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A Abordagem Evolucionista Do Transtorno Tpas PDF
A Abordagem Evolucionista Do Transtorno Tpas PDF
Artigo de revisão
transtornos mentais podem decorrer de meca- em que os sintomas fazem-se presentes irá
nismos adaptativos que ocorrem num grau exa- depender da forma como tais fatores estão con-
cerbado, outra coisa seria dizer que todos os jugados?
transtornos psiquiátricos expressam adapta- A questão da “seleção dependente de fre-
ções que continuamos a executar no ambiente qüência” é um outro ponto problemático da teo-
atual. Indubitavelmente, esse parece ser um ria de Mealey29. Numa resposta ao artigo de
problema que merece melhores investigações Mealey, Wilson29 sustenta, por exemplo, o fato
no campo da chamada Psicopatologia Evoluci- de que o TPAS, mesmo decorrendo de fatores
onista. exclusivamente genéticos, poderia não ser
No caso específico do TPAS, é preciso con- adaptativo tal com apregoa Mealey (1995)29 e
siderar, por exemplo, o fato de que o transtorno outros autores26. Se considerarmos uma época
não decorre exclusivamente de fatores geneti- remota e pensarmos nas sociedades de coleta
camente determinados. Uma série de pesqui- e caça, é possível constatar que o fato de nos-
sas tem conseguido evidenciar a influência de sos ancestrais terem vivido em pequenos gru-
fatores ambientais no tocante à própria mani- pos fazia com que a manifestação de comporta-
festação do transtorno31. Mealey29, que propõe mentos anti-sociais fosse sinônimo de uma não
um modelo evolucionista integrado para o adaptação muito mais do que é hoje. Ou seja,
TPAS, também considera tais fatores como sen- num ambiente hostil, a coesão grupal mostra-
do importantes. A questão, entretanto, é que a va-se verdadeiramente imprescindível e uma
autora chega a postular a existência de dois reputação negativa tinha, num grupo pequeno,
tipos diferenciados de sociopatia, sendo que um preço bem mais alto que tendia a resultar
haveria um tipo primário e determinado em ter- em exclusão. Onde há exclusão há, com certe-
mos de genótipo e um tipo secundário resultan- za, menos possibilidades reprodutivas. A “sele-
te da influência ambiental. Ou seja, a sociopatia ção dependente de freqüência” é, no tocante a
primária poderia ser explicada dentro de uma muitas espécies, uma fato verificável, mas ela
lógica evolucionista e estaria sujeita a uma “se- só ocorre quando a manifestação de um dado
leção dependente de freqüência” e a sociopatia comportamento, em baixa freqüência, não afeta
secundária seria um quadro gerado por inter- a própria organização intra-grupo. No caso de
médio das interações e vivências que se mos- uma sintomatologia anti-social no ambiente pri-
tram propensas a influenciar a formação da mitivo, mesmo ocorrendo com baixa freqüên-
personalidade. cia, ela afetaria negativamente o mesmo. Por
Percebe-se, dessa forma, que a autora pro- outro lado, poderia ser adaptativa, mas em si-
cura, através de categorizações distintas, abar- tuações anteriores em que houvesse um indivi-
car o fato de que o TPAS não parece decorrer dualismo maior. A agressividade, a rapidez e o
de fatores exclusivamente genéticos. No entan- “sangue frio” do sociopata mostrar-se-iam, nes-
to, se considerarmos uma série de pesquisas se sentido, adequados para enfrentar a hostili-
vinculadas à mensuração do TPAS que vêm dade.
sendo sustentadas pela utilização do PCL-R De outro modo, como explicar a capacida-
(Psychopathy Checklist Revised)33,34, é possí- de que os indivíduos com TPAS possuem para
vel constatar que, de fato, ocorrem diferenças manipular os estados mentais alheios? De um
em termos da manifestação do transtorno, mas modo geral, desenvolveu-se na espécie huma-
são diferenças que se referem ao próprio grau na aquilo que se costuma chamar de “teoria da
em que os sintomas estão presentes. Dito de mente”34. Em outras palavras, uma capacidade
outro modo, uma avaliação mais criteriosa da para inferir sobre os estados mentais alheios
prevalência do TPAS leva-nos a perceber que o favorecida pela evolução. Ao contrário do que
transtorno manifesta-se muito mais em termos apregoam alguns modelos exclusivamente cog-
de um contínuo que abrange situações extre- nitivos que se voltam para o TPAS, os indiví-
mas, bem como situações limítrofes, do que duos com o citado transtorno estão realmente
propriamente em termos de categorias distin- aptos a inferir e manipular as expectativas
tas. Por que deveríamos pensar que existe, no alheias, e isso depende de uma capacidade
que diz respeito a essa distinção gradual, indi- para “teorizar” sobre a mente do outro. No en-
víduos cujos sintomas decorrem exclusivamen- tanto, a questão central vincula-se ao fato de
te de fatores genéticos e outros cujos sintomas que eles utilizam funções adaptativas com ob-
decorrem exclusivamente de fatores ambien- jetivos decorrentes de sintomas não adaptati-
tais? Não seria mais plausível pensarmos que o vos. A “teoria da mente” pode realmente ser
mesmo transtorno vincula-se a fatores tanto uma capacidade fomentada pela evolução, mas
82 ambientais como genéticos, sendo que o grau os indivíduos com TPAS diferem-se dos demais
pelo fato de utilizarem essa mesma capacidade sociedade em que nossos ancestrais passaram
de um modo que vai ao encontro do próprio a viver após o advento de uma maior capacida-
quadro disfuncional que neles está presente. de intelectual na espécie. De acordo com inú-
Ou seja, inferem sobre os estados mentais meros estudiosos da evolução do intelecto36, o
alheios com o propósito de obter ganhos exclu- seu desenvolvimento foi fomentado pela pró-
sivamente pessoais, tendo em vista que não pria conivência na esfera social. Uma convivên-
estão mentalmente propensos a contabilizar os cia que também esteve encarregada de sele-
ganhos sociais indiretos que o comportamento cionar repertórios comportamentais que se
altruísta pode gerar. Nesse sentido, alguns pos- mostraram mais adequados. O fato de que um
tulados da Psicologia Evolucionista podem ser repertório comportamental tenha sido privilegi-
elucidativos para uma melhor compreensão do ado ao longo do processo evolutivo não signifi-
TPAS; em contrapartida, isso não nos leva, ca, entretanto, que qualquer outro tenha sido
necessariamente, a acreditar que o transtorno extinto. A ocorrência do TPAS pode, nesse âm-
seja uma adaptação e, menos ainda, uma adap- bito, resultar de uma combinação de fatores
tação que se mostrou, ao longo da nossa histó- ambientais com genótipos que vêm sendo
ria evolutiva, dependente da sua freqüência. transmitidos ao longo da nossa história evoluti-
A questão de uma base genética para o va, ainda que os “designs psíquicos” por eles
TPAS realmente nos faz pensar que a sua ocor- sustentados nunca tenham representado uma
rência esteja atrelada a uma lógica evolutiva. O adaptação social no seu verdadeiro sentido.
problema é que essa lógica pode ter operado De outro modo, é também preciso conside-
muito antes de termos nos tornado o que so- rar o fato de que a abordagem evolucionista
mos. Os fatores biológicos propriamente ditos sobre o TPAS ainda poderá mostrar-se bastan-
podem, nesse sentido, ter sido bem mais atuan- te elucidativa, na medida em que os entendi-
tes do que são hoje. Dito de outro modo, desen- mentos sobre a função do comportamento al-
volveu-se, na espécie humana, uma ampla ca- truísta na esfera social forem ampliados. Nesse
pacidade representacional capaz de conferir sentido, revelar-se-ão pertinentes estudos que
novas orientações para tendências que outrora abordem a filogênese de alguns valores morais
foram o resultado exclusivo de regularidades e sociais amplamente sustentados ao longo da
endócrinas e fisiológicas. nossa história, ainda que, para tanto, seja sem-
Na medida em que acabamos desenvol- pre necessário levar em consideração as pró-
vendo uma sofisticação cognitiva largamente prias influências culturais. A Psicologia Evolu-
capacitada para processar informações am- cionista pode explicitar melhor as raízes de
bientais e alocá-las, gerando formas específi- alguns valores socialmente aceitos, sem que
cas de interagir, deixamos de ser aquilo que a isso signifique reduzi-los a uma compreensão
genética determina, ainda que nunca tenhamos exclusivamente biológica. Nesse sentido, faz-
deixado de receber as suas influências. Nesses se ainda necessário um maior entendimento
termos, o TPAS pode ter decorrido, num passa- sobre os indivíduos que se mostram propensos
do bastante remoto, exclusivamente de um de- a infringir as regras básicas de convivência e a
terminismo biológico e, nesse sentido, alguns agirem em desacordo com os próprios valores
entendimentos mencionados são válidos. Por referidos. Uma melhor compreensão dos mui-
outro lado, seria difícil designarmos a sua ocor- tos comportamentos que podem ou não ser
rência como um transtorno propriamente dito e considerados adaptativos ao longo da nossa
mais difícil ainda classificá-lo como “anti-so- história pode, por si só, vir a esclarecer uma
cial”. Em pesquisas realizadas, por exemplo, série de sintomas vinculados ao TPAS e, desse
com macacos Rhesus sabe-se que a simples modo, ainda que os estudos mencionados te-
alteração dos níveis de testosterona é, por si nham sustentado argumentos questionáveis, ti-
só, capaz de gerar comportamentos anti-so- veram o mérito de provocar reflexões oportu-
ciais35. No entanto, será que podemos dizer que nas.
esses animais e uma série de primatas não-
humanos, no pleno sentido do termo, vivem em CONCLUSÕES
sociedade?
De um modo geral, essa discussão mostra- Até o presente momento, a etiologia do
se bastante ampla. No entanto, a funcionalida- TPAS não foi devidamente esclarecida e uma
de do próprio comportamento altruísta sugere série de pesquisas tem mostrado a possibilida-
que a manifestação de comportamentos anti- de de que esta seja melhor explicada em ter-
sociais não pode ser considerada adaptativa, mos de uma combinação de fatores37. De outro
seja na sociedade em que vivemos, seja na modo, um entendimento sobre a filogênese do 83
transtorno deve levar em conta o fato de que a 9. Ellis BJ, Ketelaar T. Clarifying the foundations of evoluti-
onary psychology: a reply to Lloyd an Felman. Psychol
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to, não parece ser o caso do TPAS. O transtor- 13. Wright R. O Animal Moral – Por que somos como somos:
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como um design biológico selecionado para
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uma exclusiva obtenção de vantagens diretas, mind designed better than it is? Br J Med Psychology
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canismos neurocognitivos que lhe dão susten- 17. Stalenheim EG, von Knorring L, Oreland L. Platelet mo-
noamine oxidase activity as a biological marker in a Swe-
tação poderá, de outra forma, vir a ser dish forensic psychiatric population. Psychiatry Res 1997;
esclarecedora para uma série de sintomas do 69: 79-87.
TPAS. Nesses termos, poderá ser melhor com- 18. Von Knorring L, Orleand L, Winblad B. Personality traits
preendida a notória incapacidade que os indiví- related to monoamine oxidase (MAO) in platelets.
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duos portadores do transtorno possuem para 19. Damasio AR., Trandel D, Damásio H. Individuals with
gerar atitudes pró-sociais. Faz-se necessário, sociopathic behavior caused by frontal damage fail to
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sobre o próprio caráter não adaptativo dos sin-
20. Bechara A, Damásio AR, Damásio H, Anderson SW.
tomas que perfazem o transtorno, tendo em Insensivity to future consequences folowing damage to
vista que este, ao contrário do que sustentam human prefrontal córtex. Cognition 1994; 50: 7-15.
alguns autores26-29, não demonstra ser um tipo 21. Bechara A, Damasio H, Damsio AR, Lee GP. Different
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