinados com o fracasso francês na
adoção da batata como alimento dominante contribuem para a fome e má
nutrição generalizadas.
O Tratado de Paris termina com a guerra. O sucesso dos colonos
americanos contra o poder europeu faz crescer as ambições daqueles que
desejam uma reforma em França.

1789 – 5 maio. Os Estados Gerais são convocados pela primeira vez desde 1614. A
votação decorrerá por Estado e não por cabeça.
28 maio. O Terceiro Estado (Tiers Etat) começa a reunir por iniciativa
própria, apelidando-se de “communes” (comunas).
17 junho. O Terceiro Estado declara-se Assembleia Nacional.

A Assembleia Nacional existiu de 17 de junho a 9 de julho de 1789, como


instituição transitória entre os Estados Gerais e a Assembleia Nacional
Constituinte.

20 junho. O Terceiro Estado/Assembleia Nacional é impedido de reunir nos


locais apropriados. Encaram o rei Luís XVI como aquele que lhes fecha as portas e
decidem-se por um voto declarativo, conhecido por “serment au Jeu de Paume”
(juramento do jogo da pela), que não se dissolve até a Constituição estar
estabelecida.
14 julho. Tomada da Bastilha; De Launay (o governador), Foulon (o
secretário de Estado) e de Flesselles (então o equivalente ao Prefeito de Paris),
entre outros, são massacrados.

35
17 julho. O início do Grande Medo, revolta campesina contra o feudalismo e
grande número de revoltas e distúrbios urbanos. Muitos membros da aristocracia
fogem de Paris e tornam-se emigrantes. Luís XVI aceita o cocar tricolor.
27 agosto. A Assembleia adota a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão.

1790 – janeiro. Antigas Províncias da França são substituídas por novos


Departamentos administrativos.
13 janeiro. Supressão dos votos monásticos e ordens religiosas.
maio. A Assembleia Nacional renuncia ao envolvimento em guerras de
conquista.
19 maio. A Nobreza é abolida pela Assembleia Nacional.
12 junho. A Constituição Civil do Clero obriga os seus membros a um
juramento de lealdade para com o Estado, provocando divisões entre os
sacerdotes que aceitam o juramento e aqueles que o renunciam.
julho. Poder crescente dos Clubes (incluindo o dos Cordeliers e o dos
Jacobinos).
Reorganização de Paris.
16 agosto. Os “parlements” são abolidos.

36
1791 – 30 janeiro. Mirabeau é eleito Presidente da Assembleia.
28 fevereiro. Dia dos Punhais; Lafayette ordena a prisão de 400
aristocratas armados no Palácio das Tulherias.
2 abril. Morte de Mirabeau – primeira pessoa a ser enterrada no Panteão,
formalmente a Igreja de Saint-Geneviève.
15 julho. A Assembleia Nacional declara o rei inviolável e ele é restabelecido.
17 julho. Manifestação antimonárquica no Campo de Marte (Champ de
Mars); a Guarda Nacional mata 50 pessoas.
13-14 setembro. Luís XVI aceita formalmente a Constituição.
30 setembro. Dissolução da Assembleia Nacional Constitutiva.
1 outubro. A Assembleia Legislativa reúne – muitos deputados jovens,
inexperientes e radicais.

A Assembleia Legislativa foi a legislatura de França desde outubro de 1791 até


setembro de 1792 e constituiu-
constituiu-se como o centro do debate político e do poder
legislativo.

1792 – janeiro – março. Motins alimentares em Paris.


20 março. A guilhotina é adotada como instrumento oficial de execução.
20 abril. A França declara guerra à Áustria.
28 abril. A França invade os Países Baixos Austríacos (Bélgica).
30 julho. A Áustria e a Prússia começam a invadir o território francês.
julho. O cocar tricolor torna-se peça obrigatória na vestimenta masculina. A
Marselhesa é cantada por voluntários de Marseilles na sua chegada a Paris.

37
9 agosto. A Comuna Revolucionária toma posse do Hôtel de Ville.
10-13 agosto. Tomada do Palácio das Tulherias. A Guarda Suíça é
massacrada. Luís XVI de França é preso e levado, juntamente com a sua família.
Georges Danton torna-se Ministro da Justiça.
16 agosto. A Comuna de Paris apresenta uma petição à Assembleia
Legislativa ordenando a criação de um tribunal revolucionário e convocando uma
Convenção Nacional.
19 agosto. Lafayette foge para a Áustria. França é invadida pelos exércitos
da Coligação, encabeçados pelo Duque de Brunswick.
22 agosto. Revoltas monárquicas em Brittany, La Vendée e Dauphiné.
3 setembro. Conquista de Verdun pelos exércitos de Brunswick.
3-7 setembro. Os massacres de setembro (Jornadas de setembro) de
prisioneiros em prisões de Paris.
19 setembro. Dissolução da Assembleia Legislativa.

A Convenção Nacional é composta pelas assembleias legislativa e


constitucional. Deteve poder executivo em França desde 20 de setembro
setembro de
1792 até 26 de outubro de 1795.

21 setembro. Abolição da monarquia e proclamação da Primeira República


Francesa.
3 dezembro. Luís XVI é levado a julgamento, aparece perante a Convenção
Nacional (11 e 23 dezembro). Robespierre defende que “Luís deve morrer para que
o país possa viver”.

38
1793 – 21 janeiro. O cidadão Louis Capet, formalmente conhecido por Luís XVI, é
guilhotinado.
7 março. Surto de rebelião contra a Revolução: guerra em Vendée.
11 março. O Tribunal Revolucionário é estabelecido em Paris.

O Tribunal Revolucionário foi instituído pela Convenção Nacional e era


destinado ao julgamento de infratores políticos.

6 abril. É estabelecida a Junta de Salvação Pública.

A Junta de Salvação Pública foi criada em abril de 1793 e reestruturada


reestrut urada em
julho de 1793, transformando-
transformando -se no verdadeiro governo executivo. Um
gabinete de guerra na sua essência, a Junta centralizava denúncias,
supervisionava julgamentos e comandava execuções.

30 maio. Uma revolta rebenta em Lyon.


2 junho. Prisão dos deputados girondinos da Convenção Nacional pelos
jacobinos.
10 junho. Os jacobinos controlam a Junta de Salvação Pública.
13 julho. Assassínio de Jean-Paul Marat por Charlotte Corday.

Marat assassinado, 13 de julho de 1793.


Pintura de Jacques-Louis David

39
27 julho. Robespierre é eleito para a Junta de Salvação Pública.
28 julho. A Convenção proscreve 21 deputados girondinos como inimigos da
França.
5 setembro. Início do “Reino do Terror”.
9 setembro. Estabelecimento de forças paramilitares dos “sans-culottes” –
exércitos revolucionários.
22 setembro. É introduzido um novo calendário, denotando o dia 22 de
setembro de 1792 como o início do ano 1.
29 setembro. A Convenção estabelece o “maximum”, fixando os limites dos
preços de muitos produtos e serviços.
10 outubro. A Constituição é colocada em espera. Decreta-se que o governo
deve ser “revolucionário até à paz”.
16 outubro. Maria Antonieta é guilhotinada.

21 outubro. Uma lei anticlerical é aceite, os sacerdotes e apoiantes são


suscetíveis vítimas de assassínio “à vista”.
24 outubro. Julgamento dos 21 deputados girondinos pelo Tribunal
Revolucionário.
31 outubro. Os 21 deputados girondinos são guilhotinados.
8 novembro. A Madame Roland é guilhotinada como parte da purga dos
girondinos.
10 novembro. Celebração da Deusa da Razão na catedral de Notre-Dame,
que é renomeada como o Templo da Razão.
dezembro. Primeira edição de Le Vieux Cordelier de Desmoulins.
4 dezembro. A lei dos 14 Frimaire (Lei do governo revolucionário) é
aprovada; o poder passa a estar centralizado na Junta de Salvação Pública.

40
23 dezembro. Forças antirrepublicanas em Vendée são finalmente
derrotadas e 6000 prisioneiros executados.

1794 – fevereiro – “Pacificação” final em Vendée – assassínios em massa, política


mundial queimada.
19 março. Hébert e os seus apoiantes são presos.
24 março. Hébert e os líderes dos Cordeliers são guilhotinados.
25 março – 5 abril. Período de tempo abrangido pela ação da peça “A Morte
de Danton”.

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

41
SÚMULA DA
REVOLUÇÃO
FRANCESA ATÉ À
MORTE DE DANTON
● A Revolução Francesa (denominação que engloba revoluções parciais e
sucessivas) teve por finalidades derrubar o despotismo real, o sistema feudal
ainda em vigor, fazer ascender a uma posição social diferente a nova burguesia,
dar melhores condições de vida ao povo. É, em resumo, uma revolução burguesa
e democrática.
democrática

A Liberdade guiando o povo. Pintura de Eugène Delacroix.

42
● A situação geral da França antes de 1789 tornara-se caótica. Na agricultura, o
atraso técnico era enorme, devido à organização feudalista em que se apoiava.
Por outro lado, a indústria, se bem que longe do florescimento industrial inglês
contemporâneo, ganhava notável desenvolvimento, sucedendo-se a criação de
vários complexos industriais e o aparecimento da classe operária.
operária O regime
feudal entravava, porém, o progresso industrial. A extrema miséria do camponês
(a grande massa da população), a regulamentação absolutista governamental, a
divisão provincial da França que estabelecia barreiras alfandegárias internas,
reduziam o poder de compra. Igual crise sofria o comércio que, no entanto,
antevia imensas perspetivas. A grande força do capital continha-
continha -se, perante a
orgânica feudal
feudal.
eudal

● O rei era o máximo poder,


poder sem limites, apoiado numa gigantesca máquina
burocrática e num acervo de regulamentações e leis anacrónicas, tipicamente
feudais.

● Na organização social mantinha-se a velha distinção: o clero (Primeiro Estado),


a nobreza (Segundo
(Segundo Estado) e o resto da população (Terceiro Estado).
Estado) “O
clero serve o rei pela oração, a nobreza pelas armas, o povo pelos bens”, era a
fórmula medieval.

● O Terceiro Estado representava mais de 90 da população e compreendia


todos os que não eram nobres nem religiosos, isto é, burgueses, camponeses,
operários, profissões liberais, etc.

● No fim do século XVIII, a burguesia endinheirada era a classe mais poderosa


do ponto de vista económico.
económico Os camponeses, representando a maioria da
população, eram os que mais dolorosamente sofriam o regime feudal.

● Como consequência desta situação já em si revolucionária, a literatura, o


teatro, o pensamento, as artes, assumiram o comando mental das
reivindicações.
reivindicações Nomes como os de VAUBAN, SAINT-SIMON, LA BRUYERE, LESAGE,
PERRAULT, entre os mais antigos e MESLIER, MONTESQUIEU, VOLTAIRE, DIDEROT,
D’ALEMBERT (os enciclopedistas), HELVETIUS, ROBINET, MORELLY, MABLY,
ROUSSEAU (o filho do relojoeiro de Genebra de que se fala na peça),
BEAUMARCHAIS, MARAT, etc., iam fundindo no cadinho do pensamento toda a
envolvência revolucionária de que a França estava possuída.

● No campo económico, surgiu em França o fisiocratismo (QUESNAY, NEMOURS,


TURGOT, etc.), cuja doutrina se baseava nos “direitos naturais” e combatia o

43
feudalismo como seu violador – o feudalismo atentava contra a liberdade pessoal,
a propriedade privada, a iniciativa particular.

● MARAT (o Amigo do Povo, título de um jornal que editava) é o nome principal da


teorização pré-revolucionária, sendo as “Cartas Polacas” e “As cadeiras da
escravidão” duas obras suas com êxito e profundamente influenciadas por
Rousseau e Montesquieu.

● Simultaneamente ao crescimento da miséria popular, na corte grassava a maior


corrupção. O escândalo do “caso do colar”, a dívida pública que atingia a cifra de
cinco biliões, o esgotamento do tesouro, a impossibilidade de contrair novos
empréstimos, levaram o Estado à quase bancarrota.
bancarrota

● O Rei convoca a Assembleia dos Notáveis em 1787. Nela estala um conflito entre
o monarca e a nobreza devido a uma proposta de alteração fiscal que iria atingir
a última. A Assembleia é dissolvida e o rei consente na marcação da reunião dos
Estados Gerais para 1789.

● Mais do que nunca, 1789 adivinhava-se um ano de fome e crise. Rebentam


revoltas camponesas e operárias por toda a França. Realizam-se as eleições para
os Estados Gerais,
Gerais que abrem a 5 de maio de 1789, em Versalhes. No dia seguinte
irá discutir-se a forma da verificação de poderes dos deputados o que
imediatamente porá o problema da forma de votação.
votação A nobreza e o clero
pretendem a votação por Estados o que lhes daria a maioria, enquanto o Terceiro
Estado deseja a votação por cabeça, que lhes traria o domínio da Assembleia. A
discussão deste assunto arrasta-se durante um mês. O conde de MIRABEAU
assume a defesa da posição do Terceiro Estado, do qual é representante.
Entretanto, o povo dá mostras de impaciência. Depois de várias intervenções
favoráveis ao Terceiro Estado em que se destacaram LE CHAPELIER, BARNAVE e
outros, o abade SIEYÉS proclama que o Terceiro Estado irá proceder ele próprio à
verificação dos poderes dos deputados de todos os Estados e ameaça aqueles que
não compareçam de serem excluídos dos trabalhos. Muitos membros do baixo
clero juntam-se-lhe. A 17 de junho o Terceiro Estado proclama-
proclama- se Assembleia
Nacional.
Nacional

● O alto clero, a nobreza e o rei, aterrorizados por esta decisão, contra-atacam.


No dia 20, o rei manda fechar as salas de Versalhes e impossibilita assim a reunião
do Terceiro Estado. Este, amparado pelo povo, dirige-se a uma sala em Paris, onde
se jogava a pela e aí se processa o juramento de que o Terceiro Estado não se
deixará amedrontar com qualquer decisão régia. É o célebre juramento do jogo
da pela.
pela A 23 de junho, o rei declara nulas todas as decisões da Assembleia

44
Nacional, mas os membros desta não acatam a decisão real. O rei teve de
reconhecer o novo órgão que, a 9 de julho, se proclama Assembleia Constituinte.
Constituinte

● Em Paris e na província levantava-se uma forte onda revolucionária. Entretanto,


o rei concentrava em Paris e Versalhes o Exército e anunciava o despedimento de
NECKER do Ministério – o povo viu nestas duas atitudes o princípio do ataque das
forças contrarrevolucionárias. A 14 de julho, o Terceiro Estado agindo ainda em
bloco, marcha contra a Bastilha, a fortaleza-prisão de Paris onde se encontrava
grande parte do exército e, após duro combate, conquista a sua posse.

● A tomada da Bastilha marca o início da constatação do povo da sua enorme


força e arrasta todo o povo de França. Em grande parte das cidades francesas as
autoridades administrativas de então são destituídas e substituídas por membros
eleitos pelo povo. Em toda a parte, depois do 14 de julho, as autoridades locais são
burguesas. Nos campos, os camponeses pegavam em armas e rebelavam-se
contra os antigos senhores feudais.

● O poder passa praticamente para as mãos da alta burguesia (aristocracia


burguesa). Constitui-se a Guarda Nacional,
Nacional o exército da Revolução cujo comando
é entregue ao marquês de LAFAYETTE. Entretanto, na Assembleia Constituinte os
Estados dividem-se em duas posições: a direita (nobres e clero) e a esquerda (o
Terceiro Estado). BARNAVE, LAFAYETTE e MIRABEAU são os principais chefes do
Terceiro Estado, pertencentes à alta burguesia. A Assembleia, alarmada com a
crescente revolta dos camponeses, resolve a 4 de agosto preocupar-se com o
problema agrário, mas as decisões tomadas em nada modificaram a situação. A 16
de agosto vota-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, burguesa,
se bem que representasse um notável progresso na queda do feudalismo.

● Entretanto, na corte, o rei opunha o seu veto às decisões da Assembleia e


garantia-se do apoio do Exército. MARAT adverte o povo da ameaça que o rei
prepara e incita-o a marchar sobre Versalhes. A 5 de Outubro o povo marcha para
Versalhes. Chega também a Guarda Nacional mas LAFAYETTE hesita. A 6 dá-se o
reencontro entre o povo e as tropas reais e o palácio de Versalhes é invadido.
invadido O
rei apressa-se a sancionar as decisões da Assembleia e muda para as Tulherias.
Principia aqui a viragem política de LAFAYETTE.

● Sucedendo ao clube Bretão, fundado a quando da Assembleia Nacional, surge a


Sociedade dos Amigos da Constituição, também chamada o Clube dos Jacobinos
por as suas reuniões se efetuarem na biblioteca dos monges daquela ordem
eclesiástica. O clube dos Jacobinos que, no início, agrupava todos os

45
revolucionários, desde MIRABEAU, LAFAYETTE a ROBESPIERRE, DANTON e MARAT,
irá desempenhar no prosseguimento da Revolução um papel fundamental.

● A Assembleia Constituinte que devia a sua permanência ao movimento popular


de 5 de Outubro, decreta, porém, uma lei autorizando o uso da força contra os
futuros levantamentos populares. MARAT insurge-se mas é obrigado a esconder-
se. A Assembleia, em dezembro de 1789, divide os cidadãos franceses em ativos
e passivos,
passivos cabendo aos primeiros o direito a voto e a serem elegíveis, por
possuírem determinados bens de fortuna (a burguesia, fundamentalmente). A
maioria da população passava a ser formada por cidadãos passivos. Outras
decisões da Assembleia são a abolição da nobreza hereditária e dos títulos, a
reorganização administrativa da França que termina com o parcelamento feudal,
barreiras alfandegárias e privilégios senhoriais, a nacionalização dos bens do
clero, a reforma da igreja que passa a depender do governo e não do Papa, a
venda dos bens do clero, etc.

● Para pagamento da compra dos bens do clero, tornados bens nacionais, a


Assembleia decretou a emissão de obrigações especiais – os assinados.
assinados A partir
de certa altura os assinados (assignats) de tal maneira se multiplicaram que
passaram a circular como moeda a par da tradicional. Esta venda dos bens
nacionais aproveitou, evidentemente, à burguesia, a única que dispunha de
dinheiro para os comprar.

● Outra decisão importante da Assembleia é a chamada lei de LE CHAPELIER que


proibia os operários de se constituírem em grupos ou sociedades e interditava as
greves.

● Em setembro de 1791, o rei promulga a Constituição, que proclama que o poder


vinha da Nação e reconhecia o rei como chefe do poder executivo.

● A série de leis antidemocráticas da Assembleia tinha, no entanto, encontrado


forte oposição dentro do próprio corpo de deputados. Chefiava essa oposição
ROBESPIERRE (o advogado de Arras). Nos Jacobinos começavam as divergências.
Fundara-se um novo clube, o dos CORDELIERS (reunia na igreja com esse nome),
ou Sociedade dos amigos dos direitos do Homem e do Cidadão. Lá encontravam-
se DANTON, CAMILO DESMOULINS, MARAT, ROBERT, MOMORO, etc., que se
distinguiam pela sua oposição às leis da Assembleia e pelo seu espírito
republicano. Outro clube que adquiriu grande projeção foi o CÍRCULO SOCIAL,
SOCIAL
cujos chefes FAUCHET e BONNEVILLE punham em dúvida o princípio da
propriedade privada.

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Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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● Cresciam, assim, grandes discordâncias entre os
os revolucionários.
revolucionários De um lado
os constitucionalistas, do outro os opositores – ou seja, a alta burguesia e as
restantes classes. MIRABEAU, chefe dos primeiros, entra em conversações secretas
com a corte e trai a Revolução. MARAT denuncia-o. Entretanto MIRABEAU morre.
LAFAYETTE, BAILLY, LE CHAPELIER e SIEYÉS, continuam e constituem o setor
jacobino da direita.

● Há muito que começara a emigração dos nobres.


nobres Em Coblença, sob o comando
do duque de ARTOIS, preparam a contrarrevolução,
contrarrevolução na qual o rei secretamente
colabora. Fala-se de um plano para a intervenção dos estrangeiros em França. A 21
de junho de 1791 o povo sabe da fuga do rei e da rainha. O clube dos Cordeliers
pede à Assembleia a abolição da monarquia, sendo apoiado por BRISSOT, futuro
chefe dos Girondinos. O rei é capturado em Varennes e regressa a Paris
prisioneiro. O povo aguarda os resultados. O clube dos Cordeliers e o Círculo
Social com CAMILO DESMOULINS, DANTON, CHAUMETTE, CONDORCET e outros
pedem o castigo do rei e a implantação da República. A Assembleia Constituinte
refreia os ímpetos populares e pretende demorar a resolução do problema do rei.
Para
Pa ra os membros da alta burguesia a revolução está a ir longe de mais,
pretendem travá-
travá-la.
la

● A 17 de julho de 1791 reúnem-se no Campo de Marte milhares de parisienses para


discutirem a sorte do rei e da monarquia. Por ordem da Assembleia Constituinte a
Guarda Nacional comandada por LAFAYETTE carrega sobre o povo desarmado e
assassina algumas dezenas. É o chamado morticínio do Campo de Marte que
imediatamente adquire grande importância política. Uma parte do Terceiro
Estado pegava em armas contra outra. Em setembro, com a promulgação da
Constituição, a Assembleia Constituinte deixa de existir.

● Com a constituição da Assembleia Legislativa pelos elementos da burguesia e


pelos intelectuais burgueses nasce uma nova etapa da Revolução. Como afirmou
um dos deputados da Assembleia a “propriedade privada é a abóbada deste
grande edifício que abrange 24 milhões de almas; abalai essa abóbada e todo o
edifício desabará”. Os partidos da Assembleia não eram já os mesmos na
Constituinte. A direita,
direita em vez de ser preenchida pelos membros da nobreza e do
clero passa a sê-lo pelos “feuillants” partidários acérrimos da Constituição, o que
significava que a alta burguesia, acima de tudo, pretendia fazer escorar a
revolução nas medidas antidemocráticas que a Constituinte decretara. A
esquerda era constituída pelos Jacobinos agora divididos em duas fações: os
brissotinos
brissotinos (chefiados por BRISSOT e também chamados Girondinos por a maior
parte pertencer ao departamento da Gironda) que representavam os interesses
da burguesia provinciana, comerciante e industrial e da burguesia fundiária e os

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montanheses (por se sentarem nos lugares mais altos da Assembleia) chefiados
por ROBESPIERRE que representavam a esquerda. Nela se distinguiam ainda
CHABOT e COUTHON. Mas, o maior número de deputados da Assembleia situava-
se ao centro e por isso se denominavam ironicamente o “pântano
pântano”
pântano ou a “planície
planície”.
planície

● Enquanto a situação económica se ia agravando e se registavam vários motins,


especialmente devido à falta dos principais produtos de subsistência, na corte
continuava a maquinar-se, com o conluio da nobreza, clero e alta burguesia a
contrarrevolução. Os “feuillants” eram agora partidários da reação. Cada vez mais
forte, sentia-se a ameaça dos exércitos de Coblença e a intervenção do
estrangeiro. Por outro lado, os girondinos faziam uma propaganda de guerra
chegando Brissot a sugerir que a França tomasse a iniciativa do ataque contra o
despotismo estrangeiro. Embora as massas populares se deixassem sugestionar
por esta chamada às armas, os jacobinos faziam constantes apelos no sentido de
atrasar a guerra com o estrangeiro pois à Revolução convinha ganhar tempo e
solidificar a sua posição. Nos Girondinos a intenção era convencer o povo que a
Pátria estava em perigo e assim desviar a sua atenção dos problemas internos
essenciais. Ao rei, convencido de que a França revolucionária perderia a guerra
exterior se a ela se aventurasse, a atitude dos Girondinos interessava. Assim,
apesar dos insistentes alertas que Robespierre lançava, o rei, em março de 1792,
formou um ministério girondino. BRISSOT e DUMORIEZ tomaram conta do
governo. A 20 de abril de 1792 a França declarou guerra à Boémia e à Hungria que
é o mesmo que dizer-se à Áustria visto o rei daqueles territórios ser o Imperador
da Áustria. A guerra, apesar de desejada pelos girondinos, era uma guerra
defensiva e não de ataque.
ataque O povo acolheu com entusiasmo a defesa da Pátria e
armou-se. Mas, ajudados pela contrarrevolução interna, a França revolucionária foi
vencida pelos exércitos estrangeiros nas primeiras batalhas travadas junto das
fronteiras.

● A indignação do povo francês subiu ao rubro e as advertências de MARAT e


ROBESPIERRE foram finalmente ouvidas. De novo, MARAT é alvo de perseguições
por parte, agora, dos girondinos. E a separação entre as duas fações dos jacobinos
avizinha-se. Mas ROBESPIERRE, MARAT e DANTON exortavam o povo à guerra, já
que uma vez começada havia que vencê-la. Entretanto, o rei, convicto de que as
forças externas e internas iriam vencer as hostilidades demitiu o ministério
girondino e chamou de novo ao poder os “feuillants”
“feuilla nts”.
nts” Os girondinos forçaram o
povo a manifestar-se contra o rei o que aconteceu em 20 de julho, oito dias depois
da queda do seu ministério. ROBESPIERRE e os jacobinos não apoiaram esta
manifestação.

49
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

50
● As tropas inimigas conquistavam terreno rapidamente devido sobretudo às
inúmeras traições dos oficiais e generais franceses. MARAT, ROBESPIERRE e
DANTON chefiavam o movimento popular. Os girondinos pretendiam acalmar o
povo. A 3 de agosto é divulgado em Paris o manifesto de BRUNSWICK, general ao
serviço da Prússia, que demonstrava as traições internas da França, e segundo o
qual a invasão se destinava a restaurar o poder absoluto do rei em França. Este
manifesto provocou no povo francês uma enorme agitação. Na madrugada de 10
de agosto o povo, comandado pela Comuna, invade as Tulherias e derruba o rei. A
Comuna Revolucionária fica senhora da situação. O rei é preso no Palácio do
Luxemburgo. A Assembleia nomeia novo governo girondino
girondino do qual faz parte
apenas, como jacobino, DANTON.
DANTON A Comuna Revolucionária que, dirigida pelos
jacobinos da Montanha, encabeçara o 10 de agosto é, agora, a par da Assembleia
Nacional, o órgão da Revolução. À sua frente, além de DANTON estão os jacobinos
ROBESPIERRE, MARAT, CHAUMETTE, etc. Os girondinos procuram travar a
ascendência da Comuna mas nada podem fazer pois DANTON está entre eles. A
luta entre a Comuna e a Assembleia Legislativa era, noutro plano, a luta entre
girondinos e jacobinos.
jacobinos

● A 2 de setembro Verdun é tomada pelos exércitos de BRUNSWICK. O caminho


de Paris estava livre para os invasores. É nesta altura que a Comuna toma a seu
cargo de maneira extraordinária a defesa da França e organiza o contra-ataque.
Enquanto os girondinos propõem a retirada da Assembleia de Paris, DANTON,
indignado, profere a frase que ficou na história e a que a peça de Buchner se
refere: “Para vencermos, senhores, precisamos de audácia, mais audácia, sempre
audácia – e a França será salva!”. Encorajado pelos jacobinos e em especial por
DANTON o povo lança-se à rua e vence os exércitos invasores em Valmy. A França
estava salva, realmente. São as célebres jornadas de setembro.
setembro

● A 21 de setembro, no dia seguinte à vitória de Valmy, por proposta de COLLOT


D’HERBOIS a Convenção decreta a abolição da Monarquia e proclama a
República.
República Na Convenção, a nova Assembleia, as direitas já não são constituídas
pelos “feuillants” mas sim pelos
pelos girondinos.
girondinos Nas esquerdas os homens da
Montanha – os jacobinos BOBESPIERRE, DANTON, MARAT, DESMOULINS, COLLOT,
BILLAUD-VARENNES. Ainda aqui, porém, a maioria pertencia ao centro, o pântano,
a planície. CHAUMETTE é eleito procurador da Comuna e HERBET seu substituto.
Finalmente, no clube dos jacobinos dá-se a cisão. Os girondinos saem e
advogavam o perdão do rei. Mas os jacobinos decretam a sua morte, por traição à
Pátria. Em 21 de janeiro de 1793 Luís XVI é guilhotinado.
guilhotinado

● Em consequência da guerra a situação económica do país piora e as lutas de


classes agravam-se. A situação miserável do povo dá lugar ao aparecimento de

51
uma nova fação extremista, os “furiosos
furiosos”,
furiosos chefiados por ROUX, VARLET, a atriz
CLAIRE LACOMBE, etc., que pretendiam a abolição da aristocracia e a concessão
de regalias ao povo. Os girondinos foram os primeiros a combater os “furiosos”. Os
jacobinos, embora não os apoiassem claramente, favoreceram-nos enquanto estes
foram úteis na sua luta contra os girondinos (porém entre os jacobinos havia uma
extrema esquerda – CHAUMETTE, PACHE, CHALIER – que mais sinceramente os
incitava). A principal reivindicação dos “furiosos” era o limite dos preços dos
géneros (maximum), também defendido por ROBESPIERRE, MARAT, SAINT-JUST,
etc.

● A Inglaterra, com PITT no governo, assim como a Espanha e a Holanda


intervieram na guerra contra a França. Em março de 1793, DUMOURIEZ que
gozava da confiança dos girondinos trai a Revolução, encaminhando o seu
exército para a tomada de Paris após sucessivas derrotas – falhada a tentativa, foi
obrigado a exilar-se junto do inimigo. Os jacobinos tomam a seu cargo a defesa do
país, cuja independência estava ainda mais ameaçada que em 1792. Nomeia-
Nomeia -se
então a primeira Junta de Salvação Pública cujo
c ujo elemento mais influente é
DANTON.
DANTON O exército é reorganizado. A Convenção, satisfazendo os “furiosos”,
estabelece o maximum do trigo. Entretanto, os girondinos tentavam acusar os
jacobinos de várias traições. No entanto, MARAT é libertado da acusação e levado
em triunfo pelo povo que em 31 de maio e 2 de junho se amotina e pede o castigo
dos girondinos. Estes motins marcam a queda definitiva dos girondinos e a
chegada ao poder dos jacobinos que mais tarde governarão em ditadura.

● Mas a Junta de Salvação


Salvação Pública dirigida por DANTON não conseguiu ter a
país. Promulga-se em 1793 a
energia suficiente para resolver os problemas do país
Constituição que tem o nome desse ano e foi considerada uma das mais
democráticas de sempre. ROBESPIERRE e SAINT-JUST são as figuras dominantes
desta época. A lei agrária de 10 de Junho, de inspiração jacobina, atribuía os bens
comunais aos camponeses e distribuía a terra em partes iguais para cada
habitante. O problema do povo, dos sans culottes que haviam sido a base das
insurreições de maio e junho continuava por resolver devido à fraqueza da Junta
de DANTON. Os “furiosos” e ROUX fazem de novo as suas reivindicações mas
apresentam-nas como combate à política dos jacobinos e como crítica à nova
Constituição – daí terem caído em desgraça.

● A 10 de Junho DANTON e a sua Junta são afastados do poder pela Convenção.


Da nova Junta irão fazer parte ROBESPIERRE, BARÈRE, COUTHON, CARNOT
D’HERBOIS, SAINT-JUST, BILLAUD-VARENNES, entre outros. A esta Junta virá a
chamar-se “a
a Grande”
Grande pela firmeza, energia e disposição postas na luta.
ROBESPIERRE será o cérebro máximo desta Junta.

52
● A nova Junta liquidará, sucessivamente, os “furiosos”, os dantonistas e os
hebertistas. A ditadura jacobina afastará pelo terror todos os que considerou
inimigos da Revolução
Revolução.
ção Assim aconteceu com DANTON, que se havia retirado
para usufruir dos prazeres de uma vida calma. Para este o tempo das audácias
passara, e embora fazendo parte da Montanha ele estivera sempre mais próximo
da Planície. Apesar disso continuava a gozar de grande prestígio. A partir de
outubro de 1793 DANTON e os seus amigos (CAMILO DESMOULINS, FABRE
D’EGLANTINE, LEGENDRE, DELAUNAY, etc.) tornaram-
tornaram-se adeptos da moderação.
moderação
Pediram o abrandamento da ditadura revolucionária, o fim do terror, a criação de
uma comissão de clemência, etc. Embora atacando ROBESPIERRE faziam também
incidir os seus ataques sobre os ultrarrevolucionários, HERBERT e os jacobinos de
esquerda. CHABOT e FABRE tinham adquirido grandes fortunas por processos nem
sempre honestos; criava-
criava -se uma
uma nova burguesia especuladora.
especuladora Contra ela
ROBESPIERRE irá lançar o seu fogo assim como o fará contra os hebertistas que se
situavam no pólo oposto a DANTON na medida em que levavam ao extremo as
reformas que preconizavam, que iam desde a abolição do tribunal revolucionário e
respetiva substituição por tribunais populares improvisados, à perseguição da
Igreja, ao culto da “santa guilhotina”, etc. Em 30 de março de 1794 HEBERT e
alguns dos seus partidários são executados e seis dias depois DANTON,
DESMOULINS e PHILIPPEAU são presos.
presos DANTON estivera até ao fim convencido
que os membros da Junta e da Convenção não ousariam tocar-lhe, e quando o
aconselharam a fugir este declarou: “acaso se leva a pátria agarrada à sola dos
sapatos?”. A 16 de abril DANTON e os seus
seus amigos são executados.
executados A 13 de junho
é executado CHAUMETTE.

● Entretanto, no campo das reformas e da luta contra o estrangeiro, a ditadura


jacobina prosseguia, vitoriosa, a sua caminhada. Mas ROBESPIERRE não dominara
completamente os hebertistas e os dantonistas. Tinham ficado de fora homens
como COLLOT, CARRIER, LEGENDRE, TALLIEN, THURIOT, que irão tomar conta da
Revolução: executarão ROBESPIERRE e darão àquela definitivamente um caminho
burguês, com o regresso ao poder da alta burguesia e culminando na Constituição
antidemocrática de 1795.

53
DANTON,
ROBESPIERRE E A
REVOLUÇÃO
RUTH SCURR
Em A Morte de Danton, Buchner apresenta-nos um retrato brilhante de
Robespierre, como um gatuno de sangue frio, hipócrita e fanático – a antítese de
Danton, homem viril e amante da sua mulher embora mulherengo. A peça atribui
uma mistura de motivos pessoais e políticos a ambos os revolucionários e captura
o drama da sua irremediavelmente deformada amizade. A amizade, a confiança, a
partilha de ideais, uniam os revolucionários quando estes começaram a trabalhar
por uma melhor e mais justa França em 1789. Amizades intensas que terminam
muito mal são histórias centrais da Revolução. Tendo em conta que as políticas
revolucionárias desenvolvem-se em inesperadas e muitas vezes violentas
direções, e tendo a França caído simultaneamente em guerra civil e estrangeira,
as velhas amizades, mesmo aquelas que tiveram o seu início nos dias de escola,
tornaram-se frágeis, partindo-se tantas vezes. Os amigos, afinal, guardam
oportunidades de traição com as quais os inimigos podem apenas sonhar.

Danton, Marat e Robespierre

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Quando eles se conheceram no início da Revolução em 1789, Robespierre tinha 31
anos e Danton 30; eram ambos advogados, assim como politicamente radicais e
nenhum deles tinha sido famoso à guarda do ancien régime. À parte das suas
fisionomias – Robespierre perto das proporções corretas, Danton um pouco maior
– os dois homens foram descobrindo ter cada vez mais em comum: dedicados ao
povo, ativos no clube dos Jacobinos, temendo que as forças da Contrarrevolução
triunfassem com a invasão estrangeira, lutaram juntos para derrubar a monarquia,
estabilizar a república e projetar as instituições do Terror.

Numa das raras ocasiões em que Danton falou sobre si mesmo em público,
suplicou: “Se eu tivesse sido levado pelo entusiasmo nos primeiros dias da nossa
regeneração, não teria expiado por isso? Não teria sido ostracizado?”. Robespierre
não poderia ter dito estas palavras. A expiação – por toda a sua carga religiosa –
estava para além do repertório de Robespierre; a retórica do martírio era mais o
seu estilo. Como Danton, ele tinha-se oferecido ao povo e conseguia imaginar
morrer por ele; mas ao contrário de Danton, ele não conseguiu nunca admitir que
poderia ter estado errado: “Quem diz que alguém inocente pereceu?”, perguntou
com gelada confiança. Danton foi guilhotinado a 5 de abril de 1794, Robespierre a
28 de julho do mesmo ano. “É o sangue de Danton que vos está a chocar!”, alguém
rosnou quando Robespierre caiu do poder. “Danton! – É então Danton que vos
pesa?”, respondeu ele, “Covardes – porque não o defenderam?”

Outra das amizades de Robespierre, com o poeta e jornalista Camille Desmoulins,


recua até aos seus dias de escola parisiense em Louis-le-Grand. Robespierre
esteve presente no casamento de Camille com Lucile Duplessis em 1790, e foi
padrinho do seu filho Horace, que cresceu órfão pelo Terror e frequentou a antiga
escola do seu pai e padrinho. Era óbvio que Robespierre gostava realmente de
Camille, mas orgulhava-se da sua imparcialidade e incorruptibilidade.

Depois de Camille ter publicado Le Vieux Cordelier, e de se ter juntado a Danton


no pedido por clemência e fim da mortandade em dezembro de 1793, Robespierre
foi persuadido para se movimentar contra ele. Nenhuma amizade, nenhum
suborno, prazer ou dor conseguiriam afastá-lo daquilo que ele acreditava ser do
melhor interesse para o povo e para a Revolução. Mais ninguém falou tão
insistentemente, previsivelmente ou prolongadamente sobre si mesmo na
Revolução. Ainda assim mais ninguém poderia ser convocado a colocar de parte
os seus sentimentos pessoais como Robespierre, continuamente comprometido
com a ideia do bem comum; ele adquiriu a alcunha de “O incorruptível”. Ele podia
falar de si mesmo tão frequentemente porque se identificava completamente com
a Revolução. Peculiarmente, era acompanhado por jacobinos e outros que
acreditavam nesta coincidência entre a pessoa de Robespierre e a Revolução.

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Antes de se conhecerem, Saint-Just, destinado a ser mais um amigo dramático de
Robespierre, escreveu-lhe em 1790: “Eu não te conheço, mas tu és um grande
homem. Não és apenas o deputado de uma província, mas sim o deputado da
república e da humanidade.” Saint-Just era nove anos mais novo que Robespierre:
selvagem, bonito e transgressor. O vínculo entre eles era tão improvável como
importante para a Revolução. Para além da poderosa coincidência das suas
opiniões sobre o julgamento e execução de Luís XVI, eles partilhavam uma
obsessão pela “vertu”, virtude em português. Os dois homens falavam muito e com
frequência. Saint-Just foi a única pessoa que se atreveu a subir em corrida a
escada exterior que conduzia até aos quartos privados de Robespierre, na Rue
Saint-Honoré (qualquer outra pessoa se aproximou de forma mais indireta através
da casa do seu senhorio). Saint-Just tinha sobre ele o fascínio de um pecador
reformado – “Eu agi mal, mas serei capaz de fazer melhor”, dizia ele com 20 anos.
Três anos depois Saint-Just era o aliado político mais próximo do Incorruptível.

Na Convenção, na manhã de 21 de março de 1794, Saint-Just leu um relatório


contra Danton, Camille Desmoulins e os seus associados. Manteve-se rígido na
tribuna, segurando o texto sem emoção numa mão que não tremia, enquanto
usava a outra para enfatizar os mais importantes tópicos com um gesto cortante
que relembrava a sua audiência da guilhotina. “Se salvarem Danton salvam uma
personalidade – alguém que conheceram e admiraram; prestam respeito ao
talento individual mas destroem a tentativa quase vitoriosa. Por amor a um
homem vão sacrificar toda a nova liberdade que estavam a dar para todo o
mundo”. Terminou devastadoramente: “As palavras que dissemos nunca serão
esquecidas na terra”. A Convenção sentou-se num silêncio atordoado. O discurso
de Saint-Just baseava-se numa série de notas apressadas que Robespierre tinha
anotado para ele: notas que ainda existem, e que mostram para além de qualquer
dúvida a profundidade da cumplicidade do Incorruptível nos ataques aos seus
antigos amigos.

Uma das notas incriminatórias de Robespierre era relativa à memória de uma


conversa na qual este falava, como era frequente, sobre a importância da virtude
e o seu papel nas políticas revolucionárias, quando Danton gracejou: “A virtude é o
que eu faço todas as noites na cama com a minha mulher”. Robespierre, pouco
agradado, tinha escrito isto no seu caderno para futura referência. Talvez Danton
não o tivesse dito como uma piada. Nas circunstâncias em que este se encontrava,
tendo em conta o seu contexto de vida desde 1789 – todo esse derramamento de
sangue, todos os sonhos destruídos, a esquiva luta revolucionária ainda tão longe
da vitória – o amor da intimidade sexual poderia na verdade parecer-lhe o melhor
que há a esperar para os seres humanos.

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Quando se virou contra ele, Robespierre afirmou que a reputação patriota de
Danton era injustificável; que este não teria contribuído para o crescer que
provocou o final da monarquia em 10 de agosto de 1792, antes de mais porque
teria partido de Paris para visitar a sua mãe em Arcis, e por outro lado na noite em
questão teve de ser arrastado da cama para comparecer à reunião da sua Secção.
No entanto ninguém arrastou Robespierre da sua cama nessa noite. Ele nunca
participou em qualquer violência revolucionária. Danton e Camille tinham saído
com as suas armas; Danton tinha sancionado assassínio nos degraus do Hôtel de
Ville; tinha estado na primeira linha na guerra estrangeira e visto sangue a correr
livremente. Como se atrevia Robespierre, entre todas as pessoas, a censurá-lo com
covardia física? Ele também se queixou do corpo gordo de Danton, do facto de ele
ser amoroso e indolente. Havia mau génio e um toque de maldade neste
documento; até Saint-Just poderia ver que apenas partes dele poderiam ser
incorporadas no relatório oficial.

Robespierre seguiu Danton na guilhotina, sobrevivendo-lhe por pouco mais que


quatro meses. Danton e Camille Desmoulins tinham 34 anos quando morreram;
Lucile Desmoulins tinha 23; Saint-Just tinha 26; e Robespierre tinha 36 anos. Em A
Morte de Danton os revolucionários jogam um jogo perdido contra a mortalidade e
cada um deles sabe disso. O génio dramático Buchner morreu de tifo com 23 anos
e também o sabia: “Nós não temos muita dor, temos muito pouca. Porque através
da dor chegamos a Deus. Nós somos morte, pó, cinzas. Como podemos reclamar?”.

Ruth Scurr, junho 2010

Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves

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DANTON
SIMON SCHAMA
Uma semana depois, Danton e alguns dos seus amigos mais próximos, incluindo
Desmoulins, Lacroix, Philippeau e (num dia diferente) Hérault de Séchelles são por
sua vez detidos. A morte dos hébertistas implicara sempre o fim dos Indulgents,
pois ter atacado uns e não os outros teria sido alienar fatalmente os Terroristas da
linha dura presentes nos dois comités. No dia 29 de março, há um último encontro
entre os gigantes. Danton tenta persuadir Robespierre de que a sua amizade foi
intencionalmente destruída por Collot e Billaud, que semearam a discórdia entre
eles para se exonerarem dos excessos terroristas. Mas Robespierre não está a
ouvir. Exige que Danton sacrifique os corruptos para se salvar a si próprio. É um
diálogo de surdos. Segundo uma versão convincente da noite da detenção,
Albertine, irmã de Marat, avisa Danton e insta-o a apresentar-se na Convenção
para denunciar o Comité. Ele começa por demonstrar alguma relutância – fazê-lo
significará a proscrição de Robespierre – mas depois, convencido de que não lhe
restam alternativas, acede. Ao chegar à assembleia, Danton vê Robespierre numa
conversa tão amistosa com Camille Desmoulins que baixa a guarda e vai-se
embora para casa. É detido nessa mesma noite.

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Os caçadores sabiam que não ia ser fácil. Hébert fora uma fuinha (mas com dentes
afiados). Danton será um leão ferido cujos rugidos beligerantes poderão ecoar por
toda a cidade de Paris. Na noite de 25 de março, os dois comités consideraram em
sessão conjunta a tática a utilizar. Saint-Just levou a acusação – da qual
injustamente se orgulhava – e disse que a leria na Convenção no dia seguinte,
após o que poderiam prender Danton e os amigos. Vadier e Amar olharam para
ele como se não estivesse bom da cabeça. Primeiro, havia que prender Danton,
depois logo se denunciaria. Qualquer outra tática seria potencialmente desastrosa.
Face à ofensa aos seus poderes de persuação, para não falar da comparação
negativa da sua virilidade com a de Danton, Saint-Just ficou incaracteristicamente
colérico mas os polícias da Segurança Geral impuseram o seu método.

A acusação contra Danton, corrigida para a sua forma final por Robespierre, é –
mesmo pelos padrões do Tribunal Revolucionário – um documento incrivelmente
fraco. As acusações contra Hérault de Séchelles são ainda mais capciosas.
Acusado de ser um aristocrata, ele invoca a memória do seu melhor amigo, Michel
Lepeletier, um ci-devant de linhagem ainda mais ilustre. Mas Danton é acusado de
toda a espécie de perfídias: de conspirar para colocar o duque de Orleães no
trono, de salvar pessoas, incluindo Brissot, dos massacres de setembro, de se rir
sempre que é mencionada a palavra “virtude”. Em suma, é má rês. O Comité
espera obviamente que enquadrando Danton e Desmoulins nos vigaristas da
fraude da Companhia das Índias, incluindo toda uma gama de estrangeiros
diversos – os irmãos Frey, o espanhol Guzmán, o dinamarquês Friedrichsen, o
belga Simon –, a culpa da vigarice se cole ao seu principal adversário, embora não
disponham da mínima prova que o ligue ao esquema.

No dia 2 de abril, o tribunal enche-se com uma multidão enorme – Danton tem um
número de seguidores formidável. Fouquier-Tinville tentou conter o interesse
popular até ao último minuto antes de anunciar o julgamento mas vê-se a braços
com um tribunal tumultuoso que ofende profundamente a sua noção de
procedimentos ordeiros. Até o número dos réus parece não bater certo:
Westermann, velho camarada de Danton, insiste em ser acusado com o amigo.
Quando o presidente do tribunal lhe garante que isso é “apenas uma formalidade”,
Danton comenta: “A nossa presença aqui é apenas uma formalidade”. Sucedem-se
as interrupções e as confusões, revelando o sentido assustadoramente poderoso
que Danton tem do teatro público. Ao não conseguir interromper uma das tiradas
tonitruantes de Danton, o presidente, Herman, pergunta-lhe: “Não ouviste a
sineta?” Danton replica: “A voz de um homem que está a defender a vida e a honra
tem de se impor ao som do vosso sininho”. Danton está efetivamente decidido a
explorar a vantagem que tem sobre os juízes em termos de volume, ciente de que
uma voz sonora e profunda, além de fazer os seus interrogadores parecerem
ridículos, dá testemunho dos recursos de poder viril que a cultura republicana

59
associa à virtude. Trovejar é ser patriótico. No dia seguinte, no princípio da defesa,
dirigindo-se mais ao público do que aos juízes ou ao júri, Danton declara: “Povo,
julgar-me-eis depois de me ouvires; a minha voz será ouvida por vós e em toda a
França”.

É exatamente isto que o tribunal teme, e não está disposto a deixar Danton dirigir
o julgamento. Desdenha da sua exigência de convocar uma longa lista de
testemunhas, incluindo membros do Comité de Salvação Pública como o próprio
Robespierre e Robert Lindet, o único dos colegas de Danton que se negou a
assinar o mandato de detenção. Não sobreviveu nenhum registo completo dos
trabalhos mas ao que parece Danton falou quase o dia inteiro e com um efeito
tremendo, sacudindo as acusações como se estivesse a sacudir insetos do casaco.
“Será que os cobardes que me estão a caluniar se atrevem a atacar-me cara a
cara?”, exige ele, e numa veia mais estoico-romântica: “O meu domicílio será em
breve no esquecimento, com o meu nome no Panteão… Eis a minha cabeça para
responder por tudo”. Danton parece querer elevar a miséria moral da ocasião ao
nível da retórica trágica, transformando o seu fim em algo tão importante e
memorável como o de um herói homérico, um patriota dos anais de Roma.

Durante os últimos dois dias, o tribunal ficou a conhecer Danton. Amanhã, ele conta
dormir no seio da glória. Nunca pediu perdão e vê-lo-eis subir para o patíbulo com
a sua serenidade habitual e a calma de uma consciência limpa.

Durante o seu período de detenção e julgamento, os dantonistas estão


encarcerados no Luxemburgo. É talvez a menos miserável de todas as prisões do
Terror, e aqueles que os lá veem recordarão Danton e Phillippeaux afetando uma
espécie de alegria forçada. Danton, em particular, parece resignado a separar-se
da sua segunda mulher, Louise, uma rapariga de apenas dezasseis anos. Camille
Desmoulins, no entanto, cai no mais profundo desalento ao ter de se separar de
Lucile, da qual continua muito apaixonado. Ela visita-o sempre que pode,
mantendo-se de pé, à distância prescrita, o que causa ao marido um intenso
prazer mas também um terrível tormento emocional. Na sua última carta, escrita
antes da execução, Danton diz a Lucile que ao vê-la e à mãe dela se atirou
desesperado contra as grades. É uma carta espantosa, o jorro de um homem
completamente desfeito pela tristeza e pelo remorso, caído nas profundezas de
uma espécie de fantasmagoria romântica e que deseja renunciar a toda a sua vida
pública para poder ter uma vida privada de paz.

Minha Lucile, ma poule, apesar do meu tormento acredito na existência de um


Deus; o meu sangue lavará as minhas falhas; voltarei a ver-te um dia, minha
Lucile… a morte que me vai libertar do espetáculo de tantos crimes é uma
desgraça? Adeus, Lulu, adeus, minha vida, minha alma, minha divindade na terra…
Sinto as margens do rio da vida ficar para trás, vejo-te de novo, Lucile, vejo os

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meus braços à tua volta, as minhas mãos atadas a abraçarem-te, a minha cabeça
cortada apoiada em ti. Vou morrer…

Lutador até ao fim, Danton continua a exigir o direito de convocar testemunhas. A


sua insistência é tão veemente e o público é-lhe tão simpático que Saint-Just,
temendo o colapso do julgamento, se apresenta na Convenção e diz que os
detidos estão a fomentar uma insurreição contra o tribunal e que a mulher de
Desmoulins está envolvida numa conspiração para assassinar membros do Comité
de Salvação Pública. São afirmações absurdas mas dão ao Comité a autoridade
suficiente para regressar ao tribunal e instruir Fouquier a empregar o seu habitual
“atalho” de perguntar ao júri se já foi suficientemente “iluminado”. Foi. Ao saber
que perdeu um último recurso, Danton resigna-se. Na prisão, segundo Riouffe, que
dirá que o ouviu através da parede, ele lamenta-se por deixar a República em tão
mau estado, governada por homens que não fazem a mínima ideia do que é
governar. “Se eu pudesse deixar os tomates ao Robespierre e as pernas ao
Couthon, o Comité talvez durasse mais algum tempo”.

No dia 5 de abril, Danton, Hérault, Desmoulins e os outros vão ao encontro da


morte. Observados por uma enorme multidão praticamente silenciosa,
comportam-se com grande dignidade e compostura. Danton está decidido a
mostrar afeto e amizade. Ele e Hérault de Séchelles, o prodígio do Parlamento
tornado jacobino regicida, tentam abraçar-se mas são bruscamente separados
pelo carrasco, Sanson. “Não impedirão as nossas cabeças de se encontrarem no
cesto”, terá dito Danton. Mas o seu último comentário é o melhor. Ao colocar-se à
frente da prancha, com a camisa manchada com o sangue dos seus melhores
amigos, Danton diz a Sanson: “Não te esqueças de mostrar a minha cabeça ao
povo. Olha que vale a pena”.

Simon Schama, Cidadãos – Uma Crónica da Revolução Francesa, Porto,


Civilização Editora, 2001.

Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves

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SUGESTÃO DE
ATIVIDADES
TAREFAS A DESENVOLVER COM OS ALUNOS

ESCREVER

Solicitar aos alunos um pequeno texto onde articulem as seguintes palavras:


“Absolutismo", "Revolução Francesa", “Danton”, "Terror".

ANALISAR

Analisar com os alunos a seguinte gravura, discutindo em aula o papel da


guilhotina na Revolução Francesa e a pena de morte por decapitação.

62
INVESTIGAR

A partir da cronologia da Revolução Francesa (pp. 34-41), sugerir aos alunos que
escolham uma data específica e que escrevam um pequeno texto, a partir da sua
investigação, sobre esse momento da História.

Pedir aos alunos breves biografias de algumas das principais personagens da


Revolução Francesa e interpretadas no espetáculo A Morte de Danton, tais como:
Georges Danton; Legendre; Camille Desmoulins; Hérault-Séchelles; Thomas Payne;
Robespierre; Saint-Just; Collot d´Herbois; Billaud Varennes, entre outras.

LER

Ler e analisar com os alunos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,


um documento culminante da Revolução Francesa, que define os direitos
individuais e coletivos dos homens como universais.

VISIONAR

Após a assistência ao espetáculo A Morte de Danton, visionar com os alunos o filme


Danton, de Adrzej Wajda (1982), e discutir em aula o perfil da personagem Danton
em ambos os casos.

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EQUIPA TEATRO NACIONAL D. MARIA II, E.P.E.

direção artística JOÃO MOTA


conselho de administração CARLOS VARGAS, ANTÓNIO PIGNATELLI, SANDRA SIMÕES

secretariado CONCEIÇÃO LUCAS


motorista RICARDO COSTA

atores JOÃO GROSSO, JOSÉ NEVES, LÚCIA MARIA, MANUEL COELHO, MARIA AMÉLIA MATTA,
PAULA MORA

direção de produção CARLA RUIZ, MANUELA SÁ PEREIRA, RITA FORJAZ

direção de cena ANDRÉ PATO, CARLOS FREITAS, ISABEL INÁCIO, MANUEL GUICHO, PAULA
MARTINS, PEDRO LEITE
auxiliar de camarim PAULA MIRANDA, PATRÍCIA ANDRÉ
pontos CRISTINA VIDAL, JOÃO COELHO
guarda-roupa GRAÇA CUNHA

direção técnica JOSÉ CARLOS NASCIMENTO, ERIC DA COSTA, VERA AZEVEDO


maquinaria e mecânica de cena VÍTOR GAMEIRO, JORGE AGUIAR, MARCO RIBEIRO, PAULO
BRITO, NUNO COSTA, RUI CARVALHEIRA
iluminação JOÃO DE ALMEIDA, DANIEL VARELA, FELICIANO BRANCO, LUÍS LOPES, PEDRO ALVES
som / audiovisual RUI DÂMASO, PEDRO COSTA, SÉRGIO HENRIQUES
manutenção técnica MANUEL BEITO, MIGUEL CARRETO
adereços VIRGÍNIA RICO
motorista CARLOS LUÍS

direção de comunicação e imagem RAQUEL GUIMARÃES, TIAGO MANSILHA


assessoria de imprensa JOÃO PEDRO AMARAL
produção de conteúdos MARGARIDA GIL DOS REIS*
design gráfico JOÃO NUNO REPRESAS*, MARGARIDA KOL*

direção administrativa e financeira CARLOS SILVA, EULÁLIA RIBEIRO, ISABEL ESTEVENS


controlo de gestão MARGARIDA GUERREIRO
tesouraria IVONE PAIVA E PONA
recursos humanos ANTÓNIO MONTEIRO, MADALENA DOMINGUES

direção de manutenção SUSANA COSTA, ALBERTINA PATRÍCIO


manutenção geral CARLOS HENRIQUES, LUÍS SOUTA, RAUL REBELO, VÍTOR SILVA
informática NUNO VIANA
técnicas de limpeza ANA PAULA COSTA, CARLA TORRES, LUZIA MESQUITA, SOCORRO SILVA
vigilância GRUPO 8*

direção de relações externas e frente de casa ANA ASCENSÃO, CARLOS MARTINS,


DEOLINDA MENDES, FERNANDA LIMA
bilheteira RUI JORGE, CARLA CEREJO, NUNO FERREIRA
receção DELFINA PINTO, ISABEL CAMPOS, LURDES FONSECA, PAULA LEAL
assistência de sala COMPLET’ARTE*

direção de documentação e património CRISTINA FARIA, RITA CARPINHA*


livraria MARIA SOUSA
biblioteca | arquivo ANA CATARINA PEREIRA, RICARDO CABAÇA

* prestações de serviços

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