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O atual preconceito linguístico contra a palavra "poetisa" e o antigo preconceito
masculino contra a mulher escritora
Resumo
Temas: o uso neutro da palavra "poetisa" na mídia do século XIX e o preconceito de
alguns antigos escritores contra a participação feminina na literatura.
Adjetivos associados a "poetisa" no século XIX: festejada, adorável, notável,
talentosa, exímia, distinta, genial.
Atitude dominante no meio literário masculino: boa receptividade às poucas
escritoras e às poetas em particular.
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Como todos sabem atualmente, usa-se o termo "poeta" para homens e mulheres que
compõem poemas ou lançam livros de poesia.
O feminino "poetisa" é considerado uma forma depreciativa de denominação, como
se por ser mulher, sua produção literária, supostamente inferior à do homem, carecesse
de termo próprio.
Trata-se de um costume de época (e qual não é), assimilado em meus escritos.
Mas há um probleminha. Pesquiso sobre a história da literatura brasileira desde
setembro de 2016, muitas vezes horas por dia consultando periódicos e livros do século
XIX. Sabe quantas vezes eu vi a palavra "poetisa" associada a uma escritora medíocre
de poemas? Uma.
Minto. Duas, mas a segunda pertence ao século XX e se encontra em um bonito
soneto de autoria feminina, na comparação entre um grande poeta e uma simples
poetisa.
Diário do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ), 10/12/1871, número 339, página 1,
antepenúltima coluna (na seção Folhetim).
http://memoria.bn.br/docreader/094170_02/28132
A Imprensa (Rio de Janeiro, RJ), 27/2/1900, número 508, página 1, terceira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/245038/2095
O País (Rio de Janeiro, RJ), 19/12/1892, número 3880, página 1, penúltima coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/6680
Cidade do Rio (Rio de Janeiro, RJ), 10/10/1901, número 11, página 2, terceira
coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/085669/11803
O Timbira (Rio de Janeiro, RJ), 15/5/1890, número 17, página 1, última coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/303810/65
O Timbira (Rio de Janeiro, RJ), 15/11/1892, número 41, página 2, primeira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/303810/162
A Estação (Rio de Janeiro, RJ), 15/7/1899, número 13, página 78, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/709816/6379
Talvez haja algum outro caso de uso preconceituoso dessa palavra no século XIX. O
trabalho histórico é um processo sem fim, e novas descobertas desfazem velhas certezas
com frequência. Mas se houver será exceção, como provam os exemplos acima.
Dicionaristas devem registrar o uso real e contextual dos termos. Por isso, nenhum
dos dicionários on-line de respeito (Priberam, Michaelis e Aulete) registra o uso
preconceituoso de "poetisa". Confira:
https://dicionario.priberam.org/poetisa
https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/poetisa/
http://www.aulete.com.br/poetisa
A questão gerou polêmica na Academia Carioca de Letras em 2017, segundo matéria
de Maria Fortuna para O Globo intitulada Polêmica na Academia Carioca de Letras:
poeta ou poetisa?, a partir da afirmação de Cecília Meirelles no poema Motivo: sou
poeta.
https://outline.com/h4UTMT
E para que não se renove a polêmica, deixo claro: a função deste artigo é
informativa. Respeito os costumes da época e continuarei utilizando "poeta" para
mulheres. Entretanto, não se deve atribuir ao passado um costume exclusivo do
presente. Não faço uma defesa do termo "poetisa", e sim revelo provas da ausência de
preconceitos dos brasileiros, no passado, ao usarem esse termo em seus textos.
Assim como "pitonisa", "papisa", "profetisa", "sacerdotisa" e outros femininos,
empregava-se "poetisa" sem maldade e sem atribuição de qualidade inferior ao trabalho
dessa literata (aliás, esse termo também é um feminino neutro).
O País (Rio de Janeiro, RJ), 9/4/1912, número 10.047, página 5, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/178691_04/11308
Suplemento Literário (Belo Horizonte, MG), 6/8/1960, número 193, página 4, quarta
coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/1176
"Há quem diga..." é a fórmula de um fofoqueiro, não de um escritor responsável.
O trecho da autobiografia de Múcio onde se pode ler a acusação a Narcisa Amália
intitula-se Uma poetisa célebre que nunca fez um verso e tem um livro de poesias.
Repare na frase final do trecho copiado do jornal A Imprensa: "Vamos às poetisas de
verdade". Nem nesta situação Múcio utiliza o termo "poetisa" depreciativamente; faz,
ao invés disso, uma distinção entre poetisas de verdade e "pseudopoetisas".
***
Passa por ser uma das mais inspiradas poetisas brasileiras a velha professora pública
do Distrito Federal D. Narcisa Amália, quando a verdade é que esta senhora nunca fez
uma poesia em sua vida. Este fato é da maior importância, por isso não devo silenciá-lo.
Um obscuro professor do interior da província do Rio de Janeiro, chamado Jácome de
Campos, teve a leviandade de consentir que um poeta da geração de 1870 tomasse para
pseudônimo o nome de sua filha Narcisa Amália, que tão lisonjeada ficou com os
elogios da imprensa ao ponto de não impedir que esses versos fossem colecionados em
um livro, que com o título de Nebulosas e o seu retrato foi lançado aos quatro ventos da
publicidade.
O livro realmente é notável: e ainda maior impressão causou no espírito público por
aparecer firmado por uma mulher, cuja feminilidade apenas transparece nas estrofes da
poesia em que diz:
"Desde a hora fatal em que partiste,
Turbou-se para mim o azul do ceú;
Velei-me na mantilha da tristeza
Como Safo na espuma do escarcéu..."
Todas as outras são essencialmente políticas e de assuntos patrióticos, com aqueles
rasgos condoreiros da altivolante inspiração castroalviniana. O [Otaviano] Hudson,
assim que leu o prefácio do Pessanha Póvoa no volume das Nebulosas, correu a
procurá-lo, para que o apresentasse à formosa e genial poetisa; mas o Póvoa fez-lhe ver
que nem a conhecia pessoalmente: prefaciara esse livro a pedido do seu velho
conterrâneo Jácome de Campos, mais nada adiantando quanto a essa filha, que tanto
fazia gemer os prelos cariocas. O [poeta Fagundes] Varela entusiasmou-se também,
fazendo-lhe uns versos mais de enamorado que de admirador.
Esta pseudopoetisa (durante quarenta anos mais venturosa que Batilo, que se
intitulou autor dos versos de Virgílio), por mais familiarizada que estivesse com a
língua latina, ficaria atarantada se o Sic vos non vobis lhe aparecesse em rubras letras,
em cada um dos quatro pontos cardeais para onde se voltasse o seu olhar espantado, até
que uma voz reivindicadora bradasse aos seus ouvidos: Hos ego versiculos feci, tulit
alter honores... [Eu escrevi estas linhas, outra pessoa levou o crédito...], vendo ela de
cada ponto do quadrado da hipotenusa saltar a decifração do enigma na célebre quadra
virgiliana:
"Si vos nos vobis, indificatis aves...
Si vos non vobis, mellificatis apes...
Si vos non vobis, vallera fertis oves...
Si vos non vobis, aratra fertis bovers."
[Versos escritos por Virgílio como um desafio para Batilo.]
[Percebam, pássaros, que vocês constroem ninhos não para si mesmos...
Percebam, abelhas, que vocês produzem mel não para si mesmas...
Percebam, ovelhas, que vocês fornecem lã não para si mesmas...
Percebam, bois, que vocês aram a terra não para si mesmos...]
O volume das Nebulosas apareceu em 1872; a autora, que estava então no esplendor
das suas vinte primaveras, contraiu primeiras e segundas núpcias, desposando um artista
cômico que explorava mambembes pelos lugarejos do interior, deixando por isso de
acompanhá-lo nessa vida nômade e aventurosa, preferindo a pacatez do quente lar do
proprietário de uma padaria em Campos, do qual também logo se separou, fixando de
então por diante residência na corte [o Rio de Janeiro], e finalmente capital federal,
onde a conheci como professora municipal. nunca mais se ocupando de poesias, pois
neste largo período de quarenta anos ninguém se lembrou de tê-la visto, nem de
passagem, pelas adjacências do Parnaso. E se já não desfruta sossegada dos proventos
da aposentação, com os vencimentos por inteiro, com certeza não será por lhe faltar o
tempo legal, uma vez que em versos não o desperdiçou. Vamos às poetisas de verdade.
A Imprensa (Rio de Janeiro, RJ), 1/3/1912, número 1520, página 5, primeira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/245038/14904