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O Deísmo e o Santo Ofício:

a perseguição aos libertinos em Portugal no final do século XVIII


Rossana Agostinho Nunes*

Resumo

Levando em consideração o contexto de efervescência política e doutrinal de Portugal


no último quartel do século XVIII, este trabalho tem um duplo objetivo: apresentar o sentido
pejorativo subjacente à figura do libertino, após o que, mediante uma redução de escala ao
processo inquisitorial do estudante luso-brasileiro Antônio de Morais e Silva, esboçar
algumas reflexões sobre a perseguição empreendida pela Inquisição aos adeptos do deísmo.

Palavras chave: Libertino; Deísmo; Inquisição.

Abstract

The paper aims to show the negative meaning of the term libertine which took place in
Portugal in the end of seventh century. After that, by a scale reduction at the inquisitorial
process of the Luso-Brazilian student Antonio de Morais e Silva, this work intends to reflect
about the deists' persecution by Portuguese Inquisition.

Words Key: Libertine; Deism; Inquisition

Coimbra, 1779. Um grupo de jovens estudantes da Universidade de Coimbra é


denunciado à Inquisição. A acusação: defesa de proposições heréticas e dos filósofos
ilustrados. Segundo Francisco Cândido Chaves, responsável pela denúncia, os estudantes
teriam discutido, a partir da leitura de autores ilustrados, temas religiosos de forma nada
ortodoxa (VILLALTA, 1999: 430-1). À leitura de autores proibidos pela censura portuguesa e
às proposições contrárias aos dogmas católicos somavam-se algumas práticas desviantes,
dentre as quais, o ato de comer carne em dias proibidos (ANTT, proc. 2015: 29v). O caso,
contudo, não era excepcional. Pelos os anos finais de 1770 alguns indivíduos caíram nas
malhas da Inquisição sob acusações similares (DIAS, 1986). O perfil das acusações diferia
radicalmente dos alvos anteriores: não eram mais os partidários de práticas judaizantes e

*
Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense, mestranda na mesma Universidade sob
orientação de Guilherme Pereira das Neves e bolsista de Apoio Técnico à pesquisa do CNPq.
feiticeiras que importava perseguir, mas, neste caso, aqueles que, aderindo aos supostos erros
do deísmo, assumiam posturas libertinas. Se é certo que a perseguição aos cristãos novos foi
mais intensa e produziu muito mais processos do que a perseguição, pós 1774, aos indivíduos
adeptos da filosofia moderna, nem por isso esta se torna menos significativa. Em alguns
destes processos a maçonaria, posto que presente, figurava como um elemento marginal. Era
preciso esperar ainda pela década de 1790 para que o problema da maçonaria emergisse com
mais força (DIAS, 1986).
A preocupação não era exclusiva ao Tribunal do Santo Ofício. Paralelamente, a Real
Mesa Censória, criada em 1768, lançava esforços no sentido de tentar coibir a circulação dos
escritos filosóficos em Portugal. Com isto procurava barrar a penetração dos erros dos
filósofos libertinos, os quais veiculavam, entre outros, máximas incrédulas e perniciosas do
ponto de vista da estruturação social vigente. Responsável pela censura e fiscalização literária,
o órgão sofreu algumas reformulações nos anos seguintes: da Real Mesa Censória à Real
Mesa de Comissão Geral, instituída por D. Maria I em 1787 e abolida, como inútil, já em
1794, não houve, contudo, alteração nesta determinação básica.
O problema, de modo algum, restringia-se às determinações oficiais da censura.
Paralelamente, eram publicadas algumas obras que, partindo de premissas católicas,
pretendiam demonstrar o perigo decorrente da lição dos escritos filosóficos: Dissertação
sobre a alma racional, escrita pelo religioso José Mayne e publicada em 1779; Cartas de
certa mai a seu filho para lhe provar a verdade da religiao christa, obra traduzida do francês
por Francisco Lourenço Roussado e publicada em 1786; O deismo refutado por si mesmo,
publicada em 1787 e traduzida por Francisco Coelho da Silva.
Em um cenário de crescente tensão, estimulada, não somente pela circulação interna
de alguns escritos filosóficos, como pelos acontecimentos revolucionários externos e pelo
temor de que estes se alastrassem sobre o solo português, aos livros filosóficos e aos adeptos
de suas doutrinas eram, muitas das vezes, atribuídas qualificações pejorativas específicas. O
libertino, o materialista, o deísta e o suposto espírito forte são algumas delas. Assim, uma
apreciação prévia do significado e dos usos da noção de libertinagem e de seus correlatos
impõe-se como um elemento primordial para a compreensão do contexto de efervescência
política e doutrinal de Portugal ao final do Setecentos, do qual faz parte a política de
repressão tanto aos escritos filosóficos quanto aos supostos adeptos do deísmo.
O libertino: um problema histórico

Tentar estabelecer uma definição precisa para os conceitos de libertino e libertinagem


não é nada fácil. As variações sofridas pelo termo ao longo dos séculos tornam a tarefa ainda
mais complexa. Entre a literatura libertina do século XVIII e a libertinagem erudita do século
XVII emerge uma diferença considerável (MONZANI,1996: 193). A tarefa não é facilitada
nem mesmo pela escolha de um período e espaço histórico bem delimitado. Mesmo nestes
casos, a possibilidade dos conceitos comportarem diferentes empregos e significados continua
dificultando o estabelecimento de uma definição precisa e unívoca dos termos. O que, de
modo algum, torna menos válida a tentativa de apresentar os problemas históricos que os
envolvem, ainda que de forma superficial e circunscrita ao cenário português de finais do
Setecentos.
O triunfo de uma acepção negativa do termo implicou em uma recusa, por parte da
maioria dos indivíduos que viveram no século XVIII, de se autodenominarem libertinos.
Entretanto, não é possível esquecer que outros, ainda que poucos, o fizeram mesmo assim.
Conforme relato de Antonio da Silva Lisboa, estudante da Universidade de Coimbra e
implicado no processo de 1779, Antonio de Morais e Silva teria lhe dito que era o Pay dos
libertinos (ANTT, proc.2015: 29v). Algumas décadas depois, o próprio Morais e Silva
definiria o libertino da seguinte forma:
Entre os romanos, o filho do Liberto; daquelle, que sendo cativo se forrára;
it. O Liberto. O que sacudiu o jugo da revelação e presume, que a razão só póde
guiar com certeza no que respeita a Deos, á vida futura, &c. fig. o que é licencioso
na vida: neste sentido é moderno(SILVA, 1813: 221).

Dos significados atribuídos à figura do libertino em Portugal, ao final do Setecentos,


este é o que menos deixa transparecer um caráter negativo e pejorativo. Mesmo o ser
licencioso, apontado como um sentido figurado do termo, não é qualificado pejorativamente.
Na verdade, ele se exime de valorá-lo. Isto, de modo algum era a regra, antes a exceção. Não
há, em sua acepção do libertino, o estabelecimento de uma relação direta com uma atitude de
irreligiosidade, embora a referência ao licencioso deixe transparecer a relação com uma vida
dissoluta; com o que excede o que é lícito, e que usa de liberdades não dadas pelas Leis
(Idem, p. 223). O confronto com uma outra definição, muito próxima temporalmente, tornará
mais evidente o que estou dizendo.
Em 1815 era publicado, nas Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, o
Glossário das Palavras e Frases da Língua Franceza. Parte da tentativa desempenhada pela
Academia em criar um glossário de palavras e frases, no qual ficasse explícito quais eram
próprias da língua francesa e que haviam sido introduzidas no português contra o seu antigo e
bom uso, o glossário definia o libertino e a libertinagem, duplamente, como sendo
Vocábulos trazidos do Francez. O uso geral porém os tem adoptado, e não
sem causa, se com elles significarmos a idéa complexa de licenciosidade com
irreligião: homem devasso em costumes, com erradas opiniões religiosas (LUIZ,
1816: 84).

Entre as duas definições apresentadas o descompasso é grande. Morais e Silva,


contudo, não parecia ser um desconhecedor deste último sentido mais usual. A definição que
ele dá para o termo libertinagem o demonstra. Com base no edital censório publicado em
dezembro de 1768 define-o como sendo “o vicio de ser libertino, incrédulo, mal
morigerado” (SILVA, 1813: 221). Esta acepção, como veremos depois, sentira-a
pessoalmente quando foi implicado pela Inquisição em 1779. A sua fuga para Londres, e o
posterior retorno a Portugal, quando se reapresentara ao Tribunal do Santo Ofício, por volta
de 1785, o que resultou na reabertura de seu processo, o atesta.
Os contornos que delineavam as figuras dos libertinos e dos irreligiosos passavam,
muitas das vezes, pela lição de alguns dos filósofos modernos proibidos. As alusões a
Voltaire e Rousseau eram recorrentes. Em seus escritos, verdadeiro “evangelho dos
libertinos” (SILVA, 1787: XIX) para alguns, os preceitos religiosos tradicionais eram
transgredidos e subvertidos mediante o exercício da crítica. A preocupação, de forma alguma,
restringia-se aos Inquisidores. Pelo mesmo período é possível notá-la nos escritos que,
partindo de dimensões religiosas, procuravam refutar os escritos filosóficos circulantes.
Também aqui libertinagem, transgressão dos preceitos católicos tradicionais e irreligiosidade
eram apresentadas como dimensões diretamente relacionadas entre si. O embate entre uma
concepção de religião que nos foi dada a conhecer por Deus, e por isso mesmo,
incompreensível quando apreciada somente pelas fracas luzes da razão humana, e outra cujos
preceitos passavam por uma apreciação crítica e racional encontra-se no cerne deste processo.
Seja como for, o problema, de modo algum, era restrito à esfera religiosa. Os editais régios de
censura o atestam.
Das 17 regras estabelecidas pela Real Mesa Censória para designar quais livros
deviam ser proibidos, uma destacava o caráter pernicioso dos livros tendentes à incredulidade,
à impiedade ou à libertinagem, os quais pretendiam “reduzir a Omnipotencia Divina, e os
seus Misterios, e Prodigios á limitada esfera da comprehensão humana” (Alvará de 1768). A
preocupação persistiu nos anos seguintes. Outros editais foram lançados, todos eles
enfatizando o problema representado pelas ideias libertinas: o edital de 1770, no qual vários
livros foram proibidos, ressaltava que muitos destes escritos, “abomináveis produções da
incredulidade, e da libertinagem de homens temerários, e soberbos, que se denominão
Espíritos Fortes, e se atribuem o especioso titulo de Filósofos”, atacavam os princípios
sagrados da religião, invadiam os sólidos fundamentos do Trono e rompiam os vínculos com
que mutuamente se sustentavam (Edital de 1770).
Cinco anos depois, o mesmo tom emergia de outro edital. Diante da necessidade de
resguardar a fé e preservá-la “do mortífero contagio e dos funestissimos estragos”
ocasionados pelo sistema libertino, era proibida a obra Le vrai sens du Systeme de la Nature
(Edital de 1775). O perigo representado pelos erros dos filósofos libertinos, os quais, em
função do espírito de irreligião, levavam à corrupção dos costumes justificava a proibição.
Libertinagem, irreligiosidade, corrupção dos costumes e desestruturação social
constituíam, pois, esferas diretamente interligadas entre si. Desta forma, ao final do século
XVIII o termo libertino assumiu, em Portugal, uma conotação política (VILLALTA, s/d: 3).
Sendo assim, o libertino/libertinismo entendido, entre outros, como um movimento maior de
crítica à religião, a partir dos novos referenciais filosóficos em voga pela Europa, significaria
um perigo à manutenção da estabilidade do Trono e da sociedade civil. O termo associava-se
a outros: espíritos fortes, filósofos, materialistas, deístas e etc. Mas, em sua maioria, a partir
da conotação maior de irreligiosidade e das implicações que essa postura de irreligiosidade
traria sobre os costumes e sobre a ordem social maior. Predominava assim, uma postura que
vinculava libertinagem de espírito e libertinagem de costume, a partir da qual a lição dos
princípios filosóficos, encarnados em figuras como Rousseau e Voltaire, transgressão dos
preceitos religiosos tradicionais e irreligiosidade apareciam associadas à ideia de corrupção
dos costumes e de vício. No conjunto de definições apresentado acima a de Morais é a que
menos explicita esta vinculação entre a libertinagem de espírito e a de costume: para ele o
libertino seria, entre outros, aquele que se pautava pelo conhecimento racional ao invés da
revelação, aproximando-se com isto de concepções deístas. O que não significa que estivesse
ausente, afinal a licenciosidade era apontada como uma de suas expressões. Mesmo ele
atestaria o caráter pejorativo que pesava sobre a figura do libertino: a sua definição de
libertinagem – o vício de ser libertino e etc – é um exemplo disto.
Por outro lado, não é possível esquecer que em Portugal, paralelo à identificação do
libertino com o espírito forte, situava-se igualmente uma associação do termo a uma atitude
de liberalidade em relação ao sexo, a qual, contudo, não implicava, necessariamente, em um
libertinismo filosófico. Assim, Francisco de Mello Franco, ao destacar a libertinagem que se
propagava no Cristianismo, o fazia a partir de uma acepção que pretendia destacar os
vícios/pecados existentes num sentido basicamente moral: a lascividade (FRANCO, 1794).
Seja como for, não é este sentido do termo que dá vida às preocupações deste trabalho.
Mas aquele que enfatiza uma associação entre livre-pensamento, transgressão dos preceitos
religiosos tradicionais e corrupção dos costumes. Sendo assim, passemos ao processo
inquisitorial de Antônio de Morais e Silva.

O Deísmo e o Santo Ofício

Entre os anos de 1770 e 1780, certa movimentação ideológica com contornos deístas
emergiu, sobretudo, em Coimbra e Lisboa (DIAS,1986: 260). Os processos inquisitoriais dos
estudantes da Universidade de Coimbra em 1779 integram diretamente esta movimentação.
No círculo valenciano situa-se o caso de outro implicado: José Anastácio da Cunha. Em
Lisboa, ao caso de Francisco Manuel do Nascimento, mais conhecido pelo pseudônimo
Filinto Elísio (1778), soma-se o de António Lobo de Carvalho. De forma mais tímida, a
filosofia deísta também se estendeu sobre algumas províncias: em Ponta Delgada, o dr.
Lourenço José de Medeiro da Silva Carreiro, mais ao Norte de Portugal, Manuel Félix de
Negreiros e P. José de S. Bernardino Botelho. Todos os implicados tinham em comum o
apreço por concepções deístas, as quais os teriam levado a assumir posturas heterodoxas do
ponto de vista da religião católica tradicional: defesa de uma religião natural em detrimento
da revelada, crítica e desrespeito aos preceitos religiosos, leitura dos filósofos proibidos e etc.
Em geral, eram todos reputados por libertinos. As lições de Voltaire e de Rousseau, o
exercício de um livre pensar e a adoção de uma postura considerada irreligiosa estavam no
cerne de suas libertinagens.
Estes casos apresentados por Silva Dias demonstram que o movimento não era
totalmente alheio ao cenário português, tal como destacaram alguns historiadores. Basta um
exemplo. Pedro Calafate ao analisar o fenômeno do Iluminismo em Portugal destacou, na
linha de Cabral de Moncada, a sua feição cristã e católica, logo, contrária ao deísmo e ao
materialismo (CALAFATE, 1998: 142). É preciso cautela nestas afirmações. Ou seja, não é
possível conjugar simplesmente todo o processo do Iluminismo português ao projeto
reformista régio e esquecer com isso do movimento de ideias na sociedade. Se as rupturas não
foram amplas, também não foram inexistentes. Os processos contra os supostos deístas é um
exemplo disto.
De qualquer forma, o deísmo não parece ter sido um movimento abrangente e forte em
Portugal. O tema ainda carece de estudos mais aprofundados e de uma incursão maior aos
arquivos inquisitoriais e policiais do período. Sabe-se que foi particularmente forte na
Inglaterra e na França (OUTRAM,1995:34) e que sob a designação “deísta” escondia-se
inúmeras dimensões: a crença em um ser supremo, confiança na razão e na religião natural,
crítica à revelação, à superstição e ao dogma e defesa da tolerância religiosa
(CLARK,1996:191). Se acreditavam em um ser supremo, por outro compartilhavam a crença
de que pouco ou nada poderia ser conhecido do criador, exceto a sua existência
(OUTRAM,1995:34-35). A confiança na razão e na religião natural, por sua vez, traduzia-se
na percepção de que era possível ao homem conhecer a existência divina através das Leis da
Natureza e da razão, deixando de lado a revelação. A revelação divina, portanto, dava lugar ao
exame racional para se chegar a Deus: a Bíblia não bastava mais para provar a existência
deste ser superior, para tal era necessário se aventurar pelas leis da natureza (HANKINS,
1985: 3-6).
Em Portugal, a obra Cartas de certa mai a seu filho argumentava sobre os perigos que
representavam o deísmo. Antes, porém, apresentava o seu sistema. Nele, afirma o autor,
admite-se a existência de um Deus criador, embora não atuante em seu posterior
funcionamento. As suas consequências eram as mais funestas. Destruía-se o culto de Deus, o
temor do castigo ou o desejo de um prêmio futuro. A revelação era menosprezada. Não podia,
pois, ser mais perigoso à religião e ao perfeito ordenamento da sociedade (ROUSSADO,
1786: 100-108).
Foi neste cenário que se desencadeou os processos inquisitoriais contra alguns dos
estudantes da Universidade de Coimbra em 1779. A leitura dos livros filosóficos e a adoção
de posturas consideradas irreligiosas estavam no cerne destes processos, dos quais, inclusive,
fizeram parte indivíduos oriundos da América Portuguesa. Antônio de Morais e Silva era um
deles. Entretanto, não foi sentenciado junto com os seus colegas, o que se deveu a uma fuga
para Londres. Somente em 1785 se apresentou ao Tribunal para confessar as suas culpas, das
quais se dizia arrependido (ANTT, Proc. 2015:38).
Nelas afirmou que durante alguns anos aderira ao deísmo e ao sistema da religião
natural. A leitura de Rousseau e de outros filósofos o havia ministrado estes erros, os quais o
levara a negar inúmeras verdades e crenças da religião católica: tinha por imposturas ou por
obras naturais os milagres, considerava fabulosa a religião revelada, não acreditava na
revelação divina, na existência do inferno, na reparação do gênero humano por Jesus Cristo,
acreditando que Jesus era deus e homem ao mesmo tempo. O que no limite o levara a
questionar a própria autoridade e validade da Bíblia (Idem: 48v-50).
Às críticas aos preceitos católicos não pararam em uma simples ruptura dogmática,
mas foi além e extravasou para o domínio da prática cotidiana. Ou seja, a adesão às novas
doutrinas filosóficas o levara igualmente a romper com as práticas cristãs tradicionais: não
ouvia mais a missa, comia carne em dias proibidos, fingia na prática da confissão e etc (Idem:
40).
Livre-pensar, irreligiosidade e corrupção dos costumes apareciam, pois, como
dimensões diretamente interligadas. Formavam um todo. Isto fica claro do depoimento de
outros estudantes implicados. Desta forma, Antonio Caetano de Freitas ao falar sobre Morais
e Silva, afirmou que sendo ele de “costumes livres” acreditava que era “apartado da crença da
religião católica romana” (Idem: 8). Na base destas acusações, estavam as lições tomadas de
autores proibidos como Rousseau, D’Holbach, Biefield e a subsequente adesão às suas
doutrinas.
Assim, muitos estudantes justificaram os seus erros atribuindo as ideias veiculadas e
as posturas assumidas aos livros lidos. Caberia a eles a responsabilidade sobre as proposições
proferidas (VILLALTA, 1999: 429-435). Nesse sentido, o estudante Nuno de Freitas, preso
pela Inquisição sob a acusação de heresia, reputara à leitura do livro Emílio, de Rousseau, a
culpa por ter posto em dúvida as verdades da religião católica (Idem: 401). Da mesma forma
se pronunciou Antonio de Morais e Silva. Não somente aconselhou ao estudante Vicente Júlio
Fernandes a não ler mais os livros, posto que “lendo os ficava em duvida”, como atribuíra aos
maus livros lidos o aprendizado dos erros que confessara em matéria de religião: a sua leitura
e lição eram reputadas as culpas pelo desrespeito aos preceitos e práticas religiosas (ANTT,
proc. 2015: 5 e 47v). Afinal teria sido a partir do aprendizado de tais doutrinas que começara
a comer carnes em dias proibidos e a não ir mais às missas (Idem: 40). Assim, se aos maus
livros era reservada a responsabilidade pelos erros cometidos em matérias de religião, à
leitura dos bons livros cabia o nobre papel de correção dos ditos erros: somado aos remorsos
de sua consciência e a instrução de um missionário, a “lição e doutrina dos bons livros”
emergia como um dos elementos ativos de sua suposta regeneração (Idem: 54v).
O relato de outro estudante, José Maria da Fonseca, não fugia à regra. Foi a lição de
uma parte do livro de Rousseau que teria lhe ministrado “novos motivos de tibieza na fé”
(DIAS, 1986: 255). A origem de sua desgraça encontrava-se no primeiro ano da
Universidade: foi aí que começara a se familiarizar com as discussões heterodoxas em
matérias de religião, em especial aquelas em torno do deísmo.
O problema de modo algum se restringe ao processo de 1779. A passagem de José
Anastácio da Cunha, então lente de geometria na Universidade de Coimbra, é um outro
indício disto. Da mesma forma que os estudantes, caíra nas malhas do Santo Ofício sob a
acusação de libertinagem. As raízes do processo não estavam em sua atividade universitária,
mas em sua atuação como tenente de Artilharia, entre os anos de 1764 e 1773, no Regimento
da Praça de Valença. Neste caso o acesso às doutrinas consideradas desviantes passava não
somente pela leitura de livros proibidos, como pelo intenso contato com os militares
protestantes estrangeiros, os quais formavam a maioria do Regimento. (FERRO,1987: X-XI).
As suas libertinagens não estavam muito distantes daquelas dos estudantes. Comia
carne em dias proibidos, vivia amancebado, participou de um enterro de um cão, tratava com
abandono a religião católica, transgredindo os seus preceitos e entrando nas igrejas sem
veneração, defendia a tolerância, criticando, por sua vez, a intolerância e etc. O caráter
herético e libertino de seu espírito era provado pelo subsequente desrespeito às coisas
sagradas, materializado, na maioria dos casos, não pelos seus discursos, mas pela vida e
costumes péssimos que publicamente levava.
São claras as correspondências com o processo de Antônio de Morais e Silva.
Compartilham uma mesma ruptura com os preceitos católicos tradicionais mediante a suposta
adesão às doutrinas dos escritos filosóficos proibidos, tais como Rousseau e Voltaire. Assim,
a negação do pecado original ao afirmar, vendo uma gata parir, que também sentia as dores do
parto; a suposição que cometeria o suicídio caso fosse pego pelo Santo Ofício; o ato de comer
carne em dias proibidos pela Igreja; a leitura dos filósofos proibidos e a adesão ao sistema do
deísmo que levara Morais e Silva a refutar a religião revelada, duvidando das verdades das
Escrituras, em detrimento de uma religião natural: todos estes elementos, presentes no
processo do futuro dicionarista, não somente formavam um todo profundamente interligado,
como davam forma à figura do libertino, tal qual entendiam as autoridades régias e
eclesiásticas portuguesas do período. Os elementos poderiam variar entre si, as formas de
negação dos preceitos religiosos tradicionais nem sempre eram idênticas, mas, no geral,
tinham em comum o fato de irem além do permitido e daquilo que era socialmente aceito:
compartilhavam, assim, o ato de falar com extrema liberdade em matérias de religião,
duvidando de suas verdades. O que, por sua vez, era acompanhado pela adoção de
comportamentos considerados socialmente desviantes. Na base de tudo estava a lição de
doutrinas tidas como desviantes.
Desta forma, no cenário de crescente tensão política e doutrinal de finais do século
XVIII era fundamental coibir a difusão destas doutrinas. Posturas libertinas, fossem elas
deístas ou materialistas, deveriam ser combatidas. Nesta tarefa se empenharam não somente o
Santo Ofício, como a Intendência Geral de Polícia e os órgãos responsáveis pela censura
literária. Embora, cumpre dizer, nem sempre com sucesso. A medida em que o século foi
avançando e que a crítica dos filósofos libertinos e irreligiosos deu lugar, para muitos, a
ocorrência da Revolução Francesa, uma necessidade vital passou a informar a política de
repressão às novas ideias críticas e radicais. Mais do que nunca era preciso criar um obstáculo
a estas ideias, resguardando assim o reino de um possível contágio revolucionário.

Referências Bibliográficas

Fontes
Manuscritas
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2015. In:
http://digitarq.dgarq.gov.pt?ID=2301921 capturado em 15 de Outubro de 2009.

Impressas
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www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt , Capturado em 19/01/08.
BERGIER, N-S (Trad. Francisco Coelho da Silva). O deismo refutado por si mesmo. 1787.
Edital de 24 de Setembro de 1770. In: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt , Capturado em 19/01/08.
Edital de 5 de Dezembro de 1775. In: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt, Capturado em 19/01/08.
FRANCO, Francisco de Mello. Medicina Theologica ou Supplica Humilde. Lisboa: Officina
de Antonio Rodrigues Galhardo, 1794.
FERRO, João Pedro (introdução). O processo de José Anastácio da Cunha. Lisboa: Palas
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Bibliografia
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VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América
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______. Libertinagens e livros libertinos no mundo brasileiro (1740-1802). Material inédito,
gentilmente cedido pelo autor.

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