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O comunismo dos imbecis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de maio de 2015

Definir o comunismo como “estatização dos meios de produção”, como o fazem o sr. Marco
Antonio Villa e seus admiradores, que por incrível que pareça existem, é descrevê-lo pelo
sistema econômico ideal que lhe serve de bandeira e slogan, e não pela sua realidade de
movimento político e intelectual com um século e meio de uma história tremendamente
complexa.
É explicar fatos históricos pela definição de uma palavra no dicionário, procedimento no qual
nenhuma pessoa com mais de doze anos de idade tem o direito de confiar.
Procedimento que se revela ainda mais pueril e inaceitável quando a definição é usada como
premissa de um raciocínio (ou raciossímio, diria o Reinaldo Azevedo) segundo o qual um
partido que não prega ou pratica ostensivamente a estatização dos meios de produção não
pode ser comunista de maneira alguma.
Pois, ao longo de toda a sua história, os grandes partidos comunistas do mundo, a começar
pelo da própria URSS, preferiram quase sempre deixar essa meta hipotética e longínqua num
discreto segundo plano, ou omiti-la completamente, concentrando-se em objetivos concretos
mais imediatos que pudessem compartilhar com outros partidos e forças, ampliando a base
das suas alianças possíveis.
Característica, nesse sentido, foi a política do Front Popular, que na década de 30 angariou
apoio mundial para a URSS na base de um discurso “antifascista”, onde tudo soava como se
nenhuma incompatibilidade tivesse existido jamais entre o regime comunista e os interesses
da burguesia democrática dos países ocidentais.
O velho Partido Comunista Brasileiro de Luís Carlos Prestes sempre falou muito menos em
estatizar a economia do que em “defender os interesses nacionais” e a “burguesia nacional”,
supostamente ameaçados pelo capital estrangeiro.
No período da luta contra a ditadura militar, então, não se ouvia um só comunista, fora do
meio estudantil enragé ao qual pertencia o sr. Villa, pregando estatização do que quer que
fosse: só clamavam por “democracia”.
Mao Dzedong, no início da carreira, falou tanto em patriotismo antijaponês e foi tão discreto
no que diz respeito ao fim do livre mercado, que superou Chiang Kai-Shek nas simpatias do
governo americano, ante o qual fez fama de “reformador agrário cristão”.
Mesmo quando se fala em estatização, na maior parte dos casos ela é sempre parcial e
aplicada de tal modo que não fira indiscriminadamente os interesses da burguesia e o direito
a toda propriedade privada dos meios de produção, mas pareça mesmo favorecê-los a título
de “aliança entre Estado e iniciativa privada”. Mesmo no Chile de Allende foi assim.
Sendo, malgrado todas as suas mutações e ambiguidades, um movimento organizado de
escala mundial, o comunismo sempre comportou uma variedade de subestratégias locais
diferenciadas, as quais, não raro, se pareciam tanto com um comunismo de dicionário quanto
as intrigas diplomáticas do Vaticano se parecem com a salvação da alma.
A famosa “solidariedade comunista internacional” consiste precisamente numa bem articulada
divisão de trabalho, de modo que as ações dos partidos comunistas locais contribuam para o
sucesso mundial do movimento pelas vias mais diversas e às vezes até incompatíveis em
aparência.
Nos anos 30 do século passado, Stálin ordenou que o Partido Comunista Americano se
abstivesse de tentar organizar a militância proletária e, em vez disso, se concentrasse em
ganhar o apoio de bilionários, de intelectuais célebres e do beautiful people da mídia e do
show business, na base de apelos ao “pacifismo”, aos “direitos humanos” e à “democracia”,
de modo que o discurso comunista se tornasse praticamente indistinguível dos ideais
formadores do sistema americano.
Nessa perspectiva, arregimentar militantes e intoxicá-los de doutrina marxista era muito
menos importante do que seduzir possíveis “companheiros de viagem”, pessoas que, sem ser
comunistas nem mesmo em imaginação, pudessem, nos momentos decisivos, colaborar com
as iniciativas do Partido e com os interesses da URSS, usando, justamente, da sua boa fama
de insuspeitas de comunismo.
Foi por isso que o Partido, na América, sempre foi uma organização minúscula, dotada de um
poder de influência desproporcional com o seu tamanho.
O objetivo dessa estratégia era não só criar em torno do comunismo uma aura de
humanismo inofensivo, mas também fazer do capitalismo americano a fonte de dinheiro
indispensável à sustentação de um movimento político sempre deficitário quase por definição.
A operação teve sucesso não só em desviar para a URSS e para o PCUSA quantias vultuosas
provenientes das grandes fortunas privadas, mas em transformar o próprio governo
americano no principal mantenedor e patrono do regime soviético, que sem isso não teria
sobrevivido além dos anos 40.
Quanto a este segundo ponto, é evidente que simples idiotas úteis e agentes de influência
não poderiam ter obtido tão esplêndido resultado; eles serviram apenas para dar suporte
moral e político à ação de agentes de interferência, profissionais de inteligência altamente
treinados, cuja infiltração maciça nos altos postos do governo de Washington, como se sabe
hoje, foi muito além do que poderia ter calculado, na época, o infeliz senador Joe McCarthy.
Por todos esses exemplos vê-se como é imbecil esperar que um partido saia pregando a
“estatização dos meios de produção” para só então notar que ele é comunista.
O próprio PT já deixou clara, para quem deseje vê-la, a sua quádrupla função e tarefa no
movimento comunista internacional:
1. No plano diplomático, alinhar o Brasil com o grande bloco antiocidental encabeçado pela
Rússia e pela China. O BRICS não é nada mais que uma extensão embelezada da
Organização de Cooperação de Shanghai, que já expliquei aqui em 2006 (leia aqui).
2. Na esfera de ação continental, salvar e fortalecer o movimento comunista, como bem o
reconheceram as Farc, mediante a criação do Foro de São Paulo e de um sistema de proteção
que permita a transfiguração da narcoguerrilha, ameaçada de extinção no campo militar, em
possante e hegemônica força política e econômica.
3. Por meio de empréstimos ilegais e da corrupção, usar os recursos do capitalismo brasileiro
para salvar os regimes comunistas economicamente moribundos, como os de Cuba e de
Angola.
4. Na política interna, eliminar as oposições, aparelhar o Estado e estabelecer de maneira
lenta, discreta e anestésica um poder hegemônico indestrutível.
Quem tem toda essa complexa e portentosa missão a cumprir há de ser louco de sair por aí
pregando “estatização dos meios de produção” para assustar e pôr em fuga a burguesia local,
sem cuja colaboração o cumprimento da tarefa se torna impossível?
Na perspectiva do sr. Marco Antonio Villa, nada disso é atividade comunista, já que falta
“estatizar os meios de produção”.
A desproporção entre a complexidade do fenômeno comunista e a estreiteza mental de um
autor de livrinhos compostos de recortes de jornal já é patética por si, sem que ele precise
ainda enfatizá-la afetando sua superioridade de portador de um diploma ante os que, sem
diploma nenhum, conhecem a matéria porque a estudaram.
Como eu mesmo me incluo entre estes últimos, sendo tão carente de estudos formais quanto
Machado de Assis, João Ribeiro, Capistrano de Abreu, Luís da Câmara Cascudo, Manuel
Bomfim, José Veríssimo e outros construtores maiores da cultura brasileira, deve parecer
mesmo revoltante ao sr. Villa que eu tenha acumulado mais honrarias acadêmicas, prêmios
literários, citações em trabalhos universitários e aplausos de grandes intelectuais de três
continentes do que ele, com seu canudinho da PUC e seu currículo mirim, poderá angariar em
trinta reencarnações, caso existam.
Entre os anos 40-70 do século passado, a idolatria dos diplomas, tão característica da
Primeira República e tão bem satirizada nos romances de Lima Barreto, parecia uma doença
infantil finalmente superada numa época em que a cultura brasileira ia vencendo o
subdesenvolvimento e igualando-se às de países mais ricos.
Um quarto de século de “Nova República”, e sobretudo doze anos de PT no poder, trouxeram-
na de volta com força total, numa espécie de compensação ritual que, sentindo vagamente
no ar a ausência da alta cultura desfeita em pó, busca apegar-se supersticiosamente aos
seus símbolos convencionais, como o viúvo inconsolável que dorme agarrado a um chumaço
de cabelos da falecida, para trazê-la de volta.
Não é de todo coincidência que entre os sacerdotes desse culto caquético se destacassem
justamente alguns daqueles que minutos antes perguntavam “Diploma para quê? ” e
buscavam persuadir a nação de que a fé democrática trazia como corolário a obrigação de
eleger um semianalfabeto presidente da República.
Uma vez que o Partido domina as universidades, é indispensável que elas monopolizem a
atividade cultural, marginalizando e achincalhando toda criação ou pensamento
independente.
Se o sr. Villa colabora gentilmente com esse empreendimento, não há nisso nada de
estranho, já que ele se empenha também em acobertar as atividades do Foro de São Paulo,
reduzindo todo combate antipetista a uma “luta contra a corrupção” imune ao pecado mortal
de anticomunismo.
Qualquer que seja o caso, num país em que cinquenta por cento dos formandos das
universidades são comprovadamente analfabetos funcionais, todo portador de um diploma
deveria pensar duas vezes antes de exibi-lo como prova de competência, para não falar de
superioridade.

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