Você está na página 1de 4

RESENHAS 205

imigrantes carregam nos próprios sapa- sentação está na base das políticas que
tos, fazendo com que sejam tomados incidem sobre o imigrante, as quais
por camponeses estranhos à cidade e, visam lhe impor a condição de ser es-
conseqüentemente, ironizados e trata- sencialmente uma força de trabalho
dos com desprezo. Por outro lado, há o temporária. Esse mesmo caráter provi-
problema da escassez de água potável. sório está presente nessas habitações,
Existem apenas umas poucas bicas os bidonvilles, que surgem como de
localizadas junto à estrada, exigindo improviso às margens da cidade e lá
portanto um trabalho penoso – a “cor- ficam postos de lado, como que prontos
véia da água” – que obriga homens e a desaparecer. Mas, na verdade, essas
mulheres a se oferecerem aos olhares e habitações, assim como os próprios imi-
gracejos dos estranhos e revelar seu grantes, permanecem. E o esforço de
pertencimento ao bidonville. Assim, a Sayad em analisar a experiência de
raridade da água sustenta o estigma da vida nos bidonvilles é o esforço de reve-
sujeira, reforçando a diferença entre lar essa permanência.
habitantes das villes e dos bidonvilles
e, em decorrência, o racismo contra os
árabes, na medida em que a moradia VELHO, Otávio. 1995. Besta-Fera: Re-
nos bidonvilles está diretamente asso- criação do Mundo. Ensaios de Crítica
ciada aos imigrantes argelinos. Antropológica. Rio de Janeiro: Relume-
Vítimas dessa rejeição os bidonvil- Dumará. 250 pp.
les são alvo de duas atitudes recorren-
tes por parte dos habitantes das villes:
de um lado, a agressão que vai dos gra- Luís R. Cardoso de Oliveira
cejos e olhares, mas que pode chegar Prof. de Antropologia, UnB
até os incêndios criminosos; de outro, e
mais freqüentemente, uma indiferença A publicação dessa coletânea põe à dis-
e uma negligência na oferta dos servi- posição do público uma seleção de arti-
ços públicos. Neste último caso, tudo se gos produzidos, ao longo de onze anos,
passa como se os imigrantes e suas por um dos mais instigantes antropólo-
habitações devessem ficar invisíveis, gos brasileiros. Além de apresentar um
evitando a exposição de seus barracos, panorama geral das idéias e preocupa-
roupas e corpos. E, como o autor reitera ções do autor durante o período, a esco-
ao longo de todo o livro, essa clandesti- lha dos artigos foi particularmente feliz
nidade, dos barracos, do comércio, de ao combinar trabalhos que, a despeito
sua presença no país e na ville, é o prin- da variedade dos temas abordados, têm
cipal atributo do “ser imigrante”. como pano de fundo a reflexão sobre o
Esta é uma formulação básica não métier antropológico e caracterizam
apenas do livro em questão, mas de bem sua maneira de fazer antropologia.
toda a obra de Sayad. Segundo ele, a Eu diria que um dos principais ensi-
condição de imigrante reside na não namentos ilustrados na coletânea é a
conjugação do direito e do fato, mas sim maneira franca e aberta com a qual
na contradição fundamental entre um Velho enfrenta os problemas que abor-
estado provisório definido no direito e da. Aliás, diria mesmo que o conselho
uma situação durável definida de fato, seminal que Ricoeur atribui a seu pri-
que produz a representação do imi- meiro mestre de filosofia, Roland Dal-
grante como ser transitório. Essa repre- biez, caracterizaria perfeitamente a ati-
206 RESENHAS

tude de Velho nos artigos aqui reuni- como é acionada em suas diversas ma-
dos: “quando um problema te perturba, nifestações no campo, e salientando a
te angustia, te amedronta, nos dizia ele, origem bíblica da noção –, o autor re-
não tente contornar o obstáculo, abor- pensa algumas dimensões importantes
de-o de frente”. do rico debate, durante os anos 70/80,
Essa atitude aparece com a mesma sobre as perspectivas do campesinato
intensidade nos trabalhos em que o (ou pequena produção) no Brasil, e pro-
autor procura pensar a relação da an- põe um novo equacionamento do pro-
tropologia com outras disciplinas ou do- blema sociológico que motivou as duas
mínios do conhecimento/experiência, principais posições em jogo. Em poucas
como a filosofia (capítulo 3) e a religião palavras, a discussão sobre as alternati-
(capítulos 2 e 10), naqueles em que o vas entre a reprodução do campesinato e
tema central é a própria perspectiva seu eventual aburguesamento na fron-
antropológica (capítulos 1, 4, 8 e 9), teira, de um lado, e a situação de sujei-
assim como nos trabalhos em que dis- ção acompanhada pelo processo de pro-
cute o lugar ou papel do antropólogo letarização no engenho (e fora dele), de
enquanto cidadão (capítulos 5, 6 e 7), outro, é rearticulada por intermédio da
ou ainda, quando trata do fenômeno da ambivalência autonomia-servidão que
globalização no último artigo do livro é sugerida na utilização nativa da no-
(capítulo 11). Na realidade, os vários ção de cativeiro, tanto para caracterizar
temas se entrecruzam de maneira origi- a situação de sujeição ao senhor, como
nal e são enriquecidos com material para indicar a subordinação ao domínio
etnográfico sobre o mundo rural brasi- das leis. Velho sugere que a compreen-
leiro, ao qual o autor dedicou mais de são da situação que engendra a oposi-
vinte anos de pesquisa e reflexão. O ção cativeiro/liberdade não pode ser
produto dessa articulação de interesses adequadamente desenvolvida a partir
e preocupações é uma visão do métier de uma ênfase excessiva (e quase uni-
antropológico como um empreendi- lateral) na ótica da autonomia, que teria
mento onde a reflexão é tomada não caracterizado a polarização do debate
apenas como um exercício metodológi- sobre o campesinato. Debate no qual o
co, mas como um commitment no senti- autor foi um dos principais atores.
do ético-moral do termo. Isto é, onde a Inspirado na análise de Ricoeur so-
interpretação do antropólogo é sistema- bre a simbólica do mal e em sua pers-
ticamente exposta à crítica de seus pectiva que vê a ação social como um
interlocutores – os quais Velho procura texto, Velho procura resgatar a dimen-
ouvir com atenção –, sejam eles seus são (simbolicamente) positiva da noção
“informantes” no campo ou seus cole- de cativeiro. Isto é, a dimensão que re-
gas na academia, e onde o reconheci- mete ao “desejo de dependência”, que
mento do caráter normativo da discipli- freqüentemente acompanha a manifes-
na, assim como de suas implicações, tação do “desejo de autonomia” no dis-
está sempre presente. curso das populações camponesas. Co-
Todas essas características já se mo vários dos trabalhos citados indi-
fazem notar no primeiro capítulo, “O cam, e o autor chama a atenção, o que
Cativeiro da Besta-Fera”, que inspira o está em jogo aqui é a valorização das re-
título do livro e coloca o empreendi- lações de reciprocidade que teriam vi-
mento em perspectiva. Tendo como re- gorado no passado (em geral idealiza-
ferência a noção de cativeiro – assim do) e que estariam sendo aniquiladas
RESENHAS 207

pela impessoalidade do mercado. Nes- mentários que se seguem têm como mo-
se sentido, embora Velho argumente tivação a aceitação do desafio implícito
convincentemente que as implicações nas reflexões do autor de que os proble-
desse desejo de dependência não se mas ou dificuldades encontrados pelo
esgotam na substantivação da perda do pesquisador/intérprete devem ser en-
“sítio” ou do “roçado”, sugerindo vá- frentados de frente e sem receios.
rias possibilidades interessantes para No que concerne ao problema da
equacionar a compreensão das práticas legitimação das relações sociais, minha
sociais vigentes com suas representa- indagação seria quanto à viabilidade
ções e com os problemas de ordem sim- de se compreender adequadamente o
bólica daí advindos, não chega a se en- fenômeno sem passar por uma discus-
gajar nas questões de ordem ético- são dos direitos de cidadania, à luz dos
moral que seu empreendimento susci- valores cultivados pela comunidade/
ta. Penso especialmente no paralelo sociedade em questão, e sem lançar
bastante sugestivo, mas pouco desen- mão de uma perspectiva interpretativa
volvido no texto, que o autor traça entre que contemple a possibilidade de vali-
as oposições alargar/fechar e cativei- dação de questões de ordem normativa.
ro/libertação (:42). Assim como a cons- Pois, será que a manifestação do “dese-
ciência política mal balizada pode fe- jo de dependência” mencionado acima,
char em vez de ampliar o horizonte do assim como a defesa da gratuidade que
teólogo, a absolutização da idéia de li- estaria embutida nas resistências “à
bertação pode implicar a sua reificação. economia monetária, às relações impes-
Isto é, se, segundo Velho, “a noção de soais, burocratizadas etc.” (:161), não
abertura deveria ser desenvolvida em seriam expressão da demanda de reco-
sua dimensão de acolhida e de escuta”, nhecimento de um direito passível de
a noção de liberdade também não deve fundamentação no plano das condições
ser dissociada do sentido que lhe dá necessárias para o exercício da cidada-
sustentação no contexto das relações de nia em sentido amplo? Isto é, dentro de
reciprocidade valorizadas pelos atores uma visão que articulasse a noção de
e que, no limite, seriam constitutivas cidadania à conjugação do respeito aos
mesmo da vida social enquanto tal. direitos do indivíduo com a considera-
Parece-me que essas questões, as- ção à pessoa do cidadão? Nesse senti-
sinaladas mas pouco exploradas no tex- do, e inclusive para ser mais coerente
to, remetem, de um lado, ao problema com a utilização da noção de reciproci-
da legitimação das relações sociais ou dade, não seria mais apropriado falar-
dos direitos de cidadania e, de outro, ao mos com Mauss de obrigatoriedade (ou
problema dos pressupostos ético-morais de obrigação moral) em vez de gratui-
que dão suporte às pretensões de vali- dade do tipo de atitude (comportamen-
dade da interpretação do antropólogo. to, ação) reivindicada pelos “informan-
Além dos dois problemas estarem mais tes” de Velho?
ou menos relacionados ao longo do li- Apesar de a noção de gratuidade
vro, e caracterizarem uma dimensão permitir uma articulação interessante
importante das preocupações antropo- entre as representações dos atores e a
lógicas de Velho, aparecem de maneira crítica aos limites interpretativos da
explícita, ainda que com maior ou me- razão instrumental ou do utilitarismo,
nor ênfase, em quase todos os artigos ela não oferece um caminho promissor
aqui reunidos. Nesse sentido, os co- para a sustentação das pretensões de
208 RESENHAS

legitimação das demandas dos atores (:204), isto é, na medida em que a sua
em oposição às práticas vigentes. Pois, adoção possa ser interpretada como um
ao identificar-se com a idéia de espon- ato de vontade do pesquisador. Pois, se
taneidade, característica de atitudes tomarmos atenção ao (ou consideração
e/ou ações que, ainda que desejáveis, do) ponto de vista nativo como um pres-
dependem exclusivamente da vontade suposto ético-moral da interpretação
dos atores, a noção de gratuidade não antropológica, a qual não pode funda-
viabiliza a interpretação de que a au- mentar suas pretensões de validade
sência de práticas assim orientadas (por sem se reportar às elucidações produ-
esta gratuidade) possa ser percebida zidas nesse diálogo com os atores, a
como uma falta de respeito ou mesmo opção pela caridade torna-se um passo
como uma agressão a direitos. desnecessário.
Por outro lado, se, ao tomar a refle- De qualquer forma, as interpreta-
xão antropológica como um commit- ções efetivamente empreendidas por
ment, Velho leva a sério as pretensões Velho são sempre ricas e reveladoras,
de legitimidade das demandas de seus motivando o leitor a se engajar nos pro-
“informantes”, o autor também não dei- blemas que o autor propõe, não apenas
xa de se preocupar com os problemas da perspectiva de um receptor de infor-
de validação da interpretação do antro- mações, mas do ponto de vista de um
pólogo enquanto tal. Desse modo, nas interlocutor pleno.
várias formulações que utiliza para ca-
racterizar sua perspectiva na antropolo-
gia, faz questão de marcar sua distância VIANNA, Hermano. 1995. O Mistério
do “niilismo solipsista subjetivista” (:74) do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/
que tem tido uma influência significati- Ed. UFRJ. 196 pp.
va na disciplina, seja ao propor uma
antropologia da relação ou do relacio-
namento (capítulos 2 e 4), ao sugerir a Christopher Dunn
possibilidade de uma antropologia da Prof. da Tulane University
transcendência (capítulos 8 e 9), ou
quando discute o balizamento da pro- Tanto a literatura acadêmica como o
dução de sentido (capítulo 9) e a possi- próprio imaginário popular tendem a
bilidade de se falar em realidades no conceber a história do samba como uma
plural (capítulo 10). descida heróica e quase espontânea, no
Entretanto, embora tenha grande final da década de 20, do “morro” para
simpatia pela perspectiva mais geral do a “avenida” – da favela ao espaço privi-
livro, assim como uma grande identida- legiado das camadas médias e da bur-
de com a proposta de se manter a abor- guesia. No livro O Mistério do Samba,
dagem antropológica igualmente dis- Hermano Vianna narra uma história
tante do niilismo e do cientificismo mais gradual, mediada e, às vezes, con-
(:195), e também me identifique com traditória, na qual as elites cultural e
sua crítica à “obsessão pelo poder” que política do Brasil, sobretudo do Rio de
parece ter invadido as ciências sociais Janeiro, elevaram o samba ao estatuto
(:199), não posso deixar de manifestar de expressão cultural “original e autên-
um certo desconforto com sua defesa do tica”, mesmo quando as autoridades
princípio de caridade como um “pres- continuavam a controlar e reprimir os
suposto indispensável à compreensão” músicos. Segundo Vianna, “a transfor-

Você também pode gostar