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DE GEORG BÜCHNER
DOSSIÊ PEDAGÓGICO
ÍNDICE
Ficha técnica 2
Distribui
Distribui ção 3
O Espetáculo 4
Georg Büchner 6
A Morte de Danton 12
Os Últimos Sobressaltos 24
Danton 59
Sugestão de Atividades 63
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15 MAR – 22 ABR
SALA GARRETT
4ª a sáb. 21h | dom. 16h
FICHA TÉCNICA
de
GEORG BÜCHNER
tradução
MARIA ADÉLIA e JORGE SILVA MELO
com
MIGUEL BORGES JOÃO DELGADO VÂNIA RODRIGUES
PEDRO GIL JOSÉ NEVES
SYLVIE ROCHA LUÍS MOREIRA e estagiários da ESTC
JOÃO MEIRELES MAFALDA JARA
MARIA JOÃO PINHO MARCO TRINDADE BERNARDO NABAIS
RITA BRÜTT MIRRÓ PEREIRA DAMIÃO VIEIRA
AFONSO LAGARTO NUNO BERNARDO DANIEL VIANA
ALEXANDRA VIVEIROS NUNO PARDAL DIOGO TORMENTA
AMÉRICO SILVA PEDRO LUZINDRO FILIPE VELEZ
ANTÓNIO SIMÃO PEDRO MENDES ISAC GRAÇA
ELMANO SANCHO RICARDO NEVES- IVO SILVA
ESTÊVÃO ANTUNES NEVES JOÃO PEDRO MAMEDE
GUSTAVO VARGAS RÚBEN GOMES JOÃO VENTURA
HUGO SAMORA RUI REBELO PEDRO LOUREIRO
JOANA BARROS TIAGO MATIAS RAFAEL GOMES
JOÃO DE BRITO TIAGO NOGUEIRA RICARDO TEIXEIRA
encenação som
JORGE SILVA MELO ANDRÉ PIRES
M/ 12
2
DISTRIBUIÇÃO
MIGUEL BORGES HUGO SAMORA TIAGO NOGUEIRA
GEORGES DANTON FOUQUIER TINVILLE, CANTOR AMBULANTE,
PEDRO LUZINDRO CARCEREIRO PRISIONEIRO,
LEGENDRE, FABRE MARCO TRINDADE CIDADÃO
D´EGLANTINE CIDADÃO, DEPUTADO, NUNO BERNARDO
JOÃO MEIRELES PRISIONEIRO, AMAR CIDADÃO
CAMILLE DESMOULINS PEDRO MENDES LUÍS MOREIRA
TIAGO MATIAS PARIS, DEPUTADO, CIDADÃO,
HÉRAULT-SÉCHELLES HERMANN TRANSEUNTE,
AMÉRICO SILVA ANTÓNIO SIMÃO DEPUTADO,
LACROIX SIMON, CARCEREIRO, PRISIONEIRO,
JOSÉ NEVES CARROCEIRO CARRASCO
PHILIPPEAU VÂNIA RODRIGUES
JOÃO DELGADO MULHER DE SIMON DEPUTADOS,
RAPAZ DO LENÇO, JOÃO DE BRITO CIDADÃOS,
MERCIER TRANSEUNTE, PRISIONEIROS,
RÚBEN GOMES LAFLOTTE CARCEREIROS,
THOMAS PAYNE RITA BRÜTT CARROCEIROS,
PEDRO GIL JULIE POPULARES:
ROBESPIERRE SYLVIE ROC HA PELO ELENCO E
ELMANO SANCHO MARION ESTAGIÁRIOS DA ESTC
SAINT-JUST MARIA JOÃO PINHO (BERNARDO NABAIS,
GUSTAVO VARGAS LUCILE DAMIÃO VIEIRA,
BARRÈRE ALEXANDRA VIVEIROS DANIEL
RICA RDO NEVES- ROSALIE VIANA, DIOGO
NEVES JOANA BARROS TORMENTA, FILIPE
COLLOT D´HERBOIS, ADELAIDE VELEZ, ISAC GRAÇA,
CARRASCO RUI REBELO IVO SILVA, JOÃO
AFON SO LAGARTO MENDIGO, LIONÊS PEDRO
CIDADÃO, BILLAUD MIRRÓ PEREIRA MAMEDE, JOÃO
VARENNES, DUMAS DAMA DAS CARTAS VENTURA, PEDRO
NUNO PARDAL MAFALDA JARA LOUREIRO, RAFAEL
CHAUMETTE MULHER DA VIELA GOMES, RICA RDO
ESTÊVÃO ANTUNES TEIXEIRA).
SOLDADO, CIDADÃO,
DILLON, CARROCEIRO
3
O ESPETÁCULO
4
REPRESENTAÇÕES DE
A MORTE DE DANTON
A obra teatral de Georg Büchner não foi representada a não ser postumamente. A
descoberta deve-se aos naturalistas (nomeadamente Gerhard Hauptmann e,
depois, aos expressionistas. Max Reinhardt virá a estrear A Morte de Danton em
1916 e posteriormente em 1921 e 1929, tendo nessa altura sido realizado um filme
com Fritz Kortner. Também Gustav Gründgens dirige a peça, em 1939. Fora do
mundo germânico, a peça conhece várias versões, nomeadamente a encenação de
Jean Vilar (Avignon, 1948), Bruno Bayen (Théâtre de la Cité Internationale, 1968),
Georges Wilson no TNP (Paris, 1971), a de Giorgio Strehler em Milão, e, mais
recentemente, as de Alexander Lang no Deutchses Theater de Berlim (1981), Klaus
Michael Grüber nos Amandiers em Nanterre (1989), Thomas Oestermaier na
Schaubúhne (2001) ou a de Georges Lavaudant no Odéon (2002), Jean François
Sivadier (Rennes, 2005) ou ainda Michael Grandage (numa versão bastante livre
de Howard Brenton, no National Theatre, Londres, 2010). A peça deu origem a uma
ópera de Gottfried von Einem estreada em Salzburgo em 1947, com direção de
Ferenc Fricsay. Em Portugal, A Morte de Danton estreou, numa tradução de Maria
Adélia Silva Melo (aqui revista), em 1989, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de João Quintão e interpretação de: António Marques (Danton); João
Vasco (Robespierre); Sérgio Silva (Camille Desmoulins); Carlos Freixo (Lacroix);
Paulo B (Saint Just); Anna Paula (Marion); Fernanda Neves (Lucile); Filomena
Gonçalves (Julie); Santos Manuel (Simon); Alice Luís; Ana Marques; António Pedro
Cerdeira; Carlos Pessoa; Diogo Infante; F. Pedro Oliveira; Marcantonio Del-Carlo.
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GEORG BÜCHNER
STANLEY KAUFFMANN
A Morte de Danton é a primeira peça escrita por Büchner, com 21 anos. A sua
pesquisa para a peça começou no final de 1834 e completou a primeira versão em
5 semanas já em 1835. A peça só estreou em 1902, muito após a morte de Büchner.
6
“Büchner, apaixonadamente humano, politicamente rebelde, manifestando-se com
impaciência, queria claramente que a forma da sua peça se ajustasse às suas
visões radicais das personagens, da política e da história. A estrutura tradicional
teria sido limitadora, já que a peça que é precursora, filosoficamente, do
existencialismo do século vinte, que põe a nu o idealismo narcótico da ação
pública, e que explode com as injunções aristotelianas. A Morte de Danton é a
primeira peça a começar depois do seu clímax. O destino do protagonista – a sua
execução pelo grupo de Robespierre – já está mais que decidido antes de a peça
começar. A peça poderia igualmente chamar-se Danton a Morrer. Ele tenta
defender-se devido à pressão dos seus amigos; no entanto, desde o primeiro
momento da peça, o assunto está estabelecido na sua mente. Ele vai morrer.
Assim, a intenção dramática inconvencional de Büchner forçou-o a prescindir das
estruturas clássicas dos seus adorados Shakespeare e Goethe e a moldar a sua
peça de uma maneira tão inovadora e explorativa como o seu pensamento”. (…) “A
peça depende de um andamento, de um ritmo de progresso, de uma corrente de
cenários que agora associamos ao cinema e que parecia estar, antecipadamente,
na posse de Büchner. (...) Büchner, desprezando a prática teatral corrente,
7
ultrapassou-a: respondeu a uma estética que ainda não existia. Consideremos
alguns pormenores. A peça não começa. Estas vidas já tinham estado a acontecer
durante algum tempo: nós apenas nos juntamos a elas. A cena um não começa
com o estabelecimento de tempo ou espaço – estes vão-se infiltrando à medida
que avançamos – mas com o sentido da nossa entrada num cenário de vidas em
progresso. (...) A peça ainda nem tem um minuto e já nós estamos completamente
imersos nela. Nós, que vivemos num mundo imerso em cinema, conseguimos
reconhecer o processo, usado aqui com um propósito excecional. (...) Ao longo da
peça, cenas longas e curtas, ativas e introspetivas quase se atropelam umas às
outras (...) A ideia da fusão de cenas através de mudanças de luzes e focos, algo
muito familiar ao teatro de hoje – e, claro, ao cinema – era rudimentar num teatro
que ainda não tinha, nem tinha sequer concebido, a iluminação elétrica”.
8
GEORG BÜCHNER:
CRONOLOGIA
1813 18 de outubro: Karl Georg Büchner nasce em Goddelau, Hesse, o primeiro
filho de Ernst Karl Büchner e da sua mulher, Caroline. (Dando seguimento a uma
tradição de muitas gerações, Ernst Büchner era médico; mais tarde entrou ao
serviço do grão-duque e conquistou por fim o título de Obermedizinalrat. O casal
teve mais cinco crianças; todas exceto uma – a mais velha das duas raparigas – se
distinguiram nas suas variadas áreas, particularmente Ludwig, o segundo mais
novo, que se tornou muito mais famoso que Georg no século XIX graças ao seu
livro Kraft und Stoff, que popularizou a filosofia materialista).
1825 Depois de receber instrução primária em casa com a mãe e também numa
escola privada local, Büchner começa os estudos secundários no Ludwig-Georg-
Gymnasium em Darmstadt.
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1831 outubro: tendo deixado a escola em março, Büchner torna-se aluno na
Faculdade de Medicina da Universidade de Estrasburgo. Aloja-se em casa de um
pastor protestante viúvo, Johan Jakob Jaeglé, e começa um noivado secreto com
a sua filha Minna (Louise Wilhelmine, 1810-1880).
1834 Entre fins de fevereiro e inícios de março: sofre sérias crises de doença que
afetam o seu equilíbrio físico e mental. A meio de março (ou talvez mais cedo): a
carta “hediondo fatalismo” para Minna. Fins de março: escreve uma primeira
versão daquilo que viria a ser O Mensageiro de Hesse e funda a secção de Giessen
da sua Sociedade dos Direitos Humanos, núcleo revolucionário que incluía tanto
trabalhadores como membros da classe média; em abril, funda uma segunda
secção em Darmstadt.
Agosto: Carl Minnigerode é preso com grandes quantidades de recentes cópias
impressas de O Mensageiro de Hesse. Büchner escapa à prisão pela sua posição
social e familiar.
Setembro: Büchner abandona Giessen definitivamente e volta à segurança relativa
da casa familiar em Darmstadt.
1835 Entre fins de janeiro e fins de fevereiro: Büchner termina A Morte de Danton
“em cinco semanas no máximo”; neste período foi também provavelmente
chamado a depor.
Inícios de março: foge para Estrasburgo (rapidamente seguido, afinal, por uma
nota de captura).
Junho: A Morte de Danton é publicada em edição expurgada.
Outubro: Lenz está provavelmente concluída.
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Setembro: Büchner doutora-se pela nova Universidade de Zurique, tendo por base
a Memória sobre o sistema nervoso do barbo.
19 de outubro: após o seu vigésimo terceiro aniversário, celebrado no dia anterior,
Büchner viaja para Zurique com o objetivo de se tornar um Privatdozent na
Faculdade de Filosofia da Universidade (que incluía Anatomia Comparada).
5 de novembro: apresenta a sua “Lição experimental” e é formalmente aceite no
cargo; nas semanas seguintes dá o seu primeiro curso, “Anatomia comparada dos
peixes e anfíbios”; continua a trabalhar em Woyzeck.
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A MORTE DE
DANTON
Georg Büchner é possivelmente o mais extraordinário fenómeno da literatura
moderna alemã. Ele chocou completamente com a consciência do seu próprio
século. Quando morreu em 1837, com apenas vinte e três anos (vítima de uma
epidemia de tifos), era praticamente desconhecido fora dos seus círculos – o que
não é surpreendente tendo em conta que apenas uma obra tinha sido publicada
com o seu nome (uma versão expurgada de A Morte de Danton).
Meio século depois ele não era certamente mais conhecido: apesar de a maioria
dos seus escritos terem aparecido, de uma forma ou de outra, tinham causado
pouco impacto; ele era mencionado na maioria dos manuais literários e
enciclopédias, mas como um pedaço obscuro da história, periférico e
frequentemente dúbio. Mais tarde, pelo final do século, a perceção alterou-se.
Outros escritores, em particular, começaram a responder à sua voz e a
reconhecer a sua modernidade surpreendente. Uma a uma, as suas peças foram
chegando aos palcos: Leôncio e Lena em 1895; A Morte de Danton em 1902;
Woyzeck em 1903 (e a ópera de Alban Berg, Wozzeck, em 1925). As edições
começaram a seguir-se. O gotejar inicial de monografias e teses transformou-se
num rio, e depois numa cheia. De repente Georg Büchner era um clássico. Mas
mais importante que isso, ele era – e é –, uma presença viva. Mais nenhum escritor
alemão antes de Brecht tinha apreendido tão vivamente a imaginação moderna –
ou é representado com mais frequência tanto na Alemanha como no estrangeiro.
Nenhum outro escritor é tão entusiasticamente saudado pelos seus sucessores
contemporâneos: Heinrich Boll falou da sua “singular relevância”, Gunter Grass da
sua força “incendiária”; para Christa Wolf, “a prosa germânica começa com o Lenz
de Büchner” – que constitui o seu “ideal absoluto”, a sua “experiência fundamental”
na literatura germânica; Wolf Biermann foi mais longe, descrevendo-o
simplesmente como “o maior escritor” da Alemanha (“unser grofter Dichter”).
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XX), os seus escritos mais prematuros não teriam sido apenas finalizados e
publicados, mas também, provavelmente, contextualizados como parte de uma
muito maior obra. Tendo em conta a forma como tudo aconteceu, eles
sobreviveram – se de todo – apenas em manuscritos rasurados, incompletos e
muitas vezes elegíveis, ou então em versões impressas que foram por variadas
vezes mutiladas, truncadas, expurgadas, sendo também quase inteiramente
póstumas e não autorizadas. Parece dificilmente credível, mas mesmo hoje em dia,
mais de um século e meio após a sua morte, não existe ainda uma edição
Histórico-Crítica definitiva da obra de Büchner.
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Depois, há também a natureza provocatória dos seus temas e preocupações. O
sexo, para começar: a partir das primeiras linhas de A Morte de Danton, com a sua
imagem da duplamente "pretty lady" que oferece o seu coração ao marido e a
cona aos amantes, as "obscenidades" de Büchner garantem-lhe o título de "enfant
terrible". E no processo serviu para trair a visão de inúmeros críticos. A religião é
também um tema persistentemente irritante. Uma e outra vez, os deuses, Deus e
os espíritos são invocados pelas suas personagens, para serem desprezados,
negados, desafiados, rogados – servindo assim como um desafio constante ao
crente, semelhante ao agnóstico e ao ateu. Mas a mais explosiva de todas é talvez
a questão política. Este é um homem que foi indiscutivelmente o pensador
esquerdista mais radical da sua época em terras germânicas, um revolucionário
dedicado que – embora tenha entrado no panorama como propagandista
militante e ativista apenas durante um curto período de tempo – manteve-se
notavelmente comprometido durante o resto da sua vida à violenta subversão
daquilo a que assistiu enquanto membro da incapaz classe dirigente, parasita e
ilegítima, e ao ressurgimento e emancipação da viciosamente explorada massa
popular.
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no humor, no enredo ou nas personagens, ele não oferece desenvolvimentos fixos
e constantes, nada que indique qualquer coisa cíclica, resolvida ou unificada. Em
vez de uma revelação que se dá a um ritmo claramente medido, os seus trabalhos
progridem através de uma sucessão de convulsões caleidoscópicas,
representando aquilo a que se tem chamado a "lei da descontinuidade". A
totalidade (“wholeness”) – quando aparece – é sempre falsa: uma pretensão, uma
ilusão, no máximo um estado transitório. São sempre partículas que tecem
grandes e discretos elementos que ele salienta num isolamento surpreendente, ou
em aglomerações díspares e combinações que criam uma ideia constante de
polivalência, mistério e paradoxo. Reside aqui o ponto alto da sua espetacular
modernidade: aquilo que ele já faz nos anos 30 do século XIX irá parecer
chocantemente original quando praticado pelos pintores, compositores e
escritores mais avant-guardes do início do século XX. Mas isto também o torna
especialmente difícil de interpretar. Em particular, coloca o problema da
perspetiva: sendo tão díspares e discretos, os elementos do seu trabalho mudam
de aspeto e de importância aparente de forma muito radical quando encarados
de diferentes pontos de vista.
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É escusado dizer que a descontinuidade sistemática de Büchner não é um
acidente – e não é certamente, como já foi sugerido, uma marca de imaturidade –
mas uma característica central, até definidora, do seu trabalho. Se olharmos para
um exemplo do classicismo germânico como Maria Stuart de Schiller, vemos uma
complexidade magnífica – mas uma complexidade semelhante a uma fuga
barroca com a sua rica mas contida elaboração de lúcidos temas pré-
estabelecidos. A abordagem de Georg Büchner é fundamentalmente diferente. Ele
nunca se preocupa com o atingir de conclusões ou soluções. Em vez disso, a sua
escrita é como um género de "happening", uma busca constante, uma
promulgação dinâmica do próprio processo de argumentação e conflito, da colisão
e interação de possibilidades contrárias. O seu trabalho começa, mas nunca num
início; ele chega a um fim, mas nunca a uma conclusão. Isto consegue facilmente
provocar-nos alegria mas perplexidade – e deixar-nos propensos ao entendimento
de alguns elementos discretos e particulares como a soma do todo, ou como o
fixar definitivo de uma posição. Muitos críticos caíram nesta tentação, daí a
persistente deturpação de Büchner como sendo variavelmente um pessimista
programático e niilista, um fatalista programático, um cristão programático, um
revolucionário Jacobino programático. Há uma consistência e unidade subjacentes
em Büchner, mas só podem ser encontradas dentro e através das multiplicidades
do seu trabalho – e não apesar delas.
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dever atrair a si a tempestade, receber todas as coisas; estendia-se na terra,
cavava uma passagem no universo”. Em Leôncio e Lena é a totalidade do amor
que é fragmentada, despedaçada nas notas separadas da escala musical, as cores
separadas do arco-íris. Mas aqui, como sempre, a ênfase nos fragmentos implica
uma crença na totalidade. E assim, é precisamente a experiência de Leôncio de
um amor que inspira a totalidade do ser que é celebrada no intenso mas efémero
clímax da peça: “Todo o meu ser está neste mesmo momento… Mais é impossível”.
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concedidas a Lenz no decorrer da mais famosa declaração de Büchner sobre uma
posição estética: “As imagens mais bonitas, as harmonias mais ressonantes,
unem-se, dissolvem-se. Apenas uma coisa permanece: uma beleza infinita que
passa de uma forma a outra, eternamente mutável e novamente revelada”.
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A este respeito ele é inesperadamente antiquado: considerando que Lenz e as três
peças são magnificamente modernistas na sua articulação, a fé e a visão
subjacentes a elas são largamente fundamentadas num Zeitgeist que estava já
desatualizado quando Büchner o abarcou. À semelhança de tantos outros
escritores prévios pertencentes ao período febril que começa no Sturm und
Drang, passando pelo classicismo de Weimar e culminando no romantismo
alemão, ele foi abençoado e amaldiçoado com uma visão idealista da totalidade e
harmonia essenciais – mas num tempo em que a realidade prevalecente era, por
contraste, ainda mais ruidosamente discordante. Encontramos precisamente este
contraste numa das mais pungentes cartas de Büchner à sua amada noiva, Minna
Jaeglé, escrita em março de 1834 quando este recuperava de um período de
severa doença – e severa crise pessoal. Ele tinha “acabado de voltar do exterior”,
conta a Minna, onde “Um único tom ressonante vindo de uma centena de cotovias
estoura através do melancólico ar de verão, um pesado pedaço de nuvem vagueia
pela terra, o vento em expansão ressoa à semelhança do seu melodioso passo”. É
assim o vibrante e bonito presente de Büchner. Mas, ele continua, até ao momento
em que o ar primaveril o libertou e lhe deu vida outra vez, ele tinha sido há muito
trespassado por um género de rigor, por uma impressão de estar já morto,
enquanto tudo à sua volta se assemelhava a cadáveres com olhos de vidro e
bochechas de cera. Os “cadáveres” falavam e moviam-se, e com esta descrição
Büchner lança-se num dos seus característicos e emocionantes compassos de
desespero:
PHILLIPPEAU: Meus amigos, não temos de nos erguer muito acima da terra
para perder de vista todo este vacilar, todas estas incertezas e encher os olhos de
uns grandes contornos divinos. Há um ouvido interior que ouve o clamor e a
discórdia, em que nos aturdimos, e os transforma numa torrente de harmonia.
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DANTON: Mas nós somos os pobres músicos e os nossos corpos são os
instrumentos. Tiramos deles estes acordes terríveis só para subirem cada vez mais
alto e se perderem envolvidos num suspiro de volúpia nos ouvidos celestiais?
Surge assim a questão: porque nos transformámos nós em tão “pobres músicos”,
tão longe da “corrente de harmonias”, dessa “harmonia necessária” supostamente
inscrita na natureza pela lei primordial da beleza? A imagem de deuses sádicos
que forçam em nós a discordância para seu bel-prazer é mais um florescer
retórico que uma afirmação séria. Büchner parece encontrar as razões
verdadeiras entranhadas na própria humanidade – e mais particularmente na
influência indevida da Mente e dos sistemas artificiais.
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aplica-se com força particular às supostas provas de Deus. Assim, o Deus de
Descartes é para Büchner um puro mecanismo de expediente, um dispositivo
especialmente maquinado para "preencher o abismo" entre pensamento e
conhecimento, para ser uma "ponte" entre o eu e o mundo, uma "escada" para
fugir ao "túmulo da filosofia", uma corda para escalar o "abismo da dúvida". Num
outro momento ele defende que enquanto a lógica da prova de Deus de Descartes
pode ser convincente nos seus próprios termos, nada nos convence a aceitar essa
lógica por si só; na verdade ela é contrariada pela experiência primária da nossa
mente e das as nossas emoções: "Assim que alguém entra na definição de Deus,
tem de admitir a existência Dele. Mas o que é que nos prova ao construirmos esta
definição? / A nossa mente? / Ela conhece a imperfeição. / As nossas emoções?
Elas conhecem a dor."
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Mas porque interessariam estas questões? Porque não poderá o racionalismo ser
deixado aos seus próprios dispositivos no seu deserto de abstrações? Reside aqui
um problema crucial para Büchner: apesar do quão remota possa estar a
sistematização cartesiana da "vida verde e fresca" como nós diretamente a
apreendemos, as suas construções falsas – e outras de tipo similar – são
ameaçadoras de prevalecer, são ameaçadoras de condicionar a nossa
compreensão e forma de lidar com o mundo. Isto é particularmente claro dentro
da área da biologia de Büchner. Sob a enfraquecida mão de Descartes, o corpo
vivo é reduzido a mera máquina composta por porcas e parafusos. Ele realça que
em De homine, o tratado de Descartes sobre a psicologia, o ser humano é
"l'homme machine", uma colagem "artificial" de "parafusos, dentes e cilindros", de
"aparatos" mecânicos; e na "Lição Experimental" usa exatamente o mesmo tipo de
vocabulário para atacar o funcionalismo frio e redutivo daquilo a que ele chama
de escola "teleológica" em fisiologia e anatomia. Estava a lutar uma batalha
perdida: os "teleologistas" estavam em sintonia perfeita com uma era cada vez
mais conduzida pelo funcionalismo de qualquer tipo. Isto torna-se graficamente
claro quando nos apercebemos que a visão deles de um organismo vivo era a de
"uma máquina complexa provida de dispositivos funcionais que a permitem
sobreviver durante certo período de tempo", destacadamente próxima da mais
revolucionária e influente teoria biológica do século XIX: A Origem das Espécies,
de Charles Darwin, e a sua asserção segundo a qual as criaturas mais adaptáveis e
melhor equipadas seriam as que sobrevivem na "luta da vida" – de facto um grito
longínquo da crença inspiradora de Büchner (presente na sua Naturphilosophie)
numa lei primordial de beleza que produz uma riqueza perfeita, sublime, nobre,
bela, inspirada e harmoniosa, partindo de uma matriz de simplicidade essencial.
Apesar de tudo, ele mantém-se fiel à sua crença antiquada – e particularmente ao
seu entendimento do valor absoluto do individual. Esta é possivelmente a sua
crítica mais crucial aos "teleologistas" que, de acordo com o seu princípio único de
“a melhor aptidão possível para cada intenção”, entendem o individual "apenas
enquanto algo que deve atingir um propósito para além dele próprio". Para
Büchner, em contraste – e esta é indiscutivelmente a declaração mais
ontologicamente poderosa de toda a sua obra – "Tudo o que existe, existe por sua
própria causa".
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sua perda, recusa, supressão. Particularmente, expõe publicamente de forma
inflexível qualquer tentativa de subordinar a vida aos sistemas – especialmente
sistemas intelectuais. Daí o escárnio ao racionalismo na figura do Rei Peter
(Leôncio e Lena); ao cientismo consumado no maníaco “Doutor-Professor”
(Woyzeck); ao moralismo no Capitão (Woyzeck); às ambições jacobinas para
reestruturação da humanidade (A Morte de Danton); ao reducionismo chocante
nas artes contemporâneas (A Morte de Danton). Simultaneamente ele também se
fixa repetidamente nos protagonistas – todos eles homens, quase por definição –
cujas mentes são demasiado ativas, protagonistas paralisados ou excitados pelo
facto de saberem e verem muito para além daquilo que seria bom para eles.
Mas todas estas reflexões são na pior das hipóteses enganadoras, na melhor
apenas parte da história. Georg Büchner é um dos mais elusivos e desafiantes
escritores. A sua vitalidade e multiplicidade podem apenas ser verdadeiramente
apreciadas dentro das suas palavras – e o propósito desta edição é deixá-las falar
por elas mesmas em todo o seu vigor e profundidade admiráveis.
23
OS ÚLTIMOS
SOBRESSALTOS DA
VIDA
JEAN-LOUIS BESSON
Em 1835, Karl Kutzov notava já que Büchner tinha escrito “em vez de um drama,
em vez de uma ação que se desenrola, se intensifica e enfraquece, os últimos
sobressaltos e os últimos estertores que precedem a morte”.
24
agulhas a saltitar… eu maldizia esse concerto, a caixa, a melodia, e… ah!
pobres músicos esganiçados que nós somos, será possível que os nossos
gemidos no cadafalso estejam lá apenas para passar através das nuvens e,
ressoando ao longe, irem morrer como um sopro melodioso em ouvidos
celestes? Seríamos nós, no ventre ardente do touro de Perillos, a vítima
cujo grito de morte soa como a explosão de alegria do deus touro a arder
nas chamas?”
Não é difícil detetar aqui certos motivos de A Morte de Danton, mesmo que a peça
tenha sido escrita mais tarde. Büchner recordou-se ou inspirou-se nos seus negros
pensamentos, retomando mesmo as imagens do pobre músico e do touro, e
atribuiu às suas personagens angústias e pensamentos profundos que se
assemelham aos seus. Ora ele coloca-os indiferentemente em qualquer campo:
Danton, Lacroix, Camille, Robespierre, e até o traidor Laflotte são afetados, como
se se tratasse de um sentimento geral e não apenas de características individuais.
Existe na peça um desfasamento entre a distância que Büchner toma em relação
às suas personagens no campo da ação política e a empatia que sente quando se
trata do fundo íntimo do ser. Isto explica em parte as dificuldades de
interpretação quando misturamos os dois níveis e pensamos que Büchner estaria
politicamente próximo deste ou daquele porque lhe coloca na boca um discurso
que poderia fazer ele próprio. O facto de esse discurso estar repartido entre os
dois campos tende a provar que as coisas não são bem assim, mesmo que estas
meditações sejam mais frequentes entre os partidários de Danton. A questão das
orientações políticas e a da experiência existencial cruzam-se, influenciando-se
mutuamente, mas estão longe de se misturar totalmente. Como se Büchner tivesse
querido mostrar que o sofrimento profundo do ser era exacerbado pela sua ação
na História, mas em muitos pontos separado das apostas desta última. O mundo
das experiências privadas das personagens em A Morte de Danton ultrapassa o
espaço espiritual e afetivo da ação, e daí o grande desfasamento entre esfera
pública e esfera privada.
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Anaxágoras, porque é que eu sofro? Aqui nasce o rochedo do ateísmo. O
mais leve estremecimento da dor, mesmo que seja num átomo, destrói de
alto abaixo a criação.”
26
Apesar da importância da “conversa dos filósofos”, em vão procuramos em A
Morte de Danton ou na obra de Büchner uma ilustração das teses de Espinosa ou
de Epicuro. Contudo, o tema da criatura sofredora num mundo abandonado pelos
deuses é retomado na peça sob inúmeras variações.
Robespierre, que fica só após a discussão com Danton, mergulha na incerteza “não
sei qual dos dois dentro de mim mente”, constata ele, como as palavras de Danton
na noite que precede a sua prisão. Até aqui, o Incorruptível identificara-se com a
Revolução: no seu discurso no Clube dos Jacobinos, utilizava a primeira pessoa do
plural para falar da sua ação. Agora, é como se tirasse a máscara. Pensamentos e
desejos “insuspeitáveis” que o homem público refreia “ganham forma e relevo e
deslizam na silenciosa morada do sonho”. Como observa Gérard Raulet: “O
republicano clássico, estoico, torna-se um ‘romântico’, para o qual a vida é um
sonho e o homem uma marioneta”. Este aspeto da personagem não está nas
fontes, é uma criação de Büchner.
27
antes afirmara que Cristo era o mais requintado dos epicuristas: o filho de Deus
conseguira transcender a sua dor e transformá-la em volúpia oferecendo-a para a
salvação dos homens. Robespierre, que não redime a humanidade com o seu
próprio sangue mas com o sangue dos outros, tem apenas “o tormento do
carrasco”. Depois de ter decidido sacrificar Danton e os seus partidários, continua
consumido pela dúvida: “nós todos suamos sangue no jardim das Oliveiras, mas
não há quem redima o outro com as suas chagas”. O sacrifício de Robespierre não
redimirá a humanidade, tal como a morte de Camille não redimirá Robespierre.
Deixá-lo-á apenas numa solidão terrível: “Todos se afastam de mim - está tudo
vazio e deserto - e eu estou só.”
Se a morte está inscrita no título da peça, os dois últimos atos são dedicados ao
sofrimento de ter que morrer. No início, Danton mostra uma certa indiferença
perante a sua execução e a sua prisão. Contudo, o amor à vida, problemático que
seja, prevalece sobre o desgosto de viver. Se dá mostras de ceticismo em relação
às possibilidades de realização do programa da República epicurista exposto por
Camille e Phillipeau no primeiro ato, não deixa de aplicar a si próprio a moral
hedonista de que os seus amigos são arautos (Büchner mostra-o mais como um
debochado do que como um fino epicurista), e, face a Robespierre, desenvolve
argumentos semelhantes aos deles. Dar ao indivíduo a possibilidade de afirmar a
sua natureza parece-lhe ser a tarefa que agora compete à Revolução. Opõe assim
o gosto de viver e o desejo de prazer a essa máquina de morte que é o Terror.
Marion mantém com o mundo uma relação elementar e não oferece nenhuma
resistência aos sentimentos: na primavera deixa-se invadir por uma “atmosfera
28
que era só minha”, e considera-se “muito sensível, é só através dos meus
sentimentos que estabeleço contacto com as coisas”. Alheia aos constrangimentos
e às obrigações da vida familiar, que não compreende, apenas escuta a natureza.
É sem dúvida também por isso que as palavras lhe saem naturalmente da boca:
não quer provar nada, nem demonstrar nada, nem impor nada, mas tão-só
contactar. A sua vida “não é pautada por conceitos como o vício ou a virtude, mas
antes em função da intensidade com que ela é vivida”, e o seu discurso é de uma
extrema simplicidade, sem floreados, sem pathos, o contrário da retórica
revolucionária. Igual a si mesma, Marion diz que “Sou sempre esta. Uma ansiedade
irreprimível, uma vontade de agarrar as coisas, um ardor, uma torrente. O crítico
Reinhold Grimm saúda nesta personagem o arquétipo da sensualidade pagã, que
ignora o antagonismo cristão entre eros e amor, entre prazer dos sentidos e
espiritualidade que se emancipa tanto da dicotomia tradicional da mulher
“enquanto objeto de adoração divina e enquanto objeto sexual”, como da oposição
burguesa “entre a prostituta e a esposa”.
29
Mas em Büchner nenhuma personagem, por muito positiva que possa parecer, é
feita de uma só peça, e a imagem não é idílica. Por um lado, Marion continua a ser,
para Danton, uma cortesã que deve pedir ao seu interlocutor que a escute “por
uma vez”; por outro lado, ela só adquiriu essa liberdade de vida à custa da morte
do primeiro amante e da sua mãe. Também ela deixa cadáveres atrás de si.
Mesmo assim, ela é a única personagem na peça que mantém uma relação com o
mundo de acordo com a perceção que tem dele, e que ignora o sofrimento. Surge
apenas numa cena, como um meteoro num universo que não parece feito para ela.
“Houve um erro quando fomos criados, há qualquer coisa errada, nem sei dizer o
quê. Mas não vamos encontrar isso que nos falta remexendo nas entranhas uns
dos outros. Porque havemos de rasgar os corpos uns dos outros? À procura de
quê?”. Aqui já não é o homem político que fala, é o ser humano confrontado com as
falhas da Criação.
O mundo torna-se uma farsa e não vale a pena ninguém dar-se ao trabalho de o
melhorar. As pessoas deviam deter-se na rua “para rirem na cara umas das
outras”.
Mas a partir do terceiro ato, quando a morte se torna mais presente e parece
evidente que o julgamento perante o tribunal revolucionário não passa de um
simulacro, o tom volta a mudar. Quanto mais o tempo urge, mais se tornam
caducas as tentativas de dar um sentido a essa morte, ou para a esconjurar; resta
o indivíduo consumido pela angústia, o contrário de uma figura heroica: a
30
presença da guilhotina, a sensação da lâmina a cair, o medo de sofrer e a imagem
da putrefação apoderam-se dos espíritos.
“Gritaste bem alto, Danton. Se te tivesses preocupado mais cedo com a tua vida
seria agora diferente. Quando a morte se aproxima, assim, insolente, e se sente o
fedor que lhe sai da boca, cada vez com mais insistência, é horrível, não é?”. As
cenas da prisão giram em torno deste mesmo tema, apresentando múltiplas
variações.
Büchner abandona aqui o terreno político, mesmo que por vezes regresse a ele
para se interessar pela criatura que sofre, para tentar compreender o que pode
passar-se no mais profundo do ser nos últimos instantes. A imagem é desprovida
de complacência, é progressivamente eliminado tudo o que possa desviar da
realidade concreta da execução iminente, quer se trate do sentimento de morrer
por uma causa justa, da crença num Além, do desprezo pela morte por uma
questão de bravata, ou da convicção de estar a agir no sentido da História. Assim,
quando os prisioneiros querem ver-se como vítimas da sua tentativa de salvar
inocentes, não conseguem convencer-se disso, e o argumento cai por si. Quando
Phillipeau evoca a possibilidade de encontrar a paz em Deus, os outros
permanecem surdos aos seus argumentos, pois só concebem a divindade como
insensível ao sofrimento terrestre. Quando Danton quer ironizar, Camille logo lhe
responde que nem por isso conseguirá “por mais que deites a língua de fora, não
consegues lamber o suor da morte do teu rosto”. Finalmente, quando Danton tenta
colocar o curso da História do seu lado “Quando, um dia, a história abrir as
catacumbas, o despotismo sufocará com o fedor dos nossos cadáveres”. Hérault
responde-lhe que ele está a construir “frases para a posteridade”, frases que
pouco interessam àqueles que vão morrer.
31
até aí se faz dele: um universo ordenado, concebido para os homens e regido por
um princípio supremo. É ao desabar desse universo que os revolucionários de 1794
assistem, submetidos que estão ainda ao “ter que”. Surge então neles uma
sensação de vazio, exacerbada pela proximidade da morte: já que não se sabe por
que se morre, mais vale convencer-se de que o mundo que se deixa não tem
sentido, mais vale desvalorizar o que se perde para assim diminuir a perda.
32
testemunhas julgaram ter visto “nos movimentos convulsivos dos músculos do
rosto, imediatamente após a execução, os sinais de uma dor aguda e um vestígio
de sensibilidade que ainda não se extinguiu.” Uma sobrevivência de alguns
instantes, acompanhada de sofrimento horrível após a decapitação, era, pois,
verosímil. É a essa eventualidade que Laflotte se refere aqui. Morrer continua a ser
um tormento, só a morte, com a rigidez do corpo, dá o repouso. É por isso que
Danton diz que “a guilhotina é o melhor médico”: uma vez passados os últimos
instantes, ela, ao tirar a vida, proporciona a única cura absoluta, na inconsciência
e no esquecimento.
Estes detalhes mórbidos dão uma imagem da morte totalmente diferente daquela
que até então se conhecia no teatro. Não que o sofrimento de morrer nunca
tivesse sido descrito, mas ele não constituía a realidade última. Büchner rompe
com toda a estetização da morte. Lança sobre o indivíduo que sofre um olhar
quase médico, que não é alheio aos seus estudos de biologia (não esqueçamos
que mais tarde ele irá estudar precisamente os nervos do crânio!), e que, no
teatro, transforma radicalmente a imagem do homem. O ser moral e consciente
dos seus atos dá lugar à criatura que sofre na carne, presa numa tormenta que a
arrasta e contra a qual luta em vão. O fim de A Morte de Danton anuncia Woyzeck.
O autor já não é um juiz no tribunal das instituições políticas e morais, mas um
clínico no seu laboratório, lançando um olhar compassivo sobre o sujeito de
análise.
33
CRONOGRAMA DA
REVOLUÇÃO
FRANCESA
LISA SPIRLING
Acontecimentos que conduziram à ação da peça:
34
1783 – A erupção vulcânica do Laki na Islândia e o arrefecimento do clima
provocado pela Pequena Idade do Gelo, combinados com o fracasso francês na
adoção da batata como alimento dominante contribuem para a fome e má
nutrição generalizadas.
O Tratado de Paris termina com a guerra. O sucesso dos colonos
americanos contra o poder europeu faz crescer as ambições daqueles que
desejam uma reforma em França.
1789 – 5 maio. Os Estados Gerais são convocados pela primeira vez desde 1614. A
votação decorrerá por Estado e não por cabeça.
28 maio. O Terceiro Estado (Tiers Etat) começa a reunir por iniciativa
própria, apelidando-se de “communes” (comunas).
17 junho. O Terceiro Estado declara-se Assembleia Nacional.
35
17 julho. O início do Grande Medo, revolta campesina contra o feudalismo e
grande número de revoltas e distúrbios urbanos. Muitos membros da aristocracia
fogem de Paris e tornam-se emigrantes. Luís XVI aceita o cocar tricolor.
27 agosto. A Assembleia adota a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão.
36
1791 – 30 janeiro. Mirabeau é eleito Presidente da Assembleia.
28 fevereiro. Dia dos Punhais; Lafayette ordena a prisão de 400
aristocratas armados no Palácio das Tulherias.
2 abril. Morte de Mirabeau – primeira pessoa a ser enterrada no Panteão,
formalmente a Igreja de Saint-Geneviève.
15 julho. A Assembleia Nacional declara o rei inviolável e ele é restabelecido.
17 julho. Manifestação antimonárquica no Campo de Marte (Champ de
Mars); a Guarda Nacional mata 50 pessoas.
13-14 setembro. Luís XVI aceita formalmente a Constituição.
30 setembro. Dissolução da Assembleia Nacional Constitutiva.
1 outubro. A Assembleia Legislativa reúne – muitos deputados jovens,
inexperientes e radicais.
37
9 agosto. A Comuna Revolucionária toma posse do Hôtel de Ville.
10-13 agosto. Tomada do Palácio das Tulherias. A Guarda Suíça é
massacrada. Luís XVI de França é preso e levado, juntamente com a sua família.
Georges Danton torna-se Ministro da Justiça.
16 agosto. A Comuna de Paris apresenta uma petição à Assembleia
Legislativa ordenando a criação de um tribunal revolucionário e convocando uma
Convenção Nacional.
19 agosto. Lafayette foge para a Áustria. França é invadida pelos exércitos
da Coligação, encabeçados pelo Duque de Brunswick.
22 agosto. Revoltas monárquicas em Brittany, La Vendée e Dauphiné.
3 setembro. Conquista de Verdun pelos exércitos de Brunswick.
3-7 setembro. Os massacres de setembro (Jornadas de setembro) de
prisioneiros em prisões de Paris.
19 setembro. Dissolução da Assembleia Legislativa.
38
1793 – 21 janeiro. O cidadão Louis Capet, formalmente conhecido por Luís XVI, é
guilhotinado.
7 março. Surto de rebelião contra a Revolução: guerra em Vendée.
11 março. O Tribunal Revolucionário é estabelecido em Paris.
39
27 julho. Robespierre é eleito para a Junta de Salvação Pública.
28 julho. A Convenção proscreve 21 deputados girondinos como inimigos da
França.
5 setembro. Início do “Reino do Terror”.
9 setembro. Estabelecimento de forças paramilitares dos “sans-culottes” –
exércitos revolucionários.
22 setembro. É introduzido um novo calendário, denotando o dia 22 de
setembro de 1792 como o início do ano 1.
29 setembro. A Convenção estabelece o “maximum”, fixando os limites dos
preços de muitos produtos e serviços.
10 outubro. A Constituição é colocada em espera. Decreta-se que o governo
deve ser “revolucionário até à paz”.
16 outubro. Maria Antonieta é guilhotinada.
40
23 dezembro. Forças antirrepublicanas em Vendée são finalmente
derrotadas e 6000 prisioneiros executados.
41
SÚMULA DA
REVOLUÇÃO
FRANCESA ATÉ À
MORTE DE DANTON
● A Revolução Francesa (denominação que engloba revoluções parciais e
sucessivas) teve por finalidades derrubar o despotismo real, o sistema feudal
ainda em vigor, fazer ascender a uma posição social diferente a nova burguesia,
dar melhores condições de vida ao povo. É, em resumo, uma revolução burguesa
e democrática.
democrática
42
● A situação geral da França antes de 1789 tornara-se caótica. Na agricultura, o
atraso técnico era enorme, devido à organização feudalista em que se apoiava.
Por outro lado, a indústria, se bem que longe do florescimento industrial inglês
contemporâneo, ganhava notável desenvolvimento, sucedendo-se a criação de
vários complexos industriais e o aparecimento da classe operária.
operária O regime
feudal entravava, porém, o progresso industrial. A extrema miséria do camponês
(a grande massa da população), a regulamentação absolutista governamental, a
divisão provincial da França que estabelecia barreiras alfandegárias internas,
reduziam o poder de compra. Igual crise sofria o comércio que, no entanto,
antevia imensas perspetivas. A grande força do capital continha-
continha -se, perante a
orgânica feudal
feudal.
eudal
43
feudalismo como seu violador – o feudalismo atentava contra a liberdade pessoal,
a propriedade privada, a iniciativa particular.
● O Rei convoca a Assembleia dos Notáveis em 1787. Nela estala um conflito entre
o monarca e a nobreza devido a uma proposta de alteração fiscal que iria atingir
a última. A Assembleia é dissolvida e o rei consente na marcação da reunião dos
Estados Gerais para 1789.
44
Nacional, mas os membros desta não acatam a decisão real. O rei teve de
reconhecer o novo órgão que, a 9 de julho, se proclama Assembleia Constituinte.
Constituinte
45
revolucionários, desde MIRABEAU, LAFAYETTE a ROBESPIERRE, DANTON e MARAT,
irá desempenhar no prosseguimento da Revolução um papel fundamental.
46
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves
47
● Cresciam, assim, grandes discordâncias entre os
os revolucionários.
revolucionários De um lado
os constitucionalistas, do outro os opositores – ou seja, a alta burguesia e as
restantes classes. MIRABEAU, chefe dos primeiros, entra em conversações secretas
com a corte e trai a Revolução. MARAT denuncia-o. Entretanto MIRABEAU morre.
LAFAYETTE, BAILLY, LE CHAPELIER e SIEYÉS, continuam e constituem o setor
jacobino da direita.
48
montanheses (por se sentarem nos lugares mais altos da Assembleia) chefiados
por ROBESPIERRE que representavam a esquerda. Nela se distinguiam ainda
CHABOT e COUTHON. Mas, o maior número de deputados da Assembleia situava-
se ao centro e por isso se denominavam ironicamente o “pântano
pântano”
pântano ou a “planície
planície”.
planície
49
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves
50
● As tropas inimigas conquistavam terreno rapidamente devido sobretudo às
inúmeras traições dos oficiais e generais franceses. MARAT, ROBESPIERRE e
DANTON chefiavam o movimento popular. Os girondinos pretendiam acalmar o
povo. A 3 de agosto é divulgado em Paris o manifesto de BRUNSWICK, general ao
serviço da Prússia, que demonstrava as traições internas da França, e segundo o
qual a invasão se destinava a restaurar o poder absoluto do rei em França. Este
manifesto provocou no povo francês uma enorme agitação. Na madrugada de 10
de agosto o povo, comandado pela Comuna, invade as Tulherias e derruba o rei. A
Comuna Revolucionária fica senhora da situação. O rei é preso no Palácio do
Luxemburgo. A Assembleia nomeia novo governo girondino
girondino do qual faz parte
apenas, como jacobino, DANTON.
DANTON A Comuna Revolucionária que, dirigida pelos
jacobinos da Montanha, encabeçara o 10 de agosto é, agora, a par da Assembleia
Nacional, o órgão da Revolução. À sua frente, além de DANTON estão os jacobinos
ROBESPIERRE, MARAT, CHAUMETTE, etc. Os girondinos procuram travar a
ascendência da Comuna mas nada podem fazer pois DANTON está entre eles. A
luta entre a Comuna e a Assembleia Legislativa era, noutro plano, a luta entre
girondinos e jacobinos.
jacobinos
51
uma nova fação extremista, os “furiosos
furiosos”,
furiosos chefiados por ROUX, VARLET, a atriz
CLAIRE LACOMBE, etc., que pretendiam a abolição da aristocracia e a concessão
de regalias ao povo. Os girondinos foram os primeiros a combater os “furiosos”. Os
jacobinos, embora não os apoiassem claramente, favoreceram-nos enquanto estes
foram úteis na sua luta contra os girondinos (porém entre os jacobinos havia uma
extrema esquerda – CHAUMETTE, PACHE, CHALIER – que mais sinceramente os
incitava). A principal reivindicação dos “furiosos” era o limite dos preços dos
géneros (maximum), também defendido por ROBESPIERRE, MARAT, SAINT-JUST,
etc.
52
● A nova Junta liquidará, sucessivamente, os “furiosos”, os dantonistas e os
hebertistas. A ditadura jacobina afastará pelo terror todos os que considerou
inimigos da Revolução
Revolução.
ção Assim aconteceu com DANTON, que se havia retirado
para usufruir dos prazeres de uma vida calma. Para este o tempo das audácias
passara, e embora fazendo parte da Montanha ele estivera sempre mais próximo
da Planície. Apesar disso continuava a gozar de grande prestígio. A partir de
outubro de 1793 DANTON e os seus amigos (CAMILO DESMOULINS, FABRE
D’EGLANTINE, LEGENDRE, DELAUNAY, etc.) tornaram-
tornaram-se adeptos da moderação.
moderação
Pediram o abrandamento da ditadura revolucionária, o fim do terror, a criação de
uma comissão de clemência, etc. Embora atacando ROBESPIERRE faziam também
incidir os seus ataques sobre os ultrarrevolucionários, HERBERT e os jacobinos de
esquerda. CHABOT e FABRE tinham adquirido grandes fortunas por processos nem
sempre honestos; criava-
criava -se uma
uma nova burguesia especuladora.
especuladora Contra ela
ROBESPIERRE irá lançar o seu fogo assim como o fará contra os hebertistas que se
situavam no pólo oposto a DANTON na medida em que levavam ao extremo as
reformas que preconizavam, que iam desde a abolição do tribunal revolucionário e
respetiva substituição por tribunais populares improvisados, à perseguição da
Igreja, ao culto da “santa guilhotina”, etc. Em 30 de março de 1794 HEBERT e
alguns dos seus partidários são executados e seis dias depois DANTON,
DESMOULINS e PHILIPPEAU são presos.
presos DANTON estivera até ao fim convencido
que os membros da Junta e da Convenção não ousariam tocar-lhe, e quando o
aconselharam a fugir este declarou: “acaso se leva a pátria agarrada à sola dos
sapatos?”. A 16 de abril DANTON e os seus
seus amigos são executados.
executados A 13 de junho
é executado CHAUMETTE.
53
DANTON,
ROBESPIERRE E A
REVOLUÇÃO
RUTH SCURR
Em A Morte de Danton, Buchner apresenta-nos um retrato brilhante de
Robespierre, como um gatuno de sangue frio, hipócrita e fanático – a antítese de
Danton, homem viril e amante da sua mulher embora mulherengo. A peça atribui
uma mistura de motivos pessoais e políticos a ambos os revolucionários e captura
o drama da sua irremediavelmente deformada amizade. A amizade, a confiança, a
partilha de ideais, uniam os revolucionários quando estes começaram a trabalhar
por uma melhor e mais justa França em 1789. Amizades intensas que terminam
muito mal são histórias centrais da Revolução. Tendo em conta que as políticas
revolucionárias desenvolvem-se em inesperadas e muitas vezes violentas
direções, e tendo a França caído simultaneamente em guerra civil e estrangeira,
as velhas amizades, mesmo aquelas que tiveram o seu início nos dias de escola,
tornaram-se frágeis, partindo-se tantas vezes. Os amigos, afinal, guardam
oportunidades de traição com as quais os inimigos podem apenas sonhar.
54
Quando eles se conheceram no início da Revolução em 1789, Robespierre tinha 31
anos e Danton 30; eram ambos advogados, assim como politicamente radicais e
nenhum deles tinha sido famoso à guarda do ancien régime. À parte das suas
fisionomias – Robespierre perto das proporções corretas, Danton um pouco maior
– os dois homens foram descobrindo ter cada vez mais em comum: dedicados ao
povo, ativos no clube dos Jacobinos, temendo que as forças da Contrarrevolução
triunfassem com a invasão estrangeira, lutaram juntos para derrubar a monarquia,
estabilizar a república e projetar as instituições do Terror.
Numa das raras ocasiões em que Danton falou sobre si mesmo em público,
suplicou: “Se eu tivesse sido levado pelo entusiasmo nos primeiros dias da nossa
regeneração, não teria expiado por isso? Não teria sido ostracizado?”. Robespierre
não poderia ter dito estas palavras. A expiação – por toda a sua carga religiosa –
estava para além do repertório de Robespierre; a retórica do martírio era mais o
seu estilo. Como Danton, ele tinha-se oferecido ao povo e conseguia imaginar
morrer por ele; mas ao contrário de Danton, ele não conseguiu nunca admitir que
poderia ter estado errado: “Quem diz que alguém inocente pereceu?”, perguntou
com gelada confiança. Danton foi guilhotinado a 5 de abril de 1794, Robespierre a
28 de julho do mesmo ano. “É o sangue de Danton que vos está a chocar!”, alguém
rosnou quando Robespierre caiu do poder. “Danton! – É então Danton que vos
pesa?”, respondeu ele, “Covardes – porque não o defenderam?”
55
Antes de se conhecerem, Saint-Just, destinado a ser mais um amigo dramático de
Robespierre, escreveu-lhe em 1790: “Eu não te conheço, mas tu és um grande
homem. Não és apenas o deputado de uma província, mas sim o deputado da
república e da humanidade.” Saint-Just era nove anos mais novo que Robespierre:
selvagem, bonito e transgressor. O vínculo entre eles era tão improvável como
importante para a Revolução. Para além da poderosa coincidência das suas
opiniões sobre o julgamento e execução de Luís XVI, eles partilhavam uma
obsessão pela “vertu”, virtude em português. Os dois homens falavam muito e com
frequência. Saint-Just foi a única pessoa que se atreveu a subir em corrida a
escada exterior que conduzia até aos quartos privados de Robespierre, na Rue
Saint-Honoré (qualquer outra pessoa se aproximou de forma mais indireta através
da casa do seu senhorio). Saint-Just tinha sobre ele o fascínio de um pecador
reformado – “Eu agi mal, mas serei capaz de fazer melhor”, dizia ele com 20 anos.
Três anos depois Saint-Just era o aliado político mais próximo do Incorruptível.
56
Quando se virou contra ele, Robespierre afirmou que a reputação patriota de
Danton era injustificável; que este não teria contribuído para o crescer que
provocou o final da monarquia em 10 de agosto de 1792, antes de mais porque
teria partido de Paris para visitar a sua mãe em Arcis, e por outro lado na noite em
questão teve de ser arrastado da cama para comparecer à reunião da sua Secção.
No entanto ninguém arrastou Robespierre da sua cama nessa noite. Ele nunca
participou em qualquer violência revolucionária. Danton e Camille tinham saído
com as suas armas; Danton tinha sancionado assassínio nos degraus do Hôtel de
Ville; tinha estado na primeira linha na guerra estrangeira e visto sangue a correr
livremente. Como se atrevia Robespierre, entre todas as pessoas, a censurá-lo com
covardia física? Ele também se queixou do corpo gordo de Danton, do facto de ele
ser amoroso e indolente. Havia mau génio e um toque de maldade neste
documento; até Saint-Just poderia ver que apenas partes dele poderiam ser
incorporadas no relatório oficial.
57
DANTON
SIMON SCHAMA
Uma semana depois, Danton e alguns dos seus amigos mais próximos, incluindo
Desmoulins, Lacroix, Philippeau e (num dia diferente) Hérault de Séchelles são por
sua vez detidos. A morte dos hébertistas implicara sempre o fim dos Indulgents,
pois ter atacado uns e não os outros teria sido alienar fatalmente os Terroristas da
linha dura presentes nos dois comités. No dia 29 de março, há um último encontro
entre os gigantes. Danton tenta persuadir Robespierre de que a sua amizade foi
intencionalmente destruída por Collot e Billaud, que semearam a discórdia entre
eles para se exonerarem dos excessos terroristas. Mas Robespierre não está a
ouvir. Exige que Danton sacrifique os corruptos para se salvar a si próprio. É um
diálogo de surdos. Segundo uma versão convincente da noite da detenção,
Albertine, irmã de Marat, avisa Danton e insta-o a apresentar-se na Convenção
para denunciar o Comité. Ele começa por demonstrar alguma relutância – fazê-lo
significará a proscrição de Robespierre – mas depois, convencido de que não lhe
restam alternativas, acede. Ao chegar à assembleia, Danton vê Robespierre numa
conversa tão amistosa com Camille Desmoulins que baixa a guarda e vai-se
embora para casa. É detido nessa mesma noite.
58
Os caçadores sabiam que não ia ser fácil. Hébert fora uma fuinha (mas com dentes
afiados). Danton será um leão ferido cujos rugidos beligerantes poderão ecoar por
toda a cidade de Paris. Na noite de 25 de março, os dois comités consideraram em
sessão conjunta a tática a utilizar. Saint-Just levou a acusação – da qual
injustamente se orgulhava – e disse que a leria na Convenção no dia seguinte,
após o que poderiam prender Danton e os amigos. Vadier e Amar olharam para
ele como se não estivesse bom da cabeça. Primeiro, havia que prender Danton,
depois logo se denunciaria. Qualquer outra tática seria potencialmente desastrosa.
Face à ofensa aos seus poderes de persuação, para não falar da comparação
negativa da sua virilidade com a de Danton, Saint-Just ficou incaracteristicamente
colérico mas os polícias da Segurança Geral impuseram o seu método.
A acusação contra Danton, corrigida para a sua forma final por Robespierre, é –
mesmo pelos padrões do Tribunal Revolucionário – um documento incrivelmente
fraco. As acusações contra Hérault de Séchelles são ainda mais capciosas.
Acusado de ser um aristocrata, ele invoca a memória do seu melhor amigo, Michel
Lepeletier, um ci-devant de linhagem ainda mais ilustre. Mas Danton é acusado de
toda a espécie de perfídias: de conspirar para colocar o duque de Orleães no
trono, de salvar pessoas, incluindo Brissot, dos massacres de setembro, de se rir
sempre que é mencionada a palavra “virtude”. Em suma, é má rês. O Comité
espera obviamente que enquadrando Danton e Desmoulins nos vigaristas da
fraude da Companhia das Índias, incluindo toda uma gama de estrangeiros
diversos – os irmãos Frey, o espanhol Guzmán, o dinamarquês Friedrichsen, o
belga Simon –, a culpa da vigarice se cole ao seu principal adversário, embora não
disponham da mínima prova que o ligue ao esquema.
No dia 2 de abril, o tribunal enche-se com uma multidão enorme – Danton tem um
número de seguidores formidável. Fouquier-Tinville tentou conter o interesse
popular até ao último minuto antes de anunciar o julgamento mas vê-se a braços
com um tribunal tumultuoso que ofende profundamente a sua noção de
procedimentos ordeiros. Até o número dos réus parece não bater certo:
Westermann, velho camarada de Danton, insiste em ser acusado com o amigo.
Quando o presidente do tribunal lhe garante que isso é “apenas uma formalidade”,
Danton comenta: “A nossa presença aqui é apenas uma formalidade”. Sucedem-se
as interrupções e as confusões, revelando o sentido assustadoramente poderoso
que Danton tem do teatro público. Ao não conseguir interromper uma das tiradas
tonitruantes de Danton, o presidente, Herman, pergunta-lhe: “Não ouviste a
sineta?” Danton replica: “A voz de um homem que está a defender a vida e a honra
tem de se impor ao som do vosso sininho”. Danton está efetivamente decidido a
explorar a vantagem que tem sobre os juízes em termos de volume, ciente de que
uma voz sonora e profunda, além de fazer os seus interrogadores parecerem
ridículos, dá testemunho dos recursos de poder viril que a cultura republicana
59
associa à virtude. Trovejar é ser patriótico. No dia seguinte, no princípio da defesa,
dirigindo-se mais ao público do que aos juízes ou ao júri, Danton declara: “Povo,
julgar-me-eis depois de me ouvires; a minha voz será ouvida por vós e em toda a
França”.
É exatamente isto que o tribunal teme, e não está disposto a deixar Danton dirigir
o julgamento. Desdenha da sua exigência de convocar uma longa lista de
testemunhas, incluindo membros do Comité de Salvação Pública como o próprio
Robespierre e Robert Lindet, o único dos colegas de Danton que se negou a
assinar o mandato de detenção. Não sobreviveu nenhum registo completo dos
trabalhos mas ao que parece Danton falou quase o dia inteiro e com um efeito
tremendo, sacudindo as acusações como se estivesse a sacudir insetos do casaco.
“Será que os cobardes que me estão a caluniar se atrevem a atacar-me cara a
cara?”, exige ele, e numa veia mais estoico-romântica: “O meu domicílio será em
breve no esquecimento, com o meu nome no Panteão… Eis a minha cabeça para
responder por tudo”. Danton parece querer elevar a miséria moral da ocasião ao
nível da retórica trágica, transformando o seu fim em algo tão importante e
memorável como o de um herói homérico, um patriota dos anais de Roma.
Durante os últimos dois dias, o tribunal ficou a conhecer Danton. Amanhã, ele conta
dormir no seio da glória. Nunca pediu perdão e vê-lo-eis subir para o patíbulo com
a sua serenidade habitual e a calma de uma consciência limpa.
60
meus braços à tua volta, as minhas mãos atadas a abraçarem-te, a minha cabeça
cortada apoiada em ti. Vou morrer…
61
SUGESTÃO DE
ATIVIDADES
TAREFAS A DESENVOLVER COM OS ALUNOS
ESCREVER
ANALISAR
62
INVESTIGAR
A partir da cronologia da Revolução Francesa (pp. 34-41), sugerir aos alunos que
escolham uma data específica e que escrevam um pequeno texto, a partir da sua
investigação, sobre esse momento da História.
LER
VISIONAR
63
EQUIPA TEATRO NACIONAL D. MARIA II, E.P.E.
atores JOÃO GROSSO, JOSÉ NEVES, LÚCIA MARIA, MANUEL COELHO, MARIA AMÉLIA MATTA,
PAULA MORA
direção de cena ANDRÉ PATO, CARLOS FREITAS, ISABEL INÁCIO, MANUEL GUICHO, PAULA
MARTINS, PEDRO LEITE
auxiliar de camarim PAULA MIRANDA, PATRÍCIA ANDRÉ
pontos CRISTINA VIDAL, JOÃO COELHO
guarda-roupa GRAÇA CUNHA
* prestações de serviços
64