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ESCRITORAS BRASILEIRAS

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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______________________
O atual preconceito linguístico contra a palavra "poetisa" e o antigo preconceito
masculino contra a mulher escritora
Resumo
Temas: o uso neutro da palavra "poetisa" na mídia do século XIX e o preconceito de
alguns antigos escritores contra a participação feminina na literatura.
Adjetivos associados a "poetisa" no século XIX: festejada, adorável, notável,
talentosa, exímia, distinta, genial.
Atitude dominante no meio literário masculino: boa receptividade às poucas
escritoras e às poetas em particular.

Textos integrais sobre a questão da mulher escritora:


1. Réplica de autora anônima ao preconceito dos homens contra as escritoras em
geral: Gazeta de Notícias (Rio), 15 de janeiro de 1891, número 15, página 1, segunda e
terceira colunas.
2. Trecho de crítica de Machado de Assis (1839-1908) ao livro de poemas
Nebulosas, de Narcisa Amália (1852-1924), no qual o autor admite a sua prevenção ao
ter de lidar com textos de escritoras: Semana Ilustrada (Rio), 29 de dezembro 1872,
número 629, página 6, primeira coluna.
3. O texto mais machista da história da literatura brasileira, Poetisas e literatas...,
escrito por Osório Duque Estrada (1870-1927), autor da letra do Hino Nacional, no qual
Osório afirma a incompetência inata da mulher para todas as atividade intelectuais: O
País (Rio), 29 de agosto de 1893, número 4131, página 1, primeira e segunda colunas.
4. A calúnia mais infame contra uma escritora brasileira, publicada na autobiografia
do escritor e crítico Múcio Teixeira (1857-1926), na qual ele afirmava que Narcisa
Amália, a poeta mais apreciada do seu tempo, era uma farsa e jamais havia composto
sequer um poema: A Imprensa (Rio), 1.º de março de 1912, número 1520, página 5,
primeira coluna.

______________________
Como todos sabem atualmente, usa-se o termo "poeta" para homens e mulheres que
compõem poemas ou lançam livros de poesia.
O feminino "poetisa" é considerado uma forma depreciativa de denominação, como
se por ser mulher, sua produção literária, supostamente inferior à do homem, carecesse
de termo próprio.
Trata-se de um costume de época (e qual não é), assimilado em meus escritos.
Mas há um probleminha. Pesquiso sobre a história da literatura brasileira desde
setembro de 2016, muitas vezes horas por dia consultando periódicos e livros do século
XIX. Sabe quantas vezes eu vi a palavra "poetisa" associada a uma escritora medíocre
de poemas? Uma.
Minto. Duas, mas a segunda pertence ao século XX e se encontra em um bonito
soneto de autoria feminina, na comparação entre um grande poeta e uma simples
poetisa.

Arealense (Areal, RJ), 6/12/1915, número 841, página 2, parte superior


http://memoria.bn.br/DocReader/306746/1954
O soneto foi reproduzido duas vezes na revista Fon Fon em 1916.
Fon Fon (Rio de Janeiro, RJ), 15/4/1916, número 16, página 32, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/259063/24539
6/5/1916, número 19, página 37, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/259063/24732
Houve preconceito dos homens em geral (não dos escritores em geral) contra
mulheres escritoras ― reproduzo neste artigo um contra-ataque de escritora anônima a
essas críticas.
Houve uma ou outra manifestação contra escritoras no meio literário ― reproduzo
um trecho de crítica de Machado de Assis, além do mais machista dos textos já
produzidos por um escritor brasileiro, de autoria de Osório Duque Estrada (ele mesmo,
o responsável pela letra do Hino Nacional).
Houve uma acusação baixa a uma poeta ― reproduzo esse conteúdo, de autoria do
poeta e tresloucado crítico Múcio Teixeira, o qual, aliás, também exercitou sua
virulência impressionante contra o próprio Machado de Assis.
Mas só em uma dessas situações o autor empregou o termo "poetisa" no sentido
depreciativo. E não se tratava de um ataque às cultoras do gênero poético: esse escritor
considerava todas as mulheres como incapazes de produzir literatura de qualidade.
Naquele século, em regra, ao se elogiar a produção poética de uma mulher usava-se
a palavra "poetisa" com naturalidade. Abaixo, mostro alguns exemplos bem claros de
como a palavra sempre assumia conotação positiva ou vinha acompanhada de um
adjetivo com essa conotação, embora fossem poucas as mulheres poetas da época. Os
redatores, assim, transferiam para o tratamento das mulheres um costume adotado para
os escritores importantes.

Trecho de folhetim do poeta Luís Guimarães Júnior em 1871


"Um indiscreto amigo noticia-me também a próxima chegada de uma poetisa. Ora,
se há alguém melhor que um poeta, é na verdade uma poetisa. A harpa tangida por
mãos femininas deve despedir sons mais aveludados e puros que vibrada por masculinas
unhas".

Diário do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ), 10/12/1871, número 339, página 1,
antepenúltima coluna (na seção Folhetim).
http://memoria.bn.br/docreader/094170_02/28132

Notinha do periódico Novidades em 1890


"Diz o Timburibá, de Resende, que a festejada poetisa Narcisa Amália, a gentil
cantora das Nebulosas, trabalha atualmente num livro de contos ― Por montes e vales
― que será brevemente publicado."
Novidades (Rio de Janeiro, RJ), 18/4/1890, número 87, página 1, última coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/3462
Observação: a informação acima é inédita. Não se conhecia esse livro de contos de
Narcisa Amália, jamais publicado. Na notinha abaixo, o redator se precipitou ao
informar que o livro já estava no prelo.

Notinha do Estado do Espírito Santo em 1890


"Narcisa Amália, a adorável poetisa das Nebulosas, tem no prelo uma pequena
coleção de contos ― Por montes e vales."

O Estado do Espírito Santo (Vitória, ES), 29/4/1890, número 2212, página 3,


segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/229644/363

Texto do jornal A Imprensa em 1900


"Já que falamos em versos, reproduzo um extraordinário soneto da notável poetisa
da capital paulista. D. Francisca Júlia da Silva."

A Imprensa (Rio de Janeiro, RJ), 27/2/1900, número 508, página 1, terceira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/245038/2095

Notinha de O País em 1892


"Na primeira página figura um retrato da escritora Elisa Lemos e no texto, sobressai
uma encomiástica notícia sobre a jovem e talentosa poetisa Áurea Pires."

O País (Rio de Janeiro, RJ), 19/12/1892, número 3880, página 1, penúltima coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/6680

Resenha de livro no jornal Cidade do Rio em 1901


"Outros volumes suceder-lhe-ão, estamos certos, e neles a talentosa poetisa nos dará
mais acurados e escoimados trabalhos que virão em apoio ao justo renome que o seu
primeiro livro lhe dá."

Cidade do Rio (Rio de Janeiro, RJ), 10/10/1901, número 11, página 2, terceira
coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/085669/11803

Dedicatória de texto no periódico O Timbira em 1890


"À distinta poetisa Francesca de Rimini."

O Timbira (Rio de Janeiro, RJ), 15/5/1890, número 17, página 1, última coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/303810/65

Dedicatória de texto no periódico O Timbira em 1890


"À exímia poetisa Hortênia Penquit".

O Timbira (Rio de Janeiro, RJ), 15/11/1892, número 41, página 2, primeira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/303810/162

Soneto de Alfredo Azamor em A Estação


"À genial poetisa Ibrantina Cardona."

A Estação (Rio de Janeiro, RJ), 15/7/1899, número 13, página 78, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/709816/6379
Talvez haja algum outro caso de uso preconceituoso dessa palavra no século XIX. O
trabalho histórico é um processo sem fim, e novas descobertas desfazem velhas certezas
com frequência. Mas se houver será exceção, como provam os exemplos acima.
Dicionaristas devem registrar o uso real e contextual dos termos. Por isso, nenhum
dos dicionários on-line de respeito (Priberam, Michaelis e Aulete) registra o uso
preconceituoso de "poetisa". Confira:
https://dicionario.priberam.org/poetisa
https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/poetisa/
http://www.aulete.com.br/poetisa
A questão gerou polêmica na Academia Carioca de Letras em 2017, segundo matéria
de Maria Fortuna para O Globo intitulada Polêmica na Academia Carioca de Letras:
poeta ou poetisa?, a partir da afirmação de Cecília Meirelles no poema Motivo: sou
poeta.
https://outline.com/h4UTMT
E para que não se renove a polêmica, deixo claro: a função deste artigo é
informativa. Respeito os costumes da época e continuarei utilizando "poeta" para
mulheres. Entretanto, não se deve atribuir ao passado um costume exclusivo do
presente. Não faço uma defesa do termo "poetisa", e sim revelo provas da ausência de
preconceitos dos brasileiros, no passado, ao usarem esse termo em seus textos.
Assim como "pitonisa", "papisa", "profetisa", "sacerdotisa" e outros femininos,
empregava-se "poetisa" sem maldade e sem atribuição de qualidade inferior ao trabalho
dessa literata (aliás, esse termo também é um feminino neutro).

Notinha de O País em 1912


"Completa hoje seis anos de idade o interessante Roberval Roche Moreira, filho do
capitão Dr. Silvestre Moreira e neto da apreciada literata D. Narcisa Amália."

O País (Rio de Janeiro, RJ), 9/4/1912, número 10.047, página 5, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/178691_04/11308

Trecho de artigo da Gazeta da Tarde em 1896


"ADA NEGRI ― a primeira, uma notável poetisa; a Itália é sempre a mãe das artes
e da poesia; a segunda, uma sacerdotisa política [...]."
Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 13/9/1896, número 254, página 2, terceira
coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/226688/15782
A maioria dos escritores famosos da época defendia o trabalho das poucas literatas
atuantes, entre elas as poetas.
Na polêmica iniciada pelo anúncio da futura criação da Academia Brasileira de
Letras (a qual, como expliquei neste artigo, para a mídia de então foi fundada em dia
diferente da história oficial), Valentim Magalhães, um de seus fundadores, rebelou-se
contra a formação do Clube do Bolinha literário. Perdeu: a proposta exclusivista acabou
incorporada ao estatuto, ao final das discussões. Em seu folhetim, Magalhães nomeou
três escritoras merecedoras de uma vaga na Academia. Duas delas eram poetas: Narcisa
Amália e Francisca Júlia.
"Ainda uma palavra a respeito. No plano de formação da Academia de Letras não
devem ser apenas contemplados os representantes do sexo barbado e feio, como no
geral das instituições deste gênero, pois não vejo motivo nenhum plausível para que se
excluam as mulheres. Creio que na Academia Espanhola elas são admitidas e que uma
das acadêmicas é Maria Pardo Bazan. Não vejo motivo para excluir da Academia de
Letras escritores como Narcisa Amália, Júlia Lopes [de Almeida], Francisca Júlia
somente porque elas têm a superioridade de ser... mulheres."
A Notícia (Rio de Janeiro, RJ), 14/11/1896, número 272, página 3, segunda coluna
(em Semana Literária, espaço do folhetim).
http://memoria.bn.br/docreader/830380/2150
A romancista Júlia Lopes de Almeida, uma das idealizadoras da ABL e integrante da
primeira lista de 40 membros redigida por Lúcio de Mendonça, acabou substituída pelo
marido, Filinto de Almeida. Apesar da posição de Valentim Magalhães, Lúcio de
Mendonça e, possivelmente, de mais algum integrante do grupo original de 10
membros, prevaleceu a posição que seria revista somente em 1977, oitenta anos depois
da data oficial da fundação, quando a Academia elegeria a primeira mulher, a escritora
Rachel de Queiroz.
Vamos aos quatro artigos prometidos acima.

1. A réplica anônima ao preconceito dos homens contra escritoras em geral


O texto reproduzido abaixo saiu na coluna Coisas do Dia, do jornal Gazeta de
Notícias em 1891.
Repare como a escritora utiliza, no final do texto, a palavra "poetisa" em sentido
dignificante. Note-se também como a defesa de seu ponto reproduz papéis sociais
impostos a homens e mulheres naquela época, assim como noções sobre a atuação
literária da mulher, em especial a restrição moral aos poemas sensuais dedicados ao
homens.
***
Francamente, já basta, meus senhores, de discutir acerca da mulher escritora. Vem de
longe, de muitíssimo longe, a questão que hoje pretendem recomeçar. De tão longe vem
ela, que bem se poderia aplicar-lhe a scie [o refrão] da cançoneta francesa: "Si cette
histoire vous embête... nous allons la recommencer!" [Se esta história os incomoda...
nós vamos recomeçá-la!].
Desde Molière, desde muito antes, pergunta-se se a mulher é aceitável como
escritora, e a resposta, quando a pessoa do sexo feminino escreve bem e elegantemente,
é que à mulher ninguém contesta o direito de ser escritor.
O debate atual vem apenas demonstrar que nós outros, cá destes Brasis, achamo-nos
atrasados de alguns séculos em questões literárias. E como somos um povo honesto e
disciplinado, não queremos contrariar o apotegma [provérbio] latino — natura non facit
saltus [a Natureza não dá saltos] —, e para fazer jus à perfectibilidade passamos os
diversos estágios forçados de uma nação civilizada — começando por pagar o devido
tributo a essa pesquisa retroativa e retrospectiva: se a mulher pode ou não pode, deve ou
não deve escrever para o público.
De tempos imemoriais ficou decidido que femme, femina, é vocábulo que
etimologicamente exprime o seguinte —: o ente que produz, que cria. Só isso. Nem o
sânscrito, o próprio sânscrito, que diz bháváyámi (criar, produzir) insinua o que
compete à mulher especialmente produzir; de onde se pode concluir que inimigos e
interessados é que caluniosamente espalharam que a mulher tem por profissão produzir
e criar unicamente — filhos.
Se fosse permitido a esta seção dar-se ares de erudita, tomávamos por aí ao acaso um
desses livros de catálogo, gratuitamente fornecidos pelos Garnier e pelos Laemmert
(famosos editores da época) de nosso conhecimento e de nossa vizinhança, e
copiaríamos todos os nomes de mulheres que escreveram, e escreveram muito bem, para
provar que em várias épocas da humanidade, desde Mme. de Girardin, e de Sévigné, e
de Staël, até as Sras. Guiomar Torresão, Maria Amália e Narcisa Amália, a literatura
nada tem de se queixar da invasão da saia nos seus domínios, falsamente reservados
para o sexo barbado.
Mas não o faremos, primo porque esta despretensiosa seção não é tão erudita;
segundo, porque neste século e nestes tempos opinar sobre esse caso é, como diz o outro
—: chover no molhado, resolver uma antigualha já resolvida.
Escreve quem quer, em primeiro lugar; e, infelizmente, escreve mal, pessimamente,
quem tem para isso jeito e lazeres — seja feminil, seja másculo o punho de quem
escreve. Depois, os argumentos produzidos pelos que voltam o nariz à literatura
feminina são tão moles, tão frágeis e tão inconsistentes que mal parecem argumentos a
sério, antes simples gaifonas [macaquices] e gestos esquivos do indivíduos que se pelam
por tragar um trecho escrito por delicada e amestrada mão de mulher!
Quando o bom de Molière fez as Femmes Savantes [As Eruditas], era seu intuito
criticar as mulheres que, olvidando inteiramente o seu lar, o seu marido e os seus filhos,
iam disputar com a cozinheira porque não sabia gramática e com a criada de quarto
porque ignorava qual a influência de Kant sobre as teorias filosóficas em voga pelo seu
tempo.
O ridículo do grande mestre da comédia-estudo não visava a mulher que se ilustra
para ter o espírito preparado e saber discernir, senão contra aquelas que perdem a noção
do bom senso e do seu papel na humanidade, desde que conseguem possuir umas
tinturas literárias, e com isso entendem de vir amolar o próximo... os próximos, e até
muitas vezes os remotos.
Outros, que argumentam com certa má-fé, decidem-se contra a mulher escritora,
porque esta vive sempre, principalmente no verso, a fingir de sexo contrário e a cantar
as belezas das outras mulheres.
Ora, este argumento é menos que pueril e fútil, se atendermos a que a vida do
escritor tem a afinidade a mais completa com a vida de artista dramático — e razão esta
que justifica, como a química justifica a força de eleição entre o cloro e o hidrogênio, a
notável simpatia entre os escritores e os cômicos de ambos os sexos... Teatro também
são o jornalismo e o livro, em cujas páginas e colunas o autor perde a sua
individualidade e o seu sexo, para traduzir sentimentos diversos, chorando em linhas de
um artigo estirado ou em verso hendecassílabo, rindo em má hora num escrito
humorístico, criticando um amigo com censura ou elogiando um inimigo que bem se
apresentou em público...
Ora, no teatro — no teatro a valer — também é a mesma coisa: não raro, mulheres,
primeiras artistas, fazem papéis de homens, e a crítica não lhes cai em cima (embora
não lhe desagradasse isso!) porque elas falsificaram o sexo para virem produzir um belo
trabalho artístico dramático.
Ao homem que se desse a tal inversão da ordem natural das coisas, não seria
permitido, sem uma pateada correlativa, apresentar-se de mulher em cena —; tal qual
como ao machão que na prosa ou verso viesse cheio do lamúrias tecer encômios às
qualidades físicas de outro homem.
Por último, isto: se não são bonitos nem aceitáveis, dizem, o verso e os períodos das
escritoras, por que elas vivem a fazer descante às [cantar as] belezas de outras mulheres,
vamos lá! Elas pelo menos são mais honestas e mais decentes assim procedendo...
Quererão os senhores inimigos da mulher escritora que as poetisas e as cronistas, em
vez de cantar a mulher — façam isso com relação ao homem?
Mesmo em verso ?
Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, RJ), 15/1/1891, número 15, página 1, segunda e
terceira colunas.
http://memoria.bn.br/DocReader/103730_03/2431

2. A prevenção de Machado de Assis contra as escritoras


Ao resenhar o livro Nebulosas, de Narcisa Amália (1852-1924), em 29 de dezembro
de 1872, Machado de Assis (1839-1908) produziu uma frase que se tornou símbolo da
prevenção contra a escrita feminina, tema abordado pela autora anônima do texto acima:
"Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora".
Essa frase serviu, na resenha, de contraste à avaliação positiva dos poemas de
Narcisa Amália.
Repare no uso nobre da palavra "poetisa" ("Achei uma poetisa"), em contraste com
"cultora da poesia".
"Com este título [Nebulosas] acaba de publicar a Sra. D. Narcisa Amália, poetisa
fluminense, um volume de versos, cuja introdução é devida à pena do distinto escritor
de Pessanha Póvoa. Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora. É certo
que uma senhora pode poetar e filosofar, e muitas há que neste particular valem homens
e dos melhores. Mas não são vulgares [comuns] as que trazem legítimos talentos, como
não são raras as que apenas pagam de uma duvidosa ou aparente disposição, sem
nenhum outro dote literário que verdadeiramente as distinga. A leitura das Nebulosas
causou-me a este respeito excelente impressão. Achei uma poetisa, dotada de
sentimento verdadeiro e real inspiração, a espaços de muito vigor, reinando em todo o
livro um ar de sinceridade e modéstia que encanta, e todos estes predicados juntos, e os
mais que lhe notar a crítica, é certo que não são comuns a todas as cultoras de poesia."
Semana Ilustrada (Rio de Janeiro, RJ), 29/12/1872, número 629, página 6, primeira
coluna.
http://memoria.bn.br/docreader/702951/5041

3. O texto mais machista da história da literatura brasileira


O texto Poetisas e literatas... saiu na primeira página do jornal O País, em 29 de
agosto de 1893. Escrito pelo autor do Hino Nacional, Osório Duque Estrada (1870-
1927), expunha a sua visão de mundo na qual as mulheres seriam biologicamente
inferiores aos homens e incapazes de, em regra, exercerem qualquer atividade
intelectual com elevado nível de qualidade.
***
Se há verdadeiras ocasiões em que a mão do escritor deva tremer pelo melindroso do
assunto de que se ocupa, esta é uma delas e envolve um compromisso de alta
importância, qual o de chamar a bom caminho, pelo conselho refletido e que não
suscetibiliza, os pecadores que não querem se arrepender.
Deus me livre das literatas! — é a frase que naturalmente me ocorre no princípio
destas considerações; mas Deus me livre também de perder a graça e a simpatia dessas
sedutoras autoras que, um momento esquecidas dos seus primeiros e mais imediatos
deveres, em má hora se armaram de pena ou de lira, de lápis ou de cinzel, no
empreendimento de uma luta perigosa e arriscada de que os mais audazes contendores
de calças têm voltado muitas vezes desiludidos e com as armas desfeitas, partidas no
convulsivo ardor das refregas...
Não é, não podia ser por forma alguma uma catilinária contra as senhoras que
escrevem; este despretensioso artigo, destinado talvez a atrair as iras das galantes
leitoras com culpa no cartório, é apenas uma medida de conselhos úteis,
convenientemente temperados, de quem não teve nunca a pretensão de valer tanto como
outros que os podiam ter dado já, mas inquestionavelmente faltos de coragem para dizer
francamente a verdade toda inteira.
No princípio, eram somente duas ou três as literatas que abarrotavam as colunas dos
nossos jornais diários com as suas produções literárias. O mal foi progredindo pouco e
pouco, e essa mania feminina de literatice vai desastradamente assumindo as proporções
de um verdadeiro descalabro social.
Não sou suspeito nesta questão ingrata, procurando evitar que se desenvolva entre
nós o histerismo literário com sintomas de moléstia grave, crescente dia a dia, o que
redunda em prejuízo da própria mulher que, mal orientada na pretensão das suas
conquistas, por uma uma versão lastimável do seu papel a representar na vida social,
aspira a essa emancipação absoluta e incondicional que é um dos erros mais graves e
mais palmares da grosseira propaganda iniciada com essa tendência na Inglaterra e nos
Estados Unidos [o movimento feminista então embrionário].
Não sou suspeito, dizia, e a prova dito é a recente campanha em favor da mulher,
recentemente encetada nestas colunas, a propósito da questão do divórcio como
regularização e complemento da lei civil do casamento.
O fim principal dessa campanha era conseguir que se ampliassem os direitos da
mulher, conculcados [desprezados] pela letra despótica de uma lei injusta e antiliberal.
Mas não saindo do terreno científico e social, pugnava pelo divórcio como medida
capaz de restabelecer a correlação dos seus direitos e deveres. Quem tem deveres tem
direitos que lhes correspondem: é a lei do efeito e da causa.
Hoje a questão é diversa, assenta em bases de outra categoria; é a própria natureza da
mulher, de inferioridade intelectual reconhecida, de funções restritas, de caráter muito
particular, que a inibe das lutas da pena, como do manejo das armas, por exemplo, em
que ela só pode representar um papel acanhado e medíocre.
Em primeiro lugar, os que se arrogam o direito de escrever, mesmo entre os homens,
são os que sabem mais (às vezes aparentemente, é verdade), os que se julgam dotados
de certo preparo intelectual, certas aptidões para doutrinar aos que sabem menos, porque
a literatura encerra alguma coisa que entende com a direção, a orientação dos espíritos
e não se pode limitar exclusivamente aos contos descabelados e às tradicionais
pieguices do lirismo barato. Ora, é fora de dúvida que é preciso uma certa base de
conhecimentos mais ou menos sólidos para a discussão de graves problemas de arte ou
de ciência em que se debatem todos os dias os espíritos cultos. Há uma teoria da vida
cujo estudo se prende a um interesse imediato do homem, cioso de perscrutar os seus
movimentos múltiplos e inconscientes, na pesquisa constante dos fenômenos tanto do
mundo fisiológico como psíquico.
A mulher, cuja educação intelectual dificilmente e só como rara exceção pode atingir
esse grito de perfectibilidade, não está de nenhuma maneira apta para o estudo
esclarecido de todas essas inúmeras questões.
Como ente de inferioridade intelectual, ela está condenada a ser dirigida e não pode
dirigir, tem que ser subordinada exclusivamente à manifesta predominância da
sensibilidade que é a sua faculdade mais desenvolvida. As letras serão, pois, para ela, a
simples expressão da sua sensibilidade, nunca um órgão forte da razão, baldo por isso
de pensamentos graves, de acertados raciocínios ― qualquer gênero, seja o romance, a
literatura em geral, a moral ou a política, com prejuízo e sacrifício completo de um
conjunto enorme de ideias, instintos, de sensações, de sentimentos, que precisam ser
examinados, traduzidos à luz clara da razão e não por esses pretensiosos ensaios da
inteligência da mulher que, sensível só, não vai além das primeiras surpresas, das
primeiras dúvidas e das curiosidades vagas, sem chegar jamais à perfeição exata das
fotografias.
Vivem numa doce ilusão os que se deixam levar pela falsa doutrina dos visionárias
que pretendem a igualdade absoluta entre o homem e a mulher, pretendendo para esta
igual soma de direitos e regalias, cabendo, portanto, igual educação a ambos. Nunca se
escreveu disparate maior, e querer equiparar em absoluto dois entes diversos, embora da
mesma espécie, é intenção igual à de aproximar o Sol da Lua.
A verdade é outra. A mulher tem constituição apenas análoga á do homem, mas as
suas funções são inteiramente diversas como diversos são os seus predicados;
esteticamente é superior ao homem, intelectualmente é inferior. Esta diferença está
inteiramente de acordo com o pensamento de um sábio publicista que classifica assim
os dois representantes do gênero humano; o homem, ente da inteligência e da força, a
mulher, ente da forma.
A própria natureza já tinha subordinado a mulher a uma função limitada e inferior; a
sociologia, imitando a natureza, submete-a a uma legislação especial. Nada mais
racional e mais lógico do que esse equilíbrio e essa harmonia da sociedade com a
natureza.
"Por consequência, diz o aludido publicista, a mulher não é como é pela educação
que lhe damos; nós é que lhe damos essa educação por ela ser como é; e quando ela tem
a pretensão de se julgar capaz de promulgar leis, comandar exércitos e conduzir
locomotivas, é tão ridícula como seria o sexo forte se quisesse usar cuia, mostrar os
ombros e amamentar crianças!"
[Alexandre] Dumas Filho, que é o escritor a que me refiro, está perfeitamente
inclinado para as reflexões que tenho sugerido às nossas literatas.
As exceções não servem absolutamente de argumento contra as regras. Vejo daqui
esbugalharem-se os olhos dos que podem me contestar, agarrando-se à tábua de
salvação deste raciocínio fácil: que mulheres ilustres tem havido, cultivando a arte e a
ciência com aplausos universais. São as tais exceções de que falei, verdadeiros casos
teratológicos que não justificam os atentados diariamente cometidos pelo sexo frágil no
reprovado vezo de meter a mão em seara alheia.
Mme. de Sévigné, de Staël, de Girardin, d'Ackermann, George Sand foram, é certo,
mulheres ilustres e admiradas em todo o mundo. O valor dessas mesmas (e note-se que
foram as que chegaram até onde pode ir uma mulher notável!) não é de todo
incontestável nem de uma superioridade absoluta. Haja vistas sobre o que diz
Chateaubriand de Mme. de Staël, uma das mais distintas escritoras que tem visto o
mundo:
"Vous êtes, sans doute, une femmee superieure. Votre tête est forte et votre
imagination quelque fois pleine de charme, témoin ce que vous diles d'Herminie
deguisée en querrier. Votre expression a souvent de l'éclat, de l'élévation... Mais, malgré
tous ces avantages, volte ouvrage est bien loin d'étre ce qu'il avrait pu devenir. Le style
en est monotone, sans mouvement, est trop melé d'expressions metaphysiques. Le
sophismes des idées repousse, l'erudition ne satisfait pas, et le coeur est trop sacrifié à la
pensée. Votre talent n'est qu'a demi develloppée, la philosophie l'étouffe."
[Você é, sem dúvida, uma mulher superior. Sua mente é possante, e sua imaginação
às vezes cheia de charme testemunha o que você diz de Herminie disfarçada de
guerreira. Sua expressão costuma ter brilho, elevação. Apesar de todas essas vantagens,
esse trabalho está longe de ser o que poderia ter se tornado. O estilo é monótono, sem
movimento, é muito misturado com expressões metafísicas, a erudição não satisfaz, e o
coração é muito sacrificado ao pensamento. Seu talento está apenas meio desenvolvido;
a filosofia o sufoca.] "
Que escreveria o judicioso crítico a propósito da literatura feminina no Brasil onde
apenas as Sras. Délia [Maria Benedita Câmara Bormann] e Júlia Lopes [de Almeida]
fazem exceção à pasmosa mediocridade das nossas literatas!
As maiores escritoras foram e hão de ser sempre inferiores a um literato medíocre.
Um Shakespeare de saias é coisa que ofusca a razão.
Se as senhoras julgam que a literatura e a arte são apenas um passatempo da
sensibilidade enferma, é preciso lembrar-lhes que há outras coisas que podem melhor
servir de divertimento...
Osório Duque Estrada.
O País (Rio de Janeiro, RJ), 29/8/1893, número 4131, página 1, primeira e segunda
colunas.
http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/8332

4. A virulência indomável de Múcio Teixeira e a calúnia contra Narcisa Amália


Machado de Assis conheceu em 1901 a virulência de Múcio Teixeira (1857-1926),
vinte e dois anos depois de criticar um livro do poeta. O troco veio em forma de cinco
folhetins de Múcio, reproduzidos no artigo A crítica literária vingativa e o seu maior
alvo no Brasil: Machado de Assis — 2. A vingança de Múcio Teixeira, disponível nesta
pasta, subpasta Escritores Brasileiros.
Se Osório Duque Estrada escreveu o texto mais machista da história da literatura
brasileira, Múcio Teixeira não ficou atrás: inventou a acusação baixa dessa mesma
história.
Quarenta anos após a publicação de Nebulosas, livro de poemas que consagrou
Narcisa Amália, Múcio serviu-se de um capítulo de sua autobiografia, Memórias
Dignas de Memória, para difundir um boato: todos os poemas da obra teriam sido
escritos por um homem, "poeta da geração de 1870", a pedido do pai de Narcisa, o qual
teria também solicitado a um conterrâneo, o crítico Pessanha Póvoa, a redação do
prefácio da obra.
Esse prefácio, talvez o mais famoso da literatura brasileira, apresentava Narcisa
como a maior poetisa brasileira, comparando as qualidades da novata às de outras já
famosas. Rendeu quatro anos de polêmica.
O boato abalou Narcisa, então com 60 anos de idade e já enfrentando problemas
graves de saúde.
Não se conhece nenhuma resposta da autora a essa acusação, que só veio a ser
desfeita com as provas de autoria apresentadas no livro Narcisa Amália: Estudo
bibliográfico, de Antônio Simões dos Reis, em 1949.
Apesar disso, o boato perdurou, como o demonstra essa menção no Suplemento
Literário em agosto de 1960, de passagem, no artigo de Domingos Carvalho da Silva
intitulado O Livro de Marília:
"[...] há quem diga que Narcisa Amália não escreveu nunca um só dos milhares de
versos que publicou."

Suplemento Literário (Belo Horizonte, MG), 6/8/1960, número 193, página 4, quarta
coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/1176
"Há quem diga..." é a fórmula de um fofoqueiro, não de um escritor responsável.
O trecho da autobiografia de Múcio onde se pode ler a acusação a Narcisa Amália
intitula-se Uma poetisa célebre que nunca fez um verso e tem um livro de poesias.
Repare na frase final do trecho copiado do jornal A Imprensa: "Vamos às poetisas de
verdade". Nem nesta situação Múcio utiliza o termo "poetisa" depreciativamente; faz,
ao invés disso, uma distinção entre poetisas de verdade e "pseudopoetisas".
***
Passa por ser uma das mais inspiradas poetisas brasileiras a velha professora pública
do Distrito Federal D. Narcisa Amália, quando a verdade é que esta senhora nunca fez
uma poesia em sua vida. Este fato é da maior importância, por isso não devo silenciá-lo.
Um obscuro professor do interior da província do Rio de Janeiro, chamado Jácome de
Campos, teve a leviandade de consentir que um poeta da geração de 1870 tomasse para
pseudônimo o nome de sua filha Narcisa Amália, que tão lisonjeada ficou com os
elogios da imprensa ao ponto de não impedir que esses versos fossem colecionados em
um livro, que com o título de Nebulosas e o seu retrato foi lançado aos quatro ventos da
publicidade.
O livro realmente é notável: e ainda maior impressão causou no espírito público por
aparecer firmado por uma mulher, cuja feminilidade apenas transparece nas estrofes da
poesia em que diz:
"Desde a hora fatal em que partiste,
Turbou-se para mim o azul do ceú;
Velei-me na mantilha da tristeza
Como Safo na espuma do escarcéu..."
Todas as outras são essencialmente políticas e de assuntos patrióticos, com aqueles
rasgos condoreiros da altivolante inspiração castroalviniana. O [Otaviano] Hudson,
assim que leu o prefácio do Pessanha Póvoa no volume das Nebulosas, correu a
procurá-lo, para que o apresentasse à formosa e genial poetisa; mas o Póvoa fez-lhe ver
que nem a conhecia pessoalmente: prefaciara esse livro a pedido do seu velho
conterrâneo Jácome de Campos, mais nada adiantando quanto a essa filha, que tanto
fazia gemer os prelos cariocas. O [poeta Fagundes] Varela entusiasmou-se também,
fazendo-lhe uns versos mais de enamorado que de admirador.
Esta pseudopoetisa (durante quarenta anos mais venturosa que Batilo, que se
intitulou autor dos versos de Virgílio), por mais familiarizada que estivesse com a
língua latina, ficaria atarantada se o Sic vos non vobis lhe aparecesse em rubras letras,
em cada um dos quatro pontos cardeais para onde se voltasse o seu olhar espantado, até
que uma voz reivindicadora bradasse aos seus ouvidos: Hos ego versiculos feci, tulit
alter honores... [Eu escrevi estas linhas, outra pessoa levou o crédito...], vendo ela de
cada ponto do quadrado da hipotenusa saltar a decifração do enigma na célebre quadra
virgiliana:
"Si vos nos vobis, indificatis aves...
Si vos non vobis, mellificatis apes...
Si vos non vobis, vallera fertis oves...
Si vos non vobis, aratra fertis bovers."
[Versos escritos por Virgílio como um desafio para Batilo.]
[Percebam, pássaros, que vocês constroem ninhos não para si mesmos...
Percebam, abelhas, que vocês produzem mel não para si mesmas...
Percebam, ovelhas, que vocês fornecem lã não para si mesmas...
Percebam, bois, que vocês aram a terra não para si mesmos...]
O volume das Nebulosas apareceu em 1872; a autora, que estava então no esplendor
das suas vinte primaveras, contraiu primeiras e segundas núpcias, desposando um artista
cômico que explorava mambembes pelos lugarejos do interior, deixando por isso de
acompanhá-lo nessa vida nômade e aventurosa, preferindo a pacatez do quente lar do
proprietário de uma padaria em Campos, do qual também logo se separou, fixando de
então por diante residência na corte [o Rio de Janeiro], e finalmente capital federal,
onde a conheci como professora municipal. nunca mais se ocupando de poesias, pois
neste largo período de quarenta anos ninguém se lembrou de tê-la visto, nem de
passagem, pelas adjacências do Parnaso. E se já não desfruta sossegada dos proventos
da aposentação, com os vencimentos por inteiro, com certeza não será por lhe faltar o
tempo legal, uma vez que em versos não o desperdiçou. Vamos às poetisas de verdade.
A Imprensa (Rio de Janeiro, RJ), 1/3/1912, número 1520, página 5, primeira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/245038/14904

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