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A etnoarqueologia brasileira contemporanea: cultura material

e implicações sociais

Rita Juliana Soares Poloni


Universidade do Algarve (UAlg)
julianapoloni@hotmail.com

RESUMEN
O objectivo do presente trabalho é investigar as opções teórico-metodológicas de algumas teses de Mes-
trado e Doutoramento em Etnoarqueologia, realizadas no Brasil a partir da década de 80 do século XX
de forma a propor um quadro de caracterização desse campo científico no cenário brasileiro contempo-
râneo que leve em conta sua relação com a sociedade civil bem como as implicações socio-políticas des-
sas pesquisas.

Palabras clave:
Etnoarqueologia; Arqueologia; Teoria; Métodos; Sociedade; Brasil.

ABSTRACT
The aim of the present work is to ivestigate theoretical and methodological options of some masters and
doctoral theses in Ethnoarchaeology held in Brazil from the 80s of the twentieth century in order to pro-
pose a characterization framework of this scientific field in the Brazilian contemporary scenario consi-
dering their relationship with civil society as well as the socio-political implications of such research.

Keywords:
Ethnoarchaeology; Archaeology; Theory; Methods; Society; Brazil.

RESUM
L’objectiu d’aquest treball és investigar les opinions teòriques i metodològiques d’alguns Màsters i Tesis
Doctorals en Etnoarqueologia, realitzats al Brazil a partir de la dècada dels 80 del segle XX, per tal de pro-
posar un quadre de caracterització del camp científic a l’escenari brasiler contemporani, que tingui en
compte la seva relació amb la societat civil així com les implicacions sociopolítiques de tals recerques..

Paraules Clau:
Etnoarqueologia; Arqueologia; Teoria; Mètodes; Societat; Brazil.

INTRODUÇÃO coloniais, chamada a dialogar com estes uni-


O Brasil é uma Nação que tem a questão étnica versos culturais, e o faz, no decorrer do tempo,
como componente ideológico de entendimento sob diferentes perspectivas.
de sua própria identidade. Fortemente marcada
pela presença de etnias indígenas, africanas e Particularmente, a partir da década de 80,
europeias, esta Nação se vê, desde os tempos quando o Brasil passa a mergulhar no contexto

Rebut: 1 septembre 2010; Acceptat: 1 decembre 2010

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da redemocratização pós Ditadura Militar (1985-1989). A partir daí, dá-se início a uma
(1964- 1985) tais questões passam a tomar um retomada dos temas humanistas, sobretudo
novo fôlego e a ser amplamente (re)discutidas aqueles ligados aos estudos dos grupos subal-
não só em âmbito científico, mas também nas ternos e à preservação do património cultural
esferas políticas e sociais desse país. brasileiro. Assim, vários estados e municípios,
em todo o Brasil, começam a introduzir leis de
Torna-se, então, interessante questionar de que protecção de vestígios arqueológicos, enquanto
forma a Etnoarqueologia, enquanto campo te- os arqueólogos voltam-se pela primeira vez,
órico-metodológico da Arqueologia por defini- para a pesquisa do grupo étnico mulato e rea-
ção relacionado ao estudo de grupos indígenas cendem-se as pesquisas a respeito dos africa-
contemporâneos, é recebida pelo universo cien- nos, dos indígenas e de outros grupos étnicos
tífico brasileiro a partir da década de 80. Da brasileiros (FUNARI, 2002:144).
mesma forma, torna-se igualmente importante
acompanhar como esta abordagem arqueoló-
gica tem tomado dimensão social e política na Por outro lado, a temática indígena, que é foco
actualidade, ou seja, como tal universo teórico- prioritário da Etnoarqueologia no Brasil, passa
científico imbrica-se com as questões étnico- a ter a seu dispor centenas de ONG´s, que são,
sociais que suscita, sua penetração no seio da por sua vez, compostas por inúmeros cientis-
sociedade como instrumento de questionamen- tas de áreas como a geografia, sociologia, his-
tos a respeito desse tema. tória, ciências políticas, e a arqueologia, além
de advogados, indigenistas, ambientalistas,
Nesse sentido, tentar-se-á perceber aproxima- entre outros, e é evidente que os princípios
ções e distanciamentos entre as perspectivas te- científicos, teóricos, e filosóficos de suas áreas
órico-metodológicas de algumas teses de de actuação, são inevitavelmente trazidos para
Mestrado e Doutoramento em Etnoarqueolo- o trabalho de actuação social que realizam, e
gia, realizadas no Brasil e enquadradas no pe- que, para além disso, muitos textos e pesquisas
ríodo histórico abordado, de forma a propor um são por eles produzidos no exercício de suas
quadro de caracterização desse campo cienti- actividades nesses organismos.
fico no cenário brasileiro contemporâneo.
Dessa forma, não nos podemos abster de ad-
Por outro lado, tal teorização servirá como base mitir que, no contexto no qual emergiram as
para uma análise ao mesmo tempo histórica e contingências que impulsionaram determina-
teórica da Etnoarqueologia no Brasil, que pro- dos investigadores a dedicarem seus trabalhos
curará demonstrar não só os aspectos nos quais às questões étnicas ou a grupos étnicos, estão
tais trabalhos têm mais se desenvolvido mas contidas, certamente, questões manifestas ou
também a relação que tais tendências têm com constituídas em meio a essa efervescência so-
a sociedade científica e civil nas quais se inse- cial, política e científica na qual se insere tais
rem, bem como as implicações sócio-politicas questões no Brasil contemporâneo. Por outro
dessas pesquisas. lado, não só as investigações nascem de tal
contexto social, como se tornam substrato a
A REDEMOCRATIZAÇAO E OS MOVI- partir do qual a sociedade alimenta essas dis-
MENTOS SOCIAIS cussões, possibilitando que mais investigações
Em 1985, a Ditadura Militar brasileira chega surjam a partir daí.
ao fim, dando lugar a um novo regime demo-
crático, iniciado pelo governo de José Sarney

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CARACTERIZAÇÃO TEÓRICO METO- na totalidade das pesquisas estudadas, a fim de


DOLÓGICA DA ETNOARQUEOLOGIA estabelecer comparações entre essas pesquisas,
BRASILEIRA a respeito das presenças e ausências de enfo-
Com o objectivo de buscar traçar parâmetros que nos tópicos escolhidos.
de compreensão que ajudem a responder de
que forma o trabalho em Etnoarqueologia se Parte desses marcadores ou questões foram ex-
tem desenvolvido no Brasil no contexto pós a traídos do livro “Ethnoarchaeology in Action”
Ditadura Militar, seus contornos próprios, seus (David; Kramer 2001:70), particularmente do
horizontes, foram escolhidas para esta pesquisa terceiro capítulo desse livro, intitulado “Field-
sete teses científicas, sendo quatro de Mestrado work and Ethics”, e dizem respeito aos aspec-
e três de Doutorado, escritas entre os anos de tos metodológicos e técnicos do trabalho em
1993 até 2007. São elas, respectivamente, Sem Etnoarqueologia considerados como necessá-
Tekohá não há Tekó: Em Busca de um Modelo rios para o desenvolvimento de pesquisas den-
Etnoarqueológico da Aldeia e da Subsistência tro desse campo teórico, e que, portanto,
Guarani e sua Aplicação a uma Área de Do- deveriam estar claramente definidos nesses tra-
mínio no Delta do Rio Jacuí-RS (1993), A Pro- balhos. Tais tópicos são assim descritos:
dução Cerâmica como Reafirmação de
Identidade Étnica Maxakali: Um Estudo Etno- Sobre o contexto da Pesquisa foram identifica-
arqueológico (1999), Cenários da Ocupação dos a localização e contexto histórico e cultu-
Guarani na Calha do Alto Paraná: um Estudo ral do grupo estudado, o contexto político da
Etnoarqueológico (2001), Organização e Uso pesquisa, incluindo situação do pesquisador,
do Espaço em duas Aldeias Xerente: Uma condições de financiamento e duração do tra-
Abordagem Etnoarqueológica (2003), A Tec- balho de campo e os conhecimentos do inves-
nologia e seus Significados. Um Estudo da Ce- tigador, incluindo competências linguísticas,
râmica dos Asuriní do Xingu e da Cestaria dos conhecimento do grupo a ser pesquisado e da
Kayapó-Xikrin sob uma Perspectiva Etnoar- sua linguagem.
queológica (2000), Etnoarqueologia dos Gra-
fismos Kaigang: Um Modelo para a Sobre os métodos etnográficos e técnicas utili-
Compreensão das Sociedades Proto-Jê Meri- zadas foram analisadas a amostragem do grupo
dionais (2001) e Os caçadores Ceramistas do com suas estratégias, número de povoações, fa-
Sertão Paulista: Um Estudo Etnoarqueológico mílias ou indivíduos escolhidos e representa-
da Ocupação Kaingang no Vale do Rio ções de classe, posições sociais, status, papéis
Feio/Aguapeí (2007). A escolha destas pesqui- ou géneros.
sas se deu conforme critérios de visibilidade
quanto à sua divulgação científica, e clara ma- Acerca dos Métodos de Pesquisa buscou-se
nifestação de enquadramento dentro dos uni- identificar se haviam utilizado observação par-
versos teóricos e metodológicos da ticipante, entrevistas, questionários ou outros
Etnoarqueologia. tipos, incluindo reconstituições e experiências.

Como forma de interpretação das teses e dis- Quanto aos assistentes (remunerados) procu-
sertações escolhidas, foram utilizados alguns rou-se perceber as suas qualificações e relacio-
marcadores ou questões, que serviram de orien- namento com os informantes. Já acerca desses
tadores de análise desses trabalhos, ou seja, de- últimos investigou-se suas categorias e formas
finiram os conteúdos a serem pesquisados no de recompensas.
texto, buscando equiparar os objectos de estudo

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Finalmente quanto aos registos, buscou-se terísticas marcantes da Etnoarqueologia brasi-


identificar se haviam sido feitos sob a forma de leira contemporânea, sendo a primeira destas
materiais escritos, fotografias, registos visuais sua aproximação com a Etno-História, bus-
e sonoros, materiais etnográficos, e outras cando, por um lado, reconstituir trajectórias
amostras de material, com informações sobre históricas dos povos indígenas estudados, en-
localização e acesso. fatizando suas próprias características culturais,
seus caminhos e opções; e por outro, pondo a
A esses tópicos foram acrescentados mais al- claro interferências, limitações e transforma-
guns, de minha própria elaboração, concernen- ções ocorridas a partir do contacto com a so-
tes aos aspectos teóricos dos trabalhos ciedade nacional.
analisados e que buscaram, além de tentar per-
ceber as preferências teóricas desses trabalhos, Assim, há uma nítida e manifesta preocupação
detectar o grau de explicitação e de importân- em tornar claro ao leitor que essas sociedades
cia dada a esses aspectos nessas pesquisas. São possuem suas próprias lógicas e histórias que
eles: não são em nada inferiores às da sociedade na-
cional, mas, ao contrário, que por detrás dos
O contexto teórico da pesquisa, incluindo as objectos que produzem, e da sua forma de in-
opções teóricas perceptíveis (Processualismo, terferirem no meio circundante, há uma riqueza
Contextualismo, ambos universos teóricos, ou- cultural e uma complexidade cognitiva e signi-
tros universos teóricos ou indefinida), o grau ficativa em nada menos complexa que aquela
de explicitação teórica (se directa ou indirecta) através das quais manifesta-se nossa própria
e as referências teóricas no texto (se directas, sociedade, embora seja, naturalmente, profun-
indirectas ou ausentes). damente diferente do modo de vida ocidental.

Dessa forma foi possível traçar algumas carac- A intensidade dos componentes histórico-cul-

Figura 1.- Relação de cada uma das teses estudadas com o peso do contexto histórico no conjunto do
texto e com as opções teóricas declaradas pelos autores.

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turais na construção dessas teses percebe-se ao modo geral.


compararmos a relação entre o número de pá-
ginas totais dos textos em si e as páginas dedi- Entrar em contacto com povos que ainda hoje
cadas a essa temática. Nota-se que mesmo vivem sob lógicas sociais e culturais, em
apesar de variações significativas entre as teses grande parte diversas da cultura homogenei-
no que diz respeito ao item analisado, a pre- zante da sociedade Ocidental, cada vez mais
sença da reconstituição histórica e cultural nes- globalizada é ter a oportunidade de estabelecer
sas pesquisas, é, de modo geral, bastante forte. critérios comparativos a respeito da relação
(Fig. 1) entre o homem e o seu meio circundante, do
universo ideológico que envolve tal relação e
Como segunda característica marcante das pes- das lógicas inerentes aos processos de produ-
quisas em Etnoarqueologia no Brasil é possí- ção artefactual humana. Tais informações
vel assinalar a preferência pelos temas dos podem ampliar o campo de visão do arqueó-
povos nativos indígenas. A totalidade dos tra- logo e propor novas abordagens interpretativas
balhos estudados foca seus estudos em aspec- do tempo/espaço que estudam, novas analogias
tos da cultura material de povos indígenas ampliadoras dos múltiplos sentidos, finalida-
brasileiros. des e funcionalidades dessa produção material.

Tal preferência justifica-se pelos mais variados A terceira característica da Etnoarqueologia


motivos, desde motivações de cunho pessoal, brasileira refere-se à tendência de enquadra-
trabalhos de outros pesquisadores que desper- mento teórico dentro dos horizontes científicos
taram interesse pelo tema, contacto com tribos do Pós-Processualismo. Muito embora as dis-
indígenas, interesse em conhecer esses povos cussões de ordem teórica, algumas vezes, não
mais profundamente, até questões de ordem apareçam claramente definidas nos textos, quer
científica, como carência de informações e pes- em relação às diversas visões teóricas da Ar-
quisas a respeito de determinado povo ou queologia, quer em relação aos diferentes en-
mesmo questões de cunho político e social, quadramentos teóricos específicos da
como a urgência em estudar determinadas re- Etnoarqueologia, e algumas outras vezes se-
giões ou povos a serem perturbados por em- quer está claramente definida as opções teóri-
preendimentos de infra-estrutura a serem cas adoptadas pelo autor no desenvolvimento
erigidos em seus locais tradicionais de vivên- de seu estudo, em inúmeros momentos ao
cia. longo dos textos lidos, percebe-se a preocupa-
ção dos autores em destacar a importância das
O fato é que parece evidente que o poder inter- especificidades culturais e históricas e dos con-
pretativo da Etnoarqueologia indígena nativa é textos ideacionais, na produção artefactual hu-
de importância fundamental não só para a so- mana.
ciedade brasileira, em seu processo de auto
conhecimento, a partir dos povos e etnias que a Em boa parte dos trabalhos há mesmo como
constituem, mas também para os próprios objectivo do próprio estudo buscar compreen-
povos estudados, através da visibilidade e do der relações entre cultura, formas de pensa-
poder de penetração desses estudos na reafir- mento, e a produção material dos povos
mação de sua identidade, sua importância e estudados, e, muito embora, nem sempre esses
seus direitos no interior da comunidade nacio- objectivos sejam claramente alcançados, é pos-
nal. Entretanto, da mesma forma são de imensa sível perceber que os autores têm preocupação
importância para a própria Arqueologia de em discutir a necessidade de ultrapassar a busca

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por tipologias ou por determinantes ecológicos, analisadas neste estudo tenham recorrido a tra-
no estudo da realidade artefactual dos povos es- balho de campo, alguns trabalhos não conta-
tudados e de perceber os componentes de es- ram com esse importante recurso em sua
pecificidade, de escolha e de condicionamentos elaboração, sendo realizados tendo como refe-
subjectivos no modo de produzir e de viver rência escavações arqueológicas, ou documen-
dessas comunidades. Muito embora contemple tos a esse respeito, e pesquisas em trabalhos de
somente as opções explícitas dos autores Etnologia e História Indígena, somente. (Fig.
quanto ao posicionamento teórico de seus es- 2)
tudos, nota-se a preferência por essa visão cien-
tífica ainda na figura 1. Este é um dado preocupante porque, se os do-
cumentos provenientes de escavações arqueo-
Como quarta característica desse campo teó- lógicas podem fornecer informações a respeitos
rico no Brasil é possível apontar uma ainda não dos artefactos produzidos por esses povos, não
total abrangência de trabalhos de campo feitos é possível visualizar os actores a produzi-los,
efectivamente para o estudo e sob as perspec- seus discursos, seus condicionantes sociais e
tivas da Etnoarqueologia, ou seja, pesquisas de culturais, todo o processo que envolve o fazer,
cunho etnográfico, realizadas sob o enfoque te- o fabricar, o pensar acerca desses artefactos e as
órico Arqueológico, visando observar, com- múltiplas relações existentes entre as condicio-
preender e descrever as tramas nas quais se nantes ecológicas e ideacionais que envolvem
envolvem todo o processo de produção arte- todo esse processo.
factual dos povos a serem pesquisados.
Por outro lado, a análise dos trabalhos em Et-
Nota-se que, embora a maioria das pesquisas nologia realizados a respeito dos povos cuja Et-

Figura 2.- Análise da qualidade do trabalho de campo realizado em cada uma das teses estudadas.

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noarqueologia procura-se construir, pode des- status, papéis ou géneros, a utilização de assis-
crever-nos a cor da vivência desenvolvida por tentes, as qualificações e relacionamento desses
este povo em relação a si próprio e ao meio no com os informantes da comunidade estudada,
qual se insere. Pode esclarecer a respeito de bem como conhecimentos do investigador, in-
suas crenças, festas, rituais, condicionantes so- cluindo seus conhecimentos culturais acerca do
ciais, relações de poder e muitos outros aspec- grupo a ser pesquisado e da sua língua rara-
tos, mas raramente o etnólogo tem seu olhar mente aparecem explicitados nos textos, en-
voltado para os processos que culminam em quanto as condições de financiamento e a
produção material, efectivamente. Se é possí- duração do trabalho de campo, embora apare-
vel, e mesmo certo, que a produção artefactual çam nos textos, nem sempre são descritas com
desses povos apareça em meio aos aspectos a clareza e com o destaque que mereceriam.
analisados nesses trabalhos, este não é o foco
de estudo desses pesquisadores, que têm seu Assim, na análise das pesquisas, podemos per-
olhar voltado para outras relações e aspectos, e ceber, em parte, suas carências quanto aos as-
tais descrições têm pouca possibilidade de pectos aqui relacionados. Muito embora os
constituírem material para analogias arqueoló- dados estudados só contemplem os itens que
gicas com a mesma profundidade e riqueza constam ou não dos trabalhos, excluindo seu
com que uma descrição etnográfica voltada grau de clareza, nota-se, ainda na figura 2, a
efectivamente para os processos que envolvem falta de atenção dada a tais questões.
a produção artefactual desses povos.
Já quanto a descrição do trabalho de campo,
Por outro lado, não basta que esses trabalhos esta aparece, muitas vezes, confundida com as
de campo sejam realizados pelo Etnoarqueó- interpretações do próprio autor ou de outros,
logo, é preciso também que se possa “visuali- utilizados como fontes de pesquisa, a respeito
zar” aquilo que o Etnoarqueólogo assistiu em dos aspectos analisados no texto. Em raros tra-
seu trabalho de campo, perceber quando, em balhos há uma perfeita clareza com relação às
que circunstâncias, sob que condições, por partes do texto que constituem descrição de ac-
quem e por que, as actividades produtivas ções observadas ou discursos proferidos pelos
foram realizadas. informantes ou assistentes que auxiliaram a
execução da pesquisa, com devida definição
Em torno de tal temática é que se insere uma dos actores, e dos contextos que envolvem tais
quinta característica da Etnoarqueologia brasi- acções ou discursos, ou com a transcrição lite-
leira, apreendida a partir dos textos aqui anali- ral de declarações, histórias, diálogos, devida-
sados: a falta de clareza a respeito dos Métodos mente identificados e contextualizados no
Etnográficos e da descrição dos trabalhos de texto.
campo realizados pelos pesquisadores. Muito
embora em alguns poucos trabalhos tais aspec- Tal preocupação é, entretanto, essencial para
tos e procedimentos estejam claramente des- que o leitor possa, dessa forma, “visualizar” e
critos e identificados, na maioria deles há “ouvir” os actores, e possa perceber não só em
grandes dúvidas a respeito desses pontos. que ponto começa a interpretação do pesquisa-
dor acerca do que viu e ouviu, mas também os
Os dados a respeito da amostragem do grupo condicionantes que envolvem essas descrições
escolhido para a pesquisa, as estratégias, o nú- e declarações.
mero de povoações, famílias ou indivíduos, a
sua representação de classes, posições sociais, Assim, é possível não só dar ao leitor a oportu-

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nidade de tecer suas próprias interpretações contemporânea.


tendo como base as descrições e declarações
obtidas em campo, como também perceber, de CONCLUSÕES: CIÊNCIA E CONDICIO-
forma mais clara as percepções e interpretações NAMENTOS SOCIAIS
obtidas pelo pesquisador a partir de tais dados. A Etnoarqueologia, como ciência que busca al-
Além disso, passa a ser possível ponderar as cançar conhecimento arqueológico através de
circunstâncias nas quais se inserem as acções estudos de cunho etnográfico, não pode se abs-
descritas e as declarações obtidas, bem como ter do facto de que para além de construir con-
perceber em que posição social se incluem, de hecimentos abstractos a respeito da trajectória
forma a gerar dados mais específicos, com humana e de sua produção artefactual/cultural,
maior poder interpretativo em relação às ana- está a tratar de questões que dizem respeito à
logias que podem daí surgir. história e à cultura de povos contemporâneos,
que podem ter nessas informações, subsídios
É evidente, entretanto, que tais ausências não para a defesa dos direitos que buscam alcançar
inviabilizam o poder explicativo dos processos na sociedade nacional.
produtivos que constituem objectivos dessas
pesquisas e que caracterizam somente a opção Neste ponto a Etnoarqueologia brasileira não
por uma perspectiva descritiva mais próxima tem se posto a parte das urgências das questões
do discurso histórico que propriamente etno- por ela levantadas a respeito dos povos indíge-
gráfico ou arqueológico, o que talvez se explica nas brasileiros, e se mantém fortemente pre-
pelo próprio cariz da arqueologia relacionada sente, no decorrer das pesquisas aqui
com os grupos indígenas no Brasil, globali- analisadas, não só para denunciar as situações
zante, buscando reconstruir uma trajectória cul- de dominação e de colonização sofridas pelos
tural e ecológica desses povos num povos pesquisados no decorrer de suas histó-
tempo/espaço entrecortado pela colonização rias, como as necessidades e reivindicações
europeia da América e pelo surgimento da desses povos no presente.
nação brasileira.
Mas novas contingências apontam para o alar-
Por fim há que se destacar que as ausências e gamento dos horizontes desse campo científico
permanências no fazer científico da Etnoar- no Brasil. Outros grupos étnicos, que também
queologia brasileira aqui discutidos, não abar- constituem comunidades em maior ou menor
cam a totalidade das características desse grau afastadas das lógicas culturais da socie-
campo científico no Brasil, uma vez que a ciên- dade ocidental também possuem grande po-
cia é feita por um grupo específico com lógicas tencial científico na busca de analogias
próprias que é, por sua vez, formada por pes- arqueológicas. Além disso também possuem
soas singulares, com visões particularmente grande potencial socio-político como partici-
únicas da ciência e do mundo. Princípio que se pantes na trama étnico-cultural que constitui o
aplica não só aos investigadores, mas também povo brasileiro e tomam cada vez mais visibi-
àqueles que lêem seus escritos e os interpretam, lidade no cenário nacional, despertando aten-
não significando críticas à forma como tal ção para o estudo de suas trajectórias históricas
campo científico se desenvolve nesse país, mas e culturais e para o discutir de suas lógicas, vi-
tão somente a busca por uma caracterização da sões de mundo e reivindicações.
Etnoarqueologia aí praticada, dentro das pos-
sibilidades e opções nas quais se insere não só Em particular, destaca-se a importância das co-
a Arqueologia, mas toda a sociedade brasileira munidades Quilombolas (Quilombo -lugar es-

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condido ou fortificado em que se refugiavam cultural e que o olhar desse cientista deve estar
escravos fugidos) no alertar para o reescrever sempre preparado para observar os povos que
de uma história que não aponte somente para a estuda, não só pela perspectiva das tipologias,
dominação e a escravidão de povos africanos dos fósseis-directores, enfim, das semelhanças
no Brasil, mas também para formas de luta e e permanências; mas também para perceber as
de resistência, na tentativa de preservação de culturas que estuda, como elementos que são
um modo de vida alternativo às imposições das compostos de pluralidades e que se transfor-
elites dominantes. mam no tempo.

Além disso, outras perspectivas de análise da A cerca disso, fala-nos Solange Schiavetto, em
produção científica nos confrontam com ainda seu livro “A arqueologia Guarani. Construção
outros desafios. Joaquín Herrera Flores (2006) e desconstrução da identidade indígena”:
nos alerta acerca de nossa visão cultural ho-
mogénea sobre nós mesmos e sobre os outros, “Não se trata de simplesmente desvincular cul-
incapaz de ver os multiculturalismos presentes tura material e grupos étnicos, dizendo, por
em qualquer comunidade humana e cegos tanto exemplo, que os Guarani pré-históricos nada
para os nossos defeitos quanto para as qualida- tem a ver com os Guarani conhecidos ou com
des do “outro” no conviver com grupos cultu- os actuais (…) Tratar-se, ao contrário, de acei-
rais diferentes. tar a possibilidade de os grupos étnicos serem
vistos como entidades dotadas de um carácter
O combate a tal perspectiva toma uma dimen- situacional e fluído, repensando as tradições e
são importante em duas vertentes. Em termos sub tradições utilizadas na arqueologia até o
de posicionamento ético não só desafia cientis- momento” (Schiavetto 2003:101).
tas de todas as áreas, mas toda a sociedade, a
desenvolver um olhar polissémico acerca do Ora, tal questão não abarca somente a Cultura
“outro”, que seja capaz, não só de relativizar Guarani, mas todas as culturas estudadas cien-
nossos próprios princípios e visões acerca do tificamente, bem como a Cultura daqueles que
mundo - de perceber que não são os únicos as estudam, e é preciso que tenhamos o cuidado
possíveis, e que não são homogéneos, mesmo de perceber tais questões, mesmo que elas nos
no interior da nossa sociedade - mas também levem a repensar os objectivos de nossos tra-
de perceber que os modos de viver diferentes balhos, a buscar novas vias e novos questiona-
das outras sociedades, não significam que essas mentos, que nos levem a ampliar os olhares e
sejam inferiores, exóticos ou desprezíveis, mas os horizontes dos estudos que se referem a gru-
que são outras visões, igualmente válidas e com pos étnicos em todas as partes do mundo, e em
valor equiparável às nossas próprias, e que, especial, no Brasil.
para além disso, essas outras sociedades tam-
bém não são, elas próprias, homogéneas, e que Trata-se de abordar, nos estudos étnicos, entre
há diferenças no interior de todos os grupos hu- os quais os Etnoarqueológicos, a fluidez de
manos. todas as culturas, sua não homogeneidade -
quer interna, quer histórica - e ver a cultura sob
Em termos de posicionamento científico, ofe- uma perspectiva mais humanizada, mais atenta
rece ao Etnoarqueólogo um desafio e uma im- a própria natureza humana em seu viés auto-
portante crítica: é preciso estar atento para o transformador e por isso mesmo também trans-
fato de que o seu trabalho não deve servir de formador do ambiente - quer físico, quer social
substrato para esse tipo de homogeneização - no qual se insere. Acerca disso ainda nos fala

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Schiavetto: ções sejam reavaliadas, ou que simplesmente


possamos admitir nossos limites na análise de
“Ao definir uma “cultura arqueológica” com determinado objecto.
base nos traços materiais das sociedades indí-
genas, cria-se por meio da delimitação con- Enfim, que tenhamos como horizonte teórico e
ceitual, categorias imutáveis, seguindo social da Etnoarqueologia brasileira, o com-
padrões de vida social (assentamento, religião, promisso de contribuirmos, para, nas palavras
adaptação ao meio, confecção de cultura ma- de Cornelius Castoriadis, apreendidas por Joa-
terial) cujas variantes culturais acabam por ser quín Herrera Flores, combater “a essencial in-
“mascaradas pela busca de uma grande nação convertibilidade do Outro” (Flores 2006:34),
guarani” (…) Dessa forma, o guarani foi, no ou seja, superarmos uma visão estreita das ou-
decorrer da história do pensamento arqueoló- tras culturas, que nos impede de nos converter-
gico, incessantemente criado por arqueólogos mos nos “outros” ou de convertê-los em nós
(…)” (Schiavetto 2003:119). mesmos, de percebermos o quanto nenhuma
cultura é homogénea ou superior, de quão mul-
É claro que não se trata de desvalorizar a im- ticultural e polissémico todos nós somos, e
portância das categorias para a Arqueologia e como as estranhezas de outras culturas se apro-
para o estudo do Homem em sua relação com ximam das nossas próprias, e de, assim, poder-
seu meio circundante, tanto humano quanto na- mos fazer uma ciência mais próxima do
tural, tanto quanto também não se trata de es- quotidiano que a inspira e a constitui, quer atra-
quecermos que, em última instância, qualquer vés de seus agentes, quer através dos seus ob-
estudo é uma construção, uma visão de um jectos.
cientista e de uma ciência acerca de seu ob-
jecto, e que independente da abrangência e do AGRADECIMENTOS
enfoque escolhido, o discurso que se constrói O problema central deste artigo relaciona-se às
acerca dele nunca abrangerá a sua complexi- perspectivas abordadas em minha dissertação
dade por completo. de Mestrado, defendida em Maio de 2008 na
Universidade do Algarve, Portugal, e resultado
Trata-se, entretanto, de termos a consciência de de uma cooperação entre esta Universidade,
que as categorias que escolhemos analisar nos através da orientação do Prof. Dr. Nuno Bicho,
trabalhos em Arqueologia, e em especial nos e da UNICAMP, através da orientação do Prof.
estudos Etnoarqueológicos, não podem servir Dr. Pedro Paulo Abreu Funari, aos quais agra-
para subjugar as diferenças, ou para ignorá-las, deço profundamente pela constante disponibi-
obrigando o quotidiano estudado a forçosa- lidade e pelos importantes direccionamentos
mente ser compatível com as categorias estu- nesta minha incursão pelos horizontes científi-
dadas, quando nos deparamos com situações cos da Etnoarqueologia.
que ponham em questão nossas escolhas e clas-
sificações, mas de admitirmos que as teorias, BIBLIOGRAFIA
métodos e técnicas que usamos nos trabalhos FUNARI, P. P. A. (2002). Desaparecimento e
científicos são somente opções de análise e ân- emergência dos grupos subordinados na Ar-
gulos de visão de uma realidade cuja comple- queologia Brasileira. Horizontes Antropoló-
xidade nunca poderá ser completamente gico, 18, 131-154. São Paulo.
percebida, e de que não podemos sujeitar essa
complexidade às nossas opções de análise MOI, F. P. (2003). Organização e Uso do Es-
quando a realidade nos impõe que nossas op- paço em duas Aldeias Xerente: Uma Aborda-

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