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VIII CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE

A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO:


ABEH E A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO DE PESQUISA E
CONHECIMENTO:DESAFIOS E POTENCIALIDADES DE NOS RE-INVENTARMOS

Organizadores:
Anderson Ferrari (UFJF) | Roney Polato de Castro (UFJF)

O conselho editorial

Alexsandro Rodrigues (UFES) Leandro Colling (UFBA)


Anderson Ferrari (UFJF) Ludmila Mourão (UFJF)
André Sidnei Musskopf (Faculdades EST) Marcelo Tavares Natividade (UFC)
Berenice Bento (UFRN) Marcio Caetano (FURG)
Bruna Andrade (UFJF) Marcos Lopes de Souza (UESB)
Cláudia Lahni (UFJF) Maria Rita César (UFPR)
Claudia Maria Ribeiro (UFLA)  Mário Lugarinho (USP)
Constantina Xavier Filha (UFMS) Paula Ribeiro (FURG)
Daniela Auad (UFJF) Paula Sandrine Machado (UFRGS)
Djalma Thürler (UFBA) Paulo César García (UNEB)
Edvaldo Couto (UFBA) Priscila Dornelles (UFRB)
Eliane Borges Berutti (UERJ) Raquel Quadrado (FURG)
Emerson Inácio (USP) Raquel Quirino (UFMG) -
Erica Souza (UFMG) Roney Polato de Castro (UFJF) 
Fátima Lima (UFRJ) Rosalinda Carneiro (UFJF)
Fernando Pocahy (UERJ) Sandra Duarte de Souza (Universidade
Fernando Seffner (UFRGS) Metodista de São Paulo)
Jaqueline Gomes de Jesus  Silvana Goellner (UFRGS) 
Jamil Cabral Sierra (UFPR) Suely Messeder (UNEB) 
Joanalira Magalhães (FURG) Wiliam Siqueira Peres (Unesp)
João Bôsco Hora Góis (UFF) Wilton Garcia (UBC)
Juliana Perucchi (UFJF)
Anderson Ferrari
Roney Polato de Castro
(Organizadores)

2017
REALIZE EVENTOS CIENTÍFICOS & EDITORA LTDA.
Rua: Aristídes Lobo, 331 - São José - Campina Grande/PB | CEP: 58400-384
E-mail: contato@portalrealize.com.br | Telefone: (83) 3322-3222

Sobre o ebook

Design da Capa Luiz Felipe de Oliveira Ramos


Projeto Gráfico e Editoração Jefferson Ricardo Lima Araujo

C39 VIII CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DIVERSIDADE


SEXUAL E DE GÊNERO: ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e
Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos [Livro eletrônico].
Anderson Ferrari (UFJF) / Roney Polato de Castro (UFJF) (Organizadores).
Campina Grande: Realize Editora, 2017.
20000 kb. 1677 p.: il.

ISBN EBOOK 978-85-61702-44-1

1. Diversidade sexual. 2. Gêneros. 3. Sexualidade. 4. Cibertecnologias da


sexualidade na sociabilidade online. 5. Parada LGBT. 6. Congresso.

21. ed. CDD 305.3


APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

ARTEFATOS CULTURAIS, NARRATIVAS E CORPORALIDADES:


ABORDAGENS, TRANSGRESSÕES E RESISTÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

EDUCAÇÃO, POLÍTICAS, DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO . . . . 403

GÊNEROS, SEXUALIDADES, MULTIPLICIDADES, (MICRO)


POLÍTICAS, PERFORMANCES E PRÁTICAS DISCURSIVAS. . . . . . . . . . . . . . 804

PÔSTER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1404

RELATOS DE EXPERIÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1465


ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

APRESENTAÇÃO

Anderson Ferrari
Roney Polato de Castro

Este E-book é resultado do VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a


Diversidade Sexual e de Gênero que tinha como subtítulo a provocação “desa-
fios e potencialidades de nos (re)inventarmos”. Assumimos que se trata de uma
“provocação” porque queremos tensionar o que vem sendo produzido como
campo dos estudos gays e Lésbicos, LGBTT ou queer, em suas diferentes arti-
culações com os conhecimentos e movimentos sociais e políticos, entendendo
que este é um espaço de disputa, de luta e de construção coletiva que se dá
no processo interminável de olhar para os diferentes modos de se e estar no
mundo. Podemos dizer que estamos atravessando momentos de muitas mudan-
ças, conflitos, transformações, negociações e confrontos que estão intervindo
na sociedade, na cultura, na sexualidade e nas maneiras de ver, pensar e lidar
com as diversidades sexuais e de gênero. Tudo muito perturbador se conside-
rarmos que muitas situações, códigos, identidades e modos de ser permanecem
sem mudanças apesar do franco crescimento da produção de conhecimento
que estamos atravessando. Daí a provocação de acolher trabalhos que dão for-
mas as subjetividades, as experiências e os atravessamentos entre produção de
conhecimento e sujeitos.
O VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e
de Gênero, com o tema “ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e
Conhecimentos: desafios e potencialidades de nos (re)inventarmos” manteve
a periodicidade dos eventos bienais promovidos pela Associação Brasileira de
Estudos da Homocultura - ABEH.
A ABEH é uma entidade sem fins lucrativos que tem como principal pro-
posta fomentar e realizar intercâmbios e pesquisas sobre a diversidade sexual
e de gênero. Ela congrega professores/as, alunos/as de graduação e pós-gra-
duação, profissionais, pesquisadores/as, ativistas e demais interessados/as nas
temáticas das sexualidades e gêneros. De 1999 a 2001, Mario César Lugarinho,

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 6 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) até 2007 e, atualmente,


professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de
São Paulo (USP) e, in memoriam, José Carlos Barcellos, na época professor de
Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense (UFF), organizaram,
em Niterói/RJ, três encontros científicos anuais em torno do tema “Literatura e
Homoerotismo”, a partir dos quais, em 2001, foi fundada a ABEH. Os encon-
tros de Niterói congregaram cerca de 70 pesquisadores doutores, brasileiros e
estrangeiros, com o objetivo de promover e difundir pensamentos críticos sobre
a diversidade sexual e de gênero. A partir daquele primeiro encontro entre os
pesquisadores da área de Letras, na UFF, os incentivos aos estudos e às pesqui-
sas da temática tiveram ascensão em diferentes áreas de conhecimento, dando
visibilidade às expressões e discursos sobre as sexualidades e gêneros não nor-
mativas/os no Brasil e no exterior.
A cada dois anos o Congresso Internacional de Estudos sobre a diver-
sidade sexual e de gênero da ABEH vem congregando pesquisadores(as)
brasileiros(as) e de outras nacionalidades, concretizando-se como oportuni-
dade de intercâmbios e enriquecimentos para o trabalho científico. No seu VIII
Congresso Internacional, queremos fortalecer este compromisso, buscando reu-
nir um número significativo de trabalhos acadêmico-científicos e experiências,
que versem sobre diferentes áreas do conhecimento em torno das discussões da
diversidade sexual e de gênero. Constituída por profissionais associados a ins-
tituições públicas de ensino e pesquisa sediadas no estado de Minas Gerais, o
Estado recebe o evento da ABEH pela segunda vez, concentrando as atividades
na Universidade Federal de Juiz de Fora.

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 7 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ARTEFATOS CULTURAIS,
NARRATIVAS E CORPORALIDADES:
ABORDAGENS, TRANSGRESSÕES E
RESISTÊNCIAS

ISBN 978-85-61702-44-1
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

SUMÁRIO

ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE


HEGEMÔNICA E SUA REPRESENTAÇÃO NOS COMICS NORTEAMERICANOS.. . 14
Jairo Barduni Filho

SPOTLIGHT - SEGREDOS REVELADOS. O CINEMA E A OPORTUNIDADE DE


PROBLEMATIZAÇÕES NA ESCOLA.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Jairo Barduni Filho

O SWING ON LINE: UM ESTUDO SOBRE O SEXLOG . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30


Edson Vasconcelos

“VESTIDO NUEVO”: NOVAS PROBLEMATIZAÇÕES DE VELHOS PADRÕES DE


SILENCIAMENTOS DAS SEXUALIDADES INFANTIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
Carla Silva Machado | Carolina Alves Magaldi

IDENTIDADES E IMAGINÁRIOS EM APLICATIVOS DE ENCONTROS GAYS. . . . . . . . 46


Venan Lucas de Oliveira Alencar

DESCONSTRUINDO ESTEREÓTIPOS GAYS: ANÁLISE DE VÍDEO DO


CANAL PÕE NA RODA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
Robson Evangelista dos Santos Filho | Mariana Ramalho Procópio

“COMO ESQUECER”: UMA REFLEXÃO SOBRE HOMOSSEXUALIDADE NO


CINEMA BRASILEIRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Yarle Ramalho dos Santos | Marcus Antônio Assis Lima

CENAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE: BREVE LEVANTAMENTO


NA REVISTA NOVA ESCOLA E NO JORNAL O GLOBO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
Raquel Pinho | Rachel Pulcino | Felipe Bastos

POR UM POUCO MAIS DE SAL: ALGUMAS LEITURAS


SOBRE A LESBIANDADE NOS UNIVERSOS DE CAROL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Mariana Souza Paim

VIII Congresso Internacional


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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

(RE)CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO E


DAS CORPORALIDADES EM A PELE QUE HABITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Vivian da Veiga Silva | Ana Maria Gomes

INFLUÊNCIAS TECNOLÓGICAS E SUAS CONTRIBUIÇÕES NA


CONSTITUIÇÃO DE CIBERESPAÇOS LGBT EM UBERLÂNDIA (MG). . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Bruno de Freitas | Beatriz Ribeiro Soares

“CURTO MACHO NO SIGILO”: A HETERONORMATIVIDADE NO


GRINDR E NO SCRUFF EM POLOS CRIATIVOS DO RIO DE JANEIRO. . . . . . . . . . . . . 102
Diego Santos Vieira de Jesus

AS CIBERTECNOLOGIAS DA SEXUALIDADE NA SOCIABILIDADE


ONLINE DAS JOVENS ESTUDANTES NA CONTEMPORANEIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Luíza Cristina Silva Silva

PODER SIMBÓLICO E POLITIZAÇÃO: A VISIBILIDADE DAS


MASCULINIDADES NO FILME MILK.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
José Guilherme de Oliveira Freitas | Leticia Calhau Freitas
Leyse Monick França Nascimento

MULHERES PIONEIRAS NA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125


Daniela Teixeira Rezende | Raquel Quirino

LINGUAGEM E PRAZER ATRAVÉS DA QUARTA-PAREDE VIRTUAL:


PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA EM PERFORMANCES
DISCURSIVO-SEXUAIS NA REDE SOCIAL ADULTA CAM4® . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
Eduardo Espíndola Braud Martins

VELHOS E VELHICES EM LAMPIÃO DA ESQUINA E SUI GENERIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144


Fábio Ronaldo da Silva

“PARA FAZER PENSAR E ENTRETER”: A PRODUÇÃO DE CORPOS,


SUJEITOS E MASCULINIDADES HOMOSSEXUAIS NA REVISTA JUNIOR. . . . . . . . . . 152
Filipe Gabriel Ribeiro França

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Sexual e de gênero
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GÊNERO E SEXUALIDADE: A CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADES


GAYS NA REVISTA G MAGAZINE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
Gerferson Damasceno Costa

CUERPOS EN CONSTRUCCIÓN: REPRESENTACIONES DE HOMBRES


GAY EN LA LITERATURA SALVADOREÑA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
Amaral Palevi Gómez Arévalo

CONTATOS EFÊMEROS SEM AMANHÃ: VOZES MARGINAIS, CORPOS


VENDIDOS E PERFORMANCES SEXUAIS NEGOCIADAS NA FICÇÃO
CURTA HOMOERÓTICA DE GASPARINO DAMATA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
Dorinaldo dos Santos Nascimento

ALISON BECHDEL E A DESCOBERTA DE SI EM FUN HOME . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185


Francine Natasha Alves de Oliveira | Luciana Freesz

SEM-VERGONHICES, DISCARAÇÕES E SAFADEZAS


NA OBRA DE MARCELINO FREIRE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Helder Thiago Maia

PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO EM O PRIMEIRO HOMEM MAU . . . . . . . . . . . . . . . 202


Maria Eugênia Bonocore Morais

REPRESENTAÇÕES DA MASCULINIDADE LÉSBICA: IDENTIDADE E


SEXUALIDADE EM ALGUNS CONTOS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS. . . . . . 210
Mariana Chaves Petersen

ENCENANDO A HOMOSSEXUALIDADE: LEITURA DA FICCIONALIZAÇÃO


DE SI EM A SEPARAÇÃO DE DOIS ESPOSOS, DE QORPO SANTO. . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
Renata Pimentel | Sherry Almeida

BIOGRAFEMAS HOMOCULTURAIS NO ROMANCE A TRAIÇÃO DE RITA


HAYWORTH, DE MANUEL PUIG. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
Elisabete Costa Silva | André Luis Mitidieri Pereira

HELENO E OS “ESTRANHOS” EM NOSSOS OSSOS, DE MARCELINO FREIRE . . 235


Guilherme Augusto da Silva Gomes

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FICCIONALIZAÇÃO DE SI: UMA ESTRATÉGIA DE (RE)VELAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244


Renata Pimentel | Sherry Almeida

A PUBLICIDADE E AS QUESTÕES SOBRE DIVERSIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253


Cláudia Regina Lahni | Denise Teresinha da Silva

RECONFIGURAÇÕES PARENTAIS NO CINEMA BRASILEIRO: REPRESENTAÇÃO


DE FAMÍLIA HOMOAFETIVA NO CURTA METRAGEM “CAFÉ COM LEITE” . . . . . . 261
Elias Santos Serejo

A SEXUALIDADE NA POESIA DE NATAN BARRETO: UM RECORTE . . . . . . . . . . . . . . . . . 269


Rose Mary Abrão Nascif

“NÃO ME INCOMODA, MAS...”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 276


Camille Roberta Balestieri | Lia Maria Manso Siqueira

HOMOEROTISMO EM TERÇA-FEIRA GORDA, DE CAIO FERNANDO ABREU . . 287


Jaqueline Ferreira Borges

A MULHER (OU QUASE) MAIS AUTÊNTICA DE ALMODÓVAR: ANÁLISE DA


PERSONAGEM AGRADO NO FILME TODO SOBRE MI MADRE (1999). . . . . . . . . . . . 293
Moraima Aparecida Anastácio Vilela de Melo | Márcio Antonio de Souza Maciel

O FACEBOOK E O WHATSAPP COMO FERRAMENTAS METODOLÓGICAS. . . . . 302


Isabella Tymburibá Elian | Niúra Ferreira e Barbosa

CULTURA GAY, MULTIDÃO E ORGULHO: OS SIGNIFICADOS POLÍTICOS


DA PARADA LGBT NAS PÁGINAS DA REVISTA SUI GENERIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310
Remom Matheus Bortolozzi | Rodrigo Cruz

EXPERIÊNCIAS DE TRANSIÇÃO DE GÊNERO EM VÍDEOS NO YOUTUBE:


A INTERNET COMO ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
Hellena Bonocore Morais | Alice Lopes Fagundes | Marlene Neves Strey (Orientadora)

O CU LARGO E A BOCA SUJA DO BREVIÁRIO DE PORNOGRAFIA


ESQUISOTRANS PARA AS PESSOAS DO AVESSO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328
Fernando Henrique

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NOTAS SOBRE UMA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ENTRE EVENTOS


INTERACIONAIS NA ESCOLA E NA WEB 2.0. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
Thayse Figueira Guimarães

A CIRCULAÇÃO DE SIGNOS IDENTITÁRIOS DE RAÇA EM PRÁTICAS


DISCURSIVAS NA WEB 2.0. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
Thayse Figueira Guimarães

TRANS* FORMAÇÕES DO CORPO FEMININO NAS WEBCOMICS. . . . . . . . . . . . . . . . . . 354


Keila Henriques Vieira

PANORAMA DAS PROTAGONISTAS TRAVESTIS NA PROSA BRASILEIRA


DO SÉCULO XX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 362
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes

SERÁ A VISIBILIDADE DIGITAL UM NOVO TIPO DE CONFISSÃO OU


UMA FORMA DE RESISTÊNCIA?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370
João Barreto da Fonseca

QUE VOZES ESCUTAMOS EM “TRAVELLING” DE ANA C. CESAR? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 378


Vivian Steinberg

RUIVA: QUESTÕES DE CORPO, GÊNERO E PERFORMANCE NA


HETERONORMATIVIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
Fellip Agner Trindade Andrade

EU SOU O QUE VOCÊ PODERIA CHAMAR DE UMA MULHER DE PÊNIS. . . . . . . . 394


Ailton Dias de Melo

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ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A CONSTRUÇÃO


DA MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E SUA
REPRESENTAÇÃO NOS COMICS NORTEAMERICANOS.

Jairo Barduni Filho


Doutorando em Educação
Universidade Federal de Juiz de Fora
rfbarduni@yahoo.com.br

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

Este artigo apresenta brevemente as contribuições teóricas a respeito da cons-


trução da masculinidade hegemônica e não hegemônica em Connell (1995;
2013), Guash (2006) e outros pesquisadores que se aproximam a este debate.
Enfatizo suscintamente a discussão da masculinidade hegemônica com a repre-
sentação deste modelo hegemônico nos comics americanos de meados do
século XX. As histórias em quadrinhos fizeram e ainda fazem parte da cultura
juvenil enquanto um artefato pedagógico de internalização deste modelo hege-
mônico masculino, atravessando gerações e sobrevivendo e reinventando seus
super-heróis porém, buscando a manutenção da representação dos atributos do
hegemônico masculino como: virilidade, força, postura ativa, discreto e com-
portamento ético e generoso.
Palavras-chave: Homens, masculinidade hegemônica; construção social mas-
culina; super-heróis; virilidade.

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Introdução

Este artigo é uma escrita do doutorado no qual tenho a construção das mas-
culinidades como análise e questionamento como, por exemplo: Quais são os
elementos que constituem a masculinidade hegemônica? É uma indagação que
penso ser parcialmente contemplada pelos autores elencados para este artigo.

Algumas considerações a respeito da masculinidade hegemônica

Desde já, é necessário ressaltar que a compreensão do termo masculini-


dades no plural tem haver com seu aspecto relacional, e, este é um conceito
defendido por pesquisadores do campo das masculinidades, deste modo:
A masculinidade é uma configuração prática em torno da posição
de homens na estrutura da relação de gênero. Existe, normalmente,
mais de uma configuração deste tipo em qualquer ordem de gênero
de uma sociedade. Em reconhecimento deste fato, tem se tornado
comum falar de “masculinidades”. Existe o perigo, nesse uso, de
que possamos pensar no gênero simplesmente como um pou-
t-pourri de identidades e estilos de vida relacionados ao consumo.
Por isso, é importante sempre lembrar as relações de poder que
estão aí envolvidas (CONNEL, 1995, p.188).

A pluralidade das masculinidades é uma realidade possível de ser


encontrada em sociedades complexas já que como diz Guash (2006): “en las
sociedades complejas, existen masculinidades hegemónicas y outras que son
subalternas” (p.24). Tanto Guash (2006) como Connell (1995; 2013) defendem
que a masculinidade não deve ser pensada como uma essência, um axioma ou
uma naturalização só porque se nasce portador da genitália masculina.
Esses autores fazem a crítica a este tipo de certeza e de defesa pelo bio-
logicamente edificado que é o que se encontra por detrás da ideologia do
patriarcalismo, da misoginia, da homofobia, enfim, de uma masculinidade hege-
mônica, lembrando que, como aponta Guash (2006): “La masculinidad es una
forma de género. Y el género es estructura social” (p.16).
E, sabemos que a masculinidade enquanto essência está no cotidiano
como uma força adensada pelas instituições sociais, mas claro, esta deve ser
pensada no plural, pois, a masculinidade é um jogo de negociações cotidianas
no aproximar ou afastar do modelo hegemônico.

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A masculinidade hegemônica é um dos tipos de masculinidades existen-


tes na sociedade, Connel (1995; 2013) é um dos precursores na investigação
deste tipo de masculinidade que teve seu desenvolvimento em países como:
Austrália, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos. Estes são possuidores de uma
tradição nos estudos das masculinidades. A masculinidade ganhou espaço com
os estudos sociológicos e no tocante as pesquisas já realizadas sobre a mascu-
linidade hegemônica:
Podemos razoavelmente concluir que a análise das múltiplas mas-
culinidades e o conceito de masculinidade hegemônica serviram
como quadro para muitos dos esforços das pesquisas em desenvol-
vimento sobre homens e masculinidade, substituindo a teoria do
papel sexual e os modelos categoriais da psiquiatria. (CONNELL,
1995, p.247).

Além disso, Connell (1995), diz que um dos elementos que contribuiu
para o rompimento do essencialismo da masculinidade foi o fato de investiga-
dores encontrarem a masculinidade em corpos femininos, ou seja, traços de
masculinidade presente no gênero feminino. Por esta razão:
A masculinidade não é uma entidade fixa encarnada no corpo ou
nos traços da personalidade dos indivíduos. As masculinidades
são configurações de práticas que são realizadas na ação social e,
dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de
gênero em um cenário social particular. (CONNELL, 1995, p.250).

Connell (1995) cita pesquisas que buscam desmistificar a reificação de


uma masculinidade hegemônica na sociedade, dizendo que não se trata apenas
de um poder dos homens sobre as mulheres, de não simplificarmos a relação
como um poder opressor de gêneros, pois, é preciso levar em consideração
as institucionalizações que favorecem as desigualdades de gênero que relacio-
nam aspectos de raça, classe etc. A cultura institucional do machismo colabora
em julgar o que é prejudicial para a imagem hegemônica masculina (principal-
mente de tudo que se aproxima ao universo do feminino e consequentemente
da homossexualidade). Trata-se de uma cultura que tem por rotina evitar esse
universo feminino em prol da aprendizagem social de ser macho.

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Um poder institucional que funciona como substrato para esta aprendiza-


gem, produzindo uma ordem social vigente arquitetada e favorável a um tipo
de construção social.
La masculinidad es una forma de identidad social y personal que
regula las relaciones con los demàs y que se aprende en los pro-
cesos de socialización. La masculinidad es un proceso social,
emocional y subjetivo. Es social porque tiene que ver con algo que
se adquiere. Las personas no nacen masculinas ni femininas, apren-
den a serlo. Es emocional porque tiene que ver con cómo sienten
las personas (aunque luego inviertan tiempo y energía en racionali-
zarlo). Y es subjetiva porque está condicionada por las experiencias
personales. (GUASH, 2006, p.29 - 30).

E, é fundamental lembrar que, a masculinidade tal como conhecemos


é típica do ocidente, é um conceito nosso, porém, temos de reconhecer que
existam ritos e provas de virilidade em diversos lugares dessa aldeia global cha-
mada terra, por isso, como aponta Guash (2006), de forma alguma podemos
aplicar esse conceito tal como ele é pensado por nós ocidentais, ou teorizado
para outros contextos continentais aleatoriamente sem as devidas precauções. É
um projeto de gênero que segundo Connell (2013), deve ser pensado de forma
mais ampla de modo a compreendermos como a capacidade reprodutiva e
diferenças de gênero são trazidas para a prática social, ou seja, como viven-
ciamos estas construções sociais que impactam com a nossa relação com os
corpos, assim, o autor frisa que “Nós vivenciamos as masculinidades (em parte)
como certas tensões musculares, posturas, habilidades físicas, formas de nos
movimentar, e assim por diante” (p.189).
Connell (2013), alerta para o equívoco de analisar as relações de gênero
como dicotômicas e aponta que ao olharmos para tais relações, devemos
buscar a complexidade que existe em cada contexto, esse cuidado trás uma
interessante contribuição para os estudos das masculinidades, o fato de que
diferentes masculinidades são construídas dentro do mesmo contexto, assim, é
possível pensarmos que dentro de uma mesma instituição escolar, por exem-
plo, ocorram modos diversos de apresentar a masculinidade, pode haver o tipo
hegemônico, o cúmplice e o marginalizado. E, o autor também alerta para a
contradição da masculinidade já que é possível encontrarmos a masculinidade
presente em mulheres como a feminilidade presente em homens e este é o
caráter que torna o gênero uma categoria histórica e mutante.

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O processo de construção da masculinidade hegemônica está relacionado


ao gosto e manuseio de jogos de aventura, imagens e gosto pelos super-he-
róis, paixão e afinidade com a bola de futebol, um jogo para uma biografia de
sucesso. A virilidade está presente nas disputas violentas no futebol, nas con-
quistas amorosas, no trabalho e claro, na família e casa, isto tudo é aquilo que
Connell (2013) chama de uma política de lobby das armas, na qual, a produção
midiática possui enorme participação nesta construção.
Ademais, o mundo de uma masculinidade exemplar se organiza por regras
e códigos aprendidos desde tenra infância. Como afirma Connell (2013), este
movimento produz enquanto custo pela repressão de sentimentos e consequen-
temente, numa dificuldade masculina nas relações com as mulheres e, creio eu,
também com os próprios homens.

Soldados e super-heróis em quadrinhos, imagens de virilidade.

As representações da masculinidade hegemônica nos quadrinhos me cha-


mam a atenção, a iconografia dos quadrinhos norte americanos servem para
mascarar a realidade de uma sociedade fragmentada que deve reforçar a ideo-
logia de um corpo forte e moralidade masculina impecável.
Los años de la guerra y las postrimerías de la década de los cuarenta
fueron la época de esplendor de estos cómics, y se convirtieron en
una verdadeira instituición cultural de tal importancia que ningún
americano menor de sesenta años ha crecido sin leer las peripecias
de algunos de estos personagens (CORTÉS, 2004, p.168).

Segundo Cortés (2004) “...estas historias dibujadas se convirtieron, durante


La Depresión Económica Americana, en el entretenimiento más barato y popu-
lar de los ciudadanos de aquel país” (p.165).
A figura do herói é algo visto com bons olhos pelo público masculino que
se espelha nos atos de bravura, nos riscos enfrentados, representantes da pátria
e liberdade no mundo, homens encarnando o bem e o ideal de uma masculi-
nidade hegemônica, como o superman, o herói cotidiano que ajuda oferece a
vida para salvar sua pátria num abrir de camisa.
As lutas dos quadrinhos se configuram como uma guerra entre o bem e
o mal, seria o momento auge para a masculinidade hegemônica – heroica agir,
contexto perfeito para se fazer história já que conjuga elementos de provas das

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quais o homem pode sair vitorioso e ser admirado na vitória por uma nação,
salvando o mundo das agruras do inimigo.
A representação do heróis cotidianos os heróis de guerra como, por
exemplo, foram os (pracinhas brasileiros) ou os fictícios super-heróis (símbolos
do americanismo liberal) possuindo em comuns elementos necessários para a
construção da masculinidade hegemônica. Por isso, é importante quando se
pensa na construção da masculinidade, lembrar que este modelo ideal repre-
senta o capitalismo estadunidense e que, antes mesmo dos Comics de 40, e até
antes da I Guerra Mundial, já havia aparecido no campo da literatura juvenil
norte americana. Personagens voltados à construção masculina, respondiam
ao dilema da virilidade moderna após o sufrágio feminino. (BANDITER, 1993).
Esses heróis reforçavam uma identidade masculina de virilidade como Tarzan
e os Cowboys, personagens que carregam uma generosa carga de virilidade e
aventura em seus corpos fortes. Ambos os heróis são apresentados em ima-
gens por estética da masculinidade essência, uma relação de simbiose entre
o humano e a natureza, de dominação dos animais no dia a dia de trabalho
(Cowboy) e da natureza selvagem (Tarzan).
Por outro lado, Connell (2013) destaca que, as masculinidades cowboys
de fronteiras tem desafiado o modelo de masculinidade racionalizante, eco-
nômico e industrial capitalista norte americanas, a masculinidade fascista,
desafiante e violenta das metrópoles é chamada pelo autor de masculinidades
tipo “cowboys” de fronteiras.
O Tarzan e os cowboys foram alguns dos primeiros heróis a se destacar
em filmes e revistinhas cómics. Eles exaltam a virilidade e relação entre o ser
humano, o animal e a natureza selvagem domada, um exemplo talvez de como
o homem pode e deve ter domínio de seus sentimentos “naturalmente” violen-
tos. Com o Superman, se introduz a dupla identidade clássica, um super-herói
que desabrocha de Clark Kent, sujeito comum que trabalha como repórter na
redação do Planeta Diário. Clark é o homem comum que se tornam um ícone
dos atributos para os homens do mundo, tendo em vista que ele representa
o homem branco, bonito, heterossexual, discreto e de caráter politicamente
versado pela nobreza. Segundo Cortés (2004) “es un dios hecho hombre, un
extraterrestre que tiene en un reportero del Daily Planet, Clark Kent, a su alter
ego”. (p.166).
Clark Kent incorpora a característica interclassista que Guash (2006)
aponta como fazendo parte da masculinidade heroica em nossa sociedade,

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pois, o herói pode bem ser o soldado, o guerreiro mítico, mas também o obreiro,
o tipógrafo, o investigador, o redator de um jornal estudantil, o pai, o homem
comum em seu cotidiano que sempre está disposto a ajudar e a contribuir
socialmente pela liberdade, pela paz mundial e cidadania agindo dentro dos
valores sociais em comunidade.
Lembrando que o interclassismo como elemento da masculinidade heroica
já fora percebido em outros momentos de nossa sociedade como na socie-
dade nazista, sendo um traço importante deste regime, no qual, Cortés (2006),
aponta que, analisando as pinturas e esculturas da época dessa sociedade, é
possível identificar que os personagens fundamentalmente representados eram,
“el obrero, el agricultor y el soldado” (CORTÉS, 2006, p.114), estes seriam as
colunas do estado nazi e uniam os elementos da terra e sangue.

Considerações finais

A masculinidade hegemônica é uma construção e não uma essência que


Connell, Guash, Cortés destacam os elementos que favorecem na constituição
desta produção social.

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Referências

BANDITER, Elisabeth. XY La identidad masculina. Alianza Editorial, S.A; Madrid,


1993.

CONNELL, R. Políticas da masculinidade. In Educação & Realidade. Rio de Janeiro,


1995. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1224 acesso em 17
de jun de 2016.

CONNELL, R. & MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repen-


sando o conceito. Ver. Estud. Fem [online]. 2013, vol.21, n.1. Disponível in: https://
periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2013000100014 acesso em
17 de jun de 2016.

CORTÉS, José Miguel G. Hombres de marmól: códigos de representación y estraté-


gias de poder de la masculinidad. Editorial: Egales – Barcelona. Madri, 2004.

FERNANDES, Sandra. Foucault, A experiência da amizade. In: JÚNIOR, Durval Muniz


de Albuquerque, NETO-VEIGA Alfredo e FILHO Alípio de Souza (org). Cartografias
de Foucault, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. Pgs 377-392 (Coleção Estudos
Foucaultianos).

GUASH, Oscar. Héroes, científicos, heterossexuales y gays. Los varones en perspec-


tiva de género. Edicions: Bellaterra, S.L. Barcelona, 2006.

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SPOTLIGHT - SEGREDOS REVELADOS. O CINEMA E A


OPORTUNIDADE DE PROBLEMATIZAÇÕES NA ESCOLA.

Jairo Barduni Filho


Doutorando em Educação
Universidade Federal de Juiz de Fora
rfbarduni@yahoo.com.br

GT 22 - Educação, religião e direitos humanos: diálogos interdisciplinares sobre a


diversidade sexual e de gênero.

Resumo

Este artigo aborda brevemente a possibilidade de relação entre cinema e educa-


ção. O interesse veio após assistir o filme norteamericano ganhador do último
oscar de melhor filme Spotlight – segredos revelados, um longa que conta a
saga de uma equipe de jornalistas buscando desvendar os escândalos de abu-
sos sexuais/pedofilia em Boston (EUA). O filme, baseado em uma história real,
foi inspirado no livro publicado pela equipe que viveu a história e ganhou o
prêmio pulitzer de literatura de 2003. O roteiro deste filme favorece problema-
tizações em torno da religião, masculinidade, sexualidade potencializados pelo
conceito de modos de endereçamento de Elisabeth Ellsworth (2001) e que creio
ser um material pedagógico para se discutir esses temas tabus na escola e na
sociedade.
Palavras-chave: Spotlight-segredos revelados; cinema; educação; igreja cató-
lica; abusos sexuais;

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Introdução

Este artigo surge como uma vontade e curiosidade de escrever breve-


mente sobre o abuso sexual dentro da igreja como uma problemática e um tabu
social. O tema é abordado no roteiro do filme Spotlight: segredos revelados,
que enxergo como possibilidade de significação do roteiro pelos telespectado-
res enquanto modos de endereçamento estabelecido na relação entre direção
e telespectador, este jogo entre quem produz o filme e quem assiste me parece
favorável quando pensamos em problematizar e alterar nossos esquemas de
pensamento cristalizados.

Spotlight e revelações sombrias da igreja católica.

O filme Spotlight: segredos


revelados apresenta um roteiro de
drama e suspense ambientado na
cidade de Boston - Estados Unidos
da América em 2001. Trata-se
de um ano em que eclodem
escândalos sexuais de pedofilia,
acobertadas pela igreja católica
com padres que abusavam de
garotos na grande maioria, filhos de
famílias em situações economica-
mente desfavorecidas. A equipe de
investigação jornalística que desba-
rata a rede de pedofilia pertence ao
jornal Boston Globe. Esta equipe é
chamada de Spotlight, que por sua
vez passa a dar nome ao filme.

(Cartaz do filme Spotlight – segredos


revelados). Disponível em: http://
br.web.img2.acsta.net/c_215_290/
pictures/15/12/11/13/14/181510.jpg acesso
em 29 de dez de 2016.

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O filme apresenta a equipe de Spotlight gradativamente descobrindo


mais e mais provas dos casos de pedofilia na cidade de Boston, resultando ao
final no descobrimento de uma rede global de pedofilia na igreja. Em discurso
na cerimônia do Oscar, o produtor Michael Sugar disse que “Este filme deu
uma voz aos sobreviventes, e este Oscar amplifica esta voz, o que esperamos se
tornar um coro que irá ressoar até o Vaticano”1. No ano de 2002 a equipe de
Spotlight publicou mais de 600 matérias sobre abuso sexual da igreja católica
e o efeito foi de 249 padres e irmãos da arquidiocese de Boston acusados de
abuso sexual, estimando-se mais de 1000 vítimas na cidade. O fenômeno dessa
investigação jornalística ecoou e grandes escândalos de abusos também foram
descobertos em outros países inclusive no Brasil, especificamente nas cidades
de: Arapiraca e Franca, ambas no Estado de São Paulo.
Spotlight, se junta a outros grandes filmes de 2016 que aborda temas
polêmicos, como Garota Dinamarquesa e O Quarto de Jack, ambos com temá-
ticas como gênero e violência sexual. Spotlight, contudo, me surpreendeu pelo
modo como se comunicou comigo, ou seja, pelo endereçamento produzido.
Isto se deve pelo fato de ter crescido no interior de Minas Gerais - Brasil, numa
pequena cidade como tantas outras que possuem relação de dominação e influ-
ência pela igreja e seus padres. Não estou dizendo de abusos sexuais em todas
as cidades pequenas, contudo, há muito mistério que circunda a igreja católica.
Segredos que envolvem seu cotidiano, a relação com os fiéis, enfim, a vida
oficiosa de um ofício que se por um lado é marcado pela abdicação, por outro
arca com fofocas, famas e nos últimos anos, escândalos a nível mundial.
Ao morar em Barcelona no ano de 2015 por razão do meu pós-douto-
rado, fiz amizade com um psicopedagogo que também é o padre local de duas
pequenas cidades ao entorno de Barcelona, após assistir ao filme lhe perguntei
o seguinte: Como você considera a relação da igreja com o tema da pedofilia?
Qual a sua avaliação a respeito do histórico da igreja católica e as possíveis
mudanças que esta vem sofrendo nos dias atuais com relação a este tema? E a
resposta foi:
“Historicamente ha sido de cerrar los ojos y restar importancia
haciendo daño a las víctimas. Actualmente las conductas pedófilas

1 http://www.administradores.com.br/noticias/entretenimento/spotlight-ganha-o-oscar-de-melhor-fil-
me-em-noite-marcada-por-polemica-racial/108642/

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se combaten con la expulsión de la Iglesia, suspensión del sacerdo-


cio y penas civiles.” (Padre).

É uma resposta de quem está dentro do mundo eclesiástico e que reco-


nhece a responsabilidade histórica da igreja neste tipo de violência. Podemos
dizer que o mundo eclesiástico hoje possui mais fragilidades em relação a seus
segredos, contudo, ainda permanece sendo um universo de ressalvas quando
se possui uma aura de segredos intocáveis historicamente. Tal história deve ser
problematizada sistematicamente, a sociedade não pode inclusive permane-
cer sendo um espaço de silencio de um precursor tradicionalismo religioso. A
sociedade avança e cada vez mais é necessária a busca pela verdade histórica
a respeito das instituições de poder que, a arte fílmica tem ajudado a desvelar.

Algumas considerações a respeito do cinema e educação e os


modos de endereçamento

Trabalhar com os aspectos do cinema, dos roteiros é compreender que


também estamos relacionando nossa escrita com os processos educativos, afinal,
o cinema também é um artefato cultural de ensino, um dispositivo pedagógico
em termos foucaultianos. Quais relações podem ocorrer entre um filme e seus
expectadores? Para dar conta desta reflexão, utilizo o conceito de “modos de
endereçamento” de Ellsworth (2001).
De acordo com a autora, modos de endereçamento é um termo dos estu-
dos de cinema, um termo que tem um enorme peso teórico e político, ele é
usado por teóricos do cinema para dialogar com questões como: “qual é a rela-
ção entre o texto de um filme e a experiência do espectador” (ELLSWORTH,
p. 12, 2001).
Os filmes, bem como os livros e comerciais de televisão são feitos para
alguém, eles visam e imaginam determinados públicos, e algumas vezes até o
desejam, explica Ellsworth (2001), e a narrativa estrutural de um filme é pensada
para qual público que irá assistir a determinado filme, um dispositivo cultu-
ral e pedagógico com endereço certo para atingir determinada subjetividade.
Ellsworth (2001) explica “o modo de endereçamento como um conceito que
se refere a algo que está no texto do filme e que, então, age de alguma forma,
sobre seus espectadores imaginados ou reais, ou sobre ambos” (p. 13). Ou seja,
o conceito de modo de endereçamento é dado com base no argumento de
que para que um filme “funcione” para um público, “a espectadora deve entrar

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em uma relação particular com a história e o sistema de imagem do filme”


(ELLSWORTH, p. 14, 2001). Para exemplificar esse processo de entrada do
espectador em uma relação particular com a história e imagem do filme, para
que explicar a sintonia que deve existir entre o espectador e o filme, para que
aquele “pegue a onda deste” a autora vale-se de uma metáfora:
Existe uma poltrona no cinema para a qual aponta a tela do filme,
uma poltrona para a qual os efeitos cinematográficos e as compo-
sições dos quadros estão planejados, uma poltrona para a qual as
linhas de perspectiva convergem, dando a mais plena ilusão de
profundidade, de movimento, de “realidade”. É a partir dessa posi-
ção física que o filme parece atingir seu ponto máximo. Da mesma
forma, existe uma “posição” no interior das relações e dos interes-
ses de poder, no interior das construções de gênero e de raça, no
interior do saber, para a qual a história e o prazer visual do filme
estão dirigidos. É a partir dessa “posição-de-sujeito” que os pressu-
postos que o filme constrói sobre quem é o seu público funcionam
com o mínimo de esforço, de contradição ou de deslizamento
(ELLSWORTH, 2001, p.15).

Para tanto, a autora afirma que os traços da estrutura de endereçamento


não são visíveis, não se apresentando diretamente na tela. Assim como a própria
história e a trama do filme, o modo de endereçamento não é visível e pode errar
o alvo, uma vez que, o espectador e a espectadora nunca são apenas aquilo
que o filme pensa que eles são. “O modo de endereçamento parece-se mais
com a estrutura narrativa do filme do que com seu sistema de imagem [...] uma
estruturação que se desenvolve ao longo do tempo das relações entre o filme
e seus espectadores” (ELLSWORTH, 2001, p.16). Entretanto, para que um filme
atribua algum sentido aos seus espectadores, é preciso que eles se envolvam
com seu modo de endereçamento, afinal “o modo de endereçamento de um
filme está envolvido nos prazeres e nas interpretações dos públicos – inclusive
em sua decisão de simplesmente recusar-se a ver o filme” (ELLSWORTH, 2001,
p. 24). O modo de endereçamento não é um conceito neutro, para a autora, ele
é capaz de tocar as relações de poder e mudança social:
Trata-se de um conceito que tem origem numa abordagem de
estudos do cinema que está interessada em analisar como o pro-
cesso de fazer um filme e o processo de ver um filme se tornam

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envolvidos na dinâmica social mais ampla e em relações de poder.


(ELLSWORTH, 2001, p. 25).

Problematizar as produções cinematográficas é pensá-las em construções


culturais, pois, como aponta Louro (2000) “Estou convencida de que os filmes
exerceram e exercem (com grande poder de sedução e autoridade) pedagogias
da sexualidade sobre suas plateias” (p.82). Na escola, o uso de filmes que pos-
sam colocar o tema da violência/abuso sexual e igreja pode ser uma atitude
audaciosa do professor, tendo em vista que muitas escolas ainda não abriram
suas fronteiras morais e físicas (arquitetônicas) para a realidade cotidiana e seus
tabus. Mas, é fato que as informações circulam e a escola muitas das vezes não
se relaciona com elas, com as notícias, com os assuntos emergentes que ten-
dem a cada vez mais ganhar destaque em nossa sociedade.
O uso do cinema na escola além de ser um recurso didático rico, também
se torna um dispositivo cultural já que nem todos os educandos possuem con-
dições para arcar com os preços de um cinema em shopping. O público jovem
que frequenta cinema, num geral costuma buscar outros filmes, como de super-
-heróis e de animação, logo, um filme como Spotlight na escola poderia fomentar
debates interdisciplinares propiciados por este roteiro, até pelo fato de que o filme
funciona como um endereçamento político e denunciador de segredos, compor-
tamentos, sexualidades e masculinidades existentes na igreja católica.
O professor pode problematizar a relação igreja e sociedade, igreja e
sexualidade, pedofilia na sociedade entre outros viesses que se abrem com a pos-
sibilidade do cinema e até mesmo, perceber como a abordagem do tema pode
causar a resistência em assistir por parte dos estudantes ou da própria comu-
nidade pedagógica podendo assim problematizar tal negativa. E, lembrando
que o fenômeno da pedofilia não é algo restrito das igrejas nem tampouco de
Boston nos EUA, mas sim do mundo todo, no qual cada vez mais os escândalos
sexuais têm vindo à tona fomentando a possibilidade de problematizarmos este
tipo de violência que relaciona fundamentalmente o mundo da masculinidade,
da sexualidade e das instituições como igreja, escola e família.
O endereço de um filme educacional dirigido à estudante, por
exemplo, convida-a não apenas à atividade da construção do
conhecimento, mas também à construção do conhecimento a
partir de um ponto de vista social e político particular. Isso faz
com que a experiência de ver os filmes e os sentidos que damos
a eles sejam não simplesmente voluntários e idiossincráticos, mas

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relacionais – uma projeção de tipos particulares de relações entre


o eu e o eu, bem como entre o eu e os outros, o conhecimento e o
poder. (ELLSWORTH, 2001, p.18-19).

A prática do cinema na escola produz significados criando um público


interessado ou não em determinada temática, há muitos roteiros que discutem
violência sexual e de gênero, racismos, homofobia entre tantos outros aspec-
tos pujantes em nossa sociedade moderna. Os roteiros podem desencadear
na escola possibilidades de um ensino multicultural e interdisciplinar, podendo
levar a uma busca exploratória na internet e na biblioteca bem como em museus
quando o ensino não tem a pretensão de se esgotar no fim único da apresenta-
ção do filme sem maiores cuidados.
O que os educandos sabem sobre o assunto abordado no filme? Quais são
as informações que eles possuem enquanto conhecimento prévio? Como eles
significam a experiência da exibição com seu eu particular? Estas me parecem
reflexões importantes para que haja um processo educativo político e desmisti-
ficador de preconceitos, de senso-comum e se torne um espaço da construção
do conhecimento ao invés apenas da reprodução de conteúdos curriculares
que são sim importantes, mas que não são as únicas fontes do aprender um
determinado conteúdo. Se vivemos na sociedade da informação então devemos
prestar atenção no que estas dizem, filtrá-las e problematizá-las.

Considerações finais

De modo geral, como aponta Ellsworth (2001), “(...) falta emoção na edu-
cação, falta suspense, romance, sedução, prazer visual, música, enredo, humor,
dança (...)” (p.10), de fato, a escola sem a magia do cinema e das problemáticas
que ele pode propiciar se torna a instituição menos atrativa em tempos de curio-
sidades e de uma enxurrada de informações, o cinema veio para ficar e para
denunciar verdades intocadas, escondidas e contribuir para o desvelamento
histórico das instituições milenares, mexendo com as estruturas cristalizadas e
acomodadas de pensamento. O cinema denúncia surge como possibilidade de
nos tirar de nossa “zona de conforto” trazendo temas ainda invisibilizados ou
pouco explorados em nossa sociedade.

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Referências

BEATRIZ. Spotlight - Resenha do Filme Vencedor do Oscar 2016. Disponível em:


http://sobreisso.com/2016/03/01/spotlight-resenha-do-filme-vencedor-do-oscar-2016/.
Acesso em 29 de jun de 2016.

LOURO, Guacira. O Cinema e Sexualidade. In: Lopes, Eliana e outros (Orgs). 500
Anos de Educação no Brasil. Belo horizonte: Autêntica, 2000.

ELLSWORTH, Elisabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa


de educação também. In DA SILVA, Tomaz Tadeu (org). Nunca fomos humanos: nos
rastros do sujeito. Autêntica, Belo Horizonte, 2001.

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O SWING ON LINE: UM ESTUDO SOBRE O SEXLOG

Edson Vasconcelos
Doutor em Sociologia (UFPB)
Professor adjunto da Universidade Estadual da Paraíba
edsonpxt@yahoo.com.br

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

Este trabalho tem como foco notas sobre uma investigação no Sexlog. Uma
rede social que se autointitula como “a maior rede social de sexo e de swing
do Brasil”. Trazer alguns registros da observação do percurso de casais, homens
e mulheres na busca pela realização de suas fantasias sexuais no comparti-
lhamento de fotos, vídeos e textos na web. Esses pontos tiveram como base
uma parte do trabalho desenvolvido na tese intitulada “De olhos bem fecha-
dos: sexualidade, subjetividades e conjugalidades no swing”. Pesquisa de
Doutorado defendida no ano de 2015 no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal da Paraíba e que teve como órgão financia-
dor a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Palavras-chave: mídias digitais; sexlog; sexualidade.

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Introdução

A pesquisa tomou dois caminhos: acompanhar o cotidiano das casas de


swing, baladas liberais, festas privadas e das pessoas que participam; e efe-
tuar um trabalho de observação das interações em uma rede social de sexo,
no caso, o Sexlog. Este artigo se concentra nessa segunda parte. Essas duas
iniciativas não foram escolhidas aleatoriamente, mas cada uma delas possui
peculiaridades que precisaram de destaque, sobretudo, nas questões relativas
ao swing e as suas articulações com a rede de swing que se estabelece entre
o diálogo on e off line. Nesse sentido, de que formas o Sexlog se articula aos
desejos e demandas dos sujeitos que dela fazem parte. Uma das bases desta
rede é proporcionar as possibilidades necessárias para a construção de afetos e
subjetividades em uma rede sexual complexa. Como isso é feito?
Como as sociabilidades são estabelecidas por meio da construção de sub-
jetividades que emergem de perfis, através da construção de imagens, vídeos e
textuais que tem como objetivo chamar a atenção daqueles que o observam?
Metodologicamente, a investigação revela os desafios de se produzir uma etno-
grafia em uma rede social de sexo atualmente. Entre outros, questões como o
segredo são pontos a se interrogar sobre sexualidade em redes de sexo como
essa.

Do Fotolog ao Sexlog: uma trajetória da rede social de sexo

O Sexlog, rede social de sexo e swing, existe no Brasil há mais de dez


anos na internet. Em sua página de apresentação, se auto intitula como “a maior
rede social de sexo e swing do Brasil”1. Segundo a descrição do próprio site e
a partir de algumas conversas que tive com os administradores, atualmente o
Sexlog reúne mais de três milhões de usuários cadastrados. Rumando para qua-
tro milhões. São pessoas das mais variadas classe e faixas etárias que mantém
perfis na rede. Nela compartilham fotos, vídeos, áudio e textos. Informações
que são publicadas pelos proprietários de cada perfil, acessível aos seus amigos
e contatos.

1 Informações retiradas do seguinte link: https://accounts.sexlog.com/sobre-sexlog (Acessado em


28/06/2013, às 20 horas).

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Como espaço dedicado a interação entre pessoas, com um conjunto de


ferramentas voltado para o contato entre os seus usuários, com o objetivo de
aproximá-los pelas imagens, vídeos, mensagens e bate-papo, o Sexlog repre-
senta atualmente uma das mais acessadas e importantes redes sociais de sexo
na internet brasileira. Isso não só porque possui um numero considerável de
assinantes (mais de três milhões, como já foi dito), mas por ter um volume
considerável de material erótico produzido por esses usuários, além do fato de
ser um espaço de socialização (socialização sobre e para o sexo) cujo conte-
údo é específico (erotizado, com uma estética que circula, entre o erótico e o
pornográfico).
A forma de se integrar ao Sexlog começa por um cadastro. Nele, o usuário
registra os seus dados básicos como nome, idade e endereço. Após o preenchi-
mento dos dados básicos, o cliente deve incluir algumas informações especificas
para o seu cadastro, que toma os contornos de uma rede social de sexo, cujo
formato básico é o encontro, o compartilhamento e o contato com outras pes-
soas para o sexo. O formulário pede ao usuário que se cadastra respostas como
“quais são os seus interesses no Sexlog?”; “quem você é?”; formulário que tam-
bém requisita dados sobre a biografia e finaliza com a postagem inicial do
cadastrado, da foto na qual quer ser identificado na rede, além da possibilidade
de poder compartilhar as suas primeiras fotos, comentários, vídeos, entre outras
informações.

Algumas notas sobre a presença do pesquisador e a inclusão no


campo

As primeiras impressões que trazem o impacto inicial do acesso a esse


tipo de endereço na internet residem no fato de não ser uma rede social qual-
quer. É uma rede de sexo. Lá as pessoas publicam conteúdo erótico/pornô
através dos seus perfis cotidianamente. Trocam mensagens, e publicam fotos e
vídeos. A interface de interação é muito semelhante e de uma rede social usual,
o que muda realmente é o seu conteúdo. Na rede do sexo, as pessoas falam
sobre as suas fantasias. Falam e publicam as suas fantasias. A mulher que deseja
sexo com dois homens (ménage masculino), ou, sexo entre duas mulheres e um
homem (ménage feminino); a procura dos casais por experiências com pessoas
do mesmo sexo; o desejo do marido em observar a sua esposa com outro
homem na cama; o exibicionismo puro e simples de fotos de nu em lugares

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públicos e em situações inusitadas, como o sexo com desconhecidos na rua,


ou, o sexo em lugares públicos com desconhecidos observando, prática conhe-
cida nos últimos tempos como o “dogging”2.
Aproximar-se dessas pessoas e tentar conversar com elas sobre os usos e
os significados da rede em suas vidas se colocou como um ponto fundamen-
tal aos rumos daquilo que planejava para a pesquisa. Esses significados estão
relacionados a forma como essas pessoas vivenciam esse espaço. Para isso, há
a percepção de relacionar a intimidade com a construção de personagens nas
redes. Ao se expor esses sujeitos mostram os seus desejos, as suas fantasias
e, inclusive os seus corpos. Não um corpo qualquer, mas as partes do corpo
que possam ser mais erotizada e que ao mesmo tempo possa preservar a sua
identidade. Identidade enquanto visualização da subjetividade sobre o rosto do
usuário. A essa discrição caberá demonstrar ao público observador dos perfis os
seus interesses, sem necessariamente apresentá-lo sobre todos os seus aspectos.
A primeira escolha foi para os perfis que se caracterizaram por não omiti-
rem imagens dos rostos dos seus integrantes. Como isso não é comum nas redes
de sexo resolvi procurar alguns desses perfis para conversar, entre outras coisas,
sobre o fato de terem tomado a decisão de mostrar o rosto, ao invés de inves-
tirem na descrição das suas identidades através do ocultamento dessa parte
do corpo. É importante salientar que grande parte dos perfis sexuais em rede
sociais como essa não mostram os seus rostos e que em boa parte dos casos as
imagens retratam partes de corpos, como o torso, por exemplo.
O rosto quase sempre é negado nas redes sociais de sexo. O que resta são
os sujeitos se mostrarem a partir de outros “predicados” que não o rosto. Até
porque, muito além do fato do rosto ser instância significante de tantas repre-
sentações, tudo isso se resume que é através do rosto, entre outros aspectos
como sinais, cicatrizes e outros aspectos relativos a anatomia de cada sujeito,
que se identifica quem somos nós. É o que muitas pessoas não têm o interesse
de fazer nesses ambientes. Pelo menos em um primeiro momento, que seria o
de apresentação. Isso não significa que ao passar para um contato mais próximo
esses sujeitos ainda mantenham esse tipo de restrição. Significa que para a sua

2 Dogging é um termo em inglês que significa atos sexuais em público ou parcialmente em público,
onde outras pessoas possam ver. Geralmente feito por mais de duas pessoas. Sexo grupal, ou mesmo
o sexo de uma mulher com vários homens pode ser incluído. A observação é encorajada. O exibi-
cionismo e o voyeurismo geralmente são associados ao dogging.

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apresentação e a aproximação para com o outro o que importam são as outras


partes do corpo, e o rosto ficaria reservado para um segundo momento, onde a
aproximação entre os interessados acontece.
Outros tipos de perfis que me chamaram atenção eram aqueles que se
utilizavam da rede de sexo só para o exibicionismo. Tive oportunidade de con-
versar com um perfil e de observar mais uma dúzia de outros que não quiseram
participar da pesquisa. Muitos desses perfis já deixam claro em suas descrições
que não desejam nenhum contato com ninguém. Que querem publicar as suas
fotos e observar os comentários e querem fazer o mesmo com outros perfis.
Não há nenhum tipo de interesse em entrar em contato com as pessoas, nem
ultrapassar isso e transar com ninguém. A realização é olhar e ser observado.
O perfil que conversei era de uma moça chamada Márcia. Mantinha um
perfil há um ano no Sexlog com o objetivo de se exibir em fotos. Ela costumava
publicar de duas a quatro fotos por dia na rede e sempre gostava de acompa-
nhar os comentários que os usuários colocavam nas fotos. Disse que sentia
excitação em saber que outras pessoas se excitavam com as imagens e como a
preparação em produzir aquelas cenas a deixava com tesão. Também atendia
aos pedidos dos usuários, postando imagens temáticas com acessórios, como
vibradores, lingeries e até frutas e canetas. Chegou a postar uma sequência de
imagens em que pratica fisting3.
Gostar de observar e ser observado faz parte da fantasia de muitas pes-
soas. Nos últimos anos isso foi potencializado pelas ferramentas que a conexão
em rede disponibiliza. Inicialmente através dos bate-papos, depois, com o
incremento das redes sociais, ver e ser visto se tornou um fetiche praticado por
muitas pessoas. A potencialização para o sexo foi rápida, com aplicativos, sites
de conversa on line e rede sociais especialmente dedicadas aos observadores.
Atualmente, ver e ser visto não é só um fetiche, e um fetiche apoiado em moti-
vações sexuais, mas uma prática imanente das redes sociais que se multiplicam
pela internet.
As mesmas particularidades encontradas no perfil da Márcia também
foram encontradas em outros perfis que eu observei. Seja para ou mais ou
para menos eles mantinham um contato com outros usuários só através das
imagens e naquilo que os outros comentavam sobre essas imagens. Não havia

3 Prática que consiste na inserção, no ânus ou na vagina, da mão, até a altura do punho.

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comprometimento. Só o fato de poder colocar ali aquilo que gostaria que outras
pessoas vissem. Da mesma forma se deleitam vendo os outros. Márcia me disse
que mantém o mesmo nível de interação com outros usuários que tem perfis
com as mesmas configurações que o dela. Quando muito, comenta nas fotos
que gostou em outros perfis o que gostaria de ver publicado nas próximas vezes
que esses usuários publicarem material novo. Isso alimenta as suas fantasias e
faz com que ela crie situações das mais diversos em sua imaginação, o que a
inspira não só a produzir imagens inspiradas no que vê na rede, mas também
em se excitar no dia a dia.
Isso é mais comum do que imaginamos. Muitos perfis nas redes sociais
servem simplesmente para seguir ou observar pessoas. A prática do stalking4 é
muito comum. Construir perfis só para seguir ou acompanhar amigos, colegas
ou pessoas próximas pode chegar ao exagero quando esses mesmos usuários
chegam ao ponto de fazer disso uma obsessão e um problema, pois em alguns
casos o observador começa a interferir na vida de quem ele observa. Aqui a
minha atenção reside no usuário comum: o que publica informações com o
intuito de ser observado e o que usa as redes (no caso, as redes de sexo) para
observar o outro. No entanto, é preciso salientar que há todo esse espectro de
comportamentos quando o assunto é ser voyeur na interação com o outro. Há
aqueles perfis mais quietos, que produzem e consomem material erótico, assim
como os que chegam as vias de seguir o outro ao ponto de prejudicá-lo de
alguma forma.
Um terceiro tipo de perfil que pude acompanhar são aqueles usuários que
estão nas redes sociais e usam o espaço para trabalho com sexo. Muitos perfis
são dedicados a casais, homens, mulheres e trans que criam uma conta para
intermediar encontros. Nas ferramentas de busca é muito comum encontrar
apelidos e descrições de perfis deixando claro qual é o seu objetivo no Sexlog.
Conversei com um desses perfis, a Dior. Ela já utilizava o Sexlog para serviços
sexuais há um ano e gostava muito de fazer isso. Disse que apesar de ser proi-
bido o uso da rede para prostituição não se sentia inibida em fazer isso.

4 Palavra em inglês que representa a obsessão de algumas pessoas em seguir ou observar a vida das
pessoas nas redes sociais.

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Considerações finais

Essas três categorizações (a prostituição, o rosto descoberto e os voyeurs)


sintetizam alguns perfis peculiares encontrados nas buscas de usuários do
Sexlog. Isso está fora e dentro da rede, como mais um espaço de formação de
subjetividades nos tempos atuais. A maneira como esses perfis são formados
mantém um diálogo permanente com o que desejam provocar nos seus espec-
tadores. Da mesma forma, o que mostram nas suas publicações dialoga com o
que buscam em outros perfis.
Portanto, muitas vezes aquilo que se vê também pode ser representado
naquilo que quer ser buscado nas redes sociais de sexo. Um exemplo sobre isso
são as publicações nos perfis dos usuários. Quase sempre essa comunicação é
feita pela postagem de fotos. Também há postagens de vídeos, mas ela ainda
é uma parte reduzida das postagens realizadas diariamente pelos usuários. A
maioria prefere utilizar a foto. Mas não é qualquer foto. A foto que é publicada
é sempre uma imagem que represente dois pontos: a inibição da identidade e a
representação da sexualidade através dos corpos erotizados.
De um lado, se tem a imagem que quase sempre não mostra o rosto.
Sabemos que a face tem um valor socialmente significativo. Os olhos são “a
janela da alma” e boa parte da nossa comunicação e das nossas relações sociais
é mantida através da comunicação estabelecida face a face. O corpo é o espaço
que precisa ser encoberto, ou ser estimulado a representar determinadas ações,
como a sensualidade, o profissionalismo, entre outros valores que possam ser
representados em termos corporais e que são inscritos a partir de contextos e
discursos vinculados a moda, o consumo e a sexualidade, só para resumir em
três exemplos. Pois bem, essa valorização da face enquanto área de comuni-
cação e de identidade subjetiva é interditada nas redes de sexo. Isso tem uma
explicação óbvia: por ser tratado socialmente assim, o rosto se torna uma forma
de identificar quem não quer ser identificado. Ou mesmo de revelar, algo que
naquele momento não quer ser revelado, isso porque em muitas dessas rela-
ções estabelecidas na rede, o rosto só tem o seu valor revelado aqueles que
se mantém uma interação estreita, e merecem a confiança do usuário para
ser mostrado. É como se a identidade por completo só pudesse ser desvelada
quando se associa a isso uma relação de confiança que vai além de um mero
contato. Portanto, o rosto passa a ter não só o valor de ser o espaço reservado

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para a identidade do usuário, mas o lugar que só será revelado a quem merecer
tal intento. Gesto de intimidade.
Por outro lado o corpo. Mas não é qualquer corpo. Nos homens, boa
parte das imagens retrata o seu pênis. Nas mulheres, os seios, a bunda e a
sua vagina. Não é incomum encontrar no Sexlog perfis onde o avatar do per-
fil – ou seja, a foto principal do usuário – é um pênis ou uma bunda. O pênis
ou a bunda se erigidos como regiões chave na compreensão da sexualidade
desses perfis. Os homens-pênis e as mulheres-bunda são matrizes de um ramo
comum: a elevação do sexual ao nível subjetivo, enquanto erotização da iden-
tidade e supervalorização do sexual e de tudo que pode ser vinculado a ele, ou
seja, as fantasias, os desejos e as práticas que orbitam nesse meio.

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“VESTIDO NUEVO”: NOVAS PROBLEMATIZAÇÕES DE VELHOS


PADRÕES DE SILENCIAMENTOS DAS SEXUALIDADES INFANTIS

Carla Silva Machado


Doutoranda em Educação pela PUC/Rio. Bolsista do Cnpq.
carlasingular@gmail.com

Carolina Alves Magaldi


Professora Adjunta da Faculdade de Letras da UFJF.
carolina.a.magaldi@gmail.com

GT 19 - Sexualidades e Gênero entre Crianças e Adolescentes: uma área relevante e


diversificada de pesquisa e conhecimento

Resumo

A presente comunicação está relacionada às questões que afetam as constru-


ções de gêneros e sexualidades infantis nas escolas e como, muitas vezes, elas
são silenciadas por professores, gestores escolares e demais atores presentes
neste universo. Para ilustrar esta discussão traremos a análise do curta-metra-
gem espanhol Vestido Nuevo (PÉREZ, 2007), que é ambientado numa escola
pública num dia de carnaval e tem como protagonista o menino Mário. O filme
mostra a reação dos colegas, professores e funcionários da escola ao verem
Mário com um vestido rosa na sala de aula. Entendemos que a ficção transmite
a realidade de muitas escolas que diante do que consideram fora do padrão,
optam pelo silenciamento, principalmente no que tange às questões envolvendo
gênero, sexualidade e padrões culturais no ambiente escolar.
Palavras-chave: padrões culturais; construções de gênero; sexualidades; infân-
cias; cultura escolar.
Eu gosto muito do dia de carnaval. É muito divertido porque nos
disfarçamos e nos deixam vir sem farda. Nos vestimos como quere-
mos. (VESTIDO..., 2007, 0:004-0:19)

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Introdução

A epígrafe deste artigo é a fala inicial do personagem Mário, o protago-


nista do curta-metragem Vestido Nuevo, esta abertura nos leva a pensar que
o ambiente escolar se contrapõe às festas e ao carnaval, que segundo o mini-
dicionário Aurélio é assim definido: “os três dias precedentes à quarta-feira de
cinzas, dedicados a várias sortes de diversões, folias e folguedos” (FERREIRA,
2001, 134). Enquanto o carnaval é visto como o tempo da diversão e da folia, a
escola é sempre o espaço das normas, regras e do uniforme (ou farda, para usar
as palavras do personagem).
A partir do contraponto entre a escola e o carnaval, e entre o aluno –
“aquele que recebe instrução” (FERREIRA, 2001, p.35), conforme o próprio
Aurélio, e o carnavalesco, que o dicionário define como o “grotesco” (FERREIRA,
2001, p. 134), pretendemos, neste texto, discutir as relações de poder que fazem
da cultura escolar, de maneira geral, um ambiente em que se propagam normas,
padrões e uniformizações e silenciam-se todas as atitudes e experiências que
fogem destas, considerando-as grotescas.
A presente comunicação está relacionada às questões que afetam às sexu-
alidades infantis nas escolas e como, muitas vezes, elas são silenciadas por
professores, gestores escolares e demais atores presentes neste universo. Para
ilustrar esta discussão, traremos a análise do curta-metragem espanhol Vestido
Nuevo, produzido, no ano de 2007, pela Escândalo Films com o apoio do
Ministério da Cultura da Espanha. O curta dirigido por Sergi Pérez é ambien-
tado numa escola pública num dia de carnaval e tem como protagonista o
menino Mário, que é interpretado pelo ator mirim Ramon Novell. O filme,
de aproximadamente 14 minutos, mostra a reação dos colegas, professores e
funcionários da escola ao verem Mário com um vestido rosa na sala de aula.
Entendemos que a ficção transmite a realidade de muitas escolas que diante do
que consideram fora do padrão, optam pelo silenciamento, principalmente, no
que tange às questões envolvendo gênero, sexualidade e padrões culturais no
ambiente escolar.

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O filme – Sensibilidade no enredo

Após a fala inicial de Mário, que parece estar lendo uma redação em sala
de aula, há o corte para a entrada da escola, onde vários alunos estão se movi-
mentando e, ao mesmo tempo, alguém anuncia pelo alto-falante que na parte
da tarde haverá carnaval na escola e todos os alunos devem trazer suas fantasias
dentro da mochila. As crianças vão entrando para a sala de aula e a professora
pergunta se todos se lembraram de trazer suas fantasias. Neste momento, o
espectador fica sabendo que o tema do carnaval da escola é 101 Dálmatas,
portanto, todas as fantasias serão iguais.
É interessante ressaltar que, em sua ingênua subversão, Mário recupera o
sentido de carnavalização, ao inverter papéis cotidianos e romper as amarras
das atribuições sociais. Esse fator já havia sido perdido na normatização escolar,
segundo a qual até mesmo o tipo de fantasia já havia sido pré-determinado e
moldado a partir de uma única produção cinematográfica.
Mário levanta-se, vai para um canto da sala e veste um vestido rosa que
está dentro de sua mochila, assim como solicitado através do alto-falante. Logo
em seguida, ele é repreendido pela professora que diz: “Mário, o que está
fazendo? Mário, eu estou falando... Você está vestido como uma menina.” A
cada fala da professora, há um suspense e a câmera corta para Mário, que con-
tinua sentado, mexendo em seu material escolar. Logo em seguida, um aluno
chamado Santos começa a chamá-lo de viadinho, boneca e menina. A pro-
fessora briga com Santos, lembrando que ele está numa sala de aula, porém
chama Mário e pede para que ele a acompanhe.
A professora conversa com Mário fora da sala e diz que a fantasia deve-
ria ser de 101 Dálmatas, não de garota. Enquanto isso, dentro da sala de aula,
Santos continua gritando e imitando o colega de maneira debochada. Santos
também é retirado de sala, pois causa indisciplina, além de praticar bullying
contra o colega. A professora deixa Mário e Santos na antessala da direção,
enquanto fala com o diretor o que aconteceu. Enquanto isso, a secretária escolar
olha com ar de deboche para Mário que espera a conversa entre a professora e
o diretor. A professora diz que ligou para o pai do menino vir buscá-lo.
A conversa entre professora e diretor é cheia de reticências e a questão
da indisciplina de Santos e o bullying contra Mário não é discutida, apenas o
vestido de Mário é tema da conversa. O pai de Mário chega à escola e pergunta
ao menino por que ele está com o vestido da irmã dele, o diretor recebe o pai

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do garoto e enfatiza que ele está com a fantasia errada e no horário errado. O
pai escuta o diretor, pede desculpas e fala muito pouco sobre o ocorrido, mas
enfatiza que o menino gosta de vestir-se daquela maneira.
Enquanto espera o pai conversar com o diretor, Mário recebe o apoio de
Elenita, uma colega de sala, a única deficiente física e ela o incentiva a não usar
determinadas roupas e ter determinadas atitudes em público.
O filme termina numa cena em que o pai dá o terno para Mário, pega o
filho no colo e o leva para casa, como se quisesse protegê-lo do mundo e dos
preconceitos dos colegas e de todos na escola. Ainda, ao passar por Santos,
mesmo na presença do pai e com toda a proteção dele, o menino escuta, mais
uma vez o colega de sala chamá-lo de “Viadinho”.
É no colo do pai que Mário relaxa e vai despedindo-se da escola com
uma sensação de alívio. É como se a escola fosse para o menino o lugar em
que o carnaval, a diversão e a folia fossem impossíveis, visto que ali é necessário
usar a farda obrigatória, no horário estipulado e sem possibilidade de ser quem
ele quer ser. É preciso vestir-se como todos esperam que ele se vista.
Neste sentido, o filme ilustra bem o ambiente escolar como um espaço de
manutenção da ordem e do padrão, ou nas palavras de Ferrari, ao referir-se ao
status discursivo da instituição escolar:
O mais grave disso é que a Escola não apenas produz e transmite
conhecimento mas também contribui para produzir sujeitos e iden-
tidades, para reforçar divisões dos gêneros e das classes. Neste
sentido, a manutenção e/ou reprodução das diferenças e desigual-
dades se torna mais reveladora, pois corresponde à garantia de
continuidade de uma sociedade dividida, desigual e hierarquizada
(FERRARI, 2000, p. 90).

O menino Mário, ao ser acolhido pelo pai e aconselhado por Elenita a


ter uma postura diferente na escola, para não chamar a atenção para sua iden-
tidade diferente, ou ao ser questionado pela professora o motivo de ele estar
vestido de garota, ou ser chamado de boneca por Santos, seu colega de turma,
vai aprendendo, deste muito cedo, a partir de ações bastante sutis, em alguns
momentos: o colo do pai e o conselho da colega, ou mais agressivas: o xinga-
mento do colega e a repreensão da professora, que na escola não é o lugar para
“nos disfarçarmos”, pois a escola também reforça os padrões sociais.

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No curta, é destacada, ainda, a dificuldade das crianças e adultos em


diferenciarem construções de gênero e de sexualidade: ao vestir-se com um
vestido, Mário é imediatamente tratado como “viadinho”, pois os conceitos de
cis e hétero se confundem em uma sociedade que coíbe tanto as discussões de
gênero, quanto às referentes à sexualidade. Neste sentido, as discussões de mis-
turam e são tratadas pelo senso comum como se gênero e sexualidade fossem
palavras sinônimas. É necessário entendermos que:
O sexo é definido biologicamente. Nascemos machos ou fêmeas,
de acordo com a informação genética levada pelo espermatozoide
ao óvulo. Já a sexualidade está relacionada às pessoas por quem
nos sentimos atraídos. E o gênero está ligado a características atri-
buídas socialmente a cada sexo (SOARES, Welington. IN: Revista
Nova Escola, Fevereiro de 2015, p. 26) (destaques em negrito do
texto original).

O filme aponta estas questões com bastante sensibilidade, usando de ele-


mentos cinematográficos como corte de cena, closes, pausas e outros, mas
nos deixa a sensação de que é necessário quebrarmos certos paradigmas da
educação, de que a função da escola é transmitir apenas o conhecimento,
entendemos que a escola vai além da transmissão de conhecimento, quando
produz sujeitos e reforça inúmeros padrões. Neste sentido, o filme nos deixa a
lição de que a escola não pode silenciar-se e fazer-se neutra nas questões afetas
às manifestações da diversidade de gênero, sexo e sexualidade.

Quando a arte imita a vida: a escola como espaço de


silenciamento

Ao entendermos a escola como instituição capaz de reforçar os discur-


sos da norma e do padrão, compreendemos que, ao silenciar-se diante das
desigualdades, ela o faz para manter um status quo que transfere para outras
instituições. No caso do filme destacado, essa transferência é feita para a família,
recaindo sobre ela a responsabilidade pela construção e elaboração de outras
identidades percebidas como grotescas, ou diferentes, porque não normativas.
Nas palavras de Ferrari (2000, p. 90): “É necessário que se destaque essa repro-
dução das desigualdades e da manutenção da sociedade pois isso se realiza no
dia-a-dia, com participação ou omissão de profissionais da educação.”

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Neste sentido, este artigo é um chamado à comunidade escolar para a


discussão das questões de gênero, sexualidade e diversidade no ambiente esco-
lar. Em experiências recentes, ao lecionarmos ou realizarmos oficinas sobre
a temática de gênero e sexualidade na escola, foi-nos possível perceber que
os profissionais da educação reconhecem o valor e a necessidade das temáti-
cas em questão, mas se consideram despreparados e desinformados, temendo,
assim, tomarem decisões que teriam dificuldades em fundamentar e justificar.
Neste sentido, o uso do curta Vestido Nuevo tem oferecido uma situação
ao mesmo tempo crível e distanciada, a partir da qual o debate pode transcorrer
e aprofundar-se.
Tais discussões ganham ainda mais importância com os constantes ataques
sofridos pelas políticas públicas de conscientização das construções sociocultu-
rais de gênero e sexualidade, como é o caso da legislação estadual de Alagoas,
que proibiu tais discussões em sala de aula, prevendo sanções legais aos profes-
sores que se opusessem à decisão.
Iniciativas como esta tentam atribuir à discussão de gênero o status de
ideologia ou doutrinação, buscando, ainda, estabelecer uma polaridade entre
a família “tradicional” e normativa, e as práticas e indivíduos que buscam
enfraquecê-la.
Nessa perspectiva cruel, a discussão das relações de gênero seria uma
força destrutiva para uma célula fundamental da sociedade, e não uma proble-
matização legítima de um cenário existente. Há, além disso, uma inversão nos
papéis de opressor e oprimido, apresentando a família tradicional como acuada
por essas novas perspectivas, e a discussão das construções de gênero e sexua-
lidade como o fator que traz a discórdia e ameaça à ordem.
A escola converte-se, assim, em uma zona de negociação, pressionada
por leis reacionárias e tentando incorporar políticas públicas, em um ambiente
que faz impossível a manutenção de uma postura neutra.
A agora extinta Secad/MEC (Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade) previa três eixos no trabalho com gênero e sexu-
alidade: Planejamento, gestão e avaliação; Acesso e Permanência; e Formação
de profissionais da educação. Tal construção possibilitava uma compreensão
geral do processo de problematização das construções de gênero, bem como
articulações com o Programa Brasil sem Homofobia (BSH) e o Plano Nacional
de Políticas para Mulheres (PNPM).

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O corte da secretaria em questão não significou, de forma alguma, um


abandono da proposta, até porque o órgão partiu do reconhecimento que já
havíamos abordado no contexto de nossas oficinas:
Postos, atualmente, diante de situações e questões referentes
à orientação sexual e à identidade de gênero, profissionais da
educação encontram-se, quase que invariavelmente, desprovi-
dos e desprovidas de diretrizes e instrumentos adequados para
que possam agir segundo padrões democráticos e que, portanto,
contemplem a dignidade da pessoa humana em suas múltiplas
dimensões (HENRIQUES et al. (org.), 2007, p. 44) .

A desinformação é, portanto, o maior entrave no processo de construção


de novas concepções de gênero e sexualidade na escola, mas, felizmente, ela
pode ser remediada no próprio processo de ensino-aprendizagem.
É a partir desta problemática que defendemos que a discussão de gênero
e sexualidade precisa ser amplamente incorporada na formação e na prática de
professores e gestores escolares, não só dela depende a evolução de uma das
discussões mais relevantes da contemporaneidade, mas também porque não há
outra forma de defender educação em seu sentido lato.

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Referências

FERRARI, Anderson. Diferenças, igualdade e formação de identidade no contexto


escolar. IN: Revista Instrumento - Revista de Estudo e Pesquisa em Educação/Colégio
de Aplicação João XXII, Juiz de Fora. v. 2, n. 1, 2000. p. 87-100.

FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Mini Aurélio. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.

HENRIQUES, Ricardo; BRANDT, Maria Elisa Almeida; JUNQUEIRA, Rogério Diniz;


CHAMUSCA, Adelaide (orgs.). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer
diferenças e superar preconceitos. Brasília: SECAD/MEC, 2007.

SOARES, Welington. Precisamos falar sobre Romeo... IN: Revista Nova Escola. Ano
30. no.279, Ed.Abril. Fev. 2015.p. 25-32.

VESTIDO Nuevo. Direção de Sergi Pérez. Produção de Sergi Pérez. Escândalo Films,
2007. Duração 13min 42. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ktCXZg-
-HxGA. Acesso em 13 de jun. 2016.

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IDENTIDADES E IMAGINÁRIOS EM APLICATIVOS DE


ENCONTROS GAYS

Venan Lucas de Oliveira Alencar


Mestrando em Estudos Linguísticos
Universidade Federal de Minas Gerais
venanalencar@gmail.com

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

Utilizar a internet como forma de encontrar novos parceiros tem modificado


a maneira como nos relacionamos. Na perspectiva da Análise do Discurso,
analisamos perfis de usuários de três aplicativos de encontros: Scruff, Hornet e
Grindr. Neles buscamos textos que trouxeram em suas descrições imaginários
sobre o uso dessas mídias. A análise partiu de capturas de telas feitas em Belo
Horizonte. Assim, tentamos compreender quais os motivos que levaram esses
sujeitos a atribuírem axiológicos negativos ao uso de aplicativos. Para tanto,
valemos-nos sobretudo dos conceitos de Charaudeau (2015), Louro (2005) e
Miskolci (2009, 2012, 2015). Por fim, pretendemos compreender como homens
homossexuais que lançam mão da tecnologia se representavam e como viam o
outro na subcultura gay.
Palavras-chave: análise do discurso; homossexualidades; aplicativos; identida-
des; imaginários.

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Introdução

A proposta desse estudo é compreender como se identificam e se repre-


sentam usuários de aplicativos de encontros gays na contemporaneidade. Além
disso, quais imaginários sociodiscursivos, na perspectiva de Patrick Charaudeau
(2015), circulam na subcultura gay sobre o uso dessas tecnologias para fins de
encontro.
Buscamos, pois, realizar uma ligação entre os imaginários que circulam
sobre homens homossexuais e as identidades que eles assumem em descrições
de perfis. Assim, atrelando identidades e imaginários, pretendemos entender
como a representação discursiva de homens gays tem relação com um pro-
cesso vigente de negativações a respeito de sexualidades dissidentes.
Para realizar tal investigação, foram utilizados três aplicativos de encontros
gays: Scruff, Hornet e Grindr. Tendo-os instalados, entramos com uma conta
em cada um e, assim, já possuíamos acesso ao perfil de todos os usuários que
estavam nos arredores. Selecionamos, então, aqueles que traziam considera-
ções sobre o uso desse recurso como forma de encontrar novos parceiros. Por
fim, fizemos capturas de tela desses sujeitos selecionados como corpus dessa
pesquisa. Alguns excertos estão transcritos nessa pesquisa, e as imagens pro-
priamente ditas foram apresentadas na modalidade “comunicação individual”
no VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de
Gênero, em Juiz de Fora (MG).
A metodologia está também embasada na análise do discurso, conside-
rando sobretudo os conceitos de Patrick Charaudeau sobre imaginários. Além
disso, a Teoria Queer, principalmente as considerações de Miskolci, nos serviu
de base teórica para o entendimento de alguns fenômenos sociais como a hete-
ronormatividade e o espaço das feminilidades na subcultura gay.
O objetivo era perceber a maneira como essas representações de si esta-
vam ligadas à subcultura gay e aos imaginários sociodiscursivos vigentes.

Queering

A Teoria Queer emprega diversas ideias dos movimentos pós-estrutura-


listas de pensamento, como as de Jacques Lacan sobre a descentralização do
sujeito (não mais visto como uno, indivisível, dono e totalmente consciente de
suas ações), de Jacques Derrida sobre a descontração das estruturas binárias

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linguísticas vigentes na lógica ocidental, em que o primeiro elemento é sem-


pre superior ao segundo (macho/fêmea, heterossexual/homossexual) em um
“pensamento que elege e fixa uma ideia, uma identidade ou um sujeito como
fundante ou como central, determinando, a partir desse lugar, a posição do
‘outro’, o seu oposto subordinado” (LOURO, 2004, p. 42) e de Michel Foucault
com os modelos de discurso, conhecimento e poder.
O termo “queer”, que antes servia como uma injúria a homossexuais,
é agora tomado como uma forma de empoderamento para um movimento
social que diz não a qualquer forma de normalização. Ainda, defende sobre-
tudo uma luta contra o heterosseximo, que é a pressuposição de que todos
são, ou deveriam ser, heterossexuais, a heterossexualidade compulsória, ou
seja, a imposição de que essa relação é o modelo de relação amorosa, e a
heteronormatividade, “ordem social do presente, fundada no modelo familiar e
reprodutivo” (MISKOLCI, 2012, p. 46-47). Tomando esses três conceitos comum
dos elementos-chave, a teoria propõe um olhar sempre crítico às convenções e
às normatividades, além de pregar um não apagamento das diferenças.
Se hoje presenciamos uma cultura de sobrevalorização da virilidade e da
masculinização na subcultura gay, trata-se de um reflexo de toda uma cons-
trução histórico-social-ideológica da sexualidade, em que a homossexualidade
incorporou diversos elementos da dinâmica heterossexista e as elevou a um
novo patamar, em que quase todos padrões de comportamento impostos são
ainda mais cobrados e visados.
Existe atualmente uma demanda, dentro da subcultura gay, de que os
homens e as mulheres adotem comportamentos “discretos” (DIDIER, 2008) –
que não sejam homens femininos nem mulheres masculinas, que não pareçam
gays ou lésbicas, que não desloquem os gêneros, ou seja, que não fujam às
normas e convenções do que é tido como comportamentos “masculinos” e
“femininos”. A adoção de um estilo de vida consoante à norma hegemônica
corrobora a heteronormatividade.
A heteronormatividade é um regime de visibilidade, ou seja, um
modelo social regulador das formas como as pessoas se relacio-
nam. […] a sociedade ainda exige o cumprimento das expectativas
em relação ao gênero e a um estilo de vida que mantêm a hete-
rossexualidade como um modelo inquestionável para todos/as.
(MISKOLCI, 2012, p. 44-45, grifos nossos)

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Portanto, o parecer heterossexual cumpre a expectativa em relação a


gênero, pois não o desloca e mantém o modelo heterossexista inquestionavel-
mente como o melhor para todos. Ainda, relega à margem todos aqueles que
não o cumpre e contribui para o aumento de desigualdades dentro de uma
subcultura inferiorizada.

Identidades e imaginários

Numa tentativa de escapar a todos os imaginários negativos que a história


já lhes havia encarregado de portar, as identidades foram tomando uma fluidez
positiva, a nosso modo de ver, uma vez que romperam com a rigidez de um
imaginário categorizante e inferiorizador dos homens gays, de modo geral.
Bauman (2000), em sua perspectiva sociológica, mostra como o mundo
líquido moderno não comporta mais identidades fixas. A própria ideia de
liquidez vai de encontra às de fixidez, engessamento, solidez que antes eram
buscadas como formas de vida. Essa instabilidade, analisada no campo das
relações amorosas, encontrou um forte aliado nos aparelhos eletrônicos, pois
para o autor,
[…] é porque somos incessantemente forçados a torcer e moldar
as nossas identidades […] que instrumentos eletrônicos para fazer
exatamente isso nos são acessíveis e tendem a ser entusiastica-
mente adotados por milhões. (BAUMAN, 2000, p. 96-97)

Portanto, esse seria o espaço ideal para emergirem “novas identidades”.


A sociedade organiza os indivíduos de acordo com atributos conside-
rados naturais e esperados de cada categoria. “[…] quando um estranho nos
é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e
os seus atributos, a sua ‘identidade social’.” (GOFFMAN, 1988, p.12). Goffman
ainda diferencia identidade social virtual de identidade social real. A primeira
estaria associada a certas expectativas que fazemos em relação a um indivíduo,
demandas vindas de um retrospecto, algo que nos é anterior. Quando essas
demandas e as atributos coincidem com nossas expectativas, dizemos que se
trata de uma identidade social real.
A partir dessa leitura e de outras, podemos dizer que as identidades
sociais real e virtual dos homossexuais, em geral, nem sempre coincidem.
Ainda, parece haver um esforço para que isso realmente não ocorra. Ora, se a

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virtual é, na maioria das vezes, inferiorizante, é esperado que, por parte deles,
haja interesse em desmantelar esse pré-construído negativo e torná-lo positivo.
Sobre o termo “imaginário”, Charaudeau (2015, p. 04) explica que se trata
de um “modo de apreensão do mundo”, vindo de um mecanismo de repre-
sentações sociais que constroem significações dos objetos, dos seres humanos
e seus comportamentos. Portanto, o imaginário viria como algo de dimensão
mais variável. Se o discurso constrói dimensões do real, que só fazem sentido
a partir de apreensões que o sujeito faz do mundo empírico (realidade a signi-
ficar), realmente não caberia um julgamento fixo, do tipo verdadeiro ou falso.
Pensando ainda no lado prático desse estudo, percebemos que os ima-
ginários que circulam sobre usuários de aplicativos de encontros gays são de
axiológico sobretudo negativo. Dentro dessa prática, quem está inscrito nesse
domínio enxerga com maus olhos os homens que lançam mão da tecnologia
para fins de relacionamentos e de encontros. Em outras palavras, há um julga-
mento negativo de algo de que o próprio julgador participa.
É o que encontramos nas coletas nos meses de janeiro e março de 2016
na cidade de Belo Horizonte (MG). Muitos usuários demonstraram discursiva-
mente em suas descrições de perfil como estavam insatisfeitos com a situação
de estarem na condição de usar um aplicativo de encontro. Outros ainda afir-
maram ser algo passageiro e, por essa razão, querem encontrar alguém o mais
rápido possível para sair daquela situação “ruim”.

Aplicativos de encontros gays

As salas de bate-papo permanceram quase como formas unânimes de


relacionamentos para gays, tanto os assumidos como os não-assumidos, até a
popularização dos smartphones e o surgimentos dos aplicativos de encontro.
Quase todos [os entrevistados] começaram usando as salas de bate-
-papo online voltadas ao público gay e/ou bissexual nos anos 1990,
passaram a associar a esse hábito o uso de sites de busca de parcei-
ros na década seguinte até que, em graus variados, aderiram ao uso
dos aplicativos desde sua maior disseminação no Brasil, a partir de
2010. (MISKOLCI, 2015, p. 64)

O primeiro aplicativo foi o Grindr, lançado em 2009 e hoje considerado


a rede social, exclusiva para homens gays, mais popular entre todas (são mais

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de 5 milhões em 192 países)1. O objetivo final de usá-la, de acordo com a


empresa, é “desligar o Grindr e se encontrar com o cara com quem você estava
conversando. Estar a 0 pés de distância é a nossa missão para você”2.
Já o Hornet veio depois, em outubro de 2011. Ele mostra, primeiramente,
os usuários que estão mais próximos, mas, com a ferramenta “explorar”, é pos-
sível encontrar novos em outras localidades. É um modo “divertido e fácil para
que homens gays, bissexuais e curiosos se encontrem”3.
O Scruff é o mais recente de todos analisados – chegou ao Brasil em
novembro de 2013, mas foi lançado nos Estados Unidos em 2010. Seus cria-
dores viram no Brasil uma ótima oportunidade de marketing para lançá-lo, na
ocasião em que o país ganhava grande visibilidade no cenário internacional,
sediando a Copa Mundial de Futebol (2014) e os Jogos Olímpicos (2016).
Esse novo modo de relacionar, à primeira vista tão libertador, tem mos-
trado aos pesquisadores como o virtual está carregado de preceitos da norma
social dominante. É preciso, mesmo nesse domínio online, gerir sua própria visi-
bilidade. Se os imaginários estão carregados de axiológicos negativos em relação
ao uso do suporte aplicativo, vários são os meios que utilizam os usuários para
escapar à essa negativação. As negações, conforme pudemos constatar, variam
desde a recusa ao uso do aplicativo, à de se enquadrar ao que é tido como o
meio gay. Ou, ainda, não aceitar qualquer outro uso a não ser para “pegação”
– o interesse não está em conhecer alguém, mas apenas encontrar para fins de
sexo, por exemplo. Em outras palavras, usar esse suporte e estar nesse ambiente
é algo tão “ruim” que são necessárias várias negações para justificar o uso de
algo mal visto pela própria subcultura gay (ou parte dela).
Expressões do tipo “não criando expectativas para esse aplicativo”, “não
criando expectativas nesse aplicativo”, “esperança daquele 1% de chance”, “sem
um pingo de expectativa”, “não quero só fastfoda”, “cansado da mesmice”, “pro-
curo um motivo para deletar isso aqui”, “[procuro] um cara bacana que me tire
desse APP”, foram algumas que encontramos no decorrer dos meses de coleta.

1 Dados obtidos no site da empresa: http://grindr.com/learn-more. Acesso em: 11 mar. 2015.


2 Tradução nossa do inglês para: “Turning Grindr off and being there in-person with that guy you were
chatting with is the final goal of using the app. Being 0 feet away is our mission for you.”
3 Tradução nossa do inglês para: “Hornet makes it fun and easy for gay, bi, and curious guys to meet
each other”

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Se as sexualidades dissidentes, conforme o emprega Miskolci (2009),


hoje possuem uma alternativa de relacionamentos que “foge” da ordem social
dominante heteronormativa e de um discurso hegemônico, parece-nos, pelas
observações desses perfis, que não está ocorrendo um uso inclusivo ou positivo
daquilo que, de acordo com o idealizador do Hornet, por exemplo, foi feito
também para pessoas com motivações não sexuais. Ainda assim, mesmo para
aqueles que as possuem, o que temos observado é que existe mais exclusão do
que inclusão. Daí encontrarmos também de forma recorrente expressões do
tipo “nada de enrolação”, “preguiça de gente lero lero”, “esse aplicativo parece
mais um agência de modelos”, “preguiça desses caras que se acham”.

Considerações finais

Os imaginários sociodiscursivos sobre o uso de aplicativos de relacio-


namento gay estão carregados de axiológicos negativos. Provenientes de uma
cultura hegemônica que desconsidera quaisquer formas de relacionamento senão
as heterossexuais, esses imaginários são reiterados e reforçados na subcultura gay
de modo que geram, consequentemente, algumas exclusões. Além disso, tornam
a relação e a visão das diversas identidades gays mais difíceis, pois tendem a um
engessamento de comportamentos e de modos de apreensão do mundo.
Compreendendo que esses sujeitos são múltiplos, assumem diferentes
identidades, se descrevem de diferentes formas, possuem vivências singulares
e subjetivas e, ao mesmo tempo, partilham de uma mesma condição, seria
possível pensar mais em uma integração antes de uma negação do outro. Por
isso, a Teoria Queer se mostra tão importante para o entendimento de alguns
fenômenos sociais, como o da exclusão do obsceno, a não aceitação do que
está fora da “norma”, o rechaço às feminilidades, enfim, todos aqueles que, de
algum modo, prezam pela manutenção de padrões.
A teoria de Charaudeau sobre imaginários trouxe-nos importantes considera-
ções para entendermos a dimensão desse conceito, que integra uma universalidade
de outras ideias, como a de identidades, abordada nesse estudo. Estas, quando
tratamos de homossexuais masculinos, foram historicamente marcadas de modo
negativo pela cultura hegemônica e estão, de diversas maneiras, ainda reproduzi-
das pela subcultura gay. A articulação de identidades e imaginários foi necessária
para visualizarmos como a representação de si e do outro se dava nos aplicativos
estudados e por quê o era feito de modo predominantemente negativo.

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Referências

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 2005.

CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes, c’est bien. Les imaginaires, c’est mieux. In


Boyer H. (dir.), Stéréotypage, stéréotypes : fonctionnements ordinaires et mises en
scène, L’Harmattan, Paris. Disponível em: http://www.patrick-charaudeau.com/Les-
stereotypes-cest-bien-Les.html. Acesso em: 14 dez. 2015.

DIDIER, Eribon. Reflexões sobre a questão gay. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2008.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.


Quarta Edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988 [1963].

LOURO, Guacira L. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer.


Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MISKOLCI, Richard. Discreto e fora do meio – Notas sobre a visibilidade sexual con-
temporânea. Dossiê: Percursos digitais: corpos, desejos, visibilidades. Caderno pagu
(44), janeiro-junho de 2015: 61-90.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2 ed. rev. e ampl.


– Belo Horizonte: Autêntica: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2012. —
(Série Cadernos da Diversidade; 6)

MISKOLCI, R. O armário ampliado – notas sobre sociabilidade homoerótica na era da


internet. Revista Gênero. Niterói, v. 9, n. 2, p. 171-190, 1. sem. 2009.

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DESCONSTRUINDO ESTEREÓTIPOS GAYS:


ANÁLISE DE VÍDEO DO CANAL PÕE NA RODA

Robson Evangelista dos Santos Filho


Graduando em Comunicação Social/Jornalismo pela
Universidade Federal de Viçosa e Bolsista PIBIC/FAPEMIG
robinho_robsonfilho@hotmail.com

Mariana Ramalho Procópio


Doutora em Linguística do Texto e do Discurso pela
Universidade Federal de Minas Gerais e
Professora do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da
Universidade Federal de Viçosa
mariana.procopio@ufv.br

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente artigo traz algumas reflexões sobre os estereótipos que são cos-
tumeiramente relacionados à comunidade gay, baseadas em uma análise do
discurso do vídeo Não é por ser gay que eu..., produzido pelo canal do youtube
Põe na Roda. Para promover esta discussão, valeremo-nos das contribuições
teóricas da análise do discurso desenvolvida por Charaudeau (2008), por abor-
dagens discursivas sobre estereótipos no trabalho de Lysardo-Dias (2006) e por
discussões sobre identidade gay nos trabalhos de Almeida (2016) e Lau (2016).
A partir de nossas análises, acreditamos que o produto se propõe a desmitificar
alguns destes estereótipos, mas pode, na contramão, acabar reforçando-os por
meio das estratégias discursivas utilizadas.
Palavras-chave: gays; estereótipos; análise do discurso; vídeo; Põe na Roda.

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1. Introdução

A discussão apresentada neste artigo provém do projeto de pesquisa “A


construção de identidade(s) por meio de uma análise dos vídeos do Canal Põe
na Roda”, desenvolvido pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC), com o financiamento da Fundação de Amparo a Pesquisa
do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). A proposta é analisar como as questões
relacionadas ao universo LGBT são tratadas nos vídeos do canal Põe na Roda1,
de que modo a identidade gay, tanto a individual quanto a coletiva, é por eles
construída e se esta construção considera as alteridades existentes no próprio
grupo.
Neste artigo, apresentamos parte de nossas análises iniciais que se refe-
rem ao uso de estereótipos, numa perspectiva discursiva, para a construção de
identidades gay. Para tanto, utilizamos o vídeo Não é por ser gay que eu…2 de
modo a observar como os estereótipos são mobilizados no vídeo como uma
estratégia discursiva para a construção de identidade(s) gay.

2. Identidade e estereótipo numa perspectiva discursiva

Para falarmos de identidade em uma perspectiva discursiva, é necessária


a existência de um eu, enquanto sujeito falante, produtor de um ato de lin-
guagem, tanto quanto da consciência de si em relação ao outro. É justamente
no encontro e diferença com o outro que as identidades são materializadas.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004)
Nessa perspectiva, a identidade de um sujeito do discurso se relaciona a
duas instâncias: a identidade pessoal e a identidade de posicionamento. Esta
identidade pessoal é marcada tanto pela identidade psicossocial do sujeito
comunicante (características que o identificam como um ser empírico, tais
como sexo, idade, estatuto civil, etc.), quanto pela identidade discursiva, que
diz respeito aos papéis enunciativos do enunciador bem como pelos modos
de enunciação que ele desenvolve no momento de seu ato de linguagem. Já
a identidade de posicionamento está relacionada à posição ocupada por um

1 Disponível em: https://www.youtube.com/user/canalpoenaroda.


2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f5E5U_LO2c4.

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sujeito em relação a um campo discursivo, aos valores que a ele podem ser
atribuídos. Ao se posicionar em determinado campo, o sujeito indicará a adesão
a determinados valores e estes passarão a compor sua identidade. Por exemplo,
um sujeito que dentro do campo discursivo religioso se enuncia como cristão
ou como ateu, terá tais qualificações (e os valores a elas associados) relaciona-
dos à sua identidade.
Nesse processo de produção de um ato de linguagem (e, por conseguinte,
na apresentação e construção das identidades), somos levados, de modo invo-
luntário ou não, a nos basear em representações sociais, numa tentativa de
conferir maior legibilidade para nosso discurso. Conforme Moscovici (2003),
as representações sociais têm o objetivo maior de familiarizar aquilo que ainda
não é familiar, trazendo para o universo consensual, aquilo que é largamente
difundido.
Dentre as formas de representações sociais, acreditamos que os estere-
ótipos costumam ser mais facilmente desidentificáveis. Segundo Lysardo-Dias
(2006, p.27) “o estereótipo é uma representação fixada e partilhada por uma
coletividade que depende dele para interagir”. É possível perceber que os
estereótipos funcionam como um modo de conhecimento da realidade e de
identidade social, possibilitando uma visão compartilhada que favorece a inter-
compreensão. Todavia, Procópio-Xavier nos alerta:
Nessa perspectiva, o estereótipo é percebido como uma imagem
pré-estabelecida e cristalizada, construída a partir da influência
e dinâmica dos diversos grupos sociais. O recurso ao estereótipo
pode auxiliar na construção das identidades sociais, bem como
fomentar impressões preconceituosas e discriminatórias em função
de uma identificação pejorativa do outro. Vale ressaltar, contudo,
que estes estereótipos irão variar de grupo para grupo, de um con-
texto a outro. (PROCÓPIO-XAVIER, 2012, p.64)

Devido a esse caráter cristalizado e possivelmente pejorativo, muitos estu-


diosos preferem trabalhar com o conceito de representações sociais, que tende
a ser mais dinâmico e menos marcado negativamente. Entretanto, para este tra-
balho, pensamos ser mais cabível a utilização do conceito de estereótipo, uma
vez que acreditamos haver nos vídeos do canal uma recorrência a modelos de
representação cristalizados da identidade gay.

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3. Análise discursiva do vídeo Não é por ser gay que eu...

O canal Põe na Roda foi criado em abril de 2014 e contém atualmente


170 vídeos, contabilizando mais de 425 mil inscritos e quase 45 milhões de
visualizações3. O canal produz e lança semanalmente vídeos que tratam de
questões LGBTs, unindo ativismo, humor e informação. As produções do canal
consistem em esquetes humorísticos de temáticas variadas, além de reporta-
gens, notícias, quadros de games, de perguntas e respostas e de conselhos para
problemas do cotidiano.
Para a análise discursiva deste artigo, escolhemos como objeto de estudo
o vídeo Não é por ser gay que eu..., um dos primeiros produzidos pelo Põe na
Roda e o mais popular do canal, alcançando um total de 1895435 visualiza-
ções4. Nos quase dois minutos de duração do vídeo, são apresentados diversos
depoimentos que se propõem a desconstruir alguns dos estereótipos relaciona-
dos aos homens gays.
O vídeo se baseia na repetição de um ato de comportamento elocutivo
(CHARAUEDEAU, 2008), sendo a categoria de sujeito enunciador assumida por
vários sujeitos empíricos, que tomam a palavra e assumem o lugar de enun-
ciadores do discurso. A respeito de suas identidades psicossociais, pouco nos
é revelado – não sabemos nome nem idade de tais sujeitos, mas consegui-
mos inferir algumas características identitárias (juventude, maturidade, altura,
etc.) pela presença icônica deles no vídeo. Quando nos referimos à identi-
dade discursiva, temos a repetição do ato elocutivo – Não é por ser gay que
eu…, materializando a identidade de posicionamento desses sujeitos. Nesse
momento, todos assumem uma característica – ser gay – possíveis valores a ela
associado.
Se a repetição do ato elocutivo pode parecer ser uma restrição deste
ato de linguagem, isto é, todos estão impostos a usar uma mesma estrutura
linguístico-discursiva para se expressarem, o espaço de estratégias parece se
configurar nas informações fornecidas como continuação deste ato de lingua-
gem. Quando falamos de estratégias, referimo-nos ao conceito de Charaudeau
(2008) sobre a adoção de determinados procedimentos linguístico-discursivos

3 Dados consultados em 30 de junho de 2016.


4 Dados consultados em 05 de julho de 2016.

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com vistas a despertar determinados efeitos no interlocutor, como seduzir, con-


vencer, dentre outros. No caso de nossa análise, estamos diante de um vídeo
cuja finalidade parece ser, por meio do humor, persuadir o público sobre as
ideias ali apresentadas, como a desmistificação de alguns tipos preconcebi-
dos para a representação dos gays. A fim de alcançar esse efeito, os sujeitos
enunciadores se valem de modo estratégico de imagens cristalizadas na socie-
dade costumeiramente associadas ao público gay para tentar desconstruí-las.
Destacaremos alguns estereótipos encontrados.
Os primeiros depoimentos “Não é por ser gay que eu me depilo” e “que
eu tenho barriga tanquinho” são ditos, respectivamente, por um homem com
pelos no peito e por um gordo e parecem fazer referência à tribo gay nomeada
de ursos, da qual fazem parte homens gays, gordos e peludos, que opõem-se
aos gays conhecidos como barbies, ou seja, aqueles que valorizam excessiva-
mente a aparência e o corpo musculoso.
O destaque dado aos músculos, de acordo com Almeida (2016), começou
por volta da década de 1970, emergindo com um novo estilo que se focava
principalmente em um padrão de masculinidade, seja na aparência ou no
modo de agir e de se vestir, a fim de romper a relação entre gay e efeminado.
Este novo estilo é descrito por Muñoz e Figari (apud ALMEIDA, 2016), como
uma apropriação de símbolos da masculinidade, com a presença do visual dos
esportes masculinos na indústria pornográfica gay e com a produção de corpos
padronizados hipermusculosos nas academias gays.
Quanto à relação com aspectos do feminino, Almeida (2016) ressalta que
persiste uma relação negativa a tais aspectos no grupo de homens homosse-
xuais e que, embora ser efeminado não seja mais uma característica atribuída
ao grupo todo, ainda é algo evitável de ser anunciada. No vídeo, por exemplo,
um gay musculoso e masculinizado, argumenta que não é por ser gay que ele
fala “miando”, fazendo referência à voz fina, feminina. Nesse caso específico,
parece-nos que o uso estratégico de um estereótipo para desconstruí-lo, não
foi muito eficiente, uma vez que há a afirmação e valorização de um modelo
estereotípico para os gays (o musculoso e masculinizado) em detrimento a uma
desvalorização e desqualificação de outra forma de representação identitária:
o efeminado.
Acreditamos que o estereótipo do gay efeminado foi durante muito
tempo o mais difundido, principalmente pelos formatos midiáticos, como as
telenovelas, que representavam os gays de forma caricata, como personagens

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efeminados, vaidosos, geralmente com profissões estereotipadas e com excesso


de humor, fazendo, inclusive, uso de alguns bordões. Como exemplos, temos
os personagens Cássio (interpretado por Marco Pigossi), um estilista na novela
Caras&Bocas (2009/2010) e Crô (Marcelo Serrado) em Fina Estampa (2011),
ambas as produções veiculadas pela Rede Globo.
No vídeo do Põe na Roda são mencionadas outras imagens cristalizadas
sobre os gays. Um jogador de futebol com a camisa do Corinthians diz que não
é por ser gay que ele torce para o São Paulo, enquanto na sequência outro ves-
tido com o uniforme do time tricolor paulista questiona “Não?”. A forma como
este questionamento foi apresentado, portanto, pareceu reforçar o estereótipo,
à medida que pode se interpretar a partir dele que todos os gays torcem pelo
time do Morumbi. Vale ressaltar aqui que o apelido de “bambi” foi dado aos
são-paulinos, ou popularizado, pelo ex-jogador do Corinthians, Vampeta, no
fim da década de 19905. Termos como este já possuem conotação pejorativa
por associar a figura homossexual masculina ao veado ou, especificamente,
ao Bambi, fazendo referência ao veado delicado do desenho da Walt Disney,
o que desqualifica os gays efeminados, estereotipando-os como algo negativo
(LAU, 2016).
São associações como esta que, para Lau (2016), geram preconceitos e
imagens depreciativas sobre o que é ser gay, tomando “a orientação sexual
como errada, por ser relacionada ao mundo promíscuo em que os gays pos-
suem aplicativos de ‘pegação’, que não namoram” (LAU, 2016, p. 145), dentre
outras ideias estereotipadas que também são abordadas no vídeo do Põe na
Roda. Entendemos que a proposta era de fazer humor, mas acreditamos que a
forma como foi apresentada acabou por reforçar um estereótipo.
A questão religiosa também foi mencionada com o depoimento de um
dos produtores do vídeo, que, ajoelhado em uma igreja, falou que não é por
ser gay que ele vai para o inferno. Assim como as terminologias de doente,
criminoso e promíscuo, a de pecador também tornou-se um estereótipo, princi-
palmente a partir da Era Cristã, quando a conduta sexual passou a ser regulada
pelas autoridades civis e eclesiásticas, que definiram a prática homossexual
como pecado contra a natureza e crime passível de morte, uma vez que não

5 De acordo com entrevista dada por Vampeta no programa Roberto Justus Mais, exibido pela Rede
Record em setembro de 2012.

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era realizada para a produção de filhos (ALMEIDA, 2016) e a ideia se mantém


até atualmente, disseminada em várias religiões.
O vídeo tratou, ainda, de outros temas importantes, como a questão dos
termos opção versus orientação sexual, com um dos participantes dizendo não
ter escolhido ser gay e outros complementando que, se pudessem, até escolhe-
riam. Outro contou, acompanhado por seu pai, que não é por ser gay que não
é motivo de orgulho para ele e um casal, junto com seus dois filhos adotados,
afirmou que podem constituir uma família. Todavia, procuramos destacar nessa
breve análise aqueles que pareceram-nos mais recorrentes.

4. Considerações Finais

Por meio de nossas análises, foi possível perceber que o uso do estereó-
tipo como estratégia linguístico-discursiva parece ser de grande validade para
a elaboração de atos de linguagem em que se pretende problematizar algumas
questões e convencer o outro de determinadas posições. Adotar imagens cris-
talizadas na sociedade como recurso linguístico-discursivo tende a fazer com
que o público compreenda sobre o quê se está falando para, num segundo
momento, a partir da articulação texto e imagem e pela repetição do ato elocu-
tivo proposto no vídeo possamos desconstruir a própria imagem estereotipada.
De todo modo, ao recorrermos aos estereótipos como forma de tematizar,
de ilustrar um determinado propósito discursivo, corremos o risco de, mesmo
sem intenção, reforçar o próprio modelo cristalizado. Quando articulamos dife-
rentes estereótipos e estes se referenciam numa tentativa de demarcação de
identidade de posicionamento, podemos incorrer numa valoração depreciativa
da representação que se apresenta como diferente.
Destacamos aqui que o trabalho do canal tenta valorizar a alteridade e a
diferença, mas é possível que esteja contribuindo para o reforço da estereotipia,
principalmente por causa do humor. É preciso ressaltar, entretanto, que estas
são análises iniciais e, como o projeto ainda está sendo desenvolvido, precisa-
mos, pois, de mais estudos e articulação entre referenciais teóricos e o material
empírico, no que se refere à discussão de estereótipos, para obter resultados
conclusivos.

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5. Referências bibliográficas

ALMEIDA, D. M. V. Performatividades gays: um estudo na perspectiva brasileira e


argentina. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte – MG, 2016.

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São


Paulo: Contexto, 2004

CHARAUDEAU, P. Linguagem e Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.

LAU, H. D. Que “gay” é esse na comunidade gay? Revista Temática, ano XII, n. 02.
NAMID/UFPB, fevereiro de 2016. Disponível em:

http://www.ies.ufpb.br/ojs/index.php/tematica/article/view/27810/14943. Data de
acesso: 10 de julho de 2016.

LYSARDO-DIAS. D. O discurso do estereótipo na mídia. In: EMEDIATO, W.;


MACHADO, I.L.; MENEZES, W. (Orgs) Análise do Discurso: Gêneros, Comunicação
e Sociedade. BeloHorizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006. p. 25-36.

MOSCOVICI, S. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Tradução


por Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2003.

PROCÓPIO-XAVIER, M. R. A configuração discursiva de biografias a partir de


algumas balizas de História e Jornalismo. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-
Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Belo Horizonte – MG, 2012.

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“COMO ESQUECER”: UMA REFLEXÃO SOBRE


HOMOSSEXUALIDADE NO CINEMA BRASILEIRO

Yarle Ramalho dos Santos


Graduando do curso de Comunicação Social/Jornalismo
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
yarleramalho@gmail.com

Marcus Antônio Assis Lima


Doutor em Estudos Linguísticos
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
malima@uesb.edu.br

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente trabalho tem como finalidade analisar, de forma parcial, os modos


que o cinema brasileiro costuma retratar a personagem homossexual como
protagonista, em especial pelo gênero dramático, e o que isso influencia nos
comportamentos sociais. Com base em Luís Nogueira, André Ricardo Araujo
Virgens, Antônio Moreno e Eduardo de Figueiredo Caldas, enfrentaremos o
assunto quanto às modificações que a sociedade brasileira passou, no intervalo
entre a chegada do cinema até os dias atuais. Para deixar o trabalho mais dire-
cionado, foi utilizado o filme “Como Esquecer”, dirigido por Malu de Martino
em 2010, para observar como é a atuação da personagem homossexual e a
saída das interpretações nas telas para a realidade social.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; política; gênero; homocultura.

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Introdução

A homossexualidade vem sendo tratada de maneira oculta e brutal pela


sociedade, onde a única representação possível era/é de sujeitos inferiores.
Estereótipos politicamente tendenciosos são os responsáveis pelas configura-
ções que as cenas dos filmes refletem na vida cotidiana. Nesse sentido, Moreno
(2001), afirma que
Para compreensão de uma mensagem, todo processo de comuni-
cação está centrado na relação entre emissor e receptor. Mensagem
que é transmitida pelo emissor através de códigos, cujo domínio
pelo receptor implica o tipo de interpretação dada à mensagem.
Toda mensagem exige um tipo de discurso. (p.19)

Dessa maneira, o gênero dramático pode ser visto, então, como uma fer-
ramenta para evidenciar as intencionalidades dessas representações nos filmes,
pois, por se tratar de um gênero eivado de emoções e sensações, a legitimidade
do discurso pode ser imediata.
Sabemos que durante esses 121 anos de existência do cinema, muitos
filmes sobre temáticas LGBTT estrearam no mundo inteiro; muitos com per-
sonagens homossexuais (bem representados ou não) e muitos produzidos por
produtores e diretores publicamente assumidos. Com essa perspectiva, os crité-
rios usados para a escolha do filme a ser analisado e a metodologia empregada
neste trabalho foram: i) película que tivesse personagens LGBTT como protago-
nistas; ii) que a produção fosse nacional.

Breve história da personagem homossexual no cinema brasileiro

Por conta da inexistência de cópias de filmes nas cinematecas e em biblio-


tecas brasileiras, fazer um panorama e uma contextualização mais definitiva
quanto às produções nacionais torna-se uma tarefa árdua, porém, possível de
ser realizada.
O primeiro filme com temática LGBTT (re) produzido no Brasil data de
pouco mais de 90 anos. Foi no ano de 1923 que Luiz de Barros estreiou a
comédia “Augusto Aníbal quer casar”, exibida no Rio de Janeiro, no Parisiense
(MORENO, 2001). Por ser um filme desaparecido, não se sabe exatamente o seu
tempo de duração. Mas, por conta da época e da história que se tem a respeito

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da produção cinematográfica brasileira, é possível confirmar que essa foi uma


película do cinema mudo e em preto e branco. Estudando e refletindo sobre os
personagens homossexuais no cinema brasileiro, Moreno (2001, p.67) comenta
que “depois deste filme, provavelmente devido ao preconceito que existe em
relação ao homossexualismo, não encontramos, no decorrer do resto da década
de 1920 e de toda a década de 1930, filmes com referência ao assunto”.
Entre o anos de 1930 a 1950, a realidade do cinema brasileiro não estava
muito ligada ainda com as temáticas LGBTT, mesmo que, a cada dois anos,
alguns filmes traziam personagens LGBTT. Seguidamente, é a partir da década
de 1960 que as produções de longas-metragens intensificam as exibições com
esse tipo de assunto. Filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, produ-
zido por Glauber Rocha, “O bandido da luz vermelha”, produzido por Rogério
Sganzerla, “Estranho triângulo”, produzido por Pedro Camargo, “O amuleto de
Ogum”, produzido por Nelson Pereira dos Santos, “O cortiço”, produzido por
Francisco Ramalho, entre outros, marcaram significativamente as décadas de
1970 e 1980 do cinema brasileiro.

A homossexualidade no cinema e no cotidiano brasileiro

Nos anos 1960, o Brasil presenciava manifestações em buscas de direitos


civis, tendo como protagonistas, muitas vezes, os movimentos gays. Por sua vez,
o campo cinematográfico aproveita-se dessas temáticas para alavancar as pro-
duções a partir desses contextos. Assim, se os cenários cinematográficos, até os
anos 1970, tinham o costume de exibir os comportamentos de minorias tratan-
do-os como temas-tabu e/ou fundamentalmente estereotipados, a partir desta
época, essa realidade foi se modificando e incluindo outras representações.
A homossexualidade, por exemplo, foi ganhando espaços nos cinemas
brasileiros de forma considerável. Obviamente, não se deve esquecer que a
realidade social de tal época influencia significativamente nas práticas cinema-
tográficas em vigência. Contudo, as produções que circulavam em temáticas
LGBTT, desde os anos 1980, ainda estavam contaminadas pelos estereótipos,
nos quais os resultados são, fundamentalmente, deformantes.
Pelo retrato social oferecido nesses filmes, o homossexual seria, em
síntese: um sujeito alienado politicamente; existente em todas as
classes sociais, com preponderância na classe média baixa onde,
geralmente, tem um subemprego; de comportamento agressivo e

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que usa, frequentemente, um gestual feminino exacerbado, o que


se estende ao gosto pelo vestuário; e que, nos relacionamentos
interpessoais, mostra tendência à solidão e é incapaz de uma rela-
ção monogâmica, pois utiliza-se de vários parceiros, geralmente
pagos, para ter companhia. (VIRGENS, 2001. p. 291)

Em contrapartida e, ao mesmo tempo, dialogando, Virgens (2013) com-


prova que
Assim, mesmo podendo questionar o modo como a homossexuali-
dade era tratada, especialmente do ponto de vista do cômico e da
estranheza, em números absolutos, esse foi um período importante
para uma mudança em relação ao silêncio e à construção da invisi-
bilidade homossexual na arte cinematográfica nacional.

Filmes como “O beijo da mulher aranha”, dirigido por Héctor Babenco;


“Café com leite”, dirigido por Daniel Ribeiro; “A busca”, dirigido por Luciano
Moura e até o próprio objeto deste trabalho, o filme “Como esquecer”, dirigido
por Malu de Martino, são exemplos de produções que apresentam narrativas
autocríticas e, ao mesmo tempo, problematizadoras. Por isso, Moreno constata
que “[…] o tema era tão tabu que nem mesmo se permitia ao público imagi-
nar tal tipo de comportamento. Era como se o homossexualismo não existisse.
Embora houvesse a sociedade fingia não perceber. E o cinema seguia a regra”.
(MORENO, 2001, p.26)
As produções com protagonismo homossexual, no cinema brasileiro, per-
passaram (e a realidade atual ainda depara com esse “traje”) muito pelo gênero
cômico. Inclusive, muitos dos estereótipos encontrados no cotidiano brasileiro,
os quais contribuem para manutenção da opressão ao público LGBTT, são
reflexos dessas comédias. Por exemplo, quando a personagem homossexual é
apresentada como “a exagerada”, “a que domina de um vocabulário de jargões
independentes do seu grupo”, “a que se veste extravagantemente”, “a que pos-
sui uma gestualidade em excesso”, entre outros clichês inconvenientes, é como
se TODOS indivíduos desse grupo se comportassem daquela forma.
No gênero “drama”, a forma de abordagem dessas personagens é um
pouco diferente, mas nem por isso positiva. A personagem homossexual no
drama, geralmente, é mostrada como a figura frágil, que vivencia um contexto
negativamente complicado no seu meio familiar ou de amigos e que, por conta
dessas condições, pode afetar as relações entre as pessoas que convivem ao

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seu entorno. Nesse sentido, Moreno (2001) confirma que, além de pouco explí-
cita, a homossexualidade era todo o tempo associada ao domínio do risível,
realçado por um toque efeminado nos trejeitos e vozes dos personagens, o que,
para este autor, faria parte de um modelo severo e preconceituoso.
Complementando o pensamento de Moreno (2001), que diz respeito à
tendência majoritária dos longas-metragens nacionais, por ser vulgar, a perso-
nagem homossexual, associada a doenças, prostituições, vícios e crimes, é uma
trivialidade imposta frontalmente na vida cotidiana e, com isso, as opressões
ganharam espaços. E não podemos esquecer a problemática de raças e etnias
apresentadas nos filmes, nos quais as personagens homossexuais – protagonis-
tas ou não – usualmente são brancas e de condições financeiras elevadas.

Análise do filme “Como Esquecer”

Para facilitar o entendimento e, ao mesmo tempo, dar uma sequência


linear de compreensão ao trabalho, será utilizada uma análise estrutural e
uma significativa, conforme proposto pelos estudos de Moreno, inclusive na
formatação dos dados em tabelas (2001). Para a análise estrutural, serão consi-
derados: i) o Título; ii) o Gênero; iii) o Elenco e Personagens; iv) a Sinopse. Para
a análise significativa, será examinada a narrativa da trama e a sua gestualidade
cinematográfica.
Esse modelo de análise tem como finalidade estudar os contextos socio-
culturais que o filme “Como Esquecer” abrange, ao exibir os personagens
homossexuais – Julia, lésbica, interpretada pela atriz Ana Paula Arósio; e Hugo,
gay, interpretado por Murilo Rosa. Além disso, examinaremos as narrativas que
entrelaçam as personagens e, por último, a gestualidade que compõe a carac-
terização das mesmas.

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1. Análise estrutural do filme “Como esquecer”


Título: Como esquecer.
Gênero: Drama, Romance.
Elenco e personagens: Direção: Malu de Martino; Roteiro: José Carvalho e Sílvia Lourenço;
Produção: Elisa Tolomelli; Equipe técnica: Pedro Rossi; Personagens: Ana Paula Arósio, inter-
pretando Júlia. Bianca Comparato, interpretando Carmem Lygia. Natalia Lage, interpretando
Lisa. Murilo Rosa, interpretando Hugo.
Sinopse: Júlia (Ana Paula Arósio) é professora de literatura inglesa e não se conforma de ter
sido abandonada por sua companheira Antônia, depois de 10 anos de relacionamento. Ago-
ra, de mal com a vida, ela luta para enfrentar os fantasmas das recordações e para isso vai
contar com o apoio do amigo Hugo (Murilo Rosa), um gay viúvo, com quem irá dividir um
novo lar e tentar aprender que a vida segue em frente e os sentimentos perduram. (ADORO
CINEMA, 2010)
2. Análise significativa do filme “Como esquecer”
Linguagem Significante (denotação)
Posição do homossexual no enredo: Ambas as personagens homosse-
xuais ocupam, cinematograficamente, a posição de personagens prin-
cipais.
Contexto social ao homossexual: Ambas as personagens são de classe
média.
Tipo de montagem: O enredo do filme alterna entre movimentos line-
Narrativa
ares e flash-backs.
Tipo de interpretação: Ambas as personagens agem de maneira “natu-
ral” e “moderna” (MORENO, 2001).
Ênfase da pontuação: Grande parte da produção conta com persona-
gem narrador, escurecimentos seguidos de sonoplastias lentas, perso-
nagens ocupando primeiro plano e plano médio das fotografias.

Tipo de gestualidade: Estereotipada para ambas as personagens. Ao


personagem gay, de forma exagerada e à personagem lésbica, de ma-
neira retraída – com diálogos diretos e curtos.
Gestual
Subgestualidade: Existente em parte. Relacionado ao personagem gay,
não há artefatos que o identifique como tal orientação; à personagem
lésbica, roupas masculinas a todo o momento, mantendo estereótipos.

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3. Retrato fílmico encontrado


Como discutido anteriormente, é de praxe no cinema brasileiro, a personagem homossexu-
al ser representada de maneira estereotipada e, muitas vezes, inconveniente ao público. Ao
analisar o filme, observamos que um dos diferenciais que a diretora Malu de Martino traz
é o protagonismo da personagem lésbica, o que não era muito encontrado nas produções
nacionais com temática LGBTT no começo do século XXI.
Júlia, interpretada por Ana Paula Arósio, é uma professora de literatura inglesa que, sem
muitas explicações, é abandonada pela sua companheira de muitos anos. Inicialmente, o
que sobressai nas primeiras cenas do filme é a utilização de uma atriz bastante reconhe-
cida no país por interpretar personagens sedutoras, femininas e, em sua maioria, emocio-
nalmente felizes. Por sua vez, nesse longa-metragem, Júlia é uma personagem baixo astral
e sem muitos traços de vaidade física, com exceção nas cenas de nudez. Por conta de sua
separação afetiva, a personagem leva uma vida sentimentalista, esquivando-se da sua reali-
dade para com os outros e consigo mesma.
Outro fator interessante a ser analisado é a existência do personagem homossexual, Hugo,
interpretado por Murilo Rosa. Hugo é um amigo muito próximo de Júlia e o seu traço mar-
cante é o seu modo otimista de levar a vida, aquele tipo de pessoa que tem uma solução
para todos os problemas (dos outros). Hugo e Júlia encarnam a representação arquetípica
das personagens homossexuais contemporâneas no cinema brasileiro. Ele, por sua conduta
feliz e extravagante de ver e levar os fatos, e ela, com sua fisionomia sempre retraída, conti-
da às pessoas. Entretanto, ambos refletem (ora implícita, ora explicitamente) inseguranças
em relação à realidade que os rodeia.

Considerações finais

Esta breve e sucinta análise do filme “Como Esquecer”, tenta enfatizar


que, em busca de sublinhar as situações cotidianas e acentuar a seriedade dos
fatos, o gênero dramático tem como objeto principal o ser humano e o ambiente
que o rodeia. Em sua maioria, o drama retrata enredos laçados pelo lado senti-
mental das situações humanas, com histórias de vidas implicadamente afetivas,
complexas e com pitadas de polêmicas.
Nas entrelinhas das exibições cinematográficas brasileiras, encontram-
se, e não é de hoje, um conjunto de mensagens que vão além do enredo de
suas produções. Mensagens essas que, nas atuações, principalmente quando
interpretadas por pessoas reconhecidas pela mídia, passam a refletir nos com-
portamentos sociais e, proporcionalmente, levam a formar representações
inconvenientes à população LGBTT.

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Referências

ADORO CINEMA. Como Esquecer. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/


filmes/filme-190709/>. Acesso em: 3 de jul. de 2016.

CALDAS, Eduardo de Figueiredo. História do cinema brasileiro. 201-?. Disponível em


<http://www.coladaweb.com/artes/cinema-no-brasil-parte-1>. Acesso em: 29 de set.
de 2015.

MARTINO, Malu. Como esquecer. Produção de Elisa Tolomelli. Europa Filmes, 2010.
online.

MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro.


Homossexualidades projetadas. 2001. Rio de Janeiro. Disponível em <https://perio-
dicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2002000200020/19828>. Acesso
em: 29 de set. de 2015.

NOGUEIRA, Luís. Gêneros cinematográficos; Manuais de Cinema II. Corvilhã.


LabCom Books, 2010. p. 163.

VIRGENS, André Ricardo Araujo. A homossexualidade no cinema brasileiro contem-


porâneo: o ponto de vista do mercado. 2013. Disponível em: http://www.rua.ufscar.
br/a-homossexualidade-no-cinema-brasileiro-contemporaneo-o-ponto-de-vista-do-
mercado/. Acesso em: 3 de jul. de 2016.

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CENAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE: BREVE LEVANTAMENTO


NA REVISTA NOVA ESCOLA E NO JORNAL O GLOBO

Raquel Pinho
Doutoranda em Educação (PUC-Rio) Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro - Educação
raquel.aps@gmail.com

Rachel Pulcino
Doutoranda em Educação (PUC-Rio) Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro - Educação
rachelpulcino@gmail.com

Felipe Bastos
Doutorando em Educação (PUC-Rio)
UFJF/Colégio de Aplicação João XXIII - Ensino de Biologia
bastos.fe@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Este trabalho tem por objetivo debater os temas de gênero e sexualidade em


notícias que retratam alguns acontecimentos do cotidiano escolar. Para tanto,
foi realizada uma busca nos dois últimos anos, na versão digital de um jornal de
grande circulação e de uma revista destinada a profissionais da educação. Tal
busca contou com três combinações de palavras (gênero e escola; sexualidade
e escola; LGBT e escola) e encontrou 41 textos. Concluímos que (i) publicam
inúmeros casos de discriminação, abuso e violência no ambiente escolar; (ii)
trazem algumas discussões acadêmicas para debater tais casos; (iii) ilustram
práticas outras de resistências e sucesso; (iv) divulgam identidades outras e, com
isso, contribuem para as lutas de reconhecimento e representatividade.
Palavras-chave: gênero; sexualidade; cotidiano; mídia; escola.

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Introdução

A presente pesquisa surge da necessidade de encontrar material midiático


para compor atividades de um curso de formação continuada sobre as questões
de gênero e sexualidades na escola. As notícias seriam apresentadas para moti-
var a discussão durante determinada etapa do curso, na qual serão exploradas
cenas de preconceito e discriminação associadas a esta temática. Isso porque
Os jornais nos contam sobre acontecimentos, mas também sobre
nossas “habilidades manipulativas” sobre racionalidades, emoções
e atitudes, nem sempre entendidas de maneira consciente e com-
plexa. Nesta perspectiva, uma leitura crítica dos jornais permite
identificar um eixo comum – cotidiano, habitual, recorrente – entre
as matérias veiculadas: a temática da diversidade cultural, manifes-
tada na forma de intolerância, de não reconhecimento da diferença,
de discriminação, de desigualdade e exclusão social, entre outras.
(Mônica QUEIROZ1; Mônica ALMEIDA, 2015, p. 2)

Para encontrar as reportagens, escolhemos dois veículos de notícias escri-


tas, o jornal O Globo, por ser de ampla circulação e fácil acesso, e a revista
Nova Escola, por ser destinada às profissionais da educação.

Metodologia

Trabalhamos através do site de buscas Google2, usando (i) o operador


de pesquisa “site:” para os endereços eletrônicos da revista Nova Escola e do
jornal O Globo; (ii) as combinações de palavras: gênero e escola, sexualidade e
escola, LGBT e escola; e (iii) a ferramenta de pesquisa para o recorte temporal
de 01 de janeiro de 2014 a 31 de dezembro de 2015.
Inicialmente, encontramos 63 reportagens. Após a organização do mate-
rial, fizemos uma limpeza das recorrências e leitura das matérias, restaram 41
artigos de interesse para análise, sendo 6 na revista Nova Escola e 35 no jornal

1 Optamos por referenciar autoras e autores com nome e sobrenome. Consideramos esta opção uma
tentativa de evidenciar os gêneros de pesquisadoras e pesquisadores e, por consequência, as mu-
lheres na pesquisa, o que pode contribuir com o reconhecimento e a valorização da identidade
feminina no campo e de forma mais ampla (Raquel PINHO; Rachel PULCINO, 2016).
2 https://www.google.com.br/

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Sexual e de gênero
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O Globo. Atribuímos esta diferença quantitativa a dois fatores. Em primeiro


lugar, a revista trabalha com edições mensais, enquanto o jornal tem tiragem
diária. Em segundo lugar, a revista aborda a temática de forma mais elaborada,
enquanto o jornal tende a indicar dados e fatos com análises menores dos
temas.
Construímos algumas categorias para facilitar a análise dos trabalhos.
Buscamos as recorrências em: (i) gênero das autoras3, (ii) momento em que as
notícias foram publicadas, (iii) local do relato, e (iv) abordagem que a matéria
dava a gênero e sexualidade. A Tabela 1 apresenta as ocorrências para cada
categoria.

Tabela 1: Categorias de análise dos trabalhos selecionados


Porcentagem Porcentagem
Nova Escola O Globo
(%) (%)
Autoras 2 28,57 6 17,14
Gênero

Autores 3 42,86 15 42,86


Não identificado 2 28,57 14 40,00
Somatório 7 35
2014/1 1 16,67 3 8,57
Momento

2014/2 0 7 20,00
2015/1 5 83,33 15 42,86
2015/2 0 10 28,57
Somatório 6 35

3 A regra gramatical da língua portuguesa que define o masculino como elemento neutro em subs-
tantivos e adjetivos foi deliberadamente invertida para o feminino, independentemente do sexo dos
sujeitos ao qual o termo se refere. Seguindo esta lógica, os substantivos e adjetivos usados no mas-
culino neste texto ocorrem somente em referência específicas a sujeitos masculinos (Felipe BASTOS,
2015). “É, pra mim, estranho que pessoas sofisticadas em questões de poder, política e linguagem
continuem isentando a gramática de qualquer cumplicidade na perpetuação de relações de de-
sigualdade. (...) Apesar das dificuldades de lidar com essa questão em uma língua extremamente
flexionada como o Português, continuo achando que vale a pena tentar encontrar soluções (N. do
T.)” (Elizabeth ELLSWORTH, 2001, p. 75)

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Brasil 6 100,00 21 60,00


Ásia 0 2 5,71
Europa 1 16,67 3 8,57
Localidade

América do Norte 0 6 17,14

Não identificado 0 6 17,14

Somatório 7 38
Biológica 0 2 5,71
Sociocultural 5 83,33 23 65,71
Abordagem

Criminalista 0 5 14,29
Psicológica 1 16,67 7 20,00
Ética 0 6 17,14
Pedagógica 3 50,00 20 57,14
Somatório 9 63

Fonte: Elaboração própria.

Resultados e Discussão

Sobre o gênero das autoras, apesar de nos dois veículos de notícias haver
uma maior quantidade de autores, acreditamos não ser possível traçar muitas
considerações, uma vez que também há uma alta taxa de artigo não assinados.
O período principal de publicação das notícias ficou em torno do pri-
meiro semestre de 2015. Isso parece ocorrer devido ao momento dedicado à
formulação dos planos estaduais e municipais de educação, de acordo com o
Plano Nacional da Educação (PNE), sancionado em junho de 2014 (BRASIL,
2014), no qual o debate das temáticas de gênero e sexualidade enfrenta retro-
cessos, porque as discussões sobre tais temáticas promovidas pelas 1ª e 2ª
Conferência Nacional de Educação (CONAE), em 2010 e 2014, foram vetadas
no documento.
Se o gênero das autoras não nos permite concluir muito sobre os tex-
tos, a localidade das reportagens traz dados mais interessantes. A revista Nova
Escola é uma revista voltada para o Brasil, não tem correspondentes externos e
não indica em qual região do país a matéria foi escrita. Porém, é editada pela
Fundação Victor Civita, cuja sede fica na cidade de São Paulo. Ou seja, por
mais que não esteja explícito, isso localiza preocupações e interesses, isso diz

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de um lugar. Já o jornal O Globo se propõe internacional, tem correspondentes


externos e geralmente indica onde a matéria foi escrita, inclusive pontuando
diferentes cidades e estados. Nas matérias localizadas no Brasil, temos: 13 tra-
balhos no Rio de Janeiro, 3 no Distrito Federal, 3 em São Paulo, 1 no Rio
Grande do Sul e 1 no Amazonas. Vemos que as notícias são oriundas da região
sudeste e que o Rio de Janeiro aparece como um local de debate efervescente
da temática.
Por fim, sobre as abordagens, separamos seis grupos de análise: bioló-
gica, sociocultural, criminalística, psicológica, ética e pedagógica. Algumas
matérias apresentavam mais de um tipo de abordagem. A abordagem bioló-
gica traz os temas: corpo, sistema reprodutor, saúde individual, saúde coletiva,
doenças e profilaxia, DST/AIDS, menstruação, concepção, gravidez e contra-
cepção. A abordagem sociocultural é relativa aos temas: gênero, orientação
sexual, movimentos sociais, identidade, diferença, diversidade, interseccio-
nalidade, preconceito, políticas públicas, mídia, família, processos históricos,
rituais, casamento e religião. A abordagem criminalista indica crimes de abuso
e violência sexual cometidos na escola. A abordagem psicológica inclui: rela-
cionamentos, emoções, prazer, orgasmo, masturbação, comportamentos e
autoestima. A abordagem ética apresenta os temas: valores, diálogo, respeito,
solidariedade, regras morais, aborto, liberdade sexual e tabus. Por fim, a aborda-
gem pedagógica traz: práticas escolares, currículo, documentos governamentais
para a escola e para a educação, processo de ensino-aprendizagem, atividades
escolares, uso dos espaços da escola, disciplina, desempenho, evasão, didática,
materiais didáticos e educação sexual.
No material analisado, podemos observar o que Michel Foucault (1984)
aponta como um dispositivo da sexualidade, isto é, um conjunto de discursos,
práticas e instituições que se modifica ao longo do tempo e atua no gerencia-
mento e controle de corpos, de modos de ser e das populações. Este dispositivo,
ao legitimar certos modos de exercício da sexualidade, também produz norma-
lidades, expectativas de gênero, saberes e verdades morais.
No início deste século, Guacira Louro (2000) apontou sobre como os
saberes sobre as sexualidades aconteciam na escola: (i) através de informações
de um mundo à parte das crianças, destinado ao mundo das adultas; (ii) em
estreita relação com a noção de família nuclear; (ii) é intimamente voltada e
praticamente exclusiva para a reprodução humana no viés heteronormativo; e
(iv) cercada pela doença, pela higiene e, portanto, para o cuidado e o controle.

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Apesar da escola ainda apresentar as características listadas acima, o


espaço escolar é um terreno de disputas. Passados dezesseis anos da análise
de Guacira Louro, as notícias de 2014 e 2015 nos mostram a pressão de grupos
conservadores, principalmente religiosos, para manutenção e afirmação de seus
valores na escola; nos mostra também a rigidez da instituição escolar que pouco
dialoga com suas alunas, principalmente com aquelas que carregam consigo a
diferença. Todavia, vemos uma juventude questionadora dos padrões, que não
aceita e que não se cala diante das posições conservadoras da escola; vemos
também escolas que se abrem para a diversidade e estão adotando medidas
para tornar o espaço escolar mais plural e democrático. Ou seja, podemos dizer
que hoje há um crescente de questionamentos sobre o lugar da diversidade na
escola, que pode propiciar mudanças e outros rumos para a educação.

Considerações Finais

As reportagens analisadas demonstram que o trabalho pedagógico é


constantemente atravessado pelos temas de gênero e sexualidade, isto é, pelas
diferentes identidades e valores que habitam a escola. Seja mantendo uma
rigidez conservadora ou abrindo um diálogo com a diferença, a escola coti-
dianamente assume um posicionamento em relação à diversidade de gênero e
às sexualidades. Além disso, em tempo de disputas nas propostas e práticas de
políticas públicas para a educação, o trabalho docente neste campo do conhe-
cimento corre o risco de ser silenciado e excluído.
Apontamos, portanto, que jornais e revistas são recursos pedagógicos
importantes para fomentar debates tanto na escola, quanto nos espaços de for-
mação de professores, porque (i) publicam inúmeros casos de discriminação,
abuso e violência no ambiente escolar; (ii) trazem conceitos e teorias acadêmi-
cas para debater tais casos; (iii) ilustram práticas escolares outras de resistências
e sucesso; e (iv) divulgam identidades outras e, com isso, contribuem para as
lutas de reconhecimento e representatividade.

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Bibliografia

BASTOS, F. Diversidade sexual na prática de professores/as de ciências: da polêmica


ao (re)conhecimento escolar. 37ª Reunião Nacional da ANPEd, Florianópolis, 2015.

BRASIL. Plano Nacional de Educação 2014-2024: Lei nº 13.005, de 25 de junho


de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências.
Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014.

ELLSWORTH, E. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de edu-


cação também. In: SILVA, T. T. (org. e trad.) Nunca fomos humanos - nos rastros do
sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. pp. 07-76.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 4. ed. Rio de


Janeiro: Graal, 1984.

LOURO, G. Currículo, género e sexualidade. Porto: Porto Editora, 2000.

PINHO, R.; PULCINO, R. Desfazendo os nós heteronormativos da escola: contribui-


ções dos estudos culturais e dos movimentos LGBTTT. Educação e Pesquisa, São
Paulo, ahead of print, p. 1–16, 2016.

QUEIROZ, M.; ALMEIDA, M. Cenas do preconceito racial: aproximações do cotidiano


com a educação. 37ª Reunião Nacional da ANPEd, Florianópolis, 2015.

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POR UM POUCO MAIS DE SAL: ALGUMAS LEITURAS


SOBRE A LESBIANDADE NOS UNIVERSOS DE CAROL

Mariana Souza Paim


Mestra em Estudos Literários / UEFS
Professora da Rede de Educação Básica do Estado da Bahia
marianaspaim@gmail.com

GT 03 - Mídias, narrativas e corporalidades: (re)pensando as novas abordagens teóricas


e metodológicas nos estudos da homocultura

Resumo

O presente trabalho pretende investigar as representações da lesbiandade e de


gênero que permeiam o universo de Carol. Assim, interessa-nos compreender
de que maneira as personagens experimentam e elaboram sua sexualidade a
partir das narrativas que se desenvolvem no livro O preço do sal, ou Carol
(1952), de autoria da escritora norte americana Patricia Highsmith e aquelas que
permeiam a adaptação cinematográfica Carol (2015), dirigida por Todd Haynes.
Ambas as obras alcançaram grande popularidade e lançam luz para pensarmos
as vivencias afetivas entre mulheres dentro de um contexto fortemente marcado
pelo conservadorismo.
Palavras-chave: Lesbiandade. Gênero. Representação. Literatura norte ameri-
cana. Cinema.

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Introdução

As representações acerca do amor entre mulheres na literatura se fazem


presentes ao menos desde o século VII a.C. Dos apaixonados versos de Safo1
aos dias atuais, poderíamos mesmo asseverar que este foi um tema recorrente
nas obras literárias, entretanto, raro tem sido constatar que a constância dessa
representação oferece ou reflete uma concepção positiva sobre as praticas afe-
tivas/sexuais entre mulheres.
Talvez esse panorama nos ofereça uma chave para entendermos o
sucesso e popularidade alcançados por The price of salt ou Carol, seja em sua
versão cinematográfica ou o romance homônimo do qual partiu a adaptação.
Ambientada no contexto dos Estados Unidos dos anos 1950, a narrativa nos
oferece uma representatividade que se isenta das construções negativamente
construídas e associadas as vivencias da lesbiandade.
Originalmente publicado com o título “The price of salt” sob o pseudô-
nimo de Claire Morgan em 1952, o romance teve bastante repercussão à época,
chegando a vender mais de um milhão de exemplares. No posfácio, incluído
em uma nova edição em 1989, a própria autora conta que chegava a receber
de dez a quinze cartas endereçadas a Claire Morgan, de pessoas que a agrade-
ciam pela história, a comentavam ou pediam conselhos. Segundo ela, “Antes
deste livro, os homossexuais, masculinos e femininos, nos romances america-
nos, eram obrigados a pagar pelo seu desvio cortando os pulsos, se afogando
em piscinas, ou mudando para a heterossexualidade (assim se afirmava) ou mer-
gulhando – sozinhos, sofrendo, rejeitados – em uma depressão dos infernos.”
(HIGHSMITH, 2015, p. 296). Essa outra representação da lesbiandade, a qual a
autora se refere e que é empreendida no romance, é algo que realmente surpre-
ende tendo em vista o contexto em que ele foi publicado.

1 Safo viveu na cidade de Mitilene entre os século VII e VI a.C., na ilha grega de Lesbos. É considerada
uma das maiores poetisas líricas da antiguidade. Seus poemas falavam sobre amor e beleza, e em
sua maioria eram dirigidos às mulheres. Por abordar a temática homoerotica, boa parte da sua obra
foi queimada durante a Idade Média, restando da sua produção literária apenas um poema completo
e alguns fragmentos. A partir do século XIX o relacionamento sexual entre mulheres começou a ser
denominado de lesbianismo ou safismo, termos que fazem referência à autora. (MONTEMAYOR,
1986.).

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Autora de mais de vinte livros, Praticia Highsmith nasceu na cidade de


Forth Worth, no Estado americano do Texas, em 1921 e desde muito jovem
cultivava uma relação estreita com a escrita, seja através do habito de escrever
os volumosos diários que iniciou ainda na infância e manteve por toda a vida,
ou por meio da publicação de pequenas histórias em periódicos estudantis e
jornais municipais. Entretanto, sua primeira publicação em editora só se dá em
1950, época em que vivia na cidade de Nova York, com a edição de Strangers
on Train, esse romance policial de estreia alcançou grande sucesso, tendo logo
em seguida os direitos de adaptação vendidos a Alfred Hitchcock, que lançou
o filme com título homônimo2 no ano seguinte.
Já nesse primeiro romance ficam evidentes elementos que permeariam todas
as suas obras vindouras: a opção pela caracterização dos traços psicológicos das
personagens ao invés da manutenção do ar de mistério na resolução dos crimes,
a crueldade, a banalidade de mal, o questionamento da moral, a ideia de destino
e a fatalidade que rege e conduz inexoravelmente a vida das personagens. Tanto
que a pecha de “autora de thrillers”, por vezes pode ofuscar a qualidade literária
de seus textos e os aspectos relacionados a presença da sexualidade em sua obra.
Assim, mesmo já sendo uma autora bastante conhecida à época, o
manuscrito de The price of salt foi rejeitado por sua editora, a Harper & Bros,
em 1951, nessa ocasião argumentaram que a publicação desse livro quebraria
com o rotulo, que então tentavam elaborar para a escritora, enquanto autora
de “suspense”. Patrícia só conseguiria publica-lo em outra companhia, usando
o pseudônimo de Claire Morgan. Essa querela editorial, tanto a negativa da edi-
tora que então a publicava, quanto o recurso ao uso do pseudônimo, faz com
que pensemos sobre a cesura imposta aos temas relacionadas a sexualidade
feminina e as escritoras no período.
De modo intrigante a película Carol também demorou a vir a público,
o filme passou quase doze anos para ser montado. Mas quando as filmagens
começaram em março de 2014, em Cincinnati, Ohio, duraram apenas 34 dias.
O filme foi rodado em Super 16 mm e estreou no Festival de Cannes 2015, onde
concorreu à Palma de Ouro. A película foi premiada com o Queer Palm, além

2 No Brasil o filme estreou com o título de Pacto Sinistro.

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de receber diversas indicações ao Oscar, foi também eleito pelo American Film
Institute, um dos 10 melhores filmes de 20153.

Representações de lesbiandades no universo de Carol

O enredo tem como ponto de partida o cenário da cidade de Nova York


da década de 1950, lugar onde se dá o encontro entre Therese Belivet, uma
jovem de 19 anos que trabalhava durante o período de natal na loja de depar-
tamentos Frankberg’s, na seção de bonecas e Carol Aird, uma mulher de mais
de 30 anos que vai até a loja comprar um presente para filha. Esse encontro
impacta e traspassa Therese por uma multiplicidade de sensações que ela só
consegue divisar no decorrer da narrativa.
Entre uma aproximação que vai crescendo e a decisão de partir em uma
viagem rumo ao oeste, por vezes a narrativa penetra no fluxo de consciência
de Therese e aí vislumbramos o crescimento do seu afeto e a tomada de cons-
ciência do seu desejo por Carol, essa por sua vez só conseguimos vislumbrar
através da visão de Therese, de modo que à nós, ao lermos a narrativa, por
vezes temos a percepção de que o que conseguimos apreender a respeito da
personagem Carol e sua personalidade resvala através da áurea de fascínio que
a figura da mesma exerce na própria Therese, para qual Carol permanece sendo
um grande enigma, envolta em mistério.
Os sentimentos de Therese se intensificam e chegam a beirar a devoção,
ela se coloca sempre disponível e disposta a satisfazer os desejos e necessi-
dades de Carol, sem hesitar, até que Carol, pressionada pela chantagem do
marido, com quem até então tentava negociar um processo de divórcio e a
guarda da filha, retorna a Nova York deixando em Therese a sensação do aban-
dono. Na narrativa é esse acontecimento que produz uma virada na trajetória
da personagem, já que a partir dessa ruptura, Therese sente então que deverá
desempenhar um outro papel, encarnar a vida de uma outra pessoa, diferente
daquela que ela vinha sendo. É meio a esse tumulto de sensações e reflexões
que a personagem ganha força e escolhe ser a protagonista da própria vida.

3 Mais dados técnicos em: http://www.imdb.com/title/tt2402927/. Consultado em 25/06/2016. Lista de


premiações em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carol_(filme)#cite_note-1 Consultado em 26/06/2016.

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O romance pode ser entendido como um romance de formação, já que


acompanhamos o momento da tomada de consciência de Therese Belivet sobre
a própria sexualidade e o seu amadurecimento afetivo/sexual/profissional. O livro
encontra-se dividido em duas partes e em diversos subcapítulos, sendo que na pri-
meira parte somos levados a emergir no cotidiano de Therese e seu encontro com
Carol Aird, sua aproximação, a descoberta e (re) significação dos seus sentimentos.
Na segunda parte é o espaço-tempo onde se desenvolve a viagem que
fazem através do Oeste. O Oeste aí pode servir como metáfora ao território do
selvagem, do desejo e reforça o imaginário sobre a conquista dessa terra pelos
americanos. O fato de experimentarem a sensação de des-enraizamento, longe
dos espaços e pessoas que conhecem, permite que as personagens explorem
melhor suas sensações e vivenciem mais abertamente o relacionamento que se
principia, nesse sentido ambas gozam de uma outra liberdade que talvez lhes
fosse privada em Nova York, já que não têm que se preocupar com compro-
missos, datas, locais, nem ninguém, “é acordar e ser”, fazer e ir onde desejam.
O romance surpreende sobretudo por fazer com que vislumbremos uma
outra logica relacionada as vivencias femininas no período, apesar de estra-
rem situadas em classes sociais distintas, Carol Aird na condição de mulher
abastarda, casada até então recentemente com um rico empresário e Therese
Belivet, uma moça pobre, filha de imigrantes e vinda do interior para tentar a
sorte na cidade grande, ambas se movem e demonstram total autonomia através
da cidade acalentando seus projetos pessoais/profissionais. Carol já havia tido
uma loja de móveis e Therese passa por sucessivos empregos temporários para
conseguir dinheiro para realizar-se profissionalmente na carreira de cenógrafa.
Ao pensarmos o contexto em que se desenvolve a história, a década de
1950, foi historicamente marcada pela Segunda Guerra Mundial, conflito de
onde emergiu e se consolidou o poderio bélico e econômico norte-americano.
Este foi um período marcado por mudanças sociais, mas também pelo recru-
descimento do conservadorismo.
Durante a Segunda Guerra houve uma migração da população norte-a-
mericana do interior para os grandes centros a fim de preencher a mão de obra
enfraquecida, porque parte considerável da população, sobretudo masculina,
foi levada para os campos de batalha. Nesse movimento se inscreve a massiva
entrada das mulheres no mercado de trabalho, mas onde perdurava o modelo
de mulher recatada, mãe e dona de casa.

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Os anos 1950 também faram marcados pelo forte tom conservador do


governo de Joseph McCarthy, já que a política estava então atenta a qualquer
ato que confrontasse a ordem da coisas. Nesse sentido, havia um temor constan-
temente alardeado acerca da ameaça do regime comunista e sua propagação,
assim qualquer comportamento que fugisse ao padrão inscrito nesse contexto
era lido como uma afronta à ordem estabelecida, sendo gays e comunistas
alvos privilegiados dessa perseguição. Dessa maneira, muitos gays foram demi-
tidos de empregos e passaram sofrer outras sanções por serem considerados
enquanto um “perigo à sociedade”. (MACRAE, 1990).
Diante disso, conseguimos, através das personagens que se situam no
entorno de Therese e Carol, perceber um caleidoscópio de juízos de como a
sexualidade das/entre mulheres era vista socialmente. Essas personagens são em
sua maioria homens, são eles: o ex-marido Arge Aird, o ex-namorado de Therese,
Richard, os amigos Phill e Dannie, que o tempo inteiro dizem que o que ambas
sentem uma pela outra passará e que elas não sabem o que estão fazendo. Como
ápice da demonstração do machismo, ilustramos a forma como o ex-marido de
Carol, tenta chantageá-la e pressiona-la através do processo de disputa da guarda
da filha, através da ameaça da exposição do seu relacionamento com Therese, a
partir de “provas” reunidas por um detetive particular que é contratado por ele
para as perseguir ao longo de toda a sua viagem rumo ao Oeste.

Considerações Finais

As narrativas, tanto o romance quanto o filme são extremamente sensí-


veis, há algumas diferenças com relação a caracterização das personagens e de
certa maneira no filme a personagem de Therese perde um pouco talvez da sua
complexidade. Entretanto ambas as narrativas conseguem romper com vários
discursos do senso comum acerca das relações sexuais/afetivas entre mulheres
que poderia compor o imaginário sobre o período.
As personagens vivem assim o afeto de uma pela outra sem se questiona-
rem sobre os seus sentimentos, que é tratado o tempo inteiro como algo natural,
que acontece sem maiores razões ou conflitos. O final é feliz, com a escolha e
permanência de uma ao lado da outra, apesar de toda a pressão social em seu
entorno, sendo que em momento algum há mais ou menos angustia no desen-
rolar da relação por ser essa uma relação lésbica, e talvez mesmo essa angustia
só se faça presente através dos conflitos exteriores que vão se colocando, como
desafio e incentivo, para permanecerem juntas.

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Referencias

HIGHSMITH, Patricia. Carol. Porto Alegre: L&PM, 2015. Tradução de Roberto Grey.

HAYNES, Todd. Carol. Estados Unidos-Inglaterra, 2015.

MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: identidade sexual e política no Brasil


da abertura. Campinas, Editora da UNICAMP, 1990.

MONTEMAYOR, Carlos. Safo. México, D. F., Editorial Trillas, 1986.

http://www.imdb.com/title/tt2402927/. Consultado em 25/06/2016.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Carol_(filme)#cite_note-1 . Consultado em 26/06/2016.

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(RE)CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES DE GÊNERO E


DAS CORPORALIDADES EM A PELE QUE HABITO

Vivian da Veiga Silva


Mestra em Educação
Professora assistente – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFMS (NEG/UFMS)
viviveigasilva@gmail.com

Ana Maria Gomes


Doutora em Sociologia
Professora aposentada – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFMS (NEG/UFMS)
baixagomes@gmail.com

GT 03 - Mídias, narrativas e corporalidades: (re)pensando as novas abordagens teóricas


e metodológicas nos estudos da homocultura

Resumo

A obra do cineasta Pedro Almodóvar é marcada pela contestação das normas


sociais vigentes e pela abordagem de temas referentes a gênero e sexualidade,
interpelando a sociedade patriarcal e hetoronormativa com a naturalização dos
corpos e dos comportamentos considerados dissidentes. O presente artigo tem
como objetivo propor uma reflexão sobre o filme A pele que habito (2011):
como forma de vingar-se do estuprador de sua filha, o cirurgião Robert realiza
em Vicente uma cirurgia de redesignação sexual, transformando-o em Vera. A
partir dessa história e de outras narrativas utilizadas por Almodóvar para com-
por seu filme, é possível discutir temáticas como violência de gênero, padrões
estéticos e (re)construções de identidades de gênero e de corporalidades.
Palavras-chave: Almodóvar; A pele que habito; violência de gênero; identida-
des de gênero; corporalidades.

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Introdução

A obra cinematográfica de Pedro Almodóvar é marcada pela contestação


das normas sociais vigentes e pela abordagem de temas referentes a gênero e
sexualidade. Através da apresentação de personagens que vão das mulheres
histéricas às travestis que engravidam suas companheiras, o cineasta interpela a
sociedade patriarcal e heteronormativa com a naturalização dos corpos e com-
portamentos considerados dissidentes.
Todas essas temáticas convergem no filme A pele que habito (2011), em
que Almodóvar utiliza-se de várias influências cinematográficas e literárias para
contar a história de Robert, um cirurgião plástico que executa uma cruel vin-
gança contra o estuprador de sua filha: por meio de uma cirurgia, transforma
Vicente em Vera, mantendo-a como prisioneira e à mercê de seus desejos.
O que poderia ser apenas mais um thriller psicológico sobre busca de
vingança, nas mãos de Almodóvar, se transforma em um campo fértil de análise
das relações de gênero e de suas práticas violentas, bem como das construções
e (re)construções das identidades de gênero. Nesse sentido, o presente trabalho
tem como objetivo analisar esses elementos apresentados nessa obra cinemato-
gráfica, bem como de duas referências utilizadas pelo cineasta: o livro Tarântula
(1984), do escritor Thierry Jonquet, e o filme Os olhos sem rosto (1960), do
diretor George Franju.

O gênero submisso

De acordo com Scott (1995, pág.86), gênero é uma categoria útil de aná-
lise para compreender diversas esferas de nossa sociedade, sendo um aspecto
relacional e que não deve ser utilizado como sinônimo de mulher, sendo com-
preendido como “[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de
significar as relações de poder. [...]”.
Nesse sentido, a representação e os valores referentes ao feminino são
construídos em uma relação diametralmente oposta à representação e aos valo-
res referentes ao masculino, de maneira a expressar relações desiguais de poder,
no qual o feminino surge como elemento submisso e dominado pelo masculino.
De Lauretis (1987), leva até o cinema a perspectiva exposta acima, quando
diz que este coloca-se como uma tecnologia de gênero, no sentido de que o

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aparato cinematográfico produz discursos e representações de gênero. Porém,


não se trata apenas do modo pelo qual a representação de gênero é construída,
mas como é subjetivamente absorvida por cada pessoa a quem se dirige. Para a
autora, a sexualidade no cinema não é gendrada (marcada por especificidades
de gênero), mas é na verdade um atributo ou uma propriedade do masculino.
Já em 1960 encontramos um exemplo no filme Os olhos sem rosto, em
que o professor e cirurgião plástico Génessier busca reconstruir o rosto de sua
filha Christiane, que foi destruído em um acidente automobilístico. Com o auxí-
lio de sua assistente, Louise, ele rapta e mutila belas jovens, na tentativa de
realizar um transplante de rosto. E chegamos, então, em Pedro Almodóvar e
seu filme.
Além do visual e da estética, Almodóvar utiliza referências e elementos
dessa obra cinematográfica para compor A pele que habito. Primeiramente,
podemos destacar a relação ciência e ética. Nos dois filmes, trata-se de cirur-
giões plásticos, cientistas renomados, que realizam experiências com cobaias
humanas sem nenhuma preocupação com a ética: Robert realiza uma cirurgia
de redesignação sexual forçada e utiliza o corpo de Vicente/Vera como base
para realização de experiências de transformação das características da pele
humana, tornando-a mais resistente; Génessier rapta e mutila jovens mulheres
em busca de um transplante de rosto para sua filha, descartando, sem remorsos,
os corpos das mesmas, tratando esses corpos como objetos a serem utilizados
e posteriormente descartados e forçando a filha a ser submetida a inúmeras
cirurgias, mesmo contra sua vontade, tornando o corpo da própria filha também
um objeto a ser moldado por sua obsessão.
No mundo real e no mundo cinematográfico, a manipulação dos corpos
é antiga e recorrente, sobretudo dos corpos femininos. Cada período histórico
determina os padrões estéticos que devem ser seguidos, porém, ao remeter-
mos às relações desiguais e assimétricas de gênero e ao fato de que o homem
sempre se coloca como sujeito histórico e detentor do discurso científico, per-
cebemos que o gênero masculino acaba por determinar o que é belo e o que é
feio, o que deve ser mudado e readequado. Em Os olhos sem rosto, é o padrão
de beleza a qualquer custo do pai (masculino) que é buscado e não o desejo
da filha, que quer recuperar seu rosto, mas não a qualquer preço. Da mesma
forma, atualmente as jovens acabam buscando ao preço de, muitas vezes, sua
vida e saúde, uma estética que é construída e vinculada ao desejo masculino e
não aos delas.

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Almodóvar também utilizou como referência para o roteiro de seu filme


o livro Tarântula (1984), do escritor francês Thierry Jonquet. Na obra literá-
ria, Richard Lafargue mantém aprisionada em sua casa Ève, uma bela mulher.
Por trás desse cativeiro, existe uma história de obsessão e vingança: a filha de
Richard, Viviane, foi violentamente estuprada, o que a levou a um estado de
transtorno mental e a internação em um manicômio. Para vingar-se, Richard
captura um dos estupradores, Vincent, e executa sua vingança, impondo-lhe
uma mudança de sexo, tornando-o Ève.
Embora o filme de Almodóvar tenha um desenvolvimento próprio, alguns
elementos presentes no livro são mantidos no filme, sobretudo o enredo:
movido pelo desejo de vingança contra o homem que estuprou sua filha, o
médico o captura e realiza uma cirurgia de redesignação sexual forçada. Com
isso, podemos questionar: por que transformar um corpo masculino em um
corpo feminino coloca-se como um ato de vingança? Porque ao corpo feminino
é permitido e tolerado todo o tipo de submissão e violência; a sociedade patriar-
cal e machista, as relações de gênero desiguais e assimétricas justificam os atos
de violência cometidos contra o feminino. Por isso, não se trata de extirpar o
pênis utilizado para violar suas filhas, mas de transformar um corpo de violador
em um corpo a ser violado.
E é justamente isso que os respectivos personagens farão com suas respec-
tivas vítimas: realizar uma violência de gênero. Richard força Ève a se prostituir,
sobretudo com clientes que empreguem métodos sádicos; Robert guarda Vera
para si, para satisfazer seus próprios desejos, inclusive colocando nela o rosto
de sua falecida esposa. Nos dois casos vemos duas expressões de violência: a
transexualidade forçada, que fere a identidade de gênero de Vincent e Vicente;
e uma vez que seus corpos masculinos são transformados em corpos femininos,
Richard e Robert mantém a imposição do exercício da sexualidade, a manipu-
lação de seus desejos e o domínio sobre seus corpos.
Nos dois enredos, os personagens que praticam a vingança sentem desejo
por suas vítimas, mas lidam com isso de maneiras diferentes. No livro, Richard
reprime seu desejo por Vicent/Ève, pois apesar do corpo feminino, ele sabia
a verdade sob aquela corporalidade: uma transexualidade forçada, um corpo
feminino imposto àquele que ele subjugara. No fim, ele acaba derrotado e
sucumbe aos seus sentimentos por ele/ela. No filme, Robert não esconde seu
desejo por Vicente/Vera, e justamente recria nele/nela o corpo e o rosto de sua
falecida esposa, para justificar seu desejo.

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(Re)construções de identidades de gênero e de corporalidades

Ainda traçando um paralelo entre as duas mídias, temos a maneira como


os personagens lidam com sua transexualidade forçada. No livro, Vicent sofre
por sua transformação e por toda a violência ao qual é submetido, porém
acaba por assumir sua nova corporalidade e torna-se Ève: “[...] Sim, era este o
plano dele! Não humilhá-la, prostituindo-a após havê-la castrado, defumado,
estragado, após haver destruído seu corpo para com ele construir outro, um
brinquedo de carne [...]” (JONQUET, pág. 146). Ao final, Ève tem a chance
de matar Richard e fugir, porém desiste. Após matar Alex, Richard, derrotado,
entrega a arma para Ève. “Ele a fitava, seu olhar nada deixava transparecer
de seus sentimentos, como se quisesse alcançar uma neutralidade que permi-
tisse a Ève fazer abstração de qualquer piedade, como se quisesse voltar a ser
Tarântula, Tarântula e seus olhos frios, impenetráveis. Ève viu-o apequenado,
aniquilado. Deixou cair o colt.” (pág. 157).
A vingança e a violência utilizada por Richard contra Vincent/Ève é tão
extrema que acaba por destruir sua identidade de gênero, deixando-lhe nada
a não ser a possibilidade de aceitar sua nova corporalidade e a companhia de
seu algoz. Nesse ponto, é possível refletir: será possível forçar alguém a aceitar
uma nova corporalidade, aceitar a ressignificação de seu corpo, aceitar uma
identidade sexual e de gênero forçadas?
No filme, Vicente se recusa a ser Vera e em várias passagens do filme isso
fica explícito. Em uma primeira cena, a fúria expressada ao entrar no quarto e
se deparar com os vestidos que ele/ela deveria usar a partir daquele momento,
expressando a não aceitação com relação a transformação do seu corpo. Ele/
Ela rasga todos os vestidos e expressa todo o horror e a fúria quando recolhe os
pedaços dos vestidos com o aspirador de pó.
Na cena seguinte, Vicente/Vera se recusa a aceitar os itens de maquiagem
enviados e utiliza os lápis e os delineadores para pintar e escrever nas paredes,
como uma forma de ressignificar aqueles elementos, de reorganizar sua psique
e de manter Vicente vivo.
Vestidos e maquiagem representam, nas sociedades ocidentais, atributos
exclusivamente femininos, embora muitas mulheres não se maquiem e prefiram
calças a vestidos. Ao impor esses objetos identificados com o feminino em seu
extremo, Robert reafirma a condição do corpo de Vicente transformado em
Vera, como o objeto a ser enfeitado por vestidos e maquiagem.

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Um dos desenhos que Vera pinta nas paredes é uma mulher que, no lugar
da cabeça, tem uma casa. Isso nos leva a refletir: não será uma representação
de que sua real morada, a morada de Vicente, o lugar onde ele realmente vive,
é em sua cabeça, em sua mente? Pois o corpo feminino não pode abrigar o
corpo de Vicente, então ele só pode existir na mente de Vera. Isso também se
mostra no interesse de Vera pela yoga, a partir do momento em que a instrutora
fala que os exercícios permitem ter a existência que cada um quiser ter, que os
exercícios libertam a mente para sermos quem quisermos ser. É também, em
sua cabeça/casa que se dá a resistência da identidade real de Vicente e a nega-
ção a aquela imposta. Da mesma maneira que travestis e transexuais negam
o corpo masculino apesar de toda a agressão que sofrem nas várias instâncias
da sociedade e resistem se vestindo e se maquiando conforme ao gênero que
corresponde ao íntimo de seu ser.
Em outra cena, Vera demonstra tristeza ao afirmar, frente a um colega de
Robert, que chegou ali pelos próprios pés e que sempre foi uma mulher, olhando
uma antiga foto sua estampada nos jornais, na seção de desaparecidos. Por fim,
Vera mata Robert e consegue voltar para encontrar sua mãe. E como explicar
para ela que agora Vicente habita outra pele? Como explicar a si mesmo que
Vicente deverá habitar a pele de Vera? Com essa reflexão, conseguimos alcan-
çar toda a crueldade do ato empregado por Robert: além de utilizar o corpo de
Vicente, transformado em Vera, como mero instrumento da satisfação de seus
desejos, de utiliza-lo como cobaia para seus experimentos científicos, ele ainda
obriga Vicente a habitar uma pele que não é a sua, talvez para sempre.

Considerações finais

De maneira geral, a produção cinematográfica de Pedro Almodóvar se


coloca como uma importante tecnologia de gênero no sentido em que permite
refletir e repensar corpos e comportamentos considerados dissidentes, bem
como propõe repensarmos as representações sociais de gênero vigentes.
O filme A pele que habito permite a reflexão sobre diversas temáticas,
como padrões estéticos, violência de gênero e, sobretudo, as possibilidades de
(re)construções de identidades de gênero e corporalidade, ao abordar a transe-
xualidade e as conseqüências de uma redesignação sexual forçada.

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Referências

DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de


(Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro,
Rocco, 1994, p.206-242.

JONQUET, Thierry. Tarântula. Rio de Janeiro: Record, 2011.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre: vol. 20, n.02, jul/dez. 1995, págs. 71-99.

Filmografia

- Os olhos sem rosto (1960) – Direção: Georges Franju/Roteiro: Pierre Boileau, Thomas
Narcejac, Jean Redon, Claude Sautet e Pierre Gascar

- A pele que habito (2011) – Direção e roteiro: Pedro Almodóvar

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INFLUÊNCIAS TECNOLÓGICAS E SUAS CONTRIBUIÇÕES NA


CONSTITUIÇÃO DE CIBERESPAÇOS LGBT EM UBERLÂNDIA (MG)1

Bruno de Freitas
Doutorando, Programa de Pós-graduação em Geografia, IG/UFU.
freitasbrunode@gmail.com

Beatriz Ribeiro Soares


Doutora em Geografia (USP). Professora Titular do Programa de
Pós-graduação em Geografia, IG/UFU.
beatrizribeirosoares1@gmail.com

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

O presente trabalho tem o objetivo de analisar o papel das tecnologias na


constituição de espacialidades virtuais destinadas ao grupo LGBT, com uma
análise do perfil de usuárias/os da cidade de Uberlândia, MG. Do ponto de vista
metodológico, realizou-se revisão bibliográfica, observações diretamente nos
aplicativos estudados, bem como a coleta de informações. Por meio do estudo,
é possível afirmar que com o surgimento da internet e seus derivados, o ciberes-
paço se caracteriza como um novo meio de comunicação, que possibilita novas
formas de sociabilidade LGBT, por meio das redes sociais e/ou virtuais.
Palavras-chave: Ciberespaço. Geografia. Redes. Sociabilidade LGBT.

1 O presente trabalho é resultado de dissertação de mestrado intitulada: “Cidade, Gênero e Sexuali-


dade: Territorialidades LGBT em Uberlândia, MG”.

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Introdução

O presente trabalho tem o objetivo de analisar o papel das tecnologias


na constituição de espacialidades virtuais destinadas especialmente ao grupo
LGBT, com uma análise do perfil de usuárias/os da cidade de Uberlândia, MG,
sob a luz de questões relacionadas às influências dos ciberespaços, constituídos
a partir de redes sociais oriundas pelo uso de aplicativos geolocalizados2 para
smartphones, tais como o Grindr, Scruff e Hornet.
Do ponto de vista metodológico, realizou-se uma revisão bibliográfica
para embasar teoricamente as discussões feitas e dar os direcionamentos
necessários para as observações diretamente nos aplicativos estudados pelas/os
pesquisadoras/es, bem como a coleta de informações, com o intuito de obter
informações de base qualitativa para o presente estudo.
O presente estudo se justifica pela necessidade de estudar temáticas
dissidentes em uma perspectiva geográfica, pois tais estudos carecem de apro-
fundamentos nesta ciência, no entanto estes estudos vêm adquirindo certa
visibilidade, ainda de que forma embrionária. Por meio destas questões é que
se desenha o estudo que segue, e neste sentido, o tópico que segue traz uma
discussão acerca das influências tecnológicas enquanto responsável pela contri-
buição da sociabilidade LGBT; o tópico subsequente traz uma análise de perfis
de aplicativos georeferenciados; e por fim, apresenta-se as considerações finais.

Influência Tecnológica e Sociabilidade LGBT

Ao considerar as mudanças tecnológicas referentes ao desenvolvimento


urbano; o papel das comunicações às quais unindo os lugares, diminuindo as
fronteiras do tempo, criaram fortes diferenciações na estrutura interna das cida-
des. Soares (1995) entendeu este processo enquanto:
Esse novo momento produziu formas fragmentadas, dispersas e
descentralizadas, uma vez que a interação social, a partir do uso do
telefone, fax, automóvel, modificou e diferenciou as cidades. Assim
também ocorreu com as novas tecnologias da informática, que

2 O aplicativo usa a geolocalização do smartphone para mostrar indivíduos com interesses em co-
mum, em uma determinada área, podendo ela ser local ou global.

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aumentaram as possibilidades de construção da cidade, segundo


esses parâmetros da modernidade (SOARES, 1995, p. 22).

É necessário ampliar discussões sobre o avanço da técnica no que tange


à questão do urbano, para compreender as variadas formas de organização do
grupo LGBT, para tanto, apresenta-se como estes indivíduos se estabelecem por
meio das tecnologias virtuais, constituindo ciberespaços. Sobre as redes sociais
e/ou virtuais, é possível entender que as mesmas, tanto podem promover inte-
rações pela via de semelhanças como por pontos de atritos e rivalidades.
Neste sentido, “redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma
ilimitada, integrando novos nós que consigam comunicar-se dentro da rede”
(CASTELLS, 1999, p. 566). No entanto, é possível afirmar que as redes se cons-
tituem organizadas e estruturadas por meio dos mesmos códigos, que por sua
vez, originam as redes sociais, ao se levar em consideração a comunicação.
De acordo com Ferreira et al (2010), é possível afirmar que o estudo das
redes sociais se contextualiza no âmbito da Geografia, isto porque, pode-se
entender as novas inter-relações que se estabelecem entre a sociedade e os
espaços e/ou territórios virtuais, por oposição ou complementaridade com o
território físico ou pelo simples fascínio de cartografar variáveis que pela sua
complexidade de análise e visualização, se tornam ainda mais instigantes.
Corroborando a afirmação, Soares (1995) afirmou que esta questão se deve por:
O mundo passa, a partir da revolução técnico-científica iniciada no
pós-guerra e intensificada a partir dos anos 1980, por uma grande
transformação, elaborada à base de formidáveis inovações tec-
nológicas, que cada vez mais modifica e globaliza o planeta. Ao
mesmo tempo, observa-se nesse processo a coexistência de regi-
mes econômicos, sociais, políticos e, sobretudo, culturais, diversos
e, muitas vezes, antagônicos (SOARES, 1995, p. 22).

Castells (2003) afirmou que este processo se trata de uma emergência


de novas lógicas de sociabilidades inerentes às redes virtuais, em oposição às
sociabilidades baseadas nos lugares físicos. Neste sentido, é possível afirmar
que a maior revolução sentida nas sociedades contemporâneas, no que con-
cerne à construção de uma diversificada rede de sociabilidades, deu-se com a
substituição das comunidades espaciais pelas redes virtuais. No entanto, estes
espaços tiveram uma evolução e as redes tornaram-se assim territórios onde

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milhões de pessoas se comunicam, utilizando-as como uma extensão da sua


personalidade e suas vontades (FERREIRA ET AL, 2010).
No entanto, a existência destas redes possibilitou e facilitou aproximações
e trocas entre o grupo LGBT, bem como manifestações identitárias de acordo
com suas sexualidades. Além disto, a tecnologia da informação e comunica-
ção teve um grande impulso com o desenvolvimento dos smartphones, tablets,
i-pads i-pods e outras tecnologias. A mobilidade proporcionada por estes apare-
lhos, o envio automático de mensagens e a conexão à internet, representaram a
possibilidade destes indivíduos estarem conectados (LEAL, 2013).
Por ciberespaço entende-se o lugar onde se está ao entrar em um ambiente
virtual, como o conjunto de redes de computadores, interligados, ao redor do
globo (LEMOS, 1996). O autor ainda aponta que o ciberespaço não é desconec-
tado da realidade. Neste sentido, a cibercultura como pode ser entendida por
Lévy (1997) apud Couto et al (2013) enquanto a infraestrutura tecnológica com
um conjunto de técnicas, composta por indivíduos conectados que navegam
pela internet, por meio de informações, que influenciam a adoção de práticas,
comportamentos, valores, pensamentos que são desenvolvidos coletivamente
no ciberespaço, podendo refletir nos espaços físicos ou não.
Deve-se entender que o ciberespaço também é composto por indivíduos
que desenvolvem relações de amizades, namoros apenas no plano online, o
que consiste em relações descorporificadas. Neste sentido, pode-se afirmar
que na atualidade se vive na “tempo dos aplicativos”. Aplicativos são softwares
desenvolvidos e instalados em dispositivos móveis, como smartphones, tablets,
i-Pads, i-Pods. Para Miskolci (2015):
Aplicativos são programas disponíveis nas lojas online em versões
gratuitas ou pagas, as mais completas. Para começar a usá-los, a
pessoa os baixa em seu dispositivo, cria um perfil com foto e passa
a visualizar os outros usuários de acordo com a distância em que
se encontram. Graças ao GPS, os aplicativos podem mostrar quão
próximo alguém está de parceiros em potencial. A interface dos
aplicativos costuma ser a da exposição de um conjunto de fotos,
cada uma de um usuário. Ao tocar na foto de alguém, é possível
ler seu perfil com dados como idade, altura, peso, autodescrição
e que tipo de pessoa procura. Também há como mandar mensa-
gens privadas para cada usuário e, caso ambos queiram, marcar um
encontro face a face (MISKOLCI, 2015, p. 62-63).

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Para Couto et al (2013) através da instalação desses recursos as/os usuá-


rias/os adquirem uma liberdade maior de conexão, já que podem se conectar a
diversas plataformas simultaneamente. Com as tecnologias móveis a sociedade
insere-se na dinâmica libertária e comunitária que comanda o crescimento da
internet, pois em qualquer tempo e lugar as pessoas se conectam umas/ns às/
aos outras/os. As figuras apresentam alguns dos principais aplicativos existentes
para o uso do grupo LGBT.

Figura 10: Grindr: Imagens da página oficial do aplicativo, 2015. Fonte: GRINDR, 2015.

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As figuras acima apresentam os mecanismos do aplicativo Grindr, que


possibilita que os usuários encontrem rapazes para sociabilização, de acordo
com a distância entre os mesmos, e caso haja interesse entre eles, podem obter
informações detalhadas, relacionadas às características físicas ou preferências.
Caso haja interesse entre os usuários, os mesmos estabelecem contato entre si,
por meio do envio de mensagens, fotos e localização.

Figura 11: Scruff: Imagens da página oficial do aplicativo, 2015. Fonte: SCRUFF, 2015.

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Por meio das figuras acima, é possível observar que além dos usuários
estabelecerem contato com quem esteja na proximidade, podem encontrar
rapazes em diversos locais do globo, pois o aplicativo apresenta pessoas dis-
poníveis para sociabilização em diferentes escalas. Os indíviduos estabelecem
comunicação por meio de mensagens de texto, fotos, vídeos e localização.
Além disto, podem estabelecer suas preferências de busca, pois o aplicativo
filtra e apresenta apenas os perfis de acordo com o estilo procurado.

Figura 12: Hornet: Imagens da página oficial do aplicativo, 2015.


Fonte: HORNET, 2015.

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As figuras acima mostram que por meio do aplicativo é possível obter


informações físicas e/ou pessoais e principais interesses no perfil dos usuários.
Além disto, este aplicatico possibilita que os indivíduos possam buscar pessoas,
com base em locais selecionados previamente, e também a partir de sua loca-
lização e de outros usuários. Além disto, caso o usuário interesse em alguém,
pode solicitar a permissão do acesso às fotos, quando estas forem privadas. O
tópico seguinte traz uma análise de alguns perfis destes aplicativos.

Análise de perfis de usuárias/os de aplicativos em Uberlândia, MG

Ao analisar estes aplicativos no que refere a usuárias/os do município de


Uberlândia, foi possível identificar em diversos perfis que os indivíduos:
Não curto caras afeminados, drogaditos e gente fresca. Se você faz
sobrancelha, é gordo, sabe coreografia da Lady Gaga ou sente uma
diva, por favor NÃO ME PROCURE!!! (MMA, 2014)
Sou ativo, bonito, charmoso, inteligente e estudioso. Buscando
algo para além das aparências, se você é só um corpinho bonito e
sem conteúdo, por favor, cai fora e não perca seu tempo! (Mineiro
Ativo, 2014)
Estudante de mestrado. Discreto, não afeminado, procuro igual! A
fim de conhecer um cara massa pra ver o que rola (Turista Sarado,
2015).
Procuro caras bonitos, gente boa e não afeminados e que não sejam
do meio GLS (Ativo TOP, 2015).
Sou tranquilo, não frequento o meio GLS por opção e não por pre-
conceito. Sou macho discreto, afim de cara ativo (Macho discreto,
2014).
A fim de curtir com cara macho ativo. Descrição e segurança
(Passivo Macho, 2015).
Estou à procura de um ATIVO, não curto e não frequento o meio
GLS, mais por questão de opção mesmo! Sou passivo, mas não
tenho trejeitos (Sou de Caldas, 2014).

Foi possível observar o crescimento desta cultura digital, na qual se valoriza


a máxima exposição e consumo dos corpos em busca de prazeres imediatos e
fugazes. Hall (2006, p. 12) afirma que o sujeito pós-moderno “está se tornando
fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não resolvidas”.

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Observou-se que há uma tendência das/os usuárias/os viverem influen-


ciados por padrões estéticos, influenciados pela ligação do corpo com a mídia
enquanto instrumento de mediação dos processos de comunicação e informa-
ção da sociedade e da cultura e, sequencialmente, a relação com o capitalismo
nas suas estratégias de reinvenção de suas dinâmicas na contemporaneidade.
Além disso, é necessário entender que mesmo com a interação entre as
pessoas, por meio das redes sociais, que as sociedades não tendem uma evo-
lução uniforme, isto porque as próprias redes sociais são compostas por uma
heterogeneidade imensa, que se complexifica por meio da existência de diver-
sas variáveis, que se distinguem por meio de diferentes preferências vinculadas
a gênero, sexualidades, corpo, religião, política, econômica e outros.
Partindo desse entendimento, percebe-se que os indivíduos lutam, em
plena contemporaneidade, para serem aceitos na sociedade, considerando que
uma parcela dessa comunidade não se sente à vontade para explicitar no coti-
diano o enfrentamento da estrutura social vigente, há aqueles que escolheram
a rede como campo de batalha, e passam a expressar-se preferencialmente
através da mídia digital e dos aplicativos.

Considerações

Por meio das análises realizadas neste trabalho, é possível afirmar que
existem diversos tipos de sociabilização LGBT, além disto, foi possível perce-
ber que, em sua grande maioria, os acessos e “inclusão” a indivíduos pode
se dar por meio do acesso às tecnologias. No entanto, todas estas formas de
“inclusão”, não são suficientes para garantir a aquisição de direitos de todas as
pessoas pertencentes ao grupo LGBT.
Por meio das análises realizadas, é possível afirmar que com o surgimento
da internet, o ciberespaço se caracteriza como um novo meio de comunicação,
que possibilitou também novas formas de sociabilidade LGBT, por meio das
redes sociais e/ou virtuais.
Tratando dos aplicativos apresentados, é possível afirmar que as manifes-
tações vinculadas à sexualidade ocorrem no âmbito virtual se materializando
(ou não) no âmbito real. É possível afirmar que as redes sociais LGBT foram
fundamentais para a alteração de práticas socioespaciais deste grupo, que ocor-
riam apenas no âmbito das espacialidades fixas, tais como os guetos e/ou as
boates gays, por exemplo.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

O uso de meios digitais para a criação de contatos sexuais e/ou amorosos


não equivale apenas à adoção de uma ferramenta tecnológica para uma busca
pré-existente, pois, o usuário dos aplicativos é induzido a operar segundo os
padrões de competição ali vigentes e sua busca tende a ser moldada por crité-
rios próprios a estes meios tecnológicos regidos por uma lógica mercadológica.
É como se as homossexualidades passassem a ser reconhecidas como uma
espécie de estilo de vida vinculado a interesses mercadológicos.

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ISBN 978-85-61702-44-1 100 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências
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sociedade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
COUTO, E. S.; SOUZA, J. D. F.; NASCIMENTO, S. P. Grindr e Scruff: amor e sexo na
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FERREIRA, J.; CANSEIRO, S., RODRIGUES, D.. A Geografia das Redes Sociais:
Cartografia e Tecnologias de Informação em Geografia. In Actas do XII Colóquio
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<https://play.google.com/store/apps/details?id=com.hornet.android> Acesso em 20
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LEAL, J. T. B. “Webgay&Gaymobile”: o fluxo da homossexualidade em rede. In: X
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MISKOLCI, R. “Discreto e fora do meio” – Notas sobre a visibilidade sexual contem-
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SCRUFF. Imagens demonstrativas do aplicativo Scruff, 2015. Disponível em: <https://
play.google.com/store/apps/details?id=com.appspot.scruffapp&hl=pt> Acesso em 20
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SOARES, B. R. Uberlândia: da cidade jardim ao portal do cerrado - imagens e
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Humana)-Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

“CURTO MACHO NO SIGILO”:


A HETERONORMATIVIDADE NO GRINDR E NO
SCRUFF EM POLOS CRIATIVOS DO RIO DE JANEIRO

Diego Santos Vieira de Jesus


Doutor em Relações Internacionais (PUC-Rio)
Professor Adjunto do Programa de Mestrado Profissional em Gestão da
Economia Criativa ESPM-Rio
dvieira@espm.br

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

O objetivo é analisar a permanência da heteronormatividade nas redes geos-


sociais gays Grindr e Scruff nos dois maiores polos criativos do Rio de Janeiro:
o Centro da cidade e o bairro de Botafogo. O argumento central aponta que
a priorização do conhecimento técnico em relação ao raciocínio criativo e crí-
tico no processo educacional e a precarização das iniciativas de combate a
LGBTfobia culminam na falta de reconhecimento pleno da diferença na produ-
ção criativa e na convivência social na cidade. Em face do receio de exposição
e humilhação dos quais mulheres e “afeminados” são alvos, usuários dessas
redes continuam a reproduzir padrões heteronormativos. Não se gera o reco-
nhecimento pleno da diferença na sua dimensão de riqueza, pré-requisito para
o desenvolvimento de uma cidade criativa.
Palavras-chave: heteronormatividade; Rio de Janeiro; indústrias criativas; cidade
criativa; redes geossociais.

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Introdução

A cidade do Rio de Janeiro assumiu estratégias de desenvolvimento base-


adas no estímulo às indústrias criativas, que englobam setores baseados no
talento ou na habilidade individual – artesanato, artes cênicas e audiovisual,
por exemplo – e as suas aplicações funcionais – como publicidade, arquitetura,
design e moda – e podem conduzir transformações sociais em face de seu
potencial empregador, produtivo e inovador (SEN, 2000; SILVA, 2012, p.112-115).
Segundo Richard Florida (2005), um dos pré-requisitos para o desenvolvimento
de uma “cidade criativa” é a tolerância à diversidade, que contribuiria para a
produção criativa e a convivência harmônica entre os cidadãos. Ainda que redes
geossociais facilitem o estabelecimento de contatos profissionais, sentimentais,
afetivos e sexuais por profissionais criativos e moradores e visitantes de cidades
criativas e viabilizem a construção de maior tolerância entre eles, elas podem
reproduzir estereótipos e relações de dominação em regimes excludentes de
controle, como os relacionados à sexualidade. No Rio de Janeiro, tanto homens
heterossexuais como homossexuais parecem exaltar aspectos que permitem
diferencia-los do modelo de homem homossexual “afeminado” ao assumirem
e cultuarem o estereótipo de um homem másculo e viril (PERLONGHER, 2008,
p. 79; SOUZA, 2012, p.45). Uma ordem heteronormativa – que se refere às
expectativas, demandas e obrigações sociais que derivam da naturalização da
heterossexualidade e às prescrições que fundamentam processos sociais de
regulação e controle (BUTLER, 2003; JESUS, 2014, p.44) – parece intacta numa
cidade criativa que supostamente reconheceria a riqueza da diferença.
O objetivo é analisar a permanência da heteronormatividade nas redes
geossociais gays Grindr e Scruff nos dois maiores polos criativos do Rio de
Janeiro: o Centro da cidade e o bairro de Botafogo. O argumento central aponta
que a priorização do conhecimento técnico em relação ao raciocínio criativo e
crítico no processo educacional e a precarização das iniciativas de combate a
LGBTfobia culminam na falta de reconhecimento pleno da diferença na produ-
ção criativa e na convivência social na cidade. Em face do receio de exposição
e humilhação dos quais mulheres e “afeminados” são alvos, usuários dessas
redes continuam a reproduzir padrões heteronormativos. Não se gera, assim, o
reconhecimento pleno da diferença na sua dimensão de riqueza, pré-requisito
para o desenvolvimento de uma cidade criativa.

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A tolerância em xeque

Segundo o especialista britânico Charles Landry (2011, p.10-11, 14-15),


uma “cidade criativa” refere-se a municípios nos quais profissionais dos setores
criativos desempenhavam papel central e a imaginação estabelecia os traços e o
espírito dos lugares. A ideia de “cidade criativa” estendeu-se, a partir da experi-
ência britânica e de outras áreas na Europa e nos EUA, para se referir a espaços
urbanos em que a interação entre as indústrias criativas e o governo permitiu
desenvolver uma efervescência cultural que atrai profissionais criativos para um
fluxo mais rico e uma maior densidade de ideias, estimular a diversidade – que
viabilizaria que as ideias fossem fertilizadas pela interação – e fortalecer a capa-
cidade criativa de empresas e instituições. No que diz respeito especificamente
ao processo criativo, a tolerância pode estar associada, segundo a literatura, à
justiça social, destacando-se a inclusão de grupos discriminados, como mulhe-
res, gays e minorias étnicas. A gestão da diversidade poderia gerar benefícios na
produtividade e na lucratividade para empreendimentos criativos ao permitir o
amplo recrutamento de talentos, o fortalecimento da inteligência de mercado e
a maior habilidade na solução de controvérsias. Em nível urbano mais amplo, a
atração e a mobilização de talentos criativos permitiriam o desenvolvimento de
um ambiente aberto e inclusivo nos territórios e nas cidades criativas ao viabili-
zarem que as pessoas sejam elas mesmas e validem suas identidades múltiplas
(FLORIDA, 2005, p.72-73).
Contudo, a literatura norte-atlântica não observa que mudanças proce-
dimentais formais de comportamento não necessariamente transformam as
crenças e as atitudes que perpetuam a discriminação. A busca de “igualdade”
mostra-se concentrada em organizações criativas específicas, além de que as
reivindicações para maior participação de grupos diversos baseadas nas neces-
sidades das empresas podem fazer com que os níveis de igualdade se tornem
mais vulneráveis a flutuações econômicas (PROCTOR-THOMSON, 2009, p.83-
93). A existência de talentos criativos parece colocada como uma condição de
possibilidade dada e não-problematizada em qualquer cidade criativa; porém,
autores como Florida ignoram que tal fator pode ser insuficiente ou mesmo
irrelevante para o desenvolvimento de mais “tolerância” em face de regimes
de controle de identidade que vigoram em cada sociedade e nos quais até
mesmo profissionais criativos podem estar imersos. A própria noção de tolerân-
cia – colocada como fundamental a uma cidade criativa – é problemática, na

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

medida em que implica coexistência e convivência, não a aceitação ou o reco-


nhecimento pleno da diferença e a valorização na sua especificidade. A retórica
da diversidade mantém intacta a cultura dominante que marginaliza os outros
(MISKOLCI, 2016, p.50-51). Assim, o pleno desenvolvimento de uma cidade
criativa e do potencial econômico da criatividade exige ir além da tolerância
para a incorporação efetiva da diferença. Entretanto, a literatura ignora esse
ponto, bem como a especificidade cultural dos obstáculos socioeconômicos
e políticos ao desenvolvimento de cidades criativas no mundo em desenvolvi-
mento, em particular os regimes de controle social em sociedades fora do eixo
norte-atlântico.
No que diz respeito às identidades de gênero e à sexualidade, a valoriza-
ção predominante da masculinidade em sua forma heterossexual no Brasil faz
com que o mundo virtual opere como um local de socialização homoerótica
que abre a muitos homens uma oportunidade de criar um contexto de cama-
radagem com outros, no qual se reconhece a superioridade da masculinidade
heterossexual, mas se permite o envolvimento sexual com outros homens. Com
isso, tais homens visam a se proteger da exposição, da humilhação e dos maus
tratos dos quais mulheres e “afeminados” são alvos (MISKOLCI, 2013, p.316-
322). Perpetua-se, assim, a heteronormatividade, que oferece obstáculos ao
desenvolvimento pleno do reconhecimento da diferença numa “cidade criativa”.

A criatividade do ‘armário carioca’

A promoção das indústrias criativas no Rio de Janeiro aparece ligada às


tentativas de estimulo à tolerância à diversidade por parte de seus moradores e
visitantes. Em 2011, a prefeitura lançou um pacote de ações contra a LGBTfobia,
que incluiu a agilização do encaminhamento de casos de discriminação ao
poder público, a divulgação de toda a legislação de proteção aos direitos LGBT
na cidade, a capacitação e a inserção no mercado formal de trabalho de traves-
tis e transgêneros e a visita de assistentes sociais e pedagogos a comunidades
carentes para orientar a população sobre leis e direitos civis nas esferas munici-
pal, estadual e federal (LAURIANO, 2011).
Entretanto, o processo educacional no Rio de Janeiro pareceu priorizar
o conhecimento técnico em relação à capacidade de reflexão, ao raciocínio
crítico, ao estímulo à criatividade dos estudantes e à construção de cidada-
nia, em particular no que diz respeito ao reconhecimento pleno da diferença.

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Ademais, muitas iniciativas governamentais para o combate à LGBTfobia em


níveis municipal e estadual vêm sofrendo com a falta de recursos financeiros e
os interesses políticos. Permanece também, no imaginário de indivíduos homo-
fóbicos, a expectativa de impunidade ou de punições brandas pela violência
que cometem, como o pagamento de cestas básicas (LISBOA, 2013). Assim,
inúmeros homens – independentemente da orientação sexual – buscam pre-
servar sua posição de domínio e controle e reforçar padrões heteronormativos
a fim de se protegerem de ameaças às quais mulheres e “afeminados” são mais
expostos na sociedade carioca.
Nesse contexto, os aplicativos de redes geossociais gays funcionam como
ferramentas que reforçam a superioridade da masculinidade heterossexual, mas
viabilizam o contato homoerótico e homoafetivo. No Centro da cidade, os
nicknames e as autodescrições de perfis captados sinalizavam formas de iden-
tificação como “safado e putão” e “socador ATV”, bem como preferências e
objetivos: “discreto que não curte afeminados”, “quero meter e leitar dentro”. A
preocupação com a saúde e a forma física nas autodescrições era tão frequente
quanto a preocupação em preservar o sigilo: “Socialmente hetero. Sigilo total
!”, “Busco romance no sigilo, pois meus amigos não sabem que curto homens”.
Dentre os profissionais criativos, havia homens ligados ao setor de audiovisual,
à publicidade, à produção artística e à fotografia, e a maior parte dizia curtir
rapazes militares, atletas e discretos, como um fotógrafo que se definia como
“discreto” e “bissexual” e alertava que o possível parceiro deveria ter a “postura
do sexo que carrega”. A reafirmação da própria masculinidade muitas vezes se
dava com a associação dos afeminados à pobreza e ao fracasso profissional:
“Tenho medo de não dar certo na vida e acabar virando essas bichinhas pão-
com-ovo que são faxineiras”.
Em Botafogo, a preservação da heteronormatividade vinha acompa-
nhada da sustentação de outras hierarquias sociais. Os usuários dos aplicativos
demonstraram atenção maior com a classe social – rejeitando usuários de áreas
mais pobres –, a faixa etária – muitos deixavam claro que não curtiam “novi-
nhos” ou “maduros” / “coroas” –, o tipo físico – vários diziam detestar “gordos”
ou “ursos” – e a formação cultural dos interlocutores. A exigência com relação
às qualidades do parceiro era consideravelmente maior do que no Centro, ainda
vindo acompanhada da reiteração dos padrões heteronormativos: “aberto de
sexo casual a namoro com o cara certo, que seja masculino, profissional, inde-
pendente e que cuide do físico, da mente e da alma”. Mesmo trabalhadores

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criativos dos setores audiovisual e editorial, designers, fotógrafos e arquitetos


diziam sentir vergonha de “andar com um afeminado com medo do olhar das
pessoas” e preferir “homem com jeito de homem”.

Considerações finais

O regime de controle da sexualidade abarca um sistema de normas que


fazem do espaço público um ambiente de heterossexualidade e destinam ao
privado as relações entre pessoas do mesmo sexo, de forma que a homos-
sexualidade deva ser vivida “em segredo” (SEDGWICK, 2007, p.30). Mesmo
homens homossexuais que vivem abertamente sua sexualidade valorizam e
cultuam a masculinidade hegemônica associada à heteronormatividade e ainda
a sustentam juntamente a outras hierarquias sociais no Rio de Janeiro, inclu-
sive profissionais criativos que supostamente adotariam posições diferentes com
relação às diferenças. Ainda que a heteronormatividade não seja compatível
com os pilares da economia criativa, o culto à masculinidade heterossexual e
a depreciação dos “afeminados” continuam a ser reproduzidos por usuários de
aplicativos gays em polos criativos, desvelando a permanência de um regime
excludente que contraria a lógica de reconhecimento da diferença, necessária à
expressão do potencial socioeconômico da criatividade.

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Referências
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Routledge, 2003.
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LANDRY, Charles. Prefácio. In: REIS, Ana Carla Fonseca; KAGEYAMA, Peter (Org.)
Cidades criativas: perspectivas. São Paulo: Garimpo de Soluções, 2011, p.7-15.
LAURIANO, Carolina. Novo site informa agenda LGBT e recebe denúncias on-line
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LISBOA, Vinícius. Ambiente familiar é o local onde homossexuais mais sofrem agres-
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MISKOLCI, Richard. Machos e Brothers: uma etnografia sobre o armário em relações
homoeróticas masculinas criadas on-line. Estudos Feministas, v.21, n.1, p.301-324,
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___. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
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PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.
PROCTOR-THOMSON, Sarah Belle. Creative differences: the performativity of gen-
der in the digital media sector. Tese – PhD em Gender and Women’s Studies. Centre
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SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologia do armário. Cadernos Pagu, n. 28, p. 19-54, 2007.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SILVA, Francisco Raniere Moreira da. As relações entre cultura e desenvolvimento e a
economia criativa: reflexões sobre a realidade brasileira. NAU Social, v.3, n.4, p.111-
121, maio/out. 2012.
SOUZA, Tedson da Silva. Fazer banheirão: as dinâmicas das interações homoeróticas nos
sanitários públicos da Estação da Lapa e adjacências. Dissertação – Mestrado em Antropologia.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2012.

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AS CIBERTECNOLOGIAS DA SEXUALIDADE NA
SOCIABILIDADE ONLINE DAS JOVENS ESTUDANTES
NA CONTEMPORANEIDADE

Luíza Cristina Silva Silva


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
luizacsilvaa@gmail.com

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar nude selfie e o sexting na condição de


cibertecnologias da sexualidade a partir da vivência das jovens estudantes na
contemporaneidade. A fim de compreender como as jovens estudantes acio-
nam o nude selfie, autorretrato nu e do sexting, sexo por envio de textos e fotos,
analisaremos os mecanismos que constituem as regularidades da prática, assim
como as reinvenções das cibertecnologias da sexualidade. Sob uma escolha
teórico-metodológica de inspiração foucaultiana, realizaremos a análise das
tecnologias do poder a partir do dispositivo da sexualidade. Assim, buscaremos
mapear as regularidades da prática, as supostas verdades que as constituem e
as reinvenções produzidas pelas jovens estudantes.
Palavras-chave: Cibertecnologias; Sexualidade; Juventude; Mídias Digitais.

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Introdução

A sociedade contemporânea globalizada (SANTOS; 2004) é marcada


pela intensificação dos usos das tecnologias digitais, sendo reconhecida como
sociedade pós-moderna (SILVA; 1996). As mídias digitais aderem complexidade
de fatores ao cenário político, social e cultural contemporâneo que inauguram
modos de existência. O smartphone, por exemplo, parece fundir-se ao corpo
humano, principalmente nos grandes centros urbanos, ao ponto de não ser pas-
sível de diferenciação o corpo e a tecnologia. Para explicar essa transformação,
Iara Beleli (2015), rememora uma publicidade, veiculada no ano de 2014 em
que apresenta um homem vestido procurando as chaves do carro, entretanto,
ao sair de casa está totalmente nu porque esqueceu o celular em casa. Isto é,
o smartphone não é somente uma tecnologia digital, tornou-se parte do corpo.
O nu na propaganda não foi por acaso, a sexualidade é um componente de
intensa transformação na sociedade de matriz ocidental desde 1960 do século
passado (PELÚCIO; 2015).
A impossibilidade de diferenciação entre o corpo e máquina, pode ser
associada às tecnologias digitais, a Web 2.0, mídias digitais que modificam e
produzem as relações sociais de sexualidade no século atual. Dessa forma, faz
emergir, em complexidade com outros fatores, diferentes vivência no campo
da sexualidade, por exemplo, do nude selfie, autorretrato nu e do sexting, sexo
por envio de textos e fotos. Segundo dados da ONG SaferNet, no ano de 2013,
34% de jovens entre 16 e 23 praticaram sexting pelo menos uma vez. Segundo
a mesma ONG, em 2014, foram 224 casos registrados de divulgação de ima-
gens e vídeos íntimos contra a vontade da pessoa exposta, as mulheres são 81%
do alvo de vazamento de imagens e essa prática cresceu 120% em um ano.
Segundo a empresa Conectai Express, em uma pesquisa online realizada com
2.000 internautas, 55% dos homens já receberam foto nudes, e 21% comparti-
lharam o que receberam.
Diante do objetivo de analisar o nude selfie e o sexting na condição de
cibertecnologias da sexualidade, analisaremos os mecanismos que constituem
as regularidades da prática, assim como as reinvenções das cibertecnologias
da sexualidade a partir da vivência das jovens estudantes nas mídias digitais.
Diante da complexidade das relações das jovens estudantes nas mídias digitais,
perguntamos: como nude selfie e o sexting na condição de cibertecnologias da
sexualidade atuam na vivência da sexualidade das jovens estudantes nas mídias

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digitais? A fim de responder esse problema de pesquisa o referencial teórico


seguira a perspectiva do campo produtivo das relações de poder (FOUCAULT,
2014)

Tecnologias do Poder

Diante das cibertecnologias da sexualidade que serão pesquisadas, estão


a nudez autoexposta de mulheres, ou seja, nudez consensual nas mídias digitais
publicada por mulheres e para mulheres. Os projetos The nu Project1, Beautiful
body Project2 e X Real3, apresentam ensaios fotográficos, selfies, vídeos e gifs
de mulheres que não necessariamente correspondem ao padrão de beleza
socialmente legitimado, e assim, publicam fotos que consideram sensuais e polí-
ticas do seu próprio corpo. Os diferentes intuitos dessa prática englobam o que
essas mulheres chamam de empoderamento feminino e subversão dos padrões
morais do corpo da mulher. Paula Sibilia (2015), diz que o nu das mulheres
apresentadas por sites como esses, estão para além das convenções estéticas e
morais do obsceno e da beleza.
Assim, as subjetividades foram alteradas principalmente a partir do
advento “Web 2.0”, sendo possível dizer na mudança de “regime de poder”
que provocou mudanças sociais a partir da transformação do pólo emissor de
informação. Diante do novo formato da difusão de informações, Sibilia (2008)
argumenta que o cenário de mudança trouxe uma prática “confessional” na
cibercultura, “milhões de usuários de todo o planeta (...) têm se apropriado
das diversas ferramentas disponíveis on-line, que não cessam de surgir e se
expandir, e as utilizam para expor publicamente a sua intimidade” (SIBILIA,
2008, p. 27). Os sujeitos confessam “espetáculos de si mesmo para exibir uma
intimidade inventada (SIBILIA, 2008, p. 29). A intimidade está nas fotografias

1 The Nu Project é um projeto de origem estadunidense que fotografa mulheres de todo o mundo. Nas
informações do site as idealizadoras Matt e Katy explicam que não há modelos, nem maquiagem, as
mulheres tiram as fotos nos espaços da sua própria casa em que se sente o mais confortável possível.
Desde 2005 elas fotografaram 250 mil mulheres na America do Sul, America do Norte e Europa.
2 O projeto sem fins lucrativos tem o objetivo de ser uma fonte das vozes femininas presentes nos cor-
pos de mulheres fotografadas. O site agrega imagens, podcasts, vídeos e ensaios escritos para falar
das diferentes realidades de mulheres pelo mundo.
3 Projeto pessoal da fotógrafa Camila Cornelsen que pretende empoderar mulheres para ver e admirar
outras mulheres e a se identificar com o corpo alheio.

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que registram acontecimentos da vida cotidiana divulgadas nas redes sociais,


os blogs divulgam relatos pessoais dos usuários, os aplicativos modificam for-
mas da relação amorosa, sexual, afetiva. Nesse “regime de poder”, as relações
sociais “são sempre fluidas e dificilmente apreensíveis, embora cada vez mais
enaltecidas, veneradas e espetacularizadas.” (SIBILIA, 2008, P. 34).
Ao se referir à mudança de “regime de poder”, Sibilia (2008) utiliza o
conceito de Michel Foucault (2014). O autor ao falar de mudança no regime
de poder se referia à transformação social na Europa no final do século XVIII
e início do XIX, “a partir do século XIX, aconteceu um fenômeno absoluta-
mente fundamental, a engrenagem, a complicação de duas grandes tecnologias
de poder” (FOUCAULT, 2014, p. 37). As relações de poder nesse campo de
possibilidades podem incitar, desviar, facilitar, “no limite ele [poder] obriga ou
impede absolutamente; mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre
sujeitos agentes, e isso, enquanto eles agem ou são suscetíveis a agir. Uma ação
sobre ações” (FOUCAULT; 2014; p. 133).
“Exercícios de poder” e “estratégias de poder” se complementam e dife-
renciam de “relações de poder”, essa diferenciação é importante quando se
trata do estudo das tecnologias políticas. Como dito acima, as tecnologias abar-
cam as regularidades de práticas sociais. Dessa forma, as relações de poder
são um conjunto de possibilidades de ações das práticas sociais, no entanto, as
regularidades e racionalidades são operacionalizadas por mecanismos e estra-
tégias de poder (FOUCAULT, 2014). Ou seja, dentre as múltiplas possibilidades
de ações ocorre uma regularidade das práticas.
Assim, exercícios de poder são “um modo de ação de alguns sobre alguns
outros” (FOUCAULT, 2014, p. 132), não é uma relação de poder em que ocorrem
maneiras de agir sobre o outro. No exercício do poder, acontece “a produção
e a colocação em circulação de elementos significantes” (FOUCAULT, 2014,
p. 129), ou seja, as relações de sentido que capturam significantes são exercí-
cios de poder. Ainda, os exercícios de poder estão inseridos em dispositivos de
poder, na pesquisa especificamente o dispositivo da sexualidade. Exercícios de
poder estão inseridos no dispositivo de poder porque são práticas que tem por
objetivo efeitos de poder, um exemplo de efeito de poder acontece nas relações
de sentido em que os significantes capturam o significado.

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Cibertecnologias de Sexualidade

Em ressonância com Foucault (2014), Paul B. Preciado (2014) atribui à


categoria sexo e gênero o sistema de “tecnologias sociopolíticas complexas”,
em que as tecnologias sexuais “fixas” são aquelas facilmente transpostas como
“natureza”. Tecnologias e natureza, para Preciado (2014), formam um híbrido
contemporâneo. Nos componentes da mistura, existem as tecnologias sexuais
“fixas” são aquelas facilmente transpostas como “natureza”. Para o autor, sexo,
sexualidade e também o gênero são “tecnologias sociopolíticas complexas”.
E ainda, compara as relações de sexo e gênero com as do corpo e máquina.
Dessa forma, sexo prostético é “uma tecnologia de dominação heterossocial
que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica
de poder entre os gêneros” (PRECIADO, 2014, p. 25).
Preciado (2014) afirma que a “história da humanidade” poderia ser com-
preendida como “história das tecnologias”, “sendo o sexo e o gênero dispositivos
inscritos em um sistema tecnológico complexo” (PRECIADO, 2014, p.23), pro-
duzindo a negociação constante da natureza com as tecnologias, suscitando a
criação de outro elemento fruto dessa interação, sendo impossível analisá-los
de forma separada. Nesse campo contraprodutivo, a natureza não é compreen-
dida como um elemento a ser modificada pela tecnologia, a própria natureza é
tecnologia, ou seja, o que compreendemos como natureza é um híbrido com
a tecnologia. “Afinal, o movimento mais sofisticado da tecnologia consiste em
se apresentar exatamente como “natureza” (PRECIDO, 2014, p. 168). Na socie-
dade contemporânea, sexo como dado biológico da “natureza” atinge o status
de verdade, desencadeando uma rede complexa de linearidade entre sexo,
gênero, corpo, orientação sexual.
Assim, de modos específicos as tecnologias se fazem corpo, “incorporam-
se”. Um desses modos específicos é através da divisão da “arquitetura política do
corpo”, que produz algumas zonas erógenas de intensidade do prazer, mas que
ao mesmo tempo produz outras zonas do corpo como uma fonte inexistente de
prazer. “Órgãos sexuais não existem em si. Os órgãos que reconhecemos como
naturalmente sexuais já são produto de uma tecnologia sofisticada” (PRECIADO,
2014, p. 31). Para que o nude selfie seja reconhecido enquanto tal, é necessário
que a fotografia exiba partes do corpo que reconhecemos socialmente como
sexuais, as regiões de intensidade de prazer que parecem indicar uma tecnolo-
gia sofisticada de poder, indício que é problema de análise da pesquisa.

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Segundo Preciado (2014), cibertecnologias são os efeitos das estruturas de


poder e das resistências, a reinvenção da natureza. As novas cibertecnologias
sugerem o desenvolvimento de formas de sensibilidade virtual e híbrido dos
sentidos. “A prótese, pensada como (...) uma cópia mecânica de um órgão vivo,
transformou a estrutura da sensibilidade humana em algo que o novo século
batizou com o nome de “pós-humano”” (PRECIADO, 2014, p. 164).

Metodologia e Considerações Finais

A pesquisa está em desenvolvimento, mas justifica-se a realização pela


relevância do campo cientifico em investigar uma prática que segundo os dados
apresentados estão crescendo entre as usuárias das mídias digitais. A metodolo-
gia da pesquisa será a netnografia diante da demanda que surgem no universo
das metodologias de pesquisa na investigação de ambientes online. A pesquisa
netnográfica considera os artefatos das tecnologias digitais que nós pesquisa-
doras, pretendemos investigar um universo de relações nas mídias digitais das
jovens estudantes.
Assim, o método netnográfico busca investigar os sujeitos e seus proces-
sos de construção e comportamento das relações sociais na rede e conexões
produzidas no ambiente online (NOVELI, 2010). Um dos processos importantes
da netnografia é a observação participante que necessita de imersão no campo
de investigação, ficando atenta aos códigos sociais, comportamento e lingua-
gem dos grupos investigados. Diferentes arranjos sociais são produzidos da
relação dos sujeitos com as mídias digitais, arranjos sociais importantes para a
compreensão das relações de sexualidade contemporânea. No entanto, o tema
da sexualidade em articulação com as mídias digitais é ainda pouco pesqui-
sado. Assim, além de atual, a pesquisa traz para a arena do debate científico
o fenômeno das mídias digitais que operam na transformação das relações de
sexualidade.
Assim, essa pesquisa busca interar-se da compreensão da sexualidade
como um campo de tensões, normas, resistências e sanções políticas. Assim, o
estudo das cibertecnologias pode proporcionar indícios dos modos contempo-
râneos de vivência da sexualidade pela juventude. E, portanto, contribuir com a
reflexão no campo científico e educacional da produção de cibertecnologias da
sexualidade que modificam a vivência das jovens em escolarização.

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Referências

BELELI, Iara. O Imperativo das Imagens: construção de afinidades nas mídias digitais.
Cadernos Pagu (44), jan-jun, p. 91 – 114, 2015.

FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IX: Genealogia da Ética Subjetividade e


Sexualidade. Org. Manoel de Barros da Mota. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2014.

MILTON, Santos. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência


universal. Rio de Janeiro, Record, 11º ed, 2004.

NOVELI, Marcio. Do Off-line para o Online: a netnografia como um método de pes-


quisa ou o que acontece quando tentamos levar a etnografia para internet? Organização
em Textos. Ano 6, n. 12. Jul/dez, 2010.

PELÚCIO, Larissa. Narrativas Infiéis: notas metodológicas e afetivas sobre experiências


das masculinidades em um site de encontro para pessoas casadas. Cadernos Pagu (44),
jan-jun, p. 31-60, 2015.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro.


São Paulo, n-1 edições, 2014.

SIBILIA, Paula. O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2008.

SILVA, Tomaz. Identidades Terminais: as transformações na política da pedagogia e na


pedagogia política. Petrópolis. Vozes, 1996.

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PODER SIMBÓLICO E POLITIZAÇÃO:


A VISIBILIDADE DAS MASCULINIDADES NO FILME MILK.

José Guilherme de Oliveira Freitas


Doutor em Educação
UFRJ-Educação
jguilherm@uol.com.br

Leticia Calhau Freitas


Mestranda em Educação
PPGE-UFRJ- Educação
lecalhau@gmail.com

Leyse Monick França Nascimento


Mestranda Em Educação
PPGE-UFRJ- Educação
leysemonick@hotmail.com

GT 14 - Masculinidades múltiplas no contexto escolar

Resumo

Este trabalho busca refletir sobre a importância das questões cotidianas para o
debate político sobre as desigualdades sociais. Como eleger questões do dia a
dia para pautas dos debates públicos? Quais são as dificuldades que a popula-
ção LGBT encontra para tornar seus desafios diários em tema de lutas sociais?
O que separa o privado do público? Essas questões nortearão o diálogo com a
obra Milk – A voz da Igualdade (2009). Este filme proporciona o levantamento
de questões sobre a militância de gays, a visibilidade dos homossexuais e as
dificuldades encontradas com a repressão da sociedade e dos representantes
políticos. Neste artigo, resolvemos nos deter a analisar a problematização feita
por Milk sobre a politização do cotidiano para que diferentes formas de mascu-
linidades tornem-se visíveis.
Palavras-chave: politização; masculinidades; LGBT; poder; privado.

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Introdução

Para Harvey, a importância da política em sua vida só começa a ganhar


importância no momento em que vive a homofobia por parte dos membros
da associação de comerciantes do bairro Castro. Depois desta experiência, ele
cria sua própria associação de comerciantes, com as pessoas que também se
sentiam descriminadas e a questão da participação de homens gays na repre-
sentação do bairro, da cidade e na política passa a ser o centro de sua atenção.
No decorrer da história, Harvey, aos poucos, percebe a força do ativismo gay
e, da mesma forma, da reação a esse ativismo. Repressões e violências aumen-
taram em 1973, fazendo com que a população homossexual ficasse vulnerável.
A repressão por meio dos policiais se intensifica e o protagonista da história
entende que somente com uma representação política das minorias seria pos-
sível mudar o cenário.
A proposta com este artigo é usar trechos do filme Milk para refletir sobre
como as questões do privado podem servir como disparadoras de questões na
luta política contra as desigualdades sociais, enfatizando as diferentes formas
de masculinidades presentes. Para contextualizar este tema, consideramos o
histórico dos movimentos sociais, principalmente, os movimentos feministas e
homossexuais.
O trecho de análise do filme que será discutido é uma reação de Harvey
ao momento de perseguição aos professores homossexuais. Milk conclama todo
homossexual, independente de como este expressava sua masculinidade, a se
assumir para que a luta contra as campanhas políticas homofóbicas pudesse
ganhar a atenção de familiares e amigos. Para trabalhar com a proposta de poli-
tização do cotidiano, abordaremos algumas reflexões e conceitos de público e
privado, além de violência e poder simbólicos.

A Relação entre o Privado e o Público

Quando se trata de questões sociais, a diferenciação entre privado e


público pode se mostrar confusa. Até que ponto o privado é representante do
que seria “bom” para todos? De que forma o público representa todas as pes-
soas com equidade?

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Entendendo-se o espaço privado como aquele que pertence aos


indivíduos ou grupos organizados voltados a garantir interesses
privados, representado pelo mercado (esfera privada), enquanto o
espaço público é compreendido como aquele que pertence à cole-
tividade, considerado como bem de todos. (SILVA,2014, pág.27).

Essa tensão entre privado e coletivo pode ser verificada na história das
mulheres na sociedade. Até os anos 40, enquanto o lugar do homem branco era
a cena pública, algumas mulheres estavam destinadas apenas à cena privada,
ao espaço da família e dos filhos. O que era considerado de interesse público
e político deveria estar representado apenas pelos homens, em sua maioria
homens brancos.
O questionamento sobre a definição destas fronteiras entre o público e o
privado pode ser observado nas lutas das mulheres por igualdade e equidade.
Na primeira onda feminista, acontecida entre os séculos XIX e XX, as principais
reivindicações eram o direito ao voto, à propriedade, à educação e ao fim do
casamento arranjado. Uma referência cinematográfica sobre esse período é o
filme “As Sufragistas”, que apresenta a luta das mulheres pelo acesso ao voto,
entre outras coisas. Para exemplificar a referência do filme temos a cena em
que uma das mulheres faz a defesa do direito ao voto diante de um parlamento
representado somente por homens e a reação do parlamento foi a de total
incompreensão da reinvindicação porque elas se já eram representadas por
seus maridos e filhos. O filme também aborda a questão da fragilidade entre a
cena privada e pública com a personagem Maud Watts que se envolve com o
movimento das sufragistas.
Na segunda onda feminista, as reinvindicações eram em torno dos movi-
mentos de liberação feminina, entre os anos 60 e 70. Após a conquista de
alguns direitos, as mulheres se viram na necessidade de questionar desta vez
as condições de vida e trabalho das mulheres, o olhar sobre as diferenças na
sexualidade de homens e mulheres, a construção da imagem de mãe e dona de
casa, a violência doméstica e criminalização do aborto.
Interessante é observar que as mulheres começaram a revelar suas vidas
pessoais a fim de questionarem as regras de convivência na sociedade divididas
entre homens e mulheres, conforme afirma Lins, 2016.
“O pessoal é político” foi o principal lema da segunda onda femi-
nista. As militantes encorajavam as mulheres a compreenderem

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aspectos de sua vida pessoal como profundamente politizados e


submetidos a estruturas de poder injustas. Aliados a outros movi-
mentos de defesa de grupos socialmente em desvantagem, o
feminismo da segunda onda era combatido e engajado. Grandes
protestos acalorados e marchas por direitos ficaram associados à
atuação do movimento neste período. (pág. 31).

Assim, os movimentos feministas foram determinantes para que grupos


sociais marginalizados socialmente ganhassem força e questionassem a imposi-
ção do silêncio do cenário político.

O Político e o Público

O cenário do filme que escolhemos para a discussão retrata a defesa da


Proposta 6, que em 1978 criminalizava a ação de professores homossexuais,
excluindo-os da escola e demitindo também todos aqueles que os apoiavam. A
alegação dos defensores do projeto era de que os homossexuais eram moles-
tadores e influenciavam seus alunos quanto à moralidade. Embora passados
quase 40 anos, ainda nos dias de hoje, há aqueles que insistem nesta forma de
pensar.
Neste período, dois políticos ganham destaque. Anita Bryant e John V.
Briggs faziam forte campanha pela adesão da sociedade ao que foi chamada
de campanha anti-gay. A população apoiava o discurso dos políticos em prol
da moralidade e da família e que para a preservação destes princípios e da
moralidade seria necessário impedir que homossexuais atuassem nas escolas.
A proposta 6 deveria ser decidida pela sociedade e por isso, neste momento, a
campanha de Anita e John se torna cada vez mais forte.
Como resposta a este cenário Milk decide convocar os jovens homosse-
xuais envolvidos em sua campanha, assim como todas aspessoas LGBT que o
apoiavam para se assumirem para seus familiares, amigos e colegas de trabalho.
O personagem vê nesta ação uma forma de envolver os amigos, familiares e
“apoiadores” na luta contra a campanha de perseguição aos homossexuais.
Para traçar um diálogo com o cenário político atual, podemos pensar nos
Projetos de Lei recentes no âmbito Federal, que se justificam pela preservação
da família e que excluem outras configurações, orientações e identidades sexu-
ais e continuam existindo e ganhando espaço na política pública. Podemos citar
os mais recentes projetos: PL nº180/2014 (inclui entre os princípios do ensino,

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o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando prece-


dência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa); PL nº867/2015 (determina
que professores entreguem os materiais que utilizarão em sala de aula aos res-
ponsáveis pelos alunos); PL nº2731/2015 (determina que o texto do PNE proíba
a utilização dequalquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial
o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus
derivados, sob qualquer pretexto); PL nº867/2015 (inclui, entre as diretrizes e
bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”).
Os projetos citados têm em comum a preservação do que entendem
como modelo universal de família diante aos temas como sexualidade, morali-
dade e religião. De forma similar ao trecho que citamos do filme, os argumentos
passam pela questão religiosa e tomam como ameaça as identidades que não
combinam com o modelo adotado pela cultura cristã e/ou heteronormativa. De
forma semelhante também, podemos perceber que existe uma exclusão das
vozes dos grupos minoritários sobre os temas. A ideia de “ideologia homos-
sexual” que ameaça as famílias por meio do ensino nas escolas aparece em
ambos os cenários, de 1970 e 2015. E o mais importante de destacar é como o
cenário político se faz valer de sua força para transformar as questões de inte-
resse de alguns grupos como representativa do interesse público.
A esfera pública política deve ser entendida como “uma caixa
de ressonância onde os problemas a serem elaborados pelo sis-
tema político encontram eco”, uma vez que a esfera pública é,
justamente, “um sistema de alarme dotado de sensores não especia-
lizados, porém sensíveis no âmbito de toda sociedade” (Habermas,
1997, p. 30, 40, 41).

O movimento LGBT, no Brasil, se organiza a partir da década de 1970 por


direitos e oportunidades iguais. A história de conquista de direitos iguais na prá-
tica, no Brasil, também releva questões entre privado e público, demonstrando
que essas tensões são constantes.
O que precisamos questionar é de que forma as questões das minorias
podem ser problematizadas na esfera pública. Como podemos trazer à tona as
barreiras sociais que alguns grupos encontram para usufruir dos direitos garan-
tidos na Constituição de 1988?

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A Politização da Vida Cotidiana

No filme, a vida de Harvey Bernard Milk representa o caminho e escolha


por tornar a vida cotidiana pauta para lutas por igualdade social. Sua cami-
nhada na vida política nos ajuda muito a entender seu posicionamento pessoal
e público, bem como o reconhecimento de masculinidades diversas. Foi o pri-
meiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia,
como supervisor da cidade de São Francisco. A política e o ativismo gay não
foram os primeiros interesses de Milk; ele não sentia necessidade de ser aberto
quanto à sua homossexualidade ou participar de causas civis até por volta dos
40 anos. A partir daí, desperto para a política, Milk mudou-se de Nova Iorque
para fixar residência em São Francisco, em 1972.
Ele candidatou-se sem sucesso três vezes para cargos políticos. Milk obteve
um assento como supervisor da cidade, somente em 1977, como resultado das
mudanças sociais mais amplas que a cidade estava enfrentando. Ele exerceu
o mandato por 11 meses e foi responsável pela aprovação de uma rigorosa lei
sobre direitos gays para a cidade.
Com o pós-feminismo, podemos compreender melhor como o
contrato sexual sustenta o contrato social. Domínios como a famí-
lia, a sexualidade, a saúde, a alimentação e o vestuário, que antes
pertenciam fundamentalmente ao domínio privado, tornaram-se
parte de um ampliado campo público e político de contestação.
As claras distinções entre as esferas doméstica e a pública não se
sustentam, principalmente após a entrada em massa das mulheres
e das atividades ‘privadas’ antes associadas ao doméstico. Em toda
parte, o ‘pessoal’ tornou-se ‘político’. (Hall, 2003. p. 76).

De acordo com o autor, os estudos feministas foi uma das rupturas teó-
ricas decisivas que alterou uma prática acumulada em Estudos Culturais (Hall,
2003). De que forma a história de Milk também não representa esse tipo de
proposta de ruptura e de tensão entre o público e o pessoal?
Milk liderou um movimento de luta pelos direitos das minorias sexuais
e contra a onda de conservadorismo, principalmente cristão, que se afirmava
no cenário político. “Estamos saindo para lutar contra as mentiras, os mitos, as
distorções. Estamos saindo para dizer as verdades sobre os gays, porque estou
cansado da conspiração do silêncio” (Harvey Milk). Como forma de resistência,
ele convocou todos os homossexuais a se assumirem publicamente a fim de

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derrubar os argumentos baseados em estereótipos preconceituosos e maldosos


sobre os gays. “Precisamos fazer com eles saibam quem somos nós. Todos têm
que sair do armário. Todo o Estado. Não importa onde eles morem. Saia do
armário! Saia do armário! Não importa quem você é! Diremos para todo Estado
sair do armário.”(Harvey Milk).
Não se trata apenas de pressionar o Estado para reivindicar direi-
tos, mas de modernizar a própria sociedade civil, transformando
as estruturas tradicionais de dominação, exclusão e desigualdade
que, fora do aparelho do Estado, se encontram enraizadas nas ins-
tituições, normas, valores e identidades coletivas, baseadas em
preconceito de raça, classe e gênero, configurando o que Foucault
denominou ‘micropoderes’ (Vieira, 2001. p. 79).

A estratégia que Harvey encontra é de mobilizar a sociedade civil em rela-


ção aos direitos das pessoas LGBT a fim de que possam transgredir o discurso
homogeneizador de moral e família. “Todos os gays, advogados, professores,
médicos. O homem da carrocinha de cachorros. Nós temos que sair do gueto!
Deixar todos saberem que eles conhecem um de nós. E se as pessoas não saí-
rem do armário, abriremos uma porta para elas.Se há alguém nessa sala, nesse
momentoque não tenha contado a sua família, seus amigos, seus chefes, façam
isso agora!” (Harvey Milk).

Os Obstáculos para a Politização do Privado

No trecho do filme Milk que estamos utilizando como material de refle-


xão existe um diálogo bem interessante entre o vereador e seu ex-namorado em
que Milk é questionado por exigir que seus apoiadores se assumam na socie-
dade. A crítica recai sobre seu pedido para que todos se assumam, e durante a
conversa fica evidente o medo que existe da exclusão social.
É desejar que saibam trabalhar para inventar e impor, no seio
mesmo do movimento social e apoiando-se em organizações
nascidas da revolta contra a discriminação simbólica, de que
elas são, juntamente com os (as) homossexuais, um dos alvos
privilegiados, formas de organizaçãoe de ação coletivas e armas
eficazes, simbólicas, sobretudo, capazes de abalar as instituições,

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estatais e jurídicas, que contribuem paraeternizar sua subordinação


(Bourdieu, 2007, p. 5).

O questionamento que foi feito a Milk representa uma preocupação social


baseada em reprodução de discursos de moralidades e normatizações das iden-
tidades humanas. Tomamos como referência aqui o que Bourdieu chama de
preconceito simbólico. A normatização das sexualidades foi uma das formas
encontradas para controlar e dominar as pessoas. Neste sentido, refletimos sobre
como o receio de ser excluído pode ser marca da violência contra minorias
sexuais e de gênero, e como essa violência pode ainda hoje se tornar obstáculo.

Considerações Finais

Pensamos que ao discutirmos tais questões, buscamos contribuir para que


a escola em particular e a sociedade como um todo seja composta de sujeitos
dotados de espírito crítico para se posicionar com harmonia em um mundo de
diferenças e de infinitas variações, inclusive um olhar que permita evidenciar as
diferentes formas de masculinidades.
Nossa pretensão é colaborar para que pessoas possam refletir sobre o
acesso de todos à cidadania e compreender que, dentro dos valores da ética e
dos direitos humanos, as diferenças devem ser respeitadas e promovidas e não
utilizadas como critérios de exclusão social.
Assim, consideramos que o filme evidenciado neste artigo, trouxe refle-
xões no sentido de admitir que as identidades masculinas possuam dimensões
políticas que se traduzem na luta pela subjetividade e legitimação da diferença
não somente como possibilidade, mas como direito.

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Referências Bibliográficas

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2006.

LINS, Beatriz Accioly. MACHADO, Bernardo Fonseca; ESCOURA, Michele. Diferentes


não desiguais. A questão de gênero na escola. São Paulo: Reviravolta, 2016.

VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de


Janeiro: Record, 2001.

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MULHERES PIONEIRAS NA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO1

Daniela Teixeira Rezende


Mestrando em Educação Tecnológica
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
danielateixeirarezende@gmail.com

Raquel Quirino
Pós-Doutora em Educação
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG
Departamento de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
quirinoraquel@hotmail.com

GT 16 - Relações de gênero, diversidade sexual, trabalho, tecnologia e educação


profissional: interlocuções, diálogos e desafios contemporâneos.

Resumo

O tema abordado traz um resgate histórico acerca da participação e atuação


das mulheres na área de Tecnologia da Informação (TI), é importante mos-
trar que as mulheres tiveram papel imprescindível no desenvolvimento da área
de Informática. O objetivo deste artigo é fornecer modelos femininos na área
de TI, apresentando mulheres pioneiras que tiveram importante participação no
desenvolvimento da computação. É parte integrante de um projeto de pesquisa2
que busca identificar como se dá a formação e a qualificação profissional em TI;
as principais áreas de atuação desse profissional e discute a presença feminina

1 Pesquisa realizada com recursos do Programa Institucional de Fomento à Pesquisa do CEFET-MG –


PROPESQ e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG
2 Pesquisa realizada com recursos do Programa Institucional de Fomento à Pesquisa do CEFET-MG –
PROPESQ e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG

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nesse mercado de trabalho. Espera-se contribuir para o debate e reflexões sobre


as relações de gênero no trabalho, visando uma participação igualitária dos
gêneros na área de TI.
Palavras chave: tecnologia da informação; mulheres na TI; as pioneiras da TI;
relações de gêneros.

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Introdução

Até o final do século XIX, leis em todo o mundo impediam que mulheres
possuíssem propriedade em seus nomes, inclusive intelectual. Mesmo com a
mudança nas leis, a sociedade dá pouca ênfase nas contribuições femininas na
ciência e tecnologia (VASCOUTO 2015).
Matsura (2016) alerta que projetos recentes tentam recolocar na histó-
ria nomes de programadoras que criaram o sistema do primeiro computador
eletrônico digital. Elas são minoria na indústria de tecnologia, mas, sem seu
trabalho, provavelmente os computadores não existiriam como são hoje. Foi
pelas mãos femininas que o primeiro algoritmo para computador foi escrito, no
século 19. Mulheres como Ada Lovelace e Grace Hopper foram fundamentais
para o avanço dos softwares. O sistema que serviu como base para o celular
foi criação de uma atriz de Hollywood. Seis programadoras do projeto ENIAC
criaram o sistema do primeiro computador eletrônico digital, e ficaram relega-
das a segundo plano.
Segundo Lindamir Casagrande, citada por Matsura (2016) a história da
participação das mulheres na Ciência e Tecnologia na ainda não foi escrita. Ada
Lovelace e Grace Hopper até conseguiram algum reconhecimento, mas elas
não foram as únicas que produziram ciência e tecnologia na área de TI.
Assim, na tentativa de resgatar as contribuições dessas mulheres e dar
visibilidade aos seus trabalhos na área de TI, segue-se um breve histórico de
cada uma delas.

As pioneiras da TI – Atuação feminina desde o século XIX

Apesar da ideia de que as mulheres não possuem competência para a tec-


nologia, elas foram importantes para o desenvolvimento da informática, como
pode ser visto pelo trabalho realizado pelas pioneiras, que tiveram importante
participação para o desenvolvimento da informática e, na maioria das vezes,
permanecem invisíveis.
As pioneiras aqui apresentadas são Ada Byron (Lady Lovelace), a primeira
mulher considerada programadora da história; e Grace Murray Hopper pela sua
contribuição no desenvolvimento da linguagem de programa COBOL, utilizada
até hoje e pelo desenvolvimento do primeiro compilador. Também são apresen-
tadas as mulheres que participaram do desenvolvimento do ENIAC, o primeiro

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computador eletrônico e algumas outras mulheres que tiveram participação sig-


nificativa para o desenvolvimento da informática.
Para Santino (2015) a histórica de Ada Lovelace, como é popularmente
conhecida a primeira programadora da história, Augusta Ada King é contada
por Santino (2015). Nascida em 1815, conhecida como Condessa de Lovelace
ajudou o colega, Charles Baggage, no desenvolvimento da primeira máquina
de cálculo e é responsável pelo algoritmo que poderia ser usado para calcu-
lar funções matemáticas. Suas notas sobre a máquina analítica de Babbage,
primeiro modelo de computador, que foram republicadas mais de cem anos
depois foram reconhecidas como o primeiro algoritmo especificamente criado
para ser implementado em um computador.
Filha do Lord Byron com Anne Isabella Byron, teve criação científica
desde cedo porque sua mãe era uma estudiosa de matemática e influenciou a
filha com o objetivo de não deixá-la trilhar a rota de seu pai na poesia que não
era um bom exemplo. Um mês após o nascimento de Ada deixou sua mãe e
acabou abandonando a Inglaterra para sempre, morreu quando a garota tinha
apenas oito anos.
Ao casar com William King-Noel, barão que acabou se tornando o Conde
de Lovelace, passou a receber o tratamento Condessa de Lovelace. Faleceu em
1852 de câncer no útero.
Em 1982, uma linguagem de programação estruturada ganhou o nome
“Ada” como referência a uma das personagens mais representativas da história
da tecnologia.
Na segunda terça-feira de outubro é comemorado o “Ada Lovelace Day”
que tem como objetivo lembrar os feitos do sexo feminino nas ciências, tecno-
logia, engenharia e matemática, assim como encorajar as mulheres a seguirem
esse caminho.
Segundo os escritos históricos de Cruz (2015), a austríaca Hedy Lamarr,
radicada nos Estados Unidos, era atriz em Hollywood e foi considerada a mulher
mais bonita do mundo na década de 1940. Era casada com um industrial do
setor de armamentos e, assim, adquiriu conhecimentos sobre o poder de fogo
usado na Segunda Guerra e, com muito talento na matemática, uniu forças com
George Antheil para ajudar o esforço de guerra aliado e desenvolver princípios
da tecnologia. Desenvolveram uma ideia de usar sinais de rádio emitidos para
torpedos submarinos impossíveis de serem encontrados por radar, o que serviu
de base para a telefonia celular móvel e deu origem a quase todas as formas

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de redes sem fio conhecidas hoje em dia, tais como: Bluetooth, GPS e Wi-Fi.
Usando os princípios de notas musicais no piano, Hedy e Antheil criaram um
sofisticado aparelho que causava interferência em rádios para despistar radares
nazistas. Em 1940, patentearam o projeto “frequency hopping” e Hedy usou o
seu verdadeiro nome: Hedwig Eva Maria Kiesler.
CARDOSO (2007) escreveu sobre Grace Murray Hopper  Formada em
Física e Matemática, enfrentou difícil situação nos EUA por querer ir mais além
do que casar e ser dona de casa, o que era comum para mulheres da época.
Em 1934 já era Ph.D. em matemática e uma carreira sólida como professora.
Com a 2ª Guerra Mundial se alistou na Waves, divisão criada espe-
cialmente para mulheres, que cuidariam das áreas burocráticas, enquanto os
homens lutavam nas linhas de frente. Conquistou o 1º lugar na turma, se for-
mando Tenente e sendo designada para o projeto de computação de Harvard,
programando o Mark I, um dos primeiros computadores do mundo.
Com o fim da guerra, continuou em Harvard trabalhando para a Marinha
até 1949, depois de ter ido para a Reserva Naval. Desenvolveu o Univac I
modelo mais próximo de um computador de verdade e criou o compilador, que
mudou o mundo da informática. Sua ideia não foi levada a sério, computadores
eram máquinas que calculavam, não “compilavam”. A ideia de um programa
que interpretasse uma linguagem mais próxima do inglês do que código de
máquina era alienígena para os profissionais e cientistas da época. Em 1959 seu
trabalho já era reconhecido, resultando em boa parte das especificações do
Cobol.
Nos anos 1960/1970 pesquisou e definiu conceitos como padrões e
certificações para homologação de softwares, implementando o uso e a padro-
nização do Cobol na Marinha. Deu baixa em 1986, aos 79 anos, no posto de
Contra-Almirante. Imediatamente contratada pela empresa “Digital” como con-
sultora sênior, uma das maiores mentes femininas da Ciência da Informação,
faleceu em 1992 aos 85 anos. (CARDOSO, 2007).
Alcantara (2008) escreveu sobre As seis programadoras do ENIAC também
conhecidas como as pioneiras do ENIAC. O primeiro computador eletrônico
Eniac (Electronic Numerical Integrator and Computer) foi criado em 1946 e
projetado para fazer cálculos de artilharia para o exército americano e sua pro-
gramação foi feita por mulheres. Foi utilizado pela primeira vez para calcular
trajetórias balísticas. Estrutura gigantesca: 18000 válvulas, pesando 27 toneladas
era a primeira máquina capaz de ser programada para execução de cálculos

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diferentes para objetivos diferentes. Em 1947 o Eniac recebeu um upgrade de


memória se tornando a primeira máquina capaz de armazenar um programa
para execução posterior.
De um grupo de 80 matemáticas que trabalhavam para fazer cálculos
balísticos na Universidade da Pensilvânia, foram selecionadas Kathleen McNulty,
Mauchly Antonelli, Jean Jennings Bartik, Frances Synder Holber, Marlyn Wescoff
Meltzer, Frances Bilas Spence e Ruth Lichterman Teitelbaum para automatizar
o processo. Quando entrou em operação apenas os engenheiros tiveram cré-
dito; elas não. Ficaram conhecidas apenas como as “computadoras” (moças
que computavam), termo pejorativo escolhido pelo exército americano como
uma forma de separar as mulheres dos verdadeiros matemáticos. Atuaram
desenvolvendo programas balísticos durante a guerra, treinando novos progra-
madores e criando rotinas para melhorar a eficiência do trabalho de programar
a máquina. Algumas faleceram antes de ter seu trabalho reconhecido publica-
mente (ALCANTARA 2008).

O que afastou as mulheres da TI?

Segundo Castro (2015), antes da popularização dos computadores pes-


soais, entre 1970 e 1984, as mulheres eram muito ativas na área de TI. Em
1984 cerca de 37% dos cargos em ciência da computação eram ocupados
por mulheres. Em 2011, esse número caiu para 12 %. Os pesquisadores Caitlin
Kenney e Steve Henn tentaram desvendar o mistério em torno da debandada
das mulheres da ciência da computação.
Para ela, os responsáveis por esse fenômeno eram os estereótipos de
gênero, especialmente no que diz respeito a brinquedos infantis e o marketing
que os envolve. Os primeiros computadores pessoais foram quase que exclu-
sivamente comercializados para homens e meninos. Com a popularização dos
computadores e o nascimento de uma nova cultura geek3, os programas de TV,

3 Geek é uma gíria da língua inglesa cujo significado é alguém viciado em tecnologia, em computa-


dores e internet. A subcultura geek se caracteriza como um estilo de vida, no qual os indivíduos se
interessam por tudo que está relacionado a tecnologia e eletrônica, gostam de filmes de ficção cien-
tífica (Star Wars, Star Trek e outros), são fanáticos por jogos eletrônicos e jogos de tabuleiro, sabem
desenvolver softwares em várias linguagens de programação e, na escola, se destacam dos outros
colegas pelos conhecimentos demonstrados.

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filmes, videogames e outros jogos passaram a reafirmar o domínio masculino


no campo da ciência da computação.
Castro (2015) afirma que, em 1984, a primeira geração de alunos que
poderia ter um computador em casa entrou no colégio. Quando essa geração
chegou a faculdade, os rapazes já tinham muito mais experiência de programa-
ção do que as garotas. A jovens mulheres descobriram que já estavam muito
distantes de seus pares masculinos. Assim, nos cursos voltados para a progra-
mação, a maioria das mulheres já começou em desvantagem em relação aos
companheiros de classe e o desânimo foi o grande responsável pelas desistên-
cias femininas nesta área de estudo e atuação. Para mudar este quadro seria
necessário estimular nas meninas o interesse por tecnologia e instigá-las a pro-
gramar, uma vez que a maioria das crianças só interage passivamente com a
tecnologia, assim como incentivar brinquedos e jogos que introduzam concei-
tos de eletrônica ou engenharia para crianças. Para Castro,
atitude eficaz para combater o estereótipo de gênero é inspirar as
meninas com histórias de mulheres bem-sucedidas na tecnologia
e incentivá-las a escolher carreiras que as interessem, ainda que
o mercado diga que são de maioria masculina (CASTRO, 2015,
p.128).

Considerações finais

Não há como ignorar a participação das mulheres na produção da


Ciência e Tecnologia no Brasil, no entanto, anda existe em alguns segmen-
tos da sociedade um discurso aparentemente neutro que permanece na lógica
das desigualdades de gênero: “Tecnologia não é coisa para mulher”. Ainda se
vê muita discriminação, com formas sofisticadas de manifestação, tais como o
reduzido número de mulheres em cargos de comando em empresas de tec-
nologias, assim como na direção de órgãos de pesquisa como o Ministério da
Ciência e Tecnologia, CNPq, FAPEMIG entre outros. Quando inseridas nas car-
reiras tecnológicas ainda recebem menos do que os homens e no universo das
pesquisas científicas tem mais dificuldades para conseguir recursos.
A área da Tecnologia Informação não é exceção a essa regra. Embora
historicamente tenha revelado inúmeros talentos femininos no âmbito do desen-
volvimento de tecnologia de ponta que revolucionaram o mundo e servem de
base para tantas outras recentemente criadas, as mulheres da TI permanecem

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invisíveis no emaranhado das tramas sociais e raramente ocupam destaque na


mídia ou nos eventos científicos e tecnológicos e de cunho acadêmico.
Pesquisas que estimulem o debate acadêmico e que visem dar visibilidade
à participação feminina em áreas científicas e tecnológicas se fazem necessárias,
na medida em que derrubam estereótipos, incentivam meninas em processo de
formação a escolher tais carreiras e objetivam lograr uma mudança social de
forma que as diferenças não sejam traduzidas em desigualdades.

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Referências

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< http://migre.me/8aIb1> Acesso em: 10 abr. 2016.

CARDOSO, Carlos. Grace Hopper, a Maior de todas as Geeks Site Meio Bit. 2007.
Disponível em < http://meiobit.com/97634/grace-hopper-a-maior-de-todas-as-geeks/
> Acesso em: 10 abr. 2016.

CASTRO, Ana Carolina. Porque as mulheres foram afastadas da área de Ciência


da Computação. Editora Abril, Revista Cláudia, São Paulo, 2015. Disponível em:
<hhttp://mdemulher.abril.com.br/carreira/claudia/por-que-as-mulheres-foram-afas-
tadas-da-area-de-ciencia-da-computacao-nas-ultimas-decadas> Acesso em: 10 abr.
2016.

CRUZ, Melissa. Hedy Lamarr, atriz do 1º orgasmo no cinema e inventora, estreia em


Doodle. Site techtudo. 2015. Disponível em < http://www.techtudo.com.br/noticias/
noticia/2015/11/hedy-lamarr-atriz-e-inventora-ganha-doodle-do-google-no-youtube.
html > Acesso em: 10 abr. 2016.

MATSURA, Sérgio. Hoje minoria na indústria de tecnologia, mulheres foram funda-


mentais na gênese da computação. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 2016. Disponível
em < http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/hoje-minoria-na-industria-de-tecno-
logia-mulheres-foram-fundamentais-na-genese-da-computacao-15336779 > Acesso
em: 10 abr. 2016.

SANTINO, Renato. Conheça Ada Lovelace, a 1ª programadora da história. Olhar


Digital. 2015. Disponível em < http://olhardigital.uol.com.br/noticia/conheca-ada-lo-
velace-a-1-programadora-da-historia/40718 > Acesso em: 10 abr. 2016.

VASCOUTO, Lara. 9 Mulheres Inventoras que Mudaram o Mundo. 2015. Disponível


em < http://www.nodeoito.com/mulheres-inventoras/ > Acesso em: 13 abr. 2016.

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LINGUAGEM E PRAZER ATRAVÉS DA QUARTA-PAREDE


VIRTUAL: PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
EM PERFORMANCES DISCURSIVO-SEXUAIS NA REDE
SOCIAL ADULTA CAM4®

Eduardo Espíndola Braud Martins


Doutorando em Linguística Aplicada - UFRJ
eduardoebmartins@gmail.com

GT 17 - “Manda Nudes!”: Semioses Contemporâneas e Governamentalidade

Resumo

Neste trabalho, apresento o aporte teórico-metodológico inicial de minha pes-


quisa de doutorado, que visa analisar os processos de construção identitária de
usuários do Cam4®, rede social adulta de pornografia online em tempo real.
Tendo como ponto de partida práticas discursivas situadas na modernidade
recente e na web 2.0, busco investigar como os sujeitos que participam das
interações eróticas do ambiente virtual supracitado negociam suas sociabilida-
des e se (re)constroem, enquanto sujeitos eróticos, em busca de um elemento
em comum: o prazer. Filio-me a teorias de viés socioconstrucionista e busco
guiar-me pelos aportes da etnografia virtual para desenvolver as análises.
Palavras-chave: etnografia online; pornografia; modernidade recente;
sociabilidades.

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Introdução

Os tempos atuais de grande ebulição sócio-cultural-político-histó-


rica (MOITA LOPES, 2006, p. 22), denominados modernidade recente
(CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999), pós-modernidade (BAUMAN,
1992) ou modernidade líquida (BAUMAN, 2001), têm rompido com tudo
aquilo que já foi pensado e conjecturado na modernidade como estável e
uniforme. É o que Beck (2001, p. 202) denomina individualização: “o des-
mantelamento das formas de vida da sociedade industrial (classe, família,
gênero, nação) sem reagrupá-las novamente”.1 Tal erosão generalizada vem
afetando os edifícios categoriais muito bem construídos nas épocas ante-
riores, propiciando cada vez mais instabilidades, mobilidades, incertezas e
ineternidades.
O desenvolvimento tecnológico é grande responsável pelo crescimento
desse mundo de fluxos. Inovações nas áreas de comunicação e deslocamento
humano têm contribuído em larga escala para a fluidez de pessoas, linguagens
e textos. Na Web 2.0, a vida social é constantemente construída, criticada,
transformada, reinventada e transgredida (MOITA LOPES, 2010, p. 400), e os
fluxos – migratórios, textuais e discursivos – operacionalizados nesse mundo
pós-moderno ocorrem, em diferentes escalas, nos mais diversos ambientes de
interação online.
A pornografia na internet tem um espaço relevante nesse processo,
uma vez que “é tida como a atividade online que abrange a maior parte de
sites e downloads, utiliza a maioria da largura de banda disponível e gera
o maior lucro de todo o conteúdo da Web” (PAASONEN, 2011, p. 424). O
desenvolvimento dos mais diversos tipos de sites pornográficos e de uma
vasta rede de serviços na rede para a obtenção de prazer não só tem con-
tribuído para uma democratização da pornografia (COOPERSMITH, 2006,
p. 10-11), como também instiga a redefinição daquilo que é considerado
“pornô” ou “erótico”.
Atividades pornográficas na rede constituem, portanto, um espaço pro-
fícuo para a análise de práticas discursivas online na modernidade recente. É
a partir desse viés que busco, no decorrer deste trabalho, apresentar minha

1 Tradução minha, assim como de todas as outras citações em “língua inglesa” utilizadas neste texto.

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pesquisa de doutorado (em andamento), que tem como foco os processos de


construção identitária de usuários do Cam4®, rede social adulta de pornogra-
fia online em tempo real. Busco analisar como os sujeitos que participam das
interações voyeurísticas (tanto os que se exibem quanto os que assistem à exibi-
ção) nesse site negociam suas identidades e se constroem, discursivamente, em
busca de um elemento em comum: o prazer.
Esclareço que meu interesse com esse tipo de investigação não prevê
gerar grandes generalizações, como dita(va) o grande projeto moderno
de ciência (BAUMAN & BRIGGS, 2003). As análises que pretendo desen-
volver não buscarão verdades absolutas, e sim possíveis leituras dos dados
coletados, influenciadas a todo momento por minhas ideologias e posiciona-
mentos enquanto homem cis, gay, consumidor de pornografia, pesquisador da
Linguística Aplicada entre tantos outros traços efervescentes de minha incons-
tante identidade.

Nudes em movimento

O Cam4®2, rede social adulta de pornografia online em tempo real,


é um site acessado por pessoas de toda parte do globo para se exibirem
de maneira erótica a outras através de uma webcam ou para visualizar
tais apresentações. Na página inicial do site são exibidos os shows (nome
dado às exibições sexuais) em andamento mais visualizados no momento
do acesso, organizados por imagens que mostram uma miniatura do perfil
de cada performer (usuário que se exibe), a bandeira de seu país de origem,
seu gênero, orientação sexual declarada, há quanto tempo começou a exi-
bição e o número de visualizadores simultâneos do show em questão (ver
figura 1).

2 http://www.cam4.com.br/.

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Figura 1 – Página inicial do site Cam4®.

Fonte: Print Screen de página da web em 03 dez. 2015, 14:52.3

O perfil de cada performer exibe, além de suas informações pessoais, um


chat e uma janela de exibição de sua webcam (ver figura 2). Durante o show, o
performer interage com seu público por meio desse chat, por mensagens locali-
zadas no topo de sua página e, claro, com seus corpos. É possível ainda que os
exibidores proponham certos tipos de exposição erótica – mostrar certa parte
do corpo, realizar certa posição sexual – em troca de dinheiro.
O Cam4® funciona com sua própria moeda de circulação – os tokens,
créditos que podem ser comprados por visualizadores e enviados para perfor-
mers como gorjetas. Costumeiramente, é estipulada uma meta (x tokens) para
determinada ação sexual, controlada por uma barra que exibe a quantidade de
gorjetas já enviadas.

3 Rostos e genitálias em evidência na imagem foram censurados.

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Figura 2 – Show de um usuário do Cam4®.

Fonte: Print Screen de página da web em 04 dez. 2015, 13:33.4

As possibilidades de interação erótica no Cam4® são muito variadas e


possibilitam uma miríade de formas de obtenção de prazer entre performers e
o público voyeur. Os modos de participação da plateia nesse ambiente fazem
com que a própria categoria de usuário
“observador” tenha que ser repensada, uma vez que, mesmo distante,
os visualizadores contribuem e interferem nas performances, numa forma de
“parceria sexual” específica.
Da mesma forma que as práticas sexuais no Cam4® desafiam noções
hegemônicas sobre sexo, pesquisá-las requer um arcabouço teórico-metodoló-
gico capaz de lidar com tais rupturas e reconstruções.

Pensando a pós-modernidade

A globalização não é um fenômeno recente. Todavia, as configurações


sociopolíticas vivenciadas na contemporaneidade intensificam em larga escala

4 O nome de usuário do performer e dos participantes do chat foram censurados.

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as variáveis sociais que se apresentam hoje muito mais complexas do que há


poucas décadas. Presenciamos um mundo super-diverso (VERTOVEC, 2007),
no qual pessoas, discursos e textos circulam de modo extremamente fluido e
dinâmico, reconfigurando padrões sociais e demandando novas teorizações,
vocabulários e modos de investigação.
Para Blommaert (2010, p. 1), a “globalização força a sociolinguística a
pensar de outro modo suas clássicas distinções e conceitos preconcebidos e
a se repensar como uma sociolinguística de recursos móveis, estruturada em
termos de redes, fluxos e movimentos trans-contextuais”. A linguagem precisa,
nesse processo, passar de uma teorização linguística, estática, de um objeto de
estudo fixo e pré-determinado, para uma teoria de linguagem que considere
toda a dinâmica cultural, social, política e histórica das práticas discursivas rea-
lizadas atualmente.
Numa perspectiva que considera o fluxo espaço-temporal dos itens semi-
óticos em constante movimento na modernidade recente, textos em circulação
são considerados em suas trajetórias (BLOMMAERT & RAMPTON, 2011). O
discurso, entidade fixa e bem delimitada pela tradição linguística, passa a ser
decentralizado, dando lugar a processos de entextualização, que:
É o processo de tornar o discurso extraível, de fazer um extrato de
uma produção linguística uma unidade – um texto – que pode ser
retirado de seu entorno interacional. Um texto, então, a partir desse
ponto de vista, é discurso tornado descontextualizável. A entextu-
alização bem pode incorporar aspectos do contexto, de tal modo
que o texto resultante carregue elementos de sua história de uso
dentro de si. (BAUMAN & BRIGGS, 1990, p. 73).

Assim, produções de linguagem ocorrem em processos constantes de des-


contextualização de um contexto situacional e recontextualização em outro.
Enunciações performadas em uma situação específica são analisadas conside-
rando tanto a trajetória histórica, social e política dos signos ali (re)utilizados
quanto as mudanças semióticas desenvolvidas naquela configuração espaço-
temporal particular. Em vez de fixidez de significados e de entorno contextual,
mobilidades e trajetórias textuais norteiam as investigações de linguagem de
cunho socioconstrucionista.
A transitividade dos itens semióticos é ainda analisada a partir do princí-
pio da indexicalidade. Desenvolvido a partir do conceito de Peirce (2005), é,

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em linhas gerais, “o modo que, em diferentes níveis, signos (linguísticos ou não)


apontam seus utilizadores para as condições circundantes específicas nas quais
eles os utilizam” (SILVERSTEIN, 2009, p. 756). A isso se soma o modo como
os índices apontados por um signo são hierarquizados, isto é, sua ordem de
indexicalidade.
Logo, signos são constantemente reorganizados e resinificados nas
interações em que ocorrem, apontando para outros textos e discursos já
entextualizados e reordenando seus significados para a situação interacio-
nal em desenvolvimento. Esse movimento acontece em camadas escalares
(BLOMMAERT, 2015), o escopo espaço-temporal da inteligibilidade semiótica,
que são “os níveis para os quais espera-se que signos particulares possam ser
inteligíveis” (BLOMMAERT, WESTINEN & LEPPÄNEN, 2014, p. 5)
Esse novo toolkit teórico-metodológico, incorporado a investigações de
linguagem de cunho INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006), etnográfico (GEERTZ,
2008; HAMMERSLEY & ATKINSON, 2007) e de viés performativo (BUTLER,
1997, 1999, 2004) visa abarcar as vicissitudes semióticas cada vez mais inten-
sas deste mundo hipersemiótico. Tal arcabouço epistemológico oferece uma
visão poderosa e diferenciada de atividades de linguagem e suas ideologias
(BLOMMAERT & RAMPTON, 2011), possibilitando a verificação de como o
sexo circula nos meios voláteis de interação online do Cam4®, em uma resi-
nificarão incessante daquilo que entendemos como práticas eróticas ou de
obtenção de prazer, também resinificados.
A partir do exposto, as análises empreendidas serão norteadas pelos
seguintes questionamentos:

• Como as identidades discursivo-sexuais de usuários do Cam4® são


negociadas e construídas durante as performances (incluindo áudio,
vídeo, chat das exibições e perfil dos usuários)?
• Quais signos emergem no decorrer desses shows e quais ordens de
indexicalidade são mobilizadas por tais itens semióticos?
• Em que grau escalar discursos (hegemônicos ou não) sobre gênero,
sexualidade e práticas eróticas circulam, são reconfigurados ou des-
contruídos durante as atividades situadas?

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Considerações finais

Pelas limitações de espaço estabelecidas pela organização responsável


pela publicação deste texto, não foi possível me aprofundar com propriedade
nas questões que abarcam a pesquisa que desenvolvo. Em suma, verificar como
a Web 2.0 tem contribuído para uma reformulação de noções de gênero, sexu-
alidade, erotismo, prazer e participação sexual, além de trazer para a academia
um tema pouco tratado cientificamente, contribui para visualizarmos que aquilo
que chamamos de sexo também é fruto de uma concepção modernista de vida,
que engessa e oprime corpos e vivências. Utilizando o termo cunhado por Beck
(2001), podemos então perceber como o sexo é também uma categoria zumbi,
que precisa ser desmistificada, desmantelada e ressignificada a fim de possibili-
tar novas formas de tecer a vida social.

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Referências

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______. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001

______.; BRIGGS, C. Poetics and Performance as Critical Perspectives on Language


and Social Life. Annual Review of Anthropology, v. 19, p. 59-88, 1990

______.; BRIGGS, C. Voices of modernity. Language ideologies and the politics of


inequality. Cambridge: Cambridge University Press, 2003

BLOMMAERT, J. The Sociolinguistics of Globalization. Nova Iorque: Cambridge


University Press, 2010

______; RAMPTON, B. Language and Superdiversity: A position paper. Working


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VELHOS E VELHICES EM LAMPIÃO DA ESQUINA E


SUI GENERIS

Fábio Ronaldo da Silva


Doutorando em História
Universidade Federal de Pernambuco
fabiocg@mail.com

GT 23 - Imprensa gay em questão

Resumo

Pensar os gays velhos é algo que quase sempre existe um silenciamento. Mesmo
assim, em alguns momentos esse silêncio é rompido quando aparecem, de
forma sucinta matérias sobre velhice e velhos sendo entrevistados em publica-
ções voltadas para o público gay. A partir desta premissa, este trabalho, versão
parcial de pesquisa desenvolvida no doutorado em História pelo PPGH/UFPE,
tem como objetivo debater qual o espaço que o periódico Lampião da esquina
(1978) e a revista Sui Generis (1995), ambos voltados para o público homosse-
xual, oferecerão em suas páginas para os gays velhos, em específico, e de que
forma a velhice será dita por essas publicações.
Palavras-chave: velhice; sexualidade; Lampião da esquina; Sui Generis.

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Introdução

A população de idosos, no Brasil, passou a ser motivo de interesse mais


constante nas diversas áreas a partir do século XX, impulsionado pelo cresci-
mento do número de pessoas nessa faixa etária. Entretanto, há poucos estudos
sobre homossexuais e envelhecimento, como apontam Pocahy (2004), Motta
(2009) e Weeks (1983). Este último, ao refletir sobre o assunto, destaca que
há poucas pesquisas teóricas e informações empíricas sobre o processo de
envelhecer.
Se ainda são poucos os estudos sobre homossexuais idosos, mais raros
são os estudos sobre esse grupo na mídia voltada para o público LGBT que cada
vez mais vem se segmentando, mas é perceptível a ausência de publicações
impressas voltadas para os homossexuais idosos. Há alguns sites informativos
que têm como público-alvo bichas velhas, a exemplo do Grisalhos1 criado em
2009 do qual faz parte a revista digital Homens Maduros.
Em boa parte do material utilizado para a composição deste trabalho, os
corpos dos homossexuais velhos nunca são mostrados, pois nada mais é do que
uma “mercadoria” obsoleta. O que será utilizado é apenas o discurso, muitas
vezes advindo de pessoas famosas mostrados sempre como vencedores, expe-
rientes e sabedores, com um saber-fazer secular (MINOIS, 1999), e que servem
como exemplo para os gays mais jovens.
Aos mais velhos, só restariam pagar para desfrutar de companhia fugaz
e arriscada. E essa concepção ou “verdade” social e histórica imbricada ao ser
homossexual idoso nos remete à interseção saber/poder de Foucault (2003,
p.12) que afirma que “a verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” e a mídia
acaba se constituindo em um ótimo espaço para reproduzir e reafirmar essas
“verdades”.

Acendendo o Lampião

De acordo com Green (2014) as autoridades políticas da Ditadura Militar


no Brasil percebiam a homossexualidade como uma manifestação de subversão.

1 http://grisalhos.wordpress.com

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Logo, os homossexuais se tornam inimigos do Estado, ameaça para a sociedade


e a segurança nacional e que estavam associados aos movimentos feministas e
dos negros, sendo uma espécie de triunfo da subversão comunista. E foi durante
esse período que os “subversivos” foram gozando e criando meios para falar aos
iguais, que sentiam e desejavam da mesma forma que eles. Era preciso iluminar,
dar visibilidade às bichas e aos bofes, fazê-los perceber que não precisavam
viver escondidos, sozinhos, fazendo “pegação” no escurinho dos cinemas ou
nos banheiros públicos. Ser “guei” era mais do que isso e era necessário quebrar
as portas do armário e usar um Lampião para iluminar esses que “atentavam
contra a família e a moral2”. Então um grupo de intelectuais assumidamente
gays, após a visita do editor da publicação americana Gay Sunshine ao Brasil, e
inconformados diante de tanta repressão e conservadorismo existente no país,
pensaram um jornal para discorrer não apenas sobre sexualidade, mas tam-
bém lutar contra o preconceito e a repressão recrudescidos durante o regime
militar. Sendo aceso, no ano de 1978 o Lampião da Esquina que tinham como
produtores os jornalistas Aguinaldo Silva, Adão Costa, Antônio Chysóstomo, o
cineasta Jean-Claude Bernadet, o cineasta e escritor João Silvério Trevisan e o
antropólogo Peter Fry, dentre outros.
Das 38 edições do Lampião, poucas fizeram menção as “mariconas” ou a
velhice. Não existe nenhuma matéria especificamente que vá discorrer sobre o
assunto, tal tema aparece de soslaio. Seja através de cartas, seja em enquetes,
ou comentários sobre filmes, em cuja produção há uma personagem gay idoso,
seja em enquetes, ou matérias onde tal assunto é mencionado. Foram no total
15 matérias em diferentes edições do periódico onde o assunto velhice ou os
velhos são mencionados, 12 missivas de rapazes mais jovens que buscavam um
homem mais velho para chamar de seu, duas cartas onde leitores mais velhos
se posicionam sobre um determinado tema ou sobre a ausência de publicidade
voltadas para o público com mais idade.

2 No ano de 1977 o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Aloísio
Lorscheider faz uma crítica ao que ele denominou de processo gradual de permissividade no Brasil
que, de acordo com ele, teria tido início “com o divórcio, agora foi a vez da pílula, amanhã será o
aborto e, depois, o homossexualismo. Aí, será o fim.” “INPS também fará controle familiar” - Estado
de São Paulo, 29 de julho de 1977, p.14. http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19770729-31399-
nac-0014-999-14-not

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Na edição 22, publicada em março de 1980, encontramos a matéria de


capa intitulada “Carnaval das bichas: o maior do mundo” publicada na coluna
Festim e assinada por João Carlos Rodrigues. O texto traz duas fotos nas quais
aparecem homens fantasiados e desfilando. Não há identificação de quem são
os personagens que aparecem nas fotos. Na matéria Rodrigues faz um relato do
quanto estava decepcionado com as fantasias das escolas de samba cariocas
daquele ano. A Unidos de São Carlos, única escola de samba elogiável pelo
autor da matéria ficou, para a tristeza dele, com o último lugar. Era a escola que
trazia bichas, putas, delinquentes e moradores do Morro do Estácio que, pos-
sivelmente seriam presos pela polícia no final do desfile. Foi nessa linda escola
que “uma bicha de uns 800 anos, vestida de bispo da igreja Bizantina ou coisa
e tal, caiu de cara no chão, ficou imóvel por uns 4 minutos, e depois, como
se não tivesse acontecido nada, levantou-se e continuou com o seu desfile.”
(LAMPIÃO DA ESQUINA, 1980, p.04). “Gueis” velhos participando de eventos
sociais, sejam estes de qual tipo for, será sempre algo para ser ridicularizado
em quase todas as matérias. Ao invés de se expor ao ridículo, ou melhor, para
não ter consciência que a existência dessas pessoas era ridícula, o melhor seria
voltar para dentro do armário ou permanecer trancadas dentro da própria casa.
Os bares, os cinemas, o sambódromo eram lugares para pessoas jovens e não
para “cacuras”.
Apesar de estudos mostrarem que a gestão da velhice começa a mudar
no Brasil a partir da década de 1970 quando, no período do regime militar é
instituído por meio de decreto-lei a renda mensal vitalícia (pensão) para aqueles
a partir de setenta anos em condição de pobreza e que fossem contribuintes da
Previdência Social por, no mínimo 12 meses, os discursos que diziam a velhice
na imprensa, por exemplo, a percebia como um momento de afastamento da
vida produtiva, cabendo aos velhos não o desejo, o prazer ou o amor, mas
a reclusão ao espaço privado e esse discurso será recorrente no Lampião da
Esquina quando vai falar sobre os velhos.

Sui Generis: uma revista de “discernimentos sérios e futilidades


chics”

A Sui Generis foi uma publicação que oficialmente surgiu em 1995, não
se dizia militante mas um espaço de “discernimentos sérios e futilidades chics
dirigidas para homens e mulheres gays” (SUI GENERIS, ed 01, p. 60). Segundo o

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jornalista Nelson Feitosa, idealizador da revista e diretor de redação, a proposta


era fugir do “gueto” das publicações eróticas restritas a um mercado erótico que
sofria preconceito da sociedade, então o projeto inaugura no país um mercado
voltado para um público GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) e as matérias que
poderiam ser noticiadas em qualquer outro tipo de revista buscavam abordar
os assuntos a partir da ótica de um leitor gay, utilizando a linguagem que se
aproximasse de tal público.
A revista Sui Generis foi lançada no Brasil na mesma década em que
as sensibilidades e subjetividades de se dizer a velhice estavam mudando. Na
década de 1990 a velhice passou a ter mais visibilidade e mais atenção do
Governo Federal no tocante as políticas sociais mais abrangentes sendo intro-
duzida no país a chamada “década da terceira idade”.
A “terceira idade” passava a substituir a velhice, a aposentadoria ativa vai
se opor a aposentadoria, o assistente social tornava-se animador social e os asi-
los passavam a ser centro residencial. Com a urgência de um novo tipo de força
coletiva de trabalho e com a delimitação de um outro tipo de individuação da
subjetividade se tornou necessária criar novas coordenadas de produção de
subjetividade, assim, os signos do envelhecimento foram invertidos e assumiram
outras designações, como “idade do lazer”, “nova juventude”, dentre outros. O
mesmo ocorre com a aposentadoria que ao invés de um momento de recolhi-
mento, passa a ser um momento de atividade e de lazer. A preocupação não
era apenas pensar e resolver os problemas econômicos dos idosos, mas propor-
cionar cuidados psicológicos e culturais, integrando socialmente um grupo que
nas décadas anteriores era marginalizado.
Nas 55 edições da revista, vamos encontrar 34 textos, distribuídos entre
reportagens, entrevistas, notícias e artigos, que aparecem velhos ou que se fala
da velhice. Mas serão poucos que falarão sobre o relacionamento amoroso
intergeracional. Se pouco se fala ou não se diz, automaticamente, torna-se algo
que não existe ou uma situação que poucos se lembrarão da possibilidade de
existência. Um dos poucos textos que falará sobre a possibilidade amorosa de
gays velhos estará no artigo “Amor intergeracional” do escritor João Silvério
Trevisan publicado na 33º edição.
O artigo de João Silvério Trevisan sobre gays mais velhos que passam a ser
objeto de desejo dos mais jovens e o preconceito que estes sofrem por gostar dos
tiozinhos. Em “Amor intergeracional”, destaca o relacionamento amoroso entre
pessoas de diferentes gerações. O escritor começa falando sobre o rechaço que

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os gays que tem cabelos grisalhos e o rosto marcado pelos anos passam por
serem bichas velhas. Ele menciona os anúncios publicados em revistas e jornais
referentes à procura de parceiros. De acordo com Trevisan, 90% deles buscam
parceiros de até 40 anos. Aos velhos, restariam a solidão e a morte.
Se envelhecer é um processo implacável que aponta para um caminho
sem volta, entre os homossexuais o espectro da solidão, frequentemente, é mais
acentuado porque se vive sozinho e até mesmo longe da família. Por isso, no
chamado “mundo gay”, o olhar do outro pode ser um espelho feroz, pois há a
comprovação de que não se é mais desejado.
Como podemos perceber nesse fragmento do texto. “Outro dia, numa
boate gay, duas bichas riram na minha cara, surpresas por encontrar no banheiro
um velho que não se supunha estar ali” (p.55), relembra o articulista da revista.
O olhar que acusa, que reprova e que rejeita, fez com que Trevisan, e possi-
velmente outros gays velhos, fosse se afastando desses espaços de diversão
voltados para o público gay.
Mas o autor se mostra ciente das construções subjetivas veiculadas pelos
discursos e afirma que esses olhares acusadores nada mais são do que fruto
de “um ideário social de supremacia da juventude, tida como um dos valores
básicos no mundo moderno e decantada como um bem inestimável” (p.55).
E lembra ainda que grande parte da indústria de consumo vai se apoiar no
binômio casal heterossexual e jovem, sendo a juventude heterossexual um
importante nicho do capitalismo. Inclusive a própria revista Sui Generis vende
para os seus leitores um padrão de juventude como delata Trevisan. “Vejam-se
as revistas gay (inclusive a Sui Generis): só trazem fotos de rapazinhos boniti-
nhos e/ou musculosos” (p.55).
Ora, se ser jovem é ser possuidor de um importante bem, cabe proteger
o máximo possível esse bem para não o perder e passar a ser desprezado, ser
visto como uma pessoa abjeta entre os pares.
Apesar do choque que teve ao se perceber como velho e não mais pos-
suidor de um bem bastante cortejado e difícil de manter, que é a juventude,
o Trevisan passou a perceber o quanto se tornou desejado por rapazes mais
jovens. Aos poucos foi percebendo que o amor intergeracional é tão natural
quanto se pensava. Mas, apesar de ser natural, os casais sofrem preconceito,
principalmente o mais jovem da relação, pois têm que se impor em um meio
quase sempre hostil.

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“Certa vez, presenciei uma árdua discussão entre dois amigos bichas,
quando um deles confessou que gostava de velhos e o outro, revoltado, acu-
sou-o de ser um ‘tarado e neurótico’, pois normal é gostar de ‘rapazes viris’”,
comenta Trevisan. As máquinas de produção de subjetividades, da qual falam
Guatarri e Rolnik (2005) mostram que o correto é desejar pessoas jovens, boni-
tas, malhadas, dado que representam vitalidade, saúde, possuem um corpo viril,
que pulsa desejo e que desejam. Logo, ir contra esses parâmetros é transgre-
dir a norma, visto que o que está sendo desejado são os refugos, os “restos
humanos”, os corpos sem potências. “Admiro particularmente esses caras que
cultivam o amor intergeracional, nadando contra a corrente do padrão global e
hollywoodiano de beleza. Claro que fico gratificado porque através deles des-
cobri o charme dos meus 50 anos” (p.56).
Buscando-se redefinir uma imagem positiva do envelhecimento, a pala-
vra “velho” é tida como agregador de preconceitos. Então outras terminologias
passaram a ser inventadas: idosos, terceira idade, melhor idade. Cada uma pos-
suindo uma grande variedade de significados e representações. Mesmo assim,
nas matérias das duas publicações aqui analisadas prevalecem o paradigma de
que ser velho é sinônimo de inatividade, inutilidade, impotência, fragilidade,
solidão. Não possuidor da vitalidade física, o corpo perde a virilidade, torna-se
opaco, sem vida. No mundo moderno, estar velho e, consequentemente, viven-
ciar a velhice é aproximar-se da morte (ALBUQUERQUE JR, 2010).
É interessante percebermos que não são apenas os gays velhos que sofrem
preconceitos por continuarem na ativa, vivos, desejando e sendo desejados.
Pessoas que namoram esses velhos também sofrem preconceito por tal prática.
Como se existisse uma idade limite para ser namorado, desejado e desejar. O
grupo que sofre discriminação e preconceito também discriminará, dentro do
próprio meio, aqueles que quebram as “regras” do que é permitido entre eles.
Mesmo assim, e apesar do preconceito, casais intergeracionais se formavam
mostrando que toda forma de amor é possível e que vale a pena ser vivenciada.
E os velhos gays os quais continuavam se relacionando e amando, resistiam em
aceitar a imagem de pessoas assexuadas, passivas e sem interesses pessoais.

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“PARA FAZER PENSAR E ENTRETER”: A PRODUÇÃO


DE CORPOS, SUJEITOS E MASCULINIDADES
HOMOSSEXUAIS NA REVISTA JUNIOR

Filipe Gabriel Ribeiro França


Doutorando em Educação - UFJF
Professor de Educação Física na rede estadual de ensino de Minas Gerais
filipe.gfranca@yahoo.com.br

GT 23 - Imprensa gay em questão

Resumo

Neste texto apresento as minhas primeiras aproximações com o meu objeto de


pesquisa no doutorado, a revista JUNIOR. Pretendo problematizar a partir da
imersão na revista, os discursos que ela transmite acerca da produção corporal
e das masculinidades homossexuais. Para tanto, opero com as ideias e com
o referencial teórico-metodológico da perspectiva pós-estruturalista e com as
contribuições do filósofo francês Michel Foucault. Tal perspectiva me faz pen-
sar nos modos como nos tornamos sujeitos e como nos constituímos em meio
aos jogos de verdade. Provoca-me também a problematizar como os sujeitos
vão se subjetivando ao lerem a revista JUNIOR e como se relacionam consigo
mesmos, com seus corpos e suas masculinidades homossexuais.
Palavras-chave: mídia; sexualidade; homossexualidade; masculinidade;
homocultura.

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Um encontro: a revista JUNIOR


Inventamos modos de pesquisar a partir do nosso objeto de estudo
e do problema de pesquisa que formulamos. Como estamos,
permanentemente, “à espreita” de uma inspiração, aceitamos expe-
rimentar, fazer bricolagens e transformar o recebido. Aceitamos
trabalhar com o que sentimos, vemos, tocamos, manuseamos e
escutamos em nosso fazer investigativo (PARAÍSO, 2012, p. 33).

O meu objeto de pesquisa no doutorado coloca o meu pensamento em


constante movimento e inquietação. Provoca-me ao estudo e à organização de
questões e conceitos a serem problematizados e operados. Desafia-me a mer-
gulhar, experimentar, fazer bricolagens junto ao universo de pesquisa midiático
e a esmiuçar os processos educativos presentes nele.
As minhas experiências me aproximaram da revista JUNIOR há alguns
anos atrás e hoje ela é o foco da minha investigação. Abaixo trago uma breve
descrição desta revista.
A revista JUNIOR chegou ao mercado editorial brasileiro em setembro
de 2007, sendo publicada pela Editora MixBrasil, pertencente a um grupo de
mídia especializado no público homossexual. Em setembro de 2007, o grupo
MixBrasil levou para o jornalismo impresso a experiência com o mercado gay
obtida por meio da internet e lançou a revista JUNIOR, que ocupou a lacuna
deixada pela revista Sui Generis1. No editorial, o diretor do grupo MixBrasil,
André Fischer, apresenta a nova publicação como: “assumida sem ser militante,
sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informação para fazer
pensar e entreter” (JUNIOR, 2007, p. 11).
A revista surge com a intenção de oferecer entretenimento e informa-
ção de qualidade ao homem gay moderno, com destaque para as reportagens
sobre comportamento e tendência, mas sem deixar de lado um certo erotismo.
JUNIOR também pretendia ser a revista que o homem gay poderia ler e carre-
gar sem maiores “constrangimentos”, já que não há dentre suas imagens fotos
de nu que mostrem os órgãos genitais dos modelos. Na época do lançamento

1 Primeira revista não pornográfica destinada ao público brasileiro. Circulou entre os anos de 1995 e
2000.

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de JUNIOR, apenas a revista G Magazine2, que tinha uma circulação em todo o


território nacional, era muito focada na nudez total dos modelos.
Em entrevista à Revista Imprensa3, André Fischer também declarou que a
JUNIOR “é uma revista basicamente de homem bonito” e destacou que, apesar
do nome, a revista não é para adolescentes. Seu público alvo, segundo Fischer,
é o homossexual com idade “entre 20 e 50 anos”. Ainda de acordo com o
diretor da JUNIOR, o nome realmente atraiu o público mais jovem, mas seu
conteúdo deixa claro que não é somente este o alvo: “Como a JUNIOR não tem
nus, não há problemas que até os adolescentes a comprem, mas dentro dela há
muitos perfis de homossexuais ‘maiores’, muita informação. O que queremos é
dar visibilidade para esse público”.
Nessa mesma entrevista, André Fischer conta que se inspirou em revistas
gays consagradas no mercado internacional – como a francesa Têtu4 e a espa-
nhola Zero5 – para conceituar a nova publicação no mercado editorial brasileiro.
JUNIOR foi lançada com a intenção de ser distribuída em todos os esta-
dos brasileiros. A primeira edição teve tiragem de 30 mil exemplares e já neste
primeiro número esgotou em alguns lugares. O sucesso foi tão grande que,
a partir da segunda edição, a revista deixou de ser trimestral para se tornar
bimestral. Porém, devido à crise que afeta o mercado editorial de publicações
impressas e em virtude da ascensão das mídias digitais, a JUNIOR nos últimos
anos teve a sua periodicidade comprometida, com edições novas sendo publi-
cadas a cada três meses, por exemplo. Em junho de 2015 a JUNIOR publicou a
sua última edição, totalizando 66 edições que circularam no decorrer dos seus
quase oito anos de existência.

2 A revista G Magazine foi publicada entre os anos de 1997 a 2013.


3 Disponível em: <http://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/12684/e+normal+que+se-
jamos+comparados+com+a+icapricho+i+diz+editor+da+revista+ijunior+i>, acesso em 23 de maio
de 2015.
4 Revista francesa dedicada ao público homossexual. Circulou entre os anos de 1995 e 2015. A sua
última edição foi publicada em julho de 2015.
5 Revista espanhola dedicada ao público homossexual. Começou a circular no ano de 1998 e ainda
é publicada mensalmente.

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Inquietações com a mídia e com os dispositivos pedagógicos

Pensar nos dispositivos midiáticos enquanto processos educativos tem


se anunciado enquanto potente e desafiador caminho a ser trilhado e investi-
gado na minha pesquisa. O papel da mídia na sociedade contemporânea é um
assunto largamente explorado cotidianamente, voltando-se tanto à influência
da mídia sobre a política quanto sua relação com a cultura, religião, economia
e o comportamento dos sujeitos. Podemos dizer que as instituições midiáticas
formam uma espécie de sistema carregado de valores e padrões de conduta
que são transmitidos constantemente aos sujeitos de maneira que estes, embora
sejam atingidos direta ou indiretamente, nem sempre têm consciência dessa
influência na compreensão de si mesmos, na maneira como vivem e se rela-
cionam com outros sujeitos. Esses valores e padrões de conduta surgem de
encontros produzidos a partir da comunicação. Comunicação que se aproxima
do ato de dialogar:
Um primeiro significado para a comunicação é a ideia do diálogo, no
qual duas pessoas – emissor e receptor – trocam ideias, informações ou men-
sagens. Contudo, sabemos que o fenômeno comunicativo não se restringe a
duas pessoas, como também sabemos que os animais se comunicam, que há
comunicação entre máquinas, desde as mais simples, como um telefone, até os
sofisticados sistemas digitais. E, ainda, que há variados tipos de comunicação:
gestual, visual, simbólica, falada, escrita, de massa, digital, etc. (MELO e TOSTA,
2008, p. 12).
Roger Silverstone (2002) em seu texto Por que estudar a mídia? Nos
mostra como é difícil pensar nas aproximações entre educação e mídia sem
problematizar as relações de poder, a hegemonia dos grandes conglomerados
de comunicação e, ao mesmo tempo, pensar nas lutas de grupos e sujeitos para
terem acesso e participação no que tange à informação e ao direito de fala e de
expressão.
É importante destacar que as diferentes mídias (rádio, televisão, jornais,
revistas, internet, etc.) estão onipresentes em nosso cotidiano, ou seja, “tor-
nam-se cada vez mais essenciais em nossas experiências contemporâneas, e
assumem características de produção, veiculação, consumo e usos específicos
em cada lugar do mundo” (FISCHER, 2007, p. 293). Isso me faz pensar em
um conceito mais amplo de educação, um conceito que não dialogue apenas
com as práticas escolares institucionalizadas, mas que dialogue também com

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os diferentes artefatos culturais e processos educativos. Esse meu entendimento


ganha força quando penso que a mídia também produz aprendizados para os
sujeitos sobre os seus modos de existência, modos de comportar-se e sobre a
constituição de si mesmos. Neste sentido, os meios de comunicação escapam
do simples rótulo de fonte de lazer e informação, proporcionando uma ampla
divulgação de valores, crenças, representações e concepções que retratam o
que devemos ser, o que devemos fazer conosco e como devemos enxergar e
classificar os sujeitos e as diferenças que nos cercam.
Estudar mídia não é apenas investigar nossas relações com as narrativas
por ela veiculadas, é também investigar os modos de a cultura midiática construir
passados públicos, “assim como um passado para o público” (SILVERSTONE,
2002, p. 237). Vidas são vividas e vidas são narradas e produzidas no espaço
midiático. Ficção e realidade vão se mesclando, constituindo e confundindo-se
nos diferentes produtos da mídia, estabelecendo uma íntima relação.
A mídia opera na constituição de sujeitos e subjetividades na sociedade
contemporânea, na medida em que produz imagens, significações, enfim, sabe-
res que de alguma forma se dirigem à “educação” das pessoas, ensinando-lhes
modos de ser e estar na cultura em que vivem. Neste sentido, penso ser impor-
tante problematizar e trazer o conceito de dispositivo apontado por Foucault
(2012) para pensarmos nas mídias e em seus processos educativos.
Para a posterior compreensão e discussão sobre o dispositivo pedagógico
e o dispositivo pedagógico da mídia atentarei primeiramente à definição que
Foucault faz do termo dispositivo em sua Microfísica do Poder. Ele define o
dispositivo como um agrupamento heterogêneo que
engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, deci-
sões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. [...] O dito
e o não dito são os elementos do dispositivo (FOUCAULT, 2012, p.
364).

Ou seja, o dispositivo é a rede de relações que pode ser estabelecida


entre esses elementos, “tem uma função estratégica e está sempre inscrito num
jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que
derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no” (LÓPEZ, 2011, p. 47).
O conceito de dispositivo trazido por Foucault em sua obra pode ser com-
preendido como um emaranhado de relações que atravessam o indivíduo e a

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sociedade. Ele comporta linhas de visibilidade, linhas de enunciação, relações


de força, processos de (des)subjetivação e de ruptura que se entrelaçam, se
misturam, se modificam e também modificam o dispositivo. Este não é estável,
é provisório, pois, está em movimento, em transformação.
As relações de poder se manifestam quando estratégias são acopladas ao
dispositivo. Essa junção propicia a fabricação de saberes enquanto verdades
por meio dos discursos. Podemos observar que “o dispositivo (...) está sempre
inscrito em um jogo de poder” (FOUCAULT, 2012, p. 367), estando ligado a
configurações de saber que dele nascem e o condicionam.
Dialogando com o conceito de dispositivo proposto por Foucault, pode-
mos pensar também na existência de um dispositivo pedagógico. Este dispositivo
atuaria nos processos de (des)subjetivação dos sujeitos. Nas palavras de Jorge
Larrosa (1994, p. 57) “um dispositivo pedagógico será, então, qualquer lugar no
qual se constitui ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar no qual se
aprendem ou modificam as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo”.
Nesse sentido, as pedagogias constituem as subjetividades e produzem os sujei-
tos por meio de experiências que os tornam outros de si mesmos.
Analisando os produtos midiáticos, podemos afirmar que eles também
carregam e transmitem saberes, atuando também como dispositivos. Rosa
Fischer se debruça sobre essa problemática em suas pesquisas chamando a
atenção para aquilo que ela denominou de dispositivo pedagógico da mídia.
Para ela, trabalhar com o dispositivo pedagógico da mídia significa tratar de
um processo concreto de comunicação (de produção, veiculação e recepção
de produtos midiáticos), em que a análise contempla não só questões de lin-
guagem, de estratégias de construção de produtos culturais, apoiada em teorias
mais diretamente dirigidas à compreensão dos processos de comunicação e
informação, mas, sobretudo questões que se relacionam ao poder, aos discur-
sos e a formas de subjetivação dos sujeitos (FISCHER, 2002). No caso da minha
investigação podemos problematizar algumas questões presentes ao se analisar
a revista JUNIOR: Que lugar(es) os discursos da revista JUNIOR dá/dão aos
sujeitos? Quais os modos de existência desses discursos e como eles influen-
ciam nas existências dos leitores? De que modos e segundo que condições o
sujeito homossexual aparece na ordem desses discursos? Essas questões vão me
movimentando e me instigam nessa aventura operar e mergulhar no conceito
de dispositivo pedagógico da mídia.

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Se nos atentarmos bem para o modo como são elaborados inúmeros pro-
dutos midiáticos, dentre eles as revistas, há inúmeras técnicas através das quais
se propõe a todos nós que façamos minuciosas operações sobre nosso corpo,
sobre nossos modos de ser, sobre as atitudes a assumir. Estamos falando aqui
do governo de si pelo governo dos outros – tema exaustivamente tratado por
Foucault (Fischer, 2002).
Neste momento, alguns rastros vão se formando e me encaminhando a
debruçar-me de forma mais efetiva sobre alguns conceitos que dialogam com
os artefatos culturais, com as mídias e, especificamente, com o meu objeto de
pesquisa, a revista JUNIOR.

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Referências

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na (e pela) TV. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 151-162, jan./jun. 2002.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27882/29654> Acesso em:
10/06/2016.

FISCHER. Rosa Maria Bueno. Mídia, máquinas de imagens e práticas pedagógicas.


Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 35, p. 290-299, maio/agosto de
2007. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n35/a09v1235.pdf> Acesso
em: 10/06/2016.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica


de Roberto Machado. 25ª ed. São Paulo: Graal, 2012.

JUNIOR. São Paulo: Editora MixBrasil, 2007-2015.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O


sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 35-86.

LÓPEZ, Maximiliano Valerio. O conceito de experiência em Michel Foucault. Revista


Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 42-55, jul./dez. 2011. Disponível
em: <http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2367> Acesso em:
11/07/2013.

MELO, José Marques de; TOSTA, Sandra Pereira. Mídia & Educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação e


currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER,
Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Organizadoras). Metodologias de pes-
quisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte, Mazza Edições, 2012, p. 23-45.

SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? Tradução: Milton Camargo Mote. São
Paulo: Loyola, 2002.

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GÊNERO E SEXUALIDADE: A CONSTRUÇÃO DE


SUBJETIVIDADES GAYS NA REVISTA G MAGAZINE

Gerferson Damasceno Costa


Mestrando em História
Universidade Estadual de Montes Claros
gerfersonafim@hotmail.com

GT 23 – Imprensa Gay em questão

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar as práticas discursivas (re) produzidas
pela revista G Magazine acerca de gênero, sexualidade, desejo, sexo e corpo.
Procura-se detectar a interferência dos sentidos e significados referentes aos afe-
tos, desejos e comportamentos, bem como à pornografia e ao prazer sexual na
construção das subjetividades dos gays brasileiros após a década de 1990, perí-
odo de profundas transformações nas relações sociais, políticas e culturais da
comunidade LGBT. As fontes para a pesquisa constituem-se os conteúdos edi-
toriais da G Magazine (1997-2008). Os referenciais teórico-metodológicos são
fundamentados nos Estudos Queer e na Nova História Cultural do Imaginário,
das Representações Sociais e da Análise do Discurso.
Palavras-chave: subjetividades; gênero; sexualidade; desejo; corpo.

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Introdução

Neste trabalho procuro mostrar alguns apontamentos sobre a revista G


Magazine, no que concerne à emergência de um novo discurso referente aos
afetos, desejos e comportamentos, bem como à pornografia1 e ao prazer, para
os gays brasileiros, e suas interferências no processo de subjetivação desses ato-
res. A partir de algumas reflexões dos Estudos Queer e das potencialidades dos
suportes teórico-metodológicos da Nova História Cultural2 do Imaginário, das
Representações Sociais e da Análise do Discurso.
A revista G Magazine chegou às bancas do Brasil em abril de 1997, pela
Fractal Edições, lançada de início com o titulo de Bananalouca,3 tornou-se um
grande fenômeno editorial. Direcionada ao “público gay”, o periódico se des-
taca entre as demais publicações que tem como foco o nu masculino, por exibir
ensaios fotográficos de nudez frontal com personalidades famosas e com uma
excelente produção gráfica. Suas publicações contêm ainda temas ligados a
lazer, cultura, saúde, beleza, moda, dentre outros conteúdos informativos. Em
junho de 2013, após passar por reestruturações editoriais, tem sua última publi-
cação impressa.4

1 Seguindo a perspectiva de Beatriz Preciado (2010), a noção de pornografia nesta pesquisa não pre-
tende emitir um juízo moral ou estético, mas identificar novas práticas de consumo e da imagem,
suscitadas por novas técnicas de produção e distribuição, e codificar um conjunto de relações entre
imagens, prazer, publicidade, privacidade e produção de subjetividade.
2 Em resumo, por Nova História Cultural, entende-se aqui uma virada no campo historiográfico, em
que, a partir do diálogo interdisciplinar com as ciências sociais, a linguística, a psicologia, a filoso-
fia, a noção do documento como “espelho do real” é problematizada, assim, os documentos não
são considerados como reflexos transparentes do passado, mas ações simbólicas com significados
diferentes conforme a intenção de quem os elaborou. Caracteriza-se pelo rompimento da ideia de
cultura popular e cultura erudita, bem como pela reflexão das relações sociais e econômicas como
campos de produções culturais.
3 Foram distribuídas apenas quatro edições com o título de Bananalouca, a quinta edição teve como
título Bananalouca apresenta G Magazine, e em outubro de 1997 a revista recomeça com o número
um, já com o nome definitivo: G Magazine. (SILVA, 2010, p. 37).
4 Em 2008, devido a problemas financeiros, a revista é vendida para o grupo norte-americano Ultra
Friends International, que modificou o caráter das publicações, diminuindo o espaço para as maté-
rias e colunas de comportamento, e aumentando o número de ensaios.

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A década de 1990 constitui-se um contexto peculiar de transformações na


configuração social, política e identitária das sexualidades tidas como “abjetas”5
no Brasil. Podemos evidenciar o surgimento de aspectos relacionados à cultura
e ao mercado que influenciam nas relações sociais dos sujeitos “desviantes” no
país, e várias mudanças no processo de organização e atuação do que hoje é
conhecido como “Movimento LGBTT” (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais). Elementos históricos que se caracterizam pela repercussão, varie-
dade e visibilidade de discursos concernentes às sexualidades dissidentes no
cenário brasileiro, e que nos últimos anos vêm aumentando cada vez mais.
Dessa forma, destaca-se a importância de investigar nesses discursos o estabe-
lecimento de comportamentos e identidades a partir de padrões normalizadores
fundamentados em concepções estáveis, coerentes e regulares, e a maneira
como eles agem na produção de verdades e de subjetividades.

Teoria Queer: gênero, sexualidade e subjetividade

A Teoria Queer surgiu nos Estados Unidos em fins da década de 1980,


segundo Miskolci (2009, p. 152), a partir de problematizações das categorias
de “sujeito, identidade, agência e identificação” geradas pelo encontro entre o
pós-estruturalismo francês6 e os Estudos Culturais norte-americanos.7 A expres-
são queer em inglês, antes utilizada de maneira depreciativa e agressiva para se
referir aos gays, é adotada e ressignificada por um conjunto de teóricos que tem
como objetivo a reflexão crítica acerca dos processos sociais de normatização
e da construção do binômio heterossexualidade/homossexualidade.

5 Por sexualidades “abjetas”, seguindo as reflexões de Butler (2001), entende-se aqui o conjunto de
práticas sexuais que não se enquadram na norma naturalizada socialmente no binarismo heteros-
sexual, no qual os indivíduos com sexualidades fora do padrão de oposição entre sexo/desejo são
categorizados como “anormais” e inferiores.
6 Em síntese, o pós-estruturalismo é caracterizado pelos estudos de Michel Foucault, Jacques Lacan,
Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattarri, dentre outros. Miskolci (2009) destaca que as obras,
A história da sexualidade I: A Vontade de Saber, de Foucault, e Gramatologia, de Jacques Derrida,
publicadas em inglês em meados dos anos de 1970, são consideradas marcos para as formulações
queer.
7 Os Estudos culturais se originaram do marxismo, porém com uma critica às correntes ortodoxas que
não respondiam “às demandas de grupos sociais de sua época, inicialmente operários, aos quais se
somaram os imigrantes, negros, mulheres e homossexuais.” (MISKOLCI, 2009, p. 159).

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A concepção de sujeito elaborada pelos pós-estruturalistas foi preponde-


rante para o desenvolvimento dos estudos queer, caracterizada pela dissolução
da noção de sujeito como agente soberano e estável. O sujeito passa a ser
encarado como provisório e mutável, que está em processo permanente de
construção, por meio de práticas e discursos sociais que se estabelecem nas
relações entre saber e poder em articulação com as diversas interações sociais
(e não apenas as de sexo e gênero), no qual a linguagem é central.
Na teoria queer a sexualidade é compreendida como um dispositivo his-
tórico do poder, de acordo com a proposta foucaultiana, o que permite pensar
a atuação das “tecnologias de poder” que postula uma “verdade sobre o sexo”
e produz corpos sexuados. O funcionamento desse dispositivo se faz de acordo
“com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder”; ele constrói “uma
extensão permanente dos domínios e das formas de controle”; nele, o que
importa são “as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das
impressões”; sua relação com a economia se faz por meio “de articulações
numerosas e sutis, sendo o corpo a principal – corpo que produz e consome”.
(FOUCAULT, 2014, p. 116). Este dispositivo sublinha o corpo como uma cate-
goria discursiva, histórica e socialmente construída, que deve estabelecer um
alinhamento com as normas regulatórias sobre o sexo.
Para Butler (2001, p. 155), tais normas “trabalham de uma forma perfor-
mativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para
materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da
consolidação do imperativo heterossexual.” Segundo Louro (2008), vale dizer
que a matriz heterossexual, em seu processo de produção e reiteração, fun-
damenta-se na continuidade e coerência da lógica binária para instituir sobre
os sujeitos os limites de suas práticas, no qual todos/as fora dessa ordem são
impensáveis e ininteligíveis. Assim, determinam-se as sexualidades “anormais”
e “desviantes”, as práticas e desejos sexuais que não se enquadram na organiza-
ção “heteronormativa” da sociedade.
A heteronormatividade é entendida aqui, seguindo Richard Miskolci
(2009), como um conjunto de disposições sociais que visa regular e controlar os
sujeitos, e não apenas aqueles que se encontram legitimados e normatizados na
sua lógica fundamental (a continuidade sexo/gênero/sexualidade), com a finali-
dade de instituir a heterossexualidade como padrão de organização coerente,
superior e ‘natural’. Ou seja, também no interior das ditas “minorias sexuais” as
normas agem estabelecendo modelos pautados em outros marcadores sociais,

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como raça, etnia, nacionalidade, religião ou classe, que não se encontram des-
vinculados da sexualidade.

Discurso, imaginário e representações sociais na revista G


Magazine

A análise das fontes é orientada por alguns aparatos metodológicos da


Análise do Discurso (AD), que destina-se à compreensão da produção de sen-
tidos e significados em um determinado texto, neste sentido, seguindo Orlandi
(2002), a análise dos discursos selecionados na revista G Magazine se sustenta
a partir do entendimento das condições de produção, que demonstram seu
funcionamento, sua relação com os sujeitos, com a situação e contexto sócio-
-histórico (ideológico) em que foram produzidos.
Ainda, utilizo como opções teórico-metodológicas para a pesquisa a con-
cepção de imaginário e representações sociais que orienta a análise das revistas
não como registros fiéis da realidade, mas como práticas sociais que atuam
de acordo com determinadas condições de produção. O imaginário auxilia na
compreensão dos sentidos e significados veiculados pela revista, dos valores
e ideais simbólicos construídos para os gays no Brasil. A análise histórica, a
partir da perspectiva do imaginário, permite verificar tanto a preservação das
significações correntes, quanto os deslocamentos, as mudanças que possibilita
a criação de novos sentidos e implantação de novas práticas. Swain (1994, p.
52) indica que o imaginário atua em duas vertentes, “o da paráfrase, a repetição
do mesmo sob outro invólucro; e o da polissemia, na criação de novos senti-
dos, de um deslocamento de perspectivas que permite a implantação de novas
práticas.”
As representações sociais possibilitam na percepção de como o imaginá-
rio elaborado através das práticas discursivas da revista se verificam como um
campo constitutivo do real para os gays. Por Representações Sociais entende-
se, seguindo a acepção de Denise Jodelet (2001, p. 22), como “uma forma de
conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático,
e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social.” Acredito que a noção de representações sociais nos leva a refletir, a
partir das fontes, os mecanismos discursivos que buscam significar a realidade
em seus aspectos individual e social.

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A revista G Magazine apresenta em sua estrutura editorial um conjunto


diversificado de discursos que, conforme a delimitação do período da pesquisa,
permite observar as mudanças em suas formulações ao longo do tempo. Neste
texto apresento algumas considerações referentes a esse conjunto discursivo.8 1)
Nos ensaios analisados, percebe-se que as imagens, predominantemente com
homens másculos, brancos, jovens, musculosos, viris com pênis de tamanhos
e espessuras avantajadas (alguns somente na descrição), apontam para a essen-
cialização e padronização do desejo e do prazer dos gays e de suas práticas
sexuais; uma valorização do pênis, na maioria das vezes descrito como “dote”,
associando o sucesso do prazer aos seus, no mínimo, 19 cm, não encontrei nos
ensaios descrições que fossem inferiores a essa medida, ainda que a imagem,
nitidamente, “diz outra coisa”. 2) A revista (re) produz valores e padrões sobre
os corpos e órgãos do desejo, reafirmando a virilidade como mecanismo de
classificação e hierarquização de identidades, em muitos ensaios os modelos
aparecem segurando em armas ou outros objetos de instrumentalização do
poder que, ligados aos pênis eretos, acabam por estabelecer uma relação entre
os objetos de violação e os do prazer. 3) Vários discursos produzem significados
relacionados à saúde, beleza, consumo e comportamentos que buscam forjar
valores e padrões ideais a serem seguidos pelo público, no qual categorias de
raça, etnia e classe se interligam a gênero e sexualidade nos sistemas de nor-
matização, conforme foi possível observar na vinculação de propagandas de
roupas; ambientes voltados para sua sociabilidade – como restaurantes, saunas,
bares, boates etc.; produtos higiene pessoal, de necessidades domésticas, entre
outros. 4) Por fim, evidencia-se as subversões e os desvios aos regimes norma-
tivos presentes na revista e quais os lugares a eles reservados, ora nos silêncios,
ora em discursos de pouco destaque em alguma de suas páginas.
Com essas breves considerações tenho como propósito destacar as
possibilidades da revista G Magazine como um veículo de (re) produção de
subjetividades dos gays no Brasil a partir do final dos anos de 1990.

8 As considerações analíticas que apresentamos neste texto referem-se às edições da G Magazine: ed.
22, julho/ 1999; ed. 72, setembro/2003; ed. 77, fevereiro/2004.

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Considerações finais

Perceber o processo histórico de construção dos arranjos que criam sis-


temas de classificações pautados em regimes de normatização, bem como os
mecanismos utilizados para reiterar sua lógica, pode contribuir para desmon-
tá-lo. Por isso a importância em investigar os jogos de poder que perpassam
a formação do gay enquanto sujeito, os padrões que procuram criar catego-
rias coerentes e estáveis, como também verificar as subversões aos modelos
estabelecidos, as práticas e os corpos que escapam aos “regimes de verdade”
produzidos. Entende-se que a partir dessa perspectiva é possível desestabilizar
o sistema que produz hierarquias identitárias e “marginaliza” aqueles que não se
enquadram nas normas, o que pode significar desnaturalizá-lo e desconstruí-lo.

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Referências

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO,
Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001, p. 151-172.

FOCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Paz e


terra, 2014.

JODELET, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: _____ (Org.)


As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 17-44.

LOURO, Guacira Lopes. O “estranhamento” queer. In: STEVENS, Cristina M. T.; SWAIN,
Tania N. (orgs.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Florianópolis:
Mulheres, 2008.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da nor-


malização. Sociologias, ano 11, nº 21, Porto Alegre, jan./jun. 2009, p. 150-182

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas:


Pontes, 1999.

PRECIADO, Beatriz. Pornotopía: Arquitectura y sexualidad em “Playboy” durante la


guerra fria. Barcelona: Anagrama, 2010.

SILVA, Fábio Ronaldo da. Ser ou não ser: a representação de virilidade nas capas da G
Magazine (1997-2007). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Campina Grande/Paraíba, 2010.

SWAIN, Tânia Navarro. “Você disse imaginário?”. In: ________. (Org.). História no
Plural. Brasília: Edunb, 1994.

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CUERPOS EN CONSTRUCCIÓN: REPRESENTACIONES DE


HOMBRES GAY EN LA LITERATURA SALVADOREÑA

Amaral Palevi Gómez Arévalo


Doctor en Estudios Internacionales en Paz,
Conflicto y Desarrollo Rede O Istmo
amaral.palevi@gmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumen

El conservadurismo ha tratado de ocultar el cuerpo, el género y la sexuali-


dad de las narrativas literarias. Esta comunicación tiene por objetivo conocer
las representaciones del cuerpo masculino gay salvadoreño al interior de las
novelas Ángeles Caídos (2005), Heterocity (2011) y Entre él y yo (2013). Las
tres producciones literarias en su interior presentan una descripción de los pro-
cesos de discriminación que hombres gays padecen al interior de la sociedad
salvadoreña.
Palabras clave: El Salvador, Cuerpo, Hombre, Gay, Discriminaciones.

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A manera de introducción

Desde el año 2014 emprendí un proyecto de investigación sobre el


movimiento de diversidad sexual en El Salvador. Tal investigación me orientó
a investigar en diferentes fuentes documentales, incluyendo literatura. Por
ejemplo, los 12 ensayos Rafael Lara-Martínez (2012). Estos analizan diversas
producciones literarias, las cuales están atravesadas por marcadores sociales
como orientación sexual, género, sexualidad, etnia y clase social. Lara-Martínez
da a comprender que al interior de la cultura salvadoreña existe un dispositivo
que silencia, invisibiliza y niega lo indígena, el cuerpo y la sexualidad en la lite-
ratura salvadoreña: “Sea desdén o tabú el silencio da cuenta de esas omisiones
en los cuales nada se cultiva” (LARA-MARTÍNEZ, 2012, p. 241).
No obstante, pese a los indicios negativos anunciados por Lara-Martínez,
encontré la existencia de varias producciones literarias que tenían como eje
articulador principal temáticas de diversidad sexual. En la mitad de la década
pasada surgen dos poemarios completos: Injurias (Lindo, 2004) y La fiera de un
ángel (CHACÓN, 2005). Injurias es un acto de denuncia que trata de desenmas-
carar a la sociedad de doble moral y la exigencia de respeto a las orientaciones
sexuales diferentes a la norma heteronormativa. Por otra parte, La fiera de un
ángel no contiene una voz explicita de denuncia como el anterior, sino más
bien la denuncia se realiza de forma sutil pero contundente por medio del
homoerotismo de los ángeles creados por el autor.
En el ámbito de narrativas en 2005 surge Ángeles Caídos (SORIANO,
2005) la cual se puede catalogar como la primera novela que aborda una temá-
tica gay. Después surge el thriller de ficción Heterocity (ORELLANA, 2011) y
más recientemente el romance Entre él y yo (BARRERA, 2013). Constituyendo
estas tres obras la base de análisis para esta comunicación.

I. Ángeles Caídos: la precarización del cuerpo

Ángeles Caídos es una novela escrita por Carlos Alberto Soriano (1970-
2011) y fue la primera narrativa en formato de novela sobre hombres gays que
se dio a conocer al interior de El Salvador. La narración se contextualiza en la
ciudad de Guanacotlán (San Salvador). El contexto temporal se puede situar en
la década de 1990 y la trama se desenvuelve en el transcurso de 5 años aproxi-
madamente. El guion gira entorno a tres personajes principales.

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Nicolás Peraza González, joven de 19 años, mestizo pero con rasgos y


características próximas de lo indígena: “[...] de estatura más bien baja, com-
plexión débil, rasgos comunes, piel trigueña y ojos rasgados” (SORIANO, 2005,
p. 8), lo cual era fácilmente designado como feo o en el lenguaje coloquial
salvadoreño como “tro-feo”. Esta apariencia física, considero que repercutía en
tener menos posibilidad de contactos sexuales en el mercado erótico y por tal
situación resultaba en presentar “menos interés sexual” (SORIANO, 2005, p.
49) a diferencia de los otros dos personajes principales. Nicolás es la muestra
perfecta del cuerpo sexual masculino gay que desarrollo paulatinamente una
precariedad a consecuencia del “contagio irresponsable” (SORIANO, 2005, p.
70) del VIH-Sida en la década de 1990. Esta situación da como resultado el
estar sometido a un control médico persecutorio y el despido de su trabajo
por su condición VIH+. Por lo anterior, no causa extrañeza que también él se
muestra como un cuerpo enfermizo y debilitado por infecciones oportunistas.
Al final él decide terminar con su vida por medio de la “colaboración” de dos
travestis que lo apuñalan (SORIANO, 2005, p. 303).
Por su parte Anselmo Gavidia, hombre de 24 años de edad, con un “[…]
bien formado cuerpo y su vestir impecable. Destacaba en todas partes su piel
morena, su figura varonil, alta y estilizada y sus ojos negros, profundos y expre-
sivos […]” (SORIANO, 2005, p. 18). Estamos ante un tipo de mestizo el cual
asimila en una estructura fenotípica caucásica sus rasgos indígenas y posible-
mente negros. Esa condición ideal del cuerpo mestizo masculino, al interior
del mercado erótico le permitía tener mayores encuentros sexuales con otros
hombres, los que encontraba en diversos lugares como cines porno, sanitarios
masculinos y la cacería de jóvenes por los pasillos de los centros comerciales
(SORIANO, 2005, p. 57). Anselmo, a diferencia de Nicolás, vive el diagnóstico
positivo de VIH en silencio (SORIANO, 2005, p. 233).
El tercer personaje Renato (Pamela) Alas es posiblemente el más complejo
de los tres. A sus 22 años era la “imagen típica del niño mimado y afeminado”
(SORIANO, 2005, p. 19), remitiéndonos a que posiblemente era de una familia
de clase media-alta. Su cuerpo representa el prototipo de lo caucásico en el
contexto salvadoreño al poseer una figura alta y espigada que era acompasada
por una blanca y delicada piel lampiña (SORIANO, 2005, p. 20). Al igual que
Anselmo se le asigna una promiscuidad sexual acentuada. El cuerpo de Renato
es precarizado por su condición de homosexual, primero al tener que abando-
nar su familia para vivir su sexualidad, travestirse como una forma de obtener

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ingresos económicos, ejercer trabajo sexual de calle como travestí, ser herido
por otra travestí, transformarse en un cuerpo a la defensiva para salvaguardar la
vida, padecer ataques homicidas por parte de las Maras (pandillas), hasta reve-
lar que también era un cuerpo que había padecido violencia sexual al interior
de su hogar por parte de su padre. De los tres personajes es el único que per-
manece vivo hasta el final de la novela.

II. Heterocity: la politización de la sexualidad

Heterocity (ORELLANA, 2011) es una novela de temática LGBT en la


cual su trama principal se fundamenta en el proceso de reforma constitucional
para reconocer el matrimonio entre personas del mismo sexo. Desde un inicio
se plantea como una obra de ficción, en más de una oportunidad los hechos
narrados parecen ser históricos y reales, contextualizados en los eventos ocurri-
dos entre abril y junio del año 2009 en San Salvador, por medio de la tentativa
de reforma constitucional para prohibir el matrimonio y la adopción por parte
de personas del mismo sexo. El describir los cuerpos diversos y sus afrentas a
la “Heterocultura patriarcal” como la nombra Orellana (2011, p. 145) sería una
tarea difícil por la variedad de personajes que se entremezclan. Por tal situación
me centraré en describir genéricamente los cuerpos en los que encarnan los
discursos hegemónicos de la sexualidad, contrahegemónicos y sus aliados.
El discurso hegemónico presenta dos aristas de importancia: discurso reli-
gioso y discurso conservador. El discurso religioso se fundamenta en la triada
carne-pecado-perversión para referirse a lo homosexual y todas sus mani-
festación, las cuales siempre están en contra del orden divino de la creación
(ORELLANAz, 2011, p. 315-319). Por otra parte se encuentra el discurso con-
servador, travestido de laico, ya que en esencia es la repetición del discurso
religioso, sirve para censurar cualquier manifestación de la sexualidad que no
se acople al modelo binario heterosexual. En este caso debo de resaltar el per-
sonaje de Lucrecia Casariego –mujer, heterosexual, élite económica, blanca y
católica- y todas sus performances para defender y mantener el orden binario
de género establecido en la heterocultura patriarcal, quien se vale de cualquier
subterfugio para mantener aquel orden moral intacto en la sociedad salvado-
reña (ORELLANA, 2011, p. 83, 203-204).
El discurso contrahegemónico es articulado por una serie de personaje
de la más variada clase: hombres gay, mujeres trans, activistas de diversidad

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sexual, lesbianas, entre los más sobresalientes, los que a excepción del acti-
vista Mendel Chicas, quedan retenidos-atrapados-secuestrados al interior de
la discoteca Kaliyuga por parte de cuerpos de seguridad y personal médico
(ORELLANA, 2011, p. 66, 107). Considero que esta es la mejor alegoría para des-
cribir el contexto salvadoreño y su relación con la sexualidad diversa: cuerpos
enclaustrados-vigilados por las normas y moralidades conservadoras (cuerpos
de seguridad) y por dispositivos de medicalización (cuerpos de salud), quienes
determinan hasta cuándo van a estar detenidos-presos-marginados adentro de
la discoteca silencio-armario-gueto.
Por otra parte estarían los discursos aliados, permitiéndome nombrarlos
de esa forma ya que no en más de una oportunidad pueden reproducir parte
de las prácticas y discursos hegemónicos (ORELLANA, 2011, p. 33, 404). Estos
estarían básicamente representados por el diputado Denis Farias –hombre,
heterosexual, blanco, clase media, ateo- y su quijotesca acción de promover
una reforma constitucional para que personas del mismo sexo puedan ejer-
cer el derecho constitucional de Igualdad para contraer matrimonio sí así lo
deseasen. Farías, retomando el guion judío-católico salvacionista, se transforma
en un nuevo cuerpo-cordero que es inmolado injustamente por un sociedad
de doble moral al tratar de hacer prevalecer el derecho a la Igualdad y la No
Discriminación (ORELLANA, 2011, p. 431), para luego resucitar tal cual neo-
cristo político redimido por medio del activismo al interior de una ONG de
diversidad sexual que planifica y realiza el rescate-salvación de los cuerpos-in-
fectados-diversos prisioneros en el silencio-armario -gueto de la Discoteca
Kaliyuga (ORELLANA, 2011, p. 443-446).

III. Entre él y yo: la encarnación de la homofobia

Entre él y yo (BARRERA, 2013), aunque sea de una fecha más reciente de


edición, este romance inicia en el marco de la ofensiva militar de la guerrilla
en noviembre de 1989. Otra particularidad es que la trama se desenvuelve en
dos ciudades diferentes localizadas en países diferentes: Ciudad de Guatemala,
Guatemala y muy probablemente la ciudad Santa Ana al occidente de El
Salvador. La historia gira entorno de Lucas -adolescente de 17 años, de piel
blanca y cabello castaño- y sus diversas vivencias-aprendizajes de su sexuali-
dad y las discriminaciones que padece al ser descubierta la relación amorosa
que entabla con Jaime guatemalteco de 23 años.

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El texto revela un breve recorrido de como Lucas-cuerpo descubre su


sexualidad. En la etapa de la adolescencia a los doce años se enamora de un
compañero de clases, lo cual no trasciende a más que una ensoñación de esa
edad (BARRERA, 2013, p. 75). Posteriormente a los 17 años, siguiendo el patrón
heteronormativo, establece una relación de noviazgo con una adolescente de
13 años, con la cual experimenta su primer beso (BARRERA, 2013, p. 13). No
obstante, el despertar completo de su sexualidad se da en un viaje organizado
a Guatemala por sus padres para evitar ser un reclutado forzosamente por parte
del ejército ante una eminente ofensiva militar de la guerrilla. En este viaje tiene
contacto con Jaime, con quien tiene su primera relación sexual, desencade-
nando una serie de reacciones que muestran la existencia de prejuicios y de
homofobia.
El primero que encarna los prejuicios es el propio Lucas, ya que después
del primer encuentro sexual con Jaime, las imágenes recriminadoras de su fami-
lia, amigos, profesores, el pastor de la iglesia, su abuela se hicieron presentes
para mortificarlo y amonestarlo por el pecado practicado (BARRERA, 2013, p.
23). Melisa, su amiga, al saber de la existencia de Jaime como sujeto de deseo
y afecto de su amigo, encarna el prejuicio de la anormalidad de esa relación,
lo cual es reforzado por el miedo adquirir una enfermedad, en este caso el VIH
y el rechazo que iba a desembocar entre sus amigos, sus maestros y su familia
(BARRERA, 2013, p. 112).
Respecto a su familia en un primer momento existe un desconcierto, ya
que Rebeca, su madre, piensa que tiene una relación con una mujer mayor en
Guatemala. Braulio, su padre, se siente confortable con esa supuesta relación,
ya que sería la señal de que su hijo no era homosexual. Rebeca hurga entre sus
pertenencias para encontrar unas cartas y develar el nombre del amante guate-
malteco (BARRERA, 2013, p. 89, 91, 142).
La Escuela, en este caso asume un papel de institución normalizadora
encargada de construir patrones esencialistas de género, donde cualquier
ruptura de la heteronormatividad es sancionada, llevando al campo de lo des-
valorizado, lo precario y lo despreciado al sujeto que no cumplió estas normas
(BARRERA, 2013, p. 101).
Se presenta el metarelato del pecado de las prácticas homosexuales al
interior de las religiones. Lucas al congregarse en una iglesia evangélica, es aquí
donde recibe su primera “maldición” religiosa (BARRERA, 2013, p. 15, 154). El
realizar este tipo de maldiciones amparándose en las interpretaciones someras

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de la Biblia, no sería perjudicial para las personas de diversidad sexual; el pro-


blema reside que este tipo de discurso de odio crea y alimenta una ideología
del menosprecio al interior de los otros feligreses.

Palabras de cierre

La homosexualidad al interior de las tres producciones se continúa aso-


ciando como una enfermedad, pecado y desvío de carácter/conducta en El
Salvador. Respecto a los cuerpos de hombres gay descritos en las tres narrativas
encontramos las siguientes características: jóvenes, urbanos, metropolitanos,
infectados, saludables, clase media y baja, diversos respecto a rasgos físicos,
entre los cuales uno presenta un tránsito entre lo masculino y lo femenino.
Considero que lo más interesante son aquellos que no se nombran: cuerpos de
adultos mayores (generación), hombres rurales (geografía) y hombres de la élite
económica (clase social). En un primer momento se puede considerar que no
existen placeres diversos entre estos cuerpos, más la verdad es que estos conti-
núan en el silencio de la sexualidad en El Salvador.

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Referencias

BARRERA, Luis. Entre él y yo. Madrid: Éride ediciones, 2013.

CHACÓN, René. La fiera de un ángel. San Salvador: Impresos Litográficos del Centro
América, 2005.

Lara-Martínez, Rafael. Indígena, cuerpo y sexualidad en la literatura salvadoreña.


San Salvador: Editorial UBD, 2012.

LINDO, Ricardo. Injurias. San Salvador: La Luna Casa y Arte, 2004.

Orellana Suárez, Mauricio. Heterocity. San José: Ediciones Lanzallamas, 2011.

SORIANO, C. Ángeles caídos. San Salvador: Editorial Liz, 2005.

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CONTATOS EFÊMEROS SEM AMANHÃ:


VOZES MARGINAIS, CORPOS VENDIDOS E
PERFORMANCES SEXUAIS NEGOCIADAS NA FICÇÃO
CURTA HOMOERÓTICA DE GASPARINO DAMATA

Dorinaldo dos Santos Nascimento


Mestre em Letras (Universidade Federal de Sergipe)
Centro Educacional Edval Calasans (Literatura Brasileira)
dori.s.n@hotmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Neste trabalho, objetivamos apontar os possíveis desdobramentos da imbricação


entre relações homoeróticas e prostituição masculina, por meio da análise dos
contos “Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”, presentes na obra “Os solteirões”,
de Gasparino Damata. Teoricamente, em suma, este estudo traz contribuições
de Perlongher (1987), Bourdieu (2002), Green (2002), Parker (1992), Barcellos
(2006), Lugarinho (2008), Ceccarelli (2008). As discussões empreendidas indi-
cam que as masculinidades representadas pelos personagens-michês derivam
de constructo social, histórico e cultural articulado à heterossexualidade com-
pulsória que, em meio ao jogo de ambivalências, performances sexuais e de
identidade são negociadas no mercado do sexo.
Palavras-chave: prostituição; homoerotismo; masculinidades; performatividade;
identidades.

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Introdução

É intrínseco à prostituição masculina um duplo e pesado estigma: o da


prostituição mesmo como atividade aviltante, vinculada à devassidão, degra-
dação moral, e a associação direta à homossexualidade, relacionada, de modo
discriminatório, à vida sexual de sujeitos pervertidos e promíscuos. Nesse ter-
ritório subversivo à ordem socialmente instituída sobressaem a condição de
marginalidade e reprovação sociocultural àqueles que intercambiam prazer
sexual e dinheiro ou outras benesses, cuja imagem transgressora Perlongher
(1987b, p. 58) traduz como uma “[...]massa de homossexuais pescando no
esgoto das margens a água-viva do gozo”.
Nesse contexto, na literatura Ocidental é recorrente um quadro narra-
tivo em que um jovem é impelido à prostituição por necessidades econômicas,
entregando-se sexualmente a outro homem (BARCELLOS, 2006; CARBONEL,
2012). Por esse viés temático, a compilação de contos “Os solteirões” (1975),
de Gasparino Damata dialoga com outros textos literários estrangeiros e nacio-
nais. A obra problematiza questões no âmbito das masculinidades que mesclam
prazer e terror, vivenciados por homens, que em sua performatividade, são
marginalizados, por ofertarem seus corpos como moeda de troca financeira a
outros homens, conforme analisaremos, neste trabalho, por meio das narrativas
“Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”.
Convém enfatizar que o autor da coletânea, enquanto jornalista, foi
colaborador do jornal “Lampião da Esquina” (1978-1981) - símbolo de esforço
intelectual do ativismo gay na imprensa alternativa brasileira, no momento de
abrandamento da Ditadura Militar. Sublinhamos, também, que a obra em tela
foi gestada no período de emergência de movimentos de militância e discursos
afirmativos gays no Brasil, por isso, alinha-se à denominada “literatura de subje-
tivação gay” por evidenciar, de forma densa e aberta, relações homoeróticas na
contramão da “literatura de representação homossexual”, em suma, calcada na
estereotipia de personagens homossexuais (LUGARINHO, 2008).

1 A prostituição no “cinema de pegação” e no domínio da rua

No conto “Paraíba”, texto que abre a coletânea, em resposta aos arraigados


e severos valores heteronormativos, o narrador-protagonista se coloca, discur-
sivamente, numa posição de autodefesa, após ser flagrado por um conterrâneo

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do interior pernambucano, frequentando e se prostituindo em um “cinema de


pegação” carioca. O personagem responsável por “descobri-lo”, Zé Orlando, o
interlocutor dele na narrativa, também atua como boy de programa no mesmo
local.
Na clandestinidade, agindo com o máximo de discrição, voluntariamente
e sem influências de outrem, o narrador-protagonista complementa sua renda
de fiscal de obras como michê. Sua presença se faz assídua em um “espaço
de pegação” (GREEN, 2002), frequentado, em sua maioria, por homens em
busca de parcerias anônimas, ocasionais e sem compromisso. Tais espaços
representam cenários “sujos” que acolhem relações sexuais e jogos de desejos
homoeróticos marcados pela interdição e transgressão (SILVA; FERNANDES,
2007).
Na posição de acossado do protagonista diante do seu interlocutor, este,
de modo metonímico, pode representar para ele o libelo acusatório patriarcal a
lhe afligir. Notamos no narrador-personagem um sujeito que tenta justificar-se
por meio de um discurso de autodefesa, ancorado de modo subjacente num
jogo de ambivalências, seja no modelo da heterossexualidade compulsória com
todas as incoerências e contradições, seja na indissolubilidade entre os impera-
tivos da necessidade econômica de prostituir-se e a oportunidade de vivência
do desejo homoerótico inconfessável, negado sob o argumento de estar-se tra-
balhando (CECCARELLI, 2008). Tendo em mira, também, o fato desencadeador
de sua migração para o Rio de Janeiro - opção pela invisibilidade e anonimato
massificador da metrópole. Fuga de sua cidade provinciana, a qual rechaçou o
episódio envolvendo um ato de masturbação entre ele e outro homem.
Assim, é patente ao discurso do personagem-michê questões de gênero do
que é ser homem, convergentes às possíveis performances masculinas ao ana-
lisarmos, por exemplo, as motivações para seu ingresso na prostituição. Ele dá
ênfase à dificuldade de relacionamento com mulheres (sexo eventual, namoro
ou casamento) tendo em vista, segundo sua visão, que a mulher gera dispêndios
financeiros elevados, impossíveis de serem arcados ou que não valem a pena.
Para ele, na impossibilidade de sexo com uma parceira, seria legítimo satisfazer
os impulsos sexuais com outro homem, sem que isso se configure uma prática
homossexual. Pensamento corrente em populações mais humildes de regiões
como Norte, Nordeste, e núcleos periféricos de outras regiões que não questio-
nam o ativo no intercurso sexual com outro homem (CARBONEL, 2012).

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Por isso, reproduzimos a seguinte passagem do conto: “Já fiz programas


com vários, tanto daqui como lá fora, e até a presente data só tive problema com
um cara. Fomos na hospedaria, lá ele me chupou, depois meti. E aí, ele queria
que eu fizesse o mesmo. Quase dou um soco no filho da puta...” (DAMATA,
1975, p. 11). A reação odiosa do personagem é reveladora da condição coer-
citiva pela manutenção da hipermasculinidade e virilidade que não podem ser
“maculadas” com performances sexuais associadas ao feminino. Emergindo
uma problematização, conforme assinala Bourdieu (2002, p. 31) de que “O pri-
vilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão
e na contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo
homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade”.
Adicionamos a essa discussão, a contingente negociação de performances
sexuais entre michê e cliente, conforme ilustra o excerto seguinte:
Outro dia esse mesmo cara apareceu aqui...terminou me fazendo
uma proposta: se eu beijasse na boca, se deixasse botar nas minhas
coxas, ele me dava cem pratas. Quase aceito... disse para ele voltar
depois, ia pensar melhor no assunto...Cem pratas é um bocado de
dinheiro, já dá para o sujeito quebrar o galho... (DAMATA, 1975,
p. 12).

Depreendemos que o personagem, no âmbito do discurso, hipervaloriza


sua masculinidade, embora suas performances sexuais estejam sujeitas à nego-
ciação com o cliente. Abre-se a perspectiva de negociar-se não somente os
prazeres do corpo, mas também as identidades subjetivas, de masculinidade
e feminilidade. Sublinhando, aqui, o fato de “[...]o dinheiro torna-se então o
fator de permissividade para as possibilidades de transitoriedade e flexibilidade
exigida as performances sexuais durante o coito, sem com isso, interferir ou
ameaçar sua própria identidade” (SOUZA NETO, 2009, p. 68).
Nesse âmbito das práticas da prostituição masculina, em outro conto da
mesma compilação, “Módulo lunar pouco feliz”, Damata faz um recorte histó-
rico e sociocultural relevante, posto sua obra ser contemporânea ao período em
que no Ocidente ocorreu a expansão do mercado erótico e da indústria porno-
gráfica, e no contexto da prostituição em nosso país a visibilidade do trottoir – o
espaço fecundo da rua para práticas do mercado do sexo. Nessa vertente de
exercício da prostituição, a rua e os prestadores de serviços sexuais que nela
transitam são postos no nível subalterno (SANTOS, 2013).

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No conto em tela, pelo olhar de um narrador heterodiegético cruzado for-


temente com o discurso indireto livre é dado corpo ao personagem-michê, um
jovem de 18 anos, que vivencia um estilo de vida errante, marcado pelo gosto
da aventura, interesse pelo imprevisível, pela desterritorialização, cujo noma-
dismo o impele a perambulações entre cidades (Porto Alegre, São Paulo, Rio
de Janeiro). O personagem figura uma espécie de “pulsão nomádica” que “[...]
por vezes triste, mas sempre dinâmico. No caso dos michês, fuga da família, do
trabalho, de toda a responsabilidade institucional ou conjugal” (PERLONGHER,
1987, p. 63). Podendo-se adicionar ao seu nomadismo territorial, o nomadismo
sexual, posto que ele “[...]passa de corpo em corpo sem se fixar, numa promis-
cuidade sucessiva que não recusa a orgia” (PERLONGHER, 1987, p. 204).
A performance sexual do personagem em escopo, cuja versatilidade
(ativo/passivo) é aderente às preferências e desejos dos clientes não produz
conflitos nele em face de sua masculinidade:
[...]Não era dos tais que iam logo dizendo: “Só se for pela frente”,
ou “Meu negócio é só comer”, ao contrário, deixava o cara deitar
as falas, dizer o que queria, depois agia de acordo...E nada de que-
rer passar por machão, querer botar banca porque o pinta estava
pagando, não estava? E se estava, tinha todo direito de dizer o prato
que queria, porra! Na hora “H” se o pinta dizia: “Vira”, virava sem
se fazer de rogado...Depois que o cara terminava, ia à privada, dava
a descarga, pronto! Era ou não era o mesmo homem? (DAMATA,
1975, p. 16).

O jovem michê, “garoto que vive só de programa”, sente a pungência


dramática da rua, fazendo trottoir no centro do Rio de Janeiro. Nesse espaço,
experimenta o desamparo, fome, humilhações, bem como a incerteza na busca
de clientes, a represália policial e, evidentemente, propensão à delinquência
e práticas escusas. Contudo, o personagem não cede ao submundo da cri-
minalidade (drogas, roubos) nem à atos inescrupulosos (chantagem a clientes
casados), ao contrário, os repele com veemência, assim como faz menção ao
difícil e “desglamourizado” universo da prostituição de rua, em que pese até
haver, segundo ele, a concorrência crescente entre garotos que se prostituem.
Face a sua orfandade - pai falecido, cuja memória afetiva é relembrada
em oposição à mãe que agia com hostilidade -, o jovem boy de programa
mantém um “caso” com outro michê mais maduro de quem recebe proteção,

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o ultramásculo Severino Gomes da Silva, vulgo Pernambuco. Vejamos a sua


descrição e modus operandi no mercado do sexo:
[...]tinha braços fortes, roliços, pele clara, dentes perfeitos, cheiro
de macho. Quando andava o material soberbo balançava de leve
entre as pernas musculosas ...e as bichas todas se voltavam para
olhá-lo, ou paravam e faziam sinal para que se aproximasse [...].
Fazia programa quase todas as noites e contava com uma fregue-
sia certa (sua cadernetinha de endereços tinha para mais de 100
telefones) [...]. Mas não era de fazer concessão, não beijava por
dinheiro [...]. Sua especialidade sempre fora bicha, orgulhava-se de
fazer qualquer bicha se sentir mulher, mais mulher do que muita
mulher (DAMATA, 1975, p. 21-22).

Esse personagem, no contexto dos anos 70 do século passado, pode ser


lido enquanto gênese do “profissional do sexo”, posto suas práticas sexuais
constituírem atividade regular responsável como fonte de renda exclusiva, e não
trabalho ou ocupação provisórios. Acrescendo uma rede de clientes fixos, com
horários agendados, assim como a postura e abordagem discretas no nível do
profissionalismo. Este personagem-michê é representativo, pois ele não comer-
cializa apenas um corpo másculo. Simbolicamente, os clientes, descritos como
homossexuais efeminados pagam para realizarem a fantasia de transar com um
“heterossexual”, “macho de verdade”, dominador, já que ele “[...]incorpora os
valores tradicionalmente associados com o papel de macho na cultura brasileira
- força e poder, violência e agressão, virilidade e potência sexual” (PARKER,
1992, p. 74).
Nesse contexto, as masculinidades são uma construção histórica, social
e cultural, posto não haver uma única maneira de ser homem, mas variados
modos e modelos de vivenciar esse papel. Por meio do processo de socializa-
ção, esses modelos são transmitidos, oscilando, também, segundo a inserção
do homem, da mulher e da família na estrutura social. “Mudam ao longo da
história, mas numa mesma época podem sofrer contestação, fazendo apare-
cer masculinidades alternativas ao modelo dominante, hegemônico” (SANTOS,
2013, 73).

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ISBN 978-85-61702-44-1 181 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Considerações finais

Nos contos analisados, a masculinidade é configurada numa perspectiva


relacional, significada e ressignificada contextualmente no embaralhado jogo de
ambivalências. Os personagens-michês aparecem cindidos diante do modelo
de heterossexualidade compulsória que é reconfigurado nas negociações de
performances sexuais aderentes às fantasias daqueles que financiam o sexo,
no sentido de desfazer ou reforçar relações binárias acerca das representações
de gênero e sexualidade (dominador/dominado). Ganha relevo, também, o
“nomadismo sexual” como condição inerente às práticas de prostituição, seja
no domínio de “espaços de pegação” ou no domínio da rua” ao ofertarem a
possibilidade do encontro e do inesperado.
Depreendemos, em suma, da análise dos personagens-michês, vozes
marginais que vendem corpos e fantasias em contatos efêmeros sem amanhã,
bem como o cruzamento de relações possíveis entre sujeitos que vivenciam
interações sexuais, na clandestinidade ou não, cujo comportamento divergente
obriga-os a ruptura com a “normalidade” social que impõe severos códigos
morais.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

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Dialogarts, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,


2002.

CARBONEL, Thiago Ianez. Homoerotismo e marginalização: construções do universo


homoafetivo masculino na literatura brasileira contemporânea. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Araraquara, Unesp,
2012.

CECCARELLI, Paulo Roberto. Prostituição – corpo como mercadoria. Mente & cérebro
– Sexo, v. 4, dez. 2008.

DAMATA, Garparino. Os solteirões. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.

GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do


século XX. Trad. Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

LUGARINHO, Mário César. Nasce a literatura gay no Brasil: reflexões para Luís
Capucho. In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da. (Org.). Aspectos da literatura gay. Joao
Pessoa: Editora da UEPB, 2008.

PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões: cultura sexual no Brasil contemporâneo.


São Paulo: Best-Seller, 1992.

PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo.


2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

______. Vicissitudes do michê. Temas IMESC, Soc. Dir. Saúde, São Paulo, 4(1), p.
57-71, 1987b.

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ISBN 978-85-61702-44-1 183 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

SANTOS, Maria de Lourdes dos. Da batalha na calçada ao circuito do prazer: um


estudo sobre a prostituição masculina no centro de Fortaleza. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFC, 2013.

SILVA, Antonio de Pádua Dias da; FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque.


Apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas de temática homo-
erótica. Graphos, João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007.

SOUZA NETO, Epitacio Nunes. Entre boys e frangos: análise das performances de
gênero de homens que se prostituem em Recife. Dissertação de Mestrado. Programa
de Pós-Graduação em Psicologia. Recife, UFPE, 2009.

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ISBN 978-85-61702-44-1 184 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

ALISON BECHDEL E A DESCOBERTA DE SI EM FUN HOME

Francine Natasha Alves de Oliveira


Doutoranda em Letras: Estudos Literários
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
francine.alves.oliveira@gmail.com

Luciana Freesz
Doutoranda em Letras: Estudos Literários
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
lufreesz@gmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Alison Bechdel se tornou conhecida no mundo todo com a publicação de Fun


Home, uma autobiografia construída a partir da biografia do pai da autora,
em que a descoberta de sua identidade como mulher, artista, lésbica e ativista
passa pela comparação com a identidade do próprio pai, professor e homosse-
xual enrustido. Com ironia e autocrítica, a autora expõe uma relação complexa,
recorrendo ainda à intertextualidade com clássicos da Literatura. Como lésbica,
a obra de Bechdel conquista um espaço pouco habitado por outras vozes femi-
ninas, o das histórias em quadrinhos, atingido um público para além da própria
comunidade LGBTT.
Palavras-chave: memórias, autobiografia, história em quadrinhos, lésbica.

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Introdução

A maior abertura para que temas controversos sejam debatidos no meio


acadêmico e a ampliação dos estudos literários permite a busca por objetos
de pesquisa outrora marginalizados e não pertencentes ao cânone. Assim, na
contemporaneidade, estudos e análises literárias podem se valer da interdiscipli-
naridade para promover uma abertura para a voz daqueles que, tanto artística
como socialmente, são excluídos dos centros hegemônicos.
Para este artigo, pretendemos tratar da formação da identidade lésbica
como descrita por Alison Bechdel em sua novela gráfica, Fun Home – Uma
tragicomédia em família, publicada no Brasil em 2007. A qualidade literária da
obra fez com que a autora se tornasse referência da literatura lésbica.

Identidades em jogo

Em Dykes to Watch out For, Alison Bechdel expunha o cotidiano e as


experiências de um grupo de lésbicas. Publicada semanalmente de 1983 a
2008 em jornais de menores tiragens e no jornal mensal Funny Times, a série
traz assuntos diversos abordados transversalmente à vivência das personagens,
sendo considerada uma das primeiras representações de lésbicas na cultura
popular – sem que o público alvo seja, especificamente, formado por homos-
sexuais. De acordo com Hillary Chute (apud ZOUVI, 2015), a série de cartuns
surgiu da busca por visibilidade por parte de Bechdel, da necessidade de reco-
nhecimento visual de sua própria cultura.
Bechdel obteve reconhecimento mundial com Fun Home – Uma tragico-
média em família (2006), em que conta a história de seu pai e de sua família a
partir de suas memórias. Esta foi a primeira história em quadrinhos reconhecida
pela revista Time como “livro do ano”, sendo indicada e ganhando diversos prê-
mios, entre eles o Eisner Awards. A partir de analogias com clássicos literários
que perpassaram tanto sua vida como a de seu pai, a quadrinista estabelece
seus precursores por meio de uma narrativa não linear e procura construir sua
identidade e a de seu pai.

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Memórias e autodescobertas

Professor de inglês e literatura, Bruce Bechdel estava sempre lendo e sua


preferência por certos autores e obras foi dividida com a filha, principalmente
nos anos em que Alison cursou faculdade em Nova York. Usando as obras para
dar luz à personalidade do pai e à relação entre ambos, a autora adiciona à lista
livros de temática homossexual e feminista que lhe serviram como referência
para construir sua própria identidade.
Na primeira página é revelado que o pai tinha “raro contato físico” com
a filha, que, ainda pequena, pedia para ser levantada e se equilibrava nos pés
dele, brincadeira chamada de “jogos icáricos” (BECHDEL, 2007, p. 9). Bechdel
compara o pai ao mítico Ícaro, em função de sua “queda”. Sugere-se, então,
uma ligação tênue entre pai e filha, uma vez que, durante a brincadeira, era
Alison quem ficava na posição “icárica” que simulava um voo.
Habilidoso, Bruce reformou a casa neogótica da família por completo.
Essa engenhosidade faz com que Alison o compare ao arquiteto e inventor
mitológico Dédalo, pai de Ícaro. A obsessão do pai com a estética podia tam-
bém ser percebida em como cuidava de sua aparência e exigia o mesmo da
filha, escolhendo inclusive suas roupas. Alison estabelece suas oposições em
relação ao pai: “Meu gosto pelo simples e estritamente prático surgiu cedo. (...)
Eu era a espartana do meu pai ateniense. A moderna do vitoriano. A masculina
do afetado. (...) A funcional do esteta” (BECHDEL, 2007, p. 20-21 – destaque
nosso).
A masculinidade da filha pode ser encarada como um sinal estereotípico
de homossexualidade. A “afetação” do pai, por sua vez, seria o indício de sua
sexualidade reprimida, provável razão pela qual se preocupava tanto em manter
as aparências:
Ele usava toda sua técnica e habilidade não para fazer coisas, mas
para fazê-las parecerem o que não eram. Ou seja, impecáveis. Ele
parecia um marido e pai perfeito, por exemplo. Mas um marido e
pai perfeito transaria com rapazes adolescentes? Olhando para trás,
seria fácil dizer que nossa família era uma farsa (BECHDEL, 2007,
p. 22-23).

Sendo uma obra em quadrinhos carregada de descrições e indagações,


é interessante notar a presença marcante do texto verbal em relação ao texto

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não-verbal. Simultaneamente, ao observarmos cada requadro da obra, temos


primeiro a ideia textual pelo ponto de vista da personagem/narradora e, grafica-
mente, a expressão dos outros personagens, havendo uma relação estreita entre
palavras e imagens. Dentro dessa simbiose, “as palavras podem pegar imagens
aparentemente neutras e colar nelas uma infinidade de sensações e experiên-
cias” (McCLOUD, 1995, p. 135).
O segundo capítulo revela como a preocupação com a aparência per-
meou, inclusive, a morte de Bruce. A autora explica que não há provas de que
o pai tenha se matado, pois foi atropelado por um caminhão, fazendo com que
todos acreditassem ter sido acidental.
Pouco antes de morrer, seu pai estivera lendo A morte feliz, de Albert
Camus, em que havia grifado uma passagem: “Sentia o paradoxo cruel pelo qual
nos enganamos sempre duas vezes em relação aos seres que amamos: em seu
favor primeiro, e, em seguida, em seu detrimento” (CAMUS apud BECHDEL,
2007, p. 34). Aquele seria um “epitáfio apropriado para o casamento” dos pais
(BECHDEL, 2007, p. 34). A mãe havia pedido divórcio duas semanas antes –
uma “mancha” na imagem do casamento perfeito.
A lápide colocada onde foi enterrado é também um reflexo da preferência
estética, um obelisco que se destaca no cemitério da pequena cidade. Bruce
tinha uma coleção de obeliscos, “um formato pelo qual ele tinha enorme e des-
pudorada fixação” (BECHDEL, 2007, p. 35).
Com humor, Alison compara sua família com a Família Addams, não
apenas pela aparência do casarão em que viviam, mas por causa do negócio
familiar; convivendo com o ritual da morte na casa funerária, as crianças pas-
saram a encarar a questão com indiferença, brincando em cemitérios e na sala
onde os velórios aconteciam.
A casa funerária, em inglês, “funeral home”, dá nome ao livro: a abrevia-
ção para “fun home” gera um duplo sentido, pois “fun” remete tanto a “funeral”
quanto a algo divertido – o significado da palavra “fun” propriamente dita.
Quando as crianças tinham de dormir na casa, ficavam no mesmo quarto
que a avó, que lhes contava histórias antes de dormir. A narrativa favorita era
sobre o pai que, aos três anos de idade, acabou atolado em uma lavoura.
Resgatado pelo leiteiro e levado para casa, a avó conta que tirou a roupa do
garoto, o enrolou em uma colcha e o colocou no fogão para se aquecer. Essa
história, em que o pai se encontra em situação de fragilidade, tem grande apelo
entre os filhos de Bruce. A imagem do garoto preso na lama remete ainda ao

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destino de retornar à pequena cidade onde nasceu para cuidar da casa funerá-
ria. Em vez de continuar em Nova York, onde estudou, ou na Europa, para onde
foi quando serviu ao exército, e poder exercer mais livremente sua sexualidade,
Bruce voltou à lama de onde veio (HAGANE, 2010), escondendo sua real iden-
tidade e seus desejos.
O pai se matou quando Alison estava na faculdade. Ao receber a notícia,
conta que pouco chorou, e ao reencontrar o irmão, a reação de ambos foi com-
partilhar um sorriso absurdo. Para se referir ao momento, Alison recorre a outro
livro de Camus, O mito de Sísifo, que precisou ler para uma matéria e que lhe
foi emprestado pelo pai. Nele, Bruce também havia grifado uma passagem: “O
tema deste ensaio é precisamente esta relação entre o absurdo e o suicídio, a
medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo” (CAMUS apud
BECHDEL, 2007, p. 53).
A autora classifica a morte do pai como “queer”, ou seja, como estranha,
esquisita. No dicionário, há diversos significados para a palavra em questão; o
verbo estaria relacionado com “frustrar, arruinar, desconcertar (...)” (BECHDEL,
2007, p. 63), algo que o pai fez com a família ao forjar a própria morte. Porém,
o dicionário omite a provável razão do suicídio, que seria justamente o fato de
o pai ser “queer” – homo ou bissexual.
Os relacionamentos de Bruce com outros homens só foram revelados a
Alison pela mãe quando ela estava na faculdade, após enviar uma carta aos
pais em que ela mesma “saía do armário”. A autora sugere que o desenrolar dos
fatos poderia ter sido sua culpa:

Se não tivesse me sentido compelida a dividir minha pequena des-


coberta sexual, talvez o caminhão tivesse passado sem incidentes
quatro meses depois. (...) Por que contei a eles? Eu nem tinha tran-
sado ainda. Por outro lado, meu pai vinha fazendo sexo com outras
pessoas por anos sem contar a ninguém (BECHDEL, 2007, p. 65).

Pouco depois de se revelar para a família, Alison recebe notícias de como


o casamento dos pais se tornou atribulado e que a mãe pretendia se divorciar.
Nas palavras da autora, a morte do pai, duas semanas depois, “(...) não foi uma
nova catástrofe e sim uma antiga, que vinha se desenrolando bem devagar há
muito tempo” (BECHDEL, 2007, p. 89).

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Acreditar que a revelação de sua homossexualidade teria sido o motivo


de Bruce se matar era, para Alison, um fator de aproximação, uma indicação
de que o pai, apesar de distante, importava-se com ela. Porém, até a morte era
cercada pela incerteza: oficialmente, fora um acidente, mas a autora levanta
com veemência a hipótese de um suicídio planejado para manter as aparências.
A obsessão com a estética e a jardinagem é descrita pela filha como outro
indicador de sua sexualidade, novamente fazendo uso de um clássico para se
narrar um aspecto identitário:
Se meu pai tinha uma flor favorita, era o lilás. Um trágico espécime
botânico, desvanecendo sempre antes mesmo de atingir o ápice.
(...) Proust descreve os lilases ao longo do Caminho de Swann em
Em Busca do Tempo Perdido. Que, como eu disse, meu pai come-
çou a ler um ano antes de morrer. (...) Se já houve uma bicha maior
que meu pai, foi Marcel Proust (BECHDEL, 2007, p. 98-99 – desta-
que nosso).

Enquanto o pai sentia atração pelos homens, Alison, desde criança, admi-
rava a masculinidade por um motivo diverso, sua própria homossexualidade.
Assim, a autora e seu pai seriam “invertidos” um do outro – ela com sua pre-
ferência por uma estética “masculinizada” e ele com sua vaidade excessiva,
associada ao feminino: “Enquanto eu tentava compensar a parte efeminada
dele... Ele tentava expressar algo feminino através de mim” (BECHDEL, 2007, p.
104). Ao traçar essa comparação, Bechdel coloca a si e ao pai dentro de estere-
ótipos associados à homossexualidade, sendo ela pouco apegada às aparências
e mais voltada ao caráter prático das coisas.
Se antes o esforço narrativo se voltava mais para a demonstração de dis-
tanciamento, a característica que a autora e o pai compartilhavam, o desejo
homossexual, torna-se um ponto de partida para que sejam reveladas outras
semelhanças entre eles: “(...) de certa forma pode-se dizer que o fim do meu pai
foi meu início. Ou (...) que o fim da mentira dele foi o início da minha verdade”
(BECHDEL, 2007, p. 123).
Em mais de uma ocasião, a autora mostra, por meio de texto e dese-
nhos, como os livros foram importantes para sua “formação lésbica” e para
sua entrada no feminismo e atuação no movimento – que ela considera como
um “anestésico” após a descoberta da sexualidade do pai –, foi um período de
“despertar político e sexual” (BECHDEL, 2007, p. 87).

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Considerações finais

A narrativa autobiográfica revela experiências de vida com as quais muitos


indivíduos poderiam se identificar. A quadrinista dialoga com os acontecimen-
tos ao seu redor e com sua memória a partir de elementos externos, como os
próprios estereótipos associados, por exemplo, a homossexuais como “inver-
tidos” e a artistas como pessoas introvertidas e pouco sociáveis. Assim, usa
a história do pai e da convivência com a família para se compor e avaliar a
si mesma como mulher, lésbica e artista, comparando suas experiências com
as do próprio pai, para quem a importância das aparências foi o principal ele-
mento a guiar seus atos.
Os movimentos de afastamento e aproximação entre sua identidade e a
do pai são, por vezes, mediados por obras literárias e, ao longo da narrativa, são
reveladas, juntamente às sexualidades de pai e filha, algumas questões relativas
à sexualidade de autores e personagens consagrados, como é o caso de Camus
e Proust. Ademais, o uso de obras literárias clássicas confere aos quadrinhos
uma espécie de validação e de status intelectual – o qual seu pai parecia apre-
ciar. A escolha desses livros faz da intertextualidade ainda um guia narrativo
que se sobrepõe à falta de linearidade.
Em termos de obras com protagonistas lésbicas, Bechdel é um dos poucos
casos em que sua produção não se restringe ao consumo pelo público LGBTT,
sendo reconhecida pela qualidade de seu trabalho inclusive a nível literário.

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Referências

BECHDEL, Alison. Fun Home – Uma tragicomédia em família. São Paulo: Conrad,
2007.

CRUZ, Eliel. “How a ‘Pornographic’ Lesbian Graphic Novel Ignited a Culture War at
Duke”. The Huffington Post. 28 de ago. 2015. Disponível em: <http://www.huffin-
gtonpost.com/the-daily-dot/fun-home-duke_b_8052014.html>. Último acesso: 26 de
mar. 2016.

HAGANE, Karoline. “Autobiography, irony, and identity formation in Alison Bechdel’s


Fun Home”. Hagane.org. Norway: Dezembro de 2010. Disponível em: <http://hagane.
org/wp-content/uploads/2014/08/Autobiography-irony-and-identity-formation-in-
Alison-Bechdels-Fun-Home-Author-Karoline-Hagane.pdf>. Último acesso: 26 de mar.
2016.

McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron, 1995.

ZOUVI, Aline. A performance autobiográfica nos quadrinhos: um estudo de Alison


Bechdel. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-graduação em Teoria e História
Literária. Campinas: UNICAMP – Instituto de Estudos da Linguagem, 2015. 152 f.
Disponível em: <https://www.academia.edu/14631684/_Disserta%C3%A7%C3%A3o_
de_Mestrado_A_performance_autobiogr%C3%A1fica_nos_quadrinhos_um_estudo_
de_Alison_Bechdel>. Último acesso: 26 de mar. 2016.

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SEM-VERGONHICES, DISCARAÇÕES E SAFADEZAS


NA OBRA DE MARCELINO FREIRE

Helder Thiago Maia


Doutorando em Literatura Comparada
UFF – Universidade Federal Fluminense
helderthiagomaia@gmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Neste artigo, tentamos reelaborar a ideia de uma escritura queer na literatura


brasileira contemporânea a partir da obra do escritor pernambucano Marcelino
Freire, especificamente a partir de seis contos dos livros Contos Negreiros (2005),
Rasif: mar que arrebenta (2008) e Amar é crime (2010). Propomo-nos, portanto,
uma leitura estético-política da obra freireana a partir dos conceitos de língua
menor, devir darkroom e terrorismo textual. Dialogaremos, para isso, com tex-
tos que estão atravessados pelas temáticas da homossexualidade masculina.
Consideramos, por fim, que as diversas dissidências de gênero e sexualidade
presentes na obra do autor dialogam com as sexualidades fluidas e populares
que estão quase sempre excluídas do ambiente de consumo do pinkmoney.
Palavras-chave: literatura brasileira; escrituras queer; língua menor; terrorismo
textual; Marcelino Freire.

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As diversas homossexualidades masculinas presentes na obra de Marcelino


Freire produzem poucas imagens positivas sobre a homossexualidade, não se
trata, assim, de uma narrativa militante-identitária; ao contrário, a proliferação
de homossexualidades, que enxergamos na obra do autor, parece dialogar
mais com o que o padrão gay-branco-universal fez questão de esconder: as
sexualidades fluidas e populares que estão fora do ambiente de consumo do
pinkmoney. A opção de Marcelino, portanto, parece quase sempre ser a de
enxergar o escuro do escuro ou a minoria subalternizada dentro das próprias
minorias subalternizadas.
Poderíamos, por exemplo, falar do poeminha de amor concreto, que abre
o mesmo livro de União Civil. As rimas internas do poema, por exemplo, que
provocativamente mantêm em suspenso o verbo dar, inclusive sendo publicado
em negrito, e seus múltiplos significados, especialmente o sexual, desterritoria-
lizam o possível dentro da linguagem poética, ao mesmo tempo em que marca
uma performance desafiadora do eu-lírico. Numa tradição ginsbergeriana,
poderíamos dizer que o poema de Marcelino remete ao de Allen Ginsberg,
de Esfíncter, onde o cu, e o sexo anal, é tomado tanto em sua potencialidade
gozosa quanto estética, vejamos um trecho:
da mesma forma que você dá de cara dá de frente dá de bandinha
dá de ombros de bandinha da mesma forma que você não me dá
a mínima não me dá ouvidos não me dá bola da mesma forma que
você não dá o melhor de si eu dou o cu meu amor e daí (2010:21)

Propomo-nos, em seguida, a ler outros contos de Marcelino a partir da


ideia de que existe na literatura latino-americana contemporânea algo que pode-
ríamos chamar de uma escritura queer. Explico-me. De acordo com Roland
Barthes há em todo texto uma categoria, que não é nem o estilo, nem o conte-
údo e nem a língua, “um para além da linguagem” que é a história e o partido
que o escritor toma diante desta. À essa categoria Barthes atribui o nome de
escritura, que seria, portanto, um tom, um ethos, um ato de solidariedade histó-
rica, aquilo que amarra o escritor à sociedade (2004:7), um arrebatamento, um
transbordo, do estilo para outras regiões da linguagem e do sujeito (2003:89),
a linguagem literária transformada em sua destinação social (2004:13). Uma
escritura, portanto, escancara a situação e engaja o escritor sem que ele precise
dizer (2004:24).

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As escrituras queer, dessa forma, seriam uma constelação de textos, de


fluxos poéticos, que compartilham entre si a possibilidade de uma leitura desie-
rarquizante e não normativa sobre gêneros e sexualidades, que surgem a partir
da singularidade histórica dessas performatividades dissidentes frente à hete-
ronormatividade hegemônica. Uma escritura queer, portanto, longe de fixar
identidades desviantes ou normativas, agencia alianças com a alteridade e se
desloca, se abjura, todo o tempo para resistir às reterritorializações normativas.
Assim, nos pontos seguintes, discutiremos questões estético-políticas que per-
passam o conceito de uma escritura queer1 latinoamericana e que atravessam a
obra de Marcelino Freire.

Escuridão ao sol

O conto O meu homem-bomba (2010), cujo duplo sentido de homem-


-bomba nos remete tanto a homens de músculos hipertrofiados, as famosas
barbies gays, quanto aos suicidasterroristas, narra a história, em primeira pessoa,
de um homem europeu entediado que fugindo dos calores sexuais do turismo
gay internacional viaja para a cidade de Moab, no Cazaquistão. No trajeto que
faz diariamente em Moab, entretanto, o narrador apaixona-se por outro homem,
que ao final do conto explode um ônibus logo depois que o narrador desce na
praça de Admá.
Os personagens de Marcelino, como vemos no conto, parecem expe-
renciar a vida a partir da escuridão ou a partir daquilo que temos chamado
de devir darkroom. Expliquemos: o darkroom, enquanto território atravessado
por pulsões sexuais, é um lugar privilegiado de desterritorialização dos corpos
disciplinados pelas hegemonias da heteronormatividade e de experimentação
de corpos-sem-órgãos; é, portanto, um território de resistência onde os corpos
dançam na escuridão e compõem campos de imanência de desejos dissidentes.
Assim, entendemos uma experiência em devir darkroom tanto como uma
vontade de alguns personagens de experimentação de corpos-sem-órgãos, de
corpos desautonomizados; quanto, nossa vontade, que é também a desse nar-
rador freiriano especificamente, mas também de muitos outros, de ao apagar

1 O conceito de escritura queer encontra-se mais longamente explicado no meu livro O devir-darkroom
e a literatura hispano-americana (2014), especialmente no capítulo Constelações Queer ou Por Uma
Escritura da Diferença.

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das luzes, enxergarmos aquilo que sempre esteve ali, mas não nos era possível
ver. A luz, portanto, entendida como a metáfora de Georges Didi-Huberman,
em Sobrevivência dos Vagalumes (2011), enquanto a lei, a norma, o dogma, a
razão do Iluminismo ocidental, termina, além de nos docilizar, por não nos dei-
xar enxergar os escuros do nosso tempo.
Consequentemente, como o homem contemporâneo de Giorgio Agamben,
é somente no apagar dessas luzes (normativas e racionais) que passamos não
só a enxergar o que antes era invisível, mas também a enxergarmo-nos por
outras lógicas ou exatamente através da falta delas. Não se trata, portanto, de
jogar luz, razão, norma, lei, ao que está escuro, mas de ver, a partir de cor-
pos-sem-órgãos, as luzes do próprio escuro, as luzes que não são nem a nossa
razão e nem a nossa norma ocidental. Parafraseando Agamben, diríamos que
há nos personagens de Marcelino um desejo de, ao estarem mergulhados na
escuridão, perceber o presente em suas luzes e em seus escuros (2009:63). São,
portanto, narradores/personagens marginalizados e indisciplinados que pro-
põem um outro arranjo social, uma outra forma de enxergar a alteridade.
No conto, como vimos, o narrador desloca a narrativa tradicional do oci-
dente sobre esses suicidas, já que antes de se falar de morte, de suicídio e de
assassinatos, se fala de amor e de desejo, onde o ocidente só enxerga terrorismo
e violência. Nesse deslocamento, na forma de enxergar o outro, o que Marcelino
parece nos propor é que enxerguemos a “Escuridão ao sol” (2008:31), ou seja,
aquilo que nos fica invisibilisado pelas narrativas hegemônicas ocidentais, que
são usadas para demonizar esses homens, além de animalizá-los e distanciá-los
da racionalidade ocidental. Freire constrói, portanto, uma narrativa, que não
só enxerga essa alteridade de forma diferente, equiparando-os inclusive aos
cristãos em sua paixão religiosa, mas que também propõe um olhar deslocado,
uma linha de fuga, para as nossas racionalidades.
Marcelino opera, assim, um segundo deslocamento muito sutil que é ver
as semelhanças entre ocidente e oriente a partir do fundamentalismo religioso
e da paixão mística que organiza e estrutura a ambas as sociedades, para isso,
o narrador utiliza-se de uma forte intertextualidade bíblica, principalmente
nos nomes dos personagens e nos paralelismos das suas histórias. Como bem
resume Sônia Galvão,
a obra de Freire situa-se [...] na busca dos abismos que a regra
suprimiu, a fim de que tal estado de verdade emerja de seu estado

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latente. Mas não se trata, nesta obra do autor, de se vislumbrar


um caminho de defesa dos desvalidos, mas de apontar um sujeito
que surge deslocado do mundo e da norma, da história, e constrói
paradigmas ainda não percebidos por aqueles que se fecham no
centro. [...] por se deparar o leitor com a consciência da existência
de paradigmas imprevistos, promovidos por um sujeito deslocado,
pois somente, ao arrebentar-se no outro, percebe-se, na tessitura
do texto, que o sujeito anoitece para amanhecer (2013:129)

O senhor não tem vergonha

O conto Jesus Te Ama (2010) narra o desenrolar de um flagrante feito por


um policial que encontra um padre fazendo sexo oral em um adolescente. O
padre desde o começo do conto já aparece rezando e pedindo por um mila-
gre: que a autoridade o perdoe. Seu pedido se realizará, ao final do conto,
visto que, a situação parece assustar tanto o policial que ele decide não levar o
caso adiante; o que explicita menos o milagre religioso e mais os casos de sub-
notificação dos casos de abuso sexual, além dos conchavos entre as diversas
instituições macropolíticas.
O narrador, através da voz do policial, questiona-se como um “candi-
dato a santo” pode cair nessas fraquezas e pergunta ao padre se ele não tem
vergonha; há, portanto, uma humanização da figura do padre cuja causa é o
crime que ele comete. Contudo, ao final do conto, esta humanização é desfeita
pelo próprio padre ao se comparar ao “Senhor” durante a sua performance no
púlpito.
No desenrolar da narrativa, o padre passa a jogar a culpa de todo o ato
sexual no adolescente, dizendo que foi seduzido e azucrinado pelo jovem. Essa
é uma argumentação bastante comum nos casos de abuso sexual cometidos
por sacerdotes na nossa realidade. O rapaz assume, assim, duplamente a figura
de Cristo: é tanto aquele que expia o pecado dos outros, como será o corpo
perfeito, o corpo desejado das imagens de Cristo.
Ao fim, depois de liberado e de uma noite de penitencias, o padre volta
à batina, à igreja e à missa e pergunta-se se não tem vergonha de tudo que
aconteceu. Equiparando-se ao Senhor, a Deus, ele responde: Não (eu não tenho
vergonha), o Senhor (Deus, o padre) não tem vergonha. Cristo, o garoto, ao con-
trário, sente vergonha porque chora na delegacia, o Senhor, o padre, mesmo

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humilhado consegue operar milagres sem chorar, sem ter vergonha, sem perder
o controle.
Essa possibilidade desse Senhor assumir a figura fantasmática de Deus é
feita a partir da própria grafia da palavra, visto que, quando o policial pergunta
ao padre e quando o padre se pergunta se ele não tem vergonha, a palavra
senhor está sempre iniciada com uma minúscula, diferentemente da última
frase onde o senhor é escrito com a primeira letra em maiúscula.
Vejamos: no início, a pergunta do policial “O senhor não tem vergonha?”
(2010:105), depois o padre se pergunta: “O senhor não tem vergonha?” e a res-
posta, que sugere a própria comparação com a divindade é “Não, o Senhor não
tem vergonha” (2010:108).
Gostaríamos, então, de ler um trecho do conto a partir da ideia de terro-
rismo textual. Explico. Beatriz Preciado, teórica queer, primeiramente a partir
de Roland Barthes (1990) e depois de Guy Hocquenghem (2009), diz que são
terroristas todos os textos capazes de intervir socialmente, não graças a sua
popularidade ou êxito de vendas, mas graças à violência metonímica que per-
mite que o texto exceda as leis de uma sociedade, de uma ideologia ou de uma
filosofia, para criar a sua própria inteligibilidade histórica (2009:138).
Barthes chama de violência metonímica a justaposição num mesmo sin-
tagma de fragmentos heterogêneos pertencentes a esferas da linguagem que
estão geralmente separadas pelo tabu sócio-moral. Assim, se juntariam, por
exemplo, igreja, estilo rebuscado, pornografia, etc. (1990:34). Entendemos, por-
tanto, como terroristas aqueles textos que através dessa violência metonímica
barthesiana terminam por confrontar a linguagem da heteronormatividade.
Essa correlação criada no conto, que explicita a hierarquia da tradição
cristã entre Deus e Cristo, pode ser lida como terrorista através dos paralelismos
feitos entre as duas divindades e os dois pecadores. Na narrativa, através das
comparações, enxergamos um Deus egoísta, cujo milagre serve apenas para
escapar de uma situação criminosa, e soberbo, por sentir-se melhor do que os
humanos que se ajoelham diante dele na missa; ao mesmo tempo vemos um
Cristo frágil, que se envergonha diante da autoridade divina ao dizer que não
teria feito nada disso se soubesse que o outro era padre, mas também da auto-
ridade secular ao ser levado para a delegacia e chorar.
Contudo, é a humanidade de Cristo, a sua fraqueza e o seu corpo que
confere ao conto o seu caráter mais profanatório, mais terrorista, para além
da violência metonímica barthesiana que junta nesse texto, por exemplo, sexo

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oral, bosta, santo e Deus. O poder erótico da imagem de Cristo preso na cruz,
transfigurada na imagem do adolescente de pernas abertas que se deixa chupar
por um padre, profana a imagem sacra do filho de Deus, conferindo-lhe uma
humanidade que é capaz de despertar em seus fiéis, através do seu corpo des-
nudo, desejos e tentações reprováveis para a doutrina cristã.
Ao mostrar, portanto, essa potência erótica de um corpo que deveria ser
lido exclusivamente como divino, Marcelino excede, através da profanação, a
ideologia cristã, para revelar, assim como no conto O meu homem-bomba, o
quanto há de erotismo na paixão religiosa. Confrontando, portanto, a linguagem
religiosa e a linguagem heteronormativa ao devolver a sexualidade das duas
divindades a um sexo casual (incestuoso) feito em um beco escuro entre um
homem e um adolescente. Vejamos, para finalizar, um trecho onde o padre-
Deus fala dessa relação erótica com o corpo do adolescente-Cristo:
Entrou na minha alma como um vampiro. Rezo. Como um Cristo,
Meu Deus, não posso. Certas imagens me ameaçam. Cristo e o seu
corpo. Quando pequeno, queria tocar o corpo de Cristo. Esconjuro.
O corpo perfeito. O corpo de braços aberto. Esconjuro (2010:107)

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Referências

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Martins Fontes, 2004.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vagalumes. Belo Horizonte: UFMG,


2011.

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_______. Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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LOPES, Denilson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro:
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MAIA, Helder Thiago. O devir darkroom e a literatura hispano-americana. Rio de


Janeiro, Multifoco, 2014.

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MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: Um Aprendizado Pelas Diferenças. Belo Horizonte:


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VASCONCELOS, Liana. Estratégias de atuação no mercado editorial: Marcelino Freire


e a Geração de 90. 2007. 176f. Dissertação (Metrado em Literatura) – Instituto de
Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

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PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO EM
O PRIMEIRO HOMEM MAU

Maria Eugênia Bonocore Morais


Graduada em Letras - Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas (PUC-RS)
Mestranda em Teorias da Literatura - PPGLetras - PUCRS
bonocore@icloud.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Tecnologias de gênero são construções culturais e discursivas, não estão a priori


em relação ao sujeito. Tão pouco são categorias fixas e dadas pela cultura. É
justamente o caráter discursivo/cultural das tecnologias de gênero que faz com
que tais tecnologias se encontrem nunca prontas mas sim em constante cons-
trução. Para que sejam mantidas é necessário que sejam reiteradas na e pela
cultura e discurso, para isso a “performatividade de gênero” dará conta do pro-
cesso de “manter o gênero” de um determinado sujeito, isso consiste em uma
série de atos culturais e discursivos realizados, até certa medida intencional-
mente, pelo sujeito enquanto produto das tecnologias de gênero. Este trabalho
se utiliza do romance “O primeiro homem mau”, de Miranda July, para discutir
tais epistemologias.
Palavras-chave: Gênero; Tecnologias de gênero; Performatividade de gênero;
Miranda July.

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Este trabalho destaca e então discute os momentos em que a performa-


tividade de gênero se torna evidente (ou quem sabe um pouco mais palpável)
no romance “O primeiro homem mau”, da autora estadunidense Miranda July
(JULY, 2015). O que interessa aqui é exclusivamente a performatividade de
gênero da protagonista Cheryl, como ela constrói e desconstrói seu gênero
perante as demais personagens do romance. A delimitação do objeto de pes-
quisa somente para a protagonista se dá pelo fato de as ações de Cheryl serem
o fator que impulsiona a narrativa.
A inquietude, a vontade de trocar ideias e a indiscutível presença da ide-
ologia dos movimentos políticos dos anos 70, 80 e 90 fizeram dos Estudos
Culturais uma área do conhecimento bastante variada e contemporânea. Ao
permitir, ou melhor, proporcionar a entrada dos movimentos feministas e gays
no diálogo acadêmico, os Estudos Culturais ganharam a voz ativa da cultura
e do discurso presente em seus temas e objetos de estudo; ao não limitar-
se somente ao texto literário, mas ao coloca-lo em diálogo com outros meios
artísticos, ganha-se um campo amplo, no qual as possibilidades de estudo são
inúmeras; e ao buscar em outras áreas do conhecimento mais respostas para
suas indagações, os Estudos Culturais abrem espaço para a multidisciplinari-
dade, uma tática de pesquisa que une conhecimentos, em vez de segregá-los.
A obra de Miranda July é tão plural quanto os caminhos que este trabalho
pretende percorrer. Artista plástica, performer, cineasta, poeta, atriz e é claro,
escritora, July demonstra que a necessidade de experimentar com as mais diver-
sas formas de arte é algo inerente à cultura contemporânea e que simplesmente
faz dela uma autora, independente de que espécie de arte.
As escolhas teóricas e literárias feitas nesse trabalho são fruto de uma con-
cordância com uma determinada ideologia de pesquisa, e de maneira alguma
são inocentes ou isentas de um compromisso político com a arte e com a
pesquisa. Os Estudos Culturais, e em especial os estudos de perspectiva queer,
ainda têm muito a dizer (assim como todas as demais áreas, não existe, que
fique claro, um saber que tenha maior valia do que qualquer outro) e a obra de
July proporciona uma variedade de possibilidades de leitura.
É natural que existam motivos pessoais para uma pesquisa acadêmica.
Todos têm suas preferências, e antes de pesquisadores somos todos sujeitos.
O tema e a abordagem que proponho aqui são a mim muito caros e muito
pessoais. Falar de queer, de gênero e de discurso é também falar de ser queer,
do meu gênero e do meu discurso. Seria desonesto dizer que esta pesquisa é

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idônea e não visa qualquer transformação ou conscientização social. Porém, ao


mesmo tempo que fortemente ideológica, a pesquisa também procura ser ao
menos lógica. Tentar aqui demonstrar um raciocínio, apoia-lo em fatos, discutir
resultados e possíveis conclusões faz parte de uma retórica que busca conven-
cer justamente por crer em tais argumentos.
Este trabalho pretende analisar como a personagem Cheryl, do romance
“O Primeiro Homem Mau”, performatiza seu gênero e como essa relação se dá
com/a partir das demais personagens. Como as demais personagens entendem a
performatividade de gênero de Cheryl (com quem ela anda, que tipo de roupas
ela usa, é lésbica, é heterossexual) e especialmente a maneira como Cheryl vê
sua própria performatividade de gênero (o cabelo curto e masculino, a camisa
masculina, a falta de qualquer manifestação de desejo sexual). O romance aqui
analisado abre, para este trabalho, muitas possibilidades de leitura, uma vez
que explicita um jogo sexual de conquistas com base em ideias estereotipadas,
leituras fixas de gênero (a barba grossa de Philip, o corte de cabelo masculino
de Cheryl, o corpo voluptuoso de Clee, só para citar alguns exemplos).
O escopo teórico selecionado para este trabalho dialoga com o romance
acima mencionado de forma temática, nas relações de gênero e de sexo e
nas maneiras como as personagens se percebem como sujeitos no mundo da
narrativa; e também de forma ontológica, na proposta de questionar gêneros
pré-estabelecidos, de buscar um existência polimorfa e no diálogo com outras
áreas do conhecimento.
É necessário então que alguns conceitos que deverão ser utilizados no tra-
balho sejam esclarecidos primeiramente. A noção de sujeito diz respeito àquele
que está sujeitado e se sujeita a uma determinada cultura (FOUCAULT, 2012),
que participa do jogo compulsório imposto pelos aparatos de poder. O que
Foucault chama de aparatos de poder são as instituições que criam, regulam
e mantêm as regras e as normas com as quais o jogo compulsório deverá ser
jogado. A ideia desses aparatos e seu funcionamento certamente se deve à ideia
similar presente na obra Aparelhos ideológicos do Estado, de Louis Althusser, e
seriam eles a escola, a igreja e a polícia, por exemplo. Ainda pertinente à ideia
de sujeito está a de um processo de vir-a-ser (SALIH, 2012) constante no sujeito,
posto que este está sempre em construção, nunca completo. Tais noções cor-
roboram com a escrita de Miranda July e, por este motivo, são tão importantes
para este trabalho.

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O sujeito de Butler, este que participa, ou melhor, performatiza, um cons-


tante processo de vir-a-ser é então o sujeito queer, uma vez que não está pronto,
não é predeterminado e não é constituído por outros meios que não sejam ele
mesmo. Nada o obriga a manter um determinado gênero. Apesar das forças
exercidas pelos aparatos de poder, a existência de outras vivências é legitimada
pela própria vivência, ou seja, dado que exista uma hetenormatividade que
dita que um corpo do sexo masculino deva corresponder ao gênero masculino
e a todas as implicações da categoria identitária de “homem”, em qualquer
ponto de sua vida este mesmo indivíduo pode passar a performatizar um outro
gênero, uma “mulher”, ou ainda um outro gênero sem nome, como nota-se em:
[...] If one thinks that one sees a man dressed as a woman or a
woman dressed as a man, then one takes the first term of each of
those perceptions as the “reality” of gender: the gender that is intro-
duced through the simile lacks “reality”, and is taken to constitute
an illusory appearance. In such perceptions in which an ostensible
reality is coupled with an unreality, we think we know what the
reality is, and take the secondary appearance of gender to be a
mere artifice, play, falsehood and illusion. But what is the sense of
“gender reality” that founds this perception in this way?1 (BUTLER,
2006, p. XXIII)

Ele não deixa de ser um sujeito, de existir em uma sociedade, portanto,


mesmo que passe a identificar-se com um outra cultura, sua vivência conti-
nua sendo legitimada por si mesma. É claro que o papel do discurso e o da
cultura são muito importantes nas possíveis implicações de gêneros na socie-
dade, e é por isso que os conceitos de discurso e cultura também precisam ser
esclarecidos.
O discurso, essa “atividade, todavia cotidiana e cinzenta” (FOUCAULT,
2010) não está presente só na sua materialidade escrita ou falada, mas é viva

1 Tradução minha: Se alguém pensa que vê um homem vestido como uma mulher ou uma mulher
vestida como um homem, então esse alguém toma o primeiro termo de cada uma dessas percepções
como “realidade” de gênero: ao gênero que é introduzido através do simulacro falta “realidade”, e é
tomado como constituinte de uma aparência ilusória. Em tais percepções, nas quais uma realidade
ostensiva é pareada a uma não-realidade, nós pensamos saber o que é real, e tomamos a segunda
aparência do gênero como mero artifício, jogo, falsidade e ilusão. Mas o que é o senso de “realidade
do gênero” no qual tal percepção se funda desta maneira?

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também no campo das ideias. O discurso, segundo a psicanálise, constitui a luta


e pelo quê se luta, ou seja, também é desejo (FOUCAULT, 2010). É no discurso
que compõe-se a cultura e é na cultura que compõe-se o discurso. Ora, sabe-
se que o discurso promove o controle de certos hábitos morais e costumes de
um determinado povo e portanto constitui uma dada cultura. Porém, ao mesmo
tempo, a cultura perpetua o discurso, o reitera, faz dele obsoleto ou vivo.
A posição de Foucault, ainda na obra citada acima, é clara: discurso é
poder. E onde há poder, há interdições. Os discursos deverão determinar o
que se pode fazer e o que é proibido. Em uma determinada época o voto das
mulheres era algo absurdo, não havia espaço para tal tipo de discurso, por
exemplo. Hoje, as diversas performatividades de gênero ocupam lugares mar-
ginais nas sociedades contemporâneas, pedem por direitos civis igualitários,
como a questão do casamento civil de pessoas do mesmo sexo. O discurso não
é fixo, ele age em consenso com a cultura; e não é uno, é plural, ainda que sob
patamares de poder distintos. Ao fim e ao cabo, os conceitos de cultura e dis-
curso andam juntos e misturam-se, complementam-se, o que resta é saber que,
em uma perspectiva queer, ambos regulam e mantém leis, saberes e poderes,
porém, libertam, subvertem e existem mesmo fora das regulações normativas.
Para Lauretis (1994) o gênero é um construto cultural, uma representação
real de um sujeito também real. Já que construído culturalmente, constitui-se
também no discurso, na sociedade, na moral e na estética. A posição de Lauretis
é um tanto determinista ao implicar que o gênero de um sujeito é um produto
do meio deste. Dessa maneira fica impossível separar o gênero da cultura e dis-
curso que o mantém. Em seu canônico texto “A tecnologia do gênero”2, Lauretis
ainda trata da questão do gênero fazendo uso de comparações entre apenas
dois gêneros: o masculino e o feminino. Tal escolha é compreensível tendo em
vista o ano da publicação do texto, portanto deve-se atentar às limitações da
argumentação de Lauretis, que por vezes parece um tanto reducionista.
Lauretis vê o gênero de forma muito semelhante a qual Foucault vê o
dispositivo da sexualidade, como uma tecnologia, ou seja, algo que não é, nem
está a priori no sujeito, mas que se constitui nas tecnologias dos aparatos de
poder, dessa forma, o gênero deixa de ser o mero reflexo do sexo biológico e

2 O texto “The technologies of gender” foi originalmente publicado em Technologies of gender. In-
diana University Press, 1987, p. 1-30. A versão utilizada neste trabalho foi retirada de Tendências e
Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rocco, 1994, p. 206-242.

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passa a ser um conjunto de efeitos (LAURETIS, 1994). A autora ainda coloca


quatro pontos importantes no seu conceito de Tecnologia do gênero: a) gênero
é uma representação com implicações reais; b) a representação do gênero é
uma construção; c) a construção do gênero se efetua na cultura e no discurso,
mas também nos aparelhos ideológicos do Estado; e finalmente d) a construção
do gênero também é a sua desconstrução, o que quer dizer que o gênero cons-
titui-se na relação do eu com o outro.
Já por outro lado, para Butler (2006) gênero, assim como sexo, sempre
fará parte de uma relação de poder. E a autora rejeita a hipótese de Lauretis de
que o gênero seja uma representação sempre intrínseca à noção de sexo. Butler
aproxima-se de Foucault ao perceber que o que constitui o gênero, o sexo, o
desejo e também o sujeito é o poder. E este poder é sempre jurídico e político
(BUTLER, 2006). É claro que, para Foucault, um dos constituintes do poder é
também o discurso (FOUCAULT, 2004), ou seja, para os três pensadores, Butler,
Foucault e Lauretis, a arena dos conceitos de gênero, discurso e sexo é bastante
nebulosa.
O gênero contemplado por Butler (2006) não é fixo, é cultural e não é
necessariamente binário, e com isso, não é necessariamente uma represen-
tação, mas sim uma performance. Butler (2006, p. 9) chama o gênero de “a
free-floating artifice”. E distingue-se de Lauretis ao questionar se quem sabe a
categoria de sexo também não seria um construto cultural, ou quem sabe ainda,
não tenha sido, desde sempre, gênero ao mesmo passo que sexo. O que Butler
quer deixar claro com esta polêmica declaração é que não se pode dizer que
sexo está para a natureza assim como gênero está para a cultura.
Contudo, além das ficções “fundacionistas” que sustentam a
noção de sujeito, há o problema político que o feminismo encon-
tra na suposição de que o termo mulheres denote uma identidade
comum. Ao invés de um significante estável a comandar o con-
sentimento daquelas a quem pretende descrever e representar,
mulheres – mesmo no plural – tornou-se um termo problemático,
um ponto de contestação, uma causa de ansiedade. Como sugere o
título de Denise Riley, Am I That Name? [Sou eu este nome?], trata-
se de uma pergunta gerada pela possibilidade mesma dos múltiplos
significados do nome. Se alguém “é” uma mulher, isso certamente
não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo,
não porque os traços predefinidos de gênero e “pessoa” transcen-
dam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero

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nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente


nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece
interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e
regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que
se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções
políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e man-
tida. (BUTLER, 2015, p. 20)

Seu importante conceito de performatividade de gênero busca explicar


que ao longo da vida de um sujeito, seu gênero deverá ser performatizado,
justamente como um ato intencional, ao longo de toda a sua vida. E é nesta
performatização que está a possibilidade de inúmeras subversões. Dizer que a
performatividade de gênero de um indivíduo é sempre a mesma incorreria em
uma redução. Por exemplo, um sujeito do sexo masculino, que nasceu com
gênadas e corpo masculinos, e que é cisgênero, ou seja, como identifica-se
como um homem, e heterossexual, poderá garantir, que em nenhum momento
de sua vida se sentiu observado, objetificado, ou até ignorado, atributos que
podem ser, no senso comum, aliados ao conceito de mulher? A performativi-
dade de gênero é portanto um ato constante e inscrito na cultura, nos corpos e
nos gestos de cada indivíduo.
Munido de tais conceitos, este trabalho pretende evidenciar e analisar
algumas das maneiras como a personagem Cheryl, em O primeiro homem mau
(JULY, 2015) constrói e performatiza seu gênero, ou gêneros, na narrativa. Como
as consequências da performance de Cheryl atuam na constituição de seu self
diante das demais personagens, e como tais performatividades modificam a
narrativa, e com isso, o discurso, a cultura e a estética do mundo do romance
ao qual a personagem pertence.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 20. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004.

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ciada em 2 de dezembro de 1070. 20a. ed. ed. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2010.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. 13a. ed. São Paulo,
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HOUAISS, A.; VILLAR, M. DE S. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de


Janeiro: Objetiva, 2001.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

REPRESENTAÇÕES DA MASCULINIDADE LÉSBICA:


IDENTIDADE E SEXUALIDADE EM ALGUNS CONTOS
BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS1

Mariana Chaves Petersen


Mestranda em Letras (Estudos de Literatura)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
Departamento de Línguas Modernas
marianacpetersen@gmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Neste trabalho, parto dos estudos de gênero e dos estudos de masculinida-


des, focando as visões teóricas que veem a masculinidade como não redutível
ao corpo masculino, como é o caso de Judith Butler (1990, 2004) e de Jack
Halberstam (1998). Comento um tipo de masculinidade considerado subalterno,
subordinado à masculinidade hegemônica: a masculinidade feminina, mais
especificamente, quando combinada ao desejo lésbico. Por fim, analiso algumas
representações da masculinidade lésbica na literatura brasileira contemporânea,
presentes nos livros de contos Amora (2015), de Natália Borges Polesso, e Faz
duas semanas que meu amor (2008), de Ana Paula El-Jaick. Nessas obras, essas
formações identitárias não são apenas apresentadas como também ironizadas
e, por vezes, desconstruídas.
Palavras-chave: estudos de gênero; homocultura; masculinidade lésbica; litera-
tura brasileira contemporânea.

1 Este trabalho é um recorte de outro texto de minha autoria, intitulado “Da masculinidade hegemô-
nica às subalternas: a masculinidade lésbica em contos brasileiros contemporâneos.” In: Estação
Literária, v. 16, 2016, pp. 91-105.

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A masculinidade feminina lésbica

Judith Butler comenta, em “The end of sexual difference?” (2004), que o


desejo das lésbicas que se identificam como butch pode ser interpretado como
um tipo de masculinidade não encontrado nos homens. Segundo ela, se “mas-
culinidade” é o nome por meio do qual esse tipo de desejo faz sentido, “então
por que fugir do fato de que possa haver meios de a masculinidade emer-
gir em mulheres e de o feminino e o masculino não pertencerem a diferentes
corpos sexuados?” (BUTLER, 2004, p. 197, tradução minha). Jack Halberstam,2
no livro Female masculinity (1998), também argumenta que a masculinidade
não deve ser reduzida ao corpo masculino. O autor aponta que a masculini-
dade feminina tem sido ignorada tanto culturalmente quanto academicamente,
sendo reconhecida só nos anos 1990. Para ele, muitas masculinidades que ele
chama “heroicas” dependem da subordinação de masculinidades alternativas,
sendo uma delas a feminina. Halberstam deixa claro desde o início de seu
texto que seu enfoque não é nessas masculinidades heroicas, parte da “mascu-
linidade dominante”, que, para ele, parece naturalizar masculinidade e poder.
Seu estudo é, assim, indiferente a essa naturalização, vendo os tipos de mas-
culinidade subalterna como “os mais informativos sobre relações de gênero e
os mais geradores de mudança social” (HALBERSTAM, 1998, p. 3, tradução
minha). Halberstam reconhece que a masculinidade feminina é mal vista tanto
em contextos heterossexistas quanto em feministas. O autor reconhece que
esse tipo de masculinidade pode se apresentar não só como uma forma de
rebelião social como também coincidindo com a supremacia masculina – o
que explica, em parte, sua visão negativa dentro do feminismo. Tratando-se de
formações identitárias, há diversas possibilidades de masculinidade feminina,
conforme apresenta Halberstam, dentre os quais: tomboy, butch, stone butch,
transgender butch, FTM. Ao tratar de masculinidade lésbica, o autor reconhece
que butch acabou virando um termo geral.
A coincidência com o desejo lésbico parece fazer a masculinidade femi-
nina ainda mais ameaçadora, de acordo com Halberstam (1998), sendo este
cruzamento o maior enfoque de seu livro. No entanto, o autor reconhece que

2 Apesar de ter publicado Female masculinity como “Judith Halberstam” em 1998, hoje o autor iden-
tifica-se como “Jack”; por isso, ao longo desse texto, será tratado como “ele”, mesmo constando nas
referências como “Judith.”

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pode existir masculinidade em mulheres heterossexuais, as quais não sofreriam


tanto preconceito quanto as lésbicas. Também é importante ressaltar – para
eliminar qualquer dúvida – que há identidades lésbicas não-masculinas. Luce
Irigaray, por exemplo, se opõe fortemente à visão de que “Os impulsos que
levam a homossexual a escolher para si um objeto de satisfação são, neces-
sariamente, impulsos ‘masculinos’” (IRIGARAY, 1974, p. 121, tradução minha).
Todavia, a masculinidade é o enfoque de Halberstam, e ele dedica um capítulo
especificamente à masculinidade lésbica.
Tratando do caso butch-femme, Halberstam (1998) afirma que esses
casais foram responsáveis pela visibilidade do complexo desejo entre mulheres
na segunda metade do século XX. Nos anos 1970 e 1980, o autor aponta, essa
forma de role playing foi suprimida, de certa forma, por feministas lésbicas,
tendo voltado, em meio à incompreensão, nos anos 1990. Butler discorre sobre
as identidades butch e femme em Problemas de gênero (1990). A autora rebate
acusações de que butch e femme seriam réplicas de convenções heterossexu-
ais, podendo antes representar o lugar da “desnaturalização e mobilização das
categorias de gênero” (BUTLER, 2015, p. 66), sendo o gay para o hétero “não
o que uma cópia é para o original, mas, em vez disso, o que uma cópia é para
uma cópia” (BUTLER, 2015, p. 67, ênfase no original). Butler chama essas cate-
gorias, não só lésbicas como também gays, de “parodísticas”; segundo ela, elas
desnaturalizam o sexo. Tratando da cultura lésbica, a autora explica a produção
complexa do desejo que é caso butch-femme:3
a ‘identificação’ com a masculinidade que se manifesta na identi-
dade butch não é uma simples assimilação do retorno do lesbianismo
(sic) aos termos da heterossexualidade. Como explicou uma lésbica
femme, ela gosta que os seus garotos sejam garotas, significando
que ‘ser garota’ contextualiza e ressignifica a ‘masculinidade’ numa
identidade butch. Como resultado, essa masculinidade, se é que
podemos chamá-la assim, é sempre salientada em contraste com
um ‘corpo feminino’ culturalmente inteligível. (BUTLER, 2015, p.
213)

3 É claro que existem muitas outras possibilidades de casais lésbicos, os quais podem não se identifi-
car de acordo com essas categorias. No entanto, o caso butch-femme é o enfoque de Butler.

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Não é possível descrever esses desejos em termos de uma relação heteros-


sexual; é justamente a tensão sexual transgressora da masculinidade butch que
atrai a femme. Esse desejo ressignifica as próprias ideias de “masculinidade” e
de “corpo feminino”, dissonantemente conectados na butch. Há, dessa forma,
uma “ressignificação das categorias hegemônicas pelas quais elas [as identida-
des butch e femme] são possibilitadas”, colocando em questão “a própria noção
de uma identidade natural ou original” (BUTLER, 2015, p. 214). Abre-se a pos-
sibilidade de “deslocamento”, tão cara a Butler, que defende que se repense a
subversão da sexualidade e da identidade, não fora (pois não há lugar fora), mas
nos próprios termos do poder.
Quanto ao contexto brasileiro, é evidente que há diversos termos para
essas formações de identidade e sexualidade. Nádia Elisa Meinerz, em estudo
etnográfico sobre masculinidade feminina em contextos homoeróticos de
Porto Alegre, observou o uso de “termos pejorativos” como “caminhoneira”,
“machorra” e “sapatão”, que faziam referência a “um tipo de mulher não dese-
jável para a constituição de parcerias afetivo-sexuais” (MEINERZ, 2011, p. 24).
No entanto, a autora aponta que, entre mulheres de classe média, um estilo
“andrógino” pode ser valorizado, se diferenciando da masculinidade grosseira
atribuída às “caminhoneiras.”

A masculinidade lésbica na literatura brasileira contemporânea

Dois dos contos de Amora (2015), de Natália Borges Polesso, são inte-
ressantes para esta discussão. Em “Amora”, a jovem que dá nome à narrativa é
inicialmente uma menina “moleca”, que ganha todas as competições de xadrez
de que participa. Em certa passagem, ao ser convidada para ir no “flíper” com
amigos, “Amora avisou os pais, pegou a bicicleta do irmão e, antes de sair,
enrolou o cabelo para dentro do boné. Foram-se, três moleques” (POLESSO,
2015, p. 151). O comportamento de Amora parece o de uma típica tomboy, de
acordo com a definição de Halberstam: o ser tomboy “geralmente descreve um
período infantil estendido de masculinidade feminina”, e “tende a ser associado
com um desejo ‘natural’ de liberdades e mobilidades maiores, desfrutadas pelos
garotos” (HALBERSTAM, 1998, p. 5; p. 6, traduções minhas). Amora ainda é
uma criança, não vendo problema algum em ser “moleca”, assim como não
parecem ver seus pais. O infortúnio da menina começa quando ela se encontra
no “flíper” com Júnior, por quem tinha se apaixonado anteriormente: em um

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segundo encontro, ele não a reconhece, pois pensa que ela é um menino. Após
passar por essa situação, Amora se observa com estranhamento no espelho:
O boné, o cabelo preso, a camiseta de banda comprida demais,
lisa, rente ao corpo, sem os relevos que outras meninas de sua
idade já tinham, a bermuda jeans rasgada, o joelho ostentando
casca de ferida, os chinelos preto emoldurando as unhas compri-
das, rachadas. Jogou o boné no chão e pensou que sem ele talvez
Júnior a tivesse reconhecido. (POLESSO, 2015, p. 152)

Entretanto, a masculinidade infantil de Amora não iria se prolongar por


muito tempo: nos oito meses em que estava de coração partido por Júnior,
ela entra na puberdade, passando de um corpo “de torre reta” ao “de rainha”,
quando “Dois pequenos montes brotaram no seu peito” (POLESSO, 2015, p.
152). É então que ela se apaixona novamente, dessa vez, por uma menina
– Angélica. A identidade tomboy de Amora não parece lhe trazer mais descon-
fortos após a puberdade; aparentemente, ficou em sua infância. Como observa
Halberstam (1998), essa identidade é tolerada enquanto infantil, só acarretando
maiores consequências quando mantida após a puberdade, fase em que a força
da conformidade de gênero pesa mais.
Em “Flor, flores, ferro retorcido”, a narradora relembra um momento de
sua infância, no qual conheceu Flor. Esta é descrita como parecendo o músico
Renato Borghetti: “Os cabelos crespos lhe escorriam como fios rebeldes pelos
ombros. Talvez fosse o fato de estar sempre de chapéu e alpargatas que lem-
brasse um pouco o Renato Borghetti, o cara da gaita” (POLESSO, 2015, p. 56).
Flor é sua vizinha; tem uma oficina perto de sua casa. Certa vez, a menina
escuta seus parentes se questionando sobre a outra: “como pode uma machorra
daquelas?” (POLESSO, 2015, pp. 57-58). Depois de cair por cima da cerca de
Flor, a narradora é ajudada por ela; nesse momento, sua mãe chega, e a filha
pergunta por que a vizinha era uma “machorra” na frente da própria, o que
faz com que a mãe se envergonhe. Mais tarde, após muita insistência, a filha
consegue arrancar a definição de “machorra” da mãe: “É uma doença, minha
filha. A vizinha é doente. [...] Doença de que, mãe? [...] De ferro retorcido que
tem lá naquele galpão” (POLESSO, 2015, p. 59). A menina, sem entender nada,
deixa flores à vizinha, com um bilhete estimando suas melhoras. Quando se
encontram, Flor, carinhosamente, agradece as flores e a beija. Celói, amiga da
narradora, tenta explicar a ela a sexualidade de Flor; para isso, Celói faz à amiga

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

uma série de perguntas calcadas em binarismos de gênero, que evidentemente


têm uma resposta “certa” para uma menina. A narradora fracassa em suas res-
postas, e a outra conclui: “Então tu é machorra” (POLESSO, 2015, p. 62). Nesse
momento, desolada, a menina se encontra novamente com Flor, comentando
que talvez fosse doente como ela, e recebendo então uma nova demonstração
de afeto. O choque entre a delicadeza de Flor e a grosseria daqueles que a
chama pejorativamente de “machorra” desvela com sensibilidade a ignorância
desse tipo de comportamento. As tentativas dos adultos de omitir definições da
menina, porque sabem que estão desrespeitando a moça, só mostram como o
silêncio, aliado ao preconceito, pode causar confusão e dor.
De autoria de Ana Paula El-Jaick, Faz duas semanas que meu amor e outros
contos para mulheres (2008) também traz contos que abordam a masculinidade
lésbica. Em “Perfil do consumidor: uma caminhoneira”, há uma breve descrição
deste perfil, seguida de um questionário com preferências dessa “consumidora”:
desde seu perfume preferido a sua frase predileta. A “caminhoneira”, referida
aqui como “A lésbica mais identificável” (EL-JAICK, 2008, p. 25), é a butch, con-
forme discutimos anteriormente; de fato, o termo anglófono é usado no conto.
Por meio da narrativa, sabemos que a atenção sobre elas vem crescendo; resta
saber como “entrarão para a história”:
[se] como aquelas mulheres que não usam batom, gostam de
cabelos curtos e motocicletas, ou como visionárias que souberam
contornar as pressões até mesmo dentro da comunidade GLBT e,
sobretudo, deixaram a vontade-de-ser-o-que-é aflorar, levando as
caminhoneiras à liberdade de expressão. (EL-JAICK, 2008, p. 25,
ênfase no original)

O texto retrata essas mulheres “corajosas” e sem “frescura” por meio de


estereótipos, de forma humorística, permeada de referências à cultura butch. Pelo
questionário, vemos que as preferências dessa “consumidora” estão em consonân-
cia com uma masculinidade acentuada: seu perfume é o “Le Male”; desodorante,
“Axe”; sabonete, “o que minha mulher compra”; quanto à roupa íntima, a resposta
é “samba-canção” (EL-JAICK, 2008, p. 25). Ela gosta de futebol, de “chopinho”, de
Cássia Eller, e seu livro preferido não poderia ter sido escolhido com maior intuito
humorístico: “Guia 4 rodas” (EL-JAICK, 2008, p. 26). Nesse caso, como vimos, a
masculinidade se inscreve de forma diferente ao se tratar de um corpo feminino;
é uma masculinidade que não se encontra em homens. Quanto a seu desejo, são

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várias as menções dessa “caminhoneira” a sua “mulher”, e uma das entradas do


questionário nos diz ela tem uma “tara” por sapato de salto alto. Trata-se de um
caso butch-femme, conforme o discutido por Butler? Se acreditarmos que o desejo
da “caminhoneira” e sua companheira correspondem, podemos supor que a
última se identifique como femme. O conto que antecede esse é justamente “Perfil
do consumidor: uma lesbian chic”, que constrói uma identidade feminina que se
opõe à da “caminhoneira.” A “lesbian chic” usa salto alto, rímel, esmalte, tailleur, e
tem uma personal stylist; em suma, é “Chiquérrima!!!” (EL-JAICK, 2008, p. 21). Ela
é construída por estereótipos de classe e estilo, com referências mais sutis à cul-
tura lésbica, como ter como escritora favorita Ana Cristina Cesar. Representando
a feminilidade lésbica, a “lesbian chic” aqui retratada dá parâmetros para que
depois, ao se ler o perfil da “caminhoneira”, criem-se oposições – e humor.
Já o conto “Jogo dos dez erros” brinca com a visão limitada que prevê
alguma masculinidade em toda mulher lésbica. Sobre a aparência da narra-
dora, a advogada Adriana, só sabemos que ela arruma seu cabelo e que usa
batom. Na narrativa, ela passa um dia se defrontando com diversos estereótipos
segundo os quais é vista por algumas pessoas, que sabem de sua sexuali-
dade. Muitos deles presumem uma suposta masculinidade de Adriana, o que
ela refuta: os comentários, além de limitados, erram quanto à narradora, que
mais se aproxima dos padrões de feminilidade em tais casos. Já no início do
conto, ao sair do elevador se coçando – estava com candidíase –, Adriana ouve
comentários do tipo: “‘Parece um homem coçando o saco’, ‘Só faltava cuspir
no chão’” (EL-JAICK, 2008, p. 81); o taxista que a leva ao médico presume que
ela goste de futebol, o que não é verdade; ao encontrar um amigo dono de uma
concessionária, ele oferece a ela picapes de cabine dupla, dizendo: “você vai
ficar de queixo caído, cara” (EL-JAICK, 2008, p. 83), sendo surpreendido pela
resposta de que ela não sabe dirigir; por fim, ao chegar em casa, um vizinho de
porta não oferece ajuda a ela para carregar as sacolas de compras, presumindo
que ela seja forte. Pela escrita, criamos uma imagem de Adriana como sendo
uma mulher complexa, não-passível de ser reduzida a um outro polo. Não que
essa seja uma crítica àquelas que se identificam com essas representações mais
oposicionais: Adriana mostra um caminho, segundo o qual uma mulher lés-
bica, como qualquer ser humano, traz características essencialmente atribuídas
a diferentes gêneros e identidades. Dessa forma, ao longo da narrativa, estere-
ótipos são descontruídos, e, no fim, o que importa é que Adriana chega a sua
casa, após um longo dia, feliz por se reencontrar com sua parceira.

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Referências

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IRIGARAY, Luce. Speculum de l’autre femme. Paris: Les Éditions de Minuit, 1974
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MEINERZ, Nádia Elisa. Mulheres e masculinidades: etnografia sobre afinidades de


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em Porto Alegre (Tese de doutorado). Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências
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Acesso: 13 Nov. 2016.

POLESSO, Natália Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015.

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ENCENANDO A HOMOSSEXUALIDADE:
LEITURA DA FICCIONALIZAÇÃO DE SI EM
A SEPARAÇÃO DE DOIS ESPOSOS, DE QORPO SANTO

Renata Pimentel
Doutora em Teoria da Literatura/UFPE
Professora do Departamento de Letras da UFRPE
renatapimentel@gmail.com

Sherry Almeida
Doutora em Teoria da Literatura/UFPE
Professora do Departamento de Letras da UFRPE
sherry_almeida@yahoo.com.br

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo
A literatura, enquanto arte, constitui-se espaço privilegiado para a manifestação
de discursos transgressores ao discurso hegemônico de uma sociedade. Dessa
forma, ela assume importância fundamental na construção da criticidade, bem
como na sensibilização dos indivíduos. A partir dessas considerações, este tra-
balho apresenta uma leitura da homossexualidade na peça A Separação de Dois
Esposos de Qorpo Santo – dramaturgo que viveu e produziu sua obra durante o
século XIX; além de ter sido o primeiro a propor a encenação desse tema-tabu
no teatro brasileiro. Como base teórico-crítica de análise, este estudo vale-se
do conceito de ficcionalização de si de Renata Pimentel (2011), além do pen-
samento de Michel Foucault (1997) sobre a homossexualidade no século XIX.
Palavras-chave: Qorpo Santo; homossexualidade, ficcionalização de si

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Introdução

A literatura fala sobre si e sobre todos os temas do humano. Nela cabe


falar da “mulher de nuvens” ao “preço do feijão” – para aludir às palavras do
poeta Ferreira Gullar. Cabem na literatura, inclusive, os temas que se consti-
tuem conflituosos no tecido discursivo social, como a homossexualidade.
Principalmente, na atual conjuntura mundial, que apresenta esse assunto
como ordem do dia, urge mostrar as vozes que compuseram o discurso que
transgrediu, ao longo da história, o silenciamento hegemônico sobre o tema.
Dessa forma, os estudos literários contribuem imensamente para tornar cada
vez mais frequente, nos meios acadêmicos, o debate sobre diversidade sexual.
Nesse sentido, esta análise pretende mostrar na peça A Separação de Dois
Esposos como Qorpo Santo encena o tema da homossexualidade1, a partir da
ideia de que nela – assim como em toda sua obra – sua opinião, sua voz autoral
sobre o assunto, é figurada por meio da estratégia estética de ficcionalização de
si (PIMENTEL, 2011).

Qorpo Santo ficcionalizando (su)a homossexualidade

Embora, na literatura contemporânea brasileira, as últimas três décadas


do século XX tenham se configurado como o período em que escritores osten-
sivamente passaram a figurar a questão da homossexualidade, sabemos que
tal temática é representada esteticamente em nossas letras desde o século XIX,
ainda que de maneira incipiente: mais notoriamente conhecidas desse período
são as obras O Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha, e O Cortiço (1890)
de Aluísio Azevedo. Entretanto, pesquisadores têm nos apontado outras obras
– marginais ao cânone – que foram escritas anteriormente a essas e, portanto,
que podem ser consideradas precursoras da chamada literatura gay brasileira,
tal como Um homem Gasto (1885), de Ferreira Leal. (Cf. THOMÉ, 2009).
Outro nome da literatura brasileira desse período que (re)vela a homosse-
xualidade (e se revela) em sua produção ficcional, mais especificamente na sua

1 Importante ressaltar que iremos nos deter a especular somente o texto dramtúrgico, e não sua mon-
tagem.

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dramaturgia, é Qorpo Santo2. Esquecido até 1950, quando teve a obra drama-
túrgica – composta por dezessete peças, sendo uma inacabada – descoberta
pelo professor Aníbal Damasceno Ferreira, o escritor gaúcho tem até hoje uma
nuvem crítica turbulenta em torno de seu teatro: tomado inicialmente como
precursor do teatro do absurso; depois associado ao surrealismo e, por fim,
reconciliado à tradição teatral brasileira do século XIX3.
Qorpo Santo teve uma vida conflituosa: foi interditado pela própria
esposa, obrigado a viver separado dos filhos, pois a família o abandonou por
ser tomado como louco mesmo sem nunca se ter obtido diagnóstico conclusivo
sobre os seus distúrbios mentais. Viveu preso às condições sociais e morais da
sua época e às suas convicções de homem católico, viveu na oscilação entre a
necessidade de se manter fiel ao casamento e as exigências de seus impulsos
sexuais, sendo esse o conflito que se constitui um dos temas fundamentais de
seu teatro.
Em A Separação dos Dois Esposos, comédia em três atos, Qorpo Santo
parece falar, pela boca da personagem Esculápio, sobre esse dilema de manter-
se fiel ao casamento e a necessidade de buscar as “relações naturais”4:
“Estou sempre em luta com esses malvados, sempre a mais perfeita
moral está sendo o guia de meus passos! Os outros riem-se! Me
indigno, e nada faço. Parece que o que se quer é gozar; gozar e
mais gozar. Ninguém quer saber do modo: se lhe é lícito ou ilícito,

2 Nascido em 1829, em Triunfo (RS) fora batizado como José Joaquim de Campos Leão, além de
dramaturgo, foi poeta, jornalista, tipógrafo, professor, gramático; exerceu ainda as profissões de co-
merciante, vereador e delegado. O nome com que assina sua produção literária já aponta para uma
ironia transgressiva e já “encena” o paradoxo norteador de sua criação: santifica o que há de mais
carnal no humano, seu corpo – escrito “Qorpo” de acordo com sua proposta de reformulação orto-
gráfica da língua portuguesa. De per si, essa proposta linguística é também uma atitude trangressiva
às normas vigentes.
3 Ver Yan Michalski (1985); Eudinyr Fraga (1988) e Flávio Aguiar (1975), respectivamente.
4 Referência ao título de uma outra peça de Qorpo Santo: As Relações Naturais. Trata-se de uma co-
média em quatro atos cujos monólogos das personagens encaminham para que a ação dê lugar a di-
álogos sobre as relações humanas, sendo, por vezes, impossível estabelecer conexões convencionais
entre as personagens, significativamente dotadas de nomes que sugerem sua função na sociedade. A
peça parece intentar conciliar as relações naturais com a moral da época, mas acaba por evidenciar
as tantas contradições humanas típicas de moralismos e comportamentos que questionam o status
quo.

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nem tampouco das conseqüências boas ou más que podem resul-


tar!...” (QORPO-SANTO, [s.d.]: 238)

Essa peça é, provavelmente, a primeira obra dramatúrgica brasileira a


apresentar um casal homossexual, Tatu e Tamanduá. Eles são os criados de
Esculápio e Farmárcia – o casal que chega a se matar por falência da relação
matrimonial, marcada por desconfiança mútua e traição.
O pensamento ocidental marca o século XIX como o início de uma “des-
cristianização” da sociedade moderna, em que a verdade da identidade está
atrelada à expansão e à intensificação das enunciações em torno do desejo
sexual, particularmente na revelação de seus segredos. Como observou Michel
Foucault (1997), a discursividade do desejo, que antes se concentrava apenas
em práticas institucionais nas salas de aula, nos seminários e confessionários,
expande-se a outras dimensões do tecido social. E neste mesmo século, ainda
segundo Foucault, teria se dado a “invenção do homossexual”, como uma cons-
trução social, a qual permitiria ao poder a capacidade de identificar, vigiar e
punir o tal desejo desviante. Por outro lado, porém, uma espécie de “armadi-
lha”: a norma heterossexual se vê definida e obrigada a existir em relação ao seu
“oposto”. Ficam, então, “atadas” a norma e a anti-norma; o hétero e o homos-
sexual, como duas faces de uma mesma pulsão sexual.
Se no século XIX, no Brasil, há um apagamento da homossexualidade nos
registros oficiais e, mesmo na literatura, o tema é, então, quase que inexistente,
a dramaturgia de Qorpo Santo constitui-se (re)veladora de um discurso da anti-
norma sexual abafado pela voz hegemônica da norma sexual. Questionado
pelos seus contemporâneos, ele falou da sexualidade de maneira estarrecedora
para a moral de uma época em que ir ao teatro era atitude dita de “bom-tom”.
Na obra de Qorpo Santo, junto a outros aspectos conflitantes de sua vida,
está presente a “sua” verdade, ou pelo menos o que para ele se constituía uma
verdade. Portanto, o seu discurso revela, indiscutivelmente, um caráter também
confessional, em virtude, quem sabe, das condições de sua existência atormen-
tada. Dessa forma, cabe aqui a leitura da ficcionalização de si empreendida
pelo dramaturgo gaúcho. Para tanto, não buscamos necessariamente a referên-
cia à biografia, mas sim a instância ficcional, “essa voz que se desloca pelo texto
prendendo-se tanto às personagens quanto à diegese”. (PIMENTEL, 2011, 89).
Buscamos a voz que marca com a ‘originalidade’ de um indíviduo (no sentido
de subjetividade pessoal, mesmo) o debate sobre o tema.

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“Este indivíduo escritor destaca-se do todo social (como o gênio,


o louco, o artista; figuras desviantes) e pode falar tanto sobre a
realidade e a sociedade, quanto observar além delas, de “fora”,
com mais agudo olhar. O espaço literário, valorizado como espécie
de desvio e consubstanciado num espaço individualizante (seja do
produtor, seja do leitor), legitima-se. Por não estar comprometida
com uma específica responsabilidade social, apesar de contextu-
alizável, a literatura adquire liberdade para revelar à sociedade a
loucura; propor questões e desafios; subverter e transgredir, instau-
rando a dúvida.” (PIMENTEL, 2011, 88)

Qorpo Santo mostra, em suas peças, como o escritor diversas vezes dis-
tancia-se de seu “ser biográfico”, criando novas consciências, experimentando
novas “vivências”, até invertendo o papel dele esperado para se fazer parte
integrante do público e experimentar o “ver-se encenado”, o “ser lido”.
Nesse sentido, pensemos a “encenação” da homossexualidade em
A Separação de Dois Esposos a partir da ficcionalização de si efetuada por
Qorpo Santo. Encontramos, nessa peça, vários índices da representação da
homossexualidade.
Já no segundo ato, em que o conflito ainda se dá em torno do casal
Esculápio e Farmácia, é possível especular a encenação da homossexualidade.
Há aspectos lexicais curiosos na fala de Farmárcia ao interpelar duas de suas
três filhas sobre suas companhias:
“Sentem-se, minhas filhas. Vocês hão de estra muito cansadas, com
fome, com saudades da mamãe, não é? Conta-me, Lídia, como está
a tua camarada? E você, Idalina, há de me dizer como ficou o seu
namorado; pois eu sei que já vai gostando do primo Pedrinho! Esta
outra eu sei que não namora, nem é de muitas camaradagens, por
isso eu nada pergunto a ela.” (QORPO-SANTO, [s.d.]: 35)

Atente-se para o fato de que a uma filha Farmácia pergunta sobre o


“namorado” e à outra sobre a “camarada”. Embora não possamos afirmar que a
intenção tenha sido marcar a afetividade heterossexual de uma e a afetividade
homossexual da outra, é possível especular que há nesta distinção de compa-
nhias de Idalina e Lídia uma consciência de Qorpo Santo para as afinidades
eletivas de cada indivíduo. Noutras palavras, há aqueles que buscam relacionar-
se com o sexo oposto e outros com o mesmo sexo. O dramaturgo coloca num
mesmo nível de importância a amizade de Lídia com outra mulher e o namoro

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de Idalina com homens. Corrobora essa hipótese o fato de Farmácia dizer que
não perguntará nada a Plínia, a terceira filha, por não ter ela nem “camaradas”
nem namorados.
Por sua vez, o terceiro ato traz mais claramente o tema da homossexuali-
dade, ou mais precisamente, vemos o casal homossexual discutindo sua relação
– Tatu e Tamanduá. A começar pela rubrica (“Note-se: estas figuras devem ser
as mais exóticas que se pode imaginar”), na qual se percebe a preocupação do
dramaturgo em caracterizar as personagens de maneira a causar estranheza aos
espectadores. Isso permite especular a marcação do estereórtipo da diferença
na estética homossexual – aqui próxima do que se pode nomear como queer,
“estranho”, “exótico”.
Há ainda os vários momentos de demonstrações de afeto (verbais e ges-
tuais) entre Tatu e Tamanduá:
TAMANDUÁ – (...)Agradecido, senhor Tatu, eu sou todo seu. Venha
de lá um abraço (abraçam-se).

TATU – Por quê, meu queridinho? (Afagando-o) Que te fizeram?


(QORPO-SANTO, Opus Cit.: 247)

Destaca-se no diálogo final o conflito fundamental: Tamanduá quer casar


com Tatu, mas este recusa-se alegando que, não sendo mulher, mesmo nutrindo
afeto, só poderia casar-se espiritualmente:
TAMANDUÁ – Ora por quê! Inda pergunta? Não se lembra que
por três vezes quis casar carnal e espiritualmente... com seu primo
Eustaquinho; e depois (empurrando-o) até com você! E que nem
ele, nem você têm querido!? Fazendo assim penar esta alma, este
coração!... Esta cabeça!...

TATU – O diabo! Tu estás variando! Quanto ao espírito, nem todos


os demônios que habitam por todas as regiões são capazes de nos
divorciar; e, quanto ao parir..., mais devagar; eu sou homem, (pon-
do-lhe a mão no ombro) não sou mulher! E tu hás de saber que é o
vício mais danoso que o homem pode praticar!

TAMANDUÁ – Mas que queres? (Ainda com aspecto imperti-


nente.) Apaixonar-te por ti de todos os modos! Paixão do corpo!
E, se tu não quiseres satisfazer este desejo ou loucura..., vou...,

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faço..., aconteço..., pego..., levo... (atirando-lhe com as mãos), faço


o diabo! (Gritando.) (QORPO-SANTO, [s.d.]: 248)

Apesar de enunciada a paixão recíproca que se mostra em pulsão sexual


por parte das personagens, o discurso da norma se impõe e Tatu se nega ao
casamento “carnal” com Tamanduá:
TATU – Pois, já que não se contenta com o nosso casamento espi-
ritual somente, sendo ambos homens, já que quer o imundo e
absurdo casamento carnal, declaro-lhe que não sou mais seu sócio
(empurrando-o).

TAMANDUÁ (empurrando-o também) – Pois eu também não sou


mais seu! (Há a mais renhida luta entre eles, em que rompem cha-
péus, descalçam-se, rasgam casacos e findam a comédia saindo aos
gritos:) Fiquemos sem chapéu, sem botas, sem camisa! Mas esta-
mos divorciados carnalmente e espiritualmente! Não! Não! Não!
(Perto das portas por onde têm de sair; e voltando o rosto para a
cena, com os chapéus ou restos destes levantados:) Viva!... Viva!...
Viva!... (idem)

Chamam atenção os nomes das personagens – sempre bastante sig-


nificativos na dramaturgia de Qorpo Santo: Tatu, animal que vive em tocas,
esconderijos, e que se encarapuça em sua “armadura natural” para proteger-se
é, na peça, a personagem que foge de “sua” verdade, não querendo assumir
para a sociedade um enlace homossexual; já Tamanduá, animal que fuça, que,
para se manter vivo, busca seu alimento nos buracos, no profundo da terra, é na
peça personagem que teria proposto casamento, em momentos distintos, a dois
homens: ele quem “cutuca” o que não se mostra – Tamanduá é o que revela
“sua” verdade e as verdades escondidas de outrem.
Poderíamos, com isso, dizer que Tatu e Tamanduá são duas máscaras
de Qorpo Santo e, juntamente, com Esculápio e Farmácia compõem o tecido
discursivo ficcionalizado do dramaturgo gaúcho nessa peça. Especificamente,
no que tange à homossexualidade, percebemos que Qorpo Santo fala, por um
lado, pela boca de Tatu, o discurso da moral de sua época, da norma sexual
vigente hegemonicamente no século XIX (e até hoje); por outro, ele fala por
meio de Tamanduá o discurso trangressivo da anti-norma sexual, e (re)vela a
homossexualidade enquanto condição pessoal e a homossexualidade enquanto
fato social existente no seu tempo e em todos os tempos.

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Considerações Finais

A ficcionalização de si constitui-se uma estratégia textual da qual se valem


escritores para revelar à sociedade discursos transgressores. A partir dela, o artista
da palavra marca sua originalidade possível dentro do espaço discursivo des-
viante por excelência que é a literatura. A pessoa histórica e as personas ficcionais
de Qorpo Santo constituem-se emblemáticas da estratégia de ficcionalização
de si, porque a proposta do escritor é encenar, de maneira naturalizada – para
espectadores do teatro brasileiro do século XIX - um tema polêmico como a
homossexualidade. Isto é, a discussão entre o casal homossexual de A Separação
de Dois Esposos põe em cena um tema-tabu num contexto do cotidiano de pes-
soas comuns subvertendo, assim, o apagamento do assunto no Brasil daquele
período. Embora com o fim moralizante, a homossexualidade torna-se visível e o
teatro cumpre seu papel político5 de incitar a reflexão e discussão na sociedade.

5 Sobre a noção política do teatro, ver Denis Guénoun (2003)

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Referências

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 12 ed. Rio de


Janeiro, Graal, 1997.

FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo. São Paulo: Perspectiva, 1988.

GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: Uma ideia (política) do teatro. Rio de
Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

MICHALSKI, Yan.  O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1985. p. 36.

QORPO-SANTO, José Joaquim de Campos Leão. A Separação de Dois Esposos.


Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003007.pdf.
Acesso em 28 de junho de 2016.

THOMÉ, Ricardo. Eros Proibido – as ideologias em torno da questão homoerótica na


literatura brasileira. Rio de Janeiro: Razão Cultural, 2009.

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BIOGRAFEMAS HOMOCULTURAIS NO ROMANCE


A TRAIÇÃO DE RITA HAYWORTH, DE MANUEL PUIG

Elisabete Costa Silva


Graduanda em Letras / UESC
eliscsk@hotmail.com

André Luis Mitidieri Pereira


Pós-Doutor em Estudos Literários / UFRGS
Professor Titular / Departamento de Letras e Artes / UESC
mitidierister@gmail.com

GT 26 - Literaturas e LGBTT’s.

Resumo

O presente trabalho consiste na leitura e análise do romance A traição de Rita


Hayworth, de Manuel Puig, a fim de enfatizar sua abordagem biografemá-
tica à atriz em questão. Os suportes analíticos por nós privilegiados oferecem
destaque às noções de “espaço biográfico” (ARFUCH, 2010), “biografema”
(BARTHES, 2003; DOSSE, 2009), “homocultura” (BENTO; GARCIA; LOPES,
2004; FOUCAULT, 2010; ERIBON, 2000), “literatura homoerótica” (SILVA,
2009) e, finalmente, “biografema homocultural” (MITIDIERI, 2015). Como resul-
tados, buscamos vincular nossa fundamentação teórica à leitura do corpus, com
vistas a contribuir para ampliar o desenvolvimento da noção de “biografema
homocultural”, identificando-o à figura de Rita Hayworth, conforme represen-
tada pelo autor homossexual argentino.
Palavras-chave: espaço biográfico; biografema; homocultura; literatura homo-
erótica; biografema homocultural.

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Introdução

O contato com os escritos de Manuel Puig, desde os primeiros instan-


tes, dá-se de forma marcante. Ao deparar-nos com o romance A traição de
Rita Hayworth, logo percebemos particularidades desse autor: a incorporação
de formas narrativas até então pouco utilizadas, como diálogos ao telefone,
cartas, cenas de filmes e até mesmo diários íntimos. Além disso, os desejos
por satisfazer, a ausência da figura paterna, a forte ligação com a mãe e, em
especial, a paixão pelo cinema acabam atuando como traços autobiográficos
em sua obra.
Nesse contexto, resolvemos analisar esse romance com o objetivo de des-
tacar a sua abordagem biografemática, no que diz respeito à atriz nomeada em
seu título. Para tanto, em pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico, os supor-
tes analíticos por nós privilegiados ofereceram destaque às noções de “espaço
biográfico” (ARFUCH, 2010), “biografema” (BARTHES, 2003; DOSSE, 2009),
“homocultura” (BENTO; GARCIA; LOPES, 2004; FOUCAULT, 2010; ERIBON,
2000), “literatura homoerótica” (SILVA, 2009) e, finalmente, “biografema homo-
cultural” (MITIDIERI, 2015).
A partir desse suporte teórico, buscamos demonstrar, a princípio, como
o autor Manuel Puig insere-se na chamada “literatura homoerótica” e em que
medida a atriz Rita Hayworth torna-se figura relevante para esse cenário. Além
disso, ao fixar a noção de “biografema homocultural”, visamos a contribuir com
a suplementação do conceito barthesiano de biografema quando ao tratar de
autores/ personagens homossexuais, bem como quando se refere à homocultura.

Do espaço biográfico

Falar de gênero(s) biográfico(s) implica, antes de tudo, pensar na sua


estruturação, suas formas e seus meios de viabilização. Foi nesse contexto
que estudamos a teórica argentina Leonor Arfuch (2010): para ela, o chamado
“espaço biográfico” trata-se de um terreno interdiscursivo que abriga não apenas
a biografia e gêneros vizinhos, mas também outros horizontes de expectativa
com temática semelhante ou, até mesmo, gêneros hibridizados, pincelados por
tonalidades autobiográficas.
Dessa forma, a autora põe formas canônicas do discurso biográfico em
convivência com possíveis variantes desses relatos na contemporaneidade.

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Fugimos, assim, à noção dos gêneros tradicionalmente estabelecida, o que torna


possível apreciar “não somente a eficácia simbólica da produção/reprodução
dos cânones, mas também os seus desvios e infrações, a novidade, o ‘fora do
gênero’” (ARFUCH, 2010, p. 132).
Também nessa perspectiva de infração do gênero, segundo a qual nosso
corpus é aceito como parte do espaço biográfico, trabalhamos com Roland
Barthes por Roland Barthes (2003). Por meio de uma escrita fragmentada e
repleta de laços intertextuais, vimos o sujeito do estudioso francês aparecer ora
em primeira pessoa, ao incitar seu o imaginário, ora como terceira, colocado
à distância, como um duplo, que o permitiu ausentar-se de si mesmo. Vimos,
até mesmo, como segunda, nas sequências em que se autoacusa e, por conse-
guinte, se confessa: “você faz aqui uma declaração de humildade” (BARTHES,
2003, p. 118).
Essa leitura, transgressora por excelência, nos permitiu discutir a possi-
bilidade de uma escrita móvel e fluida, que oferece sinais para interpretar o
indivíduo a partir de sua multiplicidade. A esses sinais, pormenores da vida do
sujeito biografado, Barthes atribui o nome de biografemas:
Assim como se decompõe o odor da violeta ou o gosto do chá,
um e outro aparentemente tão especiais, tão inimitáveis, tão ine-
fáveis, em alguns elementos cuja combinação sutil produz toda a
identidade da substância, assim ele adivinhava que a identidade de
cada amigo, que o tornava amável, dependia de uma combinação
delicadamente dosada, e desde então absolutamente original, de
traços miúdos reunidos em cenas fugidas, no dia-a-dia (BARTHES,
2003, p. 78).

A partir desses vestígios, muitas vezes vazios de significação prévia, foi


possível tratar o texto entre princípios opostos: por um lado, a vida pessoal do
autor e, por outro, a relação consciente (ou não) que ela estabelece com obra
literária. Essa possibilidade representa um novo modo de apropriar-se do autor,
de “reconstrui-lo a partir das mais diversas interpretações sobre sua história
sem, no entanto, correr o risco de cair no modelo clássico de psicologismo e
determinismo” (DOSSE, 2009, p. 82).

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Da homocultura

Para compreender o caráter homoerótico da obra literária em investiga-


ção, trabalhamos com a noção de homocultura. Michel Foucault (2010, p. 119),
em entrevista com G. Barbedette, afirma:
[O direito dos gays] está ainda muito mais ligado a atitudes, a esque-
mas de comportamento do que a formulações legais. [...] Não se
trata somente de integrar essa pequena prática bizarra, que consiste
em fazer amor com alguém do mesmo sexo, nos campos culturais
preexistentes; trata-se de criar formas culturais.

Com isso, o filósofo aponta para uma busca por lugares móveis de sen-
tido, em vez de enquadramentos ao que é predominantemente unicultural. Esse
processo demonstra-se fundamental, pois implica no abandono, por sujeitos
que estão à margem, de posturas e discursos daqueles que estão ao centro.
Também nesse viés, outro autor contribuiu para nossa pesquisa. Trata-se
de Didier Eribon (2000), quando ao tratar de identidade enquanto um espaço
de contestações e de conflitos políticos e culturais. Ele pontua:
A criação de uma identidade permite orientar a vida de pessoas
e grupos. […] As identidades gays e lésbicas são estratégias de
defesa destinadas a proteger os homossexuais da sociedade que
os ataca. Elas definem espaços sociais e simbólicos de interação,
além de serem guia para o desenvolvimento pessoal desses sujeitos
(ERIBON, 2000, p. 9, tradução nossa).

Grosso modo, o que Eribon nos comunica é que a ordem social determina
a esses indivíduos um status inferiorizado, o que interfere em profundidade
na sua personalidade e mesmo na sua identidade. É justamente aí que entra o
papel de processos culturais que abranjam, em suas relações, sistemas simbóli-
cos e significados referentes ao contexto homossexual.
Em suma, o que chamamos aqui de homocultura trata-se de um lócus
onde se estabelece uma rede de conversações e mobilizam-se o respeito e
os direitos das ditas minorias sexuais. É, na verdade, um enfrentamento, uma
subversão ao sistema hegemônico, a fim de dar voz às diferentes experiên-
cias sexuais, tanto na realidade, como na ficção (Cf. BENTO; GARCIA; LOPES,
2004).

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Dessa forma, investir na homocultura significa contribuir para a enunciação


de um modo de amar homoerótico. Significa expor essas relações, essa intimi-
dade amorosa, e afastar os corpos, até então marginalizados, das normatizações
e do lugar de submissão que sempre assumiram. Significa, enfim, desestabilizar
os modos de perceber a realidade e de interpretar as subjetividades.
Nesse ensejo, sem perder de vista a mútua implicação entre linguagem e
vida, essa noção foi acolhida pela ótica dos estudos literários. Isso porque, ao
codificar as mediações e (des)construir verdades, a literatura apresenta-se como
lugar privilegiado para a revisão de noções de ordem fundamentalista, refletidos
pelo cânone. Essa revisão, chamamos aqui de “literatura homoerótica”. Sobre
ela, Silva (2009, p. 102) fala:
[Trata-se de] todo e qualquer texto literário ou de ficção que repre-
sente prioritariamente (não exclusivamente) questões referentes à
cultura gay, seja através de personagens (centrais), de narradores,
de falas, de discursos, de práticas discursivas, de alusões ao sub-
mundo gay, que exponham ou não conflitos envolvendo os gays e
os não gays, numa demonstração de que a ficção vislumbra uma
sociedade tolerante à diversidade sexual, ao mesmo tempo em que
a mimetiza como homofóbica. As obras que podem ser ‘rotula-
das’ com essa expressão traduzem no âmbito linguístico-artístico
o desejo gay.

Essa literatura, segundo o autor, não deve ser consolidada como “manifes-
tação ou registro de pessoas homoafetivas que se apropriam do ato de escrever
para relatar seu cotidiano” (SILVA, 2009, p. 103), mas como uma produção de
grande importância para a literatura contemporânea, que merece ser lida, estu-
dada e questionada.
Por fim, foi a partir das leituras e discussões acima destacadas que pude-
mos chegar ao conceito-chave da nossa pesquisa: biografema homocultural:
A noção de biografema se conjuga à ‘homocultura’ enquanto lócus
de estudo e representação de expressões culturais, produzidas por
sujeitos homossexuais e/ou a seu respeito, bem como das visões e
dos diálogos que proporcionam, a partir da ruptura com os discur-
sos hegemônicos e da crítica às heteronormatividades (MITIDIERI,
2015, p. 48).

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Trata-se, portanto, de vestígios da vida do autor articulados por meio de


diálogos e visões que viabilizam a quebra de discursos hegemônicos e, mais do
que isso, representam a cultura produzida por/ sobre sujeitos da cena LGBTT.

Da análise do corpus: um biografema homocultural

Nascido em Buenos Aires, no ano de 1932, Juan Manuel Puig Delledonne


tornou-se conhecido por sua complexa personalidade e por suas obras inclas-
sificáveis. Durante a juventude, trabalhou como diretor e roteirista. Foi aos 36
anos, no entanto, que escreveu o roteiro com temas próprios de sua terra, que
viria a se transformar no seu primeiro romance: A traição de Rita Hayworth.
A personagem principal do livro, e por vezes seu narrador, é Toto, morador
de um pequeno povoado em Buenos Aires. As estrelas de cinema fazem parte
dos conflitos do garoto. Exemplo disso é o momento em que narra a descoberta
de sua sexualidade: quando seu pai não cumpre a promessa de continuar a
acompanhá-lo ao cinema, logo após ver Sangre y arena. No filme, a persona-
gem Doña Sol (Rita Hayworth) trai Juan Gallardo (Tyrone Power). A beleza e a
maldade da vilã, por quem o pai é apaixonado, confundem o menino.
A ver:
Saímos do cinema andando e papai dizia que gostava de Rita
Hayworth mais do que de qualquer artista, e eu também começo
a gostar mais do que de qualquer outra, papai gosta quando ela
falava ‘toro, toro’ para Tyrone Power, ele ajoelhado como um bobo
e ela de vestido transparente que a gente via o sutiã, às vezes faz
cara de má, é uma artista linda mas faz traições. [...] Papai diz que
é a mais bonita de todas. Vou escrever com letras grandes R de Rita
e H e desenho no fundo uma travessa e umas castanholas. Mas em
Sangue e areia ela trai o rapaz bom. Não quero desenhar RH em
letras grandes (PUIG, 1968, p. 64-65).

Em sua performance, a personagem conceitual do nosso corpus, Rita


Hayworth, desvia-se das convenções do seu entorno: expressa alegria vibrante,
ausência de recato, uma sexualidade livre de culpa. Esse biografema homo-
cultural nos revela o desvio que marca o drama de Toto: por achar a realidade
hostil, busca refúgio na própria imaginação ou na ficção dos filmes – onde, para
ele, os mais bonitos eram aqueles que agiam dentro do que era considerado
certo.

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Para Barcellos (2006, p. 424), essa afetação de ingenuidade abre-se, na


verdade, para dois campos opostos: “por um lado, temos a identificação do
homem gay com uma figura feminina emblemática enquanto objeto do desejo
masculino [...], por outro, temos a descoberta de que a vida é dura e as pessoas
são más”, ou seja, a constatação, formulada de maneira quase infantil, da vulne-
rabilidade social que afeta de modo particular os gays.
Logo, criou-se uma espécie de dicotomia no imaginário do garoto: apesar
de identificar-se com a posição de poder e sedução que a figura de Rita Hayworth
assume, ele também acaba por constatar a realidade irrefutável em que vive, na
qual homossexuais, como ele, não são bem aceitos. O ícone feminino funcionou,
pois, como o vestígio que permitiu essa dupla visão de força e fragilidade.

Considerações finais

Por meio dessa conjunção entre homocultura e o viés biografemático,


pudemos vincular a análise da obra literária que compõe o nosso corpus e os
nossos estudos sobre o espaço biográfico e sobre a homossexualidade. Esse
último, o fizemos por meio da abordagem sobre questões relacionadas à indús-
tria cultural cinematográfica, na figura de Rita Hayworth, e de seus significados
para o conjunto LGBTT argentino e latino-americano.
A imagem da atriz norte-americana, alçada à condição de ícone cultu-
ral, nos serviu na articulação das experiências de sujeitos homossexuais. Nesse
âmbito, ela acabou nos ajudando a mostrar uma subjetividade própria desses
sujeitos, além de propor outras leituras de mundo, que não a canônica.
Em suma, foi com base nesses preceitos que analisamos os biografemas
destacados ao longo da nossa pesquisa. Neles, percebemos que a presença
de Hayworth transparece imagens que deslocam valores e discursos hegemô-
nicos, além de revelar subjetividades desviantes do autor argentino Manuel
Puig. Tais imagens contribuíram para tornar mais clara a noção de biografema
homocultural.

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Referências

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subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 209-237.

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no universo cultural gay. In:______. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de
Janeiro: Dialogarts, 2006. p. 422-437.

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade,
2003.

BENTO, Berenice; GARCIA, Wilton; LOPES, Denilson; ABOUD, Sérgio (Orgs.). Imagem
& diversidade sexual: estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa Edições, 2004.

DOSSE, François. A vidobra. In:______. O desafio biográfico: escrever uma vida. São
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In:______. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Elisa
Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010. p. 119-125; p. 126-143; p. 144-162.

MITIDIERI, André Luis. Biografemas homoculturais de Eva Perón no romance Santa Evita,
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PUIG, Manuel. A traição de Rita Hayworth. São Paulo: Círculo do Livro, 1968.

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torno da literatura de temática homoerótica. In: ARANHA, Simone Dália de Gusmão;
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e linguagens: diálogos abertos. João Pessoa: EduFPB, 2009. p. 95-107.

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HELENO E OS “ESTRANHOS” EM NOSSOS OSSOS,


DE MARCELINO FREIRE

Guilherme Augusto da Silva Gomes


Mestrando em Estudos Literários
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
guilhermeaugg@gmail.com

GT 26 - Literaturas e LGBTT’s.

Resumo

O presente trabalho possui como corpus as personagens “estranhas” do romance


Nossos Ossos (2013), de Marcelino Freire. Entre elas estão o narrador-persona-
gem Heleno, a travesti Estrela e o boy Cícero. A perspectiva de análise parte
dos ideais de identidade de Stuart Hall (2005) e da desestabilização destes que
a pós-modernidade traz e Zygmunt Bauman (1998) alcunha com o adjetivo
“estranhos”. Por ser uma narrativa em primeira pessoa, a distância que Heleno
cria de si com os demais, percebida na sua linguagem, dá indícios de uma estra-
nheza baseada em preconceitos sociais, profissionais e de sexualidade. Essa
observação inicial dá alicerce para futuras análises sobre a manipulação dos
fatos realizada pelo narrador, objetificação dos corpos homoeróticos e a tenta-
tiva de justificar seu suicídio.
Palavras-chave: diversidade sexual; gênero; identidade; Nossos Ossos; Marcelino
Freire.

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Introdução

O presente trabalho procederá à formulação sobre as descrições que o


narrador do livro Nossos Ossos, de Marcelino Freire, faz a respeito das demais
personagens, sejam elas homoeróticas ou que de alguma forma desviam dos
padrões hegemônicos de sexualidade (cisgênero ou heterossexual). O interesse
é compreender qual a visão do narrador sobre os outros para futuros desdobra-
mentos em leituras do texto literário em questão.
Nossos Ossos é parte da história da vida de Heleno contada por ele
mesmo, nascido em Sertânia, no estado de Pernambuco. Ele narra a organiza-
ção do traslado do corpo do boy assassinado, Cícero, de volta para a cidade
natal dele, Poço do Boi, para ser enterrado e que é geograficamente próxima à
do narrador. De forma sincrônica, traz fragmentos de lembranças e digressões
explicando sua mudança para São Paulo, quando jovem, e do abandono do seu
então namorado, Carlos, tornando-se dramaturgo após isso. Na primeira parte
do livro, ou “Parte Um”, ocorre essa narrativa de memórias; na outra metade,
quando o livro recebe o título de “Parte outro”, narra o traslado do corpo pelo
interior do Brasil, e, aparentemente, sem que o próprio narrador percebesse,
também do seu próprio corpo para sua cidade, revelando ao final da história a
sua condição de narrador póstumo e a morte como resultado de um suicídio.
Há que considerar que uma narrativa em primeira pessoa deve ser perce-
bida como um compilado de recortes e seleções subordinados à subjetividade
de quem narra. Então, analisar as descrições feitas por Heleno dará bases para
entender como é arquitetado o pensamento dele a respeito dos outros e, con-
sequentemente, sobre si mesmo.
Não há estudos precedentes sobre a obra e percebe-se, inicialmente, uma
visão distante dele e das pessoas que se relacionam com ele hierarquias devido
às suas condições sociais, profissionais e de gênero.

Identidade, diferença e os “estranhos”

Stuart Hall (2005) analisa questões identitárias voltadas para a possibili-


dade de uma “crise de identidade”, pautada no fato de que as identidades dos
sujeitos têm sofrido mudanças associadas à modernidade tardia. O sociólogo
parte das concepções de identidades dos sujeitos em três categorias: sujeito
do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. Em suas análises, a

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globalização tem produzido resultados impactantes na produção das identida-


des destes últimos:
[...] parece então que a globalização tem, sim, o efeito de con-
testar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma
cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identida-
des, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições
de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais
políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-
-históricas. (HALL, 2005, p.87)

Essa perspectiva de variação das identidades é feita por ele para os ideais
de nacionalidade, mas pode ser ampliada na medida em que alcança a forma-
ção do processo identitário não apenas pelas fronteiras geográficas, mas pelas
sociais, culturais, sexuais, dentre outras e que não se dão de maneiras iguais,
podendo, portanto, ser aplicado também aos sujeitos homoeróticos. Tal pro-
cesso pode ser entendido também como identificação:
Na linguagem do senso comum, a identificação é construída a
partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de carac-
terísticas que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou
ainda a partir de um mesmo ideal. É em cima dessa fundação que
ocorre o natural fechamento que forma a base da solidariedade e
da fidelidade do grupo em questão. (HALL, 2014, p.106)

Sob essa ideia de compartilhamento de características ou origens comuns,


a respeito dos sujeitos homoeróticos, é importante ressaltar o movimento social
para reconhecimento das diversidades sexuais ocorridos a partir de 1960. A
Rebelião de Stonewall1, na visão de Sedgwick (2007), permitiu uma “saída do
armário” em massa ou uma luta para essa ação e influenciou diretamente no
questionamento das posições de sujeitos considerados menores, na definição do
homossexual e nas opressões de gênero. Entretanto, tais lutas e agrupamentos,

1 A Rebelião de Stonewall foi uma manifestação de resistência contra as ações policiais que agrediam
constantemente os homossexuais em suas ações. O nome se deu a partir do episódio ocorrido em ju-
nho de 1969 no qual várias travestis foram violentadas e presas no bar Stonewall Inn, em Manhattan,
Nova Iorque. Esse episódio marcou o início das lutas pela liberdade das diversidades sexuais devido
a sua repercussão e notoriedade.

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ainda que positivas, privilegiavam algumas categorias, como é o caso dos gays
diante dos demais, tanto que por muitos anos e nos dias atuais ainda são usadas
expressões como “movimento gay” ou “luta gay”, desprezando os/as demais.
Isso influenciou na visão social sobre os sujeitos e internamente no movimento
de luta contra as opressões, tanto que várias pessoas se consideraram não inclu-
ídas e vêm questionando, constantemente, os privilégios e opressões.
Assim, verifica-se no processo de formação identitária pós-moderno a cria-
ção de diferenças muito maiores, nas quais o sujeito não se sente pertencente a
certo grupo a partir do momento que a sua vivência, opressão ou invisibilidade
são maiores ou menores.
Com tais construções, criam-se espaços e padrões normalizados, ou seja,
que vão se tornando normal à vista daqueles que são menos diferentes e mais
próximos do considerado ideal. Nascem, assim, os estranhos.
Os estranhos exalaram incerteza onde a certeza e a clareza deviam
ter imperado. Na ordem harmoniosa e racional prestes a ser consti-
tuída não havia nenhum espaço – não podia haver nenhum espaço
– para os “nem uma coisa, nem outra”, para os que se sentam
escarranchados, para os cognitivamente ambivalentes. (BAUMAN,
1998, p. 28)

O estranho, nessa visão sociológica, desestabiliza as ordens e, por mais


que confundam e desajustem as normas, representam a exclusão que as polí-
ticas modernas impõem aos diferentes. Tal eliminação não ocorre apenas em
um âmbito macroeconômico, mas afeta as microesferas, dentre elas a social
que outrora aproximou os sujeitos e agora os afastam por falta de identificação.
Tais teorias possibilitam observar o narrador Heleno e suas descrições
sobre os outros. Quando ele não se identifica com os demais, tende a vê-los
como estranhos e, consequentemente, longe dele mesmo, ainda que tenham
papel fundamental na narrativa.

Heleno e a travesti Estrela

A primeira “estranha” a ser observada é a travesti Estrela. Heleno a pro-


cura após saber que ela possuía as informações e o contato dos pais de Cícero
para que fossem comunicados do assassinato e organizar os detalhes dos ser-
viços póstumos. Interessante perceber que, por mais que o narrador precisasse

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dela, ele a delineia com ironia e desconfiança. Na primeira descrição, ele narra
com surpresa a imagem da travesti:
Por que as travestis se parecem comigo, pensei, Estrela era mais
velha do que eu tinha imaginado, cheguei a apostar que fosse ela
uma garota, sei lá, os peitos ainda estivessem no lugar, as roupas
fossem mais modernas, no entanto ela era uma dama, uma cantora
de rádio, enfeitada de plumas, subia as mãos ao céu, mostrava os
anéis, os colares magníficos, as falsas pérolas. (FREIRE, 2013, p. 48)

Ainda que ele reconheça semelhanças entre eles, pela idade, ele trata de
descaracterizá-la de alguma forma:
[...] e Estrela veio, antes chegou até mim o seu cheiro de perfume,
seguido do brilho do vestido, cafona, que a apertava por inteiro,
pus em sua mão uma ótima quantia e fui logo, firme, direto na veia,
sem arrodeios, eu sou amigo de Cícero. (FREIRE, 2013, p. 49)

Estrela não quis passar informações sobre Cícero enquanto estava traba-
lhando. Ela pede para ele voltar outro momento e exige dinheiro para troca de
suas próteses de silicone. A imagem que esse narrador esboça da personagem é
de uma pessoa interesseira e manipuladora. Desde as falas das personagens que
falam sobre Estrela até a observação do espaço e do corpo dela:
Estrela já estava chegando, tão cheirosa, saída de um anúncio de
shampoo, com uma toalha enrolada na cabeça, a rainha da beleza,
cheia de um palpérrimo glamour. [...] as unhas descascadas, pre-
cisavam renascer, o rosto também, sem maquiagem, chamava a
atenção, era mais másculo e a toalha, segurando os cabelos, dava
a Estrela um peso que ela, à noite, disfarçava, nos seus saltos altos
havia leveza, destreza, em se manter de pé, ali não, somente, incri-
velmente, era um homem brincando de ser mulher [...].

Mais uma vez é preciso segurar o olhar, não titubear, os gatos de porce-
lana, os diversos cinzeiros, os retratos e os cheiros foram feitos para testar até
onde pode chegar nossa criatividade, mesmo que eu imaginasse um cenário
assim, um personagem, seria difícil ele existir como, de fato, existe, real, de
turbante, entoalhado, os peitos que ela exibia, fazendo chantagem emocional
[...].(FREIRE, 2013, p. 61-62)

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O trecho mostra o quão confuso Heleno fica com a “estranheza” de


Estrela, sempre ressaltando pontos negativos (“palpérrimo glamour” e “unhas
descascadas”) e caracterizando-a como uma personagem, ou seja, encarre-
gando da ficção ou do que está na ordem do inexistente aquilo que ele julga
como fora da normalidade. Além disso, ele ressalta as características masculinas
que encontra no corpo dela (“o rosto [...] mais másculo” e “brincando de ser
mulher”), deslegitimando a identidade de gênero dela. Dessa forma, mostra que
o narrador a considera menor que ele devido à identidade de gênero feminina,
ou seja, por ser transexual.

Heleno, o boy e os michês

Heleno assume, em partes da narrativa, que se une a Cícero a partir do


sotaque, da saudade, do interesse mútuo, além do fato de que a primeira vez
que contratou o boy foi pelo fato de se parecer com seu ex-namorado. A partir
dessa observação, mostra que sua identificação com ele se dá pela proximidade
de suas origens e isso, por si só em um conceito básico de identidade, poderia
aproximá-los. Porém, durante a narrativa, nas referências que faz de Cícero,
opta por usar a palavra boy do que tratá-lo pelo nome, como segue:
E esses troféus aqui em cima, me perguntou o boy, são de verdade,
banhados a ouro, ele quis saber, na primeira vez que o trouxe à
minha casa, sim, eu costumo ter maior cuidado, sei que aquele
menino era diferente, não era ladrão, assassino, perigoso, deli-
quente, a gente puxou uma conversa sobre nossas terras vizinhas,
eu sou de Sertânia e ele de Poço do Boi. (FREIRE, 2013, p. 45)

De todas as referências a ele na obra, 33 menções são feitas como apenas


boy e apenas 17 ao nome dele. As vezes que Heleno o chama pelo nome se
dá em um contexto de memórias e nos diálogos com Estrela após a morte do
garoto. Além disso, ele o trata sempre de forma objetificada, ainda que em um
momento faça menção a ele como “namorado”, explicita sua posição superior
devido à profissão e interesses diferentes. Como se dá na cena em que Heleno
usa Cícero para gerar ciúmes em Carlos.
[...] mas eu queria que Carlos me visse ao lado de Cícero, assistisse
ao meu romance, estava na hora de mostrar o garoto diferente,

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musculoso, com quem eu estava saindo, de roupas novas o boy


viraria outra pessoa, o cabelo bem cortado, recomendei que ele
usasse um casaco brilhante e moderno, ou um terno de linho azul,
fomos juntos a uma loja no bairro, também para ele comprei uns
sapatos, prometi pagar caro, não era você que estava precisando de
dinheiro, meu querido, e marcamos que seria na noite de sábado o
nosso compromisso. (FREIRE, 2013, p. 92)

Heleno ainda utiliza da palavra boy para contar a cena do assassinato de


Cícero, trazendo de forma impessoal a narrativa que contaram pra ele sobre a
morte, uma vez que ele mesmo não estava presente.
Ainda que seja uma menção impessoal, há uma diferença das menções a
Cícero e de outros garotos de programa. Em diferentes partes da narrativa em
que se relaciona com outros rapazes, Heleno opta por sempre referenciá-los
como “michê”, sendo ao todo 13 menções da palavra, mostrando a distância e
marcação de posição entre ele e os demais e reforçando a sua visão de estra-
nheza com a profissão, ainda que ele mesmo tenha contato próximo com um
desses garotos.

Considerações finais

A obra traz um narrador que marca, por meio de suas descrições, a sua
posição de sujeito e diferenciação dos outros que ele distancia ou considera
estranhos. Fora ele mesmo e Carlos, as outras personagens homoeróticas são
julgadas por um olhar normativo e social, marcando a sua posição de, apesar de
gay, bem sucedido profissionalmente, premiado, rico e cisgênero.
Ao final, já na ida para Pernambuco e prestes a descobrir que ele tam-
bém estava morto, Heleno observa nas areias das praias do Recife os garotos
e assume seu arrependimento sobre como tratou todos aqueles com quem se
relacionou:
Não há diferença entre mim e essa legião de alemães, espanhóis,
argentinos, pesado, de culpa, eu me ofendo e sujo, para isso a
morte de Cícero serviu, para que eu tomasse consciência do uso
que eu fiz, dorsos nus, jovens putos, à venda, como uma mercado-
ria, exposta, eu sinto pena de mim, diante da orla, anoitecendo, me
confesso e me arrebento [...].(FREIRE, 2013, p.112)

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Entretanto, tal afirmação só reforça a visão social dos outros que Heleno
apresenta. E como objetos menos humanos que ele mesmo, com seu preço
marcado, reforçando a teoria:
Os estranhos são pessoas que você paga pelos serviços que elas
prestam e pelo direito de terminar com os serviços delas logo que
já não lhe tragam prazer. Em nenhum momento, realmente, os
estranhos comprometem a liberdade do consumidor de seus servi-
ços. Como o turista, o patrão, o cliente, o consumidor dos serviços
está sempre com a razão: ele ou ela exige, estabelece as normas
e, acima de tudo, resolve quando o combate principia, e quando
acaba. Inequivocadamente, os estranhos são fornecedores de pra-
zeres. (BAUMAN, 1998, p.41)

O que o narrador não deixa claro é que, ironicamente, tanto o boy quanto
a travesti são peças fundamentais para o desfecho de sua vida: o suicídio, o
reconhecimento de que sua vida estava sujeita a todas essas relações sociais e,
principalmente, de que o destino de todos ao final é o mesmo: os ossos.

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Referências

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,


1998.

FREIRE, Marcelino. Nossos Ossos. Rio de Janeiro: Record, 2013.

HALL, Stuart.  A identidade cultural na pós-modernidade.  10. ed. Rio de Janeiro:


DP&A, 2005.

___________ Quem precisa de identidade? In: SILVA, Thomaz Tadeu da; HALL,
Stuart; WOODWARD, Kathryn.  Identidade e diferença:  a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis: Vozes, 2014.

SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu, Campinas,


p.19-54, 2007.

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FICCIONALIZAÇÃO DE SI: UMA ESTRATÉGIA DE (RE)VELAÇÃO

Renata Pimentel
Doutoras em Teoria da Literatura/UFPE
Professoras do Departamento de Letras da UFRPE
renatapimentel@gmail.com

Sherry Almeida
Doutoras em Teoria da Literatura/UFPE
Professoras do Departamento de Letras da UFRPE
sherry_almeida@yahoo.com.br

GT 26 - Literaturas e LGBTT’s.

Resumo

Este trabalho analisa a figuração estética da homossexualidade em escritores de


vários momentos da história literária brasileira. A partir da discussão do conceito
de ficcionalização de si, defendemos a ideia de que os discursos manifestos nas
obras permitem (re)velar ao leitor a ideologia de sexualidade. (Re)velação pos-
sível porque a literatura é um lócus privilegiado para que o indivíduo fale da
realidade com criticidade e sem censura, moral ou institucional. Interessa-nos
pensar as estratégias de que se valem os escritores para comunicar posicio-
namentos políticos sobre todas as temáticas e, mais ainda, quando tratam de
tabus sociais como a homossexualidade. Para tanto, recorre-se ao pensamento
de Trevisan (2000), Costa Lima (1974), Foucault (1994), Chiappini (1991), entre
outros.
Palavras-chave: literatura brasileira, ficcionlização de si, homossexualidade

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Introdução
“Afinal, estamos num país onde o mais importante é freqüente-
mente o mais mascarado.” (João Silvério Trevisan)

Numa percepção moderna da figura do historiador como produtor dis-


cursivo individual, e não como puro relator científico objetivo, outros suportes
discursivos e outras naturezas de relato passam a configurar-se como material
possível de pesquisa e análise da História. Logo, a História passa a se valer de
material como a “vida privada”, e as histórias de pessoas anônimas passam a
ser dignas de atenção.
As obras literárias se tornam o lugar no qual o indivíduo se revela, inde-
pendente de uma sociedade que compõe, informa e mantém uma tradição.
O que caracterizaria a produção literária? O sujeito individual da criação, seu
produto (que é o livro) e o leitor; além disso a
escrita literária se configura como criação, especificada por ser constituída
em uma linguagem singular – porque artística –, que faz do seu produtor um
escritor.
Este indivíduo escritor destaca-se do todo social (junto ao gênio, ao louco;
figuras peculiares e desviantes) e pode falar tanto sobre a realidade e a socie-
dade, quanto observar além delas, de “fora”, com mais agudo olhar. O espaço
literário, uma vez valorizado e enquadrado como espécie de desvio e consubs-
tanciado num espaço individualizante (seja do produtor, seja do leitor), ganha
legitimidade.
Propomos aqui uma leitura da ficcionalização de si (re)veladora da
homossexualidade em escritores da Literatura brasileira: Raul Pompéia, Adolfo
Caminha, Cassandra Rios, Caio Fernando Abreu e Luís Capucho, como exem-
plos eleitos. Acreditamos que esses são alguns dos muitos indivíduos que se
valeram de máscaras ficcionais para falar sobre homossexualidade de maneira
política e estética – posto que o discurso literário atenda sempre a essa dupla
demanda social.

Da Literatura enquanto discurso do desvio à homossexualidade


(re)velada pela ficcionalização de si

A literatura como espaço privilegiado para propor questões à realidade


socialmente dada constitui-se como transgressora de discursos hegemônicos

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e totalizantes, e se oferece como espaço de alternativas discursivas. Segundo


Costa Lima é: “Discurso do desvio por excelência (...), a literatura pode sê-lo sob
o preço de nunca se tornar o discurso da sociedade.” (1974: 65). Guardemos em
mente a expressão “discurso do desvio por excelência”, afinal, a escolha pela
rota desviante revela-se uma constante em autores que têm uma vivência afe-
tiva e práticas sexuais anti-normativas, ou seja, homoafetivas, sejam assumidas
ou não publicamente.
Esse referido “discurso do desvio” seria a produção de um indivíduo em
relação ao discurso da sociedade; ou seja, eis a figura de um autor. Não nos
interessa aqui a referência específica e única à pessoa biográfica, mas sim a essa
instância ficcional, a essa persona, voz que se desloca pelo texto, prendendo-se
tanto às personagens quanto à diegese, mas que guarda relação com a pessoa
real do autor.
Assim como a personagem apresenta muitas máscaras - ou seja, encarna
o “papel” ou as características e atitudes do homem -, o autor, quando consti-
tuído como ser enunciativo, assume papéis os mais diversos. Cria espécies de
“carapaças simbólicas do indivíduo”.
Exercitando-se em variados papéis é que o homem tanto marca sua alteri-
dade (seja ela a real, seja a ficcional), quanto se constitui (PIMENTEL: 2011: 89)
O papel do autor (ser biográfico) constitui-se em recriar o mundo, ficcio-
nalmente, como uma possibilidade discursiva. Promove uma afirmação política
de si e de valores com os quais compactua, amplia os horizontes culturais de
recepção, percepção e expectativa das sociedades nas quais seu texto circula.
Chegamos ao terreno do que chamamos ficcionalização de si: não ape-
nas uma transposição de identidade/ficcionalização de vivências e, sim, uma
liberação total ao jogo de forças imaginativas. Aqui cabem tanto o processo de
disfarce/apagamento dos autores - no caso daqueles cuja homossexualidade
não foi assumida como prática, mas apenas como tema - quanto a tomada de
posição daqueles que assumiram seu desejo como sujeitos-escritores e fizeram
dele tema de criação. Em qualquer uma das vertentes, está a possível remissão/
especulação em relação à vida sexual real do escritor (traço reprimido-perse-
guido, quando desviante da norma), o que não deixa de ser revelador da vida
intelectual e, até, de marcos morais ou amorais do autor, marcando posições
suas.
A ficcionalização de si pode ser considerada um dispositivo de máscara de
que se pode valer qualquer autor. Tal estratégia ganha dimensão extra nos casos

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particulares de autores de orientação homoafetiva, que se converte não apenas


em temática impune, mas em traço que dialoga, via de regra, com experiências
de vida; mesmo que por vezes não vividas, mas “imaginadas” e desejadas (e
pode se converter em ‘obstáculo’ ou desafio a mais, no sentido de estigmatiza-
ção social a ser enfrentada). Buscamos resgatar alguns dos textos e autores que
marcam a temática homoafetiva nas letras brasileiras, em momentos distintos e
com atitudes também bastante distintas; sobretudo à luz do contexto histórico-
-pessoal e do tratamento ficcionalizante conferido ao tema.
Principiemos por Raul Pompéia. Intelectual precoce, ex-aluno de colégio
interno, suicida em condições nebulosas... O Ateneu (1888) é marco do real/
impressionismo em nossas letras. Há muitas especulações sobre a carga auto-
biográfica do romance, que traz o sugestivo subtítulo de “crônica de saudades”
O protagonista Sérgio é aluno interno do colégio cujo nome intitula o livro
(coincidência com a vida do autor, estudante interno do colégio Abílio).
A temática da homossexualidade está explícita nas relações que se esta-
belecem entre os alunos. Sérgio é o adolescente sensível que se deixa proteger
e amar por outro aluno mais forte.
Há outros autores que trabalharam o tema (comum na época, por ser
tema caro às ciências de então), e não houve escândalo que envolvesse a vida
deles como “inspiração” para o assunto.
No caso de Pompéia, as insinuações foram diversas. A crítica contempo-
rânea ao romance insistia em explicitar que a obra (e, sobretudo, o protagonista)
era inspirada na vida do autor, a quem as insinuações de homossexual mago-
avam fundamente. Quando Olavo Bilac acusa Pompéia de ser homossexual,
em artigo à imprensa, surge o desafio para um duelo de espadas, que acaba
por não se consumar. Após esse incidente, Pompéia passa a ser ignorado pelos
jornais e, magoado e desiludido, suicida-se na noite do natal de 1895.
Outra obra fundamental em relação ao tema foi Bom-Crioulo (1895), de
Adolfo Caminha. Mas a sexualidade do autor não foi posta sob suspeita; o
escândalo em que se envolveu foi por apaixonar-se pela esposa de um oficial
do exército e com ela viver. O romance trata da relação amorosa e carnal entre
um grumete branco, o adolescente Aleixo, e o marinheiro negro Amaro, cuja
alcunha é Bom-Crioulo. Caminha tinha bastante conhecimento de causa: foi
oficial da marinha e afirmava que escrevera a partir de situações presenciadas
no ambiente de trabalho.

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Apesar de preconceitos e estereótipos científicos da época, Caminha


escreveu uma obra visionária: trata com naturalidade imensa um tema-tabu.
Há, mesmo assim e como seria de se esperar, traços característicos do natu-
ralismo em voga como justificativas para as inclinações sexuais e eróticas do
Bom-Crioulo na ‘selvageria da negritude’, ou para o ciúme doentio que o leva
a matar o objeto de seu amor. Já Aleixo, imberbe, branco e delicado, é asseme-
lhado aos traços da feminilidade e à passividade na relação (outro preconceito
que ainda encontra eco).
O romance teve longa vida de proibições, críticas preconceituosas e nega-
tivas e quase “desaparecimento”. Virou obra rara, até ser republicado a partir de
1980 (traduzido em vários idiomas), considerado um dos textos mais peculiares
do século XIX, audacioso e pioneiro. Aqui, a persona ficcional do autor se con-
verte em arguto observador do seu tempo e faz de um tema-tabu o caminho
para revelar práticas e preconceitos sociais.
Estamos no século XIX, marcado por uma sociedade moderna e “des-
cristianizada”, em que a verdade da identidade está atrelada à expansão e à
intensificação das enunciações em torno do desejo sexual, em particular na
revelação de seus segredos. A discursividade do desejo, que antes se con-
centrava apenas em práticas institucionais nas salas de aula, nos seminários e
confessionários, expande-se a outras dimensões do tecido social, como obser-
vou Foucault em
sua História da sexualidade. E neste mesmo século e obra, Foucault nos
revela a “invenção do homossexual” como uma construção social, a qual per-
mitiria ao poder a capacidade de identificar, vigiar e punir o tal desejo desviante.
Por outro lado, porém, uma espécie de armadilha: a norma heterossexual se vê
definida e obrigada a existir em relação ao seu ‘oposto’. Ficam atadas a norma
e a anti-norma; o hétero e o homossexual, como duas faces de uma mesma
pulsão sexual.
Já no século XX, registrou Lúcio Cardoso em seu diário: “O que oculta-
mos, é o que importa, é o que somos” (CARDOSO, 1949: 62). Podemos ler aí a
estratégia de mascaramento, de ficcionalização de si (vivências, angústias, silên-
cios e conflitos), que povoa a obra deste escritor, cujos personagens refletem a
(homo)sexualidade conflitiva, obscura que parece ter marcado a própria vida
de Cardoso, mas com a consciência de que tal universo velado é justamente
onde se oculta o “cerne” da identidade. A estratégia é silenciar o que mais

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condensação de significados possui; ou seja, revelar-se, traduzir-se e afirmar-se


pelo silêncio.
No outro extremo da explicitude ao tratar do tema da sexualidade des-
viante - ainda mais encoberta, pelo foco no lesbianismo - está Cassandra Rios. O
“travestimento” começa desde o pseudônimo: chamava-se Odette Rios. Talvez,
tal recurso fosse um ocultamento fundamental para preservar a vida pessoal,
mantida com bastante discrição. Apesar disso, dava declarações públicas como:
“homossexualismo é uma forma especial de amar”, algo bastante ousado, em
plena década de 70, durante um regime militar.
Cassandra foi um fenômeno de vendas (cerca de 300 mil livros por ano)
e teve alguns de seus textos adaptados para o cinema. Muitas de suas persona-
gens eram atormentadas e cheias de culpa (como Anastácia - cujo nome intitula
o romance - a qual assassina as mulheres por quem se apaixona). A autora
“pagou” o seu preço: foi diversas vezes intimada a depor, teve seus livros cen-
surados, foi obrigada a pagar multas pelas “infrações” cometidas em sua obra
tachada de “pornográfica” e maldita.
A partir da mesma década de 70 começa a aparecer uma nova geração
de escritores que versam, na ficção, de forma mais direta, sobre suas vivências,
desejos e angústias homossexuais. Uma dessas vozes é Caio Fernando Abreu,
cuja obra é marcada por temas constantes e recorrentes como: sexo, morte,
medo, solidão. Em seus textos, capta a essência da fragmentária vida cotidiana,
sobretudo da agitada década de 1980 - desencantada, sobretudo, pelo fan-
tasma da Aids, mais um estigma que marginalizava e aterrorizava o desejo e a
prática homossexuais.
O próprio Caio fala de seus desejos, experiências e temores como gay,
jornalista, escritor e portador do vírus HIV. Fez da ficcionalização de suas inquie-
tações e buscas internas, de sua sexualidade e de seus fantasmas o tema de sua
obra e o caminho para entender-se, para viver sua sexualidade e enfrentar a
estigmatização. Inclusive, para superá-la, pois permanece como um de nossos
grandes escritores, não apenas um “escritor gay”, mas alguém que penetrou
fundo a alma da sua contemporaneidade e do ser humano universal: buscando
amor, temendo a morte, querendo o sexo sem culpa, fugindo da solidão e
angustiando-se com ela.
Recorremos à voz de João Silvério Trevisan, que muito bem dialoga com
a estratégia de fazer do corpo-vivência do homem-escritor um caminho de fic-
cionalização de si:

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“Sempre considerei fundamental que minha vida e minha obra se


correspondessem. Tanto quanto meu cérebro pensante é parte da
minha alma, minha alma é extensão do meu corpo. E meu corpo,
a forma palpável da minha psique. Escrito com minha alma e meu
corpo, este livro faz parte do meu eu.” (2002: 07)

Nessa nota introdutória ao seu Pedaço de mim, o ficcionista, dramaturgo


e pesquisador assume uma escrita que transita no limiar do ensaio crítico, mas
nasce com a assinatura do próprio corpo do autor, do seu desejo, da sua vivên-
cia. A sexualidade e o desejo de Trevisan são marcos a partir dos quais ele
sente, pensa, reflete, se enuncia. E o seu desejo se orienta para que objeto de
desejo? O homem, o seu semelhante gênero, o seu ‘mesmo sexo’.
O corpo escrevendo sua trajetória é também o veículo de Luís Capucho:
sem medo das vias, sem medo dos fatos, ele convida ao percurso nas infindas
e reiteradas sessões do Cinema Orly (1999). Um relato pornográfico, um diário
de confissões, uma filosofia do desejo e do sexo, uma ars amatoria: o Cinema
Orly é o templo onde Capucho funda e exerce seu sacerdócio de amor. Local
sacro, incrustado na região central do Rio de Janeiro, em plena Cinelândia.
Um cinema pequeno, velho, decadente, onde pode se dar o exercício da sin-
gularidade: trata-se de um local onde homens vão se relacionar sexualmente
com outros, ou apenas assistir a tudo. O marginal transita pelas ruas da área,
em direção ao lugar onde lhe é permitido ser. E no Orly, o marginal assume o
centro. O centro é o desejo de um homem por outro homem; o centro é gay.
A ficcionalização aqui aproxima autor e personagem: Capucho se assume
protagonista do que narra, como experiências e observações pessoais. Veste
todas as máscaras, embora seu parâmetro sejam os sentimentos e o modo
como guardou as lembranças dos eventos vividos/narrados. E que identidade
ele constrói? Imagina fazer com sua escritura algum libelo pelos direitos gays;
ou filiar-se a uma tradição de malditos, marginais (com certo charme de consa-
gração), mas reconhecidos mestres da literatura? Não.
Definições, especulações, ideias até banais são fonte das observações
despudoradas do autor, que não se importa se está demolindo conceitos ou
provocando os pares. Não teme as palavras, nem se definir e cair em contra-
dição ou retomar opiniões. Não teme o que a norma declara como “proibido”.
No velho e acolhedor Orly, Capucho edifica sua ética e marca a vitória de seu
desejo imperativo: traça um caminho e faz um convite de abertura da sensibili-
dade a todos aqueles que se aventurem pela leitura do relato, pela sensibilidade

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de observar o mundo sem máscaras, ou melhor, com todas as possibilidades de


máscaras que nele existem.

Considerações finais

Neste artigo, tentamos traçar um percurso revelando transformações e


estratégias várias de vazão do tema da homoafetividade e da ficcionalização
das personas textuais e de seus criadores: desde escritores do século XIX a
autores mais recentes, os quais podem tanto reivindicar-se a condição de poli-
ticamente marcarem-se como gays e, portanto, como vozes legítimas desse
desejo; até deliberadamente deixar o rótulo indefinido (não praticar o outing,
também como estratégia de ampliar o alcance político da criação; afinal, ela
elevaria a temática à dimensão da não-marginalidade). Assim, constrói-se uma
história desviante, mas não submissa a rótulos fortes o bastante para aprisioná-la
e diminuí-la como arte.

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Referências

CARDOSO, Lúcio. Diário Completo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1970. CHIAPPINI,
Lígia M. Leite. O Foco narrativo. São Paulo, Ática, 1991.

COSTA LIMA, Luiz. “Mito e provérbio em Guimarães Rosa”, in: A Metamorfose do


silêncio. Rio de Janeiro, Eldorado, 1974.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro,


Graal, 1997. (12ªed.)

PIMENTEL, Renata. Copi: transgressão e escrita transformista. Rio de Janeiro,


Confraria do Vento, 2011.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da


colônia à atualidade. Rio de Janeiro, Record, 2000.

________. Pedaço de mim. Rio de Janeiro, Record, 2002.

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A PUBLICIDADE E AS QUESTÕES SOBRE DIVERSIDADE

Cláudia Regina Lahni


Pós-doutora em Comunicação
Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF
lahni.cr@gmail.com

Denise Teresinha da Silva


Doutora em Ciências da Comunicação
Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA Campus São Borja
denise_dts@yahoo.com.br

GT 03 - Mídias, narrativas e corporalidades: (re)pensando as novas abordagens teóricas


e metodológicas nos estudos da homocultura

Resumo

O artigo reflete sobre a comunicação e a sua importância para a identidade e


cidadania da população LGBT, assim como para todas as pessoas. Isso, a partir
de análise da campanha de O Boticário para o Dia dxs Namoradxs, em 2015,
além de outras campanhas da empresa, veiculadas em 2016. Entendemos que
a publicidade, como parte da comunicação para a cidadania, também pode
trabalhar conceitos que colaborem para a reflexão e para o respeito entre as
pessoas.
Palavras-chave: diversidade; publicidade; gênero; homocultura; cidadania.

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Introdução

A Campanha de Dia dxs Namoradxs de 2015 de O Boticário com o filme


“Casais” suscitou uma série de opiniões, sob o pano de fundo da canção “con-
sideramos justa toda a forma de amor”. O buzz gerado pela campanha serviu
para chamar a atenção sobre o perfil do público consumidor brasileiro. O filme,
criado pela AlmapBBDO, apresenta quatro casais, dois compostos por mulher
e homem de gerações diferentes, outro por duas mulheres e outro por dois
homens, tendo como fundo musical a trilha sonora de “Toda Forma de Amor”
de Lulu Santos. Os casais compram o produto Egeo nas lojas e à noite se encon-
tram com seus pares. Ao final em off entra a locução “No dia dos namorados,
entregue -se às sete tentações de Egeo de O Boticário”.
A marca sofreu uma tentativa de boicote por internautas em redes sociais
e de grupos religiosos por apresentar casais homossexuais. A página da empresa
no facebook também recebeu inúmeras mensagens tanto de elogios quanto de
manifestações de caráter homofóbico. O site Reclame Aqui teve um grande
número de reclamações sobre a “banalização da família brasileira”. O You Tube
também gerou uma grande contagem de curtir (likes) e não curtir (dislikes).
Além disso, o filme foi alvo de denúncias no Conar (Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária) que abriu processo pelo número de recla-
mações recebidas sobre o fato da mesma ser considerada, pelos reclamantes,
“desrespeitosa à sociedade e à família brasileira”. A representação nº 088/2015
resultou em arquivamento por unanimidade em 16/07/2015 (CONAR).
O humor não poderia ser deixado de lado em um “país da piada pronta”
(Zé Simão). Como forma de crítica à existência de um medo ao incentivo à
homossexualidade e à possibilidade de uma certa “contaminação” foi criado o
“raio boticarizador” com personalidades famosas que eram heterossexuais e se
transformaram em homossexuais ao usar produtos de O Boticário.
A resposta da empresa para a imprensa foi publicada em vários meios de
comunicação:
O Boticário esclarece que acredita na beleza das relações, presente
em toda sua comunicação. A proposta da campanha “Casais”, que
estreou em TV aberta no dia 24 de maio, é abordar, com respeito
e sensibilidade, a ressonância atual sobre as mais diferentes for-
mas de amor - independente de idade, raça, gênero ou orientação
sexual - representadas pelo prazer em presentear a pessoa amada

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no Dia dos Namorados. O Boticário reitera, ainda, que valoriza a


tolerância e respeita a diversidade de escolhas e pontos de vista.

Mesmo com a possibilidade de um resultado negativo para a marca, a


empresa apresentou um claro posicionamento sobre a diversidade do amor.
Outras marcas também já trouxeram a diversidade das relações amorosas
para suas ações comerciais, como a Coca-Cola (Felicidade sobre a Tradição),
Motorola (Para todas as formas de amor), o Bombom Sonho de Valsa (Pense
menos, ame mais), o Facebook (com o uso da ferramenta celebrate pride para
criar um arco-íris na foto do perfil após aprovação do casamento entre pessoas
do mesmo sexo nos Estados Unidos) entre outras.
Na campanha de 2016, a empresa teve um outro posicionamento. São
dois filmes de 30 segundos com dois casais formados por um homem e uma
mulher que não se conhecem e se beijam depois de ganharem presentes de
dia dos namorados de O Boticário. Depois do beijo ele pergunta “qual teu
nome?”, ela responde e também pergunta. Uma música romântica em italiano
toca como BG. No primeiro, o vídeo dela, aparecem um homem e uma mulher
que trocam um super beijo depois que ele (homem branco) se aproxima dela
(mulher negra) que está sentada em uma escada de um museu, entrega-lhe a
caixa e diz “feliz dia dos namorados”, beijam-se, perguntam o nome e, em off,
a narradora diz: “Imagine o que Make B Barbie pode fazer por vocês que se
amam”. No segundo, o vídeo dele, um homem sentado em uma mesa de bar
em uma praça recebe o presente de uma mulher (branca) que diz “feliz dia dos
namorados”. Depois do beijo, ele pergunta “qual teu nome?”, ela responde e
também pergunta. Em off, “Imagine o que Malbec Noir pode fazer por vocês
que se amam”.
Uma das críticas que também foi feita à campanha de 2015 foi a de que
não apareciam pessoas negras. Talvez esta seja a resposta dada este ano.
Outra campanha que interessa quanto à questão de gênero desta empresa
é uma de lançamento de produtos masculinos da linha Men (08/05/2016): “Para
o você que existe no ogro”. O filme de 30 segundos criado pela AlmapBBDO
traz no texto frases como “A gente se cuida mas não conta pra ninguém”. A
ideia é que embora os homens não admitam, eles também se cuidam. Para
isso, o comercial tem como principal protagonista o ator Malvino Salvador,
que estrelou em 2014 a versão brasileira do comercial da marca Old Spice da
Procter & Gamble, cujo mote era “partículas de cabra macho”, homem com
cheiro de homem, “The man your man could smell like” (2010) nos Estados

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Unidos, enfatizando os estereótipos do homem alfa de forma bem humorada.


O “homem homem” é tratado como uma espécie em extinção, e o produto
promete resgatar esta figura e com isso “salvar” a humanidade. O texto da
publicidade brasileira em off apresenta imagens do ator envolvido em explo-
sões, entre outras situações.
A escolha deste ator parece fazer pensar que O Boticário queira resgatar
o público que teria ficado “ofendido” com a campanha de casais gays do ano
anterior.

Cidadania LGBT e a Comunicação

No dia 26 de junho de 2015, a Suprema Corte dos Estados Unidos apro-


vou o casamento entre pessoas do mesmo sexo para todo o país. Segundo
reportagem do igay, com a decisão, nenhum dos 51 estados poderá proibir
o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O casamento entre homossexu-
ais já era aprovado em 36 estados norte-americanos e também no Distrito de
Columbia. A decisão para todo o país ocorreu quase dois anos após o Juiz
Associado da Suprema Corte, Anthony Kennedy, revogar a lei federal de proi-
bição do casamento gay.
A aprovação do casamento para pessoas do mesmo sexo, nos Estados
Unidos, foi uma importante vitória para o movimento dos direitos de homosse-
xuais (http://g1.globo.com – 26/06/2015). A aprovação teve grande repercussão
em vários países, com destaque no Facebook, rede social em que seu criador
Mark Zuckerberg assim como inúmeros políticos, militantes LGBTTs, artistas,
instituições e população em geral usaram um arco-íris (símbolo do movimento
LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros) em seus avatares,
em comemoração ao fato. O Amor Vence e Igualdade Para Casamentos foram
hastags comemorativas à aprovação.
A data da aprovação do casamento para pessoas do mesmo sexo, nos
Estados Unidos, foi próxima ao 28 de junho, marco do movimento de direitos
dos homossexuais, celebrado em muitos países do mundo. O Dia do Orgulho
LGBT é celebrado em 28 de junho, pois nessa data, em 1969, gays, lésbicas, tra-
vestis, drag queens e transexuais de Nova York se revoltaram contra a repressão
e a perseguição que sofriam, enfrentando policiais pela primeira vez.
A aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, nos Estados
Unidos, ocorre em um contexto de avanços na garantia de direitos de pessoas

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LGBTT, naquele país, conforme apontam Mauro Vieira e Rafael Porto (2015).
VIEIRA e PORTO (2015, 170) mencionam que, em maio de 2012, em sua cam-
panha à reeleição, o presidente Barack Obama tornou-se o primeiro presidente
dos Estados Unidos em exercício a posicionar-se favorável ao casamento civil
homoafetivo.
No Brasil, em 7 de junho de 2015, foi realizada a 19ª Parada do Orgulho
LGBTT em São Paulo (considerada uma das maiores manifestações do mundo
pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).
Cerca de dois milhões de pessoas participaram da passeata, segundo estimativa
de organizadores ( http://g1.globo.com – 07/06/2015). Durante a manifestação,
conforme reportagens, o primeiro trio elétrico circulava com uma faixa com
a mensagem “Fora Cunha”, em menção ao então presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que defende pautas conservadoras e
contra minorias, como a criação do Dia do Orgulho Heterossexual. Na vés-
pera, em 6 de junho de 2015, foi realizada, em São Paulo, a 13ª Caminhada das
Lésbicas e Bissexuais, que já protestaram contra a discriminação sexual.
Além de grandes manifestações como as paradas e caminhadas (não ape-
nas de São Paulo, mas de várias capitais e outras cidades do País), no Brasil, já
tivemos a realização do 8° Senale (Seminário Nacional de Lésbicas) – em 2004,
do 1° Encontro Nacional de Arte e Cultura LGBT - realizado em 2014 –, da 1ª,
da 2ª e da 3ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos Humanos
para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – respectivamente, em
2008, 2011 e 2016, em Brasília. Essas ações, entretanto, não se traduziram em
lei contra a homofobia, em lei pelo casamento civil igualitário (em 2013, o País
passou a ter uma decisão do Supremo Tribunal Federal que garante o casa-
mento entre pessoas do mesmo sexo) ou em políticas públicas pela igualdade,
a partir da Comunicação e da Educação.
Em junho de 2015, a revista Cult publicou um Dossiê “Ditadura
Heteronormativa: A cultura que insiste em não reconhecer e aprender com as
diferenças sexuais e de gênero”. Nele, Leandro COLLING (2015: 22, 23) escreve
que “tomada como padrão na sociedade, a heterossexualidade promove não
apenas a violência física, mas também a violência simbólica contra os que se
desviam dessa norma”. O pesquisador lembra que “em geral, usamos o conceito
de homofobia para descrever qualquer atitude e/ou comportamento de repulsa,
medo ou preconceito contra os homossexuais. A homofobia não se restringe
apenas às violências físicas, mas também às variadas violências simbólicas”

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– que, certamente, podemos pensar quanto às variadas representações este-


reotipadas ou não representações de lésbicas, gays, bissexuais e travestis em
produções da mídia massiva e indústria cultural, no geral.
Rogério Diniz JUNQUEIRA (2015:39) explica como a escola, enquanto
instituição normativa, tem implantado uma pedagogia do armário, que instaura
um regime de controle e vigilância da conduta sexual, do gênero e das identi-
dades raciais. “Como lembra Didier Éribon em Reflexões sobre a questão gay,
injúrias e insultos são jogos de poder que marcam a consciência, inscrevem-
se no corpo e na memória e moldam as relações dos sujeitos com o mundo”
– refletimos que aqui, no tocante à Comunicação, bem diferente disso é um
anúncio como o do Boticário, no Dia dos Namorados, que apresentou diferen-
tes casais (homem e mulher, mulher e mulher, homem e homem), em situação
de amor e namoro.
Entendemos que a Comunicação é central na sociedade contemporânea
e necessária para a cidadania ativa e democrática de todas as pessoas. A cida-
dania comunicativa – conceito desenvolvido pela pesquisadora argentina Maria
Cristina Matta – é apontada, em obra do Grupo de Pesquisa Comunicação para
a Cidadania da Intercom, como importante e base para o exercício da cidadania
na atualidade (Lahni e Lacerda, 2013).
Ao refletir sobre relações de gênero, direito à comunicação, diversidade e
The L Word, Daniela AUAD e Cláudia Regina LAHNI (2013, 126) salientam que
“a série se tornou uma potente fonte de visibilidade das lésbicas e do que pode
ser denominado um movimento cultural, político e social das mulheres lésbicas,
assim como de suas diversas identidades”. Ainda refletindo a importância da
comunicação para a identidade e exercício da cidadania, com análise de entre-
vistas e Facebook, Hadriel THEODORO e Denise COGO (2014: 3423) apontam
que “Laerte [Coutinho] demonstra que ser diferente é possível, mas não sem
embates ideológicos e políticos contra sistemas sociais que buscam normalizar
a todos em um ideal de sociedade homogênea”. Essas e outras reflexões salien-
tam a importância da comunicação para a cidadania de pessoas LGBTs. Nessa
área se inclui a nossa reflexão sobre a campanha do Boticário para o Dia dos
Namorados, pensando a Publicidade nesse contexto da Comunicação para a
Cidadania.

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Considerações finais

A maneira de consumir alterou as possibilidades e as formas de exercer a


cidadania, uma vez que as perguntas e respostas de mulheres e homens nesta
área são obtidas “mais através do consumo privado de bens e dos meios de
comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia ou pela
participação coletiva em espaços públicos” (GARCÍA CANCLINI, 1999, p. 37).
O consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam
a apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a enxergar os
atos pelos quais consumimos como algo mais do que simples exercícios de gos-
tos, caprichos e compras irrefletidas (GARCÍA CANCLINI, 1999, p. 77). Apesar
de envolver uma relação de mercado, a campanha de O Boticário de 2015,
entre outras, serviu para pensar, usando as palavras de García Canclini, sobre
alteridade, liberdade, sexualidade, sentimentos e cidadania.
A aproximação entre estes temas, cidadania, comunicação e consumo,
procura reconhecer estes novos cenários de constituição do público e mostra
que para se viver em sociedades democráticas é indispensável admitir que o
mercado de opiniões cidadãs inclui tanta variedade e dissonância quanto o
mercado da moda, do entretenimento. Lembrar que nós cidadãos/ãs também
somos consumidores/as leva a descobrir na diversificação dos gostos uma das
bases estéticas que justificam a concepção democrática da cidadania. (GARCÍA
CANCLINI, 1999, p. 77).
A campanha de O Boticário de 2015, como outras, conseguiu ao mesmo
tempo apresentar seu produto, evocar um sentimento e provocar uma discus-
são sobre um assunto em pauta no momento, que é a questão da diversidade
sexual. A grande questão sobre as campanhas de 2016 é perguntar se a pressão
do mercado não fez O Boticário trabalhar de forma a “resgatar” este público
“macho” e trazer à tona justamente os conceitos alicerçados na sociedade que
giram em torno de discussões morais e que muitas vezes são homofóbicas. Por
esse motivo, não é possível aceitar a renúncia de determinadas instituições em
discutir sobre a diversidade das relações amorosas, pois o silêncio pode gerar
ainda mais conflito, falta de informação e construção de ideias equivocadas
e preconceituosas. O debate é fundamental para desconstruirmos conceitos
arraigados e compreendermos a alteridade, garantindo a cidadania de todas as
pessoas.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

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RECONFIGURAÇÕES PARENTAIS NO CINEMA BRASILEIRO:


REPRESENTAÇÃO DE FAMÍLIA HOMOAFETIVA NO CURTA
METRAGEM “CAFÉ COM LEITE”

Elias Santos Serejo


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Linguagens e
Cultura - Universidade da Amazônia
eliassantos1001@gmail.com

GT 08 - Gênero, diversidade sexual, emoção e moralidade

Resumo

Na contemporaneidade, diferentes arranjos familiares se apresentam para a


sociedade e têm suscitado debates sobre respeito, aceitação e garantia de direi-
tos. No cerne da discussão estão as famílias homoafetivas, núcleo formado por
pessoas do mesmo sexo. Este trabalho analisa a representação de novas famílias
no cinema brasileiro a partir da narrativa de um curta metragem. Partindo de
uma breve apresentação sobre a formação das identidades, elucidamos nos
discursos da trama e nas nuances do fazer cinematográfico esforços para tornar
a relação entre dois namorados e o irmão de um deles um núcleo afetuoso que
ensaia ser uma família. Afinal, o que é uma família? Quem pode dizer quais
relações constituem família? O cinema, ao nosso ver, tem contribuído para inse-
rir estes questionamentos na agenda pública.
Palavras-chave: diversidade; família; homossexualidade; cinema.

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Introdução

A emergência de novas configurações de famílias na contemporaneidade


apresenta desafios para o campo sociológico, jurídico e antropológico. Neste
artigo, propomos algumas reflexões sobre à construção de um desses núcleos
familiares - a família homoafetiva - no audiovisual e buscamos, assim, contri-
buir com a realização de um diálogo entre diferentes áreas que convergem em
esforços acadêmicos na luta pelo reconhecimento da diversidade de famílias.
Para isto, analisamos o curta metragem “Café com Leite”, do ano de 2007,
dirigido por Daniel Ribeiro. Desta forma, analisamos como a representação da
identidade contemporânea dos sujeitos homossexuais possibilita a emergência
de uma nova identidade familiar, mais plural e híbrida.
Para discutirmos a formação familiar proposta pelo filme é necessário dis-
correr sobre alguns aspectos da formação das identidades homossexuais e um
breve histórico da condição gay no mundo ocidental, sobretudo nas améri-
cas. A construção da identidade de um indivíduo é fator fundamental para o
entendimento de sua colocação no mundo e de seu constructo histórico-polí-
tico-cultural. Podemos entender a construção da identidade de um indivíduo
partindo basicamente de três momentos históricos: o sujeito iluminista, socioló-
gico e pós-moderno (HALL, 2003).
A concepção sociológica, que aqui nos interessa, acredita que o núcleo
interior do sujeito não é autônomo, nem autossuficiente, mas formado na rela-
ção com outras pessoas importantes para ele, “que mediam para o sujeito os
valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos em que habita” (HALL,
2003, p. 11). Esta construção é formada a partir da interação eu – sociedade
em que o sujeito é formado e modificado num diálogo contínuo (HALL, 2003).
Em relação à construção da identidade pós-moderna, Hall (2003) expõe que
esta modificação proporciona ao sujeito uma fragmentação, que comporta não
somente uma, mas várias identidades. Para ele, o próprio processo de identifi-
cação tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Woodward (2000) também nos aponta aspectos importantes para a cons-
trução das identidades, quando afirma que estas adquirem sentido por meio de
simbolismos e linguagens pelas quais elas são representadas. Esta representação
atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior
(HALL, 2003). Woodward (2000) inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meios dos quais os significados são produzidos (e a linguagem

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é um dos principais fatores), posicionando-nos enquanto sujeito. É por meio


dos significados produzidos e pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e aquilo que somos.
A produção de significados e das identidades que são posicionadas nos
(e pelos) sistemas de representação estão estreitamente vinculadas à visão
de mundo de cada indivíduo. Dando ênfase à saída da representação para
as identidades no sentido de um processo cultural que estabelece identidades
individuais e coletivas com os sistemas simbólicos nos quais se baseia, forne-
cendo possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser?
Quem eu quero ser? (WOODWARD, 2000).
São muitos e diferentes lugares a partir dos quais novas identidades podem
emergir e a partir dos quais novos sujeitos podem se expressar (LACLAU apud
SILVA, 2000); o surgimento delas também é pontuado pelas diferenças, já que
esta é considerada norte para a construção das identidades. Não se tem cons-
trução de identidade sem diferença.
Essas oposições são classificadas de formas díspares e por vezes polariza
as discussões em aspectos diferentes, fazendo a ordem social ser mantida por
meio de divisões como insiders/outsiders, sendo assim, as categorias pelas quais
os indivíduos transgridem essas ordens são relegadas ao status de outsiders,
garantindo o controle social desejado (Woodward 2000). Quando se questiona
a identidade e a diferença devemos atentar para a problematização destas dua-
lidades, já que a identidade e a diferença são produzidas de forma constante
e ativa, não são criaturas de um mundo natural ou imutável, são criações do
mundo cultural e social. Dentro desta discussão, Silva (2000) afirma que a iden-
tidade, assim como a diferença, se apresenta enquanto uma relação social. Isso
significa que sua definição (discursiva e linguística) está sujeita a vetores de força
e de relações de poder. “Elas não são simplesmente definidas, são impostas e
não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias,
são disputadas” (SILVA, 2000, p. 81).
Hall (2003) afirma que cumprimos diversos papéis sociais dentro das diver-
sas posições que assumimos em nosso cotidiano, por exemplo, em casa se vive
as identidades familiares e dentro dela somos espectadores das representações
pelas quais a mídia produz determinados tipos de identidades, sempre baseadas
dentro da normalidade – podemos expor aqui as telenovelas, anúncios, filmes,
técnicas de venda ou ainda os reality shows.

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“Você é namorado do meu irmão?”

Em “Café com Leite”, filme de Daniel Ribeiro, realizado em 2007, Danilo e


Marcos são um casal de namorados apaixonados. Contudo, no primeiro diálogo
já fica claro que a relação de ambos é um problema para família de Danilo. É
nesta cena inicial que Danilo convida Marcos para ir morar com ele e iniciarem
uma vida a dois (família?).
Apesar deste drama inicial, no filme, a homossexualidade se apresenta
como algo intrínseco, cujo poder que exerce sobre as relações com os meios
sociais é secundário. É possível perceber ainda no início do filme a sensibilidade
com que o assunto é tratado. Há ali a busca pela normalidade das relações
homossexuais sob a premissa de um gênero cinematográfico que ainda galga
espaços nas prateleiras. Segundo Margarete Almeida Nepomuceno (2009), o
termo New Queer Cinema, ou cinema queer no Brasil, foi alcunhado pela femi-
nista norte americana B. Ryby Rich, crítica de cinema, e utilizado pela primeira
vez em artigo datado do ano de 1992 publicado na revista britânica Sight &
Sound. O termo surgiu da busca da crítica por conceituar a produção cinema-
tográfica emergente nos circuitos de cinema independente cuja temática gay
permeava as narrativas difundidas.
De acordo com Nepomunceo (2009), o compromisso desta geração
de cineastas era com abordagens mais humanas a “respeito da homossexu-
alidade e na complexificação das subjetividades ambíguas e transgressivas”
(NEPOMUCENO, 2009, p. 02). O New Queer Cinema proporcionaria visibili-
dade às relações de subjetividades que atravessam tanto os modelos tradicionais
de sexualidade como a força das escolhas pessoais do próprio corpo e do que
Margarete (2009) chama de autorreferência de gênero.
A homossexualidade dos personagens já está inserida no contexto da
relação amorosa entre ambos e representa um substrato das relações contem-
porâneas estabelecidas entre jovens gays da classe média brasileira. O que
pretendemos debater neste texto são exatamente as nuances que se apresentam
com a formação de um núcleo familiar que inclui um irmão mais novo, o irmão
mais velho e o namorado do irmão mais velho. “Café com Leite” não pretende
ser um tratado sobre as relações homossexuais ou à diversidade de famílias,
mas uma narrativa sutil cujo principal elemento é o afeto.
Lopes (2006) afirma que a representação social possibilita uma política
identitária de confronto e marcação das diferenças. O cinema assume papel

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fundamental ao enfatizar as múltiplas relações sociais que se apresentam na


contemporaneidade. Tal estratégia coloca em cheque a relação entre estere-
ótipo, estigma, reconhecimento, representação e inclusive a cultura. A partir
desta afirmação, faz-se necessária a defesa da inclusão das imagens positivas
da homossexualidade, levando em consideração o caráter estruturante das rela-
ções de reconhecimento e representatividade que emergem das telonas (LOPES,
2006).
Danilo é confrontado com uma nova realidade. Os pais morrem e ele se
torna o responsável pelo irmão mais novo, o “café com leite”. No ímpeto de
construir uma nova família, Danilo inicia a aproximação entre Marcos e o irmão
Lucas. Mesmo tendo que adiar alguns planos que havia feito com o namorado,
Danilo enxerga nessa nova reconfiguração familiar que se apresenta uma opor-
tunidade para serem felizes.
A sociedade contemporânea percebe a entidade família como a mais
natural das instituições, conforme frisa Zambrano (2006). É a família o núcleo
estruturante pelo qual é transmitido os valores culturais importantes para a
valorização do indivíduo. Contudo, essa naturalidade se apresenta, também,
com a falsa ideia de universalidade. Muitos estudos desmistificam, sobretudo
no campo da antropologia, a ideia normativa de concepção de família univer-
sal, visto que tal instituição é fruto de seu tempo, espaço e cultura ao qual está
inserida (ZAMBRANO, 2006).
Elizabeth (2006) explica que o modelo familiar mais comum no ocidente
corresponde ao da “família nuclear”: um pai, uma mãe e filhos. No Brasil este
termo tem sido substituído pela sociedade pelo conceito de “família tradicio-
nal”. Tal entidade é constituída pela necessidade biológica que infere e para
formar tal núcleo são necessários um homem e uma mulher que, por sua vez,
devem produzir uma criança. Tal fato é apresentado como uma verdade irrefu-
tável, pois uniria dois âmbitos que não abririam margens para questionamentos:
o biológico e o social. A crítica a esse modelo é justamente na desconsideração
das diferentes formas de expressão da família, fundadas nas variações tempo-
rais, espaciais e em uma mesma época e local (ZAMBRANO, 2006).
Em meio a dor e a angústia, a relação entre os irmãos se torna mais forte.
É como se Lucas transferisse ao irmão a imagem paterna e materna. “Café com
leite” é uma típica sentença brasileira que designa uma pessoa, dentro de um
jogo, ou brincadeira, que não pode ser coberta de forma integral por todas as
regras, já que se trata de alguém menor, com menor nível de compreensão do

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que está a sua volta. Em geral, “café com leite” é sempre o irmão caçula de
alguém da turma de brincantes.
Quando Lucas pede para Marcus fazer seu leite, o pedido é muito maior
do que um misturar de líquido, e sim uma necessidade de atenção, afeto que
se transferiu dos pais para o irmão. É neste momento que percebemos o quanto
Danilo não estava preparado para essa realidade. Ao esquentar o leite no micro-
-ondas, ele perde o ponto e o deixa quente demais. Esta é a deixa para uma
das cenas finais, em que Danilo experimenta vários níveis de temperaturas em
vários copos de leite até encontrar o que mais agrada ao irmão, apontando que
ele está se esforçando para compreender a nova realidade, a nova família.
Danilo não sabe a série que o irmão cursa, apontando um abismo na
relação entre os dois e reforçando o quão difícil está sendo para ambos lidarem
com a situação. O roteiro exclui Marcus de parte dos primeiros seis minutos do
curta. A ausência do namorado nos faz direcionar o olhar para relação entre os
irmãos, para que ao retornar para a trama percebamos como Danilo acredita
na possibilidade de uma relação em que os três convivam, revelando assim a
emergência de um novo núcleo familiar.
A passagem de tempo, representada pelo consumo de caixas de leite
dispostas na dispensa, traz Marcus de volta à trama e, já na primeira cena,
demonstra a fragilidade da relação entre ambos após a morte dos pais de
Danilo. Marcus tenta se adaptar, mas, por limitações óbvias, já que a ruptura
do estilo de vida que levava com o namorado é brusca, encontra dificuldades.
É neste ponto que percebemos que o diretor apresenta a homossexualidade
como coadjuvante, que faz parte dos indivíduos, e não faz disso um drama
principal, ou seja, seus dramas são outros que vão além da aceitação da pró-
pria sexualidade e dos estigmas sociais que isso representa. Daniel lança um
outro olhar sobre o cinema produzido com histórias que envolvem personagens
homossexuais.
A nova realidade de Danilo o faz abdicar de uma viagem que faria ao lado
do amado Marcus, planejada antes da tragédia. Ao perceber as dificuldades
que se apresentam, Marcus decide viajar sozinho. Com a viagem do namo-
rado, Danilo encontra na companhia do irmão o afeto familiar necessário em
momentos de ruptura, ainda que tal ruptura pareça temporária, já que Marcus
deve voltar.

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Considerações finais

Representar um casal homossexual nas telonas sem que, contudo, a


condição homossexual seja o mote condutor da trama é um desafio. Com o
curta “Café com Leite”, Daniel Ribeiro exercita essa proposta de forma exitosa,
ensaiando, inclusive, inserir um outro debate na agenda pública, a questão das
famílias formadas por pessoas do mesmo sexo e/ou por descendentes, no caso
filhos/irmãos, em que um deles assume o papel de provedor da família, atuando
como pai/mãe.
Produzir cinema sobre diferenças contribui para a criação de novos discur-
sos e saberes sobre a diversidade humana. A sutileza das relações representadas
esteticamente por meio da arte do cinema, como no filme de Daniel Ribeiro,
pode sensibilizar a sociedade e engajar sujeitos sociais que se identificam com
a proposta na reflexão sobre papéis sociais, de gênero e de afeição. Marcus,
Danilo e Lucas podem ser primos, amigos, vizinhos, amantes. Podem ser qual-
quer um, afinal, esta realidade representada pelo curta é um fragmento dos
novos constructos sociais contemporâneos.

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A SEXUALIDADE NA POESIA DE NATAN BARRETO:


UM RECORTE1

Rose Mary Abrão Nascif


Profa. Dra. em Literatura Comparada (UFF)
Universidade Federal de Juiz de Fora – Faculdade de Letras
(Graduação e Pós-Graduação)
rosemma@terra.com.br

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Um dos assuntos que mais desperta interesse e controvérsias alude ao sexo,


ainda que suscite desconforto por certo temor ao ridículo ou por repugnância
(FOUCAULT, 2009, p. 12-13), motivo pelo qual, durante séculos, os únicos luga-
res de tolerância para abordá-lo teriam sido o prostíbulo e o manicômio, para
fora de cujas fronteiras apenas se lhe reservaria “o tríplice decreto de interdição,
inexistência e mutismo” (FOUCAULT, 2009, p. 11). Todavia, paradoxalmente,
nunca se deixou de falar sobre sexo, ainda que fosse para encobri-lo sob o
“decoro das atitudes” que escondem os corpos e a “decência das palavras lim-
pas” dos discursos (FOUCAULT, 2009, p. 10), tendência que atravessou séculos
para chegar até nós ainda carregado de melindres, distorções e arbitrariedades.

1 Este artigo constitui um desdobramento de outro, mais amplo, intitulado “A sexualidade na poesia
diaspórica brasileira: tradução comentada de poemas selecionados de Natan Barreto”, concebido
como trabalho de pós-doutoramento, ainda inédito, sob a supervisão da profa. Else R. P. Vieira, do
Queen Mary College da Universidade de Londres, instituição com a qual o Programa de Pós-gra-
duação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora mantém parceria de
colaboração em pesquisa acadêmica, através do projeto interinstitucional “Entre-lugares da literatura
da diáspora brasileira” (<http://pelomundobrasil.blogspot.com.br/>), patrocinado pela CAPES. Com
o corrente texto, porém, nos restringimos tão somente ao mote temático em pauta – sexualidade –,
por entendermos que a condição diaspórica do autor resulta irrelevante nesta oportunidade.

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Uma assertiva, porém, que não encontrará respaldo na poesia de Natan


Barreto, que em “Após o golpe do orgasmo” evoca o sexo situando-o no centro
do discurso do sujeito poético para expressar seu prazer orgástico, absorvido
por toda uma imagética de sensualidade que o conduzirá ao êxtase.
Após o golpe do orgasmo
(Esconderijos em papéis, p. 59)
Após o golpe do orgasmo, esbarro no espasmo da perda.
O leite ferve na fonte e se derrama em mim.
Um alicerce de sombras desaba sobre labaredas.
Cenas dissipam-se em fuga, meu filme chega ao fim.
Escorregando das redes e das paredes do nada,
solto no espaço que some, quando o cavalgar se acaba,
após o golpe do orgasmo, caio no chão do meu corpo,
a carne inerte, o punho morto – intimamente anoiteço.
Sol que eu era, já não sou; sonho dissolvido – sêmen.

O orgasmo configura-se no poema como uma condição passageira de


completude vital, prazerosa, contraposta ao subsequente retorno abrupto ao
mundo real (“sonho dissolvido”), precipitando-se inerte na frieza do solo da
existência. Contudo, a cena descrita sugere, mais exatamente, o desdobra-
mento de um ato de onanismo (“a carne inerte, o punho morto – intimamente
anoiteço./”), cuja libido se estimula por auto-indução através de projeções fan-
tasiosas (“Cenas dissipam-se em fuga, o filme chega ao fim./”) que aguçam seu
apetite sexual até alcançar sua plena satisfação. Enfim, resta-lhe apenas o fluido
corpóreo, único vestígio do gozo agora derramado sobre a realidade mundana.
Todavia, amparado pelo escudo da poesia, o autor se despe, sem culpa,
para versar sobre o assunto, conquanto há décadas “[...] que só falamos de sexo
fazendo pose [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 13), quase sempre esboçando descon-
forto em frases evasivas, cheias de recato moralista. A auto-exposição corrobora
a sua tendência para o confessional, ratificando a premissa foucaultiana de que
às práticas sexuais consideradas “desviadas” ou “periféricas” prescrevia-se a
confissão, a despeito do controle a que estavam submetidas pela “polícia do
sexo”, reservando-as ao âmbito privado, valorizando-as apenas enquanto um
segredo a ser mantido (FOUCAULT, 2009, p. 42).

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Prescrições confessionais à parte, o autor se mostra na intimidade como


quem já não teme a censura, já não teme ser o que é. Sequer há temor em con-
fessar-se atraído por alguém do mesmo sexo, como ocorre em “Opostos iguais”:
Opostos iguais
(Sob os telhados da noite, p. 93)
Dizem que os opostos se atraem.
Meu oposto me é igual.
Meu igual é o meu oposto.
Vejo em seu corpo
um reflexo do meu corpo.
Fico cara a cara com o meu igual,
corpo a corpo,
rosto a rosto;
com o meu igual, que é o meu oposto.
Há opostos que se atraem,
e há iguais;
de igual forma, há iguais.
Eu atraio o meu igual
que igualmente me atrai.
Atrair ou ser atraído
não é voluntário gesto,
não é gesto escolhido.

O sujeito lírico parte do consagrado princípio físico que prevê a atração


entre duas cargas elétricas de polos distintos para, em seguida, refutá-lo. A con-
dição humana, afinal, embora atrelada às correntes leis naturais, está suscetível
ao contraditório, capaz de surpreender a mais inflexível lógica cartesiana. Com
efeito, embora ainda vigore um irrefutável conluio de “vigilantes” empenhados
na preservação da sociedade contra as chamadas “abominações” sexuais a que
estaria exposta, também é inegável que mudanças interessantes têm ocorrido
em termos de dispersão de sexualidades, tornando-as mais perceptíveis e hete-
rogêneas em suas formas de manifestação e campo de ocorrências. Com isso,
admitir a própria homossexualidade presume um ato de inconformismo contra
as ordens civil e religiosa que, por séculos, a enquadraram como uma forma
extrema de contravenção, cuja prática infringiria “decretos tão sagrados como
os do casamento [...] estabelecidos para reger a ordem das coisas e dos seres”
(FOUCAULT, 2009, p. 45), e a cujos praticantes chegou-se a taxar de criminosos.

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Não obstante, malgrado hoje em dia esteja desembaraçada do estigma da


criminalidade, a homossexualidade ainda se predispõe a ocultar-se por trás da
discrição para escapar a outras circunstâncias de intolerância e violência. Uma
invisibilidade, contudo, que não inviabiliza a sua existência, cuja expressão
encontra na linguagem poética um instrumento de representação e resistência,
a despeito da contumaz homofobia, explícita ou não.
Enquanto força criadora, a poiesis confere ao poeta um poder particular
de percepção, através do qual ele exercita seu livre arbítrio como meio de
demarcar sua presença no mundo. Daí a transcendência do poema, cujo poten-
cial transgressor suscita reflexões em torno de um assunto que até hoje fomenta
tantas disputas entre teóricos e entre instituições sociais quando da discussão
sobre os valores éticos, morais, legais e políticos na ainda inócua busca por
definições cabais sobre o tema.
A propósito, caberá ao próprio poeta a decisão pelo legado que ele pre-
tende conferir ao mundo, conquanto seus distintos eus têm se revezado ao longo
de sua existência até chegarem ao estágio presente, também transitório, num
processo contínuo de mutação. Cada um deles se desdobra em outro, acom-
panhando em sucessivas etapas virtuais o sujeito real, que, paradoxalmente,
se quer irreproduzível, completo em si mesmo, despojado de descendentes,
certo de que sua posteridade se encerrará consigo. Ele será seu ponto final,
um “galho” em cuja árvore genealógica não germinará, a não ser no plano vir-
tual, na forma de “duplos” vindouros, seus únicos e factíveis herdeiros, assim
expresso em “Árvore genealógica”:
Árvore genealógica
(Sob os telhados da noite, p. 25)
Minha vida vai parar em mim,
pois os meus filhos talvez nunca sejam.
Na árvore genealógica da família,
o galho que me sustenta
só sustenta a mim.
É leve e não se ramifica em outros galhos.
Enquanto a árvore toda sabe que poderá continuar a crescer,
o galho que me sustenta
já sabe que já é tudo o que poderá vir a ser.
Da minha parte só brotam galhos invisíveis...
são os filhos que nunca tive.
E esses galhos seguem por sua vez...
são os filhos dos filhos que nunca terei.

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Sexual e de gênero
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Com uma vasta gama de significados, o simbolismo da árvore evoca a


imagem de sustentáculo do mundo, cujos galhos (a diversidade) se propagam a
partir de um tronco comum (a unidade), da mesma maneira que a evolução e
o conhecimento se multiplicam pelo mundo. Acredita-se que seu simbolismo
cósmico tenha se originado de cultos nos quais a árvore personificava a fecunda
Mãe Terra, razão pela qual, apesar de sua verticalidade fálica, esteja habitual-
mente associada ao feminino e ao maternal (TRESIDDER, 1998, p. 208-209).
Por isso, com frequência, ela também se configura como a metáfora de toda
a criação. No poema, o sujeito poético insinua que seus filhos “talvez nunca
sejam”, pois não haverá lugar para outros senão ele próprio; dele não nascerão
outros “frutos”, cuja improbabilidade de nascer, confere leveza ao galho, isento
que estará do peso de outros corpos. Sem motivos expressos – porém presu-
míveis –, o sujeito poético rejeita a possibilidade de procriação, recusando-se a
render-se ao modelo regulador de comportamentos que prevê como normal e
legítimo apenas a sexualidade reprodutiva. Aquele que estiver fora das normas,
o “anormal”, deverá sofrer as sanções, reiterando, assim, a concepção de que
sobre o sexo alheio aos padrões aceitáveis – reprodutor –, nada deva ser dito,
visto ou sabido. E, se por ventura o suposto “estéril” insistir em sua “esterilidade”
voluntária, deverá ser ao mesmo tempo “expulso, negado e reduzido ao silên-
cio” (FOUCAULT, 2009, p. 10).
Não obstante, o sujeito poético parece determinado a violar essa lei “dos
homens”, fazendo-a vigorar num plano paralelo, associado por ele a uma espé-
cie de metafísica dos corpos. Neste âmbito, onde a lei mundana não o alcança,
ele transcende a materialidade física para dar livre curso à sua existência, repro-
duzindo-se numa dimensão abstrata, perpetuando-se por outras vias. Por sua
vez, no plano objetivo, o poeta esquiva-se das sanções ao romper o silêncio
através da criação poética, capaz de render-lhe frutos “invisíveis”, de outra natu-
reza. No que lhe concerne, a família (a árvore genealógica) está ciente de que
“poderá continuar a crescer”, sem a participação direta do sujeito poético, que
se mantém isento da obrigatoriedade de procriar e de levar adiante a expec-
tativa tradicionalmente depositada em especial sobre os varões no sentido de
promover a perpetuação da linhagem a que pertencem. Essa lógica pautada
na reprodução da espécie se desdobra em conceitos fundamentalistas a partir
dos quais a família, concebida como célula mater da sociedade, configura-
-se como o primeiro grupo social a acolher o indivíduo, de quem se espera

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Sexual e de gênero
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estabelecer com ela laços indissolúveis, comprometido com os papéis sociais a


ele predeterminados.
Nesse aspecto, a despeito de sua natureza preponderantemente ficcional,
a poesia torna-se um instrumento privilegiado de expressão discursiva articulada
pelo poeta, neste caso particular, a partir de pulsões sexuais aliadas a sua histó-
ria pessoal. Será nos ruídos dessas silenciosas linhas onde encontraremos uma
força subliminar e combativa que desestabiliza a “austera monarquia” do sexo
enquanto entidade opressora e proibitiva. Entrementes, embora este embate
pareça infinito e tão desigual nas suas frentes sociais, políticas e jurídicas, o
estatuto transgressor da homossexualidade não deve apoiar-se na sua vitimi-
zação – ainda que eventualmente justificável –, pois é preciso vivê-la como se
não fosse “fora-da-lei”, mas sim apoiada e protegida por ela, integrada plena-
mente ao circuito social, em todas suas instâncias, desimpedida de culpas e de
constrangimentos.

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Referências

BARRETO, Natan. Esconderijos em papéis. Salvador: Kalango, 2007.

___________. Sob os telhados da noite. Salvador: Edição do autor, 1999.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. v. 1. Trad.: Maria


Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque. 19 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2009.

TRESIDDER, Jack. Dictionary of symbols: an illustrated guide to traditional images,


icons and emblems. San Francisco (USA): Chronicles Books, 1998.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

“NÃO ME INCOMODA, MAS...”

Camille Roberta Balestieri


Bacharela em Comunicação e Multimeios (UEM)
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (UFJF)
Pesquisadora do Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade, Educação e
Diversidade (GESED/UFJF)
camille.balestieri@gmail.com

Lia Maria Manso Siqueira


Bacharela em Direito (UFJF)
Mestra em Direitos Humanos e Inovação (UFJF)
liamariaadv@gmail.com

GT 08 - Gênero, diversidade sexual, emoção e moralidade

Resumo

A cibercultura oportuniza novas compreensões dos espaços e reconfigura os


processos de reconhecimento de sujeitos, inaugura, portanto, novas formas
de circulação de discursos. A partir destas reflexões, interessa-nos discutir a
rede social facebook como espaço de disputa de discursos sobre LGBTTs entre
sujeitos que buscam estima e reconhecimento de suas identidades de forma
complexa. As conceituações sobre reconhecimento adquirem uma importân-
cia substancial na contemporaneidade, principalmente para elucidar a relação
intrínseca e necessária entre subjetividade e intersubjetividade. Para tal, ana-
lisaremos os comentários sobre a campanha contra a LGBTTfobia “Por que a
gente te incomoda?” colhidos na página oficial da Universidade Federal de Juiz
de Fora.
Palavras-chave: Diversidade; Sexualidade; Cibercultura; Reconhecimento;
Identidade.

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Introdução

Para pensar em identidades em disputa no ciberespaço é preciso consi-


derar as ambivalências emergentes em suas formações na passagem do século
XX para o XXI: o desenvolvimento e os usos das tecnologias de comunicação
agenciam a globalização e cosmopolitismo criadores de identidades hegemô-
nicas ao mesmo passo em que oportunizam a emergência de expressões de
identidades coletivas desviantes (CASTELLS, 1999).
O presente trabalho objetiva compreender como é desenhada a intersub-
jetividade através do ciberespaço. Intentamos investigar, como estas instâncias
de diálogo agem para pautar e ampliar a luta por reconhecimento (HONNETH,
2003). A pesquisa observa os fluxos de discursos no ambiente da rede social
facebook no que diz respeito às reações de estima ou depreciação a partir da
campanha de combate à LGBTTfobia “Por que a gente te incomoda”, veiculada
pela Universidade Federal de Juiz de Fora em Maio de 2016.
Para analisarmos os contextos de cibercultura adotamos como marcos as
contribuições de Castells (1999) e Pierre Lévy (1999). Estes serão sopesados e
compreendidos através dos marcos da teoria do reconhecimento utilizados na
presente pesquisa como Axel Honneth (2003) e Nancy Fraser (2001), em con-
vergências com os estudos culturais sobre identidades e diferenças de Stuart
Hall e Kathryn Woodward (2005).

As tensões do trinômio identidade – diferenças – reconhecimento

Ao vislumbrarmos os estudos culturais percebemos que as representa-


ções são compreendidas como um sistema linguístico e sociocultural vinculado
às relações de poder. Através dos significados produzidos pelas representa-
ções é que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos (HALL;
WOODWARD, 2005).
Nesse sentido, de alguma forma, um dado aspecto do mundo pode ser
representado de diferentes formas em um discurso, texto ou representação
audiovisual, de modo que as distintas formas de representação estão sujeitas a
escolhas linguísticas e imagéticas que serão realizadas em construções discursi-
vas, instanciadas nas mais diversas práticas sociais. Por meio das representações
a identidade e a diferença passam a existir, articuladas e transpassadas pela luta

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por reconhecimento em ambientes conflitivos e dinâmicos – em uma verda-


deira gramática moral dos conflitos sociais.
Aprofundando a análise na gramática social dos conflitos (HONNETH,
2003). Para Honneth, por meio de relações intersubjetivas, os indivíduos esta-
belecem três formas de interação social: a primeira delas é a autoconfiança,
que se expressa nas relações de amor a amizade por meio das quais a unidade
originalmente simbiótica entre mãe e filho irá se romper, originando instâncias
de autonomia apoiadas pela dedicação materna; a segunda forma de reconhe-
cimento ocorre por meio da atribuição de direitos universais que permitem aos
indivíduos alcançarem um sentido de autorrespeito - é por meio de relações
juridicamente institucionalizadas que os cidadãos constroem a sua autoima-
gem; a terceira forma de reconhecimento constitui a dimensão da autoestima,
por meio da qual os indivíduos são socialmente estimados por seus atributos
singulares na esfera da divisão do trabalho de uma comunidade. Ainda em
Honneth, somente quando os indivíduos se propõem a rearticular as relações
de interação social, é possível superar a tensão afetiva inerente ao potencial
emancipatório das experiências de sofrimento (HONNETH, 2003).
Os entraves nas supracitadas dimensões significarão formas de desres-
peito definidas por Honneth (2011), são elas: maus-tratos e violação; privação
de direitos e exclusão; degradação e ofensa. O desrespeito em cada uma des-
tas dimensões possibilita ameaças aos componentes da personalidade como a
integridade física, a integridade social e a honra/dignidade (HONNETH, 2011).
Nesta proposta, a teoria do reconhecimento passa, atualmente, a ser vista
como uma nova possibilidade de interpretação para uma teoria crítica alterna-
tiva para os problemas das sociedades contemporâneas.
Fraser, assim como Honneth também pretende estabelecer uma teoria
social crítica a partir das contribuições de Habermas e Foucault (SILVA, 2005).
Partindo destes, criticamente, percebe que a proposta foucaultiana revela as
assimetrias do poder, contudo, a ausência de normatividade, impede pensar-se
em uma prática emancipatória. A proposta habermasiana, por sua vez, é ela-
borada em torno de critérios normativos, entretanto, Fraser pondera (FRASER,
2001), o autor não atenta em seu modelo para as disparidades derivadas das
relações de dominação como as questões de gênero e raciais, não problemati-
zando o conceito de esfera pública.
Em via paralela à honnethiana, a autora refletirá sobre compreender o
reconhecimento como uma questão de justiça. Assim, na questão de o que

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há de errado com o não reconhecimento a resposta não deveria direcionar-se


para a distorção do sujeito em sua relação prática com o “self”, mas para que
é injusto que alguns indivíduos e grupos neguem o status de parceiros sociais
plenos, nos papéis institucionalizados de valor cultural, para aquelas(es) que
não puderam participar de maneira equânime nestas construções. Logo, em
Fraser (2001), tratar o reconhecimento/ não reconhecimento pelo viés da justiça
impõe-nos olhar para o status social e se os padrões culturalmente valorados
permitem que todos os atores possam atuar como pares, este seria o caminho
para falarmos em reconhecimento recíproco e status de igualdade.
Em uma análise inicial da campanha no ciberespaço partimos de algumas
premissas das teorias do reconhecimento. Assim, afirmamos inicialmente que
as pautas da diversidade sexual são percebidas não apenas como mecanismos
de reação às opressões experimentadas, mas também pela intenção e disputas
pela formulação de um novo projeto de sociedade – filtradas pela apresentação
de demandas e interpretadas em discursos contra hegemônicos e novas práticas
coletivas de pertencimento grupal.
Diante das compreensões honnethiana e fraseriana, estas batalhas de reco-
nhecimento abarcam um potencial emancipatório e coletivo: busca-se a estima
social mas não pelo abrandamento da diferença, mas por meio da contestação
do pensar/agir hegemônico. Assim percebemos na campanha estudada. Esta, ao
lançar aos usuários da rede questionamentos sobre o incômodo, potencializa a
identidade divergente da normalizada pelo discurso heteronormativo – buscam
reconhecimento como uma reivindicação por justiça e equânime participação
no projeto de construção social.

A luta por reconhecimento no ciberespaço

Pierre Lévy (1999), referencial recorrente nos estudos sobre o ciberespaço,


propõe que na cibercultura é expressado o ensejo pela construção de um laço
social que se dá pela reunião em torno de interesses comuns, pela colabo-
ratividade, aprendizagem cooperativa e compartilhamento do saber. O autor
defende o ideal da “democracia eletrônica” na qual cidadãos e cidadãs pode-
riam gerir as comunidades locais por meio de auto-organizações, democracia
em que as deliberações estariam ao alcance das pessoas e grupos diretamente
afetados pelas decisões e em que a transparência na construção e avaliação
de políticas públicas seria garantida. A observação da atuação de usuários e

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usuárias no ciberespaço faz com que as proposições de Lévy pareçam otimistas


demais (ou até ingênuas): a não compreensão dos limites entre público e pri-
vado e das redes sociais como espaço público distanciam a internet do ideal de
“ágora eletrônica”, lugar de debate, compartilhamento de saberes e construção
coletiva e a aproximam de lugar de violações de direitos e vivências.
Além disso, é necessário considerar as especificidades das redes sociais
enquanto espaços públicos: o facebook, por exemplo, é uma empresa multina-
cional cuja maior parte da receita é gerada pelos anunciantes. Trata-se portanto
de uma empresa privada que atende a interesses mercadológicos. Os “Padrões
de Comunidade”1 do facebook defendem o ideal da diversidade e estabelecem
que a missão da empresa é ofertar às pessoas a possibilidade de compartilhar e,
dessa maneira, tornar o mundo mais conectado e aberto, entretanto, é possível
averiguar que os interesses de grupos hegemônicos e elites econômicas pre-
valecem sobre as lutas das minorias (basta relembrarmos os casos de ataques
racistas a famosas2, as movimentações de grupos misóginos para tirar páginas
feministas do ar3 e a dificuldade do suporte do facebook acatar denúncias sobre
discursos de ódio).

1 Padrões de Comunidade do facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/communitystan-


dards>. Acesso em 12 de jul de 2016.
2 Homem é preso por ataques racistas a Taís Araújo e Maria Júlia Coutinho. Disponível em: <http://
famosidades.com.br/famosos/homem-e-preso-por-ataques-racistas-a-tais-araujo-e-maria-julia-couti-
nho.html>. Acesso em 12 de jul de 2016.
3 Jout Jout Prazer e outras páginas feministas são tiradas do ar no Facebook. Disponível em: <http://
blogs.ne10.uol.com.br/mundobit/2015/11/04/jout-jout-prazer-e-outras-paginas-feministas-sao-tira-
das-do-ar-apos-ataque-machista-online/>. Acesso em 12 de jul de 2016.

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Caixa de entrada do suporte do facebook

Observamos, portanto, que os discursos de ódio que circulam na socie-


dade também estão presentes na internet. Da mesma forma, grupos oprimidos
articulam sua resistência na rede, estes são os casos dos movimentos de enfren-
tamento às ditaduras e as indignações no Egito, na Espanha, em Wall Street e no
Brasil em que por meio do uso de redes sociais

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[...] pessoas de todas as idades e condições passaram a ocupar o


espaço público, num encontro às cegas entre si e com o destino
que desejavam forjar, ao reivindicar seu direito de fazer história –
sua história –, numa manifestação de autoconsciência que sempre
caracterizou os grandes movimentos sociais (CASTELLS, 2013, p.
7-8).

A disputa entre discursos de ódio e movimentos de resistência se torna


evidente quando observamos os comentários feitos por usuários e usuárias
do facebook sobre a campanha “Por que a gente te incomoda” na página da
Universidade Federal de Juiz de Fora, o álbum de fotografias4 e o vídeo5 que
compõem a campanha foram lançados no dia de Combate à LGBTTIfobia (17
de maio) como parte das ações da “Semana de Combate à LGBTTIfobia” com
o objetivo de provocar a reflexão sobre o preconceito.
No total, foram feitos 334 comentários até o dia 30 de junho (244 no
álbum e 90 no vídeo). Antes de analisarmos o teor dos comentários, assinalare-
mos alguns pontos que nos chamaram atenção: primeiramente, é notável que a
quantidade de comentários de ódio ou que tentam descredibilizar a campanha
são notavelmente menores que os comentários que a elogiam - no total, foram
contabilizados 16 comentários em desaprovação à campanha feitos por dez
usuários e uma usuária. Um destes usuários fez cinco comentários diferentes
sobre a campanha, a usuária e os outros nove homens não emitiram mais de
um comentário nas publicações selecionadas para a análise. Também é notó-
rio que estes comentários encorajam respostas da mesma natureza por parte
de outros/as usuários/as, como se esses/as aguardassem o respaldo de mais
pessoas para emitir suas opiniões. Os comentários que põe a campanha em
descrédito geram discussões que envolvem quem os respalda e usuários/as que
apoiam a campanha.

4 Por que a gente te incomoda? - Semana de Combate à LGBTTIfobia. Disponível em: <https://www.
facebook.com/souUFJF/photos/?tab=album&album_id=1172091196155566>. Acesso em 12 de jul
de 2016.
5 “Somos como você. Por que a gente te incomoda?”. Disponível em: <https://www.facebook.com/
souUFJF/videos/1172100262821326/>. Acesso em 12 de jul de 2016.

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Considerações finais

Diante dos apontamentos e levantamentos preliminares pudemos notar


que as disputas e discursos sobre a diversidade e ampliação da esfera de estima
social encampa não apenas a temática da sexualidade mas uma proposta con-
tra hegemônica de existir e se articular em patamares para além do individual. A
busca por reconhecimento demonstra, através da cibercultura, potenciais cres-
centes de ampliação e dispersão de pautas e reivindicações por realização de
justiça na vivência das diferenças, como propõe Nancy Fraser (2001). Contudo,
recapitulando a visão honnethiana (HONNETH, 2003), estas buscas por reco-
nhecimento, e de reação às situações de desrespeito, não ocorrem de maneira
linear mas frente a uma gramática moral dos conflitos sociais dinâmica e em
tensão de avanços, retrocessos e resistências reacionárias.

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Referências

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Editora 34 Ltda, 1999.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era


pós-socialista. Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contem-
porânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 245-282, 2001.

HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos


estudos culturais. Editora Vozes, 2005.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
Ed34, 2003.

HONNETH, Axel. Luta pelo Reconhecimento: para uma gramática moral dos con-
flitos sociais. Ed. 70, 2011.

SILVA, JP da. Teoria crítica na modernidade tardia: sobre a relação entre redistribuição
e reconhecimento (versão preliminar). Texto apresentado no GT25 Teoria Social e a
Multiplicidade da Modernidade do XXIX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 2005.

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HOMOEROTISMO EM TERÇA-FEIRA GORDA,


DE CAIO FERNANDO ABREU

Jaqueline Ferreira Borges


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)/ FAPEMIG
jaquelineborges.28@hotmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise sobre o conto de Caio Fernando
Abreu, intitulado Terça-feira gorda (1982) e os alcances literários dessa vertente
homoerótica, bem como as problematizações que vem sendo apresentadas
na atualidade. Sabendo que a literatura se apresenta como fértil terreno para
pensar questões relacionados ao corpo, sexualidade e gênero, abordado será,
um conto contemporâneo e de vertente homoerótica. Através de leituras sobre
o conteúdo abordado e buscando auxilio teórico em escritores que tratam
homoerotismo, violência e literature, pretende-se analisar o conto e os aspectos
homoeróticos presentes na narrativa, bem uma análise comentada da obra em
questão.
Palavras-chave: Literatura; Caio Fernando Abreu; Terça-feira gorda;
Homoerotismo.

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Introdução

As relações entre Literatura e sociedade dialogam cada vez mais, a litera-


tura de Caio Fernando Abreu abarca questões extremamente atuais e carregadas
de críticas sociais, apresentando acontecimentos cotidianos e conflitos na rea-
lidade brasileira, bem como os comportamentos desses indivíduos em diversas
situações.
O conto a ser apresentado, faz parte dessa estética contemporânea que
se apresenta questões sociais, esquadrinha novos caminhos e desconstrói a lite-
ratura convencional, ampliando o conceito de literatura e subvertendo o que
antes era tido como concepção literária.
Desta feita, analisaso o conto terça-feira gorda, de autoria do já mencio-
nado Caio Fernando Abreu, que apresenta um narrador personagem com o
intuito de criar uma empatia do leitor em relação à narrativa. O jogo de sedu-
ção e os aspectos eróticos narrados a todo tempo no conto, não faz com que o
leitor espere um fim tão trágico.
Nascido em 1948, Caio Fernando Abreu escreveu vários contos e roman-
ces, como Pedras de Calcutá (1977), Morangos Mofados (1982), Limite Branco
(1994), entre outros. A escrita de Abreu não é homogênea, pois ora apresenta
uma estrutura linear, ora uma estrutura fragmentária, num entrelaçado de for-
mas, estilos e linguagens. Na mesma proporção que usa uma linguagem vulgar,
também explora a forma culta da língua, apresentando a diversidade e plurali-
dade em seus escritos.
Segundo Ana Paula e Luana Teixeira Porto, a literatura de Caio Fernando
Abreu ainda não é fortemente explorada pela crítica.
A produção literária de Caio Fernando Abreu, embora tenha sido
consolidada como representativa na literatura brasileira contem-
porânea, tem recebido relativamente pouca atenção de estudiosos
e críticos literários, especialmente quanto a pesquisas que obser-
vam o teor social de sua obra. Compreende como textos do autor
expressam uma visão de mundo pautada em valores e ideologias
que primam pela liberdade individual […] o que torna fundamental
para construir um sentido a seus textos e articular a tendência esté-
tica à social, podendo-se determinar a sua importância no contexto
literário brasileiro. (PORTO, A. P. T. et al, 2004. p.62).

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Caio Fernando Abreu apresenta em seus escritos, aspectos que se cons-


troem por meio da exploração de temas que estão em evidência no cenário
social. Assim, Abreu destaca aspectos contemporâneos, entendido por Karl
Erik Schollamer (2009, p. 9), como “aquele que, graças a uma diferença, uma
defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxerga-lo” e
completa dizendo que a literatura contemporânea não está, obrigatoriamente,
apresentando a atualidade, a não ser que mostre alguma inadequação do
momento atual.
A sexualidade, tida desde muito cedo na história como algo proibido e
oculto, é narrado de maneira natural no conto de Abreu. A relação homoerótica
que perpassa todo o conto, fortalece a representação de que a homossexuali-
dade não é incomum ou excepcional.
Caio Fernando Abreu apresenta o livro Morangos mofados, publicado em
1982, publicando-o em um período que o Brasil estava mergulhado em censu-
ras e restrições. Abreu foi capaz de perceber os problemas sociais e transmití-los
de forma artística em sua obra. O conto Terça- feira gorda, de Caio Fernando
Abreu, encontra-se na primeira parte de seu livro “Morangos Mofados”, intitu-
lado O mofo.
O protagonista encontra outro rapaz em um baile que acontecia durante o
período de carnaval, ambos sem nome, tinham estereótipos diferentes dos que
ele conhecia como os das “bichas”, descontruindo o julgamento da sexualidade
do indivíduo a partir de suas aparências: “E ele não parecia bicha nem nada”
(ABREU, 2009, p.57).
O narrador continua apresentando o desejo daquele homem: “apenas um
corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que
por acaso era de homem também” (ABREU, 2009, p.57). A representação dos
personagens que protagonizam a relação homoerótica demonstra a ruptura de
estereótipos que classificam os gêneros diversos.
O conto se passa em um cenário urbano, incialmente em um baile e depois
na areia de uma praia. Contendo apenas dois personagens como principais e,
além deles, apenas o grupo de agressores que abordam o casal com violência.
É narrado em poucas páginas, como característica primordial do gênero, no
entanto apresenta diversas questões plausíveis de discussões e reflexões sociais.
Curto, porém, denso.
Em Terça- feira gorda, encontramos um narrador personagem, funcio-
nando como uma estratégia para que se crie empatia do leitor com a situação

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narrada no conto, convidando o leitor a partilhar daquela situação, desde o jogo


erótico à violência que os personagens sofrem.
Em um baile, o protagonista se sente atraído por um rapaz, então ambos
participam de um jogo erótico e de seduções, marcado por trocas de olhares,
buscando a confirmação de um interesse recíproco. Percebendo que já estavam
eroticamente presos um ao outro, se aproximam fisicamente, trocando carinhos
e frases que reforçavam a atração, até que decidem ir para um lugar mais reser-
vado para que pudessem se beijar e se aproximarem como quisessem.
Decidem, então, se dirigir à praia a fim de encontrar maior privacidade
para desfrutarem de seus desejos. Lá eles usaram drogas, se admiraram e então
brilham:
A gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar aper-
tado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um
sendo a metade per- dida do corpo do outro. Tão simples, tão clás-
sico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram
bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do
outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton,
ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor. E brilhamos.
(ABREU, 2009, p.59)

O conto se dirige ao fim quando os amantes são surpreendidos por um


grupo violento que descontroladamente maltrata o casal que se amara na praia.
O narrador protagonista consegue fugir, porém, o seu plâncton é pego e massa-
crado pelo impetuoso grupo.
E então conclui que “Fechando os olhos então, como um filme contra as
pálpebras, eu conseguia ver [...] a queda lenta de um figo muito maduro, até
esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos” (ABREU, 2009, p. 59),
através da metáfora do figo, narra então que o seu parceiro havia sido morto
violentamente.

Aspectos de crítica social apresentados no conto

Para pensar a questão da agressividade, Jurandir Freire Costa (2003)


aponta que ela está arraigada ao indivíduo de maneira instintiva e autônoma do
próprio ser humano, e completa que a civilização encontra aí o seu obstáculo
mais temível. Ainda a partir de Costa, ele apresenta a violência como fruto

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do inconsciente. “nasce da moção inconsciente, do movimento da pulsão que


tende à destruição, sem que haja mediação de nenhum motivo ou interesse da
razão. ” (COSTA, 2003, p. 39).
A violência sofrida pelo casal em Terça- feira gorda se estabelece nesse
conceito de violência apresentado por Costa (2003), pois eles não tiveram a
oportunidade nem de se defenderem, foram brutalmente pegos: “Mas vieram
vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agar-
rou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele
ficou no chão. Estavam todos em volta. ” (ABREU, 2009, p. 59)
A homofobia tem crescido demasiadamente no Brasil, a tolerância,
devendo ser superada com o passar o tempo, faz um percurso contrário, se
tornando uma questão preocupante e cada vez maior. A ultrapassada discri-
minação insiste em sobreviver, fazendo com que determinados grupos sejam
colocados à margem da sociedade.

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Referências

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BATAILLE, George. O erotismo. Trad. João Bérnard da Costa. Lisboa: edições
Antígona,1988.

BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de autoria feminina:


um estudo de Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed.
Mulheres, 2013.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. 2008.
204 p. COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal.
2003. 249 p. JUNIOR, Arnaldo Franco. Intolerância Tropical: Homossexualidade e
violência em “Terça-feira gorda”, de Caio Fernando Abreu. Revista do Centro de Artes
e Letras. Santa Maria: UFSM, (1), jan/jun. 2000.

PORTO, Ana Paula Teixeira; PORTO, Luana Teixeira. Caio Fernando Abreu e uma
trajetória de crítica social. Revista Letras, Curitiba, n. 62, jan. /abr. 2004. Editora UFPR.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na Literatura Brasileira.


In: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.

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A MULHER (OU QUASE) MAIS AUTÊNTICA


DE ALMODÓVAR: ANÁLISE DA PERSONAGEM
AGRADO NO FILME TODO SOBRE MI MADRE (1999)

Moraima Aparecida Anastácio Vilela de Melo1

Márcio Antonio de Souza Maciel2

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar o filme Todo sobre mi madre
(1999), do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, com foco principal na per-
sonagem travesti Agrado. Após percorrer o universo fílmico de Almodóvar,
observando suas características sempre buscando referências voltadas ao corpo
e gênero, permeamos os estudos feministas de gênero, a partir dessas teorias
levanta-se a discussão a respeito de gênero, corpo e construção do sujeito,
embasados na teoria feminista e teorias sobre o gênero. O artigo propõe uma
reflexão sobre a importância de se analisar essas experiências de margem para
que possam renovar as teorias feministas e de gênero.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; corpo; gênero; cinema; Pedro
Almodóvar; Todo sobre mi madre (1999).

1 Professora graduada pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, UEMS/Campo Grande,
tutora da Pós graduação a distância da Universidade Católica Dom Bosco, UCDB. E-mail:moraima.
vilela@gmail.com.
2 Professor adjunto da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS/Campo Grande, na área
de Língua e Literaturas de Língua Espanhola, na Graduação em Letras, bem como no Mestrado
Acadêmico em Letras. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literaturas de expressão
hispânica e literatura comparada assim como, também, tem interesse nos seguintes temas: questões
de gênero, subalternidade, homoerotismo e literatura gay.

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Introdução

Pedro Almodóvar nasceu na Espanha, mais precisamente em Calzada de


Calavatra, em Castilla – La Mancha, no começo dos anos 50, e teve uma cria-
ção rígida. Quando criança, estudou com os Salesianos e Franciscanos, porém
não se adaptava aos hábitos religiosos. Sua paixão pelo cinema começou muito
cedo e com 8 anos ele já frequentava o cinema.
Mudou-se para Madrid em meio a uma vasta cultura, finalmente ele
encontra seu caminho.Segundo Janete El Haouli, o cinema de Pedro Almodóvar
fala do corpo, acima de tudo sobre a intensidade sexual, a infâmia e delírios de
luxúria. Desta forma, em outubro de 1980, estreou o primeiro longa-metragem
Pepi, Lucy y Bom y Otras Chicas Del Montón,
apesar de ter influências do movimento pop, ele conseguiu com que seu
filme ficasse original.
Pepi, Lucy y Bom mostrou apenas uma pequena parcela do que viria a ser
o mundo fílmico de Almodóvar, mundo esse que futuramente seria chamado
de cinema almodovariano. Seus filmes não foram bem vistos pelos críticos tra-
dicionais, por conter uma ironia muito forte e eram filmes superficiais para os
tradicionalistas, mas com o tempo tornou-se mais crítico.
Almodóvar não dá apenas vida para seus personagens, mas, também,
lhes dá voz; oferece condições para que eles partam do universo marginalizado
e venham para o aconchego do cinema, fazendo com que temas polêmicos
sejam tratados com naturalidade. Seus filmes propositalmente não possuem
enquadramento certo, tal feito se deve à sua vivência artística e como produtor
de símbolos, partiu deste ponto de vista.
Em geral, suas personagens femininas, na maioria das vezes, são mulhe-
res sofridas, algumas já sofreram algum tipo de abuso sexual, tiveram tragédias
familiares ou traições. No entanto, essas personagens não ficam em condição
de vítima sofrendo, elas sempre sobrevivem, lutam pelos seus ideais, e supe-
ram, são solidárias umas com as outras.
Portanto, o cineasta inovou e vem inovando em seus filmes, seja com
temas polêmicos, com suas cores, músicas ou personagens, ele não segue um
único estilo de filme, vai da comédia ao drama, do drama ao suspense, um
cineasta que surpreende muito, com sua genialidade e criatividade.

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(Des) construindo o gênero

A palavra gênero predominou por muito tempo em textos e discursos das


feministas3, que defendiam que o sexo significava aquilo que ficava à margem
da cultura e da história, e buscavam sempre mostrar a diferença entre o mascu-
lino e feminino. Basicamente, o gênero tem suas origens em importantes ideias
do pensamento moderno ocidental: como o da base material da identidade, e a
construção social do caráter humano. (NICHOLSON, 2000, p.10)
Para as feministas, tal palavra tem seu significado bem claro e pode ser
pensado de duas formas, segundo Nicholson, o gênero foi desenvolvido e é
sempre usado em oposição ao que é biologicamente dado. Apresenta que
observando por este lado, o gênero é tipicamente referenciado à personalidade
e ao comportamento, e não remetido ao corpo; onde gênero e sexo são enten-
didos como distintos.
Um segundo significado, é o de que o gênero vem sendo cada vez mais
utilizado como referencia à construção social, que tem a ver com a definição de
masculino e feminino, incluindo a construção que separa o corpo feminino do
corpo masculino, essa última definição de gênero surgiu com a observação de
que a sociedade não forma apenas personalidade e comportamento, também,
influencia na forma de como o corpo se apresenta.
A segunda fase do feminismo ficou conhecida como o legado da distinção
entre gênero e sexo, onde se defendia a ideia de que o masculino e o feminino
se distinguiam pela biologia. A autora, ainda, frisa que até a década de 60, o
gênero ainda era utilizado para fazer referência as formas femininas e masculi-
nas, onde na mesma época havia alguns autores que acreditavam e aceitavam
que o caráter é formado socialmente, e chegam muitas vezes a rejeitar a ideia
de que o caráter possa ser formado biologicamente.

3 Os movimentos feministas são, sobretudo, movimentos políticos cuja meta é conquistar a igualdade
de direitos entre homens e mulheres, isto é, garantir a participação da mulher na sociedade de forma
equivalente à dos homens. Além disso, os movimentos feministas são movimentos intelectuais e
teóricos que procuram desnaturalizar a ideia de que há uma diferença entre os gêneros. No que se
refere aos seus direitos, não deve haver diferenciação entre os sexos. No entanto, a diferenciação
dos gêneros é naturalizada em praticamente todas as culturas humanas. http://www.infoescola.com/
sociologia/feminismo/.

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Em meados do século XIII surgiu a noção bissexuada contrastando com


a noção unissexuada; enquanto a noção unissexuada tinha uma visão de que
o corpo feminino era uma versão inferior do corpo masculino, já na nova
noção o corpo feminino tornou-se totalmente diferente e considerado vazio.
(NICHOLSON, 2000, p.19 apud Laqueur, p. 148).
O corpo em uma ideia antiga era visto como um só, o homem e a mulher
possuíam a mesma estrutura, os mesmos órgãos; visão que se modificou com
a noção bissexuada, onde o corpo masculino tornou-se distinto do corpo femi-
nino, tanto na estrutura física quanto na estrutura intelectual.
Quando a Bíblia e Aristóteles eram fontes de autoridade, qualquer dife-
rença corporal era justificada através dos textos, o corpo não era importante.
Mas quando esses textos perderam sua autoridade, onde a natureza passou
a fundamentar as diferenças entre homens e mulheres, dessa forma, o corpo
passou a assumir o papel de ‘’voz’’ da natureza, na medida em que havia a
necessidade de distinguir o masculino do feminino, o corpo tinha que falar de
forma binária, reforçando a noção bissexuada. (Idem, p. 21).
Algumas feministas não acreditavam que um homem poderia estar em um
corpo masculino, mas com alma feminina, assim como uma mulher no corpo
feminino, mas com alma masculina; Robin Morgan defendia a ideia de que um
homem querer ser mulher estava ligado diretamente a um desejo não de ser
mulher mas sim de ter a capacidade reprodutiva, porém que pode variar de
cultura para cultura.
Almodóvar tematiza em seus filmes a questão do corpo e gênero com
grande naturalidade, demonstra isso com a inserção de personagens sexual-
mente marginalizadas como travestis, homossexuais e transgêneros.
De maneira geral, Almodóvar apresenta em seus filmes a desnaturaliza-
ção dos gêneros permitindo dessa forma que seus personagens transitem em
universos diferentes sem se preocuparem com sexo ou gênero, mostrando que
o gênero é construído socialmente e que não deve ser associado a biologia,
(PASSAMANI, 2010, p.7). Conforme nos diz a estudiosa.

A mais autêntica de todas

Em seu filme Todo sobre mi madre (1999) Pedro Almodóvar apresenta


um leque de temas polêmicos como: AIDS, homossexualidade, prostituição,
travestivismo, entre outros. No filme, várias histórias se cruzam, entre dores e

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alegrias, cada história vai tomando seu desfecho, às vezes interligados, aos pou-
cos Almodóvar traça princípios ligados ao corpo e gênero.
O filme conta a história de Manuela que trabalha no setor de doação de
órgãos em um hospital em Madri e mora com seu único filho que morreu no
dia em que completava dezoito anos. Manuela cai em uma profunda depres-
são, então resolve viajar de volta para Barcelona, cidade de onde partiu grávida.
Lá ela reencontra Agrado travesti que se prostituta na zona de meretrício da
cidade, ela tenta recomeçar sua vida sem o filho. Neste tempo, conhece a Irmã
Rosa, freira que trabalhava fazendo serviço social com portadores do vírus HIV,
no entanto a Irmã se descobre grávida e com vírus HIV. Manuela entra em
contato com uma, atriz de teatro de quem seu filho era fã, e que está ligada à
sua morte: o jovem morreu no dia de seu aniversário, ao ser atropelado quando
tentava conseguir um autógrafo de uma na saída do teatro. Uma encena uma
peça chamada Um bonde chamado desejo e vive um drama com sua parceira
de palco e amante que tem problemas com drogas. Em Barcelona, Manuela
reencontra o pai de seu filho que por ventura também é travesti e pai do filho
da Irmã Rosa, uma travesti doente debilitada quase no fim da vida.
Como a opção de personagens e temas é vasta, me delimitei apenas a
analisar apenas um, a travesti Agrado, observando sempre aspectos que reme-
tam ao corpo e gênero.
A personagem Agrado, de certa forma, acaba se sobressaindo no filme,
pois é muito divertida e gosta muito de falar sobre o seu corpo. “Todo lo que
tengo de real son mis sentimientos y litros de silicona que pesan toneladas’’.
O ponto auto de sua personagem é quando sobe ao palco para avisar que a
apresentação havia sido cancelada, sendo assim ela tomou o palco pra si e para
divertir a platéia começou a contar-lhes sua história que a fazia a mais autêntica
de todas. Prende a atenção do público falando do próprio corpo:
“Bona nit4. Por causa ajenas a su voluntad, dos de las actrices que,
diariamente triunfan sobre este escenario, hoy no pueden estar
aqui, ¡pobrecillas! Así que se suspende la función. A los que quie-
ram se les devolverá el dinero de la entrada. Pero los que no tengáis
nada mejor que hacer, PA una vez que venís AL teatro ES una pena
que os vayáis. Si os quedais yo prometo entreteneros contándoos
la historia de mi vida. Adiós, ló siento; Si les aburro hagan como

4 Trecho retirado do roteiro original impresso do filme.

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que roncan. Así, yo me cosco enseguida... Y para nada herís mi


sensibilidad ¿eh? De verdad... Me llaman la Agrado porque toda mi
vida solo he pretendido hacerle agradable a lós demás . Alguno de
vosotros ya me conoce. Yo hacía la Carrera en los puentes, cerca
del cementerio, pero la edad – que no tengo – y un palizón que
me pegó un cliente me han convertido en una mujer decente...
Además de agradable, soy muy auténtica. ¡Míren qué cuerpo!
Reparen. ¡Todo hecho a medida! Rasgado de ojos, ochenta mil.
Nariz, docientas, tiradas a la basura porque un año después me la
pusieron así de otro palizón. Ya sé que me da mucha personalidad,
pero si llego a saberlo no me la toco... Continúo: Tetas, dos. Setenta
cada una, pero éstas las tengo ya superamortizadas. Silicona en
lábio, frente, pômulo, cadera y culo. El litro cuesta cien mil, así que
echad la cuenta porque yo ya la he perdido. Limadura de mandí-
bula, setenta y cinco mil. Depilación definitiva con laser, porque
la mujer <<también>> viene del mono, tanto más que el hombre,
sesenta mil por sesión. Depende de el barbudo que seas, ló normal
es de dos a cuatro sesiones, pero si eres folklórica necesitas más,
claro. Lo que les estaba diciendo, ¡cuesta mucho ser auténtica. Una
es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de si
misma...”

Ao contrário das travestis clássicas, Agrado, não busca ocultar sua iden-
tidade ou a de seu corpo. E ela não faz de conta que é mulher ou que sempre
foi; sua afirmação pública é feita pela exibição do seu corpo exatamente como
ele é: um corpo transformado, fabricado, que oferece se afirma como corpo
fabricado, não um corpo substantivo, objetificado, mas
corporalidade veículo e sentido da experiência. A autenticidade desse
corpo, segundo o próprio discurso de Agrado, é sua. Natureza estaria no pro-
cesso que o fabricou. Ao dizer que o que tem de mais autêntico é o silicone,
Agrado está revelando que o autêntico, nela, é justamente produto de sua cria-
ção, da intervenção de seu desejo, de uma agência própria. (MALUF, 2002,
p.145-146).
Ela não sente vergonha de ser uma travesti, pelo contrário, quando sobe
ao palco faz questão de afirmar que é autêntica por tudo o que pagou em seu
corpo, se chegou aonde está e com o corpo que tem, foi com o suor do seu tra-
balho, e não sente vergonha dele. Agrado não modificou seu corpo por querer
ser uma mulher perfeita ou uma simplesmente como as outras, apenas gosta de
ser genuína, sem copiar ninguém.

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O corpo só existe enquanto experiência O que seria o objeto ou a subs-


tância definidora de identidade (o corpo irredutível) aparece deslocado em sua
fala, mas os sujeitos que convivem com ela insistem nele. Eles querem ver o seu
pênis. O silicone, que para esses sujeitos seria o objeto efetivamente deslocado,
aparece na fala de Agrado como a sua natureza, o que de mais autêntico ela
possui. Ela começa a fala dizendo que irá contar a história de sua vida. E essa
história é contada através de seu corpo, ou melhor, de sua experiência corpori-
ficada. (Idem, 2002, p.147-148).
Quando Agrado sai da prostituição e das ruas e é dado a ela um serviço
convencional, como auxiliar de palco, Almodóvar está mais uma vez positi-
vando a questão de que não existe gênero, distancia a imagem dela de rótulos
de ocultação, até porque no caso de Agrado ela é a própria construção cultural,
advinda das problematizações do binarismo entre os gêneros, Agrado é a per-
sonificação da transformação da cultura. (PASSAMANI, 2010, p.10).
A personagem deixa subentendido que tudo é possível, pois quando ela
sai da prostituição e se torna auxiliar de palco, depois ela dá um show apresen-
tando a história de sua vida, faz com que exista uma possibilidade dela se tornar
uma grande atriz..
Não é o corpo da Agrado que a torna mais autêntica que as outras, e sim
sua experiência de vida, que a torna uma mulher única, seus seios são apenas
ideias subjetivas que se constroem em torno do corpo, onde o corpo tem mais
importância que o caráter.
O universo trans talvez seja o segmento mais discriminado das homos-
sexualidades porque é aquele que borra de maneira mais enfática a fronteira
entre os gêneros, construindo-se sobre a ideia da ambiguidade. Por mais esta
peculiaridade que este grupo carrega, é que se torna importante a abordagem de
Pedro Almodóvar sobre as travestis, não apenas por levá-las ao cinema, mas por
carregá-las de humanidade, que pressupõe acertos, erros, paixões, doenças, tra-
balhos, amores, enfim, características e situações a que todos os humanos estão
suscetíveis independente do gênero e da sexualidade. (PASSAMANI, 2010, p.10).

Considerações finais

Uma obra de Almodóvar não é uma tarefa muito fácil de ser analisar. Por
ser um cineasta de uma grande magnitude, seus filmes sempre trazem um cará-
ter cômico ou dramático, no entanto, sempre voltado por uma questão social

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e ou crítica. O filme Todo sobre mi madre (1999) é de uma riqueza temática


imensa, por isso optamos em analisar apenas uma personagem.
Analisando Agrado destacamos a questão de gênero, sexualidade e iden-
tidade. Baseados na teoria feminista, que contribuiu e continua contribuindo
nesses assuntos polêmicos, segundo a sociedade, esses temas não deveriam
ficar presos apenas nas telas de cinema ou em teorias, a sociedade deveria
voltar seu olhar para essa questões e buscar entender o verdadeiro significado
de gênero e identidade, partir do momento que todas as áreas da ciência olhas-
sem mais para essa questão, teríamos uma sociedade que apoia e entende a
diversidade.

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Referências

AMANN, Herausgegeben V.K. Pedro Almodóvar Todo sobre mi madre Guión origi-
nal. ISBN – 13:978-3-15-009135-7. p.207. 2005.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminino e subversão da identidade. Trad.


Renato Aguiar. 2. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

HAOULI, Janete El. A voz de Almodóvar. In: Urdiduras e Sigilos: Ensaios sobre o
cinema de Almodóvar. São Paulo. 2ª Edição Revisada. p.85-93. 1996.

MALUF, W.S. Corporalidade e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero na mar-
gem. Florianópolis. p.148. 2002.

NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. In: Revista estudos Feministas.


Florianópolis, v.8, n. 2, p. 9-41, 2000.

PASSAMANI, Guilherme R. Problematizando Corpos e Gêneros em Almodóvar: O


caso de Todo Sobre Mi Madre. Goiás. ISSN.1278-1280. p.11. 2010.

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O FACEBOOK E O WHATSAPP COMO FERRAMENTAS


METODOLÓGICAS

Isabella Tymburibá Elian


Mestre em Educação (UEMG)
Tutora Orientadora da Especialização em Gênero e Diversidade na Escola (UFMG)
isabellaelian@gmail.com

Niúra Ferreira e Barbosa


Especialista em Gênero e Diversidade na Escola (UFMG)
niuraf@gmail.com

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais enfrentam cotidianamente,


situações de preconceito nos espaços sociais, sendo que a escola é uma insti-
tuição de forte produção e reprodução da homofobia e transfobia. Participar de
pesquisas sobre educação, usualmente suscitam, nos sujeitos LGBT, lembran-
ças de violência física e simbólica, o que dificulta acessá-los para tal fim. O
Facebook® e o Whatsapp® têm se apresentado como importantes ferramentas
de pesquisa, para o encontro e contato com esses sujeitos. A partir disso, discuti-
mos as estratégias metodológicas utilizadas, com o auxílio destes softwares, nas
pesquisas: “Memórias Escolares dos Sujeitos LGBTT: a escola como mediadora
das identidades sexual e de gênero” e “Travestis e transexuais: transformações
e vivências escolares”.
Palavras-chave: Facebook; Whatsapp; metodologia; LGBT; educação.

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Introdução

As pesquisas com a temática da educação e diversidade de gênero e


sexual vêm crescendo amplamente na última década. Investigar os proces-
sos complexos que se desenvolvem dentro do ambiente escolar possibilita um
levantamento de ações que podem ser realizadas, com a finalidade de modificar
o cenário de violências físicas e simbólicas que ocorrem a partir da homofobia
e transfobia.
A escola é um espaço de mediação cotidiana das identidades, com dis-
positivos de subjetivação horizontais, que interferem na vida daqueles que se
encontram inseridos nesse ambiente de maneira direta (estudantes, professores e
funcionários) e indireta (comunidade escolar e pais dos estudantes), por meio de
relações complexas de produção, significado e poder, cada indivíduo é tocado
de maneira e com intensidade diferentes. Discursos de papéis de gênero, do
reforço da naturalização das diferenças e produção de territorialidades hetero-
normativas, contribuem para a ocorrência de práticas de reconhecimento, mas
principalmente de preconceito e discriminação dentro das escolas.
A partir da importância do papel da escola na construção das identidades
de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), apresen-
tamos a trajetória de busca e de encontro dos sujeitos das pesquisas “Memórias
Escolares dos Sujeitos LGBTT: a escola como mediadora das identidades sexual
e de gênero” (ELIAN, 2014) e “Travestis e transexuais: transformações e vivên-
cias escolares” 1, com o fundamental auxílio das redes sociais Facebook® e
Whatsapp®.
De acordo com dados levantados pela empresa Facebook® (2015), 45% da
população brasileira acessam sua plataforma todos os meses, o que corresponde
a 92 milhões de pessoas2. Segundo pesquisa realizada pela Ericsson (2016), o
Brasil é o país que mais troca mensagens instantâneas3 no mundo, sendo que
em 2015, 83% dos usuários da internet, utilizaram o serviço pelo menos uma

1 O relatório da pesquisa encontra-se em desenvolvimento, porém fragmentos desse trabalho já foram


publicados e apresentados no II Congresso Desfazendo Gênero, em Salvador, e no V Coloquio de
Estudios de Varones y Masculinidades, em Santiago/CL, ambos em 2015.
2 Fonte: https://www.facebook.com/business/news/BR-45-da-populacao-brasileira-acessa-o-Face-
book-pelo-menos-uma-vez-ao-mes
3 O Whatsapp® está dentre os programas mais acessados para a troca de mensagens instantâneas.

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vez por semana, contra 59% da média mundial. Esses dados demonstram a
importância dessas redes para a comunicação de brasileiros e, evidenciaremos
sua importância também na metodologia de pesquisa.

Contextualizando as Pesquisas

A pesquisa intitulada “Memórias Escolares dos Sujeitos LGBTT: a escola


como mediadora das identidades sexual e de gênero” (ELIAN, 2014) deriva do
processo de dissertação, que objetivou investigar como a escola interpela a tra-
jetória de homossexuais, transexuais e travestis e em quais pontos esse ambiente
se fez presente como um local de subjetivação do gênero e da sexualidade,
tanto de forma benéfica, quanto constituindo-se em um espaço da reiteração
da heteronormatividade. A pesquisa foi realizada entre 2013 e 2014, analisando,
à luz da teoria queer, entrevistas narrativas com cinco sujeitos: um gay, uma
lésbica, uma travesti, um transhomem e uma transmulher.
Já a pesquisa “Travestis e transexuais: transformações e vivências escola-
res” realizada em 2014, aborda questões sobre a vivência de sujeitos transexuais
e travestis no espaço escolar. Esse estudo partiu do pressuposto que as identi-
dades travesti e transexual ainda estão relegadas ao campo da inteligibilidade,
da invisibilidade e da abjeção e seus direitos básicos. O acesso e permanência
à educação básica comumente não são respeitados e, por vezes, esses sujeitos
são repreendidos em nome da manutenção da heteronormatividade, inclusive
através de violência.
Foram selecionados 38 sujeitos de pesquisa entre Travestis, Transmulheres
e Transhomens, de diversos estados brasileiros, com idades entre 18 e 59
anos, com graduações desde Ensino Fundamental até a Pós-Graduação. Elas
e eles responderam questões sobre escolaridade, continuidade nos estudos, a
representação da escola, situações de preconceito vividas no ambiente esco-
lar, processos de transformação do corpo e o quais as mudanças deveriam
acontecer nas instituições escolares para que essas fossem promotoras do reco-
nhecimento da diversidade.

O Facebook®, o Whatsapp® e os Sujeitos de Pesquisas

Nas duas pesquisas apresentadas o Facebook® foi uma importante ferra-


menta metodológica para a busca e o encontro dos sujeitos de pesquisa. Na

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primeira pesquisa apresentada, a busca por colaboradores foi iniciada por uma
rede de contatos pessoais, resultando no encontro dos sujeitos gay e lésbica,
que tiveram toda a comunicação durante o processo de apresentação da pes-
quisa e marcação da entrevista através do Whatsapp®, facilitando a troca de
informações e até o aceite em participar.
Desde o início desse estudo foram utilizados sites e redes sociais online
para discutir e conhecer mais sobre a diversidade sexual e de gênero. O acesso
aos sites destinados ao público LGBT elucidou perspectivas da dinâmica social
que a internet proporcionava a esse grupo. Muitas vezes, os sujeitos se coloca-
vam anonimamente nesses espaços virtuais, por temerem qualquer manifestação
de preconceito contra sua identidade. Deste modo, foi importante fazer parte
de vários grupos e páginas da rede social Facebook® para buscar mais informa-
ções correlacionadas à pesquisa.
As páginas são, comumente, perfis institucionais, ou seja, ligados a alguma
instituição acadêmica ou movimento social. Dentre elas, destacamos: “Eleições
HoJE - Homofobia Já Era”, “Una-se Contra a Homofobia”, “Gudds! - Grupo
Universitário em Defesa da Diversidade Sexual”, “Homofobia Não” e “Nuh
Educação Sem Homofobia”.
Esses perfis são importantes para difundir notícias tanto políticas, quanto
acadêmicas e sociais ligadas aos sujeitos LGBT. Além disso, é um espaço para
divulgar eventos, como: debates, manifestações e congressos sobre a identidade
de gênero e orientação sexual.
De forma semelhante os grupos do Facebook® também contribuíram
nesse processo, dentre eles o “ENUDS” – grupo pertencente aos participantes
do “Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual” –, “LGBT Brasil”,
“Grupo de Estudos de gênero, feminismos e teorias queer”, “ABEH - Associação
Brasileira de Estudos da Homocultura”, “Ato Anti-Homofobia” e “RESPEITO
GAY”. Todos esses são visíveis ao público da rede social, porém alguns depen-
dem de um aceite do moderador para a participação.
A diferença das páginas para os grupos está na possibilidade de discus-
são de seus participantes. No primeiro, há um intuito informativo maior, já no
segundo o espaço de discussão por meio de postagens e comentários é mais
relevante, nos atualizando das informações ligadas à temática da pesquisa.
Esses grupos trouxeram a possibilidade de buscar pelos sujeitos transe-
xuais. Com mensagens explicativas sobre o motivo da pesquisa e a garantia
da preservação da identidade desses sujeitos, recebemos algumas repostas.

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Infelizmente, os que haviam se proposto ao trabalho não se encaixavam no


perfil do requerido entrevistado.
Utilizando o Facebook®, entramos em contato com Leonardo Tenório,
presidente da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), pedindo que caso
soubesse, indicasse algum(a) transexual que pudesse ser sujeito do estudo. Ele
prontamente respondeu e possibilitou que entrássemos em um grupo fechado e
secreto de transexuais. Deste modo, foi enviada a mesma “mensagem convite”
para o grupo e possibilitando o encontro do sujeito transhomem, que veio a
participar da pesquisa juntamente com sua namorada, também trans.
Visando uma proposição da pesquisa, possibilitando uma ampliação da
discussão, foi importante conseguir uma quarta narrativa, que seria a de uma
travesti. Após contatos – primeiramente pelas redes sociais e na sequência, pes-
soalmente – com Liliane Anderson, membro do NUH/UFMG, e com Anyky
Lima, presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual (Cellos) e
representante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foi
buscado por travestis que pudessem participar da pesquisa.
Durante um mês, aproximadamente, não obtivemos sucesso na indicação.
O pedido para a realização da entrevista não foi recebido de maneira positiva
pelas possíveis entrevistadas. De acordo com a pesquisa realizada por Sousa,
Ferreira e Sá (2013), em um universo de 110 travestis da região Metropolitana
de Recife, Pernambuco, 44,9% das travestis não possuíam o ensino fundamen-
tal completo. Além disso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
em 2011, quantificou que apenas 8,4% dos municípios brasileiros promovem a
inclusão dos sujeitos LGBTT na escola (IBGE, 2012). Dessa maneira não é difícil
compreender porque esses sujeitos evitam se expor para a pesquisa. O tema
escola suscita memórias negativas, voltadas para o preconceito, para a vergo-
nha e exclusão. Dentre os motivos, acreditamos que a baixa escolaridade e a
exposição das memórias, não seriam confortáveis para esse público, visto as
vulnerabilidades sociais em que ele se encontra.
Mesmo com os percalços, continuamos a busca através de redes sociais
virtuais e pessoais, mas durante três meses, não obtivemos sucesso. No entanto,
em conversas sobre o estudo, surgiu uma nova e possível indicação. Neste
momento, o Whatsapp® foi de extrema importância para essa pesquisa, facili-
tando o contato com a colaboradora travesti. O período de troca de mensagens
instantâneas através deste aplicativo contabilizou dois meses, que foram funda-
mentais para criar um vínculo mínimo que desse condições para a efetivação da

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entrevista. Além disso, propiciou a manutenção do contato com a participante,


uma vez que ela estava em constantes viagens e residia no interior de Minas
Gerais.
A partir da experiência na primeira pesquisa, a utilização do Facebook®
foi primeiramente pensada para dar sequência em estudos na mesma temática.
Para a condução da segunda pesquisa aqui apresentada foi produzido um ques-
tionário com vinte e duas perguntas sobre a vivência de travestis e transexuais
na educação básica (compreendendo o Ensino Fundamental e Médio, mesmo
que parcialmente cursados), disponível para respostas no período de abril a
julho de 2014.
O questionário foi hospedado no software Google Formulários®, que após
sua formulação teve seu link compartilhado em espaços sociais virtuais dos
quais pessoas travestis e transexuais fazem parte. O questionário gerado foi
publicado de modo online, o que permitiu uma grande abrangência territorial
da pesquisa. Dentre as redes sociais em que foram divulgados, destacam-se os
grupos do Facebook® – os mesmos citados anteriormente –, que foram muito
importantes para o encontro desses sujeitos de pesquisa.
A rede de contato online entre pessoas transexuais e travestis facilitou
também na circulação do questionário da pesquisa entre seus pares, amplifi-
cando o potencial de abrangência do estudo. No total, foram 8 participantes
da Região Sul do Brasil, 20 da Região Sudeste, 3 da Região Centro-Oeste e 7
sujeitos da Região Nordeste. Podemos afirmar que na ausência das redes sociais
esses números não seriam alcançados, uma vez que são localidades muito dis-
tantes e pessoas que não têm, necessariamente, um vínculo com instituições
que promovem pesquisas.

Considerações finais

O Facebook® e o Whatsapp® fazem parte do cotidiano social, facilitando


a interação e a troca de informações. Como auxílio de pesquisa e estratégia
metodológica, esses softwares possibilitam o encontro de sujeitos que, frequen-
temente, são invisíveis em reconhecimento, mas que ganham força no mundo
virtual, conquistando um espaço e uma visibilidade que no campo do contato
pessoal real, muitas vezes é inexistente.
Além disso, as redes sociais se apresentaram de grande importância para
nós, pesquisadoras, pois conseguirmos alguma proximidade com os sujeitos de

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pesquisa, facilitando o processo de narração de memórias dolorosas. O contato


virtual permite que haja um diálogo anterior ao encontro pessoal, contribuindo
para esse processo.
No caso de pesquisas de campo realizadas somente pela internet, os per-
fis digitais permitem que os sujeitos narrem suas memórias, sem que sejam
expostos ou confrontados pessoalmente, trazendo uma maior desinibição nos
relatos e facilitando a construção dos dados de pesquisa.

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Referências

ELIAN, I. T. Memórias escolares dos sujeitos LGBTT: a escola como mediadora


das identidades sexual e de gênero a partir de seus relatos. 2014. 135 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2014. Disponível em: <http://educacaoprofissional.esy.es/Trabalhos/TD9141691699.
pdf>. Acesso em: 10 jun. 2016

ERICSSON. Ericsson: Brazilians Exchange more instant messages per week than the
global average. PRESS RELEASE. 2016. Disponível em: <http://www.ericsson.com/res/
region_RLAM/press-release/2016/2016-05-03-infocom-en.pdf>. Acesso em: 20 jun.
2016.

FACEBOOK. 45% da população brasileira acessa o Facebook mensalmente.


Disponível em: <https://www.facebook.com/business/news/BR-45-da-populacao-
brasileira-acessa-o-Facebook-pelo-menos-uma-vez-ao-mes>. Acesso em: 20 jun.
2016.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa de infor-


mações básicas municipais: perfil dos municípios brasileiros 2011. Brasília, 2012.
Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Perfil_Municipios/2011/munic2011.pdf>. Acesso
em: 3 jan. 2014.

SOUSA, P. J. de; FERREIRA, L. O. C.; SA, J. B. de. Estudo descritivo da homofobia e


vulnerabilidade ao HIV/AIDS das travestis da Região Metropolitana do Recife, Brasil.
Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 8, p. 2239-2251, ago. 2013. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n8/08.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2016.

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CULTURA GAY, MULTIDÃO E ORGULHO:


OS SIGNIFICADOS POLÍTICOS DA PARADA LGBT
NAS PÁGINAS DA REVISTA SUI GENERIS

Remom Matheus Bortolozzi


Mestre em Educação - UnB
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ; Acervo Bajubá
remombortolozzi@gmail.com

Rodrigo Cruz
Mestre em Ciências Sociais – Unifesp
Universidade de Lisboa; Acervo Bajubá
contatorodcruz@gmail.com

GT 23 - Imprensa gay em questão

Resumo

O artigo investiga, por meio de matérias jornalísticas, entrevistas e artigos publi-


cados ao longo das 55 edições da revista Sui Generis, os diversos significados
políticos das Paradas do Orgulho no Brasil entre os anos de 1995 e 2000. A
revista Sui Generis apresentava a cultura gay como nova forma de fazer política.
Seu conteúdo buscava afirmar uma comunidade que produz cultura, que pos-
sui identidade, aliados, história e orgulho próprio. Na análise dos significados
políticos das Paradas nas páginas da Sui Generis, alguns vocabulários políticos
dão corpo a essa política comunitária gay dos anos 90: visibilidade, orgulho e
multidão.
Palavras-chave: Parada LGBT, Sui Generis, Cultura Gay, Multidão, Orgulho.

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1. Introdução:

As Paradas do Orgulho LGBT surgem no Brasil em meados da década


de 1990, período em que o movimento de gays, lésbicas e travestis brasileiro
encontrava-se focado, principalmente, no enfrentamento à epidemia do Hiv/
Aids. Graças à intensa interação com agentes estatais, atores privados e orga-
nismos multilaterais internacionais, que passaram a incluir grupos de ativistas
e ONG nos processos de implementação de políticas públicas, o movimento
assumiu uma configuração diferente daquela observada nos anos 1980, com
maior predomínio de organizações formais, agora mais abertas ao diálogo com
o Estado e o mercado. Paralelamente, a consolidação, nas grandes cidades bra-
sileiras, de um mercado direcionado ao público gay, constituído não somente
por bares, saunas e boates, mas também por veículos de mídia, eventos culturais
e agências de viagem, contribuiu para dar visibilidade às diversas expressões de
gênero e sexualidade que emergiam na cena gay nacional, bem como expan-
dir o alcance das produções culturais da comunidade LGBT (Facchini, 2005;
Facchini e Simões, 2009).
Foi nesse contexto que, em 1995, por ocasião da XVII Conferência da
ILGA (International Lesbian and Gay Association), realizada na cidade do Rio de
Janeiro, ocorreu a primeira Parada de Orgulho LGBT do país. No encerramento
da Conferência, a Marcha pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Travestis reu-
niu ativistas de vários países, que caminharam em clima de festa pela Avenida
Atlântica, em Copacabana, com uma enorme bandeira do arco-íris. No ano
seguinte, no dia 28 de junho de 1996, data que marcava o aniversário de vinte
e sete anos da Rebelião de Stonewall, (Butterman, 2011), ocorreu a primeira ten-
tativa de organização de uma manifestação de afirmação do orgulho LGBT em
São Paulo, por meio de um ato que contou com a participação de aproximada-
mente 200 pessoas no centro da cidade. Embora esse ato, que ficou conhecido
como Parada Zero, tenha sido esvaziado e quase sem impacto na mídia e na
rotina da cidade, sua realização ajudou a impulsionar a construção da Parada
que aconteceria no ano seguinte. Em 1997, a primeira Parada Gay de São Paulo,
realizada na Avenida Paulista, contou com a participação de 2 mil pessoas,
número que cresceria vertiginosamente nos anos seguintes.
Quase simultaneamente à realização das primeiras Paradas, em 1994, saía
o número zero da revista Sui Generis, produzida de forma artesanal pelo jor-
nalista Nelson Feitosa. Inicialmente, a publicação foi concebida para circular

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apenas na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas após ter causado burburinho na
grande mídia, a revista alcançou repercussão nacional, tornando-se a publica-
ção direcionada ao público homossexual de maior impacto desde o Lampião
da Esquina, tabloide editado na virada dos anos 1970 para os 1980. Lançada
no bojo da popularização do conceito mercadológico GLS (gays, lésbicas e
simpatizantes, idealizado pelo empresário André Fischer, do Mercado Mundo
Mix e do Festival de Cinema Mix Brasil), a Sui Generis se destacava por focar
na produção de conteúdo sobre cultura, moda e comportamento, fugindo da
pornografia predominante nas revistas homoeróticas em circulação. Outra novi-
dade era a aposta na valorização do sentimento de auto estima do leitor, com
artigos e reportagens que buscavam reforçar a necessidade de “sair do armário”,
tomar posição frente ao preconceito e mostrar-se orgulhoso em relação à pró-
pria homossexualidade.
Conforme frisa Monteiro (2002), a Sui Generis assumiu, nesse sentido,
uma certa “militância de mercado”, não apenas por trabalhar a autoestima dos
leitores e divulgar um certo “estilo de vida” gay que florescia no Brasil dos anos
1990, mas também por fazer o registro dessa nova etapa do movimento LGBT,
cuja expressão mais vibrante eram as Paradas do Orgulho que se disseminavam
pelo país. Este artigo propõe investigar, por meio de registros historiográficos da
comunidade LGBT, os diversos significados políticos das Paradas do Orgulho
entre os anos de 1995 e 2000. A pesquisa se apoia na análise de matérias
jornalísticas, entrevistas e artigos publicados na revista Sui Generis no período
supracitado.

2. O orgulho Gay representado nas páginas da Sui Generis

Para o presente realizamos análise sistemática das 55 edições publica-


das da revista Sui Generis, selecionando colunas e reportagens que abarcam
a questão das paradas de orgulho ou outras marchas ou passeatas registradas
pelas edições. Essa sistematização, está sintetizada na tabela abaixo contendo
os seguintes registros: edição da revista, paginação, nome da reportagem, apre-
sentação do que é abordado na reportagem, e análise do significado político
para a parada, passeata ou marcha.

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Significado Político
Nome da Apresentação da Repor-
Edição Página da marcha, parada ou
Reportagem tagem
passeata
A Associação brasilei- A passeata é referencia-
ra de Gays, Lésbicas e Reportagem da coluna da como o ato político.
Travestis foi aprovada em contraponto com regis- As imagens mostram a
Ed. 3 8 e 9 meio à polêmica durante tros de fotos da passeata presença marcante de
o I Encontro Brasileiro que ocorreu em fevereiro organizações que traba-
de Gays e Lésbicas, em de 1995. lhavam na prevenção à
Curitiba. Aids.
Fala-se em um reflores-
cimento do movimento
A reportagem apresenta o
homossexual, que se
cenário no Rio de Janeiro
expressaria pelo número
Ed.4 20-22 Pride in Rio em meio a 17a Conferên-
de grupos organizados
cia Mundial da
no Brasil e na criação da
ILGA.
Associação Nacional de
Gays e Lésbicas.
A edição traz registros
A coluna contraponto fotográficos da Marcha
celebra o sucesso da 17a pela Cidadania Plena de
conferência da ILGA no Gays e Lésbicas. Neles
Visibilidade para quem quesito visibilidade. A observa-se a presença de
Ed. 5 8-9
precisa coluna também denúncia políticos como Fernando
a cobertura desigual dos Gabeira e Marta Suplicy,
quatro maiores jornais de além de faixas de mães
circulação nacional. e pais de gays e lésbicas
“saindo do armário”.
As imagens com diferen-
tes atores que compõem
a parada (pessoas com
Registros fotográficos da faixas, drag queens,
Parada nova-iorquina de pessoas fantasiadas,
1995 para convocação sadomasoquistas, mu-
da Parada em comemo- lheres lésbicas com seios
Ed. 13 40-41 Orgulho tem cara
ração ao dia do Orgu- desnudos) explicitam a
lho Gay e Lésbico que amplitude dos repertórios
ocorreria no dia 30/06 de ação coletiva, que
em Copacabana. podem variar entre ações
de protesto tradicionais
e performances mais
irreverentes.

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Quadro na coluna A coluna reforça a


contraponto que registra posição da política de
Ed. 14 9 Pride in Rio a Segunda Marcha pela visibilidade: um ato po-
Cidadania Plena de Gays lítico, “mas também de
e Lésbicas. celebração”.
Com vistas a trazer mais
A coluna Contraponto
pessoas às ruas, os orga-
apresenta a organização
Marchando com orgulho nizadores propõem que a
da 3ª Marcha pela Cida-
- gays, lésbicas e travestis marcha não tenha apenas
Ed. 21 52 dania de Gays, Lésbicas
unem as forças em prol caráter militante, mas
e Travestis (agora incluí-
do 28 de julho. seja também uma grande
das na sigla) do Rio de
festa como o Carnaval
Janeiro.
do Rio.
Convocatória com
Convocatória para a III registros fotográficos da
Venha participar do
marcha pela cidadania marcha anterior com
Ed. 22 43 maior evento gay –
de Gays, Lésbicas e Tra- bandeiraço do arco-íris
lésbico do país.
vestis do Rio de Janeiro. e bandeiras de Partido
Político.
A edição apresenta Festas
organizadas em Brasí-
Brasília comemora a gay lia para celebrar a Gay
Ed. 24 60-61 Gay Pride
Pride Pride: “não será uma pa-
rada, mas sim uma mega
festa beneficente”.
Há na coluna uma rela-
ção direta entre a Parada
e o cenário clubber, te-
A pequena coluna faz
chno, house e de DJs da
chamamento aos eventos
Ed. 25 40-41 Consciência leve cidade. A presença dos
em celebração do dia do
trios elétricos na “Parada
Orgulho Gay.
Gay”(sic) foi negocia-
da pelos donos desses
clubes.

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A reportagem celebra a
maior receptividade das
A reportagem ressalta a
paradas por todo o país.
mobilização de setores
A parada de São Paulo
não-gays na parada. A
alcança a marca de 7 mil
Igualdade, liberdade e “pelada” (jogo de fute-
Ed. 34 40-41 participantes, conforme
festa bol) com drag queens
a organização. Há ainda
é apontada como uma
registros narrativos das
ação política de visibili-
paradas de Salvador,
dade.
Porto Alegre, Curitiba e
Brasília.
A estratégia da visibili-
Matéria debate a questão
dade é debatida: “Não
da visibilidade de gays e
Ed. 41 27-33 A invasão do bizarro podemos promover a
lésbicas na mídia, frente
visibilidade a qualquer
a difusão da cultura gay.
preço (...)”.
A matéria chama a aten-
ção para a pluralidade
de atividades realizadas
durante a celebração do
Programação nacional
Orgulho de Gays e Lés-
para celebração do Dia
30 anos, mas com corpi- bicas em várias cidades:
Ed. 45 40-41 Internacional do Orgulho
nho de 16, tá? beijaços, missas em ho-
de Gays e Lésbicas.
menagens às vítimas da
Aids, alas temáticas nas
Paradas, shows, passeios,
audiências públicas e
conferências.
O ensaio fala sobre a es-
tratégia por trás das para-
Ensaio crítico sobre a das: sem renunciar a mili-
Festa política e cidadania banda de Ipanema e a tância, mas incorporando
Ed. 46 66
GLT marcha pelos pela cida- a festividade e conjugan-
dania de gays e lésbicas. do ações de visibilidade
com a autoafirmação dos
sujeitos.

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Grande novidade, o gran-


de número de entidades
e estabelecimentos que
deram suporte financeiro
e logístico ao evento,
Texto de João Silvério além de vários sindica-
Trevisan sobre a 3a Para- tos. A diversidade de
Enfim, a parada do
da GLBT de São Paulo, atores na Parada de São
Ed. 47 40-43 Milênio
afirmado o êxtase do Paulo (jovens, mulhe-
evento ter reunido 20 mil res, senhores, senhoras,
pessoas. crianças, pais e mães de
homossexuais e simpa-
tizantes em geral, além
claro de drags, S&M,
grupos de HIV+) também
chama a atenção.
Vinculação do cenário
Texto apresenta um DJ techno e clubber com a
Ricardo ganha o mundo carioca convidado para comunidade e a cultura
Ed. 48 58
participar da Love Parade gay, bem como a relação
na Alemanha. com os atores que orga-
nizam a Parada.
Entrevista com Érika
Palomino, estilista, co-
Foto de Érika na Parada
lunista da noite e ícone
de 1999 com Daniel
gay dos anos 1990, a
Finíssima Almeida, representando a
Ed. 50 24-26 qual lança seu primeiro
importância dos aliados e
livro, “Babado forte”, no
dos produtores da cultura
qual descreve e comenta
gay nos anos 1990.
a cena jovem e gay nos
anos 1990 na cidade.
O ano de 1995 é desta-
Uma matéria que traz cado como importante
entrevistas de ativistas, para a linha do tempo da
O século XXI anos nossos
Ed. 51 34-39 estudiosos gays e lésbi- história GLBT, como: “o
pés
cas sobre os últimos 100 movimento gay promove
anos de história gay. a primeira parada gay no
Brasil.

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A matéria mostra a rea-


ção contrária do plenário
da Câmara Federal à
Além de registrar a rea-
apresentação do projeto
ção homofóbica às orga-
de lei que dá ao grupo
Nobres colegas? nizações do movimento,
Ed. 52 26-27 gay Arco-Íris (um dos
a matéria traz um quadro
principais
com todas as ações do
articuladores da parada
grupo Arco-Íris.
do Rio de Janeiro), a
condição de entidade de
utilidade pública.

Convocação para a para-


O objetivo é repetir o su-
da do orgulho de 2000,
cesso da parada anterior.
para a qual são esperadas
Hora de levantar a Um balanço da Revista
Ed. 55 45 100 mil pessoas. Ao final
bandeira enumera os motivos
a Coluna informa como
pelos quais a edição de
o leitor pode ajudar para
1999 foi um sucesso.
financiar a parada.

3. Considerações Finais:

A revista Sui Generis traz a cultura gay como nova forma de fazer política,
uma forma de afirmar uma comunidade com identidade, com aliados, com his-
tória, que produz cultura e que tem orgulho disso. A propagação das culturas
musicais da noite gay, como clubber e techno, aparece na revista como pano de
fundo do processo de expansão da comunidade. Em 1997, na semana seguinte à
primeira Parada de São Paulo, aconteceu também a primeira parada de música
eletrônica brasileira, intitulada “1ª Parada do Amor de São Paulo” (Fischer, 1997).
Diferente da Parada do Orgulho, a Parada do Amor não era organizada por ati-
vistas, mas por uma produtora que, em articulação com cenário nascente dos
clubes de música eletrônica e moda alternativa de São Paulo, tentava criar no
Brasil um evento semelhante à Love Parade alemã, que acontecia desde 1989.
Tal qual a Parada alemã, a versão brasileira se afirmava a partir de valores da
diversidade e cultura de paz, tanto que ano seguinte se uniu a uma campanha
de desarmamento promovida por movimentos estudantis e passou a se chamar
Parada da Paz. A afirmação da diversidade, a valorização da criatividade contra

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hegemônica por meio da moda alternativa, o enfrentamento à Aids e a mani-


festação política pacífica através de uma festa de multidão faziam da Parada do
Amor um espaço acolhedor para a comunidade LGBT.
Na análise dos significados políticos das Paradas nas páginas da Sui
Generis, alguns vocabulários políticos dão corpo a essa política comunitária gay
dos anos 90: visibilidade, orgulho e multidão. Em artigo publicado na revista,
Trevisan define o sentido político das paradas: “a afirmação que existimos,
gostem ou não, é que somos milhares. Vencemos nosso pior inimigo, a invisibi-
lidade, e afirmamos nossa existência (...) agora terão que se defrontar com uma
multidão de homossexuais com rosto e identidade, que tem capacidade de ir às
ruas em nome de seus direitos” (p.43). Em outras palavras, a parada foi o instru-
mento que permitiu que a comunidade LGBT brasileira se apresentasse como
uma das muitas multidões nacionais, criando um sujeito político impossível de
ser ignorado e que se constituía a partir da afirmação da pluralidade e apresen-
tando a diversidade como valor cultural, social, ético e político.

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Referências Bibliográficas

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LGBT do planeta. 1 edição. São Paulo: nVersos, 2012.

FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de iden-


tidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

________________; SIMÕES, Júlio Assis. Na trilha do arco-íris: Do movimento


homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

Fischer, André (1997). Paradas param tudo. Revista da Folha, 06 de julho de 1997, 60.

MONTEIRO, Marko. O homoerotismo nas Revistas Sui Generis e Homens. In: SANTOS,
Rick; GARCIA, Wilton. A Escrita de Adé: perspectivas teóricas dos estudos gays e les-
cic@s no Brasil. São Paulo: Xamã, 2002, p.275-290.

Sui Generis, Rio de Janeiro, ano I a VI, n. 1 a 55, 1995-2000

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EXPERIÊNCIAS DE TRANSIÇÃO DE GÊNERO EM VÍDEOS NO


YOUTUBE: A INTERNET COMO ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO

Hellena Bonocore Morais


Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS)
Mestranda em Psicologia Social (PPGP-PUCRS) – bolsista CAPES
hellena.bonocore@gmail.com

Alice Lopes Fagundes


Graduanda em Psicologia PUCRS
Auxiliar de Pesquisa Grupo Relações de Gênero PPGP-PUCRS
alicelopesfagundes@hotmail.com

Marlene Neves Strey (Orientadora)


Pós-doutorado em Psicologia pela Universitat de Barcelona
Professora titular da Escola de Humanidades – Faculdade de Psicologia PUCRS
e do PPGP da PUCRS
streymn@pucrs.br

GT 17 - “Manda Nudes!”: Semioses Contemporâneas e Governamentalidade.

Resumo

Espaços como a internet propiciam a troca de conteúdo, informação e vivências


entre homens e mulheres transgênero, e sites como o Youtube – que contém
vídeos produzidos e compartilhados pelos próprios autores (em sua maioria),
são ferramentas importantes no processo de visibilidade da população trans,
que também se coloca de forma autobiográfica diante das câmeras, compar-
tilhando processos únicos de suas vidas como o de transição de gênero. O
presente estudo faz parte de um projeto de dissertação de mestrado e portanto
está em andamento. Tem como objetivo compreender o processo de transição
de homens e mulheres transgênero que compartilham suas jornadas em vlogs

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ISBN 978-85-61702-44-1 320 de Estudos sobre a Diversidade
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publicados no site Youtube através do método de Análise de Conteúdo, discu-


tindo com a Teoria Queer e a Psicologia Social Crítica.
Palavras-chave: transgênero; teoria queer; gênero; psicologia social crítica;
Youtube.

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Introdução

Nos últimos anos, pessoas transgênero têm tido mais espaço na mídia,
filmes, séries, debates políticos e na academia, com trabalhos científicos
acerca de como indivíduos trans problematizam e experenciam questões de
gênero (BORNSTEIN, 1995; BORNSTEIN & BERGMAN, 2010; BUTLER, 1990;
STRYKER, 2008; RAUN, 2014). Tais trabalhos acadêmicos trazem tanto o termo
transexuais quanto transgêneros, e autoras como Stryker (2008) apontam para
a popularização do termo transgênero nos Estados Unidos na década de 90,
pois entendia-se que tal terminologia “compreende todos os indivíduos cuja
identidade ou expressão de gênero diferem das normas sociais do gênero que
lhes foi atribuído no nascimento” (STRYKER, 2008. p.30), sendo recebido como
um termo mais inclusivo, que não limitava-se à questões de sexo biológico.
Jaqueline Gomes de Jesus (2012) também apresenta o termo transgênero em
sua publicação “Orientações sobre identidades de gênero: conceitos e termos”
e coloca que no Brasil não há concenso quanto à utilização de uma ou outra
terminologia, porém corrobora com a colocação de Stryker ao definir trans-
gênero como termo mais inclusivo e amplo, utilizado por pessoas que não se
identificam com o sexo atribuído ao nascer ou com qualquer gênero colocado.
Em outro momento, a autora coloca que mulher ou homem transexual é aquele
que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, se expres-
sando e identificando com o outro gênero binário colocado pela sociedade (ou
seja, fala-se de um binarismo de gênero, pois não inclui demais gêneros que
não masculino ou feminino). Neste trabalho os termos que serão utilizados são
homem transgênero e mulher transgênero e trans como abreviação de tais pes-
soas no plural, uma vez que compreende-se que transgênero é mais inclusivo e
não sugere necessariamente um binarismo de gêneros, conceito que traz uma
compreensão de gênero como estático e imutável, construído como unidade de
separação e identificação do inimigo, do “Outro” (BUTLER, 1990. p. 33).
O espaço da internet vem propiciando discussões a respeito de identida-
des e expressões de gênero, além de ser um dos locais onde as pessoas buscam
informações à respeito dessas temáticas. Os blogs, fóruns de discussão online,
redes sociais (como Facebook, Twitter, Instagram, Tumblr, entre outros) vem
ganhando cada vez mais espaço na troca de conteúdos, e sites como o Youtube
têm proporcionado um espaço onde o autor dos vídeos pode se colocar de

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forma até mesmo autobiográfica, o que resulta em vlogs1 ricos de experiências


pessoais e visões singulares de mundo. O processo de transição de gênero2, é
uma dessas experiências tão subjetivas que vem sendo compartilhadas virtual-
mente por algumas pessoas, que além de expor momentos de suas vidas como
o início de tratamentos hormonais, procedimentos cirúrgicos e estéticos, tam-
bém narram suas trajetórias com os familiares e amigos num espaço que permite
troca direta (através de espaço para livre expressão na seção “Comentários” nos
vídeos do Youtube) entre o autor do vídeo e seus espectadores, que muitas
vezes encontram tais vídeos pois estão buscando informações a respeito das
temáticas citadas
O objetivo deste estudo é compreender o processo de transição de homens
e mulheres transgênero que compartilham suas jornadas a partir de vlogs publi-
cados no site Youtube, além de identificar o que caracteriza o processo de
transição de gênero para essas pessoas, verificar quais são as similaridades e
diferenças percebidas nesse processo tão subjetivo, contextualizando o fenô-
meno da transição de gênero a partir do entendimento da Teoria Queer e da
Psicologia Social Crítica.

Método

Para tais análises, a pesquisa será conduzida utilizando abordagem qua-


litativa, que proporciona um olhar profundo do panorama a ser estudado,
levando em consideração a percepção e a singularidade dos participantes que
possibilitarão a realização desse estudo (GRAY, 2012).
Por tratar-se de uma pesquisa onde os dados a serem analisados estão
num ambiente virtual, entende-se que o uso da netnografia como estratégia
de investigacão se faz necessária (KOZINETS, 2014). A netnografia advém dos
pressupostos da etnografia, que descreve os fenômenos sociais a partir da obser-
vação participante do pesquisador no campo onde coletará os dados, colocando

1 Vlogs é a abreviação do termo video blogs, que são videoclipes geralmente curtos (de 2 a 10 mi-
nutos) protagonizados e produzidos por uma pessoa e compartilhado virtualmente (Raun, T., 2010
p.85).
2 Compreendido aqui como processo de mudanças físicas e emocionais pelas quais pessoas que se
identificam com outro gênero, que não o designado em seu nascimento, experienciam quando assu-
mem o gênero com o qual se identificam e as características sociais que este apresenta.

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o pesquisador como participante dos eventos e ressalta a importância de uma


imersão no espaço físico e com os participantes (GRAY, 2012). No caso do
presente trabalho, o campo onde serão obtidos os dados é virtual, mais especifi-
camente o site Youtube, onde é possível o compartilhamento de vídeos criados
por qualquer pessoa e então tornados públicos com suas postagens. A pesquisa
netnográfica traz o olhar etnográfico (advindo da antropologia) para o ambiente
virtual, propiciando a compreensão das comunidades em rede, conectadas
ao redor do mundo e compartilhando informações e estabelecendo relações
por meio da internet (AMARAL, NATAL e VIANA, 2008). Como método de
investigação, será utilizada a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2006),
que tem como foco qualificar as vivências do sujeito e suas percepções sobre
determinado assunto ou fenômeno. É um método de organização e análise de
dados que permite conhecer e analisar processos sociais ainda não tão vistos
e discutidos a partir de técnicas onde procura-se descrever o conteúdo emi-
tido pelo participante (seja por meio da transcrição da fala da pessoa ou de
textos), levantar indicadores e inferir categorias baseadas nesses indicadores,
para que então possam ser analisadas e discutidas (CAVALCANTE, CALIXTO e
PINHEIRO, 2014). Roque Moraes (1999) aponta também para a indutividade da
Análise de Conteúdo, que tem como finalidade “construir uma compreensão
dos fenômenos investigados”, e não generalizar ou testar hipóteses.
Serão analisados cerca 4 canais de Youtubers diferentes, porém o número
de vídeos é alto. Entende-se também que 4 participantes podem dar um pano-
rama de qualidade acerca da temática aqui proposta, trazendo em seus vídeos
e em entrevistas semi-estruturadas (realizadas por Skype ou Facetime) dados
importantes que serão posteriomente discutidos.

Considerações finais

Estudos como o do dinamarquês Raun (2012) que analisou vlogs de pes-


soas transgênero e seus respectivos processos de transição são de extrema
relevância e levantam questionamentos importantes como as características da
população que posta conteúdo na internet relacionados à temática; a relação da
tecnologia e da construção da identidade de jovens trans e como os vlogs aca-
bam sendo terapêuticos para quem os produz. O presente estudo pretende não
somente analisar e discutir tais questionamentos, mas também compreender
como o processo de transição de gênero em si se dá para cada sujeito, a partir

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da análise de conteúdo da fala dessas pessoas, relacionando as similaridades


e diferenças percebidas por cada um ao contarem suas jornadas e articulando
esses dados com a Psicologia Social Crítica e a Teoria Queer.
Esta temática traz discussões importantes e necessárias no cenário político
e social nos quais nos encontramos, onde a visibilidade de uma parcela signifi-
cativa da população se faz necessária para que a luta por seus direitos humanos
seja finalmente vencida, desconstruindo antigos paradigmas e dando espaço à
livre representação e expressão.

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Referências

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BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo (L. de A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). Lisboa:
Edições 70, 2006. (Obra original publicada em 1977).

BORNSTEIN, Kate. Gender outlaw: On men, women, and the rest of us. New York:
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BORNSTEIN, Kate, & BERGMAN S. Bear. Gender outlaws: The next generation.
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BUTLER, J. Gender Trouble – Feminism an the Subversion of Identidy. New York:


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CAVALCANTE, Ricardo; CALIXTO, Pedro; PINHEIRO, Martha. Análise de Conteúdo:


considerações gerais, relações com a pergunta de pesquisa, possibilidades e limita-
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Gray, David. Pesquisa no mundo real. 2. ed. Porto Alegre: Penso, 2012.

RAUN, Tobias. Video blogging as a vehicle
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RAUN, Tobias. Out online: trans self-representation and community building on


YouTube. (Tese de Doutorado). Roskilde: Roskilde Universitet, 2012. Recuperado de:
http://nordicom.statsbiblioteket.dk/ncom/files/30336545/Tobias_final_with_front_
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JESUS, Jaqueline. Orientações sobre a população transgênero : conceitos e termos.


Brasília, 2012.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

KOZINETS, Robert.  Netnografia: realizando pesquisa etnográfica online. Porto


Alegre: Penso, 2014.

STRYKER, Susan. Transgender History. Berkeley, CA: Seal Press, 2008.

MORAES, Roque. Análise de Conteúdo. In: Educação – Revista da Faculdade de


Educação da PUCRS, 22(37), 7-31, 1999.

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O CU LARGO E A BOCA SUJA DO BREVIÁRIO DE


PORNOGRAFIA ESQUISOTRANS PARA AS PESSOAS
DO AVESSO

Fernando Henrique
Graduando em Ciências Sociais Aplicadas - Direito
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)/FAPEMIG
fernando-.henrique@hotmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Este trabalho busca apresentar breves interpretações acerca do Breviário de


Pornografia Esquisotrans para as pessoas do avesso, de Fabiane Borges e Hilan
Bensusan; obra que fala sobre corpos do avesso, esquisitos e abjetos. Pelo cará-
ter despudorado e impudico na abordagem das manifestações de sexualidades
marginalizadas e na descrição dos desejos e fodas, essa obra cai no desconhe-
cimento do público, incluindo o literato. Por isso, tento apresentar aqui pontos
que me chamaram atenção e me fazem recomendar a leitura desse livro.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; política; gênero; homocultura.

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Introdução

O Breviário de Pornografia Esquisotrans1, de Fabiane Borges e Hilan


Bensusan, não é para qualquer um. Ele é para as pessoas do avesso. Você,
como leitor em potencial, deve então saber ou tentar descobrir o que é uma
pessoa do avesso, para que assim se identifique ou não como uma.
Conjecturo: se uma pessoa é do avesso, ela é o inverso de uma pessoa
não invertida. E presumo que essa pessoa não invertida seja aquela mais ordiná-
ria, mais comum, ou dita normal. No entanto, não basta ser incomum. Tem que
ser do avesso. Mas o avesso é perigoso, não?! O avesso enfia porcas em para-
fusos. E aí a máquina não funciona. Aí a máquina não produz outras máquinas
que desenvolvem o mundo. E o mundo tem que evoluir.
O avesso não produz. O avesso é inútil.
Cada órgão tem seu lugar. E a pele contém e dá densidade à máquina
humana. Mas a pessoa do avesso é toda exposta: seus órgãos tomam o lugar
da pele e criam um corpo de pura sensibilidade e ânsia. E esses órgãos vibram
pelo prazer, se enrijecem, dilatam, criam dobras e orifícios, e ejaculam bombas
de hormônios e discursos que forçam o “desejo a desejar”2. E a pele, lá den-
tro, com todas suas terminações nervosas, goza com cada engolida, contração,
pulsar do sangue, arfar de diafragma e vibrações que lhe chegam dos órgãos lá
de fora. Esse corpo do avesso é inconstante, fluido, e tão improdutivo que fica
difícil de imaginar.
Esse corpo tem o olho no lugar do cu e o cu no lugar do olho. Esse corpo
é um corpo que desafia, que encara, e que sempre mostra o cu que ficava
no meio da bunda, escondido pelas nádegas. Não tem essa história de olha
para onde você anda, cuidado para não tropeçar, olha direito o que você está
fazendo. É um corpo que não faz nada que não seja pra si. É um corpo “hedo-
nista por natureza”3.
O olho-cu encara pra ser chupado, pra enfiar o que tem vontade, pra
se relaxar, contrair e gemer de gozo. E ele denuncia. Suspira de prazer e alí-
vio quando põe pra fora os excrementos que descem deslizando pelo corpo,

1 Quando me referir, daqui para frente, ao Breviário de Pornografia Esquisotrans para as pessoas do
avesso, o farei de forma abreviada. Empregarei apenas o termo Breviário.
2 BORGES; BENSUSAN, 2010, p. 57
3 Ibidem, p. 13

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passando pelos outros órgãos que se aquecem e regozijam, como quando


tomamos um banho quente depois de um dia cansativo, caso você goste tam-
bém de banho. O olho-cu denuncia que a dejeção não nos enoja em função de
seu fedor, pois só passou a ser considerada fedida depois que se tornou objeto
de nossa repugnância4.
Mesmo que Borges e Bensusan não tenham descrito em sua obra essa
máquina humana literalmente invertida, ou, se não invertida, com disposição
corporal inútil, considero inequívoca a correlação entre a minha conjectura e
o entendimento deles sobre o que seria uma pessoa do avesso. Pois eles dizem
ter como causa, as esquisitas:
[Mas] Não basta ser esquisita para pertencer ao nosso coletivo, tem
que ser incompreendida também – e não ter tato algum para se
desenvolver como capitalista vencedora – tem que [...] ser hedo-
nista por natureza.
Tem que achar que merece o melhor por existir e encontrar manei-
ras de ter células furiosas quando isso não acontece. Andar com
uma centelha de impaciência com a falta de compreensibilidade
do mundo, com a falta de incompreensibilidade do mundo e com
seu profundo mau gosto.
Dá pra entrar outros tipos também: os que não sabem ao certo
em qual sexualidade se misturar e ficam confusas quando alguém
pergunta quem5.

O Esquizotrans, além de um coletivo “guarda-chuva” de outros projetos, é


um conceito. Nas palavras de Bensusan,
a gente fala por exemplo de políticas esquizotrans, que era o nome
da coluna que existiu no Monde Diplomatique na década passada,
a gente fala de pornografia esquizotrans no livro de 2010, e a gente
fala de atitudes esquizotrans, etc… então portanto é um conceito
além de ser um coletivo6.

4 BATAILLE, 2004, p. 91
5 BORGES; BENSUSAN, 2010, p. 13
6 BENSUSAN, 2013

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O Breviário, portanto, faz parte dessas políticas esquizotrans, abarcadas


pelo conceito de esquizotrans, que emprega esse termo como forma de conci-
liar o esquizo, referente à estranheza, ao queer, à negação identitária pela, em
tese, desnecessidade de classificação; com o trans, em respeito aos corpos mar-
ginalizados dos transexuais, transgêneros, e das travestis que sofrem a violência
de ter sua identidade rotineiramente questionada. Segundo Bensusan,
uma pessoa que se diz Queer é uma pessoa que não aceita
nenhum desses “rótulos”, é uma pessoa que transita [...] Agora, o
passo seguinte, é o passo Esquizotrans [...] O Esquizotrans tem dois
componentes: o componente “Esquizo”, e o componente “Trans”.
O componente “Esquizo” tem a ver com a negação de todas essas
identidades, [...] tem a ver com o elemento “Queer”, e o “Trans”
que é muito importante, tem a ver com Travesti, tem a ver com
Transexual e tem a ver com Transgênero, e o que acontece é que
muitas vezes a pessoa que adota o “Sacolejo” diz assim: “Ah, pouco
importa a sua identidade” [...] E no entanto, essa é uma grande vio-
lência, e foi o que sensibilizou a ideia de Esquizotrans7

O elemento trans, que tem a ver com a travesti, o transexual e transgênero,


está inscrito em corpos que denunciam8 a produção da ordenação dos corpos.
Esses corpos mostram que é possível ser outra coisa diferente daquilo que supos-
tamente deveriam ser. Pela nossa ignorância, tornam-se trava-línguas andantes
que interrompem nossos discursos quando estamos prestes a usar o “ele” ou
“ela”, o “o” ou o “a”. Desordenam os discursos, desacoplam pronomes e flexões
de gênero, de símbolos corporais supostamente complementares. Ressignificam
símbolos e criam signos alternativos. Cortam e criam novos fluxos9. E com isso
denunciam a finalidade dos termos empregados em um discurso.
Foucault, ao tratar sobre a colocação do sexo em discurso, afirma ser
importante se atentar a “quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala,
as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele
se diz”10. O elemento trans, que se imbrica e copula com o sexo, materializa

7 Idem.
8 Essa noção de “denúncia” me foi apresentada pela Lila Monteiro, em uma de nossas conversas de
depois do almoço, nuns banquinhos próximos ao bloco 1B, da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), e entre os olhares dos meninos das engenharias e os ataques das abelhas.
9 DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11
10 FOUCAULT, 2015, p. 16

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(ou exemplifica) essa proposição de Foucault. Ao falar com um corpo trans, me


atento ao que digo e repenso o que já disse. E isso me faz perceber o quanto
o meu discurso nunca é isolado: está emaranhado em uma rede de discursos.
Como já adiantado, o elemento esquizo tem a ver com o queer, com os
corpos esquisitos, estranhos, que têm como identidade o não ter uma, uma
identidade sem essência11, ou ter uma e depois outra, ou uma que seja absurda.
Queer é [...] o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais,
bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não
deseja ser ‘integrado’ e muito menos ‘tolerado’. Queer é um jeito
de pensar e de ser que não aspira o centro, nem o quer como
referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as regras regu-
latórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade,
do ‘entre-lugares’, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que
incomoda, perturba, provoca e fascina12

A Teoria Queer se atenta a esses corpos. Ela surgiu no começo dos anos
1980, e aponta “para o fim dos conceitos de heteronormatividade, homoafe-
tividade, masculino e feminino, e abarca a excentricidade do sujeito em seu
modo mais radical. Queers querem o fim da divisão binária do gênero, o fim
da polaridade entre masculino e feminino”13. Essa teoria questiona as ontologias
da sexualidade; a naturalização do sexo heterossexual e do desejo pelo sexo
oposto; a correspondência entre os genitais e o gênero; e aponta a construção
histórica da masculinidade e da feminilidade.
Da noção de esquizo os autores constroem a ideia de esquizerda, que
fica tentando contrabandear energia erótica para dentro do que
é político enquanto procura, com a outra mão, escancarar os
semitons políticos do microerótico. [...] é proliferação, ao invés de
organização da produção e da distribuição. Não se trata de desviar
dos desejos que parecem implantados pela máquina de consumo
e de manutenção das coisas, mas de retorcê-los, metê-los em uma
paisagem de desejos [...]

11 MUNÕZ, 2005, p. 169


12 LOURO, 2004, p. 7-8
13 CAMARGO, 2013, p. 6

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Fica nítido que os autores não ocultam o aspecto político que seus textos
e discursos vinculam, ou seja, que eles têm uma determinada finalidade.
A criação do termo Esquisotrans, é um exemplo disso. Nele, como já apre-
sentado, os autores aglutinaram as noções de esquiso e trans; e, além disso,
criaram a noção de pessoa do avesso para se referir a ambos os elementos.
O Breviário fala sobre e é dedicado a essas pessoas do avesso, aos
desejos que transitam e que escapam, que nasceram fugidos e
vivem se deslocando. Aos que sabem que todo o dia é necessário
inventar-se, ser outra coisa, pois a última desconstrução engessou,
tornou-se rígida e o próprio desejo é cambiante. É dedicado aos
que nunca encontraram um centro e sempre foram periferia. Aos
que, no lixão, amaram. Aos que festejam sempre o lugar da costura,
das marcas, da diferença, da abjeção14

Borges e Bensusan não só falam sobre essas pessoas do avesso, com seus
corpos abjetos, como empregam os termos mais chulos possíveis na escrita de
suas historietas. Ao empregarem esses termos, os autores questionam a forma
que o sexo é falado, pois se engana quem acha que não se fala de sexo. O sexo
é sempre assunto, mas se fala de uma determinada forma e de um determinado
sexo: o heterossexual (porque o resto é putaria).
A partir do século XVIII o sexo heterossexual se torna objeto de estudo,
tanto pela medicina, pedagogia, e psiquiatria15 – para citar alguns –, quanto
pela literatura. Apesar do discurso do sodomita ser desautorizado, o “sexo se
tornou, de todo modo, algo que se deve dizer, e dizer exaustivamente, segundo
dispositivos discursivos diversos, mas todos constrangedores, cada um à sua
maneira”16.
Dessa forma, para se falar de sexo na literatura, era preciso circunscre-
vê-lo, tratá-lo metaforicamente, sempre de forma indireta, oblíqua. Era preciso
fazer dele um ritual, elevá-lo à transcendência. Palavras como cu17, caralho18,

14 SOLANGE TÔ ABERTA, 2010 apud BENSUSAN; BORGES, 2010, p. 06.


15 FOUCAULT, 2015, p. 34
16 Ibidem, p. 36
17 BORGES; BENSUSAN, 2010, p. 62
18 Ibidem, p. 97.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

buceta19 e xoxota20 são consideras vulgares, e quem as emprega tem como


punição ver o seu texto fadado à marginalidade.
Aquele sexo tão falado, mas falado pelos sujeitos normais, a partir de
um ponto de vista naturalizante, e a fim de obter o efeito de patologização e
descentralização dos sujeitos invertidos21, é negado por essa obra, pois ela se
destina às pessoas que fogem da normalidade, que denunciam a produção da
natureza, de si e do humano (isso porque a natureza não antecede o humano;
ela nem existe fora dele. E o humano e natureza só existem enquanto processo
que os produz um no outro22).
Ao longo dos contos que compõem o Breviário, Bensusan e Borges falam
de pessoas do avesso, e para as pessoas do avesso. Mostram corpos que se
escondem ou são jogados nas zonas mais escuras, mais sujas, mais marginais.
Falam de corpos que, pelas suas estranhezas, têm-lhes arrancada a humanidade
e deixam de ser pessoas aos olhos das pessoas normais. Falam de corpos disfun-
cionais, máquinas desumanizadas, produtoras e desejantes: esquizofrênicas23.
Máquinas que deixam o desejo “efetuar o acoplamento de fluxos contínuos
e de objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados”, porque:
“O desejo faz correr, flui e corta”24. Corpos que sentem, que gozam, que de
tão esquisitos, as vezes não se fazem entender, porque “Coerência é papo de
político fia, é conversa dos defensores do trabalho, família e propriedade, com
a gente não tem nada dessas coisas não! Defender coerência é defender o inde-
fensável”25. Corpos que querem uma genitália com direito a tudo26 ou amar no
lixão27. Corpos que preferem teu joelho: “Porque ele é mais livre do que teu

19 Ibidem, p. 98.
20 Idem.
21 FOUCAULT, 2015, p. 30
22 DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 12
23 Idem.
24 Ibidem, p. 16
25 BORGES; BENSUSAN, 2010, p. 129
26 Ibidem, p. 37-40
27 Ibidem, p. 43-47

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pau”28. Corpos que adoram “teta e pau juntos”29, ou que querem todos os ami-
gos do seu macho de uma vez30. Corpos que se perguntam: “É só pelo que eu
tenho entre as pernas que sou digno de amor?”. Corpos jogados para o canto,
que se cansaram de procurar pela essência das coisas, pois nunca foi atribuída
beleza à sua abjeção.

Considerações finais

Este trabalho é mais um convite. Optei por apresentar noções encontra-


das no prefácio e no primeiro capítulo/conto do Breviário, que tem por título:
“disposições, desproporções, desapropriações – a saída pela esquizerda. o que
é esquisotrans?”.
Como, antes de ler o Breviário, já tinha uma noção de Teoria queer e
assuntos relacionados à sexualidade, acreditei que não seria prejudicial apresen-
tar alguns desses “conceitos” (caso já não conhecidos) neste texto, para aqueles
que ainda não leram o Breviário. Talvez pelo contrário: muitos desses conceitos
tornaram mais prazerosa minha leitura, pois antes a provocação que me inco-
modava, agora é aquela que me anima. E percebo isso a cada vez que releio
algum conto do Breviário, tendo também aprofundado ainda mais nas leituras
de textos teóricos.
Fica aqui o convite para aqueles que desconhecem essa obra de Borges
e Bensusan. Vai que você é uma pessoa do avesso. Porque se for, esse livro foi
escrito pra você.

28 BORGES; BENSUSAN, 2010, p. 58


29 Ibidem, p. 61
30 Ibidem, p. 77

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Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.

BENSUSAN, Hilan. Esquizotrans: entrevista sobre gênero com o professor Hilan


Bensusan: depoimento. [29 de março de 2015]. Projeto Paidéia – Pibid – Filosofia UNB.
Disponível em: < https://projetopaideia.wordpress.com/2015/03/29/esquizotrans-en-
trevista-sobre-genero-com-o-professor-hilan-bensusan/>. Acesso em junho de 2016.

BORGES, F.; BENSUSAN, H. Breviário de pornografia esquisotrans para pessoas do


avesso. Brasília: ex libris, 2010.

CAMARGO, Fábio Figueiredo. Corpos que querem poder. REDISCO, Vitória da


Conquista, v. 2, n.2, p. 7-16, 2013.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-édipo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora


34, 2010.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. 2ª ed. São Paulo:


Paz e Terra, 2015.

MUÑOZ, Alfonso Ceballos. Teoria raríta. In: CÓRDOBA, D.; SÁEZ, J.; VIDARTE, P.
(Org.). Teoría queer: políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Madri: Editorial Egales,
2005. p. 165-177.

Ninguém se apaixona por ninguém. Ninguém é objeto de amor. A outra


pessoa, em relação com você, cria situações, as quais você se envolve, inter-
preta. Nos apaixonamos é por essas situações, e não pela pessoa. Você não ama
ninguém. Você ama é o que ela pode te proporcionar.

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NOTAS SOBRE UMA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ENTRE


EVENTOS INTERACIONAIS NA ESCOLA E NA WEB 2.0

Thayse Figueira Guimarães


Doutora em Linguística Aplicada (UFRJ)
Universidade Vale do Rio Verde- Mestrado em Letras
thayse.guimaraes@unincor.edu.br

GT 10 - Mídias digitais e (re)invenções da subjetividade

Resumo

O objetivo deste trabalho é apresentar uma pesquisa etnográfica multissituada,


realizada no contexto interacional de uma sala de aula de ensino médio em
uma escola pública e nas redes virtuais Facebook e Twitter. A proposta da pre-
sente pesquisa focalizou as performances identitárias de Luan, o participante
focal, na experiência de participação nas redes sociais on-line e nos eventos de
letramento escolar. Os dados gerados referiam-se às performances de gênero,
sexualidade e raça produzidas por esse jovem, focalizando principalmente o
modo como lidava com o sentido de corpo, padrões de normatividade, estere-
ótipos sociais e alteridades marginalizadas nos contextos investigados.
Palavras-chave: Performances; gênero/sexualidade; etnografia multissituada;
web 2.0.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Introdução

Este trabalho coloca em debate um modo específico de investigar discur-


sos e práticas de um grupo, levando em conta a observação etnográfica em
mais de um lugar e as conexões entre tais espaços. Essa abordagem se funda-
menta em uma perspectiva multissituada ou multilocal (Marcus, 1995), onde o
pesquisador segue as cadeias, as trajetórias e os fios, parte de um fenômeno
específico a ser investigado. Tal empreendimento é traçado na justaposição de
lugares sociais, onde são vivenciadas as práticas pesquisadas e onde o pesqui-
sador se faz presente em torno de um “traçar conexões” (Marcus, 1995) entre
tais espaços e práticas. Seguir as práticas e os artefatos culturais de um grupo
ou pessoa e seguir uma pessoa e suas histórias são, segundo Marcus (1995, p.
106), formas de concretizar tal empreendimento. Metodologicamente, implica
complementar a informação de um campo de observação com outro campo,
recorrendo a outros espaços, tempos, objetos e atores, buscando interpretações
e explicações, com base em elementos que vão além de um campo de obser-
vação empírica, propriamente dito.
Com essa perspectiva como pano de fundo, a abordagem do trabalho irá
incidir sobre o esforço etnográfico realizado por mim, ao traçar conexões entre
práticas interacionais da escola e da Web 2.01, dentro de um debate sobre as
transformações possíveis, moldadas pela globalização atual. O objetivo é apre-
sentar e discutir uma pesquisa etnográfica realizada com um grupo de jovens,
estudantes do ensino médio em uma escola pública das Baixadas Litorâneas do
Estado do Rio de Janeiro, que levou em conta a observação etnográfica em mais
de um lugar2. O primeiro contexto investigado foi o de uma escola pública das
Baixadas Litorâneas do Estado do Rio de Janeiro, especificamente, uma turma
do terceiro ano do ensino médio. E o segundo era o ciberespaço, espaço de
interconexão aberta, por abarcar a pluralidade, a fragmentação e a colaboração
em nível global e não totalizável (Lévy, 1999). Trata-se de uma etnografia con-
duzida e traçada na justaposição de diferentes espaços interacionais, a saber, o

1 Caracterizamos a Web 2.0 como um tipo de mindset, ou seja, um modo de pensar e conhecer o
mundo vivido (Lankshear e Knobel, 2008, p.31). Na Web 2.0, o mindset é orientado sob a lógica da
participação, da colaboração e a da inteligência coletiva.
2 Este trabalho desenvolve parte da pesquisa de doutoramento realizada por esta autora (Guimarães,
2014).

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

contexto escolar e as redes sociais on-line Facebook e Twitter. A proposta da


presente pesquisa focalizou as performances identitárias de um dos estudantes,
que chamarei de Luan, meu participante focal, na experiência de participação
nas redes sociais on-line e nos eventos de letramento escolar. Os dados gera-
dos referiam-se às performances de gênero, sexualidade e raça produzidas por
esse jovem, focalizando principalmente o modo como lidava com o sentido de
corpo, padrões de normatividade, estereótipos sociais e alteridades marginaliza-
das nos contextos investigados.
Uma justificativa importante acerca da escolha do objeto dessa pesquisa
é que os letramentos da escola e do mundo virtual são muito significativos na
construção dos sentidos válidos, que orientam os jovens cotidianamente. O
participante focal, assim como todos os integrantes da referida pesquisa, era
indelevelmente marcado pela experiência de participação cotidiana em inte-
rações virtuais e pelas transformações que tais práticas possibilitam, tanto nos
contextos educacionais como em outros contextos institucionais. Assim sendo,
se é verdade que os estudantes da contemporaneidade estão, cada vez mais
cedo, envolvidos em uma multiplicidade de discursos pelas redes sociais, creio
que muito de nossa observação, como educadores e pesquisadores, deveria
contemplar as práticas sociais das quais esses jovens participam. Isso porque
entendo que a participação na escola e nas práticas sociais virtuais são lugares
pertinentes para se estudar a dinâmica da vida social.
No campo de conhecimento da Linguística Aplicada, estou alinhada à
perspectiva Indisciplinar (Moita Lopes, 2006), que se orienta pelo compromisso
ético e político de produzir conhecimento sobre as práticas sociais e, portanto,
sobre os significados que emergem pelas mudanças contemporâneas (Moita
Lopes, 2006).
Como princípio ético, escolhi a “responsabilidade com o outro” (Venn,
2000, p. 11), em reconhecimento da impossibilidade da separação entre pro-
dução de conhecimento e o sujeito social, haja vista as consequências da ação
de pesquisa na vida dos participantes. Busquei preservar o anonimato dos par-
ticipantes; apresentar as justificativas das escolhas teóricas e metodológicas;
produzir conhecimento que pudesse falar diretamente às práticas sociais desses
jovens e não impor limites às vozes, significados existentes, posições e inte-
resses dos envolvidos na pesquisa. Desse modo, a observação, as entrevistas,
as contextualizações dos dados e as análises efetuadas buscavam privilegiar

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uma “proximidade crítica” (Santos, 2008), considerando as vozes daqueles que


vivem as práticas, sem qualquer pretensão de neutralidade e objetividade.
No cerne da presente pesquisa estava a compreensão das construções
identitárias como feitas em ação performativa, tal como propôs Judith Butler
(2003), ao pensar em uma teoria performativa do gênero e da sexualidade. Esse
foi um ponto teórico importante na compreensão das performances identitárias
de Luan: um garoto negro que se posiciona como gay em suas redes sociais
on-line e na sala de aula. Assim, na referida pesquisa, ao delimitar as performan-
ces identitárias de Luan como foco investigativo, estava interessada no modo
como o jovem contestava significados cristalizados de gênero, sexualidade e
raça em suas interações com amigos da rede social Facebook e Twitter e no
contexto interacional de sua sala de aula.
A seguir, apresento algumas observações sobre a investigação multissitu-
ada das performances identitárias do participante focal.

Notas sobre a observação multissituada das performances


identitárias de Luan

Ao longo do trabalho etnográfico de observação na turma selecionada,


um dos alunos, Luan, me chamou a atenção por suas performances identitárias
tanto na escola como nas interações virtuais e pelas lutas performativas em que
se envolvia na construção do seu gênero/sexualidade e raça. Ele ganhou des-
taque nesta pesquisa pela aproximação comigo e com as questões levantadas
pelo projeto etnográfico.
Na época da pesquisa, Luan tinha 18 anos, era twitteiro (ou seja, utilizava
constantemente o Twitter) e também possuía conta no Facebook, Orkut, Tumblr,
MSN, e Youtube. Em sua participação nessas redes sociais, Luan utilizava-se de
recursos multissemióticos, que combinados produziam um perfil diferenciado.
Luan também interagia bastante pelo Facebook, onde postava mensagens
e fotos. Nessa rede social, as performances identitárias de Luan eram constru-
ídas pelas suas informações pessoais, seus posts e fotos em destaque. Fotos
editadas mostrando o seu corpo eram recorrentes em seu mural e sinalizam um
tipo de ethos interacional3 que privilegia a exposição do corpo e a sensualidade.

3 Neste trabalho, uso o conceito de ethos em associação à noção de ethos como hábitos locucio-

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O post abaixo ilustra como Luan se dirigia a seus amigos virtuais, construindo
sua participação nessa rede social.

Figura 2- Post de Luan na rede social Facebook.

Na época, esse post lhe gerou algumas curtidas e comentários sobre suas
identificações de gênero, sexualidade e raça, no Facebook. Na publicação,
acima ilustrada, o jovem encena uma peformance que produz efeitos de uma
identificação específica. Aqui, Luan é um garoto negro e belo. Essa inter-relação
está fortemente presente nas suas interações. Ao promover seu corpo como
desejável e belo, suas publicações eram comentadas e curtidas por um grande
número de pessoas. Essa valorização do corpo corresponde às expectativas
próprias dos espaços on-line, em que há uma inclinação para valorização da

nais compartilhados por membros de uma comunidade, conforme C. Kerbrat-Orecchioni (1996). Tal
“ethos coletivo” constitui, para os locutores que o compartilham, um “perfil comunicativo”, ou seja,
a sua maneira de se comportar e de se apresentar nas interações (Kerbrat-Orecchioni, 1996).

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aparência e da imagem do corpo, onde o que importa é ser visto, como bem
sintetizou Bauman “quanto maior é a frequência de minha imagem, quanto mais
pessoas visitam meu Twitter, mais chances terei de ingressar nas fileiras dos
famosos”. (Bauman, 2011, p.29).
Além disso, Luan utilizava quase todos os dias o MSN e o Skype para
manter/fazer contatos. Orgulhava-se de possuir mais de 2 mil amigos no Skype
e MSN, quase 2 mil amigos no Facebook e mais de 80 mil seguidores no Twitter.
Já na sala de aula, participava pouco. Gostava de ficar sentado no fundo. Era
constantemente alvo de críticas do professor de redação, que o posicionava
como tendo interesse somente pelo que acontecia nas redes sociais on-line.
Desde o inicio da referida pesquisa, Luan se aproximava de um ethos
interacional que privilegiava as práticas das interações on-line em detrimento
das práticas da escola. Tal aproximação era recorrente nas suas interações,
como aponto no seguinte fragmento de entrevista acerca de sua relação com
o professor de redação:
“[...] tipo ele acha que sou uma pessoa alienada. Ele fala de mim,
porque acha que na Internet não tem nada útil. Ele não me deixa
com raiva com esse tipo de pensamento, mas eu acho que não
sabe de nada do que se passa por lá. A vida lá é muito mais diver-
sificada, eu fico sabendo de tanta coisa que uma pessoa que não
tem contato com esse mundo não sabe. Eu acho que eles é que
são alienados de verdade” (Luan em entrevista à pesquisadora
- 10/09/2011).

Tal declaração aponta como Luan entendia as críticas e avaliações que


o professor de redação fazia a ele. Sua participação em sala de aula era forte-
mente marcada por contraposições a ações desse professor, que relacionava
o insucesso de Luan, em sua disciplina, à intensa participação do jovem no
mundo virtual. Também foi possível notar, através de minhas observações etno-
gráficas, que Luan tornou-se, ao longo do ano letivo, alvo de muitas críticas
nas avaliações de outros professores da escola. Em entrevistas realizadas com
alguns professores, frequentemente, eles posicionavam Luan como um aluno
que só tinha interesse pela vida virtual. Isso porque a participação do jovem
nos letramentos da escola não dava conta das práticas privilegiadas pelos pro-
fessores, entre elas, o foco de atenção na aula e a escrita normativa. Assim,
eram comuns notas baixas nas provas e constantes momentos de repreensão

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por parte de seus professores. Considerado um aluno regular, Luan participava


pouco das discussões em sala de aula. O jovem sentava-se ao fundo da sala
de aula, próximo à pesquisadora, o que possibilitou o acompanhamento dos
comentários que fazia em voz baixa e as interações dele com os outros estu-
dantes, participantes também da referida pesquisa.
Tendo em vista a observação multissituada das performances identitárias
de Luan, a pergunta de pesquisa que norteou o referido projeto foi: Como Luan,
participante focal da pesquisa, transita por práticas de letramentos digitais e
escolares e constrói coletivamente suas performances de gênero/sexualidade
e raça nesses ambientes? O objetivo aqui era focalizar as lutas performativas,
na construção de sentidos considerados válidos nas interações de Luan pelo
Facebook, Twitter e no contexto da escola. Ao estudar as participações de Luan
nas interações no contexto escolar e virtual o intuito era investigar tais práticas
de letramentos como lugares de identificações sociais e de assimetrias. Nessas
interações, busquei compreender a relação entre performances cristalizadas e
inovadoras, na constituição das identificações de gênero, sexualidade e raça de
Luan.

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Referências

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Editor, 2011.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade .Tradução de


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 [1990].

GUIMARAES, T. F. 2014. Embates entre performances corpóreo-discursivas em traje-


tórias textuais: uma etnografia multissituada. Rio de Janeiro, RJ. Tese de doutorado em
Linguística Aplicada. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 209 p.

HINE, C. 2000. Virtual ethnography. London: Sage Publications, 174 p.

KERBRAT-ORECCHIONI, C. La conversation. Paris, Seuil, 1996.

LANKSHEAR, C. & KNOBEL, M C. Digital Literacy and participation in on-line social


networking spaces. In: LANKSHEAR, C. & KNOBEL, M C. (Orgs.) Digital literacies.
Concepts, policies and practices. New York: Peter Lang, 2008.

LÉVY, P. 1999. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 264 p.

MARCUS, G.E. 1995. Ethnography in/of the world system. The emergence of multi-
sited ethnography. Annual Review of Anthropology, 24: 95 – 117.

MOITA LOPES, L.P. 2006. Uma Linguística aplicada mestiça e ideológica: interro-
gando o como linguista aplicado. In: MOITA LOPES, L.P. (Org.) Por uma linguística
aplicada indisciplinar. São Paulo, Parábola, p. 13-42.

MOITA LOPES, L.P. A transdisciplinaridade é possível em Lingüística Aplicada?. In:


SIGNORINI, I. & CAVALCANTI, M.C. (Org.). Lingüística Aplicada e transdisciplinari-
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SANTOS, B de S. Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e de outro.


Travessias. Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, v.7, nº 6, p. 15-36,
2008.

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SATO, L. & SOUZA, M. Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da


pesquisa etnográfica em psicologia. Psicol. USP, São Paulo, v.12, n.2, 2001.  Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642001000200003&script=sci_arttext

VENN, Coue. Occidentalism. Modernity and Subjectivity. London: Sage, 2000.

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A CIRCULAÇÃO DE SIGNOS IDENTITÁRIOS DE RAÇA EM


PRÁTICAS DISCURSIVAS NA WEB 2.0

Thayse Figueira Guimarães


Doutora em Linguística Aplicada (UFRJ)
Universidade Vale do Rio Verde- Mestrado em Letras
thayse.guimaraes@unincor.edu.br

GT 17 - “Manda Nudes!”: Semioses Contemporâneas e Governamentalidade

Resumo

A proposta focalizará o estudo de como Luan, um jovem negro e de identifica-


ções homoeróticas, constrói suas performances de raça no contexto interaciona
da web 2.0. Para isso observo os discursos produzidos por esse jovem nos
contextos interacionais do Twitter, focalizando principalmente o modo como
lida com significados de corporalidade negra, beleza e embranquecimento na
negociação de suas performances identitárias. A investigação da circulação de
signos identitários de raça será feita em intersecção com significados de gênero/
sexualidade, dando atenção às brechas que Luan encontra para reorganizar os
sentidos referentes às práticas em que se engaja.
Palavras-chave: Performances; gênero/sexualidade; raça; web 2.0.

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Introdução

Neste trabalho, apresento parte de uma pesquisa etnográfica realizada


com um grupo de jovens, estudantes do ensino médio de uma escola pública
da periferia das Baixadas Litorâneas do Estado do Rio de Janeiro, que levou
em conta a observação etnográfica1 no contexto escolar e nas redes sociais
on-line Facebook e Twitter. Focalizo os textos e discursos produzidos por um
dos estudantes da referida pesquisa, que chamarei de Luan: um jovem negro,
classe baixa e de identificações homoeróticas. A proposta é entender como
Luan constrói suas performances de raça no contexto interacional da web 2.0.
Para isso, observo os discursos produzidos por esse estudante nos contextos
interacionais do Twitter, focalizando principalmente o modo como lida com
significados de corporalidade negra, beleza e embranquecimento na negocia-
ção de suas performances identitárias. A investigação da circulação dos signos
identitários (Wortham, 2006) de raça será feita em intersecção com significa-
dos de gênero/sexualidade (Barnard, 2004; Sullivan, 2003), dando atenção às
entextualizações de resistência, ou seja, às brechas que Luan encontra para
reorganizar os sentidos referentes às práticas em que se engaja. Tendo em vista
o foco investigativo deste estudo, tentarei responder a seguinte pergunta: Que
discursos sobre raça são entextualizados por Luan em suas redes sociais, ao
construir suas performances identitárias nesse ambiente? O objetivo aqui é
olhar para as lutas performativas, na construção de sentidos considerados váli-
dos nas interações de Luan pelo Twitter. Importa aqui compreender como Luan
recebe, responde e refuta, ou seja, como adere a esses signos identitários com
determinados propósitos, ao se envolver em práticas comunicativas específi-
cas. Defende-se que a repetição de signos estereotípicos de raça por meio das
entextualizações é produtivamente utilizada por Luan a serviço de uma micro-
política de contestação dos lugares privilegiados, nas suas relações inter-raciais
com seus amigos dessa rede social.
No cerne desta discussão está a compreensão de raça como feita em ações
performativas (Melo; Moita Lopes, 2014), tal como propôs Judith Butler (1999),
ao pensar em uma teoria performativa do gênero e da sexualidade. Entende-se

1 Esta apresentação desenvolve parte da pesquisa de doutoramento realizada por um dos autores (cf.
Guimarães, 2014).

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que a raça também é a materialização de um discurso performativo, que não se


desassocia da materialização de gênero e sexualidade (Barnard, 2004; Sullivan,
2003). Assim, a sexualidade é racialmente marcada, assim também como a
marcação da raça é impregnada de sexualidades específicas (Barnard, 2004).
Na reflexão sobre a circulação de signos identitários de raça na construção
das performances de Luan, é fundamental a discussão sobre os processos de
entextualização-descontextualização-recontextualização de textos. Bauman e
Briggs (1990, p. 73), ao abordarem aspectos da performance narrativa, chamam
nossa atenção para a característica fundamental dos discursos de se descon-
textualizarem e recontextualizarem. A dimensão entextualizável do texto e do
discurso, como proposto por Bauman e Briggs (1990, p.73), ajuda-nos a com-
preender também, em diálogo com Butler (1999), que performances identitárias
são “estilizações repetida do corpo” (Butler, 1999, p.43). Assim as identifica-
ções de Luan são constituídas por sucessivas repetições de signos identitários
(Wortham, 2006) que, por entextualização, são transportados de um contexto
para outro (Silverstein; Urban, 1996).
Com essa perspectiva como pano de fundo, a seguir, apresento a análise
das performances identitárias de Luan, ao acompanhar sua participação nas
redes social do Twitter. Ao fazê-las, levo em consideração que, nos ambientes
virtuais, as identificações são construídas com sujeitos diversos, cujas identifi-
cações estão muitas das vezes divorciadas de uma interação direta com nossas
as práticas identitárias off-line (Thomas, 2007), o que torna os contextos das
redes sociais mais dinâmicos, imprevisíveis e contingentes. As análises mostram
um momento interacional em que Luan negocia significados sobre corporali-
dade negra, beleza e embranquecimento no Twitter. Selecionei tal cena porque
mostram Luan em lutas performativas na construção de significados sobre seu
corpo e identificações de raça, tendo em conta os constrangimentos sociais e os
agenciamentos individuais possíveis. Para a análise dessas práticas discursivas,
serão contempladas as categorias pistas de contextualização (Gumperz, 2002
[1982]) e de footing (Goffman, 2002 [1979]).

Análise da circulação: performances de raça nas práticas


discursivas de Luan

A cena abaixo foi retirada de uma interação entre Luan e Moreira. Moreira
estudava na mesma sala de Luan e, igualmente, era participante da pesquisa. O

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jovem era visto com frequência comentando as postagens efetuadas por Luan.
A transcrição mostra Luan negociando sentidos sobre sua performance de raça,
a partir de um questionamento realizado por esse jovem. De acordo com as
observações etnográficas, era comum Moreira exercer fiscalização das perfor-
mances de raça de Luan nas redes sociais Twitter e Facebook, principalmente
com relação às fotos postadas por Luan (editas pelo software Photoshop), qua-
lificando-as como feias ou como tentativas de clarear a pele ou parecer branco
Em entrevista com a pesquisadora, a respeito dessa questão, Luan afirmara:
Pessoas conversam comigo na Internet e fala: olha o neguinho.
Fala/criticam minhas fotos porque acham que neguinho é essa
coisa que mostram na TV. Tipo o negro é pobre, feio, negro rouba.
Acham porque me visto bem, sei debater com eles, discutir que
quero parecer branco. Não sinto nenhuma ameaça sobre esse tipo
de atitude com relação a minha cor. Eu levo na brincadeira, mas
acho que ninguém esqueceu o tratamento dado aos negros de anti-
gamente, eles acham que ainda existe uma raça superior. (Luan em
entrevista à pesquisadora 14/10/2011) .

Tal declaração aponta o que Luan crê que sejam as racializações por
parte de seus amigos no Facebook, Twitter e Skype. Aqui ele convoca senti-
dos socioculturalmente sedimentados sobre diferenças entre raças e contesta os
significados racializados impostos nas nomeações e estereótipos. Nesta seção,
exploro um momento interacional em que Luan negocia sentidos válidos sobre
sua raça com Moreira. Apesar de o Twitter ter como objetivo ser uma conversa
aberta entre todos os usuários, com base no questionamento “o que você está
fazendo?”, Moreira faz uma pergunta direcionado a Luan. A interação ocorreu
dia 21 de junho de 2011 e deve ser analisada de baixo para cima, ou seja, do
tweet 1 ao 4.

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Figura 1 - A interação entre Luan e Moreira

É possível observar que as identificações de Luan são marcadas por estere-


ótipos baseados em discursos cristalizados sobre diferenças raciais, que operam
na construção de uma relação entre negritude–feiúra e negritude-autonegação.
No post do Twitter, Moreira endereça sua fala à Luan e interpela suas perfor-
mances ao dizer “Oi exu, vc tem preconceito contra vc, posta foto p/b para ficar
bonito e negar sua cor?” (tweet 1). O questionamento de Moreira é construído
por uma correlação entre (1) as fotos em preto e branco que Luan compartilha
nas redes sociais, (2) práticas de embelezamento e (3) práticas de negação de
sua raça. O questionamento de Moreira aponta para um discurso classificatório
baseado em cores, em que a cor “negra” está associada ao não belo e à autone-
gação da corporalidade negra de Luan. Tal enunciação aponta para uma escala
macrossocial, da entextualização de discursos cristalizados e hierarquizados,
que inferiorizam a corporalidade do jovem nessas práticas interacionais
Em resposta à postagem de Moreira, Luan projeta um footing de asserti-
vidade ao dizer “MOREIRA eu não tenho vergonha da minha COR. Sou bonito
pra CRL...TENHO ORGULHO DE SER NEGRO!” (tweet 2). Tal enunciado, em
caixa alta, indicando entonação mais forte assinala com cores fortes a valoração
de suas performances de raça e apontam para entextualizaçoes de resistência
que Luan faz na valorização de sua raça e na contestação da vigilância sobre

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suas performances. Luan, aqui, recupera discursos que incidem fortemente


em práticas de autoafirmação racial para refutar o footing de pessoa que nega
sua cor e atribuir sentidos de legitimidade a suas performances pelas fotos que
publica em preto e branco nas redes sociais on-line.
Além disso, no post seguinte, ao enunciar “MINHA RAÇA NEGRA É FEITA
DO JEITO QUE EU QUISER!” (tweet 3), Luan sinaliza que sua negritude não
está pronta e que pode ser performada fora da roteirização imposta pelo olhar
de Moreira. Performativamente o jovem nos leva a inferir que não existe um
original para suas identificações de raça. Esse é um alinhamento que nos chama
a atenção para a compreensão de raça como efeito de práticas discursivas, do
mesmo modo em que Butler (1999) sustentou que gênero e sexualidade são
performances. É relevante destacar também que o jovem encena performances
inovadoras, ao contestar significados pré-formados que criam roteirizações para
corpos os negros. No jogo interacional de construir participação nessas redes
sociais, Luan, ao enunciar “MINHA RAÇA NEGRA É FEITA DO JEITO QUE EU
QUISER!”, novamente faz uso de entextualizações de resistência que nos leva a
inferir que não existe um original para suas identificações de raça.
No tweet 4, Luan recorre também a outros recursos que sinalizam um
confronto entre Luan e Moreira. O item lexical “tonalidade” faz referência a
sua corporalidade negra e está sendo utilizado no enunciado “Se não gosta da
minha tonalidadee, o problema e seu que tem mal gosto...” (tweet 4). Nesse
caso, a presença da oração condicional “se não gosta” conjuntamente com a
expressão “o problema é seu” projeta um footing de indiferença de Luan com
relação à ideia de que suas performances de negritude não agradam a Moreira
sexualmente. Além disso, a expressão “mal gosto”, utilizada na qualificação das
preferências estético-sexuais de Moreira, funciona também como uma pista
importante na compreensão de um alinhamento em oposição a discursos racia-
lizados sobre beleza, que estabelecem para Luan posições estigmatizadas que
o inferiorizam.
De acordo com Butler (1999, p. 34), a “coerência” e “continuidade” dos
sujeitos sociais não são características lógicas ou analíticas da condição de
pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e
mantidas. Isso significa que as identificações construídas no embate performa-
tivo entre Luan e Moreira são modos de significar a corporalidade supostamente
negra, com base em discursos cristalizados sobre o que é ser negro em nossa
sociedade de supremacia branca. Entretanto, essas práticas discursivas estão

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sempre suscetíveis a falhas e a citações descontextualizadas. Nesse sentido,


entextualizações de resistência podem surgir apresentando significados novos
e imprevistos. Assim Luan, mesmo inundado em estereótipos, pôde contestar
e transgredir uma matriz racial de inteligibilidade da raça que se revela sob a
vigilância constante dos corpos negros.

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TRANS* FORMAÇÕES DO CORPO FEMININO


NAS WEBCOMICS

Keila Henriques Vieira


Doutoranda em Estudos Transculturais
Institute of Transcultural and Transtextual Studies – IETT
Universidade de Lyon 3 – Jean Moulin
chezkeila@gmail.com

GT 25 - Construções Trans* em Debate

Resumo

Este artigo aborda a performance de identidade de gênero nas webcomics


como modo de experimentação e representação das culturas femininas. Como
o acesso a novos instrumentos mediáticos começa a anular subordinações do
gênero, encontramos o surgimento de novas rearticulações corporais junto à
expressividade do feminino nesta mídia; em suas posturas gestos e formações
culturais dentro de uma perspectiva pós-moderna. Assim, esta análise apre-
senta alguns exemplos de webcomics que demarcam a autobiografia como
um instrumento literário coletivo. No sentindo de que como uma manifestação
comunitária, elas formam um espaço de memória e performance da diferença
pelas experiências do feminino.
Palavras-chave: autobiografia; feminidade; coletivos; gênero; webcomics.

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Introdução

As expressões de resistência através das webcomics se tornam políticas


coletivas quando estas começam a ter o objetivo de não somente opor às ins-
tâncias específicas de dominação cívica, mas também proporcionar um fim às
estruturas de subordinação e opressão sexuais. Ao considerar que o oprimido
possui uma desenvoltura cotidiana para imaginar subversões das normas esta-
belecidas por seus opressores através da linguagem, com a criação de novos
espaços mediáticos como o das webcomics, nós encontramos o discurso
democrático.
No fim da década de 1990, a quadrinista Gail Simone postou uma lista
na internet com personagens femininas que haviam sido mutiladas ou mortas
nos quadrinhos. Ela a intitulou como Women in Refrigerators [Mulheres em
Geladeiras], fazendo uma referência à cena da revista Green Lantern [Lanterna
Verde], 1941, em que o protagonista encontra sua namorada morta dentro da
geladeira. Assim, Simone começa esta conversa feminista online para mos-
trar a constituição opressiva da figura feminina representada nas histórias em
quadrinhos.
Ao consideramos que qualquer pessoa está sujeita aos interesses de um
Outro, e sem poder evitar esta conjuntura, ela também é passível de não con-
siderar este interesse como um agente que será subordinador de suas escolhas
pessoais (Anna Smith, p.6). Porém, para alcançar esta determinação global
quanto à perspectiva de gênero ainda se torna necessário o acesso a instru-
mentos tecnológicos de comunicação que permitem visionar e reproduzir um
mundo além de subordinações locais. Com esta perspectiva, as webcomics se
tornam um instrumento mediático de poder, no momento em que elas podem
ser pensadas como formadoras de um espaço alternativo e acessível global-
mente. Elas, desta forma, oferecem novas percepções de modos de vida e
conhecimento marcadas por atos culturais políticos pela expressão coletiva.
Entretanto, a representação do feminino ao estar cingida como um token
pelo passado patriarcal instaurou um capital social simbólico em cada locali-
dade (Bourdieu, 2001, p.66). Por isso, a partir do momento em que “ela” existe
através de um olhar construído, por e como um Outro, este sujeito é mar-
cado por sujeitos acolhedores ou excludentes. Segundo Irigaray (1985, p.227),
o feminino não possui um lugar definido em um espaço e tempo – embora já
exista o reconhecimento histórico da condição oprimida da mulher. E a mesma

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definição da “mulher” também envolve este lugar e temporalidade do passado


patriarcal, ao percebemos que ela neste outrora não pôde tomar posse de si
mesma como feminina.
Além disso, o feminino é um sujeito que ainda continua a atrair reservas
e reconstituições corporais, pois a feminilidade dentro de formas classificatórias
conserva polaridades maniqueístas. Mesmo ao considerarmos que, segundo
Butler (1990, p.76), a noção de um patriarcalismo universal está sendo criticada
pela falha em considerar trabalhos sobre a opressão do gênero em contextos
culturais concretos. Principalmente, por uma constante tendência de se cons-
truir níveis mundiais em que a opressão do gênero é erroneamente explicada
como sintomática ou até mesmo parte da barbárie de um terceiro mundo.

A feminilidade pós-moderna: os corpos desgovernados no ver e


ser visto

A noção de feminilidade na pós-modernidade começa a ser entendida


como uma qualidade que não é exclusiva da “mulher”, mas como uma escolha
da própria sexualidade humana. Visto que a categoria do “gênero” é norma-
tiva, e por isso ela faz parte de práticas reguladoras que produzem corpos a
serem governados, como alega Foucault (1978, p.3). Estas normas reguladoras
também materializam o “sexo” através de reiterações forçadas biologicamente.
E ambos fazem parte de uma materialização incompleta e instável da sexua-
lidade, logo Butler (1993, p.1) diz que nós podemos encontrar possibilidades
para a desmaterialização corporal, principalmente pela rearticulação da cultura
hegemônica. Por exemplo, a partir disto podemos anular princípios pedagógi-
cos em que mulheres são ensinadas a ocuparem o espaço, a se movimentarem
ou adotarem posturas e gestos. Como também expor o fato de que em muitos
lugares a feminilidade é medida pela arte do “encolher” ou do “aumentar”, que
as circunscreve à um espaço autoritário quanto aos seus movimentos, posturas
e formações corporais (Bourdie, 2001, p.27).
Pois, no próprio ser “mulher”, ela possui uma grande representatividade
nas culturas populares que demarcam espaços para a expressão de novas
feminilidades. E no espaço da webcomics a feminilidade se torna vívida e nos
oferece um senso de localidade do que é experimentado nas relações sociais do
ver e ser visto como feminino. Neste sentido, Pollock (1988, p.75) salienta que

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nesta formação encontramos o senso de diferença, localizado entre a experiên-


cia e o que é “oficialmente” falado ou representado como sexualidade feminina.
Na primeira edição da revista Risca, criada pelo coletivo Lady’Comics em
2015, foram realizadas entrevistas com criadoras de webcomics para demarcar
a importância desta mídia na representação das identidades do gênero. Como
no caso da matéria “Desenhando Gênero: quadrinistas trans*ganham espaço e
mobilizam novas representações”, organizada por Samanta Coan. Neste artigo
encontramos algumas declarações de escritoras visuais trans como, por exem-
plo, Kylie Wu, criadora das tiras webcomic Trans Girl Next Door (2013). E ela faz
parte de um grupo de mulheres que criam espaços de memória e resistências
por postarem trabalhos baseados em sua experiência trans*.
Assim, nós percebemos que nas estórias íntimas, feitas em formas de diário
para webcomics, há uma expressão estética inovadora dos meios da comunica-
ção literária visual. Pois, estas autobiografias formadas por relatos experimentais
interrogam e desvendam relações de subordinação e contextualizam inúmeras
identidades sexuais. Como Brogniez (2010, p.121) alega, a marcação da iden-
tidade sexual se torna uma manifestação sensível através deste autobiográfico
corporal nos quadrinhos para a contestação e reivindicação da representação
da feminilidade

Os atos perfomativos das webcomics autobiográficas

As representações de valores culturais são entradas corporais que formam


o espaço de memória, e isto abrange os novos caminhos mediáticos e perfo-
máticos das webcomics. Desta maneira, a noção de “gênero” não pode ser
vista nem como verdadeira nem como falsa, considerando que as experiências
possuem uma identidade que nunca será fixa. Nós aprendemos, experimen-
tamos e compartilhamos conhecimento durante todo este percurso. E como
Butler (1990, p.141) sinaliza, o gênero é aberto para múltiplas divisões, auto-
paródia, auto criticismos, que formam exibições hiperbólicas do “natural” com
um exagero revelador de seu próprio status fantasmagórico. Pois, este é um
fantasma semiótico, em que nenhum valor cultural eterno pode ser atribuído,
mesmo enquanto pessoas movem e vivem, ainda que pacientes, em suas reser-
vas sociais, modéstia e até silêncio.
Como toda performance do feminino é ligada ao ato cultural, Sodré (1988,
p.190) nos diz que “a enunciação não mais joga com critérios de verdade, mas

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com o fazer alguma coisa”, que é correspondente ao compromisso diante do


fato ou pela ação coletiva. Assim, os atos perfomativos produzem ações polí-
ticas, bem-sucedidas ou malsucedidas, em suas garantias democráticas. Logo,
em primeiro lugar, nas autobiografias feitas como webcomics encontramos uma
apresentação íntima que constitui retratos individuais e estes formam a imagem
de um universo perceptivo que também tocará o leitor. E em segundo lugar, nas
webcomics encontramos novas formas de experimentação estética proporcio-
nadas pela linguagem computacional aberta à ousadia.
Como a ousadia é uma forma de sensualidade, ela constitui um campo
performático de escárnio, sacanagem e impostura no desejo de se carnavalizar
a vida (Parker, 2009, p.181). E as webcomics apresentam alternativas para este
carnaval, para se sair de um mundo do enclausurado, onde pessoas se tornaram
depressivamente confinadas ao espaço privado da cidade, da casa, da cozinha,
da língua e do corpo. Esta é uma desordem que também remete a sedução pro-
posta por Sontag (2009, p.281) pelo verbo to camp, ou levantar assentamento,
pelo seu envolvimento com todas as formas flamboyants do viver suscetíveis ao
sentido espirituoso da mudança do compreender cultural. Como na webcomic
Assigned Male (2014), postada no Tumblr, Sophie Labelle é movida pela ideia
de enviar uma mensagem positiva sobre o corpo relacionado à transexualidade
no mundo. Assim, ao assentar uma ideia pela experiência ativa, ela se torna um
ato cultural. Como Berlant e Warnen (1998, p.550) alegam, ao observar que
ritos de passagem podem ser remodelados como histórias individuais/culturais
pela atribuição de novos significados. Ao considerarmos, também, que cada
pessoa não sabe tudo sobre si mesma, mas reconhece o seu relacionamento
com o (auto) conhecimento e imagem coletiva do seu papel dentro do mundo.

Considerações finais

Como apontamos a feminilidade como um sinal, uma ficção, uma confec-


ção de significados e fantasias, ela não corresponde a uma condição natural ou
universal própria da “mulher”. Ela é uma construção ideológica e historicamente
variável, que é produzida por um ou também para ser Outra. (Butler, 1990;
Spivak, 1988). Além disso, entre a vibratilidade do corpo feminino e a nossa
capacidade de percepção cultural há relações paradoxais criadas por nossos
modos de apreensão da realidade. E isto é uma mobilização que impulsiona a
potência sobre o pensamento/criação do mundo representado nas webcomics.

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Assim, nós percebemos que estas obras estão repletas de hibridizações culturais
e corporais, que antes também eram intransmissíveis via outras formas midiáti-
cas. Elas estabelecem mapas de referências compartilhados, dentro de nossos
contornos pessoais, locais e globais, ao transformar estes paradoxos sociais.
Este é um exercício do pensamento/criação que nos oferece participação cole-
tiva na reconstrução de paisagens subjetivas para um mundo livre, igualitário e
diferente.

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IRIGARAY, Lucy. Speculum of the Other Woman. Tradução: Gillian C. Gill. Ithaca:
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SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de


Janeiro: Francisco Alves, 1988, 214 p.

Artigos

BERLANT, Lauren; WARNER, Michael. “Sex in Public”. Critical Inquiry: Intimacy,


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BROGNIEZ, Laurence. “Féminin Singulier: les Desseins du Moi. Julie Doucet,


Dominique Goblet”. In DOZO, Björn-Olav e PREYAT, Fabrice Preyat (Dir.), La Bande
Dessinée Contemporaine, Textyless, Revue des Lettres Belges de Langue Française,
n.36-37, Bruxelles: Le Cri, 2010. P.121-138.

COAN, Samanta. “Desenhando Gênero: quadrinistas trans*ganham espaço e mobi-


lizam novas representações”. In: RISCA. Memória e Política das Mulheres nos
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SONTAG, Susan. “Notes on ‘Camp’”. In: _____. Against Interpretation and Other
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PANORAMA DAS PROTAGONISTAS TRAVESTIS NA


PROSA BRASILEIRA DO SÉCULO XX

Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes


Doutorando em Letras pela Universidade Federal da Paraíba
carloseduardoufpb@gmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

O cânone da literatura brasileira reflete um discurso excludente de classe, raça


e gênero. Obras literárias que propuseram temas transgressores aos dogmas do
status quo machista, branco e heterossexual, consequentemente, na maioria
das vezes, foram omitidas das historiografias literárias, tornando-se pouco lidas,
estudadas e criticadas. O presente trabalho objetiva percorrer a literatura bra-
sileira do século XX, evidenciando a representação das protagonistas travestis
ao longo desse período, problematizando o silenciamento dessas personagens
ao longo do tempo, bem como tecendo comentários sobre a maneira como
elas foram construídas na ficção. Partiu-se de pesquisas bibliográficas em com-
pêndios de história da literatura brasileira, a saber, Bosi (2006), Moisés (2007),
Coutinho (2004), Picchio (1997), para observar se há menção de obras que pro-
tagonizam travestis, em seguida, elucida-se as obras encontradas e os aspectos
que estas ensejam sobre as travestis, o corpo e a sexualidade. A crítica que se
constrói toma por base as discussões sobre o cânone, a partir de Kothe (1997) e
Cunha (1999), sobre sexualidade e relações de poder, a partir de Foucault (1988,
1985, 1984), Bordieu (2007) e sobre o corpo e a experiência da travestilidade, a
partir de Silva (2007) e Pelúcio (2009).
Palavras-chave: Travestis; Protagonistas; Narrativas brasileiras; Século XX.

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Introdução

O cânone da literatura brasileira reflete um discurso excludente de classe,


raça e gênero. Obras literárias que propuseram temas transgressores aos dogmas
do status quo machista, branco e heterossexual, consequentemente, na maioria
das vezes, foram omitidas das historiografias literárias, tornando-se pouco lidas,
estudadas e criticadas.
Kothe (1997) aponta as ideologias dominantes na formação do cânone e
elucida a exclusão das minorias, fazendo uma crítica e uma revisão radical da
seleção de obras e autores da literatura brasileira. No entanto, ele argumenta
que não há saída para reformular o cânone, tão solidificado que está na cultura.
Parte desse crítico a idéia de desconstrução alegórica que consiste na tentativa,
talvez utópica, de promover breves “rachaduras” nas estruturas canônicas da
literatura, desconstruir, ao menos alegoricamente, o padrão estipulado que, evi-
dentemente não corresponde à rica pluralidade de perspectivas construídas em
nossa literatura.
Dessa forma, pretendemos dar visibilidade a obras literárias cujo enfo-
que recai nas minorias silenciadas culturalmente. A característica principal
do recorte de nosso corpus se dá pelo aspecto temático e estrutural: obras
cujo tema central é a travestilidade e cujas protagonistas sejam travestis. Nosso
objetivo é percorrer a literatura brasileira do século XX, evidenciando as pro-
tagonistas travestis ao longo desse período, problematizando o silenciamento
dessas personagens ao longo do tempo.
Utilizamos a concordância do termo “travesti” com o pronome feminino,
a fim de respeitar o gênero e não o sexo biológico dessas pessoas, bem como
empregamos o termo Travestilidade, no lugar de Travestismo, uma vez que o
primeiro fornece uma visão pluralizada da experiência travesti, promovendo
um olhar mais abrangente e positivo. (PELÚCIO, 2009). Estamos considerando
como travesti a personagem de ficção que tem sua trajetória marcada na nar-
rativa, perpassando um período no qual a identidade sexual e de gênero era
masculina, ou seja, era uma personagem homem, que passa pela transformação
corporal, através da vestimenta e outras tecnologias do corpo (BENTO, 2006), e
torna-se uma personagem travesti, que parte da aparência feminina para cons-
tituir uma nova identidade.
Partimos de pesquisas bibliográficas em compêndios de história da lite-
ratura brasileira, a saber, Bosi (2006), Moisés (2007), Coutinho (2004), Picchio

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(1997), para observar se há menção de obras que protagonizam travestis, em


seguida, elucidamos as obras encontradas, promovendo visibilidade às narrati-
vas brasileiras que centralizam a experiência da travestilidade.

Cânone, história literária e protagonistas travestis

Existe uma vagueza semântica em relação ao conceito de cânone,


segundo Cunha (2006). Todavia, podemos sintetizar que o cânone literário é
um sistema simbólico e material de valorização exacerbada de obras, que se
materializa através das listas de obras que são divulgadas para o público. Nesse
sentido, subjaz ao cânone uma relação de poder, na qual hierarquicamente ele
é supostamente superior aos que foram omitidos e/ou excluídos dele, voltando
ao apontamento feito por Crystófol y Sel (2008) de que a censura está sempre
associada ao cânone.
Os manuais tradicionais de história da literatura mais divulgados nos cur-
sos de Letras, como de Coutinho (2004), de Moisés (2007a) ou de Bosi (2006)
mantêm praticamente a mesma quantidade de obras, de seleção de autores,
mesma atribuição valorativa aos textos, formando uma rede através da qual se
reforça, segundo Kothe (1997), que o cânone literário brasileiro não seja consi-
derado exposto a possibilidades de revisões/ alterações, mantendo estabilizados
discursos de sustentação de determinadas ideologias.
Um primeiro objetivo traçado foi o de verificar se há menção da temática
homoerótica em obras da literatura brasileira e, depois, que tipos de comentá-
rios são tecidos sobre o autor, o tema ou sobre as personagens travestis inseridas
nas narrativas. É comum não encontrarmos menção a obras de temática homo-
erótica em compêndios mais tradicionais ou, quando a obra é mencionada, há
suplantação desse tema.
Segundo Thomé (2009), um dos maiores clássicos da literatura bra-
sileira do século XX é o romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio
Cardoso, publicado em 1959 e que possui uma intrigante personagem travesti:
Timóteo. Entre muitos conflitos, apesar de não ser o único protagonista, pois
o romance é polifônico, narrando-se vários conflitos entre as diversas perso-
nagens, Timóteo transgride a norma dos papéis de gênero e vive trancado
em um quarto, vestido de mulher, fato que desencadeia todo um descon-
forto nos demais sujeitos ficcionais. No entender de Thomé (2009, p. 189),
essa personagem “subverte o cânone”, modificando a visão das personagens

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homoeróticas na literatura. Talvez por esse motivo, nem essa personagem


travesti, tampouco o viés homoerótico da obra de Lúcio Cardoso, são men-
cionados nos compêndios historiográficos. O autor sequer é citado nas obras
de Moisés (2007a) e Picchio (1997) e, apesar de exaltado por Coutinho (2004)
e Bosi (2006), o caráter subversivo de um de seus principais personagens
não é mencionado. Além da narrativa de Lúcio Cardoso, a única que possui
uma protagonista com um aspecto de travestilidade e que é mencionada nos
compêndios de história da literatura brasileira é Stella Manhattan, de Silviano
Santiago; o romance é citado apenas por Picchio (1997), mas sem elucidar
nenhum de seus aspectos de diversidade sexual.
De todos os manuais consultados, o que mais diverge quando compa-
rado aos demais, possuindo maior alcance temporal no aspecto ‘descrição de
obras’ (chega a descrever textos da década de 1990), é o de Picchio (1997).
Ainda assim, não registra os romances de Cassandra Rios, que tiveram grande
repercussão desde a década 40 – com a publicação do seu primeiro livro A
volúpia do pecado, lançado em 1948 – até as décadas de 1970 e 1980, com
seus romances mais conhecidos. É importante perceber que a omissão de obras
de temática homoerótica e das personagens travestis confirma, no cânone da
literatura brasileira, a observação de Crystófol y Sel (2008) de que a censura
é característica da constituição dos cânones literários; censura essa que se
configura não só pela omissão, mas pelos comentários negativos em torno da
literatura homoerótica.
Ao verificar os compêndios anteriormente citados, percebemos que a
menção a obras que apresentem protagonistas travestis é quase nula. Partimos,
então, para uma apresentação diacrônica de obras que encontramos através
de pesquisas bibliográficas e, por nossa experiência própria de leitura, faremos
um passeio pelos contos e romances que abordaram a travestilidade em suas
protagonistas. Elaboramos um quadro com a síntese dos títulos encontrados em
nossas pesquisas, facilitando sua visualização:

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QUADRO 1 - Síntese das obras em prosa com protagonistas travestis


Título da obra Autor Ano Gênero
A grande atração Raimundo Magalhães Jr 1936 Conto
Georgette Cassandra Rios 1956 Romance
Crônica da casa assassinada Lúcio Cardoso 1959 Romance
Uma mulher diferente Cassandra Rios 1965 Romance
Taís Walmir Ayala 1966 Conto
Dia dos Namorados Rubem Fonseca 1975 Conto
Amor Grego Aguinaldo Silva 1975 Conto
Ruiva Julio César Moreira Martins 1978 Conto
O Milagre Roberto Freire 1978 Novela
Shirley Leopoldo Serran 1979 Peça teatral
Noites de Rosali / A bichi-
Darcy penteado 1979 Contos
nha da sorveteria
O Travesti Adelaide Carraro 1980 (incerto) Romance
Rita Pavone não usa tubinho Zeilton Alves Feitosa 1984 Conto
Stella Manhattan Silviano Santiago 1985 Romance
O fantasma travesti Silvia Orthof 1988 Romance
Mudanças Orlando Jerônymo 1995 Conto
O anjo da avenida atlântica Luís Canabrava 1995 Conto
Nicola Danilo Angrimani 1999 Romance

Ao fazer este breve levantamento de textos brasileiros que centralizam os


conflitos das travestis, percebemos quão pequena é a quantidade: apenas 19
títulos (entre contos, romances e uma peça teatral) em um século. A maioria
das obras que compõem o nosso levantamento são textos considerados perifé-
ricos, de publicação única, obras literalmente ocultadas de registros na história
literária brasileira. Infelizmente, devido ao espaço limitado neste artigo, essas
obras não são aqui esmiuçadas em seus enredos, o que pode ser consultado
em Fernandes (2016).

Considerações Finais

É bem verdade que a literatura de temática homoerótica não tem sido


produzida no Brasil apenas nas duas últimas décadas, mas o pensamento moder-
nista, lá da Semana de 22, tem reverberado em vários momentos, levando-nos
a defender que o conceito de literatura, de crítica literária, que o pensamento

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construído em torno das artes e da literatura sofreram alterações ao longo de


todo o século XX, apesar de a literatura de temática homoerótica ter sido invi-
sibilizada, silenciada ou guardada como um segredo.
A discussão em torno das representações de autores e obras da literatura
homoerótica nos compêndios da literatura brasileira não é uma fala que se
ressente da inclusão de obras no cânone literário, mas uma advertência aos lei-
tores no sentido de que percebam, como diz Kothe (1997), os gestos semânticos
de poder que tornam autores e obras “ventrílocos” da literatura, um repetindo
o outro e, neste repetir, de acordo com a ideologia do momento (que parece
ser a mesma, apesar do tempo transcorrido entre as gerações), alcançam luga-
res na memória nacional. Esperamos, aos poucos, romper um pouco com esse
silenciamento, desconstruir alegoricamente, nas palavras de Kothe (1997), as
barreiras do cânone impostas à literatura que tematiza a diversidade sexual,
promovendo, assim, outras formas de interpretar nossa produção literária, espe-
cialmente no que se refere às personagens travestis.

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SERÁ A VISIBILIDADE DIGITAL UM NOVO TIPO DE


CONFISSÃO OU UMA FORMA DE RESISTÊNCIA?

João Barreto da Fonseca


Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e professor do Curso de Comunicação Social e do Programa
de Mestrado em Letras, da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ)
jombarreto@gmail.comj

Resumo

No movimento LGBT é comum se pensar que a visibilidade é uma estratégia


de confronto. Levando em consideração postagens na internet, diríamos que
aparecer não é mais problema, porém, os problemas não desapareceram. Neste
texto, apontamos mudanças nos regimes de aparição, entrelaçando questões
relativas à comunicação, à educação e à problematização da heteronormativi-
dade, mas trazendo para os nossos dias uma desconfiança de Foucault (2003),
para quem o excesso discursivo em torno do sexo também era uma forma ocul-
tamento da energia vital das práticas sexuais.
Palavras-chave: Redes; imagens; resistência; confissão; diversidade.

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Introdução - o corpo em negociação

Os corpos, que pouco circulavam no mundo da matéria, com suas leis da


física, estão mais disponíveis no ciberespaço, onde transitam com mais leveza
e apresentam viariantes antes não vistas. Esta pluralidade, outrora clandestina,
exibe-se de maneira notória em milhares de “curtidas” e visualizações e algu-
mas ganham versões. Este é o caso, por exemplo, da travesti Luiza Marilac,
que ficou famosa com um vídeo postado na internet e ganhou imitações das
apresentadoras de TV e foi entrevistada com seriedade por Antonio Abujanra,
no programa Provocações, da TV cultura extinto após a morte do apresentador.
A democratização na produção, distribuição e recepção de imagens disponi-
bilizou aos usuários de internet cenas inusitadas dos cotidianos, retirando de
regiões de sombra imagens tabus.
Poderíamos de chamar de ação no mundo real, essa enorme quantidade
de reação aos vídeos, que viralizam na internet porque seus personagens estão
fora dos quadros da heteronormatividade, como é o caso de Luisa Marilac ou
do rapaz filipino Royce Cherdan Lee e suas versões de videoclips de diva.
Para Bergson (1999. p. 58), o nosso corpo não se limita a refletir a ação de
fora, “ele luta e absorve assim algo dessa ação. Poderíamos dizer, por metáfora,
que se a percepção mede o poder refletor do corpo, a afeção mede seu poder
absorvente”. Então, para Bergson, o corpo nunca é estático e sua definição é
negociada publicamente. Segundo Bergson (1999, p. 60), porque acontece um
processo de afecção, que é justamente o que se mistura do interior do nosso
corpo à imagem dos corpos exteriores.
Para Butler ( 2013, p.154), o constructo social conhecido como corpo vem
se modificando com o passar dos anos, à medida que recebemos mais imagens,
e seu “constructo ideal” está se desmaterializando. Villaça (1999, p. 13-14) pensa
que a desmaterialização do corpo diz respeito à “perda de referências corpo-
rais” associada à desmaterializaçao dos “outros obstáculos naturais e históricos”.
Foucault (2003) sinalizou, depois de Bergson, que a verborragia e a supe-
rexposição também podem ser uma maneira de manter um problema oculto.
Expor não seria como apresentar as armas ao inimigo para um seguinte processo
de normatização? As coisas sem os seus demasiados disfarces são necessaria-
mente mais francas?
Essas questões foram levantadas, porque Foucault (2003, p. 59.) acredi-
tava que a confissão estava tão incorporava que não mais se apresentava como

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efeito do poder, mas como espontânea. Não mais revelava o poder que coa-
gia. (p. 60). Para Foucault, os detalhes minuciosos, as precauções meticulosas
dos cientistas e teóricos, espalhadas em vários tipos de confissões (médicas,
psicológicas, pedagógicas), pelo menos até Freud, podem ser considerados pro-
cedimentos destinados a desviar a verdade perigosa do sexo: “De tanto falar
nele e descocri-lo reduzido, classificado e especificado, justamente lá onde o
inseriram procurar-, se-ia, no fundo mascarar o sexo: discurso-tela, discurso-es-
quivância” (FOUCAULT, 2003, p. 53).

As categorias e os seus direitos

Ao estudar os presos de Guantánamo, Butler (2009) se conjuga com


Foucault (2003), ao acrescentar que existem categorias sobre as quais recaem
um certo tipo de humanismo, que lhes garante direitos à lamentação e ao luto
em caso de morte, o que não houve, por exemplo, com os gays mortos em 11
de setembro, como lembra a filósofa. Para Butler (2009, p. 63), a relação da
desumanização com o discurso é complexa. Butler não acha simples afirmar
que a violência implementa somente o que já está funcionando no discurso.
O reconhecimento para Butler (2009) tem relação estrita com processos de
humanização. Contra as vidas que não são humanizadas (as que não formam
famílias tradicionais) são destinadas as violências físicas, que são mensagens da
desumanização que está ocorrendo no mundo da cultura.
Foucault já havia alertado, ao relativizar a hipótese repressiva, que a inter-
dição do sexo não era uma ilusão, mas fazia parte de uma série de recusas que
tinham, paradoxalmente, “uma vontade de saber”, em cima da qual ser ergueu
uma “ciência”. Essas ciências embora sobre o rótulo de “a vontade de saber”
tinham intenções de conter e disciplinar. Ainda segundo Foucalt (2003, p. 37),
através de práticas discursivas, “multiplicaram-se as condenações judiciárias das
perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental”.
O reconhecimento, no sentido apontado por Butler, funciona para a
reparação da vulnerabilidade, que é uma condição constituinte do “humano”.
Vulnerabilidade que, para Spinoza (2009, p. 33), é a consequência de encontro
com outros corpos, que nos constrangem e diante dos quais somos suscetíveis.
E além disso: “O corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza
diferente) cada um dos quais é também altamente composto”. Neste sentido,

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um corpo não existe “per si”, como unidade, mas apenas em relação com seus
fragmentos internos e com outros corpos.

Abjeção digital

Essa nova inteligibilidade cultural determina como se qualifica um corpo


para uma vida no interior do domínio da cultura, conforme afirma Butler (2003,
p.155). É uma nova arena de luta contra a abjeção e para a criação de novos
objetos de ódio, completamente em consonância com a regulação de práticas
identificatórias. Aquilo com o qual não se identifica se torna o abjeto. Então, o
conceito de identidade carrega consigo a abjeção.
Butler (2013) argumenta que a identificação com o sexo, na formação do
sujeito, produz uma rejeição, um repúdio. Mas o abjeto não é algo que está no
exterior, mas algo que foi colocado para fora no processo de formação do sujeito,
de identificação. Neste sentido, podemos convocar Freud (1986), que em seus
trabalhos sobre estética, em torno de O homem da Areia, de E. T. A Hoffman,
argumentava que o estranho não se classifica como algo desconhecido, mas
como familiar. Para reforçar seu ponto de vista, destacou a semelhança entre as
palavras alemãs Unheimlich (estranho) e Heimlich (doméstico ou familiar) e os
esforços da arte na tentativa de separar o grotesco do belo, o imoral do elevado.
Nietzsche (2008, pág. 164), pensando a construção da glória e da virtude, ava-
lia que “a moral é tão imoral quanto qualquer outra coisa sobre a Terra”. Butler
(2013) também investe na indissociabilidade entre as duas instâncias, na consti-
tuição do sujeito pela força da exclusão e abjeção: “uma força que produz um
exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está “den-
tro” do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio” (p. 155).

Resistência

Para Nietzsche (2008, p. 43), quando a moralidade triunfa, a existência


está condenada. Para o filósofo, a decadência é sintoma de acréscimo de vida:
“O fenômeno da décadence é tão necessário quanto qualquer ascensão e pro-
gresso da vida: não está e nossas mãos suprimi-la. A razão quer ao contrário
que lhe seja feita justiça”.
Os xingamentos a vários vídeos na internet, que apresentam formas mar-
ginalizadas de apresentação do corpo, resultam em reivindicação de fronteiras

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e de superfícies, e também evocam a inegabilidade do sexo e, consequente-


mente, o pensamento que gira em torno de haver sempre modelos e versões
performativas, e ainda a criação de seres abjetos como efeito da matriz exclu-
dente com a qual os sujeitos são formados. A teatralidade da performatividade,
como estratégia ou como resposta aos movimentos repressivos, esconde sua
historicidade (BUTLER, 2013) ou carregam virtualidades (LEVY, 1996a) que
ampliam seu sentido ou partilham uma consciência que se perde ou se exalta
(BLANCHOT, 2013).
A partir de Blanchot (2013) é impossível inferir capacidade organizacio-
nal de uma comunidade digital como coexistência gregária, como requer Levy
(1996b) e, e de quebra, se relativiza a ideia de uma esfera pública (HABERMANS,
1999) global uníssona que incorpora, de maneira estratégica, a fusão de seres
como número.
Num videoclip muito popular no Facebook e no Youtube, adolescentes
filipinos, criam uma versão de Oh, Holly Night, tradicional canção de Natal,
famosa com Mariah Carey. O vídeo tem um efeito cômico magistral porque sua
encenação tem pouco a ver com as versões anteriores e com o tema da música
que é glorificar o Natal.
Não parece que os meninos estão militando no sentido político tradi-
cional, mas, de quebra amolecem conceitos cristalizados tais como: sedução
como pertencente ao mundo adulto, existência de uma massa que recebe e
aceita os conteúdos sem recriá-los (a “canção sagrada” transforma-se em diver-
são erótica, numa apropriação de sentido desvinculada do original) e a divisão
entre movimentos corporais femininos e masculinos (atribuição dos valores do
corpo a partir da definição de gênero).
Ou como diria Butler (2013, p. 154), “os corpos não se conformam, nunca,
completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta”. Daí nesse
pequeno vídeo, o processo de comunicação é um campo de criação, de resis-
tências, de invenção e variação, porque está muito além de tentar buscar um
reconhecimento a partir de uma forma preexistente.
Heidegger (2001), versando sobre a experiência do tempo na moder-
nidade, acreditava que não era possível se unir instante (como sensação) e
cognição. Para o filósofo, o presente só poderia ser sentido quando era passado.
Arriscamos aqui a ideia de que, na atualidade, alguns vídeos vão além desse
pressuposto teórico, apresentando a dimensão estética da sensação, da cogni-
ção (podendo ser permeado pelo discurso, pela ideologia) simultaneamente. Ao

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mesmo tempo, por serem vídeos, são processos e veículos, e por serem digitais
são virtualizações, passagens e interfaces. Johnson (2001) argumenta que a sen-
sibilidade torna possível o trânsito de informação e, assim, esse tipo de vídeo
inspira outros vídeos, comentários, memes etc, cumprindo a função de gerar
visibilidade pela heterogênese, formas díspares que se tornam convergentes
(JENKINS, 2009) no universo em rede. Neste sentido, esse tipo de vídeo é como
filmes de guerra (VIRILIO, 2005, p. 27), “a partir do momento em que está apto
a criar a surpresa técnica e psicológica”. Diferentemente de Heidegger, Virilio
(1996) argumenta que o espaço encolhe e os lugares desaparecem em função
do progresso da velocidade. Devemos relativizar essa pressão do tempo sobre
o espaço, uma vez que as questões LGBT, embora afetadas pela esfera pública
internacional, encontra-se territorializadas: na Tailândia três homens se casaram
em cerimônia budista. No Brasil, filho de pais gays morre depois de espanca-
mento. No Irã, homem para escapar à morte e se relacionar sexualmente com
outro homem é obrigado a fazer cirurgia para mudar o sexo. Multiplicidades
que tornam uma identidade queer muito problemática, mas aponta para uma
inteligência coletiva (LEVY, 1996b), em que os pontos de vistas sobre discussões
locais são ampliados a partir de exemplos de uma esfera global.
O que Baudrillard (2004) chama de grau zero ético, de modo bastante
negativo, quando se refere aos realities shows, mesmo não duvidando da fluidez
entre o banal e o extraordinário, poderíamos aqui, diferentemente, considerar
um avanço democrático por liberar usuários de tecnologia digital do mundo
inteiro para a experimentação de uma alteridade de si, para a autopromoção
em celebridades instantâneas. Mesmo considerando o esforço teórico maravi-
lhoso de Baudrillard (1999, 2004) sobre o esvaziamento do signo imagético e a
impossibilidade do valor representativo da imagem, porque o real passou a ser
modelizado conforme um modelo que o precede (que é a própria imagem), há
que se fazer uma ressalva nesse pensamento quando o assunto é a militância.
Os argumentos de Nichols apresentados por Rezende (2013), ajudam a
pensar em que sentido a realidade perdeu sua antecedência em relação aos
signos que deveria representá-la. Nichols, ainda segundo Rezende (2013), sus-
tenta, contra Baudrillard, por exemplo, que mesmo a invasão de Granada sendo
comunicada como simulação, “os mortos e desastres de guerra seriam uma
prova de que ainda há um real...”

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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

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QUE VOZES ESCUTAMOS EM “TRAVELLING”


DE ANA C. CESAR?

Vivian Steinberg1

Resumo

Paul Valéry inscreveu a sedução da serpente perante Eva no verso: “Eu me


escuto”, como se produzisse uma espécie de ponto surdo na voz onipresente
de Deus que permitisse a Eva a ouvir sua própria voz.2 A partir dessa conside-
ração e levando em conta a proposta de Henri Meschonnic, denominada de
crítica do ritmo. Uma proposta de leitura e de crítica que leva em consideração
o ritmo, - esse que escande e ao mesmo tempo revela a oralidade ou a voz do
texto. Abordaremos o poema “travelling” de Ana Cristina Cesar, nos pergun-
tando quais questões políticas de diversas ordens são instauradas pelas vozes
desse poema. Política entendida como relação entre identidade e alteridade, já
que só existe identidade quando há alteridade. Levaremos em consideração os
estudos de Viveiros de Castro em relação ao perspectivismo ameríndio assim
como o conceito de antropofagia desenvolvido por Oswald de Andrade.
Palavras chaves: Ana Cristina Cesar, Paul Valéry, voz, ritmo, Henri Meschonnic

1 Vivian Steinberg doutora pela USP. viviansteinberg@terra.com.br


2 Ideia desenvolvida por ZULAR, Roberto. “ O ouvido da serpente: algumas considerações a partir
de duas estrofes de ‘Esboço de uma serpente’ de Paul Valéry”. In: Interpretações - crítica literária e
Psicanálise. São Paulo: Ateliê, 2014.

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Começar um poema pelo título, em minúsculas, “travelling”3, revela-se ao


menos dois sentidos: em relação à viajar em língua estrangeira; e, em relação
ao cinema, trazendo como significação o carrinho que percorre os trilhos em
uma filmagem, quase a palavra para movimento cinematográfico. Ouvimos o
movimento, o ranger do maquinário, onde há rodas, máquinas, gentes e subje-
tividades, que ora apelam para uns, ora para outros caminhos. Essa experiência
é reforçada pelo nomear de Carolina. Sim, a cineasta que namorava com ques-
tões históricas, literárias, antropológicas brasileiras, assim como as relacionadas
ao feminismo, atenta à multiplicidade humana, se sensibilizando para outros
lugares não nomeados, outra Ana, Ana Carolina. Em outras palavras, em sua
filmografia, há uma diversidade de vozes, abrindo espaço para vozes marginais,
para o feminino, o outro, o diferente. Vozes que permitem surgir o furo no dis-
curso, desestabilizando a enunciação heteronormativa ou eurocentrista.
A escolha da palavra em inglês para nomear o poema é a marca do estra-
nho cuja presença se desdobra por estar grafado com minúsculas, aliás uma
bela visão editorial. Enuncia-se um começo em andamento, um não começo,
portanto não há a soberania do início, de um único olhar, de um princípio. A
experiência de “outrar-se” é a de que pegamos o movimento no meio, como
se tivéssemos que esperar a nossa vez para participar do jogo, como se entrás-
semos num jogo de pular cordas, sim precisamos entrar corporalmente. Ressoa
uma voz estrangeira, um devir outro. Não estamos no início mas na continui-
dade do movimento.
Ainda em relação à quebra do paradigma do começo, podemos relacio-
nar ao pensamento de Derrida, citado por Dolar4:
Se a metafísica, em sua visão um tanto ‘arredondada’, é propensa a desau-
torizar a parte da alteridade, o traço do outro, a sustentar um significado único
contra o jogo demolidor de diferenças, para manter a pureza da origem contra
o que é suplementar, ela só pode fazê-lo ao ser fiel ao privilégio da voz como
fonte de uma autopresença original. A divisão entre o interior e o exterior, o
modelo de todas as outras modalidades deriva daqui.

3 De acordo com a edição de Poética, da Companhia das Letras, 2013. A edição da Brasiliense foi
editada com maiúsculas.
4 DOLAR, op. cit. p. 173.

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Então, o título estar grafado em minúscula e ser uma palavra estrangeira


que carrega como um dos significados estar em movimento relacionado ao
cinema, nos leva ao entendimento de que não há um princípio unificador, por-
tanto estamos diante de cenário democrático, não mais no modelo metafísico,
unificador, legislador, de mão única; ou ainda, não é “uma primeira emanação
metafórica do Uno que é a fonte.5” Estamos no avesso, ou esse título traz o
desvio na linguagem.
O primeiro verso é a tentativa de estabilizar qualquer coisa: “Tarde da
noite recoloco a casa toda em seu lugar.” Um verso longo que não foi quebrado
para tentar a totalidade: recolocar a casa toda em seu lugar. Parece que em
algum outro momento a casa esteve em seu lugar, talvez no imaginário. E o som
do /t/, multiplicado pela inicial maiúscula, reverbera pelo verso, corrobora para
a tentativa de organizar ou reorganizar o espaço: casa/poema.
Seguem verbos afirmativos: guardo, confirmo, ambos na primeira pessoa
do singular. A pretensão ou a vontade de arrumar, de organizar e de ter certeza,
imiscui-se no poema, como pretensão. Palmilham discordâncias aparentes entre
o movimento sugerido no título e os três versos seguintes que se quer organizar
bem como o recolocar insinua o deslocar vislumbrando um lugar certo, ou pelo
menos conveniente, e repete a ação de colocar.
A palavra que reverbera nos dois primeiros versos é toda e todos (ideia
de unidade, de totalidade), há a repetição do som: “Tarde da noite recoloco a
casa toda em seu lugar./ Guardo os papéis todos que sobraram.” São dois versos
que dialogam, são paralelos. Casa está para papéis assim como em seu lugar
está para sobraram - o que sobrou? os papéis. Casa e lugar sobram? Ou falta?
Recoloco e guardo.
O sujeito da enunciação se revela ou se esconde nos verbos em primeira
pessoa e no retorno da ação em: “para mim” - ação de espelhamento ou de
reflexividade. “A solidez dos cadeados” transmite algo seguro, sólido, ao mesmo
tempo que destoa com os versos anteriores, embora “sobraram” é retomado em
“solidez”.
Chegamos no verso que muda o encaminhamento anterior: “Nunca mais
te disse uma palavra”. Na palavra nunca ressoa “Tarde da noite” porque os dois
são marcadores do tempo.

5 DERRIDA, “Qual Quelle”. Morfeus da Filosofia. 1972. p. 324.

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Nesse verso, comparece a alteridade, o outro, a segunda pessoa: o pro-


nome te, mesmo que lhe negando a palavra, ou seja, o outro se confirma pela
negação. O tu presume um eu. De acordo com Benveniste6, os pronomes per-
tencem às “instâncias do discurso”, ou seja, a língua é atualizada em palavra por
um locutor. “Eu significa ‘a pessoa que enuncia a presente instância de discurso
que contém eu”. “Eu e tu como uma categoria de linguagem e se relacionam
com a sua posição na linguagem.” Então, no poema, o tu, objeto, aproxima-se
dos marcadores: “tarde da noite” e “nunca mais”, delimitando a instância espa-
cial e temporal coextensiva e contemporânea da presente instância do discurso
que contém eu. Podemos pensar como uma reinvenção da cena enunciativa
que constitui os modos de relação com a alteridade. De acordo com Eduardo
Viveiros de Castro7: “Todo ser a que se atribui um ponto de vista será assim
sujeito, espírito; ou melhor, ali onde estiver o ponto de vista, também estará a
posição do sujeito”.
Voltando ao verso: “Nunca mais te disse uma palavra”, esse espelha os
versos 23 e 24: “Nunca mais te disse/ uma palavra, preciso alto,/ tarde da noite”.
Agora mais lento, as mesmas palavras divididas em dois versos complementando
com a instância do discurso que contém eu, reinstaurando a cena enunciativa.
Enuncia que não mais houve o ato, a fala dirigida para o “tu” e enuncia essa
negação do ato; mesmo negando, toca-se no ato e no tu, alude-se ao dizer e ao
tu. Diferentemente da escrita que é contínua como nos disse Derrida, a fala é a
marca do descontínuo, tem um ritmo que nas brechas aparece a subjetividade,
essa voz é a que não mais foi compartilhada, embora tenha sido escrita no
poema e nós a escutamos. Não há fala sem voz, mas há voz sem fala, escreveu
Jean-Luc Nancy8. Ou seja, há voz antes da fala, reconhece-se a voz antes de
distinguir as palavras que pronuncia. A voz é a face sonora da fala. O poema
nos apresenta a voz mesmo negando a fala à alteridade.

6 BENVENISTE, E. “ a natureza dos pronomes” in: Problemas de Linguística Geral I. Campinas: Pontes,
1995.
7 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. In:
Mana vol.2 no.2 Rio de Janeiro Oct. 1996
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131996000200005. p. 126.
8 NANCY, Jean-Luc. “Vox clamans in deserto”. In: Gratuita - caderno de leituras- vol. 2.Belo Horizonte:
Chão da feira, 2015. p.11

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A partir desse verso, o poema muda de rumo, retoma outra narratividade,


outra cena, outro lugar, outro curso; não mais o ambiente da casa, o dentro;
agora o “alto da serra de Petrópolis”, remetendo e chamando, dando espaço
para uma outra voz, a da poeta Elizabeth Bishop, supondo intimidade por tra-
tá-la pelo primeiro nome e pelo lugar em que morou no Brasil, uma estrangeira
poeta, com outra língua, aqui - na sua casa, na sua língua. Num esboço sucinto,
traz a poeta, não escrevendo mas cuidando de plantas, uma cena apaziguadora
e um verso contundente de Bishop: “Perder/ é mais fácil que se pensa”. Escreve
com aspas denunciando outra voz, a de Elizabeth misturada a de Ana? Logo
no verso mais autobiográfico da poeta norte-americana, estrangeira na nossa
língua, traduzida. Chapéu de ponta e um regador é a imagem da poeta em sua
casa na serra de Petrópolis, e objetos que estão presentes em seus poemas.
Através da sinalização para essa voz, há uma visualização da cena.
A primeira voz enuncia: “confirmo para mim a solidez dos cadeados”;
“Elizabeth reconfirmava, ‘Perder/ é mais fácil que se pensa”. Enquanto uma está
com medo de perder: afinal, confirma a solidez dos cadeados; a outra, diante
desse medo, reconfirma: “Perder/ é mais fácil que se pensa”. São vozes e línguas
misturadas. O verso, escolhido e reconfigurado ou reedito pela primeira voz,
é a vida sucinta da poeta que perdeu tantas e tantas coisas: casas, familiares,
pátria, língua...
Em seguida, há um verso cortante com um verbo de ação afirmativa:
“rasgo”, dialogando com a cena inicial; não mais guarda mas rasga, assumindo
a perda, ou negando a perda, o ato de rasgar é mais decidido corroborando a
ideia de não mais dizer uma palavra: “Rasgo os papéis todos que sobraram”.
Os papéis todos que sobraram são os mesmos que em versos anteriores havia
guardado?
Uma outra voz é pronunciada, pelas aspas e a presença de um tradu-
tor, portanto há uma língua estrangeira, não compreendida na linguagem, mas
enquanto voz sim: traduz o quê? para quem? “Os seus olhos pecam, mas seu
corpo/ não”, dizia o tradutor preciso simultâneo”. O ver e ser visto apela para a
pulsão escópica, de acordo com Lacan:
Essa pulsão escópica, em sua origem, participa da formação do Eu.
O Eu se organiza pela imagem, pela visão de uma imagem com-
pleta de si mesmo vista no espelho e indicada pela mãe que aquele
ali é ele mesmo, o bebê. (...) A imagem é que o antecipa em sua
completude. (...) Não há pulsão nos bichos, apenas instinto. Essa

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satisfação pelo olhar é própria apenas do humano, assim como


todas as outras pulsações.9

As palavras do tradutor preciso simultâneo performatiza a presença do


corpo o mesmo que os olhos pecam e as mãos tremem e Carolina, cujas mãos
não podem tremer, afinal filma, ri e diz que é perigoso, como o “Viver é peri-
goso”, de Rosa, ela fica com o eco: “é perigoso”. Assim o filme continua: “a
câmera em rasante viajava.”
Em seguida, três vozes são anunciadas:
A voz em off nas montanhas, inextinguível/ fogo domado da pai-
xão, a voz/ do espelho dos meus olhos,/ negando-se a todas as
viagens,/ e a voz rascante da velocidade,/ de todas as três bebi um
pouco/ sem notar/ como quem procura um fio.

No poema, a voz da enunciação é atravessada por essas outras vozes ou


outras posições ecoando e se apropriando.
A primeira enunciada é “a voz em off nas montanhas, inextinguível/ fogo
domado das paixões”. O cinema permanece em cena e as montanhas habitada
pela poeta Bishop também, é uma voz que não se acaba e que traz uma con-
tradição: ao mesmo tempo que é fogo - relacionado às paixões - porém é ou
está domado. É um som entre o que se vê. O lugar de emissão não está fixo.
Essa voz não responde ao vazio mas expõe o vazio, vira-o para fora, de acordo
com Jean-Luc Nancy10.
A voz seria menos a rejeição do que o jacto de um vazio infinito aberto
no coração do ser singular, desse ser abandonado. O que ele assim exporia,
numa espécie de maneira de oferecer o vazio, não seria uma falta. Mas seria
esta falta de plenitude ou de presença que não é uma falta, porque é a consti-
tuição mais própria da existência, o que a torna aberta, antecipadamente e para
sempre aberta, fora de si mesma. Na voz haveria isto: que este existente não é
um sujeito, mas uma existência aberta e atravessada por este jacto [jet], uma
existência ela-mesma lançada [jettée] no mundo. A minha voz é antes de mais
o que me lança no mundo.

9 STEINBERG. Deborah. op.cit.


10 NANCY, Jean-Luc. “Vox clamans in deserto”. In: Gratuita - caderno de leituras- vol. 2.Belo Horizonte:
Chão da feira, 2015. Op. cit. p.15.

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Se voz é a relação com o outro, aqui é com o outro que não se vê, é a voz
que clama no deserto? “A voz grita no deserto porque ela própria é em primeiro
lugar este deserto desfraldado no meio do corpo, aquém das palavras”.11 “Não
se ouve...mas faz-se ouvir”.12
Derrida, em “Il faut bien manger”, pensa os textos como a construção
estrutural de uma multiplicidade de posições em uma mesma voz que poderia
ser ocupada por devires.
A segunda voz anunciada é a “...a voz/ do espelho dos meus olhos,/
negando-se a todas as viagens,”. Podemos refletir com Lacan
que gastou muito tempo, em seus dias de juventude, meditando
sobre outro recurso narcisista elementar, o espelho. Este deve pre-
encher a mesma função - conceder o mínimo apoio necessário
para se produzir o autorreconhecimento, a conclusão imaginária
oferecida ao corpo múltiplo, a blindagem imaginária que acom-
panha, a constituição de um ‘sujeito’, assim como a matriz de um
relacionamento entre iguais, a fonte ambígua de amor e agressão
- assim como a conhecida panóplia da notória fase do espelho”. 13

Então, “a voz do espelho dos meus olhos” é o Narciso cuja história envolve
tanto o olhar quanto a voz, de acordo com Dolar. Narciso é uma abertura para
o estranhamento e voz é sempre relação, tanto o oral, como o falado e o escrito.
O poema é visto como momento de uma escrita, assim a relação com o mundo
é transformada pelo poema. Como o espelho traz uma definição mesma que
ambígua, limita o espaço, o corpo, “negando-se todas as viagens” e aqui o
todas compartilha a casa toda; os papéis todos, de todas três, assim como o
negar está representado também em: “nunca mais; “mas seu corpo não” e as
viagens está implícito no título: travelling e em: “a câmera em rasante viajava”.
A terceira voz é “a voz rascante da velocidade”. É um decassílabo assim
como o verso: “A câmera em rasante viajava”. Podemos associar o rascante da
voz com o rasante da câmera pela sonoridade. Velocidade relacionaremos com
o cinema e com o modernismo e a relação com o estudo da poética porque

11 op.cit. p.15
12 op. cit. p.18
13 DOLAR. op.cit. p.174.

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está justamente num verso decassílabo, marca de uma tradição da língua portu-
guesa, presente em Camões, então podemos relacionar a voz da velocidade, do
tempo presente, do modernismo, por um lado e, por outro, à tradição poética
anterior.
Com essas três vozes, que ainda não são linguagem, abre-se a via, e pro-
cura-se um fio, a escrita, a voz da voz desta existência, emitida por sua boca e
pela sua garganta. É a iminência da linguagem.
Assim, os versos vão diminuindo, e enquanto os verbos: recolocar, guar-
dar e confirmar, agora há o desalinho: “enquanto desalinho/ sem luxo/ sede/
agulhadas/”. Quatro versos curtos, sem pontuação, e termina com dois versos
longos: “os pareceres que ouvi num dia interminável:/ sem parecer mais com a
luz ofuscante desse mesmo dia interminável”. Enquanto nos primeiros versos há
a tentativa de organizar, no final do poema há o desalinho e a multiplicidade
de vozes nos pareceres escutados e o momento não é mais tarde da noite, mas
“num dia interminável” que se torna “desse mesmo dia interminável”. O signifi-
cado da palavra parecer é expandido no último verso e ganha uma iluminação
mesmo que negativa. A luz ofuscante desnorteia porque define demais, brilha
intensamente, leva à vertigem. O jogo com o olhar é entrelaçado ao som, às
vozes todas repercutindo no poema.
A antítese: “luz ofuscante” é o outro lado do poema - por um lado o ouvir,
as vozes - ouvido mãos - no falar de Valéry - e outro o ver - espelho, cinema -
imagens e luz ofuscante, invés de iluminar, ofusca. Precisamos de sombras para
ver, buracos para ouvir... e até para dormir. Para continuar a falar em cinema, o
filme Solaris, de Andrei Tarkóvski traz uma abordagem sobre o lugar espectral
num mundo iluminado, sem dia ou noite, ali a insônia é uma condição crônica,
assim como o dia interminável.
E assim a travessia chega ao fim, ou a “esse mesmo dia interminável”.

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RUIVA: QUESTÕES DE CORPO, GÊNERO E


PERFORMANCE NA HETERONORMATIVIDADE

Fellip Agner Trindade Andrade


Graduado em Letras - UFSJ
Mestrando em Teoria Literária e Crítica da Cultura - UFSJ
fellipagner@hotmail.com

GT 24 - Literatura e homoculturas: corpo, subjetividades, sexualidades

Resumo

Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma discussão teórica acerca das
questões de corpo, gênero e performance no discurso heteronormativo através
da análise do conto Ruiva (1978), de Julio César Monteiro Martins, evidenciando
as experiências de opressão vividas pela personagem Gina, uma travesti que
busca a oportunidade de viver sua sexualidade na cidade de São Paulo. A dis-
cussão teórica pretende evidenciar através da narração ficcional os mecanismos
de opressão estabelecidos por um discurso binário baseado na heteronormati-
vidade e no controle dos corpos e suas sexualidades, tomando, em sua maioria,
as contribuições teóricas de Judith Butler apresentadas no capítulo Atos cor-
porais subversivos, presente em seu livro Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade (2015).
Palavras-chave: travestilidade; heteronormatividade; corpo; gênero; literatura.

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Introdução

Ao contar-nos a história de um relojoeiro de Montes Claros que tem o


desejo de se tornar uma travesti e parte para sua nova vida em São Paulo, o
conto de Julio César Monteiro Martins (1955-2014), Ruiva, presente no livro
Entre nós (2007), de organização de Luiz Ruffato, apresenta-nos também as
dificuldades e as desventuras da personagem Gina. Já desde o início do conto e
de sua partida para a cidade grande, Gina se depara com diversos embaraços,
desde sua relação com o corpo até sua relação com as pessoas ao seu redor.
Desde os primeiros parágrafos, os quais já nos apresentam a relação da
personagem entre corpo, gênero e performance, o conto trata dessa relação
conturbada entre o corpo do relojoeiro e Gina: a ruiva. Tendo sofrido discri-
minação logo nos primeiros momentos em São Paulo, Gina, mesmo que já
vestindo roupas curtas e femininas,1 sem barba, de pernas depiladas e usando
uma peruca vermelha, continua sendo alvo de preconceitos e estereótipos, o
que não é entendido pela personagem, posto que Gina não se considera uma
travesti, mas, sim, uma mulher. A partir de então, os conflitos entre a persona-
gem e o corpo que ela apresenta para os outros, bem como sua performance
como travesti, tornam-se o ponto principal do conto.

Corpo, gênero e performance: a opressão heteronormativa

Judith Butler, em seu capítulo intitulado Atos corporais subversivos, do


livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2015), trata
justamente de pontos presentes no conto Ruiva. Como o próprio título do capí-
tulo nos adianta, Butler aborda temas acerca dos atos corporais que vão contra a
heteronormatividade, como no caso de Gina. Alvo de olhares, tanto de repulsa
quanto de desejo, a travesti ruiva é por si só um ato subversivo, ainda que ela
mesma não tenha essa noção.
Uma vez que, segundo Butler, “a marca do gênero parece ‘qualificar’ os
grupos como corpos humanos” (BUTLER, 2015, p. 193), Gina é vista como
algo incomum, até mesmo fora desse grupo, como nos faz pensar a escritora

1 A utilização dos termos “feminino”, “mulher” e “homem” é em relação ao discurso heteronormati-


vo.

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norte-americana: “As imagens corporais que não se encaixam em nenhum


desses gêneros ficam fora do humano, constituem a rigor o domínio do desu-
manizado e do abjeto” (BUTLER, 2015, p. 193-194).
Já em sua primeira tentativa de nova vida em São Paulo, Gina se depara
não apenas com os olhares desconfiados e discriminatórios das pessoas ao seu
redor, mas com toda uma opressão discursiva e social, como podemos perce-
ber em dois trechos do conto. O primeiro deles é quando Gina ainda buscava
um lugar para ficar em São Paulo e é recebida de forma preconceituosa e agres-
siva em sua primeira tentativa: “Não adianta insistir que bicha não entra nem
fantasiada de pavão” (MARTINS; In: RUFFATO, 2007, p. 243).
Já em um outro momento do conto, em que a opressão social atinge
níveis institucionais, quando se dirige à entrada do hotel Hilton, Gina é man-
dada para longe do local por um policial, para onde seria seu lugar: “Ah, e lugar
de travesti é lá na Rego Freitas. Aqui é outro nível, entendeu?” (MARTINS; In:
RUFATTO, 2007, p. 246).
Os dois trechos do conto evidenciam, pois, não apenas um estranha-
mento por parte daqueles que fazem parte do sistema heteronormativo, mas,
sim, a prática e o poder de um discurso opressor e de um controle dos corpos
que atingem níveis sociais e políticos: seja na recusa em alugar um quarto para
uma bicha ou na opressão institucional protagonizada pelo policial, a qual esta-
belece lugares específicos para determinados sujeitos que sejam de outro nível.
A ruiva, por sua vez, confiante de que sua nova identidade seria o bas-
tante para a sua nova vida como Gina (pois era isso que ela era: Gina), não
contava com a discriminação da performance de seu corpo, uma vez que se
considerava uma mulher, e não apenas um homem vestido de mulher: “o sexo
não causa o gênero; e o gênero não pode ser entendido como expressão ou
reflexo do sexo” (BUTLER, 2015, p. 194). Mas Gina não contava com o discurso
opressivo de seu sexo e seu corpo, como podemos perceber no episódio do
japonês de meia-idade no Fusquinha.
Gina, certa – e feliz – de que aquele homem a via como uma mulher,
entra no carro e nega cobrar para sair com ele, e ainda se sente oprimida e
obrigada a esclarecer sua condição, a expor seu corpo em detrimento de seu
interior e de sua performance, quando revela ao japonês que é, na verdade,
uma travesti: “O discurso torna-se opressivo quando exige que, para falar, o
sujeito falante participe dos próprios termos dessa opressão – isto é, aceite sem
questionar a impossibilidade ou ininteligibilidade do sujeito falante” (BUTLER,

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2015, p. 201). Gina, certa de que era uma mulher, sente-se obrigada a explicar
sua performance, dar conta daquele corpo e daquele sexo que estão imbuídos
de um discurso opressor, e no qual a ruiva vê-se obrigada a participar, no caso,
revelando tratar-se de uma travesti.
Na verdade, o gênero seria uma espécie de ação cultural, corpo-
ral que exige um novo vocabulário, o qual institui e faz com que
proliferem particípios de vários tipos, categorias ressignificáveis e
expansíveis que resistem tanto ao binário como às restrições gra-
maticais substantivadoras que pesam sobre o gênero. (BUTLER,
2015, p. 195)

Na falta desse novo vocabulário apontado por Butler (o qual, hoje, pode
ser percebido através do uso ou omissão de artigos, por exemplo; ou ainda
no uso do “x” para a quebra do binarismo heteronormativo), Gina acaba por
participar do jogo de palavras que, na verdade, não são mais do que marcado-
res culturais que delimitam os corpos, os sexos, os gêneros, as performances
(homem, mulher, gay, travesti, lésbica...), e acabam por oprimir aqueles que,
de alguma forma, não se encaixam nas delimitações linguísticas e culturais que
perpetuam a opressão e o controle dos corpos e suas sexualidades.
O Fusca parou numa rua escura, que ele disse chamar-se Estrada
da Boiada. Deram longos beijos na boca, no pescoço, nos ombros,
e a mão do japonês ia se esticado pela coxa. Gina começou a ficar
apavorada, imaginando a reação do homem quando descobrisse
que ela era um travesti. Antes que ele fizesse a descoberta pelo
tato, ela resolveu contar. – Sabe, meu bem, pelo amor de Deus não
fica zangado comigo pelo que eu vou dizer procê, mas antes que
sua mão esbarre nos meus trens, eu quero que você saiba que eu
sou um travesti. (MARTINS; In: RUFFATO, 2007, p. 247)2

O japonês, por sua vez, ao deixar claro que já sabia de sua travestilidade,
deixa Gina quase que ofendida com a notícia, uma vez que a personagem
se via como uma mulher, e achava que os outros também a viriam como tal.
Mas, como bem ressalta Butler: “Quando a desorganização e desagregação

2 O conto foi incialmente publicado em 1978, o que justifica o uso inapropriado do artigo indefinido
“um”.

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do campo dos corpos rompe a ficção reguladora da coerência heterossexual,


parece que o modelo expressivo perde sua força descritiva” (BUTLER, 2015, p.
234). Não bastava à Gina ser uma mulher, pois sua performance feminina não
condizia com seu corpo.
A coerência heterossexual não comporta corpos que rompam com a regu-
lação binária homem/mulher. E é justamente essa discriminação linguística do
sexo, baseada no binarismo, que perpetua a opressão cultural, social e política
da heteronormatividade, como nos faz pensar Monique Wittig em seus ensaios
(El pensamiento heterossexual, 2006), e que faz com que, no conto, a persona-
gem seja obrigada a participar desse discurso opressor, revelando-se como um
sujeito fora do discurso binário heteronormativo, uma vez que, como também
defende Wittig, “o ‘sexo’ é discursivamente produzido por um sistema de sig-
nificações opressivo para as mulheres, os gays e as lésbicas” (BUTLER, 2015, p.
197).
Essa é, pois, uma das primeiras e maiores decepções vivenciadas por
Gina, graças à inadequação de seu corpo e seu sexo à sua performance e ao
discurso heterossexual vigente, o que se torna evidente durante todo o conto,
inclusive quando é aparentemente acolhida na comunidade travesti por Denise.
Ainda assim, Gina é alvo de chacota por sua performance não condizente com
seu corpo. E em outra passagem do conto (a qual evidencia bem a diferença
entre corpo, gênero e performance), em uma conversa com Gina, Denise fala a
respeito de ser mandada para a prisão, e de como deve ser seu comportamento
lá: “Agora, na cadeia eu falo grosso, mijo em pé, que é pra não dar impressão de
fragilzinha, senão eles se aproveitam” (MARTINS; In: RUFFATO, 2007, p. 249).
É justamente dessa distinção entre corpo e performance, sexo e gênero,
que trata Bluter ao afirmar que: “Se a anatomia do performista já é distinta
de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então
a performance surge uma dissonância não só entre sexo e performance, mas
entre sexo e gênero, e entre gênero e performance” (BLUTER, 2015, p. 237). A
necessidade de Denise modificar sua performance na cadeia vai muito além de
seu corpo; é preciso convencer os outros de que se trata de um homem, e não
uma travesti que possa ser reduzida a nada mais que “um buraco escatológico”,
como diria Herbert Daniel (DANIEL; MÍCOLIS, 1983, p. 23).
A última das decepções de Gina apresentadas no conto é quando essa
revela a Denise não ter cobrado para sair com o japonês, pois a ruiva não sabia
que as travestis cobravam por sexo, e, o mais importante, uma vez que Gina

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não se considerava uma travesti, mas uma mulher. Indignada com isso, Denise
é a responsável pelas piores ofensas sofridas por Gina no conto: “[...] sua vaga-
bunda de terceira! Sua bicha escrota caipira!” (MARTINS; In: RUFFATO, 2007,
p. 254).
[...] seu bicho do mato horroroso. É por causa de gente como você,
que não tem compostura e sai dando de graça pro primeiro que
aparece, que a gente não consegue se estabelecer. Sai do meu
caminho, vai. Com você eu não quero mais conversa. – Mas,
Denise... – Você é uma escrota, tá bom? Vai pro esgoto que lá é o
seu lugar. (MARTINS; In: RUFFATO, 2007, p. 254)

É nesse momento que, aparentemente, a ruiva se dá conta de sua condi-


ção de travesti, e, mais que isso, de sua condição de deslocamento, já que não
é mulher (o japonês já havia lhe tirado essa ideia), e, ao mesmo tempo, não é
mais uma travesti (segundo as duras palavras e ofensas de Denise): “Ai, como é
difícil viver nessa vida invertida!”, dizia Gina no caminho de volta ao quartinho
alugado atrás da Estação da Luz (MARTINS; In: RUFFATO, 2007, p. 254).
Em seu ensaio E eu não sou um travesti também?,3 Denilson Lopes, em
um trecho quase que confessional, segundo o próprio, afirma que “é o travesti
em mim e seu jogo de máscaras que me constitui” (LOPES, 2002, p. 49). Ainda
segundo o autor:
As possibilidades do jogo que vivificam a subjetividade pelo uso
de máscaras reside na compreensão da natureza imagética da
sociedade atual. A máscara não é disfarce de um vazio existencial
mas uma tática de coexistir numa sociedade onde o primado é o
da velocidade. Há um confronto permanente [...] entre memória
e olhar, narcisismo e tribalismo. Seu centramento na vida pessoal,
íntima, se configura como uma estratégia complexa e difícil de ser
mantida frente às mudanças do mundo exterior. (LOPES, 2002, p.
49)

Segundo Lopes, esse uso de mascaras é o que possibilita ao sujeito, no


caso especifico, a travesti, a transitar entre o mundo interior e o mundo exterior,
o que não ocorre com a personagem Gina, ou, pelo menos, não da melhor

3 Publicado no ano de 2002, o que justifica o uso inapropriado do artigo indefinido “um”.

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forma possível, já que não bastava a ela a simples transição, mas, também, o
reconhecimento. Como afirma Butler, e pelo que podemos perceber no triste
final do conto: “‘Interno’ e ‘externo’ só fazem sentido em referência a uma
fronteira mediadora que luta pela estabilidade” (BUTLER, 2015, p. 231); esta-
bilidade, essa, que Gina não consegue alcançar: “Só Deus sabe como estou
sofrendo com tanta desumanidade” (MARTINS; In: RUFFATO, 2007, p. 255).

Considerações finais

Através da narrativa ficcional e sua análise, tendo por base, em grande


parte, as contribuições teóricas de Judith Butler, torna-se evidente o poder opres-
sor de um discurso heteronormativo que se faz presente tanto nas interações
sociais binárias de gênero como também nas transgêneras, além de perpetuar
um discurso opressor através da própria discriminação linguística, uma vez que:
“Como discursivo e perceptivo, o ‘sexo’ denota um regime epistemológico his-
toricamente contingente, uma linguagem que forma a percepção modelando à
força as inter-relações pelas quais os corpos físicos são percebidos” (BUTLER,
2015, p. 199).
Não se trata, pois, da simples evidenciação de tais discursos opressores,
os quais são tão internalizados socialmente que se estabelecem até mesmo nas
comunidades nas quais esses discursos são colocados à prova e rechaçados. É
por isso que a busca por um discurso inclusivo e que não se estabeleça apenas
em relação ao binarismo é de total importância para o enfraquecimento da
heteronormatividade, visto que, como bem ressalta Butler, “O poder da lingua-
gem de atuar sobre os corpos é tanto causa da opressão sexual como caminho
para ir além dela” (BUTLER, 2015, p. 202).

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização, 2015.

DANIEL, Herbert; MÍCOLIS, Leila. Jacarés e lobisomens: dois ensaios sobre a homos-
sexualidade. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

LOPES, Denilson. E eu não sou um travesti também? Disponível em: http://www.aca-


demia.edu/4933976/E_eu_não_sou_um_travesti_também. Acesso em: 27 de junho de
2016.

MARTINS, Julio César Monteiro. A ruiva. In: RUFFATO, Luis (org.). Entre nós. Rio de
Janeiro: Língua Geral, 2007.

WITTIG, Monique. El pensamiento heterossexual. Barcelona: Egales, 2005.

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EU SOU O QUE VOCÊ PODERIA CHAMAR DE


UMA MULHER DE PÊNIS

Ailton Dias de Melo


Mestrando em Educação
Universidade Federal de Lavras
no.tl.ia@hotmail.com

GT 04 -
Travestilidades, Transexualidades, Lesbianidades e Homosexualidades:
Transgressões e Resistências.

Resumo

Este texto apresenta a transgeneridade como uma transgressão da perspectiva


binária e heteronormativa da sexualidade. Uma subversão do sistema linear
de relações estabelecido entre sexo-corpo-gênero vigente na sociedade oci-
dental contemporânea. Este processo se constituiu através de problematizações
deflagradas a partir de enunciados e discursos veiculados pelo documentá-
rio brasileiro de gravata e unha vermelha da psicanalista, roteirista e diretora
Miriam Chnaiderman, que explora em diversas entrevistas o universo transgê-
nero. Com isso se vislumbrou a conquista de novos e mais amplos “olhares”
sobre as pessoas consideradas de gênero-divergentes, e modos outros de ser
estar no mundo para além dos limites estabelecidos pelos “regimes de verdade”.
Palavras-chave: gênero; transgeneridade; transgressão; sexualidade; verdade.

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É isso mesmo que você está pensando


É preciso começar dizendo que por mais absurda que pareça, uma mulher
pode ter um pênis e é isto que propomos discutir como um movimento de
resistência ao discurso binário e heteronormativo de gênero vigente em nossa
sociedade. Este texto é parte das reflexões que venho desenvolvendo em meu
projeto de pesquisa no programa de mestrado profissional em educação da
Universidade Federal de Lavras. A fonte de problematizações do projeto e deste
texto é, o documentário brasileiro de Gravata e Unha Vermelha dirigido pela
Psicanalista Miriam Chnaiderman, e que explora em diversas entrevistas o uni-
verso transgênero compreendendo transexuais, dragqueens, travestis, homens e
mulheres trans, cross-dressers, enfim pessoas transgressoras. Algumas falas do
filme nós tomamos e remontamos aqui em um mosaico deflagrador de proble-
matizações que são desdobradas numa perspectiva pós-crítica e fundamentadas
na teoria foucaultiana.

Eu sou mulher, made in China

Bianca Soares, é uma professora de inglês que em sua cena de apresenta-


ção no documentário, comenta sobre o impasse que sua presença transgênera
causa em seus alunos e alunas que discutem se ela é ou não uma “mulher de
verdade”. Refletindo sobre o fato Bianca afirma que nunca será uma mulher,
mas reafirma que também que nunca vai ser um homem. Bianca indica a solu-
ção que dá a seus alunos e suas alunas afirmando:
“Eu sou uma mulher, made in China” (00:04:29)1

O que isso significa para a Bianca é difícil compreender. Porém entre


nós, em nossa linguagem cotidiana e informal, e até mesmo preconceituosa, o
made in China traduz uma ideia de falsificação, de não original. Seria possível
ser uma “mulher falsa”? O falso é ou não é? Que lugar o falso ocupa diante do
verdadeiro do original? É o órgão genital que determina isso? Uma cirurgia de
redesignação faria de uma “mulher falsa”, uma “mulher verdadeira”?

1 Todas as informações verbais (transcrições literais, ou referências das falas dos participantes do do-
cumentário de gravata e unha vermelha) possuem indicativo do tempo em que aparecem no DVD.
O formato adotado é o de indicação de “hora:minuto:segundo”. Embora esta prática não seja usual
nós a adotamos como meio de facilitar possíveis busca no filme através do temporizador de tela.

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A cartunista Laerte em uma de suas participações afirma:


“A cirurgia de redesignação ela é (...) vista com uma grande dose de
mistificação; muitas pessoas se conseguissem compreender como é
desnecessária essa tensão toda em torno dos cânones de gênero, tal-
vez não ficassem tão aflitos com sua genitália. Eu estou me sentido
mulher então eu preciso de uma buceta. Isso às vezes vem desse
jeito. Estou me sentindo feminina e isso é tão absurdamente errado
que eu preciso redesenhar todo meu corpo. Isso também existe. Ao
mesmo tempo que existe um sentimento profundo de inadequação
em relação ao corpo de homens e mulheres”. (00:02:44)

Laerte (00:04:05) reconhece no entanto que a cirurgia é também uma


conquista tecnológica e um avanço das políticas de saúde pública. Mas se vê
embaraçada na trama do “ser de verdade” e afirma que essa complexidade gera
um tipo de preocupação difícil de explicar. Aponta para uma angústia real de
saber que não é uma mulher mesmo, não é uma mulher biológica.
Percebemos que volta e meia estamos diante da força do fator biológico
como determinante do gênero, confundindo os desejos. A cantora Candy Mel,
mais uma das participantes, ao dizer de si, explica como se sente dizendo:
“Minha cabeça é uma cabeça de mulher. Eu menstruo, psicologica-
mente, mas eu menstruo”. (00:01:17)

Na fala de Candy Mel, percebemos a forma de um discurso da femi-


nilidade atrelado a um fator biológico deferindo a legitimidade do gênero, a
realidade de uma mulher. Em outro momento do documentário Mel afirma:
“Para mim, a cirurgia, ela tem que acontecer, alguma hora ela vai
acontecer. (00:58:22)”

Mel (00:58:28) explica que por não ter seu corpo redesignado, ela tem
muita dificuldade de “se relacionar com outro homem”. Salienta que enquanto
não tiver seu “corpo completo”, não vai conseguir se relacionar de corpo e
alma. É interessante perceber que ao dizer de sua relação, Candy Mel, mesmo
tendo afirmado que tem uma “cabeça de mulher”, fala como homem dizendo
de uma dificuldade de “se relacionar com outro homem”. O conflito evidente
na argumentação da cantora parece recair sobre a problemática do órgão geni-
tal. Sua completude atrelada à posse de uma vagina, isso lhe dará um corpo

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completo. O corpo de mulher tem um crivo de verdade que ela deseja. Taís
Souza, também reafirma a importância da anatomia ao dizer:
“Para mim (a cirurgia) não é algo da cabeça é algo anatômico, é
como se eu tivesse seis dedos, cortou um dedo para mim tá resol-
vido”. (00:58:11)

A Psicanalista e escritora Letícia Lanz, ao se apresentar no documentário e


discutir sobre as questões do Ser numa perspectiva transgênera explica não ter
buscado mudanças nem do nome e nem dos órgãos genitais em sua transição
porque se dá bem com eles, assim como com seus seios. Para Lanz (59:00:25)
a cirurgia tem papel de enquadramento e isso acontece no modelo de classifi-
cação que é baseado no que a pessoa tem entre as pernas e isso é um absurdo
segundo ela. Ao se definir afirma:
“Eu sou o que você poderia chamar de uma mulher de pênis”.
(00:56:30)

João Nery, que também participa do documentário, embora tenha travado


a primeira luta no Brasil pelos direitos de retirar os seios não quis fazer a cirur-
gia para implante de uma prótese de pênis, Nery lembra que ainda hoje este
tipo de cirurgia não tem resultados satisfatórios mas além disso é categórico ao
afirmar que,
“não é um pênis que faz um homem, assim como não é uma
vagina que faz uma mulher. Não é o corpo que define um gênero”.
(00:55:37)

João Nery (00:57:24) ainda amplia significativamente a questão fazendo


alusão a gravidez dos homens trans. Explica que alguns deixam de tomar tes-
tosterona por um tempo e isso faz com que voltem a ovular e a ficarem férteis.
Concebem, gestam, dão a luz... e em alguns casos amamentam e “são pais e não
mães”. Para Nery isso implica considerar que nem mesmo a gravidez é essen-
cialmente feminina, nem necessariamente materna, muito menos exclusivo da
mulher. Isso para Nery é transcender o gênero, é denunciar que a questão do
feminino e do masculino é uma invenção social, e anunciar que a transexuali-
dade é meramente uma forma de se viver
Segundo Dudu Bertholini, (00:59:11),que além de participar do documen-
tário com seus depoimentos é o curador do projeto, afirma que esse dilema do

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modo verdadeiro ou falso de ser homem ou mulher, está fundado na inven-


ção de estereótipos, que alimentam uma ilusão. Laerte (01:12:52) mesmo que
embaraçada, em sua análise sobre o ser ou não uma mulher de verdade diz
conseguir minimizar essa angústia ao se ver como a mulher que é. E abre assim
uma perspectiva muito interessante para sairmos da restrição dos estereótipos
do conservador binarismo de gênero. Ser a mulher que é... significa ser... e isso
não poder ser negado nem tirado de alguém em detrimento de um conceito de
verdade ou mentira. Em outro momento a cartunista afirma:
“Eu não gosto muito de dizer, que sou homossexual, heterossexual
ou bissexual. Eu sou uma pessoa que vive minha sexualidade de
forma única. Eu tenho desejo por pessoas de vários gêneros, várias
condições”. (00:25:26)

Ao longo da história as construções filosóficas de matriz ocidental prima-


ram por uma busca incansável pela “verdade”. Esse objeto obstinado de desejo,
por sua vez, sempre esbarrou, coincidiu ou mesmo se fundiu com a ideia de
“ser”. A “verdade do ser” permeou muitos discursos inclusive e de modo muito
especial o do sexo.
O discurso sobre o sexo, segundo Foucault (2014), a partir do século XVIII,
passou a estabelecer uma verdade sobre a sexualidade capaz de se sobrepor às
vivências e os desejos dos sujeitos. Uma contraposição entre o masculino e o
feminino passou a designar com rigidez as possibilidades de “ser” sobre um de
dois polos, de características fisiológicas e sociais previamente definidas e bem
delimitadas. Padrões foram normatizados pelas Scientia Sexualis (FOUCAULT,
2014, p.59) oficializando e naturalizando um discurso chancelado pelo poder
da “ciência” e seu modo de categorizar as pessoas. Homens possuem pênis e
mulheres vaginas. Dependendo do que se tem entre as pernas uma pessoa é
uma coisa ou outra, duas possibilidades que se excluem.
Na obra O corpo educado – pedagogias da sexualidade Guacira Louro
aponta como o poder estabelecido sobre o sexo dominou nossa cultura e
deu para relação binária de norma reprodutiva e heterossexual um status de
naturalidade.
[...] muitos consideram que a sexualidade é algo que todos nós,
mulheres e homens, possuímos “naturalmente”. Aceitando essa
idéia, fica sem sentido argumentar a respeito de sua dimensão social
e política ou a respeito de seu caráter construído. A sexualidade

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seria algo “dado” pela natureza, inerente ao ser humano. Tal con-
cepção usualmente se ancora no corpo e na suposição de que
todos vivemos nossos corpos, universalmente, da mesma forma.
No entanto, podemos entender que a sexualidade envolve ritu-
ais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções...
Processos profundamente culturais e plurais. Nessa perspectiva,
nada há de exclusivamente “natural” nesse terreno, a começar pela
própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza (LOURO,
2000, p.6).

As sociedades contemporâneas, em sua maioria, continuam organizadas


sob padrões que são capazes de prever ainda apenas dois polos estanques,
determinados de modo contundente. A transgeneridade desafia isso apontando
para a realidade que não se restringe à gravata ou às unhas vermelhas. É possí-
vel um e outro... Nenhum e nem outro.
Mas um modo rígido polarização prevalece, é lógica binária da constitui-
ção dos gêneros que dita as regra das vivências afetivas e sexuais. Ser masculino
é não ser feminino e vice-versa e isso parece ser o suficiente, mas não é. Nossa
história ocidental construiu um discurso sobre o sexo atrelado às relações de
poder. A “verdade” da sexualidade, entre outras, reside na determinação desse
discurso, que é borrado pela resistência subversiva da transgeneridade.
Segundo Lanz (2014) é apenas por uma definição cultural que temos a
existência de duas categorias de gênero. Elas estão ligadas pela cultura natu-
ralmente ao sexo genital, em que se compreendem machos e fêmeas. Temos a
partir daí uma apropriação do dispositivo binário de gênero para classificar os
indivíduos nascidos machos e fêmeas, naturalmente como respectivamente em
“homens” e “mulheres”. Isso resulta numa concepção dismórfica dos corpos
que a transgeneridade transgride, enquanto o poder disciplinar da sociedade, o
biopoder, insiste na manutenção de um sistema linear de relações entre sexo-
corpo-gênero. A partir da medicalização das práticas sexuais divergentes, as
perversões, e da invenção do sujeito homossexual, foi intensificado um empre-
endimento biopolítico de controle sobre o corpo e a sexualidade. Há um jogo
de poder e com isso resistências. No entanto a visão que vigora exclui e ou
pelo menos nega, considerando invisível as múltiplas alternativas de vivências
não lineares de relações entre sexo, gênero e desejo como apregoa a filósofa
americana pós-estruturalista Judith Butler (2014). Mas...

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Resistir é “ser o que se é para além do que se espera” e isso não


tem fim

Ney Matogrosso, em sua participação no documentário aponta para sua


existência como um fazer de resistências não só da ditadura militar em curso
no início de sua carreira, como às expectativas das normas vigentes. Ao cantar
Ney Matogrosso era toda contestação e ao criar a identidade que subiria aos
palcos dizia:
“Eu vou ser uma criatura que jamais viram, eu não queria ser mulher,
mas não estava restrito ao espaço do homem porque eu criava uma
figura tão completamente estranha que podia ser um inseto, podia
ser um pássaro, podia ser um não sei”. (11:13:15)

Rogéria (01:14:35) também relata essa experiência de ser o que ser é para
além do que se espera. Sendo no início de sua carreira de cabeleireiro, maquia-
dor na extinta TV Rio, cercado de grandes atrizes ouvia constantemente dizerem
que ela deveria ir para o palco. Não queria ir como homem e por isso achava
que seria impossível esse processo. Até que descobriu que não tinha que ser
como homem, podia ser como mulher, ou como qualquer coisa porque a arte
independe de sexo, de gênero. Segundo Rogéria estar no palco, no cinema ou
na TV é viver outra realidade, outra vida, ser outra além de você mesma. E foi
ser Rogéria a vedete que manteve o nome de Astolfo, por que gosta de parecer
mulher, mas adora ser homem.
Letícia (00:12:25) tendo recebido atribuição masculina em seu nascimento
e o nome de Geraldo, se batizou “na pia da vida” com o nome de Letícia Lanz.
“Eles queriam que eu representasse um papel que não dava certo
comigo”. (00:16:23)

Ao comentar a ruptura com a inconformidade explica:


“Hoje eu não finjo nada, mas a vida inteira eu fingi. Eu tinha sem-
pre aquela preocupação... Será que eu to passando por homem?
Hoje eu não tenho preocupação de será que eu to passando como
mulher... Eu sei que eu to”. (01:15:10)

Letícia comenta a partir da afirmação acima, que está hoje, depois de


mais de cinqüenta anos em conflito, fazendo o que acredita que deve ser feito.

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O posicionamento de Letícia rompe com o estabelecido ao fazer dela uma pes-


soa única, tal como devem ser as pessoas. Dudu Bertholini (01:15:43) também
se coloca assim no mundo afirmando não querer estereótipos nem do mascu-
lino, nem do feminino, pois busca uma maneira única de ser e estar no mundo.
Endossando esse coro João Nery arremata:
“O que eu quero é exatamente ser um pirotécnico como diz
Foucault. Eu sou um cara para romper barreiras. Como diz
Chacrinha, muito mais para confundir que para explicar”. (01:15:26)

Diante de tantas questões relatadas percebemos que muito se precisa dis-


cutir para historicizar não apenas a forma como todo o processo se efetivou,
mas, sobretudo como é mantido e que impacto vem exercendo nas novas gera-
ções, uma vez que vem se sustentando pelos dispositivos de controle. Mulher
de verdade? É possível “ser uma criatura que jamais viram”, inclusive o que você
pode chamar de “uma mulher de pênis”. E quem disse que isso não é ser de
verdade?

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Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 7. ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

De GRAVATA E UNHA VERMELHA. Miriam Chnaidermam: Brasil. Imovision, 2014.1


DVD (86 min).

FOUCAULT, M. História da sexualidade1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Paz &


Terra, 2014.

LANZ, L. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformi-


dade com as normas de gênero. 2014. 342 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia)
- Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

LOURO, G. L. Pedagogias da sexualidade. In:______. O corpo educado: pedagogias


da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. cap. 1, p. 7-34.

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 402 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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EDUCAÇÃO, POLÍTICAS,
DIVERSIDADE SEXUAL E DE
GÊNERO

ISBN 978-85-61702-44-1

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SUMÁRIO

A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES NA CULTURA ESCOLAR DOS


CURSOS DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA DE TERESINA – PI, BRASIL. . . . . . . 410
Jânio Jorge Vieira de Abreu

PROFESSORES HOMENS NA ROÇA DE JEQUIÉ/BA:


NOTAS DE UMA PESQUISA EM ANDAMENTO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
Antonio Jeferson Barreto Xavier | Fernando Seffner

QUANDO DESENHOS REPRESENTAM DISCURSOS: GÊNERO, SEXUALIDADES E


PROFISSÕES - O QUE DIZEM OS ALUNOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL? . . . . . . . . . . 427
Carla Silva Machado | Amanda Cristina Silva Machado

RELAÇÕES DE GÊNERO E ESCOLA – PROBLEMATIZAÇÕES POSSÍVEIS . . . . . . . . . . . 435


Nathalye Nallon Machado

A PRODUÇÃO DE RESISTÊNCIAS POR ALUNOS GAYS


NO CONTEXTO DA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 443
Jaime Peixoto

DISCUTINDO GÊNERO E BRINCADEIRAS NA INFÂNCIA:


A INFLUÊNCIA DOS BRINQUEDOS NA VIDA DAS CRIANÇAS.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452
Alexandra Sudário Galvão Queiroz | Maicon Salvino de Almeida

“QUANDO FOMOS ENTREGAR O SABONETE DE CARRINHO, ELE NÃO QUIS.


COMEÇOU A CHORAR, CHORAR E APORRINHAR PORQUE QUERIA O
SABONETE DE CORAÇÃO”: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE EM
UMA DISCIPLINA DE MESTRADO ACADÊMICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 462
Beatriz Rodrigues Lino dos Santos | Marcos Lopes de Souza

“VIREI HOMEM, PROFESSORA”: AS NORMAS SEXUAIS


E DE GÊNERO ‘EM CENA’ NA ESCOLA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 470
Elaine de Jesus Souza

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“SÓ CUIDADO PARA NÃO DESMUNHECAR A MÃO!”: REFLETINDO SOBRE


HETERONORMATIVIDADE, GÊNERO E DOCÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 478
Fernanda Xavier Silva Santana | Cixto de Assis Bandeira Filho |
Marcos Lopes de Souza

CENAS DE HOMOFOBIA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES. . . . . . . . . . . . 487


Helma de Melo Cardoso

“ACHEI PESADA A CENA DA MASTURBAÇÃO. [...] ATÉ A CENA DO PRÓPRIO


ESTUPRO EU NÃO ACHEI TÃO PESADA!”: ANÁLISE DOS DISCURSOS DE
PROFESSORAS SOBRE A MASTURBAÇÃO FEMININA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495
Laís Machado de Souza | Marcos Lopes de Souza

DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO:


A EDUCAÇÃO JURÍDICA EM QUESTÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503
Marcelo Maciel Ramos | Mateus Oliveira Barros | Paula Rocha Gouvêa Brener

REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA:


OS VESTIDOS DE ROMEO E O SAIATO NO RIO DE JANEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 511
Rachel Pulcino | Raquel Pinho | Felipe Bastos

“ELES CONSIDERAM SER GAY PIOR DO QUE SER NEGRO” - NARRATIVAS DE


UM ESTUDANTE HOMOSSEXUAL NEGRO SOBRE O COTIDIANO ESCOLAR . . 519
Rita de Cássia Santos Côrtes | Marcos Lopes de Souza

DIFERENÇA EM DISPUTA: OS EMBATES ACERCA


DO KIT ANTI-HOMOFOBIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 527
Thalles do Amaral de Souza Cruz

PERCEPÇÕES DE PRECONCEITO NA ESCOLA: UMA ANÁLISE SOBRE AS


DISTÂNCIAS SOCIAIS ENTRE ESTUDANTES E PESSOAS HOMOSSEXUAIS . . . . . . . 536
Felipe Bastos | Raquel Pinho | Rachel Pulcino

QUEM TEM MEDO DO GÊNERO? PÂNICO MORAL,


DESEJOS DISSIDENTES E PEDAGOGIA QUEER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 544
Gelberton Vieira Rodrigues | Bruno Pereira

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NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO: UMA ANÁLISE


DA CONTRIBUIÇÃO DOS BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 552
Karine Natalie Barra Godoy | Mariana de Paula Vieira | Ayra Lovisi Oliveira

PERFORMATIVIDADE E INTERSECCIONALIDADE
NAS IDENTIFICAÇÕES DE GÊNERO ENTRE JOVENS
NO CONTEXTO ESCOLAR: ALGUMAS REFLEXÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 561
Leandro Teofilo de Brito | Nayara Cristina Carneiro de Araújo

NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:


COMO A ESCOLA CONTEMPORÂNEA LIDA COM ISSO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 569
Angela Maria Venturini | Emília Naura Santos Bouzada
Alexandra Sudário Galvão Queiroz

MASCULINIDADES PRECÁRIAS: NARRATIVAS DE JOVENS


GAYS SOBRE HOMOFOBIA NO CONTEXTO ESCOLAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 578
Leandro Teofilo de Brito

“AQUI NÃO É LUGAR PARA ISSO NÃO”: REPENSANDO A CONSTRUÇÃO


SOCIAL DA MASCULINIDADE HEGEMÔNICA DIANTE DO CONTEXTO DA
HOMOFOBIA NA ESCOLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 587
Mayara Carvalho de Oliveira | Angela Maria Venturini
José Guilherme de Oliveira Freitas

MASCULINIDADES ATRAVÉS DOS BRINQUEDOS:


CASO DA EEFD/UFRJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 595
Vanessa Silva Pontes | Erik Giuseppe Barbosa Pereira

RELAÇÕES DE GÊNERO NO ENSINO TÉCNICO DE NÍVEL MÉDIO: MULHERES


NA CIÊNCIA E NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . 603
Sabrina Fernandes Pereira Lopes | Raquel Quirino

OS DITOS E NÃO DITOS: POLÍTICA EDUCACIONAL E IDEOLOGIA DE GÊNERO


NO PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 613
Terezinha Richartz

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LAICIDADE E EDUCAÇÃO: UM DEBATE ACERCA DO PAPEL DA EDUCAÇÃO NA


PROMOÇÃO DE DIREITOS À COMUNIDADE LGBT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 622
Anna Carolina Policário Bertolin | Julliard da Silva Avelar

HOMOFOBIA: PERCEPÇÃO DE ESTUDANTES DO IF BAIANO – CAMPUS


ITAPETINGA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 630
Cátia Brito dos Santos Nunes | João Diógenes Ferreira dos Santos

FORMAR PARA A DIVERSIDADE CULTURAL RELIGIOSA: GÊNERO E


ORIENTAÇÃO SEXUAL, LIVROS E CAPÍTULOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 639
Acir Brito Filho | Sérgio Rogério Azevedo Junqueira

A HOMOFOBIA NO ENSINO MÉDIO: O BULLYING HOMOFÓBICO COMO


PRÁTICA EXCLUDENTE EM ESCOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS DE BELÉM. . . . . . . . . . 650
Adriane Giugni da Silva

A CONSTRUÇÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NOS ESPAÇOS DA CRECHE . . . 658


Letícia de Souza Duque | Isabella Furtado Bacchini | Ana Rosa Picanço Moreira

PERSPECTIVAS SOBRE GÊNERO NA FORMAÇÃO DOCENTE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 666


Marilza de Oliveira Santos

HOMOSSEXUALIDADE, SILENCIAMENTOS E
NORMATIZAÇÕES EM ESCOLA RELIGIOSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 674
Cristiano José de Oliveira

A POLÍTICA PÚBLICA BRASILEIRA DO NOME SOCIAL DE TRAVESTIS E


TRANSEXUAIS: DESAFIOS NA EDUCAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 682
Cláudio Eduardo Resende Alves | Magner Miranda de Souza

QUAIS SIGNIFICAÇÕES DA DIFERENÇA SÃO PRODUZIDAS NOS PROJETOS


PEDAGÓGICOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES? O APAGAMENTO DAS
QUESTÕES DOS GÊNEROS E DAS SEXUALIDADES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 690
Denise da Silva Braga | Bárbara Carvalho Ferreira | Talisson Daniel Soares Leite

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GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DOCENTE:


CASOS E ACASOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 698
Patrick dos Santos Silva | Heloísa Raimundo Herneck

NARRATIVAS E MEMÓRIAS DE JOVENS SOBRE SUAS CONSTRUÇÕES


SUBJETIVAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO PROCESSO EDUCATIVO
TOCANTINENSE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 706
Marcos F. G. Maia | Damião Rocha | Jocyléia Santana

IDENTIDADES SEXUAIS E DE GÊNERO E MOVIMENTAÇÃO DISCENTE: (RE)


EXISTÊNCIAS QUEER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 715
Neilton dos Reis

A EXTENSÃO COMO POTENCIALIDADE NA


DES/CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 723
Marilda de Paula Pedrosa | Michele Priscila Gonçalves dos Santos
Cláudio Orlando Gamarano Cabral

MASCULINIDADES EM QUESTÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 732


Paulo Melgaço da Silva Junior

REPRESENTAÇÕES DE FAMÍLIA EM UM LIVRO DIDÁTICO DE INGLÊS:


HOMOPARENTALIDADE E INCLUSÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 740
Francisco Ednardo Barroso Duarte

OS MARCOS DO PLANEJAMENTO NACIONAL DA EDUCAÇÃO SOBRE GÊNERO:


A PREOCUPAÇÃO COM UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS EDUCACIONAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 748
Deisi Noro | Vágner Peruzzo | Márcia Finimundi

RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL EM UMA ESCOLA DE ENSINO


FUNDAMENTAL DA REDE DE CONTAGEM/MG . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 756
Beatriz Rodrigues | Isabella Tymburibá Elian | Frederico Viana Machado

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“NO MEU TEMPO HAVERIA UM RESPEITO AO SEXO E AO GÊNERO DAS


PESSOAS, HOJE NÃO”: PROBLEMATIZANDO DISCURSOS DE DOCENTES DE
EDUCAÇÃO BÁSICA SOBRE GÊNERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 763
Danilo Araujo de Oliveira | Alfrancio Ferreira Dias

DIVERSIDADE DE GÊNERO E DOCÊNCIA: ANÁLISE DAS VIVÊNCIAS


PROFISSIONAIS DE UMA PROFESSORA TRAVESTI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 771
Danilo Dias | Marcos Lopes de Souza

O CORPO E SEUS SIGNIFICADOS SOCIAIS | NA ESCOLA E PARA ALÉM DELA,


COMO POTENCIALIDADES NOS PROCESSOS DE FORMAÇÃO.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 779
Claudete Imaculada de Souza Gomes | Anderson Ferrari
Claudio Magno Gomes Berto

EDUCAÇÃO, EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS, GÊNEROS E SEXUALIDADES:


PROBLEMATIZAÇÕES DE UMA PESQUISA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 787
Roney Polato de Castro | Nathalia Guimarães e Sousa

A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” NO FACEBOOK: PEDAGOGIAS EM AÇÃO. . . . . . . . 795


Roney Polato de Castro | Janailde Araújo Fonseca

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A CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES NA CULTURA


ESCOLAR DOS CURSOS DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA
DE TERESINA – PI, BRASIL

Jânio Jorge Vieira de Abreu


Doutorando em Educação – UFPI
Professor da Universidade Estadual do Piauí – UESPI / Área de Pedagogia
profjanioabreu@gmail.com

GT 14 - Masculinidades múltiplas no contexto escolar

Resumo

O presente trabalho analisa a inserção de homens nos Cursos de Licenciatura em


Pedagogia de Teresina-PI, Brasil, visando contribuir para a inclusão e profissio-
nalização masculina em um campo de formação predominantemente feminino.
Apoiou-se nos seguintes autores: Connell (1995); Libâneo (2005); Brzezinski
(2006); Pimenta (2001) Imbernón (2010) e outros. Fez-se uma pesquisa de
campo e documental com aplicação de questionários perfil e realização de
entrevistas com 22 graduandos. Identificou-se diferentes tipos de masculinida-
des, homens que, a despeito das dificuldades para ingressarem na universidade
e no Curso de Pedagogia, tornaram-se sujeitos de suas próprias histórias supe-
rando preconceitos, exclusão e intolerância à presença deles no Curso e ao
Curso de Pedagogia que ora realizam.
Palavras-Chave: Homens; Masculinidades; Estudantes; Pedagogia; Exclusão.

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Introdução

Pesquisar o ingresso dos homens no Curso de Pedagogia exigiu, a priori,


um olhar para a trajetória masculina em seus percursos formativos estenden-
do-o às concepções que as famílias e a comunidade escolar constroem sobre o
Curso de Licenciatura em Pedagogia e sobre o ser homem estudante do mesmo.
Para isso fez-se a identificação dos fatores que motivaram a opção e/ou ingresso
masculino no referido curso em instituições de Teresina; caracterizou-se as con-
cepções da comunidade acadêmica, das famílias e dos próprios homens sobre
a presença deles nos Cursos de Pedagogia estudados e buscou-se compreender
como se constroem as masculinidades na cultura escolar subsistente nas insti-
tuições formadoras objetivando contribuir para a inclusão e profissionalização
masculina em um campo de formação predominantemente feminino..
Na realidade, a formação de professores/as deve possibilitar, além de um
autêntico diálogo intragêneros ou entre masculinos e femininos, a cooperação e
a solidariedade entre as culturas no sentido de desestimular a divisão sexual do
trabalho. A finalidade da práxis é a construção da humanidade do ser humano
objetivando formar subjetividades dialogantes, críticas, expansivas, sem cons-
truções fixas (F. SOUZA, 2009). No entanto, vive-se em uma sociedade com
características contraditórias, pois à medida que avança no processo de comu-
nicação, no desenvolvimento tecnológico, na modernidade, na globalização
cultural etc., ainda persiste na preservação de valores patriarcais, androgênicos
construindo estereótipos de sexo e de gênero os quais interferem na igualdade
de oportunidades entre as pessoas. Através das reflexões de Imbernón (2010)
entende-se que a formação docente deve demarcar outros conteúdos forma-
dores; levar em conta os fatores da diversidade e da contextualização como
elementos imprescindíveis na formação.

O perfil discente e a motivação dos homens pelo Curso de


Pedagogia

Os estudantes têm idade entre 18 e 59 anos, cores pardas e negras, cur-


sando entre o III e o IX Bloco do Curso de Pedagogia em instituições públicas
e privadas, pertencem a famílias de classes populares sobrevivendo com renda
mensal até de 2 salários mínimos. Muitos residem na periferia de Teresina, mas
alguns deles são provenientes de outras cidades do Piauí e até de outros Estados

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do Brasil. São casados e solteiros, estudantes profissionais e estudantes traba-


lhadores, estudaram em escolas públicas e privadas, mas a maioria daqueles
que estudam na Faculdade particular tem o curso financiado. Os estudantes
mostram-se atraídos pelo curso, porém muitos ao optar pela pedagogia vislum-
braram mais a oportunidade de emprego. É o que mostra Pedro e Alexandro ao
relatarem sobre a decisão de cursar pedagogia.
“Quem me motivou na pedagogia foi o seguinte: um dia eu estava
assistindo o rádio e tava passando uma reportagem dizendo que no
Brasil tinha uma deficiência muito grande de professores, [...] uns
cinco anos depois era obrigado empregar professor... eu digo rapaz,
sabe que esse curso me interessa! Eu vou me aposentar! E aí eu não
vou ficar na invalidez [...]. Aí eu disse, você sabe, eu vou é fazer
pedagogia” (PEDRO, VI BLOCO, PEDAGOGIA, FSA).
“O primeiro é que lá assim a oportunidade de emprego é mais na
área de magistério [...]. Eu tava até pensando em fazer outro, mas
é porque eu queria trabalhar na área, gostaria” (ALEXANDRO, IX
BLOCO PEDAGOGIA, UESPI).

Os motivos para a escolha pelo Curso de Pedagogia são diversos, mas a


necessidade de inserção no mercado de trabalho é o grande foco dos estudan-
tes. Nenhum deles teve o Curso de Licenciatura em Pedagogia como primeira
opção, ainda que por influência da família, já que em muitas famílias dos estu-
dantes há professores/as. Entre os estudantes, há diversas situações em relação
à escolha pelo curso, vale destacar: aqueles que, mesmo tentando ou até fre-
quentando cursos de outras áreas, escolheram Pedagogia; aqueles que tiveram
dúvidas entre a Pedagogia e outras áreas de conhecimento; homens que justifi-
cam sua escolha pelo desejo de atuar na docência e aqueles que optaram por
Pedagogia para trabalhar com gestão, nas empresas, etc.
“Quando eu terminei o Ensino Médio, meu pai, minha mãe queria
muito que eu fizesse Direito! Aí, por incentivo deles até empolgado
eu fui fiz vestibular, passei, aí comecei a cursar Direito, [...] na ver-
dade eu não fui direto para fazer pedagogia, eu tentei fazer Letras
na Federal” (ALEX, VII BLOCO PEDAGOGIA, FSA).
“Sempre prestei vestibulares para outros cursos, pra Administração,
já ingressei, mas felizmente, fiz pra Direito também não conse-
gui, não consegui efetuar matrícula nos dois aí quando foi esse

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de Pedagogia eu arrisquei, mas porque não fazer Pedagogia?”


(VANDERLEI, IV BLOCO PEDAGOGIA, FSA).

Os cursos de formação de professores, especialmente o Curso de Pedagogia


não possui muito prestígio social e as representações que comprovam isso,
grosso modo, são justificadas pela desvalorização do professor, refletida nas
condições de trabalho, nas condições salariais, na falta de qualificação docente,
etc.

As concepções da comunidade escolar: Pedagogia não é curso de


homens?

Há uma discussão em torno da construção da identidade do pedagogo


sendo que este e outros fatores contribuiriam também para o desprestígio aca-
dêmico do curso. Consentâneo a isso, a desvalorização da Pedagogia, enquanto
campo de conhecimento ou como ciência da educação ou dos estudos em
Pedagogia se explicaria como reflexo direto da desvalorização social e profis-
sional do educador escolar. (LIBÂNEO, 2005).
Independente dos motivos para a desvalorização do magistério e dos
cursos que possibilitam o seu exercício, o preconceito e a negatividade em rela-
ção ao Curso de Pedagogia estão muito presentes no depoimento dos homens
entrevistados.

“É totalmente negativa! As pessoas elas levam a Pedagogia como...


Ah!, você vai morrer de fome, é... você é gay, homossexual, você
é, o que tu quer com Pedagogia, Pedagogia não é um curso de
homem, você tem que fazer Direito! Farmácia, você já trabalha
com a farmácia. (BALTAZAR, IV BLOCO PEDAGOGIA, FSA).

“Sim! A gente percebe nas pessoas uma reação assim, às vezes de


ojeriza, de desprezo até porque o curso de Pedagogia no Brasil ele
não é visto como um curso de status. Eu acho que assim em geral,
eu acho que, é digamos assim, o senso comum é que a pessoa que
escolhe Pedagogia ele não funciona bem da cabeça. [...]. Então, eu
recebi muitas críticas, até de professores” (SÓCRATES, III BLOCO
PEDAGOGIA, UESPI).

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Considerando a importância de um curso de magistério enquanto forma-


ção profissional e dos depoimentos dos estudantes revelando as representações
das pessoas acerca da escolha pelo Curso de Licenciatura em Pedagogia, torna-
-se relevante saber o que justificaria tal comportamento sobre o referido curso.
Libâneo (2005) faz uma indagação pertinente nesse sentido, mas que ele próprio
considera difícil de responder: onde estaria a raiz da intolerância à Pedagogia
como ciência ou, ao menos, como um campo específico de conhecimentos e
práticas? Tais posicionamentos estão relacionados propriamente ao Curso de
Pedagogia ou à inserção dos homens no mesmo? Em que se fundamenta as
concepções das pessoas expressa nos depoimentos a seguir?
“Ah! Cara! As reações foram diversas, tinha gente que falava o
seguinte: você não tem nada melhor pra fazer não? Fazer logo
Pedagogia? Teve gente que mandou eu ser gari!!! Vai ser gari rapaz!
Aí eu peguei e disse: não rapaz eu faço Pedagogia porque eu quero!
As pessoas da minha família mesmo só ficaram sabendo mesmo
quando eu já estava no segundo período. [...]” (ALEX, VII BLOCO
PEDAGOGIA, FSA).

Embora os homens não tenham feito a escolha pela Pedagogia inicialmente


por vocação, o fizeram em busca de um objetivo. Independente dos motivos,
as escolhas foram convictas, tinham uma finalidade, pois nenhum argumento os
convenceu do contrário. Como é o exemplo de Edinaldo.
“[...]. As pessoas veem pedagogia como um curso subalterno, todo
mundo falou: ah! tu vai trocar Ciências Contábeis por Pedagogia...
por que eles acham, tá no sonho, é o que eles gostam e não têm
noção da realidade, como o mercado de trabalho ver os profissio-
nais, não é?. Acho que uma turma de 30 pessoas que se formam
em Ciências Contábeis, se cinco chegar a ser contador é muito!,
porque na minha família tem 5 pessoas e nenhuma trabalha como
contador. [...]” (EDINALDO, II BLOCO PEDAGOGIA, FSA).

Todo curso, toda formação enfrenta dificuldades na constituição do seu


campo de conhecimento e/ou no reconhecimento acadêmico ou social, como
exemplo: um mercado de trabalho restrito, fragilidade epistemológica, etc. Tais
obstáculos nos cursos ou áreas de conhecimentos não são privilégios somente

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ISBN 978-85-61702-44-1 414 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

do Curso de Pedagogia. Mas, porque a Pedagogia sofre tão forte rejeição da


sociedade? Libâneo (2005, p. 65) aprofundam mais essa discussão:
Seria ver nela um caráter dogmático, excessivamente voltado para
postulados éticonormativos num mundo propício à relativização
de valores? Ou, por outro lado, um caráter racionalista ou mesmo
tecnicista, no sentido de que toda ciência seria domesticadora, eri-
gindo-se acima da sociedade? Ou a intolerância seria decorrente
da subestimação dos objetivos e processos pedagógico-didáticos
em favor da tese de que, para uma boa aprendizagem, os conteú-
dos/métodos de cada matéria se bastam?

Melo (2010) investigou o olhar dos discentes sobre o curso de Licenciatura


em Pedagogia da UFPI e defendeu a necessidade de revisão da Proposta
Curricular do mesmo, com o intuito de atender as exigências da atualidade
do sistema de ensino do Estado do Piauí, tanto para a rede estadual quanto
para a municipal, bem como as orientações oficiais dirigidas para o Curso de
Pedagogia em âmbito nacional.
Concorrendo com as questões curriculares, há na comunidade acadêmica
do Curso de Pedagogia, os preconceitos de sexo e de gênero. Quando abordei
uma professora sobre a presença de homens no Curso de Pedagogia com o qual
ela trabalhava, a resposta foi a seguinte: “Jânio, você perdeu, chegou atrasado,
acabou de se formar uma turma que tinha vários homens, nestas turmas agora
só tem aqueles...”. Em outra instituição, ao abordar um professor que, além da
docência, ocupa um cargo de gestão, ele mostrou a mesma concepção: “você
está atrás de homens? Tem uns por aí, mas...”.
A divisão do trabalho no magistério pode ser explicada não mais pela
forma como se estabelecem, mas pela forma como se trabalha as relações
de gênero na família, na escola, na universidade e em outros espaços, pois
é consequência do que se constrói social e historicamente sobre o que é ser
masculino, sobre as concepções de masculinidade e o papel que os homens
devem assumir na sociedade. Connell (1995, p. 189), ao tratar da construção e
reconstrução da masculinidade, afirma:
Os rapazes são pressionados a agir e a sentir dessa forma e a se
distanciar do comportamento das mulheres [...] a feminilidade é
compreendida como o oposto. A pressão em favor da conformi-
dade vem das famílias, das escolas, dos grupos de colegas, da mídia

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ISBN 978-85-61702-44-1 415 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

e finalmente, dos empregadores. A maior parte dos rapazes inter-


naliza essa norma social e adota maneiras e interesses masculinos,
tendo como custo frequentemente, a repressão dos sentimentos
[...].

Assim, formar professores na perspectiva de superar o sexismo nas


profissões, exige, antes de tudo, o desafio de superar problemas estruturais,
curriculares, de gênero, etc. existentes nas instituições formadoras, sobretudo
pensar a cultura escolar no que se refere ao ideal de aluno, de professor e
de professora construído no sistema educacional. É esta cultura que, em mui-
tas situações, provoca o comportamento e os sentimentos de alunos, como o
exemplo de Vanderlei ao relatar sobre a receptividade de uma professora no
estágio.
“No início causou... desconforto, até porque o curso tem esse
estigma, sempre voltado para a questão feminina, no caso o cuidar
[...] no estágio também, é.. eu, eu não sei, eu senti que a profes-
sora... ela, ela afirmou não com as próprias palavras, mas assim uma
indireta como se eu ia encontrar dificuldades... por eu ser homem”
(VANDERLEI, IV BLOCO PEDAGOGIA, FSA).

Sousa (2000, p. 75), nas suas discussões sobre essa temática, afirma que “a
burocratização da profissão e a consequente aversão ao trabalho docente tam-
bém contaminou professores, alimentando durante muito tempo o preconceito
contra o professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental”, aquele designado
a trabalhar com crianças. Isso também reflete na inserção dos homens no Curso
de Pedagogia e, especialmente, na reação das pessoas pela escolha masculina.

Conclusões reflexivas

A concepção dos homens sobre o Curso de Licenciatura em Pedagogia é


de uma formação abrangente e fundamental na formação pessoal e profissional
do ser humano. Além disso, o sentimento acadêmico que eles apresentam em
seus relatos é de pertencimento ao curso e que o mesmo oferece muitas oportu-
nidades de trabalho, portanto, independente do motivo das escolhas, sentem-se
realizados. A trajetória dos estudantes de Pedagogia foi marcada por inúmeros
obstáculos, seja em relação à vida pessoal ou social e, especialmente à vida
escolar, pois, embora alguns homens tenham afirmado em seus depoimentos

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ISBN 978-85-61702-44-1 416 de Estudos sobre a Diversidade
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ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
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que o ingresso na escola foi sem grandes dificuldades, a maioria deles iniciou
a vida escolar além da idade própria ou teve interrupções no percurso. Estas
dificuldades se acentuaram entre o ensino médio e o ingresso na universidade,
principalmente em relação à escolha pela pedagogia.
Assim, pode-se concluir que os principais interlocutores deste trabalho
são homens com características diversas ou diferentes tipos de masculinidades,
pois embora movidas por situações e condições de vida diferenciadas, com-
partilham aspectos comuns em suas histórias de vida. Em primeiro lugar são
pessoas que sempre perseguiram o ideal de serem sujeitos de suas próprias
histórias enfrentando assim quaisquer barreiras em busca dos seus objetivos.
Em segundo lugar, todos eles, independentemente do tempo e dos obstáculos,
almejaram muito e conquistaram o ingresso em uma faculdade ou universidade
conquistando com êxito uma formação profissional.
Na realidade, nesta experiência identificou-se os homens como um
gênero pouco presente na pedagogia, mas com uma permanência resistente
como se os valores patriarcais ou matriarcais determinassem seus espaços, mas
não erguessem aí o seu trono. De certo, se a seletividade social surgiu com a
organização das sociedades, aprimorando-se com a complexidade das mesmas,
a seletividade escolar e o desrespeito à diversidade que se opera no interior da
escola, nasceram com a instituição escolar.

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Referências

BRZEZINSKI, Iria. Pedagogia, pedagogos e formação de professores. 6ª Ed. São Paulo:


Papirus Eitora, 2006, 247 p.

CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. In: Educação e realidade. São


Paulo: 1995, pág- 183 a 206.

IMBERNÓN, Francisco. Formação continuada de professores. Tradução: Juliana dos


Santos Padilha. Porto Alegre: Artmed, 2010, 120p.

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? 10. ed. São Paulo: Cortez,
2005.

MELO, Patrícia Sara Lopes. O olhar dos discentes sobre o curso de Licenciatura em

Pedagogia da UFPI: Narrativas de formação. Teresina: UFPI, 2012. 102 f. Dissertação


(Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Piauí.

PIMENTA, Selma Garrido (Coord.). Pedagogia: ciência da educação? 4ª Ed. São Paulo:
Cortez, 2001.

SOUSA, Maria Cecília Cortez Cristiano de. A escola e a memória. Bragança Paulista:
INFANCDAPH. Editora da Universidade São Francisco: EDUSF, 2000, 196 p.

SOUZA, João Francisco de. Prática pedagógica e formação de professores.


Organizadores:

João Batista Neto e Eliete Santiago. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009.

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PROFESSORES HOMENS NA ROÇA DE JEQUIÉ/BA:


NOTAS DE UMA PESQUISA EM ANDAMENTO

Antonio Jeferson Barreto Xavier


Mestrando em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
jeffersonbxavier@hotmail.com

Fernando Seffner
Doutor em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
fernandoseffner@gmail.com

Resumo

O presente texto tenciona apresentar uma pesquisa de mestrado em Educação.


Intitulada “O gênero vai à roça: a presença de professores homens nos anos ini-
ciais no meio rural de Jequié/BA” apresenta o objetivo de pesquisar as questões
de gênero e sexualidade que a presença de professores homens dos anos ini-
ciais do meio rural da cidade de Jequié/BA desperta. Pretende ainda investigar
como as relações de gênero e sexualidades na roça, visto nesta pesquisa como
um espaço generificado, perpassam o espaço escolar. Desse modo, a partir de
dados levantados na pesquisa-piloto realizada no período de dezembro de 2015
a fevereiro de 2016 aqui apresentamos as primeiras notas da presente pesquisa.
Palavras-chave: docência; masculinidades; professores; homens; roça

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Primeiras sementes

O presente trabalho tem o objetivo de apresentar uma pesquisa de mes-


trado em Educação que se encontra em fase de desenvolvimento. Para tanto
recorremos a alguns dados levantados na fase piloto da pesquisa, incluindo
excertos de entrevistas realizadas no período de dezembro de 2015 a fevereiro
de 2016. A pesquisa se situa na perspectiva pós-estruturalista e está inserida na
linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero do Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
É significativo o número de pesquisas em torno da presença de professo-
res homens no ensino de crianças, porém, grande parte dessas investigações
acontece na Educação Infantil e em instituições do meio urbano, a exemplo
das pesquisas de Saparolli (1997), Carvalho (1998), Sayão (2005), Ramos (2011)
entre outras.
Assim, nossa pesquisa escolheu analisar as questões de gênero e sexua-
lidade suscitadas com a presença de professores homens dos anos iniciais que
atuam na Educação do Campo. Para tanto é importante nessa pesquisa pensar
a roça enquanto espaço generificado e sexualizado e a partir disso voltar nossas
lentes para a sala de aula que conta com a presença desses professores. Longe
de ser um território de apenas calmaria pensamos a roça como um campo de
relações de poder com constantes negociações, interações, disputas, subjetiva-
ções e representações de gênero e sexualidade.
Concordamos assim com Oliveira e Seffner (2014, p.70) quando afirmam
que o “espaço dito “natural” atua sobre os sujeitos, que constroem uma rede de
significados simbólicos, possíveis de serem lidos na ótica do gênero”. Interessa
nesta pesquisa entender como se dão as práticas discursivas, os sistemas de
saber-poder e suas produções sobre o gênero e a sexualidade nesse espaço
específico que é a região rural de Jequié. Todos os elementos apresentados até
o momento ajudam a pensar o lugar da nossa pesquisa e se relacionam com o
propósito investigativo que tem como objetivo geral: Compreender como a pre-
sença de professores homens nos anos iniciais na roça de Jequié-BA suscitam
as questões de gênero e sexualidade.

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Passos dados, caminhos por trilhar...

De acordo com Dal’igna (2014) pesquisar é como dar passos “Para


começar é preciso dar o primeiro passo, um passo de cada vez, gradualmente,
apertando e afrouxando o passo, imprimindo um ritmo ao movimento [...]”
(p.198 grifos da autora). Até o momento realizamos entre dezembro de 2015
a fevereiro de 2016 uma pesquisa-piloto com o objetivo de fazer o primeiro
levantamento de dados juntos à Secretaria Municipal de Educação de Jequié/
SMEJ, nesse primeiro momento também foram entrevistados alguns professores
que atuam nos anos iniciais.
Conforme dados fornecidos pela Divisão do Ensino Rural – SMEJ, a
Educação do Campo no município é formada por 53 escolas. O quadro de pro-
fessores/as que atuam na roça é formado de 177 profissionais. Nos anos iniciais
atuam 83 profissionais, sendo que desse número apenas 10 são professores
homens, para a realização da pesquisa elegeremos dois desses profissionais.
Conforme já foi dito a pesquisa se situa na perspectiva pós-estrutura-
lista, assim quando se fala de metodologia nesse campo teórico é importante
demarcar que não dispomos de um manual de pesquisa, tampouco um for-
mato metodológico inflexível (PARAÍSO, 2014) que vise encontrar respostas ou
apresentar soluções para os problemas. Nessa mesma direção Meyer (2014)
defende que as pesquisas que compartilham desta perspectiva teórica “estão
menos preocupadas em buscar respostas para o que as coisas de fato são, e se
preocupam mais em descrever e problematizar processos por meio dos quais
significados e saberes específicos são produzidos [...]” (p.53).
Um dos pressupostos da pesquisa pós-estruturalista aprestando por Paraíso
(2014) é o de que os raciocínios operados na educação são generificados, assim
no nosso caminhar investigativo consideramos que nos diferentes espaços edu-
cativos as relações de gênero são produzidas, mas também como aponta a
autora, as lutas e resistências e discursos são desnaturalizados, questionados e
“[...] rupturas podem ser introduzidas, numa transformação constante de rela-
ções de poder já instauradas” (p.33). Nesse propósito vamos para a roça, olhar
como essas construções e desconstruções se passam naquele ambiente. Como
o lugar da docência na roça se constrói enquanto um lugar generificado e sexu-
alizado, quais desnaturalizações e rupturas a presença de um professor homem
ensinando crianças podem causar? Inquietações que nos motivam ao caminhar.

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Enxadas e facões ou alguns conceitos e reflexões

Ao longo da pesquisa operamos com os conceitos de sexualidade, mas-


culinidades, norma, poder, pânico moral, gênero e heteronormatividade. No
entanto, nesse recorte, discutiremos apenas os dois últimos. A palavra gênero
tem a sua história atrelada ao feminismo anglo-saxã que recorre no início da
década de 70 a palavra gender/gênero para distinguir de sex/sexo (LOURO,
2000). Para além de um acréscimo de uma categoria ou palavra o movimento
buscou rejeitar a visão biologizante do sexo e das diferenças sexuais e chamar
atenção para o “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no
sexo” (SCOTT, 1995, p. 72). Nessa perspectiva, nada escapa ao gênero! Jeffrey
Weeks (2000) define gênero como “uma divisão crucial” nas construções das
diferenças sociais e de classes, para o autor “O gênero não é uma simples
categoria analítica; ele é, como as intelectuais feministas têm crescentemente
argumentado, uma relação de poder” (p.40). Essas relações de poder se dão na
e por meio da Cultura e da linguagem, onde se estabelecem as diferentes cons-
truções de significados de masculino e feminino.
Nesse sentido, pretendemos olhar, ouvir, mapear, descrever com as cons-
truções de gênero se estabelecem na roça e de forma especial, como a presença
de um homem educando crianças pequenas suscita a discussão sobre sexu-
alidade. Podemos acrescentar ainda o seguinte questionamento: Como esses
sujeitos são interpelados em sua identidade sexual e como elas importam para a
comunidade escolar e rural. É válido apresentar aqui um excerto de uma entre-
vista realizada na pesquisa-piloto. O professor relatou que um dos pais ao saber
que era um homem que atuaria na escola ligou para diretora indagando se ele
era ‘homem de verdade’,
[...]ele ligou para diretora da escola e perguntou se esse professor
é homem mesmo ou era gay, porque tem alguns professores do
ensino fundamental que são gays e alguns pais não querem que
seu filho, principalmente o filho homem, estuda com um professor
gay [...] Teve que fazer reunião com o pai, explicar para ele, ele
realmente estava preocupado com essa questão de gênero (sic) ,
não sei se ele já passou por algum problema com isso, mas ele foi
lá eu mostrei fotos das minhas filhas, ele não entendeu, como é que
pode, ele nunca viu um homem ensinando crianças[...] conversou
ele, eu e a coordenação.

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A quem seu desejo sexual é direcionado, qual é sua identidade sexual


parece ser algumas das respostas que os professores homens que atuam com
crianças precisam apresentar aos pais e demais membros da comunidade. A
identidade sexual parece surgir como um dos quesitos no ‘currículo’ dos pro-
fessores que mais importa para alguns pais, se sobrepondo em muitas situações
a sua qualificação profissional. Todavia, não é qualquer identidade sexual que
incomoda e que precisa ser identificada ou marcada.
Os conceitos de heteronormatividade e norma são importantes aqui para
problematizarmos o episódio relatado pelo professor e serão igualmente válidos
para as demais análises no decorrer da pesquisa. O conceito de heteronorma-
tividade cunhado por Michael Warner indica “a obsessão com a sexualidade
normalizante, através de discursos que descrevem a situação homossexual
como desviante” (BRITZMAN, 1996, p. 79). A heteronormatividade por meio
das suas regras, pedagogias e demais mecanismos que dispõe e usa de forma
reiterada com o objetivo de naturalizar-se como norma e referência, se pro-
cessa numa constante vigilância, a ponto de que para alguns heterossexuais a
“mera menção da homossexualidade” (Ibidem, p.80) deve ser evitada. O pro-
fessor ao expressar na entrevista que “alguns pais não querem que seu filho,
principalmente o filho homem, estuda com um professor gay” denuncia que
a homossexualidade, ou nesse caso a suspeita de, surge como ameaça e algo
“contagioso, predatório e perigoso”.
Na pesquisa realizada por Fonseca (2011), com dois professores homens
nos anos iniciais a homossexualidade também apareceu como um “problema”.
Um dos professores era assumidamente gay. A questão de ter um homem como
professor de crianças pequenas se atrela, como diz o pesquisador, ao medo
da não heterossexualidade o “[...] Assim, a questão de gênero − J. ser professor
homem dos anos iniciais, cede lugar à uma questão de sexualidade – J. ser
homossexual” (FONSECA, 2011, p. 65).
A pesquisa de Fonseca apresenta um fato que igualmente aparece na
nossa investigação – o medo da homossexualidade – que atinge também os
sujeitos que se identificam como heterossexuais. Segundo o pesquisador o outro
professor mesmo sendo heterossexual e casado não escapava ao “fantasma da
homossexualidade” (FONSECA, 2011). Logo, mesmo sendo heterossexual se o
homem atua em uma profissão tida como feminina, como é vista o ensinar nos
anos iniciais, ele está rompendo uma fronteira e desperta a indagação, o ques-
tionamento, a vontade de saber.

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Ao lado do medo e rejeição à homossexualidade, outro fator que surge


nas pesquisas de Sayão (2005) e Souza (2010) como empecilhos para atuação
dos homens como professores de crianças é o contato com os corpos das crian-
ças. Com a construção no imaginário social de que o homem é um abusador
em potencial ou ainda que homens não possuam jeito para lidar com o cuidado
dos corpos infantis. Contudo, com a leitura das pesquisas de Ferreira (2008) e
Fonseca (2011) ao que parece esse mesmo discurso também é invocado para o
estranhamento de professores homens nos anos iniciais. Ao que parece a sim-
ples permanência de um homem sozinho com crianças, ou toque, um afeto, já
é o suficiente para suscitar esse pânico e esses questionamentos.
Ainda que a pesquisa que desenvolvemos não trata de professores homens
na creche questionamos até que ponto essas mesmas representações se esten-
dem para os anos iniciais? Será que esses discursos desejam produzir ‘verdades’
de que nenhum homem é adequado para o ensino das crianças? Quais as
representações do ser homem e de masculinidades atravessam esses discursos?
Como tudo isso se constitui nas escolas das roças de Jequié que contam com
um professor homem?
Acredito ser pertinente pensarmos como esses discursos são reproduzidos
pelos próprios professores homens. Como isso se reflete, por exemplo, na fala
de outro professor entrevistado quando diz que ele enquanto homem não apre-
senta domínio com as atividades artísticas “elas [professoras colegas] pedem
para copiar as minhas atividades e eu peço para elas fazerem as coisas ligadas
às artes, elas têm mais facilidade com essas coisas de arte”. Ou quando outro
professor afirmou que caso alguma criança precisa tomar banho ou ajuda para
se higienizar após o uso do banheiro ele recorre a uma colega, pois é “mais fácil
por ela ser mulher”.
As pesquisas sobre o processo de feminização do magistério apontam que
há uma associação de uma vocação nata da mulher para atuar com crianças.
O entendimento que elas possuem uma facilidade para o cuidar e lidar como
o emocional dos pequenos são discursos que também surgem com intenção
de legitimar a inadequação dos homens nesses espaços. Conforme apontamos
anteriormente esses discursos surgem também na voz de alguns professores.
Um dos entrevistados questionado se observa alguma diferença entre a docên-
cia masculina e feminina nos anos iniciais, respondeu “particularmente prefiro
mulheres nas séries iniciais, mulheres com vocação, que queira realmente, que
deseja [...] as mulheres tem mais habilidades manuais, lidar com o psicológico,

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com o cuidar, o cuidar maior, o homem não tem esse cuidado maior, essas
facilidades, as mulheres tem essa vocação.” O cuidar surge então como um
elemento que deve ser desenvolvido exclusivamente pelas mulheres? Ainda
prevalece a ideia da professora como uma extensão da mãe? Como esses dis-
cursos são reiterados na roça?
Nada está acabado e fechado. Queremos seguir viagem considerando
que “não importa o método que utilizemos para chegar ao conhecimento; o
que de fato faz a diferença são as interrogações que podem ser formuladas
dentro de uma ou outra maneira de conceber relações entre poder e saber.”
(COSTA 2000, p.16 apud CARDOSO, 2014, p.223). Estamos apenas no começo
das estradas da roça e há muito chão para percorrer!

Referências

BRITZMAN, Débora. O que é esta coisa chamada amor? Identidade homossexual,


educação e currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.21, n.1, p.71-96, 1996.

DAL’IGNA, Cláudia Maria. Grupo focal na pesquisa em educação: passo a passo


teórico-metodológico In: MEYER, D. E. E.; PARAÍSO, M. A. (Orgs.). Metodologias de
pesquisas pós-críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014.

FERREIRA, José Luiz. Homens Ensinando Crianças: continuidade-descontinuidade


das relações de gênero na escola rural. João Pessoa: UFPB, 2008. Tese (Doutorado
em Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação,Universidade Federal da
Paraíba,João Pessoa, 2008.

FONSECA, Thomaz Spartacus Martins. Quem é o Professor Homem dos Anos Iniciais?
Discursos, representações e relações de gênero. Juiz de Fora: UFJF, 2011. Dissertação
(Mestrado em Educação)- Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2011.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade / Guacira


Lopes Louro (organizadora); tradução dos artigos: Tomaz Tadeu da Silva – 3. Ed. – Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2000.

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OLIVEIRA, S. M. M. ; SEFFNER, F. . Mujeres en aguas masculinas: trayectorias de


pescadoras de São José do Norte, Brasil. Manzana de la Discordia (Cali. 2005), v. 9,
p. 69-87, 2014.Disponível em : http://manzanadiscordia.univalle.edu.co/. Acesso em
junho de 2016.

PARAÍSO, M.A. Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação e currículo:


trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, D. E. E.;
PARAÍSO, M. A. (Orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em Educação. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2014.

WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: Guacira Louro (org.) O corpo educado.
Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

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QUANDO DESENHOS REPRESENTAM DISCURSOS: GÊNERO,


SEXUALIDADES E PROFISSÕES - O QUE DIZEM OS ALUNOS
DA EDUCAÇÃO INFANTIL?

Carla Silva Machado


Doutoranda em Educação pela PUC/Rio. Bolsita do Cnpq.
carlasingular@gmail.com

Amanda Cristina Silva Machado


Bacharela em Turismo. Graduanda em Pedagogia pela UFJF.
amandamachado@yahoo.com.br

GT 19 - Sexualidades e Gênero entre Crianças e Adolescentes: uma área relevante e


diversificada de pesquisa e conhecimento

Resumo

A presente comunicação parte das concepções de discurso como algo que


extrapola a fala e a escrita, mas que estão ligadas também aos signos presentes
no cotidiano. Nesta perspectiva, acreditamos que o cotidiano escolar é tomado
por discursos que são trazidos pelos alunos de outros ambientes sociais, como
família e igreja, e também, os midiáticos, como TV, cinema, publicidade. Dessa
forma, as atividades extraescolares influenciam diretamente as ações cotidianas
na escola. Para ilustrar esta discussão, partiremos de um vídeo produzido numa
escola de Londres e veiculado nas redes sociais brasileiras por coletivos feminis-
tas e que tem como temática as profissões. Pretendemos discutir as concepções
de gênero, sexualidades e profissões na educação infantil a partir da perspectiva
das pedagogias culturais e dos temas emergentes na contemporaneidade como
as identidades, a cultura, os discursos, dentre outros.
Palavras-chave: discursos; padrões culturais; infâncias; pedagogia cultural.

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A realidade é, assim, construída; nunca capturada diretamente por


um pensamento linear ou um discurso explícito (DIAS, 2005, p. 47).

Introdução

Acreditamos que a educação infantil é o tempo-espaço para a concretiza-


ção da maneira da criança de ser e estar no mundo. É, neste sentido, momento
de intensas aprendizagens significativas, que perpassam pelo desenvolvimento
intelectual, psicológico, físico e social.
Conforme diz a LDB, lei 9394/96, Art.29:
A Educação Infantil é conceituada como a primeira etapa da
Educação Básica e tem como finalidade o desenvolvimento integral
da criança até cinco anos de idade, em seus aspectos físico, psico-
lógico, intelectual e social, complementando a ação da família e da
comunidade. (BRASIL, 1996).

Dessa forma, entendemos a educação infantil como espaço de socializa-


ção, de descoberta de valores, costumes e sentimentos e, através das interações
cotidianas, apostamos neste espaço como um espaço de possibilidades de leitu-
ras de mundo e apropriações discursivas que são adquiridas a partir do contato
com o outro e com os demais espaços sociais existentes.
A partir desta concepção de que a educação infantil é um espaço de
interações, possibilidades e descobertas, propomo-nos a discutir, neste artigo, o
vídeo que chamaremos de Profissões e Gêneros, produzido a partir de vivências
ocorridas em salas de aula da educação infantil em Londres, pela organização
Inspiring The future, com criação da agência Mullen Lowe London.
Para avançarmos na discussão, apresentaremos a metodologia usada para
a criação do vídeo e discutiremos a importância de trabalhar as questões afetas
ao gênero na educação infantil a partir da perspectiva das Pedagogias Culturais,
que segundo Costa (2010) propõe a junção dos Estudos Culturais e da Educação
para pensar a formação de professores além dos métodos e práticas, ressalta-
mos que a autora defende que a pedagogia precisa estar além da escola.
Dessa forma, consideraremos, assim como Dias (2005, p. 47), que: “O ser
humano é um ser sensível que, diante do mundo, busca significações, o que
torna seu pensamento dinâmico por excelência; e é a metáfora, com suas múl-
tiplas possibilidades de combinação, que possibilita a mediação entre realidade

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e pensamento”. Sendo assim, entendemos que desenhos, atitudes e reações


são formas de representações discursivas das crianças acerca das realidades
apresentadas. De modo geral, a realidade é algo que parte de nossa criação
simbólica e cultural, por isso, a educação infantil, momento de intensas constru-
ções simbólicas da realidade, torna-se fundamental para a construção de signos
e símbolos relacionados ao gênero.

A construção do vídeo

A Inspiring The Future, idealizadora do vídeo Profissões e Gêneros, é uma


espécie de Organização Não Governamental (ONG) que une voluntários de
vários setores e professores através de um site de relacionamentos e consulto-
ria em diversos assuntos que podem ser levados à sala de aula. Os voluntários
funcionam como consultores em assuntos que ultrapassam o cotidiano escolar,
podendo ser relacionado às profissões, experiências acadêmicas e/ou pessoais,
carreira e outros. A MullenLowe London é uma agência de marketing que acei-
tou o desafio de produzir o material da Inspiring The Future, que tinha como
objetivo ressaltar para as crianças a não distinção de gêneros nas profissões.
No Brasil, o vídeo foi divulgado e legendado pelo grupo Empodere Duas
Mulheres, que mantém uma página na rede social Facebook (https://www.
facebook.com/empodereduasmulheres/info/?entry_point=page_nav_about_ite)
desde 2015 e discute as questões ligadas ao feminismo. Somente na página
original, o vídeo1 teve mais de 3 milhões e 700 mil visualizações, 109 mil
compartilhamentos, 58 mil reações (amei, curti, triste e outros) e 3 mil e 500
comentários, mostrando que o assunto merece ser discutido e tem despertado
interesse da sociedade.
O vídeo tem 1minuto e 50 segundos e apresenta professores em salas de
aula da educação infantil, estes pedem aos alunos que desenhem um piloto de
avião, um bombeiro e um cirurgião a partir de como eles imaginam ser estas
pessoas na vida real. Vale ressaltar que, na língua inglesa, não há distinção de
gêneros entre as profissões citadas, neste sentido, para a palavra bombeiro, que
em português serve apenas para o masculino, pois existe o correspondente no
feminino que é bombeira, em inglês é firefigther para os dois gêneros.

1 O vídeo pode ser visualizado na página do Empodere Duas Mulheres no Facebook, através do en-
dereço: https://www.facebook.com/empodereduasmulheres/videos/1084718574935463/.

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Sessenta e seis desenhos são produzidos pelos alunos, destes, apenas


cinco ilustrações mostram mulheres sendo estes profissionais, os outros 61
desenhos são representações de homens nestas profissões.
Na segunda parte do vídeo, os alunos conhecem três mulheres: uma
piloto, uma bombeira e outra cirurgiã. Ao entrarem na sala de aula, as três
mulheres, uniformizadas de acordo com suas profissões são recebidas por
meninos e meninas surpresas, pois não acreditavam estar diante de mulheres.
Há comentários relacionados ao tipo de roupa e capacetes pesados usados pela
piloto e, ao mesmo tempo, todos querem tocar seus objetivos de trabalho.
Fica evidente, a partir da reação das meninas que, para elas uma nova
oportunidade se abre. O vídeo termina com a seguinte frase: “É hora de rede-
finir o padrão”.

Para podermos ressignificar...

Entendemos que, ao levar esta discussão para a sala de aula, esta se abre
para novas possibilidades, isso fica evidente pela reação das crianças no vídeo,
visto que, apesar de tão jovens, elas já têm algumas questões acerca de gênero
estabelecidas, porém, não cristalizadas, ou seja, à escola cabe o papel de dar
novos sentidos a velhos padrões culturais, nas palavras de Veiga-Neto:
É esse dar sentido que faz de nós uma espécie cultural. Nessa
perspectiva, a cultura não se restringe às práticas materiais; não
se restringe, por exemplo, à produção e ao uso de ferramentas
para realizar uma determinada tarefa. Cada vez mais a Etiologia
tem acumulado evidências de que muitas espécies de animais
usam “intencionalmente” objetos para realizar tarefas relacionadas
à sobrevivência; e mais: de que esse uso é, para várias espécies,
apreendido, isso é, de que se trata de um comportamento transmi-
tido socialmente, e não geneticamente. Na perspectiva que aqui
interessa, a questão, entretanto, é pensarmos a cultura para além
do domínio material – isso é, do domínio dos objetos e das práticas
envolvidas com esses objetos. A questão é pensarmos a cultura,
também e ao mesmo tempo, no domínio simbólico: como significa-
mos os objetos e as práticas e, ao fazermos isso, como abstraímos e
transferimos esses significados para outros contextos; e ao fazermos
essa transferência, como nos ressignificamos (VEIGA-NETO, 2004,
p. 57).

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O autor nos faz pensar que, muitas vezes, entendemos como natural,
intencional e quase profético o fato de meninas brincarem de casinha e meni-
nos brincarem de carrinho, porém, temos de ter claro que essas brincadeiras
são culturais, são um domínio simbólico o qual podemos resistir, mudar e rede-
finir, a partir de atividades simples e corriqueiras, como a proposta no vídeo, e
que leva os meninos e as meninas da educação infantil a ressignificar os papeis
sociais, que eles tão prematuramente já conhecem e vão cristalizando ao longo
da vida.
Acreditamos que uma das funções principais da educação infantil, além
do brincar e da ludicidade, é abrir para as crianças vivenciarem outras possibi-
lidades de ser e estar no mundo e abrir-se para ressignificações, neste sentido,
conforme Ferrari (2000, p. 87):
[...] não se deve nem tampouco se pode pensar o contexto escolar
sem relacioná-lo ao social. E, isso se faz numa dupla direção. Ou
seja, como a escola recebe, reflete e reforça o que é socialmente
aceito e faz parte do senso comum, correndo o risco de cristalizar
preconceitos e também como a partir dela pode-se pensar formas
de alterar essa realidade, quando ela, escola, contribui para articu-
lar novas formas de práticas sociais.

Vale destacar, neste sentido, que a escola não é só um espaço de trans-


missão de conhecimentos, mas está também associada à transmissão de valores
e padrões, desta forma, segundo Costa (2010, p. 135):
[...] vivemos hoje uma era pautada por significados provisórios,
incertezas e indeterminações, cenário em que as práticas antes
privativas de certos espaços institucionais, como a pedagogia,
encontram-se desterritorializadas. Desenham-se crescentemente
novos contributos teóricos para se pensar a pedagogia como uma
prática cultural que ultrapassa amplamente os limites estritos de
instituições como, por exemplo, escola, família e igreja. Uma contri-
buição dos Estudos Culturais em Educação tem sido a possibilidade
de se abordar de forma mais ampla, complexa e plurifacetada a
educação, os processos pedagógicos, os sujeitos implicados, as
fronteiras construídas pelas ordens discursivas dominantes. Pode-se
dizer que há uma ressignificação do campo pedagógico em que
questões culturais como identidade, diferença, discurso e represen-
tação são convertidos em foco preferencial.

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É neste sentido que o vídeo Profissões e Gêneros torna-se tão importante


para as discussões de gênero, ao relacionarmos este aos estudos das Pedagogias
Culturais, percebemos que ele manifesta-se como um produto que pode ser
debatido por outras crianças nos espaços escolares, mas também por professo-
res para conscientizarem-se do importante papel da escola, desde a educação
infantil, para a discussão das questões que envolvem gênero, sexualidade, iden-
tidades e padrões culturais.
É também papel da escola mediar as muitas leituras possíveis sobre a
atribuição de determinados valores, posições e, até, traços de personalidade
em personagens de desenhos, filmes, novelas ou publicidade, a partir de uma
perspectiva de gênero, e buscar refletir e questionar tais modelos. Ao naturali-
zarmos aspectos como força, coragem e determinação apenas aos super-heróis,
geralmente masculinos; e a sensibilidade, doçura e inteligência às princesas e
mocinhas; reforçamos um arquétipo de sociedade e não ampliamos o repertó-
rio infantil, que poderia ser muito mais complexo e interessante. Neste aspecto,
é importante pensarmos que a escola é um dos primeiros lugares em que as
crianças, geralmente, têm contato com as tradições da sua sociedade, é na
escola que conhecem o que é comum aos seus pares e um pouco do indivi-
dual dos outros. Além de possibilitar novas leituras sobre sua própria cultura,
o espaço escolar também incide na construção social das primeiras emoções
do indivíduo, pois elas são, também, questões afetas à interpretação e crença.
Se nosso repertório emocional está parcialmente construído pela
narrativa pessoal de cada um, bem como a narrativa social, então o
desenvolvimento das emoções da criança é fundamental. As emo-
ções têm uma história, tanto individual como coletiva. A história
das emoções na vida de indivíduo é importante porque muitas de
nossas emoções ainda carregam traços de seus objetos anterio-
res, especialmente na infância. Nosso passado molda nossa vida
emocional atual. Essa história é idiossincrática, mas também é his-
toricamente construída e universal, no sentido de que é comum à
humanidade. Precisamos, então, compreender a história das emo-
ções na infância e na criança para entender a vida emocional do
adulto (BANNEL et al, 2016, p.47).

Portanto, essas primeiras interpretações sobre o que é ser um homem ou


uma mulher, quando limitados e reduzidos a estereótipos, roubam uma multi-
plicidade de elementos e combinações ricas, que perpassam a nossa sociedade.

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Não há uma profissão certa, um só jeito de ser mulher ou homem, este é sem
dúvida o ponto de partida mais democrático e ético para a educação das crianças.

Considerações Finais

Interessante, percebermos, durante a escrita deste artigo, o quanto as pala-


vras são símbolos de uma realidade por nós construída, assim como expresso
na epígrafe deste texto. E assim, como as realidades não são lineares e precisam
ser ressignificadas, algumas palavras precisam ser criadas para poderem retratar
nova realidade. Ao depararmos com a palavra piloto, por exemplo, que como
vimos em inglês, serve para dois gêneros, não temos, ainda, dicionarizado, na
língua portuguesa, a palavra pilota (a não ser quando verbo, mas não como
substantivo, a pilota, por exemplo). No trecho do texto em que nos referimos
à palavra, deixamos a expressão a piloto, o que nos causou um mal-estar, mas
entendemos que este mal-estar era necessário para mostrar o quanto ainda pre-
cisamos avançar nas discussões de gênero, seja na escola, na gramática e nos
demais ambientes sociais. É necessário mostrar para que o apagamento não seja
visto como negociação possível, há proposições inegociáveis.
É preciso entendermos, assim como Veiga-Neto, ao tratar das relações
entre Foucault e os Estudos Culturais que: “Os discursos podem ser entendi-
dos como histórias que, encadeadas e enredadas entre si, se complementam,
se completam, se justificam e se impõem a nós como regimes de verdades”
(VEIGA-NETO, 2004, p. 56).
Neste sentido, entendemos que signos são criados a partir de novas pos-
sibilidades de vermos o mundo, o discurso é sempre algo em transformação,
assim também deve ser a gramática, entendemos que o uso de determinadas
palavras apenas no masculino vem de um tempo em que o mundo era feito
pelos homens e para os homens. Sendo assim, palavras como doutora, mestra,
pilota, presidenta, chefa, dentre outras não faziam sentido, pois não represen-
tavam uma realidade, hoje há necessidade de redefinir padrões e isso perpassa
pela ideia de que as profissões são ocupadas por homens e mulheres, que o
gênero já não define mais o espaço social que ocupamos, e que a linguagem, o
discurso, a gramática, assim como a escola, precisam se readequar a esta nova
ordem. Assim como no vídeo: “É hora de redefinir o padrão” e entendemos que
essa redefinição passa por uma educação que valorize a diversidade de ideias e
que entenda que nada é natural, que somos repletos de sentidos e significações.

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Referências

BANNELL, Ralph Ings; DUARTE, Rosália; CARVALHO, Cristina; PISCHETOLA, Magda;


MARAFON, Giovanna; CAMPOS, Gilda Helena B. de. Educação no Século XXI: cog-
nição, tecnologias e aprendizagens. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC,
2016.

BRASIL. Legislação.<Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.


htm>. Acesso em 25 de Julho de 2016.

COSTA, Marisa Vorraber. Sobre as contribuições das análises culturais para a forma-
ção dos professores no início do século XXI. IN: Educar, Editora UFPR: Curitiba, n. 37,
maio/ago. 2010, p. 129-152.

DIAS, Marina Célia Moraes. Metáfora e pensamento: considerações sobre a importân-


cia do jogo na aquisição do conhecimento e implicações para a educação pré-escolar.
In: Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação. Tizuko M. Kishimoto (org.).8 Ed. São
Paulo: Cortez, 2005. p. 45-56.

FERRARI, Anderson. Diferenças, igualdade e formação de identidade no contexto


escolar. IN: Revista Instrumento - Revista de Estudo e Pesquisa em Educação/Colégio
de Aplicação João XXII, Juiz de Fora. v. 2, n. 1, 2000. p. 87-100.

VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: Estudos Culturais


em Educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, cinema...Marisa Vorraber
Costa (org.). 2 ed.Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 37-69.

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RELAÇÕES DE GÊNERO E ESCOLA – PROBLEMATIZAÇÕES


POSSÍVEIS

Nathalye Nallon Machado


Doutoranda em Educação – Universidade Federal de Juiz de Fora
Prefeitura de Juiz de Fora/Secretaria de Educação – Professora e Coordenadora
da Educação Básica
natha_30@hotmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Este texto busca problematizar o papel hegemônico masculino, reproduzido


por um aluno do Ensino Fundamental em uma aula de História ocorrida em
uma escola pública federal. A partir da fala do aluno, foi possível levantar ques-
tões acerca do que é ser homem, do que é ser mulher, considerando o caráter
discursivo dessas construções históricas e culturais, que demonstram formas
de poder bastante consolidadas. Este trabalho também tem como intenção
potencializar o espaço escolar como lugar de pluralidades, por entender que na
escola pode-se atuar na perspectiva de desconstruir preconceitos, estereótipos
de gênero, sexualidade, entre outros.
Palavras-chave: Gênero; escola; História; constituição de sujeitos.

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Pode ser a escola um lugar de problematizações e questionamentos acerca


das desigualdades e injustiças do mundo? Sim, pode! Esta é uma resposta que
pode ser tomada como inspiração para discutir o lugar das relações de gênero
nas escolas. Trabalhando nesse espaço, com questões que dizem da consti-
tuição de sujeitos, sobretudo no papel que as escolas têm nos processos de
subjetivação, é possível dizer que a escola pode realizar esta tarefa, apostando
no seu poder desafiador de pensar e se repensar, colocando sob suspeita as
suas práticas e concepções. e, principalmente, na força de suas possibilidades
e ressignificações.
O fio condutor da análise deste texto surgiu em uma aula de História em
que a professora propôs discutir o lugar da mulher no século XIX. Para isso ela
preparou uma aula em que quatro mulheres seriam trazidas para o conheci-
mento dos alunos. Quatro mulheres que desempenharam papéis distintos, o
que nos aproxima das discussões das teóricas de gênero (Louro, 1997; Scott,
1995) que negam a existência de uma essência feminina, chamando atenção
para o caráter de construção discursiva, histórica e cultural do ser mulher, que
nos impossibilita falar de mulher no singular para assumir esta categoria de
análise no plural. A proposta em si trazia um deslocamento importante para as
relações de gênero e para o campo da História. Comumente nossa história é
contada pelos homens e são eles que estão no centro dela, de maneira que as
mulheres são renegadas ao silêncio e à invisibilidade.
A aula de História proposta ocorreria em uma turma de oitavo ano do
Ensino Fundamental, com alunos e alunas com idade entre 13 e 15 anos. A
professora então elegeu a princesa Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II, as
princesas Isabel e Leopoldina, filhas dos reis e a condessa de Barral, responsá-
vel pela educação das filhas e apresentada pela professora como amante de D.
Pedro II. Feitas essas apresentações, a professora iniciou o trabalho enfatizando
a impossibilidade de falar de um único modelo de mulher no século XIX.
Adotando o repertório didático de apresentar cada uma delas em sepa-
rado, a professora foi fazendo uma biografia de cada uma delas e levantando
as possibilidades que estavam postas para a mulher naquele período histó-
rico. Num dado momento em que fez uma vinculação entre a Princesa Teresa
Cristina, a educação das filhas e a condessa de Barral a professora expres-
sou sua indignação quanto a impossibilidade da mãe educar suas filhas, o que
gerou a necessidade de trazer da Europa uma mulher que seria responsável
por esta função. Querendo demonstrar este descompasso com os dias de hoje

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a professora questionou os alunos e alunas sobre quem era responsável pela


educação deles e delas atualmente, o que um menino respondeu: “minha mãe
me criou e me educou, mas o meu pai me ensinou a viver. Meu pai que me leva
para rua, que me ensina a jogar bola, a pegar mulher. Meu pai que me ensinou
a ser homem”.
É essa frase e o que foi estabelecido em seguida que queremos proble-
matizar no sentido apontado por Marshall, ou seja, dar um passo atrás para
transformar em problema de investigação o que não nos chama atenção,
colocar em investigação nossas formas de pensar e de agir. A perspectiva da
problematização é uma forma de análise foucaultiana, interessada em pensar as
condições de emergência dos discursos e como somos resultados deles. Trazer
esta fala do aluno é assumir que somos seres discursivos e resultados de saberes
e poderes que nos constituem e que dizem de processos educativos.

Gênero, Educação e Sujeitos

A questão trazida pela professora de História para discutir a posição ocu-


pada pelas mulheres no século XIX, muito dizia da desigualdade existente entre
homens e mulheres daquela época. No entanto, ao propor discutir o século XIX
a professora fez uma escolha didática de olhar para o passado a partir do tempo
presente. A ideia da professora era fazer alunos e alunas a pensarem como e
quem é responsável por sua educação hoje em dia, estabelecendo rupturas e
continuidades entre aquele período histórico e o nosso. Ao falar do presente,
o menino traz relações que estão organizando nossas relações de gênero há
muito tempo, que são de outro tempo, que nos aproxima do século XIX: “minha
mãe me criou e me educou, mas o meu pai me ensinou a viver. Meu pai que
me leva para rua, que me ensina a jogar bola, a pegar mulher. Meu pai que me
ensinou a ser homem”.
Por meio desta fala foi possível perceber questões importantes sobre as
maneiras pelas quais alguns adolescentes tem atentado para as formas de ser
homem e mulher, presentes em suas famílias. Neste sentido, acrescentando mais
uma informação sobre esta distribuições de funções e exercício de construção
dos gêneros nas famílias, o mesmo menino acrescenta: “minha irmã ficou em
casa até os 20 anos e o meu irmão saía direto. Meu pai não deixava ela sair e o
meu irmão podia sair a vontade e voltar a hora que queria. Mas eu acho que o
meu pai está certo”. Essas ações dizem da ação educativa dos sujeitos a partir

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dos gêneros. Educação é algo que acontece para além das escolas, de maneira
que outros espaços também são educativos porque nos educam a ser o que
somos. Como nos lembra Guacira Louro (1997), este processo de educação dos
sujeitos vai criando as diferenças entre o que é ser menino e o que é ser menina.
É um processo de fabricação dos sujeitos generificados que é muito sutil e por
isso, muito eficaz, porque diz de uma certa continuidade imperceptível.
A mulher que foi produzida a partir do discurso do adolescente revela
sobre estruturas fortes e rígidas que culturalmente nos mostrou silenciamentos e
desqualificação das mulheres em uma forma eficiente de manutenção do poder
masculino. E como a escola, ao se deparar com um discurso que evidencia essa
estrutura, elabora suas estratégias de ação, considerando que uma de suas fun-
ções é justamente problematizar as formas de exclusão a que muitas minorias
foram submetidas?
Voltemos, pois, à nossa provocação inicial “minha mãe me criou e educou,
meu pai me ensinou a viver” e o quanto ela nos remete para questões relativas
ao público e ao privado, à formas de viver e estar no mundo, de uma maneira
bastante consolidada. As falas do menino não tiveram nenhum contraponto
entre os colegas, nem entre os demais meninos e tampouco das meninas, o que
nos incita supor que muitos dos adolescentes presentes naquela sala também
concorde com o que foi dito. Ou que pelo menos, este não era um pensamento
absolutamente desconhecido deles e delas. Neste sentido, a ação educativa e o
desafio desta aula estão em ultrapassar o diálogo com este aluno em especial e
atingir a todos. Socializar a fala do aluno para a partir dela, saber e colocar em
circulação outras formas de pensamento que possam advir dos demais alunos
e alunas. Assim, essa cena construída na sala é indispensável para questionar
não somente o que ensinamos (e ser capaz de introduzir a história das mulheres
no ensino de História), mas também o modo como ensinamos e que sentidos
nossos alunos e nossas alunas dão ao que dizemos, ao que propomos e ao que
aprendem.
Trazer os demais alunos e alunas para a discussão é fazer com que apa-
reça a diversidade que compõe cada gênero. Há uma concepção fortemente
construída entre os gêneros, algo que constitui uma polarização entre meninos
e meninas que esconde a pluralidade que está entre estes dois pólos. Isso causa
um certo temor em se afastar da forma de masculinidade hegemônica, sob pena
de ser classificado como “diferentes”, o que muitas vezes serve para acionar
discursos de homossexualidades. Assumir a masculinidade hegemônica dá um

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certo poder e orgulho de se afirmar como homem. Não por acaso o menino
fala com segurança, autoridade e utilizando de aspectos discursivos de autori-
dade – “o meu pai me ensinou a viver” – o ser homem se aprende com outro
homem, o que é de conhecimento do senso comum e fornece autoridade ao
ato de ensinar e aprender.
No entanto, existem diferentes possibilidades de ser homem, o que
segundo Robert Connell (1995) constitui as “políticas de masculinidades”. Para
o autor existem narrativas convencionais a respeito de como as masculinidades
são construídas, o que nos leva a pensar por essas narrativas que “toda cultura
tem uma definição da conduta e dos sentimentos apropriados para os homens”
(CONNELL, 1995, p. 190). Os meninos vão “aprendendo” tais condutas e sen-
timentos construídos como domínio da masculinidade hegemônica e assim se
afastando do comportamento das mulheres. Para falar do que ser homem e
do aprendizado com o pai, o menino constrói um tipo de comportamento dos
pais com a irmã, o que ele já incorporou como o “certo” para ação sobre as
mulheres.

Criar, educar e ensinar – palavras em movimento

Ao longo deste texto, as palavras criar, educar e ensinar foram balizando as


problematizações que fizemos. Por meio delas pudemos perceber entendimen-
tos acerca das relações de gênero que fazem parte de uma parcela considerável
de famílias que têm seus filhos e filhas como alunas e alunos nas instituições
que nos são próximas. Tais palavras são parte do discurso e, como seres cons-
tituídos pelo discurso que somos, concordamos com Ferrarri (2011) na seguinte
reflexão:
Dizer que somos constituídos na linguagem significa que vamos
selecionando os termos que tornam as subjetividades legíveis ou
ilegíveis, comemoradas ou silenciadas. Vamos chamando as pes-
soas por nomes. No entanto, a construção desses sujeitos depende
não somente dos nomes que vamos chamando, mas também
daqueles que nunca nomeamos. (FERRARI, 2011, p.103).

Pai, mãe, irmão e irmã são os sujeitos nomeados que nos são apresen-
tados no texto a que nos propusemos discutir. Por meio da fala do jovem
pertencente àquela família e ao nosso contexto escolar, foi possível perceber

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marcas profundas de divisão entre os gêneros, classificadas por verbos que


muito nos permite pensar. Criar, educar, ensinar: são palavras em movimento
que dizem de lugares específicos e muito definidos no contexto ocorrido na
aula de História. Criar, educar e ensinar são distribuídos entre o que cabe ao
homem como pai e o que cabe a mulher como mãe. Não por acaso o menino
revela: “minha mãe me criou e me educou, meu pai me ensinou a vive. Meu pai
que me leva para rua, que me ensina a jogar bola, a pegar mulher”. Parece que
a função do pai de ensinar está no que se refere a “ser homem”, demonstrando
um entendimento de construção de gênero que se realiza no interior do gênero,
mas também entre eles.
Dizer que há uma relação de gênero significa que estamos falando de
uma relação que constitui sujeitos masculinos e femininos, tanto em “oposi-
ção” quanto em relação horizontal. Ao mesmo tempo em que o pai “ensinou a
viver”, a mãe “criou e educou”. São atividades complementares que juntas for-
mam o que é ser homem, neste encontro entre o que é própria da mãe e do pai.
Ensinar a viver pode remeter a se constituir no mundo como homem, visto que
a frase seguinte serve como desdobramento do que é entendido como viver:
“me leva para rua, que me ensina a jogar bola, a pegar mulher”. Quais são as
subjetividades que estão sendo comemoradas e quais estão sendo silenciadas?
Sendo a escola um espaço plural de convivência, aprendizagem e conflitos,
como potencializar o olhar das estudantes e dos estudantes para desnaturalizar
a tríade criar, educar e ensinar como atribuições femininas? Não há um caminho
seguro a ser percorrido, principalmente porque estamos tratando de relações de
poder há muito sedimentadas e reconhecidamente eficazes na manutenção de
hierarquias. As resistências que foram e são construídas na tentativa de romper
com a hegemonia masculina, nos aponta para a insistente demarcação desigual
entre homens e mulheres.
Pensamos que a escola é um lugar privilegiado para trazer à tona este
debate e concordamos com Guacira Lopes Louro (2014) quando ela diz:
A ambição pode “apenas” subverter os arranjos tradicionais de
gênero na sala de aula: inventando formas novas de dividir os gru-
pos para os jogos ou para os trabalhos; promovendo discussões
sobre as representações encontradas nos livros didáticos ou nos
jornais, revistas e filmes consumidos pelas/os estudantes; produ-
zindo novos textos, não sexistas e não racistas; investigando novos
grupos e os sujeitos ausentes nos relatos da História oficial, nos

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textos literários, nos “modelos” familiares; acolhendo no interior da


sala de aula as culturas juvenis, especialmente em suas construções
sobre gênero, sexualidade, etnia, etc. Aparentemente circunscritas
ou limitadas a práticas escolares particulares, essas ações podem
contribuir para perturbar certezas, para ensinar a crítica e a auto-
crítica (um dos legados mais significativos do feminismo), para
desalojar as hierarquias. (LOURO, 2014, p. 128).

Para encerrar queremos destacar que a escola é um lugar em que estas


questões podem ser problematizadas, apostando em novas possibilidades de
ser e de estar no mundo como homens e como mulheres, sobretudo nas rela-
ções estabelecidas entre eles.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

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A PRODUÇÃO DE RESISTÊNCIAS POR ALUNOS GAYS


NO CONTEXTO DA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO

Jaime Peixoto
Mestre em Educação – FAE/UFMG
jaimepeixotoufmg@gmail.com

GT 04 -
Travestilidades, Transexualidades, Lesbianidades e Homosexualidades:
Transgressões e Resistências.

Resumo

O referido trabalho, fruto de uma pesquisa de Mestrado em Educação, tem


por objetivo investigar as formas pelas quais alunos gays do ensino médio pro-
duzem resistências e/ou enfrentamentos às práticas comumente nomeadas
como homofóbicas no espaço escolar. Partindo de um referencial bibliográfico
que discute o tema Homofobia e Sexualidade na escola, problematizamos a
recorrente evidenciação desses sujeitos (alunos gays) como vítimas do precon-
ceito, despotencializados diante de situações de discriminação. Partindo da já
constatada realidade de que jovens gays são vítimas de homofobia nas esco-
las, buscou-se nesta pesquisa, evidenciar o outro lado da questão, a saber, as
resistências que eles produzem dentro das relações de força existentes no meio
escolar. Priorizou-se, assim, o alargamento do horizonte analítico, lançando luz
sobre uma lacuna existente nesse campo de estudo, ou seja, dos modos pelos
quais os sujeitos empreendem movimentos de resistências que objetivam a
vivência das ditas sexualidades transgressoras.
Palavras-chave: Resistência, homofobia, alunos gays, ensino médio.

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Introdução

É recorrente na literatura especializada expressões como “sujeitos abjetos”,


“desumanos”, “sem voz”, “inferiorizados”, “reprimidos”, entre outras adjeti-
vações que, denunciam uma realidade que está posta, mas, por outro lado,
reforçam a ideia de que tais alunos possuem pouco ou nenhuma capacidade de
empoderamento (LIONÇO E DINIZ, 2009; FONTES, 2009; BORGES E MEYER,
2008; GALÀN, 2009; LANASPA, 2009; PEREIRA E LEAL, 2002, FERRARI, 2011,
2008).
O convite que faço é o de pensarmos outras possibilidades. Pois como
nos desafia Judith Halberstam (2012) não deveríamos buscar romper – eu diria
superar- certas narrativas que tendem a alocar o sujeito homossexual como
“eterna vítima”? Onde estão aqueles sujeitos que, mesmo sofrendo com o
baque do “choque” entre os discursos concorrentes sobre sexualidade, conse-
guem produzir resistências, acarretando em efeitos para o meio escolar? Invés
de somente pensarmos como a escola “desmantela” o jovem gay enquanto
sujeito possuidor de uma subjetividade legítima, que tal pensarmos, em contra-
partida, em como tais alunos homossexuais “desmantelam” o espaço escolar?

A Produção de Resistências no contexto da Pesquisa

. Estratégia 1: o uso das “armas do inimigo”


Um primeiro movimento identificado como uma estratégia que visa resis-
tir às situações de discriminação foi nomeado por mim de “o uso das armas do
inimigo”. O que isto, de fato, significa? Bem, ao discorrer sobre isto estou, na
verdade, evidenciando a capacidade que alguns dos jovens entrevistados mos-
traram de reverter o preconceito contra o agressor, muitas vezes, fazendo um
uso positivado de discursos e práticas tidas como pejorativas, como nos mostra
Anderson Ferrari (2011) quando comenta que
O discurso considerado homofóbico atua para menosprezar o
sujeito que dele é alvo, porém, ele também pode ser entendido e
utilizado de outra forma, abrindo uma nova possibilidade. Ao ser
chamado por um nome se oferece à pessoa certa possibilidade de
existência e resistência. (FERRARI, 2011, p. 76).

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A possiblidade de resistir, partindo da utilização desses discursos abre


um novo campo de análise. Diferente do que, geralmente, tem sido descrito
em algumas pesquisas, foi possível observar que os jovens entrevistados não
se contentaram com o status que lhes foi atribuído de meras vítimas do pre-
conceito. Pois, como nos disse um dos entrevistados “não é porque você é gay
que você vai se deixar desmoralizar” (Sujeito 8). Neste respeito, foi possível
identificar nos relatos dos jovens participantes uma série de situações onde a
resistência tomou forma através de um uso ressignificado de discursos e práticas
deslegitimadoras. Vejamos a seguinte situação relatada por Lucas
“... um menino lá do fundão gritou: “essa coca é Fanta”. Eu vol-
tei, olhei para o fundo e disse: “é eu sou Fanta mesmo”. Daí todo
mundo ficou de pé e me aplaudiram. Por mais que eu fosse assu-
mido, nem todos tinham contato comigo, eles achavam que eu
tinha medo. Depois disso um monte de gente de outras salas veio
me dar os parabéns por falar tão abertamente da minha sexuali-
dade”. (Sujeito 1).

Do relato acima, podemos extrair alguns pontos para consideração.


Primeiro, fazer uso dessa estratégia pressupõe uma relação direta com a ideia
do “assumir-se”. Isso porque, ao que parece, “assumir-se”, ou seja, essa auto
positivação que se evidencia através da afirmação do comportamento homos-
sexual, constitui-se na condição primeira, possibilitando que o “uso das armas
do inimigo” tenha eficiência. Acionar tal estratégia pressupõe uma relação
confortável com a própria sexualidade, de modo que, diante de situações de
discriminação, invés do discurso pejorativo causar constrangimento ao jovem
gay, será utilizado por este como contra-ataque, visando despotencializá-lo nas
suas bases.
Segundo, tal estratégia contribui para o rompimento com a ideia de que,
nas relações de poder envolvendo a sexualidade na escola, tais jovens estariam
em situação de desvantagem, sendo vistos, muitas vezes, como incapazes de
produzir mudanças nesta realidade. No entanto, quando o jovem gay, ao ser
afrontado, adentra na lógica do agressor e a subverte, na sua essência, na sua
base, ele está mostrando a quem interessar que, podem ser igualmente produ-
tores de movimentos ativos dentro das relações de força.

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Estratégia 2: o “ignorar”
Das estratégias identificadas nos relatos dos jovens pesquisados, houve
uma que foi mais recorrente entre os participantes. Esta se refere a capacidade
de “ignorar” as chacotas, piadas e “brincadeiras” de cunho pejorativo, como
vemos nos seguintes relatos: “eu ignorava sempre” (Sujeito 5), “eu realmente
não ligava, eu ria na cada deles e dizia: é só isso?” (Sujeito 1), “eu não ligo pra
ideia contrárias, não me importo” (Sujeito 5), “não ligar para quem tenta te atin-
gir, para o que os outros pensam” (Sujeito 6).
Diante de uma situação de discriminação, parece que os jovens desen-
volveram a habilidade de se recusar a dar validade ao discurso do agressor,
desconsiderando-o, fazendo pouco caso dele, demonstrando que o discurso
proferido tem pouco ou nenhum efeito sobre a forma como eles se veem e
vivenciam a sua sexualidade, como nos relatou Lucas
“Quando eles me confrontavam eu não recuava. Eu ria na cara
deles e dizia: é só isso? Tá, agora deixa eu ir aqui cuidar da minha
vida”. (Sujeito 1).

Essa espécie de blindagem subjetiva pressupõe o entendimento, por parte


do jovem gay, de que sua sexualidade não se configura numa existência ile-
gítima. Além disso, considera o discurso do agressor aviltante. Defendem-se
caracterizando o agressor como ignorante, ultrapassado, etc., na tentativa de
interditar seus efeitos denegridores. Observemos o que os entrevistados comen-
taram sobre isso
“Eu achava a melhor forma de me defender. Tipo a pessoa me
jogava uma piada, uma “chacota”, eu apenas fingia que não era
comigo ou, então, não dava a mínima bola. Na maioria dos casos
a pessoa se tocava que as piadas não estavam funcionando mais”.
(Sujeito 5).

E também,
“O fato de uma pessoa ser ignorante significa que ela está fechada
para os conhecimentos. Quando uma pessoas ignorante me dis-
crimina eu desprezo. Mostro que, diferente dela, sou uma pessoa
evoluída, desapegada de idiotice e independente. Não me deixo
levar por qualquer devaneio de uma pessoa Neandertal mental-
mente”. (Sujeito 7).

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Vemos nos relatos acima uma evidente disposição em não dar ao discurso
agressor demasiada atenção ou importância. Assim, a decisão tomada pelos
jovens foi a de desconsiderá-lo, não porque não cause incômodo, mas, porque
parecem ter assimilado a ideia de que, na realidade, são tais comportamentos
agressores e discriminatórios que deslegitimam os sujeitos que dele fazem uso.
Ocorre, assim, um deslocamento no jogo de forças vigente, já que tais jovens,
por fazerem frente às hostilidades que lhe são direcionadas, acabam por recon-
figurar o lugar da abjeção. Esta, agora, na lógica aqui analisada, representaria
o agressor que sustenta e faz circular um discurso “ignorante”, “atrasado”, “não
evoluído” e, não mais o comportamento homossexual.
Com isso, concluo dizendo que, evidenciar os movimentos de resistências
no contexto da escola de ensino médio, referente às vivências das ditas sexua-
lidades dissidentes, faz-se imprescindível, não só para nos ajudar a pensar em
formas de se alterar as relações de poder na escola, nos possibilitando questio-
nar conceitos e a forma como nos relacionamos com eles, mas, principalmente,
nos ajudando a construir uma nova imagem desses jovens, como sujeitos empo-
derados, nos ajudando a pensar em novas descontinuidades nesse debate.

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DISCUTINDO GÊNERO E BRINCADEIRAS NA INFÂNCIA:


A INFLUÊNCIA DOS BRINQUEDOS NA VIDA DAS CRIANÇAS.

Alexandra Sudário Galvão Queiroz


Especialista em Educação Infantil-UFMT
LaPEADE-GESEI/UFRJ
profalexandraqueiroz@gmail.com

Maicon Salvino de Almeida


Graduado em Pedagogia-UFRJ
LaPEADE-GESEI/UFRJ
Maiconsalviano@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar os brinquedos e as brincadeiras infantis


sob a ótica do estudo de gênero, e também fazer um levantamento de autores
e matérias de jornais a fim de problematizar o porquê de o menino brincar de
carrinho e a menina brincar de boneca. O que está por trás desta aparente
inocente brincadeira? Percebemos a partir de imagens, análise de matérias de
jornais e revisão bibliográfica, que existem papéis sociais interagindo através
dos brinquedos e das brincadeiras para as crianças.
Palavras-chave: Gênero, Infância, Brinquedo, Brincadeira, Preconceito.

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Introdução

A proposta deste artigo é trazer para a discussão temas que atravessam


categorias como a infância, brinquedo e gênero, a partir de dois recortes de
reportagens atuais de brinquedos destinados às crianças, oriundas de duas geo-
grafias distintas, a saber:  do Brasil (Estado do Maranhão) e da Suécia. Este texto
ocupar-se-á em analisar criticamente as imagens produzidas nesses espaços
geográficos,  
Apresentaremos as reportagens e discussão sobre os possíveis preconcei-
tos advindos de brinquedos ditos para meninos e meninas.
Autores como Kamii (1981), Piaget (1932) e Vygotsky(1982) concordam
que o brinquedo e a brincadeira concorrem para desenvolvimento infantil, afir-
mam que experiência vivencial das aprendizagens da criança acontece quando
ela brinca.
Partindo do princípio que para se tornar adulto o ser humano precisa pas-
sar por uma fase anterior, e que essa etapa é construída de modo diferente nas
culturas, a historiografia da infância, contada por Philippe Ariés, em sua obra
História Social da Criança e da Família (1981) nos traz elementos para pensar-
mos como foi construído o conceito de infância.
Carvalho & Silva (2004) nos fala que os séculos XV e XVI são marca-
dos pelo surgimento da Idade Moderna, transformando a vida feudal.  Temos
o nascimento do comércio e as viagens além-mar, que resultaram na colo-
nização americana.   Berman (1986) coloca a primeira fase da modernidade,
entre os séculos XVI e XVIII, marcada pela idade de que algo está mudando,
acontecendo.  As modificações ocorrentes no campo da filosofia e da ciência
também contribuíram para um pensamento que foi de encontro às concepções
medievais.
Em se falando nas modificações, nos deparamos com muitas diferenças,
preconceitos no olhar, gestos, atitudes e maneiras de falar em relação às brinca-
deiras das crianças como mostra a reportagem do G1 - MA(2016):
Movimento feminista no MA diz que a lista de material escolar
é sexista.   Lista pede ferramentas para meninos e Kit cabelo e
cozinha para meninas.  Escola diz que aquisição é opcional e não
reflete preconceito.

Em matéria ao Jornal G1, o movimento é apresentado.

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O movimento feminista maranhense “Coletivo Fridas” divulgou,


por meio de postagem na página do grupo no Facebook, nesta
segunda-feira (11), para meninos uma nota de repúdio contra o
colégio “O Bom Pastor”, em São Luís. Segundo o grupo, a escola
particular pediu, como material opcional de apoio pedagógico e
lúdico, um “kit de ferramentas (médico ou bombeiro)” para meni-
nos e um “kit cozinha ou cabelereiro” para meninas. De acordo
com a nota, o pedido da escola estaria reforçando e naturali-
zando o machismo e o sexismo. “Dessa forma, essas meninas são
ensinadas que seu papel na sociedade é estar em casa, calada e
obediente. A elas, não são dadas a oportunidade de sonhar com
um carrinho, super heróis ou brinquedos que trabalhem o desen-
volvimento psicossocial da criança”, diz o texto”. Para o coletivo,
o movimento “reforça a lógica do patriarcado machista, que tem
como consequências a misoginia e a violência à mulher”. “Meninas
podem sim brincar de carrinho, usar azul, serem médicas ou bom-
beiras. Por uma sociedade menos sexista!”. Resposta da escola:
O colégio “O Bom Pastor” também usou sua página oficial no
Facebook para responder à nota. No texto, a escola afirma que
os pedidos estão de acordo com os “preceitos dos Parâmetros
Curriculares Nacionais” e os “objetivos educacionais propostos
pela própria LDB 9394/96 (Lei de Diretrizes de Base da Educação)”.
A assessoria da escola explica que a lista não “reflete preconceito
numa exteriorização de brincadeiras exclusivas para meninas ou
meninos” porque a prática, em sala de aula, ocorre em “perspec-
tiva de interação e envolvimento de todos os alunos, independente
de sexo ou gênero”. A escola também afirma que o pedido foi feito
para que os materiais didáticos fossem dispostos “em quantidades
equilibradas, de modo a permitir a variedade necessária” e que
a aquisição é “opcional.”(G1- MA, 2016). Fonte:http://g1.globo.
com/ma/maranhao/noticia/2016/01/movimento-feminista-divul-
ga-repudio-escola-por-lista-de-materiais-no-ma.html Retirada da
Web11/01/2016 21h38 - Atualizado em 11/01/2016 22h04.

Percebermos com a contra resposta da Escola Bom Pastor, que eles não
têm clareza do fato ocorrido.  Para a escola é normal os pedidos dos brinquedos,
quando fala “...que os materiais fossem dispostos em quantidades equilibradas,
de modo a permitir a variedade necessária...”
Sendo a escola um ambiente de interação com diferentes culturas, faz-se
necessário uma reflexão sobre o ocorrido, visto que abordamos a instituição
escolar no período da pós-modernidade.

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Ao cruzarmos as análises bibliográficas com as matérias de jornais, perce-


bemos que a escola necessita possuir em seu Projeto Político-Pedagógico e em
sua prática as seguintes questões como norteadoras:
• “A escola precisará fazer uma formação atualizada sobre as mudanças
de gênero, tanto os funcionários, quanto os professores?”
• “A escola precisará ser atualizada, mas todos querem mudanças?”
• “Como oferecer ajuda a essas escolas e outras, sendo que muitas
vezes se escondem, nas suas subjetividades para não oficializar o
preconceito?”
Mostraremos reportagens que são opostas ao machismo e sexismo, só que
não são do Brasil. Campanha de brinquedo sem preconceito no G1-SP(2012).
Em seguida, a reportagem dos catálogos da loja de brinquedo na Suécia,
Jornal o Globo:
Sem preconceito: menino brinca de boneca em catálogo de brin-
quedos Atitude da loja sueca Top Toy visa promover a igualdade
entre os gêneros.

Figura 1 - Catálogo de brinquedos da loja sueca Top Toy

Fonte:http://oglobo.globo.com/cultura/megazine/sem-preconceito-menino-brinca-de-boneca-em-
catalogo-de-brinquedos-6951923.Retirado da web: O Globo,06/12/2011 5:46 Atualizado 06/12/2012
16:13.

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Quando diante desta imagem, paramos e nos perguntamos: é isso


mesmo?  Sim, um menino brincando de escovar o cabelo da menina, “a troca
de papeis”, diante de uma sociedade machista. As crianças estão felizes brin-
cando, sabemos que é um catálogo de brinquedo, mas a realidade das crianças
quando brincam é essa, o importante é a brincadeira, não o pensamento dos
adultos com preconceito.
Essa imagem é de um catálogo de uma loja de brinquedo sueca, lá a
cultura é diferente em relação ao preconceito das pessoas, mas não podemos
afirmar como é o costume delas fora da mídia.Como os adultos interferem nas
brincadeiras e nas escolhas dos brinquedos das crianças e como podemos fazer
para ajudá-las a terem seus momentos criativos e “livres”?
Abaixo a reportagem do G1- SP (2012) sobre o catalogo de brinquedos:
RIO - Quem disse que menino não brinca de boneca? A fim de
se livrar do preconceito, a Top Toy, maior loja de brinquedos da
Suécia, dona da franquia “Toys R Us” no país, colocou em seu
catálogo de brinquedos fotos de meninos brincando com bone-
cas e utensílios domésticos. Numa das imagens, um garoto aparece
usando um secador de cabelos e outros objetos que podem ser
encontrados em um salão de cabeleireiro para brincar com uma
amiga. Em outras fotos, os meninos brincam com ferro de pas-
sar roupas, aspirador de pó e também uma boneca. Há também
imagens que mostram meninas se divertindo com uma pista de car-
rinhos de brinquedo e uma pistola d’água. Em uma nota publicada
no jornal britânico “Daily Mail”, a empresa afirma que brinquedos
são feitos para crianças, sem distinção de sexo. “Por muitos anos,
nós acompanhamos o debate sobre os gêneros crescer no mercado
sueco e tivemos que nos ajustar. Com esse novo pensamento, não
há nada que seja certo ou errado. Não é um brinquedo de menino
ou menina, é um brinquedo para crianças”, diz o texto da loja. A
atitude da Top Toy faz parte de uma campanha mais ampla, pro-
movida pelo governo da Suécia, para acabar com discriminação
sexual no país. Mas a ação deu o maior trabalho. Foi necessário
apagar digitalmente as imagens das meninas nas fotografias e inse-
rir meninos no lugar, e vice-versa. O “treinamento” foi dado à loja
de brinquedos por meio de uma agência autorreguladora de publi-
cidade, semelhante à brasileira Conar, que orienta que os anúncios
sejam feitos para “um gênero neutro”. No passado, a rede de lojas
havia sido repreendida pela agência reguladora por ter divulgado

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um anúncio no qual uma menina aparecia vestida de princesa e um


menino, de super-herói (Jornal o Globo,2012).

Atenção para a imagem:

Figura 2 - Catálogo de brinquedos da loja sueca Top Toy

Fonte:http://oglobo.globo.com/cultura/megazine/sem-preconceito-menino-brinca-de-boneca-em-
catalogo-de-brinquedos-6951923.Retirado da web: O Globo,06/12/2011 5:46 Atualizado 06/12/2012
16:13.

Menina brincando de carrinho, catálogo de uma loja de brinquedo na


Suécia, na mídia parece que é comum, mas será que lá na sociedade sueca é
assim, também?
Aqui no Brasil, não temos costume de visualizar imagens de meninas brin-
cando de carrinhos e sabemos que não é uma brincadeira comum na nossa
cultura.
Em se tratando de nosso país, sabemos que o preconceito nas brincadeiras
e nas falas dos adultos é muito grande, mas as pessoas acham que estão “cer-
tas”.  Isso nos remete a lembrança de como é tratada a questão familiar.  Como
muitas reflexões e tentativas de mudanças de visão de alguns professores e
tendo a mídia a favor, mesmo assim o processo de desconstrução do precon-
ceito ainda está lento.
Então, como mudar a visão das pessoas para melhorar a convivência entre
elas?  
 

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Figura 3 - Catálogo de brinquedos da loja sueca Top Toy

Fonte:http://oglobo.globo.com/cultura/megazine/sem-preconceito-menino-brinca-de-boneca-em-
catalogo-de-brinquedos-6951923.Retirado da web: O Globo,06/12/2011 5:46 Atualizado 06/12/2012
16:13.

Estamos vendo um menino e uma menina brincando com uma


boneca.  Eles estão felizes e sem achar “estranho”.  Muitas pessoas relatam que
meninos brincam com bonecas, tende no futuro serem ótimos pais, afetuosos
e dedicados.
A brincadeira para criança pode tratar questões de preconceitos, bullying,
assédio, agressões, violência, enfim, precisamos ter um olhar diferenciado para
não deixar a criança traumatizada e sem criar suas brincadeiras e usá-las praze-
rosamente. Como podemos começar a desconstrução do preconceito sem
prejudicar a brincadeira das crianças?
Já mostramos neste artigo um comentário sobre uma lista de material e
depois duas propagandas de brinquedos sem preconceito, mas será que todo
mundo acha normal?  
Deparamo-nos com as diferenças da lista de material e a discriminação,
quanto ao brinquedo de menino e brinquedo de menina.
Nas reportagens de uma loja específica, deduzimos que não há discrimi-
nação, porém quantas lojas há no mundo e por enquanto, só esta se manifesta
diferente? 
Ainda falta muito para que as pessoas do planeta tomem consciência que
brinquedo não tem gênero e o imaginário da criança não tem diferença nestas
questões.
Uma criança está muito distante de um adulto para saber se será ou não
homossexual, existem outras questões das quais não é nosso objetivo retratar agora.

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Considerações finais

Percebemos que demorou alguns séculos para que se notabilizassem as


mudanças de imagem da criança vista como um mini adulto. Elas precisam
interagir com suas brincadeiras para começarem a construir suas identidades,
sua consciência em relação às diferenças e o respeito à inclusão na interação
com o grupo que convivem.
Na infância moderna segundo Kuhlmann Jr (1998), independente de dife-
rentes classes e grupos sociais que vivem as crianças, é possível reconhecer
atributos e manifestações típicas do seu mundo. Na interação com o outro, as
crianças brincam e seus brinquedos não tem gênero, podendo ser de menino e
ou de menina.
Por isso a escola, os professores e demais funcionários precisam contribuir
para a desconstrução de (pré) conceitos como o que menino deve brincar só
com carros e bolas e meninas com bonecas.
 As práticas pedagógicas dos professores devem estar permeadas de situ-
ações contra o preconceito, no dia a dia dos alunos, em relação às diferenças
de gênero, ao racismo.
No universo infantil,  as relações do significado e as práticas educativas
sobre gênero, mostram muitas maneiras de ser menina e ser menino sem cate-
gorizá-los, possibilitando a interação com novas descobertas.
A escola tem um papel importante na vida das crianças e seus familia-
res, e se a partir dela for possível iniciar as mudanças de atitudes em relação
aos brinquedos e brincadeiras e campanhas de conscientização, com certeza
influenciará os pensamentos dos adultos, porém, sabemos que tudo tem seu
tempo.
Modos e costumes que vêm de séculos e séculos não mudam de um dia
para o outro, por isso, pensamos que o lugar de início de mudanças pode ser
a escola.  Nela pode-se principiar uma nova cultura, desde que toda a equipe
tenha consciência das mudanças e estar aberta a elas, caso contrário não
acontecerá.
Partindo para mudança, a escola em suas reuniões de pais e textos infor-
mativos, podem fazer reflexões do tipo: como vocês (pais) interferem na escolha
das brincadeiras e brinquedos de seus filhos, sem afetar sua autonomia? 
Quando um adulto dá palpite nos brinquedos e vem com aquela frase
pronta “esse é de menina e esse é de menino”, a criança se depara com o

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universo dual e machista, onde a criatividade e o faz de conta limita-se ao seu


papel social, determinado pelo seu sexo. Quando o adulto interfere e limita o
faz de conta da criança, a brincadeira acaba tolhida e lhe é determinada uma
regra: o que não é do seu sexo você não pode brincar.  
Será que essas crianças estão construindo sua autonomia?
A criança deve ter liberdade de escolha, possibilidade de trocar ideias
com outras crianças para assim, compreender e participar do seu ambiente de
brincadeiras sem preconceito. Consideramos que os brinquedos e as brinca-
deiras são importantes espaços para a construção do gênero, principalmente
quando se dá sem a interferência do ambiente familiar, pois, às vezes, esta
interferência cria estereótipos.
A cultura lúdica feminina e masculina estão ligadas a um processo de
preconceitos que se referem aos brinquedos, restringindo menina com casa e
ambiente familiar e o menino a luta e carrinho.
Supomos que a partir da construção da autonomia, a criança que tem
troca de ideias, livre escolha de suas brincadeiras e brinquedos, diálogo com
adultos e convivência num ambiente de cooperação, terá menos dificuldades
de questionar o que é certo ou errado e terá muitas possibilidades de des-
construir o preconceito imposto e dito pela sociedade brasileira, que tem forte
influência patriarcal e machista.
Desta forma, pensamos que o primeiro passo para a mudança de des-
construção do preconceito em relação às crianças seja a afirmação de todos a
sua volta, de que brinquedo não tem gênero, e que as crianças podem escolher
seus brinquedos com autonomia.

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Referências bibliográficas

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BERMAN,M.  Tudo que é sólido desmancha no ar:  A aventura da Modernidade.  Sã


o  Paulo:  Campanhia das Letras, 1986.

CARVALHO, C. H.: SILVA, M. P. Infância e Modernidade: redimensionando o ser


criança.  Cadernos da FUCAMP, Monte Carmelo _ MG, v.3, 2004.

FINCO, Daniela. Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na


educação infantil. In: Pro-posições. Campinas: v.14, n.3 (42), set./dez. 2003. p.89-101.

G1-MA22h04..http://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2016/01/movimento-
feminista-divulga-repudio-escola-por-lista-de-materiais-no-ma.html Retirada da
Web: 11/01/2016 21h38 - Atualizado em 11/01/2016

KAMII,Constance.   Aritmética: Novas Perspectivas - Implicações da teoria de


Piaget.  Campinas, Papirus,1977.

KUHLMANN JÙNIOR, Moysés.   Instituições Pré-Escolares Assistencialistas no


Brasil(1899-1922). São Paulo:  Caderno de Pesquisa,1971.

O Globo Jornal.http:oglobo.globo.com/cultura/megazine/sem-preconceito-
menino-  brinca-de-boneca-em-catalogo-de-brinquedos-6951923 Retirado da web:
O Globo,06/12/2011 5:46 Atualizado 06/12/2012 16:13.

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“QUANDO FOMOS ENTREGAR O SABONETE DE CARRINHO,


ELE NÃO QUIS. COMEÇOU A CHORAR, CHORAR E
APORRINHAR PORQUE QUERIA O SABONETE DE
CORAÇÃO”: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE EM
UMA DISCIPLINA DE MESTRADO ACADÊMICO

Beatriz Rodrigues Lino dos Santos


Pedagoga, Mestranda do Programa de Educação Científica e
Formação de Professores da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
Campus de Jequié (UESB)
pedagoga.beatriz@gmail.com

Marcos Lopes de Souza


Doutor em Educação, Professor Titular da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia
markuslopessouza@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Esta pesquisa analisa os discursos sobre gênero e sexualidade de algumas dis-


centes de um curso de mestrado na área de ensino de ciências e matemática
de uma universidade estadual baiana. A produção de dados foi realizada em
um encontro de uma disciplina do referido mestrado em que se discutiu sobre
diversidade de gênero e sexual e educação. As cenas trazidas pelas mestrandas
apontam o quanto os processos de normatização e normalização dos gêneros
e das sexualidades insistem em padronizar as/os estudantes, porém percebe-se
também que alguns/algumas desses/as discentes escapam desse lugar, borram
as fronteiras e também desestabilizam a comunidade escolar, especialmente,
as/os docentes e a equipe gestora.
Palavras-chave: Mestrado; experiências escolares; gênero e sexualidade.

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Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar cenas das experiências


formativas sobre as temáticas de gênero e sexualidade apresentadas por algu-
mas discentes em uma disciplina de um curso de mestrado na área de ensino
de Ciências e Matemática de uma Universidade Estadual do interior da Bahia.
A referida disciplina intitulada “Educação Científica, Cultura e Sociedade” tem
uma carga horária de 60 horas e foi oferecida no primeiro semestre de 2016
para os/as estudantes ingressantes e é ministrada por dois docentes (uma pro-
fessora e um professor) que pesquisam sobre as questões das diferenças e a
educação.
O propósito principal deste componente curricular é “discutir o processo
educativo frente aos desafios socioculturais, enfatizando questões relacionadas
à exclusão e a diversidade, buscando uma educação voltada para a humaniza-
ção, dialogicidade, emancipação dos/as sujeitos/as de forma autônoma”, como
consta na ementa da disciplina.
Nas falas da professora e do professor da referida disciplina, uma das
intencionalidades não é somente dialogar sobre os referenciais que discutem
sobre as diferenças, mas, mais do que isso, é desestabilizar as verdades que
trazemos sobre a ideia do normal e anormal, daqueles/as que estão no centro e
das/os que são continuamente empurrados/as para as margens.
Diante disso, neste texto, trago algumas questões que foram suscitadas
durante uma aula da referida disciplina em que se trabalhou com a temática
“Educação, diversidade de gênero e sexual”. Nesta aula realizou-se um semi-
nário sobre o tema tendo como interlocutoras, a autora deste artigo e mais
três colegas da turma. O encontro iniciou com problematizações com base
em algumas palavras-chave como: “sexualidade, gênero, heteronormatividade,
homofobia, sexo”. Foi solicitada à turma que debatesse sobre tais questões.
Após esse momento a equipe utilizou alguns slides com fragmentos do texto
de Louro (2011) para problematizar e discutir os conceitos. Dando continuidade
à programação, realizou-se uma dinâmica para questionar as normatizações
impostas para o feminino e o masculino em nossa sociedade. Em seguida,
exibiu-se e debateu-se o curta-metragem “Vestido novo” (2007) tendo como
roteirista e diretor o espanhol Sergi Pérez. E, por fim, o professor da disciplina
relatou sobre como se sentiu posto à margem no contexto religioso, na família,
na escola e na Universidade, por assumir-se enquanto gay.

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Nesse trabalho buscarei analisar os discursos produzidos em situações


relatadas por três mestrandas que atuam na escola básica; duas como coor-
denadoras e uma como professora e que mediaram o seminário junto comigo.
Ressalto que os depoimentos das professoras foram gravados em áudio e
transcritos. Neste artigo, utilizarei nomes fictícios para me referir às profes-
soras. Saliento também que a análise feita neste trabalho está amparada em
uma perspectiva pós-crítica, assim, tentarei perceber e questionar os regimes
de verdades presentes nos discursos sobre gênero e sexualidade das mestran-
das, trabalhando, portanto, com a incerteza, a ambiguidade e provisoriedade
(MEYER; SOARES, 2014). Para a análise das cenas, relatarei cada uma delas por
vez, seguida das discussões.

1ª Cena

No momento em que estávamos discutindo como a cultura interfere nas


relações pessoais e sociais houve um relato sobre as questões de gênero da mes-
tranda Juliana que atuava como coordenadora de uma escola da rede privada:
Havia uma criança que estudava pela primeira vez na escola no 4º
ano. Geralmente, a escola distribuía folhas de fichário para as ati-
vidades que eram produzidas na sala de aula e esse aluno recebeu
uma folha de fichário cor de rosa, porque era distribuído aleato-
riamente. Depois de uns dois dias, a mãe da criança procurou
a coordenação da escola queixando-se, que não havia gostado
pelo fato do filho ter recebido a folha de fichário cor de rosa,
que a escola deveria trocar as folhas de fichário, que a escola
trocasse, porque o filho dela não poderia receber folhas cor de
rosa. A coordenação da escola explicou que as folhas eram entre-
gues aleatoriamente, que não havia critérios para entrega e que não
achava que poderia prejudicar a criança. A mãe, muito nervosa,
disse que o seu filho era filho de militar, que jamais o menino
poderia receber nada na cor rosa, nem em folha de fichário e
que se isso fosse acontecer novamente que ela queria conversar
com a direção se não conseguisse resolver. A coordenação disse
que ela poderia procurar a direção naquele mesmo momento, que
a posição da escola permaneceria a mesma, que nunca se houve
problemas nesse sentindo, mas que se isso era importante para ela,
a partir daquele momento a escola teria cuidado ao entregar as
atividades para o menino. A partir daí foi um estresse total na

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escola, porque teve que avisar a todos os professores, a mecano-


grafia teria que ter cuidado com as cores da atividade, se tivesse
impresso a atividade em vermelho e por fim saísse rosado, teria que
ter cuidado para o aluno não receber; a escola toda, praticamente
ficava mobilizada para o rosa não chegar até as mãos do menino; a
blusa da jornada esportiva da equipe que a criança ia participar era
rosa, mas a coordenação teve que mudar a criança de equipe para
a blusa não ser cor de rosa, para não ter problemas maiores com a
família, dentre outros fatores (...) O menino era muito calado, não
se expressava em relação ao assunto, certamente envergonhado.
A criança em si, também tinha esse cuidado, quando a professora
ia distribuir as folhas de fichário, ele falava bem baixinho: “Pró, o
meu não pode ser rosa”. Mas, na época eu nunca percebi que
deveria chamar a criança para conversar sobre o assunto e preferiu
ter cuidado e evitasse que a cor de rosa chegasse a casa da mãe,
para não constranger a criança. Enfim, era um menino que não fre-
quentava muito as atividades da escola (Juliana, grifos meus).

Nesse primeiro momento, percebemos na fala da mãe, um discurso


sexista, em que ela entende que a cor rosa está para o feminino, assim como o
azul está para o masculino e nada mais pode escapar desse binarismo e dessa
dicotomia. As marcas culturais estão impregnadas na fala da mãe, quando ela
afirma que por ser filho de militar, ele não pode usar rosa.
De acordo com Louro “a construção do gênero e da sexualidade dá-se ao
longo de toda a vida, continuamente, infindavelmente” (LOURO, 2008, p. 18).
Desta forma, a mãe reafirma a necessidade de seu filho viver com as marcas
sociais e culturais que determina e normatiza a vida em sociedade. Para, além
disso, é possível perceber como a família ainda interfere significativamente na
escola, de forma a decidir quais atitudes devem ser determinadas e seguidas no
âmbito escolar e como a escola se submete a isso. Existem marcar que carac-
terizam e padronizam o fato de ser filho de um militar em nossa sociedade? A
família tem legitimidade em relação a escola?

2ª Cena

As discussões permaneceram e logo após a apresentação do curta metra-


gem, uma discente que já foi coordenadora pedagógica numa instituição
privada, compartilhou com os colegas algo que passou na escola:

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Duas meninas se conheceram lá no colégio, uma estudava desde a


quinta série, outra já entrou no ensino médio e elas acabaram tendo
um envolvimento. Nesse envolvimento, as famílias, sobretudo de
uma delas não aceitavam de jeito nenhum... A outra família já era
mais assim de aceitar, buscar ouvi a filha e tal... Enfim, o grande
entrave que nós encontramos na escola, foi porque assim, elas tro-
cavam carícias o tempo todo, se abraçavam, se beijavam e assim
eu comecei a enfrentar problemas no que diz respeito aos outros
pais, porque sobretudo aos pais das crianças, dos menores, eles
ficavam ligando para a escola, dizendo que as meninas estavam
indo para o banheiro, que estavam namorando no banheiro, que
as crianças estavam vendo... Que aquilo ali estavam influenciando
seus filhos, no que diz respeito da sexualidade, da identidade, né?
E a gente acabou tendo um dilema a ser enfrentado, porque elas
não aceitavam, o fato de a gente conversar e que tivessem assim...
Que fossem mais cuidadosa, porque não era o tipo de namoro
da rua, não era o tipo de namoro da escola... Em determinado
momento eu me vi em um impasse, em muitas vezes sem saber
como fazer, porque inclusive elas questionavam assim “mais você
só tá chamando a gente, porque a gente é um casal homo, ou
você chama também os casais heteros?”. Na verdade, a gente cha-
mava todos os casais da escola, independente de serem hereros ou
homossexuais, só que assim, elas começaram a achar que era algo
direcionado a elas... Enfim, foi um dilema, muito difícil, a gente
viveu essa situação mais ou menos três anos e foi muito delicado,
sobretudo por conta dos pais do ensino fundamental que não
aceitavam esse tipo de carícia e afeto no contexto escolar. Mas,
em relação a mim eu me vi muitas vezes sem saber o que fazer, foi
bem delicado, uma situação bem difícil (Anna – grifos meus).

Em se tratando do desabafo de Anna, notamos como a escola se constitui


em meio às discussões das sexualidades e ainda tem se tornando um espaço
que seleciona e aprisiona os prazeres, desejos e discursos. Conforme relatado
por Anna, alguns familiares ligavam para a escola questionando que as atitudes
das meninas estavam influenciando as/os outras/outros estudantes. Aqui ainda
entendemos o quanto a heterossexualidade é ainda pensada como norma e que
não precisa ser mencionada, mas é reiterada a todo tempo porque ela já está
subtendida como normal e tudo aquilo que escapa é visto como desviante e/ou
diferente (LOURO, 2011).

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As alunas convidam a escola para pensar os discursos da diferença quando


elas questionam se estavam sendo chamadas na secretaria por que era um casal
de lésbicas. Dessa forma, é dada a oportunidade para a escola pensar suas
práticas, suas relações com saber-poder e as possibilidades de compreender os
discursos oriundos dos/as discentes e não, exclusivamente, dos(as) familiares da
escola.

3º Cena

Ainda no momento de discussão, após o curta-metragem, outra colega


nos relatou:
Estava acontecendo a semana da criança que tinha como tema
“Higiene e saúde”. A escola organizou uma festa de encerramento
das atividades, para presentear as crianças. As professoras fizeram
uns sabonetes de resina transparente e dentro teria um brinque-
dinho. Para os meninos o sabonete tinha o formato de carrinho e
dentro vinha um aviãozinho pequeno. Para as meninas fizemos o
sabonete em formato de coração e dentro vinha uma escova de
cabelo de boneca. E todos foram embalados nos pacotes transpa-
rentes. Quando a gente foi entregar, a gente tinha um aluno que já
demonstravam alguns momentos que gostava de algumas coisas
diferentes que alguns dos meninos não gostavam. Por exemplo,
a tesoura para as atividades teria que ser rosa, as pinturas em sua
maioria teria que ser cor de rosa e brincava mais com as meninas
do que com os meninos. Brincava muito com as meninas, gostava
de brincar de casinha e tal, essas coisas. Quando fomos entregar
o sabonete de carrinho ele não quis... Começou a chorar, chorar,
chorar e aporrinhar, porque queria o sabonete de coração... Só
que a gente não tinha um sabonete pra dar pra ele, porque a gente
tinha feito a conta certa, a gente contou quantos meninos tinha
e quantas meninas tinha... Aí eu sei que ele chorou, chorou, cho-
rou... No final das contas a gente não teve como dar um sabonete
que ele queria, porque nenhuma das meninas quis abrir mão... Aí a
mãe dele chegou... Tentava conscientizar ele, que o dele era o de
carro e não o de coração... Foi uma situação bem complicada pra
gente, o menino foi embora triste, sem o brinquedo tão sonhado
(Rebeca – grifos meus).

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Percebemos como a escola busca reiterar as normas e atribuir uma posi-


ção fixa de referência para menino e outra para menina, baseada em uma
normatividade de sexo, gênero e sexualidade de tal forma que não se espera
que um menino possa desejar um coração ao invés de um carrinho. Quando a
professora diz que o aluno já mostrava “gostar de coisas diferentes”, percebe-
mos o quanto temos dificuldade de pensar fora deste lugar da norma e entender
a diferença enquanto produção e não algo dado naturalmente (FOUCAULT,
1988).
Para além dos discursos dos/as professores/as, é interessante perceber
como o aluno na educação infantil conseguiu subverter os padrões sociais que
são impostos em nossa sociedade e como, para essa criança, as posições de
gênero eram mais instáveis. Ele desejava o sabonete de coração com a escova
de cabelo de boneca e que isso, em nenhum momento, era visto por ele como
estranho.

Considerações finais

Acredito ser importante [não] finalizar por compreender que as questões


de gêneros e sexualidades sempre estão entrelaçadas nas instituições escolares,
e é necessário pensar quais as possibilidades que as/os docentes, coordenado-
res/as, funcionários/as, familiares e discentes têm em dialogar sem amarras ou
preconceitos.
No que tange às questões levantadas na disciplina “Educação Científica,
Sociedade e Cultura”, considero ser importante para que as discentes da disci-
plina tenham possibilidade de se deslocar, (re)pensar em si e em suas práticas
educacionais, embora entendamos que as amarras e os aprisionamentos ainda
existem.

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Referências

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,


1988.

LOURO, G. L. Educação e docência: diversidade, gênero e sexualidade. Revista


Brasileira de Pesquisa sobre formação docente, v. 3, n.4, p.62-70. 2011.

LOURO, G. L. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-posições, v.


19, n. 2 (56), p. 17-23 , maio/ago., 2008.

MEYER, D. E. E.; SOARES, R. F. R. Corpo, gênero e sexualidade nas práticas escolares:


um início de reflexão. In: MEYER, D. E.; SOARES, R. F. R. (Orgs). Corpo, gênero e
sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 2004.

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“VIREI HOMEM, PROFESSORA”: AS NORMAS SEXUAIS


E DE GÊNERO ‘EM CENA’ NA ESCOLA

Elaine de Jesus Souza


Doutoranda em Educação
Bolsista CNPq
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS
elaine.js.sd@hotmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Uma Educação Sexual desenvolvida, de modo contínuo e sistemático, possibili-


taria o reconhecimento das diferenças e a problematização das normas sexuais
e de gênero (re)produzidas na escola. Para repensar e duvidar do instituído
conforme a perspectiva pós-estruturalista, destaco o principal questionamento
que norteia esse artigo: Como a educação sexual poderia incitar a problema-
tização das normas sexuais e de gênero na escola? Esse estudo teórico inclui
‘cenas’ transcritas a partir das vivências como docente em uma escola de ensino
médio de um município sergipano. Essas cenas escolares permitem problema-
tizar discursos sobre sexualidades e gêneros veiculados nos distintos espaços
educativos.
Palavras-chave: sexualidade; gênero; normas; educação sexual.

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Introdução

Dar-me conta, criticamente, do atravessamento e dos efeitos das diferen-


ças relacionadas à sexualidade e ao gênero em espaços como a escola, além de
inquietar-me como docente e pesquisadora, incitou meu interesse pelo desen-
volvimento de ações que possibilitassem a inclusão de uma Educação Sexual
na escola, visando extrapolar o viés biologicista. A Educação Sexual poderia
constituir um meio para o (re)conhecimento das diferenças e problematização
das normas sexuais e de gênero, através da abordagem de temáticas relativas
às sexualidades. Sobretudo, porque na esfera educacional “onde a diferença é
um conceito central, faz-se de conta que não há diferenças, simula-se que todos
os sujeitos são iguais, que todos exercitam o poder com a mesma intensidade,
dominam saberes que são igualmente legitimados e reconhecidos socialmente
[...]” (LOURO, 1997, p.117).
Nessa direção, não com a intenção de apontar respostas prontas, mas
repensar e duvidar do instituído conforme a perspectiva pós-estruturalista,
destaco o principal questionamento que norteia esse artigo: como a educação
sexual poderia incitar a problematização das normas sexuais e de gênero na
escola?

Educação sexual na Escola: como problematizar as normas


sexuais e de gênero?

Desde o século XVIII se falou sobre sexo e sexualidade por meio de uma
educação sexual baseada no controle e na regulação dos discursos, assim até as
crianças deveriam proferir certo discurso limitado ao essencialismo, canônico
e ‘verdadeiro’ sobre sexualidade. Sobretudo, através de educadores, médicos,
pais eram produzidos e disseminados discursos que permitiam a intensificação
dos poderes. Desse modo, parece significativo conhecer como os discursos
acerca do sexo e de sexualidade foram (re)produzidos e suas condições de fun-
cionamento nas diversas instâncias sociais (FOUCAULT, 2007).
Os discursos pautados em determinismos biológicos e normatizações
contribuem para uma visão singular acerca de sexualidade e gênero que vem
sendo (re)produzida nos currículos acadêmicos e práticas escolares (inclusive
nos cursos de licenciatura). Embora se admita a existência de diversos modos
de vivenciar e expressar as sexualidades e os gêneros, parece consensual a ideia

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de que a instância escolar deveria nortear suas ações por um padrão histórico
e socioculturalmente legitimado: um modo normal de masculinidade e feminili-
dade, e de sexualidade, nesse caso a heterossexualidade; assim os sujeitos que
se afastam desse padrão são considerados desviantes, tornam-se excêntricos,
por não se enquadrarem no modelo heteronormativo (LOURO, 2013).
Em contraposição, uma Educação Sexual que abranja as diversas dimen-
sões de sexualidade e gênero envolveria um processo contínuo, sistemático e
permanente, desenvolvido em todos os níveis de ensino, inclusive nos cursos de
formação docente, pois inúmeras informações veiculadas pela mídia e exclusões
sociais decorrentes do sexismo e da homofobia, entre outras formas de precon-
ceito e discriminação, são recebidas constantemente (de modo inquestionável),
por crianças, jovens (e pelos próprios adultos, futuros/as docentes). Destarte,
uma das principais tarefas de uma Educação Sexual, que se fundamente nos
principais pressupostos pós-estruturalistas, consiste em problematizar e des-
construir “verdades únicas” e modelos hegemônicos acerca de sexualidade e
gênero, por meio de ações que denunciem os jogos de poder envolvidos na
construção de tal hegemonia social; assim poderia contribuir para o reconheci-
mento e valorização das diferenças que marcam a vida sociocultural e política
(FURLANI, 2013).

Problematizando cenas escolares acerca de sexualidade e gênero

Cabe informar que esse estudo teórico inclui algumas ‘cenas’ transcritas a
partir das minhas vivências (e observação participante) como docente em uma
escola de ensino médio localizada em um município sergipano. Essas cenas
escolares permitem problematizar discursos sobre sexualidades e gêneros vei-
culados nos distintos espaços educativos. Aprender a problematizar significa
tentar realizar um movimento de análise crítica, observando como foram cons-
truídos diferentes discursos e/ou soluções para um problema (FOUCAULT, 2004)
e assim esse modo de pesquisar não objetiva buscar uma “verdade absoluta” e
nem (re)produzir oposições binárias que remetem a pensamentos posicionados
contrários ou favoráveis! É ir além...

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Cena 1: “Virei homem, professora”!

Das diversas vivências durante a trajetória como docente no ensino médio,


relato um episódio que impulsionou inquietações para o desenvolvimento de
um projeto pedagógico que incluísse uma Educação Sexual na escola: numa
das turmas do primeiro ano havia um aluno negro e homossexual com cabelo
comprido, que sempre ia à escola usando tiara, batom vermelho e calça justa,
logo na apresentação no primeiro dia de aula, percebi que os colegas critica-
vam seu visual e ao longo do ano letivo repetiam a frase “Vire homem, rapaz”.
Estava na fase de adaptação a essa escola e ainda não tinha iniciado um pro-
jeto sobre sexualidade, mas buscava intervir e problematizar a situação, sempre
conversava com esse aluno, porém ele dizia que não se incomodava, até que os
colegas pararam de fazer isso durante minhas aulas. Contudo, no final do ano
letivo, esse aluno apareceu com o cabelo praticamente raspado, sem maquia-
gem e com calças folgadas, então, eu o questionei sobre o motivo da mudança,
e ele respondeu: “Virei homem, professora!”.
Essa aparente adequação as normas sexuais e de gênero, ocasionada pela
repetição e/ou reiteração performativa de insultos que compõem o arsenal da
homofobia sutil, me causaram um grande incômodo e evidenciaram o constante
desafio de inclusão social e (re)conhecimento das diferenças, que perpassa a
prática docente. Ademais, provocou-me alguns questionamentos: que estraté-
gias didáticas serviriam para problematizar a reiteração das normas sexuais e
de gênero na escola? Como possibilitar a inclusão e o (re)conhecimento das
identidades/diferenças sexuais e de gênero no universo escolar?
Butler (2000) ressalta que o caráter performativo do discurso produz
aquilo que veicula a depender da intenção e do contexto social em que foi uti-
lizado, então poderia ser empregado para subverter representações pejorativas
e preconceituosas, visando o reconhecimento das diferenças. Na lógica queer,
discursos normativos acerca de gênero e sexualidade além de questionados,
seriam encarados como um instrumento crítico servindo para a problematiza-
ção dos padrões hegemônicos e da tentativa de fixação das identidades. De
modo resumido, a performatividade evidencia que identidades, gêneros, sexu-
alidades são indefiníveis e instáveis, portanto admitem múltiplas possibilidades
de rematerialização e ressignificação em favor das diferenças, ao incitar a des-
construção de normas, oposições binárias e preconceitos.

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Nesse rumo, a manutenção das diferentes formas de homofobia costuma


ser sustentada pela premissa de que existe um forte alinhamento entre sexo-gê-
nero-sexualidade, fundamentada na lógica heteronormativa que impõe limites
à concepção de gênero ao defender que o sexo possui caráter imutável, a-his-
tórico e binário, e por considerar a heterossexualidade como algo natural, uma
forma compulsória de sexualidade. A concepção dos gêneros (re)produzidos
dentro de uma lógica dicotômica implica um polo que se contrapõe a outro,
isto é, reafirma a ideia singular de masculinidade e feminilidade, e isso justifica
negar ou discriminar todos os sujeitos sociais que não se “enquadram” nesse
modelo arbitrário. Em contrapartida, a desconstrução dessa oposição binária
permitiria que fossem (re)conhecidas as diferentes masculinidades e feminilida-
des e as múltiplas possibilidades de sexualidade (das vivências e expressões dos
desejos e prazeres) constituídas socioculturalmente (LOURO, 1997; 2000).

Cena 2: “Quando a ignorância reitera as normas”

Era hora do intervalo e os/as professores/as estavam conversando sobre


diversos assuntos e de repente surge um dos temas que mais desperta a curio-
sidade, incitado direta ou indiretamente na escola: sexualidade! Um professora
disse: “Na minha época não tinham professores bonitos como ‘Fulano’” e a
outra respondeu: “Mas, não iria adiantar porque os bonitos eram...” (e fez um
gesto ‘desmunhecado’). Os risos pareciam ter encerrado o assunto, deixando
alguns professores constrangidos. No entanto, outra professora comentou: “Isso
é o que mais tem hoje, nas minhas turmas eu já consegui identificar alguns alu-
nos assim ...” e novamente o gesto ‘desmunhecado’ foi repetido.
Às vezes nem é necessário empregar termos pejorativos, somente ges-
tos, risinhos, olhares de reprovação e até silêncios indicam a ignorância acerca
das identidades sexuais e de gênero destoantes das normas. Segundo Britzman
(1996), a ignorância representa uma forma peculiar de conhecimento, ou seja,
um modo de conhecer (re)produzido por meio de discursos alicerçados em
mecanismos de poder. Que conhecimentos acerca de sexualidade e gênero
um currículo de licenciatura (em Biologia, por exemplo) normatiza, naturaliza,
nega e/ou deixa de fora? Que “ignorâncias” esse currículo sustenta acerca das
normas sexuais e de gênero alicerçadas em um legitimado saber científico?

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Louro (2000) explana que os processos educativos, alheios às transfor-


mações socioculturais (avanços (bio)tecnológicos, novos arranjos familiares,
uniões homoafetivas), reproduzem uma história marcada por discursos, saberes
e práticas acerca das identidades sexuais e de gênero, pelo disciplinamento dos
corpos e representações hegemônicas de masculinidade e feminilidade ancora-
das em pedagogias ‘normativas’ de sexualidade, muitas vezes, tão sutis que nem
nos damos conta. Todavia, os sujeitos possuem identidades culturais contingen-
tes e, portanto a escola (a universidade e outros espaços educativos) ao invés
de (re)produzir “verdades absolutas” acerca dos corpos, sexualidades e gêneros,
deveria problematizar os modos como foram legitimadas algumas identidades e
outras marginalizadas por não se enquadrarem nas normas sexuais e de gênero.
Assim, a história dessa pedagogia de sexualidade poderia ser (re)inventada, a
partir de novas histórias (re)escritas e (re)contadas priorizando a multiplicidade
de vivências e expressões de sexualidade e gênero em detrimento de normati-
zações e essencialismos.
Para Britzman (1996), os discursos acerca da construção da sexualidade
perpassariam pela problematização dos processos educativos do/a próprio/a
educador/a. Pois, ao supor que os/as (futuros/as) docentes estejam dispostos/as
a se envolverem e discutirem as representações acerca de sexualidade e gênero,
como e através de que saberes e práticas poderão reconhecer a construção das
identidades sexuais e de gênero?
Nesse caminho, caberia sugerir um exercício de problematização e des-
construção das naturalizadas e legitimadas relações de poder que atravessam
gênero e sexualidade, em distintas instâncias socioculturais, sobretudo em nos-
sas práticas educativas e políticas, que ocasionam diversas formas de violência.
Ao inserir a problematização nas práticas pedagógicas e nos currículos esco-
lares e acadêmicos, indica-se um campo significativo de possibilidades para
reflexão e intervenção de educadores/as, que contribuiriam com a redução de
diversos tipos de violência (MEYER, 2009) contra os sujeitos que destoam das
normas sexuais e de gênero.

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Considerações Finais

Para desvincular os discursos acerca de sexualidade e gênero das normati-


zações construídas em distintos contextos, possibilitando que os/as educadores/
as sejam educados/as sobre temáticas que movem desejos, prazeres, mas tam-
bém questões culturais, políticas e sociais, dar um passo e avançar em direção
a um currículo múltiplo e dinâmico representaria um caminho significativo. Para
tanto, saliento a imprescindibilidade de problematizar teorias e práticas que
orientam os currículos das licenciaturas, inclusive os saberes da Biologia, ques-
tionando as normas e reconhecendo a multiplicidade de sexualidades, gêneros,
classes, raças, etnias que perpassam os cenários educativos.

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Referências

BRITZMAN, Deborah P. O que é esta coisa chamada amor: identidade homossexual,


educação e currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 71-96, jan./
jun., 1996.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: Guacira
Lopes Louro (org.) O corpo educado: Pedagogias da Sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. p.151-174.

FOUCAULT, Michel. Polêmica, política e problematizações (1984). In:______.


Estratégia, poder-saber. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004. p. 225-233. (Coleção Ditos & Escritos IV).

______. A História da Sexualidade 1: a vontade do saber. 18. ed. Rio de Janeiro:


Graal, 2007.

FURLANI, Jimena. Educação sexual: possibilidades didáticas. In: LOURO, Guacira


Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre. (Orgs.). Corpo, Gênero e Sexualidade:
um debate contemporâneo na educação. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p.67-82.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-es-


truturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 179 p.

______. Pedagogias da sexualidade. In:______. (Org.). O corpo educado: pedagogias


da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.07-34.

______. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”.


In: LOURO, G. L.; FELIPE, J.; GOELLNER, S. V. (Orgs.). Corpo, Gênero e Sexualidade:
um debate contemporâneo na educação. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes. p.43-53, 2013.

MEYER, Dagmar E. Estermann. Corpo, Violência e Educação: uma abordagem de


gênero. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação:
problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
p.213-234.

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“SÓ CUIDADO PARA NÃO DESMUNHECAR A MÃO!”:


REFLETINDO SOBRE HETERONORMATIVIDADE,
GÊNERO E DOCÊNCIA

Fernanda Xavier Silva Santana


Especialista em Educação, Contemporaneidade e Novas Tecnologias -
UNIVASF
Mestranda em Educação Científica e Formação de professores- UESB
ssxf.1@hotmail.com

Cixto de Assis Bandeira Filho1


Especialista em Gestão Pública Contemporânea - UNEB
Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco - Educação
cixtofilho@hotmail.com

Marcos Lopes de Souza¹


Doutor em Educação -
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - Educação
markuslopessouza@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

O/A docente carrega em sua fala, gestos e atitudes, marcas de sua história,
cultura e sociabilidade. São aspectos formativos que não estão inscritos no cur-
rículo formal, ou seja, é um dito que não é entendido como parte integrante
na formação do aluno/a, e, que, ao mesmo tempo, possui relevância, visto
que, uma fala, um gesto, uma atitude docente transforma, liberta, entusiasma,
mas, também, silencia e amedronta pensamentos, criatividades, dificultando as

1 Orientadores.

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condições de ensino aprendizagem de alunos/as. O objetivo desse texto é o de


refletir sobre heteronormatividade, gênero e docência, visando contribuir para
uma educação não normatizadora/normalizadora, a partir do relato da minha
experiência acadêmica, no bacharelado em Engenharia da Computação, tendo
como análise, falas de um docente.
Palavras-chave: heteronormatividade; gênero; docência; currículo; formação
inicial e continuada.

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Introdução

O currículo escolar/universitário é um elemento político e de relações de


poder, e, o/a docente, assim como o currículo, é um ser não neutro/a, ou seja,
suas concepções de mundo e sua relação com a sexualidade entram em suas
falas, diálogos e jeito de ser e estar em sala de aula, e, na sua relação com a/o
discente. Richard Miskolci (2016, p. 14) nos diz que fomos formados para pen-
sar que o professor/a aprende a educar de forma neutra, como se fosse possível
ao entrar na sala de aula, deixar de lado toda sua história de socialização, o
autor ainda problematiza que: “[...] todos/as trazemos uma bagagem cultural
para nossas atividades profissionais, mas, sobretudo, porque educar nada tem
de neutro, seus métodos e seus conteúdos têm objetivos interessados”.
Há algum tempo venho observando um movimento comum da prática
docente: os discursos invisíveis ao currículo formal/planejado. Essas observa-
ções, inicialmente, aleatórias, me fizeram refletir/preocupar com o que os/as
docentes têm contribuído (em suas falas) para construção das subjetividades
dos discentes em relação à construção e constituição das sexualidades. Além
das falas, julgo importantes também, seus gestos, suas atitudes frente a situa-
ções, seu modo de vestir, de olhar, de silenciar, enfim, inúmeras sutilezas que
fazem parte da construção moral, cultural e histórica do/a docente, que mesmo
não planejado ou previsto no plano de aula, constituem-se como elementos
formativos, ou seja, penetram nos sujeitos (discentes).
Por isso, trago para reflexão, falas de um docente, para que possamos
pensar sobre heteronormatividade2, gênero e docência. Essas falas fazem
parte da minha história de vida acadêmica, de uma experiência num curso de
Bacharelado em Engenharia da Computação. Curso este, que tentei fazer depois
de ter concluído a licenciatura em Ciências da Natureza. Vale ressaltar, que ter
feito esta licenciatura, e ter tido como tema de trabalho de conclusão de curso
a temática sexualidade, foi o que me proporcionou fazer as observações e aná-
lises no curso de bacharelado em questão.

2 Heteronormatividade, segundo Miskolci (2016, p. 15/46) seria a ordem sexual vigente, onde todos
são formados para ser heterossexual, ter família e reproduzir, ou, mesmo que tenha relações com o
mesmo sexo, adote o modelo da heterossexualidade. Nesse caso, gays e lésbicas também podem ser
normalizados, aderir ao modelo e ser agente da heteronormatividade.

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O dito, que não está inscrito no currículo formal

É comum que na sala de aula (ou qualquer outro espaço de formação) o/a
docente converse, brinque, conte piada, dê sermões, conte histórias, para resol-
ver algo, ou para a descontração da aula. E, é nesse pequeno espaço formador
que segundo Louro (2014, p. 67):
“São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras
banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada,
de questionamento e, em especial, de desconfiança. A tarefa mais
urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar do que é tomado
como ‘natural’”.

Neste contexto, começo este relato chamando atenção para o título,


que trata da fala de um “docente” do curso de bacharelado em Engenharia da
Computação de uma determinada universidade, a qual me fez refletir sobre
a relação gênero-sexualidade-docência. Numa aula da disciplina “Introdução
à Programação”, o docente diz: “Está aqui no quadro a questão”. Ao mesmo
tempo, faz uma provocação: “Alguém se habilita para responder?” Então, um
discente levanta para tentar resolver o problema sobre conversão de número
binário para número decimal posto no quadro. O discente, ao pegar o piloto da
mão do “professor”, e dirigir-se ao quadro, antes mesmo de começar a resolver
o problema, o professor ironiza, em tom zombeteiro e risonho (como se tivesse
graça): “Só cuidado para não desmunhecar a mão”. Naquele momento, alguns
riram, outros silenciaram. O meu olhar foi de horror!
Daquele episódio, comecei a refletir sobre o processo de “fabricação dos
sujeitos”, a produção “de regimes de verdades”, a homofobia, e a heteronor-
matividade. Comecei a pensar em como a fala foi incorporada pelas pessoas
daquela sala e quais as consequências em cada uma delas.
Então pude refletir sobre dois aspectos inscritos na fala do professor. O pri-
meiro é o discurso heteronormativo que humilha e despreza todo um coletivo
que não se enquadra ao padrão estabelecido, que oprime ainda mais aqueles
que se encontram silenciados pelas pressões sociais e familiares, onde o modelo
heterossexual é o padrão, o normal, o certo a seguir.
Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento
ou a negação dos/as homossexuais – e da homossexualidade – pela

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escola [universidade]. Ao não falar a respeito deles e delas, talvez


se pretenda ‘eliminá-los/as’, ou pelo menos se pretenda evitar que
os alunos e as alunas ‘normais’ os/as conheçam e possam desejá-
-los/as (Louro, 2014, p. 71-72).

Para aquele professor, “desmunhecar a mão”, nada mais é do que ser


gay, ou parecer feminino. Zombava de uma forma de ser, onde considerava o
feminino e/ou ser gay, inferior, ou seja, deixou transparecer certa intransigência
referente a aceitar e/ou respeitar as diferenças. Nesse contexto, vi o binário
(assunto da disciplina), incorporado em seu discurso binário3 referente à sexu-
alidade. Isso nos mostra que somos frutos, mesmo que inconsciente, da nossa
história de formação, dentro e/ou fora da escola.
O segundo aspecto é a homofobia, alimentada pela cultura heterossexista,
pois, uma vez que fica sobre aviso que desmunhecar a mão é perigoso para a
reputação masculina (é desviante, ridículo e anormal), isso vem a se caracterizar
como uma violência psicológica para quem não está no padrão da normali-
dade. Miskolci (2016) conceitua a maneira como se opera o heterossexismo de
“terrorismo cultural” e afirma:
Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças costumam preceder
tapas, socos ou surras. A recusa violenta de formas de expressão de
gênero ou sexualidade em desacordo com o padrão é antecedida e
até apoiada por um processo educativo heterossexista, ou seja, por
um currículo oculto comprometido com a imposição da heterosse-
xualidade compulsória (p.34-35).

Na minha convivência com os alunos/as da turma, percebi dois alunos


que não estavam na identidade heterossexual, um deles, evangélico (apesar da
religião não aceitar a homossexualidade); o outro só mantinha diálogo cons-
tante comigo, e, eu sentia que ele não era aceito pelos outros colegas, isso,
acredito que devido ao seu jeito feminino de falar, sorrir, gesticular. Imaginava
os receios e as angústias que se passavam na cabeça deles; com certeza seus
medos aumentavam ainda mais, pois, aquele lugar não tratava a homossexuali-
dade como algo positivo. Louro (2014, p.87) questiona “como se reconhecer em
algo que se aprendeu a rejeitar e a desprezar? Como, estando imerso/a nesses

3 Ideia de dualidade homem-mulher, hetero-homo, feminino-masculino.

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discursos normalizadores, é possível articular sua (homo)sexualidade com pra-


zer, com erotismo, com[o] algo que pode ser exercido sem culpa?”.
O que me entristecia era a rejeição do docente as diferentes formas de
sexualidades existentes na sala. Ou seja, ele não tinha o cuidado, a delicadeza, a
sensibilidade de reconhecer e respeitar as diferenças; dialogava como se só hou-
vesse heteros na turma, assumindo assim, uma visão heteronormativa. Talvez,
essa rejeição do professor, seja pelo estigma machista de que a engenharia seja
uma profissão genuinamente masculina, onde as mulheres foram e ainda são
estranhadas e inferiorizadas. Como aponta Lombardi (2006), numa pesquisa
com dados de meados de 1980 a 2002, e entrevistas com engenheiras e enge-
nheiros, dentro da relação de gênero: o salário dos homens é superior ao das
mulheres; apenas 15% das engenheiras estão ocupadas/empregadas; o ingresso
do público feminino em cursos de engenharia é de apenas 20%; os homens
não concedem cargos de chefia para as engenheiras, estando geralmente como
subordinadas; modelo de bom profissional e de inteligência exclusivamente
masculino, como é possível verificar na fala de um diretor a uma engenheira:
“Rosa, você é tão inteligente que parece um homem”.
Lombardi (2006) afirma que com o passar das décadas (até 2002) melho-
rou muito a aceitabilidade das mulheres no mercado de trabalho e nas escolas
de engenharia. Porém, os números ainda são bastante desiguais, e, tive a opor-
tunidade de ver isso com meus próprios olhos. A turma de engenharia em que
ingressei era de 50 alunos/as, sendo 05 tidas como gênero4 feminino.
Não esqueço o dia em que o professor entrou na sala cumprimentando
todos/as (risonho), olhou para nós (alunas) e disse: “vocês são nossos colírios,
né rapazes? – buscando uma confirmação e aprovação pelo grupo “masculino”
– Numa sala com tanto macho, né, é bom ter umas menininhas!”. Que piada
sem graça, achei! Nesta fala, percebi o discurso machista, onde as alunas são
vistas como objeto de desejo, estético e de posse, perpetuando o não reconhe-
cimento das mulheres pelo seu potencial intelectual. As duas alunas deram um
leve sorriso e nada falaram. Isso me preocupa porque as meninas eram muito
jovens, recém-formadas no ensino médio, então, talvez pela ingenuidade e/ou
pela falta de reflexão naquele momento, elas não tenham se incomodado com

4 Entendendo gênero como uma construção sociocultural e linguístico, produto e efeito de relações
de poder, que histórico e culturalmente, dentro da norma construída, vem sendo definido pelo viés
biológico, numa lógica binária (MEYER, 2010).

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a fala do professor. Mas, o que ficou evidente é que ainda existe discriminação
de gênero nos cursos de engenharia.
Essa experiência me fez pensar: que tipo de universidade estamos criando/
alimentando? Que tipo de sujeito é produzido neste curso (ou nas engenharias)?
E, para que profissionais está sendo dada a autorização para atuar na docência?
É importante pensarmos em fortalecer nossa profissão docente, lutando
pelo reconhecimento do/a licenciado/a como profissional habilitado para a
docência. A docência não é vocação, não é uma atividade que se aprende ape-
nas executando, pois, a ela exige habilidades e conhecimentos específicos (de
ensino, aprendizagem, didática, etc.), ou seja, preparação, requisitos de ingresso,
plano de carreira profissional para exercê-la (Zabalza, 2004). Além disso, preci-
samos pensar num “aprendizado pelas diferenças”, e/ou numa educação pelas
diferenças, onde os/as educadores/as possam se inspirar nos “anormais”, “estra-
nhos”, para o educar, fazendo o exercício da “ressignificação do estranho, do
anormal como veículo de mudança social e abertura para o futuro” (Miskolci,
2016, p.67).
Quanto à docência no ensino superior, temos grandes desafios. Um deles
é que nas licenciaturas pouco ou quase nada se fala em sexualidade, gênero e
diversidade sexual, por isso, um desafio é a inclusão dessas temáticas na for-
mação inicial e continuada de professores/as. Outra questão é que muitos/as
bacharéis estão lecionando sem formação pedagógica/didática, reproduzindo
em sala de aula o modelo de ensino aprendizagem que foram formados/as,
então é necessário que estes/as profissionais façam formações continuadas que
os dê condições de reflexão sobre sua prática, e os possibilite o reconhecimento
da identidade docente.

Considerações finais

Ainda vivemos uma sociedade preconceituosa, altamente controladora


e disciplinadora, e os espaços educativos possuem cicatrizes abertas e noci-
vas ao convívio em coletividade e ao reconhecimento das diferenças. Por isso,
não podemos deixar de pensar que o reconhecimento das diferenças (sexuais,
culturais, étnicas e raciais) é fundamental para que possamos dialogar todos/as,
quebrando a hegemonia de grupos específicos, rompendo com a cultura uni-
versalista que tenta colocar todos/as no mesmo enquadramento.

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Outro fator importante de se ressaltar é que a fala do docente em questão


e outras tantas que insulta e desrespeita pessoas, está em tantas outras bocas;
outros tantos docentes fazem “piadas” desse tipo todos os dias, e, o discurso
presente em sua fala “cuidado para não desmunhecar a mão” faz parte de uma
rede de estratégias de poder e hegemonia de uma determinada sociedade, para
o estabelecimento de um padrão, de uma “verdade” e controle social.
Desejo que este relato sirva para reflexão dos/as educadores/as no que
tange os desafios a vencer e os caminhos a percorrer rumo a uma educação
não normatizadora/normalizadora. Sei que são muitos os entraves, as desmo-
tivações, os desafios, mas, também, foram muitas as conquistas, por isso, não
podemos deixar de almejar uma educação de reconhecimento das diferenças.

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Referências

LOMBARDI, M. R. Engenheiras Brasileiras: inserção e limites de gênero no campo


profissional. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 127, p. 173-202, jan./abr. 2006.

MEYER, D. E. Gênero e Educação: teoria e política. In: LOURO, G. L.; GOELLNER,


S.; FELIPE, J. (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na
Educação. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2.ed. ver. E ampl.,


3.reimp. – Belo Horizonte: Autentica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro
Preto, 2016.

ZABALZA, M. A. Os professores universitários. In: O ensino universitário: seu cená-


rio e seus protagonistas. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2004. (105-144).

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CENAS DE HOMOFOBIA NA FORMAÇÃO INICIAL DE


PROFESSORES

Helma de Melo Cardoso


Mestra em Educação - Universidade Federal de Sergipe- Educação
helma.2010@hotmail.com

Alfrâncio Ferreira Dias


Doutor em Sociologia - Universidade Federal de Sergipe- Educação
diasalfrancio@gmail.com

Maria Heloisa de Melo Cardoso


Mestra em educação - Instituto Federal de Sergipe- Educação
heloisa.cardoso@ifs.edu.br

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

O presente artigo foi produzido a partir de resultados da pesquisa de disser-


tação, intitulada “O que é normal pra mim pode não ser normal pro outro:
Abordagem de corpo, gênero e sexualidades nas licenciaturas do Instituto
Federal de Sergipe, campus Aracaju” do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe. Tendo como objetivo analisar
duas cenas colhidas no campo de pesquisa a partir da perspectiva pós-crítica.
Realizando como estratégia metodológica um grupo focal com a participação
de cinco estudantes (quatro do sexo feminino e um do masculino) do último ano
dos cursos de licenciatura. Os/as licenciandos/as adotam uma postura homofó-
bica que naturaliza a violência e a heterossexualidade como normais, tratando
os que se diferenciam como anormais.
Palavras-chave: gênero; heteronormatividade; homofobia; licenciatura;
sexualidades.

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Introdução

A escola é um local legitimado em que deve haver reflexão sobre a reali-


dade, sobre os padrões e normas que regulamentam o dia a dia das pessoas, mas
também é um local onde circulam discursos hegemônicos quanto às questões
ligadas à sexualidade como a lógica do binarismo dos corpos: homem-mulher,
onde tudo que se afasta do modelo é considerado anormal e são reprimidas;
as práticas “anormais”, como a homossexualidade, são colocadas à margem na
escola.
Há grande necessidade de que este tema seja abordado numa perspec-
tiva questionadora ainda na formação inicial de professores/as, destacando suas
possibilidades e responsabilidades numa educação sem exclusões, visto que o
mesmo aparece de forma imprevista em sala de aula, não escolhe disciplina,
nem momento e, portanto, a princípio todo/a professor/a deve estar preparado/a.
Assim, trazemos para este artigo duas cenas coletadas durante as discus-
sões ocorridas em julho de 2015 no grupo focal com estudantes do último ano
das licenciaturas de Química e Matemática do Instituto Federal de Sergipe-IFS/
Campus Aracaju (Ana, Bia, Carlos, Diana e Eliane)1, que marcam o encontro
com os/as sujeitos/as que escapam da norma heterossexual. A proposta meto-
dológica foi organizada a partir da perspectiva pós-estruturalista que abandona
o caráter normativo da pesquisa e busca mostrar que os fenômenos sociais são
múltiplos e heterogêneos. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e
Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe, através da Plataforma Brasil (base
nacional e unificada de registro de pesquisas envolvendo seres humanos) pelo
CAAE 46699215.8.0000.5546.

Cenas de encontro com o diferente

Durante as discussões no grupo focal todos os estudantes declararam que


convivem bem socialmente e que nunca vivenciaram situação de preconceito
contra homossexuais ou transexuais na Instituição, no entanto, demonstraram
bastante incômodo com o comportamento de um professor homossexual em
sala de aula, apesar de tentarem deixar claro que não tinha nada a ver com

1 Nomes fictícios e aleatórios dados aos sujeitos da pesquisa.

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a sua sexualidade, mas com a sua falta de postura ética em sala de aula que,
abertamente, favorecia aos homens com notas, em detrimento das mulheres.
“Nada, nada, nada. Para você ter uma ideia, tinha um aluno que
nunca apareceu pra atividade e ele deu 8.0, e ele nem estava na
aula, é muito gritante. Isso é a postura como professor? Mesmo se
ele não fosse homossexual, fosse hétero e desse em cima das meni-
nas, também seria errado” (ELIANE).
“Mas, também tem muito professor aqui que dá em cima da gente
né?” (BIA).
“Mas não é em sala de aula” (ELIANE).
[...]
“Mas esse professor do curso de vocês?” (PESQUISADORA).
“Agora o daqui, comigo, particularmente, nunca teve nada”
(CARLOS).
“Lógico” (com gozação e risos) (BIA E ELIANE).
“Ele nunca me deu nota, nem brincadeira, nem falta de respeito,
nada, mas com colegas a gente vê que ele soltava uma piadinha ou
outra” (CARLOS).
“Uma piadinha ou outra? Ele é terrível” (ELIANE).
“Mas isso tinha alguma ligação com a sexualidade dele?”
(PESQUISADORA).
“Tinha a ver com a questão da ética, a postura dele como profes-
sor” (ELIANE).
“Vocês percebiam que ele dava em cima dos alunos, é isso?”
(ORIENTADOR).
“Isso não é certo nem pra professor homem dar em cima de uma
menina ou de outro menino. Não importa, isso é errado” (ELIANE).

Nesse ponto é importante notar a ênfase dada à postura do professor


homossexual em detrimento do comportamento do professor heterossexual,
num quase silenciamento do comportamento deste último. Aqui não se está
relativizando nem aceitando como correto o comportamento do primeiro,
somente mostrando que o fato deste ser declaradamente homossexual o coloca
em destaque. Segundo Miskolci (2009), existe uma compulsoriedade à hete-
rossexualidade que a naturaliza e a torna obrigatória, assim as pessoas que a
subvertem tornam-se foco de estranhamento. Então, percebe-se que o discurso

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heteronormativo está presente na fala das alunas, trazendo uma retaliação ao


comportamento que foge da regra heterossexual. Muitas vezes, a perseguição
ao homossexual não é pelo que ele faz, nesse caso pelo assédio aos alunos,
mas pelo simples fato de ser homossexual. E, apesar de não haver informações
seguras sobre a origem do desejo, seja ele heterossexual ou homossexual, as
pessoas ainda veem a homossexualidade como um distúrbio. Com isso, busca-
se naturalizar e tornar verdadeira a única forma de viver a sexualidade de forma
“sadia” e digna que é a heterossexualidade.
É importante salientar que o homossexual, na discussão do grupo focal,
ganha destaque e é visto como pervertido, com um desejo acima do “normal”,
patológico, e é assim que se enquadram todos os homossexuais em modelos
caricatos, “bichas loucas”, que saem assediando todos indiscriminadamente e
que,
[...] tampouco o desejo homossexual é mais ou menos normal que
o heterossexual. A diferença está na distribuição desigual de aces-
sos e visibilidades, portanto, no reconhecimento social conferido
aos gêneros e às sexualidades inteligíveis (BENTO, 2011, p. 99).

Também cabe lembrar que a homossexualidade, assim como a heteros-


sexualidade e outras sexualidades, é múltipla. E a todas essas formas de ser
homossexual devem ser asseguradas e mais, deve-se lutar contra o moralismo
que conota tudo como pecaminoso e negativo (SEFFNER, 2011).
As concepções sobre gênero na formação docente estão marcadas pelos
estereótipos de masculino e feminino trazidos pelo modelo hegemônico biná-
rio que discrimina quem se distancia. Daí resulta a dificuldade de professoras e
professores em lidar com o diferente em sala de aula, visto que não foram pre-
parados nas licenciaturas para falar sobre o corpo, o desejo e o gênero (DIAS,
2013).
A escola, ao longo dos séculos, vem cumprindo um papel de disciplina-
dora dos corpos, deixando marcas valorizadas pela sociedade, consideradas
como referência para todos, ao ponto de podermos diferenciar uma pessoa
escolarizada de uma não-escolarizada (LOURO, 2000).
Essas práticas e a linguagem também marcam os sujeitos como femini-
nos e masculinos, os comportamentos assexuados são marcados na história
de cada um/a. O investimento na modelagem dos corpos reitera identida-
des e práticas hegemônicas e nega outras (LOURO, 2010). Desta forma, os

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modelos de sexualidade produzidos e reproduzidos na escola são regidos pela


heteronormatividade.
Neste contexto, apresentamos a segunda cena, referente à necessidade de
disciplina dos corpos no ambiente escolar, trazida por Eliane de sua prática de
sala de aula, que evidencia a impossibilidade de articular o conhecimento e as
manifestações do desejo:
“No Pibid mesmo, [...] teve uma situação bem interessante, um
jovenzinho lá que ele se intitula Lady Gaga [...]. Ele tem uns doze
anos, ele é bem pequenininho. Aí toda hora passava um rapaz na
frente da porta, eles estavam jogando e tavam passando na quadra,
e toda vez que passava ele fazia: “Psiu, gostoso.” E aquilo começou
a me incomodar. A gente tava conversando e ele não parava de
fazer isso. Até que num momento eu vi que o rapaz incomodado,
olhou com um olhar mortal. Aí eu cheguei, sentei do lado dele e
falei: “Meu jovem”. Desse jeito: “Meu jovem, você não tem nem 40
quilos, a tia aqui, a professora, não tem 50 quilos, o jovem deve ter
uns 60, se ele quiser vir bater em você o que eu vou fazer?” Aí ele
olhou pra mim: “É, eu vou parar”. Aí ele parou e nunca mais ele fez
isso novamente. Era a única argumentação que eu tinha, porque se
ele realmente partisse pra cima dele, eu ia fazer o quê? Eu não teria
força nenhuma pra apartar a briga e eu não sei se o rapaz se eu
falasse ele iria me aceitar como autoridade. Enfim, era uma escola
pública” (ELIANE).
“Mas incomodava você como professora o fato dele tá dando psiu
para um homem?” (ORIENTADOR).
“Não, incomodava ele tentar incomodar uma pessoa que poderia
bater nele, entendeu, mas não por ser um homem, com as meninas
eu também reclamo, enfim, tanto faz, eu não gosto que eles fiquem
misturando em sala de aula. Eu prefiro separar os casais, os namo-
rados, fique aqui e você fique aqui, porque senão não vão prestar
atenção. Porque nessa idade eles são muito” (ELIANE).
[...]
“É, e tem que ficar parando pra explicar conduta em sala de aula e
o que eles não devem fazer” (ELIANE).

Inicialmente, observou-se na fala de Eliane a dificuldade de lidar com o


desejo em sala de aula, mais especificamente num comportamento homosse-
xual em um de seus alunos, acreditando que o fato de ele estar paquerando
outro garoto poderia levá-lo a ser vítima de violência. Essa necessidade de

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desassociar o desejo das relações escolares é uma das formas encontradas pela
Instituição para domar os corpos e mascarar uma dificuldade dos profissionais
de lidar com tais situações. Com o objetivo de doutrinar os corpos, moldando-
-os de acordo com suas aprendizagens sociais, dos costumes, da religião e da
tradição, para disciplinar a masculinidade e a feminilidade.
Mais uma vez, nota-se que o comportamento que foge à norma inco-
moda, tanto que passa a ser descrito como momento difícil durante a prática
de estágio, o fato de o garoto estar paquerando outro garoto atrapalha o ritmo
da aula, desconcerta a estagiária e a deixa em alerta com relação a algum tipo
de retaliação violenta. Eliane, assim como tantos/as outros/as profissionais da
educação, relata a experiência como se fosse igualitária, porém não se faz boa
educação só com intenção. Com frequência, “[...] colocamos nossas boas inten-
ções e nossa confiança em uma educação a serviço de um sistema sexista e
heterossexista de dominação que deve justamente a essas intenções e confiança
uma parte significativa de seu poder de conservação [...]” (JUNQUEIRA, 2009,
p. 14) contribuindo mais com o sistema de opressão que se quer combater.
Quanto ao medo da retaliação violenta, esse dado infelizmente é real o
que torna a preocupação genuína, visto que a violência contra homossexuais
é uma realidade, ao mesmo tempo em que a naturaliza, como se o rapaz esti-
vesse em seu direito de retaliar a uma cantada de um gay, com violência, visto
que, sua paquera passa a ser entendida como incômodo, dando permissão para
a violência como forma de demarcar sua própria masculinidade. Em pesquisa
realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (Unesco), em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal constatou-
se que entre os estudantes masculinos “bater em homossexuais” foi apontada
como ação menos violenta em uma lista de várias outras ações violentas (ati-
rar em alguém, estuprar, usar drogas, roubar e andar armado) (ABRAMOVAY;
CASTRO; SILVA, 2004).
Tal panorama de exclusão e violência se forma em decorrência da
heteronormatividade, pela compulsoriedade heterossexual que rejeita a homos-
sexualidade em vários espaços sociais, principalmente na escola, onde os
meninos são ensinados a serem machos, a deixarem qualquer comportamento
de aproximação com outros meninos, sob pena de serem taxados de afemina-
dos, de serem comparados com meninas que são sentimentais e têm permissão
para demonstrarem afeição.

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A disciplina do corpo é desempenhada pela escola que busca desenvol-


ver a cognição e a aprendizagem desvinculando-as do desejo e da sexualidade
dos corpos, na tentativa de obter corpos sem desejo e sem erotismo, relegando
a sexualidade ao espaço privado e, principalmente, tentam produzir uma sexu-
alidade “normal”. Assim, Eliane, reproduzindo o discurso tradicional da escola,
separa os casais para ministrar sua aula, sequer problematiza com seus/as alu-
nos/as questões relacionadas à sexualidade. Não questiona porque sente tanto
incômodo na expressão da sexualidade de seus/as alunos/as. Não traz para
a sala de aula o questionamento de o porquê da reação violenta diante da
homossexualidade, apesar de dar pausas nas aulas para explicar sobre condutas
“adequadas”.

Considerações finais

Para finalizar, podemos perceber que no encontro com os corpos que se


diferenciam da norma heterossexual, os estudantes adotam uma postura homo-
fóbica, tratando os que se diferenciam como anormais, contribuindo para a
violência e a naturalização da heterossexualidade como normal e superior.
Observou-se que em suas experiências em sala de aula, os/as estudan-
tes buscaram reproduzir a dicotomia mente-corpo, buscando o isolamento do
desejo nos momentos de aprendizagem de conteúdos formais, contribuindo
para a perpetuação da escola como um espaço disciplinador, almejando produ-
zir alunos/as em corpos disciplinados/as e obedientes, além de observar que a
formação docente não muniu os estudantes de estratégias para lidar com situa-
ções com a diferença em sala de aula.
A partir das discussões realizadas nesta pesquisa, acredita-se que há
necessidade de inclusão das questões de corpo, gênero e sexualidades na for-
mação inicial docente em suas disciplinas, conteúdos e metodologias. É preciso
criar espaço para debates, reflexões, questionamentos para que o/a futuro/a
docente perceba a necessidade de atuar nessa perspectiva. Também é impor-
tante que esses temas sejam abordados numa dimensão do saber-fazer, para
munir os professores de ferramentas para atuarem em situações de violência,
preconceito, intolerância e outras.

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Referências

ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G.; SILVA, L. B. da. Juventudes e sexualidade. Brasília:


UNESCO, 2004.

BENTO, B.. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: COLLING, L..


(org.). Stonewall 40 + o que no Brasil? Salvador: UDUFBA, 2011.

DIAS, A. F.. Educando Corpos, produzindo Diferenças: um debate sobre gênero nas
práticas pedagógicas. Tomo (UFS), v. 2, 2013. p. 237-256.

JUNQUEIRA, R. D.. Homofobia nas escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA,


R. D.. (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia
nas escolas. Brasília: Ministério da educação, Secretaria de educação continuada, alfa-
betização e diversidade, UNESCO, 2009.

LOURO, G. L.. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.) et al. O
Corpo educado: Pedagogias da sexualidade. 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica, p.
07-35, 2000.

LOURO, G. L.. Currículo, gênero e sexualidade. In: LOURO, G. L.; FELIPE, J.;
GOELLNER, S. V..(orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na
educação. 5. ed. Petrópolis(RJ): Vozes, 2010.

MISKOLCI, R.. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normaliza-


ção. Sociologias. Porto Alegre, ano 11, n. 21, jan/jun, p. 150-182, 2009.

SEFFNER, F.. Composições (com) e resistências (à) norma: pensando corpo, saúde, polí-
ticas e direitos LGBT. In: COLLING, Leandro (org.). Stonewall 40 + o que no Brasil?
Salvador: UDUFBA, 2011.

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“ACHEI PESADA A CENA DA MASTURBAÇÃO. [...] ATÉ A CENA


DO PRÓPRIO ESTUPRO EU NÃO ACHEI TÃO PESADA!”:
ANÁLISE DOS DISCURSOS DE PROFESSORAS SOBRE A
MASTURBAÇÃO FEMININA

Laís Machado de Souza


Bióloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e
Formação de Professores (PPGECFP) do Departamento de Ciências Biológicas
(DCB) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié.
laimachado18@hotmail.com

Marcos Lopes de Souza


Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e
Formação de Professores (PPGECFP) do Departamento de Ciências Biológicas
(DCB) da UESB, campus de Jequié.
markuslopessouza@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Esta pesquisa analisa os discursos de professoras sobre a masturbação feminina


após o contato com o vídeo “Era uma vez outra Maria”. A produção de dados
foi feita por meio da gravação dos debates, feitos após a exibição do artefato,
realizados em encontros formativos com duas professoras que lecionam a dis-
ciplina Educação para a Sexualidade em uma escola municipal dos anos finais
do ensino fundamental em uma cidade do interior da Bahia. As professoras
sentiram-se incomodadas diante da visualização e abordagem da masturbação
feminina pautando-se em discursos sexistas em torno dos desejos e prazeres
da mulher. Em virtude desta negação da masturbação das mulheres, elas reco-
nheceram a cena de estupro presente no vídeo como mais interessante a ser
trabalhada, na escola, do que a da masturbação.
Palavras-chave: Relações de gênero; masturbação feminina; educação para a
sexualidade; artefato cultural; formação de professores/as.

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Introdução

A partir do século XVIII a família e a escola foram aconselhadas pela


medicina a agir e falar sobre sexo de acordo com os preceitos e advertências
médicas, sempre no sentido de “exortar” e dar conselhos “edificantes” ao/à
colegial a fim de educá-lo/a para uma sexualidade moralmente sã. Tais pre-
ceitos e advertências defendiam uma educação sexual discreta e comedida
voltada para a preservação moral das crianças e adolescentes (FOUCAULT,
1988). Nessa perspectiva, a masturbação se configurava como uma epidemia
que deveria ser extinta.
Contudo, apesar do controle exercido pela igreja e, posteriormente, pelo
estado em torno dessas questões, tendo como principais representantes a escola
e a família, a vigilância sobre a sexualidade masculina não se equiparava (e
ainda não se equipara) a que estava submetida a sexualidade feminina. Felipe
(2000, p. 127) destaca que a educação para a sexualidade das meninas nos
séculos XVIII e XIX pautava-se na premissa de que estas deveriam “permanecer
mais tempo na ignorância, correspondendo assim a uma representação femi-
nina de ingenuidade”. Já a masculinidade deveria ser incentivada por ser algo
mais incerto, impelindo o menino a cultivá-la desde a infância por meio do que
Parker (1999) definiu como um complexo processo de masculinização.
Dessa forma, a masturbação, bem como as demais manifestações do
desejo sexual masculino, foi historicamente construída como mais aceitável
que a feminina, cuja sexualidade naturalizada deveria apenas ser controlada e
domesticada.
Essa concepção tradicional em torno das masculinidades e feminilidades
ainda é uma realidade no Brasil e se reflete nas formas como a educação para a
sexualidade é realizada nas escolas. Além de muitos/as professores/as de esco-
las regulares não saberem lidar com as questões relacionadas à masturbação
em sala de aula, eles/as reiteram, muitas vezes, construções preconceituosas
baseadas nos marcadores de gênero sociamente aceitos. Em virtude disso, esse
estudo teve por objetivo analisar e problematizar os discursos de professoras de
uma escola dos anos finais do ensino fundamental da rede municipal de Jequié
no interior da Bahia sobre a masturbação feminina, após contato com um arte-
fato cultural.

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Metodologia

Este estudo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento,


realizada numa perspectiva pós-estruturalista na qual desenvolvi encontros
formativos sobre a interface sexualidade e saúde com três professoras que minis-
tram o componente curricular Educação para a Sexualidade em uma escola dos
anos finais do ensino fundamental da rede urbana localizada no município de
Jequié-BA.
Este trabalho analisa os discursos de duas das professoras, a quem me
refiro pelos nomes fictícios de Innana e Afrodite, produzidos em um desses
momentos formativos no qual utilizei o vídeo “Era uma vez outra Maria”, elabo-
rado e divulgado na forma de desenho animado pela “ECOS - Comunicação em
Sexualidade”, como ferramenta mediadora para a discussão em torno das rela-
ções de gênero, sexualidade, gravidez na adolescência e Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs). Aqui, destaco os discursos dessas professoras sobre a
masturbação feminina após assistirem as cenas de masturbação protagonizada
por Maria e também por seu irmão no referido vídeo.
Os dados produzidos foram gravados em áudio, transcritos e analisados
de acordo com a Análise do Discurso que segundo Caregnato e Mutti (2006, p.
680) é uma disciplina de interpretação que “trabalha com o sentido e não com
o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido”; levando
em consideração a concepção de discurso em uma perspectiva foucaultiana.

“Porque a cena do menino passa e deixa implícito, né? Da


menina é explícito”!

No artefato cultural “Era uma vez outra Maria”, há uma cena em que, com
muita tranquilidade, o irmão mais novo de Maria cruza com o pai ao passar
pela sala da casa tendo na mão uma revista em cuja capa ostentava uma foto
de mulher nua em posição sensual. O menino segue, desembaraçadamente, em
direção ao banheiro sendo acompanhado pelo olhar de aprovação e orgulho
do pai. Estando lá, abaixa as calças, senta-se no vaso sanitário, põe a revista
na frente das pernas e começa a se masturbar; não se vê o ato, mas é possível
ouvir sons e movimentos característicos, bem como, expressões de prazer no
rosto do garoto.

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Corta-se a cena e nos deparamos com a imagem de Maria no quarto,


deitada e coberta até a altura da cintura por um lençol com uma das mãos
embaixo deste, sugerindo que tocava as partes íntimas e com a outra mão aca-
riciava os seios. A menina começa a pensar em imagens seminuas de homens
e de seu namorado João (as imagens aparecem no canto superior da tela), mas,
seu pensamento é interrompido pelas imagens da mãe e do pai desenhados
pela figura de um lápis com borracha, presente na maioria das cenas de Maria,
que insiste em controlar e moldar seus comportamentos. Diante da reação de
horror destacada no rosto do pai e da mãe, a garota responde tomando nas
mãos o lápis, cuja borracha havia apagado suas fantasias sexuais e voltando a
desenhá-las continuando a se masturbar até alcançar o orgasmo. Após o ato,
cobre-se por inteira e dorme.
As cenas do vídeo descritas acima geraram um visível incômodo nas pro-
fessoras, especialmente, com relação à cena de Maria classificada por Afrodite
como sendo “pesada”. Por que essas imagens capturam as professoras? Por que
veem a cena como pesada? Innana justifica com a seguinte fala:
[...] “eu também achei pesada a cena da masturbação... por que a
cena do menino passa e deixa implícito, né?! A da menina é explí-
cito. A do menino ele entra lá no sanitário, pega a revistinha dele
lá, mostra o vaso sanitário, o barulhozinho, mas não mostra! E a da
menina... a da menina eu achei assim, que chamou atenção porque
ela tá lá bem na dela”! (Innana. Grifos meus).

A fala de Innana traz elementos que caracterizam um discurso de autoriza-


ção da masturbação masculina em detrimento da feminina. Apesar do controle
dos corpos que o processo de escolarização exerce sobre ambos impondo
uma série de comportamentos, hábitos e atitudes socialmente aceitos (LOURO,
1995), a masturbação masculina que, de certa forma também incomoda as
professoras, parece aos olhos de Innana mais natural e aceitável. Um possível
legado dos discursos médicos do século XVIII e XIX que claramente atribuía
distinções e particularidades para a educação do sexo de meninas e meninos
estabelecendo condutas apropriadas para cada gênero.
Os termos utilizados pela professora em relação à cena do menino, como
“revistinha” e “barulhozinho” contrapõem aos termos utilizados para caracte-
rizar os atos e comportamento de Maria: “chamou atenção” e “tá lá bem na
dela”. O que me leva a retomar as cenas descritas inicialmente e problematizar

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que ao passar pela sala com a revista em mãos o irmão de Maria deixa transpa-
recer que também estava “bem na dele”, talvez, ainda mais que Maria, que por
um momento se sentiu constrangida ao pensar em qual seria a reação do pai e
da mãe diante de sua prática.
Pensando sobre isso, me parece que os desejos sexuais de Maria, na con-
cepção da professora, deveriam constrangê-la e não deixá-la à vontade e, ao
mesmo tempo, o comportamento de seu irmão parece ser legitimado, uma vez
que, ele estava à vontade sob muitos aspectos e isso não foi questionado. A
ideia da existência de um ‘instinto masculino’ utilizado, dentre outras coisas,
para justificar que o homem, naturalmente, possui maior desejo sexual que a
mulher é construída historicamente e autoriza esse discurso. Felipe (2000, p.116)
ao falar sobre a distinção existente nos manuais de orientação para educação
do sexo de crianças e jovens dos séculos XVIII e XIX reitera que “o instinto
era utilizado freqüentemente como argumento explicativo para reafirmar as
diferenças entre os sexos”. Assim, não sendo o desejo sexual instintivamente
próprio da mulher, a prática da masturbação feminina torna-se antinatural e por
isso, não autorizada.
Outra questão que incomodou as professoras foi o maior tempo desti-
nado à cena de Maria que à do seu irmão. A cena decorreu dede o início do
ato até a satisfação total de Maria enquanto na do irmão houve um corte de
cena ficando subtendido. Contudo, a fala de Innana também demonstra que as
professoras compreenderam o intuito do vídeo no que diz respeito ao empode-
ramento feminino, mas ainda assim, para ela não justifica tal exposição enfática
e prolongada.
[...] “se passasse apenas a imagem, rapidinho e tal... mas, não né?!
Ela demora! até demais... acho que pra dar ênfase à questão que a
mulher, ela se masturba também e não é só o menino, entendeu”?!
(Innana)

Ou seja, se é preciso falar sobre o assunto incômodo que ele seja rápido.
Quem sabe até não passa despercebido pelos/as estudantes?

“Até a cena do próprio estupro, eu não achei tão pesada”

No vídeo, há uma cena de estupro exibida durante o relato de uma amiga


de Maria sobre o que ocorreu com ela na festa em que as duas foram juntas.

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A menina paquera com um garoto e logo em seguida se afastam do grupo


em direção ao banheiro. Inicialmente, de forma consensual os dois se beijam,
porém o garoto faz carícias mais intensas e recebe a negativa da menina. Ele
insiste colocando a mão entre as pernas delas deixando-a profundamente des-
concertada e retraída. Apesar das constantes negativas, ele não para com as
investidas que se tornam cada vez mais agressivas e íntimas. Nesse momento
há um corte na cena e no momento seguinte ela aparece triste e envergonhada
sentada encolhida junto ao vaso sanitário com as roupas rasgadas deixando a
mostra um dos seios, enquanto ele, de costas, arruma as calças.
[...] “até a cena do próprio estupro eu não achei tão pesada... é
uma cena que choca, mas é uma cena assim... que você mostra. E
aquela cena do estupro eu acho interessante porque é uma forma
de mostrar pra os alunos que as vezes eles estão vulneráveis...
determinados ambientes, determinadas pessoas” (Innana).

Diante da fala de Innana, Afrodite, que se mostrou visivelmente descon-


certada diante da cena de masturbação feminina exibida no vídeo, relata sua
aversão ao tema e reitera o discurso da colega sobre a cena de estupro:
“Não gosto de trabalhar esse... esse... a masturbação não! [...] É...
aquela cena do estupro eu gostei também” (Afrodite).

Mais uma vez, elementos do dito instinto masculino aparecem na fala de


Innana. A cena do estupro que ela e Afrodite consideram menos pesada que a
da masturbação de Maria lhes parece interessante pela possibilidade de eviden-
ciar a mulher enquanto vítima e não para problematizar a postura masculina.
Innana deixa transparecer isso ao afirmar que existem determinadas pessoas
perto das quais se pode estar mais vulneráveis e, sem se dar conta, ela naturaliza
esse comportamento. Em relação a esses discursos, Trindade e Ferreira (2008)
salientam que o determinismo biológico marcou as diferenças entre os sexos e
que estas fundaram noções de desigualdades, colocando as mulheres vulnerá-
veis à força e à razão masculina. O que até hoje possui efeitos de verdade.
Nos relatos das professoras há o discurso de que o lugar da mulher não
é o do prazer e dos desejos por isso que a masturbação as choca. Em nossa
cultura, qual é o lugar da mulher que se masturba? Geralmente, é vista como
pervertida, prostituta ou devassa. Por que o lugar legítimo da mulher “de bem”
é na instituição do casamento onde deve exercer a sua função reprodutora. O

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prazer, historicamente, lhes foi negado e, talvez por isso, ainda tenham tanta
dificuldade de lidar com o ele, especialmente, na masturbação em que a figura
masculina não se faz necessária ao prazer.
Sobre esses lugares atribuídos à sexualidade feminina e masculina, con-
cordo com Guacira Louro quando afirma que:
[...] pouco importa sob quais bases foi fundamentada essa repre-
sentação; o que importa é que ela teve, e ainda tem, efeitos na
produção de sujeitos masculinos e femininos. Essa representação
exerce um “efeito de verdade” e, portanto, pode interferir nas for-
mas de ser homem ou de ser mulher (LOURO, 1998, p. 45).

Em virtude disso, saliento a necessidade dessas questões serem proble-


matizadas no ambiente escolar, especialmente, entre professores/as que atuam
com um componente curricular tão específico como é a Educação para a
Sexualidade nas escolas dos anos finais do ensino fundamental do município
em questão.

Considerações finais

A abordagem da masturbação em sala de aula ainda causa polêmica


entre professores/as. Em se tratando das professoras participantes da pesquisa,
a dificuldade em falar sobre essas questões é ainda maior quando se trata da
masturbação feminina. As análises discursivas demonstram a influência das pro-
duções em torno dos marcadores de gênero nos modos como elas reagem às
cenas de masturbação exibidas, evidenciada por comentários sexistas em torno
do ato masturbatório de Maria.
Nessa perspectiva, as análises sugerem a necessidade de que discursos
como esses, relativos às produções das sexualidades dos sujeitos femininos e
masculinos sejam discutidos e problematizados no ambiente escolar, especial-
mente, nos espaços de formação continuada de professores/as.

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Referências

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análise de conteúdo. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, n.15, v.4, p. 679-684, out-
dez. 2006.

FELIPE, J. Infância, gênero e sexualidade. Educação & Realidade. v. 25, n.1, p. 115-131,
Rio Grande do Sul, Jan/jun. 2000.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 11 ed. Rio de Janeiro:


Graal, 1988.

LOURO, G. Produzindo sujeitos masculinos e cristãos. In: VEIGA-NETO, A. (Org.).


Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995.

LOURO, G. Segredos e mentiras do currículo. Sexualidade e gênero nas práticas esco-


lares. In: Silva, L. H. (org.) A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis:
Vozes,1998.

PARKER, R. Cultura, economia política e construção social da sexualidade. In: LOURO,


G. (Org.) O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999.

TRINDADE, W. R.; FERREIRA, M de A. Sexualidade feminina: questões do cotidiano


das mulheres. Texto e Contexto Enferm. v. 17, n. 3, p. 417–426, jul-set. Florianópolis,
2008.

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DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO:


A EDUCAÇÃO JURÍDICA EM QUESTÃO

Marcelo Maciel Ramos


Doutor, Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG
mmramos@ufmg.br

Mateus Oliveira Barros


Graduando de Direito pela UFMG
moliveira.ufmg@gmail.com

Paula Rocha Gouvêa Brener


Graduanda de Direito pela UFMG
brener.paula@outlook.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

O ensino jurídico carrega milhares de especulações sobre moralidade e norma-


tividade, ao mesmo tempo que reflete os valores e percepções sociais a respeito
de qualquer temática. No que concerne à diversidade sexual e de gênero, é
notória a veiculação de características heteronormativas e cisnormativas como
o padrão adequado e moralmente aceitável no contexto jurídico. Este trabalho
pretende analisar, a partir de uma perspectiva crítica, como as estruturas do
Direito e a Educação Jurídica vigente no país tratam das questões de diversidade
de gênero e sexual.
Palavras-chave: diversidade; ensino jurídico; sexualidade; gênero; direitos de
minorias.

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Introdução

O Direito, enquanto elemento cultural de uma sociedade, espelha sua


realidade. No caso da sociedade brasileira, se configura o direito como um ins-
trumento social das elites, trazendo consigo as percepções e os julgamentos de
certo e errado que a maioria dominante possui.
Tais valores, sustentados pela moralidade cristã arraigada na construção cultural
nacional, em geral, desconsideram a pluralidade de identidades de gênero e de
identidades sexuais existentes, imponto como padrões a heterossexualidade e
a cisgeneridade.
Como expõe Borrillo:
Raramente mencionado explicitamente, o sexo é onipresente no
direito como instituição de origem patriarcal, na qual a subordi-
nação das mulheres e das crianças, como também a injunção à
heterossexualidade constituem os pilares do poder jurídico. A
exemplo de Foucault, o poder deve ser pensado de maneira mais
ampla, mais como força produtiva das relações sociais que como
simples poder repressivo (BORRILLO, 2010, p. 296)

Por outro lado, o Direito, além de se constituir como um reflexo do social,


possui mecanismos de automodificação que lhe permite se diferenciar, em
parte, das orientações hegemônicas vigentes. Vale dizer que em uma ordem
política democrática, o Direito deve garantir de modo igual as liberdades do
sujeito-cidadão e, para tanto, deve resguardar o pluralismo do espaço social,
garantindo às minorias uma fruição igual e livre dos seus direitos. Por essa razão,
é de extrema importância colocar em questão os valores que o aparato jurídico
reproduz e realiza, a fim de refletir sobre se suas ações (ou omissões) coadu-
nam-se com os princípios que norteiam nosso Estado Democrático de Direito.
A análise crítica da política legislativa e dos mecanismos judiciais que
produzem o Direito constitui importante recurso para diagnosticar a extensão
dos direitos garantidos e as violações perpetradas em relação às pessoas LGBT.
Ademais, é preciso enfrentar a omissão da educação jurídica brasileira em rela-
ção ao tema, colocando em debate sua capacidade ou interesse em promover
uma formação para juristas comprometida com uma democratização inclusiva
das prerrogativas e garantias jurídicas. Assim, é essencial lançar luz sobre os
atuais problemas dessa educação e quais avanços se mostram possíveis.

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Conforme afirmam Ferreira, Santos e Silva:


Na atual conjuntura social, a questão homem/masculino ou mulher/
feminina devem ser desmistificadas em virtude da escolha sexual
de cada um, isso tem levado a reformulação de políticas públicas
para atender a essas novas demandas que ao longo da história sem-
pre ficaram a margem da sociedade, ainda mais do que a categoria
feminina, em virtude da moral familiar, religiosa, bem como a falta
de esclarecimento social a respeito das diferenças culturais, religio-
sas, de etnia, sexualidade e etc. (FERREIRA, SANTOS, SILVA, 2015,
p.369)

Não devem os indivíduos, contudo, ficarem à mercê do demorado pro-


cesso legislativo e políticas públicas para encarar essas transformações. A luta
pela mudança deve se realizar também no campo do ensino jurídico, o qual
permite instrumentalizar o saber e as técnicas do direito em favor das minorias.
Diante disso, em um primeiro tópico será trabalhado o ensino jurídico
pátrio na sua atualidade, contextualizando-o e problematizando-o. No segundo
momento, abordaremos as percepções de gênero e sexualidade no Direito,
apontando para os seus atrasos e desafios. Por fim, serão apresentadas as con-
siderações finais, objetivando instigar um debate transformador para o tema.

O Ensino Jurídico é sexista e LGBTfóbico?

As percepções sexistas que reservam ao homem um papel político e nor-


mativo e afastam a mulher dos espaços de poder, colocando à em uma posição
de sujeição, são claramente incompatíveis com os princípios de igualdade e
liberdade sobre os quais o Direito contemporâneo se afirma. O mesmo se pode
dizer dos valores heteronormativos que sequestram de pessoas LGBT a mesma
fruição dos espaços públicos e as mesmas possibilidades de desenvolverem
suas identidades de modo livre.
É importante que se considere, em um Estado Democrático de Direito,
que marcadores sociais utilizados para inferiorizar e sujeitar determinados
grupos (e corpos) não condizem com os princípios da igualdade e da não dis-
criminação. O Direito, enquanto elemento de regulação da vida social, precisa
estar vigilante, no momento mesmo da reprodução das técnicas e saberes atra-
vés das formações jurídicas, em conter a estigmatização e inferiorização de
pessoas LGBT. “O mundo público da aprendizagem institucional é um lugar

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onde o corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido”, pois só assim
será possível um ambiente político democrático e desvinculado de preconceitos
(HOOKS, 2000, p.113).
A Educação Jurídica constituiu-se historicamente com certo desprezo pela
realidade social, convencida de que uma justiça universal deveria ser tecida
a partir de uma razão abstrata e apriorística. Ela estruturou todo o seu apa-
rato teórico sobre uma construção abstrata do sujeito de direito, isto é, sobre
uma definição de homem cujo corpo concreto e os seus marcadores sociais
não deveriam importar para atribuição de prerrogativas e poderes jurídicos e
políticos.
Todavia, o gênero e a sexualidade, bem como a classe e a raça - esses ele-
mentos concretos que se inscrevem nos corpos - nunca deixaram de ser levados
em consideração no momento do reconhecimento concreto de prerrogativas e
da fruição efetiva de direitos. O padrão social heterossexual e cisgênero conti-
nuou a se impor como condição para o empoderamento jurídico do sujeito. As
identidades consideradas dissidentes, para além de serem subvalorizadas, man-
tiveram-se à margem não só da vida social e do reconhecimento dos aparatos
jurídicos, mas também da educação em direito.
Em um campo como o direito, no qual os poderes repressivos e simbólicos
são especialmente relevantes, a formação de juristas, juízes, promotores, advo-
gados e agentes públicos tem um enorme impacto na capacidade efetiva dos
aparatos jurídicos de reconhecer e incluir minorias. Além disso, visto que seus
conceitos são relativamente abertos à significação doutrinária e jurisprudencial,
as quais perpassam pela interpretação subjetiva daqueles que a constroem, a
forma como serão conformadas essas interpretações e como será instrumenta-
lizado o direito dependem diretamente de como se estrutura o ensino jurídico.
O que se percebe atualmente é uma completa negligência nas formações
jurídicas em relação aos temas de gênero e sexualidade. O formalismo acrítico
que prevalece nas várias disciplinas do curso de direito colabora para que não
se coloque em cheque as proteções seletivas e soluções conservadoras que se
oferece ao estudante.
Não se questiona como o direitos civis da personalidade engessam a iden-
tidade de gênero; como são desiguais as relações contratuais entre homens e
mulheres; não são levantadas novas vias para o direito de família, que per-
manece estático frente a um cenário fluido em que não há mais uma única
formação familiar; não se discute o sintoma de violência social, o qual, mesmo

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com a criminalização de algumas condutas, como o feminicídio, permanece


sem problematização e discussão nas aulas de direito penal. Ademais, por meio
de um silêncio indiferente e abafado, continua o direito a negar, muitas vezes
pela simples omissão e silêncio, condições dignas de vida e iguais prerrogativas
jurídicas às pessoas trans e travestis, às mulheres, gays, lésbicas e toda uma infi-
nidade de identidades dissidentes.
Trazer para a pauta da formação de juristas a problematização desses
temas é o único caminho para que se possa pensar novas soluções e arti-
culações teóricas para as discriminações baseadas no gênero e sexualidade,
fomentando, desse modo, uma prática jurídica verdadeiramente democrática e
emancipatória. No entanto, conforme bem observa Hooks, ainda prevalece no
meio acadêmico a ideia de que “chamar atenção para o corpo é trair o legado
de repressão e de negação que nos tem sido passado por nossos antecessores na
profissão docente, os quais têm sido, geralmente, brancos e homens”(HOOKS,
2000, p.113).
Para transformar o direito é preciso, antes de qualquer coisa, subverter o
próprio ensino jurídico. É relevante ressaltar que os estudantes de direito, futu-
ros operadores do aparato jurídico, tendem a reproduzir não só os conteúdos
conservadores da ciência, mas a atitude seletiva e segregadora do seu habitus.
Desse modo, é preciso promover uma educação jurídica que se preocupe com
a realidade e as consequências materiais de suas teorias e que esteja disposta
a discutir a forma como as normas incidem de forma desigual em diferentes
setores da sociedade, especialmente em relação àqueles situados à margem.
Exemplo dessa diferente perspectiva em relação ao direito é apresentada
por Fabrízia Serafim. Ao trabalhar as teorias feministas do direto a autora aponta
para o papel do feminismo de proporcionar às mulheres o poder de se apropriarem
dos conceitos e representações sociais. Conforme a autora, “as  próprias  mulhe-
res puderam analisar,   justificar,   mas,   sobretudo,   criar   a   partir   de   suas
vivências conceitos e metodologias únicos” (SERAFIM, 2010, p.323).
A perspectiva feminista do direito, inserida na educação jurídica, seria
capaz de tornar o direito mais democrático e igualitário, provocando os seus
agentes a (re)pensarem os institutos jurídicos também segundo as necessidades
das mulheres. O mesmo se poderia dizer acerca das teorias queer e de sexuali-
dade no que toca a pessoas LGBT.
Afirmam Carvalho e Stancioli que “a vivência verdadeira da autonomia
da vontade implica a (auto)apropriação consciente do corpo dentro de um

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projeto de vida mais amplo, que inclua noções de construção da dignidade”


(STANCIOLI, CARVALHO, 2011. p. 287). Para tanto, faz-se inevitável a apro-
priação também do direito, transformando-o em um instrumento de proteção e
garantia dos projetos de vida individuais.
Vale aqui destacar que não basta a mera retórica. Não tratamos aqui de
demagogia, mas sim de pedagogia!

2. O Direito possui gênero? As percepções de Gênero e


Sexualidade no Direito  

Análises históricas demonstram que as estruturas que compõem o sistema


jurídico foram teorizadas e criadas por homens, em sociedades nas quais ele
se constituíam como os responsáveis pela dinâmica social e eram vistos como
os únicos seres capazes de dominar os outros. Em suma, é o direito fruto do
patriarcado.
Nesse sentido aponta  Pateman que:
Uma das vantagens da abordagem do problema do patriarcado
através da história do contrato sexual é mostrar que a sociedade
civil, inclusive a economia capitalista, tem uma estrutura patriar-
cal. As aptidões que permitem aos homens, mas não às mulheres,
serem “trabalhadores” são as mesmas capacidades masculinas exi-
gidas para se ser um “indivíduo”, um marido e um chefe de família
(PATEMAN, 1993, p. 63).

O Direito Positivo, pretendendo-se puramente racional, organiza-se em


um modelo binário e mais uma vez separa os homens das mulheres, ligando
estas à família e ao cuidado e aquele à administração social e à organização
metódica e normativa do mundo jurídico. Desse modo, há de se compreender
que as estruturas que constituem o Direito, como forma de poder, são represen-
tadas e representam o homem em primeiro lugar, de tal forma que as políticas
sociais de inclusão e democratização se direcionam ao público minoritário,
como as mulheres.
No entanto, é preciso ter em mente que essa “tentativa de qualificar os
sexos, dimensionando a questão de gênero para uma singularidade que não
elucida a identidade do sujeito” (FERREIRA, SANTOS, SILVA, 2015, p. 360). Essa

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insuficiência do binarismo é manifesta no direito brasileiro, devendo ser alvo de


desconstrução pelos juristas, em especial enquanto educadores.
Não obstante, permanecem os estudiosos negligentes à esse estudo na
seara jurídica. Nesse sentido: “os acadêmicos queer de direito tem prestado
pouca atenção à sala de aula das escolas de direito e mais atenção ao desen-
volvimento de cultura queer” (BROOKS, PARKES, 2004, p.91, tradução nossa).
Assim, enquanto se desenvolvem os estudos de gênero, permanece estagnado
o ensino jurídico em relação à esses problemas.

Considerações finais

Diante de todo o exposto, resta claro que subverter o ensino jurídico é


passo importante para viabilização da emancipação de mulheres e pessoas
LGBT, sendo desafio a ser discutido e problematizado. É preciso abandonar o
mito da neutralidade do direito e romper com o tradicionalismo acrítico de seu
ensino. Afinal, hoje não está a Justiça vendada, decidindo de modo imparcial,
mas sim voltada para a lógica da normativização de gênero, movida pelo pre-
conceito e autorizada pela omissão dos estudiosos do direito.

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Referências Bibliográficas

BORILLO, Daniel. O sexo e o Direito: a lógica binária dos gêneros e a matriz heteros-
sexual da Lei. Belo Horizonte: Meritum, v. 5, n. 2, 2010, pp. 289-321.

BROOKS, Kim; PARKES, Debra. Queering Legal Education: a project of theoretical


discovery. Harvard Women’s Law Journal, vol.27, pp.89-136, 2004.

FERREIRA, Amanda Cristina de Souza; SANTOS, Ana Carla dos; SILVA, Thaíres Lima
da. Gênero e relações de opressão: breves reflexões. Periódico do Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Gênero e Direito, Centro de Ciências Jurídicas - UFPB, n.1, pp.358-
370, 2015.

HOOKS, Bell. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, Guacira Lopes
(org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2ª edição, Belo Horizonte:
Autêntica, pp.113-124, 2000.

PATEMAN, Carole. O contrato Sexual, capítulo 2: confusões patriarcais. Paz e Terra,


1993, p. 38-65.

SERAFIM, Fabrízia Pessoa. Teorias feministas do direito: uma necessidade no Brasil.


Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, n.9, pp.319-333, 2010.

STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara. Da integridade física ao livre uso do corpo:


releitura de um direito da personalidade. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado;
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Org.). Manual de Teoria Geral do Direito Civil. Belo
Horizonte: Del Rey, p.267-285, 2011.

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REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA:


OS VESTIDOS DE ROMEO E O SAIATO NO RIO DE JANEIRO

Rachel Pulcino
Doutoranda em Educação (PUC-Rio) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro - Educação
rachelpulcino@gmail.com

Raquel Pinho
Doutoranda em Educação (PUC-Rio) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro - Educação
raquel.aps@gmail.com

Felipe Bastos
Doutorando em Educação (PUC-Rio) UFJF/
Colégio de Aplicação João XXIII - Ensino de Biologia
bastos.fe@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Como a diversidade de gênero é vivenciada na escola? Como estudantes exer-


cem práticas de resistência à padronização escolar? Tais questionamentos
motivaram a escrita desse ensaio, com o intuito de trazer à cena experiências
de estudantes do cotidiano que rompem com a rotina generificada da escola.
Para isso, partimos da análise de duas reportagens: a história de Romeo Clark,
na Inglaterra; e o um protesto de estudantes do Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro. Através desses acontecimentos, pretendemos analisar como essas expe-
riências fora do padrão heteronormativo surgem na escola e adquirem espaço
na mídia.
Palavras-chave: gênero; sexualidade; cotidiano; escola; mídia.

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Introdução

A escola é um tema frequente na mídia, tanto na exposição de seus acon-


tecimentos cotidianos, quanto na abordagem dos desafios que estão postos para
a educação na atualidade, com ênfase aos embates entre as diferentes esferas
de poder. Ao observarmos essa presença da temática escolar na mídia, encon-
tramos algumas cenas que expressam as identidades de gênero não-binárias no
conjunto de relatos jornalísticos sobre a escola.
O binarismo de gênero se reitera pelas diversas áreas e saberes da socie-
dade. Como aponta Neilton dos Reis e Raquel Pinho (2016, p. 10), “a mídia vai,
através de produções audiovisuais, realçar diferentes características ditas essen-
ciais e específicas para ser homem (como virilidade e racionalidade) e, assim,
construir num campo simbólico o que significa efetivamente ser homem”; o
mesmo ocorre para o ser mulher. Inclusive, jornais e revistas, assim como outras
produções escritas, também compõem a produção desse repertório de signifi-
cados que conferirá sentido às identidades de gênero. Na contra-mão da rotina
generificada da escola, encontramos, dentre diversas notícias, as experiências
de Romeo Clark e suas roupas “inadequadas”, na Inglaterra; e a mobilização de
estudantes do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, que promoveram um saiato1
na escola.
Partimos da concepção de que as relações de gênero são imersas em
relações de poder e são constitutivas de todas as relações estabelecidas entre
os sujeitos que integram o corpo social (Joan SCOTT2, 1995). Dessa forma, o
presente trabalho busca analisar como esses casos, que rompem com a forma
como os gêneros são expostos no cotidiano escolar, são apresentados nas notí-
cias selecionadas e visa contribuir para uma desconstrução de estereótipos e
preconceitos de gênero nos espaços escolares.

1 Movimento de repúdio às normas de gênero através da utilização por parte dos alunos das tradicio-
nais saias femininas do Colégio Pedro II.
2 Referenciar autoras com nome e sobrenome e não apenas sobrenome como feito usualmente é uma
forma de evidenciar os gêneros e, por consequência, as mulheres na pesquisa, o que contribui com
as lutas de reconhecimento e com valorização da identidade feminina de forma mais ampla (Raquel
PINHO; Rachel PULCINO, 2016).

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Caminhos metodológicos

O presente ensaio foi elaborado como uma pesquisa qualitativa, cujo prin-
cipal objetivo é compreender como duas experiências que quebram a lógica do
cotidiano das relações de gênero na escola são expostas através de meios de
divulgação midiáticos no formato de reportagens.
Seguimos a metodologia da análise de conteúdos descrita por Roque
Moraes (1999), pois entendemos que o método contribui para a pesquisa na
medida em que auxilia na percepção de sentidos simbólicos que através de
uma simples leitura não seria possível, pois a leitura ficaria restrita ao comum.
Assim, nosso interesse está em ir além de uma leitura superficial das
reportagens, mas expor o quanto e como elas simbolizam e apresentam as
identidades de gênero presentes na escola hoje. Consideramos relevante tra-
zer as práticas desenvolvidas na escola por parte dos estudantes, evidenciando
que, apesar de existir uma forte cultura homogeneizadora dos gêneros, a escola
pode ser lugar e espaço de exercício de práticas de resistência à padronização
e à normatização.

Relatos de preconceito e resistência: os vestidos de Romeo e o


saiato do Rio de Janeiro

Nesse exercício de tentar perceber como a diversidade de gênero entra


pelos muros da escola, através de reportagens jornalísticas, encontramos as
experiências de um adolescente (O GLOBO, 2014) e de uma criança de 5 anos
(Wellington SOARES, 2015). Suas histórias, apesar de se construírem de modos
distintos, nos contam sobre experiências que fogem ao padrão e, por isso,
são interpelados pela equipe da escolar a retornar à norma. Estas reportagens
demonstram o quanto ainda precisamos caminhar nos debates sobre as rela-
ções de gênero e sexualidades na escola.
Em setembro de 2014, no Rio de Janeiro, um aluno do Colégio Pedro
II foi proibido de utilizar uma saia, tradicionalmente utilizada como uniforme
pelas meninas nesta escola. O aluno, identificado como transgênero3 pela

3 As palavras transgênero e transexual são utilizadas para pessoas que não se enquadram no gênero
determinado a elas no nascimento, ou antes, dele, uma vez que durante a gestação já existe expec-
tativa em torno da criança quanto ao seu gênero. Os gêneros não-binários, além de transgredirem à

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reportagem4, estava vestido com o uniforme característico do sexo masculino


e durante um intervalo, foi ao banheiro e vestiu a saia do uniforme feminino.
Após a mudança de roupa foi solicitado pela direção que esse aluno recolo-
casse a calça tradicional do uniforme. O aluno fez a mudança e nove dias após
o ocorrido, estudantes do sexo feminino e masculino foram à escola de saia,
como uma forma de protesto, diante da atitude da direção com o aluno.
Em nota, a escola afirmou que sua atitude estaria de acordo com o Código
de Ética Discente que não permite que alunos do sexo masculino se vistam com
roupas do sexo
feminino. A direção da escola disse que o estudante não tinha manifes-
tado nenhuma intenção de utilizar outro nome que não fosse o de batismo.
Sobre essa declaração, a reportagem indica que amigos do aluno em questão
afirmam em suas redes sociais que ele tentava antes desse acontecimento afir-
mar sua identidade de menina na escola.
Em fevereiro de 2015, o caso de Romeo Clark foi divulgado no Brasil
na capa da revista Nova Escola. Romeo, de apenas 5 anos, fora proibido de
frequentar um projeto em sua escola, na cidade de Rugby, no Reino Unido, por-
que não usava roupas de menino. Ele gostava de ir ao projeto trajando vestidos
e, segundo a instituição de ensino, ele só poderia retornar quando começasse a
vestir roupas adequadas ao seu gênero.
Além da história de Romeo, a reportagem traz mais três casos de precon-
ceito nos quais a diversidade sexual e de gênero são colocadas em xeque pela
escola. São as histórias de Iana, Roberta e Emilson.
Iana apresenta sua experiência com a homofobia e o sexismo na escola.
Conta que desde pequena teve problemas na escola por não se comportar
como menina e que sofreu diversas sanções, como ser chamada a atenção por
não se sentar como menina, ou ter sua mãe chamada à escola pela direção para
falar sobre o seu comportamento. Iana diz na reportagem que tudo ficou mais
claro quando já estava no final do ensino fundamental e acabou se apaixonando

essa expectativa, ultrapassam os limites dos polos e se fixam ou fluem em diversos pontos do espec-
tro de gênero (Neilton DOS REIS; Raquel PINHO, 2016).
4 Segundo nota publicada pelo Retrato Colorido, coletivo LGBT do Colégio Pedro II, em seu Facebook,
o aluno não se identifica com a transexualidade, mas seria um aluno não-binário, ou seja, que não
se identifica na dualidade entre menino ou menina. Disponível em: <https://www.facebook.com/
retratocolorido/posts/ 492915740844988>.

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por uma colega. Iana conta que sua postura de aceitação da sexualidade trouxe
outras questões, pois apesar do discurso escolar dizer que não havia nenhum
problema em ser homossexual, a recomendação era que não precisa se falar
sobre isso. Para ser homossexual era preciso estar calado.
“Entrei em depressão e tentei me matar três vezes. Decidi contar
para a minha mãe. Ela me apoiou muito e aí nada mais me impor-
tava. Cortei meu cabelo, joguei fora as roupas de menina que eu
não gostava, me libertei. Passei a falar abertamente sobre a minha
sexualidade, mesmo dentro da escola. Nesse momento, fui abor-
dada várias vezes por professores e pela coordenação” (Iana).

Para Iana, os constrangimentos só passaram quando ela mudou de escola,


da privada para pública, onde encontrou um espaço de trocas e debates sobre
o assunto.
O caso de Roberta mostra mais uma vez a escola assumindo uma postura
dura e preconceituosa. Sua experiência diz dos abusos que as meninas sofrem
cotidianamente nas escolas e da passividade com que a equipe escolar lida
com isso. Na volta de uma atividade esportiva da escola, Roberta conta que
fora assediada por três alunos que tentaram tocar seus seios, um professor que
assistiu ao acontecimento levou o caso à direção.
“Tive de ouvir frases como: ‘Você precisa encarar isso como uma
brincadeira’, ‘Talvez você tenha provocado’ e ‘É normal que isso
aconteça com meninos dessa idade’. Era como se eu - e não os
meninos que tentaram me tocar - tivesse feito algo errado. Numa
reunião com minha mãe, o coordenador chegou a dizer que para
me mudar de sala teria de inventar uma história, porque esse pro-
cedimento só era tomado quando algo grave acontecia. Como se o
que eu passei não fosse um tipo de violência” (Roberta).

A experiência de Emilson, caso que fecha a reportagem da Nova Escola,


retoma características apresentadas na reportagem do jornal O Globo, porém
trazendo a situação narrada pelo aluno que sofreu o preconceito. Emilson conta
que não acredita nas definições de gênero de masculino e feminino como são
apresentadas e que se considera uma pessoa agênero, ou seja, alguém que
vivencia ausência de gênero. Ele afirma que uma amiga havia deixado uma saia
do uniforme com ele e que um dia decidiu ir para a escola utilizando a saia.

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Emilson conta que na última aula do dia foi chamado a comparecer à sala da
gestão pela diretora adjunta e pelo coordenador pedagógico:
“Não fui obrigado, mas a presença dos dois me fez pensar: ou eu
tiro ou pode haver consequências ruins para mim. [...] Nós sempre
realizamos atividades, palestras e atos para discutir temas ligados
ao gênero e à sexualidade. Como protesto ao que tinha acontecido,
promovemos um “saiato” duas semanas depois. Mais de 30 alu-
nos, homens e mulheres, foram de saia à escola no dia marcado. O
caso repercutiu e saiu em diversos jornais. Infelizmente, a gestão da
escola decidiu não tocar no assunto” (Emilson).

Este estudante conta que, em conversa, a gestora disse que tinha contato
com as discussões de gênero desde a faculdade e que sabia que na Escócia
homens vestiam saias, mas que isso não acontecia no Brasil e, portanto, deveria
retirar a saia.

Considerações finais

Nessas reportagens podemos identificar como a diversidade de gênero e


as sexualidades são vivenciadas e reconhecidas no cotidiano escolar. Na repor-
tagem do jornal O Globo, no qual encontramos a visão da escola sobre o saiato,
há uma preocupação em mostrar que não houve uma postura arbitrária diante
do ocorrido e que a interdição foi negociada.
Por outro lado, as experiências trazidas na revista Nova Escola, mostram
o quanto o espaço escolar pode ser preconceituoso com as identidades não-
binárias. Na reportagem, encontramos relatos diferentes sobre o preconceito
vivenciados por estudantes: Romeo, um menino de 5 anos que gostava de usar
vestidos; Iana, uma menina que se assumiu homossexual e a escola pede para
ela não se expor; Roberta, que foi assediada por outros estudantes da escola e
culpabilizada pelo assédio sofrido; e Emilson, que foi coagido pela equipe da
escola a trocar de roupa.
Curiosamente, as reportagens do jornal O Globo e da revista Nova Escola
se cruzam. As duas matérias narram o mesmo acontecimento, a história de
Emilson, porém sobre óticas distintas. A reportagem do jornal traz a visão da
gestão e indica que o erro seria do aluno, enquanto na revista encontramos a
experiência narrada pelo próprio estudante, que diz ter se sentido coagido pela

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presença dos dois gestores, apesar de não ter sido obrigado a tirar a saia por
eles.
Essas histórias nos contam sobre as práticas de interdição e as relações
de poder presentes no cotidiano escolar que insistem em silenciar e invisibilizar
as diferenças. Elas mostram o quanto à escola se configura como um espaço
de vigilância das sexualidades e das marcações de gênero, sistematizando prá-
ticas de controle e regulação dos corpos dos estudantes. Como aponta Rogério
Junqueira (2013), a instituição escolar pratica a pedagogia do armário, quando
seu discurso diz que não há problema em ser homossexual, que está tudo bem.
Mas, apesar disso, ainda pede para seus estudantes comportem-se adequada-
mente de acordo com o seu gênero.
Sobre a história de Emilson, vemos o quanto sua presença e a publici-
zação impactaram a vida em sua escola, quando um ano após o ocorrido, o
Colégio Pedro II, lança uma portaria no dia 14 de setembro de 2016, sobre uso
de saias por estudantes do sexo feminino e masculino.
(...) escola federal fundada em 1837, não tem mais uniformes mas-
culino e feminino. Na prática, o uso de saias está liberado para os
meninos. Em 2014, estudantes fizeram um “saiato”, depois que uma
aluna transexual vestiu a saia de uma colega e teve de trocar o uni-
forme. Desde maio deste ano, o Pedro II adota na lista de chamada
o nome social escolhido por alunos e alunas transexuais. (Clarissa
THOMÉ, 2016).

Essas ações demonstram o quanto, apesar de ainda encontrarmos resistên-


cias a possibilidades outras de existência fora dos padrões feminino e masculino,
o ambiente escolar pode abrir espaço para que outros corpos, considerados
como abjetos ou fora do padrão, possam habitar e re-existir no cotidiano escolar.
Ao mesmo tempo, esses relatos mostram que as crianças e os jovens de
hoje, assim como seus responsáveis e colegas, não aceitam mais serem silencia-
dos e terem suas identidades invisibilizadas, como é o caso de Romeo, que teve
o apoio da mãe, e do saiato, que contou com apoio de estudantes de ambos
os sexos. Essa atitude demonstra que apesar das posturas vigilantes da hetero-
normatividade nas escolas, existem espaços de resistência e possibilidades de
transgressão dessa lógica.

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Referências

DOS REIS, N.; PINHO, R. Gêneros não-binários: identidades, expressões e educação.

Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 7-25, 2016.

JUNQUEIRA, R. D. Pedagogia do armário: a normatividade em ação. Revista Retratos


da Escola, Brasília, v. 7, n. 13, p. 481-498, 2013.

MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p.


7-32, 1999.

SOARES, W. Educação sexual: precisamos falar sobre Romeo... Nova Escola, edição
279, 2015. Disponível em: <http://novaescola.org.br/formacao/educacao-sexual-preci-
samos-falar- romeo-834861.shtml>. Acesso em: 12 jun. 2016.

O GLOBO. Meninos do colégio Pedro II vão à escola de saia em apoio a colega


transexual. O Globo, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/
sociedade/ educacao/meninos-do-colegio-pedro-ii-vao-escola-de-saia-em-apoio-co-
lega-transexual- 13893794>. Acesso em: 12 jun. 2016.

PINHO, R.; PULCINO, R. Desfazendo os nós heteronormativo da escola: contribui-


ções dos estudos culturais e dos movimentos LGBTT. Educação e Pesquisa. São Paulo,
v. 42, n. 3, p. 665-680 , jul./set. 2016.

SCOTT, J. W. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade,
Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.

THOMÉ, C. Colégio Pedro II, no Rio, libera saia para meninos. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 19 de setembro de 2016. Disponível em: <http://educacao.estadao.com.br/noticias/
geral,colegio-pedro-ii-no-rio-libera-saia-para-meninos,10000077010>. Acessado em
12 de dezembro de 2016.

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“ELES CONSIDERAM SER GAY PIOR DO QUE SER NEGRO”


- NARRATIVAS DE UM ESTUDANTE HOMOSSEXUAL NEGRO
SOBRE O COTIDIANO ESCOLAR

Rita de Cássia Santos Côrtes


Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPGREC)
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié.
ritalice@yahoo.com.br

Marcos Lopes de Souza - Orientador


Doutor em Educação,
Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
markuslopessouza@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

A produção que segue é parte de uma dissertação de mestrado vinculado


ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade
(PPGREC) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de
Jequié. O objetivo é buscar compreender que discursos emergem nas narrati-
vas de um estudante homossexual negro do ensino médio, que estão voltados
para a sua orientação sexual e etnia. A pesquisa se insere em bases teórico-
metodológicas de autores/as que estão inscritos nas vertentes pós-críticas. A
metodologia empregada na construção de dados é a entrevista narrativa e para
a análise optou-se por operar com os discursos conforme a visão foucaultiana.
Palavras-chave: discursos; cotidiano escolar; homossexualidades; violência.

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Elementos introdutórios

Este texto corresponde a uma parte integrante de uma pesquisa de mestrado


do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade
(PPGREC) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de
Jequié.
Trata-se de compreender, por meio das narrativas de um estudante homos-
sexual negro do ensino médio, que discursos envolvendo relações de poder
saber emergem no cotidiano escolar, que estão ligados a sua orientação sexual
e etnia. Para a construção dos dados foi empregada a entrevista narrativa, cuja
metodologia possibilita “reconstruir as significações que os sujeitos atribuem
aos processos de escolarização” (ANDRADE, 2014, p. 176).
Na fase empírica, o sujeito entrevistado salientou que gostaria que seu
nome real fosse utilizado na pesquisa. Dessa maneira, registramos que esse
sujeito se chama Renato, um jovem que nasceu no ano de 1997 no Rio de
Janeiro, capital. À época da recolha dessas informações, cursava o primeiro ano
do ensino médio regular do turno noturno de uma escola estadual localizada
em um bairro periférico de Jequié, município situado na região sudoeste da
Bahia.
A investigação se insere em bases teórico-metodológicas de autores/as
que estão inscritos nas vertentes pós-críticas. Para a análise dos dados produzi-
dos, optou-se pela perspectiva de se operar com os discursos conforme a visão
de Michel Foucault (2015) que concebe o discurso como um elemento descon-
tínuo, disforme e instável, em que se articulam poder e saber.
Nas falas de Renato, há evidências de que a violência se manifesta de
várias maneiras, dentre as quais podem ser elencadas agressões verbais e físicas
por parte dos colegas e invisibilizações e silenciamentos expressados pelos/as
professores/as e direção escolar. Em contrapartida, em muitas situações de pre-
conceitos e discriminações a que o entrevistado era submetido, havia algumas
estratégias empregadas para o enfrentamento e resistência. As cenas a seguir se
referem ao cotidiano em uma escola de tempo integral, quando ele era estu-
dante do ensino fundamental I na cidade do Rio de Janeiro.

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[...] os meninos seguravam no próprio pênis e falavam: Pega aqui, sei


que tu gosta!
Os problemas escolares em relação a minha orientação sexual
começaram por meado do 3º ano do ensino fundamental. Ter que
passar, todos os dias que chegava na escola, por coisas do tipo: os
meninos seguravam no próprio pênis e falavam: Pega aqui, sei que
tu gosta!

Ao relatar que os meninos seguravam o próprio pênis e diziam para ele


“pega aqui, eu sei que tu gosta”, leva-nos a um texto de Roberto DaMatta
(2010) sob o título Tem pente aí? Reflexões sobre a Identidade Masculina, em
que o autor narra uma brincadeira perturbadora de sua juventude que era pra-
ticada pelos rapazes em uma via pública, onde eles costumavam se encontrar.
A brincadeira consistia em que um colega apalpasse as nádegas do outro, a
que imediatamente se seguia a pergunta: tem pente aí?”1, e a masculinidade do
apalpado era julgada de acordo com sua reação; assim, se ele reagisse violen-
tamente, era acusado de possuir uma sensibilidade aguçada na bunda, então,
o recomendável era que não tivesse nenhum tipo de reação. Ao relembrar do
episódio, DaMatta (2010, p. 137) conclui que “a brincadeira era um modo ritu-
alizado, posto que ambíguo, arbitrário, repetitivo e socialmente aprovado, de
chamar a atenção para uma parte sagrada do corpo masculino: o traseiro”.
Na situação de DaMatta, havia uma regra para o julgamento, ou seja, a
constatação de uma suposta homossexualidade se dava mediante a reação do
sujeito que era agredido, e embora fosse uma prática grosseira, a brincadeira
era feita com todos os garotos, sem distinção, sendo que a ação se configurava
como um processo investigativo, diferentemente do que ocorria com Renato,
em que o juízo de valor era feito antecipadamente já que o assédio acontecia
especialmente com ele.
A bunda, em nossa cultura heterossexista, é reconhecidamente como um
local sagrado do corpo masculino, algo que não pode ser tocado, manipu-
lado por outrem do mesmo sexo, com ou sem a autorização da pessoa que a

1 Da Matta relata que, naquela época, era costume dos jovens rapazes usar no bolso traseiro da calça,
além de uma carteira com dinheiro e documentos, um pente e um lenço, por isso nada mais legí-
timos e “natural” do que passar a mão na bunda do companheiro com a desculpa de solicitar um
pente.

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pertence, pois fere a masculinidade; o pênis, ao contrário da bunda, é o que


simboliza a masculinidade, por isso precisa/deve ser tocado, manipulado, como
os meninos cobravam insistentemente que Renato o fizesse.
Nos dois casos, tanto na narrativa de DaMatta quanto na de Renato,
embora haja uma distância de tempo, há uma evidência de que ser homem
representa demonstrar, através dos gestos, em todos os momentos um modelo
único de masculinidade, e nesse sentido, Roberto DaMatta (2010, p. 138) acres-
centa: “para nós, ‘ser homem’ não era apenas, ter um corpo de homem, mas
mostrar-se como ‘masculino’ e ‘macho’, em todos os momentos”.
[...] eles consideram ser gay pior do que ser negro, então, pra que me
usar de negro sendo que eu já era gay?
Conversava com alguns que sofriam igual a mim, não pelo mesmo
problema, mas por ser gordo ou por ser negro, isso no Rio aconte-
cia, mas eu nunca sofri por ser negro porque eu sou gay. As pessoas
consideram isso pior. Sabe, se for analisar, eles consideram ser gay
pior do que ser negro, então, pra que me usar de negro sendo que
eu já era gay?

À proporção que outros colegas fazem a leitura do corpo e gestos de


Renato, além de expô-lo, eles anunciam que as homossexualidades devem ser
conduzidas a um lugar marginalizado, ao mesmo tempo em que eles também
se posicionam lendo a si próprios, e ao fazê-lo, estão se enquadrando em uma
identidade que é fixa, proposta pelas normas de uma cultura que impõe um
saber de não poder pensar em outras formas de ser homem ou ser mulher
senão aquela dada pela natureza.
Nesse sentido, Silva (2014) cita que a identidade se contrapõe à diferença
pela afirmação e negação, pois enquanto que a primeira se afirma, imediata-
mente nega a segunda, estabelecendo uma fronteira entre o eu e o outro. Assim,
para os garotos da classe, eles representam a masculinidade referendada pela
norma, possuem uma identidade, enquanto que Renato, por ser afeminado, é a
diferença, o sujeito levado à condição de abjeto.
Na afirmativa de Renato, naquela escola, os sujeitos que não correspon-
dem aos padrões normatizadores, são discriminados, porém, o marcador social
que o diferencia com maior realce perante os demais é sua sexualidade, e não o
fato de ser negro. Nesse ambiente, ser gay é pior. No entanto, ser negro também

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não significa algo agradável, pois garotos que não possuíam jeito afeminado,
mas eram negros, também eram alvo de preconceito e discriminação.
O conjunto de ações produziu uma classificação e levou Renato à condi-
ção de desviante pelos próprios colegas, ou seja, aquele que não corresponde
à fixidez dos corpos conforme a norma prescrita, ao que Miskolci (2005, p. 28),
diz que essa classificação “resulta de uma variedade de contingências sociais
influenciadas por aqueles que detêm o poder de impor essa classificação”, e
nessa classe heterogênea parece que as outras crianças fazem parte do con-
junto normalizador hegemônico.
O comportamento desses alunos nos remete a pensar que sua postura é
o resultado de uma produção cultural se entendemos do ponto de vista de que
a cultura é uma construção social que engendra valores e posiciona sujeitos em
locais situados à margem ou no centro, de acordo com a valoração estabele-
cida pelas regras determinantes em um grupo social. Assim, no instante em que
os colegas de Renato se manifestam discriminando-o, eles estão anunciando
que naquele ambiente não é permitida a convivência com masculinidades dife-
rentes das propostas pela normatividade.
[...] aí ele começou a me zoar com essa música[...]
[...]a professora sempre arrumava a gente pra ver filme, tinha aque-
las sessões, era quarto ou quinto ano, por aí. [...]era uma coisa livre,
depois do almoço, aí levaram o DVD de Latino. Quando começou
a tocar essa música (Renata)2, tinha um menino chamado Emerson.
[...] aí ele começou a me zoar com essa música. Chegava na minha
cabeça e ficava batendo assim (faz o gesto batendo nos ouvidos) e
aí todo mundo começou a entrar na pilha dele, eu pedia pra parar,
ele não parava e a professora não estava na sala. Aí eu comecei a
chorar e saí correndo da sala e fui pra secretaria. Aí, nisso que não
se resolveu nada, voltaram pra sala e tiraram o DVD e todo mundo
voltou pra sala e ficou por isso mesmo.

Para Ferrari (2010) nas situações de humilhação, existem, geralmente, três


sujeitos: o primeiro é aquele que humilha por se sentir autorizado, o segundo
sujeito, que é humilhado por ser diferente, e um terceiro sujeito que é simulta-
neamente espectador e árbitro, sendo-lhe atribuída a capacidade de identificar

2 Título de uma música do cantor Latino que fez muito sucesso no ano de 2005.

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os dois primeiros. Quando Renato diz que “todo mundo entrou na pilha dele”,
referindo-se aos colegas, evidencia que eles se posicionaram a favor do sujeito
que humilha, ao mesmo tempo em que o potencializa, imputando-lhe superio-
ridade, enquanto que o segundo sujeito é identificado como inferior, não só em
relação ao autor da ação, como também ao grupo.
Quanto ao garoto que iniciou a agressão, ele se sentiu fortalecido com a
animação da classe, que nesse momento havia se tornado uma plateia para o
seu show. O interessante é observar também que Renato, embora não tenha
reagido às agressões, buscou uma saída para se defender, se consideraremos
que a sua fuga da sala de aula até a secretaria da escola é uma estratégia que
ele encontrou para a interrupção das agressões.
Ao dizer que o DVD foi tirado, todo mundo voltou para a sala e ficou
por isso mesmo, Renato denuncia que a escola silenciou mediante o fato. No
entanto, o silêncio, muito mais do que a ausência da fala, pode ter vários senti-
dos, conforme Marques e Ferreira (2011, p. 39) mencionam que “o silêncio põe
em jogo processos de significação”. Nessa situação, sem dialogar com a classe,
sem questionar quais incômodos existem com relação ao colega, a professora
abriu espaço para que as práticas de violência relacionadas à homossexualidade
continuem naquele espaço educativo e esse silenciamento nos faz suspeitar que
a escola esteja favorecendo a construção social hegemônica que hierarquiza,
classifica e empurra pessoas para a margem pelas suas subjetividades.
Todavia, as atitudes violentas de preconceito e discriminação nos desafia
a pensar que, enquanto espaço heterogêneo e que produz saberes, a escola não
deve silenciar. Assim, em situações semelhantes há alguns posicionamentos e
atitudes que podem ser mediadas como problematizar a situação fazendo com
que os alunos reflitam sobre suas ações relacionadas às diferenças, que estão
presentes em cada um, acrescentar ao planejamento pedagógico temas que
se refiram às performances de gêneros não-hegemônicas, às sexualidades, e
finalmente à homofobia, e inserir no planejamento a questão da violência com
vistas a evidenciar para os alunos que esse fenômeno traz consequências tanto
para o agredido quanto para o agressor e ainda se estende a outras pessoas
mesmo que não estejam envolvidas diretamente nos fatos.

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Elementos conclusivos

Dentre as narrativas, Renato, garoto homossexual e negro, elenca epi-


sódios acontecidos na escola desde os anos iniciais do ensino fundamental,
quando ainda era criança, que se tornaram significativos a ponto de merecerem
destaque.
Ao problematizar essas questões, compreendemos que este, assim como
o todo do texto dissertativo resultante das investigações a que nos desafiamos,
é apenas um conhecimento, um discurso parcial, a partir do olhar que tivemos
sobre as relações de poder que operam nos discursos sobre as homossexuali-
dades e a etnia.
Assim, outros olhares trarão outros discursos, ampliarão as formas de
pensar sobre os escritos que aqui se encontram, afinal, embora este trabalho
represente a síntese de um olhar, sabemos que ele está dialogando com outros,
por isso a recorrência a estudiosos e teóricos que dão consistência às discussões
sobre o tema investigado.

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Referências

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cacionais pós-estruturalistas. In: MEYER, Dagmar Estermann e PARAÍSO, Marlucy Alves
(orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. 2 ed. Belo Horizonte:
Maza Edições, 2014.

DaMatta, Roberto. Tem pente aí? Reflexões sobre a identidade masculina. Enfoques
- revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ. Volume 9, número 1, agosto
2010. Disponível em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques/article/
view/104/96. Acesso em 08 maio 2015, 8h.

FERRARI, Anderson. “Eles me chamam de feia, macaca, chata e gorda. Eu fico muito
triste” – classe, raça e gênero em narrativas de violência na escola. Instrumento:
Revista de Estudos e Pesquisa em Educação. Juiz de Fora, v. 12, nº 1, jan./jun. 2010.
p. 21-30.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

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no/do cotidiano escolar. In: FERRARI, Anderson e MARQUES, Luciana Pacheco (orgs.):
Silêncios e Educação. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2011.

MISKOLCI, Richard. Do desvio às diferenças. Teoria & Pesquisa. Nº 47. Jul./dez. 2005.
p. 9-41.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In:


____________________(org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos
culturais. 15 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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DIFERENÇA EM DISPUTA: OS EMBATES ACERCA


DO KIT ANTI-HOMOFOBIA

Thalles do Amaral de Souza Cruz


Doutorando em Educação
ProPEd-UERJ
thallesamaral@yahoo.com.br

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Em minha dissertação intitulada “Diferença em disputa: os embates acerca do kit


anti-homofobia (2004-2012)”, analisei os embates discursivos acerca da imple-
mentação do projeto Escola Sem Homofobia (2011), em especial o chamado
“Kit Anti-Homofobia”. A partir das argumentações apresentadas publicamente
por diversos atores, e apoiando-me nas contribuições de autores da teoria do
discurso, da teoria pós-estruturalista, dos estudos pós-coloniais e da teoria
queer procurei promover um diálogo entre tais teóricos e discussões do campo
de currículo, visando refletir sobre como tal campo e a educação de modo
geral são perpassados por disputas de significações que, apesar de serem sem-
pre contingenciais e abertas a novos significados, se apresentam como sólidas
e reforçadoras de uma lógica binária.
Palavras-chave: kit anti-homofobia; teoria do discurso; currículo; normativi-
dade; políticas públicas

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Introdução

Neste trabalho busquei analisar as seguintes questões que giraram em


torno das disputas do Kit Anti-Homofobia do MEC e seu consequente veto: o
que pode ter contribuído para que o discurso contrário (argumentos, estratégias,
meios...) à implementação do referido projeto tenha saído hegemônico1 nesta
disputa? Seria este material do MEC um desestabilizador nesta discussão binária
ou reforçaria este binarismo ao hierarquizar não só o que é considerado legí-
timo e ilegítimo, mas também ao criar uma hierarquia entre os “ilegítimos”, os
que praticam sexualidades desviantes?
Discussões acerca do caráter natural/essencializador/universal de certas
práticas sexuais e de sua respectiva política de identidade estiveram fortemente
presentes no embate que visava hegemonizar determinadas significações em
torno do Kit. De um lado uma lógica mais conservadora que justificava seus
posicionamentos como sendo a defesa da família, dos bons costumes e dos
valores religiosos, tendo como exteriores constitutivos as práticas e sujeitos
LGBTs. De outro, articulações que justificaram seus posicionamentos como
sendo a defesa da democracia, dos direitos humanos, dos direitos das pessoas
identificadas como LGBTs e do Estado laico, tendo como exteriores constituti-
vos os dogmas cristãos. No centro desta disputa, a implementação ou não do
referido kit.
O material foi vetado pela presidenta Dilma Rousseff e teve sua distribui-
ção vetada mesmo com os criadores do “Kit” e o próprio MEC tendo reiterado
que este material visava capacitar gestores(as) e professores(as) sobre os prin-
cipais conceitos referentes à diversidade sexual e de gênero e eliminação da
homofobia no ambiente escolar, tendo sido gerado um verdadeiro pânico moral
(MISKOLCI, 2007) acerca do que seria discutido e exibido para crianças e ado-
lescentes em todo o país.

1 Considero que o discurso contrário ao projeto tenha saído hegemônico no período que abarcou este
estudo não só porque a denominação “Kit Gay”, em tom pejorativo, ficou popularmente conhecida,
como também pela suspensão, por parte do Governo Federal, da continuidade do projeto.

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Metodologia

Para analisar as articulações discursivas e os enfretamentos destas em


torno do kit, acompanhei os argumentos dos atores políticos em alguns veí-
culos de imprensa de relevância nacional2. Em relação às reportagens, fiz um
levantamento que abrange o período de 02/05/2011 a 14/10/2012 nos sites dos
seguintes veículos: jornais O Globo, Folha de S. Paulo, Correio Braziliense e
Folha Universal, revista Carta Capital, portais de notícias G1 e R7. A eleição
destes ocorreu por serem veículos de relevância nacional, pertencentes aos dois
maiores conglomerados de comunicação do Brasil, possuindo alcance nacional
e internacional, mas principalmente por serem grupos de posicionamentos bem
distintos. A análise seguiu a metodologia da teoria do discurso, ou seja, procu-
rou entender a forma como se constituíram cadeias equivalenciais que levaram
a hegemonização de certas posições.
Com a análise das reportagens foi possível identificar dois grandes grupos
heterogêneos que se articularam formando cadeias equivalenciais, uma favo-
rável e outra contrária à distribuição dos materiais nas escolas públicas, que
se utilizavam da regulação midiática para repercutirem seus posicionamentos.
O grupo que posicionou-se a favor neste período foi composto por diversos
agentes ligados à defesa dos Direitos Humanos. Já contrários à implemen-
tação que se colocavam como defensorxs dos bons costumes e da família,
apareceram com grande destaque o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ),
xs membros da Frente Parlamentar em Defesa da Família (FPDF), a bancada
religiosa do Congresso Nacional formada pela Frente Parlamentar Evangélica
(FPE), a Pastoral Parlamentar Católica (PPC) e as mídias ligadas ao grupo Record
(Jornal Folha Universal e Portal R7).

O embate e o veto

Em 2010, a Comissão de Legislação Participativa convocou para os dias


22 e 23/11 o seminário “Escola Sem Homofobia” com o objetivo de debater
e analisar de que forma a escola poderia contribuir para promover o respeito

2 Também foram analisados pronunciamentos públicos realizados por parlamentares nos plenários da
Câmara do Deputados e do Senado Federal que podem ser encontrados em seus sites oficiais.

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à diversidade sexual. Neste dia, André Lázaro em sua participação como


representante da SECAD (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade) do MEC fez uma fala descontraída que foi utilizada como estopim
para que políticos e grupos contrários à que estas temáticas fossem levadas às
escolas, criassem uma polêmica com repercussões em todo o país: “Uma das
coisas que eu me traí, foi que eu fiz uma brincadeira quando não devia, dizendo
que a gente tinha discutido meses quanto da língua entrava no beijo da boca, e
escolhemos não ter beijo na boca.” (LÁZARO apud VITAL DA CUNHA, 2012,
p.113).
No dia 30/11/2010, no plenário da Câmara, Bolsonaro deu início à denún-
cia “ao maior escândalo” que ele já havia presenciado em décadas como
deputado. Ele falou sobre a participação de André Lázaro no seminário acima
e relatou resumidamente o conteúdos de dois vídeos do material educativo
(“Encontrando Bianca” e “Torpedo”). Neste discurso, o deputado frisa que o
material seria para crianças de 7 a 10 anos, quando os documentos oficiais
dizem que seria para professorxs dos anos finais do Ensino Fundamental e para
as três séries do Ensino Médio. Neste mesmo pronunciamento, ele afirma que
o verdadeiro objetivo de iniciativas como esta seria “aliciar a garotada, especial-
mente os garotos que eles acham que têm tendências homossexuais”.
Uma semana depois, Bolsonaro voltou à tribuna denunciando os planos
“extremamente graves” do MEC que teria os objetivos de estimular o “homos-
sexualismo, a pederastia, a baixaria”, além de solicitar o apoio da bancada
religiosa. Neste ponto fica bastante evidente a que grupos Bolsonaro buscou se
articular explicitamente dentro do Congresso Nacional (FPE, FPDF, PPC) com os
quais criou cadeias de equivalências (BURITY, 1997) e utilizaram estereótipos
para hegemonizar sentidos pejorativos em relação não só ao material educativo,
como a atitude do Governo Federal de querer levar este tipo de temática para
as escolas públicas. Outros parlamentares também foram nesta mesma direção,
como o deputado federal João Campos (PSDB-GO), membro e presidente da
FPE, que em seu discurso acusou o Governo de estar financiando e estimulando
uma determinada orientação sexual, alertou xs demais parlamentares que era
preciso preservar “os valores cristãos da família”.
No meio de toda esta discussão um outro embate, desta vez entre Governo
e a oposição, cruzou e se sobrepôs às discussões envolvendo a distribuição ou
não do Kit: as denúncias do jornal Folha de S. Paulo sobre um suposto enriqueci-
mento ilícito do então ministro da Casa Civil, Antônio Palocci. Aproveitando-se

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desta questão, o deputado Anthony Garotinho (PR-RJ)3, então vice-presidente


da FPE, veio a público anunciar que xs membros desta frente parlamentar não
votariam mais nada e iriam obstruir o plenário até que o governo recolhesse o
material do MEC. Para justificar a suposta chantagem que a bancada religiosa
fazia com o Governo, Garotinho chegou a afirmar que o material do MEC
ensinava a fazer sexo anal e o Ministro Fernando Haddad foi chamado a dar
explicações.
Em reportagem da Folha de S. Paulo do dia 18/05/2011 foi repercutido o
encontro de Haddad com a bancada religiosa com a chamada “MEC nega ter
distribuído Kit Gay e diz que material pode mudar” . Na reportagem do dia
seguinte do jornal O Globo, intitulada “Haddad afirmou que o Ministério da
Educação não vai alterar conteúdo de kit anti-homofobia”, foi repercutida a par-
ticipação do Ministro no programa de rádio “Bom dia, Ministro”.
A reação da bancada religiosa e da mídia contrária à distribuição do mate-
rial foi rápida e intensa. Nos dias 19 e 20/05/2011, o “Jornal da Record”, telejornal
da TV Record transmitido em horário nobre, vinculou duas reportagens, a pri-
meira de 4 minutos e 37 segundos4 e a segunda de 3 minutos e 09 segundos5 .
Na primeira, a chamada era: “Só aumenta a rejeição ao material com conteúdo
homossexual que o Ministério da Educação quer distribuir nas escolas”. A repor-
tagem continua afirmando que para alguns parlamentares o “kit gay esconde,
na verdade, uma propaganda homossexual que pode ser extremamente pre-
judicial para a formação de toda uma geração”. Na edição do dia seguinte, o
telejornal fez a seguinte chamada: “Indignação! Foi com esse sentimento que os
brasileiros ouviram as declarações do ex-secretário do Ministério da Educação
exibidas ontem aqui”6. Após meses de muita polêmica e pressionada pela ban-
cada religiosa, no dia 25/05/2011, a Presidenta Dilma Rousseff ordenou que o
MEC suspendesse a distribuição do Kit. A partir do veto, se delineou ainda mais
as articulações contrárias e favoráveis ao projeto. Vale ressaltar que xs atores

3 O Partido da República (PR) fazia parte da base aliada do Governo Federal.


4 Disponível em: http://noticias.r7.com/educacao/noticias/cresce-repercussao-negativa-contra-kit-anti-
-homofobia-20110519.html
5 Disponível em http://noticias.r7.com/videos/comentario-de-ex-secretario-do-mec-sobre-kit-gay-cau-
sa-indignacao/idmedia/f61371d6bf04dc4fbc608efcc81b4cc1.html. Acesso em 14 de maio de 2014.
6 Referência à brincadeira feita por André Lázaro e já analisada neste trabalho.

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sociais que defendiam o material educativo e sua distribuição ganharam muito


mais espaço para suas falas somente após o veto presidencial.

Considerações finais

A hegemonização da articulação conservadora se utilizou desde um


aparato de colaboradorxs que vigiaram como estavam tramitando propostas
que envolviam a população LGBT para barrá-las à abordagens midiáticas que
estimulariam os pânicos morais (MISKOLCI, 2007) de grande parte da popu-
lação. Além disso, a crescente presença de parlamentares que constituem a
bancada religiosa, principalmente na Câmara do Deputados, conseguiu bar-
ganhar o apoio às votações de interesse do Governo Federal à suspensão da
distribuição do kit. Durante todo este embate concluí que xs defensorxs de sua
formulação e distribuição às escolas do Kit assumiram uma posição segundo
a qual a efetivação do projeto Escola Sem Homofobia realmente eliminaria as
práticas discriminatórias no ambiente escolar. Desta forma, se aproximaram de
uma visão sobre o currículo e o conhecimento onde estes poderiam contribuir
de forma eficaz na resolução de problemas sociais, o chamado progressivismo
presente no país desde a década de 1920 (LOPES; MACEDO, 2011, p. 25).
Além disso, da forma como foi pensado e elaborado, este material educativo
não visava desconstruir a lógica binária e hierarquizante presente na norma
heteronormativa. Mesmo visando alargar o que poderia se considerar legítimo
no campo das práticas sexuais, de certo modo acabou preservando a exclusão
de tantas outras práticas sexuais hetero e homossexuais, principalmente por
reproduzir a lógica heteronormativa como a defesa de relacionamentos estáveis
e monogâmicos.
Desta forma, estas diversas falas públicas foram entendidas em minha
análise como um ato performativo que constrói/ reforça uma hierarquia de for-
mas de se relacionar. O exterior constitutivo, a ameaça a tais valores, a tal
significação, foi materializado neste embate justamente com o material educa-
tivo do MEC.
Com toda esta polêmica, vimos que desde a entrega de panfletos na porta
de escolas, a colocação ou não de uma cena de beijo homossexual em um
vídeo educacional, as reuniões ministeriais com a Presidenta da República,
entre outras, foram ações que em graus variáveis interferiram nos rumos dos

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acontecimentos. Assim, reforçou-se a ideia que o poder político não está pre-
sente somente no nível macro mas em todas as arenas de disputas (FOUCAULT,
1981).
No entanto, novamente ressalto que a própria iniciativa do Governo
Federal que através do ESH buscou auxiliar xs profissionais da educação a pro-
blematizarem significações sobre as sexualidades que tradicionalmente estão
sedimentadas nas mais diversas práticas culturais brasileiras, pode ser conside-
ras por si só um avanço nas lutas dos movimentos LGBT. Além disso, estes e
quaisquer outros embates discursivos podem ser um convite às resignificações
da tradição cultural brasileira tão marcada pelo sexismo e homofobia.
Assim, por mais que as disputas de poderes na produção de significados
na escola tenham sido expostas em falas analisadas na dissertação, estes atos
de poder não conseguem fixar de forma definitiva qualquer significação, seja
os que são apontados como contribuindo para práticas tidas como homofó-
bicas ou para os que as combateriam. Como afirmam Lopes e Macedo (2011,
p. 40), podemos “entender os discursos pedagógicos e curriculares como atos
de poder, o poder de significar, de criar sentidos e hegemonizá-los”, mas estes
“saberes, sujeitos e antagonismos não são fixos e definidos para todo o sem-
pre” (LOPES E MACEDO, 2011, p.92). Mesmo que o desfecho destes embates
naquele momento tivesse sido favorável aos grupos que defendiam o projeto
Escola Sem Homofobia, não significa que se resolveria todos os problemas de
discriminação e preconceitos, já que o embate, a disputa por significados nunca
cessa. Isto não quer dizer que medidas como a criação deste projeto não sejam
importantes para este embates pela significação dos atos da população LGBT
nas escolas e nos mais diversos meios sociais, mas que não deveria ser anali-
sado como a solução final, a “medida-chave” para estas disputas. Esta disputa,
assim como as que ocorrem em relação a outros temas tidos como polêmicos
no âmbito escolar possuem desfechos contingentes instigando xs envolvidxs a
estarem sempre alertas seja para defender uma significação hegemônica, seja
para atacá-la.

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Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

BURITY, Joanildo A. Desconstrução, hegemonia e democracia: o pós-marxismo de


Ernesto Laclau. In: ______.  Contemporaneidade e Política no Brasil. Recife, Bagaço,
1997.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução:


Renato Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

______. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

______. História da sexualidade, v.1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

HALL, S. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy. Toward a


Radical Democratic Politics. London, Verso, 1989.

_____. Posmarxismo sin pedido de disculpas. In: LACLAU, E. Nuevas reflexiones


sobre La revolucion de nuestro tiempo. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003.

LACLAU, Ernesto. Emancipação e diferença. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.

MOUFFE, C. Desconstrucción, pragmatismo y la política de la democracia. In: _____.


(Org.). Desconstrucción y pragmatismo. Buenos Aires: Paidós, 1998.

LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Teorias de Currículo. São
Paulo: Cortez, 2011.

MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento


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VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma aná-
lise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs
no Brasil. Rio de Janeiro : Fundação Heinrich Böll, 2012.

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PERCEPÇÕES DE PRECONCEITO NA ESCOLA:


UMA ANÁLISE SOBRE AS DISTÂNCIAS SOCIAIS
ENTRE ESTUDANTES E PESSOAS HOMOSSEXUAIS

Felipe Bastos
Doutorando em Educação – PPGE/PUC-Rio
Colégio de Aplicação João XXIII – UFJF
bastos.fe@gmail.com

Raquel Pinho
Doutoranda em Educação – PPGE/PUC-Rio
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Educação
raquel.aps@gmail.com

Rachel Pulcino
Doutoranda em Educação – PPGE/PUC-Rio
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Educação
rachelpulcino@gmail.com

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

Este artigo tem como objetivo principal compreender os dados sobre a per-
cepção de homofobia por parte de estudantes em relação às suas distâncias
sociais com indivíduos homossexuais, obtidos pela pesquisa Preconceito e
Discriminação no Ambiente Escolar, realizada em 2009 pela FIPE/INEP. Com o
universo de dados de estudantes da educação básica, geramos tabelas de refe-
rência cruzada para distância social com pessoas homossexuais e percepção de
atitudes preconceituosas específicas contra pessoas homossexuais. Observamos
a tendência em todas as análises de que estudantes socialmente distantes de
pessoas homossexuais enxergam menos práticas de preconceito contra homos-
sexuais quando comparados com estudantes socialmente próximos.
Palavras-chave: preconceito; homofobia; diversidade sexual; escola; distância
social.

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Introdução

Preconceito, discriminação e violência são realidades que estão na ordem


do dia, no cerne das relações entre os sujeitos e desafiam constantemente o
cotidiano escolar. Não é incomum encontrarmos relatos na escola sobre dis-
criminação contra a diversidade racial, étnica, sexual, territorial, geracional, de
gêneros, de deficiências e tais quantas sejam as diferenças que marcam este
sujeito outro da diversidade. No Brasil, o espaço escolar se tornou palco de
disputas por reconhecimento da diferença e temas como diversidade sexual e
de gênero, que nunca estiveram fora da escola, vem se destacando nos últimos
vinte anos pela visibilização das lutas por direitos.
Louro (2003, 2013) nos ajuda a compreender que os saberes sobre a
diversidade sexual vêm ganhando espaço significativo em diversas instituições
sociais, tal como o ambiente escolar. Todavia, é recorrente e crescente os casos
de preconceito, discriminação e violência de cunho homofóbico na escola
(BORRILLO, 2010; JUNQUEIRA, 2007, 2012), espaço marcado por silenciamen-
tos das diferenças sexuais e onde a identidade homossexual é vista como um
problema a ser resolvido (BASTOS; PINHO; PULCINO, 2015).
Assim, o presente trabalho tem como objetivo principal observar e com-
preender os dados sobre a percepção de homofobia por parte de estudantes em
relação às suas distâncias sociais com indivíduos homossexuais, obtidos pela
pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, realizada em 2009,
pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, FIPE. O que buscamos com-
preender é, em se tratando de homossexualidades, de que maneira as distâncias
sociais, que indicam proximidade e distanciamento, impactam na percepção de
preconceito na escola.

Metodologia

A pesquisa da FIPE teve como objetivo realizar estudo quantitativo sobre


as ações discriminatórias no âmbito escolar e, com este, mensurar “situações de
discriminação no ambiente escolar e sua influência no acesso, na permanência,
na trajetória e no desempenho escolar dos estudantes” (BRASIL, 2009, p. 12).
Os dados utilizados foram disponibilizados pela pesquisa da FIPE no endereço

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eletrônico do INEP (BRASIL, 2008) e obtidos através de questionários respondi-


dos por diretoras1, professoras, funcionárias, alunas e responsáveis2.
Diante dos objetivos apresentados, interessa-nos compreender como a
distância social de alunas em relação a pessoas homossexuais impacta na per-
cepção de preconceito homofóbico. Estamos cientes das limitações no uso dos
dados; não obstante, não buscamos inferir relações causais entre características
e atitudes, mas analisamos possibilidades de associações entre os sentimentos
de proximidade com pessoas homossexuais e estabelecer possíveis correlações
com características que podem auxiliar na construção de ferramentas, saberes
e competências para uma educação que reconheça a diversidade sexual e que
não facilite, e tampouco promova práticas homofóbicas.
Com o universo de dados de estudantes, geramos tabelas de referên-
cia cruzada para distância social com pessoas homossexuais e percepção de
atitudes preconceituosas específicas contra pessoas homossexuais. A noção
de distância social se refere à predisposição de uma pessoa em estabelecer
contatos sociais em diferentes níveis de proximidades com membros de um
determinado grupo social. Os respondentes deveriam marcar apenas a opção
que concordassem com mais intensidade dentre as listadas para algumas iden-
tidades sociais, tal como em relação a pessoas homossexuais.
As opções possíveis, já organizadas na escala de maior proximidade para
menor proximidade, são: (a) aceitaria que minha filha se casasse com ela; (b)
aceitaria que minha filha namorasse com ela; (c) aceitaria que estudasse em
minha casa com minha filha; (d) aceitaria como colega de trabalho na escola; (e)
aceitaria como aluna na minha sala de aula; (f) aceitaria como aluna da escola.
Se a respondente concorda mais fortemente com a frase em que ele aceitaria
que sua filha se casasse com uma pessoa homossexual, há menor distância
social entre a respondente e essa pessoa, então ele automaticamente aceita as
demais frases. Por outro lado, se a frase com a qual ela concorda com maior

1 Diante da constante ocultação das mulheres na escrita de termos neutros, invertemos a regra grama-
tical da língua portuguesa que define o masculino como elemento neutro, de modo que o feminino
passa a compor deliberadamente os substantivos e adjetivos neutros neste texto.

2 As análises estatísticas apresentadas neste trabalho foram desenvolvidas a partir da utilização do


software Statistical Package for Social Sciences, SPSS, versão 20.

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intensidade é que aceitaria essa pessoa homossexual como aluna da escola,


pressupõe-se que não aceitaria as cinco demais situações.
Convém destacar que reorganizamos os dados de distância social em
novas categorias que pudessem dar melhor sentido a nossas análises. Juntamos
a categorias nos blocos: (e) e (f) que representam maiores distâncias sociais no
bloco baixa proximidade; (c) e (d) intermediárias no bloco média proximidade; e
(a) e (b) que representam menores distâncias sociais no bloco alta proximidade.

Resultados e discussão

De acordo com nossos objetivos, a primeira análise partiu da corres-


pondência entre as distâncias sociais e percepção de preconceito no intuito
de verificar possíveis relações. A Tabela I apresenta as correlações tanto para
verificação de humilhação, agressão física e acusação injusta contra alunas, pro-
fessoras e funcionárias ocorridas em função de sua homossexualidade na própria
escola da aluna respondente. Pode-se perceber a influência da alta proximidade
de alunas com homossexuais na observação de atitudes preconceituosas.
TABELA I
PRECONCEITO CONTRA ALUNA POR SER HOMOSSEXUAL
Grupos de distância social

Ação Percepção Baixa Média Alta Total


proximidade proximidade proximidade

Vi nesta escola 21,2% 20,3% 31,9% 21,1%


Humilhada

Não vi, mas soube que aconteceu


17,2% 17,1% 20,2% 17,3%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
61,6% 62,6% 47,9% 61,6%
nesta escola
Vi nesta escola 9,2% 7,7% 15,6% 8,8%
injustamente fisicamente
Agredida

Não vi, mas soube que aconteceu


11,3% 10,2% 19,6% 11,1%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
79,6% 82,1% 64,8% 80,2%
nesta escola
Vi nesta escola 7,4% 6,7% 17,8% 7,4%
Acusada

Não vi, mas soube que aconteceu


9,1% 8,6% 16,4% 9,1%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
83,5% 84,8% 65,7% 83,5%
nesta escola
χ2 = 0,000
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados (BRASIL, 2008).

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Os estudantes que possuem as menores distâncias sociais com pessoas


homossexuais, isto é, pertencentes ao grupo de altas proximidades, percebem,
em média, 9,7% mais atitudes de preconceito contra alunas homossexuais
em sua própria escola quando comparados com estudantes de baixa e média
proximidade.
As taxas de percepção “não vi, mas soube que aconteceu nesta escola”
também são maiores no grupo de alta proximidade para todas as ações de
preconceito. Pessoas socialmente distantes de homossexuais parecem, por-
tanto, perceber menos as práticas de preconceito homofóbico na escola do
que pessoas socialmente próximas. A homofobia é um fato que existe na escola
(JUNQUEIRA, 2007), mas a percepção desta parece estar condicionada ao grau
de aceitação para com as pessoas homossexuais.
As Tabelas II e III indicam, respectivamente, os índices de correlação entre
grupos de distância social e percepção de preconceito nos itens referentes às
práticas contra professoras e funcionárias da escola em que estudam.

TABELA II
PRECONCEITO CONTRA PROFESSORA POR SER HOMOSSEXUAL
Grupos de distância social
Ação Percepção Baixa Média Alta Total
proximidade proximidade proximidade
Vi nesta escola 9,9% 9,3% 18,7% 9,9%
Humilhada

Não vi, mas soube que aconteceu


10,6% 11,3% 17,6% 11,0%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
79,5% 79,4% 63,7% 79,1%
nesta escola
Vi nesta escola 2,8% 2,4% 10,6% 2,8%
fisicamente
Agredida

Não vi, mas soube que aconteceu


4,5% 4,6% 11,4% 4,7%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
92,7% 93,0% 78,0% 92,4%
nesta escola
Vi nesta escola 3,1% 3,2% 10,9% 3,3%
injustamente
Acusada

Não vi, mas soube que aconteceu


5,0% 4,5% 12,3% 5,0%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
91,9% 92,3% 76,8% 91,7%
nesta escola
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados (BRASIL, 2008).
χ2 = 0,000

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As taxas não são as mesmas, mas a tendência observada na Tabela I se


repete. Na Tabela II, a percepção de práticas homofóbicas contra professoras é
8,3% maior em grupos de alta proximidade quando comparados com as médias
dos outros grupos. Na Tabela III, na página a seguir, referente ao preconceito
contra funcionárias, a percepção é 6,5% maior. Nos dois casos, as médias são
menores em comparação à percepção de preconceito contra as alunas.
Quando observados os índices de resposta para “agredida fisicamente”
e “acusada injustamente”, os valores ficam acima de 90% para “nem vi, nem
soube que aconteceu nesta escola” nos grupos de média e baixa proximidade
social, enquanto que nas respostas para “humilhado”, as taxas ficaram abaixo
de 80%. Esta é outra tendência em todos os casos, onde a humilhação é mais
percebida, já que configura uma agressão mais branda e, possivelmente, mais
cotidiana em relação a agressões físicas e injustiças marcadas.

TABELA III
PRECONCEITO CONTRA FUNCIONÁRIA POR SER HOMOSSEXUAL
Grupos de distância social
Ação Percepção Baixa Média Alta Total
proximidade proximidade proximidade
Vi nesta escola 4,6% 4,5% 10,0% 4,7%
Humilhada

Não vi, mas soube que aconteceu


6,5% 6,2% 14,5% 6,6%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
89,0% 89,3% 75,5% 88,8%
nesta escola
Vi nesta escola 2,5% 2,1% 8,4% 2,5%
fisicamente
Agredida

Não vi, mas soube que aconteceu


4,1% 3,8% 13,1% 4,2%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
93,4% 94,1% 78,5% 93,3%
nesta escola
Vi nesta escola 2,3% 2,4% 10,3% 2,5%
injustamente
Acusada

Não vi, mas soube que aconteceu


4,2% 4,3% 10,6% 4,4%
nesta escola
Nem vi, nem soube que aconteceu
93,5% 93,4% 79,1% 93,1%
nesta escola
χ2 = 0,000
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados (BRASIL, 2008).

Buscamos com estas três análises articular o papel da aproximação de


alunas com sujeitos homossexuais e a sua influência na percepção do precon-
ceito de cunho homofóbico na escola. Não podemos afirmar a relação direta,

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contudo, nos parece clara a tendência entre os fatores apresentados, o que


indica maiores predisposições à percepção de homofobia pelas estudantes com
altas proximidades – socialmente menos distantes – a pessoas homossexuais.
A aproximação ou distanciamento com o sujeito outro parece formar um filtro
capaz de auxiliar ou diminuir a percepção das práticas preconceituosas, tais
como humilhações, violências e acusações indevidas.

Considerações finais

O presente trabalho não buscou atribuir causas e efeitos que impactam


na percepção de homofobia na escola e tampouco nos fatores sociais e pes-
soais que influenciam na proximidade ou distanciamento de alunas a sujeitos
homossexuais. Entretanto, os dados apresentados indicam, em linhas gerais, a
existência de alguma relação entre estas variáveis.
Neste ponto, as análises contribuem na observação de que alunas social-
mente menos distantes a homossexuais, isto é, aquelas que marcaram aceitar
que suas filhas se casassem ou namorassem com pessoas homossexuais, ten-
dem a observar práticas de preconceito homofóbico na escola mais do que as
respondentes das categorias de maiores distâncias sociais. Outra consideração
importante é que não há praticamente nenhuma diferença percentual na veri-
ficação de preconceito entre sujeitos de distância social alta e média e, por
conseguinte, os valores somente se alteram significativamente quando conside-
rados os sujeitos de distância social baixa.
Se a construção de uma educação menos homofóbica caminha para a
formação de sujeitos atentos a este tipo de violência, então parece ser necessá-
rio que se diminua as distâncias sociais entre alunas e pessoas homossexuais. O
contato com e a aceitação das diferenças parece ser um importante caminho
para se pensar numa educação não homofóbica.

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Referências

BASTOS, Felipe; PINHO, Raquel; PULCINO, Rachel. Diversidade sexual na escola:


três perspectivas sobre silenciamentos de sujeitos e saberes. In: ANDRADE, M. (Org.).
Diferenças silenciadas: pesquisas em educação, preconceitos e discriminações. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2015.

BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:


Autêntica, 2010.

BRASIL. Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizadas


de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial,
necessidades especiais, socioeconômica e orientação sexual: Relatório Analítico
Final. São Paulo: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), 2009.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal.pdf>. Acesso
em: 04 mai. 2016.

BRASIL. Microdados da Pesquisa de Ações Discriminatórias no Âmbito Escolar.


Brasília: MEC; São Paulo: Inep, 2008. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/basica-
-levantamentos-acessar>. Acesso em: 04 mai. 2016.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em


meio a disputas. Bagoas, v. 1, n. 1, p. 145-165, 2007.

______. A Pedagogia do Armário: heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano


escolar. Educação On-line, n. 10, p. 64-83, 2012.

LOURO, Guacira Lopes. A construção escolar das diferenças. In: Gênero, sexuali-
dade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
p. 57-87.

______. Pedagogias da sexualidade. In: ______. (Org.) O corpo educado: pedagogias


da sexualidade. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 7-34.

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QUEM TEM MEDO DO GÊNERO? PÂNICO MORAL,


DESEJOS DISSIDENTES E PEDAGOGIA QUEER

Gelberton Vieira Rodrigues


Mestrando em Educação Sexual - UNESP/Araraquara.
gelbertonrodrigues@gmail.com

Bruno Pereira
Mestrando em Psicologia - UNESP/Assis.
brunpy@hotmail.com

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

Diante das mudanças em curso no Brasil, no âmbito das relações de gênero e


sexualidade, os conservadores têm buscado barrar tais transformações de forma
desonesta e virulenta. Uma de suas estratégias, nos últimos anos, é acusar aque-
les/as que desejam discutir questões de gênero no espaço escolar, com o intuito
de eliminar as desigualdades sociais, de promoverem a “Ideologia de Gênero”,
como se desejassem transformar as escolas em “fábricas de homossexuais”.
Assim, por meio da pedagogia queer, se é dito que queremos criar “fábricas de
homossexuais”, mesmo este não sendo o objetivo quando se propõe a discussão
de gênero, perguntamo-nos, qual o problema se tivéssemos mais “homossexu-
ais” em nossa sociedade? Como enfrentar os discursos normalizadores quando
o diálogo não parece possível?
Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Política; Pedagogia Queer; Ideologia de
Gênero.

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Introdução

Em 2015, o combate ao que passaram a chamar de “ideologia de gênero”


tomou novas proporções1. Sob a pressão de grupos religiosos, cidades por todo
o Brasil tiveram seus Planos Municipais de Educação modificados em rela-
ção aos temas gênero e diversidade sexual, assim como também foi feito em
alguns Planos Estaduais e no plano Nacional de Educação. Os responsáveis por
esta pressão justificaram esta medida ao afirmar que os representantes do que
chamam de “ideologia de gênero” na verdade querem “destruir” a “família tra-
dicional” através de uma “imposição” de ideias que deturpariam as noções - e
funções - de “feminino”, “masculino” e de “sexualidade”. Uma das estratégias
comumente utilizadas na resistência aos discursos dos conservadores é toma-
-los como fanáticos religiosos, como se fossem desprovidos de razão, quase
como fossem uma versão contemporânea da loucura numa roupagem de retro-
cessos. Contudo, nosso rechaço às suas demandas não elimina o quanto estes
são organizados e articulados e tem conseguido levar adiante sua agenda polí-
tica, inclusive, com muitas conquistas2.
Numa rápida pesquisa no youtube, facilmente é possível encontrar vídeos
intitulados como “URGENTE: Lei Para Depravar as Crianças e Destruir a Família
Prestes a Ser Aprovada”3. Que lei é essa que gera pavor e necessita de urgência e
caso aprovada as crianças estarão desprotegidas da depravação e as famílias de
sua ruína? No vídeo em questão, um padre afirma que “Não temos nada contra
os homossexuais, só não queremos transformar nossas escolas em fábricas de
homossexuais”. Mas, por que as escolas tornar-se-iam fábricas de homossexuais
caso tal lei fosse aprovada? Qual o problema, tomado como evidente por estes
discursos, com a suposta possibilidade de uma maior expressão de identidades

1 Já em 2011, a editora católica Katechesis publica no Brasil o livro “Ideologia de Gêneros: o neototali-
tarismo e a morte da família”, tradução do livro de nome homônimo escrito pelo advogado argentino
Jorge Scala, ou seja, não se trata de uma discussão recente.
2 Basta lembrarmos que em maio de 2011, a presidenta Dilma Rousseff vetou um conjunto de ma-
teriais que fazia parte do programa “Escola Sem Homofobia”. Na época, a presidente, cedendo às
pressões da bancada evangélica, afirmou que seu governo não faria “propaganda de orientação
sexual”.
3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kkYrvt_jt_g. Acesso em 09/06/2016.

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que destoam das hétero-normas de sociabilidade? Esta pressuposição não evi-


dencia as pretenções eugenistas destes discursos?
De forma geral, percebe-se que os conservadores compreendem que
“ideologia de gênero” é uma crença na qual a masculinidade e feminilidade
são consideradas construções sociais e culturais e que qualquer pessoa possa
“escolher” qual gênero irá seguir. Por que o gênero é tido como perigoso nestes
discursos? Porque se a ideia de que o gênero é uma construção social e cultu-
ral, as categorias de Homem e Mulher não seriam “criações de Deus”. Se estas
categorias, enquanto algo natural, são ameaçadas, a heterossexualidade estaria
sob perigo, e assim, o casamento que dá origem a família na perspectiva hete-
ronormativa e cristã. Gênero, nesta interpretação deturpada, “destruiria Deus,
o casamento, a família, a nação”. Quais os não-ditos deste pânico moral?4 Por
que o conceito de gênero tem sido utilizado como um catalisador dos pânicos
morais que assombram os conservadores?
Estamos diante de uma agenda ultraconservadora, de modo que, pode-
ríamos pensar quais diálogos são possíveis diante do fascismo. Não buscamos
demonstrar como os argumentos dos conservadores são errôneos, no sentido
de responder estas questões como se estivéssemos diante de um debate inte-
ressado e honesto. Além da visível e problemática vulgarização das leituras que
realizam dos estudos de gênero, se é que estas ocorreram, o que encaramos é
uma tentativa violenta de imposição de um regime de saber que opera de forma
autoritária por mais de dois mil anos na história do Ocidente, que se atualiza
constantemente em novas formas de colonização de nossos corpos, e que nos
dias de hoje, assustados com as mudanças sociais, adaptaram-se a linguagem
inventada no século XIX e buscam por meio de noções como as de família
burguesa pautada na heterossexualidade reprodutiva, definir quais grupos de
pessoas serão consideradas respeitáveis socialmente e merecedoras da catego-
ria de humanos dignos de serem protegidos pelo Estado, relegando a posições
abjetas, de rechaço social, estes outros “indesejáveis” à nação. Que respostas
uma pedagogia queer pode oferecer diante deste contexto, no qual, as nego-
ciações parecem impossíveis? Ofereceremos uma resposta envergonhada ou

4 Os pânicos morais dizem respeito as resistências e aos medos sociais relacionados às mudanças,
principalmente quando estas são vistas com potencial de ameaçar a ordem social vigente (MISKOL-
CI, 2007).

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faremos da vergonha, que insistem em manter como afeto definidor de nossas


experiências, uma possibilidade política de transformação?

Gênero: breve genealogia de uma palavra que se tornou


“perigosa”

Mesmo que tenha sido criado pelos fundamentalistas religiosos uma divi-
são que implique um nós (cristãos)/eles (defensores da ideologia de gênero),
como se esse “eles” fosse uma unidade coesa que compartilhasse das mesmas
visões acerca do gênero, este é um conceito em disputa que historicamente
obteve diversos usos em relação as suas significações. Tendo surgido em con-
textos médicos no início da segunda metade do século XX, o conceito gênero,
relacionado à análise das diferenças entre homens e mulheres, passa na década
de 805 a ser usado amplamente por teóricas feministas com o objetivo principal
de explicitar o caráter fundamentalmente social das diferenças entre homens
e mulheres. Neste momento, Joan Scott (1995) o apresenta como a forma pri-
meira de significar as relações de poder, como “um elemento constitutivo das
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” (p.21).
Com a emergência de discussões pós-estruturalistas, esta compreensão se
complexifica. Para Judith Butler (2003), é com fundamento na diferença sexual
que discursos tentam nos fazer acreditar que deve haver uma concordância
entre gênero, sexualidade e corpo. Em sua ótica, o sexo é “uma das normas
pelas quais ‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um
corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural” (p.155).
Estamos, portanto, desde sempre generificados com e para os outros.
Em sua teorização, Butler (2003) nos apresenta a matriz heteronormativa6
de ordem compulsória, que pressupõe uma relação direta e causal entre sexo

5 Segundo Haraway (2004, p.221), a explosão do discurso das diferenças entre sexo/gênero na litera-
tura pode ser visualizada, por exemplo, “na ocorrência da palavra gênero como palavra-chave nos
resumos dos artigos registrados nos Sociological Abstracts [de nenhum registro entre 1966 e 1970, a
724 registros entre 1981 e 1985] e nos Psychological Abstracts [de 50 entradas como palavra chave
de resumos entre 1966 e 1970 a 1326 entradas de 1981 a 1985]”.
6 Heterornormatividade diz respeito a um conjunto de prescrições que regulam e controlam os corpos
de acordo com a matriz heteronormativa apresentada acima. Concordamos com Deborah Britzman
(1996) quando esta afirma que precisamos ir além do termo humanista “homofobia”. Este termo,
de acordo com ela, além de nos remeter a um “medo individual” dos homossexuais, não contém

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biológico, gênero, desejo e prática sexual. Esta matriz desvela expectativas de


uma cultura que, mesmo sendo compulsória e socialmente produzidas, são
tidas como “fundamentais”, “espontâneas” e “naturais”. Sendo assim, gênero
não é exatamente o que alguém “é” nem é precisamente o que alguém “tem”,
outrossim um aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do
feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossô-
micas, físicas e performativas que o gênero assume. Supor que gênero sempre e
exclusivamente significa as matrizes “masculino” e “feminino” é perder de vista
o ponto crítico de que essa produção coerente e binária é contingente e que as
permutações de gênero que não se encaixam nesse binarismo são tanto parte
do gênero quanto constitutivos de seus “limites” (BUTLER, 2014).
O conceito de gênero, então, pode ser utilizado na manutenção e produ-
ção das masculinidades e feminilidades, mas também em sua desconstrução.
Um dos aspectos que diferem nossa produção de saberes sobre o gênero
das que aqui chamamos de conservadoras, é que estas querem abordar este
aspecto humano sem reconhecer que o fazem, encobrindo-se com um véu de
pressuposta neutralidade que toma sua leitura do gênero como transcendental e
a-histórica. Em nossa leitura, na contramão desta concepção normativa, “gênero
é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e
naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses
termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2014, p.253).

O que pode uma pedagogia queer?

A frase de Simone de Beauvoir de que não se nasce uma mulher, mas tor-
na-se uma, é uma das noções mais citadas pelo feminismo. Segundo Preciado
(2009), poderíamos dizer que também que não se nasce uma criança.
[O] sistema educativo é o dispositivo específico que produz a
criança, por meio de uma operação política singular: a des-sexu-
alização do corpo infantil e a desqualificação de seus afetos. A

a crítica política de como a heterossexualdade é produzida socialmente como a “norma”, como a


sexualidade “normal”. A autora defende que, enquanto o termo “heteronormatividade” aponta para
a íntima relação entre a produção da norma e do desvio constitutivo desta no campo da sexualidade,
o termo “homofobia” foca-se em “atitudes individuais” de preconceito, esvaziando assim seu cunho
político.

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infância não é um estádio pré-político senão, pelo contrário, um


momento em que os aparatos biopolíticos funcionam de maneira
mais despótica e silênciosa sobre o corpo (PRECIADO, 2009,
p.165).

Assim, a criança é o meio pelo qual se garantirá a normalização do adulto


e que os policiais do gênero vigiam “o berço dos seres que estão por nas-
cer, para transformá-los em crianças heterossexuais” (PRECIADO, 2013, p.98).
A ideia é que se você não tornar-se heterossexual: a ameaça, a intimidação,
o castigo e talvez até morte lhe espera.  Frente as afirmações fundamentalis-
tas que atacam à democracia e explicitamente consideram sujeitos desviantes
das expectativas heteronormativas como inferiores e merecedores de cura e/
ou punição, nos perguntamos: se o desejo heterossexual é assim “tão natural”,
como pressupõem estes grupos, por que ele é tão compulsoriamente imposto
e condicionado por inúmeras instâncias sociais como as famílias e as religiões?
Qual a necessidade do uso da violência física e/ou simbólica com aqueles/as
que destoam das expectativas normativas de gênero e da heterossexualidade
se estas supostamente desenvolvem-se “naturalmente” no corpo? Qual será o
terror que assombra os conservadores ao afirmarem que a educação sexual e o
debate sobre o gênero nas escolas fará com que todos “tornem-se gays e lésbi-
cas”? Seria o desejo heterossexual assim tão frágil? Segundo Britzman,
[P]ara um número significativo de heterossexuais que imaginam
sua identidade sexual como “normal” e “natural”, existe o medo
de que a mera menção da homossexualidade vá encorajar práticas
homossexuais e vá fazer com que os/as jovens se juntem às comu-
nidades gays e lésbicas. [...] Parte desse mito é realmente correta:
a identidade sexual é social e depende de comunidades e locais
onde haja práticas, representações e discursos comuns, partilha-
dos. [...] Mas esse mito sustenta o pressuposto associado de que,
sem o conhecimento dessas comunidades, fica garantido que o/a
estudante decidirá que é melhor ser heterossexual do que viver o
estereótipo solitário do homossexual isolado (BRITZMAN, 1996,
p.79-80).

Nesse caso, tanto o conhecimento quanto as pessoas são considerados


perigosos, predatórios e contagiosos. Esse medo do contágio só demonstra
como as homossexualidades são indesejáveis, patologizadas e que devem
ser renegadas a qualquer custo. Mas quem defenderá os direitos das crianças

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queer? Uma pedagogia queer, mais do que uma proposição clara e estática
de ação educativa, nos oferece uma aposta na potência de se problematizar e
pluralizar as representações e os discursos da identidade e do conhecimento,
possibilitando que haja menos discursos normalizadores dos corpos, dos gêne-
ros, das relações sociais e do desejo (BRITZMAN, 1996).

Considerações finais

Ainda que a discussão realizada neste texto seja de fato um debate polí-
tico em curso de acirradas disputas político-idelógicas, concordamos com o
que escreveu o deputado Jean Wyllys (2016), ao abordar a “farsa da ideologia
de gênero”, que “há situações em que os esforços para invisibilizar ou deturpar
um assunto acabam por afirmá-lo e ampliar sua circulação”. Afinal, os emara-
nhados do poder e da resistência se tecem e se potencializam sob o mesmo
campo social. Deste modo, terminamos com uma citação de Preciado:
Eles defendem o poder de educar os filhos dentro da norma sexual
e de gênero, como se fossem supostamente heterossexuais. Eles
desfilam para conservar o direito de discriminar, castigar e corrigir
qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lem-
brar aos pais dos filhos não-heterossexuais que o seu dever é ter
vergonha deles, rejeitá-los e corrigi-los. Nós defendemos o direito
das crianças a não serem educadas exclusivamente como força
de trabalho e de reprodução. Defendemos o direito das crianças
e adolescentes a não serem considerados futuros produtores de
esperma e futuros úteros. Defendemos o direito das crianças e dos
adolescentes a serem subjetividades políticas que não se reduzem
à identidade de gênero, sexo ou raça (PRECIADO, 2013, p.98).

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Referências

BRITZMAN, Deborah. O que é essa coisa chamada amor?: identidade homossexual,


educação e currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, Faculdade de Educação/
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NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES


DE GÊNERO: UMA ANÁLISE DA CONTRIBUIÇÃO
DOS BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS

Karine Natalie Barra Godoy


Graduada em Educação Física
Mestranda em Educação Física (UFJF)
karine.godoy@hotmail.com

Mariana de Paula Vieira


Graduada em Educação Física
Mestranda em Educação Física (UFJF)
marianadepaula.jf@gmail.com

Ayra Lovisi Oliveira


Mestre em Educação Física
Professora assistente da Faculdade de Educação Física e Desportos (UFJF)
ayralovisi@yahoo.com.br

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

O objetivo deste estudo é apresentar as primeiras aproximações/reflexões a res-


peito da construção das identidades de gênero e sua relação com brinquedos
e brincadeiras de crianças que pertencem a uma turma de três anos de uma
creche pública da cidade de Juiz de Fora. O estudo observou o cotidiano dessa
turma, durante quatro dias consecutivos totalizando 8 horas diárias. Verificamos
que os brinquedos e as brincadeiras suscitaram novos rearranjos e a explora-
ção de outras possibilidades contribuindo para o processo de desnaturalização
daquilo que é tido culturalmente como natural. Pudemos observar o protago-
nismo das crianças nesse processo, tanto no sentido do reforço e reprodução
de discursos de gênero estereotipados, quanto na transgressão das fronteiras.
Palavras-chave: identidades de gênero; formação; primeira infância; brinque-
dos; brincadeiras.

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Introdução

As brincadeiras e os brinquedos das crianças, compreendidos enquanto


sistema simbólico, contribuem efetivamente no processo de socialização e de
formação de identidades.
Segundo Kishimoto (2008), baseada em diversos estudos, os brinquedos e
as brincadeiras são importantes espaços para a construção do gênero. A autora
aponta também
que nesses processos de socialização e formação de identidade das crian-
ças constroem-se práticas de escolha de brinquedos e de brincadeiras por
gênero criando os estereótipos.
Baseado nesses pressupostos o objetivo deste estudo é apresentar as pri-
meiras aproximações/reflexões a respeito da construção das identidades de
gênero e sua relação com brinquedos e brincadeiras de crianças que pertencem
a uma turma de três anos de uma creche pública da cidade de Juiz de Fora.
O presente artigo é o estudo piloto da dissertação intitulada “Cultura corporal,
gênero e infância”.
A partir da filósofa Judith Butler (1990), podemos compreender gênero
como sendo:
(...) a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repeti-
dos no interior de um quadro regulatório altamente rígido e que
se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma
substância, a aparência de uma maneira natural de ser (p. 33).

Quando se fala em “estilização do corpo”, Butler refere-se à noção de


incorporação do gênero, isto é, de exteriorizar e conservar na superfície do
corpo os discursos, os quais estão diretamente ligados ao meio sociocultural. A
autora localiza o gênero no contexto dos discursos pelos quais é enquadrado
e constituído, de maneira a evidenciar seu caráter construído em oposição ao
natural (SALIH, 2012). Ou seja, o gênero é discursivamente construído a partir
da cultura.
Butler utiliza o termo discurso a partir das formulações de Foucault,
entendendo-o como grande grupo de enunciados. Os enunciados são com-
preendidos por Foucault “como eventos reiteráveis que estão ligados por seus
contextos históricos” (SALIH, 2012, p. 69).

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O gênero, enquanto efeito de um discurso que preexiste ao sujeito (e não


a causa do discurso) é “constituinte da identidade que se pretende ser, ou que se
simula ser” (BUTLER, 1990, p. 25). Já nascemos em um contexto sociocultural
com discursos generificados e generificantes e é a partir desse entendimento
que se caracteriza a identidade de gênero como sendo performativa. Butler
pondera que descrever a identidade de gênero como um efeito não implica
dizer que ela é fatalmente imóvel e determinada, admitindo-se, portanto, iden-
tidades que subvertem o status quo vigente.

Educação infantil e suas implicações na construção das


identidades de gênero

As creches são instituições que atendem crianças de 0 a 3 anos e cons-


tituem, junto com as instituições de pré-escola, a Educação Infantil, que é
considerada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,
1996) a primeira etapa da Educação Básica.
Os documentos oficiais do governo, como os Referenciais Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação Infantil – DCNEI (BRASIL, 2010), enfa-
tizam a importância do brincar e da expressão corporal de forma geral no
desenvolvimento integral da criança pequena. Nesse sentido, podemos destacar
alguns princípios, contidos nesses documentos: o direito da criança ao brincar
como forma particular de expressão, pensamento, interação e comunicação
infantil sem discriminação de espécie alguma, e o atendimento aos cuidados
essenciais associados ao desenvolvimento de sua identidade. No que tange a
uma educação voltada para o gênero o documento coloca que se deve ter o
“cuidado de evitar enquadrar as crianças em modelos de comportamento este-
reotipados, associados ao gênero masculino e feminino, como, por exemplo,
não deixar que as meninas joguem futebol ou que os meninos rodem bambolê”
(BRASIL, 1998, p. 37).
Alguns estudos abordam a problemática do brincar nas relações de gênero
e as implicações na construção das identidades na Educação Infantil (TEIXEIRA,
2001; FINCO, 2004, 2010; AZEVEDO, 2003). A Educação Infantil tem se
mostrado um campo rico para tais investigações, uma vez que se apresenta
“como um espaço de poder, um lugar onde as crianças se constituem como

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determinados tipos de sujeito, onde elas constroem sua identidade” (BUJES,


1999 apud. TEIXEIRA, 2001, p. 60).

O campo de pesquisa

O estudo piloto observou o cotidiano de uma turma com crianças com


idades entre 3 anos e 3 anos e 11 meses de uma creche pública da cidade de
Juiz de Fora, durante quatro dias consecutivos totalizando 8 horas diárias (de
8h30 às 16h30).
A turma observada possui 13 crianças, sendo 5 meninos e 8 meninas, e
foi escolhida por indicação da coordenadora pedagógica da creche e pela dis-
ponibilidade da educadora responsável por essa turma em participar do estudo.
As observações sobre o cotidiano da turma foram anotadas em um diário de
campo. A pesquisa foi autorizada pela Associação
Municipal de Apoio Comunitário (AMAC), instituição responsável pelas
creches do município de Juiz de Fora, através de uma solicitação por escrito
encaminhada à superintendência da referida instituição.

Primeiras aproximações com o campo: entre convenções e


transgressões

Em nossas observações foram verificadas situações instigantes que con-


tribuem para refletirmos sobre os objetivos de nosso estudo. De modo geral
meninos e meninas interagiram entre si no decorrer das brincadeiras elaboradas
por elas ou propostas pela educadora. Durante esses momentos não houve
marcas expressivas de brinquedos e brincadeiras estereotipadas, foi comum
observar meninos pegarem boneca para brincar e meninas se interessarem por
bola, por exemplo; a educadora propôs dança algumas vezes e eles interagiram
entre si dançando juntos. Houve uma situação em que a música que estavam
dançando dizia para “dar um beijinho no outro”, as meninas se beijaram no
rosto naturalmente, dois meninos se olharam e um deles disse rindo, porém em
tom de estranheza: “Dá um beijinho no outro?” e não beijou o colega.
Outra situação observada foi quando a educadora perguntou às crianças
quem gostaria de levar a Diara para casa naquela semana e um menino foi o
primeiro a levantar a mão de forma entusiasmada afirmando que sim. Diara é
o nome de uma bonequinha que ficava com cada criança semanalmente. Essa

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atividade proposta pela educadora tinha o intuito de desenvolver o cuidado e


a afetividade das crianças. Após a boneca ser dada ao menino, uma menina
disse: “Ele sabe que é de menina, mas ele quer levar...”.
A situação que mais chamou a atenção quanto às marcas de gênero pre-
sentes nos brinquedos e brincadeiras foi quando a educadora organizou a sala
em três cantinhos: o da “beleza” (maquiagem, esmalte, pulseira, espelho), o do
“carrinho”, e o dos “bichinhos” num dia, e o da “casinha”, “ferramenta”, e o do
“carrinho” em outro dia. Em ambos os dias, foi possível perceber uma nítida
divisão entre a maioria dos meninos e das meninas de acordo com o cantinho:
meninas para os cantinhos da beleza e casinha e meninos para os cantinhos do
carrinho e da ferramenta. Essa divisão partiu das crianças de forma espontânea,
uma vez que a educadora deixava livre a escolha pelos cantinhos.
Porém essa configuração não se manteve durante toda a brincadeira.
Destacaremos duas crianças, Bianca e Pedro1, que subverteram a essa ordem.
Segundo Finco (2010, p. 13) “a brincadeira possui uma qualidade social de tro-
cas: descobrem-se significados compartilhados; recriam-se novos significados e
encontra-se lugar para a experimentação e para a transgressão”.
Quando os cantinhos foram organizados, Pedro se encaminhou direta-
mente para o da “beleza” no primeiro dia, se maquiando com sombra e batom
e pedindo a educadora que passasse esmalte nele; e no dia seguinte para o
da casinha, brincando com bonecas, geladeira, fogão, carrinhos de bebê. Em
conversa corriqueira com a educadora, fui informada de que Pedro gostava
de brincar com bonecas, bolsas e outros elementos culturalmente destinados
às meninas, e sempre escolhia esses cantinhos. Durante a brincadeira de se
maquiar, algumas meninas falaram para a educadora que o Pedro estava pas-
sando batom, ela respondeu: “Deixa ele!” e depois voltou-se a mim dizendo em
tom descontraído: “Tá vendo? Elas ficam me avisando...(risos)”.
Bianca, no primeiro dia, brincou no cantinho da “beleza” praticamente
todo o tempo. Porém, no segundo dia, passou pela casinha, mas logo se
encaminhou para o cantinho da ferramenta onde estavam todos os meninos
e perguntou hesitante para outra funcionária da creche, que estava presente
no momento, se podia brincar ali e esta respondeu que sim. Rapidamente um
menino voltou-se para Bianca e disse: “Não pode brincar com ferramenta! É

1 Nomes fictícios

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muito perigoso.” Indo de encontro a isso ela começou a brincar e continuou


mesmo após os meninos terem se afastado levando algumas ferramentas. A
partir daí aconteceram sucessivas situações em que ela não teve abertura para
interagir com os meninos, pois pelo que foi observado eles não consideravam
aquele tipo de brinquedo como sendo apropriado para uma menina, e também
não conseguiu socializar com as meninas, uma vez que o brinquedo que ela
tinha em mãos – as ferramentas – não causou interesse nas outras, que preferi-
ram continuar brincando com o carrinho de bebê.
Diferentemente de Pedro em relação às outras meninas, Bianca não
encontrou espaço para interagir com os meninos nos brinquedos e brincadeiras,
pois foi por eles excluída. Embora ela tenha recorrido aos brinquedos referentes
ao cantinho da casinha por duas vezes após ter sido afastada pelos meninos em
meio a expressões como “Sai!”, foi percebido que
ela sempre voltava ao das ferramentas reorganizando-se e encontrando,
mesmo que sozinha, formas de brincar, com os brinquedos de interesse dela.
Brincou, por exemplo, de serrar o carrinho de bebê e depois consertá-lo.
Foi possível perceber que todas as situações e falas supracitadas das crian-
ças estão atravessadas por discursos performativos quanto ao gênero. Ou seja,
trouxeram conceitos culturalmente pré-estabelecidos sobre o que é adequado
a cada gênero. Podemos citar o entendimento de que meninos não podem se
interessar por bonecas, pois é coisa de menina; ou de que meninas são mais
afetuosas e por isso é natural a troca de carinho entre elas, o mesmo não sendo
admitido aos meninos; ou de que meninas são frágeis e podem se machucar
facilmente, por isso brincar com ferramentas é perigoso, ao contrário de meni-
nos, que são fortes, sendo a ferramenta um objeto apropriado a eles.
Kishimoto (1997) afirma que ideias e ações adquiridas pela criança pro-
vêm do mundo social, incluindo a família e seu círculo de relacionamento.
Retomando o diálogo com Butler e Foucault (SALIH, 2012), pode-se supor que
essas ideias e ações foram adquiridas e construídas a partir do meio social e
cultural que envolve cada criança, o qual é permeado pelos discursos. Logo,
eles foram, também, por elas apropriados e reproduzidos.
Outro ponto percebido, durante o período das observações, foi que a edu-
cadora não interferia nas escolhas de brinquedos e brincadeiras das crianças, o
intuito é estimular a autonomia das crianças valorizando a livre expressão.
Porém destacamos como negativa a sua ausência e neutralidade diante
das situações e conflitos que emergiram, pois consideramos, baseadas em

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Meyer (2003), que os processos educativos estão presentes a todo instante,


seja pelos meios de comunicação, pelos brinquedos e brincadeiras, seja pela
ação docente, e estes processos envolvem estratégias sutis e refinadas de natu-
ralização, podendo reproduzir e reforçar estereótipos de gênero impactando
diretamente na forma como essas crianças se percebem enquanto meninas e
meninos, ou seja, na identidade de gênero.

Considerações finais

Verificamos que os brinquedos e as brincadeiras suscitaram novos rear-


ranjos e a exploração de outras possibilidades contribuindo para o processo
de desnaturalização daquilo que é tido culturalmente como natural. Pudemos
observar o protagonismo das crianças nesse
processo, tanto no sentido do reforço e reprodução de discursos de gênero
estereotipados, quanto na transgressão das fronteiras. Isso indica, portanto, que
as crianças são sujeitos ativos de fato, capazes de significar e ressignificar o
mundo ao seu redor.
Quanto à ação pedagógica, percebemos que a educadora seguiu esse pro-
cesso de desnaturalização, mesmo que de forma não intencional, quando propôs
a todas as crianças de levarem a bonequinha Diara para casa, rompendo com
o discurso da afetividade e cuidado associados somente às mulheres. Porém,
o mesmo não ocorreu durante a dinâmica das brincadeiras, principalmente em
relação aos cantinhos. Acreditamos na importância de uma educação atenta e
comprometida com as questões relacionadas ao gênero, a fim de minimizar a
desigualdade entre meninos e meninas e valorizar a diversidade.

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Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Volume 1. Brasília: MEC/
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BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York:
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mulher: relações de gênero nas relações de meninos e meninas na pré-escola. 2004.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,
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FINCO, D. Educação infantil, espaços de confronto e convívio com as diferenças:


análise das interações entre professoras e meninas e meninos que transgridem as
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

MEYER, D. E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, G. L.; FELIPE, J.;
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na educação. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

SALIH, S. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. TEIXEIRA, F.
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Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Ciências Humanas e Artes,


Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2001.

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PERFORMATIVIDADE E INTERSECCIONALIDADE
NAS IDENTIFICAÇÕES DE GÊNERO ENTRE JOVENS
NO CONTEXTO ESCOLAR: ALGUMAS REFLEXÕES

Leandro Teofilo de Brito


Doutorando em Educação - UERJ
teofilo.leandro@gmail.com

Nayara Cristina Carneiro de Araújo


Doutoranda em Educação - UERJ
anayaracristina@gmail.com

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

O objetivo deste trabalho é apresentar reflexões sobre as dificuldades de jovens


estudantes do ensino médio em se autoidentificarem com um gênero não
binário, ou seja, que não seja o masculino e feminino nas respostas de um
questionário. Trazemos como interlocuções teóricas as noções de performati-
vidade, de Judith Butler, e interseccionalidade, de Fernando Pocahy. Os dados
foram construídos a partir de participação em pesquisa do Grupo de Estudos
sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude/UERJ, cola-
borando em considerações sobre a valorização da discussão sobre gênero no
Plano Nacional de Educação.
Palavras-chave: gênero; performatividade; interseccionalidade; juventude;
escola

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Introdução

Um dos grandes e atuais desafios da sociedade contemporânea é romper


os olhares de homogeneização e fixidez nos processos de identificação, con-
siderando a necessidade de reconhecimento das identificações infinitas pelas
quais os sujeitos podem ser submetidos e se submeter. Trazendo esta discussão
para o espaço escolar, consideramos que ações e práticas que reconheçam a
infinitude nas identificações, tanto externas quanto internas ao ambiente esco-
lar, devem ultrapassar os muros das escolas e adentrar as salas de aulas.
Propomos discutir na construção deste trabalho um texto que consi-
dere as dificuldades de jovens estudantes do ensino médio público do Rio de
Janeiro, que participaram da pesquisa, em se autoidentificarem com um gênero
não binário, ou seja, que não seja o masculino e o feminino nas respostas.
Discutiremos também indícios da falta de compreensão no que se refere aos
conceitos de gênero e orientação sexual pela aplicação de questionários.
Ao realizarmos a construção de discussão teórica pautada nas noções
de performatividade de gênero e interseccionalidade, acreditamos termos os
subsídios necessários para trazermos esses conceitos para o espaço escolar.
Apresentaremos em seguida, dados construídos pelos resultados do questioná-
rio aplicado na escola, nossas considerações finais e referências.

Sobre performatividade e interseccionalidade

As identificações de gênero destes/as jovens nomearemos como perfor-


mativas, tomando como base a teorização desenvolvida por Judith Butler. Em
suas palavras, Butler (2015a, p. 27) afirma que “o gênero não deve ser mera-
mente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente
dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de
produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Ela comple-
menta, afirmando que resulta daí que o gênero não está para a cultura como o
sexo para a natureza, pois ele também é o meio discursivo/cultural pelo que a
natureza sexuada ou ainda um sexo natural é produzido e estabelecido como
pré-discursivo, anterior à cultura (idem).
Desta forma, a noção de gênero performativo, que nos auxiliará na dis-
cussão que propomos, pode ser entendida pela repetição estilizada de atos,
gestos e movimentos inscritos nos corpos, regulados a partir da linguagem, que

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buscam normatizar as identificações dos sujeitos. Pois, “o sujeito não é determi-


nado pelas regras pelas quais é gerado, [...], mas antes um processo regulado de
repetição que tanto se oculta quanto impõe suas regras, precisamente por meio
da produção de efeitos substancializantes” (BUTLER, 2015a, p. 211).
Judith Butler, nesta teorização, se apropria de um quase conceito1 der-
ridiano, a iterabilidade, que nomeia a repetição, permitindo a manutenção de
sentidos ao mesmo tempo em que assinala a possibilidade de deslocamentos. A
ideia da iterabilidade é crucial para se compreender que as normas não atuam
de maneira determinística. De acordo com Butler (2015b, p. 238): “A ‘ruptura’
nada mais é do que série de mudanças significativas que resultam da estrutura
iterável da norma. Afirmar que a norma é iterável significa precisamente não
aceitar uma explicação estruturalista da norma, mas afirmar alguma coisa sobre
o contínuo da vida no pós-estruturalismo (...)”. Ou seja, o que é considerado
contemporaneamente normativo também está sujeito à possibilidade de deslo-
camentos, sendo uma definição, constantemente renegociada.
Abarcando a complexidade de rompimento dos olhares de homoge-
neização e fixidez nos processos de identificação, tomaremos também como
base a discussão de Fernando Pocahy sobre a noção de interseccionalidade.
Tal teorização foi desenvolvida pelos estudos feministas contemporâneos, bus-
cando articular marcadores sociais como raça/etnia, classe social, identificação
etária, deficiência, entre outros ao conceito de gênero, tornando mais comple-
xos os olhares possíveis sobre a produção, reprodução e reconhecimento de
desigualdades em contextos específicos. Nas palavras de Pocahy (2011, p. 19):
“apostamos na produtividade desse conceito por sua reconhecida capacidade
em articular distintas formas de dominação e posições de desigualdades aciona-
das nos discursos regulatórios de gênero, raça/etnia, classe social, idade (...)”. Ele
complementa que a interseccionalidade funciona como rearticulação ou deslo-
camento de convenções da matriz heteronormativa estabelecida e disseminada,
de que o conceito é fundamental para problematizarmos e sermos capazes de

1 A noção de quase conceito e/ou indecidível para Derrida (2001), busca responder à impossibilidade
do pensamento se organizar a partir de conceitos fixos, homogêneos e universais, desconstruindo
assim parte da lógica do pensamento metafísico – pensamento binário e hierarquizado, conforme já
discutido anteriormente. São noções que visam tratar da instabilidade dos significados e, coerente-
mente, não poderiam se estabilizar em algum conteúdo apriorístico ao seu uso.

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realizar um movimento de análise da compreensão do conjunto de práticas dis-


cursivas ou não discursivas, que entra no jogo do verdadeiro e do falso.
Pocahy (2014, p. 21) afirma que o uso da interseccionalidade, ao pensar-
mos as subjetividades, dá-se pela possibilidade de “(re)invenção dos jogos de
verdade que estabelecem o que é possível ou não em termos de corpo, mas
também aquilo que define ou não uma sociedade democrática”. Assim, não se
trata apenas de identidades pessoais. Essa interseccionalidade entre gênero e
sexo possibilitou visibilidade às diversas formas de dominação e objetivação,
reposicionando bases epistemológicas e deslocando significados.

Sobre as identificações de gênero entre jovens: algumas


considerações

Trabalharemos com dados que foram construídos a partir de participa-


ção na pesquisa intitulada Grêmio e outros espaços-tempos de diálogo político
da juventude contemporânea: possibilidades na educação escolar, realizada
pelo Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar
da Juventude, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada em um colé-
gio situado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
De acordo com os dados do Data Escola Brasil disponibilizados para con-
sulta pública pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP) e publicados no Diário Oficial da União no dia 09 de janeiro de
2015, o colégio em questão teve 1.751 matrículas no ensino médio, de um total
de 159.992 matrículas realizadas no ensino médio público estadual do Rio de
Janeiro. Foram 1.127 questionários respondidos nos três turnos da escola, entre
os meses de maio e outubro de 2015. Trabalhamos com 994 questionários váli-
dos, o que nos dá uma margem de erro de aproximadamente 6,5%, com um
nível de confiança aproximado de 100%. Em termos absolutos, falamos de 454
questionários aplicados no turno matutino, 423 no turno vespertino e apenas
117 no turno noturno. Um dos itens do questionário perguntava aos/às jovens o
gênero em que se identificavam e, entre as respostas, obtivemos 54% feminino,
45,08% masculino e 0,2% gay.
Ao analisarmos os dados do questionário, percebemos que a fixidez do
gênero e do sexo, a partir do entendimento essencialista que circulava nas con-
cepções destes/as jovens, seja pelas respostas voltarem-se apenas ao feminino e

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ao masculino, além de dois questionários com a identificação de gênero como


“gay”, o que nos remete ao não entendimento dos/das estudantes sobre a dife-
rença entre identidade de gênero e orientação sexual. As identificações dos
sujeitos, considerando os contextos social, cultural e histórico, como masculi-
nos e femininos diz respeito ao que se entende como identidade de gênero; as
formas que os sujeitos assumem e vivem sua sexualidade, seja com parceiros/as
do mesmo sexo, do sexo oposto, ambos os sexos ou até mesmo sem parceiros
seria o que se denomina de orientação sexual (LOURO, 2003).
Ainda sobre o sistema escolar e o debate sobre gênero e sexualidade,
Louro (2003) afirma que a preocupação com a sexualidade, geralmente, também
não é apresentada de forma aberta nas escolas, fato justificado pela afirmação
de que não há “problema” nessa área e, deste modo, não haveria necessidade
de discussão sobre tais temas na escola, assim como a justificativa de que a
sexualidade deve ser um tema tratado, especificamente, dentro da família. Nos
colocando contrários a estas afirmações, trazemos para discussão Foucault
(2011) que afirma que mesmo a sexualidade sendo negada dos discursos pelas
instituições escolares, ela continua a se fazer presente pela própria negação e
pela insistência de seu silêncio.
No atual momento político, podemos também perceber que esse movi-
mento (ou tentativa de movimento) de silenciamento e negação da abordagem
sobre gênero e sexualidade nas escolas continua a se fazer presente com o
que tem se denominado de “ideologia de gênero”. Sofrendo pressão de seto-
res religiosos e políticos conservadores, assembleias e câmaras aprovaram a
retirada nos planos de educação municipais e estaduais, em diversas partes do
país, referências a gênero, relações de gênero e orientação sexual, mantendo
apenas a frase “combate a todas as formas de preconceito e discriminação”,
buscando assim invisibilizar as lutas feministas e LGBTs neste campo. Para
Sousa Filho (2015) os religiosos e os parlamentares ou os “parlamentares religio-
sos” enxergaram, na abordagem de assuntos como diversidade sexual e gênero,
uma tentativa de imposição de uma “ideologia” para “destruição da família
tradicional”, pois a presumida “ideologia” deturparia os verdadeiros conceitos
de homem, mulher, sexualidade, família, casamento e reprodução da espécie.
Se estaria, dessa forma, “homossexualizando” crianças e jovens ao permitir o
debate sobre os temas no espaço escolar.
Interseccionando a diferença etária com as categorias gênero e sexuali-
dade, apontamos que a identificação juvenil carrega sentidos sedimentados que

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a fazem ser reconhecida também no contexto de desigualdades socioculturais,


pois a repetida atribuição hierarquizante adulto/jovem (LEITE, 2015), enfati-
zando a condição de que ser jovem, por exemplo, é não saber “o que ainda
se quer da vida”, perpassa também as questões de gênero e sexualidade. O/A
jovem que se identifica pelo gênero que não se mostra coerente com o sexo e a
sexualidade, assumindo uma identificação não inteligível (BUTLER, 2015a) pos-
sivelmente acabará sendo classificado/a neste mesmo contexto, além de que,
a heteronormatividade e seus efeitos, como a homofobia, fazem-se presentes
inibindo a possibilidade da autoidentificação não normativa.
Há, neste contexto, uma relação saber-poder, que como afirma Pocahy
(2014) coloca de forma arbitrária, hierárquica e normativa as relações sociais
que nos fazem ser reconhecidos/as como homem, mulher, lésbicas, gays, trans,
adultos, jovens, idosos, etc. As posições assumidas pelos sujeitos estão atra-
vessadas por tais questões, conforme a leitura que fazemos das respostas dos
questionários.

Considerações

A construção de discussão teórica pautada nas noções de performativi-


dade de gênero e interseccionalidade colaborou para que possamos reconhecer
que performatizacões de gênero e sexualidade normativas faziam parte dos
discursos dos/das jovens estudantes do ensino médio que participaram da
pesquisa, a partir de questões que abordamos ao longo do texto: ausência de
discussões sobre gênero e sexualidade na escola, que perpassam a fixidez e o
tradicionalismo do currículo escolar. Na atualidade, esse tradicionalismo tem
sido reafirmado por grupos fundamentalistas e conservadores; assim como a
relação de intersecção que se faz presente entre diferença etária, gênero e sexu-
alidade, como mais uma desigualdade sociocultural na sociedade.
Desde 2014, quando foi estabelecido o prazo de um ano para que os
estados e municípios estabelecerem os seus Planos de Educação, a polêmica
sobre a discussão de gênero nas salas de aula tem ganhado destaque nacional.
O Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 a 2024, ao ser apreciado pelo
Senado brasileiro, teve a ênfase na promoção da “igualdade racial, regional,
de gênero e de orientação sexual”, substituída por “cidadania e na erradica-
ção de todas as formas de discriminação”. Tanto que na Lei nº 13.005, de 25
junho de 2014, que aprova o Plano com vigência por 10 (dez) anos, a contar

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da publicação, não consta a palavra “gênero”, apesar dessa discussão estar


presente diariamente no ambiente escolar. O que acontece é a permanência
do silenciamento de alunos e alunas gays, lésbicas e transgêneros para não
perturbarem as premissas heteronormativas não só da escola, mas também da
sociedade, de uma maneira geral. Assim, colocamos em xeque os enunciados
mais normatizadores que encontram-se sedimentados em alguma medida no
contexto da educação, enquanto que permanecem as dificuldades de alguns
jovens estudantes do ensino médio público do Rio de Janeiro em se autoidenti-
ficarem com o gênero não binário.

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Referências

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Janeiro: Civilização Brasileira, 2015a.

_____. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015b.

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Janeiro: Graal, 2011.

LEITE, M. S. Em desconstrução: textos e contextos na educação escolar do jovem mais


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cação. Rio de Janeiro: DP et alli, 2015, p. 321-350.

LOURO, G. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6ª


edição. Petrópolis: Vozes, 2003.

POCAHY, F. Interseccionalidade e educação: cartografias de uma prática-conceito


feminista. TEXTURA-ULBRA, v. 13, n. 23, 2014.

SOUSA FILHO, A. “Ideologia de gênero”: quem pratica? Revista Bagoas, v.9, n.12,
2015, p. 9 – 14.

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NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:


COMO A ESCOLA CONTEMPORÂNEA LIDA COM ISSO.

Angela Maria Venturini


Mestra em Psicologia Social
ISERJ/FAETEC/SECTI – LaPEADE/GESEI/UFRJ
angelamaria.venturini@gmail.com

Emília Naura Santos Bouzada


Pedagoga/Psicopedagoga/Saúde Mental
LaPEADE-GESEI/UFRJ
emiliabouzada@hotmail.com

Alexandra Sudário Galvão Queiroz


Especialista em Educação Infantil-UFMT
LaPEADE-GESEI/UFRJ
profalexandraqueiroz@gmail.com

GT 06 - Afetos, erotismos, novas/outras conjugalidades: sexualidades (re)inventadas


nas vivências não heteronormativas

Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar as novas configurações da família con-
temporânea através das mudanças sociais e da evolução legislativa, assegurando
a inclusão das uniões homoafetivas como entidades familiares. A Constituição,
através do artigo 226, pretendeu demonstrar a amplitude do termo entidade
familiar, outorgando às uniões homoafetivas tratamento igual ao dispensado
às uniões estáveis por meio de analogia na falta de norma que as albergue,
independentemente de todos os preconceitos existentes em nossa sociedade.
Levaremos em conta a introdução dos novos costumes e valores e o respeito
ao ser humano no que tange à sua dignidade e aos direitos inerentes à sua
identidade para compreendermos estas novas modalidades de família formadas
declaradamente, nos dias atuais.
Palavras-chave: Afeto, Educação, Direitos, Família, Professores.

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Introdução

O artigo tem por objetivo apresentar as novas configurações da família


contemporânea através das mudanças sociais e da evolução legislativa, assegu-
rando a inclusão das uniões homoafetivas como entidades familiares. Segundo
o censo demográfico do Brasil pelo IBGE (BRASIL, 2010) existem 60.000 rela-
ções homoafetivas autodeclaradas, sendo 47,4% professando a religião católica
e 53,8% de relações entre mulheres, lésbicas.
Pretende-se demonstrar a inclusão constitucional, através do artigo 226
da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), a amplitude do termo
entidade familiar, outorgando às relações homoafetivas tratamento igual ao dispen-
sado às uniões estáveis por meio de analogia na falta de norma que as albergue,
independentemente de todos os preconceitos existentes em nossa sociedade.
Serão levantadas algumas questões de inclusão em Educação, a fim de
nortear essa discussão com os professores, tendo em vista as mudanças ao
longo dos tempos da instituição família. Levaremos em conta: a introdução
dos novos costumes e valores, o respeito ao ser humano no que tange à sua
dignidade e aos direitos inerentes à sua identidade para compreendermos estas
novas modalidades de família formadas, declaradamente, nos dias atuais e os
lugares onde a oficialização do casamento homoafetivo existe.
Breve histórico de como a escola lida com o tema gênero e sexualidade no
Brasil e os eixos dos temas transversais nos Parâmetros Curriculares Nacionais,
em 1998.
O artigo tem como referenciais teóricos: Constituição da República
Federativa do Brasil (1988), Paulo (2006), Costa (2004), Àriés (2012), Canevacci
(1987), dentre outros.

Existem direitos e igualdade para todos?

Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), em seu


Art. 1º, Inciso III, como regra maior, o respeito à dignidade humana; e em seu
Artigo 3º apresenta em seu Inciso IV, como um de seus objetivos fundamentais:
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. Já em seu Artigo 5º dispõe que todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo em seu
Inciso I que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.

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Contudo, enquanto houver segmento que é alvo da exclusão, como a


pessoa homossexual, a qual, culturalmente, ainda é vista como desviante, então
não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito. Assim, rejeitar a
existência de relações homoafetivas é negar um dos objetivos fundamentais da
Carta Magna, em seu artigo 3º, Inciso IV supracitado.
A ausência de regulamentação deixava aquelas relações à mercê de
crenças, valores e percepções preconceituosas sobre moral, religião, posições
pessoais, dentre outras, do judiciário, como justificativa à negação de direitos
aos relacionamentos afetivos que não possuem a diferença do sexo como pres-
suposto. Assim é discriminatório desconsiderar o reconhecimento das uniões
estáveis homoafetivas.
Por unanimidade, pelo placar de 10 votos a 0, os ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF, 05/2011) reconheceram a união estável para casais do
mesmo sexo. A partir de então, companheiros (as) em relação homoafetiva
duradoura e pública passaram a ter os mesmos direitos e deveres das famílias
formadas por homens e mulheres. 
As ações pediam que a união estável homoafetiva fosse reconhecida juri-
dicamente e que esta relação pudesse ser considerada como entidade familiar.
Com o resultado, os casais homossexuais passam a ter direitos, como herança,
inscrição do parceiro na Previdência Social e em planos de saúde, impenhora-
bilidade da residência do casal, pensão alimentícia e divisão de bens em caso
de separação e autorização de cirurgia de risco.
Um desdobramento destas relações/uniões é a vontade de constituir
família, agregando filhos, pois inexistindo a capacidade reprodutiva, aquelas,
também, buscam a realização de estruturarem uma família com a presença de
filhos.
Existe a resistência em aceitar a homoparentalidade pela cultura de se
achar a relação homoafetiva como promíscua, não oferecendo um ambiente
saudável para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Alega-se tam-
bém que a inexistência de referências comportamentais acarreta sequelas tanto
psicológicas quanto na identidade sexual do filho.
Farias e Maia (2009) afirmam que o afeto, o carinho e as regras são coisas
mais importantes para uma criança crescer saudável do que a orientação sexual
dos pais. Acrescentam, ainda, que o crescimento da criança como pessoa
depende mais dos vínculos estabelecidos entre a criança e os pais, indepen-
dentemente do tipo de família.

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Escola e professores lidando com gênero e sexualidade

A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) dispõe em seu


Art. 205 que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da
família. Assim, a escola tem recebido alunos, filhos de relações homoafetivas,
os quais devem ser acolhidos neste espaço institucional.
Cabe a todos os participantes desse espaço buscar formação e informação
para lidar com esta nova configuração familiar, já que existem políticas públicas
que dispõem/tratam de orientação sexual.
Considerando que gênero é uma construção que se dá durante toda a
vida, isso acontece em diferentes instituições e práticas sociais que constituem
os sujeitos como homens e mulheres em um processo que não tem fim, nem se
completa. Os sujeitos se fazem homens e mulheres continuamente, de maneira
dinâmica, aprendida nas diferentes instituições sociais que expressam as rela-
ções sociais, tais como família, escola, igreja, governo, entre outros, segundo
Paz (2013).
Esta autora desenvolveu a pesquisa ‘Gênero e sexualidade: como trabalhar
na escola?’, em uma escola pública de Brasília, DF, observando que o disciplina-
mento dos corpos acompanhou, historicamente, o disciplinamento das mentes.
Neste mesmo sentido, Louro (2003) nos diz que “todos os processos
de escolarização sempre estiveram e ainda estão preocupados em construir,
controlar, corrigir, modelar e vigiar corpos de meninos e meninas, de jovens e
mulheres”.
O sistema escolar e as universidades ainda trazem concepções genera-
listas e únicas de ser humano, de ciência, de conhecimento, de formação, de
docência. Quando essas concepções, princípios e diretrizes são tomados como
padrões únicos de classificação dos indivíduos e dos coletivos, de povos, clas-
ses, etnias, gêneros ou gerações, a tendência é hierarquizá-los e polarizá-los,
fazendo da diversidade como algo desigual em função desses padrões únicos
(ARROYO, 2008).
A formação continuada do professor e demais profissionais que atuam
na escola não significa apenas aprender mais sobre determinados temas, pode
ser um momento de reflexão sobre hierarquias, gênero e sexualidade, prole-
tarização, individualismo, dentre outros, voltada para o desafio de minimizar/
eliminar práticas sociais como exclusão, homofobia, racismo, discriminação,
entre outros, criando projetos de intervenção social.

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A possibilidade de mudança criativa e qualitativa no trabalho pedagógico


passa pela instauração de um processo reflexivo-crítico, através do qual possa
transformar a maneira de ser da educação (GHEDIN, 2005).
Formação continuada na área das relações de gênero e de sexualidades
precisa sensibilizar as pessoas envolvidas com estes temas, abrindo espaços
que tragam reflexões e discussões a partir de teoria, história e questões práticas.
Assim torna-se possível reconhecer discriminações, estereótipos e preconcei-
tos, que estão presentes na visão de cada pessoa e nas instituições das quais
participam.
Paz (2013) entendeu que o trabalho com as temáticas não foi percebido
como necessário à escola por alguns motivos, entre eles: esse é um assunto da
ordem do privado e assim deve ser tratado; não se deve despertar a sexuali-
dade na criança; e o assunto deve ser trabalhado por especialistas. A pouca ou
nenhuma formação na área impedem que novas discussões e estratégias peda-
gógicas sejam implementadas na escola.
A autora reflete que a escola como instituição, por meio do trabalho
pedagógico de seus/suas profissionais, pode separar e hierarquizar os/as estu-
dantes reproduzindo valores que são encontrados na sociedade, na medida
em que mecanismos como currículo, conteúdos, normas, utilização de espaços
e tempos, brincadeiras, permissões e negações são utilizados como forma de
transmitir e reafirmar as identidades de gênero e de sexualidade, papéis e luga-
res de homens e mulheres, considerados corretos. Louro (1997) referenda que
“é indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como
ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem.”
Por outro lado, a escola, também deve discutir, criar novas estratégias
e superar as hierarquias que estão presentes na sociedade, mas para isso, é
importante que seus/suas profissionais possuam formação inicial e continuada
que contemple essas discussões no cotidiano escolar.
A escola é uma dessas instituições que tem transmitido e reproduzido, por
meio de suas culturas, políticas e práticas, valores e comportamentos, conside-
rados apropriados, formando sujeitos masculinos e femininos. De acordo com
Bourdieu:
[...] a Escola, mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, continua
a transmitir os pressupostos da representação patriarcal (baseada
na homologia entre a relação homem/mulher e a relação adulto/
criança) e sobretudo, talvez, os que estão inscritos em suas próprias

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estruturas hierárquicas, todas sexualmente conotadas, entre as


diferentes escolas ou as diferentes faculdades, entre as disciplinas
(“moles” ou “duras” ...), entre as especialidades, isto é, entre as
maneiras de ser e as maneiras de ver, de se ver, de se representarem
as próprias aptidões e inclinações [...] (BOURDIEU, 2007, p.104)

Da mesma forma que a escola educa, desde a infância, o domínio do pró-


prio corpo, ela também reforça as representações tradicionais sobre o feminino
e o masculino, que correspondem, geralmente, a pares opostos.
Sexualidade é assunto privado, existindo, ainda, uma visão higienista e
biologizante sobre a temática, assim, aponta Paz (2013). As professoras, em suas
respostas, entendem que seja desnecessário tratar sobre o tema sexualidade
com todas as crianças. A abordagem do tema só precisa acontecer, no caso
de surgir alguma situação considerada “problema” e deve ser trabalhada indi-
vidualmente, por considerarem ser da ordem do privado. Outros temas podem
ser tratados no geral (racismo, erro, autoestima), mas se percebe nas falas das
professoras e orientadoras educacionais que o ambiente escolar ainda está mar-
cado por discriminações e preconceitos, os quais precisam ser superados o
quanto antes.
Considera-se que a oportunidade de formação continuada de diferentes
formas, tais como cursos, grupos de estudo, debates, estudo individual, entre
outros; possa trazer mudança de atitude de professores diante das situações que
ocorrem na escola, cotidianamente, relacionadas às questões de gênero e sexu-
alidade. Contudo, se esses temas parecem incomodar às profissionais, por outro
lado, elas ainda consideram que estes não sejam objetos de estudo e formação
para todos/as, apenas para especialistas.

Considerações finais

Pensa-se sobre as considerações feitas que educação e promulgação


de políticas públicas pleiteadas pelos movimentos sociais dos homossexuais
identifiquem o quão importante se faz a existência dos direitos deste grupo de
pessoas.
Autores como Costa (2004), o qual escreveu ‘Ordem médica e norma
familiar’, referendando o discurso de Foucault sobre o olhar técnico da sexuali-
dade através de instituições tais como a clínica médica; Canevacci (1987) que
organizou textos sobre a gênese, dialética da família, estrutura e dinâmica de

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uma instituição repressiva; Áriés (2012) que discorreu sobre a criança desde a
antiguidade até a presente data; Paz (2013), a qual pesquisou gênero e sexu-
alidade em uma escola pública no DF, Paulo (2006) apresentou o desafio do
conceito da família na contemporaneidade, dentre outros, apresentam em
comum o conservadorismo da sociedade com relação às transformações das
relações sociais.
Faz-se mister trabalhar culturas, políticas e práticas (BOOTH E AINSCOW,
2011) para que mobilizem setores da sociedade civil que contribuam na elabo-
ração de políticas públicas que minimizem/eliminem a intolerância que ainda
persiste em vários locais, para que haja inclusão, através do respeito à pessoa
LGBT.
Preocupamo-nos em não sermos prescritivas indicando, contudo, pos-
sibilidades e urgência de se discutir mais amplamente, no cotidiano das
identidades, condutas e comportamentos humanos dentro das escolas e das
famílias, a questão do preconceito, sobre orientações sexuais diversas, para
relações homoafetivas mais sujeitos do que objetos, mais saudáveis na digni-
dade humana, onde o respeito à diversidade predomine no ambiente escolar.
As (os) gestoras (es) das escolas, as famílias, professores (as), demais pro-
fissionais que atuam na educação; e alunos (as) teriam assim a oportunidade de
compreender e cultivar projetos educacionais que requerem a ‘união da desu-
nião com a união’, uma metáfora proposta por Morin (2005) em uma das suas
falas em público sobre método.
Todas estas alternativas devem ser debatidas na instituição escola que
recebe e atua com as novas configurações de família.

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Referências

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diversidade interroga a formação docente. DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio. LEÃO Geraldo
(Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

ÀRIÉS, Philippe. A História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

BOOTH, Tony. AINSCOW, Mel. Índex para a Inclusão. Tradução de Mônica Pereira
dos Santos. Rio de Janeiro: LaPEADE/FE/UFRJ, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,


2007.

BRASIL. Reconhecimento da união homoafetiva. Brasília, DF: Supremo Tribunal


Federal, 05/05/2011.

BRASIL. Censo demográfico do Brasil. Brasília, DF: IBGE, 2010.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, DF: MEC/SEB, 1998.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,


05/10/1988.

CANEVACCI, Massimo (Org.). Dialética da Família. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004.

FARIAS, Mariana de Oliveira. MAIA, Ana Claudia Bortolozzi. Adoção por homosse-


xuais: a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica. Curitiba: Juruá, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A vontade de saber. 12ª Ed. Rio de


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GHEDIN, Evandro. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crí-


tica. In: PIMENTA, Selma Garrido. GHEDIN, Evandro. (Orgs.). Professor reflexivo no
Brasil: gênese e crítica de um conceito. 3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2005.

LOURO, Guacira Lopes. NECKEL, J. F. GOELLNER, S.V. (Orgs.). Corpo, gênero e sexu-
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LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-es-


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PAULO, Beatrice Marinho. Em busca do conceito de família: desafio da contempora-


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MASCULINIDADES PRECÁRIAS: NARRATIVAS DE JOVENS


GAYS SOBRE HOMOFOBIA NO CONTEXTO ESCOLAR

Leandro Teofilo de Brito


Doutorando em Educação – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
teofilo.leandro@gmail.com

GT 14 - Masculinidades múltiplas no contexto escolar

Resumo

Apresento neste trabalho narrativas de jovens estudantes dos anos finais do


ensino médio, que se identificam como gays, relatando histórias de vida rela-
cionadas à homofobia durante suas trajetórias escolares. Operacionalizo as
narrativas com base na proposta dialógica de entrevistas de Leonor Arfuch, em
conjunto com a discussão sobre experiência de Joan Scott e interpreto-as através
da noção de precariedade de Judith Butler. As masculinidades precárias perfor-
matizadas pelos jovens estudantes e problematizadas nas narrativas, apontam
para uma maior condição de vulnerabilidade e, consequentemente, não reco-
nhecimento de suas vidas como vidas vivíveis em suas trajetórias escolares.
Palavras-chave: masculinidades; homofobia; precariedade; narrativas; escola

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Introdução

O debate sobre gênero e sexualidade ganhou na contemporaneidade


novos contornos, que podem ser exemplificados pela amplitude e visibilidade
de sua presença em diferentes instâncias da nossa sociedade, como política,
religião, educação, esporte etc. Significações diversas sobre o que é ser homem,
mulher, lésbica, gay, masculino, feminino, transgênero, suas fronteiras, norma-
tizações e transgressões, vêm gerando grandes discussões, produzindo reações
diversas.
Neste contexto, de acordo com relatório sobre violência homofóbica1
publicado em 2012, por estudo realizado pela Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República, houve aumento de 166,09% em denúncias noti-
ficadas pelo poder público relacionadas à população LGBT, subindo de 1159
casos, em 2011, para 3084 casos, em 2012. Dados de um novo relatório2, ainda
não divulgado em sua totalidade pela mesma Secretaria de Direitos Humanos,
referente ao ano de 2013, afirma que o Brasil obteve média de cinco denúncias
por dia e a grande maioria das vítimas de violência homofóbica seria de sujei-
tos do sexo masculino, chegando a 73% dos casos (sendo as outras 16,8% do
sexo feminino e 10,2%, não informados). Dados levantados pelo site Quem a
homotransfobia matou hoje3, administrado pelo Grupo Gay da Bahia, aponta
em relatório anual que só no ano de 2015 foram assassinados no Brasil 52% de
gays (os outros dados foram: 37% travestis, 16% lésbicas, 10% bissexuais), além
de 7% de homens heterossexuais confundidos com gays.
Tal discussão não pode ser dissociada da educação escolar, palco, muitas
vezes, de reprodução destas questões através de violência, que não designo
apenas como física, mas também simbólica, quando a linguagem produz efeitos
na vida de pessoas que não se enquadram numa moldura tida como normativa.
Deste modo, apresento neste texto narrativas de jovens engajados nos anos
finais do ensino médio, que se identificam como gays, a partir de histórias de

1 Disponível em: <http://www.rcdh.es.gov.br/sites/default/files/RELATORIO%20VIOLENCIA%20HO-


MOFOBICA%20ANO%202012.pdf>. Acesso em: 18 de dezembro de 2016.
2 Disponível em: <http://www.brasilpost.com.br/2016/02/26/relatorio-homofobia_n_9330692.html>.
Acesso em: 15 de julho de 2016.
3 Disponível em: < http://pt.calameo.com/read/0046502188e8a65b8c3e2>. Acesso em: 15 de Julho
de 2016.

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vida relacionadas à homofobia durante sua trajetória escolar. Operacionalizo


as narrativas com base em Leonor Arfuch e interpreto-as através da noção de
precariedade de Judith Butler, ao nomear as masculinidades performatizadas4
pelos jovens gays como masculinidades precárias.

Sobre a noção de precariedade

A filósofa estadunidense Judith Butler apresentou discussão sobre a noção


de precariedade nas obras Precarious Life, de 2004, e Frames of War, em 2009,
esta última traduzida para o português no ano de 2015 como Quadros de
Guerra. Judith Butler, inicialmente, nomeou como vidas precárias uma certa
condição humana – que é universal, pois todas as vidas são precárias - pautada
em reflexões ocorridas após o atentado de 11 de setembro de 2001 nos EUA,
colocando em discussão as condições de crescente vulnerabilidade e violência
que o país vivia naquele período. Neste sentido, Butler (2009a) afirma que há
formas de distribuição da vulnerabilidade em que algumas pessoas encontram-
se mais expostas que as outras e questiona quais vidas contam como vidas e
o que faz uma vida valer a pena. Para a autora: “ [...] uma vida específica não
pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada uma
vida” (BUTLER, 2015b, p.13).
A filósofa então amplia a discussão sobre precariedade, para além do
atentado de 11 de setembro, dirigindo atenção também a categorias identitárias
como mulheres, negros/as, pessoas LGBTs, entre outros/as, discutindo as con-
sequências de corpos que são socialmente constituídos e sujeitos à violência e
vulnerabilidade, sob certas condições sociais e políticas normativas.
Esta afirmação vale tanto para as reivindicações de gays e lésbi-
cas do direito à liberdade sexual, como para a reivindicação de
transexuais e transgêneros sobre o direito de autodenominação,
assim como para a reivindicação de intersexuais ao direito de não
submeter-se a nenhuma intervenção médica e psiquiátrica for-
çada. Vale tanto para o direito a estar livre de ataques racistas,
físicos e verbais, como para a reinvindicação feminista da liberdade

4 A noção de performatividade de gênero, teorização também desenvolvida por Judith Butler, diz
respeito à repetição de atos, gestos, atuações e encenações, que por meio de aspectos linguísticos-
discursivos-textuais, buscam normatizar gênero, sexo e sexualidade (BUTLER, 2015a).

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reprodutiva, assim como vale também para todos aqueles cujos


corpos trabalham sob coação, política e econômica, sob condições
de colonização e ocupação (BUTLER, 2009a, p. 51/52, tradução
minha5)

Avançando nesta discussão, Butler (2015b) levanta que certos enquadra-


mentos epistemológicos classificam vidas como não qualificadas como vidas e,
deste modo, as mesmas nunca serão vividas e nem perdidas, em seu sentido
pleno. Estes enquadramentos, pautados em operações de poder, colocam os
sujeitos em molduras, impondo-lhes a condição precária de vida, que pode
ser maximizada para algumas pessoas e minimizada para outras, conforme os
esquemas de inteligibilidade que ditam estas normas. A condição de uma vida
ser enlutada (passível de luto) é também, para a filósofa, uma condição de
vida vivível, pois está dado o pressuposto de que essa vida importa. Com base
nestas proposições, discuto, a partir de narrativas de jovens que se identificam
como gays, como a homofobia esteve presente em suas diferentes trajetórias na
educação básica, problematizando como a condição de precariedade de suas
vidas as colocavam como vidas consideradas não reconhecíveis.

Narrativas sobre homofobia no contexto escolar

As entrevistas narrativas, aqui expostas, apresentam a possibilidade de


dialogismo que ocorrerá na interação entre sujeitos entrevistados e pesquisador.
Desta forma, busco nos estudos da pesquisadora argentina Leonor Arfuch, que
propõe reconhecer o espaço biográfico como um local de multiplicidades de
narrativas, que contam de diferentes modos histórias ou experiências de vida
através de olhar não essencializado e desnaturalizado. Tal proposta é tomada
pela autora para: “[...] permitir analisar ajustadamente o vaivém entre o tempo

5 “Esta afirmación vale tanto para las reivindicaciones de gays y lesbianas del derechos a la libertad se-
xual como para la reivindicación de transexuales y transgéneros del derecho a la autodeterminación,
así como para la reivindicación de intersexuales del derecho a no someterse a ninguna intervención
médica o psiquiátrica forzada. Vale tanto para el derecho a estar libre de ataques racistas, físicos y
verbales, como para la reivindicación feminista de la libertad reproductiva, así como vale también
para todos aquellos cuyos cuerpos trabajan bajo cacción, política y económica, bajo condiciones de
colonización y ocupación”

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da narração, o tempo da vida e a (própria) experiência [...]” (ARFUCH, 2010, p.


119).
A experiência também é um ponto importante nesta discussão. A teórica
feminista Joan Scott, citada por Leonor Arfuch nesta construção teórica, afirma
que quando a experiência é tomada como origem do conhecimento, a visão
dos sujeitos, seja da pessoa que viveu a experiência ou a da que relata, torna-se
verdade apriorística, remetendo-se a um entendimento essencialista que opera
invisibilizando formas de como a diferença é estabelecida e como e de que
maneira esta constitui os sujeitos. Deste modo, Scott (1998) propõe que, ao
tornar visível a experiência de um grupo, se coloque em evidência os processos
históricos que, constituídos pelo discurso, posicionam sujeitos na construção
crítica de sua experiência, já que: “Não são indivíduos que têm experiência,
mas sim os sujeitos que são constituídos pela experiência” (p. 304). Arfuch
então, no diálogo com Scott, questiona o caráter incontestável da experiên-
cia, buscando a desconstrução de posições essencializadas e pré-determinadas,
considerando o dialogismo, tanto pelas vozes dos sujeitos entrevistados como
dos sujeitos que realizam as entrevistas.
Esta pesquisa é um recorte de minha tese de Doutorado, que encontra-se
em andamento pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, intitulada como Masculinidades performativas em
narrativas de jovens atletas: desconstruções, na qual os sujeitos da pesquisa são
jovens atletas de voleibol com idades entre 17 e 19 anos, também estudantes
dos anos finais do ensino médio e que se identificam como gays e bissexuais.
Entre as perguntas do roteiro semiestruturado que são realizadas na entrevista,
interpelo os jovens sobre como sua orientação sexual é vista na escola e trago
neste texto as narrativas geradas pela questão. Apresento abaixo a primeira
narrativa:
“Pesquisador: Como sua orientação sexual é vista dentro da escola?
Jovem 1: Desde quando eu era muito pequeno tinha um cabelo
um pouco grande e me chamavam de gay por esse fato. Eu fui cres-
cendo e na adolescência cortei o cabelo, mas mesmo assim ouvia
algumas piadinhas na escola pelo meu jeito, mesmo eu me pren-
dendo e não me expondo. Tanto que do 9º ano pro ensino médio
eu acabei saindo de um colégio por não ter aguentado. Cheguei
a brigar e tal, e fui expulso do colégio... eu fui expulso do colégio
por ter brigado, por ter me estourado por uma piada que eu não

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gostei, você tem noção disso? Aí fui crescendo e crescendo, já fui


me prendendo mais e mais, não fui me socializando muito, terminei
os estudos com poucos amigos num outro colégio, agora, esse mês.
Pesquisador: Esse episódio que você passou de ter saído da escola...
isso levantou pra sua família a questão de sua sexualidade?
Jovem 1: Então... os meus pais foram chamados no colégio, mas
eu cheguei em casa contando uma outra história... no colégio eles
ficaram sabendo o que era. Nesse tempo eu me omiti, falei que
não, que era uma brincadeira. Depois, com o passar do tempo, eu
conversei com os meus pais... na verdade eles descobriram. Um
ano depois minha mãe me fez a mesma pergunta, aí eu fui e contei
a ela tudo. Hoje ela... eles, na verdade, tem um pouco de receio...
mais a minha mãe do que meu pai, meu pai é muito mais de boa.

A narrativa do jovem 1, conforme exposto, o fazia ser interpelado por


xingamentos na escola desde os primeiros anos na educação básica. Os efei-
tos gerados na vida do jovem, por tais enunciados interpelativos, perpassaram
a normatização de suas performances de gênero, como cortar o cabelo e se
“prender”, como afirma na narrativa, além do relato da briga na escola e sua
culpabilização do fato, culminando com a expulsão do colégio. Butler (2009b),
a partir de releitura do termo interpelação proposto pelo filósofo Louis Althusser,
afirma que ser insultado é uma das formas pelas quais os sujeitos se constituem
pela linguagem, seja sendo menosprezado e depreciado pela palavra proferida,
seja oferecendo possibilidades de agência, produzindo resposta inesperada à
injúria. Deste modo, não há nas enunciações de xingamentos e injúrias deter-
minações fixas e estabilizadas de seus efeitos, entretanto, o caso levantado pelo
jovem estudante expõe relato grave sobre homofobia na escola e os desdo-
bramentos que se sucederam na vida do entrevistado. Trago mais um diálogo
construído pelas entrevistas narrativas com outro jovem estudante:
“Pesquisador: Como é que a sua orientação sexual é vista dentro
da escola? Você está em que ano?
Jovem 2: Estou no 3º ano. É, tipo assim, desde pequeno eu era
muito afeminado, então tipo, as pessoas me viam assim como um
‘viadinho maluco’. Então muitas pessoas riam de mim, zombavam.
[...]. Aí hoje... hoje em dia é tudo diferente porque todo mundo tem
essa fase, meio assim, mais afeminado. Depois que você passa a
idade, você fica mais tranquilo, você se sente ‘não, aquilo que eu
fiz foi errado. Vou ser mais assim, vou ser mais assado’, entendeu?

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Cada dia a gente vai evoluindo até chegar o ponto certo. Mas todo
gay teve seu ponto fraco na sua infância. Hoje os professores perce-
bem que eu sou, mas não há nenhum problema.
Pesquisador: Então você acha que era mais afeminado quando
criança e se policiou mais quando foi crescendo. Mas você acha
que isso é certo? Você não acha que, não sei, você deveria ser
quem você é e não precisar ter que mudar?
Jovem 2: Pode ser sim, mas eu também faço o que eu bem entendo.
Hoje todo mundo me vê e percebe que eu sou, digamos que hoje
eu encaro mais as pessoas, mesmo ainda sendo afeminado. Mesmo
a gente tentando se modificar é difícil... eu pelo menos tentei de
alguma forma”.

Há também um movimento de regulação da performance de masculini-


dade do jovem 2, assim como relatada nas narrativas do jovem 1, enunciada
inclusive pelo próprio ao afirmar que deveria se “modificar” para se adequar as
normas. Como afirma Butler (2015a) o gênero pode ser uma performance com
consequências claramente punitivas, o que faz com que o jovem 2 seja punido
e se puna, por performatizar uma masculinidade não normativa.
As narrativas dos dois jovens são marcadas pela normatização de suas
performances de masculinidades, e, neste contexto, a vulnerabilidade e a pre-
cariedade de suas vidas são maximizadas. Butler (2015b, p.16) afirma que há
uma ontologia corporal que não pode ser definida sem as significações sociais
assumidas pelo corpo, e, deste modo: “[...] ser um corpo é estar exposto a
uma modelagem e uma forma social, e isso é que faz da ontologia do corpo
uma ontologia social”. Essa modelagem e forma social inclui a linguagem, o
trabalho e o desejo, que, como exigências de sociabilidade, tornam corpos
como impossíveis de existência e reconhecimento, afirmação que se pode
associar ao relato dos jovens. Embora os enquadramentos que diferenciam
vidas como vividas ou não vividas, são produzidos por uma ontologia histo-
ricamente contingente, como afirma a filósofa, as narrativas dos dois jovens
enunciaram repetições de sentidos regulatórios e normativos que mostraram
a condição precária de suas vidas em suas diferentes, mas entrecruzadas, tra-
jetórias escolares.

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Considerações finais

As masculinidades precárias performatizadas pelos jovens estudantes e


problematizadas nas narrativas, apontam para a condição de vulnerabilidade
e não reconhecimento de suas vidas como vidas vivíveis em suas trajetórias
escolares. Parafraseando Butler (2009a, 2015b), a vulnerabilidade é parte da
vida corporal, e, neste sentido, as condições sociais e políticas discorrem sobre
possibilidades maiores ou menores de vulnerabilidade, e, no caso dos jovens
estudantes da pesquisa, suas performances de masculinidades não normativas
significavam maior vulnerabilidade corporal, consequentemente maior condi-
ção de precariedade.
O enquadramento destes jovens em uma vida não vivível os colocavam
em uma condição de não inteligibilidade, e, neste contexto, os relatos sobre
homofobia nas trajetórias escolares remetem ao não pertencimento social e
ao não reconhecimento de suas condições de precariedade. Corpos gays que
performatizam masculinidades precárias, são corpos que, em alguma medida,
deslocam a condição de precariedade em uma incansável busca por se enqua-
drar em tal condição e não por superá-la, como talvez devesse ser.

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Referências

ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de


Janeiro: Ed. UERJ, 2010.

BUTLER, J. Lenguaje, poder e identidad. España: Editorial Síntesis, 2009b.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 8ª edição. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015a.

BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2015b.

BUTLER, J. Vida precaria. El poder del duelo y la violencia. Argentina: Editorial Paidos,
2009a.

SCOTT, J. A invisibilidade da experiência. Projeto História. Revista do Programa de


Estudos Pós-Graduados de História, v. 16, 1998.

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“AQUI NÃO É LUGAR PARA ISSO NÃO”: REPENSANDO A


CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MASCULINIDADE HEGEMÔNICA
DIANTE DO CONTEXTO DA HOMOFOBIA NA ESCOLA

Mayara Carvalho de Oliveira


Mestranda em Educação
Faculdade de Educação (PPGE-UFRJ)
mayoliveira_05@yahoo.com.br

Angela Maria Venturini


Mestra em Psicologia Social
ISERJ/FAETEC/SECTI
angelamaria.venturini@gmail.com

José Guilherme de Oliveira Freitas


Doutor em Educação
Faculdade de Educação (LaPEADE/UFRJ)
jguilherm@uol.com.br

GT 14 - Masculinidades múltiplas no contexto escolar

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar as masculinidades presentes no vídeo


Novamente Homofobia, uma produção da UFRJ em parceria com Grupo Arco-
Íris. Este vídeo retrata o dia a dia de alunos de uma escola, dando destaque a
dois casais, um heterossexual e o outro homossexual. Para cada casal, a escola
reserva um tratamento diferente: a naturalidade e os privilégios para o casal
inserido no contexto heteronormativo e o preconceito em relação ao casal
homossexual. Em vista disso, pretendemos destacar a multiplicidade das mas-
culinidades que permeiam nossa sociedade, problematizando a masculinidade
dita hegemônica e o bullying homofóbico.
Palavras-chave: masculinidades; escola; homofobia; bullying;
heteronormatividade.

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Introdução

O curta “Novamente homofobia na escola”, produzido a partir de uma


oficina de audiovisual realizada pelo Projeto Diversidade Sexual na Escola1, nos
apresenta uma realidade bastante familiar nas escolas brasileiras: o convívio diá-
rio com a homofobia. De um lado, o “cabeça” do grupo que, presumidamente
dominante e confiante, exerce uma função de liderança perante os outros ele-
mentos, em especial sua namorada, um amigo de personalidade parecida e um
colega de classe cujo papel no grupo resume-se a realização das tarefas dos
demais.
Do outro lado, o “grupo dos diferentes”, por assim dizer. Um casal gay,
uma jovem de cabelos vermelhos, um rapaz homossexual denominado cari-
nhosamente pelos colegas de “pintosa” e um outro rapaz. No início do curta,
ao entrar na escola de mãos dadas, o casal de rapazes é alertado: “aqui não é
lugar para isso não”. Poderíamos facilmente pensar que se trata de uma política
da escola, não fosse a diferença do tratamento dado pela inspetora a cada casal.
Poderíamos, também, tomar o curta como uma produção clichê, uma
vez que, dados alguns aspectos, reforça estereótipos ao dividir os colegas de
classe em grupos sociais. Entretanto, estudos sociológicos2 demonstram que
tais grupos, de fato, existem, quando há relações estáveis, em um determinado
grupo de pessoas, em razão de objetivos e interesses comuns, bem como o
sentimento de identidade grupal desenvolvido por meio do contato contínuo.
Desde essa perspectiva, não seria, portanto, errado afirmar que, principalmente
no contexto escolar, formam-se grupos de pessoas que, por diversos motivos,
se identificam e se relacionam.
Para além dos grupos sociais estabelecidos, o vídeo traz à tona a diversi-
dade de masculinidades existentes na sociedade, as quais se projetam no chão
da escola, por meio do que é socialmente aceito, esperado, isto é, o que está
posto como norma dentro do que é considerado padrão social, ético, moral e
comportamental socialmente construído e historicamente tido por “normal”.

1 Projeto de extensão que tem como ações principais a sensibilização, formação e produção de mate-
riais para profissionais e estudantes da rede pública do Rio de Janeiro.
2 MEAD, 1913; COOLEY, 1956; 1992; BREWER, 1991; 1996; HOLSTEIN & GUBRIUM, 2000; PAPA-
CHARISSI, 2010.

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Nesse sentido, aqueles que, por algum motivo, escaparem à essa norma
estarão sujeitos, em maior ou menor grau, à discriminação que, dentro do
espaço escolar, emerge sob a forma dos mais diversos tipos de bullying3.

O bullying como ferramenta de afirmação da masculinidade

De acordo com Lopes Neto (2005), o bullying é um problema de saúde


pública crescente no mundo, especialmente no que diz respeito aos jovens,
e a sua recorrência nas escolas “é um problema social grave e complexo e,
provavelmente, o tipo mais frequente e visível da violência juvenil4” (p. 164 e
165). Tradicionalmente, a escola é vista como um local de aprendizado e, por
esse motivo, é de grande significância para crianças e adolescentes. Entretanto,
para determinados grupos sociais, tais como lésbicas, gays, travestis e transexu-
ais, essa mesma escola pode se transformar em um espaço hostil, na medida
em que o corpo docente apresenta dificuldade em trabalhar com a diversi-
dade sexual e, consequentemente, em promover ações de combate ao bullying
homo/transfóbico.
Segundo pesquisa recente realizada pela Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar)5, 32% dos homossexuais entrevistados durante a 6ª edição da
Parada LGBT de Sorocaba afirmaram sofrer preconceito dentro das salas de
aula, alegando que os educadores não sabem reagir de maneira apropriada
diante das agressões, físicas ou verbais, no ambiente escolar. Os dados conver-
gem com os apresentados pelo Ministério da Educação em 20136, que revelou
que 20% dos alunos não gostaria de ter um colega de classe gay/transexual, o
que justifica a baixa autoestima, queda no rendimento ou abandono escolar,
depressão e, em alguns casos, suicídio.

3 Termo proposto por Dan Olweus, após o Massacre de Columbine, 1999, que é comumente utilizado
para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um
indivíduo ou grupo de indivíduos, dentro de uma relação desigual de poder.
4 Segundo o autor, violência juvenil é um termo que se refere à violência cometida por pessoas com
idades entre 10 e 21 anos.
5 Disponível em: http://www2.ufscar.br/servicos/noticias.php?idNot=8317. Acesso em 08/07/2016 às
04:18.
6 Pesquisa Juventudes na Escola, Sentidos e Buscas: por que frequentam?, realizada pelo Ministério da
Educação em parceria com a SECADI, coordenada por Miriam Abramovay.

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O vídeo em questão nos coloca diante desta realidade. Estudantes de um


colégio público de nível médio iniciam suas atividades do dia. Como dito ante-
riormente, apresentam-se dois grupos, cada qual com um casal. O casal que
corresponde às expectativas da heteronormatividade se abraça e se beija sem
qualquer constrangimento, ao passo em que o casal homossexual não encontra
espaço para manifestar seu afeto, haja vista o receio da violência e a possível
punição por parte dos docentes e profissionais da escola.
Ao longo do curta é possível perceber que um dos alunos homossexu-
ais é constantemente importunado por seu colega de classe heterossexual: “ui,
borboletinha... Lá vai a borboleta, ela vai voando”. Quando questionado pelo
colega sobre seu comportamento, o mesmo responde “vai, ô boiola... Fica
fazendo parada na escola, se liga. Volta pro seu grupinho lá, ô boiola... Vai
voar” e atira um objeto na direção do colega. Novamente questionado por sua
atitude, contesta (enquanto os demais riem em tom de deboche) “fui eu, por
quê? Fui eu, algum problema? Vai fazer o quê? Vai puxar o meu cabelo?”e se
altera, levantando-se “mermão (sic), tá maluco? Quer tomar uma porrada, mer-
mão (sic)? Eu vou te dar uma porrada, tá, seu viado (sic)!”.
Esta cena nos remete aos padrões mediterrâneos da construção simbó-
lica do masculino que, em torno do desafio da honra, constitui grande parte
da violência brasileira masculina. Nesse contexto, “a agressividade física, o
exibicionismo do desafio corporal, o poder sobre a vontade dos outros e a indi-
ferença em relação às vítimas, que servem apenas para ‘contar vantagens’, são
valores fortemente conectados à concepção de masculinidade” (MACHADO,
2001, p. 22), isto é, associada ao ideal de virilidade.
É possível, ainda, relacionar tal comportamento à ideia do “exibicionismo
do maioral” que, na concepção da autora, refere-se ao deslocamento do uso
da lógica relacional da honra, no que concerne à exaltação exibicionista do eu.
Em vista disso
[...] O sujeito do espetáculo encara o outro apenas como um objeto
para o seu usufruto [...] O sujeito vive permanentemente em um
registro espetacular, em que o que lhe interessa é o engrande-
cimento grotesco da própria imagem. O outro lhe serve apenas
como instrumento para o incremento da auto-imagem(sic) [...] Este
é o cenário para a estridente explosão da violência na atualidade
(BIRMAN, 2000, p. 23-25 apud MACHADO, 2001, p. 24).

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O rapaz do vídeo sente a necessidade de reafirmar-se “como homem”,


tanto em relação à sua namorada como em relação ao colega de classe homos-
sexual (para os demais). E ele o faz porque a masculinidade hegemônica7
pressupõe a predominância dessa configuração de feminilidade (Vai fazer o
quê? Vai puxar o meu cabelo? – relação clara com o estereótipo de conflito
físico entre mulheres), uma vez que “estabelece uma bipolaridade linear e gera
um diálogo difícil e tenso entre a complexidade polimorfa das experiências
femininas e o simplismo autoritário dos padrões orientadores” (MATOS, 2001,
p. 50).
Connell (2005) é precursora do campo de estudos que problematiza os
valores que constituem o ideário naturalizado da masculinidade, a partir do que
denomina “masculinidade hegemônica”8, a saber:
Entende-se como conceito de masculinidade hegemônica o que se
relaciona àquele grupo masculino, cujas representações e práticas
constituem a referência socialmente legitimada para a vivência do
masculino. Trata-se de uma forma de se pensar em certa organiza-
ção social da masculinidade.

Homofobia: culpa da heteronormatividade?

Para além dessa questão, está em jogo a homofobia. Nos idos do século
XIX, havia uma tentativa de consolidar uma masculinidade e virilidade hege-
mônicas, dada a “ameaça” de uma feminilidade inerente a alguns homens,
decorrente do medo de tornarem-se homossexuais. Tal preocupação obrigou
os homens a investirem e construírem para si diversos papéis e traços repre-
sentativos de sua condição masculina – o homem vitoriano – em contraste ao
seu oposto, a mulher, e, mais inadvertidamente, ao seu inverso, o homossexual
(SILVA, 2000).
Nesse sentido, e ainda se observa esse comportamento no homem con-
temporâneo, ser homem, no século XIX, significava não ser mulher, e, acima de
qualquer hipótese, jamais ser homossexual. A identidade sexual e de gênero do

7 Connell (2005).
8 A autora utiliza o adjetivo ‘hegemônica’, derivado de Gramsci, com o intuito de suscitar uma proble-
matização teórica, uma vez que o termo implica em luta constante de preponderância, poder.

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homem vitoriano estava, portanto, intimamente relacionada com a representa-


ção do seu papel na sociedade, uma vez que “homens e mulheres deveriam
restringir-se ao seu papel social de acordo com a sua identidade biológica, de
macho e fêmea, e, por conseguinte, sua escolha afetiva e sexual deveria vol-
tar-se para o sexo oposto ao seu. A norma desviante era totalmente repelida e
punida” (idem, p. 38 e 39).
O tempo passou e embora estejamos no século XXI, o preconceito contra
homossexuais ainda existe e de maneira contundente, tendo em vista os crimes
de homofobia frequentemente veiculados pela mídia, sem contar com os não
veiculados e com os “abafados”.
Desse modo, é importante considerar a questão da discriminação com
base na orientação sexual, pois a homofobia – aversão aos homossexuais – é
prática cotidiana no Brasil: em casa, na rua, no trabalho, nos meios de comunica-
ção e nas escolas. A discriminação contra homossexuais no âmbito educacional
é grave, pois gera grande parte da violência nas escolas e a evasão escolar.
No vídeo podemos observar que, durante o intervalo das aulas, ambos
os casais se encontram sentados nos bancos do pátio da escola. Retornando
à questão da demonstração do afeto em público, enquanto a namorada do
rapaz está sentada em seu colo, os dois rapazes tentam, timidamente, um toque
ou expressão mínima de afeto, sem sucesso, pois o medo de sofrer represá-
lias físicas e verbais está presente nas relações homoafetivas. A manifestação
da sexualidade está no centro de controvérsias contemporâneas relativas ao
futuro das relações sociais de gênero, do casamento, da família, do direito de
as pessoas decidirem sobre o seu corpo e das maneiras de viver e de exprimir,
publicamente, sua afetividade.
Em direção oposta a esta situação existem Movimentos Sociais LGBT,
Programas de Governo, entre outros, que abrem espaço na sociedade para que
os homossexuais saiam da invisibilidade em termos de sua orientação sexual.
Tais iniciativas contribuem e respaldam o direito que os homossexuais têm de
exercer a homossexualidade nos espaços públicos, e de frequentar a escola sem
ser alvo de discriminações e preconceitos, ou seja, ter o seu direito garantido
conforme o art. 5º da Constituição Brasileira, no qual “todos são iguais perante
a lei desfrutando do direito à liberdade”.

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Considerações Finais

Diante do exposto, não é possível conceber uma hegemonia frente às


nossas identidades, haja vista a diversidade de culturas, crenças e a pluralidade
de identidades na contemporaneidade aliada ao fato de que elas não são fixas,
imutáveis, mas, ao contrário, vêm sofrendo constantes mudanças e adequando-
se às exigências do próprio tempo. O desafio está, portanto, em permitir a
emergência de “subjetividades plurais, livres do julgo do sujeito abstrato univer-
sal [...] ciente de que nenhuma subjetividade é fixável essencialmente, nenhuma
hierarquia é imutável, toda posicionalidade está aberta a mudanças no processo
de desconstrução e dever social” (MATOS, 2001, p. 48 e 49).
É preciso refletir sobre a ideia de uma essência masculina ou de uma
natureza comum a todos os homens, haja vista o caráter múltiplo e plural das
experiências de gênero masculinas. Assim, é possível afirmar que a masculini-
dade varia de contexto para contexto, apesar das permanências e hegemonias,
de modo que
sobrevêm a preocupação em desfazer noções abstratas de ‘homem’
enquanto identidade única, a-histórica, e essencialista, para pensar
a masculinidade como diversidade no bojo da historicidade de suas
inter-relações, rastreando-a como múltipla, mutante e diferenciada
no plano das configurações de práticas, prescrições, representa-
ções e subjetivações, campos de disputa e transformações minadas
de relações tensas de poder (idem, p. 47).

A masculinidade, em particular, bem como a diversidade sexual, não é


dada, é construída e, longe de ser pensada como um absoluto, é relativa. Faz-se
necessária a reflexão e reinvenção sobre as modalidades das categorias de mas-
culino e das relações de gênero, pois ao se refletir sobre as masculinidades e
sobre a diversidade sexual na escola, os professores, gestores e os alunos serão
levados a pensar criticamente, e esta reflexão, por sua vez, é fundamental para
que as práticas discriminatórias sejam, se não diminuídas, pelo menos denun-
ciadas e contestadas. Em curto prazo, pode ser que os efeitos deste tipo de
educação sequer sejam percebidos. Mas, em longo prazo, acreditamos que eles
contribuam para uma transformação histórica.

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Referências

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Diversidade sexual na Escola/ Pró-Reitoria de Extensão/UFRJ; Grupo Arco-Íris/
Cidadania LGBT; MEC, Ago/2009.

CONNELL, Raewyn (Robert William). Masculinities. 2nd Edition. Berkely, CA: University
of California Press, 2005.

KAUFFMAN,Michael. Las experiencias contradictorias del poder entre los hom-


bres. In: VALDÉS, T. & OLAVARRÍA, J. (Eds.). Masculinidades: poder y crisis. Santiago:
Ediciones de las Mujeres 24, Isis Internacional, 1997 (63-81).

LOPES NETO, A. A. Bullying– comportamento agressivo entre estudantes. Jornal de


Pediatria. Vol. 81, n° 5 (supl), 2005, p. 164-172.

MACHADO, L. Z. Masculinidades e violências. Gênero e mal-estar na sociedade


contemporânea. Departamento de Antropologia. Instituto de Ciências Sociais,
Universidade de Brasília, DF, 2001.

MATOS, M. I. S. Por uma história das sensibilidades: em foco – a masculinidade.


História: Questões & Debates, Curitiba, n. 34, p. 45-63, 2001. Editora da UFPR.

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MASCULINIDADES ATRAVÉS DOS BRINQUEDOS:


CASO DA EEFD/UFRJ

Vanessa Silva Pontes


Pós-Graduação em Gênero e Sexualidade
Universidade Federal do Rio de Janeiro
vspontes@ufrj.br

Erik Giuseppe Barbosa Pereira


Doutor em Ciências do Exercício e do Esporte
Universidade Federal do Rio de Janeiro
egiuseppe@eefd.ufrj.br

GT 14 - Masculinidades múltiplas no contexto escolar

Resumo

Objetivamos comparar, entre os alunos de primeiro e oitavo períodos de


Licenciatura em Educação Física, as representações de masculinidades na ade-
quação de brinquedos ao sexo masculino. Participaram do estudo alunos do
referido curso da UFRJ. Os instrumentos utilizados foram uma dinâmica com 40
imagens de brinquedos infantis projetadas em Datashow e questionários de per-
guntas abertas e fechadas. Para a análise, utilizamos a Análise de Conteúdo. Os
resultados indicam um processo masculinizante nas escolhas de brinquedos.
Conclui-se que há uma tendência em evidenciar a masculinidade hegemônica,
fato ainda presente na formação do professor de Educação Física.
Palavras-chave: Masculinidade hegemônica, gênero, brinquedos, análise de
conteúdo, masculinidades.

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Introdução

Desde tenra idade, meninos e meninas seguem normas que, para Scott
(1995) são histórico-sociais e tendem a favorecer as expectativas dos pais, dos
vizinhos, de parentes ou de amigos. Esses aspectos relacionais de gênero, que
constituem uma “[...] categoria social imposta sobre um corpo sexuado [...]”
(SCOTT, 1995, p.75), são percebidos com mais clareza nos relacionamentos
das crianças entre si, quando se formam grupos marcados por amizades “exclu-
sivas” (em geral do mesmo sexo) até chegar aos valores preconceituosos, que
pairam, sobretudo, no âmbito escolar.
Nessa perspectiva, o modelo reproduzido nas práticas corporais ou recre-
ativas favorece a formação de diferenciações, reunidas intimamente dentro e
fora da escola. Percebemos, então, que a construção social das masculinidades
é fruto dos valores e conceitos impostos em normas de conduta sócio históri-
cas, que interferem na construção dos corpos masculino e feminino.
Após os escritos, o objetivo deste estudo é comparar, entre alunos de
primeiro e oitavo períodos do curso de Licenciatura em Educação Física, as
representações de masculinidades na adequação de brinquedos às crianças do
sexo masculino. Buscamos responder a questão: Existem diferenças nas consi-
derações de alunos de primeiro e oitavo períodos sobre brinquedos adequados
ao sexo masculino?

Masculinidades

Os estudos sobre masculinidades adentraram a produção acadêmica bra-


sileira em meados da década de 1990, buscando reconhecer a existência de
masculinidades plurais, contestando modelos essencialistas, e colocando em
discussão os homens também como vítimas de opressões patriarcais, ainda que
não da mesma forma como as mulheres, no contexto das relações de poder
entre os gêneros.
Heilborn e Carrara (1998) e Oliveira (2004) afirmam que a inclusão dos
homens como objeto da pesquisa acadêmica sobre gênero e sexualidade ocor-
reu quando houve o reconhecimento deles como seres marcados por atributos
socioculturais de gênero, a partir da crítica feminista dos anos de 1970. A crise
da masculinidade, denunciada na segunda onda do movimento feminista e na

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emergência do movimento gay, abriu novas possibilidades para a desconstrução


do masculino.
Cabe colocar que tal crise foi alarmada nos EUA e na Europa, aproximada-
mente nos anos de 1970, período de surgimento do chamado men’s moviments,
grupo predominantemente de homens (não exclusivo), que preocupavam-se em
difundir o entendimento de que um comportamento masculino restritivo cau-
sava danos físicos e psíquicos a todos os sujeitos.
Na América Latina, a crise da masculinidade, diferentemente do que ocor-
reu nos EUA e outros países ocidentais, pode ser analisada pelo complexo de
honra e vergonha masculina, tomando como base os estudos de Julian Pitt-Rivers
(1969), cujos valores a sociedade brasileira herdou. Nesta direção, Heilborn e
Carrara (1998) afirmam que no Brasil, de fato, o movimento foi menos expressivo
naquele momento, mas se ampliou a partir de grandes conferências internacio-
nais relativas aos direitos das mulheres, que também colocaram em discussão
ações voltadas aos homens, assim como a ampliação dos estudos de gênero,
incorporando a masculinidade como campo de análise.

Masculinidade hegemônica

Dentre as principais noções teóricas advindas do men’s studies, a de mas-


culinidade hegemônica, de Raewyn Connell, está entre as mais difundidas nas
pesquisas sobre masculinidades dentro e fora do Brasil. A masculinidade hege-
mônica é definida como um modelo normativo e central a ser atingido pelos
homens, tendo como base o patriarcado e as relações de poder.
Connell desenvolve no âmbito dos mens studies a teorização da mascu-
linidade hegemônica (CONNELL, 1995; 2000; 2003; 2013a). Buscando ir além
da teoria dos papéis sexuais, muito discutida entre os anos de 1950 e 1970, que
não consideravam questões de poder existentes nas relações de dominação
entre homens e mulheres, a masculinidade hegemônica se refere à dinâmica
cultural por meio da qual parte dos homens exige e mantém uma posição de
liderança nas sociedades ocidentais, através da legitimação do patriarcado, sub-
missão das mulheres e, em especial, da exclusão de masculinidades subalternas.
A autora define masculinidades como configurações de práticas nas rela-
ções de gênero (CONNELL, 2000), pois ao falar de práticas, busca dar ênfase
naquilo que as pessoas realmente fazem, levando em consideração a racio-
nalidade e o significado histórico de tais práticas. O conceito de gênero para

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Connell se define como a estrutura de relações sociais, centradas na arena


reprodutiva do corpo, assim como o conjunto de práticas que trazem as distin-
ções reprodutivas para os processos sociais (CONNELL et al., 2015).
Norteia este trabalho a noção de masculinidade hegemônica (CONNELL,
2003; CONNELL, 2013a; 2013b; CONNELL & MESSERSCHMIDT, 2013). Connell
(2003) nomeia, ainda, masculinidades inferiorizadas como “cúmplices”, “subor-
dinadas” e “marginalizadas”: as masculinidades cúmplices representam homens
que se beneficiam dos dividendos patriarcais, mas que não se enquadram na
sua totalidade em práticas instituídas pela masculinidade hegemônica; a domi-
nação de homens heterossexuais sobre homens homossexuais representam
a masculinidade subordinada, assim como na dominação de homens adultos
sobre homens mais jovens; e, por fim, a masculinidade marginalizada diz res-
peito a exclusões relacionadas a classe social e raça/etnia vividas por alguns
homens na sociedade.

Metodologia

O estudo é de natureza qualitativa e caráter etnográfico. Participaram 6


alunos matriculados no primeiro e 6 no oitavo períodos do curso de Licenciatura
em Educação Física da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ, totali-
zando 12 atores sociais.
O instrumento foi diferenciado de acordo com o período: para ambos,
foi aplicada uma dinâmica que consistiu na exposição de vinte slides contendo
duas opções de imagens de brinquedos: os ditos masculinos e femininos, para
faixa etária de 6 a 12 anos. Os graduandos registraram em um questionário
de perguntas fechadas, quais brinquedos eram adequados ao sexo masculino,
podendo marcar ambos. O segundo instrumento foi um questionário de per-
guntas abertas e fechadas, contendo cinco questões para os alunos de oitavo
período e duas para os de primeiro período. As perguntas versavam sobre o
contato dos estudantes com a temática de gênero ao longo do curso e a com-
preensão de brinquedos pertinentes ao sexo masculino.
Para a análise dos dados, utilizamos a Análise de Conteúdo (BARDIN,
2011) que é definida como um conjunto de métodos analíticos das comunica-
ções que possibilita a constatação de conhecimentos referentes à produção e
recepção de mensagens. Para tanto, propõe três etapas para a realização da
técnica: 1- a pré-análise; 2- a análise propriamente dita e; 3- tratamento dos

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resultados brutos. A primeira fase consiste na escolha, ordenação e organização


dos documentos, além da elaboração de indicadores para interpretação final.
A segunda corresponde à organização dos resultados no formato de tabela
ou categoria. Na fase final, podem ser feitas análises críticas das informações
catalogadas.

Análise e discussão

Dos entrevistados do primeiro período...


Na exposição dos slides e registro das respostas dos estudantes sobre
quais brinquedos eram apropriados a crianças do sexo masculino, mais de 90%
das respostas indicaram que os brinquedos de cor rosa não eram indicados
a meninos. A cor foi um fator predominante para as respostas dos alunos. O
mesmo brinquedo, exposto com coloração diferente, já foi indicado pelos estu-
dantes como possível de ser utilizado por um menino.
No que tange aos questionários, cinco estudantes dos 6 entrevistados
responderam “Não” para a questão que procurava saber se brinquedos ditos
femininos são apropriados para crianças do sexo masculino. À pergunta aberta,
que versava sobre o entendimento do que seriam brinquedos apropriados ao
masculino, uma aluna alega que: “A sociedade é machista. Porém, o brincar
reflete na fase adulta. Por isso, futebol e carro são indicados aos meninos”.
Nesta resposta, a estudante denuncia uma clara confusão entre brinquedos e
brincadeiras, além de se contradizer ao criticar, inicialmente, o fato de vivermos
numa sociedade machista.
Três alunos disseram que as cores, os modelos e os desenhos dos brin-
quedos remetem a um sexo e não a outro, bem como as sugestionabilidades
do mercado. Estes alunos alegaram que as diferenças entre os brinquedos ditos
masculinos e femininos devem prevalecer, a fim de que as crianças “[...] eviden-
ciem os comportamentos que os brinquedos querem enaltecer”. Segundo eles,
os brinquedos masculinos carreiam noções de “força e virilidade”, enquanto
os femininos possuem ligação com a “delicadeza e o detalhamento”. No total,
cinco estudantes declararam que: “Um brinquedo feminino descaracteriza o
sexo masculino [...] Brinquedo feminino deve ser direcionado à menina, pois
pode afetar a masculinidade do menino”.
Apenas um dos alunos informou na questão aberta que “o brinquedo
feminino não afeta a masculinidade”.

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Percebe-se uma aproximação com os dizeres de Oliveira (2004), que foi


ao encontro de Pitt-Rivers (1969) para explicar o complexo de honra/vergo-
nha, que se refere aos atributos essencialistas incorporados pelos homens, nos
quais a honra seria a característica masculina mais elevada e a vergonha asso-
ciada a qualquer atributo relacionado ao que se aproxima do feminino. Desta
forma, percebe-se uma polarização de sentidos, comportamentos e objetos que
seriam destinados a um e outro sexo, a fim de que a honra masculina não seja
maculada. Também se vê uma necessidade de preservar a masculinidade hege-
mônica, por meio da atribuição de brinquedos “adequados” aos meninos, para
que esta não seja afetada.

Dos entrevistados do oitavo período...

Com os 6 alunos de oitavo período, trabalhamos com uma hipótese inicial


de que estes já haviam tido contato com estudos de gênero durante a gradua-
ção, porém, logo percebeu-se que a hipótese deveria ser refutada.
Duas perguntas fechadas versavam sobre o contato que os estudantes
tiveram com os estudos de gênero ao longo da graduação e quais literaturas já
tinham lido sobre o tema. Dois alunos alegaram nunca ter estudado a temática
de gênero na UFRJ e outro afirma não se lembrar de ter tido contato com o
tema em alguma disciplina. Dois alegam que o contato com estes estudos foi
muito escasso e apenas um dos seis estudantes se recorda de que em duas
disciplinas (Psicomotricidade e Educação Física Adaptada) o gênero foi tema de
discussão, porém sem muito aprofundamento.
Em outra pergunta fechada, que objetivava saber se já haviam presenciado
situações de discriminação de gênero dentro da Universidade, cinco estudantes
responderam que “Não” e um não soube responder.
Já nas questões abertas, a que buscava saber qual o entendimento dos
estudantes sobre o que seriam brinquedos adequados a masculino, todas as
respostas foram ao encontro dos preceitos culturais hegemônicos. Algumas das
afirmações sobre tais brinquedos encontram-se a seguir: “Os brinquedos mas-
culinos devem remeter à força e brutalidade”; “A cultura permite aos meninos
brincar com bola e carrinho”; “Brinquedos masculinos são aqueles que se iden-
tificam mais com o sexo masculino”.
As mesmas características foram encontradas nas respostas à pergunta se
brinquedos ditos femininos são apropriados para crianças do sexo masculino.

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A única resposta que admitiu uma maior pluralidade nos sentidos atribuídos
aos brinquedos foi a de apenas um estudante, que afirmou: “meninos não tem
interesse nos brinquedos femininos, mas que isso depende da particularidade”.

Conclusão

Ao que tudo indica, os resultados inclinaram-se para um processo mas-


culinizante e hegemônico nas escolhas de brinquedos mais apropriados ao
sexo masculino pelos futuros professores. Há também uma polarização entre
os brinquedos ditos masculinos e os ditos femininos, de forma que estes seriam
inadequados ao sexo masculino.
Nas respostas dos graduandos do oitavo período, evidenciou-se uma
lacuna no conhecimento no que diz respeito às questões de gênero e masculini-
dades, sendo as experiências desenvolvidas ao longo da faculdade e o contato
com literaturas sobre a temática praticamente inexistente. Não houve diferenças
significativas entre as respostas dos alunos de primeiro e oitavo período, como
a hipótese inicial sugeria. Ambos demonstram conhecimento muito superficial
ou nulo sobre gênero, sendo uma surpresa maior no caso dos alunos de oitavo
período, dos quais se esperava que a Universidade tivesse lhes provido maior
contato com os estudos em tela.
Conclui-se que tais fatos poderão ser um dos alicerces para a (re)produção
de estereótipos, sexismos e hierarquias que põem em evidência o culto à mas-
culinidade hegemônica, presente ainda na formação do professor de Educação
Física.

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Referências

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Edições 70, 2011.

CONNELL, R. W. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.


20, n. 2, p. 185-206. jul./dez., 1995.

CONNELL, R. The men and the boys. Berkeley: The University of California Press,
2000.

CONNELL, R. Masculinidades. México: UNAM-PUEG, 2003.

CONNELL, R. Masculinidade corporativa e o contexto global: um estudo de caso de


dinâmica conservadora de gênero. Cadernos Pagu, v.40, p. 323 – 344, 2013.

CONNELL, R. Corporate Masculinity and the global context: a case study of conserva-
tive gender dynamics. Cadernos Pagu, n. 40, p. 322-344, 2013.

CONNELL, R.; MESSERSCHIMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando o


conceito. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n.1, p. 241-280, 2013.

CONNELL et. al. Por uma Teoria Social de Gênero do e para-o Sul Global: uma entre-
vista com Raewyn Connell. Revista Feminismos, v. 3, n. 1, 2015.

HEILBORN, M. l.; CARRARA, S.. Em cena, os homens.Estudos feministas, v. 6, n. 2,


p. 370, 1998.

OLIVEIRA. P. P. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora


UFMG; Rio de Janeiro: IPUPERJ, 2004.

PITT-RIVERS, J. “Honra e Posição Social”. In J. G. Peristiany (Org.). Honra e Vergonha:


valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.

SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade,


Porto Alegre, vol. 20, N.º2, p.71-99, jul./dez., 1995.

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RELAÇÕES DE GÊNERO NO ENSINO TÉCNICO DE NÍVEL


MÉDIO: MULHERES NA CIÊNCIA E NA EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA1

Sabrina Fernandes Pereira Lopes


Mestranda em Educação Tecnológica Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG
sabrinafpl@yahoo.com.br

Raquel Quirino
Doutora em Educação Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG
quirinoraquel@hotmail.com

GT 16 - Relações de gênero, diversidade sexual, trabalho, tecnologia e educação


profissional: interlocuções, diálogos e desafios contemporâneos

Resumo

As matrículas femininas no ensino profissional técnico de nível médio brasi-


leiro nos anos recentes tornaram-se maioria, porém concentram-se em áreas
hegemonicamente consideradas femininas. Frente às desigualdades de gênero
presentes na sociedade e no mundo do trabalho, o presente artigo pretende
discutir a participação feminina na ciência e tecnologia e a partir desta análise
debater fatores que influenciam na participação de mulheres no ensino médio
de nível técnico. Levando em conta um referencial sobre a divisão sexual do
trabalho e tomando por base as teorias da Sociologia do Trabalho Francesa.
Palavras-chave: Ensino Técnico de Nível Médio, Divisão Sexual do Trabalho,
Relações de Gênero e Educação.

1 Pesquisa realizada com recursos do Programa Institucional de Fomento à Pesquisa do CEFET-MG –


PROPESQ e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

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1. Introdução

O relatório Gender and education for all the leap to equality: EFA global
monitoring report
2003/4 2divulgado pela Unesco já evidenciava a tendência mundial à
igualdade de acesso ao ensino pós-secundário, porém aponta os padrões de
escolha realizados pelas mulheres como uma questão fundamental a ser discu-
tida para que se possa alcançar a igualdade de gênero. Na realidade brasileira
apesar da mudança nos números gerais3 que caracteriza uma crescente femi-
nilização do ensino técnico de nível médio, anteriormente majoritariamente
masculino4, persiste a tendência das alunas de se concentrarem em determi-
nadas áreas do conhecimento em detrimento de outras5. As áreas gerais de
formação com maior concentração feminina são, segundo o IBGE (2014, p.107),
as com ocupações de menor remuneração média no mercado de trabalho e
que mais se afastam da visão do senso comum de Ciência e Tecnologia. Para
contribuir com o desvelamento das escolhas das alunas por essas áreas de atu-
ação em detrimento de outras mais “tecnologizadas” é necessário conhecer a
forma como essas mulheres se percebem e se relacionam com suas construções
sobre sua realidade, sua formação profissional, inserção e atuação no mundo
do trabalho.
Conforme esclarece Hirata (2002, p. 23) as pesquisas sobre o mundo
do trabalho, em sua grande maioria são realizadas sob uma perspectiva que
não leva em conta as relações de gênero e o sexismo presente nessas relações
sociais, tratam-se de pesquisas gender-blinded. A autora afirma ainda que essa
tendência das pesquisas, em realizar generalizações partindo de um ponto de
vista masculino, pode induzir ao erro, uma vez que ações de formação pro-
fissional não têm “a mesma amplitude nem o mesmo alcance, e tampouco a
mesma significação para as mulheres e para os homens” (HIRATA,2002, p. 224)
deixando de explorar a possibilidade de o espaço de formação contribuir para
a visão da “pseudo incompetência técnica feminina”

2 Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132550e.pdf>
3 Disponíveis em <http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar>
4 Disponível em <http://portal.inep.gov.br/educacao-profissional>
5 Disponíveis em <http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar>

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2. Relações de gênero nas áreas de Ciência & Tecnologia

Atualmente configura-se uma baixa representatividade feminina na


Ciência e Tecnologia e, embora não seja usual relacionar o desenvolvimento de
conhecimentos nessa área a determinado gênero, evidencia-se uma tendência
à perspectiva masculina, Porém, conforme afirma Carvalho (2012, p. 01-02),
as mulheres sempre produziram conhecimento, uma vez que a curiosidade, a
capacidade científica e de pesquisa são inerentes a todos os seres humanos e
não somente ao homem:
O conhecimento tecnológico produzido pelas mulheres no
ambiente doméstico não era considerado útil para o mercado
capitalista e representava, digamos assim, um conhecimento de
‘segunda classe’, desvalorizado e não-científico. Assim, ciência e
tecnologia foram construídas majoritariamente por homens, dentro
de uma lógica masculina. (CARVALHO, 2012, p. 02)

Para uma análise mais clara é necessário desconstruir essa ideia da tec-
nologia como isenta das ideologias, para Marcuse (1999, p. 74) “a técnica por
si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez
quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo.”
Assim a tecnologia reflete os planos, propósitos e valores da sociedade em que
se desenvolve. (Veraszto, 2008, p.78)
A máscara de neutralidade leva à possibilidade de que aqueles que detêm
o poder direcionem as pesquisas e inovações aos seus propósitos.
Fazer tecnologia é, sem dúvida, fazer política e, dado que a polí-
tica é um assunto de interesse geral, deveríamos ter a oportunidade
de decidir que tipo de tecnologia desejamos. Mantendo o discurso
que a tecnologia é neutra favorece a intervenção de experts que
decidem o que é correto baseando-se em uma avaliação objetiva e
impede, por sua vez, a participação democrática na discussão sobre
planejamento e inovação tecnológica (GARCÍA et al, 2000, p. 132).

Na sociedade atual, onde se evidencia uma grande desigualdade entre os


gêneros e uma história marcada pelo patriarcado, as visões masculinas constan-
temente preponderaram no desenvolvimento tecnológico, segundo Carvalho
(2012):

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Vimos que ciência e tecnologia foram construídas sob bases mas-


culinas, com interesses masculinos e resultados que atendessem às
necessidades masculinas cujos paradigmas científicos desta época
estavam pautados na objetividade absoluta e na crença de uma
neutralidade indiscutível. Acreditava-se que os homens, com sua
racionalidade “exuberante”, eram capazes de produzir um conheci-
mento revelador de verdades universais e definitivas.(CARVALHO,
2012, p.04)

Diversos estudos, como os Olinto (2011) e Hayashi, Cabreo e Costa


(2007), têm demonstrado esse desequilíbrio de gênero na produção da Ciência
e Tecnologia. Stancki (2003) ressalta que o histórico de ciência e tecnologia
sendo desenvolvidas predominantemente por homens, também concebeu um
espaço de formação hostil a mulheres, o que gera influências peculiares em
suas opções, para Rosemberg (2013), ao analisar a concentração feminina na
psicologia, as escolhas realizadas por mulheres se devem a uma “Sabedoria
de conciliação ou senso de realidade”, que leva as mulheres a considerarem
os diversos fatores que compõem sua situação na sociedade e acabam por
escolher cursos pouco especializados, não-técnicos e mais generalistas, que
permitam uma maior gama de possibilidades de emprego, mesmo que subem-
pregos. E mesmo a entrada de mulheres em áreas tradicionalmente masculinas
se dá, em geral, com a manutenção dos estereótipos de gênero:
As pessoas ao se inserirem em áreas “masculinas” ou “femininas”
permanecem sendo vistos através das suas características sociais
de gênero, o que acarreta a divisão sexual do trabalho também no
interior das áreas, pois homens e mulheres acabam sendo levados,
por opção, condicionamento ou mesmo falta de opção a desem-
penharem atividades “próprias” de seu sexo. (STANCKI, 2003 p.10)

3. Sexismo na ept: a situação feminina na educação tecnológica


brasileira

No Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015 da Secretaria


de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2013)figura entre as ações propostas:

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ISBN 978-85-61702-44-1 606 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

-Ampliar a oferta de cursos de profissionalização articulados com


o aumento da escolaridade, especialmente para mulheres em situa-
ção de vulnerabilidade social; (BRASIL, 2013, p.16)
-Fortalecer a participação das mulheres nos programas e iniciativas
de capacitação profissional, voltados especialmente para o ensino
técnico-profissionalizante (Pronatec e outros)[...] (IDEM)
-Promover o acesso e a permanência das mulheres em áreas de for-
mação profissional e tecnológica tradicionalmente não ocupadas
por elas, por meio de políticas de ação afirmativa e de assistência
estudantil; (BRASIL, 2013, p.23)
-Realizar campanhas para ampliar o número de mulheres nos
cursos, tradicionalmente não ocupados por mulheres, do ensino
tecnológico e profissional. (BRASIL, 2013, p.26)

Para promover essas mudanças é preciso conhecer e analisar a realidade


feminina na Educação Profissional e Tecnológica observando que a desigual-
dade salarial relatada anteriormente tem fundamentos em nossa construção
sociocultural e interferem na forma como as mulheres se percebem e são per-
cebidas nas instituições de ensino técnico de nível médio. Conforme Hirata
(2003, pag. 148), “é necessário tentar ver porque as mulheres são consideradas
incompetentes, apesar deste alto nível de escolaridade.
No Censo Escolar da Educação Básica realizado pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP em 2014, cons-
tata-se que as mulheres são maioria no ensino técnico de nível médio, porém
quando se realiza uma análise dos censos ocorridos entre 2012 e
2013 é possível observar que a tendência das mulheres por determinados
grupamentos de trabalho se estende à escolha dos cursos técnicos, havendo
uma maior participação das mulheres em determinados cursos em detrimento
de outros, sendo a prioridade os cursos técnicos na área de Desenvolvimento
Educacional e Social e Ambiente e Saúde e a menor participação na área Militar
e de Controle e Processos industriais (gráfico 1):

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ISBN 978-85-61702-44-1 607 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Gráfico 1 Porcentagem de matriculas de alunas por eixo da educação tecnológica 2012-2014

Fonte: INEP/MEC <http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar> acesso em 10 de julho de


2015. Inclui todas as modalidades de matrícula na Educação Profissional. Gráfico elaborado pelas
autoras

As funções nas quais se valorizam características como: sensibilidade,


paciência e delicadeza, consideradas inerentes às mulheres, acabam sendo
delegadas mais a elas, o que acaba por excluí-las de funções que demandam
decisão, individualidade e racionalidade. Essa tendência pode ser observada no
perfil dos cursos técnicos com maior e menor participação feminina. Entre os
cursos com maior porcentagem de mulheres matriculadas em 2014 evidencia-
se uma forte tendência aos cursos que preparam para ocupações relacionadas
ao cuidado (gráfico 2)

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ISBN 978-85-61702-44-1 608 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Gráfico 2 Porcentagem de alunos matriculados por sexo nos 10 cursos técnicos com maior
participação feminina em 2014

Fonte: INEP/MEC <http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar> acesso em 10 de julho


de 2015. Inclui todas as modalidades de matrícula na Educação Profissional. Foram considerados os
cursos com mais de 50 matrículas no ano de referência. Gráfico elaborado pelas autoras

Já quando a atenção se volta para as ausências femininas, observa-se que


os cursos com menor participação de mulheres (gráfico 3), são fortemente liga-
dos às ciências aplicadas, consideradas áreas chaves para o desenvolvimento
tecnológico:

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ISBN 978-85-61702-44-1 609 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Gráfico 3 Porcentagem de alunos matriculados por sexo nos 10 cursos técnicos com menor
participação feminina em 2014

Fonte: INEP/MEC <http://portal.inep.gov.br/basica-levantamentos-acessar> acesso em 10 de julho


de 2015. Inclui todas as modalidades de matrícula na Educação Profissional. Foram considerados os
cursos com mais de 50 matrículas no ano de referência. Gráfico elaborado pelas autoras

4. Considerações finais

Pelos dados apresentados, é perceptível o avanço da mulher na educa-


ção, porém ele não ocorre de forma homogênea. Em se tratando da Educação
Profissional e Tecnológica, que tem uma interface direta com o mundo do tra-
balho é possível perceber como este interfere e lança seus padrões sobre a
formação profissional. Especificamente na educação técnica é possível perceber
uma clara divisão entre as áreas de atuação tradicionalmente impostas às mulhe-
res e a desvalorização desses grupamentos. Para que se possam criar estratégias
para a mudança dessa realidade é necessário que sejam feitas análises mais
detalhadas e atualizadas, levando em conta sua dualidade entre trabalho e edu-
cação. É preciso traçar a trajetórias das mulheres que se encontra em cada área,
tanto as que permanecem no local a elas historicamente destinado, quanto as
que quebram esse ciclo, ponderando sobre como esse fenômeno contribui para
a mudança de ideias e ruptura com os modelos tradicionais.

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ISBN 978-85-61702-44-1 610 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

5. Referências

BRASIL. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013-2015)., Brasília, DF:


Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM, 2013. Disponível em: <http://www.
spm.gov.br/pnpm/publicacoes/plano-nacional-de-politicas-para-asmulheres-2013>.
Acesso em 01 de abril de 2015

CARVALHO, Marilia Gomes, Gênero e os Paradigmas Científico. In: Anais Congreso


Iberoamericano de Ciencia, Tecnología y Género, 2012, 9, Sevilla, OEI, 2012.1-9.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero: Uma


Análise dos Resultados do Censo Demográfico 2010. 1. ed. Rio de Janeiro: IBGE,
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GARCÍA, M. I. G. et al. Ciencia, Tecnologia y Sociedad: una introducción al estudio


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HAYASHI, M. C. P. I.; CABREO, R. C.; COSTA, M. P. R. C.; HAYASHI, C. R. M.


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Campinas, v. 19, n. 2, 169-187, maio/ago. 2007.

HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho?: um olhar voltado para a empresa
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HIRATA, Helena. Tecnologia, formação profissional e relações de gênero no trabalho.


Revista Educação e Tecnologia, Belo Horizonte, n.6, p.144-156. 2003.

MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo, 1.ed, São Paulo, Fundação Editora
da UNESP, p.369, 1999.

OLINTO, G. A inclusão das mulheres nas carreiras de ciência e tecnologia no Brasil.


Inc. Soc., Brasília, DF, v.5 n.1, p.68-77, jul./dez., 2011

ROSEMBERG, Fúlvia. Psicologia, profissão feminina.Cadernos de Pesquisa, São Paulo,


n. 47, p. 32-37, 2013.

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ISBN 978-85-61702-44-1 611 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

STANCKI, Nanci. Divisão sexual do trabalho: a sua constante reprodução. Paper apre-
sentado no I Ciclo de Debates em Economia Industrial, Trabalho e Tecnologia, São
Paulo, 2003, PUC-SP Disponível em <http://www.pucsp.br/eitt/downloads/eitt2003_
nancistancki.pdf.> Acesso em 11 de maio de 2016.

VERASZTO, E. V., da Silva, D., MIRANDA, N. A. D., & SIMON, F. O. Tecnologia:


buscando uma definição para o conceito. Revista Prisma.com, Porto, n.07, p. 60-84,
2008.

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ISBN 978-85-61702-44-1 612 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

OS DITOS E NÃO DITOS: POLÍTICA EDUCACIONAL


E IDEOLOGIA DE GÊNERO NO PLANO MUNICIPAL
DE EDUCAÇÃO

Terezinha Richartz
Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP
Professora do Programa de Mestrado em Letras –Linguagem, Cultura e
Discurso da Universidade Vale do Rio Verde (UNINCOR)
terezinha@unincor.edu.br

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar os entraves acerca da ideologia de gênero


presentes nas propostas dos agentes públicos e privados para a elaboração do
Plano Municipal de Educação da cidade de Varginha (MG). O Plano Nacional
de Educação (PNE) aprovado recentemente delineia objetivos, diretrizes, metas
e estratégias que serão implementados até 2024 em todos os níveis da edu-
cação brasileira. Em consonância com o que foi decidido no âmbito federal,
estados e municípios elaboraram planejamentos que garantam a conformidade
com o PNE. O resultado do debate público desenvolvido na cidade em questão
foi a proibição de implantar, lecionar e aplicar direta e indiretamente a ideologia
de gênero nas instituições educacionais do município.
Palavras-chave: Plano Municipal de Educação; políticas públicas; diversidade;
ideologia de gênero; patriarcado.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Introdução

A elaboração dos currículos e as ações das escolas dentro do município


devem estar em conformidade com as normas educacionais vigentes. Assim,
no Plano Municipal de Educação, são encontrados parâmetros em consonância
com a legislação nacional que norteia as políticas educacionais.
Tendo-se em vista que a heteronormatividade compulsória é apresentada
em uma sociedade fortemente gendrada, surgem propostas educacionais que
expressam os papéis predeterminados por uma cultura dualista e heterocên-
trica, comprometendo o nascimento de novas subjetividades. Nesse sentido, no
presente trabalho, as reflexões sobre as incongruências da política educacional
do município de Varginha (MG) foram realizadas a partir das gravações (dis-
ponibilizadas no Youtube1) da audiência pública e das sessões na Câmara dos
Vereadores que debateram e aprovaram o Plano Municipal de Educação.

O papel das instituições sociais

As instituições sociais exercem papel de vigilantes sobre os comporta-


mentos socialmente aceitos. Em sua obra “História da sexualidade”, Foucault
(2010) aborda o controle feito ao corpo, sobretudo pela Igreja, que estabelece
restrições religiosas e morais introjetando nos indivíduos a noção de pecado.
Para o filósofo, a sexualidade sempre foi considerada pelas instituições norma-
tizadoras como perigosa e, portanto, é controlada e regulamentada por elas. A
escola é uma das instituições em que o poder disciplinar ganha vida. Ela coloca
em prática as políticas públicas determinadas pelas esferas governamentais e,
assim, normas que interferem na sexualidade e nos “bons costumes” são sem-
pre vigiadas pela família e pela sociedade.
Segundo Foucault (1992, p. 244), os dispositivos de poder são “um
conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas adminis-
trativas, enunciados científicos, proposições filosóficas. Em suma, o dito e o
não dito são os elementos do dispositivo”. Como o poder é uma prática social

1 Quando citadas as falas dos atores, são incluídos hora e minuto ou minuto e segundo das gravações
das sessões disponibilizadas no Youtube.

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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

e historicamente determinada, não é fixa. Apesar do controle exercido sobre


o corpo, as regras não são imutáveis, vão aos poucos sofrendo alterações. As
políticas educacionais fazem parte dessa “malha capilar” que penetra de forma
sutil, adestrando os corpos, mas, ao mesmo tempo, o discurso normativo da
escola, que implementa projetos pedagógicos, pode ajudar a manter ou inter-
ferir na heteronormatividade. A sexualidade é uma construção histórica e as
mudanças vão paulatinamente acontecendo. Vitórias e retrocessos são mescla-
dos, especialmente quando o assunto é a diversidade sexual, e é nesse embate
que emergem as novas subjetividades.

Política educacional e diversidade sexual

Na sessão de 1º de junho de 2015 da Câmara Municipal de Varginha,


foi apresentado o Plano Municipal de Educação em consonância com o que
está previsto no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014). As maiores con-
trovérsias, no entanto, surgiram na audiência pública convocada pela Câmara
Municipal para debater sobre o plano com a sociedade, valorizando a opinião
pública e levantando possíveis soluções, especialmente, para os temas mais
polêmicos.
As propostas apresentadas pela Secretaria Municipal de Educação
de Varginha no Plano Municipal de Educação foram disponibilizadas para a
consulta pública2 e depois expostas e discutidas na Tribuna Livre da Câmara
Municipal3 (1º de junho de 2015), em audiência pública4 (10 de junho de 2015) e
na sessão de votação do Plano Municipal de Educação5 (22 de junho de 2015).
Estiveram presentes nessas ocasiões representantes da Secretaria Municipal de
Educação, das escolas particulares e públicas da cidade, de setores ligados às
igrejas (como a Pastoral Familiar, a Pastoral da Comunicação da Igreja Católica
e a Associação dos Pastores) e representantes da comunidade, especialmente
pais preocupados com a educação moral dos seus filhos.

2 Disponível em: <http://www.seduc.varginha.mg.gov.br/admin/arquivo/PLANO%20MUNICIPAL%20


DE%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20DE%20VARGINHA.pdf> Acesso em: 20 jun. 2016.
3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wIrOJ94T2SA> Acesso em: 20 jun. 2016.
4 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Mjo0DKgln4w> Acesso em: 20 jun. 2016.
5 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20 jun. 2016.

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ISBN 978-85-61702-44-1 615 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

O embate se deu, especialmente em torno da palavra “diversidade”. Setores


sociais, sobretudo aqueles vinculados à Igreja, pais e vereadores se pronuncia-
ram contra a incorporação do termo no PME. No entendimento da maioria, o
uso da palavra diversidade poderia dar margem à introdução da ideologia de
gênero nas escolas. A preocupação, portanto, foi restringir oportunidades que
pudessem ser utilizadas pelos setores sociais mais progressistas.
Os representantes da Secretaria Municipal de Educação de Varginha
esclareceram que, em nenhum momento, o plano incentivou a ideologia de
gênero e que o termo não estava presente na sua diretriz, mas foram muitos os
argumentos em favor da alteração do texto.
Por sua vez, os representantes da Igreja Católica6 e das Igrejas Evangélicas
assinalaram o perigo ao qual a sociedade se torna vulnerável. Segundo essas
instituições, as palavras são ambíguas e, depois de aprovada a lei, qualquer
pessoa mal-intencionada pode usá-la “contra a família”. Defenderam, assim,
que deve haver coerência entre o que a escola ensina e o que a família acredita.
Para tais entidades, a ideologia de gênero e a diversidade sexual são contra os
princípios familiares e cristãos, podendo “colocar em risco muita coisa para esta
geração que vai receber a orientação dentro das escolas”.7
A Pastoral Familiar solicitou que, na leitura do projeto, os vereadores tives-
sem cuidado com o texto “para que [...] não passasse alguma palavra que desse
abertura para este tipo de ofensa à família e à nossa crença cristã”.8
A Associação dos Pastores de Varginha reforçou sua preocupação com a
família.
“Os educadores contribuem também para a formação moral das
crianças. É franqueado aos educadores um tempo muito provei-
toso no crescimento, na formação do caráter das nossas crianças.
Estamos preocupados com as brechas da lei que possam violar

6 Nota da CNBB sobre a inclusão da ideologia de gênero nos Planos de Educação, datada de 19 de
junho de 2015: “A ideologia de gênero subverte o conceito de família, que tem seu fundamento
na união estável entre homem e mulher, ensinando que a união homossexual é igualmente núcleo
fundante da instituição familiar. ” (CNBB, 2015, p. 1).
7 (7min10s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20 jun.
2016.
8 (28min27s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20
jun. 2016.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

conquistas da cidadania e da sociedade. A diversidade parece ser


uma brecha na lei. Como a militância federal, estadual e municipal
quer se aproveitar das brechas para colocar suas ideologias e diver-
sas interpretações, solicito que retire o termo diversidade.”9

A entidade solicitou que fossem deixados mais explícitos os termos na lei.


A palavra diversidade, se mantida, deveria ser muito bem definida.
Os pais da cidade de Varginha, preocupados com o futuro dos filhos,
destacaram que
“a ideologia de gênero é o esvaziamento do conceito jurídico de homem
e mulher. Ele vai destruir as bases do direito. [...] Nós temos o direito de ser dife-
rentes. Ser diferente é ser livre também”.10 E reforçaram: “a ideologia de gênero
é uma ameaça porque vem comendo pelas beiradas. [...] Essas aberturas podem
trazer consequências dramáticas”.11
A maioria dos vereadores concorda que a palavra diversidade deve ser
retirada da proposta. Outra sugestão “é usar a palavra exceto, já que a diversi-
dade é mais ampla do que apenas a sexual. Se tirar a palavra diversidade, vai
atingir outras categorias sociais como o negro e o deficiente”.12 Segundo os
legisladores, uma das funções da escola é ensinar o respeito. A abordagem da
ideologia de gênero é função da família, não da escola.
Os vereadores também sinalizaram para as dificuldades de gerenciar a
política de gênero nas escolas, em razão da precariedade das condições das
estruturas físicas. De acordo com eles, os banheiros não atendem às novas
demandas. É necessário mexer na infraestrutura, construindo banheiros
individuais.
No final da sessão de 10 de junho de 2015, o presidente da Câmara
de Vereadores de Varginha leu a seguinte frase: “aluno não pode confundir

9 (35min43s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20


jun. 2016.

10 (1h36min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20


jun. 2016.

11 (27min13s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20


jun. 2016.

12 (55min56s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20


jun. 2016.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

liberdade com libertinagem”13, apontando para os equívocos presentes na inter-


pretação de uma política pública que é tão cara na formação dos alunos. Nesse
sentido, a ideologia de gênero é confundida com depravação.
Depois da audiência pública, os vereadores alteraram a redação da lei
que desencadeou toda a discussão na cidade de Varginha. A redação original
da proposição previa: “Art. 2º São diretrizes do PME: [...] III − superação das
desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erra-
dicação de todas [grifo nosso] as formas de discriminação”. A redação aprovada
reza: “III − superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promo-
ção da cidadania”.
A justificativa da emenda supressiva que adequou o texto do PME destaca
que “a erradicação de todas as formas de discriminação no nosso entendimento
possa estar estimulando a implantação da ideologia de gênero no âmbito do
município”.14
A redação original da proposição estabelece: “X − promoção dos princípios
do respeito aos direitos humanos, à diversidade [grifo nosso] e à sustentabili-
dade socioambiental”. A redação do texto aprovado, por sua vez, determina:
“X – promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos e à sustentabi-
lidade socioambiental”.
Para que não pairasse nenhuma dúvida sobre o texto, foi acrescentado à
lei um parágrafo único: “Não será permitida direta ou indiretamente implan-
tar, lecionar e aplicar a ideologia de gênero no âmbito do município de
Varginha [grifo nosso]”.15
A justificativa da emenda complementa:
“[...] suprimiram a palavra diversidade, considerando que está em
jogo a preservação da família, célula-mãe da sociedade, proibindo
de vez tais palavras e as supostas ideologias, evitando interpretações

13 (1h42min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Mjo0DKgln4w> Acesso em: 20


jun. 2016.

14 (1h41min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Mjo0DKgln4w> Acesso em: 20


jun. 2016.

15 Disponível em: <http://www.varginha.mg.gov.br/legislacao-municipal/leis/543-2015/14965-lei-no-


-6042-aprova-o-plano-municipal-de-educacao-pme-e-da-outras-providencias> Acesso em: 20 jun.
2016.

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dúbias, ambíguas e confusas, conforme recomenda a melhor téc-


nica legislativa. Ademais visa o presente parágrafo a paz social,
esclarecendo que, no sistema educacional de Varginha, não será
aplicada a ideologia de gênero.”16

Foucault (1980) entende, nesses intensos movimentos de disputa, uma


microfísica do poder. Pulverizados em todo o campo social, os micropoderes
promovem uma contínua luta pelo estabelecimento de verdades que – sendo
históricas – são relativas, instáveis e estão em permanente reconfiguração.
Eles sintetizam e põem em circulação as vontades de verdade de parcelas da
sociedade, em certo momento de sua história. As novas subjetividades são esta-
belecidas no jogo desses micropoderes.
A educação é um campo político no qual os objetivos dos diferentes ato-
res sociais, com frequência, são conflitantes. Interferem na educação os saberes
religiosos que transformam o amor em pecado e o respeito à diversidade em
uma afronta à moral da família patriarcal.
A ideologia patriarcal surgiu com muita força nas proposições aprova-
das. Os diversos setores sociais presentes na audiência pública da cidade de
Varginha foram unânimes em criticar a inserção, mesmo que indireta, da ideo-
logia de gênero, expressa na palavra diversidade utilizada no Plano Municipal
de Educação. Os atores envolvidos afirmaram que tal termo é dúbio e dá mar-
gem a múltiplas interpretações.

Considerações finais

Entendendo-se que as escolas precisam pautar a prática pedagógica a


partir das deliberações presentes no Plano Municipal de Educação, o próximo
decênio será marcado por dificuldades de criação de um ambiente favorável à
produção de novas subjetividades e identidades entre os discentes do município
de Varginha.
Palavras como risco, ofensa, violação e ameaça são proferidas para
demonstrar quanto a ideologia de gênero é considerada “perigosa”, pois coloca

16 (2h18min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F6pXx0oWxsY> Acesso em: 20


jun. 2016.

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em cheque a ideologia patriarcal que hierarquiza as relações, dando maior


poder aos homens e aos heterossexuais.
Por fim, há indícios de que a transformação será longa e lenta, mas progres-
siva. Apesar do Plano Municipal de Educação de Varginha proibir literalmente a
abordagem da diversidade sexual nas escolas, no Plano Nacional de Educação,
que é a lei maior, o combate a qualquer tipo de discriminação é garantido,
abrindo possibilidades de se sobrepor ao que foi decidido no município, uma
vez que a lei municipal pode ser considerada inconstitucional.

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Referências

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13.005, de 25 de junho de 2014. Brasília : Câmara dos Deputados, 2014. Disponível
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ferencia.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2016.

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www.conselhonacional.com.br/2015/06/12/regional-sul-1-da-cnbb-divulga-nota-
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1980.

_______. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. 10. ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1992.

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Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.

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LAICIDADE E EDUCAÇÃO: UM DEBATE ACERCA


DO PAPEL DA EDUCAÇÃO NA PROMOÇÃO DE
DIREITOS À COMUNIDADE LGBT

Anna Carolina Policário Bertolin


Graduanda em Direito -UFJF
carolpolicario@yahoo.com.br

Julliard da Silva Avelar


Graduando em Direito - UFJF
julliard15@hotmail.com

GT 22 - Educação, religião e direitos humanos: diálogos interdisciplinares sobre a


diversidade sexual e de gênero

Resumo

O presente artigo objetiva discutir os entraves impostos à realidade educacional


brasileira no sentido de restringir o acesso a direitos e garantias fundamentais da
população LGBT. Nesse sentido, procurar-se-á demonstrar os principais pontos
que tem maculado o papel a ser desenvolvido pela educação, tendo em vista
a percepção de que o espaço público tem sido influenciado por discursos de
ordem moral-religiosa. Assim, dar-se-á ênfase ao contexto que se observou na
cidade de Governador Valadares (MG), quando da discussão e aprovação do
Plano Decenal Municipal de Educação, ocorrida a partir de junho de 2015.
Palavras-chave: educação – população LGBT – Estado Democrático de Direito
– laicidade – Direitos Humanos

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Introdução

A classificação do Brasil como um Estado Democrático de Direito ocorre,


dentre outros inúmeros motivos, devido à proteção que a Constituição Federal
assegura à diversidade. Nossa Carta Magna consagra o direito à liberdade e à
intimidade, de tal modo que todos os indivíduos são livres para criar seus pró-
prios projetos de vida. Esse exercício de liberdade deve receber respeito tanto
do Estado, quanto dos demais indivíduos. Sendo assim, à população LGBT,
assim como a todas as pessoas, deve ser garantido o direito de expressar suas
orientações e identidades em qualquer espaço público-social, caso contrário
seria violado, não apenas o direito fundamental à liberdade, mas também o
direito fundamental à igualdade.
A população LGBT, apesar do arcabouço constitucional que os ampara,
sofre com inúmeras infrações a seus direitos. Ademais, cabe ressaltar, que a
pauta sobre diversidade e sobre demandas da população LGBTs têm encon-
trado mais espaço nos âmbitos social e político, sobretudo devido ao aumento e
fortalecimento de grupos que defendem os direitos desta parcela da população.
Contudo, da mesma forma que força os movimentos pró-LGTBs, também é per-
ceptível o avanço de movimentos de intolerância contra a referida população.
O grupo contrário ao reconhecimento da população LGBT como sujeitos de
direitos têm apresentado uma grande organização e articulação com a socie-
dade; um reflexo disso é a grande influência de instituições religiosas no cenário
político brasileiro e, principalmente, o atual o controle que a denominada “ban-
cada evangélica” tem expressado no Congresso, influenciando de maneira muito
contundente na votação de projetos e, consequentemente, colocando entraves
para a aprovação de leis e políticas públicas que beneficiem a população LGBT.
Ademais, é possível afirmar que, reiteradamente, discursos cristãos hege-
mônicos têm norteado discussões de interesse público, como foi, e ainda é,
perceptível nas discussões que envolvem o Estatuto da Família (Projeto de Lei
6583/13) e Estatuto do Nascituro (Projeto de Lei 478/07). O decreto nº 119-A, de
7 de janeiro de 1890, consagrou o regime jurídico de separação entre Estado e
religião, defendendo a liberdade religiosa e extinguindo o padroado. É notório,
no entanto, que laicidade vai além disso e, muitas vezes, é entendida e debatida
de forma deturpada. Um Estado Laico, para muitos, é um Estado sem religião.
No entanto, a laicidade é caracterizada pelo espaço dispensado, pelo próprio
Estado, ao diálogo e à existência de todas as religiões, de maneira equânime.

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Nesse sentido, torna-se possível a afirmação de que a laicidade é um pressu-


posto para o exercício da democracia.

O Brasil é (realmente) laico ?

A vinculação entre os discursos e atuações do poder público e as religiões


cristãs hegemônicas afronta o Estado Democrático de Direito brasileiro, que
deve se manter neutro quanto às questões religiosas, isto é, não realizar a pro-
moção de nenhuma religião e ao mesmo tempo proteger a todas.
Assim como se pode dizer que o Estado Democrático é necessário para
a promoção dos direitos humanos, já que é o ambiente em que se permite o
diálogo em ampla dimensão, diz-se que a laicidade é pressuposto para o Estado
Democrático. Nesse sentido, há uma correlação entre a autonomia individual
que o Estado democrático assegura, a laicidade como defesa da diversidade e
da pluralidade, e os direitos fundamentais e humanos decorrentes desse modelo.
Assim, afirma Flávia Piovesan:
Não há direitos humanos sem democracia e nem tampouco demo-
cracia sem direitos humanos. Vale dizer, o regime mais compatível
com a proteção dos direitos humanos é o regime democrático. (...)
um segundo desafio central à implementação dos direitos huma-
nos é o da laicidade estatal. Isto porque o Estado laico é garantia
essencial para o exercício dos direitos humanos, especialmente nos
campos da sexualidade e reprodução. Confundir Estado com reli-
gião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao
impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade
aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado
Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da
moral de qualquer religião. (PIOVESAN,2006, p.10 e 15)

Visto isso, pode-se aferir que se não há democracia sem laicidade e, tam-
bém, não há democracia sem direitos humanos logo, não há direitos humanos
sem laicidade. A grande importância da laicidade está em não desconsiderar as
minorias, sendo, nesse sentido, importante pontuar que o Brasil é majoritaria-
mente evangélico e católico e, nem por isso, outras religiões terão seus direitos
mitigados. E o debate não se restringe apenas á liberdade de crença e de culto,
a laicidade garante a igualdade de valoração das religiões, sem que uma seja
mais privilegiada que outra.

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Assim, o caráter laico do Estado, que lhe permite separar-se e distinguir-


se das religiões, oferece à esfera pública e à ordem social a possibilidade de
convivência da diversidade e da pluralidade humana. Permite, também, a cada
um dos seus, individualmente, a perspectiva da escolha de ser ou não crente,
de associar-se ou não a uma ou outra instituição religiosa. E, decidindo por
crer, ou tendo o apelo para tal, é a laicidade do Estado que garante, a cada um,
a própria possibilidade da liberdade de escolher em que e como crer, ou sim-
plesmente não crer, enquanto é plenamente cidadão, em busca e no esforço de
construção da igualdade.

O sistema educacional no Brasil

A ignorância é, sem dúvida, uma das causas  do preconceito, e não


seria diferente sobre a identidade de gênero. Sendo assim, deve-se destacar o
papel que a educação deve exercer, que é o de criar um espaço vanguardista de
formação de cidadãos, promovendo opiniões democráticas e com enfoque na
garantia dos direitos fundamentais. Hannah Arendt apresenta bem essa ideia na
sua obra intitulada “ A Crise da Educação”, que assim diz: 
A educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficien-
temente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais
ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação,
sem a chegada dos novos e dos jovens (ARENDT,1961,p.196)

 Infelizmente, o sistema educacional público brasileiro, além das precarie-


dades estruturais, sofre também com o despreparo de educadores e do Estado
em lidar com a diversidade dos alunos. Esse espaço passa a ser um obstáculo para
a promoção do tratamento igualitário. A violência física e verbal abafada dentro
dos muros escolares e universitários contra os transgêneros, e o discurso discri-
minador e preconceituoso de profissionais educacionais são alguns exemplos.
A busca por visibilidade e igualdade da população trans nos espaços de con-
vívio comum tem alcançado, recentemente, debates de maiores proporções e
articulações. Como exemplo, tem-se  o Plano Nacional de Direitos Humanos
3 ( PNDH3) do qual apresenta  propostas que buscam promover a inclusão
de questões sobre a identidade de gênero no âmbito dos três poderes, a fim
de ampliar o alcance dos direitos constitucionais para essa população.

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No sentido de incluir o debate acerca de temas sobre a diversidade nas


escolas, o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que estabelece os obje-
tivos da educação para os próximos dez anos, foi assunto de muita polêmica
no Congresso Nacional acerca da diretriz que dispunha: “a superação de desi-
gualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional,
de gênero e de orientação sexual”. Esse texto, então, foi vetado e o que foi
aprovado retirou os termos gênero e orientação sexual, deixando a cargo, no
entanto, dos Estados e municípios a decisão de inclusão ou não, nos planos
estaduais e municipais de educação. Apesar da existência de programas de
promoção de direitos aos transgêneros, é perceptível, também, a ínfima efetivi-
dade das diretrizes descritas nos textos dos Estatutos e dos Planos nas unidades
educacionais e também, da grande reprovabilidade da inclusão desses temas
pelos representantes políticos. Nesse sentido, o ambiente escolar, que deveria
ser promotor dos direitos humanos, atua no sentido contrário e passa a ser res-
ponsável por maximizar a marginalização da população trans.
A inexistência de um modelo educacional que priorize o respeito à diver-
sidade e que busque dialogar com alunos acerca da possibilidade de demandas
como o uso do banheiro, de roupas, e do nome condizentes à sua identidade de
gênero só repercute em um processo de manutenção de um modelo heteronorma-
tivo. Diante desse impasse, observa-se a instauração de um paradigma no sentido
em que, usualmente, são objetos de pesquisa a violência física e a verbal praticada
contra os transgêneros, porém o grande desafio está em distinguir e desnaturalizar
a violência cometida pelas unidades educacionais de forma velada com justificati-
vas religiosas que não cabem mais em um estado laico e democrático.  

O MPE no município de Governador Valadares (MG)

Em meados de julho de 2015, Governador Valadares, assim como muitas


cidades brasileiras, foi palco de acirradas discussões acerca da aprovação do
Plano Decenal Municipal de Educação (PME). O principal ponto do debate foi
o dispositivo do Projeto que tratava da “erradicação de todas as formas de dis-
criminação”, apresentada como uma das diretrizes do art. 1º, III. É importante
ressaltar, que o referido Plano prevê diretrizes, intenções, ações e propostas
a serem atendidas pelo Poder Executivo, traçando estratégias a curto, médio
e longo prazo com o objetivo de sanar deficiências e promover a educação
pública municipal para os 10 (anos) anos seguintes.

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Nesse sentido, por ampla maioria dos votos, o PME, em sua redação
original, foi vetado pela Câmara Municipal. Assim, a referida Casa suprimiu a
expressão a redação do art. 1º, III, e acrescentou os parágrafos 1º e 2º ao artigo
1º, que assim determinava: “§1º Fica vedada a implantação, divulgação, estudo,
adoção de materiais didáticos e/ou qualquer forma de propagação pertinente à
ideologia de gênero no âmbito da rede municipal de ensino.” e “§2º A presente
Lei não será regulamentada em quaisquer aspectos que tendam a aplicar a ide-
ologia de gênero no âmbito das escolas públicas do Município de Governador
Valadares.”. O novo Projeto, com os referidos acréscimos, retornou para o Poder
Executivo municipal que, por sua vez, foi vetado, pela Prefeita Elisa Costa, que
defendeu a inconstitucionalidade das emendas propostas, bem como a incom-
petência do Legislativo para versar sobre a matéria, por se tratar de um assunto
interno da Administração Pública. O veto da Prefeita foi derrubado pela Câmara
Municipal, tendo sido aprovada as emendas.
Assim, é preciso que seja reiterado, que umas das principais críticas que
pode ser feita ao contexto que se desenvolveu em torno dos Planos Nacional,
Estaduais e Municipais de Educação, diz respeito à lacuna legislativa que foi
deixada. Após discussões acirradas no Congresso, a bancada evangélica conse-
guiu vetar os trechos do documento que faziam referência à diversidade sexual
e de gênero. Ocorre, no entanto, que o Ministério da Educação permaneceu
defendendo o respeito à diversidade sexual e de gênero, como diretriz do Plano
Nacional de Educação, mas facultando aos Estados e Municípios sua aplicação.
Por certo, esse é o principal cerne do problema que se discute no presente
trabalho, uma vez que se coloca a população LGBT à mercê do poder discri-
cionário das administrações, isto é, só teremos avanços em políticas públicas
e na legislação, em localidades que possuam governos progressistas. Ocorre,
todavia, que essa matéria é de competência nacional, e por se tratar de direitos
humanos e fundamentais, não é legal o tratamento de omissão que se verifica.

Considerações finais

Sendo assim, o objetivo do presente artigo foi demonstrar que a educa-


ção pública tem sido inflamada de posições ideológicas marcadas por crenças
religiosas cristãs hegemônicas. A Constituição Federal de 1988 assegura que
a atividade do ensino seguirá o princípio da pluralidade de ideias e concep-
ções pedagógicas (art. 206, III), assim como a gestão democrática (art. 206,

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VI) e a liberdade para “aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento,


a arte e o saber” (art. 206, II), de tal forma que proibir o contato dos alunos
com a diversidade, interferindo direta e autoritariamente nas práticas pedagógi-
cas desenvolvidas pelos professores desrespeita a Constituição e todo o nosso
Estado Democrático de Direito.

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Revista dos Tribunais, 2011.

DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.

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FISCHMANN, Roseli. Estado laico, educação, tolerância e cidania : para uma análise
da concordata Brasil-Santa Sé. São Paulo: Factash Editora, 2012

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero : conceitos


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PIOVESAN, Flavia. Caderno de Direito Constitucional .Direitos Humanos e o Direito


Constitucional Internacional, 2006.

Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_


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HOMOFOBIA: PERCEPÇÃO DE ESTUDANTES


DO IF BAIANO – CAMPUS ITAPETINGA

Cátia Brito dos Santos Nunes


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e Assistente em
administração no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Baiano - Educação
cbsnunes@gmail.com

João Diógenes Ferreira dos Santos


Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, professor titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
jdiogenes69@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

O trabalho tem por objetivo geral analisar a percepção de alunos (as) do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano – Campus Itapetinga, insti-
tuição de educação profissional, sobre as manifestações de homofobia ocorrida
no ambiente escolar. Pretende-se analisar os relatos elaborados pelos discentes
com base na concepção de memória proposta por Paul Ricoeur. Ou seja, como
resultantes de um processo de construção histórica, social e cultural – que não
pode ser compreendido como a mera reprodução de experiências passadas,
mas como uma representação do passado feita a partir dessas experiências em
função da realidade presente, com sua base material ou ancoragem em recursos
proporcionados pelas relações sociais.
Palavras-chave: homofobia; percepção; memória; ambiente escolar.

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Introdução

Busca-se, neste artigo, identificar a percepção1 elaborada pelos (as) alunos


(as) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano – Campus
Itapetinga sobre a homofobia.
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano)
surgiu pela Lei de Criação dos Institutos nº 11.892, de 29 de dezembro de
2008, mediante a integração das Escolas Agrotécnicas Federais de Catu, de
Guanambi, de Santa Inês e de Senhor do Bonfim (BRASIL, 2008). E, em 23 de
abril de 2013, a Emarc – Itapetinga2 passou a integrar formalmente a estrutura
organizacional do IF Baiano, após a publicação da Portaria nº 331 do Ministério
da Educação (BRASIL, 2013).
O município de Itapetinga pertence à mesorregião do centro-sul baiano,
possui população estimada em 76.184 mil habitantes, localizado numa área de
1.651,154 km², apresentando densidade demográfica de 41,95 habitantes por
km3.
É o IF Baiano – Campus Itapetinga, portanto, o lugar onde se desenvol-
veu a pesquisa que resulta neste artigo. A empiria foi composta por entrevistas
com roteiro semiestruturado4 com discentes da instituição. Assim, por constituir

1 Neste trabalho, o termo será utilizado de acordo com a concepção teórica sobre a memória elabora-
da por Paul Ricoeur (2014), o qual retoma o conceito de anmnesis ou de reminiscência, e a ideia de
análise do reconhecimento das imagens como esforço intelectual, referindo-se às lembranças conce-
bidas pela ação laboriosa pertencente ao vasto conjunto dos fenômenos psíquicos que passam pela
tensão e pelo relaxamento, conforme preconizou Bergson (1999, p.156): “Distinguimos três termos:
a lembrança pura, a lembrança-imagem e a percepção, dos quais nenhum se produz, na realidade,
isoladamente. A percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente; está
inteiramente impregnada das lembranças-imagens que a completam, interpretando-a. A lembrança-
-imagem, por sua vez, participa da lembrança pura que ela começa a materializar, e da percepção
na qual tende a se encarnar: considerada desse último ponto de vista, ela poderia ser definida como
uma percepção nascente”.
2 A Escola Média de Agropecuária da Região Cacaueira (Emarc) Itapetinga, desde sua formação, em
7 de maio de 1980, encontra-se situada numa área de 105 hectares, localizada no quilômetro 2 da
rodovia Itapetinga-Itororó, bairro Clerolândia, na cidade de Itapetinga.
3 <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=291640&search=||infogr%E1ficos:in-
forma%E7%F5es-completas>. Acessado em 18/04/2016.
4 Esclarecemos que esse roteiro não foi utilizado de forma engessada, mas foi alterado quando neces-
sário, pois priorizamos seguir o fluxo dos momentos vividos por cada entrevistado (a). Tanto é que

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um estudo de natureza qualitativa, a escolha dos sujeitos entrevistados ocorreu


após a seleção de alunos (as) matriculados (as) na terceira série do curso técnico
de nível médio em Agropecuária, na modalidade integrada, por serem eles,
naquele momento, os que estavam há mais tempo na instituição.
As entrevistas com os discentes que se dispuseram a participar da pesquisa
foram gravadas com o consentimento dos participantes ou de seu responsável
legal e, posteriormente, transcritas.
A partir das entrevistas, tivemos acesso aos testemunhos vivenciados pelos
(as) alunos (as) e aos compartilhamentos de suas experiências. As narrativas
apresentam ocorrência do deslocamento de pontos de vista da memória, que,
neste caso, ocorrem no ambiente do IF Baiano – Campus Itapetinga, conforme
definição de Ricoeur (2014):
Temos, assim, acesso aos acontecimentos reconstruídos para nós
por outros que não nós. Portanto, é por seu lugar num conjunto que
os outros se definem. A sala de aula da escola é, nesse aspecto, um
lugar privilegiado de deslocamento de pontos de vista da memória
(RICOEUR, 2014, p.131).

As entrevistas de um grupo de alunos (as) do IF Baiano – Campus Itapetinga


que vivenciaram e compartilharam diversas experiências referentes ao período
de três anos, ou seja, em que cursaram o ensino médio, visam evocar as narra-
tivas construídas em conjunto no ambiente escolar.
Para essa análise, adotaremos a definição de homofobia preconizada por
Borrillo (2010), que a compreende como um complexo que abarca diversos
fenômenos: conjunto de emoções negativas, sistema de humilhação, exclusão e
violência. Será enfatizada a definição de homofobia em sua dimensão cultural,
que compreende a rejeição à homossexualidade como fenômeno social e psi-
cológico, não se atentando meramente ao indivíduo. Diz o autor:
[...] Mais recentemente, verifica-se a circulação de uma compre-
ensão da homofobia como dispositivo de vigilância das fronteiras
de gênero que atinge todas as pessoas, independentemente da

algumas perguntas se diferenciaram e outras foram acrescentadas em diferentes momentos, exata-


mente pela própria nuance dos diálogos, que foi tomando um rumo muito próprio do momento, bem
como as singularidades de cada entrevistado (a).

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orientação sexual, ainda que em distintos graus e modalidades.


(BORRILLO, 2010, p. 8)
[…] O termo “homofobia” designa, assim, dois aspectos diferentes
da mesma realidade: a dimensão pessoal, de natureza afetiva, que
se manifesta pela rejeição dos homossexuais; e a dimensão cul-
tural, de natureza cognitiva, em que o objeto da rejeição não é o
homossexual enquanto indivíduo, mas a homossexualidade como
fenômeno psicológico e social. (BORRILLO, 2010, p. 22)

Outro conceito imprescindível do autor para compreender essa rejeição é


o de sexismo, uma ideologia segundo a qual existem papéis previamente defi-
nidos e atribuídos a homens e a mulheres. Tal lógica estabelece a superioridade
de um gênero sexual em relação ao outro, conforme aduz o autor:
[…] O sexismo define-se, desde então, como a ideologia organiza-
dora das relações entre os sexos, no âmago da qual o masculino
caracteriza-se por sua vinculação ao universo exterior e político,
enquanto o feminino reenvia à intimidade e a tudo que se refira a
vida doméstica. (BORRILLO, 2010, p. 30)

Para auxiliar no processo de elaboração da análise, utilizaremos, ainda,


outro conceito: o de estigmatização, conforme definição feita por Elias (2000),
que sintetiza o processo de se atribuir a determinados grupos características
diferenciadoras – e invariavelmente tidas como negativas. Afirma o autor que:
[…] o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo out-
sider as características “ruins” de sua porção “pior” – de sua minoria
anômica. Em contraste, a autoimagem do grupo estabelecido tende
a se modelar em seu setor exemplar, mais “nômico” ou normativo
– na minoria de seus “melhores” membros. Essa distorção pars pro
toto, em direções opostas, faculta ao grupo estabelecido provar
suas afirmações a si mesmo e aos outros; há sempre algum fato
para provar que o próprio grupo é “bom” e que o outro é “ruim”.
(ELIAS, 2000, p. – 22 a 23)
[…] a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabe-
lecidos e outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico
de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. Ela reflete e, ao
mesmo tempo, justifica a aversão – o preconceito – que seus mem-
bros sentem perante os que compõem o grupo outsider. (ELIAS,
2000, p.35)

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Desta forma, tais conceitos serão bem caros à tentativa de discussão aqui
proposta: compreender a percepção de alunos (as) do IF Baiano – Campus
Itapetinga sobre as manifestações de violência conceituadas como homofobia.

Homofobia

O fenômeno da violência apresenta sentidos diversos que podem designar


fatos e ações ou, ainda, uma forma de manifestação da força. O termo “vio-
lência” vem do latim violentia. Ao verbo violare pode-se atribuir o significado
violar ou transgredir. Michaud (1989) ressalta que esses termos são oriundos de
vis, que significa “força em ação”, “vigor”, “potência”. E é essa ideia de força,
de uma potência contra alguma pessoa ou coisa que configura a essência da
noção de violência, que, portanto, deixará marcas. (MICHAUD, 1989).
No relato da aluna, podemos verificar a narrativa sobre o preconceito em
razão de sua orientação sexual sofrido em outra escola, ressaltando algumas
consequências – isolamento social:
“E, a partir da primeira série, eu passei a sofrer preconceito pela
minha orientação sexual. E, a partir desse momento em que eu pas-
sei a sofrer preconceito pela minha orientação, eu comecei a me
fechar na escola. Então, eu não participava muito de brincadeiras
[...] eu evitava ao máximo brincar com qualquer outra criança, por-
que, vez ou outra, elas soltavam piadinhas e eu acabava sendo
agressiva com elas e acabava tendo altas consequências no final.”
(aluna, 18 anos5).

A mesma aluna ressalta o preconceito sofrido em outra escola, porém,


informa a forma velada e indireta desta ocorrência:
“Eu já tive uma convivência mais tranquila [...] Porque lá eles têm o
preconceito, mas mais mascarado. Não era igual [escola anterior],
que eles falavam na minha cara, e as [agentes escolares] [imita a
voz]: “ah, não, mas isso é errado!”. Não tinha esse “ah, você tá
errado porque você faz isso!” Eles tentavam conversar comigo e
tentar ver o meu ponto de vista. E, quando chegou a, acho que no

5 Entrevista realizada em 20/01/2016.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

começo do Fundamental 2, que eu comecei realmente a ser uma


pessoa sociável. (aluna, 18 anos).

A narrativa do aluno informa dois momentos distintos: o da vivência na


escolar anterior e o do momento atual, no IF Baiano – Campus Itapetinga, infor-
mando a situação de violência e preconceito que sofreu:
“Eu entrei lá super deslocado e saí de lá super deslocado. Primeiro,
porque achavam que eu era gay. Então, foi meio complicado até
eles entenderem que eu não era assim.
[...] A psicóloga do próprio instituto me chamou pra poder conver-
sar. E ela identificou, porque o meu pai não participou da minha
vida pessoal. Então, eu tive que me espelhar em alguém, e eu esco-
lhi minha mãe. Por isso adquiri as características femininas.”(aluno,
18 anos6).

Dessa forma, consideramos que há nesse processo de evocação da sequ-


ência e do encadeamento das narrativas um deslocamento de pontos de vista da
memória. Ou seja, ao relatar os fatos passados, os (as) alunos (as) passam a res-
significá-los em razão da realidade presente e das experiências compartilhadas
nos diversos grupos que vivenciaram, portanto, uma memória compartilhada
de percepções:
Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memoria
coletiva e as suas comemorações ligadas a lugares consagrados
pela tradição: foi por ocasião dessas experiências vividas que
fora introduzida a noção de lugar de memória, anterior às expres-
sões e às fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão.
(RICOEUR, 2014, p.157)

A discriminação narrada pelos discentes expressam uma manifestação de


homofobia ocorrida como decorrência de uma ideologia sexista, que foi retra-
tada por Borrillo (2010, p.24) como “homofobia cognitiva, caracterizando-se
por ser mais eufemística, sem deixar de ser insidiosa e por pretender simples-
mente perpetuar a diferença homo/hétero”.

6 Entrevista realizada em 21/01/2016.

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ISBN 978-85-61702-44-1 635 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

É na dimensão cultural, defendida pelo autor, que estão abarcadas todas


as formas de violência contra os indivíduos que apresentam características defi-
nidas como de gênero diverso. Tal violência se constitui contra toda e qualquer
forma de representação da homoafetividade.
Para Borrillo (2010) a concepção de homofobia deve considerar a exis-
tência de uma ordem sexual por meio da qual são organizadas as relações
sociais – ou seja, o sexismo, baseado em dois pressupostos: a subordinação do
feminino ao masculino e a hierarquização das sexualidades. Ambos os pres-
supostos estabelecem os fundamentos para a homofobia e para o tratamento
inferiorizante dado a indivíduos.
De acordo com a percepção baseada na ordem sexista e homofóbica, o
comportamento do aluno entrevistado, tido como feminino, não atenderia ao
padrão de “normalidade superior”, que seria a heterossexualidade. E por isso,
segundo Borrillo, sua conduta seria considerada “incompleta, acidental e per-
versa”, ou, ainda, “patológica, criminosa, imoral e destruidora da civilização”
(2010, p.31).
O fato de apresentar comportamento diverso do estabelecido pela ordem
sexista é o elemento utilizado para desqualificar e estigmatizar o aluno e a
aluna nas instituições escolares. Consoante definição de Elias (2000), este seria
o atributo diferenciador, ou a característica “negativa” do que o autor concei-
tua como processo de estigmatização, o qual ocorre para justificar a aversão a
determinado grupo – contribuindo assim para alimentar a “fantasia coletiva” em
proveito do estigmatizador.
Assim, o estigma serve como uma espécie de identificação do indivíduo,
que permite o “conhecimento” a respeito dele sem a necessidade de um con-
tato ao menos superficial, de acordo com o enquadramento pré-estabelecido.
Essa ausência de envolvimento impossibilita, portanto, que o estigmatizado
se insurja contra a situação de exclusão e depreciação a que é submetido.
Verificamos nas narrativas apresentadas, como tal estigmatização resulta em
conflitos ou tensões, isolamento social e privação de direitos.

Considerações finais

A manifestação da homofobia constitui um fenômeno complexo que


se apresenta de formas variadas: violência física e psicológica, hostilidade,
aversão, desprezo, ódio, desconforto, desconfiança, etc. Trata-se de utilizar a

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ISBN 978-85-61702-44-1 636 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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discriminação para privar indivíduos do exercício pleno de direitos como saúde,


educação, trabalho, segurança, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa
humana.
Assim, as manifestações decorrentes de uma ideologia sexista apresen-
tam as mesmas atitudes, características, sentimentos negativos e consequências
danosas apresentadas nas diversas manifestações de homofobia. E refletem as
mesmas disputas por dominação, controle e prestígio, ressaltando a dificuldade
de convivência em meio à diversidade. E constitui-se na busca por perpetuar o
sistema de valores e normas da conduta heterossexual.

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Referências

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rito.Trad. Paulo Neves, 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BRASIL, Lei n. 11.892/08. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/


leis_2001/l10224.htm> Acesso em 5 de dezembro de 2015.

BRASIL, Portaria MEC/SETEC No 331, de 23 de abril de 2013. Disponível em:http://


portal.datalegis.inf.br/action/ActionDatalegis.phpacao=detalharAtosArvorePortal&-
tipo=POR&numeroAto=00000331&seqAto=000&valorAno=2013&orgao=MEC.
Acesso em 5 de dezembro de 2015.

EAF’S DA BAHIA: Proposta de Adesão das Escolas Agrotécnicas Federias da


Bahia para constituição do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Agroindustrial da Bahia. 2008 (mimeo).

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: editora Unicamp,


2014.

BORRILLO, Daniel. Homofia: história e critica de um preconceito. [Tradução de


Guilherme João de Teixeira Freitas]. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.

NOBERT, Elias. Introdução. Ensaio teórico sobre as relações estabelecidos-outsi-


ders. In: ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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ISBN 978-85-61702-44-1 638 de Estudos sobre a Diversidade
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FORMAR PARA A DIVERSIDADE CULTURAL RELIGIOSA:


GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL, LIVROS E CAPÍTULOS

Acir Brito Filho


Bacharelando em Teologia (PUC-PR, 2014)
Colaborador no Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GEPER, 2015)
acir.filho@outlook.com

Sérgio Rogério Azevedo Junqueira (orientador)


Livre-Docente (2012) e Pós-Doutor (2010) em Ciências da Religião (PUC-SP)
Coordenador do GEPER
srjunq@gmail.com

GT 22 - Educação, religião e direitos humanos: diálogos interdisciplinares sobre a


diversidade sexual e de gênero

Resumo

Há no Brasil um crescimento reacionário por parte de núcleos religiosos con-


servadores, que tratam a questão da diversidade sexual e de gênero como
pecaminosas, contribuindo para o preconceito. Partindo deste cenário, bus-
cou-se identificar e mapear livros que abordassem as questões de gênero e
orientação sexual e sua relação com a perspectiva da religiosidade. Dos onze
livros selecionados, é comum uma breve abordagem histórica da sexualidade,
pontuando citações bíblicas e suas interpretações que referenciam relações
sexuais entre pessoas do mesmo gênero na época das narrativas. É evidente a
preocupação comum em revisar a forma como a questão de gênero e orien-
tação sexual é tratada no meio religioso cristão, através de uma proposta de
atualização da interpretação bíblica.
Palavras-chave: educação; religião; ética cristã; sexualidade; gênero.

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Introdução

A homologação da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional


(9394/96) formalizou a escolarização do Ensino Religioso como componente
curricular, momento no qual as instituições de ensino superior passaram a pro-
duzir sistematicamente pesquisas nesta área.
O presente trabalho está vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação e
Religião (GPER), organizado no ano de 2000 e que visa à compreensão da
interferência da religião na educação brasileira. O projeto Diversidad Cultural
y Educación Escolar en Brasil Y en Colombia: implicaciones en La acción de
profesores (as), organizado em parceria com a Universidade La Salle de Bogotá
(Colômbia), tem por objetivo compreender o conceito de diversidade cultural-
-religiosa no cenário da educação brasileira no universo religioso. Para tanto, foi
articulado o subprojeto “Formar para a diversidade”, tendo como última etapa
a identificação de livros, capítulos e artigos sobre gênero e orientação sexual,
visando à atualização de subsídios para a formação de professores de ensino
religioso sobre a leitura da diversidade cultural religiosa. Em 2015 foi publi-
cado o texto referencial denominado Amor sacralizado e amor banido: gênero,
orientação sexual e espiritualidade (Editora CRV, 2015).
Este trabalho consiste na identificação e no mapeamento de livros que
tratam das questões de gênero e orientação sexual sob a perspectiva da reli-
giosidade cristã, atualizando o mapeamento de publicações que podem dar
suporte a pesquisadores e formadores sobre o tema.

Desenvolvimento

Entre agosto de 2015 e fevereiro de 2016 foram realizadas reuniões do


grupo de pesquisa, identificação no banco de dados do GEPER e em outras
fontes, além dos resultados obtidos a partir do V Congresso da ANPTECRE
(Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da
Religião). Foram identificados onze livros, relacionados no Quadro 1 a seguir.

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Quadro 1 – Relação de livros identificados e mapeados.

Autor Título Cidade Editora Ano Pág


JUNQUEIRA, Amor sacralizado e amor bani-
KLCUCK e do: gênero, orientação sexual e Curitiba, PR CRV 2015 154
SCHLÖGL espiritualidade
GOMES e Homossexualidade: orientações
São Paulo, SP Paulus 2011 192
TRASFERRETI formativas e pastorais
Via(da)gens teológicas: itinerários
MUSSKOPF São Paulo, SP Fonte Editorial 2012 503
para uma teologia queer no Brasil
Fé além do ressentimento: frag-
ALISON São Paulo, SP É Realizações 2010 336
mentos católicos em voz gay
Que a Bíblia realmente diz sobre
HELMINIAK São Paulo, SP Summus 1998 143
homossexualidade, O
Enigma da esfinge, O: a sexuali-
MOSER Petrópolis, RJ Vozes 2001 287
dade
LEERS e TRAS-
Homossexuais e ética cristã Campinas, SP Átomo 2002 199
FERETTI
Talar rosa: homossexuais e o São Leopoldo,
MUSSKOPF Oikos 2005 288
ministério na Igreja RS
Homossexuais católicos: como
BESSON São Paulo, SP Loyola 2015 108
sair do impasse
AUGUSTI e Dom Paulo Evaristo cardeal Arns: Casa da Terceira
MARCHIONI pastor das periferias, dos pobres e São Paulo, SP Idade Tereza 2015 479
(org.) da justiça Bugolim
Pastoral com homossexuais:
TRASFERETTI Petrópolis, RJ Vozes 1998 155
retratos de uma experiência

Fonte: o autor, 2016.

Resultados

Os livros analisados fazem uma abordagem histórica da sexualidade,


pontuando citações bíblicas, dentro de um contexto de época, e suas interpre-
tações equivocadas que referenciam relações sexuais entre pessoas do mesmo
gênero, na época das narrativas, às relações erótico-afetivas homossexuais da
atualidade.
Em Amor sacralizado e amor banido: gênero, orientação sexual e espiri-
tualidade (JUNQUEIRA, KLCUCK e SCHLÖGL, 2015), a abordagem pedagógica
entrelaça o tema de interdisciplinarmente à questão da essência da sexuali-
dade, reforçando em três dos cinco capítulos a questão “Educando para a

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

diversidade”. Promove a discussão sobre religiosidade e sua relação com sexu-


alidade e gênero, a partir das perspectivas histórica, científica e da diversidade
religiosa, sendo que o ensino fundamental e religioso tornam-se importantes
promotores de uma vida cidadã.
Dogmas religiosos determinam a condenação ao prazer, revelado como
um tabu principalmente nas sociedades patriarcais, situação que reflete na desi-
gualdade de direitos da mulher e na comunidade homossexual. Estas questões
emergem na realidade social do séc. XX, sendo progressivamente discutidas
nas escolas e incorporam a classe educadora dentro do contexto social e histó-
rico da classe estudantil, donde surge a necessidade de alternativas às fórmulas
inoperantes em vigência.
GOMES e TRASFERETTI (Homossexualidade: orientações formativas
e pastorais, 2011) fazem uma abordagem histórica da homossexualidade, da
Grécia antiga aos movimentos LGBT1 dos tempos atuais, passando para o debate
teológico-moral e científico sobre a questão da homossexualidade, finalizando
com orientações formativas e pastorais para situações específicas.
Em Via(da)gens teológicas, (ver Figura 3) – MUSSKOPF (2012) faz um
relato da História do Brasil e sua relação com a homossexualidade, desde o
Descobrimento. O autor desafia a uma compreensão de uma Teologia Queer,
que é “[...] um desdobramento das teologias gay e lésbica [...]”, abordando a
formação de grupos cristãos GLBT, dando indicativos do seu desenvolvimento
com base em autoras como Simone de Beauvoir e Ivone Gebara, sugerindo
uma caminhada baseada no Ocupar, Resistir e Produzir.
HELMINIAK (O que a Bíblia realmente diz sobre homossexualidade,
1998), faz uma leitura histórico-crítica e literária do “Pecado de Sodoma”, uma
narrativa do Primeiro Testamento, bem como do “desvio do natural” presente
em Rm e do sexo abusivo entre homens em 1Cr e 1Tm, dentre outras referências
associadas às relações homossexuais feitas também no Segundo Testamento,
desconstruindo parte do fundamentalismo acerca do assunto.
Em Talar rosa: homossexuais e o ministério da Igreja, MUSSKOPF (2005)
retrata a busca do exercício do Ministério Eclesiástico Ordenado, por parte de
homens assumidamente gays, na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do

1 A expressão representa as sexualidades identificadas como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e


Transexuais. Disponível em: http://www.abglt.org.br/docs/ManualdeComunicacaoLGBT.pdf. Acesso
em 15 de fevereiro de 2016.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Brasil (IECLB); conta com depoimentos que retratam estes casos, no período
que vai de 1991 até 2003.
Faz um retrato histórico da diversidade de ministérios e das ordenações e
uma abordagem sobre a interpretação atualizada do “pecado de Sodoma”, que
discorre sobre a falta de hospitalidade e o individualismo, erroneamente inter-
pretado como se tratando das relações homo afetivas.
LEERS e TRASFERETTI (Homossexuais e ética cristã, 2002) abordam
questões relacionadas com a homofobia, debatem a relação entre heterosse-
xualidade e homossexualidade, assim como o tabu da homossexualidade nas
sociedades do passado e nas atuais, que impactam no núcleo religioso moral
de conflito entre a homossexualidade e a expressão de fé. Discorrem sobre
citações do Primeiro e Segundo Testamentos, desde a narrativa de Sodoma até
as cartas paulinas, finalizando com uma proposta de viver a liberdade, enxer-
gando “uma porta possível para o futuro”.
MOSER (O enigma da esfinge: a sexualidade, 2001), entre mitos e ciên-
cia, dá um suporte antropológico para uma teologia atualizada em busca de
novos parâmetros éticos. Destaca o momento “quando a linguagem é incapaz
de traduzir a realidade”, pois uma pessoa não pode ser considerada santa ou
pecadora simplesmente por sua orientação sexual.

Figura 1 – Capa do livro Amor Figura 2 – Capa do livro Figura 3 – Capa do livro Via(da)
sacralizado e amor banido: Homossexualidade: gens Teológicas: itinerários
gênero, orientação sexual e orientações formativas e para uma teologia queer no
espiritualidade. pastorais. Brasil.

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Figura 4 – Capa do livro Fé além Figura 5 – Capa do livro O que Figura 6 – Capa do livro
do ressentimento: fragmentos a Bíblia realmente diz sobre a O enigma da esfinge: a
católicos em voz gay. homossexualidade. sexualidade.

Em Homossexuais católicos: como sair do impasse, BESSON (2015)


aborda as várias expressões homossexuais, tratando-as como “homossexuali-
dades” e que “de modo geral, a orientação sexual é vivida como um dado da
existência e não como uma escolha livre” (BESSON, 2015, p. 22).
Destaca a questão da falta de referenciais, homofobias internalizadas e a
estigmatização “comunitária” da homossexualidade, fruto de declarações pre-
conceituosas feitas publicamente ou no seio familiar (BESSON, 2015, p. 30).
Destaca como há uma dualidade entre a expressão doutrinal na Igreja Católica
e vozes que expressam a necessidade de uma atitude aberta frente à homos-
sexualidade, baseado no que “a Bíblia diz, ou melhor, o que ela não diz” a
respeito da homossexualidade (BESSON, 2015, p. 57). A “saída do impasse”
consiste em enfrentar o medo de mudanças.
TRASFERETTI (Pastoral com homossexuais: retratos de uma experiência,
1998) dá um testemunho de sua própria experiência no ministério em comuni-
dades da periferia, incluindo depoimentos e uma abordagem sobre as citações
bíblicas que são utilizadas para condenar as relações homo-erótico-afetivas.
Trata da diferença entre homossexuais e travestis. Entrelaça os documentos do
Magistério da Igreja, a moral cristã e os preconceitos.

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Edilson da Silva Cruz2 participa de uma comunidade na Zona Leste da


cidade de São Paulo e relata, no capítulo Caminhamos na estrada de Jesus,
com Dom Paulo Evaristo Arns, em Dom Paulo Evaristo cardeal Arns: pastor
das periferias, dos pobres e da justiça (V.A., 2015, p. 139), sua experiência em
uma Igreja “com a cara de Dom Paulo: profética e missionária”, cardeal que
lutou para a criação da Pastoral da Aids em 1992.
Acredita ser possível continuar acreditando no “ministério da Igreja”,
mesmo sofrendo rejeição, pois há pessoas que afastaram-se por não encontra-
rem acolhida e espaço, ou foram obrigadas a silenciar sua verdade mais íntima:
a sexualidade.

Figura 7 – Capa do livro Figura 8 – Capa do livro Figura 9 – Capa do livro


Homossexuais e ética cristã. Talar rosa: homossexuais e o Homossexuais católicos: como
ministério na Igreja. sair do impasse.

2 Membro da Paróquia Santa Rosa de Lima, Diocese de São Miguel Paulista, SP. Foi integrante do Gru-
po de Ação Pastoral da Diversidade de São Paulo. Maiores informações disponíveis no sítio: https://
pt-br.facebook.com/DiversidadePastoralSP. Acesso em 02 de abril de 2016.

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Figura 10 – Capa do livro Dom Figura 11 – Capa do livro


Paulo Evaristo cardeal Arns: Pastoral com homossexuais:
pastor das periferias, dos pobres retratos de uma experiência.
e da justiça.

ALISON (Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay,


2010) propõem uma “fé além do ressentimento” para pessoas que foram empur-
radas para as “Periferias Existenciais”3, convidando-as para uma reflexão sobre
si mesmas, na compreensão do reposicionamento fraternal da mensagem de
Deus, promovida por Jesus.

Considerações finais

A homossexualidade e o entendimento sobre gênero sofreram mudanças


estruturais ao longo da História. Na Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR),
a homossexualidade é considerada como um conjunto de atos “intrinsecamente
desordenados” (Declaração Persona Humana: sobre alguns pontos de ética
sexual, 1975). Sobre este tema, o Catecismo da Igreja Católica diz no seu pará-
grafo 2358 que “Esta inclinação objetivamente desordenada constitui, para a
maioria, uma provação”. (Catecismo da Igreja Católica, 1999, p. 610). A seguir,

3 Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 2013.

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no parágrafo 2359 (p. 611) diz que “As pessoas homossexuais são chamadas à
castidade [...]”.
Sem entender direito o que acontece, um número incalculável de ado-
lescentes descobre sua sexualidade em meio a uma sociedade perversa,
intransigente e ignorante, com um espaço enorme para a hipocrisia. Sem ter a
quem recorrer, muitos optam por abreviar seu sofrimento definitivamente, ape-
lando para o suicídio direto, procurando abreviar a vida e seu sofrimento, ou o
suicídio lento, baseado no consumismo, nas festas e no consumo de álcool e
entorpecentes.
O preconceito e a exclusão, frequentemente a partir de seus próprios lares,
constituem uma repressão à sexualidade. Pessoas de orientação homossexual
e mais profundamente com identidade de gênero diversa da sua genitalidade,
passam a ser consideradas como “um ser estranho” nas comunidades.
Esta questão merece uma interpretação bíblica em observação ao con-
texto do período no qual os textos sagrados foram escritos, assim como às
particularidades sócio antropológicas que norteiam as relações erótico-afetivas
da atualidade. Há um debate produtivo sobre a questão da diversidade sexual
e de gênero no âmbito da religiosidade, que necessita ser ouvido atentamente.
Há um desejo latente em poder viver “uma outra forma de ser e amar”,
reforçando a fé, sem que para isso corra-se o risco de perder a vida pelo sim-
ples fato de trocar afeto em público, como muitos casais heterossexuais fazem
diariamente.

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Referências

ALISON, J. Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay. Tradução de


Maurício G. RIGHI. São Paulo: É Realizações, 2010. 335 p. ISBN 978-85-8033-000-7.

BESSON, C. Homossexuais católicos: como sair do impasse. Tradução de Nicolás


CAMPANÁRIO. São Paulo: Loyola, 2015. 108 p. ISBN 978-85-15-04286-9.

FRANCISCUS. Evangelii Gaudium: sobtre o anúncio do Evangelho no mundo atual.


São Paulo: Loyola, 2013. 163 p. ISBN 978-85-15-04085-8.

GOMES, A.; TRASFERETTI, J. Homossexualidade: orientações formativas e pastorais.


São Paulo: Paulus, 2011. 192 p. ISBN 978-85-349-2213-5.

HELMINIAK, D. A. O que a Bíblia realmente diz sobre homossexualidade. São Paulo:


Summus, 1998. 143 p. ISBN 978-85-86755-07-1.

IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA. Declaração Persona Humana: sobre


alguns pontos de ética sexual. Vatican, Roma, 29 desembro 1975. Disponivel em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_
doc_19751229_persona-humana_po.html>. Acesso em: 03 abril 2016.

IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA. Catecismo da Igreja Católica. São


Paulo: Edições Loyola, 1999. 934 p. ISBN 978-85-15-02152-9.

JUNQUEIRA, S. R. A.; KLCUCK, C. R.; SCHLÖGL, E. Amor sacralizado e amor


banido: gênero, orientação sexual e espiritualidade. Curitiba: CRV, 2015. 152 p. ISBN
978-85-444-0467-6.

LEERS, B.; TRASFERETTI, J. Homossexuais e ética cristã. Campinas: Átomo, 2002. 199
p. ISBN 85-87585-23-1.

MOSER, A. O enigma da esfinge: a sexualidade. Petrópolis: Vozes, 2001. 287 p. ISBN


85.326.2595-9.

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MUSSKOPF, A. S. Talar rosa: homossexuais e o ministério na Igreja. São Leopoldo:


Oikos, 2005. 288 p. ISBN 85-89732-26-6.

MUSSKOPF, A. S. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no


Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2012. 503 p. ISBN 978-85-63607-78-2.

TRASFERETTI, J. A. Pastoral com homossexuais: retratos de uma experiência.


Petrópolis: Vozes, 1998. 155 p. ISBN 85-326-2104-X.

V.A. Dom Paulo Evaristo cardal Arns: pastor das periferias, dos pobres e da jus-
tiça. 1ª. ed. São Paulo: Casa da Terceira Idade Tereza Bugolim, 2015. 479 p. ISBN
978-85-69707-00-4.

(Footnotes)

1 Ver comentários sobre o autor André Sidnei Musskopf mais adiante.

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A HOMOFOBIA NO ENSINO MÉDIO:


O BULLYING HOMOFÓBICO COMO PRÁTICA
EXCLUDENTE EM ESCOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS DE BELÉM

Adriane Giugni da Silva


Doutora em Educação – UNICAMP-SP
Líder/Coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas,
Educação e Inclusão Social – GPPEIS/UEPA
Pesquisadora/Professora UEPA
agiugni@bol.com.br

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Este texto resulta de pesquisa qualitativa sobre a homofobia vivida por alunos
LGBT de nível médio, em escolas públicas estaduais de Belém. Busca-se res-
ponder se os alunos LGBT dessas escolas são vítimas de bullying homofóbico
e se tais práticas influem negativamente na aprendizagem destes, impactando
na sua formação socioeducacional. Efetivou-se revisão de literatura, mediante
pesquisa bibliográfica e documental, para fundamentar teórico-filosoficamente
a pesquisa e auxiliar na análise. Como instrumentos técnicos, utilizam-se ques-
tionários e entrevistas, aplicados a docentes, discentes e outros, que cruzados
permitem analisar e proceder às considerações do investigado. Os resultados
parciais confirmam haver bullying homofóbico nas escolas, influindo negativa-
mente na formação dos LGBT.
Palavras-chave: Bullying homofóbico. Diversidade sexual. Identidade de gênero.
Exclusão educacional. Orientação sexual escolar.

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Introdução

A presente pesquisa, em processo de investigação, visa identificar as prá-


ticas homofóbicas vivenciadas por estudantes LGBT adolescentes, no decorrer
de seus estudos de nível médio, em escolas públicas de Belém. Em razão da
falta de políticas públicas sobre diversidade sexual que subsidiem a formação
educacional desses sujeitos sem discriminação, são marginalizados e conse-
quentemente excluídos educacional e socialmente.
Segundo a Unesco o bullying homofóbico constitui-se em uma prática que
mais danos causam à formação educacional e social de crianças e adolescen-
tes. Neste estudo, buscam-se identificar as atitudes e práticas discriminatórias,
presentes no processo didático-pedagógico, vivenciadas por esses sujeitos nas
escolas públicas examinadas, por meio de pesquisa qualiquantitativa. Intenta-se
responder a seguinte questão norteadora: O bullying homofóbico vivenciado
por estudantes LGBT do ensino médio em escolas públicas de Belém influi
negativamente na formação educacional desses sujeitos, impacta na aprendi-
zagem e socialização dos estudantes investigados e gera como consequência a
evasão escolar?
A fim de responder esta questão dividiu-se a pesquisa em fases, cuja
primeira coube realizar pesquisa bibliográfica e documental no intento de
fundamentar teórica-filosoficamente a investigação, assim como subsidiar a
apropriação de conhecimentos teóricos aos alunos colaboradores. Partiu-se do
levantamento a respeito da homossexualidade, desvelando-se que esta prática
historicamente é evidenciada desde a Antiguidade. Na Grécia antiga era con-
siderada natural entre os homens. Com o passar do tempo, vários tabus foram
instituídos acerca da homossexualidade e esta passou a ter uma conotação
negativa, não sendo mais aceita pela sociedade.
Segundo Dias (2009) a homossexualidade existe e sempre existiu desde
os primórdios, mesmo após um longo período de perseguição, brutal restri-
ção e ataques à prática homossexual, ou quando essa conduta foi tipificada
criminalmente em algumas sociedades, mas sempre esteve presente ao longo
da história da humanidade. A autora assinala que foi repudiada até o terceiro
quarto do tormentoso século XX, o qual foi testemunha de tantas mudanças
sociais e redefinições de valores. Para Dias a homossexualidade é marcada pelo
estigma social, sendo renegada à marginalidade por se afastar dos padrões de
comportamento convencional. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não

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se encaixa nos padrões é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a iden-
tificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais (DIAS, 2016).
Mesmo nessa segunda década do século XXI, grupos LGBT ainda sofrem
com a discriminação social e a violência urbana, sendo nítida a rejeição social à
livre orientação sexual. Cotidianamente, a sociedade que se proclama defensora
da igualdade é a mesma que discrimina lésbicas, gays, bissexuais e transexu-
ais (LGBT), todos vítimas de situações de marginalização e exclusão social em
diversos ambientes brasileiros, inclusive nas escolas. Portanto, estudar a questão
da homofobia nas escolas significa reconhecer a existência de pessoas LGBT
nestas, a fim de denunciar essa prática discriminadora, excludente e criminosa.
No decorrer da atuação didático-pedagógica desta pesquisadora, per-
cebeu-se nas escolas investigadas elevado índice homofóbico. Observou-se
a presença de alto percentual de discriminação e preconceito contra pessoas
LGBT, em especial em uma escola pública estadual da região metropolitana de
Belém, com um contingente significativo de adolescentes homossexuais. Nela
observaram-se vários conflitos envolvendo adolescentes homossexuais que
vivenciavam bullying homofóbico ascendente e descendente, entre alunos e
funcionários da instituição, por meio de agressões verbais e físicas.
Na ocasião, chamou a atenção o fato da direção, gestores e outros profis-
sionais não buscarem solucionar ou intervir na problemática. Em contrapartida,
perceberam-se grupos LGBT que procuravam, de maneira peculiar, intervir nos
problemas e em concomitância buscavam aceitação pelo conjunto e inserção
na realidade da escola.
A partir dessa observação surgiu o interesse em investigar outras escolas
no intuito de examinar a realidade local, pois se entende a prática homofóbica
presente nas escolas como uma privação imposta ao sujeito LGBT, negando-lhe
os direitos presentes em nossa lei máxima – a Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, este estudo reveste-se de significativa importância, pois
demonstrará que o bullying homofóbico é discriminador, marginalizante e
inconstitucional, devendo ser combatido, seja na escola, seja em qualquer outro
lugar. Somente dessa forma, em uma perspectiva “inclusiva”, poder-se-á garan-
tir igualdade entre os indivíduos, independente de sua orientação sexual ou de
identidade de gênero (RIOS, 2009).
A investigação da questão é também relevante à medida que o preconceito
no interior da escola provoca a evasão escolar dos LGBT, vez que desconsidera
o direito previsto nos ordenamentos legais brasileiros e internacionais, os quais

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asseguram o direito de todos à educação, conforme prescrevem a CF/88 e a


LDB 9394/96, além de outros que visam o pleno desenvolvimento da pessoa,
preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.
Portanto, estudar a homofobia e o bullying homofóbico na escola atende
aos preceitos legais, asseverando a esses sujeitos o que lhes é de direito, além de
se identificar o processo de exclusão escolar vivenciado pelos LGBT. Busca-se
dessa forma intervir na realidade, denunciando tais práticas e requerendo a
adoção de políticas públicas que cessem esses problemas, ainda tão presentes
neste terceiro milênio. Vale ressaltar que este estudo não pretende solucionar
essa realidade tão complexa, mas intenta-se contribuir na discussão com vistas
a oferecer elementos que colaborem na promoção de políticas públicas direcio-
nadas à melhoria de vida dos sujeitos LGBT.

Metodologia

Para proceder a este estudo partiu-se de uma abordagem qualitativa, que


segundo Severino consiste em “[...] um conjunto metodologias, envolvendo,
eventualmente, diversas referências epistemológicas” (SEVERINO, 2007, p 119).
Para complementar este conjunto de metodologias, procederam-se pesquisas
bibliográficas em diversos autores estudiosos do assunto, além do levantamento
de informações contidas em monografias e livros, procedimentos que favore-
cem o aprofundamento teórico dos colaboradores envolvidos no processo de
pesquisa.
A investigação foi dividida em dois momentos. O primeiro, dedicado
ao aprimoramento teórico, fundamentará a análise mediante pesquisa docu-
mental e bibliográfica. Para Lüdke e André (1986) a pesquisa bibliográfica é a
habilidade fundamental promovida nos cursos de graduação, pois constitui o
primeiro passo para todas as atividades acadêmicas. A apropriação de massa
crítica constitui-se como fundamental e necessária ao aprofundamento teórico
sobre dado assunto ou problema, possibilitando análises e discussões sólidas,
suscetíveis a posteriores discussões críticas sobre o fenômeno investigado. O
segundo momento do estudo remete-se a pesquisa de campo. Segundo Lüdke
e André (1986) a pesquisa de campo é utilizada com o objetivo de conseguir
informações e/ou conhecimentos a cerca de um problema para o qual se pro-
cura a uma resposta, ou de uma hipótese que se queira comprovar, ou ainda,
descobrir novos fenômenos ou as relações entre eles.

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Para realizar a pesquisa de campo elaboraram-se questionários para a


coleta de informações, os quais foram aplicados aos interlocutores: gestores,
professores e alunos. Esses questionários forneceram dados parciais para as aná-
lises, os quais foram cruzados com as observações diretas, com as entrevistas
realizadas e com os documentos coletados em algumas escolas. Observa-se
que as entrevistas somente foram efetivadas com alguns professores, determi-
nados alunos e alguns diretores das escolas, os quais foram selecionados após
a aplicação dos questionários.
Vale ressaltar que durante a pesquisa de campo ocorreram diversas difi-
culdades à coleta dos dados, ocasionadas por condições adversas, tais como:
resistência dos interlocutores em informar e responder os questionamentos;
negação em ceder informações ou informar erroneamente propositadamente;
desinteresse ou receio em informar a realidade; dificuldade no acesso aos
interlocutores, provocada deliberadamente pelos gestores; entre outras. Essas
dificuldades no acesso às informações, quase sempre são ocasionadas em vir-
tude de o pesquisador ser visto com desconfiança, conforme assinala Martins
(2009): “Na relação entre o “nós” e os “outros”, o pesquisador é sempre um
estranho, e todo estranho é sempre um inimigo”.
Todas essas adversidades vivenciadas no processo de investigação, além
de atrasarem a pesquisa de campo, resultaram em prejuízos na obtenção de
dados verídicos e fidedignos representativos do real, distorcendo e masca-
rando a realidade. Porém, em razão de se prever tais barreiras provocadoras de
desvios, elencaram-se outras técnicas de coleta de dados como a observação
direta e entrevistas, que cruzadas às tabulações dos questionários reduziram a
margem de erros.

Resultados e Discussão

A tabulação inicial, ainda em processo de execução, cruzada com algu-


mas entrevistas já analisadas, permitem afirmar, apesar da ampla discussão
nacional e internacional sobre a temática, que há precário conhecimento sobre
o bullying homofóbico nas escolas por parte dos interlocutores da pesquisa,
sejam os gestores, os professores ou os alunos.
Também ficou patente o desinteresse dos gestores e professores sobre
a temática, justificados pela desinformação e pela inexistência da discus-
são por ocasião da formação inicial dos mesmos. A esse respeito, 64% deles

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responderam que a questão da diversidade sexual e de gênero não fez parte do


conteúdo programático da formação inicial superior destes e também não lhes
foram oferecidos qualquer curso de formação continuada.
Apesar disso, 88% dos professores responderam que essa discussão é
importante e disseram que gostariam de realizar cursos, caso fossem oferecidos.
Quando inquiridos sobre a presença de alunos LGBT nas escolas que atuam,
90% confirmaram a presença de alunos LGBT em suas turmas, mas relataram
desconhecimento a respeito de vivenciarem ou não o bullying homofóbico,
pois não haviam observado essa ocorrência.
Em relação ao termo homossexualidade, 68% dos professores res-
ponderam ser “opção sexual” e 26% “orientação sexual”. Apesar de não se
considerarem discriminadores, 60% responderam que são contrários à adoção
de crianças por casais LGBT e 30% preferiram não opinar.
Quando questionados a respeito de discutirem a sexualidade como
tema transversal em suas disciplinas, 78% dos professores responderam que
não fazem isso, pois não saberiam como abordar essa temática em suas aulas.
Entretanto, 68% dos professores afirmaram que gostariam de aprender a discutir
a temática da sexualidade, da diversidade sexual e de gênero.
Quando questionados sobre o trabalho didático com alunos LGBT, 85%
dos professores informaram sentirem-se aptos a trabalhar com alunos homosse-
xuais, entretanto 42% disseram conhecer pouco sobre educação sexual e 40%
responderam desconhecer a respeito da temática.
Observaram-se, nas poucas questões examinadas, inúmeras contradi-
ções nas respostas. Em razão disso, interrompeu-se a etapa, como já citado.
Entretanto, as contradições permitiram também compreender alguns confli-
tos vivenciados pelos professores no seu cotidiano profissional, em especial
relacionados e justificados pela formação inicial precarizada, associados às
inseguranças e incertezas sobre as escolhas da profissão: “baixos salários; muito
trabalho; pouco tempo para estudar; desrespeito da sociedade; além dos atuais
problemas a que estão expostos, decorrentes das agressões verbais e físicas
desferidas pelos alunos de hoje”.
Quanto aos alunos, em relação ao termo homossexualidade, 68% respon-
deram ser “opção sexual”, 18% disseram ser pecado e 8% “orientação sexual”.
80% dos alunos responderam não haver qualquer discussão na escola sobre
homossexualidade e 64% disseram que talvez os LGBT sofram bullying homo-
fóbico na escola.

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No que respeita à discussão na escola sobre sexualidade, em especial


sobre a homossexualidade, 80% dos alunos responderam inexistir na escola
qualquer discussão a esse respeito, apesar de terem informado, em todas
as escolas, a presença elevada de alunos “gays” (denominação dos alunos).
Contudo, 64% disseram desconhecer se os alunos LGBT sofrem bullying homo-
fóbico na escola.
Em relação às discussões sobre homofobia na escola, 58% dos alunos
afirmaram haver e 42% responderam inexistir qualquer discussão a esse res-
peito. Mais uma vez observam-se contradições nas respostas, vez que na
questão acima 80% dos alunos informaram não haver discussão sobre homos-
sexualidade. Poder-se-ia especular se os alunos compreendem o conceito de
bullying homofóbico. A esse respeito foi-lhes questionado se o entendiam e
solicitado para responderem. Assim, 65% responderam compreender o con-
ceito de bullying homofóbico e explicaram o significado e 35% disseram ter
dúvidas. Apesar das respostas conflituosas, as explicações revelaram a referida
compreensão.

Considerações Finais

Nestas considerações parciais, observou-se nesta etapa da pesquisa a


presença do bullying homofóbico nas escolas investigadas, a despeito dos inter-
locutores tentarem escamotear e não revelar explicitamente seus preconceitos
e aversões em relação à homossexualidade e à questão de gênero. A invisibi-
lidade a respeito da diversidade sexual e de identidade de gênero na escola é
necessária à heteronormatização, pois autoriza a não discussão do assunto no
espaço escolar e, ao mesmo tempo, normaliza e naturaliza o bullying homofó-
bico nas escolas. Nas escolas investigadas não há debates sobre identidade de
gênero e diversidade sexual, nem cursos para professores a esse respeito, entre-
tanto há permanentes problemas identificados como referentes à violência, os
quais mascaram todo tipo de bullying homofóbico, amparados em moralismos
religiosos. Dessa forma mantêm-se os estudantes LGBT estigmatizados, quase
sempre isolados do convívio coletivo, representado pela maioria heterosse-
xual, padecendo do que se denomina de exclusão integrativa marginal, pois
são excluídos e marginalizados a despeito de encontrarem-se matriculados e
inseridos nas escolas.

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Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

______. Lei de Diretrizes e Bases e Educação: Lei nº 9394/96. Rio de Janeiro: DP&A
editora, 1998.

DIAS. M. B. União Homoafetiva: o Preconceito e a Justiça. 4. ed. São Paulo: Revista


dos Tribunais, 2009.

______. Manual de Direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais,
2016.

LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo:


EPU, 1996.

MARTINS, J. S. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo:


Contexto, 2009.

RIOS, R. R. Homofobia na perspectiva dos Direitos Humanos e no contexto dos estu-


dos sobre preconceito e discriminação. In: JUNQUEIRA, R. D. (Org.). Diversidade
sexual na escola: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Edições
MEC/UNESCO, 2009.

SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. rev. e atual. São Paulo:
Cortez, 2007.

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A CONSTRUÇÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE


NOS ESPAÇOS DA CRECHE

Letícia de Souza Duque


Mestranda em Educação – UFJF
leticiadesduque@gmail.com

Isabella Furtado Bacchini


Graduanda em Educação – UFJF
Isabella_371@hotmail.com

Ana Rosa Picanço Moreira


Doutora em Educação - Professora da Faculdade de Educação – UFJF
anarosamaio@uol.com.br

Resumo

Este estudo discute as relações entre a organização dos ambientes da creche e


a construção de identidades de gênero e sexualidade, problematizando práticas
de separação espacial entre meninos e meninas, e como as crianças ressig-
nificam as imposições culturais. Entendemos que a organização espacial e a
construção de gênero e sexualidade são processos sócio-históricos, assim como
as relações estabelecidas entre eles. Produzimos os dados utilizando notas de
campo referentes a episódios ocorridos em uma creche. Os resultados apontam
para a necessidade de abordar essa temática na formação inicial e continuada
de profissionais de creche.
Palavras-chave: Sexualidade e gênero. Ambiente. Criança. Creche. Formação
de Professores.

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Introdução

Nas últimas décadas, tem crescido o número de pesquisas sobre os modos


como a infância tem sido vivida na creche, trazendo à tona diversos temas do
cotidiano. No entanto, são quase que inexistentes os trabalhos que discutem
a construção de identidade de gênero e identidades sexuais, particularmente
abordando a relação entre a organização dos ambientes e essas construções.
Defendemos a idéia de que os espaços da creche não são simples cenários
onde crianças e adultos vivenciam suas sexualidades, mas, sobretudo, elemen-
tos constitutivos dessas sexualidades.
Estudos sobre a história da creche têm revelado que a organização dos
espaços tem sido movida pela lógica da disciplina e do controle dos corpos
infantis, determinando lugares, tempos e comportamentos permitidos e proibi-
dos. Seguindo outras instituições disciplinares que surgiram na Modernidade,
como a escola, a creche tem delimitado seus espaços, produzindo lugares para
meninos e lugares para meninas, baseada em determinadas características con-
vencionadas como “a” referência de menino e menina em nossa cultura (FELIPE;
GUIZZO, 2004), que, através de práticas repetitivas e automatizadas, foram
sendo naturalizadas. As maneiras de os adultos lidarem com as questões de
gênero e sexualidade em crianças pequenas estão alinhavadas pela ideia de
“natureza”, isto é, a crença de que existe uma essência masculina ou feminina
nos comportamentos humanos (Felipe e Guizzo, 2004; Louro, 1997), prevale-
cendo uma lógica binária rígida (LOURO, 1997).
Este trabalho tem o objetivo de discutir a relação entre a organização dos
ambientes da creche e a construção de identidades de gênero e sexualidade,
analisando práticas de separação espacial entre meninos e meninas desen-
volvidas por educadoras, bem como conhecer estratégias das crianças para
subverter a lógica da segmentação sexual, ressignificando os ambientes para
múltiplas vivências das sexualidades e a construção de gênero.

Sexualidade, gênero e espaço: construções culturais

Xavier Filha (2012) tem salientado que a sexualidade na infância é um


tema que aflige os profissionais de creche, sobretudo quando as crianças se
comportam na contramão daquilo que é estabelecido como a referência de “ser
menino” ou “ser menina”, e o que elas e eles podem ou devem fazer.

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Partimos de uma perspectiva interdisciplinar e histórico-cultural de sexu-


alidade, gênero e espaço, concebendo-os como processos sócio-históricos,
assim como as relações estabelecidas entre eles.
Para a Psicologia sócio-histórica, pautada no pensamento de Vigotski, o
ser humano é um ser cultural, isto é, produto e produtor de cultura (instrumen-
tos que transformam a natureza e a si próprio). Nesta abordagem, não existe
natureza humana, entendida como essência abstrata, universal e imutável. Os
fenômenos psicológicos, tais como a sexualidade e o gênero são construções
humanas, fruto de experiências pessoais, norteadas pelo coletivo e pela cultura
de uma sociedade.
A historiadora Guacira Louro (2000) argumenta que a sexualidade se
refere aos modos como as pessoas vivem seus prazeres e desejos numa deter-
minada época e sociedade. Como tal, é construída nas e pelas relações sociais
antes mesmo do nascimento de cada sujeito, seja pelas expectativas da família,
pelo significado do nascimento de um menino ou uma menina etc. Portanto,
a sexualidade não é um aspecto natural e imutável do humano, isto é, algo
que se manifesta do mesmo modo em todas as pessoas e não se transforma.
Ao contrário, ela se apresenta de diversas formas e se constitui num “campo
eminentemente construído por atribuições sociais sobre como devemos agir,
desejar, ser, conduzir, lidar com nossos prazeres e desejos” (XAVIER FILHA,
2012, p.26).
A dimensão cultural está presente desde cedo no desenvolvimento da
sexualidade infantil, particularmente no modo como os adultos cuidam e edu-
cam as crianças, através de práticas culturais diferenciando modos de lidar com
meninos e meninas desde o nascimento. No entanto, as crianças não são pas-
sivas a essas práticas. Desde muito cedo, elas vão negociando os significados
(coletivo/social) e atribuindo-lhes novos sentidos (pessoal/individual).
O conceito de gênero se refere exatamente aos significados que as socie-
dades conferem aos sexos, isto é, às diferenças anatômicas e fisiológicas. Em
geral, a identidade gênero tem sido olhada a partir da lógica binária rígida do
masculino ou feminino. Louro (1997, p.65) adverte para a necessidade de ado-
tarmos: “(...) um olhar mais aberto, de uma problematização mais ampla (e
também mais complexa), uma problematização que terá de lidar, necessaria-
mente, com as múltiplas e complicadas combinações de gênero (...).”
Cada sociedade elabora regras para o comportamento sexual dos indi-
víduos que se constituem em parâmetros de normalidade e desvio. Ainda, de

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acordo com essa autora (1997), as sociedades elegem determinados atributos


para imprimir uma identidade masculina ou feminina “normal” e imutável. Na
nossa sociedade, ela é expressa na identidade heterossexual. Para garantir essa
sexualidade, considerada normal, brinquedos e brincadeiras são organizados
por gênero masculino e feminino em diferentes áreas de um mesmo ambiente,
tais como o canto da casinha e o canto da beleza, formado por artefatos cul-
turais geralmente na cor rosa, histórica e socialmente destinada às meninas, e
o canto dos carrinhos, reservado aos meninos. Assim, meninos e meninas vão
aprendendo, desde muito cedo, que “devem estar em mundos separados, que
suas experiências não devem ser compartilhadas com o que consideram o sexo
oposto” (FELIPE; GUIZZO, 2004, p. 34). Nesse sentido, a creche tem privile-
giado organizações espaciais que favorecem a separação das crianças, uma das
outras, com base nas diferenças supostamente naturais de gênero, como estra-
tégia de controle e intervenção nas experiências com o corpo, a sexualidade e
o gênero.
Sobre a organização dos espaços, Vigotski (1935/2010) aponta para a
necessidade de conceber o espaço numa dimensão dialética na qual não existe
oposição entre espaço e pessoa, mas, sim, uma relação de interdependência.
Com base nessa afirmativa, podemos dizer que as crianças ressignificam os
espaços, seja aqueles que nós, adultos, qualificamos como adequados e pro-
pícios à aprendizagem e ao desenvolvimento, seja aqueles que acreditamos
serem precários e inadequados para a infância. O espaço é sempre um campo
de possibilidades onde cada sujeito produz o seu (MOREIRA, 2011). Assim, o
mesmo ambiente pode ser bem diferente para cada um. Isto pode ser obser-
vado quando as crianças transpõem as fronteiras do que é convencionado
ambiente para menino e ambiente para menina. Muitas vezes, objetos, mobi-
liários, personagens e enredos são ressignificados nas brincadeiras de faz de
conta, assumindo formas mais flexíveis e fluidas.
Louro (1997) cita o estudo etnográfico de Thorne (1993) que descreve
várias situações de brincadeiras e jogos entre crianças pequenas nas quais elas
subvertem a dicotomia entre meninos e meninas. Isto sugere que os ambien-
tes deveriam ser organizados para que pudessem brincar juntos e quando
quisessem, além de favorecerem diferentes formas de vivenciar os prazeres e
as sensações do corpo e as possibilidades de autoconhecimento. Para Xavier
Filha (2012) isto seria um “ambiente acolhedor”, um espaço de educação para
a sexualidade.

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Procedimentos metodológicos

Os dados foram produzidos circunscritos ao universo de uma creche


municipal de Juiz de Fora/MG/Brasil, por meio de observações das crianças
e educadoras, durante os anos de 2015 e 2016, registradas por bolsistas em
notas de campo. Essas notas são textos que contêm episódios do dia a dia dos
sujeitos, denominados por Ibiapina (2008, p. 105) de “narração realista”, uma
narrativa na qual “o pesquisador torna-se o menos visível possível, descrevendo
os fatos com o distanciamento necessário”.

Análise dos dados

Destacamos as observações na creche sobre as disposições dos meninos


e meninas nestes espaços e as falas e ações das educadoras. Os ambientes,
geralmente, são organizados com base na lógica binária rígida - masculino x
feminino, mas as crianças atribuem-lhes outros sentidos a partir de seus desejos
e necessidades.
Na sala a educadora explicou que tinha uma surpresa para as
crianças, (...) novos brinquedos, ela mostraria, mas não poderiam
brincar naquele dia porque diversas crianças estavam ausentes.
Disse que tinha brinquedos para os meninos e para as meninas.
Primeiro ia mostrar para os meninos. Pegou a sacola dos carrinhos
e despejou na mesa, depois disse ter algo para as meninas, pegou a
sacola das bonecas e despejou na mesa. Porém, um menino pegou
uma boneca e as meninas carrinhos não escolhidos pelos meninos.
(Nota de campo de 20/11/2015.)

Podemos perceber a preocupação em garantir a sexualidade dita como


normal, quando a educadora distribui os brinquedos, classificando-os em
brinquedos masculinos e brinquedos femininos. No entanto, as crianças des-
constroem essa significação e produzem novos sentidos para os brinquedos.
Entendemos que a brincadeira tem o objetivo de propiciar o desenvol-
vimento das crianças, especialmente o desenvolvimento da imaginação ou
fantasia, que se constitui na base da atividade criadora (VIGOTSKI, 2009).
Nesse sentido, “(...) a criação é condição necessária da existência, e tudo que
ultrapassa os limites da rotina, (...) deve sua origem ao processo de criação do
homem” (VIGOTSKI, 2009, p. 16). Além disso, comenta o autor, ao brincarem

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as crianças expressam a verdadeira criação. As crianças constroem sua sexu-


alidade interagindo com os artefatos culturais, tais como, objetos, brinquedos,
vestimentas etc. A creche deve possibilitar experiências diversificadas para as
crianças de modo que elas possam construir conhecimento de si e do mundo.
Em outro episódio podemos perceber como que os atributos masculinos
e femininos vão sendo inculcados nas crianças precocemente:
Havia um menino muito sorridente, o tempo todo ele ficou brin-
cando de correr e me abraçar. Em um dado momento, comentei
com uma das educadoras o quanto ele era carinhoso. E ela me
respondeu que ele era todo dia assim, um pouco “afeminado”, mas
muito carinhoso. (Dados da nota de campo de 26/02/2016).

A fala da educadora revela que a construção de gênero tem se pautado


em fronteiras muito rígidas, estereotipadas e preconceituosas entre masculino
e feminino. A qualidade carinhoso é comumente atribuída ao gênero feminino,
contrapondo-se ao adjetivo rude/bruto. Se isso foge do padrão que é determi-
nado pela sociedade, o comportamento da pessoa é considerado desviante, No
caso do menino ter manifestado um comportamento carinhoso, a criança foi
adjetivada de “afeminado”. Mais do que a preocupação com a ocorrência de
um “desvio” de sexualidade, existe o fantasma da desvalorização e da desqua-
lificação dos predicados conferidos às mulheres. Louro (1997, p.84) argumenta:
“Questões como essas sem dúvida nos remetem para a temática da diferença,
das desigualdades, do poder.”
Nossa cultura determina artefatos específicos para separar meninos e
meninas, como brinquedos, roupas e cores. Muitos adultos acreditam que ao
transpor essa fronteira a sexualidade da criança estará comprometida, isto é, a
criança poderá se tornar homossexual, já que ser heterossexual tem sido consi-
derado a norma. Não raras vezes, ao menino que gosta de brincar com objetos
histórica e socialmente direcionados às meninas, como bonecas, lhe é conferido
compulsoriamente o rótulo de “futuro homossexual” (XAVIER FILHA, 2012).

Considerações finais

Os resultados deste estudo apontam para a necessidade da criação de


contextos de formação em serviço de profissionais de creche voltados para a
reflexão crítica e coletiva sobre essas questões, que raramente são tratadas nos

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cursos de formação de professores. As educadoras denunciam em suas ações o


quanto a temática da sexualidade está silenciada em sua formação profissional.
Segundo Ferrari (2002), “O silêncio parece ser a garantia da norma, dos valores
e dos comportamentos valorizados.”
Esperamos que as discussões que ora trouxemos possam contribuir para
que os espaços de formação dos profissionais de creche – educadoras e educa-
dores da infância – possam fazer emergir reflexões mais críticas sobre as suas
práticas educativas. No que se refere à organização de ambientes de educação
coletiva, desejamos que esses sejam mais acolhedores e sensíveis às diferentes
expressividades das crianças acerca de suas sexualidades, gêneros e corpos,
e, assim, poderem propiciar uma educação efetivamente significativa para as
sexualidades.

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Referências

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PERSPECTIVAS SOBRE GÊNERO NA FORMAÇÃO DOCENTE

Marilza de Oliveira Santos


Doutora em Educação
Universidade do Estado de Minas Gerais –UEMG
marilza101@hotmail.com

Resumo
Esse artigo visa contribuir para o debate de gênero na formação docente, pro-
blematizando o papel dessa temática nos currículos dos cursos de Pedagogia.
Pretende-se apreender e analisar os discursos dos discentes do terceiro período
do Curso, desvelando em que medida tais discursos podem acarretar (ou não) a
feminilização da carreira docente e influenciar as relações do trabalho em sala
de aula. Os relatos resultam de entrevistas com 60 discentes. A metodologia da
análise de discurso de Bakhtin (2003) possibilitou desenvolver reflexões sobre
a temática, embasadas, também, pelas pesquisas de Quirino (2011), Villella
(2000), Louro (1986), Luz (2009), dentre outros pesquisadores. Os discursos
discentes confirmaram a importância dos estudos sobre gênero na formação
docente.
Palavras-chave: Formação Profissional Docente. Formação de Professores.
Currículo. Representações de Gênero. Relações de Gênero.

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Introdução

Este artigo objetiva analisar a importância de se estudar as relações


de gênero na formação docente, a partir da ótica de discentes do Curso de
Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas
Gerais (CP/FaE/UEMG). Fundamenta-se em uma pesquisa realizada em 2016,
que realizou 60 entrevistas semiestruturadas com alunos do terceiro período do
curso de Pedagogia. A metodologia da análise do discurso de Bakhtin (2003)
foi adotada, porque possibilita analisar os discursos dos alunos e refletir, de
forma crítica, sobre as relações de gênero na formação docente. Os estudos de
Quirino (2011), Villela (2000), Louro (1986), Luz (2009), dentre outros, ajudam a
pensar e a debater as questões de gênero.
Partindo do pressuposto de que a linguagem constitui sujeitos e é um lugar
de conflitos, de confronto ideológico (Bakhtin, 2003), escolheu-se como campo
de pesquisa dessa temática, os discursos discentes do curso de Pedagogia. Tal
escolha se justifica devido à importância de se investigar qual o conhecimento
que os/as universitários do CP/FaE/UEMG estão construindo sobre a temática
de gênero, considerando o futuro trabalho deles no magistério da Educação
Básica.
As vozes desses alunos serviram ao objetivo de se entender como con-
cebem a questão de gênero e verificar se essa temática está sendo tratada no
currículo escolar. Embora tenham sido feitas 60 entrevistas, neste trabalho,
optou-se por analisar os discursos discentes de quatro alunas e três univer-
sitários, cuja escolha se baseou nos seguintes critérios: respostas construídas
coerentemente ao tema e dados relevantes para a análise.

Refletindo sobre as relações de gênero

As relações de trabalho têm sido o ponto chave na afirmação das masculi-


nidades, pelo fato de estarem associadas a habilidades técnicas e à capacidade
de estabelecer vínculos com outros homens. Nesse sentido, Quirino (2011)
verifica que o avanço tecnológico, no que se refere não só aos modelos de
organização, mas, também, da gestão da força de trabalho, permitiu que as
mulheres se inserissem em áreas até então consideradas masculinas. Entretanto,
tal avanço não tem promovido a ascensão dessas mulheres aos cargos de pres-
tígio profissional.

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Almeida (1988, p. 65), ao citar os estudos de Apple (1988) sobre a femini-


lização do magistério primário nos Estados Unidos e Inglaterra, mostra que tais
estudos consideram que, na passagem progressiva de trabalho masculino a tra-
balho feminino, as condições econômicas e as de gênero são determinantes e,
no processo de desvalorização do magistério, as condições de classe social por
certo transcendem à questão simplesmente sexual e englobam os dois sexos.
As questões relacionadas às diferenças e ao seu tratamento no cotidiano
escolar são prioritárias para a formação profissional do/a educador/a que terá,
no seu desempenho profissional, detratar da tensão entre a defesa do direito à
diferença e a desigualdade social.
Entretanto, no trabalho com as interações na formação docente, perce-
be-se como as práticas pedagógicas silenciam-se dentro do currículo sobre as
relações de gênero. Configura-se aqui o objetivo deste trabalho: analisar em
que medida os discursos dos alunos de licenciatura em Pedagogia confirmam
ou não esse silêncio. A sustentação teórica para essa análise encontra-se em
Bakhtin (2003), como já explicitado antes. Como a linguagem é dialógica por
natureza, ela se transforma em ambiente de luta de vozes que, situadas em dife-
rentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes.
Desse contexto, surgiram as questões investigativas deste artigo:
1. O que você pensa sobre o estudo da temática de gênero no curso de
Pedagogia?
2. Os/as professores/as abordam essa temática na formação? De que
forma?
3. O que você pensa sobre a docência de um professor na Educação
infantil?

Análise discursiva dos/as Discentes sobre as relações de gênero


na Formação Docente.

Observa-se, no curso de Pedagogia, cada vez mais, a inserção de homens


que buscam uma formação para o trabalho da docência, não só no Ensino
Fundamental, mas também na Educação Infantil. Discutir as questões de gênero
e as implicações no mundo do trabalho, até então predominantemente femi-
nino, já que o universo da Educação Infantil fora delegado às mulheres, torna-se
fundamental.

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Louro (1997, p.60), ao abordar questões sobre a linguagem, gênero e sexu-


alidade, mostra como a escola vai reproduzindo as desigualdades sociais através
da linguagem. Servindo-se de símbolos e códigos, a escola afirma o que cada
um pode (ou não pode) fazer, informa o lugar dos pequenos e dos grandes, das
meninas e dos meninos.
Ao responderem sobre o que pensam sobre estudo da temática de gênero
na formação docente, os alunos e alunas, nomeados/as, ficticiamente, de Maria,
Célia, Marta, Sandra, Carlos, João, Mateus, consideraram, unanimemente, ser
essencial, na formação docente, discutir esta temática, afirmando que:

Maria: “Penso que é de grande importância para que haja o respeito,


equidade de direitos e quebra de paradigmas preconceituosos que
permeiam a universidade”.
Célia: “Penso ser necessário devido ao fato que vamos ajudar na for-
mação de crianças, que precisam saber respeitar as diferenças”.
Marta: “É necessário estudo de gênero para a desconstrução própria e
para se trabalhar nas escolas”.
Sandra: “A temática de gênero é muito válida no curso de Pedagogia”.
Carlos: “Eu penso que é de extrema importância abordarmos esse
assunto, pois devemos “quebrar” essa imagem embutida que o/a pro-
fessor/a ideal é a mulher, branca, etc”.
João: “Acredito que em um curso de formação de professores é neces-
sário abordar esta temática”.
Mateus: “Penso que é muito importante saber compreender as relações
de feminino e masculino na cultura e sociedade para saber respeitar
todos e todas na nossa convivência”.

Nota-se, nas respostas acima, que os/as discentes apresentam uma


consciência de que é necessário haver uma desconstrução sobre os papéis his-
toricamente estabelecidos, no que se refere às funções do homem e da mulher
na sociedade. Demonstram ainda uma compreensão das relações de poder que
são construídas pela cultura e, neste sentido, aparentam compreender que isso
não é natural, mas construído historicamente.
Os discursos apontam para a importância dos estudos sobre a diversi-
dade, indicando que as diferenças devem ser discutidas na universidade e na

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formação docente como subsídio para a formação pessoal e profissional do/a


professor/a.
Em relação ao que pensam sobre a docência de um professor na Educação
Infantil, houve posicionamentos contra e a favor. Entretanto, a maioria afirmou
ser importante para se quebrar a lógica de que o cuidado na infância seja feito
ainda só pelas mulheres.

Maria: “Penso ser tão importante quanto a presença da mulher, até


mesmo para que a criança conheça dois métodos e formas de ensinar
tanto do professor ou professora”.
Célia: “Penso que assim como as mulheres podem atuar e devem, em
todas as áreas, os homens também devem ter esse, digo, o mesmo
espaço nas escolas”.
Marta: “Necessária. Há uma quebra do senso comum de que apenas
mulheres trabalham na Educação infantil”.
Sandra: “O professor do sexo masculino na Educação infantil é compli-
cado, me sinto um pouco incomoda, pois o homem não tem o mesmo
cuidado e a mesma delicadeza de cuidar de uma criança”.
Carlos: “Penso que a presença masculina na Educação infantil como
a presença de negros/as é essencial para a aceitação da diversidade
e para promover a formação de um sujeito seja capaz de conviver
com a diversidade e seja capaz de romper essas barreiras e ciclos de
desigualdade”.
João: “Acredito que é necessário o ingresso de homens na Educação
infantil para a desconstrução de alguns estereótipos e paradigmas”.
Mateus: “Penso que é muito positivo, pois temos todo um lado
sensível”.

Em relação à presença ou não do professor homem na Educação Infantil,


somente a aluna Sandra apresentou um incômodo, considerando que “o homem
não tem o mesmo cuidado e a mesma delicadeza de cuidar de uma criança”
que uma mulher. Neste discurso a aluna repete um discurso de que a lógica
do cuidado “é coisa de mulher”. Tal pensamento dicotômico e a oposição
entre características de homens e de mulheres são inadequados, pois conforme
mostra Luz (2009, p. 26), “é perfeitamente possível que as mulheres assumam
características de objetividade e racionalidade em certas situações da vida”, e

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“por outro lado, homens possam ser emotivos, sensíveis e afetivos, sem que
com isso sejam considerados mulheres”.
Percebe-se uma visão relacional de gênero nos dizeres discentes, e isso
representa um avanço nos estudos, pois leva em conta o contexto em que os
indivíduos estão inseridos, as relações de poder, as crenças, as etnias, e neste
sentido, conforme afirma Louro (1997, p. 23), “o conceito passa a exigir que se
pense de modo plural”, já que é no âmbito das relações sociais que se constroem
os gêneros. Nas respostas sobre a abordagem ou não dos/as seus formadores
sobre a temática de gênero nas aulas, os discentes consideraram que:

Maria: “Creio que poderia haver mais diálogo e conversa e debates


sobre o assunto, que é tão constante e polêmico em uma sociedade
machista e com base patriarcal como a nossa”.
Célia: “Alguns professores acadêmicos abordaram essa temática em
suas disciplinas, outros não, talvez por que a disciplina não tinha rela-
ção com o tema. Natural, sendo preconceito, esclarecedora”.
Marta: “Abordam com propostas de trabalhos feitos pelos próprios
alunos”.
Sandra: “Os professores abordam sim, nas aulas, palestras, explicando
as diferenças de gênero e como o professor deve lidar com essas
diferenças”.
Carlos: “Atualmente a temática é abordada aos sábados, porém não se
fala de gênero nas outras aulas (de segunda a sexta) ”.
João: “Abordam rapidamente aos sábados temáticos e nas aulas de
psicologia. Eles abordam a temática no foco da Educação Infantil, dis-
cutindo as relações de poder entre os gêneros”.
Mateus: “Na minha opinião os professores me fazem refletir bem.
Abordam de forma a nos colocarmos no lugar dos outros e isso ajuda
na nossa análise sobre o assunto”.
Nas considerações dos/as estudantes sobre o trabalho com a temática
gênero nas salas de aulas percebe-se, sutilmente, a crítica que Carlos faz sobre
a discussão que não é feita, quando diz “é abordada nos sábados, porém não
se fala de gênero nas outras aulas (de segunda a sexta)”. O discente parece
considerar a necessidade de que haja discussões sobre essa temática dentro da
disciplina do currículo. A fala dele aponta para o silenciamento dessas questões
dentro do currículo, conforme estudos desenvolvidos por Silva (2007).

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Avalia-se, pelos discursos discentes, que os /as estudantes ainda não


têm, em suas aulas, uma formação docente que trate das questões de gênero.
Todavia, todos os entrevistados/as afirmaram a importância dessa discussão e
estudo no currículo escolar.

Considerações finais

Foi importante esta breve análise dos discursos discentes sobre as relações
de gênero na formação docente superior, considerando que esses estudos nem
sempre são trabalhados no currículo das universidades e nas práticas docen-
tes. Observou-se que todos os discentes ressaltaram a importância do estudo
de gênero para quebrar os paradigmas preconceituosos que ainda permeiam
as práticas da universidade, quer sejam no âmbito da diversidade, quer sejam
reflexões sobre as práticas de gênero que ainda existem na sociedade.
Constatou-se que, pela ótica dos/as discentes, o debate sobre a questão
de gênero promove o respeito às diferenças, na medida em que contribui para
compreender as relações de feminino e masculino na cultura e sociedade, e
neste sentido, possibilita a aprendizagem do respeito a todos e todas na convi-
vência social.
Por fim, pode-se considerar que os estudos sobre gênero precisam ser
incluídos nas práticas docentes durante a formação dos discentes, não sendo
apenas discussões isoladas, em dias de sábado, como relataram os /as estudan-
tes. Isso, possivelmente, fará com que o silenciamento ainda presente sobre as
relações de gênero no currículo do curso de Pedagogia dê lugar e voz a essa
temática, para que o diálogo, a reflexão e o desenvolvimento desses saberes
ainda negados sejam garantidos.

Referências

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1988.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Tradução
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FERREIRA, Beatriz L.; LUZ, Nanci Stancki da. Sexualidade e gênero na escola. In: LUZ,
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LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas: educando a mulher gaúcha. Educação


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truturalista. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997.

QUIRINO, R. Mineração também é lugar de mulher!: Desvendando a (nova?!) face


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SILVA, Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2ª


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VILLELA, Heloisa de S. Do artesanato à profissão: Representações sobre a institucio-


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HOMOSSEXUALIDADE, SILENCIAMENTOS E
NORMATIZAÇÕES EM ESCOLA RELIGIOSA

Cristiano José de Oliveira


Mestrado em Educação
Cristianj_35@hotmail.com

ST a que se destina (número e título)

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar os discursos de normatizações


e silenciamentos de docentes frente às questões relacionadas à homossexu-
alidade em uma escola religiosa. A pesquisa de cunho qualitativo apresenta
entrevistas semiestruturadas para análise desses discursos. Apesar de sentirem a
necessidade de discutirem gênero e sexualidade no âmbito escolar, levando-se
em consideração as demandas em relação ao preconceito, à homofobia e à vio-
lência, os/as docentes não se sentem seguros e preparados para falarem sobre
temáticas referentes à homossexualidade, predominando-se silenciamentos e
normatizações para regular os/as /alunos/as no espaço escolar.
Palavras-chave: Homossexualidade; Escola Religiosa; Discurso; Silenciamentos;
Normatizações.

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Introdução

A contemporaneidade tem sido marcada pelos desafios no espaço escolar e,


quando se pensa em escola religiosa, as discussões ganham uma ampla reper-
cussão em razão dos dogmas, doutrinas e os dos discursos religiosos no tocante
ao gênero, sexo e sexualidade. Os silenciamentos e as normatizações no que
diz respeito à sexualidade e as questões relacionada à homossexualidade for-
mam um discurso da naturalidade e normalidade no espaço escolar no que diz
respeito à sexualidade.
Se a identidade heterossexual fosse, efetivamente, natural e, em
contrapartida, a identidade homossexual fosse ilegítima, artificial,
não natural, porque haveria a necessidade de tanto empenho para
garanti-la? Porque vigiar para que os alunos e alunas não resvalem
para uma identidade desviante? (LOURO, 2001, p. 90).

Ao observarmos os discursos numa relação com o outro o que percebe-


mos é que a sexualidade pode ser construída e recriada, o que a grande modo
não possa restringir a determinadas formas. Para tanto, Foucault (1988, p.30)
afirma que: “são distribuídos os que podem e os que não podem falar que tipo
de discurso é autorizado ou de que forma de discrição é exigida a uns e outros”.
Este artigo tem como objetivo analisar os discursos de normatizações e
silenciamentos que permeiam os/as docentes frente às questões relacionadas à
homossexualidade em uma escola religiosa. Buscaremos de maneira especifica:
apresentar os processos de silenciamentos da sexualidade/homossexualidade
na escola; apresentar algumas narrativas dos docentes sobre a homossexuali-
dade e como se produz subjetividades dos alunos/as; enfatizar a religião como
discurso normatizador da sexualidade/heterossexual, levando para o aspecto
biologizante.
Para a análise das práticas discursivas dos docentes referentes à sexuali-
dade, tal qual a apreensão das narrativas sobre sexualidade/homossexualidade
no ambiente escolar religioso, elaboramos uma entrevista semiestruturada onde
buscamos levantar os discursos de 13 docentes do 6º ano ao 9º ano do ensino
fundamental, que lecionam as seguintes disciplinas: português, matemática, lite-
ratura, redação, geografia, inglês, ciências naturais, educação física, história,
vinculados a uma escola da rede privada no Estado de Sergipe.

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A partir da elaboração de um roteiro de entrevista, definimos análise do


discurso inspirado em Foucault (1996), para tratar as informações e discursos
produzidos pelos docentes.

Silenciamentos e normatizações em uma escola religiosa

A escola constrói várias estratégias de regular e controlar as diferenças,


e o binarismo de gênero no que se reserva a apenas perceber unicamente um
olhar homem, mulher, masculino e feminino, tem agredido amplamente ao que
traça o universo dessas discussões, ignorando as demais categorias existentes.
Esse único olhar fere princípios básicos de equidade e faz-nos refletir qual o
lugar ocupado dos diversos tipos de corpos, sexualidade/homossexualidade,
comportamentos, levando a um silenciamento que cria subjetividades desses/as
/alunos/as, tendo em vista que os corpos carregam marcas, e, que sem dúvida
cria questionamentos e interrogações, tal qual afirma Louro (2004, p.75), “Onde
elas se inscrevem? Na pele, nos pelos, nas formas, nos traços, nos gestos? O que
elas dizem dos corpos? Que significam? [...]”.
Dessa forma, Judith Buther (1999) afirma que, para se qualificar como
sujeito legitimo, como um “corpo que importa”, o sujeito se verá obrigado a
obedecer às normas que regulam sua cultura. Essas normas reguladoras que
engendram corpos/alunos/as, normatizam posicionamento do que é tido por
normal e anormal. Nesse sentido, Louro (2004, p.82) afirma que: “voltam-se
para os corpos para indicar-lhes limites de sanidade, de legitimidade, de mora-
lidade ou de coerência”.
Por isso, perguntamo-nos: Quanto aos discursos que instituem as dife-
renças, como eles se produzem? Quais os efeitos que esses discursos exercem,
quais são? Quem é o diferente? Como as práticas pedagógicas representam
os/as alunos/as? Para Louro (2010), “são precisamente os discursos, os códi-
gos, as representações que atribuem o significado de diferente aos corpos e
às identidades” (p.47). Os/as alunos/as, cujos corpos posicionam contrário ao
determinismo biológico do discurso religioso educacional tem de fato respeito
na escola? É o homossexual, cujas posições é o próprio dos/as alunos/as que tra-
zem embaralhamentos no que se diz respeito as feminilidades e masculinidades?
Para Louro (2009, p. 138-139): “um corpo viável, ou melhor, um sujeito
pensável estão, por tanto, circunscritos aos contornos” daquilo que consideramos

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“normal”. Tendo em vista que o discurso que sustenta a ideia de normalidade é


extremamente binário, o que inválida as demais concepções de corpos.
As estratégias docentes em escola religiosa quanto à homossexualidade
Nas narrativas que contam os professores/as nas entrevistas, existem epi-
sódios sobre transgressores das demarcações de gênero e sexualidade mais
precisamente alunos/as homossexuais, “que atravessam ou que, de algum modo,
embaralham e os sinais considerados “próprios” de cada um desses territórios
(LOURO, 2004, p.87). Os respectivos docentes narram como esses/as alunos/as
são tratados e seus posicionamento frente às discussões.
“Quanto aos novos modelos de família, não discuto, não me
apego a esse tema. A escola também nunca abordou, tipo, uma
família numa encenação diferente do tradicional” (professor de
educação física).

A fala desse professor certamente traz a reflexão para aquilo que faz parte
do cotidiano do aluno/a, que de certa forma, é inviável um olhar silenciador em
meio ao debate em que a própria mídia levanta como discussão a todo instante.
Percebe-se nesse contexto que o silenciamento é também discursivo, e certa-
mente normatiza o que de fato corrobora como Louro (2004) quando indica
limites de legitimar e criar moralidade e coerência. Pensar as discussões sobre
homossexualidade requer acima de tudo um cuidado naquilo que é “novo”,
daquilo que estava até então escondido e hoje revela-se por perceber que a
equidade é uma causa social. Dessa forma, não discutir em escola religiosa
ganha de certa forma um silenciamento confirmando o discurso biológico/reli-
gioso, tal quais as narrativas apresentadas:
“Perguntaram-me o que a igreja achava da escolha sexual da pes-
soa de ser homossexual. Ai, falei o que a igreja pensa, que Deus
não aceita homem com homem, mulher com mulher. Também
porque eles não geram vidas. Deus colocou o homem e a mulher
porque geram vida” (professora de religião).

Nesse contexto, Foucault (2001, p.62) diz que: “a norma traz consigo ao
mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção”. Assim,
pensa-se a homossexualidade a ser algo corrigível, numa deformidade a atribu-
tos não biológicos e de caráter não aceitável pela igreja, assim instituem a prática
de que “Deus ama o pecador” o que fortalece ainda mais um distanciamento

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Sexual e de gênero
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dos direitos de equidade, menosprezando, excluindo, rejeitando, levando o


homossexual ao estado de controle ou penalização por ser diferente.
Apresentando-se ainda numa esfera conservadora e tradicionalista, o
discurso religioso no espaço escolar prima pela prática das relações sociais bio-
logizantes do certo e errado, do aceitável e inaceitável, como reflete a fala da
professora quanto ao ato sexual instituído unicamente por Deus “é homem
e mulher” invalidando outras relações, bem como, a homossexual que foge
da esfera homem e mulher e que é vista como anomalia numa característica
daquilo que é imoral e pecado. Como bem diz Louro (2003), é comum às
escolas tratarem gênero e sexualidade como sinônimos, como padrão único do
que é masculino e feminino, como única maneira de viver a sexualidade apre-
sentando uma normativa estabelecida entre o sexo macho e fêmea, o gênero
masculino e feminino e que a orientação sexual se dá naturalmente para o sexo
oposto.
“a escola trata todos normais, não trata com separação, até por-
que é muito pouco, no ano passado eu tinha um com esse jeito
mais afeminado...nenhuma desses termos trabalhados ele se sen-
tia constrangido, magoado ou ferido” (professora de religião).

É inaceitável o traço marcante de estigma do homossexual. Essas carac-


terísticas descritas criam subjetividades que colocam os que possuem “esse
jeito mais afeminado” como narra à professora de religião num lugar subju-
gado, sendo discriminado e colocado à margem da sociedade, sem contar que,
este aluno/a/homossexual estigmatizado tende a ser violentado com atitudes
de desprezo, ridicularizado, inferiorizado. Afinal, “ao instituir distinções de
gênero e sexualidade, o currículo produz saber. Desse modo, o currículo é
muito mais do que uma lista de conteúdos sobre sexualidade ou um inocente
emaranhando de advertências sobre corpo e saúde. O currículo produz efeitos”
(Cardoso e Paraíso, 2015, p. 174). Por certo, esse modo de identificar o homos-
sexual com estereótipos cria uma confusão no cerne das discussões de gênero
e sexualidade/homossexualidade.
Um ponto forte na narrativa da professora é a ideia do aluno “não se
sentir constrangido, magoado ou ferido”, daí pergunta-se: que mecanismo
avaliativo a professora utiliza para perceber o estado emocional do aluno frente
esses discursos, tendo em vista que a professora considera normal a discussão

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mesmo que o coloque sobre a margem e distanciamento aos demais no que


tange a equidade?
A postura da docente nas narrativas demostra o quanto a religiosidade é
um peso nas discussões desfavoráveis ao que diz respeito aos homossexuais e
ao preconceito estabelecidos, assim percebemos na fala da mesma:
“às vezes, alguns homossexuais acabam querendo ser algo que
não é ele próprio. Ficam com muita pornografia, falta respeito.
Lógico que admiro quem é e tem uma postura realmente per-
feita e não tira a essência da pessoa, entendeu? Alguns são dessa
forma, tentando ser muito menina e acaba sendo vulgar, mas res-
peito” (professora de religião).

Essa narrativa empregada de preconceito faz-nos encontrar as marcas


da escola como espaço de proliferação de modos adequados de ser de um
homossexual, ou seja, a homonormatividade, enquadrando o/a aluno/a numa
perspectiva vista como aparentemente “normal” aos demais. Esse discurso suja,
desestabiliza, incorre no descompasso daquilo que humanamente é natural
estabelecendo regras da homossexualidade “postura realmente perfeita”. De
certo, esse discurso se explicita em falas que afirmaram que um/a bom/boa
professor/a, que seja homossexual, tem que ser “profissional”.
“Quando entrei na escola para ensinar, certo dia uma mãe veio
à direção para questionar como uma escola religiosa admitia em
seu quadro de professores um gay? Então a irmã diretora falou
que para a escola o que importava era o profissional que eu era e
não a minha sexualidade”.

Sendo assim, vê-se que, a orientação sexual interfere, na opinião geral


em outros âmbitos sociais, e que cada um pode levar a criação de códi-
gos, para que os/as homossexuais possam se comunicar sem “interferir” na
heterossexualidade.

Considerações finais

Portanto, percebemos um conflito que existe entre gênero, sexo, sexua-


lidade e educação em escola religiosa. É o ambiente escolar um espaço onde
deve-se pautar a ideia de desnaturalizar e desnormatizar discursos e posturas

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sexistas. É inconcebível não compreender o modo como às transformações


sociais existem e que ainda assim existam professores/as que ignoram a impor-
tância dessas discussões, levando em consideração que existe uma razão bem
política nesse contexto que é o enfrentamento do preconceito e discriminação
que impede a garantia de oportunidades efetivas da participação de todos nos
diferentes espaços sociais e a escola certamente tem um viés de trazer a referida
temática nesse campo de discussão.
Nos relatos dos professores/as, fica evidente o silenciamento manifestado
junto as questões relacionada à homossexualidade dos/as alunos/as que torna
as normatizações padrões discursivamente instituído pela religião. Ainda que
a escola é um espaço ideal para tratar as questões sobre sexualidade, sexo e
gênero, pois, além de ser um local onde as diferenças são múltiplas e aparentes,
é também um local onde o debate deve acontecer continuamente, com vistas á
aprendizagem e á prática do pensamento critico, autônomo, promovendo entre
todos que fazem a escola um convívio de respeito efetivando a democracia.

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Referências

CARDOSO, Lívia de R.; PARAISO, Marlucy A. Tecnologia de gênero e a produção de


sujeitos no currículo de aulas experimentais de ciências. Currículo sem Fronteiras, v.
15, p. 155-177, 2015.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber. 11ed. Rio de


Janeiro: Graal, 1988.

______. A ordem do discurso. 5. ed. Tradução de Laura F. de Almeida Sampaio. São


Paulo: Edições Loyola, 1999.

______. Os Anormais Curso no College de France (1974-1975), Tradução Eduardo


Brandão. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. – Coleção Tópicos.

LOURO, Guacira Lopes.; NECKEL, F.J.; GOELLNER, V.S.(org.). Corpo, Gênero e


Sexualidade: um debate contemporâneo na Educação. Petrópolis: Vozes, 2003.

______. O Currículo e as Diferenças Sexuais e de Gênero. In: COSTA, Marisa


Vorraber(org.): O currículo nas liminares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A,
3edição, 2001.

______. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2ed. Tradução dos artigos:


Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autentica 2000.

______. Pedagogias da sexualidade. In:__(org.). O corpo educado: pedagogias da


sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

______. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

______. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”.


In: Louro, G. L.; FELIPE, J.; GOELLNER, S.V. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um
debate contemporâneo. 5ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. P. 41-52.

______. Foucault e os estudos queer. In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. (orgs.). Para
uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p.135-142.

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A POLÍTICA PÚBLICA BRASILEIRA DO NOME SOCIAL DE


TRAVESTIS E TRANSEXUAIS: DESAFIOS NA EDUCAÇÃO

Cláudio Eduardo Resende Alves


Doutor em Psicologia - PUC Minas/Gestor de Políticas Públicas Educacionais
Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG
cadupbh@gmail.com

Magner Miranda de Souza


Mestrando em Psicologia - PUC Minas/Gestor de Políticas Públicas Educacionais
Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG
magnersouza@hotmail.com

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a política pública do nome social
de sujeitos travestis e transexuais na educação em interface com as áreas de
psicologia e direito. O nome social pode ser tomado como um dispositivo de
identificação de gênero, uma vez que produz inteligibilidade para as expres-
sões de gênero desviantes da normativa heterossexual. Propõe-se um breve
mapeamento de normativas legais do nome social em território nacional, com
destaque para a Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG, lócus
pesquisado. A investigação teve como metodologia a análise documental de
pareceres, resoluções e portarias brasileiras, revelando ressonâncias no coti-
diano escolar a partir de lacunas entre o texto prescrito a prática social.
Palavras Chave: Educação; Gênero; Nome Social; Travesti; Transexual.

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1. Introdução: gênero, nome social e cidadania

Um dos conceitos fundantes deste artigo é o de gênero que pode ser


compreendido como uma categoria analítica sustentadora das reflexões que
pretendem superar as lógicas binárias de equivalência do sistema sexo/gênero.
Nesse sentido, gênero aporta uma ferramenta estratégica que permite discutir
as diferenças nas posições sociais de homens e mulheres, quer sejam heteros-
sexuais ou não heterossexuais. Tais diferenças não podem ser compreendidas
pelo reducionismo biológico, mas sim pelos sentidos construídos e compartilha-
dos social e culturalmente para as diferenças.
Outro conceito fundante diz respeito ao chamado nome social, entendido
como o nome pelo qual sujeitos travestis e transexuais preferem ser chamados
cotidianamente, uma vez que o nome civil ou de registro não reflete sua iden-
tidade de gênero. O nome social pode ser tomado como um dispositivo1 de
identificação de gênero, uma vez que produz outras formas de pensar a inteli-
gibilidade dos gêneros (ALVES, 2016). Partindo do princípio da autodeclaração
da identidade de gênero, quando um indivíduo escolhe um nome social ele
está dizendo ao outro como quer ser identificado e reconhecido socialmente.
A política da autodeclaração, a exemplo da discussão do pertencimento étni-
co-racial no Brasil, outorga ao sujeito, e a mais ninguém, a definição de sua
identidade gênero, ao mesmo tempo que torna pública sua escolha e orienta o
outro sobre como esse sujeito deve ser tratado socialmente.
O sexo anatômico perde seu status determinista da identidade de gênero,
cedendo lugar para a narrativa autobiográfica (PROSSER, 2014) que valida a
imagem corporal. Independentemente do sexo anatômico, o que determina o
gênero é a reiteração do discurso (BUTLER, 2003). Percebe-se assim que a iden-
tidade de gênero é atravessada pela escolha nominal expressa pela linguagem,
atuando como eixo norteador na elaboração de políticas públicas de inclusão
da diversidade de gênero em escolas brasileiras.
O desrespeito ao uso do nome social provoca constrangimento, humi-
lhação e inacessibilidade de sujeitos travestis e transexuais aos lugares públicos

1 Segundo Foucault, dispositivo é um conjunto decididamente heterogêneo, o qual abrange discursos,


instituições, decisões regulamentares, leis, enunciados científicos, propostas filosóficas, morais e
filantrópicas. O dispositivo é a rede que pode se estabelecer entre esses elementos (REVEL, 2011).

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(BENTO, 2006). Não importa como o sujeito se posiciona em relação à sua


expressão de gênero, o que importa é o que está escrito e a foto que consta
no documento. Assim o sendo, muitas travestis e transexuais são injustamente
acusadas de praticantes do crime de falsidade ideológica, uma vez que nos
documentos oficiais o que consta é o nome civil. O registro civil está asso-
ciado a estratégias biopolíticas de gerenciamento das populações, bem como
aos dispositivos de pessoalidade (CÉSAR, 2009). O nome é fundamental para
se fazer reconhecer e ser reconhecido, é o ponto de partida da vida social.
O reconhecimento do outro é essencial para o próprio reconhecimento. Ao
mesmo tempo o nome pode ser pensado como uma forma de produção social
e política de sujeitos desprovidos de direitos por meio de mecanismos de
controle que separam os modos de ser viáveis dos inviáveis, promovendo a
manutenção do binarismo identitário (LIMA, 2013). A não conformidade entre
o sexo de nascimento e a expressão de gênero aponta para fissuras na normati-
zação da sexualidade. Sujeitos travestis e transexuais, invisibilizados histórica e
socialmente, foram alijados do direito à cidadania, configurando-se, pois, como
corpos abjetos (BUTLER, 2003).

2. Políticas públicas do uso legal do nome social no Brasil

Desde 2008, inúmeros pareceres, resoluções e portarias foram elabo-


rados e aprovados em âmbitos municipal, estadual e federal, assegurando o
direito ao uso do nome social, porém existe uma distância significativa entre
a regulação normativa legal e a prática social. De acordo com os dados da
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais existem dife-
rentes instrumentos legais, nos campos da educação, saúde, assistência social
e administração pública, que regulam o uso do nome social no território bra-
sileiro. São instrumentos de diferentes formatos e tamanhos, desde de simples
portarias até complexos pareceres de sustentação teórica.
No âmbito federal, o uso do nome social está previsto em alguns ins-
trumentos legais, como: o Parecer nº 141/2009 do Ministério da Educação/
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; a Portaria
GM 1820/2009 que integra a carta de direitos dos usuários do Sistema Único de
Saúde; os Projetos de Lei nº 072/2007 e nº 2978/2008 do Congresso Nacional; a
Portaria MPOG nº 233/2010 da Administração Pública Federal direta, autárquica

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e fundacional; e a Resolução nº 12/2015 - CNCD/LGBT do Conselho Nacional


de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT.
Algumas Instituições de Ensino Superior como, por exemplo, em Minas
Gerais, a UFMG, a UEMG e a PUC Minas, produziram normativas ampliando
o uso do nome social para professores e funcionários trans, além dos discen-
tes universitários. No caso do uso do nome social por estudantes trans, vale
destacar que esse dispositivo nominal fica, geralmente, excluído dos diplomas,
certificados e históricos escolares, sendo seu uso restrito aos documentos inter-
nos como livros de chamada, avaliações, relatórios e projetos de pesquisa, bem
como no tratamento interpessoal. A dialética entre o reconhecimento e o não
reconhecimento do nome social cria uma tensão permanente entre o poder
público e os direitos de cidadania de sujeitos trans.
O estado brasileiro pioneiro a elaborar uma normativa sobre o nome social
na educação foi o Pará, por meio da Portaria Estadual nº 16/2008-GS, poste-
riormente validada pelo Decreto nº 1.675 que amplia o uso do nome social
em todos os órgãos da administração pública do Estado do Pará. No mesmo
ano de 2008, Belo Horizonte se tornou o primeiro município brasileiro a apro-
var um documento regulatório sobre o uso do nome social junto ao Conselho
Municipal de Educação, a Resolução CME/BH Nº 002/2008 e o Parecer CME/
BH Nº 052/2008, com vigência em todas as escolas municipais (ALVES, 2013).
A Resolução do Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte
prevê o uso do nome social exclusivamente para estudantes travestis e transe-
xuais. A fim de fornecer embasamento teórico para a Resolução no campo dos
estudos de gênero e dos direitos humanos, um comitê intersetorial elaborou
o Parecer CME/BH nº 052/08 para subsidiar os debates entre os conselheiros
municipais de educação. Esse comité foi composto por representantes do movi-
mento social LGBT, da Universidade Federal de Minas Gerais e da Secretaria
Municipal de Educação. Nesse contexto, a partir de um novo modelo de gestão
social e política, os processos de constituição dos sujeitos e de seus corpos
sexuados passam ser repensados e reconfigurados numa perspectiva ampliada
e diversificada das regras de convivência tradicionalmente instituídas na escola.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(ALVES, 2016), a partir do ano de 2012, instalou-se um processo de mapeamento
estudantil com base em coletas regionalizadas de dados, obtendo o seguinte
panorama: doze estudantes em 2012; cinco estudantes em 2013; duas estudan-
tes em 2014; e nenhuma estudante em 2015. Desse total discente, composto

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por dezenove estudantes, todas são mulheres transexuais ou travestis, sendo


que apenas uma das estudantes é menor de dezoito anos. Essa diminuição do
número de estudantes trans sinaliza problemas na política pública municipal do
nome social como estratégia de garantia do direito à educação, quer seja pelo
não monitoramento institucional, pelas dificuldades administrativas e pedagó-
gicas na execução da normativa, ou ainda, pela forte corrente fundamentalista
religiosa que atua na política brasileira, particularmente no ano de 2015 a partir
da retirada do termo gênero do Plano Nacional de Educação que reverberou
na ausência do mesmo em vários planos estaduais e municipais de educação.
Além do quantitativo diminuto de estudantes, considerando o universo
composto por cerca de onze mil estudantes em toda a Rede Municipal de
Educação, é importante destacar que nem todos os estudantes trans matricu-
lados terminaram o ano letivo. A evasão é uma característica recorrente do
público da Educação de Jovens e Adultos, porém, no caso em foco, a transfobia
institucional corrobora para aumentar esse índice de desistência escolar.
A partir da análise documental (CELLARD, 2010) da Resolução e Parecer
municipais, evidenciou-se a importância do monitoramento da política pública
por gestores a fim de promover campanhas de divulgação, elaborar diretrizes
orientadoras para os profissionais da escola, determinar prazos para a inclusão
do nome social nos documentos escolares, incluir um campo específico para o
nome social nos formulários de matrícula, elaborar estratégias para a mediação
dos conflitos quanto ao uso do banheiro e promover ações de formação conti-
nuada docente sobre a temática.

3. Considerações finais: desafios permanentes da política pública

Sujeitos travestis e transexuais são figuras de embaralhamento no sistema


binário de masculinidades e feminilidades, seus corpos construídos artificial-
mente sugerem possibilidades de multiplicação de formas de gênero e de
sexualidade. A escolha do nome social revela o processo de subjetivação viven-
ciado pelos sujeitos em seus contextos históricos de vida, bem como agrega
valores identitários oriundos da vivência social, familiar, cultural e política.
Escolher um nome é romper com formas de dominação e produzir dispositivos
que operam para produzir novas maneiras de viver e pensar. A obrigatoriedade
institucional da inclusão do nome social e de seu uso nas relações interpessoais

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possibilita o acolhimento de outras subjetividades, colocando em xeque o sis-


tema sexo/gênero.
A análise documental das normativas revelou que essa política pública
educacional apresenta aspectos inovadores ao delinear novos modelos de ges-
tão pública embasados no enfrentamento a discriminação sexual e de gênero,
além de promover o reconhecimento da diversidade de sujeitos na instituição
escola. Entretanto, o dispositivo nome social não garante a inclusão de estudan-
tes travestis e transexuais na escola, dado seu caráter transitório e intermediário
entre o desejo do sujeito e a legitimação jurídica. Assim, ele pode ser tomado
como um mecanismo inicial e primário no reconhecimento político dos direitos
de cidadania da população trans, uma vez que funciona como uma espécie de
vitrine para as discussões políticas e a visibilidade social de travestis e transexu-
ais no Brasil.

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4. Referenciais

ALVES, Cláudio Eduardo Resende. Travestis e transexuais na escola: ressonâncias do


uso do nome social na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. In: Anais do
Fazendo Gênero 10: desafios atuais do feminismo. Florianópolis, 2013.

ALVES, Cláudio Eduardo Resende Alves. Um nome suis generis: implicações subjeti-
vas e institucionais do nome (social) de estudantes travestis e transexuais em escolas
municipais de Belo Horizonte/MG. 2016 . (Tese de Doutorado). Programa de Pós
Graduação em Psicologia da PUC Minas, Belo Horizonte.

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Resolução CME/BH Nº 002,


18 de dezembro de 2008. Dispõe sobre a inclusão do Nome Social de Travestis e
Transexuais nos registros escolares das escolas da Rede Municipal de Educação. Diário
Oficial do Município, Belo Horizonte, ano XV, edição nº 3386, julho 2009.

BENTO, Berenice. A Reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência


transexual. São Paulo: Espaço e Tempo, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e


Diversidade. Parecer Técnico MEC/SECAD Nº 141, 27 de novembro de 2009. Dispõe
sobre a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares de
estados e municípios brasileiros. Brasília. Disponível em: <http://www.abglt.org.br/
docs/MEC%20SECAD%20Parecer%20141%202009.pdf> Acesso em 12 de dezembro
de 2013.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CELLARD, André. A análise documental. In: POUPART, J. et al A pesquisa qualitati-


va:enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Ed. Vozes, 2010.

CÉSAR, Maria Rita de Assis. Um nome próprio: transexuais e travestis nas escolas bra-
sileira. In: Anais do XV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009.

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GOUVEA, Cleber e LOH, Stanley. Folksonomias: identificação de padrões na seleção


de tags para descrever conteúdos. In: Revista Eletrônica de Sistema de Informação.
Edição 11, nº 22, p. 1-8, 2007.

LIMA, Maria Lúcia Chaves. O uso do nome social como estratégia de inclusão esco-
lar de transexuais e travestis. 2013. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-SP, São Paulo

PROSSER. Jay. Second Skins: the body narratives of sexuality. Columbia University
Press: New York, 1998.

REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

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QUAIS SIGNIFICAÇÕES DA DIFERENÇA SÃO PRODUZIDAS


NOS PROJETOS PEDAGÓGICOS DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES? O APAGAMENTO DAS QUESTÕES DOS
GÊNEROS E DAS SEXUALIDADES

Denise da Silva Braga


Doutora em Educação –UERJ
Faculdade Interdisciplinar em Humanidades – Pedagogia/UFVJM

Bárbara Carvalho Ferreira


Doutora em Psicologia UFSCar
Faculdade Interdisciplinar em Humanidades – Pedagogia/UFVJM

Talisson Daniel Soares Leite


Graduando do curso de Bacharelado em Humanidades
Bolsista PIBIC/UFVJM

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

A pesquisa em curso se insere no campo do currículo e propõe a discussão


da diferença cultural: as significações fixadas nos documentos curriculares e
os sentidos produzidos na formação docente. Neste texto buscamos identifi-
car os componentes curriculares que tratam dos gêneros e das sexualidades
e as formas como a diferença cultural se torna conteúdo nos projetos peda-
gógicos (PP) das licenciaturas da Faculdade Interdisciplinar em Humanidades,
da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. A pesquisa se
caracteriza como documental e contempla as análises dos PPs de Geografia,
História, Pedagogia, Educação do Campo-LEC, Letras (Espanhol e Inglês). Após
as análises observou-se que apenas os cursos Pedagogia e LEC fazem menção
direta ao trabalho com gêneros e sexualidades.
Palavras-chave: licenciaturas; currículo; sexualidades; gêneros; diferença
cultural.

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1. Introdução

Esta pesquisa se insere no campo do currículo e propõe a discussão da


diferença cultural: as significações fixadas nos documentos curriculares e os seus
sentidos produzidos no espaço-tempo da formação docente. Compreendemos
que a dimensão formal não subsume todos os sentidos do currículo. Entretanto,
materializa e fixa sentidos que norteiam os processos de seleção dos conteúdos
a serem priorizados no ato pedagógico.
As licenciaturas constituem um lugar privilegiado para o trabalho com a
diferença como “princípio educativo”, trazendo para o currículo da formação
conteúdos que refletem a necessidade do reconhecimento e do tratamento pro-
dutivo da diversidade de culturas, dos diferentes processos de identificação e
pertencimentos culturais. Trata-se de compor o processo educativo, assumindo
que é preciso incorporar as relações entre currículo e cultura como traço fundante
da escola que reconhece a multiculturalidade e a diferença como elementos
constitutivos dos processos de ensino e de aprendizagem. Redimensiona-se,
assim, o sentido do próprio conhecimento (e do conhecimento escolar), plura-
lizando-o, acatando a possibilidade da sua produção e da sua ressignificação
para além da tradição iluminista que se mantém nas organizações curriculares,
principalmente no contexto da Universidade.
A pesquisa em curso, a qual se refere este trabalho, visa identificar os
componentes curriculares que tratam dos gêneros e das sexualidades e as
formas como a diferença cultural se torna conteúdo nos projetos pedagógi-
cos das licenciaturas da Faculdade Interdisciplinar em Humanidades (FIH), da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

2. Metodologia

A presente pesquisa, de abordagem qualitativa, se caracteriza como


documental, sendo adotados os seguintes procedimentos de coleta e análise
de dados: (a) apresentação da proposta de pesquisa à Direção da FIH; (b) aná-
lise dos Projetos Pedagógicos dos cursos de licenciaturas da FIH, Pedagogia,
História, Geografia, Letras/Inglês, Letras/Espanhol e Licenciatura em Educação
do Campo. Para tanto, os pesquisadores procederam a leitura individual de
cada projeto se atentando para a identificação dos discursos pedagógicos sobre
gêneros e sexualidades. Após esta etapa, foram discutidas as concordâncias e

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discordâncias, elaborados os indicadores e a análise do material, segundo os


aportes da análise de conteúdo de Bardin (2009).

3. Currículo, diferença, sexualidades e gêneros

O currículo escolar opera com fixações que objetivam comunicar e tornar


inteligível o conhecimento selecionado para compor o conteúdo da escola.
Estes sentidos fixados, no entanto, limitam as possibilidades de existência ao
que pode ser nomeado e descrito e, também, ao que politicamente se configura
como correto ou desejável. Desta forma, é comum que pessoas e modos de
vidas sejam interditados no espaço de legitimidade do currículo escolar porque
a sua existência, ainda que evidente e materializada, é tida como problemática,
desestabilizadora ou sem valor.
No entrelugar que se concretizou mediante as aspirações e as possibilida-
des da escola se encontram, de um lado, questões que evidenciam um projeto
de manutenção normatividade, baseado na repetição e na disciplina e; de outro,
a perspectiva de emancipação, de criação e de assunção da diferença. E, em
meio a outras tecnologias escolares, o currículo constitui-se como uma produ-
ção cultural que fabrica, materializa e ensina subjetividades que se mobilizarão
para além da experiência na escola. A escolarização produz, portanto, uma
individualidade autogovernada a partir de saberes do que é considerado verda-
deiro e socialmente válido, obtidos por meio do conhecimento acessado pelo/
no espaço-tempo escolar. São estes saberes que constroem e fazem funcionar
as regras que definem e resolvem os problemas aos quais os sujeitos se deparam
no mundo social, imprimindo as marcas do discurso escolar na reconfiguração
do espaço sociocultural.
Com a visibilidade aos poucos conquistada e com a necessidade da sua
enunciação, operar com a diferença requer que outros sentidos sejam ditos, tor-
nando possíveis outros modos de vida - até então ocultados ou marginalizados
no currículo da escola. Sendo assim, ainda que a tradição seja o pilar sob o qual
se organiza o currículo, como um “artefato cultural” ele não apenas reproduz,
mas pluraliza a noção de cultura, ampliando a possibilidade de pertencimentos
culturais passíveis de reconhecimento e de valoração positiva. Nesta perspec-
tiva, operar com a noção do currículo como cultura pressupõe redimensionar
o currículo e transcender a própria noção de cultura, ora entendida como lugar
de enunciação e não mais como um repertório partilhado de significados.

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Assim, apesar de o currículo operar como um dispositivo de controle, ele


é também o espaço-tempo no qual os sujeitos se articulam, disputam poderes,
subvertem os esquemas binários e recriam os sentidos do próprio discurso da
escola. Destarte, o currículo constitui-se como ato de significação da própria
cultura, como um discurso que constrói sentidos e que os dissemina. Trata-se
de um currículo concebido como um espaço-tempo cultural liminar (MACEDO,
2006), entrecortado pelos embates, pelas negociações, pelo poder – que tanto
servem para afirmar posições, quanto para deslocá-las, o que torna mais produ-
tiva a discussão das delicadas relações dos currículos escolares com a diferença,
sobremaneira quando o foco recai sobre as sexualidades e gêneros.
Presentemente aos questionamentos sobre a necessidade e as formas de
abordagem ou de incorporação da diferença aos currículos escolares, pensamos
que há indagações importantes a serem postas e que tem a ver, sobretudo, com
os sentidos que a diferença tem assumido nos discursos escolares: como sus-
tentar um discurso da diferença quando as próprias estratégias de lidar com ela
incluem a sua nomeação e, consequentemente, a sua inscrição em categorias
anteriormente descritas? Como os gêneros e as sexualidades se materializam
nos projetos escolares?
O direito de viver em uma “sociedade democrática” constituída pela plu-
ralidade, pelo convívio e interlocução na diversidade é pauta frequente nos
discursos correntes em todos os setores da vida social. Este direito é contem-
plado na legislação e nas políticas públicas que buscam implementar o princípio
constitucional da igualdade e da proteção dos sujeitos sociais contra qualquer
tipo de discriminação negativa. A relação da diversidade com a igualdade,
neste contexto, não é problemática, à medida que o reconhecimento da diver-
sidade se dá na perspectiva de um momento posterior, no qual as diferenças
sejam compatibilizadas em um espaço comum. Sendo assim, a diversidade não
resolve os problemas gerados pelas classificações e hierarquizações que deter-
minam lugares de pertencimento, ou de exclusão, das pessoas no espaço social.
Ela é, outrossim, apenas a demarcação do ponto do qual deve-se avançar.
Salienta-se, portanto, a necessidade de avançar do conceito de diver-
sidade em direção à diferença cultural que se assinala como o processo de
enunciação da cultura, ou seja, como “um processo de significação por meio
do qual afirmações da cultura e sobre a cultura diferenciam, discriminam e
autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capaci-
dade” (BHABHA,2007, p.63). Assim entendido, o conceito de diferença indica

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uma nova perspectiva epistemológica que aponta para o hibridismo e para a


ambivalência como constituintes/instituintes de processos de identificação e de
relações interculturais. O currículo que se postula para a educação hodierna é,
sobremaneira, espaço de emergência e de assunção da diferença.
No que concerne à escola, ressignificar as noções de diferença e desna-
turalizar os essencialismos identitários são pautas necessárias à produção de
uma política curricular que jogue com as múltiplas relações, imagens, espacia-
lidades, temporalidades nas quais as identificações podem ser vividas como
provisórias, abertas, híbridas. Noutra via, o apelo ao “respeito à liberdade e
apreço à tolerância” (BRASIL, 1999, p.39) e ao “[...] conviver com a diversidade
de forma plena e positiva” (Idem, p.322) expressam convites à homogeneização
e à utilização dos discursos da diferença como uma pedagogia normativa e nor-
malizadora. Ou seja, a diferença é sempre dada em relação a uma determinada
norma, a uma identidade autêntica e verdadeira, da qual “o outro” se diferencia
– tornando-se, este, signatário de uma prática “caridosa” de aceitação. Atinente
às afirmações de Skliar (2002), concordamos que a tolerância tem uma forte
relação com a indiferença, pois implica que o objeto tolerado é moralmente e
necessariamente inferior. Assim, a tolerância, ao menos, posterga o conflito ao
esmaecer a especificidade do outro, fazendo-o cúmplice do seu próprio ani-
quilamento, da invisibilização, marginalização e exclusão das suas identidades
como possibilidades de vida.
A necessidade e, mais recentemente, a obrigatoriedade do trabalho peda-
gógico com as sexualidades e gêneros na escola básica, principalmente a partir
da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,1997) requerem
a ação pedagógica das instituições que formam professores no trato da questão.
No entanto, ainda que os discursos afirmem a diferença como valor, no que
tange às sexualidades e gêneros, a disposição heteronormativa se mantém, sus-
tentada nos discursos naturalizados que circulam nos meios sociais.

4. Dados dos projetos

A partir da análise dos projetos, em relação às questões dos gêneros e das


sexualidades, constatou-se a completa omissão dos gestores institucionais no
que tange inclusão das temáticas nos planos pedagógicos, uma vez que, dentre
os seis projetos analisados, apenas dois abordaram, em seus textos, a diversidade

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e as questões de gêneros e de sexualidades: Pedagogia (UFVJM,2012) e LEC


(UFVJM,2014).
No PPC da Pedagogia foram explicitados os seguintes aspectos: a)
Objetivos Específicos - “Instrumentalizar o pedagogo para desenvolvimento e
organização de sistemas, unidades, projetos e experiências educacionais for-
mais e não-formais, percebendo a importância do trabalho com a diversidade e
a educação inclusiva” (p.10); b) Perfil do Egresso- “Demonstrar consciência da
diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étni-
co-racial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades
especiais, entre outras” (p.13); c) Competências e Habilidades, “Incorporar as
ações pedagógicas à diversidade cultural, étnica social e religiosa da sociedade
ao qual está inserida”(p.14) e “Capacidade para atuar no processo de escolariza-
ção indígena, respeitando a particularidade e diversidade cultural, promovendo
o diálogo entre conhecimentos, valores, modos de vida, orientações filosóficas,
políticas e religiosas próprias à cultura do povo indígena”(p.15).
No PPC da LEC observou-se a explicitação de um título na bibliografia da
disciplina Teorias de Currículos, o qual refere-se ao trabalho pedagógico com
gêneros e sexualidades.

5. Considerações finais

Os projetos pedagógicos analisados evidenciam o caráter predominan-


temente técnico da formação docente e, embora sinalizem a importância de
uma formação docente que dê conta das demandas emergentes no campo da
atuação profissional, não explicitam como tal objetivo será alcançado.
Nos projetos em tela, os exíguos conteúdos relacionados às identidades
não hegemônicas, à diferença cultural e aos aspectos particulares de determina-
das culturas e grupos, assim como a ênfase à base epistemológica da formação,
parecem acentuar que tais questões pertencem ao campo privado e pouco, ou
nada, perpassam o ensino. Ou, ainda, permitem inferir que a transversalidade
dos conteúdos que se destinam ao enfrentamento das múltiplas discriminações
e silenciamentos das culturas e grupos minoritários ou subalternizados não pre-
cisa ser formalizada nos projetos que estruturam a formação.
Assim sendo, as análises preliminares permitem inferir que a construção
de um projeto de formação, neste contexto, os projetos pedagógicos das licen-
ciaturas da FIH, apresenta como desejável um egresso/profissional professor

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capaz de lidar com a diferença. Entretanto, tal projeto de formação não se


materializa nas escolhas feitas em relação aos conteúdos selecionados para
compor o currículo. Além das inquietações em relação ao preenchimento das
lacunas verificadas na formação inicial, as nossas observações nos permitem
supor que no espaço-tempo da formação docente têm sido apenas referenda-
dos os saberes que os estudantes trazem consigo ao ingressar nas licenciaturas,
fazendo prevalecer concepções sobre o “outro” que favorecem a manuten-
ção das discriminações negativas. Em relação aos gêneros e sexualidades, o
apagamento das discussões no espaço de poder dos currículos, implica a per-
manência dos machismos, dos heterossexismos e o silenciamento das variadas
formas de violência, sobremaneira às populações não consonantes aos gêneros
e sexualidades hegemônicas. Dessa forma, a nosso ver, tais questões, negligen-
ciadas no espaço formal, são deixadas em um espaço transversal ideologizado,
do qual emergirão apenas alçadas pelas iniciativas individuais ou em situações
de conflito.

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Referências

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.

BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana L. L. Reis e Gláucia R.


Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Referenciais para formação de professores. Brasília/


MEC, 1999.

_______. PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais: Orientação Sexual. MEC,


Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

MACEDO, E. Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural. Revista Brasileira de


Educação, v.11, n.32, maio/ago. 2006. p.285-372.

SKLIAR, Carlos. Alteridades pedagogias. O...¿ Y si el outro no estuviera ahí? In:


Educação & Sociedade. Dossiê “diferenças”. Campinas: CEDES, n. 79, ano 23. p.
85-123. ag. 2002.

UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI-UFVJM.


Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia. Diamantina, janeiro 2012.

_______. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação no Campo.


Diamantina, 2014.

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GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DOCENTE:


CASOS E ACASOS

Patrick dos Santos Silva


Estudante de Graduação em Geografia
Universidade Federal de Viçosa
patrick.s.silva@ufv.br

Heloísa Raimundo Herneck


Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa
hherneck@gmail.com

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

As discussões relacionadas a gênero e sexualidade na educação, após vinte


anos, ainda tem como principal referência os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) e a inserção do tema transversal Orientação Sexual. Baseado nas orienta-
ções dos PCN, este texto tem como objetivo analisar a percepção de professores/
as e funcionários de uma escola pública, a respeito das questões sobre gênero
e sexualidade. Para isso foram utilizados casos com situações relacionadas ao
tema. As análises dos casos demonstraram uma preocupação em não agir com
preconceito e proporcionar a aceitação de todos os/as educandos/as. Todavia,
algumas situações evidenciadas nas falas dos/as professores/as e funcionária
acabam evidenciando o despreparo para lidar com as situações diversas sobre
sexualidade que possam ocorrer.
Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Educação; Orientação Sexual; Currículo.

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Introdução

As temáticas relacionadas a gênero e sexualidade sempre foram e ainda


são um grande tabu na sociedade brasileira, e no âmbito da educação isto não
é diferente. A inserção do trabalho com orientação sexual nas escolas brasilei-
ras foi impulsionada por políticas educacionais como a criação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN – 1997 e 1999), o programa Saúde e Prevenção
nas Escolas (SPE – 2003), o programa Brasil sem Homofobia (PBSH – 2004) e
o Gênero e Diversidade na Escola (GDE – 2006) (UNESCO, 2014). Não pode-
mos desconsiderar também a importância dos movimentos sociais, como o
Movimento de Mulheres e o Movimento LGBT.
Partindo das discussões sobre gênero e sexualidade e, amparados/as na
Constituição Brasileira de 1988, que não aborda diretamente as questões sobre
gênero e sexualidade, mas em seus artigos deixa espaços que nos permitem
adentrar com esse debate em escolas, este trabalho tem como objetivo anali-
sar a percepção de professores/as, por meio de conversas sobre situações que
podem surgir na sala de aula, relacionadas a esta temática. O intuito é chamar
a atenção para a importância da temática na formação docente.
A relevância está no fato de os/as docentes, quando formados continua-
mente sobre temáticas diversas, possam agir com responsabilidade sobre essas
dimensões, como a sexualidade, proporcionando o conhecimento e aceitação
do próprio corpo, independente das diferenças que possam existir.
A finalidade do trabalho de Orientação Sexual é contribuir para
que os alunos possam desenvolver e exercer sua sexualidade com
prazer e responsabilidade. Esse tema vincula-se ao exercício da
cidadania na medida em que propõe o desenvolvimento do res-
peito a si e ao outro e contribui para garantir direitos básicos a
todos, como a saúde, a informação e o conhecimento, elementos
fundamentais para a formação de cidadãos responsáveis e cons-
cientes de suas capacidades (BRASIL, 1998, p. 311).

A pesquisa foi realizada em uma escola pública localizada na cidade de


Viçosa, MG. Participaram uma professora de Português, uma professora de
Biologia e um professor de Matemática. Também convidamos a participar da
atividade uma auxiliar de serviços gerais, pois levamos em consideração que

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no ambiente escolar não apenas os/as professores/as são educadores/as, mas


todos/as que fazem parte da comunidade escolar.
Apresentamos cinco situações1 para os/as participantes, e estes deveriam
comentá-las, apresentando suas considerações. As situações analisadas foram as
seguintes: a) “Quando decidi voltar a estudar, cheguei à escola e me apresentei
ao diretor. Ele disse que já tiveram alunas transexuais e não haveria problema.
Eu teria meu nome feminino na chamada. Então eu relaxei! No primeiro dia o
professor foi fazer a chamada e chamou “Renato”. Eu não respondi. Falei com
o diretor e ele colocou o nome feminino no dia seguinte. Mas ficaram os dois
nomes na chamada. Um professor vivia fazendo piadinhas e insistia em me
chamar de Renato” (BORTOLINI, 2008); b) Pedro contou para a supervisora da
sua escola que era gay. Ela disse que não tinha problema, ele teria apenas que
não “dar pinta”; c) Um garoto, de aproximadamente 14 anos, estava na sala de
aula, quando se levantou e foi até a mesa da professora, levando nas mãos um
saquinho para geladinho e uma régua pequena. Pondo essa última dentro do
saquinho, disse: “Olha professora, não parece que eu estou pondo a camisinha
no pênis?” A professora respondeu: “É, parece! Mas vai se sentar, pois isso não é
um pênis e nem isso, uma camisinha!” (FIGUEIRÒ, 1999); d) Vilma é professora
de Geografia. Na escola em que trabalha, ao perceber que muitas adolescen-
tes estavam engravidando, ela convidou uma enfermeira para ensinar métodos
contraceptivos para os/as estudantes; e) Na aula de Matemática, uma aluna do
sétimo ano perguntou a professora o que era “punheta”. A professora disse que
aquele não era o momento correto e que na próxima aula conversariam sobre
isso.
Todas as opiniões foram gravadas, com autorização dos/as participantes
para depois serem analisadas. Em “Casos e acasos, nas situações colocadas aos/
as docentes” analisaremos cada situação individualmente, nos referindo aos/as
professores/as por nome da disciplina que leciona. Após, apresentaremos nos-
sas considerações e por fim as referências.

1 Todos os casos foram coletados de materiais sobre gênero e sexualidade.

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Casos e acasos nas situações colocadas aos/as docentes

Defendemos que a educação é a medida para amenizar o preconceito,


uma vez que um dos principais motivos da intolerância são o desconhecimento
e incompreensão do diferente. Como direito, é apresentado que “a educação
é dever de todos” (BRASIL, 1988), e entendemos que assim seja independente
das particularidades de cada pessoa, sejam elas sexuais ou não.
Na primeira situação apresentada (letra a), dos quatro participantes, três
deles disseram que chamariam a aluna pelo nome que ela quisesse. Apenas
uma das professoras que apresentou um posicionamento diferente dos demais,
relatando que chamaria pelo nome de registro:
Eu conversaria com ele primeiro: - Eu vou te chamar assim por-
que no seu documento está assim”. Porque eu estou velando um
documento e eu não tenho essa autonomia, né? Mas ... conversaria
com ele primeiro, não tenho nada contra ele ser transexual. Pelo
contrário, respeito, admiro a pessoa assumir a transexualidade, mas
eu, mudar por mudar, sem o documento dele estar mudado, eu não
tenho esse direito, mas eu conversaria com ele antes pra que ele
não fique constrangido. (Professora de Biologia).

A professora, apesar de dizer ter uma postura admirada pelo posiciona-


mento do aluno, ela não o chamaria pelo nome de escolha por questões legais.
Referente a esta situação, Bortolini (2008) defende que um/a professor/a que se
recusa chamar o/a aluno/a transexual pelo nome correspondente a sua identi-
dade de gênero na verdade não está querendo, mesmo que inconscientemente,
reconhecer a identidade do/a educando/a. Um exemplo que ele nos da é que,
caso um/a aluno/a cisgênero/a tivesse um nome de difícil pronunciar ou que
pudesse gerar comentários ofensivos por parte dos/das demais, os/as professo-
res/as poderiam optar chamar por um segundo nome, ou até mesmo por um
apelido. A negação da identidade de travestis e transexuais é um dos fatores que
são retratados frequentemente em trabalhos sobre transexualidade no ambiente
escolar como motivo de evasão.
Na situação b, três dos/as participantes entrevistados/as acreditam que a
atitude controladora da professora seria a melhor: o aluno pode ser gay, eles
enquanto professores/as não veem problema, respeitam, mas o único problema
é “dar pinta”. A auxiliar de serviços gerais relatou que teria amizade, conversaria,

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trataria bem da mesma maneira. Mais uma vez, um posicionamento interessante


é o da professora de Biologia, que, tentando ressaltar que não vê problema na
sexualidade dos/as educandos/as, considera que estes/as teriam que ter um tipo
de comportamento referente a sexualidade que não gerasse “problemas” na
classe.
O ser gay, o homossexualismo, pra mim não tem problema nenhum,
mas eu não ia falar pra ele não dar pinta. Eu ia falar com ele: - É gay?
Respeito tudo, só não quero que você, por eu saber que você é e
eu respeito você ache que você tem que gritar pra sala inteira, fazer
escândalo. Eu acho que você é aluno como os outros, então eu te
respeito, tenho nada contra, poderia até ter filho gay. Eu tenho uma
filha, eu não sei o que ela vai ser, eu não tenho nada contra isso
não, agora o que as pessoas às vezes confundem é que o menino
admite, ou uma menina, que é gay e arruma aquela bobeirada, isso
é infantilidade deles, isso eu não admito não. Aceito e converso
com ele, mas o tal de dar pinta, se ele é gay, ele vai ser gay sempre.
Não tem esse tal de dar pinta, né? (Professora de Biologia).

Percebemos na fala da educadora a normatização dos corpos que a escola


tende a conduzir. “Você pode ser gay, contando que não ‘der pinta’”. Todavia,
o que seria “dar pinta” para esses/as professores/as? Na fala da professora, per-
cebemos que o “dar pinta” seria uma maneira de se comportar do educando
que chamasse atenção para a sua sexualidade, que evidenciasse aspectos de
seu interesse por outros rapazes. Ao ser apresentada esta mesma questão para o
professor de matemática, o mesmo relatou sobre um evento ocorrido na escola
onde dois casais homossexuais (um de gays e outro de lésbicas) se declararam
em uma dramatização de uma oficina, expondo desta maneira uma situação que
poderia ocorrer no ambiente escolar, fugindo da representação e fazendo parte
do cotidiano da escola. Enquanto pesquisadores, nos questionamos então se a
possibilidade de troca de afeto entre pessoas do mesmo sexo seria uma forma
de “dar pinta” para a professora de Biologia. Seria este extremo um exagero?
Referente a terceira (c) e quarta (d) situação apresentada, a professora de
Português acredita que agiria da mesma forma em ambas as situações, pois não
se sente preparada para responder dúvidas a respeito destas questões e que
seria mais apropriado que estes questionamentos fossem abordados nas aulas
de Ciências e/ou Biologia. O posicionamento da professora de Biologia também
foi igual, porém, na situação (c) ela relatou que questionaria ao aluno se ele

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sabia usar o preservativo e explicaria para ele. Quando questionamos se ela o


faria na frente dos demais ou individualmente, disse que “individualmente, pois
esses casos de sexualidade eu, no meu modo de ver, não deve ser tratado, a não
ser o tema de sala de aula. Em casos isolados ele tem que ser tratado isolado”.
Embasados em nossas referências bibliográficas, Figueiró (1999) defende
que nesta situação seria uma boa oportunidade para os/as professores/as con-
versarem com os/as alunos/as sobre sexualidade. No senso comum acredita-se
que os assuntos pertinentes à sexualidade devem ser tratados apenas com pro-
fessores/as de Biologia ou Educação Física, porém, não é desta maneira que os
PCN apresentam.
O PCN (1997) aborda que a Orientação Sexual pode ser feita por qualquer
educador/a, sendo estas situações propícias para um/a educador/a de qualquer
área interferir no debate, desde que se sinta preparado/a para isso. “O impor-
tante é que seja alguém que tenha bom contato com os alunos e, portanto,
um interlocutor confiável e significativo para acolher as expectativas, opiniões
e dúvidas, além de ser capaz de conduzir debates sem impor suas opiniões.”
(BRASIL, 1997, p. 332).
Na última situação discutida (e), a professora de Português disse que a
professora da situação “falou isso pra fugir do assunto”, porém, quando apre-
sentado pela equipe que na próxima aula ela realmente conversou com os/as
alunos/as, ela disse que deve ser uma medida para atenuar as discussões que
desviassem do objetivo principal da aula. O professor de Matemática não ava-
liou a situação, mas disse que situações parecidas já haviam ocorrido com ele,
mas de forma individual, com os alunos recorrendo a ele no horário posterior
da aula. Neste caso, o professor acredita que esta procura é devida também a
sua formação em Psicologia.
A professora de Biologia nesta questão apresentou um comportamento
bem próximo do que nos é recomendado nos PCN,
Aqui, independentemente da área do professor, eu esclareceria o
que era a punheta. Pegaria o dicionário, pediria o aluno pra ler
pra mim o que era e colocaria o usual. Mas sem arrogância para
o aluno que falou e sim pra sala toda. Lógico que vai dar risada e
tudo, mas você respeita e esclarece. Porque quando você vira as
costas, o aluno ganha força na sala de aula e você perde o respeito
deles. Mas depois se cada aluno tivesse dúvida eu pediria que fosse
em particular, fora do horário da aula, de modo que não atrapalhe

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aula de Matemática. Mas se eu ver que a coisa cresceu muito, eu


como professora de Matemática pediria ajuda ou a um professor
de Biologia ou Psicólogo. Alguém que tivesse uma linguagem ade-
quada (Professora de Biologia).

De acordo com Chaui, Kehl e Werebe (1981) o trabalho com orientação


sexual no ambiente escolar poderia ser concebidas de duas maneiras: formal e
informal. A formal seria aquela sistematizada, onde existiria uma programação
fixa para se trabalhar com sexualidade nas escolas; a informal seria aquela em
que não precisaria de um sistema fixo de abordagem, cada professor/a poderia
intervir para se trabalhar com sexualidade esporadicamente, como ocorreu na
situação e da maneira que a professora de Biologia argumentou que faria.

Considerações finais

Podemos constatar que na Escola os/as professores/as e a auxiliar de ser-


viços gerais participantes da pesquisa tentam se relacionar com os alunos da
melhor maneira possível, sem preconceitos e tratando todos igualmente.
Como relatado pelo professor de Matemática, existem momentos na escola em
que a temática de gênero e sexualidade é discutida, como no caso da gincana
onde os casais gays se declararam.
No processo de educação sexual, os/as professores/as não se sentem con-
fortáveis na maioria das vezes para um debate por não estarem preparados
para tal. Assim sendo, um processo de sensibilização e de diálogo com os edu-
candos torna-se de extrema importância, pois muitos educadores/as possuem
a vontade de abordar estas questões, mas não sabem a melhor maneira de
conduzir. Atitudes percebidas nas análises das situações contrárias ao que é
recomendado pelos/as PCN aos docentes, muitas vezes ainda ocorre devido
ao desconhecimento e despreparo do/a educando/a de como agir, que “se, de
um lado, a manifestação da sexualidade e o desejo de saber dos alunos têm-se
acentuado cada vez mais, de outro, isso passa a ser um fator intrigante para o
próprio educador”, que carrega consigo “inseguranças, dúvidas, desconheci-
mento, medos e tabus, frutos de sua própria história e de sua precária educação
sexual”. (FIGUEIRÓ, 2006, p. 1993)

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Referências

BORTOLINI, Alexandre. Diversidade sexual na escola, Pró reitoria de extensão/UFRJ,


Rio de janeiro, 2008.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ter-


ceiro e quartos ciclos: apresentação dos temas transversais. Secretaria de Educação
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ISBN 978-85-61702-44-1 705 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

NARRATIVAS E MEMÓRIAS DE JOVENS SOBRE SUAS


CONSTRUÇÕES SUBJETIVAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE
NO PROCESSO EDUCATIVO TOCANTINENSE

Marcos F. G. Maia
Mestrando em Educação - Universidade Federal do Tocantins
marcosmaia@uft.edu.br

Damião Rocha
Doutor em Educação - Universidade Federal do Tocantins
damião@uft.edu.br

Jocyléia Santana
Doutora em História - Universidade Federal do Tocantins
jocyleiasantana@gmail.com

GT 15 - Intersecções entre gênero, sexualidade e o curso da vida

Resumo

Aborda-se a memória da vivência da sexualidade no processo educativo tocan-


tinense de dois jovens. As vivências de um gay e uma lésbica são narradas
com o auxílio da perspectiva metodológica da História Oral. Percebeu-se que
a vivência da sexualidade dessas duas pessoas foi perpassada por diversos mar-
cadores sociais: classe social, renda e raça-etnia. Tanto na educação básica,
quanto na educação superior, de acordo com a reconstrução das memórias
dos/as entrevistados/as foi possível perceber dois momentos: um mais violento,
na educação básica, e outro de maior liberdade, mas não sem preconceitos,
na educação superior. Conclui reforçando a necessidade de que sexualidade,
gênero e raça-etnia sejam tratados nas escolas de ensino fundamental e médio
a partir de uma perspectiva interseccionada.
Palavras-chave: Educação. Tocantins. Memória. Diversidade sexual, de gênero
e étnico-racial.

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Introdução

Este texto apresenta a narrativa de duas pessoas sobre suas vivências da


sexualidade e do gênero. João Paulo nasceu em 1992, homem gay branco,
cursou a educação básica no Colégio Marista e vem cursando Engenharia Civil
na Universidade Federal do Tocantins. Daniele Braga, mulher negra, nasceu
em 1985, concluiu a educação básica no Colégio Objetivo, e a graduação
em Comunicação Social – Jornalismo, também na Universidade Federal do
Tocantins. Eles não se conhecem, mas suas experiências e vivências têm muito
a dizer em comum: elas gritam as diversas formas de violências às quais foram
submetidas no processo social da educação.

Gênero e sexualidade: intersecções entre si e com outros


“novelos”

Entendemos que gênero é uma forma primária de dar sentido às relações


sociais com base nas diferenças apreendidas entre os corpos (SCOTT, 1995).
Gênero não é inscrição cultural sobre um corpo biológico; mas um aparato
histórico e social que afirma existir algo pré-cultural ao qual a sociedade daria
valor e sentido (BUTLER, 2013). Entendemos que gênero é o processo histórico
e cultural que faz separação e que constrói relações engendradas.
Nesse processo do “saber” sobre o corpo (NICHOLSON, 1994), nos
aproximamos da sexualidade não como algo dado, uma pulsão básica da vida
humana (WEEKS, 2000). Entendemos sexualidade como um processo de cons-
trução sobre verdades e usos dos prazeres do corpo; como um “dispositivo
histórico” do saber-poder sobre os corpos e seus prazeres (FOUCAULT, 2006).
Nem gênero, nem sexualidade são dados separados de quaisquer outras
formas de socializações, de produções de subjetividades (GUATTARI; ROLNIK,
2005), marginalizadas ou hegemônicas. Esses conceitos se interseccionam com
outros conceitos e outras discriminações tais como as baseadas na classe e na
raça-etnia. “[...] a interseccionalidade da discriminação chama a atenção para
o resultado da articulação das diversas discriminações, tais como raça, sexo,
classe, orientação sexual e deficiência” (RIOS, 2009, p. 59).

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As vivências do gênero e da sexualidade em forma de narrativas


orais

A História oral narra outras versões para além das fontes dos cânones
sagrados da história positivista (BARROS, 2010). Não é uma metodologia de
construir biografias (AMADO; FERREIRA, 1998). Por outro lado, nos faz lembrar
que por entre estruturas e conjunturas “há pessoas que se movimentam, que
opinam, que reagem, que vivem” (ALBERTI, 2004, p. 14). É um reencontro com
a humanidade, com o ser, com o indivíduo muitas vezes homogeneizado em
dados estatísticos, ditos históricos. É um destacar a substancialidade e subjeti-
vidade daqueles que fazem A História, i.e., os seres humanos que dão sentido
às suas vivências.
A vivência da sexualidade não se dá unicamente no corpo do sujeito.
Dá-se também no social, na família. Tanto para Daniele quanto para João
Paulo a relação ser-homossexual-e-família foi invasiva, até mesmo forçando o
“ser-homossexual”.
“Eu sempre…1 via algo diferente em mim desde pequeno, enten-
deu, ai quando eu tava com a cabeça um pouco mais feita, entre
aspas, por volta dos 10, 11, 12 anos ai que eu descobri o que que
era isso, entendeu. [... ele só contou para a irmão, que não o respei-
tou e]contou pros meus pais. Eu tive que… eu neguei até a morte.
Mas ai quando eu falei assim, não tem jeito, ai minha vida tomou
um outro rumo. Isso ai eu já tinha terminado o terceiro ano. Já ia
entrar no cursinho, ai minha irmã falou e ai tomou outro rumo. O
antes e o depois. Tem suas coisas boas e ruins” (João Paulo).

O processo de saída do armário de João Paulo passou por um processo


invasivo, a irmã o força a sair e contar para os pais. Para Daniele Braga o caso
se assemelha um pouco.
“Com 15 anos uma tia minha foi mexer nas minhas coisas e pegou
uma cartinha de uma menina pra mim e assim, foi meio que eu fui
meio que arrancada do armário, então foi beeeem.... traumático
assim pra mim, digamos que afetou ate a minha forma de me rela-
cionar com os outros” (Daniele Braga).

1 Reticências significam pausas nas falas. Quando houver corte, ou interpolação, estamos usando
colchetes.

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Tanto na narrativa de João quanto de Daniele aparece a necessidade de se


impor, se mostrar para além de ser homossexual, como se precisassem justificar
e mostrar que eles são mais do que seus desejos (ERIBON, 2008). Isso não se
deu somente em casa, na família, mas também no processo educativo, tanto na
educação básica quanto na educação superior.
Em todas as suas palavras aparecem casos de violências e sofrimentos.
“A escola é violenta demais, em todos os aspectos”, diz João Paulo, se refe-
rindo ao seu período de ensino médio. “Eu tive sérios problemas em relação a
auto-estima por causa desse período [da escola] que eu to resolvendo agora na
análise, 15 anos depois”, afirma Daniele ao falar de seu processo de vivência na
escola básica, afirmando que foi vítima de preconceito não somente em relação
à sexualidade, mas também quanto ao padrão estético da beleza e racismo.
Daniele é uma mulher negra: “quando eu tava na escola... eu era uma das três
pessoas negras dos três terceiros anos. Ok. Então eu não tava dentro do padrão
de beleza” (Daniele Braga). Isso demonstra as relações entre as diversas formas
de produção subjetividade (GUATTARI; ROLNIK, 2005).
O sofrimento desses jovens se deu num processo de isolamento, solidão
(ERIBON, 2008). Na experiência de João Paulo, ele afirma que sofria bullying,
mas não falava pra ninguém.
“Então tipo assim, não falava pros meus pais, não tinha onde dividir,
imagina eu falar pros meus pais... assim.. eu não falava pra coorde-
nação, não falava nada, era eu e eu. Ate depois foi uma coisa assim,
meio só minha. Eu trago isso pra minha vida hoje, fico só …” (João
Paulo)

Para Daniele também não foi diferente:


“E eu já sabia que gostava de meninas, mas não sabia como lidar
com isso em relação a sociedade, entendeu, e .... e ai foi com-
plicado pra mim.... porque..... quando eu tinha 15 anos não tinha
ONG LGBT.... era eu sozinha.… [...] até perdi alguns amigos por eu
ter me distanciado... com medo de contar e perder.... assim acabei
me afastando… com medo de perder as pessoas... você acha que
você tem alguma coisa errada e que as pessoas não vão ser suas
amigas, então, eu tinha esse processo de isolamento, então eu vivi
menos coisas eu acredito por causa desse isolamento” (Daniele
Braga)

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Apesar desse isolamento, fica evidente na fala de Daniele que ela con-
seguiu com mais facilidade lidar com a questão da sexualidade na escola,
diferentemente de João Paulo. Ela afirma que conseguiu namorar alguns meni-
nos para “disfarçar” e dai as pessoas não pegavam tanto no pé dela. Já no caso
de João Paulo não foi possível já que ele transparecia com mais facilidade:
“Alguns amigos de sala se percebiam enquanto homossexuais, mas
não declaravam, mas eles se “reconheciam” enquanto homosse-
xuais: “é aquela coisa, que nem eu falei pra você que de amigos,
tipo assim, ninguém falava pra ninguém, mas entre a gente, a gente
sabia, aquela coisa de identificação” (João Paulo).

Apesar de ele estar se referindo ao processo de inter-idenficação entre os


alunos e alunas homossexuais, os outros alunos não-homossexuais conseguiam
“identificar” aqueles que eles julgavam ser homossexuais e faziam prática de
insultos, violências:
“eu sempre era chamado o viadinho do time, eu ia sacar, ouvia o
viadinho, no fundo o povo falando e tal.[…] teve o outro episódio
que a gente viajou no Marista pela Copa… Em 2010... Ali no norte
do Goiás a gente parou pra almoçar, e não tem aqueles arbustos
que tem umas frutinhas laranjas? ... Então o pessoal levou isso pra
dentro do ônibus. Ai beleza. Ai a gente sentou lá na frente. E ai,
a gente conversando de boa lá entre a gente e eles começaram a
jogar aquele negócio, e tipo, ficaram jogando. Eu falei que idiota,
ne. Só que dai eu fui descobrir o que era a brincadeira deles: era
tipo assim: era quem acertava o viadinho, entendeu? Tipo e cada
um valia mais, e tinha isso, entendeu, e ai isso foi a brincadeira deles
dentro do ônibus. Ai eles fizeram isso, acabou as bolinhas… e ai,
tipo assim, eu tipo não ia no banheiro do ônibus. Se um fosse lá,
ai eles fechavam e faziam cuecão (puxar a cueca pela ponta para
cima para machucar o anus) nas pessoas” (João Paulo).

Após essa vivência nas escolas de educação básica, tanto João Paulo
quanto Daniele Braga foram estudar na Universidade Federal do Tocantins
(UFT). Eles não estudaram na mesma época. Daniele já se formou e João ainda
está cursando. Porém, parece que os dois tiveram vivências positivas em rela-
ção à sexualidade no ambiente universitário. Fazendo referência a esse período
Daniele afirma que “na faculdade foi perfeito”.

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Para João Paulo o ambiente universitário era:


“...o momento de mostrar quem eu sou, entao tipo assim, hoje eu
nao sou conhecido por Joao Paulo viado, homossexual, gay... entao
hoje eu sou conhecido João Paulo monitor, entao eu precisei mos-
trar o outro lado, ser visto pela inteligencia, o respeito veio por
ai. Entao tipo assim, por eu ganhar o respeito por isso, entao tipo
assim, eu junto com os meninos, os heteros, ne e tal e eu posso con-
versar, desmunhecar, fazer tudo e tipo assim é uma coisa normal,
eles aceitam normal. Eles veem outra coisa na frente, é uma coisa
mínima do que eu sou, entendeu…” (João Paulo)

Parece que na universidade ele conseguiu mostrar (e os outros consegui-


ram ver) as outras facetas de sua identidade para além de seu desejos, neste
ambiente ele era reconhecido pela inteligência e por outras habilidades e não
somente por um único aspecto de sua identidade. Entretanto, parece que essa
liberalização da sexualidade não é tão aberta assim:
“e... eu acho que eles também, na faculdade por exemplo, eles gos-
tam daquelas pessoas que... colocam a cara no sol, vamos dizer
assim, o tanto que quem os incubados na engenharia, eles sofrem
assim, muito. Hoje na faculdade eu vejo que eles tem mais bullying
com as pessoas que não se assume, entendeu, do que com aqueles
que já são assumidos, que já sabem o que é da vida” (João Paulo).

O preconceito parece estar invertido, ou de força ainda maior. Parece que


a violência estabelecida é aquele que força o indivíduo a ser o que o outro acha
que ele é, sob a sua ótica. Isto aparece na fala que de os “incubados”, ou seja,
aqueles que não saíram, ou não querem sair do armário são forçados a fazê-lo.
“na faculdade foi perfeito. Foi o período legal. Porque foi o período
que eu pude viver a sexualidade. Porque quando eu tava na escola...
eu era uma das três pessoas negras dos tres terceiros anos. Ok.
Então eu não tava dentro do padrão de beleza. [...]Só que quando
eu entrei na faculdade me tornei uma pessoa interessante. [...]Na
faculdade as pessoas estão mais abertas a vivências de coisas dife-
rentes. [...]eu era liderança do movimento estudantil, porque todo
mundo me conhecia, a minha voz era escutada, eu conhecia todo
mundo, ai você é interessante, ai você fica com as pessoas, é total-
mente diferente. A faculdade foi o período que eu me senti mais

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aceita no mundo.... eu percebi que as pessoas poderiam ser legais,


que eu poderia conhecer pessoas legais. [...] a faculdade acho que
foi um período até bom pra que eu recuperasse minha auto-estima,
pra que eu visse que as pessoas valorizam outras coisas como a
inteligência.... né... que estão abertas a ver.... a... sei lá... se interes-
sar por outros padrões de beleza” (Daniele Braga).

Foi na faculdade que Daniele pode se sentir aceita e pertencida.

Considerações finais

Historicizamos as vivências de um homem gay branco e uma mulher


lésbica negra: subjetividades diversas, mas que se entrelaçam nas vivências vio-
lentas nas escolas em que estudaram; como vítimas desse processo ou como
testemunhas de fatos com outras pessoas. Preconceitos por origem social, cor
de pele e até mesmo pelo exercício do desejo. O que mais chamou atenção
é que muitas vezes as violências sofridas foram imputadas pelos outros até
mesmo antes da afirmação de qualquer identidade de gênero, sexual ou racial
(ERIBON, 2008; TREVISAN, 1986).
O sofrimento latente nas falas acima, tanto na educação básica, quanto na
superior, nos chama atenção para a necessidade de se trabalhar a temática da
diversidade sexual, de gênero e racial no processo educativo tocantinense com
vistas a amenizar as segregações e violências com base nas diferenças entre as
pessoas.

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IDENTIDADES SEXUAIS E DE GÊNERO E MOVIMENTAÇÃO


DISCENTE: (RE)EXISTÊNCIAS QUEER

Neilton dos Reis


Mestrando em Educação
Programa de Pós-graduação em Educação/UFJF
neilton.dreis@gmail.com

GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa

Resumo

Neste texto, apresento um ensaio acerca das movimentações políticas de estu-


dantes jovens, no qual destaco o processo educativo dessas como privilegiado
para socialização e, logo, para a manutenção ou (des)(re)construção de signos
e significados que permeiam as identidades. Parto de narrativas relatadas por
jovens estudantes Ensino Médio do Rio de Janeiro, que possuem identificações
identitárias diversas para o gênero e sexualidade, construídas em uma roda de
conversa sobre gênero, sexualidade e movimentação estudantil realizada em
uma das escolas públicas ocupadas por tais estudantes no mesmo estado, em
2016. Busco debater as identidades sob uma perspectiva das teorias queer, res-
saltando a socialização como construtora de identidades e diferenças.
Palavras-chave: saber discente; identidade; diferença; movimento estudantil;
Teoria Queer.

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Introdução

Esse artigo nasce de inquietações iniciadas na pesquisa Diversidade de


Gênero e ensino de Biologia: casos de prazeres e corporeidades não-binários e,
mais tarde, revividas na construção da roda de conversa Gênero, sexualidade
e movimentação estudantil. Tal roda objetivou motivar a discussão acerca das
identidades e diferenças sexuais e de gênero, bem como as relações construídas
entre as/ou participantes daquelas movimentações e ocorreu em uma escola
ocupada no interior sul do estado do Rio de Janeiro, contando com a participa-
ção de nove estudantes com identidades sexuais e de gênero diversas.
O movimento de ocupação de escolas públicas do estado do Rio de
Janeiro por estudantes do Ensino Médio se iniciou no dia 21 de março de 2016
e visou melhorias nas instituições e mudanças no sistema de ensino (MARTÍN,
2016). A organização do cotidiano escolar em uma escola ocupada acontecia em
assembleias onde proposições de atividades eram aceitas/rejeitas. A atividade
proposta em formato de roda de conversa seguiu um roteiro semiestruturado
com temáticas que perpassavam as identificações pessoais, as aproximações
com a temática central abordada e exemplos de casos – fictícios ou não – que
se relacionassem às relações de gênero e de diversidade sexual na escola. Com
duração de 1h10min, também foi possível conversar um pouco sobre as rela-
ções que estavam em construção durante o movimento de ocupação.
Conduzo a construção analítica desse texto na relação entre as narra-
tivas de estudantes e os referenciais teóricos que se propõe a discussão dos
movimentos de juventudes, das construções de identidades e diferenças e das
relações de gênero. Objetivo aqui um levantamento de pontos que relacionem
as potencialidades do transitar de políticas, relações e identidades com uma
Educação Básica mais inclusiva e representativa das juventudes.

Quantas são as pessoas, quantas são as experiências

Para pensar as identidades sexuais e de gênero das pessoas que participam


de movimentações estudantis e, para além, pensar a influência desse tipo de
socialização nas identificações pessoais, parto da definição de gênero, sexo e
sexualidade já expostas em trabalhos anteriores (DOS REIS et al, 2016). Assim,
por gênero compreendo como a multiplicidade de discursos, produtos e produ-
tores de cultura, acerca do que seja ser homem e ser mulher. A identidade de

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gênero se caracteriza na concepção individual de sou homem, sou mulher ou


sou um gênero a parte dessas opções. Identifico sexo como um dado cultural,
no campo científico, estabelecido para designar a natureza dos corpos. Como
defende Judith Butler (2003, p. 25) um “efeito do aparato de construção cultural
que designamos por gênero”. E, enquanto sexualidade, podemos observar seus
mais distintos aspectos biológicos, históricos, culturais, assim como as relações
construídas entre tais aspectos e diferentes indivíduos. Com isso, também são
várias as possibilidades de uma vivência da sexualidade e essa vai variar de cul-
tura a cultura, dentro dessas de gênero a gênero, de idade a idade, dentre outros
aspectos político-sociais.
Apesar de todas essas definições estarem, aqui, delimitadas em contornos a
partir de escolhas teóricas, todas ainda se constituem em um campo de dis-
puta: disputa de termos, definições e aplicações. Isso fica claro tanto quando
do levantamento bibliográfico do campo dos estudos de gênero e sexualidade,
quando das narrativas: quantas são as pessoas, quantas são as experiências,
identidades e identificações.
Jovem 1: Sou gay... mentira [risos]. Eu não vou contar, mas eu vejo
algumas coisinhas assim que eu não gosto [olhando para dois meni-
nos gays]. Assim, eu estou morando aqui. Não namoro por opção.
Tenho 21.
Jovem 2: Tenho 19 anos. Meu estado civil é um pouquinho compli-
cado de se explicar. É porque eu não namoro, mas também não to
solteira, tá ligado? Gosto de homem, não tenho preconceito.
Jovem 3: Sou hétero. Não tenho preconceito, mas eu não acho
normal. Enfim, minha opinião.
Jovem 4: Tenho 18 anos. Sou comprometido. E sou bi. Não passo
fome.
Jovem 5: Estou solteira. Sou lésbica e namoro com meninos.
Jovem 6: Tenho 18 anos. Estou solteiro. Orientação sexual:
indefinido.
Jovem 7: Eu tenho 23 anos. Quer dizer, eu tinha 22, fiz 23 agora dia
12. Levei uma bela de uma ovada.
Jovem 4: Mas você é homem, gay, quase mulher...?
Jovem 7: Eu sou viado-hétero.
Jovem 8: Eu tenho 18 anos. Eu sou hétero [em tom de brincadeira]
e estou comprometido, em um caso complicado, com umas três
pessoas na minha vida. Estou indeciso. Eu sou contra as pessoas

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que acham que isso não é normal. Deixa quieto que isso aqui eu
vou resolver com ela [olhando para Jovem 3] depois no particular.

Logo no momento inicial percebemos que as identidades sexuais (geral-


mente fixadas em homossexual, heterossexual, bissexual, transexual) ganham
novos contornos, novos sentidos e significados, novas palavras. Pensando com
Jorge Larrosa Bondía,
As lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das pala-
vras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou
desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais
do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.
(BONDÍA, 2002, p. 21).

Nesse sentido, o emprego de outras palavras, que não as convencionais,


para a significação de gênero e de sexualidade configura uma nova materiali-
dade de vivência para tal gênero/sexualidade. As possibilidades de identidade
são orientadas por: homem, gay, quase mulher, cada qual com suas caracterís-
ticas próprias, resultadas de experiências produzidas e produtoras de palavras
e identidades. As definições de identidade e expressão de gênero, orientação
sexual, sexo e sexualidade já em disputa no campo teórico, são, nas práticas
das juventudes, misturadas e reconfiguradas. As palavras convencionais já não
suportam (se é que um dia suportaram) as experiências, suas movimentações
identitárias.
São também as relações orientadas por essas palavras. Denominar-se em
alguma identidade implica em algum pressuposto de relações. As identidades
pressupõem atos relacionais: a identidade bi, por sentir atração afetivo-sexual
com homens e mulheres, irá significar não passar fome; identificar-se como
hétero deve logo vir acompanhado de não tenho preconceito, quando o
reconhecimento dessa identidade como a principal causadora de casos de dis-
criminação às identidades que divergem da heteronormatividade (resolver com
ela depois no particular aponta para essa mesma situação).

(Re)existências queer

A orientação sexual indefinida, a lésbica que namora com meninos, estar


indeciso em suas relações, tudo sinaliza para identidades que se fixam no trânsito,
rompimentos com os binários e rigidezes estabelecidos pela lógica metafísica

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ocidental, como aponta Judith Butler (2003, p. 38). A ressignificação das iden-
tidades, das denominações assume também um caráter político de resistência.
O termo proposto por Jovem 7 aponta para essa resistência e ressignificação
das palavras. Viado, palavra associada pejorativamente aos homossexuais, é
associada a hétero, identidade dos/das principais responsáveis pelas violências.
Identificação e expressão, subjetividade e materialidade se misturam na palavra.
E mais, oprimido e opressor se interligam numa constituição identitária: indi-
cando que em toda identidade há a diferença – e vice-versa. Associar viado
ao hétero é questionar a norma estabelecida do que é ser homossexual e do
que é ser heterossexual, uma descontinuidade ao binário. As resistências pes-
soais, para (re)existir nos espaços, são ligadas às movimentações e resistências
coletivas:
Jovem 7: Eu sou viado-hétero. Então eu sinto prazer dos dois lados.
Eu fico com homem e com mulher.
Jovem 1: Então você é bi.
Jovem 7: Então, viado-hétero, mesma coisa. Não, eu não sou bi.
Eu sou viado, hétero. Gosto tanto de mulher quanto de homem.
Deixa eu diferenciar. Porque eu falo que sou viado-hétero: Porque
assim, viado que é viado, viado mesmo fala “ain amiga” “menina
você viu aquela bicha uó” “minha filha, nem fala”. Eu acho isso ridí-
culo. Porque assim , poxa, eu faço minhas paradas e ninguém fica
sabendo. Eu não me visto nem me vejo como viado. Eu me visto
como homem normal e faço minhas paradas.
Jovem 1: Isso eu respeito. Você gosta de homem, mas você não pre-
cisa. Você no caso é viado. Viado não, vamos falar correto, você é
gay. Gosta de homem, mas não precisa demonstrar exteriormente.
Jovem 6: Agora deixa eu defender as bichas. São as bichas que
botam a cara na rua pra você poder dar o cu em paz.
Jovem 4: É isso aí!
Jovem 7: Mas uma coisa que os viados tem é coragem pra peitar.
Vai bater de frente com um viado pra você ver.
Jovem 4: A bicha vai ser o que ela quiser, gente. Independente
do que for. O povo tá falando, vai pagar as contas dela? Não vai
colocar a comida dentro de casa. Não vai fazer merda nenhuma.
Eu sou assim. Eu sou viadinho, o povo fala. Pra mim é ser histérico
é mostrar pra todo mundo. Meu pai e minha mãe tão gostando de
mim. Se parar pra ouvir o que o povo tá falando, vou ficar lá atrás
ainda. Se minha mãe e meu pai tão aceitando.

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As experiências que constróis em Jovem 7 a identidade de viado-hétero


são determinadas também pelos movimentos de juventude que participou (den-
tro e fora da escola), e na forma como tais espaços de socialização construíam
e constroem os conceitos implicados nessa identidade. Nesse sentido, outras
possibilidades identitárias, outras denominações para além das convencionais,
corroboram com o que aponta Maria Heilborn: “é justamente a inserção do
indivíduo em diferentes esferas sociais que determina sua maneira de perceber
o mundo” (2002, p. 78). E, para acrescentar: determina sua maneira de perce-
ber-se a si mesmo.
As proposição de Jovem 4 e Jovem 6, encarar o lugar abjeto como uma
forma identitária e de luta pela conquista de direitos, em muito se assemelha
às emergências das Teorias Queer. Como define Richard Miskolci, “o abjeto
é, antes de tudo, o que incomoda a ordem, coloca em xeque sua aspiração à
pureza e, portanto, a ameaça com os contatos e as trocas” (MISKOLCI, 2014,
p. 23). As Teorias Queer partem do abjeto para problematizar as forças norma-
lizadoras que o colocam nesse espaço. E se posicionam, ainda, criticamente à
necessidade da constituição de uma hierarquia dos sujeitos, de forma a resistir
e se potencializar nessa conjuntura. Num sentido geral, “o queer busca tornar
visíveis as injustiças e violências implicadas na disseminação e na demanda do
cumprimento das normas e das conversões culturais, violências e injustiças”
(MISKOLCI, 2012, p. 29).
Dessa forma, a bicha e o viadinho, como locais e identidades abjetas ao
serem assumidas desestabilizam a norma violenta. O queer é o diferente que
se recusa a ser suportado, mas assume uma resistência mais transgressora numa
busca da implosão da regra. A semântica da teoria queer é provocante, que
caminha rumo à subversão, deslocamento e reconfiguração. As experiências
queer – aqui bichas, viadinhos, viados-hétero – trazem o inusitado num tom de
exagero e iluminador das diferenças.
É interessante que as juventudes, ao movimentarem e colocarem em
xeque as definições e identificações convencionais, movimentam e agitam
também o ambiente escolar, ampliam as rígidas definições dadas pela escola,
rompem os silenciamentos. Assim, as movimentações funcionam não apenas
como socializações entre estudantes, que geram novos olhares sobre o mundo
e si mesmas; mas também como focos de possibilidades de existências reco-
nhecidas e representadas.

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Como aponta Alberto Melucci, “mesmo que de forma fragmentada, fluida


e instável, na ação voluntária protagonizada pela juventude há uma espécie
de antecipação da utopia, anunciando hoje, e de forma profética, uma outra
possibilidade da vida em conjunto” (MELUCCI, 1997, p. 87, grifos do autor). Em
outras palavras, a utopia planejada pelas estudantes que ocupam as escolas
e pelas estudantes que movimentam ações de socializações é vivenciada em
suas identidades e expressões no hoje. A forma de identificação é também uma
forma de resistências e combate a uma matriz na qual essas pessoas não estão
contempladas – ou pior, que lhe causam violências.

Considerações finais

As movimentações das juventudes estudantis têm sua importância tanto


na elaboração e prática de propostas que transformem as realidades das esco-
las, quanto na socialização que as participantes irão produzir – e, logo, novos
sentidos, experiências e identidades. É na descontinuidade, na desestabilização
causada pelos movimentos de estudantes que a escola pode vislumbrar um
novo caminho a ser percorrido: mais valorizador das diferenças, menos confor-
mador de hierarquias e de identidades hegemônicas.
Por fim, ressalto que as experiências trazidas por participantes da roda de
conversa têm uma forte potencialidade queer ao interrogar a heteronormativi-
dade e discutir um regime político-social que se institui na escola que normatiza
a vida de estudantes – desde as relações até seus entendimentos do eu, do
indivíduo de si mesmo. Nesta perspectiva, o outro seria encarado como agente
constituinte do eu, pois a diferença seria peça-chave para a identidade e torna-
ria este outro pensável – tanto viado, quanto hétero. Como o queer não visa um
modelo ideal, mas assume uma intenção em aberto, inconclusa, pedagogias e
currículos queer se propõem a causar provocações, estranhamentos e pertur-
bações no contexto escolar: descontinuidades que os sujeitos e movimentos já
levam a curso atualmente.

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Referências

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista


Brasileira de Educação, n. 19, p. 19-28. 2002.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 236p. Rio


de Janeiro: Editora Record, 2003.

DOS REIS, Neilton; PINHO, Raquel. Gêneros não-binários: Identidades, expressões e


Educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 7-25. 2016. ISSN
on-line: 1982-9949

HEILBORN, Maria. Fronteiras simbólicas: gênero, corpo e sexualidade. Cadernos


Cepia. Rio de Janeiro. v. 5, p. 73-92, 2002.

MARTÍN, María. Escolas ocupadas já são 65 no Rio e Estado enfrenta impasse na


negociação. El País. Disponível em: < http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/29/poli-
tica/1461955632_442061.html> Acesso em 04 de julho de 2016.

MELUCCI, Alberto. Juventude, tempo e movimentos sociais. Revista Brasileira de


Educação. São Paulo v. 5, n. 6, p. 5-14, 1997.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:


Autêntica, 2012.

MISKOLCI, Richard. Estranhando as Ciências Sociais: notas introdutórias sobre Teoria


Queer. Florestan. São Carlos. n. 2, p. 08, 2014.

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A EXTENSÃO COMO POTENCIALIDADE NA


DES/CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS

Marilda de Paula Pedrosa


Mestre em Educação pelo PPGE/UFJF
Professor na SE de Juiz de Fora
marilda22@ymail.com

Michele Priscila Gonçalves dos Santos


Especialista em Educação no Ensino Fundamental
Professora na SEE-MG
michele_pgs@hotmail.com

Cláudio Orlando Gamarano Cabral


Mestre em Educação pelo PPGE/UFJF
Professor na SE de Juiz de Fora
claogc@hotmail.com

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

Buscamos com este artigo problematizar os desdobramentos de um curso de


extensão cujo objetivo foi contribuir para a formação continuada de profis-
sionais da educação, estimular a discussão de questões ligadas às relações de
gênero e sexualidade e (re) pensar as ações dos agentes educacionais na escola
e fora dela. Para tanto, as discussões conduzidas pautaram-se nos estudos fou-
caultianos e nos estudos de gênero e sexualidades elaborados sob a perspectiva
dos estudos culturais e pós-estruturalistas.
Palavras-chave: Formação continuada, gênero, sexualidades, professor/a.

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Este artigo surgiu do interesse em problematizar um curso de extensão


oferecido para servidores da educação no primeiro semestre de 2016.
A Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora (SME) ofereceu nesse
ano 34 cursos de formação em diversos eixos ligados à educação. Um deles
foi o curso “Sexualidades e relações de gênero na educação”, uma parceria
firmada entre a Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal de Juiz De
Fora (UFJF), o Departamento de Políticas de Formação da SME e o Grupo de
estudo e pesquisa em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (GESED)
que coordenou as atividades.
O curso foi realizado no contraturno e contou com 14 encontros semanais
paralelamente a atividades não-presenciais, totalizando uma carga horária de
65 horas. A turma foi composta por profissionais da rede pública da cidade,
atuantes nas diversas esferas da educação.
O objetivo do curso foi contribuir para a formação continuada de pro-
fissionais da educação, estimular a problematização de questões ligadas às
relações de gênero e sexualidade e (re) pensar as ações dos agentes educacio-
nais na escola e fora dela. As discussões pautaram-se nos estudos foucaultianos
e nos estudos de gênero e sexualidades, sob a perspectiva dos estudos culturais
e pós-estruturalistas.
Foram debatidos assuntos como relações e multiplicidades de gêneros e
sexualidades, violência de gênero, transgeneridade, heteronormatividade, iden-
tidades LGBTTI, conflitos subjetivos entre religiosidade e diversidades sexuais
e gênero, possibilidades da abordagem de tais temas nas escolas, entre outros.
Refletir sobre essas questões relacionando-as ao contexto escolar em um curso
de formação continuada nos leva a questionar: como ocorre essa “formação”?
Estar em um grupo (GESED), atravessado pelas perspectivas teóricas
apontadas, acaba por colocar certo desconforto com a palavra formação. No
dicionário mini Aurélio a palavra formar vem seguida da seguinte definição “1.
Dar a forma a (algo). 2. Ter a forma de. (...) 6. Fabricar, fazer. (...) 9. Tomar forma:
(...)” (FERREIRA, 2001, p. 355).
Partindo dessa premissa, propor um curso de formação, trazia uma neces-
sidade de ressignificar essa palavra, construir um sentido que permitisse que
as múltiplas formas de ser dos/as participantes não fossem engessadas nesse
processo. Pensar uma “formação” que não fixasse o modo de ser, pensar, viver
e experienciar de quem participasse.

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Era importante tentar despertar um olhar de estranhamento, de desnatu-


ralização para o processo de formatação construído por vezes nos cursos de
formação. Desconstruir a ideia de que existe uma receita mágica e universal,
que servirá de guia para solucionar todos os problemas que se possa deparar,
desconsiderando as diferentes realidades que existem, as diferentes vivências e
experiências produzidas por cada sujeito ao longo da sua história. Era preciso
construir um processo dinâmico, de desfamiliarização, tornar o curso um locus
de possibilidades.
Pensando nessa nova forma de compreender a palavra formação, Larrosa
(2002) serviu de lente para essa possibilidade nova de olhar ao apontar que
(...) atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, ele-
ger as palavras, cuidar das palavras, proibir palavras, transformar
palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero pala-
vrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata
é como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de
como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos
o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o
que nomeamos. Nomear o que fazemos, em educação ou em qual-
quer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis reflexiva ou
como experiência dotada de sentido, não é somente uma questão
terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que
fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos
são mais do que simplesmente palavras (LARROSA, 2002, p.21).

Larrosa convida a olhar essa relação entre a palavra e esse sentido, essa
relação de pertencimento que se estabelece, com a vivência de seu significado,
com a experiência que esse processo produz. A ideia de um curso de formação
passa a estabelecer um novo olhar, começa a desconstruir a ideia de engessa-
mento tornando-se um local de abalo das certezas. Não um lugar de onde se
sai pronto e acabado.
E nesse aspecto, o curso de formação deveria ser construído de maneira
a se tornar algo significativo na vida de quem dele viesse a participar. As temá-
ticas ali desenvolvidas deveriam construir relações de pertencimento, trazer
novas vivências e produzir novas experiências. E nesse processo provocar o
estranhamento, propor que se dê um passo atrás na busca de novos ângulos de
olhar para uma dada situação. Era importante que se deixassem atravessar pelos
discursos, pelas imagens e pela metodologia desenvolvida, transformar o curso

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de formação em experiência, afinal, segundo Larrosa (2002), essa carrega em si


um componente de formação e transformação,
(...) É experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que
nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente
o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria trans-
formação. (...) Não se pode captar a experiência a partir de uma
lógica da ação (...), mas a partir de uma lógica da paixão, uma
reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito passional (...).
(LARROSA, 2002, p. 25-26).

Dessa maneira, construiu-se o Curso “Sexualidades e Relações de Gênero


na Educação”, um dispositivo que buscou legitimar o espaço educacional
como um lugar de (des)construção dos múltiplos discursos em torno da temá-
tica. Temática essa, atravessada por uma variedade de discursos naturalizados
e invisibilizados, produtores de comportamentos e posturas preconceituosas e
intolerantes, que muito vêm contribuindo para a produção de um cenário de
violência e intolerância.
Assim, observando os comportamentos e as posturas, era preciso com-
preender o que trazia os sujeitos a um curso de formação com essa temática,
“A necessidade de saber lidar com as situações que surgem no dia
a dia na escola relacionadas ao tema”. (Participante B).
“Dúvidas, me preparar para trabalhar com o assunto, a necessidade
de conhecimento”. (Participante C)1

Foi possível perceber, dessa maneira, que a procura do curso diz de


um anseio pessoal dos/as participantes por posicionarem-se, como sujeitos,
em relação aos jogos de verdade com os quais são inevitavelmente envolvi-
dos. A procura de saber, conforme aponta Michel Foucault (2010), parece dizer
de uma postura ética, ou seja, de uma prática refletida de tais professores/as.
Pela grande movimentação de desconstrução, de deslocamento e de engaja-
mento dos/as participantes, parece estarmos diante de sujeitos investindo em si

1 As falas utilizadas neste artigo foram retiradas da ficha de avaliação que os/as participantes preen-
cheram fazendo a avaliação do curso e aparecerão em itálico.

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próprios, cuidando de si, praticando sua liberdade, fazendo um “exercício de si


sobre si”.
Foram muitas as vivências ao longo do curso. Um processo que permitiu
um desvencilhar das amarras discursivas prontas, um processo que fez com que
muitos/as olhassem para suas práticas pedagógicas por outro ângulo como nas
falas:
“O curso diferente do que eu esperava, me fez antes de pensar
em mim enquanto pedagogo, eu me repensar enquanto ‘ser’ cons-
truído historicamente e qual a minha função enquanto educador
frente a essa temática na escola”. (Participante D).
“As primeiras mudanças aconteceram no campo pessoal. (...)
Agora, tenho um olhar mais atento e aproveito as oportunidades
para discutir esses assuntos, refletindo e orientando reflexões”.
(Participante I).
“Entrei no curso, passando por um dos períodos mais complicados
da minha vida e acredito que não seja por acaso. E compreender a
forma como os homens foram criados para o machismo e as mulhe-
res para a submissão, foi o principal aprendizado adquirido durante o
curso, que me fortaleceu, me empoderou e esclareceu grande parte
dos problemas pelos quais estava enfrentando”. (Participante L).

Nessas falas percebe-se que o curso serviu de dispositivo para um pro-


cesso de formação pautado na construção de relações de pertencimento com
os temas abordados, além disso, tornou-se uma tecnologia de formação, de
vivenciar e transformar-se por meio da experiência ao multiplicar a possibili-
dade de olhares e caminhos para o dia a dia escolar.
Percebe-se, ainda, a eficiência de um curso com esse viés como um
mecanismo de política pública, pois disparou possibilidades infinitas de des-
construções e reconstruções de discursos e sujeitos.
Mas as provocações de um curso terminam ao seu final?

“A investigação e estudo do tema não termina juntamente com


este curso”: a formação como invenção de si.
O real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é na travessia.
Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas

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A formação não é um ponto de chegada, mas um processo. Uma traves-


sia como sugere Guimarães Rosa na epígrafe. Parece-nos pertinente pensar a
formação como um processo que, como tal, nunca está finalizada ou “pronta”.
A docência é rodeada de representações que envolvem sonhos, ideais,
posturas, “habilidades” e tantos outros referenciais que povoam, de múlti-
plas maneiras, os corpos daqueles/as que se aventuram com a profissão. Em
meio a tantas possibilidades, parece ainda conviver e fazer parte do referencial
de muitos/as profissionais, a ideia de estar pronto para lecionar. Os estudos
pós-estruturalistas ajudam a descontruir tal referencial ao apontarem para a
fragmentação e incompletude dos sujeitos na atualidade (HALL, 2011) e daí o
risco de imaginar-se pronto ou acabado como sujeito ou profissional formado.
Para longe da ideia de completude, o curso parece ter permitido aos par-
ticipantes compreenderem a possibilidade da permanente (des)construção de
si. Mostrou a potência das dúvidas, dos questionamentos e das inseguranças.
Provocou abalos e outros olhares, talvez, mais atentos, às normalidades e às
padronizações. As falas a seguir são bastante sugestivas em relação a isso:
“As temáticas e a maneira como foi abordada, permitiu reflexões
aprofundadas de comportamentos já estabelecidos, desconstruções
de preconceitos e busca por valores de empatia”. (Participante N).
“Alguns aprendizados em nossas vidas são bons, outros excelen-
tes. Porem, o curso foi um marco transformador, posso dizer que
a pessoa que iniciou o curso em março está bem distante da pes-
soa que hoje responde a avaliação e por este motivo considero
importantíssima a continuidade de cursos com a temática gênero e
sexualidades, pois temos muito a refletir e aprender sobre a temá-
tica”. (Participante R).

O curso também apontou a vontade de continuidade, de buscas por novos


conhecimentos, um desejo de constantes diálogos, de reinvenções,
“Aprendi muito, porém gostaria de me aprofundar mais ainda.
Construí uma nova visão das relações de gênero na escola e a partir
disso venho fazendo interferências no meio cotidiano como profes-
sora”. (Participante G).

As provocações propostas tocaram de maneira significativa todos/as


envolvidos/as. Foi muito instigante vivenciar com eles/as suas angústias, bem
como, a trans-forma-ação pessoal que todos/as puderam experimentar.

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De uma ou de outra maneira, as falas apontaram para a grande pertinên-


cia da discussão e de sua relevância para a desconstrução de preconceitos,
injustiças e desigualdades em nossa sociedade e escola,
“A principal dificuldade ainda é a introdução do tema nas institui-
ções educacionais. A comunidade escolar ainda ignora o que seja
‘gênero e sexualidade’, já tem um pré-conceito formado sobre o
tema. Mas entendi que posso trabalhar este tema, ainda polêmico,
veiculado ao próprio conteúdo estudado, pois surgem dúvidas e
questionamentos a cada minuto” (Participante P).
“Ainda encontro desafios (dificuldades) para trabalhar, pois não
há um engajamento em todo o coletivo da escola. Porém, conto
com um grupo significativo que não deixa ‘morrer’ nossos ideais”!
(Participante M).

O curso contribuiu também para a construção de um novo olhar para a


escola, para as próprias posturas, comportamentos e práticas: outros sujeitos,
agora mais cuidadosos consigo e com o outro, retornando à escola.
“Eu retorno para minha instituição com o objetivo de levar a temá-
tica como frente de proposta de trabalho para as demais unidades
e discussão para os demais educadores”. (Participante D).

“Agora sei um pouco mais como lidar com o tema, como ten-
tar resolver os conflitos que surgem na sala de aula. Dentre os
mais comuns estão o respeito às mulheres e aos homossexuais”.
(Participante B).
“Acho que vou ficar ‘mais chata’ na visão de alguns, porque o dis-
curso de não ficar problematizando, a atitude de dizer que não há
preconceito agora, mais do que nunca, não passarão ‘batidas’ por
mim. Meu olhar e meus ouvidos ficarão mais apurados a cada dia e
buscarei melhorar sempre”. (Fala do/a participante F).

Outro aspecto que destacamos é a potência dos relatos e trocas com a


comunidade LGBTTI, que colocou a importância das discussões em torno da
homofobia e violência contra mulher ao destacar a relevância das discussões
de gênero e sexualidades na escola, especialmente ao lidarmos com a chamada
“Ideologia de gênero”, expressão utilizada por alguns grupos conservadores da
sociedade com intuito de desqualificar os estudos de gênero, contribuindo para
manutenção de preconceitos e de violências.

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É importante salientar, ainda, a pertinência e a urgência da implementa-


ção de políticas públicas que visem e estimulem a construção de mais parcerias
como a realizada para esse curso, visando a promoção de espaços de forma-
ção, ou melhor, espaços que coloquem formas em ação, em movimentos que
podem levar à reinvenção de si e do mundo.

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Referências bibliográficas

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: O minidicionário


da língua portuguesa. 5ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2001.

FOUCAULT, Michel. A Ética do Cuidado de si como Prática da Liberdade. In: Ditos


e Escritos V: Ética, sexualidade e política. Organização: Manoel de Barros da Motta;
tradução Elisa Monteiro, Inês Autan Dourado Barbosa. 2 ed. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da


Silva e Guacira Lopes Louro. 11. Ed., 1. Reimp. Rio de Janeiro DP&A, 2011.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira


de Educação jan/fev/mar/abr 2002, nº 19.

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MASCULINIDADES EM QUESTÃO

Paulo Melgaço da Silva Junior


Doutor em Educação - Faetec
pmelgaco@uol.com.br

GT 14 - Masculinidades múltiplas no contexto escolar

Resumo

Este trabalho aborda como adolescentes se constroem como homens, criando


significados sobre a masculinidade legitimada e reconhecida pelo senso comum.
Os instrumentos para geração de dados foram: as narrativas de masculinida-
des, a observação, e as anotações de conversas informais consideradas. Como
resultado da pesquisa pude verificar que as narrativas de masculinidades estão
pautadas na perspectiva do discurso da masculinidade hegemônica. Observei,
ainda, a presença de diversas masculinidades apresentadas em diversas for-
mas de interação social entre os adolescentes, negociadas a partir de variadas
situações.
Palavras-chave: masculinidades; homossexualidades; sexualidades; escola;
narrativas.

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Introdução

Este trabalho aborda alguns modos com os quais jovens adolescentes


constroem suas masculinidades e como estas masculinidades são vivenciadas
no ambiente escolar. Pretendo mostrar através de narrativas como se posicio-
nam como narradores e narram os acontecimentos do evento se construindo
como homem, criando significados sobre a masculinidade legitimada e reconhe-
cida pelo senso comum. Defendo a grande relevância deste estudo porque em
nossa sociedade, o domínio discursivo da masculinidade hegemônica ainda é
muito forte e sufoca ou desconsidera diversas outras formas de masculinidades.
Assim, masculinidades que não atendem às práticas discursivas preconizadas
pelas formas hegemônicas são consideradas subalternas ou desviantes. Com
isso, acabam por ser desvalorizadas e negligenciadas por educadores/as no
contexto escolar o que pode prejudicar o entendimento de diversas relações
sociais e culturais presentes na escola.
No espaço escolar, heterossexualidade e masculinidade se enlaçam e
transformam em um vínculo natural, dado e legitimado, negando tanto outras
possibilidades quanto a diversidade sexual. O trabalho de produção de identi-
dades se torna sistemático, acentuado pela preocupação de introduzir o menino
ao mundo masculino hegemônico. Neste sentido conhecer os discursos e nar-
rativas sobre sexualidades e masculinidades pode ajudar aos/às professores/as a
desenvolver novas perspectivas de trabalho e de ação em busca do combate a
homofobia nas escolas e principalmente em prol do reconhecimento e valoriza-
ção das diversas sexualidades presentes no cotidiano escolar.

Sobre masculinidades

A categoria gênero, segundo Moita Lopes (2006), pode ser considerada


como uma das categorias cruciais para entender essas mudanças sociais e cul-
turais da vida contemporânea. Principalmente porque em nossas sociedades
as pessoas apenas se tornam compreensíveis quando se tornam generificadas
nos padrões reconhecidos. Fato que Butler (2003, p.38) define Gêneros “inte-
legíveis” como “aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações
de coerência e continuidade entre sexo, gênero, pratica sexual e desejo”. Nesta
perspectiva, a matriz de inteligibilidade presente em nossa sociedade é a matriz
da heterossexualidade.

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As práticas reguladoras instituem a heterossexualização do desejo e os


discursos buscam produzir atributos do masculino/feminino e macho/fêmea.
Tudo isso tentando mostrar que a heterossexualidade além de natural e dada é
a histórica e universal, tornando-a norma. Ela se transforma em uma instituição
e adquire um papel central no processo de dominação masculina. Nas palavras
de Butler (2003), o discurso passa a exigir e regular o gênero como uma relação
binária em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino por meio
das práticas do desejo heterossexual. No processo de construção discursiva da
heteronormatividade existe um visível esforço para que masculinidades e hete-
rossexualidade sejam vistas como naturais.
Nesta perspectiva, masculinidades para Connell (2000) é uma confi-
guração prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações
de gênero e seus efeitos nas experiências físicas, pessoais e culturais. Elas são
construídas e re-construídas, não podendo ser tomadas como realidades imu-
táveis e objetivas, estando sempre de acordo com a história e a cultura, bem
como sujeitas às relações de poder. O masculino só pode ser entendido em
relação ao feminino e em uma cultura específica. Contudo, ao mesmo tempo
em que os conceitos de feminilidade são construídos a partir da masculini-
dade, ela também se torna um referencial para masculinidade hegemônica. Em
outras palavras, o dominante é constantemente vigiado pelo dominado. Existe
uma permanente ameaça ao conceito do que é ser homem. Desta maneira, a
masculinidade hegemônica cria uma série de regras e restrições para um efe-
tivo pertencimento a esse grupo. Segundo Badinter (1993) o caminho para se
conquistar a masculinidade deve ser construído, não se nasce homem torna-se
homem, a virilidade não é um dom, ela é fabricada de acordo com um referen-
cial verdadeiro de homem.
Diversos tipos de masculinidades co-existem e são produzidas simulta-
neamente. A masculinidade hegemônica nem sempre é o tipo mais comum
de masculinidade em nossa sociedade. Em sua oposição, alguns autores, por
exemplo, Connell (2000); nos apresentam as masculinidades subordinadas ou
marginalizadas como aquelas que são produzidas na exploração e opressão de
grupos e minorias. Essas identidades são construídas com base em estereótipos
e os sujeitos são marcados como abjetos, sem brilho e valores.

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Narrativas, discursos e performances no processo de construção


e reconstrução dos sujeitos

As narrativas constituem um modo de concepção do discurso, e cons-


tituem um importante conceito para esse trabalho. Entendo que ao narrar, o
sujeito está se construindo e construindo o mundo em sua volta. Assim, a nar-
rativa contribui para a construção e exposição do nosso senso de quem somos
possibilitando também que construamos nossas relações com os outros e com
o mundo que nos cerca (BASTOS, 2005). Através das narrativas autobiográfi-
cas nossas experiências e nossas relações com os outros ganham significados.
Partindo do pressuposto de que os discursos, as narrativas e as histórias de vida
acontecem através da linguagem e que ao dizermos algo estamos fazendo algo,
ao narrar estamos realizando uma performance. O conceito de performance é
muito amplo, está relacionado a eventos, a espetáculos, a ensaios, assim como,
também ao ato dizer algo com convicção. Na performance o sujeito precisa
acreditar no que está dizendo ou fazendo para convencer a audiência. É essa
crença que leva o outro acreditar naquilo que está sendo dito ou realizado.
Assim, todo discurso pode ser compreendido como performance.
Nesta perspectiva, as identidades, sexualidades e masculinidades são pro-
duzidas através da performance, onde a repetição de gestos, de falas, reforça a
idéia que existe uma essência, uma forma pré-estabelecida de ser. Ao contrá-
rio, não existe uma essência, é a linguagem que constitui as subjetividades. A
teórica queer Judith Butler (2003) nos mostra que a identidade é performativo,
no qual o ato de fala tem efeito de materializar e criar os corpos, da forma que
interessam ao poder ou à sociedade.É relevante destacar que para realizar sua
performance o sujeito busca se enquadrar de acordo com as regras culturais
nas quais está inserido. A performance estabelece uma relação entre o aconte-
cimento e seus significados na cultura.

A escola, contexto e sujeitos das narrativas/performance

Os alunos que narraram suas histórias são oriundos de uma escola locali-
zada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Por ser considerada por pais, comunidades
e mídia, em geral, como uma escola pública de qualidade recebe anualmente
uma grande procura. O noturno oferece o curso de aceleração destinado aos
aluno/as que apresentam grande diferença idade/série.

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Gustavo (nome fictício) – 17 anos, negro, alto, forte, assumidamente


homossexual. Bruno (nome fictício) – 18 anos, negro. Mais magro e mais baixo
do que Gustavo se orgulha de sua sexualidade e de sua masculinidade. A moti-
vação para a gravação surgiu a partir observações de situações cotidianas, onde
estes dois rapazes se destacam pela forma como apresentam seus discursos
e performances sobre masculinidade. Esses trechos ocorreram em uma con-
versa gravada sobre o que é ser “homem de verdade”. Do material coletado
selecionei o trecho que interessava a esse trabalho e transcrevi. Ressalto que
para realizar as transcrições utilizei as convenções indicadas por Bastos (2005).
Assim, as palavras escritas com letras maiúsculas indicam uma ênfase do nar-
rador, ... uma pausa, os símbolos ↑↓ indicam frases ditas com uma maior ou
menor entonação.
Bruno chegou à escola no horário combinado, apesar de uniformizado,
apresentava um grande cuidado com a maneira de se vestir e portar. Sentou-se
no banco, de pernas abertas. Em nenhum momento que esteve comigo conse-
gui vê-lo sentar de pernas fechadas. Uma forte característica da performance de
masculinidade - homem não senta de pernas fechadas.
“Eu: - O que é ser homem para você? Bruno: - Ser homem para
mim É HONRAR O QUE TEM! Honrar o sexo .... e ser homem pra
mim não é só ter o NEGÓCIO, é saber respeitar a mulher, coisa e
tal. Eu: - Eu já vi vários de vocês brincando com o Gustavo, abra-
çando, inclusive até dando selinho. E nunca vi isso acontecer com
os outros gays aqui na escola, que alguns de vocês até ignoram. O
que leva vocês fazerem isso? Bruno: - O Gustavo é diferente, tem
postura. Ele sabe levar na brincadeira e os outros não sabem... tem
uma aparência física e uma postura de macho. As pessoas só des-
cobrem quando ele abre a boca e resolve falar besteira .. ele não
dá mole prá ninguém ... se mexer com ele, ele enfrenta ... mas é
maneiro com todo mundo. Por isso a gente aceita mais ele do que
os outros” (informação verbal de Bruno).

Devo ressaltar que o ato de coçar ou pegar a região peniana foi uma
constante naquela tarde. Principalmente durante a narrativa na hora que ele
queria falar sobre as meninas e como ele gosta “de mulher”. Este fato pode mos-
trar a estreita relação entre a masculinidade hegemônica negra, classe social
valorização do falo. Para se firmar e reforçar sua posição como homem, o nar-
rador precisou mostrar que estavam presentes naquela conversa: ele e o falo.

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A entrevista com Gustavo aconteceu uma semana depois. Ele chegou,


cumprimentou e assentou de pernas abertas, destacando uma performance
corporal do que se espera do masculino.
“Eu: - O que é ser homem para você? Gustavo: - Ser homem,
pra mim por eu ser gay é ter postura, saber comportar, respeitar
os outros ... Eu: - ter postura? Gustavo: - ter postura ... é saber ser
HOMEM, não ficar desmunhecando, ser efeminado. Sou gay, todo
mundo sabe, mas acho que não precisa ficar igual mulherzinha o
tempo todo. Tem que comportar como homem ... por eu ser gay
eu não vou me esparrafatar. É não querer aparecer para os outros..
tenho que me mostrar pro meu namorado. Eu não aceito estes gays
que ficam fingindo que são mulheres ... desmunhecando por ai....
Às vezes eu desmunheco também, mas só quando quero rodar a
baiana ... mostrar para as pessoas que sou gay ... MAS EU TENHO
POSTURA ... Eu: - Você acha que é por isso que os meninos são
mais próximos de você do que dos outros gays?Já vi eles brincando
de abraçar com você, dar selinho. Porque isso acontece com você
e nunca vi, por exemplo, acontecer com o Felipe (nome fictício)
que também estuda com vocês há anos? Gustavo: - ↑ Acho. Eu
mantenho o respeito por eles e eles respeitam. No meio do res-
peito há uma liberdade. Ai respeito é brincar, zoar, abraçar. ↑ Eles
não querem ficar andando com gays excrachados. Eles tem medo
de ficarem falados ou de acharem que eles estão ficando com os
gays. ↑ O Felipe é uma mulher, NÉ professor ... Comigo é diferente,
eles brincam como homens, amigos, que se abraçam, dão tapas, se
agarram. Nos temos respeito tem dias que eles não querem brincar
... têm dias que eu não quero ... e vamos levando nossa amizade”
(informação verbal de Gustavo).

Aqui podemos observar que para se construir como homem, Gustavo


deprecia a masculinidade de Felipe. Assim, a identidade sexual de Felipe é
construída como abjeta, subordinada. Ao proferir estas narrativas, Gustavo e
Bruno se avaliam, refletem, se posicionam, procuram agir e narraram fatos e
situações que se esperam de um homem dentro do contexto da masculinidade
hegemônica. Um fato que evidencia como as pessoas procuram se construir
dentro de modelo legitimado socialmente. É relevante destacar que o discurso
é tão forte que o próprio Gustavo que se assume enquanto homossexual, busca
elementos para se enquadrar. O pequeno trecho autobiográfico da história de
vida de Bruno e Gustavo narrado por eles mostra como uma proposição de

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verdade “é homem” é seguida por uma série de razões que buscam afirmar
essas verdades. Todas as razões apresentadas pelos rapazes são destacadas nas
características legitimadas pela ideologia do senso comum.

Considerações finais

A questão que esteve implícita ao longo deste estudo foi como que dois
estudantes do ensino noturno constroem suas masculinidades baseados nos
discursos de masculinidades hegemônicas. Conhecer os discursos e as narra-
tivas de sexualidade dos/das estudantes pode contribuir para a construção de
um currículo que englobe discussões sobre sexualidade, que busque valorizar
e reconhecer as diversas identidades sexuais e principalmente problematizar
e desconstruir o discurso da masculinidade hegemônica. E assim, colocar em
xeque visões essencializadas e congelamentos identitários, trazendo o diferente
para a sala de aula e propondo o diálogo entre as diferenças. Fato que certa-
mente contribuirá para o fim da homofobia, do machismo, e do sexismo. No
entanto é necessário compreender que essas observações e pesquisa acontece-
ram em um contexto específico. Em outro contexto estes estudantes podem se
construir de outra maneira. Existe também a possibilidade de os adolescentes
participarem de outras experiências de vidas e então certamente, existe a possi-
bilidade de agência, de reinvenção de seus discursos e de suas masculinidades.

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Referências

BADINTER, E. Xy.sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

BASTOS, L. C. Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais: uma


introdução ao estudo da narrativa. Caleidoscópio, São Leopoldo, v.3, n. 2, p.44-47,
maio/ago.2005.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

CONNELL, R. W. The men and the boys. Los Angeles: The University of California
Press, 2000.

MOITA LOPES, L. P. On being white, heterosexual and male at school: multiple


positionings in oral narratives. In: FINA, A. de; SCHIFFRIN, D; BAMBERG, M. (Eds.).
Discourse and Identity. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 288-313

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REPRESENTAÇÕES DE FAMÍLIA EM UM LIVRO DIDÁTICO DE


INGLÊS: HOMOPARENTALIDADE E INCLUSÃO

Francisco Ednardo Barroso Duarte


Doutor em Educação (UFPA)
Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA)
dnardo22@yahoo.com.br

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar as representações sociais presentes


nos discursos de um livro didático de inglês sobre as concepções culturais de
família a fim de identificar como as famílias homoparentais são apontadas e
reconhecidas neste recurso metodológico. Ao longo do estudo, percebemos
a importância de debates transdisciplinares e de materiais didáticos que pro-
blematizem o reconhecimento de culturas contra-hegemônicas no contexto
escolar especialmente no recorte da diversidade sexual.
Palavras-chave: Representações Sociais; Livro Didático; Língua Inglesa;
Homoparentalidade; Educação.

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1. Introdução

Neste artigo, problematizamos a questão das sexualidades não normativas


no contexto de ensino, em particular no ensino da língua inglesa e seus mate-
riais didáticos, cuja proposta curricular, pelo menos na teoria, se alinha com a
produção e reprodução consciente de discursos capazes de formar cidadãos
críticos e reflexivos preparados para a cidadania.
Assim, ao perguntar como são representadas as famílias homoparentais
no livro didático de inglês, nosso objetivo aqui é analisar os discursos nele pre-
sentes, apontando para a existência de representações sociais em uma unidade
que discute concepções de família como tema principal.

2. Língua Estrangeira e Cidadania

O ensino de uma língua estrangeira carrega muitos pressupostos; entre


eles a possibilidade de um tratamento pedagógico que inclua a diversidade
social e cultural de um dado país fazendo com que todos os sujeitos, inde-
pendente de classe social ou condições econômicas, sintam-se contemplados
e familiarizados com conhecimentos e saberes que favoreçam a dinâmica da
interação.
Nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, o ensino da língua
estrangeira pressupõe a formação de indivíduos no que diz respeito ao seu
papel cidadão “o que inclui o desenvolvimento de consciência social, criativi-
dade, mente aberta para conhecimentos novos, enfim, uma reforma na maneira
de pensar e ver o mundo” (BRASIL, 2008, p. 90).
Porém, há ainda a resistência de uma visão tradicionalista e conteudista,
mais preocupada com o volume de informação lançada sobre uma matéria e
com a preservação de modelos hegemônicos, do que, de fato, com o papel
social e o desenvolvimento de consciência crítica, reflexiva e interdisciplinar
proposta especialmente por disciplinas inscritas nas humanidades, como é o
caso da língua inglesa.
Moita Lopes (2008) aponta para a necessidade de uma linguística apli-
cada preocupada com a transversalização de seus conteúdos, ou seja, uma
proposta de ensino crítico de línguas que considere contextos sociais, políticos
e culturais capazes de trazer para as disciplinas da linguagem (língua materna
ou estrangeira) o debate sobre fenômenos sociais e culturais que se apresentam,

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mobilizam e interferem na dinâmica de ensino e aprendizagem de idiomas na


escola.
Considerando a proposição da linguística aplicada transdisciplinar, per-
cebe-se uma preocupação imediata com o papel social o qual o ensino de
línguas estrangeiras pode desempenhar no contexto pedagógico, influenciando
na construção de um projeto de cidadania onde todos os sujeitos sociais podem
se reconhecer em seus temas, se sentir contemplados e incluídos, além de refletir
sobre diferentes formas de perceber e traduzir o mundo por meio de uma língua.

3. Diferença e educação

A educação contemporânea vem apresentando aos profissionais do


magistério diferentes desafios, especialmente no que tange à inclusão de cul-
turas social e historicamente negadas no contexto de ensino como as questões
de gênero, raça, etnia, identidade e sexualidade. Novas configurações de valo-
res começam a ser estabelecidas mesmo à revelia de uma massa positivista e
fundamentalista que ainda revoga uma educação exclusivista essencialmente
elitista, branca, heterossexual e cristã (LOURO, 2000).
Esta concepção eugenista e colonialista da educação ainda é recorrente
mesmo nos grandes centros de educação brasileira, estejam eles localizados
nas capitais ou no interior do país. No entanto, a luta por uma educação inclu-
siva vem sendo debatida desde os anos de 1970 por estudiosos da educação
crítica e pós-crítica, que afinados nos estudos do multiculturalismo reclamam
uma educação que contemple e dê protagonismo a todas as formas de cultura
não hegemônicas rompendo, assim, com o ciclo de invisibilidade e desmere-
cimento que por séculos tem alijado certos sujeitos do contexto educacional.
Assim, notamos uma luta de forças igualmente proporcional entre a manu-
tenção dos velhos paradigmas educacionais e a introdução de novas formas de
representação da realidade no contexto de ensino.
Percebemos que juntos às concepções de inclusão de grupos e minorias
excluídas historicamente, surgem novas propostas metodológicas e recursos
instrumentais capazes de trazer para a educação uma nova leitura de mundo.

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4. Representações sobre o livro didático

Cumpre dizer que o livro didático (LD) traz consigo diversas repre-
sentações da realidade que costumam apontar para o senso comum e para
aquilo que é hegemonicamente normatizado e assimilado por um dado grupo
social, excluindo, assim, outras formas de expressões culturais socialmente
deslegitimadas.
Há não muito tempo, políticas e ações afirmativas foram conquistadas no
que diz respeito à inclusão das culturas afrodescendentes no currículo tradicio-
nal escolar, inclusive no LD. Embora ainda convivamos com a resistência de
grupos que lutam pela continuidade histórica da hegemonia branca e classista,
representa grande avanço ter estas culturas legitimadas no currículo. Mas ainda
são necessárias outras representações e outras visibilidades.
O LD é um significativo recurso instrumental, porém é necessário que ele
contemple não só os dispositivos acessórios úteis dentro da sala de aula, mas
também aqueles que transcendam a noção estrutural, considerando questões
transversais no ensino de um idioma.

5. Homoparentalidade na educação

A despeito da luta histórica por ações e políticas afirmativas na educa-


ção, o currículo tradicional encontra-se ainda eivado de representações das
culturas dominantes e sócio-historicamente valorizadas, subalternizando certos
sujeitos como a mulher, o negro, o pobre, o nordestino e, claro o homossexual
(LOURO, 2000, 2012).
Autores como Louro (2000) e Miskolci (2012) representam estudiosos pre-
ocupados com a inclusão de acolhimento das sexualidades não normativas no
contexto educacional, pois é fato que, ao lidar com a diversidade de sujeitos
que a escola apresenta, sempre nos deparamos com indivíduos de diferentes
sexualidades ou pertencentes a novos arranjos familiares, que precisam ser aco-
lhidos e, sobretudo, respeitados.
Apesar da grande resistência política no cenário nacional onde grupos
fundamentalistas tentam criar leis e projetos que retrocedam as lutas de mino-
rias sexuais, inclusive na educação, como no caso do PL 2731/15 (que proíbe
a “ideologia de gênero”) e do PLS 193/16 (Escola Sem Partido), hoje em dia,
algumas escolas privadas, atentas às novas configurações de família, evitam

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normatizar datas comemorativas como o Dia das Mães e o Dia dos Pais para
muitas vezes incluir o Dia da Família, evitando o constrangimento dos sujeitos
de famílias multiparentais ou neoconfiguradas.
O Dicionário Houaiss, atendendo a campanha on-line de valorização à
diversidade, incluiu em 2016 uma nova definição para o verbete família em
reposta ao Estatuto da Família (PL 6583/13) aprovado na Câmara de Deputados
que reconhece como família apenas núcleo formado a partir da união entre
homem e mulher. Assim, segundo o Houaiss considera-se família “núcleo social
de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo
espaço e mantêm entre si uma relação solidária”, opondo-se à definição tradi-
cional (grupo formado por pai, mãe e filho).

6. Metodologia

Analisaremos aqui, representações sobre família presentes em uma


unidade de um LD de inglês, que faz parte de uma coleção de 03 volumes des-
tinada às 03 séries do Ensino Médio, o Freeway da editora Richmond, lançado
em 2010 e distribuído em escolas públicas brasileiras fazendo parte do PNLD
2012. Escolhemos o volume I da série (Manual do Professor) e analisamos ques-
tões da 1ª unidade deste material didático.
Utilizamos as Representações Sociais de Moscovici (2003) como refe-
rencial teórico-epistemológico, que para ele se estabelecem por meio da
objetivação, destacando os processos de materialização, classificação e natura-
lização das imagens de modo que estas se tornem reais e compreensíveis, e da
ancoragem, que se propõe a amarrar, no sentido de atribuir, novos conceitos à
materialização destas novas estruturas.
Também, nos utilizamos do argumento metodológico da Teoria Queer,
pois Garcia (2012) aponta para a necessidade de estudar questões de gênero,
identidade e sexualidade a partir dela aproveitando, assim, sua fundamentação
teórica sem perdê-la de vista enquanto metodologia para as ciências sociais.

7. Discussão dos resultados

A unidade se inicia com uma atividade de pre-reading na qual encon-


tramos uma questão cujo tema é Family Life e dispõe de 08 imagens com
diferentes arranjos familiares (incluindo uma família homoafetiva formada por

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02 homens e 01 bebê). A primeira questão pede ao leitor que olhe as fotografias


e responda Is there any of them that you wouldn’t consider a family? Assim, o
professor é levado a discutir com seus alunos as diferentes organizações fami-
liares tentando, quando necessário, desconstruir as representações negativas
sobre famílias não tradicionais como uma estratégia de sensibilização e natura-
lização daqueles modelos menos comuns.
Neste ponto, Miskolci (2012, p. 16) chama a atenção para o desestranha-
mento do currículo e aponta que dentro da educação a proposta queer sugere
superar “a pedagogização do sexo e transformar a posição da educação não
mais como subserviente aos interesses estatais e biopolíticos”, mas sim compro-
metida com as demandas da sociedade ao passo que reconhece como legítima
a existência de outras afetividades, não só aquelas entre homem e mulher.
A segunda questão, por sua vez, pergunta Which picture or pictures repre-
sent... (pede ao aluno para apontar o número correspondente de cada imagem),
sendo que a referente à família homoparental é descrita como A family with
parents of the same sex. Vemos nesta questão uma oportunidade para o pro-
fessor discutir com seus alunos questões de identidade de gênero e identidade
sexual, traçando suas diferenças, semelhanças e limites em relação ao conceito
tradicional de sexo biológico.
A terceira questão nos provoca mais pontualmente ao perguntar Which
do you believe is the best definition for family? Which one best describes the
Brazilian concept of Family? seguida de 05 respostas que se destacam entre:
a) Grupo de pessoas que vivem sob o mesmo teto; b) Grupo de pessoas com
ascendência em comum; c) Unidade básica em sociedade consistindo de dois
pais e filhos biológicos; d) Grupo de pessoas que podem não ter a mesma
ascendência, mas que se amam muito umas às outras; e) Grupo de pessoas que
tem o mesmo sobrenome.
Vejamos, então: nesta questão há uma tentativa de trabalhar os conceitos
(objetivação) de senso comum acerca do sintagma família, porém notamos igual
tentativa de incorporar novos sentidos possíveis (ancoragem) a este respeito (cf.
MOSCOVICI, 2003) para que, assim, possamos estabelecer uma compreensão
mais abrangente do significado e da conjuntura família na modernidade, não
somente na escola, mas na vida. O debate, neste caso, pede que o professor
tenha bastante desenvoltura e imparcialidade, se libertando de possíveis pré-
-conceitos a respeito destas definições, considerando legítimos outros modelos

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não imediatamente representados na escola, porém igualmente existentes,


necessários e dignos de respeito.
A quarta e última questão, propõe aos alunos que pesquisem referências
de diferentes famílias americanas em filmes, livros, revistas etc. e as comparem
com os referenciais de família brasileira. Vemos nesta questão uma oportu-
nidade de promoção do debate cultural, imprescindível no ensino crítico de
línguas (MOITA-LOPES, 2008), não como forma de estabelecer privilégios de
uma cultura em detrimento de outra, mas como forma ampliar a conscientiza-
ção crítica a partir do rompimento com modelos tradicionais tão largamente
preservados no nosso país. Esta importância dada ao conhecimento crítico é
também proposta pelos autores do LD sendo justificada no Guia Didático da
seguinte forma:
Quando trabalhamos, por exemplo, com o campo lexical relativo
ao tema família, exploramos desde o vocabulário básico relativo aos
membros da família, até os conceitos culturalmente situados, pro-
pondo uma reflexão por meio de textos, dizeres e debates acerca
do tema. Nesta perspectiva crítica, não é possível ensinar palavras
destituídas de seu significado sócio-historicamente constituído e a
elas atribuído, evitando a naturalização das estruturas sociais refle-
tidas nessas palavras e polemizando, ao menos, os processos de
significação aos quais somos submetidos não só na escola, mas no
dia a dia repleto de práticas sociais de linguagem (TEODOROV et
al., 2010, p. 03).

Assim, percebemos que o compromisso o qual assume a obra, muito se


alinha com a necessidade de se voltar para uma abordagem crítica e reflexiva
capaz de promover a cidadania, o respeito às diferenças, a inclusão e a visibili-
dade da homocultura como forma legítima de existência social, tal qual aquela
proposta pelo que Louro (2000) chama de uma pedagogia queer.

8. Conclusões

As representações sociais trazidas pelo livro em análise reconfiguram um


modelo old fashioned de família e lança luz sobre a possibilidade de desnatura-
lização de conceitos limitados de arranjos familiares. O livro, com sua proposta
inclusiva, cumpre um papel social muito legítimo, que é ajudar a ampliar a
luta pela aceitação das diferenças, bem como a promoção do respeito a elas

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necessário. Concluímos, contudo, que o papel do livro didático é significativo


não somente no tocante às questões didático-instrumentais, mas pelas suas
representações de realidade que podem (e devem) incluir certos grupos de
sujeitos sociais, especialmente aqueles com os quais, de acordo com Louro
(2000) e Miskolci (2012), a educação tem uma dividida histórica de subalterni-
dade e de invisibilidade.

9. Referências

BRASIL, Ministério da Educação do. Orientações Curriculares para o Ensino Médio:


Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Volume 1. Secretaria de Educação Básica:
Brasília, 2008.

GARCIA, Loreley. A mensuração de sujeitos fluídos e provisórios: queer methods


and methodologies. In: Revista Ártemis, ed. V, v. 13, jan/jul. UFPB, 2012. p.
242-246. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/
viewFile/14234/8161.

LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade. Porto Editora: Porto,


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MISKOLCI, Richard. Teoria Queer – um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:


Autêntica, 2012.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Por uma linguística aplicada indisciplinar. Parábola
Editorial: São Paulo, 2008.

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TEODOROV, Verônica (org). Freeway (Manual do Professor). Volume 1. Componente


Curricular Língua Estrangeira Moderna – Inglês. Editora Richmond: São Paulo, 2010.

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 747 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

OS MARCOS DO PLANEJAMENTO NACIONAL DA EDUCAÇÃO


SOBRE GÊNERO: A PREOCUPAÇÃO COM UMA EDUCAÇÃO
INCLUSIVA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS

Deisi Noro
Mestranda em Educação em Ciências
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Educação
deisinoro@gmail.com

Vágner Peruzzo
Doutorando em Educação em Ciências
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Educação
vagnerperuzzo@hotmail.com

Márcia Finimundi
Doutora em Educação em Ciências
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Educação
marciafinimundi@gmail.com

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

Este artigo propõe a revisão dos documentos norteadores da educação nacional


no que se refere a preconceito, gênero e discriminação, através da análise das
diretrizes nacionais das políticas públicas de educação no Brasil. Visa adotar
uma ótica que favoreça essas políticas, avaliando como elas podem facilitar ou
dificultar a aquisição de padrões democráticos, uma vez que a política edu-
cacional deve ter um papel neutro, dissociado de preconceitos, entre os quais
destaca-se o de gênero. Considera-se que, a possibilidade de utilizar a forma-
ção docente como veículo para a validação do respeito à orientação sexual e à
identidade de gênero, poderá tornar a escola efetivamente inclusiva.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; política; gênero; formação.

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Sexual e de gênero
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Introdução

O Plano Nacional de Educação de 2001, cita a importância de criar políti-


cas que facilitem às minorias e o Plano Nacional de Educação em vigor, levanta
discussões de 2010 até sua sanção, em junho de 2015. A longa tramitação do
Plano no Congresso Nacional, demonstra os interesses e embates dos vários
sujeitos da sociedade brasileira sobre a educação, inclusive desconsiderando os
planos anteriores que já mencionavam especificamente as questões de gênero,
a partir de 2001.
É importante pensar a elaboração de planos para a educação, embora
com muitas dificuldades, conflitos e debates, buscando a participação social
e gerando, com isso, compromissos e responsabilidades, comprometendo
os governantes com a execução e a sociedade com o acompanhamento e
monitoramento.
O contexto nacional colaborou, registrando nos seus atos legislativos e
normativos, a preocupação em minimizar o preconceito, negando a discrimi-
nação e dedicando-se às questões de gênero ao longo de décadas, mesmo
assim uma lacuna estanque e enraizada que, por motivos diversos e alheios aos
interesses de uma educação acolhedora, vem crescendo e precisa ser dirimida.
A atrofia na execução dos objetivos e metas pensados para minimizar
essa lacuna gerada, deflagra uma ação contrária às políticas públicas inclusivas,
de acesso e permanência na escola, bem como a conclusão de cada uma das
etapas na idade certa, dificultando a identificação de uma das principais causas
de evasão escolar: o preconceito.
A inexistência de acesso e conhecimento do conceito, das diferentes
concepções teóricas de gênero e diversidade sexual como construções históri-
cas, dos movimentos sociais de diversidade sexual e de gênero e dos desafios
ético-políticos que desconsideram os direitos sociais, civis e políticos relacio-
nados à população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e
Transgêneros), deflagram a urgência de ações propositivas na formação inicial
e continuada dos docentes, ampliando assim o acesso à informação de uma
parcela progressivamente maior da população.
Realizou-se uma pesquisa mista: qualitativa e quantitativa, de natureza
aplicada com o objetivo de explorar os documentos norteadores da educa-
ção brasileira quanto ao preconceito e às preocupações com o respeito à

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orientação sexual, igualdade e identidade de gênero, fazendo uso do procedi-


mento documental.
Através de um recorte histórico, percebe-se que sempre houve a preocu-
pação em garantir respeito através dos documentos que marcaram a educação
Nacional, como o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), intitu-
lado: A reconstrução educacional no Brasil - ao povo e ao governo, durante a
vigência da Constituição Federal de 1891, embora apenas um dos focos fosse
a educação.

Em 1932 o documento escrito revelava a importância e a


preocupação em trabalhar com a realidade brasileira

Anisio Spinola Teixeira também assinou o documento que mostrava a


preocupação com o respeito, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(1932), trazia:
Se se quer servir à humanidade, é preciso estar em comunhão com
ela... Certo, a doutrina de educação, que se apoia no respeito da
personalidade humana, considerada não mais como meio, mas
como fim em si mesmo, não poderia ser acusada de tentar, com a
escola do trabalho, fazer do homem uma máquina, um instrumento
exclusivamente apropriado a ganhar o salário e a produzir um resul-
tado material num tempo dado (http://www.histedbr.fe.unicamp.br/
revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf).

O escrito segue referendando a importância da escola unificada, como


ela se estabelece ao pensar na educação em comum:
A escola unificada não permite ainda, entre alunos de um e outro
sexo outras separações que não sejam as que aconselham as suas
aptidões psicológicas e profissionais, estabelecendo em todas as
instituições “a educação em comum” ou coeducação, que, pon-
do-os no mesmo pé de igualdade e envolvendo todo o processo
educacional, torna mais econômica a organização da obra escolar
e mais fácil a sua graduação (http://www.histedbr.fe.unicamp.br/
revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf).

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Contando com a assinatura de vinte e cinco educadores e educadoras


e com a redação de Fernando de Azevedo, a elite intelectual brasileira, no
Manifesto, defendia novos ideais de educação. Escreveram sobre os princípios
fundamentais da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade da educação brasi-
leira e comprometeram-se com a reconstrução do Brasil, a partir de uma nova
educação:
Nós temos uma missão a cumprir: insensíveis à indiferença e à
hostilidade, em luta aberta contra preconceitos e prevenções enrai-
zadas, caminharemos progressivamente para o termo de nossa
tarefa, sem abandonarmos o terreno das realidades, mas sem per-
dermos de vista os nossos ideais de reconstrução do Brasil, na base
de uma educação inteiramente nova (http://www.histedbr.fe.uni-
camp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf).

Após o Manifesto que revelava um plano científico para a educação, na


Constituição Federal de 1934, via-se o surgimento do rigor constitucional impe-
trando à União, a atribuição de fixar um Plano Nacional de Educação. Na Lei
4.024 de 1961, a primeira Lei de Diretrizes e Bases surgia com a imposição do
Conselho Federal de Educação de elaborar planos de educação para aplicação
dos recursos financeiros dos fundos Nacionais. Durante a ditadura, entre os
anos de 1964 e 1985, surgiram os planos setoriais de educação vinculados aos
planos nacionais de desenvolvimento.

Plano Nacional de Educação: efetivamente dois documentos com


força de Lei em 2001 e 2014

Mais de oitenta anos depois do primeiro marco do planejamento nacio-


nal da educação, o primeiro Plano Nacional de Educação, consagrado como
tal através da Lei n° 10.172, em janeiro de 2001, cita nos objetivos e metas do
ensino fundamental a importância da abordagem das questões de gênero e a
eliminação de textos discriminatórios dos livros didáticos:
11. Manter e consolidar o programa de avaliação do livro didático
criado pelo Ministério de Educação, estabelecendo entre seus cri-
térios a adequada abordagem das questões de gênero e etnia e a
eliminação de textos discriminatórios ou que reproduzam estereó-
tipos acerca do papel da mulher, do negro e do índio (Brasil, 2001).

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O mesmo plano, no que tange à educação superior remete à importância


de incluir nas diretrizes dos cursos de formação docente, temas como gênero:
12. Incluir nas diretrizes curriculares dos cursos de formação de
docentes temas relacionados às problemáticas tratadas nos temas
transversais, especialmente no que se refere à abordagem tais como:
gênero, educação sexual, ética (justiça, diálogo, respeito mútuo,
solidariedade e tolerância), pluralidade cultural, meio ambiente,
saúde e temas locais (Brasil, 2001).

A Lei de 2001 traz a preocupação com as minorias e revela que as


mesmas são vítimas de discriminação, demonstrando a preocupação em criar
políticas que permitam a igualdade de condições:
19. Criar políticas que facilitem às minorias, vítimas de discrimi-
nação, o acesso à educação superior, através de programas de
compensação de deficiências de sua formação escolar anterior,
permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições
nos processos de seleção e admissão a esse nível de ensino (Brasil,
2001).

No Financiamento e Gestão da Educação Superior, impera a preocupa-


ção com a permanência das gestantes nos cursos superiores:
31. Incluir, nas informações coletadas anualmente através do ques-
tionário anexo ao Exame Nacional de Cursos, questões relevantes
para a formulação de políticas de gênero, tais como trancamento
de matrícula ou abandono temporário dos cursos superiores
motivados por gravidez e/ou exercício de funções domésticas rela-
cionadas à guarda e educação dos filhos (Brasil, 2001).

No magistério da Educação Básica, mais especificamente na parte desti-


nada à formação dos professores e valorização do magistério, o Plano de 2001
pede obediência à inclusão das questões de gênero:
Este plano estabelece as seguintes diretrizes para a formação dos
profissionais da educação e sua valorização: Os cursos de forma-
ção deverão obedecer, em quaisquer de seus níveis e modalidades,
aos seguintes princípios:

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h) Inclusão das questões relativas à educação dos alunos com


necessidades especiais e das questões de gênero e de etnia nos
programas de formação (Brasil, 2001).

No financiamento e gestão, urge a preocupação em incluir informações,


finalizando e contabilizando oito citações da palavra gênero no corpo da Lei
de 2001.
43.Incluir, nos levantamentos estatísticos e no censo escolar infor-
mação acerca do gênero, em cada categoria de dados coletados
(Brasil, 2001).

O último Plano Nacional de Educação (PNE), ficou em discussão de 2010


até sua sanção em junho de 2014, a longa tramitação do Plano no Congresso
Nacional demonstra os interesses e embates dos vários sujeitos da sociedade
brasileira sobre a educação, inclusive desconsiderando os planos anteriores e o
descumprimento do mesmo no que tange às questões de gênero, como assim
se referia o de 2001.
O PNE, aprovado através da Lei 13.005/2014, como o anterior, visa o
cumprimento do disposto no  artigo 214 da Constituição Federal, determina
que Estados e Municípios aprovem leis específicas para os sistemas Estaduais e
Municipais, atribuindo autonomia para atingir diretrizes que apontem a melho-
ria da qualidade da educação e referencia:
Art. 2o São diretrizes do PNE:
III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de
discriminação;
V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos
valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;
X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à
diversidade e à sustentabilidade socioambiental (Brasil, 2014).

A importância dos conceitos de gênero e orientação sexual para as políti-


cas educacionais e para o próprio processo pedagógico, é imperioso. O conceito
de orientação sexual diz respeito a como a pessoa vive suas relações sexuais e
afetivas e é um assunto que divide opiniões nas diferentes classes sociais, níveis
de conhecimento, idades, e demais possíveis indicadores que apontem para a

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população como um todo, dando à educação uma plausível salvaguarda para o


acolhimento e reconhecimento de todos/as.

Considerações finais

A importância e a necessidade de discutir políticas públicas facilitado-


ras do acesso e permanência de todos/as os/as alunos/as na escola passa pela
agenda de muitos países ocidentais, principalmente a partir do século XX. No
Brasil, embora invisibilizada na execução, a proposta documentada já existia e
demonstrava a preocupação com a realidade.
É fato que somente o conhecimento, hoje precário ou inexiste sobre o
tema, pode minimizar o desalinhamento de informações instaurado nos Estados
e Municípios. O conhecimento precisa iniciar no meio acadêmico, em especial
com os/as formadores/as de docentes e segue em grupos de estudos sobre iden-
tidade de gênero e/ou orientação sexual.
Nesse sentido, é necessária a busca pelo conhecimento e o apri-
moramento do mesmo, a formação docente é pressuposto para
dirimir preconceitos e falta de informação oriundos do vácuo estabe-
lecido no cumprimento dos documentos norteadores da educação
nacional desde 1932, e encontra amparo em Leis que versam sobre o direito ao
respeito e asseguram crianças, adolescente e jovens de todas as formas de
discriminação.
Pensar o aprofundamento sobre gênero como um saber que perpassa
diferentes campos do conhecimento propõe um rompimento com as barreiras
entre as disciplinas e uma mudança de abordagem frente às vivências pessoais,
oportunizando a problematização e a atuação em instituições de ensino supe-
rior, abrindo mão do silêncio sobre o tema que cedeu espaço ao crescimento
do preconceito famigerado na sociedade brasileira.

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Referências

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Educação e dá outras providências. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/
revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf, acesso em 30 de abril de 2016.

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação


- PNE e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso em: 13 mai. 2015.

O MANIFESTO dos pioneiros da educação nova. Revista Brasileira de Estudos


Pedagógicos. Brasília. V.65, n.150. p.407-25, maio/ago.1984. Disponível em: http://
www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf, acesso em 16jun.2016.

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RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL


EM UMA ESCOLA DE ENSINO FUNDAMENTAL
DA REDE DE CONTAGEM/MG

Beatriz Rodrigues
Especialista em Gênero e Diversidade na Escola (UFMG)
beatrizpedagogaempresarial@gmail.com

Isabella Tymburibá Elian


Mestre em Educação (UEMG)
Tutora Orientadora (UFMG)
isabellaelian@gmail.com

Frederico Viana Machado


Doutor em Psicologia Social (UFMG)
Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da UFRGS
phredvm@gmail.com

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

A instituição escolar tem papel fundamental não só na socialização do conhe-


cimento, mas na construção identitária de valores, crenças e preconceitos.
Portanto, ela pode ser tanto produtora como reprodutora de desigualdades. O
presente estudo trata de uma pesquisa qualitativa, resultante de um trabalho
monográfico que buscou investigar as relações de gênero e diversidade em
uma escola de ensino fundamental na rede de Contagem-MG. Os resultados
apontam que, apesar do município contar com um aparato de políticas públicas
voltadas ao tratamento da diversidade, elas não tem sido efetivamente apropria-
das pela instituição pesquisada.
Palavras-chave: Política pública. Diversidade. Escola. Homofobia. Educação básica.

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Introdução
A escola desempenha um papel relevante na socialização dos saberes e
das práticas relacionadas à diversidade. Para tal, torna-se necessário a descons-
trução dos significados impostos aos indivíduos, seus corpos e suas práticas
(SILVÉRIO, et. al, 2010). Urge, no espaço escolar, instituir estratégias de enfren-
tamento e desconstrução das várias facetas do preconceito. Este trabalho tem
como objetivo analisar as relações institucionais e interinstitucionais que inter-
pelam e são interpeladas pelas relações de gênero e diversidade sexual no
cotidiano da escola, considerando as relações entre uma escola da rede pública
e as políticas públicas do município de Contagem/MG, que legitimam e dão
suporte técnico ao trabalho com essas temáticas.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com dois funcionários da
Secretaria Municipal de Educação e analisados documentos sobre diversi-
dade sexual; e foi desenvolvido um trabalho etnográfico, complementado com
entrevistas com professores e funcionários, que contemplou a observação do
cotidiano e dos equipamentos escolares de uma instituição de ensino.

Políticas Públicas e Aplicabilidade no contexto escolar

A cidade de Contagem é referência em políticas públicas sobre gênero,


raça e diversidade sexual, apontando a importância de analisarmos como esses
instrumentos alcançam o cotidiano escolar. Com uma perspectiva de transfor-
mação social e valorização da diversidade, a Secretaria Municipal de Educação
(SME) através do Departamento de Educação Continuada, Alfabetização de
Adultos, Diversidade e Inclusão (DECADI) vem trabalhando com ações afir-
mativas e possui programas consolidados. Um deles é o Programa Gênese,
instituído em 2007, com a finalidade de valorizar a diversidade, combater o
sexismo e a homofobia nas escolas do município.
Através deste programa foram desenvolvidas ações como: cursos de
formação para professores; envio de livros e material didático para as esco-
las da rede; parcerias com universidades para oferta de cursos de extensão e
pós-graduação. Relacionada a este projeto, a SME, a Resolução nº 008/2010
estabeleceu parâmetros para a inclusão do nome social de travestis e transexu-
ais nos registros internos da escola (CONTAGEM, 2010).
Em 2011, foi organizado o primeiro Grupo de Trabalho (GT) com o obje-
tivo de abrir espaços para diálogo, formação e troca de experiências entre os

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educadores. Nos primeiros encontros esses educadores tiveram a oportunidade


de debater sobre as possibilidades e desafios enfrentados para a efetivação das
propostas de trabalho elaboradas durante os cursos de formação. A partir de
então, nos encontros dos GTs, através de estudos e troca de experiências, foram
redigidas diretrizes para o trabalho com as temáticas de gênero, sexualidade e
diversidade Sexual, publicadas em 2013.
As diretrizes destacam que essas questões estão presentes no universo
escolar e, na maior parte das vezes, produzem violência e exclusão, indicando
possibilidades para que essa abordagem seja superada (CONTAGEM, 2013).
Outro fator importante é o fato de fomentarem o comprometimento das uni-
dades escolares em envolver as famílias nas formações, de forma que, juntas,
família e escola, atuem como parceiras nos projetos pedagógicos.
No entanto, na escola pesquisada, de acordo com relatos levantados, a
maioria dos docentes que participam das formações e dos GTs fica sabendo da
oferta através de outros professores, de outras escolas. Tais constatações apon-
tam que a divulgação destas formações ainda é incipiente, indicando a baixa
capilaridade entre a gestão e os serviços de educação. Outro aspecto a ser
considerado é a baixa participação e o envolvimento parcial dos docentes nas
formações. Um dos fatores responsáveis pode ser a falta de educadores para
substituição dos professores que se dispõe a participar das formações.
De fato há políticas públicas e iniciativas consistentes da SME para a for-
mação continuada, no entanto, estas não estão chegando efetivamente na escola
pesquisada e, portanto, não contemplam efetivamente o grupo de professores.
É importante ressaltar que o Plano Municipal de Educação de Contagem (Lei
nº 4737/2015), só foi aprovado pelos vereadores de Contagem após a retirada
das menções sobre gênero e diversidade sexual na escola. Este Plano tem por
objetivo pautar estratégias e metas voltadas à educação do município até 2024.
Inicialmente a meta 8 propunha:
Potencializar as ações educativas e inclusivas das escolas de
Educação Básica de Contagem ampliando o debate sobre gênero,
sexualidade, diversidade sexual e étnico-racial, diversidade reli-
giosa, povos indígenas, quilombolas, ciganos e juventudes no
campo da ética, cidadania e dos direitos humanos (CONTAGEM,
2015)

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Em decorrência de uma série de polêmicas e protestos, a referida meta


sofre alteração e é aprovada com a seguinte redação: “Potencializar as ações
educativas e inclusivas das escolas de Educação Básica de Contagem, não per-
mitindo nenhuma forma de exclusão ou segregação” (CONTAGEM, 2015). Todas
as menções aos termos “gênero e diversidade sexual” sofreram alterações. Isto
pode significar um retrocesso, pois termos genéricos tendem a fragilizar a pauta
de grupos não hegemônicos, ignorando a especificidade dos direitos humanos.
Por outro lado, a lei não impede a escola de trabalhar questões de gênero
e diversidade sexual. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998)
apontam que discutir relações de gênero no contexto escolar permite questio-
nar os papéis estabelecidos a homens e mulheres, a valorização de cada um,
bem como a flexibilização destes papéis. Nesse sentido, realizar trabalhos sobre
gênero e diversidade sexual no contexto escolar deve ser um compromisso dos
educadores com a sociedade.
Muitas são as possibilidades e direcionamentos da SME em relação ao
trabalho com gênero, e diversidade sexual, no entanto, apesar do Município
contar com recursos específicos e ter o programa Gênese, ainda assim cede a
pressões políticas, como no caso do Plano Municipal de Educação.
Existe, de fato, uma tensão nos processos de negociação de políticas públi-
cas de gênero. Segundo Vianna (2012) é a partir deste processo de negociação
que são definidas a eliminação e/ou consolidação de programas, projetos, refor-
mas, planos e ações praticados pelo Estado. Os diferentes atores, “nas suas
respectivas pluralidades, articulam-se e/ou disputam acirradamente interesses
sociais que se fazem presentes nesse processo” (VIANNA, 2012, p. 130).

Resultados e Considerações finais

A pesquisa discutiu algumas relações entre as políticas públicas de educa-


ção e o cotidiano escolar, indicando insuficiências e limitações que demandam
atenção. É grande a parcela de professores que desconhecem os aparatos
legais a respeito do tratamento da diversidade na escola, principalmente sobre
as políticas públicas de educação do próprio município. Entre os professores
identificamos: falta de informação sobre as formações, normativas, diretrizes e
políticas públicas em geral; insegurança em trabalhar as questões; influência da
família nas questões pedagógicas; orientação religiosa das famílias e valores tra-
dicionais. Muitos dos educadores não têm se apropriado das políticas públicas

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de educação disponíveis e não realizam o trabalho. Nota-se que muitos ainda


não estão sensibilizados e capacitados para abordarem estas questões no coti-
diano escolar, reproduzindo discursos preconceituosos.
Se a SME oferece suporte e isto não chega aos professores, acreditamos
que isso se deve a problemas de comunicação entre a SME e a escola, ou
pode ser apenas um argumento para justificar o silenciamento e a omissão da
escola frente às demandas contemporâneas. Vimos também que estes temas
enfrentam conflitos no interior dos órgãos governamentais, o que nos leva a
considerar a fragilização, o sucateamento e a invisibilidade do trabalho dos ges-
tores e técnicos envolvidos com estas políticas públicas.
Em relação às estratégias para o enfrentamento das adversidades para
trabalhar as questões de gênero e diversidade sexual, sobretudo em relação
à oposição da família, a escola não avançou, pois não há interesse de que a
família participe, de fato, da Proposta Pedagógica da Escola. Argumentamos
que, intervenções de agentes externos podem ser fundamentais, estimulando a
escola a enfrentar os problemas decorrentes destes conflitos.
Observa-se que, se de um lado, os professores almejam auxílio dos pais, de
outro, ficam incomodados quando a família intervém no seu trabalho pedagó-
gico, e na sua autoridade profissional. Observamos que as famílias são bastante
participativas, na referida escola, e têm a tendência de interferir nas propostas
de trabalho. Quando o assunto é sexualidade e gênero, identificamos situações
que acabaram por impedir o trabalho dos professores. Os professores sentem-
se intimidados e desmotivados a iniciar e/ou dar continuidade em temáticas que
demandam, além de tratamento pedagógico adequado, apoio institucional.
De um lado a escola demanda apoio institucional, mas por outro lado,
como relatado por uma assessora pedagógica da SME, pouquíssimas escolas
procuram o setor. Os materiais disponibilizados para as escolas são bem diver-
sificados e atuais. Além de livros de Judith Butler, Michel Foucault, Guacira
Lopes Louro, entre outros, foram enviados às escolas, cartilhas, livretos e mate-
riais didáticos. No entanto, tais informações não batem com o depoimento das
auxiliares de biblioteca da escola pesquisada, que dizem desconhecer estes
materiais. Essa resposta é compreendida mais adiante, quando a assessora
pedagógica da SME afirma que já havia trabalhado na escola pesquisada e tem
ciência que tais materiais ficam trancados em armários, sem que os membros
da comunidade escolar tenham acesso.

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Nossas análises apontam que é um desafio complexo fazer com que a


escola trabalhe estas temáticas, sendo preocupante o fato de a escola não se
apropriar das políticas públicas sobre o tema para legitimar e aprimorar suas prá-
ticas. Entretanto, o fato de a palavra gênero ter sido retirada do Plano Municipal
de Educação aponta que o governo também cedeu às pressões da família e da
religião. Frente a isso, a escola se sente ainda mais enfraquecida para debater
tais questões, que acabam ficando a cargo dos profissionais mais engajados
com as temáticas.
Também é preciso considerar que, embora a SME disponibilize formação
continuada e GTs, estes interferem pouco para que os processos pedagógi-
cos se transformem de fato. Identificamos que não há programas ou processos
avaliativos que façam uma análise da instituição escolar e acompanhe mais de
perto os efeitos das diretrizes. A escola parece funcionar como uma instituição
independente, com relações hierárquicas rígidas e demarcadoras de territórios.
Portanto, os próprios funcionários e professores, incluindo aí direção e coor-
denação pedagógica, reproduzem discursos preconceituosos e o preconceito
institucional.
Contagem, recentemente recebeu da Organização das Nações Unidas
(ONU) o selo de Cidade Aprendizagem. Este mérito foi possível em grande
parte pelo Programa de Formação Continuada, com a proposta de interseto-
rialidade, onde vários órgãos governamentais articulados atuariam junto aos
estudantes em situação de vulnerabilidade. Entretanto, como demonstra nossa
investigação, as questões de gênero não têm alcançado a escola em suas práti-
cas pedagógicas.
Ressalta-se então que o DECADI, ainda que possua propostas consistentes
e pessoas comprometidas politicamente, encontrará pela frente o desafio de se
aproximar mais das escolas, impactando as práticas pedagógicas e as relações
institucionais.

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ISBN 978-85-61702-44-1 761 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CONTAGEM. Resolução Nº. 008/2010, de 23 de agosto de 2010. Dispõe sobre


os parâmetros para a Inclusão do Nome Social de Travestis e Transexuais nos
Registros das Unidades de Ensino no âmbito da FUNEC – Fundação de Ensino de
Contagem. Diário Oficial de Contagem, Contagem, MG, ano 19, n. 2531, p. 9, 23
ago. 2010. Disponível em: <http://www.contagem.mg.gov.br/arquivos/doc/2531web.
pdf?x=20160709061937>. Acesso em: 12 dez. 2015.

CONTAGEM. Lei nº 4737, de 24 de junho de 2015. Aprova o Plano Municipal de


Educação - PME e dá outras providências. Diário Oficial de Contagem, Contagem,
MG, ano 24, n. 3649, 24 jun. 2015. Disponível em: <http://www.contagem.mg.gov.br/
arquivos/doc/3649doc-e.pdf?x=20160709061010>. Acesso em 12 dez. 2015.

CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação. Departamento de Educação


Continuada, Alfabetização de Adultos, Diversidade e Inclusão. Diretrizes para o
trabalho com as temáticas de gênero, sexualidade, diversidade Sexual na rede muni-
cipal de Contagem. Contagem, 2013.

SILVÉRIO, et. al. As relações étnico-raciais e a educação. In: MISKOLCI, R. Marcas da


diferença no ensino escolar. São Carlos: EduFSCar, 2010.

VIANNA, Cláudia. Gênero, sexualidade e políticas públicas de educação: um diá-


logo com a produção acadêmica. Pro-Posições, Campinas, v. 23,  n. 2,  p. 127-143,
ago 2012 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext& pid
=S0103-73072012000200009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 29 jun. 2016.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

“NO MEU TEMPO HAVERIA UM RESPEITO AO SEXO


E AO GÊNERO DAS PESSOAS, HOJE NÃO”:
PROBLEMATIZANDO DISCURSOS DE DOCENTES
DE EDUCAÇÃO BÁSICA SOBRE GÊNERO

Danilo Araujo de Oliveira


Mestrando em Educação
Universidade Federal de Sergipe
danilodinamarques@hotmail.com

Alfrancio Ferreira Dias


Doutor em Sociologia
Universidade Federal de Sergipe
diasalfrancio@hotmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Neste texto, problematizamos os discursos de docentes de educação básica


sobre gênero. Metodologicamente realizou-se coleta e análise a partir de 8
entrevistas (com 6 mulheres e 2 homens), inspirados em um posicionamento
pós-crítico. Conclui-se que em meio ao reconhecimento das diversidades de
gênero, os discursos biológico, religioso e científico influenciam as expectativas
de gênero das/dos docentes, o que as/os leva a perceber os corpos que não
obedecem a norma heterossexual como desvio e/ou estranho.
Palavras-chave: Docência; Gênero; Normas de gênero; Diversidade Sexual.

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Introdução

As construções sobre gênero ao longo das diversas formações (acadê-


mica/científica/religiosa/social/etc.) as quais foram submetidas/os ao longo da
vida em um cenário de disputas aparecem nos enunciados das/dos docentes.
Apresentamos resultados da análise das representações docentes sobre gênero,
influenciados por um posicionamento pós-crítico (HALL, 1997; PARAÍSO, 2012;
SILVA, 1999) para refletir e desconstruir as várias formas de produção do dis-
curso no/do sujeito, procurando dar cada passo entrelaçando a outras teorias
metodológicas que acreditamos que pudesse contribuir para fundamentar e
refletir sobre o objeto de pesquisa atrelados principalmente as contribuições
teóricas sobre gênero de Butler (2003) e Louro (1997; 2015).

Representações dos/as docentes sobre gênero

As provocações iniciais se dão a partir da percepção de que circulam na


sociedade discursos que concebe sexo como natural e gênero como social-
mente construído mas “na conjuntura atual já está claro que colocar a dualidade
do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais e a estru-
tura binária do sexo são eficazmente estruturadas” (BUTLER, 2003, p. 25). E
por vezes são esses discursos que atravessam os enunciados dos sujeitos para
justificar uma posição que não contempla as diversidades, opiniões ancoradas
e sustentadas em um olhar normatizador e dicotômico, como pode-se notar no
excerto em destaque a seguir:
No meu tempo, eu ainda sou um pouco conservadora, haveria
um respeito ao sexo e ao gênero das pessoas. Hoje não. Liberdade
total. Hoje o homem pode ser homem e pode ser homem e mulher
ao mesmo tempo, a mulher também e há liberdade pra isso. Eu
respeito, cada um tem sua maneira de viver. Certo? Mas eu entendo
que quando você é mulher você dever assumir ser mulher, se hou-
ver uma variação de sexo durante esse tempo pode acontecer, que
todo ser humano é fraco, mas isso eu não aceito. Se eu sou mulher,
eu vou assumir ser mulher. Mas eu aceito todas essas mudanças,
corpo, gênero, sexualidades (...) Tudo muda no mundo, de pessoa
pra pessoa, então eu aceito as mudanças que estão acontecendo
em cada ser, mas eu mesma não mudaria (PRISCILA).

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É interessante notar que a professora logo se assume como “conserva-


dora” ao denunciar que no seu tempo, ou há um tempo que não corresponde
ao tempo presente, ela percebia que havia um controle das pessoas sobre os
seus corpos e o corpo dos outros, ao que no enunciado aparece como “res-
peito”, o que leva a refletir que pelo menos predominantemente, ao seu olhar, as
performances das pessoas correspondiam ao corpo biológico binário a tempo
que hoje ela nota que os corpos estão mais livres para atravessar as fronteiras
impostas por uma anatomia que parecia ser determinante de um gênero. As
multiplicidades de performance de gênero são reconhecidas apesar de haver
um discurso forte que entende a identidade de gênero como um destino fixo e
imutável.
Aquelas pessoas que fogem desse destino, são consideradas como fracas
pois não conseguem corresponder ao padrão normativo de gênero ancorados
em um sexo pré-discursivo dicotômico, para Louro (2015, p. 23) “a visibilidade
e materialidade desses sujeitos parecem significativas por evidenciarem, mais
do que outros, o caráter inventado, cultural e instável de todas as identidades”
Essa multiplicação de gênero e de sexualidade, o trânsito dos corpos, a
ideia de um sujeito unificado sendo fragmentada, torna-se um incômodo e um
questionamento aos padrões conservadores que aparece na fala da professora
de modo que o binarismo de gênero aparece como uma única forma de viver
no enunciado em destaque, ao passo que as ideias se dividem em “aceito” e
“não aceito” elegendo de certa forma o seu discurso como oficial, hegemônico,
verdadeiro e estruturante de uma sociedade que se permite julgar as trans-
gressões de um modelo instituído como verdade mas que ao mesmo tempo
apresenta necessidade de se reiterar, se repetir, para tornar fixo e natural a ideia
“que supõe um “sexo” como um dado anterior a cultura e lhe atribui um caráter
imutável, a-histórico e binário” (LOURO, 2015, p. 15).
O poder exercido sobre os “corpos estranhos” e os diversos mecanis-
mos que ele encontra para proliferação é uma barreira a ser superada, em que
tal atitude deve está engajada principalmente com a desestabilização e estra-
nhamentos dos discursos hierarquizantes. É pois com essa proposta que será
lançado o olhar para os enunciados a seguir:
É, mas hoje é uma questão de escolha mesmo. De identificação
pessoal. Você se identifica como homem ou como mulher. Então a
coisa hoje tá por aí (PAULO).

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Gênero, acho que o que determina o gênero é o que você deter-


mina a ser. Então, como você sente. Eu acho que gênero é como
você se sente em relação a sua sexualidade. Então não é que o
gênero já venha determinado, eu acho que é algo que você se iden-
tifica no decorrer da sua vida. Então no decorrer da sua vida que
você vai se descobrindo como homem ou mulher entendeu? E por
aí... (LUCI).

Então eu penso que gênero está mais relacionado a essa questão da


pessoa enquanto identidade, enquanto reconhecimento né? É de
sua sexualidade e não exatamente numa questão que a sociedade
costuma definir que é masculino e feminino, então que enquadra
né? Em concepções fechadas e muitas vezes a própria liberdade,
o próprio ser e estar do indivíduo muitas vezes não é considerado
(ANA).

É comum nos três enunciados a ligação da representação de gênero com


identidade, processos de identificação, esse é um importante avanço para com-
preensão de gênero, pois pode-se entender a partir daí que vai-se interiorizando
e aprendendo comportamentos ao longo da vida como masculinos e femininos
mas corre o risco dessa compreensão está atrelada a concepção de papeis que
acaba por produzir identidades baseadas em características sexuais pré-defi-
nidas, mesmo atribuindo um caráter social ao gênero, alguns essencialismos
podem aparecer. Nesse sentido cabe questionar, rejeitar as suposições que são
construídas sobre os gêneros que divide as construções e subjetivam as percep-
ções em maneiras unívocas de perceber o que é masculino e o que é feminino.
Nos dois primeiros enunciados por exemplo, as identidades aparecem ainda de
forma constituída e fixada em torno das representações polarizadas de percep-
ção de si como homem ou como mulher, mas é preciso compreender que o
processo de identificação é permeado por diversas instâncias, de relações de
classe, étnica e essas identidades não estão ligadas de forma dividida apenas
em torno dessas duas percepções. As identidades são múltiplas, e as próprias
representações de homens e mulheres são diversas, como também as masculi-
nidades e feminilidades.
As representações da/do docente que ainda trazem suas percepções de
gênero de forma dicotômica estão ancoradas em um discurso biológico que
elegem e estruturam estereótipos de forma binária, não reconhecendo que os
corpos podem transitar por essas fronteiras e que as identidades de gênero
são móveis. Tal conhecimento é reiterado e reforçado por discursos religiosos,

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políticos, científico e outros, afim de contribuir com atos que se repetem para
naturalizar performances dimórficas de gênero e contribuir para perpetuação
de um poder masculino.
Nesse sentido cabe trazer que há verdades inventadas sobre os compor-
tamentos dos sujeitos que buscam estruturar o conhecimento e educá-los de
acordo com um sexo pré-discursivo e naturalizado, a partir daí características
são construídas e há um constante investimento em controlar, corrigir e vigiar
os corpos para que eles apresentem performances de acordo com as carac-
terísticas anatômicas natas. Nesse sentido, ao pensar gênero uma das ações
propostas é tencionar a valorização dessas características, como os discursos
que circulam constantemente sobre elas funcionam para manter uma ordem
dominante, marcadamente androcêntrica.
Reconhecer nessas construções um contexto histórico que por muito
tempo destinou a mulher o espaço do privado, à subordinação, a profissões
ligadas ao cuidado e como extensão as atividades que são exercidas no lar,
que inviabilizou sua participação como cidadã, privando-as de direitos políti-
cos e de participar ativamente dos processos da sociedade, que foi silenciada
no universo acadêmico e científico. Perceber também como os homens são
constantemente estimulados a exercer uma única forma de masculinidade, cor-
respondendo às expectativas de uma sociedade que também os oprime e os
vigiam constantemente.
Mas todas essas construções que permitem perceber o gênero como um
constituidor das identidades dos sujeitos, é um projeto de sociedade e como
todo projeto ele encontra barreiras e falhas que questionam seus pressupostos
e verdades, dessa forma uma diversidade de masculinidades e feminilidades
entram em cena para anunciar novos modos de ser homem e ser mulher ou
simplesmente em não se perceber dentro dessas categorias, hora transitando
por esses espaços, hora subvertendo-as totalmente, corrigindo o que antes era
um dado da natureza e um destino de vida, ou simplesmente não se impor-
tando com este dado exercendo livremente identidades que não cabem em
uma genitália.
Mesmo que o discurso da diversidade de gênero seja uma marca repre-
sentativa no enunciado da professora Ana, há ainda uma representação que
liga gênero a sexualidade, como essas construções são comumente difundidas
de forma atrelada. Mas há uma necessidade de perceber algumas distinções,
para superar a compreensão de uma sexualidade correspondente ao sexo de

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nascimento, para entendê-la também como submetida a relações de poder


que instauram discursos que buscam normatizar também os desejos, mas esses
desejos também são diversos e o prazer de viver a sexualidade podem ser de
diversos modos, com pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto, dos dois sexos,
ou de nenhuma dessas formas. Então apesar de ser coisas distintas, conforme
esclarecido anteriormente, ambas apresentam uma característica comum, estão
em um processo contínuo de construção e não cabe delimitar um momento
certo para dizer que elas estão acabadas, estão sendo constantemente sendo
subjetivadas e transformadas, adquirindo dessa forma um caráter transitório.
Perceber a pluralidade dos gêneros e seus atravessamentos é um passo
importante para a desconstrução de um sentido que constrói o que é normal
e que é constantemente reforçado, compreendendo também nesse exercício
como o silenciamento é uma linguagem e colabora para perpetuar uma ordem
dominante que nega posições que são móveis, não naturais e/ou estáveis. A
partir desse viés de questionamento e desconstrução que busca-se instaurar um
caráter múltiplo do gênero. Os estudos de gênero numa perspectiva pós-crítica
têm colaborado na circulação de discursos que percebam essa multiplicidade,
contudo há uma construção histórica de discursos que são eleitos para manter
a ordem hegemônica que deslegitima performances que não obedecem a coe-
rência de um gênero binário. Dessa forma ainda que haja um posicionamento
de reconhecimento da diversidade, alguns discursos são atravessados por outros
normatizadores e os enunciados aparecem presos as armadilhas de uma lógica
biologicista. O enunciado a seguir transita por essas construções:
O gênero que antigamente era somente masculino e feminino, mas
que hoje eu considero outros gêneros, mas certíssimo, que eu acho
que isso não depende da gente, né? Do ser humano. Não é pro-
priamente uma escolha nossa. Eu acho que a pessoa já nasce pra
ser aqui, ou feminino, ou masculino, ou outro gênero, que eu não
sei na minha ignorância talvez assim, definir qual é a palavra certa
(SÔNIA).

Ainda que apareça um discurso que entende o gênero para além de uma
percepção polarizada entre masculino ou feminino, há uma vinculação de uma
constituição dada no nascimento o que acaba deixando de lado a percepção de
uma construção de gênero móvel, que é construída, que é submetida as sanções
normatizadoras de um projeto de sociedade heterossexista, de aprendizagens

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que são instituídas nas relações sociais, de comportamentos influenciados pela


cultura.

Conclusões

As concepções de gênero das/dos docentes percebem predominan-


temente que as fronteiras de gênero têm sido questionadas por corpos que
desviam e tencionam as normatizações ancoradas em um binarismo de gênero,
mas tais performances ainda são vistas como desviantes e estranhas por tran-
sitarem também além de espaços dicotômicos que concebem a construção de
identidades apenas como masculinas ou femininas de acordo com a genitália
que o corpo apresenta.
O discurso biológico que elege discursos para reiterar as normas de
gênero que legitimam formas de ser homem e ser mulher conforme o sexo do
nascimento transita pelos enunciados. Percebe-se também que as distinções
entre gênero e sexualidade não são reconhecidas, o fato geralmente aparece
difundido em alguns enunciados pois a sequência sexo-gênero-sexualidade são
reforçadas para que se propague um conhecimento que legitimam modos de
viver o desejo apenas de forma heterossexual.
Questionar as representações das/dos docentes sobre gênero é trazer
à tona uma conjuntura pedagógica que ainda está estruturada em torno de
conhecimentos que não priorizam a diversidade de gênero, silenciando discus-
sões pautadas na visibilidade de corpos e identidades que não se reconhecem
em uma estrutura binária e tem seus direitos cessados e não reconhecidos,
abjetos por uma política normatizadora.

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão de identidade. Trad.


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A 1997.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação e currí-


culo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: Metodologias
de pesquisas pós-críticas em educação. (Org.) MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO,
Marlucy Alves. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do


currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-es-


truturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

____________________. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria


queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

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DIVERSIDADE DE GÊNERO E DOCÊNCIA:


ANÁLISE DAS VIVÊNCIAS PROFISSIONAIS
DE UMA PROFESSORA TRAVESTI

Danilo Dias
(PPGREC/UESB)
Mestrando em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia
Atua na área de educação com ênfase nas discussões sobre gênero e sexualidades
daniloduesb@gmail.com

Marcos Lopes de Souza (Orientador)


Doutor em Educação e Professor titular da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (PPGREC/UESB)
markuslopessouza@gmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Nesse trabalho, abordamos as práticas discriminatórias e as fugas a essas práti-


cas vivenciadas por uma professora travesti que possui experiência no espaço
educacional em uma escola de uma cidade do interior da Bahia. A construção
dos dados se deu por meio do diário de campo elaborado durante as observa-
ções realizadas no cotidiano profissional da docente, especialmente, em suas
aulas e na sala das/os professoras/es. A pesquisa identificou que a presença da
travesti põe em xeque a idealização da professora sem corpo e assexuada que
tanto as escolas tentam (re) produzir e que essa presença, mesmo com a vigi-
lância e, às vezes, objeção está ganhando espaço e provocando incômodos e
reviravoltas nas escolas marcadas pela transfobia e cisnormatividade.
Palavras-chave: travestilidade; sexualidade; professora; gênero; comunidade
escolar.

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Introdução

A proposta deste texto é discutir e problematizar alguns posicionamentos e


compreensões que aparecem em relação à docência de uma professora travesti
e o trabalho dela com as questões de gênero e sexualidade em uma escola do
interior da Bahia. Também pretendemos analisar as reações e posicionamentos
da comunidade escolar mediante a presença da professora neste espaço escolar.
Compreendemos que há muitos percalços e resistências que permeiam o tra-
balho com as questões de gênero e sexualidade, mas acreditamos que o não
reconhecimento das diferenças e multiplicidades que o espaço escolar geral-
mente nos apresenta nas suas mais diversas hierarquizações não pode continuar
sendo justificado, equivocadamente por meio de fundamentalismos, afinal de
contas, no âmbito da escola, vários são os desafios que nos depararemos e não
podemos nos acomodar, cruzar os braços e simplesmente ignorar.
Em espaços variados e contextos diversos há problemáticas em torno das discus-
sões sobre gênero e sexualidade, porém, escolhemos delimitar as experiências
nos espaços educacionais, pois, segundo (LOURO, 2007 p. 88):
Esses espaços educacionais, essas instituições e práticas não
somente “fabricam” os sujeitos como também são, eles próprios,
produzidos (ou engendrados) por representações de gênero, bem
como por representações étnicas, sexuais, de classe, etc. De certo
modo poderíamos dizer que esses espaços e instituições têm
gênero, classe, raça.

Desse modo, é fundamental compreender como certos mecanismos de


resistência e de poder funcionam e como algumas pessoas presentes nesses
espaços veem, também, essas experiências, além de possibilitar o estudo das
relações de grupos e/ou indivíduos com o meio social e cultural que os consti-
tuem na contemporaneidade. Compreendemos travestilidade aqui, como uma
expressão de gênero que, em certa medida, rompe com as concepções hege-
mônicas e com os limites culturais e sociais estabelecidos, problematizando
e desestabilizando conceitos e idealizações do que é ser homem ou mulher,
instituída e consolidada a partir das normas de gênero que dão inteligibilidade e
concedem humanidade aos corpos (BUTLER, 2003; BENTO, 2008).
Mas ressaltamos que essa compreensão em torno das travestilida-
des não abrange todas as travestis, pois há uma infinidade de possibilidades

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de entendimento da travestilidade nos mais variados espaços e contextos.


Pesquisando sobre a literatura científica na área, observamos que alguns/as
estudiosos/as e pesquisadores/as percebem que não há consenso entre as pró-
prias travestis quanto às categorizações e conceituações de suas identidades. O
ser mulher ou o sentir-se mulher, as compreensões do feminino, da feminilidade
e também da masculinidade no universo das travestis são muito complexas.
As travestilidades não se resumem em serem ou sentirem-se mulheres
e se desejam ou não realizar cirurgias, pois encontramos casos em que as
particularidades e as intenções de cada travesti influenciam no lugar de iden-
tificação, desvinculando-se inclusive, em muitos casos, o seu alvo de desejo
sexual das propostas e objetivos de fabricação do feminino em seus corpos.
“Neste contexto, os principais fatores de diferenciação entre uma figura e outra
se encontram no corpo, suas formas e seus usos, bem como nas práticas e rela-
ções sociais”. (BENEDETTI, 2005, p. 18).
A professora que se autodeclara travesti não é compreendida, por boa
parte da comunidade escolar, como mais uma possibilidade de expressão do
gênero, mas antes como alguém que quer para si algo que não condiz com a sua
condição “natural”. Entendemos que há uma regulação dos corpos conforme a
norma binária homem/pênis/ desejo sexual por mulheres e mulher/vulva/desejo
sexual por homens. (JESUS; ALVES, 2010). Essa ideia de naturalização coaduna
com a da cisgeneridade que legitima os discursos discriminatórios relacionados
às pessoas trans, reforçando os binarismos e a relação rígida e imutável entre
sexo e gênero. Inclusive, por ser travesti, o próprio desempenho profissional
desta professora é continuamente questionado, bem como sua conduta em sala
de aula e nos outros espaços escolares.

A professora travesti e a demarcação dos espaços para a


escolarização dos corpos

A professora Bilú, como se autonomeia e é conhecida na comunidade


escolar, leciona há oito anos na rede municipal de ensino na cidade de Jequié
no interior da Bahia. É graduada em Pedagogia e sempre trabalhou com as
séries iniciais do 1º ao 5º ano. Trabalha pela prefeitura por meio de contratos
assinados após aprovações em processos seletivos simplificados. No ano de
2014 ela iniciou suas atividades na Educação de Jovens e Adultos - EJA, com as

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disciplinas de Português e Artes no turno noturno de uma escola de pequeno


porte em um bairro periférico da referida cidade.
Não desconsiderando os mais variados aspectos que podem e devem ser
discutidos com base nessa experiência de acompanhamento às atividades na
escola, delimitamos trazer para esse texto alguns posicionamentos que surgiram
e algumas problematizações em relação à presença da professora travesti na
instituição escolar.
Os discursos que apareciam na escola por meio das pessoas companhei-
ras de trabalho, em sua maioria, remetiam à necessidade de que era preciso se
ter muito cuidado com o corpo para se apresentar aos/às alunos/as que estariam
sobre seus cuidados. Como dito por Louro (2007):
Os mais antigos manuais já ensinavam aos mestres os cuidados
que deveriam ter com os corpos e almas de seus alunos. O modo
de sentar e andar, as formas de colocar cadernos e canetas, pés e
mãos acabariam por produzir um corpo escolarizado, distinguindo
o menino ou a menina que “passará pelos bancos escolares”
(LOURO, 2007, p. 61).

A professora Bilú passou por vários processos de violência em suas vivên-


cias na escola, desde os questionamentos por parte do corpo docente para que
ela evitasse ir para a escola com roupas de mulher, passando por perseguições
e constante vigilância da direção sobre o seu trabalho. Houve até, durante um
período, a criação de um espaço para a professora travesti de modo que ela não
ficasse junta com as demais na sala dos/das professores/as.
“Não acho que ele deva vim para a escola vestido como mulher,
pois isso vai contra a normalidade da escola. Isso pode trazer
sérios problemas para o bom andamento das atividades” (Rosa).
“Acho complicado um professor do sexo masculino se apresentar
na sala de aula trajando blusinhas, cabelo comprido, calças justas
e unhas pintadas... Meu Deus o que a escola está se tornando”?
(Margarida) 1

1 Transcrição das falas de duas professoras do quadro efetivo da escola. Os nomes para referi-las são
fictícios e o critério para a escolha foi a utilização de nomes de flores.

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Há um medo por parte dessas professoras de que Bilú possa influenciar


xs alunxs a, por exemplo, sentirem desejos e a quererem conhecer mais sobre a
travestilidade e que isso se intensifique nas discussões no espaço da sala de aula
e da escola como um todo. Conforme Seffner e Reidel (2015, p. 446).
Esta é a dimensão menos desenvolvida no debate, em especial por
conta do pânico moral que domina as discussões, e que de ime-
diato coloca as professoras travestis e transexuais na posição de
pessoas pouco confiáveis para servir de exemplo às novas gera-
ções, portanto, inadequadas para estarem em sala de aula, frente
às “inocentes” crianças e jovens.

As professoras em questão não querem que a professora travesti se cons-


titua enquanto um exemplo a ser seguido. Entendemos que as falas “isso vai
contra a normalidade da escola” e “professor do sexo masculino” reiteram, em
certa medida, um aprisionamento do corpo a uma expressão unificada ou única
em que a cultura cisheteronormativa é a que deve marcar esta corporalidade.
A repugnância das professoras funciona como uma tentativa de regulação e de
proibição daquilo que entendem como indesejável na sala de aula.
Quando as professoras dizem que Bilú poderá trazer sérios problemas
para a escola ao perguntar sobre o que a escola está se tornando, nos ques-
tionamos quais são esses problemas? A escola não pode ter uma professora
travesti? Por que não? Quiçá, a travesti desloca a figura da professora tradicional
para uma professora que tem uma corporalidade, em especial pelos atributos
de gênero e sexualidade (SEFFNER; REIDEL, 2015). Bilú perturba continuamente
este lugar da norma e inquieta xs colegas de trabalho.
Havia uma colega de trabalho que, diferentemente de outras pessoas
da comunidade escolar, via em Bilú um grande potencial para se problema-
tizar a relação entre xs professorxs e a comunidade escolar como um todo.
Essa colega sempre se mostrou próxima e também curiosa na busca por mais
conhecimento sobre a temática de modo a reconhecer as singularidades de sua
colega de trabalho e, especialmente, ter argumentos para questionar situações
de discriminação.

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Sexual e de gênero
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Sexualidade e escola: dialogando com a turma

A Educação sexual na escola ainda insiste em permear um campo especí-


fico das questões preventivas e reprodutivas, dificultando uma ampliação para
as discussões em torno das temáticas sobre diversidade de gênero e sexual
(ALTMANN, 2009). Em virtude disto, em uma das aulas com a EJA, Bilú organi-
zou uma discussão com xs alunxs sobre as questões de gênero e sexualidade. A
turma contava com treze estudantes na faixa etária entre 16 e 49 anos. Para isso
utilizou as aulas de uma sexta-feira para não seguir o cronograma proposto pela
escola e trazer o tema para a sala. O diálogo iniciou assim que ela apresentou
a temática no quadro e várias pessoas já começaram a fazer questionamentos.
Algumas disseram que aquilo não era tema para ser tratado na escola e outras
defenderam a tese de que é fundamental falar sobre isso para que se conheçam
mais sobre as diferenças.
A professora argumentou no sentido de que quem tivesse interesse em
conhecer mais sobre o tema ficaria na sala e quem não gostasse ou estivesse
sentindo incômodo poderia se retirar. Todxs ficaram inclusive aquelxs que
disseram não concordar, inicialmente. Ao fazer a questão norteadora que era
para abordarem o que entendiam sobre gênero e sexualidades, a professora
deu espaço para o início das discussões. Em síntese, de treze alunxs presentes,
nove disseram que estas se tratam das questões sobre nascer do sexo mascu-
lino ou feminino e das relações sexuais das pessoas e quatro disseram tratar-se
das formas de relacionamento entre homem e mulher, gravidez e métodos
contraceptivos.
Surgiram questões sobre a homossexualidade e sobre sua condição ‘anti-
natural’ para o estabelecimento da procriação, entendendo que dois homens ou
duas mulheres não podem gerar um bebê, além de se querer saber de modo
fixo quem é o homem e quem é a mulher na relação. A professora argumentou
que, no seu caso, ela se vê como a mulher da relação, mas disse também que
nem sempre isso acontece com as travestis ou com os gays e lésbicas, pois
muitas pessoas não querem estabelecer isso para o casal. Ela encerrou dizendo
que as discussões sobre gênero e sexualidade tratam desse assunto e que todxs
devem buscar conhecer mais para lidar de maneira mais educada e respeitosa
com as pessoas na escola e fora dela.
Esta intervenção da professora Bilú também contribuiu para que xs alunxs
compreendessem e reconhecessem a travestilidade enquanto uma possibilidade

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de expressão de gênero tão legítima como qualquer outra, inclusive alguns/algu-


mas disseram a princípio que entendiam Bilú como homem, do sexo masculino
e que gostava de se vestir de mulher. Portanto, foi uma experiência relevante
para que também Bilú problematizasse a cisgeneridade enquanto norma que
invisibiliza as identidades trans.

Considerações finais

Nas experiências vividas pela professora e retratadas nesse texto, é pos-


sível observar como determinadas convenções sociais tornam-se incorporadas
aos discursos e compreensões sobre as questões de gênero e de sexualidade
no contexto escolar. Percebemos a gravidade e a complexidade da situação
presente na escola e que isso, notadamente não é exclusividade dessa escola
em questão. A falta de mobilidade curricular para a ampliação das questões que
devem ser discutidas nas escolas talvez seja um dos motivos de manutenção da
fixidez nas formas e normas escolares.
Defendemos a ideia de que é preciso problematizar, exaustivamente os
conhecimentos que são selecionados para serem apresentados nas escolas,
de modo a que se evite negligenciar e invisibilizar qualquer tipo de expressão
humana que existe e está presente no processo interativo e das relações entre
as pessoas, inclusive nas escolas.

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Referências

ALTMANN, H. Educação sexual em uma escola: da reprodução à prevenção. Cadernos


de Pesquisa, Maranhão, v. 39, n. 136, p. 175-200, jan./abr. 2009.

BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005.

BENTO, Berenice Alves de Melo. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense,


2008, 181 p. (Coleção primeiros passos).

BUTLER, Judith P. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 236 p.

JESUS, Jaqueline Gomes; ALVES, Hailey. Feminismo Transgênero e Movimentos de


Mulheres Transexuais. Cronos, Natal, v. 11, n. 2, jul./dez. 2010.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-es-


truturalista. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 179 p.

SEFFNER, Fernando; REIDEL, Marina. Professoras travestis e transexuais: saberes


docentes e pedagogia do salto alto. Currículo sem fronteiras, v. 15, n. 2, p. 445-464,
maio/ago. 2015

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O CORPO E SEUS SIGNIFICADOS SOCIAIS


NA ESCOLA E PARA ALÉM DELA, COMO
POTENCIALIDADES NOS PROCESSOS DE FORMAÇÃO.

Claudete Imaculada de Souza Gomes


Mestranda em Educação
Universidade Federal de Juiz de Fora – Faculdade de Educação
cl_claudete@hotmail.com

Anderson Ferrari
Professor Adjunto
Universidade Federal de Juiz de Fora – Faculdade de Educação
aferrari13@globo.com.br

Claudio Magno Gomes Berto


Mestrando em Psicologia Social
Universidade Federal de Minas Gerais
cl-magno@hotmail.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

Este trabalho apresenta uma discussão acerca das possibilidades dos corpos de
atores da escola, e como esses corpos são construídos, significados e subjetiva-
dos nesses espaços. Parte de uma pesquisa de mestrado, em andamento, que
objetiva problematizar as abordagens utilizadas por professore/as para os temas
relações de gênero e sexualidades na educação, e um eixo dessa discussão se
faz através de variados significados dados ao corpo ao longo da história, como
parte dela, construindo saberes e sendo transformados através da cultura, da
disciplina escolar, dos discursos praticados na escola, enquanto parte ativa e
fundamental na construção das relações de gênero e vivência e expressão das
sexualidades.
Palavras-chave: corpo, relações de gênero, sexualidades, escola.

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Introdução

Neste trabalho a discussão se faz através dos variados e variantes signifi-


cados atribuídos ao corpo, ao longo da história, como parte dela, construindo
saberes e sendo transformados através da cultura, da disciplina escolar, enquanto
parte ativa e fundamental nas relações de gênero e vivência das sexualidades e
suas expressões. O corpo que viaja através do tempo e do espaço, trazendo con-
sigo as demonstrações de mudanças e possibilidades que o ser humano pode
representar. O corpo que mostra, o que disfarça, o que ensina, que aprende,
que transforma e é transformado, que significa e é significado, que sente, que
sofre, que goza, que luta, que vive e que morre, que existe.
Pensando o papel destes corpos que habitam e circulam nos espaços
onde se desenvolvem os processos que compõem a educação de crianças,
jovens e adultos, podemos problematizar a importância que é dada a eles?
Como se diferenciam e são diferenciados por nós e pelos papéis que desempe-
nhamos nesses espaços? Como os corpos, tantos e variados, são vistos, olhados
e significados nesses espaços e no desenrolar de todos os processos que ali se
instalam?
Essa discussão tem como foco principal as relações de gênero e sexua-
lidades presentes no universo que abarca a escola e seus atores, e penso que
não é possível conduzir essa discussão ignorando a importância fundamental
do corpo e de suas representações nesses espaços e com os seus significados, já
que o gênero e as sexualidades estão ancorados, ou são ancorados, em corpos.
Partindo da premissa de que os corpos são construções discursivas é possível
pensar com Foucault, quando o autor declara que ocorreu uma centralização
do corpo como foco dos estudos empíricos sobre a finitude do homem, “[...]
marcada pela espacialidade do corpo, pela abertura do desejo e pelo tempo da
linguagem” (Foucault, 1966, p. 331).
A construção dos gêneros e as discussões acerca dos papéis e lugares a
serem desempenhados e ocupados através das práticas, ou negações, das sexu-
alidades, se dá através da dinâmica das relações sociais entre os atores sociais,
e os discursos praticados por estes. Heleieth Saffioti (1992) considera que não
se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro, mas
reconhecer a totalidade formada pelo conjunto composto pelo corpo, pelos
sentimentos, pelas histórias de vida que irão formar cada sujeito e permitir
que se desenvolva relação com o outro. Cada ser humano é a história de suas

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relações sociais, perpassadas por antagonismos e contradições (CARLOTO;


CASSIA MARIA. 2010).
Para nós, que estamos na escola hoje, representa prática necessária pro-
blematizar e discutir os significados e a valorização que determinadas culturas
atribuem aos corpos, as práticas narrativas a eles associados, as hierarquias que
a partir da sua anatomia se estabelecem, e seus efeitos, que nos deixam, acerca
dos corpos, uma certeza: “o corpo é ele mesmo uma construção social, cultural
e histórica” (GOELLNER, 2010. p.33).

Corpo e escola

Ao pensarmos como estamos nos constituindo - enquanto docentes que


atuam na educação básica – nesse processo de fazer ver, fazer falar e fazer
pensar, os corpos generificados e sexuados dentro e fora das escolas, indaga-
mos em que momento sabemos e assumimos abordar esses temas? Quantos
de nós, professoras/es, estamos contribuindo para uma pretensa invisibilidade,
o silenciamento, esse possível “não falar” dos corpos, de seus sentidos, de
suas possibilidades de circulação? Ou formas de falar que privilegiam algumas
posições e sentidos e emudecem outras? Investigando com docentes que,
assumidamente ou não, abordam as questões de gênero e sexualidades em
suas aulas, buscamos ouvir destas/es docentes de que forma é possível pro-
duzir possibilidades que nos mostrem caminhos para essas construções que
vislumbramos no cotidiano da escola. Quando Guacira Louro(2015) declara
que as teorias educacionais e as inúmeras disciplinas que constituem os cur-
sos de formação docente quase sempre permanecem mudos a respeito dos
corpos, corpos dos/das estudantes e também dos nossos próprios, torna-se
possível vislumbrar a cortina que cobre, o muro que constrói, essa invisibi-
lidade. Segundo ela, naquilo que chama de “sagrado” campo da educação
não apenas separamos mente e corpo mas, mais do que isso, suspeitamos do
corpo (p.2).
Durante minha pesquisa, recebi respostas de docentes que privilegiam
alguns termos bastante significativos, dentro do que acreditamos compor com
as relações nos espaços escolares, começando pela ideia de respeito, que apa-
rece repetidamente e de maneira muito efetiva. De início busco os possíveis
significados para a palavra e tenho, em alguns desses significados, elementos
que vêm contribuir para perceber o que cada docente quis dizer, em sua fala,

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ao citar o termo respeito. Uma/um docente declara discutir “o respeito às dife-


renças e os métodos preventivos”, como temáticas abordadas em sua escola,
durante as suas aulas, demonstrando associação entre a discussão das diferen-
ças e os cuidados com o corpo, sobretudo no que se refere à contracepção,
discussão que ainda está bastante presente na educação básica, de acordo com
as falas que recebemos.
Seguindo pensando com Louro (2015), a autora sugere que há uma prá-
tica escolar do que ela chama de Pedagogia da Sexualidade, que provoca um
processo de escolarização do corpo e a produção de uma masculinidade,
demonstrando como a escola pratica, a partir desta pedagogia da sexualidade,
o disciplinamento dos corpos. Tal pedagogia é muitas vezes sutil, discreta, con-
tínua, mas, quase sempre, eficiente e duradoura (p.17). Acho possível sugerir
que essa “pedagogia” à qual Guacira se refere, não apenas age para produzir
um modelo de masculinidade, mas também de feminilidade, que se reflete,
por exemplo, na preocupação com contracepção, mais comumente voltada ao
controle do corpo da mulher, colocando em tensão diferentes possibilidades de
viver o ser mulher, o ser homem, o ser não-binário, o queer, dando-nos a opor-
tunidade de podemos vislumbrar neles “formas de romper com determinados
essencialismos atribuídos, por cada cultura e por cada contexto histórico, para
o que seja, por exemplo, masculinidade e feminilidade” (GOEELNER, 2010, p.
32) e tantas outras possibilidades de ser e de viver para além de corpos que se
adequem para obedecer e propagar o modelo normativo prescrito e imposto
pela sociedade, e que é, reiteradamente citado como ideal, correto e legítimo,
dentro dos espaços das escolas, afastando aqueles que não se enquadram ao
modelo compulsório prescrito por esta norma.
A norma, ou as normas, que constroem as masculinidades e feminilidades
e que, segundo as prescrições sociais são autorizadas a circular livremente nos
espaços escolares, e gozar de seus privilégios, estão, frequentemente, entrando
em colisão com novas posições e possibilidades, criadas e vividas por aqueles
e aquelas que resistem à adequação compulsória ao modelo imposto. Sujeitos
que trazem em suas crenças e práticas, formas e performances alternativas de
ser, de viver e de ter prazer. Estão presentes e atuantes nesses espaços, firmando
diálogo com o modelo heteronormativo constantemente presente, resistindo a
ele, enquanto aquele que dita o que deve ser seguido e praticado como cumpri-
mento às normas de gênero, identidades sexuais e orientações do desejo.

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Corpo, sexualidades e cultura

Uma importante questão que se impõe quando pensamos na discussão


acerca do tema “corpo”, em que há a relevância de considerá-lo em diferentes
aspectos e dimensões, é a necessidade de pensar sobre a condição de que
somos sujeitos-corpos, isto é, entender o corpo como parte de nossa identi-
dade, de nossa unidade de existência que nos torna visíveis e nos põe a circular
no mundo. Esta ideia nos traz o entendimento de que, nas ações e atitudes
que realizamos, pode-se observar três enfoques: biológico, psicológico e social,
além de outras possibilidades de abordagens relacionadas, como antropoló-
gicas, econômicas, históricas, que podemos considerar interdependentes das
anteriores.
Jefrey Weeks (2015), nos lembra que
na medida em que a sociedade se tornou mais e mais preocupada
com as vidas de seus membros – pelo bem da uniformidade moral;
da prosperidade econômica; da segurança nacional ou da higiene
e da saúde -, ela se tornou cada vez mais preocupada com o disci-
plinamento dos corpos e com a vida sexual dos indivíduos (p.52).

Considerando a ênfase dada a essa forma de ver e discutir os corpos e as


sexualidades, que, de acordo com, Foucault (2011) assume maior destaque a
partir do século XVIII, quando ocorre a “colocação do sexo em discurso”, este
tema, “em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a
um mecanismo de crescente incitação” (p. 19). O corpo e a sexualidade como
temas de discussão foram submetidos ao crivo da palavra, ao controle institu-
cional sobre o que se diz e como se diz.
Trazendo para dialogar conosco outras/os docentes que também se
manifestam a esse respeito, é possível pensar que é na escola que as/os jovens
encontram o espaço para a conversa mais abrangente, partindo do exercício
do discurso, que, segundo Foucault, está presente no cotidiano, embora de
forma controlada. Uma das respostas recebidas traz que “para muitos alunos
talvez seja o único espaço que permita essa discussão com clareza e respeito”,
e “afinal é um lugar de formação em que podemos a partir do contato com a
Ciência, desmistificar conceitos que reproduzem o preconceito e a violência”.
Para Foucault (2011), em torno e a propósito do sexo há uma verdadeira explo-
são discursiva. E o autor enfatiza que

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É preciso ficar claro. Talvez tenha havido uma depuração – e


bastante rigorosa – do vocabulário autorizado. Pode ser que
se tenha codificado toda uma retórica da alusão e da metáfora.
Novas regras de decência, sem dúvida alguma, filtraram as pala-
vras: polícia dos enunciados. Controle também das enunciações:
definiu-se de maneira muito mais estrita onde e quando não era
possível falar dele; em que situações, entre quais locutores, e em
que relações sociais; estabeleceram-se, assim, regiões, senão de
silêncio absoluto, pelo menos de tato e discrição: entre pais e filhos,
por exemplo, ou educadores e alunos, patrões e serviçais. É quase
certo ter havido aí toda uma economia restritiva. Ela se integra
nessa política da língua e da palavra – espontânea por um lado e
deliberada por outro – que acompanhou as redistribuições sociais
da época clássica. (p. 23-24)

A escola é um dos espaços de formação e educação de crianças, jovens


e adultos, e onde podemos observar que as diferentes marcas que se incorpo-
ram ao corpo a partir de distintos processos educativos. Mas, não é a única,
visto que há sempre várias pedagogias em circulação que agem continuamente,
contribuindo para essa construção. Filmes, música, revistas e livros, imagens,
propagandas são também locais pedagógicos que estão, o tempo todo, nos
dizendo das formas de ser e viver, seja pelo que mostram ou pelo que ocultam.
Dizem também de nossos corpos e, por vezes, de forma tão sutil que podemos
nem mesmo perceber o quanto somos capturadas/os e produzidas/os pelo que
lá se diz (GOELNNER, 2010, p.29).
Nossa sociedade, assim como todas as outras sociedades que povoam o
mundo possuem seus diversos padrões culturais, nos quais estão inseridos os
processos educativos. Através também da educação, a cultura é produzida e
se torna parte inseparável desta, agindo como um conjunto de possibilidades
que cada sociedade utiliza para disseminar seus conhecimentos e suas práti-
cas. Porém, sabemos que a cultura é viva e dinâmica, ela muda no tempo e
no espaço, e isso nos provoca a pensar que os seres humanos não são apenas
interpretes de uma cultura, mas são, o tempo todo, criadores de cultura. Do
imbricamento entre natureza e cultura surge a realidade que é designada por
corpo, e é no universo cultural que esses corpos são construídos, desconstruí-
dos, subjetivados e inventados.

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Considerações finais

Inspirados pelas leituras feitas até agora e pelas respostas que recebemos
até o momento, que dizem do cotidiano de professoras e professores de 03
escolas da rede municipal de Juiz de Fora, podemos dizer que é importante
chamarmos a atenção para as reflexões a se fazer sobre questões relaciona-
das a representação de corpo e a constituição das identidades de gênero e da
sexualidade nas escolas. É relevante apresentarmos algumas das concepções de
corpo e suas configurações assumidas ao longo da história ocidental, até que
cheguemos às manifestações desse corpo na contemporaneidade, o que cha-
mamos o corpo pós-moderno. Os desafios a serem enfrentados pelos modelos
de educação contemporânea ainda são muitos, mas todos, em algum momento,
perpassam pelos corpos e por eles são atravessados.
Ao dizer que “a escola deve se preparar mais para essa discussão mas não
é fácil”, a/o docente nos leva a olhar para a escola como espaço de formação e
sociabilidade, e como estão se instaurando e desenvolvendo suas relações com
as/os docentes que a compõe, quando se dão os momentos de discussão e ava-
liação dos conteúdos e temas a serem ali abordados. Ao dizer dessa escola que
precisa se preparar, as/os docentes estão fazendo mais do que apenas sugerir
uma formação continuada, mas demonstrando que as discussões a respeito do
corpo e de todos os seus significados, passando diretamente pelas relações de
gênero e sexualidade precisam fazer parte incondicional dessa abordagem.
Temos Guacira Louro (2015) que fala do ensinamento que produziu um
modo de ser, e pensamos ser possível dizer um pouco mais, sugerindo que
a linguagem produz modos de ser, que foram transformados, desconstruídos
e reconstruídos ao longo da história, em atravessamentos com os processos
educacionais representados pela escola, pela família, pela religiosidade, pelos
campos políticos e sociais em ação. Felizmente, uma vez que somos feitos
no movimento e de movimento, tais aprendizados também não são perenes
(p.364).
Os corpos que circulam nos espaços escolares trazem, em suas forma e
performances, inúmeras possibilidades de ser sujeitos da educação e da histó-
ria, na construção de uma escola mais justa e igualitária para todas as formas
de ser e estar no mundo.

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Referências bibliográficas:

CARLOTO, Cassia Maria. O conceito de gênero e sua importância para a análise das
relações sociais. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c_v3n2_genero.
htm. Acesso em 12/04/2016.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas.


São Paulo: Martins Fontes, 1966.

FOUCAULT. Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber, 3 edição. Rio de


Janeiro: Graal, 2011.

GOELLNER, Silvana Vilodre. In:LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER,


Silvana Vilodre, (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na
educação. 5ª ed. Rio de Janro: Vozes, 2010.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3ª Edição.


Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A. O. ; BRUSCHINI,


C. (Orgs.) Uma questão de gênero. São Paulo; Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: O corpo educado: pedagogias da


Sexulalidade. 3ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

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EDUCAÇÃO, EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS, GÊNEROS E


SEXUALIDADES: PROBLEMATIZAÇÕES DE UMA PESQUISA

Roney Polato de Castro


Doutor em Educação
Faculdade de Educação – UFJF
roneypolato@gmail.com

Nathalia Guimarães e Sousa


Graduanda em História
Faculdade de Educação – UFJF
nathaliagsb@yahoo.com.br

GT 22 - Educação, religião e direitos humanos: diálogos interdisciplinares sobre a


diversidade sexual e de gênero

Resumo

O trabalho tem como objetivo apresentar dados preliminares de uma pesquisa


que tem como centralidade os atravessamentos entre experiências religiosas,
relações de gênero, sexualidades e educação. Selecionamos dados a partir da
aplicação de questionários com profissionais das escolas, com foco na sua for-
mação e educação religiosas, na relação entre religiões e as relações de gênero
e sexualidades na sociedade, no contexto escolar e na formação docente. As
problematizações iniciais nos conduzem a pensar que a docência se produz
em tensas redes discursivas que entremeiam experiências religiosas, de gênero
e sexualidades, com reverberações nos modos de conduzir as práticas pedagó-
gicas e as relações com a comunidade escolar.
Palavras-chave: educação; experiências religiosas; gêneros; sexualidades;
formação.

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Este texto apresenta dados iniciais de uma pesquisa com foco nos atra-
vessamentos entre educação, sexualidades, relações de gênero e discursos
religiosos. Partimos da hipótese de que o acirramento dos debates contem-
porâneos acerca desses temas ocorre, especialmente, com a problematização
das relações de sujeição a um código moral religioso, constituindo uma ética
de submissão às normas codificadas, mais que experiências religiosas que pro-
movem práticas de liberdade (FOUCAULT, 2006). Sendo assim, consideramos
relevante ampliar as análises acerca das relações de poder e dos processos de
subjetivação envolvidos nos modos como professoras e professores pensam e
lidam com os discursos religiosos e com a diversidade sexual e de gênero nas
escolas.
O recrudescimento de uma moral-religiosa pautada na manutenção da
heteronormatividade e dos binarismos de gênero vem se constituindo como
um desafio às discussões sobre as relações de gênero e sexualidades no campo
social contemporâneo. Tal “virada conservadora” se organiza em resposta às
transformações sociais e culturais que envolvem novos direitos e leis em prol da
erradicação de desigualdades e do reconhecimento público da legitimidade das
distintas ‘orientações sexuais’. Sujeitos, grupos e igrejas colocam-se contrários
à pluralização das sexualidades e gêneros, num cenário de embates, disputas
no campo das leis e políticas públicas, conflitos no que tange às iniciativas
que buscam discutir essas temáticas nas escolas, nas universidades e no plano
social mais geral. Recentemente, assistimos à polêmica1 em torno da aprovação
do Plano Nacional de Educação (PNE), quando deputados da bancada reli-
giosa se opuseram veementemente à redação do artigo 2º do então projeto de
lei, que se relacionava à superação das desigualdades educacionais, provendo
a igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual. Os deputados
afirmavam que se tratava da imposição de uma “ideologia de gênero”, contrá-
ria aos “valores morais” e que, portanto, temiam pela “destruição da família”.
Consideramos que essa trama político-social atravessa os projetos educacionais
e de formação docente. Cabe, portanto, problematizar experiências e relações
que constituem essa trama discursiva, pensando que ela instaura certos modos

1 Ver menção ao tema no seguinte endereço eletrônico: <https://ensaiosdegenero.wordpress.


com/2014/04/12/pne-e-a-ideologia-de-genero/>. Acesso: 11 set. 2014.

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de relação dos sujeitos da educação com os processos educacionais, a partir de


suas experiências religiosas.
Neste trabalho selecionamos dados a partir da aplicação de questionários
com profissionais de duas escolas públicas, que atuam no 6º ao 9º do Ensino
Fundamental e no Ensino Médio, com foco na sua formação e educação reli-
giosas e na relação entre religiões e as relações de gênero e sexualidades na
sociedade. Selecionamos duas questões para análise neste texto. Na primeira
perguntamos: “Em sua formação familiar e social você recebeu uma educação
baseada em alguma religião específica? Na atualidade, você professa/pratica
alguma religião? Comente sobre essas questões”. Na escola A, dos vinte e cinco
questionários respondidos, treze docentes se declararam católicas/os, seis se
declararam espíritas e duas/dois evangélicas/os, outros/as se colocaram como
“não praticantes” ou como “cristãs/aos”. Relevante destacar que a maioria
afirmou ter tido formação familiar católica. Na escola B, dos vinte e quatro
questionários respondidos, dez docentes se declararam católicas/os, cinco se
declararam espíritas e duas/dois evangélicas. As/os demais não tem uma religião
definida ou não praticam qualquer religião. Destaque que a maioria também
teve formação familiar católica. Encontramos, em ambas as escolas, pessoas se
identificando como “não praticantes”, algo que parece remeter a uma formação
religiosa que deixa marcas morais e éticas nos modos das pessoas se conduzi-
rem. Destacamos algumas respostas:
“Sigo com orgulho ao Kardecismo, que me completa e não ques-
tiona e nem julga minhas ações.” (Escola A)
“Na verdade não discuto religião, mesmo porque tenho conhecido
tipo: evangélicos, espíritas e até ateu.” (Escola A)
“Pela linha paterna minha formação religiosa foi bastante plural,
tenho contatos com várias linhas religiosas e filosofias diversas (tais
como Umbanda, Kardecismo, Esoterismo, entre outros). Não sou
religiosa, nem ateia, creio basicamente em uma energia universal.”
(Escola A)
“Tenho formação católica, embora seja crítico em várias questões
desta religião. Professo esta religião não de forma muito assídua.”
(Escola A)
“Católica, tento ser ecumênica, para não agredir, ou ferir algum
aluno ou deixa-lo em situação desconfortável.” (Escola A)

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“Frequento missas na Igreja Católica e palestras em Centro espírita.


Sinto-me bem ao ouvir ensinamentos voltados à tolerância, ao amor
ao próximo.” (Escola A)
“Hoje sou cristão, mas não me considero pertencente a nenhuma
religião.” (Escola A)
“Sim, fui educada na religião católica e por opção continuo na fé
católica, vivo a religião, mas não sou fechada a todas as polêmicas
geradas em torno.” (Escola B)
“Sim, minha formação familiar é na igreja protestante, porém, hoje
eu não me considero evangélica e sim cristã, tentando seguir o que
Cristo nos ensinou e não o que as igrejas ensinam. Não tenho a
prática de frequentar uma igreja.” (Escola B)
“Sim. Sou católica e fui criada dentro de sua rigidez absurda.”
(Escola B)
“Sim, religião espírita. Busquei uma religião baseada na razão para
explicar minha espiritualidade, abandonando os dogmas da ante-
rior [católica].” (Escola B)

Podemos notar que os valores religiosos estão na base das relações sociais
familiares, algo que reverbera na formação dos sujeitos de modo heterogêneo.
Uma formação que pode ser “plural” ou “dentro de uma rigidez absurda”, que
envolve frequentar uma igreja ou não, que envolve reconhecer-se em uma
determinada confissão religiosa, dizer-se apenas cristão ou crer em uma “ener-
gia universal”. Formação que produz experiências religiosas, modos pelos quais
podemos ser subjetivados/as pelos discursos religiosos, que envolvem crenças
e certos modos de agir e viver, a sujeição a uma moral, e também os modos
como nos ocupamos de nós mesmos e nos conduzimos a partir dos códigos
morais associados a essas formações discursivas, ou seja, como nos constituí-
mos sujeitos dessa moral (FOUCAULT, 2006). Embora haja críticas aos preceitos
religiosos, aos dogmas, arriscamo-nos a pensar que as professoras e professores
conduzem-se por esses preceitos, de modo que suas práticas pedagógicas e
seus modos de lidar com as questões relativas aos gêneros e sexualidades nas
escolas serão atravessadas pelas experiências religiosas. Consideramos que as
respostas à outra questão do questionário nos dão pistas sobre essa relação. Ela
solicitava às/aos docentes: “Fale sobre a relação entre religiões e as questões
de gênero e sexualidade na sociedade em geral”. Entre as respostas é relevante
destacar a ênfase numa relação tensa, disputada e negociada, que poderia ser
resumida em: “As religiões não aceitam outras formas de sexualidade a não ser o

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sexo entre homem e mulher”. Outras respostas, para falar dessa relação, traziam
em seu texto expressões como “problemática”, “tabu”, “polêmica”, “complexo”,
“as religiões não aceitam e recriminam”, “existe muito preconceito”. Destacamos
algumas delas:
“A identidade de gênero ainda é um tema pouco discutido no meio
religioso. Apesar de ser um assunto cada vez mais presente na
sociedade atual, para muitas religiões tratar de sexualidade e tran-
sexualidade ainda é um tabu.” (Escola B)
“A abordagem da relação entre religião e sexualidade ainda é
bastante problemática, visto que maior parte de nossos alunos assu-
mem se como cristã e essa vertente religiosa não abarca as questões
sobre homossexualismo.” (Escola B)
“Particularmente acho que se tornou um assunto muito polêmico,
principalmente em sala de aula. Devido a muitas crenças, falta de
informações e preconceitos. E isso na minha opinião é o reflexo de
como a sociedade trata o assunto.” (Escola B)
“Por muito tempo se divulgou o ‘ideal’ em relação a estas questões.
A religião é cercada pelo modelo de família com o pai, sendo um
homem, a mãe, sendo a mulher e esses dois papeis se consolidaram
na sociedade. Mediante estas ‘convenções’ ditadas vejo a dificuldade
da sociedade religiosa em aceitar a diversidade mesmo que tenha
esta diversidade aconteça também há muito tempo.” (Escola B)
“O que me vem agora, é que somos todos irmãos, Deus ama a
todos. Existe discriminação se a mulher gosta de mulher, se homem
gosta de homem, ou até mesmo dos dois, acho difícil entender, mas
respeito.” (Escola A)
“As religiões de modo geral são normativas, moralistas e principal-
mente hipócritas. Não conheço “alguma” que não seja, machista,
beirando a misoginia tanto no texto religioso quanto nas práticas
religiosas.” (Escola A)
“Mesmo a sociedade sendo considerada moderna e democrática, a
religião continua tendo um peso que condiciona muitas atitudes e
opiniões na sociedade.” (Escola A)
“A maioria das religiões prega o preconceito em relação às questões
de gênero e sexualidade, uma vez que não aceitam relacionamen-
tos que não sejam heterossexuais.” (Escola A)
“Acredito que, equivocadamente, alguns líderes religiosos incitam
a intolerância religiosa e a intolerância em relação à diversidade de
gênero.” (Escola A)

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Compreendemos que as religiões cristãs apresentam distintos posicio-


namentos acerca das diversidades sexuais e de gêneros, seja no modo como
concebem e lidam com elas, seja na relevância que atribuem a sua discussão.
Além disso, no interior de cada confissão religiosa, os sujeitos podem apresentar
distintos modos de pensar e de lidar com essas temáticas. Há, porém, modos
de funcionamento discursivo e de práticas que podem reunir essas confissões
religiosas, passando por certas ‘leituras’ da bíblia cristã, que envolvem o dire-
cionamento moral dos pensamentos, atitudes e comportamentos ligados às
experiências das sexualidades e dos gêneros. Tal direcionamento se organiza
a partir do pressuposto heteronormativo e cissexista, baseado na ideia de que
os sujeitos que vivem sexualidades não-heterossexuais e gêneros não-binários
estariam em desacordo com o propósito sagrado e o plano divino, ameaçando
crenças e valores que sustentam as relações sociais. As respostas das professoras
e professores parecem se aliar a essa análise, ao identificarem nas religiões cristãs
dificuldades em incluir as identidades de gênero e sexuais, tornando-as margi-
nais. Em especial, notam-se as tensões em se tratando das homossexualidades.
Também aparece a sala de aula como espaço de disputas, especialmente devido
ao fato de estudantes assumirem-se como cristãs/aos. Relevante notar que nas
respostas as professoras e professores não dizem ter dificuldades pessoais com
tema, com exceção de uma que argumenta: “acho difícil entender, mas respeito”.
O que neste texto tratamos como ‘discurso religioso-cristão’, inspirando-
-nos em Foucault (2006), vem se colocando nas práticas sociais como discurso
de verdade que o legitima em si mesmo e constitui seu caráter impositivo e
doutrinário. A partir das respostas das professoras e professores e da constata-
ção, por meio das mídias, de outras tantas tensões, podemos discutir que vem
sendo colocada em funcionamento, por algumas igrejas ou mesmo segmentos
de igrejas, uma visão fundamentalista dos códigos morais-religiosos-cristãos em
relação ao exercício das sexualidades e às relações de gênero, que enfatiza a
interpretação literal da bíblia cristã e a obediência rigorosa e literal a certos
princípios considerados básicos à vida e à doutrina cristãs. A resposta da pro-
fessora que menciona um ideal, pautado no modelo de família tradicional, se
relaciona com os enunciados que atravessam as falas exasperadas e os pronun-
ciamentos acalorados de políticos/as e pastores evangélicos, nos quais podemos
identificar que a defesa de certos valores e modos de vida parte da recusa de
outros, o que entendem como “ameaça às famílias”, resistindo a processos de
mudança que expõem as ‘fissuras’ da heteronormatividade. Como argumenta

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outra professora: “equivocadamente, alguns líderes religiosos incitam a intole-


rância religiosa e a intolerância em relação à diversidade de gênero”.
A partir de outra resposta, podemos pensar que o ‘discurso religioso-cris-
tão’ não funciona de modo homogêneo: “O que me vem agora, é que somos
todos irmãos, Deus ama a todos”. Assim, pode haver diferentes, e às vezes con-
flitantes, modos de funcionamento do ‘discurso religioso-cristão’, na medida em
que se associa a outros discursos e se materializa em relações sociais concretas.
Outra resposta nos conduz a pensar em possibilidades menos normativas:
“Embora haja, atualmente, muitas críticas e embates acerca dessa
relação, enquanto educadora, minhas ações não podem estar pau-
tadas nos meus princípios religiosos. Em espaços laicos, nenhuma
religião deveria intervir. Acredita-se que o respeito é primordial,
respeito a opinião dos outros da mesma forma que gosto de ser
respeitada.” (Escola A)

Nem sempre as experiências religiosas se opõem à problematização do


‘discurso religioso-cristão’. Uma professora aponta a possibilidade do amor como
valor religioso e indica que isso poderia construir outras relações sociais; outra
indica a necessidade de não pautar suas ações na escola pelos princípios religio-
sos. Pensando no âmbito mais geral das relações sociais, trabalhos como o de
Natividade e Oliveira (2013) apontam para iniciativas de representantes de igrejas
e denominações religiosas, facções de igrejas e até mesmo para o surgimento de
igrejas “inclusivas”, pautadas na abertura para a convivência com múltiplas sexu-
alidades e gêneros. Configuram-se, assim, possibilidades de um tratamento digno
dos sujeitos que não se adéquam ao esperado na heteronormatividade e cisgene-
ridade, sem considerá-los/as como “pecaminosos”, “anormais”, “desviantes”.
Por fim, prosseguimos a pensar que são diversas as inseguranças, as ten-
sões e os medos quando se trata de lidar com as sexualidades e gêneros nas
instituições escolares, algo que está marcado, especialmente, pelo embara-
lhamento entre os valores da educação familiar e aqueles preconizados pelos
projetos pedagógicos das escolas ou mesmo um/a docente, provocando emba-
tes com certas crenças religiosas. Assistimos a uma interferência crescente de
setores religiosos não somente nas políticas educacionais, mas nas práticas
pedagógicas das escolas. O embaralhamento entre as propostas das instituições
públicas para a educação e as propostas religiosas é raramente problematizado.
Consideramos, portanto, que as pesquisas em educação podem contribuir para
fomentar o debate e novos olhares sobre essas disputas.

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Referências

FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Ditos & Escritos V. 2 ed. Org.
Manoel Barros da Mota. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.

NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. As novas guerras sexuais: diferença,


poder religioso e identidade LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.

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A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” NO FACEBOOK1:


PEDAGOGIAS EM AÇÃO

Roney Polato de Castro


Doutor em Educação
Faculdade de Educação – UFJF
roneypolato@gmail.com

Janailde Araújo Fonseca


Licenciada em Pedagogia
Faculdade de Educação – UFJF
janaildefonseca@gmail.com

Resumo

O trabalho tem como objetivo apresentar dados preliminares de uma pesquisa


que vem sendo realizada com a rede social Facebook, considerando-a como
artefato pedagógico, no sentido de que educa e constitui suas subjetividades. A
metodologia envolveu a seleção de páginas que investem em discussões sobre
os atravessamentos entre discursos religiosos, sexualidades, relações de gênero
e educação. Para este trabalho selecionamos materiais presentes na página
da “psicóloga cristã” Marisa Lobo sobre a “ideologia de gênero”, apresentada
como uma forma de “ditadura cultural” que ameaça as famílias e a sociedade
brasileira, com forte preocupação de que essas questões sejam abordadas pelas
escolas. Caberia, portanto, uma análise dessa expressão e como as pessoas são
educadas para compreendê-la.
Palavras-chave: Facebook; educação; diversidade sexual e de gênero; discursos
religiosos.

1 Marca registrada da Facebook Inc.

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Uma pesquisa com Facebook? Redes por onde circulam discursos

Considerando que a conectividade tornou-se um modo de ser e viver e


que cada vez mais se multiplicam as narrativas nas redes sociais digitais, como
modo de os sujeitos construírem suas subjetividades e darem visibilidade a si
mesmos e às suas ideias, consideramos que o Facebook é um espaço rele-
vante para análise dos processos de subjetivação contemporâneos, no qual são
colocadas em funcionamento pedagogias que disponibilizam elementos cons-
titutivos do que os sujeitos são, do que pensam, de suas ações e relações.
Como argumenta Couto (2014), considerando um cenário de popularização e
expansão das redes sociais no Brasil, constroem-se novos modos de produzir e
compartilhar saberes e a própria vida, em que somos incitados/as a emitir opi-
niões, narrar acontecimentos e compartilhá-los. Um cenário de consumo ativo,
interativo, participativo, no qual já não se trata apenas de adquirir, acumular e
descartar informações, ideias, saberes, mas produzir, difundir e compartilhar.
A partir dessa ideia de uma interação participativa, que interpela os sujei-
tos a um aprendizado constante, apostamos no argumento de que o Facebook
é espaço em que nos inserimos e no qual somos continuamente atravessados
por diferentes discursos, que entram no jogo do verdadeiro e do falso, ou seja,
alguns deles serão assumidos como “corretos” e “verdadeiros” e outros não
se enquadrarão nesses moldes. Pensando com Foucault (2010), os discursos
são práticas que não apenas nomeiam ou representam coisas, eles sistematica-
mente as produzem. Isso significa que os discursos nos dizem como ser, sentir,
pensar e agir, como devemos nos ver e aos outros, nos incitam a nos tornar-
mos sujeitos a partir de critérios estabelecidos na cultura. Discursos regidos por
redes de poder invisíveis e naturalizadas, que podem investir na normatização,
na moralização, no disciplinamento.
Foi percebendo a movimentação discursiva das religiões cristãs nas mídias
e redes sociais que nos propusemos a pensar as relações educativas constituídas
no Facebook com esses discursos. De que modos somos interpelados/as e edu-
cados/as por imagens, textos, vídeos que circulam por essa rede social a partir
do campo discursivo religioso? De que modos as pedagogias das conectivida-
des virtuais podem produzir certas formas de pensar, sentir e agir em relação
às moralidades e valores religiosos? De que modos essas pedagogias interferem
nas maneiras de pensar e nas nossas ações quando se trata das diversidades
sexuais e de gênero?

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Tomando como referência a discussão pública produzida com a promul-


gação do Plano Nacional de Educação que, posteriormente, reverberou nas
assembleias legislativas estaduais e câmaras municipais, constatamos que as
mídias e as redes sociais de modo geral tornaram-se lugares de embates, ten-
sões e disputas sobre projetos político-sociais, sobre concepções e saberes
acerca das diversidades sexuais e de gênero. Sujeitos, grupos e instituições con-
servadores/as e, em alguns casos, de fundamentalistas, apelam a valores e a um
ideário social tradicional, que é marcado pelas normatividades no campo das
relações de gênero e sexualidades. Popularizou-se nesses meios o uso do termo
“ideologia de gênero” para referir-se a quaisquer concepções que contrariassem
esse ideário. A partir daí iniciou-se um processo de interpelação e convocação
das pessoas, nos púlpitos das igrejas e nas mídias e redes sociais, para que ficas-
sem atentas a uma proposta nefasta de destruição dos valores familiares que
poderia transformar crianças e jovens em desviados/as sexuais.
As discussões deste texto partem de movimentos de pesquisas que tiveram
o Facebook como instância em que circulam e são produzidas aprendizagens
sobre como conduzir-se e como lidar com os outros a partir dos discursos reli-
giosos quando se trata de temas ligados às diversidades sexuais e de gêneros.
Para este texto damos destaque à página da “psicóloga cristã” Marisa Lobo, com
foco principal nas postagens que remetessem ao termo “ideologia de gênero”.
Nosso olhar sobre os atravessamentos entre discursos religiosos e diversidades
sexuais e de gêneros constitui-se a partir das lentes construídas com os estudos
foucaultianos e os estudos pós-críticos das relações de gênero, das sexualida-
des, dos artefatos culturais como dispositivos que articulam discursos e práticas
em torno da formação dos sujeitos. Neste ínterim, o Facebook se coloca como
tendo participação ativa na produção de sujeitos e subjetividades, ensinando
modos de ser e estar na cultura contemporânea.

Problematizando a “ideologia de gênero”

Analisando os materiais encontrados na página monitorada, o primeiro


elemento fundamental a ser problematizado é o que se entende por “ideologia
de gênero”. Jimena Furlani (2016) argumenta que o termo não é de uso corrente
no contexto dos estudos de gênero, tendo sido inventado no âmbito de alguns
discursos religiosos, como “uma interpretação, equivocada e confusa, que não
reflete o entendimento de “Gênero” presente na Educação e na escolarização

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brasileiras, nas práticas docentes e/ou nos cursos de formação inicial e continu-
ada de professores/as” (p. 2). Os sentidos acerca da “ideologia de gênero” não
obtêm reconhecimento no campo dos estudos de gênero e sexualidade, mas
sim nos discursos de sujeitos e grupos que se colocam como “representantes”
de igrejas e religiões cristãs. Observamos, por exemplo, que, de acordo com a
“psicóloga cristã” Marisa Lobo, num vídeo2 publicado em sua página, a “ide-
ologia de gênero” propõe uma educação pautada na concepção de “gênero
neutro”, segundo a qual meninos e meninas seriam criados/as sem qualquer
configuração de identidade masculina ou feminina, de modo que apenas
quando atingirem certa idade poderão “escolher” a que gênero irão pertencer.
Assim, segundo Marisa Lobo, são ignorados os aspectos biológicos inerentes da
pessoa, negando a existência do que ela chama de “diferenças naturais” entre
homens e mulheres. De acordo com a psicóloga, existiria uma organização de
grupos, em sua maioria proveniente da população LGBTTI3, uma minoria social,
trabalhando para impor essa forma de viver à sociedade como um todo, que
promove a diversidade sexual e de gênero pautada na “ideologia de gênero”.
Merece destaque a ênfase dada ao não reconhecimento de um sexo
da criança ao nascer e ainda a preocupação com o que estão chamando de
“gênero neutro”, que parece denotar uma visão de que há uma única forma de
expressão de gênero, pautada no binarismo masculino/feminino. Essa questão
pode ser problematizada já que os estudos de gênero e sexualidades não pro-
põem ignorar ou negar o sexo biológico, mas, como argumenta Louro (1998),
pretendem enfatizar, “deliberadamente, a construção social e histórica produ-
zida sobre as características biológicas” (p. 21-22). A proposta é pensar que não
é apenas a condição biológica, o reconhecimento como macho ou fêmea, que
constitui o sujeito como feminino e masculino, ou seja, “não é o momento do
nascimento e da nomeação de um corpo como macho ou como fêmea que faz
deste um sujeito masculino ou feminino” (LOURO, 2008, p. 18).
Os/as idealizadores/as da “ideologia de gênero” têm aterrorizado as
pessoas e investido sistematicamente para que elas se coloquem contra tal “ide-
ologia”, alegando que esta irá atingir aquilo que lhes é mais caro: a família e a

2 Marisa Lobo – Desmascarando a ditadura ideologia de gênero – Teoria Queer. Disponível em: https://
youtu.be/emyFuBxiAc8. Acesso em 29 jun. 2015.
3 Referência a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais.

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liberdade de criar os filhos e filhas. Recusam-se, portanto, a perceber a ampli-


tude dos conceitos de gênero e de sexualidade, bem como de sua abrangência
na sociedade. Um investimento que encontra força nos noticiários na TV, em
sites na internet e especialmente no Facebook, onde há toda uma campanha
com o intuito de “convencer” a população dos malefícios que essa ideologia
deseja disseminar na sociedade. Vários vídeos e panfletos foram publicados
convocando a sociedade a comparecer nas sessões das câmaras para pressio-
narem uma votação contra a “ideologia de gênero”. Exemplo desse investimento
é o cartaz encontrado na página de Marisa Lobo4:

Está posta a preocupação com a “ideologia de gênero” como ameaça


que encontra na educação escolar um dos meios de sua propagação. Homens
e mulheres seriam “naturalmente diferentes e complementares em sua sexu-
alidade”: um princípio que afirma, ao mesmo tempo, a distinção biológica
como constituidora dos gêneros, limitada ao par binário macho/fêmea, e a
suposta complementaridade que aponta para a heterossexualidade compulsó-
ria. Seguindo esses argumentos, analisamos que há uma preocupação com a
instauração de uma possível “hegemonia homossexual”, já que segundo os/
as idealizadores/as da “ideologia de gênero”, as pessoas poderiam fazer suas
“escolhas” pautadas nas “tendências homossexuais”, algo como uma imposição

4 Disponível em https://www.facebook.com/MarisaLobo?fref=ts. Imagem publicada em 16/01/2015.

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ou, como chamam, uma “ditadura gay”. Essa preocupação parte do pressu-
posto de que existiria uma forma mais correta e legítima de viver a sexualidade,
supondo que as pessoas seriam naturalmente heterossexuais. O argumento é
que estaríamos num cenário em que se pretenderia “destronar” a heterossexu-
alidade para dar lugar às/aos LGBTTI. É frequente entre os/as idealizadores/as
da “ideologia de gênero” uma lógica de que “seres humanos normais”, temen-
tes a Deus e defensores/as da moral, devem se conformar com sua condição
biológica de homem ou mulher, bem como com a prática das relações afetivo-
sexuais apenas entre estes dois opostos. Os/as adeptos/as e defensores/as desse
discurso consideram que a sexualidade e o gênero sejam algo que todos nós,
mulheres e homens, possuímos “naturalmente”, ignorando a compreensão de
que eles constituídos por rituais, linguagens, fantasias, representações, símbo-
los, convenções, ou seja, processos culturais plurais (LOURO, 1998).
Observamos argumentos que nos conduzem a essas análises. Na fala de
Marisa Lobo no vídeo mencionado acima, a “psicóloga cristã” afirma que o fato
de a ciência não ter descoberto um “gene gay” se deve ao fato de que este não
existe. Sendo assim, o natural é ser heterossexual e a homossexualidade não
passa de um comportamento adquirido socialmente, mas de forma inconsciente
pelo sujeito. Analisamos que haveria um investimento político em perpetuar a
hegemonia da heterossexualidade, inferiorizando as outras possibilidades de
viver a sexualidade, como que numa organização hierárquica.
A confusão na interpretação que se tem feito das questões de gênero e
sexualidades vem sendo utilizada para convencer as pessoas de que a inserção
dessas questões nos planos de educação trará grandes malefícios à sociedade
e, sobretudo, à família. Até cursos têm sido promovidos por Marisa Lobo, com
o intuito de “esclarecer” as pessoas sobres tais questões. No panfleto de divul-
gação disponível no Facebook5, aparecem as credenciais que autorizariam a
psicóloga a promover seu curso: “Psicóloga e Cristã; Teóloga e Educadora”. No
currículo do curso observamos um investimento em conceitos e termos que
são retirados dos estudos de gênero e sexualidade e “interpretados” a partir de
uma perspectiva da moral familiar cristã. Merece destaque “A erotização infantil
através da escola e da mídia”, que dialoga com vários dos conceitos destacados,

5 Disponível em: http://marisalobo.com.br/curso-de-capacitacao-sobre-ideologia-de-genero. Acesso


em 24 jun 2015.

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mas se aproxima especialmente de dois: “Aceitação social da pedofilia” e


“Porque não apoiar a ideologia de gênero na educação (PNE)”. Uma aposta no
argumento de que, ao abordar questões de diversidade sexual e de gênero, a
escola estaria erotizando as crianças e, portanto, incentivando a pedofilia.

A rede discursiva acionada no currículo desse curso e em outros ele-


mentos disponíveis na página de Marisa Lobo pode ser pensada a partir do
que ela produz, do efeito que exerce sobre aqueles/as que são interpelados
por essas pedagogias, considerando, como argumentamos inicialmente, que
os discursos são produtivos, criam verdades, instauram jogos de poder. Assim,
quando pensamos os sujeitos que se educam pelos enunciados da “ideologia de
gênero” no Facebook, em páginas como a de Marisa Lobo, e que, a princípio,
não teriam outras fontes de conhecimentos sobre o tema, analisamos que ela
pode vir a produzir o doutrinamento que tanto denunciam. Nesse sentido, os
discursos dos setores religiosos conservadores acerca da “ideologia de gênero”
produzem não só uma verdade, mas todo um ritual de luta contra tal ideologia
que é organizado por aqueles/as que passam a se sentir ameaçados/as, já que
querem destruir aquilo que para eles é fundamental, como problematiza Souza
(2014): “O objetivo de toda essa campanha é criar certo tipo de pânico moral
contra gênero e contra o feminismo, evocando um tema cujos sentidos têm sido
pautados pela agência de segmentos conservadores: a sexualidade” (p. 198). O
rompimento dos padrões normativos das relações de gênero e das sexualidades

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é interpretado como uma ameaça contra o cristianismo e, por consequência,


contra a sociedade.
Num olhar mais amplo sobre a categoria “ideologia de gênero”, conside-
rando que esta nasce pautada em doutrinas e valores religiosos, constatamos
que parece estar implícita na intenção de defesa da família, a negação e mesmo
destituição de projetos políticos e sociais que abarcam todas as possibilida-
des de ser pessoa e estar no mundo. Parece se apresentar aí a intenção de se
implantar um projeto pautado numa única forma de ser família e de viver as
sexualidades e gêneros, considerando o que denominam família tradicional ou
natural, que se pode entender como formada por casais heterossexuais cisgêne-
ros, negando todas as outras possibilidades.
Nesse sentido, consideramos ser relevante acompanhar e monitorar o
Facebook e outras redes sociais digitais, problematizando as pedagogias que
nele se encontram. Além disso, diante dos constantes investimentos dos/as ide-
alizadores/as da “ideologia de gênero” em campanhas contra as discussões de
gênero, faz-se importante insistir nas abordagens das diversidades sexuais e de
gênero, a partir dos estudos das relações de gênero e sexualidades contempo-
râneos, em todos os espaços educativos.

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ISBN 978-85-61702-44-1 802 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

COUTO, Edvaldo S. Pedagogias das conexões: compartilhar conhecimentos e construir


subjetividades nas redes sociais digitais. In: PORTO, Cristiane; SANTOS, Edméa (Orgs).
Facebook e educação: publicar, curtir, compartilhar. Campina Grande: EDUEPB, 2014.
p. 47-65.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7 ed. Trad. Luiz Felipe B. Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FURLANI, Jimena. “Ideologia de gênero”? Esclarecendo as confusões teóricas pre-


sentes na cartilha. Versão Revisada 2016. Florianópolis: FAED, UDESC. Disponível
em: Facebook.com/Jimena Furlani. Acesso em 01 fev. 2016.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-es-


truturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

______. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Revista Pró-posições, v.


19, n. 2, mai./ago. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.
pdf. Acesso em: 16 set. 2015.

SOUZA, Sandra Duarte de. “Não à ideologia de gênero!” A produção religiosa da


violência de gênero na política brasileira. Revista Estudos de Religião, v. 28, n.2, 2014.
Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ER/article/
viewArticle/5454#>. Acesso em 19 out. 2015.

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 803 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
GÊNEROS, SEXUALIDADES,
MULTIPLICIDADES, (MICRO)
POLÍTICAS, PERFORMANCES E
PRÁTICAS DISCURSIVAS

ISBN 978-85-61702-44-1
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

SUMÁRIO

SODOMIA, HOMOSSEXUALIDADE, HOMOEROTISMO:


POR UMA NOVA HISTÓRIA DAS SUBJETIVIDADES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 813
Cássio Bruno de Araujo Rocha

REDE DE PROTEÇÃO À COMUNIDADE LGBT DA UNB: CONSIDERAÇÕES


PRELIMINARES SOBRE O PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO DE UM SERVIÇO. 822
Tatiana Lionço | Larissa Vasques Tavira | Felipe de Baére

INTERAÇÃO, DISCURSO E SAÚDE: MASCULINIDADES EM PRODUÇÃO NA


PRÁTICA CLÍNICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 829
Alexandre José Cadilhe

DISPUTAS POLÍTICAS PELA CARNE, CORPO E DISSIDÊNCIAS SEXUAIS:


PERSPECTIVAS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO NA CONTINUIDADE BIOPOLÍTICO
DO PODER PASTORAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 839
Alexsandro Rodrigues | Steferson Zanoni Roseiro | Pablo Cardozo Rocon

PROPOSIÇÕES PARA SE PENSAR A CRIANÇA BICHA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 847


Jésio Zamboni

LEI DE IDENTIDADE DE GÊNERO DA ARGENTINA E SEUS EFEITOS SOBRE O


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 854
Bruna Camilo de Souza Lima e Silva | João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira

O MUNDO PELA PORTA DE TRÁS: POR UMA BREVE DESCONSTRUÇÃO DA


PRÁTICA DO SEXO ANAL ENTRE HOMENS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 861
Kauan Amora Nunes

CORPOS, CORPOS, CORPOS: DESALINHANDO-SE A UM PESQUISAR QUE SE


AFETA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 870
Lucio Costa Girotto | Mauricio Lourenção Garcia | Cristiane Gonçalves da Silva

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 805 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

ENSAIO SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE:


O VALE DAS “(HOMOS)SEXUAIS”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 878
Rodrigo Henrique de Jesus Nascimento

DIGNIDADE EM DISPUTA: REFLEXÕES ACERCA DO RECONHECIMENTO DA


CONDIÇÃO TRANSGÊNERA NO PALCO DO JUDICIÁRIO PARANAENSE. . . . . . . . 884
Francielle Elisabet Nogueira Lima | Jacqueline Lopes Pereira

QUANTOS ASSASSINATOS EXISTEM EM APENAS UM?: TRILHAS INICIAIS


PARA O ENTENDIMENTO DO TRANSFEMINÍCIO NO BRASIL.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 892
Tarcisio Dunga Pinheiro | Marcos Mariano Viana da Silva | Mikarla Gomes da Silva

O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE NO
DIREITO BRASILEIRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 900
João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira | Bruna Camilo de Souza Lima e Silva

“BAIXOU A 1140 AQUI?” DIFERENÇAS E DISTINÇÕES NAS PRAIAS GAYS DE


COPACABANA E IPANEMA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 908
Alexandre Gaspari

DINÂMICAS URBANAS VINCULADAS A GÊNERO E SEXUALIDADE:


ESTABELECIMENTOS GAY-FRIENDLY EM UBERLÂNDIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 917
Beatriz Ribeiro Soares

VIVÊNCIAS DE CASAIS LÉSBICOS EM COMUNIDADES LITORÂNEAS. . . . . . . . . . . . . 927


Frederico Rafael Gomes de Sousa | Vitória Rodrigues da Silva
Aline Maria Barbosa Domício Sousa

A CONSTRUÇÃO DO PAPEL DA MULHER NA CIDADE: UMA ESPACIALIDADE


DE (NÃO) VIVÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 935
Isabela Rapizo Peccini | Orientadora: Marlise Sanchotene de Aguiar

“EL ÚLTIMO VAGÓN” LA APROPIACIÓN DEL ESPACIO Y LAS


PRÁCTICAS HOMOERÓTICAS ENTRE HOMBRES EN EL METRO
DE LA CIUDAD DE MÉXICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 944
José Octavio Hernández Sancén

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 806 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

O SILÊNCIO LEGITIMADO SOBRE A LESBIANIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 952


Mariluce Vieira Chaves

CÁRCERE E POPULAÇÃO LGBT: ESTUDO SOBRE DIREITOS E ESTEREÓTIPOS . 961


Amanda Rodrigues Campos Almeida | Andreza Knaip Nobre |
Renato Santos Gonçalves,

GAYS E HOMENS QUE FAZEM SEXO COM OUTROS HOMENS EM CURITIBA:


UM RISCO BIOLÓGICO PARA A POPULAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 969
Dhyego Câmara de Araujo

A PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PARA A POPULAÇÃO LGBT E AS RESPOSTAS


RELIGIOSAS: O OLHAR DO ASSISTENTE SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 976
Graziela Ferreira Quintão

PELA VIDA, PELA FAMÍLIA E PELA PROPRIEDADE PRIVADA: HEGEMONIA,


CONSERVADORISMO CRISTÃO E POLÍTICAS SEXUAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 984
Henrique Araujo Aragusuku

A MULHER TRANS: ENTRE RECONHECIMENTIO, DIREITOS E EDUCAÇÃO. . . . . 992


Monique Rodrigues Lopes | Andrey da Silva Brugger

NOTAS SOBRE A SELETIVIDADE NO ACESSO À SAÚDE VIVIDA PELA


POPULAÇÃO TRANS.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1001
Pablo Cardozo Rocon | Francis Sodré | Alexsandro Rodrigues

“EN EL NOMBRE DE ROSA”: 20 AÑOS DEL MOVIMIENTO TRANS EN EL


SALVADOR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1010
Amaral Palevi Gómez Arévalo

TEM DORES QUE A GENTE GOSTA: UMA BREVE HISTÓRIA GRECO-ROMANA


DO SEXO ANAL ENTRE HOMENS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1018
Kauan Amora Nunes

INTERSEXUALIDADE E A IMPOSIÇÃO DE UM CORPO GENERIFICADO. . . . . . . . 1026


Mikelly Gomes da Silva | Mikarla Gomes da Silva | Marcos Mariano Viana da Silva

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 807 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

SOBRE A BRANQUITUDE DA TEORIA FEMINISTA: PENSANDO


O CUIDADO, A MATERNIDADE E A RELAÇÃO COM O OUTRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . 1034
Georgia Grube Marcinik | Amana Rocha Mattos

SUJEITOS DESVIANTES: MULHERES, INSTITUIÇÕES REGULADORAS E


ABANDONO SOCIAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1042
Roberta Olivato Canheo

“A LUTA CONTINUA, COMPANHEIROS (MAS NÃO PARA TODOS)!”: A


HETERONORMATIVIDADE NO SINDICATO DOS TRABALHADORES EM
EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . 1050
Henrique de Oliveira Santos | Diego Santos Vieira de Jesus

A PERSPECTIVA DE RELAÇÕES DE GÊNERO, DESAFIOS PARA ERGONOMIA:


ATIVIDADES DA MULHER TRABALHADORA QUE OCUPA CARGOS
TRADICIONALMENTE MASCULINOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1057
Mislene Aparecida Gonçalves Rosa | Raquel Quirino

EQUIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO NA ENGENHARIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1067


Rodrigo Salera Mesquita | Raquel Quirino

APONTAMENTOS MICRO-ANALÍTICOS SOBRE A PRODUÇÃO DE


SUBJETIVIDADES: ENTENDIMENTOS SOBRE SEXUALIDADES E HIV . . . . . . . . . . . . . 1075
José Sena Filho

GÊNERO NO DESIGN: O USO DE OBJETOS COMO


MEIO PARA PERFORMATIVIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1083
Talita Meier Marques Rodrigues | Denise Berruezo Portinari

A REPATOLOGIZAÇÃO DAS HOMOSSEXUALIDADES


NA “PSICOLOGIA CRISTÔ. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1091
Cleber Michel Ribeiro de Macedo

CONSERVADORISMO RELIGIOSO NA ARENA POLÍTICA: DESAFIOS E IMPASSES


PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E OS ATIVISMOS LGBT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1098
Graziela Ferreira Quintão | João Bôsco Hora Góis

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 808 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” COMO ESTRATÉGIA POLÍTICO-SEXUAL E A


REAÇÃO DO CONSERVADORISMO NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1106
Henrique Araujo Aragusuku

LUTA POR RECONHECIMENTO: DAS CONQUISTAS AOS RETROCESSOS . . . . . . 1115


Leandro Rocha dos Santos

DIVERSIDADE E SEXUALIDADE EM GRUPOS DE DIREITOS SEXUAIS E


REPRODUTIVOS: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA EM SAÚDE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1123
Mariana Galvão Pereira | Luiza Vieira Ferreira | Rafael Carlos Macedo de Souza

GÊNERO: O QUE O CRISTIANISMO PRECISA SABER?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1131


Rodrigo Henrique de Jesus Nascimento

RELAÇÕES DE GÊNERO, FEMINISMOS E COMUNICAÇÃO PARA A


CIDADANIA: A PERSISTÊNCIA DA SUBREPRESENTAÇÃO DAS MULHERES E DA
INVISIBILIDADE DAS LÉSBICAS NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO. . . . . . . . . 1139
Cláudia Regina Lahni | Daniela Auad

“TCHAU, CONSERVADORISMO!” UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE O


MOVIMENTO LGBT E O DIÁLOGO COM O SERVIÇO SOCIAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1149
Gleydson Felipe Duque de Paiva | Luiza Carla Cassemiro

FEMININO: O GÊNERO DA VIOLÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1158


Mikarla Gomes da Silva | Marcos Mariano Vianna | Tarcísio Dunga Pinheiro

PERSPECTIVA QUEER E A PROPOSTA NÃO-BINÁRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1166


Francine Natasha Alves de Oliveira

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS TRANSGÊNERO NO PARÁ:


A CARTEIRA DE NOME SOCIAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1175
Sávio Barros Sousa | Milton Ribeiro da Silva Filho

FORMAÇÕES SOBRE DIREITOS LGBT PARA AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA:


DIFICULDADES NA DEFESA DA CIDADANIA PARA LGBT NO PARÁ . . . . . . . . . . . . . . . . 1184
Sávio Barros Sousa | Luanna Tomaz de Souza

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 809 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

O DIREITO E AS MULHERES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1193


Laura de Almeida Schefer

GÊNERO E SEXUALIDADES NA FORMAÇÃO DE PEDAGOGOS/AS: DIÁLOGOS


ACERCA DE ENTENDIMENTOS E PRÁTICAS DISCENTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1203
Apolônia de J. Ferreira Silva | Prof. Dr. Marco Antonio Torres

AS LIMITAÇÕES DO DIREITO AO LIVRE EXERCÍCIO DA PESSOALIDADE E


A IDENTIDADE DE GÊNERO: DESCONSTRUINDO A NORMATIVIDADE DE
GÊNERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1212
Mateus Oliveira Barros | Paula Rocha Gouvêa Brener

“LGBTTRABALHADORES”: OS FORA DA NORMA INSERIDOS NO MERCADO


DE TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1220
Rafael Paulino Juliani | Rosemeire Aparecida Scopinho

DO DIAGNOSTICO DE TRANSTORNO DE GÊNERO À CIRURGIA DE


TRANSGENITALIZAÇÃO: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E DOCUMENTAL A
PARTIR DAS CONSIDERAÇÕES DA TEORIA QUEER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1229
Juliana Perucchi | Helena Santos Braga de Carvalho | Lucas Barbosa da Silva

GÊNERO, SEXUALIDADES E ADOLESCÊNCIAS: INTERSECÇÕES


IDENTITÁRIAS POSSÍVEIS FORA DO(S) ARMÁRIO(S)? REFLEXÕES A
PARTIR DA EXPERIÊNCIA NUM CENTRO DE CIDADANIA LGBT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1236
Silvana Marinho

SOBRE SER TRAVESTI, PUTA E MORAR EM CASA COM A FAMÍLIA: NOTAS


SOBRE OS CASOS DE EVITAÇÃO NOS RELACIONAMENTOS FAMILIARES . . . . . 1246
Marcos Mariano Viana da Silva | Mikelly Gomes da Silva | Mikarla Gomes da Silva

(HOMO)SEXUALIDADES FEMININAS E A GINECOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1254


Ana Rita da Silva Rodrigues

“ME DÁ LICENÇA QUE EU TÔ CORTANDO PRA EXU”: MARCAS DA


DIFERENÇA E CONSTRUÇÃO DA RESISTÊNCIA NOS ESPAÇOS DE
TRADIÇÕES AFRO-AMERÍNDIAS DE CAMPINA GRANDE – PB . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1262
Lucas Gomes de Medeiros | Jussara Carneiro Costa

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 810 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

A RESISTÊNCIA DA IDENTIDADE DE GÊNERO DE UMA TRAVESTI


NO ESPAÇO DE TRABALHO.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1270
Dr. Luís Antonio Bitante Fernandes

A VALORIZAÇÃO DAS IDENTIDADES SEXUAIS EM SITUAÇÕES DE


CÁRCERE: ENTRE DESAFIOS E PROPOSTAS PEDAGÓGICAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1279
Viviane Conceição Antunes | Pedro Giorgio de Souza Rodrigues

A PREP E A MEDICALIZAÇÃO DOS CORPOS SÃOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1288


Denise Portinari | Simone Wolfgang

A VISÃO DE MUNDO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO DAS


PRODUTORAS RURAIS PARTICIPANTES DA “MARCHA DAS MARGARIDAS”
DO MUNICÍPIO DE PORTEIRINHA - MG. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1297
Soraia M. Guimarães | Raquel Quirino

EQUIDADE DE GÊNERO NO MUNDO DO TRABALHO DA


ENGENHARIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1305
Rodrigo Salera Mesquita | Raquel Quirino

A PERSPECTIVA DE RELAÇÕES DE GÊNERO, DESAFIOS PARA ERGONOMIA:


ATIVIDADES DA MULHER TRABALHADORA QUE OCUPA CARGOS
TRADICIONALMENTE MASCULINOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1314
Mislene Aparecida Gonçalves Rosa | Raquel Quirino

EXPERIÊNCIAS DE VIDA DE VIADOS DO INTERIOR.


SILÊNCIO E RESILIÊNCIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1324
Maurício Pereira Gomes

VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM TRAUMA CULTURAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1331


Martina Von Mühlen Poll | Fernanda de Oliveira Alves | Cláudia Maria Perrone

ENTRE A TÉCNICA E A MORAL: PENSANDO A SEXUALIDADE NO DIREITO . . 1339


Andressa Regina Bissolotti dos Santos | Dhyego Câmara de Araújo

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 811 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
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SEXUALIDADE E PRECONCEITO: INTOLERÂNCIA E DISCRIMINAÇÃO DENTRO


DA PRÓPRIA COMUNIDADE LGBT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1347
Nathália Hernandes Turke | Virgínia Iara de Andrade Maistro

A AUTOAGRESSÃO REGULATÓRIA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES. . . . . . . . . . 1355


Danilo Araújo de Oliveira | Ramon Ferreira Santana

AS REZADEIRAS DO CARIRI PARAIBANO: RELATOS DE RESISTÊNCIA,


POTÊNCIA E CUIDADO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1363
Rebeca Araújo de Souza | Jussara Carneiro Costa | Maria Luiza Pereira Leite

REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO E DO MOVIMENTO


LGBTT NO RECONHECIMENTO DE DIREITOS AOS HOMOSSEXUAIS.. . . . . . . . . . . 1370
Tatiana Sada Jordão Araujo

MUDANÇA DE PARADIGMA NA REALIZAÇÃO DO DIREITO DOS


HOMOSSEXUAIS: O CASO DO CÓDIGO PENAL MILITAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1378
Tatiana Sada Jordão Araujo

CONSERVADORISMO RELIGIOSO NA ARENA POLÍTICA: DESAFIOS E IMPASSES


PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS
E OS ATIVISMOS LGBT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1387
Graziela Ferreira Quintão | João Bôsco Hora Góis

UTILIZAÇÃO (OU NÃO) DO NOME SOCIAL:


(TRANS) SUBJETIVIDADES EM ÂMBITO ACADÊMICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1396
Nathália Hernandes Turke | Fábio Augusto Joinhas | Julián Asaff Azevedo

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 812 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

SODOMIA, HOMOSSEXUALIDADE, HOMOEROTISMO:


POR UMA NOVA HISTÓRIA DAS SUBJETIVIDADES

Cássio Bruno de Araujo Rocha


Doutorando em História Social da Cultura
Universidade Federal de Minas Gerais;
Programa de Pós-graduação em História
caraujorocha@gmail.com

GT 13 - Por uma nova história do Gênero e da Sexualidade

Resumo

A comunicação propõe a produção de uma história das subjetividades que


não tome como pressuposto a existência de identidades. O texto investiga
como realizar a genealogia da identidade homossexual, procurando cami-
nhos teóricos para pensar experiências homoeróticas em contexto diferente do
da Modernidade ocidental. Especificamente, abordam-se questões teóricas a
respeito das categorias de sodomia, homossexualidade e homoerotismo, situan-
do-as em um projeto de uma história das subjetividades. A partir da narrativa
de Foucault para a diferenciação entre a sodomia como ato jurídico e a homos-
sexualidade como espécie sexual, alinham-se argumentos para desconstruir a
proposição essencialista de uma identidade homossexual universal.
Palavras-chave: Homoerotismo; Homossexualidade; Sodomia; Subjetividade;
Identidade.

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Introdução

O problema do texto é o da genealogia da categoria identitária do homos-


sexual na Idade Moderna. O texto aborda questões teóricas a respeito das
categorias de sodomia, homossexualidade e homoerotismo, situando-as em um
projeto de uma história das subjetividades. Se propõe fazer aqui uma nova his-
tória das subjetividades; mais precisamente, das subjetividades homoeróticas.
Objetiva-se pensar um fazer histórico que não tome os sujeitos como identi-
dades dadas. Antes, aponta-se para uma história dos modos como as variadas
formas identitárias de sujeito foram historicamente construídas, apresentadas e
representadas como a composição natural, essencial e universal dos sujeitos.
Assim, se propõem reflexões teóricas sobre esta nova história. Fazer a
história sem pressupor o sujeito, no caso, o sujeito homossexual, é também um
proceder contra intuitivo, uma vez que implica considerar que não há alguém
que faça a história, mas que este alguém é feito ao longo da história – ao longo
dos seus próprios atos performativos, cujos vestígios guardam as fontes, e da
escrita da narrativa pelo historiador (que não deixa de se compor como sujeito
nesta mesma medida).

A história da homossexualidade em Foucault

No volume I de sua História da Sexualidade, Foucault apresentou sua his-


tória da homossexualidade. Em linhas gerais, ele adiantou a ideia de que a
homossexualidade (como identidade moderna de certas pessoas) foi produzida
por uma operação do dispositivo de poder da sexualidade para, através de
uma perseguição às sexualidades periféricas, a partir de meados do século XIX,
incorporar as perversões, acarretando em uma especificação nova dos indiví-
duos (FOUCAULT, 1994, 46).
O dispositivo da sexualidade funciona em uma mecânica moderna do
poder, que é primeiramente produtiva. Cumprindo regras mecânicas-produti-
vas gerais, o dispositivo da sexualidade atuou, desde o século XIX, por meio
de quatro operações particulares, visando sempre estender suas redes capilares
sobre a sociedade, enredando e constituindo corpos. Para a história da homos-
sexualidade, interessa mais a segunda operação, a especificação nova dos
indivíduos. Por meio dela, as sexualidades periféricas são incorporadas a cada
um, declaradas a parte mais essencial de seu Ser, a chave de sua identidade. Se

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a sodomia respeitava apenas a atos (dizia respeito a sujeitos jurídicos), com a


Modernidade, a homossexualidade torna-se a condição ontológica dos sujeitos
(FOUCAULT, 1994, 46-48).
Deslocou-se, assim, a universalização da identidade homossexual. Antes
da modernização burguesa do século XIX, é impróprio pressupor esta identi-
dade como formadora dos sujeitos que praticavam a sodomia. Se os sodomitas
não eram homossexuais, como abordar os processos de construção de sua
subjetividade?

Homoerotismo e subjetividade

O psicanalista Jurandir Freire Costa propôs a categoria de homoerotismo


para evitar a normatização implícita à identidade homossexual. O que seria
possível porque a noção de homoerotismo é mais flexível e descreve melhor a
pluralidade das práticas e desejos de homens por homens. Ademais, ela rompe-
ria com os significados médico-jurídicos pejorativos atrelados às categorias de
homossexualismo, homossexualidade e homossexual, como doença, anormali-
dade e perversão (COSTA, 1992, 13-40).
Segundo Ferrari, a categoria homoerotismo dilui a homogeneidade con-
tida na identidade homossexual, uma vez que diz mais de práticas do que de
critérios identitários. Permite problematizar a centralidade do objeto do desejo
e é mais indefinida, sendo, portanto, aberta a novas construções subjetivas. Por
isto, o homoerotismo dá mais força ao contexto sociocultural em que acontece
como prática (FERRARI, 2015, 351-353).
Para uma história das subjetividades homoeróticas, é útil conciliar este
conceito com os modos como Foucault e Butler pensam a construção corpórea
das subjetividades pelos mecanismos de poder.
Em Vigiar e Punir, Foucault mostra como, desde fins do século XVII,
diversas tecnologias de poder se articularam paulatinamente para construir a
subjetividade moderna, formando-a em e através de corpos dóceis (submissos
às constrições do poder) e com força majorada ao máximo (para produzir sem-
pre mais) (FOUCAULT, 2011, 131-163).
Segundo Márcio Fonseca, esta ação disciplinar do poder concorre para
os modos de objetivação do indivíduo na Modernidade, isto é, sua constitui-
ção como objeto das relações de poder. Esta é uma dimensão importante da
subjetividade moderna, mas não a define integralmente. Segundo o mesmo

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comentarista, o indivíduo da Modernidade é também formado, simultanea-


mente ou não, por modos de subjetivação. Estes dizem respeito às práticas que
fazem do homem um sujeito, sendo ele um sujeito preso a uma identidade que
lhe é atribuída como própria (FONSECA, 2003, 21-38).
Dentre os modos de subjetivação, destaca-se o dispositivo da sexuali-
dade, articulado tanto pelas disciplinas (que dizem de anátomo-política do
corpo humano), quanto pela biopolítica. Esta centra-se no corpo-espécie,
atravessando-o pela mecânica do ser vivo e formando-o como suporte dos
processos biológicos (FOUCAULT, 1994, 141-143). Assim, não há como se pen-
sar a constituição da subjetividade moderna fora da construção dos corpos.
Os mecanismos de biopoder agem construindo as subjetividades nos próprios
corpos – esvazia-se a dicotomia corpo-mente que informa a noção cartesiana
de sujeito.
Judith Butler argumenta, por sua vez, que a noção de corpo que o
indivíduo tem como seu é construída pela corporificação da dicotomia interio-
ridade-exterioridade. A construção de contornos corporais capazes de fixar a
subjetividade se dá pela elaboração da categoria de sexo como natural, fixa e
lócus da coerência da identidade. Assim, a heterossexualidade é construída pelo
erguer das fronteiras do corpo, separando o que é constituído como uma subje-
tividade interiorizada do que é construído como a alteridade radical, por estar,
supostamente, fora. Correlatamente, a homossexualidade é constituída como
anormalidade, como abjeta, porque põe em perigo a estabilidade e a natura-
lidade das fronteiras corporais que sustentam a heterossexualidade (BUTLER,
2012, 185-192).
Destarte, a história da subjetividade que se propõe aqui não passa ao
largo de uma genealogia do corpo – desdobrando e radicalizando a teoria de
Foucault. De acordo com Tania Navarro-Swain, fazer uma história das subje-
tividades é ter em conta que os indivíduos são nomeados e percebidos pelos
contornos corporais que lhes são atribuídos, que seus corpos trazem a marca
impressa pelo biopoder. Esta marca é uma determinada identidade social que
exprime sua diferença – sua subjetividade (NAVARRO-SWAIN, 2013, 52).
O homoerotismo, como categoria historicamente mais flexível e menos
comprometida com o dispositivo da sexualidade, funciona aqui como estratégia
para deslocar a identidade homossexual moderna, barrando sua expansão para
outras temporalidades. Tal tática é urgente para se pensar as subjetividades de
homens e mulheres que praticaram a sodomia entre os séculos XVI e XVIII.

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Sodomia, homoerotismo e homossexualidade

Se Foucault resolveu em poucas palavras a relação entre o sodomita


(relapso) e o homossexual (espécie), esta questão está longe de resolvida na
historiografia do homoerotismo entre os séculos XVI e XVIII.
Para o historiador Ronaldo Vainfas, a questão envolve as dificuldades que
tinham os inquisidores em precisar o que era o pecado da sodomia. Segundo
ele, a sodomia de fato dizia de certos atos eróticos proscritos (o sexo anal,
mas não apenas ele). Porém, também se referia ao fazer sexo com alguém do
mesmo sexo e a certos comportamentos, que diriam de certos modos de ser
dos sodomitas (VAINFAS, 1989, 144-151).
Luiz Mott defende uma oposição mais radicalmente essencialista, afir-
mando que os praticantes da sodomia compartilhavam uma identidade
homossexual em continuidade histórica com a dos homossexuais modernos.
No entender deste autor, a existência de subculturas homoeróticas em cidades
europeias, como Lisboa, já no século XVII é evidência da realidade histórica
desta identidade que informaria as práticas eróticas nefandas de homens e
mulheres (MOTT, 1988).
Neste texto, o objetivo é apresentar objeções teóricas à ligação automá-
tica entre sodomia e homossexualidade e à possibilidade da construção de
uma identidade baseada no sexo para as pessoas que praticaram a sodomia no
contexto.
Em primeiro lugar, a narrativa foucaultiana mostra como a homossexua-
lidade foi construída como uma identidade centrada no sexo, sendo este um
construto central do dispositivo da sexualidade. Assim, não há como existir tal
identidade em contextos em que as tecnologias de poder (entre elas, os discur-
sos científicos sobre a sexualidade) que constroem o sexo como chave interior
da subjetividade não existam.
As Inquisições modernas não dispunham da totalidade destas tecnologias
de si. A principal técnica utilizada pelo Santo Ofício para abordar a prática
sodomítica era a confissão. Os inquisidores esperavam que os réus fizessem
confissão completa, uma vez que o objetivo manifesto desta era a salvação de
suas almas.
Segundo Foucault, a confissão é uma técnica de si bastante antiga
na Cristandade. A confissão envolve uma arte de falar a verdade de si que
estaria localizada nos recônditos da alma e do desejo. Na pastoral cristã, a

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arte de confessar-se tornou-se uma obrigação, logo, uma injunção de poder.


Fala-se de si para constituir-se a si mesmo como um sujeito desejante perante
um juiz, que é o mestre – mas também o inquisidor e, em última instância, o
deus (FOUCAULT, 2010, 324-326). Trata-se de uma hermenêutica do desejo
(FOUCAULT, 1984, 12).
Ao contrário do que acontece sob o dispositivo da sexualidade, contudo,
a confissão, entre os séculos XVI e XVIII, objetivava a salvação no além-vida.
Por isto, não pretendia a formação de individualidades, antes a renúncia a si
mesmo. Os praticantes da sodomia deveriam perscrutar seu desejo interior para
ali identificar o pecado e, em seguida, renunciar aos seus prazeres homoeró-
ticos, não os trazer incrustados em suas peles. Assim, como, aliás, pontuou
Ronaldo Vainfas, os inquisidores ficaram a meio caminho entre a sodomia como
mero ato e a constituição de uma identidade sodomita.
As técnicas de si que a Inquisição utilizava para julgar os acusados de
sodomia funcionavam, ademais, sob a égide de um poder jurídico, cuja preo-
cupação não era a gestão da vida. O soberano exercia este poder diretamente
sobre os corpos dos súditos, exaltando-se nas manifestações físicas dos suplí-
cios. Era um poder armado que exercia funções bélicas em relações quase
pessoais com cada súdito. Isto porque o crime era tomado como um ataque
direto ao soberano (encarnado na lei). De modo que a punição ao crime era
também uma vingança do soberano. No caso da sodomia no mundo português
do Período Moderno, o castigo era tão grave quanto o do regicídio – o qual era
entendido como o crime total e absoluto (FOUCAULT, 2011, 34-67).
O poder jurídico e soberano impunha demarcações, mais ou menos
claras, entre o permitido e o proibido. Seu signo era principalmente o da repres-
são. Entende-se, desta maneira, as penalidades para a sodomia serem bastante
graves nas Ordenações portuguesas (legislação leiga) e a Inquisição ceder a
execução dos sodomitas condenados à fogueira à Coroa (os relaxados ao braço
secular). O poder soberano funciona sob a lógica do fazer morrer ou de deixar
viver. Em relação ao sodomita, à despeito dos efeitos da técnica da confissão de
produzir uma interioridade a partir da hermenêutica do desejo, o poder preo-
cupava-se em manter a barreira do interdito. Os que se obstinavam a rompê-la
eram, enfim, levados à pira inquisitorial. Não era preocupação dos dispositivos
de poder do Antigo Regime gerir a vida dos praticantes do nefando, não se pro-
curava os normalizar – tanto que não havia discursos de saber ou técnicas de
poder para tal (FOUCAULT, 1994, 137-138).

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Destarte, uma história da sodomia e dos que a praticavam na Idade


Moderna não pode tomar como pressuposta a identidade homossexual. Uma
história do homoerotismo deveria fazer uma história da constituição das subje-
tividades dos personagens adeptos a práticas homoeróticas.

Considerações finais

Por fim, destaca-se que, para fazer uma nova história das subjetividades,
há que se dar atenção à necessidade de traçar a genealogia das categorias
identitárias no fazer histórico. Tomar identidades contemporâneas como dadas
em outras temporalidades é arriscar-se ao anacronismo, desprezando as expe-
riências, os saberes e as técnicas de poder específicas que agem na elaboração
dos corpos e de suas subjetividades. Assim, em relação ao homoerotismo, é
importante atentar para como diferentes categorias relacionam-se a regimes de
poder-saber-prazer diversos.
Fazer a genealogia da identidade homossexual revela-se uma estratégia
eficaz para deslocar seus sentidos atuais. Se tal identidade é, ainda, elaborada
pelo dispositivo da sexualidade, ela não deixa de estar eivada de normatividade.
Assim, explicitar sua historicidade torna-se uma via para sua subversão. Se o
homossexual não foi sempre, não há porque crer que sempre será. É, então,
possível estilizar as existências homoeróticas contemporâneas. Como pensou
Foucault, a homossexual é ser em devir (ORTEGA, 1999, 166).

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Trad.


Renato Aguiar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. (Sujeito e História);

COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício. Estudos sobre o homoerotismo. Rio de


Janeiro: Relume-Dumará, 1992;

FERRARI, Anderson. Homoerotismo. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro


Antonio. (Orgs.). Dicionário crítico de gênero. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2015. P.
351-353;

FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo:


EDUC, 2003;

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II. O uso dos prazeres. Trad. Maria
Thereza da Costa Albuquerque. Revisão técnica José Augusto Guilhon Albuquerque.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984;

________. História da Sexualidade I. A vontade de saber. Lisboa: Relógios D’Água


Editores, 1994;

_______. A hermenêutica do sujeito. Curso dado no Collège de France (1981-1982).


Trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2010. (Obras de Michel Foucault);

________. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 39ª ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011;

MOTT, Luiz. Pagode Português. A subcultura gay em Portugal nos tempos inquisito-
riais. In: Ciência e Cultura, V. 40, p. 120-139, 1988;

NAVARRO-SWAIN, Tania. A história é sexuada. In: RAGO, Margareth; MURGEL, Ana


Carolina Arruda de Toledo. (Orgs.). Paisagens e tramas. O gênero entre a história e a
arte. São Paulo: Intermeios, 2013;

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ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 1999;

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e inquisição no Brasil


Colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

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REDE DE PROTEÇÃO À COMUNIDADE LGBT DA UNB:


CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O PROCESSO
DE IMPLEMENTAÇÃO DE UM SERVIÇO

Tatiana Lionço
Doutora em Psicologia
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (IP/UnB)
tlionco@gmail.com

Larissa Vasques Tavira


Mestranda em Psicologia Clínica e Cultura (IP/UnB)
larissatavira@gmail.com

Felipe de Baére
Mestrando em Psicologia Clínica e Cultura (IP/UnB)
felipebaere@gmail.com

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

O Escuta Diversa é um serviço interdisciplinar de articulação e fortalecimento


da rede de proteção à comunidade LGBT da UnB. O projeto está em constru-
ção e se pretende cadastrá-lo projeto de extensão universitária, articulando-se
com parcerias que permitam identificar serviços de referência, instâncias e
coletivos interno e externos à própria universidade que possam garantir direitos
para esta comunidade. Como efeito do Programa de Combate à LGBTfobia da
UnB, criado em 2012, e da institucionalização de uma diretoria específica para
a proteção dos grupos minoritários, idealizou-se a implementação do Escuta
Diversa, um serviço de acolhimento da comunidade LGBT, para a construção
de encaminhamentos internos e externos à UnB, bem como para efetivar ações
de prevenção e reparação da violência LGBTfóbica na instituição.
Palavras-chave: LGBT; redes de proteção; universidade.

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Introdução

Reconhecendo que as práticas de violência contra lésbicas, gays, bisse-


xuais, travestis e transexuais, aqui denominadas amplamente como LGBTfobia1
podem comprometer a qualidade dos processos de ensino-aprendizagem,
podendo estar associadas à evasão universitária de alunos e funcionários LGBTs,
a Universidade de Brasília (UnB), em 2012, criou: o Programa de Combate à
Lesbofobia, Homofobia, Bifobia e Transfobia da UnB, por meio da Resolução
da Reitoria 0154/2012; a Diretoria da Diversidade, instância administrativa res-
ponsável pela identificação, acompanhamento e resolução de conflitos relativos
a minorias políticas vulneráveis à discriminação; uma resolução sobre o uso
do nome social. No âmbito do Ensino Superior, estas foram ações pioneiras de
enfrentamento institucional às práticas LGBTfóbicas.
Em 2016, atendendo aos objetivos do Programa de Combate à LGBTfobia da
UnB, vem se desenvolvendo o Escuta Diversa, um projeto de extensão interdisci-
plinar que promoverá serviços de acolhimento e articulação da rede de proteção
à comunidade LGBT da UnB, tendo como beneficiários estudantes, servidores
técnico-administrativos e docentes. Inspirados pelos Centros de Referência da
Diversidade instituídos pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, articulou-
-se a participação da Psicologia, Serviço Social e Direito. O projeto prevê a
realização de pesquisas que sistematizem dados institucionais que respaldem a
consolidação do serviço, no sentido de alinhar-se às políticas internas e mapear
demandas da comunidade que justifiquem suas estratégias (GONÇALVES e
GUARÁ, 2010). Visa-se assim promover o confronto às práticas de violência de
gênero e sexualidade tão presentes e banalizadas no cotidiano acadêmico.

Violências contra LGBTs nas Universidades

Em muitos aspectos, as universidades têm sido mais fiéis à manutenção


das relações hierárquicas e de opressão hegemônicas do que cumprido a fun-
ção social diminuir desigualdades sociais. Um estudo da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) que analisou calouradas e trotes acadêmicos,

1 A decisão do uso do termo LGBTfobia neste trabalho decorre de ser a conceituação adotada em
documento institucional que respalda a proposição do projeto de extensão universitária que se visa
apresentar, a saber o Programa de Combate à LGBTfobia da UnB.

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identificou que esses eventos, ao promoverem discursos sexistas e LGBTfóbicos,


espetacularizam a violência, banalizando e naturalizando opressões. Entre os
coros entoados nessas ocasiões, destacam-se:
Se eu fosse viado, eu fazia Economia, mas eu sou do Direito e o
Direito é putaria! (...) Economista, bichinha, só conta moedinha!” (...)
“Arquiteto, bichinha, só brinca de casinha! (NARDI; MACHADO;
MACHADO; ZENEVICH, 2013, p. 185).

Na tradição consentida desses rituais acadêmicos, a homossexualidade é


tomada como objeto de rechaço moral e desqualificação social. Esse tipo de
reprodução da homofobia reifica o valor da heteronormatividade, promovendo
o silenciamento das expressões afetivas não heterossexuais no cotidiano das
relações institucionais (NARDI et al., 2013, p. 185). Infelizmente, a lógica do
armário se estende à toda comunidade universitária determinando campos de
invisibilidade a alunos e funcionários LGBTs, que sofrem violências e discrimi-
nações em múltiplos contextos, como revelam depoimentos:
“um professor (...) revelou que, quando faz festas e convida profes-
sores homossexuais, ele tem de esconder as crianças, porque “é
uma viadagem só”. Outro professor relatou que passou a ser amea-
çado de morte por uma aluna que, estando sexualmente interessada
por ele, enfureceu-se ao compreender que ele era homossexual.
Esse caso seguiu para o Conselho da Unidade, onde uma das pro-
fessoras perguntou: “Tens certeza de que vai [sic] levar a questão
adiante? Isso pode chegar até o Reitor!” Essa professora, preocupada
com a permanência de seu colega “no armário”, reiterou a subal-
ternidade da homossexualidade no âmbito institucional, colocando
em segundo plano uma ameaça de morte (NARDI et al., 2013 :193).

Uma pesquisa realizada com estudantes LGBTs da UnB, registrou relatos


de: piadas homofóbicas proferidas por docentes em sala de aula; xingamentos
advindos de estudantes; episódios de agressão física a alunos homossexuais em
festa universitária e por parte da própria segurança do campus; recusa de tra-
balhos acadêmicos com enfoque em temas LGBTs; constrangimentos de aluno
transexual no uso da carteira estudantil e na negociação para uso do nome
social; recusa de acolhimento de estudante homossexual em programa de con-
cessão de moradia estudantil – sob a alegação de que a ruptura de seus laços
familiares, decorrente da homofobia, não consistia em critério de elegibilidade

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para o benefício social (MENDES, 2012). Outro dado que chamou a atenção,
deu-se com os cartazes de divulgação dessa pesquisa, majoritariamente arran-
cados e vandalizados.
Dado histórico corporativista e de inércia na apuração de práticas
LGBTfóbicas nas universidades, as transformações nas relações institucionais
promovidas pelos coletivos estudantis são fundamentais, uma vez que também
contam com estratégias não previstas nas normativas institucionais. Esses cole-
tivos têm realizado atividades que conciliam o discurso acadêmico à militância
LGBT, incluindo protestos, notas de repúdio e atos por visibilidade, como debates
públicos. A ação dos coletivos favorece a formação de vínculos que contribuem
para a permanência de LGBTs nas instituições (CRUZ, 2012). Ademais, a própria
produção acadêmica de LGBTs assume um caráter político, pois problematiza
o pretenso discurso de neutralidade da ciência (NARDI et al., 2013; AMARAL,
2013; MENDES, 2012).
Estudos realizados nas universidades de Minas Gerais (AMARAL, 2013) e na
Universidade do Rio Grande do Norte (CRUZ, 2012) identificaram que a mobi-
lização dos coletivos estudantis desempenha a importante função de denunciar
violações de direitos humanos nos espaços universitários. Além de identificarem
tais práticas, os coletivos têm visibilizado a inoperância institucional para coibir
e investigar tais incidentes. Infelizmente, contudo, esses coletivos têm sido sujei-
tos à ameaças e agressões, o que demanda reconhecimento da necessidade de
proteção desses para que possam exercer o direito à organização política.
Diante da precariedade das respostas institucionais, reconhece-se a relevân-
cia do papel exercido pelos coletivos estudantis e docentes implicados em projetos
de pesquisa e extensão. Estes são atores fundamentais para superar a invisibilidade
e naturalização das violências LGBTfóbicas nas universidades, pois são capazes
de denunciar violências e sistematizar informações que fundamentem a criação de
políticas de proteção à comunidade LGBT na sociedade como um todo.

Breve relato do início da implementação do projeto Escuta


Diversa

Em processo de construção, este projeto de extensão universitária conta


com a associação entre a Psicologia, o Serviço Social e o Direito2. O Escuta

2 A relação do Escuta Diversa com o Direito é mediada por outro projeto de extensão idealizado por

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Diversa visa identificar instrumentos e medidas que respaldem demandas emer-


gentes, através da articulação de uma rede de proteção para a comunidade
LGBT da UnB3. Essas ações são planejadas em reuniões semanais, onde se
desenvolvem estratégias para identificar episódios de violência no campus, além
de sistematização de informações institucionais, documentos internos, marcos
normativos, de políticas públicas e mapeamento de serviços da rede pública do
GDF, que poderá ser acionada.
A sistematização da documentação institucional faz parte de um pro-
jeto de pesquisa já aprovado em edital de Iniciação Científica. O trabalho
envolve a recuperação da memória institucional ao longo do desenvolvimento
do Programa de Combate à LGBTfobia da UnB, assim como a realização de
entrevistas com os atores envolvidos na implementação do programa. A análise
documental servirá como via de esclarecimento de normativas e práticas que
auxiliarão melhor a efetivação do Escuta Diversa.
Como ação inaugural e disparadora do Escuta Diversa, realizou-se uma
atividade denominada DesaBAPHO, iniciativa que promoveu rodas de conver-
sas para exposição de vivências LGBTfóbicas ocorridas nos espaços da UnB.
Buscou-se assim criar um ambiente de conforto e acolhimento de denúncias.
Essa atividade tinha o intuito também de gerar resultados que pudessem auxiliar
no delineamento das futuras atuações do projeto.
Foram promovidos DesaBAPHOS nos quatro campi da universidade,
durante a I Semana da Diversidade LGBT da UnB e a II Parada LGBT da UnB,
entre os dias 21 e 25 de junho de 2016. Essa distribuição viabilizou o mapea-
mento das demandas específicas de cada campus, além fomentar a divulgação
dos serviços do Escuta Diversa. Nesses encontros, presenciou-se o relato de
alunos e docentes, fator que promoveu ainda mais o empoderamento dos par-
ticipantes, pois criou um senso colaborativo e de pertencimento, que motivou
a identificação de vivências comuns e o compartilhamento de relatos, antes
compreendidos como vivências isoladas.
Conforme previsto, notou-se maior ocorrência de práticas LGBTfóbicas
nos espaços dos cursos cujas grades curriculares não contemplam discussões
sobre direitos humanos e sociais, sobretudo no campo das ciências exatas,

alunos LGBTs: o (R)Existir.


3 Este projeto está comprometido com ações que realizadas nas dependências de todos os campi da
UnB, a saber: Asa Norte, Planaltina, Gama e Ceilândia.

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ISBN 978-85-61702-44-1 826 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

embora mesmo os cursos de ciências humanas que abordam a questão de


gênero em sua grade curricular não deixem de apresentar manifestações homo-
fóbicas no cotidiano das atividades. Foram identificadas as seguintes queixas:
deslegitimação de docentes diante da proposta de trabalhos com temáticas
LGBT; comentários LGBTfóbicos proferidos por alunos e professores dentro e
fora de sala de aula; inibição de expressões de homoafetividade nos campi
como via de se prevenir contra agressões; isolamento social e senso de não-per-
tencimento em decorrência da discriminação.
Impõem-se como desafios para o Escuta Diversa a permanência do diálogo
e contato com diferentes instâncias da universidade, incluindo diálogo perma-
nente com coletivos estudantis. É imperativo que se faça o reconhecimento
do projeto enquanto mediador de conflitos relacionais, bem como serviço de
acompanhamento e apoio nos processos de denúncia institucionais e capacita-
ção de quadros técnicos na UnB. Ademais, visa-se realizar debates acadêmicos
protagonizados pela comunidade LGBT da UnB, movimento social, e parceiros
que atuam em serviços da rede pública.

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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
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Brasília: UnB, 2012.

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ISBN 978-85-61702-44-1 828 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

INTERAÇÃO, DISCURSO E SAÚDE:


MASCULINIDADES EM PRODUÇÃO NA PRÁTICA CLÍNICA

Alexandre José Cadilhe


Doutor em Estudos da Linguagem pela UFF
Professor Adjunto do Deparamento de Educação da UFJF
alexandre.cadilhe@ufjf.edu.br

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar como as relações de gênero e


sexualidade masculinas são engendradas pela interação e discurso produzido
por profissionais de saúde e paciente em práticas de saúde. A pesquisa foi
realizada em um ambulatório de um hospital universitário mantido por uma
fundação filantrópica, localizada no interior do Rio de Janeiro. Os dados foram
gerados a partir da perspectiva qualitativa de pesquisa, através da microet-
nografia, tendo como objeto de análise a fala produzida em interação social.
Foi utilizado como instrumento a gravação em áudio, as quais foram trans-
critas, e as análises tiveram como bases conceitos da Análise da Conversa e
da Sociolinguística Interacional. Como resultados, foi possível categorizar em
quatro temas as 30 consultas gravadas, que serão analisadas separadamente na
continuidade deste estudo.
Palavras-chave: masculinidades; discurso; saúde.

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Sexual e de gênero
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1. Introdução

O estudo ora apresentado situa-se num campo interdisciplinar da Saúde,


dos estudos da Linguagem, e dos estudos sobre Gênero e Sexualidade, anco-
rado no propósito de “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a
linguagem tem um papel central” (MOITA LOPES, 2006, p. 14). Sendo uma pes-
quisa interdisciplinar com ênfase na linguagem voltada a um contexto aplicado,
selecionei as práticas institucionalizadas de um serviço de atenção à saúde
como campo de pesquisa, especificamente cenários de atenção à saúde de um
hospital universitário gerenciado por uma fundação filantrópica e o curso de
graduação em Medicina desta mesma fundação. Assim como outras práticas
sociais, o serviço de saúde é constituído por uma série de ações e interações
entre profissionais e usuários do serviço prestado, orientado pela atualização
da chamada “tecnologia leve” (cf. MERHY, 2007; 2013), conhecida como uma
tecnologia de caráter relacional, ou seja, baseada na interação entre sujeitos.
Já há no Brasil considerável produção acerca do papel desempenhado
pela linguagem em práticas de saúde (cf. OSTERMANN & MENEGHEL, 2012;
GONÇALVES, 2013; CADILHE, 2013a, 2013b, entre outros), além das expe-
riências internacionais (cf. MISHLER, 1984; SARANGI 2004; MAYNARD &
HERITAGE, 2005, entre outros). Trata-se de estudos que, produtivamente, ana-
lisam a interação e o discurso de profissionais da saúde e pacientes, de modo a
problematizar e construir reflexões sobre as práticas de saúde instituídas nestas
interações, bem como a relação com a política de saúde vigente ou a com-
preensão do processo saúde/doença adotado a partir da análise de práticas
discursivas.
Selecionar as categorias de gênero e sexualidade para construir uma refle-
xão sobre as práticas de saúde dos homens significa trazer à baila o caráter
histórico e social da posição de masculinidade, em uma noção de gênero e
sexualidade tal qual preconizado pelos estudos de Butler (2013), amplamente
discutidos pelos pesquisadores brasileiros aqui citados. Gênero, neste estudo,
é compreendido como “uma construção cultural sobre a organização social
das relações entre sexos, traduzida por dispositivos e ações materiais e sim-
bólicos, físicos e mentais” (GOMES, 2008, p.64). Em outros termos, significa
compreender que “as identidades de gênero são construídas socialmente, elas
estão sempre referidas às representações que um dado grupo faz de feminino
ou de masculino” (LOURO, 2012, p.95). A categoria de sexualidade, por outro

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

lado, aponta para as formas de exercer experiências corporais: “as identidades


sexuais também se produzem socialmente, por meio das distintas formas de
experimentar prazeres e desejos corporais, de por em ação a sexualidade”.
Contemporaneamente, diferentes perspectivas sobre a relação entre práti-
cas de linguagem e construção de gêneros têm sido enfatizadas, principalmente
com a operação do conceito de “comunidade de prática”. Com origem na área
de educação, define-se como “um conjunto de pessoas agregadas em razão do
engajamento mútuo em um empreendimento comum. Modos de fazer coisas,
modos de falar, crenças, valores, relações de poder – em resumo, práticas –
emergem durante sua atividade conjunta em torno de um empreendimento”
(ECKERT & MCCONNELL-GINET, 2010, p.102). Nesta esfera, as identidades
de gênero são compreendidas como categorias emergentes e constantemente
negociadas no interior de comunidades de prática, ocasionando inclusive dife-
renças intragênero (cf. OSTERMANN, 2006). Ao pesquisador, incumbe-se o
papel de analisar como tais relações de gênero são estabelecidas a partir dos
engajamentos de sujeitos em comunidades de práticas, através da observação,
da participação, do registro de suas falas e interações. Instaura-se, assim, um
diferente lócus para a relação entre linguagem e relações de gênero, que se
alinha à perspectiva de construção e negociação das identidades de gênero e
sexualidade a partir da interação e do discurso.

2. Materiais e métodos

A pesquisa desenvolvida orienta-se por uma abordagem qualitativa, a


qual “trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações,
das crenças, dos valores, das atitudes” (MINAYO, 2008, p. 21). Esta perspectiva
parte da compreensão de um sujeito que se distingue “não só por seu agir, mas
por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da rea-
lidade vivida e partilhada pelos seus participantes” (idem).
Nesta perspectiva, o espaço onde ocorreu a pesquisa é constituído pelo
ambulatório de um hospital universitário de uma fundação filantrópica locali-
zada no interior do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de um cenário
de serviço de saúde e de ensino ao mesmo tempo. Enquanto serviço de saúde,
atende tanto a usuários do Sistema Único de Saúde quanto a usuários de planos
conveniados. O atendimento é feito por médicos das cerca de 30 especialida-
des. Enquanto cenário de ensino, é também um espaço onde estudantes do

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ISBN 978-85-61702-44-1 831 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

curso de medicina e médicos residentes da Instituição são engajados a partici-


par ativamente das consultas, com a anuência dos pacientes.
À luz deste referencial metodológico, constitui como instrumento de
pesquisa a gravação em áudio de 30 consultas com pacientes homens, principal-
mente nas especialidades de clínica médica, urologia, proctologia e cardiologia,
pela possibilidade maior de incidência de público masculino, considerando os
dados epidemiológicos do PNAISH.

3. Resultados e discussão dos dados

No âmbito deste estudo, a prática da transcrição de dados orais cons-


titui, por si, um trabalho analítico: são selecionados segmentos, critérios para
marcações prosódicas, seleção de símbolos de transcrição, etc. Este exercício
é extenso, contínuo, e sempre estará sujeito a subjetividades na escolha do pes-
quisador (cf. MAYNARD, 2014).
Uma vez realizadas as transcrições, é possível fazer uma primeira cate-
gorização analítica dos dados, considerando temas recorrentes, possíveis
problemas interacionais, estranhamentos sinalizados pelos participantes, etc.
No contexto das 30 consultas gravadas, consideramos possível dividi-las nos
seguintes grupos:
(i) Consultas com intenso trabalho interacional de explicações e jus-
tificativas por parte dos pacientes: nestes casos, parte extensa da
consulta clínica foi marcada pelo trabalho interacional de explicar
o porquê da ida ao médico, acompanhado de justificativas, relatos,
narrativas da vida cotidiana, em um trabalho de persuasão diante do
médico.

De acordo com Heritage & Robinson (2006), uma prática vigente nas
consultas clínica caracteriza-se pela apresentação, por parte dos pacientes, de
suas motivação à procura de um médico. Tais motivações podem ocorrer por
(a) problemas conhecidos (rotineiros ou recorrentes) ou (b) problemas desco-
nhecidos pelos pacientes.
Ainda de acordo com os mesmos autores, o início de uma consulta cos-
tuma ser marcado pela própria apresentação de problemas, a partir de descrições
em termos vernaculares, sintomas, relação com experiências e autodiagnos-
tico, dúvidas e incertezas. Heritage & Robson (2006) também apontam que as

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ISBN 978-85-61702-44-1 832 de Estudos sobre a Diversidade
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justificativas para a ida ao médico podem ser marcadas por: a) reclamações


diagnósticas; b) invocação de 3ª parte; c) discurso de resistência ao problema.
Estes elementos foram identificados neste conjunto dados.
Tais tópicos foram verificados nos dados analisados. Pacientes homens
justificam suas consultas considerando muitas vezes hipóteses a respeito de sua
saúde, mas principalmente pelo incômodo, constrangimento ou problema que
tais problemas de saúde podem ter na sua vida social – trabalho, relacionamen-
tos amorosos, participação em atividades sociais com amigos, o que indexicaliza
acerca das práticas do que é ser homem numa determinada comunidade.
(ii) Consultas com a realização de exames físicos: tratam-se de consultas
cujo encaminhamento contou com o exame físico – especificamente,
de toque retal – acompanhado de todo um trabalho interacional por
parte do médico para tornar o exame viável sem maiores desconfor-
tos ao paciente.

Apesar da situação desconfortável, os pacientes homens não sinalizavam


impedimentos para a realização do exame. A tensão, contudo, era compre-
endida a partir de diretivos do médico para que o paciente relaxasse – o que
é um indício de que o desconforto do paciente estava gerando efeitos físicos,
perceptíveis pelo médico.
(iii) Consultas cujos pacientes foram acompanhados por mulheres: nes-
tes casos, são consultas que contam com a participação de mulheres
- em geral, companheiras ou esposas – e que participam da consulta
provendo informações sobre o paciente ao médico, e são ratificadas
por este último.

Chama atenção este tipo de consulta pelo fato de que, nestas situações, o
médico mais acatava com a participação da acompanhante do que do paciente
homem. Este tipo de interação aproxima-se consideravelmente dos padrões
perceptíveis em consultas pediátricas, quando o profissional de saúde dirige-se
ao responsável da criança para informar-se sobre a saúde desta, ainda que a
criança esteja presente (cf. TANNEN & WALLAT, 2002).
Deste modo, torna-se visível a fragilidade de pacientes homens ao apre-
sentarem seus problemas, e necessitarem de uma mediação feminina para isso,
gerando mais silenciamento do paciente – o que diferencia-se dos padrões de
performance da masculinidade hegemônica descritos por Connell (1995). Vale

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aqui refletir a respeito de estratégias que podem ser lançadas pelo médico para
que a participação da homem na consulta seja mais efetiva, e este possa empo-
derar-se a falar a respeito de seus problemas.
(iv) Consultas cuja temática tratou de questões ligadas sexualidade:
de ocorrências mais raras, são consultas as quais constituiu como
tópico de discussão a sexualidade do paciente. Alguns tópicos foram
vigentes em consultas com médico urologista.

Neste tipo de consulta, o paciente homem relata o seu desconforto na


realização de exame com toque retal, por associar à prática do sexo anal. Isso
exige, por sua vez, todo um trabalho interacional por parte do médico em escla-
recer as diferenças entre essas situações.
Em outras situações, durante a anamnese ou o exame físico, questões da
sexualidade eram discutidas quando os pacientes eram engajados a descrever
ou relatar suas práticas, a fim de um diagnóstico médico. Por exemplo, em uma
das consultas, durante um exame de toque retal, o médico pergunta ao paciente
se este estaria tendo relações sexuais, seguido de uma resposta positiva. O
médico, em seguida, repreende pela situação de saúde, ainda que o paciente
justifique-se pelo uso de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis.
Assim, diferente alinhamentos (cf. GOFFMAN, 2002) e enquadres (cf. TANNEN
& WALLAT, 2002) de práticas da sexualidade são produzidas e negociadas pelo
médico e pelo paciente.

4. Considerações finais

Considerando que, como objetivo geral neste estudo, propusemo-nos a


compreender como as relações de gênero e sexualidade masculinas são engen-
dradas através da interação e do discurso na prática clínica, foi possível apontar,
numa primeira análise, os seguintes tópicos: (a) as múltiplas performances
masculinidades (cf. MILANI, 2015) emergentes nas consultas; (b) as múltiplas
práticas e sexualidades (cf. ERLICH, MEYERHOFF & HOLMES, 2014) vigentes
nas vidas sociais dos pacientes; (c) as tensões entre a voz da medicina trazida
pelo médico e a voz da vida cotidiana (cf. MISHLER, 1984) representada pelos
homens ao fazerem referencia ao seu mundo social.
Esta primeira análise nos permite problematizar, por um lado, que a cul-
tura contemporânea é composta por uma série de possibilidades de ser homem

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e de construir a experiência masculina, nem sempre correspondendo a uma


masculinidade hegemônica (cf. CONNELL, 1995); por outro lado, parece ser
visível que profissionais de saúde ainda não possuem uma conscientização a
respeito disso, considerando suas performances e o uso de tecnologias leves
(cf. MERHY 2007; 2013) insuficientes para uma interação menos tensa e mais
conciliadora a respeito de expectativas do serviço em saúde.

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DISPUTAS POLÍTICAS PELA CARNE, CORPO E DISSIDÊNCIAS


SEXUAIS: PERSPECTIVAS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO NA
CONTINUIDADE BIOPOLÍTICO DO PODER PASTORAL

Alexsandro Rodrigues
Doutor em Educação (Ufes).
xela_alex@bol.com.br

Steferson Zanoni Roseiro


Graduado em Pedagogia (Ufes).
zanoniroseiro@hotmail.com

Pablo Cardozo Rocon


Mestrando em Saúde Coletiva (Ufes).
pablocardoz@gmail.com

GT 01 - Gênero(s), Sexualidade(s),Multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente artigo objetiva compreender as forças, saberes e poderes em movi-


mento na cena pública em estilo pastoral e a produção de alianças que se
desenvolvem como forma de garantir vidas que importam ao formato fundamen-
talista cristão. Na produção de identidades que importam, ganham visibilidades
subjetividades que se identificam como ex-gays, clamando por reconhecimento
do Estado e das políticas de inclusão e de uma cidadania tutelada pela salvação
e exercícios de si. Na macropolítica e em nossos cotidianos, temos vivenciado
demonstrações de descasos de nossos governantes com as vidas que valem
menos e/ou não cabem numa medida idealizada para pensar o sujeito em sua
singularidade. A necropolítica nos ronda como companhia.
Palavras-chave: poder pastoral; cristianismo; biopolítica; ex-gays; salvação.

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Introdução

Compreendemos por poder pastoral os modos de existir e de valorar uma


vida agenciada por discursos, modos de educação e comportamentos que per-
formam normas desejadas por uma perspectiva religiosa e politica afirmadora
de identidades e desqualificadora de outras. Buscamos reforçar que alianças
políticas em estilo religioso acontecem e que os fundamentos que engendram a
produção de um modelo de vida ideal nessas alianças, almejam via conversão,
correção e salvação atingir toda população. Os efeitos dessas alianças podem ser
sentidos em realidades diversas, apresentando-nos como desejo, viver os jogos
de sedução das práticas fundamentalistas que perspectivam inclusão/exclusão
daqueles que performam a heterossexualidade padrão como forma de distin-
ção. Nas políticas de inclusão/exclusão o que vemos ampliar, são as máquinas
de produção de vidas capturadas e regradas. Logo, toda a população pode ser
afetada na produção de desejos que binarizam a vida. Nesses afetamentos, a
promessa do reconhecimento de uma cidadania, tutelada e higienizada pode
ser negociada nos desejos de ser reconhecido como “um dos nossos”. Assim,
sujeitos de sexualidades dissidentes podem ser arrebanhados pelas políticas em
estilo religioso.
Esse fenômeno ocorre entre os jogos de reconhecimento, pertencimento/
inclusão e, em nome de Deus e de outros marcadores sociais/culturais/econô-
micos que possam importar aos que detém o poder de decidir e que tomam
sua régua/padrão de medida para os processos identitários que envolvem jogos
arbitrários de inclusão/exclusão. Nesse jogo que inclui para excluir, encontrare-
mos pessoas que se autodeclaram “ex-gays” vivendo as políticas de inclusão a
partir de um desejo identitário ressignificado.
Percorrendo alguns caminhos para pensar a construção do sujeito sexu-
alizado, generificado, normatizado e moralizado da modernidade, com seus
jogos produtivos de inclusão/exclusão na lógica do mesmo, Foucault (2013)
apresenta-nos o poder pastoral como uma tecnologia microfísica que forta-
lecerá as estratégias do Estado no governo do indivíduo e da população. No
poder pastoral vemos desenvolver práticas de direção via confissão que irão
nos convocar a praticarmos exercícios de vigilância de nossos corpos e desejos.
Por isso, a confissão, desenvolvida e aplicada pelo poder pastoral em espaços
religiosos – será uma tecnologia deslocada e absorvida pelo Estado e suas ins-
tituições disciplinadoras.

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O pecado da carne que pulsa e vibra e do corpo que se recusa a assumir


a forma do mesmo viverão sacrifícios negociados como abstinência e, os exer-
cícios de si, advindos da relação de confissão e do acordo estabelecido entre
o pastor e a ovelha. Estes sacrifícios engendraram desejos individuais de salva-
ção e, via exemplo, reverberarão na família e na população como alvo. Todos,
nesta lógica de governamento podem ser corrigidos/salvos. A salvação, tarefa
de si, acontecerá na capacidade de abstinência e no de redirecionamento do
comportamento e do pensamento divergente. A confissão, tecnologia do poder
pastoral, colocará em funcionamento uma maquinaria de poder, que em nome
de Deus, buscará ortopedizar aquilo que nos parece mais íntimo e revelador
do que supomos ser, desejamos ser e podemos ser. Conhecer-te a ti mesmo e
colocar-se a se conhecer pelos condutores de comportamentos – eis o compro-
misso com a verdade que assumimos quando desejamos e somos capturados
pelas práticas pastorais que tomam a confissão como dispositivo de acesso a
verdade de si, do pastor e de suas relações e crenças com o campo do sagrado.
Realçamos na companhia de Foucault (2013, p.80) que “o homem, no
ocidente tornou-se um animal confidente”. A confissão, não é um privilégio
específico dos sujeitos envolvidos com as práticas religiosas, pois seus modos
de funcionamento se espraiam de forma articulada e como estratégia política em
diferentes áreas de conhecimentos, atuação profissional e instituições. O profes-
sor, o psicólogo, o advogado, o assistente social, a polícia, o juiz, o médico, a
família – e tantos outros envolvidos com modos de falar, narrar, escutar, escre-
ver, avaliar, julgar – fazem parte da rede de práticas de confissão, de tecnologias
do eu e de modos de governamentalização.
Estas instituições e seus jogos de verdades oferecem dispositivos políticos
e modos de pensar/desejar o governo da população e do sujeito que importa.
No entrecruzamento de relações de forças, dispositivos dispersos, fios pedagó-
gicos, endereçados e produtivos das artes de governar em seu desejo obsessivo
por um ideal de humano e uma humanidade reconhecida, algumas identidades
estão em situação de privilégio. Como sabemos com Butler (2015), o ideal de
humano e humanidade catalogados nos esquemas da diversidade e do reco-
nhecimento estão rascunhados com as tintas sangrentas da matriz normativa
que toma o homem branco, heterossexual, masculino e cristão por referência.
Na manutenção desta referência, a figura do pastor é de extrema importância e
esta se reinventa nas (des)continuidades das práticas de confissão. Em seu exer-
cício pedagógico, o pastor – transformado em agentes institucionais – continua

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o responsável pelos ensinamentos dos mistérios das escrituras, de uma moral


identitária cristã e dos mandamentos sagrados. Para manter este jogo do poder
pastoral e/ou nele entrar para jogar, a regra número um é ter, acreditar e querer
Deus como princípio de todas as coisas.
Ainda que o pastor e sua ação sobre ações possam vir a desaparecer
de nosso campo de visão como presença no controle de seu rebanho, não
podemos dizer que a tríade (pastor-ovelha-rebanho) não se atualize em outras
instituições pastorais. Se instituições não são somente os prédios governamen-
tais e suas burocracias, mas “todo comportamento mais ou menos obrigado,
aprendido. Tudo o que em uma sociedade, funciona como sistema de obriga-
ção” (FOUCAULT: 2014, p.48), decerto, os ensinamentos do pastor e o poder
pastoral estarão lá, incrustados em nossas instituições, nos acossando/ron-
dando, buscando a todos inclui. Nessa inclusão, encontraremos como alvo a
população que se afirma em uma identidade não heterossexual e os dissidentes
religiosos como alvo de conversão e correção. Logo, é na carne e no corpo
que se corta e recorta que o desejo de normalização acontecem e é pela carne
e no corpo, higienizados que o jogo da salvação se estabelece atualiza como
exemplo. A ovelha e o rebanho, assumindo este comportamento como prática
de si, efetivarão como tarefa e função compartilhada do “crescei e multiplicai”
no território que se busca livre de impurezas.
O principio é a ovelha convertida, seu meio é o rebanho e o fim é a
existência de um território higienicamente idealizado. Cumprindo este dever
de existir, a família heterocentrada será a máquina perfeita que alimentará esta
lenda e as histórias do poder pastoral. Na novidade do cristianismo como dou-
trina pedagógica de inclusão esforços, os mais diversos não cessam e muitos
são os convocados a partilhar a lógica do mesmo. Assim, vemos desenvol-
ver estratégias e contratos de pertencimentos entre ovelhas, pastores, Deus e a
população pensada como plano perfeito de existência.

Pedagogia da sexualidade em práticas e políticas pastoral

Para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico, o pastor precisa


conhecer o que se passa com sua ovelha e é através deste podersaber que
irão acontecer os direcionamentos da consciência nos processos educativos das
máquinas produtivas do poder pastoral. É preciso que a ovelha renuncie a si
mesma para ser salva, afinal, seremos dignos à vida eterna e à cidadania terrena

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como recompensa na medida em que formos capazes de exercitar a renun-


cia do mundo dos vivos, da carne, dos pecados e dos homens infames. Esta
forma de renuncia de si e do mundo produzirá uma identidade/moral cristã e se
prolongará em exercícios doutrinários, onde Estado e a Religião confundem-se
suas ações e passam a disputar essas identidades de forma neocolonizadora. O
pensamento colonizador inclusivo cristão se enreda nas tramas biopolíticas no
contemporâneo, conduzindo e seduzindo interesses políticos/ partidários que,
unindo forças endereçadas no campo da inclusão, miram as ovelhas/rebanhos
e territórios nas capilaridades de um poder específico do tipo pastoral.
Aqui, as políticas de inclusão não se satisfazem apenas com as ovelhas.
No contemporâneo, não basta atenção na ovelha e no rebanho; o território,
com seus fluxos e perigos torna-se alvo de vigilância permanente. No território,
as fronteiras são erguidas com diferentes fios normativos e estes buscam garan-
tir e preservar a população das impurezas que podem acontecer no encontro
entre “ovelhas brancas” e as desgarradas “ovelhas negras”.
Para as subjetividades contemporâneas, o pastor não é o suficiente.
O panóptico, arquitetura de visão, de fazer ver – muito bem trabalhada por
Foucault (2002) – funde os olhos de Deus, do pastor, do indivíduo em estilo
pastoral e da população. Estes olhos arregalados, para os desviantes e os des-
vios, operam afirmando uma vida que importa, classificando os de dentro e os
de fora, nomeando os puros e impuros, hierarquizando normais e anormais.
O Estado e os modos de fazer políticas interessadas se entrecruzam nos
processos de subjetivação, em jogos de reconhecimentos, onde a justa medida
passa a ser definida com os limites dos conhecimentos eleitos por aqueles que,
de forma desigual, definem o que vale para a nossa condição humana. Se a
política é constituída tomando por medida uma noção/paisagem para pensar
e desejar o humano, a inclusão dos anormais como formas de correção dos
desvios continuam sendo meta de investimento e promessa do poder pastoral.
Nos últimos anos, temos visto acirrar práticas sexistas e fundamentalistas
na arena política onde, em detrimento de uma moral cristã excludente, reapa-
recem semideuses em cenas públicas contribuindo para o estado de barbárie
dirigido contra a população LGBTTTI e os impuros. No cenário da macropo-
lítica e em nossos cotidianos, temos vivenciado inúmeras demonstrações de
descaso com as vidas que valem menos e/ou não cabem na medida idealizada
para pensar o sujeito em sua singularidade. Essas vidas, que para alguns não são

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dignas de luto, são apaziguadas e desfiguradas no conforto multicultural do que


se passou a ser reconhecido na categoria “diversidade”.
Nas políticas para a diversidade, os discursos pró-tolerância ganham a
cena. Nesta forma hegemônica de reflexão sobre a diversidade, as estruturas
de poder que produzem as desigualdades permanecem intocadas. E o outro,
o estranho, o menos humano, sujeito de correção do poder pastoral, passam e
só podem existir a partir da benevolência dos tolerantes, dos puros em Cristo.
Quando não trabalhamos as razões de produção de desigualdade de forma
combativa e engajada, contribuímos com o funcionamento da maquinaria polí-
tica/religiosa que, em nome de uma identidade/verdade coloca em risco e em
condições de existências precárias algumas vidas.

Considerações finais

Sem poder concluir realçamos e afirmamos que contribuímos para tal


situação, quando com os nossos silêncios e incapacidades de movimento,
implicação e contestação com a precariedade de uma vida mediante as bio-
políticas e o poder pastoral, não dizemos uma não. A nossa incapacidade de
dizer não ao poder pastoral e as políticas pastorais podem justificar e contribuir
para a eliminação, via da conversão dos impuros/imorais/estranhos e sujos. Não
podemos em momento algum nos esquecer que estas práticas e discursos, por
saber de sua fragilidade, reinventam-se cotidianamente tomando por referência
os currículos dos livros sagrados e da interpretação literal dos poderes pasto-
rais sobre as escrituras que funcionam como “leis”. Estas interpretações são,
portanto, exercícios que convém a uma configuração de uma identidade que
almeja ser dominante, normativa e binária. Logo, ganhando a cena pública e
arrebanhado ovelhas/rebanhos põem em funcionamento forças e guerras san-
grentas sem limites, com o respaldo das leis.
Por acreditamos que não existem discursos, sujeitos, muito menos leis
neutras, precisamos, como forma de cuidado, atentar-nos e nos indignar com os
descaminhos crescentes em que a nossa história fascista e fundamentalista tem
nos conduzido ao produzir, de forma crescente, o extermínio da população nos
entrecruzamentos sexistas e racistas de Estado. O Estado produz dessimetria à
medida que se afasta das concepções que asseguram, democraticamente, sua
laicidade e o direito à diferença. Essa questão se aproxima daquilo que Foucault
(2005) chamaria de estatização do biológico, em que os impuros sexuais – ao

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perturbarem a ordem da heterossexualidade cristã e de sua pastoral – tenderão


a terem seus corpos e vidas ceifados, excluídos e, no seu extremo, incluídos
na e pela lógica do outro. Por experimentamos o prazer de saber e de poder
é que não nos conformamos com efeitos de uma realidade fundamentalista e
fascista que impedem a expansão da vida com as sexualidades não favoráveis
com moral cristã. É por sabermos que a verdade é deste mundo – e não de uma
transcendência acima do bem e do mal é que buscamos neste texto colocar em
suspensão o poder pastoral e da política cultural. Cuidemos!

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Referências

BUTLER, Judth. Quadros de guerras: quando a vida é possível de luto? Rio de Janeiro:
Civilizações Brasileiras, 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25.ed, Petrópolis: Vozes,


2002.

_______. Ditos & escritos IX. Genealogia da ética: subjetividade e sexualidade. Ditos


& escritos IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

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PROPOSIÇÕES PARA SE PENSAR A CRIANÇA BICHA

Jésio Zamboni
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo
Pós-Doutorando e Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo
jesiozamboni@gmail.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

A criança como criação provoca os adultos a desviarem do sentido único na


rota de individuação. Cria-se, deste jeito, um meio de interferências entre a
criança e o adulto, para escaparem à infantilização. A criança bicha está situada
na encruzilhada em que os processos de identificação se desestabilizam. Assim,
indica-se analisar discursos que possibilitam pensar a criança bicha em torno de
dois recortes. Um, relativo ao discurso filosófico em torno do problema da edu-
cação em sua relação com a produção histórica da sexualidade e da infância, e
outro, no qual recorre-se a uma variedade de textos literários e autobiográficos
que elaboram a bichice como crise da infância, procuram traçar o plano discur-
sivo onde a bicha ganha lugar como criança, ou seja, criação de novos modos
de viver.
Palavras-chave: bicha; criança; sexualidade; infantilização; educação.

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“Como evitar que as crianças se prendam às semióticas dominantes ao


ponto de perder muito cedo toda e qualquer verdadeira liberdade de expres-
são? [...] A luta pela polivocidade da expressão semiótica da criança nos parece
então ser um objetivo essencial” (GUATTARI, 1987, p. 50-54). No início do
século XX, as crianças bichas invadem a internet com vídeos pelos quais inven-
tam e expressam sua existência. Compõem, por esta via, um tipo de ponto cego
em meio ao excesso de visibilidade que caracteriza a vigilância da infância. Os
vídeos expõem e exercitam uma contra-infância, inventando outros modos de
viver a criancice. O infante, aquele que não fala por si próprio, é desmontado
pelas traquinices das crianças que ousam produzir uma multiplicidade de sig-
nos, por meio dos quais escapam à regulação social. Abalando o modelo de
infância, constituído na modernidade ocidental principalmente pelos aparelhos
de controle familiar e escolar, as bichinhas videográficas convocam a pensar
a criança para além do padrão instaurado pela moral burguesa. Evidencia-se,
então, que as crianças não são infantis desde sempre. Elas são alvo de um
processo de infantilização que, paradoxalmente, possibilita se tornarem adultos
submetidos à organização social. A infantilização “consiste em que tudo o que
se faz, se pensa ou se possa vir a fazer ou pensar seja mediado pelo Estado.”
(GUATTARI; ROLNIK, 2008, p. 50). Na contramão deste processo, estão as
crianças que se afirmam por um movimento de criação coletiva.
A criança como criação, desprendendo-se das modelizações do dever
ser, provoca os adultos a desviarem do sentido único na rota de individua-
ção. Pode-se, então, retomar as experiências subversivas da infância como um
bloco de sensações a partir do qual são criadas condições para compor uma
vida como obra de arte. Neste rumo, indicado pelas crianças videografantes,
acaba-se conduzido à abordagem do plano expressivo onde é possível dizer
e ver a subversão da infância pela experiência bicha. Interessa acompanhar
como o devir criança atravessa o pensamento contemporâneo, inscrevendo-se
nele pela escrita. Uma infinidade de enunciados, em variados gêneros, ocupa o
plano discursivo da criança bicha: teorizações e críticas filosóficas, textos literá-
rios, noticiários jornalísticos, documentos autobiográficos, legislações e outros
códigos prescritivos, dentre outros. É preciso percorrer a linha que conecta
estes dizeres dispersos, a singularidade que possibilita falar a criança bicha nas
brechas do dispositivo da infantilização. Não sendo meramente falada nesta teia
discursiva, a bichinha é falante. Ela pode, desprendendo-se da individualização
que caracteriza as sociedades capitalistas, tomar como intercessor seu outro,

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o adulto, à medida que a experiência se comunique. Pois “[...] em cada adulto


se encontra uma crianceria que aceita composições permanentemente longe
do equilíbrio.” (KATZ, 1996, p. 95). Cria-se, deste jeito, um meio de interfe-
rências entre a criança e o adulto, podendo assim escaparem à infantilização.
O retorno sobre si, efetuado pelo adulto em função da experiência de criança
bicha, configura um exercício ético crucial para que não se atue como agente
de adaptação aos valores sociais dominantes. Pode-se, por meio deste trabalho
de produção de subjetividade, inventar outras maneiras de viver a relação com
nossa crianceria.
O devir criança de que se trata aqui está no cruzamento com o devir
bicha. Para ser mais preciso, assim como a criança não é definida por um
sujeito específico, não podendo ser identificada como não-adulto, a bicha não
pode ser reduzida a um tipo psicossocial. Ela pode ser caracterizada como
um — não único, mas indefinido — modo de viver e pensar o mundo. A bicha
constitui uma paisagem existencial composta por um movimento perspectivista,
formando uma série de pontos de vista relacionados por um horizonte que
se desloca historicamente. Após um trabalho a(na[l])rqueológico no campo de
saberes e práticas da diversidade sexual no Brasil, torna-se possível dimensionar
a emergência e as mutações históricas da bicha (ZAMBONI, 2016). Rompe-se,
a partir daí, com a compreensão hegemônica da bicha no campo das ciên-
cias humanas como representação social da homossexualidade, concepção
que a define como produto reprodutor de uma cultura hierárquica. Pode-se,
então, extrair a bicha da zona de nulidade a que foi condenada no âmbito da
diversidade sexual e considerá-la em sua potência de singularização. Uma das
formas de subjetivação mais potentes da bicha é a travesti que, desde a segunda
metade do século XX, produziu uma tecnologia existencial tão consistente a
ponto de se alastrar coletivamente pelas ruas de diversas cidades, nacionais
e estrangeiras. A ruptura com os aparelhos de controle social, na produção
das travestis, ocorre predominantemente na infância, sendo expulsas da família,
da escola e da comunidade pela dissidência em relação aos padrões de sexo/
gênero estabelecidos. Onde o processo de infantilização é mais árduo, quando
o sujeito ainda está pouco conformado aos arranjos sociais, as chances de rup-
tura também aumentam. A criança bicha, portanto, está situada na encruzilhada
em que os processos de identificação se desestabilizam em função da própria
dureza com que se apresentam.

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Como surge a bicha na vida de criança? Por invocação, uma voz que
enuncia a existência da bicha atrelada a alguns corpos. Ouve-se, no recreio
da escola, na conversa familiar, na brincadeira de rua, no programa de tele-
visão, ou em outro lugar qualquer, alguém dizer “bicha”, dirigindo-se a outra
pessoa ou grupo. Poder-se-ia descrever este acontecimento como processo de
interpelação, movimento de volver-se em direção ao outro como resposta a
um chamado que produz assim o reconhecimento social, tornando-se sujeito
(ALTHUSSER, 1980). No entanto, o interpelar a bicha não produz identificação;
pelo contrário, perturba o processo identitário baseado na divisão sexual. Ao ser
interpelado como bicha, já não se pode reconhecer como homem ou mulher.
Abre-se uma zona ou linha de (des)subjetivação no ponto de perturbação dos
padrões de gênero masculino e feminino, rompendo suas fronteiras. Assim, a
bicha não pode ser definida como uma identidade, pois consiste em uma mul-
tiplicidade desejante, um território de complexas mutações (PERLONGHER,
1993). Quando se é interpelado como bicha, o que ocorre desde a perturba-
ção da infância, acontece uma transformação incorporal. Ou seja, através do
signo bicha, acaba-se lançado a um outro território — assim como o padre
lança o noivo no território da conjugalidade ou o juiz lança o réu no territó-
rio da condenação por meio de outros signos (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
A transformação incorporal remete à transformação corporal sem, no entanto,
confundirem-se. Sendo assim, pode-se ser lançado no território da bichice sem
que isso implique uma modificação predefinida no desejo dos corpos. O signo
bicha, portanto, não designa necessariamente o homossexual, o sodomita ou
mesmo o efeminado; embora lance o sujeito no campo destas possibilidades
históricas de transformação corporal, implicando-as nos processos de produ-
ção de subjetividade. A criança invocada como bicha poderá inventar diversas
possibilidades de existência a partir da interpelação, contanto que passe por um
devir mulher (GUATTARI, 1987) para escapar do ideal de homem.
O debate em torno da bicha, disparado por diversos trabalhos científicos
e literários do final do século passado (DANIEL, 1982, 1984a, 1984b; FRY, 1982;
FRY; MACRAE, 1984; MACRAE, 1990; MÍCCOLIS; DANIEL, 1983; MOTTA,
1987, 1996, 2000; PERLONGHER, 1993, 1997, 2008; SANTOS, 1972), configura
um meio fundamental para promover a crítica dos saberes e práticas aciona-
dos no campo da diversidade sexual. Esta crítica visa ampliar os modos de
pensamento e intervenção no campo social, criando novas estratégias de abor-
dagem do problema. Neste sentido, retomar e reformular a questão da bicha é

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imprescindível, pois ela funciona, desde a formação dos primeiros movimentos


homossexuais organizados e da abordagem político-cultural da homossexuali-
dade no Brasil, como ponto crítico e conflituoso. No embate que permitiu esta
formação, a bicha perdeu lugar para o homossexual ou gay. Cabe, para realizar
este restabelecimento, criar as condições discursivas necessárias para se pensar
a bicha. Para tanto, é preciso sondar e desenvolver os modos de enunciação
da bicha, especialmente no limiar da infância, onde se coloca como incômodo
fundamental aos aparelhos coletivos da família e da escola.
Partindo destas considerações, uma importante via se apresenta pela aná-
lise de discursos que possibilitam pensar a criança bicha. Dentre a variedade de
enunciados que se pode encontrar, é possível operar dois recortes. O primeiro
é relativo ao discurso filosófico em torno do problema da educação relacionado
com a produção histórica da sexualidade e da infância. Mais precisamente,
pode-se acompanhar o desenvolvimento da crítica utópico-anarquista em
seus questionamentos radicais ao lugar da criança na vida coletiva (FOURIER,
2007; LAPASSADE, 1975; LAPASSADE; SCHÉRER, 1982; SCHÉRER, 1983, 2009;
SCHÉRER; HOCQUENGHEM, 1979). Esta revisão teórica em relação aos con-
ceitos de infância e criança é importante na medida em que possibilita pensá-los
em ruptura com a pedagogia e a escola hegemônicas, assim como além das
estritas demarcações dos modelos de sexo/gênero. Este primeiro movimento
pode articular teoricamente o problema da criança em sua relação geral com o
problema da sexualidade. Porém, um segundo recorte se faz necessário, a fim
de situar a problemática da infância no contexto da experiência bicha. Para isto,
é interessante recorrer a uma variedade de textos literários e autobiográficos
que elaboram a bichice como crise da infância, possibilitando a expressão da
criança bicha. Não se trata, exatamente, na grande maioria dos casos, de obras
inteiramente devotadas a este problema; são, antes, pequenos fragmentos que
invadem textos com sentidos diversos. A criança aí habita as sombras e resiste
às luzes da explicação geral e sistemática (BAPTISTA, 2001), ou seja, ela é uma
vida infame que fulgura em discursos dispersos (FOUCAULT, 2003). Os dois
recortes ou movimentos a empreender possibilitam traçar o plano discursivo
onde a bicha ganha lugar como criança, ou seja, criação de novos modos de
viver o desejo.

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Referências

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Janeiro: Graal, 1980. p. 46-101.

BAPTISTA, L. A. S. A fábula do garoto que quanto mais falava sumia sem deixar ves-
tígios: cidade, cotidiano e poder. In: MACIEL, I. M. (Org.). Psicologia e Educação. Rio
de Janeiro: Ciência Moderna, 2001. p. 195-209.

DANIEL, H. Passagem para o próximo sonho. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.

______. As três moças do sabonete. Rio de Janeiro: Rocco, 1984a.

______. Meu corpo daria um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1984b.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, vol. 2. São Paulo: Ed. 34, 1995.

FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222.

FOURIER, C. A infância emancipada. Lisboa: Antígona, 2007.

FRY, P. H. Para inglês ver. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

FRY, P. H.; MACRAE, E. O que é homossexualidade. 3. ed. São Paulo, Brasiliense,


1984.

GUATTARI, F. Revolução Molecular. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

KATZ, C. S. Crianceria: o que é a criança. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n.


esp., p. 90-96, 1996.

LAPASSADE, G. A Entrada na Vida. Lisboa: Ed. 70, 1975.

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LAPASSADE, G.; SCHÉRER, R. O corpo interdito. Lisboa: LTC, 1982.

MACRAE, E. A construção da igualdade. Campinas: Ed. UNICAMP, 1990.

MÍCCOLIS, L.; DANIEL, H. Jacarés e lobisomens. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

MOTTA, Valdo. Eis o homem. Vitória: UFES, 1987.

______. Bundo & outros poemas. Campinas: Ed. UNICAMP, 1996.

______. Enrabando o capetinha ou o dia em que Eros se fodeu. In: PEDROSA, C.


(Org.). Mais poesia hoje. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76.

PERLONGHER, N. Antropologia das sociedades complexas: identidade e territoriali-


dade, ou como estava vestida Margaret Mead. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 8, n. 22, p. 89-97, 1993.

______. Prosa Plebeya. Buenos Aires: Colihue, 1997.

______. O negócio do michê. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.

SCHÉRER, R. La pedagogía pervertida. Barcelona: Laertes, 1983.

______. Infantis. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

SCHÉRER, R.; HOCQUENGHEM, G. Co-ire. Barcelona: Anagrama, 1979.

SANTOS, J. F. Memórias de Madame Satã. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.

ZAMBONI, J. Educação bicha. 2016. 115 p. Tese (Doutorado em Educação) —


Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2007.

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LEI DE IDENTIDADE DE GÊNERO DA ARGENTINA E SEUS


EFEITOS SOBRE O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Bruna Camilo de Souza Lima e Silva


Graduanda de Ciências do Estado
UFMG
brunalimaa25@gmail.com

João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira


Graduando de Direito
UFMG
niizufmg@hotmail.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente artigo propõe analisar os efeitos da Lei de Identidade de Gênero da


Argentina (Ley 26.743) sobre o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente
no que tange ao Projeto de Lei 5002/2013 (Lei João Nery) dos deputados Jean
Wyllys (PSOL) e Érika Kokay (PT). A lei argentina desconsidera a ideologia hete-
ronormativa e o determinismo “natural”, deixando como secundário o sistema
binário e desconstruindo a transexualidade como uma patologia. Objetiva-se,
assim, analisar a Lei argentina diante do contexto histórico em que esta foi apro-
vada e quais foram as consequências desse avanço no Brasil. Será analisado,
comparativamente, o Projeto de Lei do Brasil, este que se encontra em trâmite,
mas que devido ao conservadorismo não tem previsão de ser aprovado.
Palavras-chave: legislação; identidade de gênero; transexualidade; direito;
política.

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Introdução

Há muito se estuda a problemática entorno da sexualidade humana, suas


formas de expressão, os papéis assumidos pelos gêneros, as múltiplas identi-
ficações e discriminações oriundas da determinação de um “padrão correto”.
Atualmente tem-se buscado, cada vez mais, analisar as potencialidades sub-
versivas do gênero e da sexualidade, confrontando a normatividade binária
(homem-mulher) e heterossexual, sendo apontada, frequentemente, a filósofa
Judith Butler enquanto expoente no assunto.
Após a década de 1960, a discussão acerca da temática de gênero e
sexualidade tomou um viés para além da orientação sexual stricto sensu, ini-
ciando-se análises mais profundas acerca das questões de gênero, vez que se
trata de ramo capcioso, extremamente vasto e com teor potencialmente subver-
sivo (DE SÁ NETO; GRUGEL, 2014, p. 65). A identidade de gênero está ligada à
maneira de se perceber, de estar e de testar os entendimentos de masculinidade
e de feminilidade.
Grugel e De Sá Neto situam essa perspectiva histórica:
O Brasil vem experimentando, nos anos iniciais do século XXI, uma
maratona de mudanças culturais, que são reflexo do próprio movi-
mento de internacionalização dos conceitos de direitos humanos e
dignidade da pessoa humana. Um dos assuntos que vêm ganhando
espaço nas rodas de discussão é a temática que direciona a conces-
são de uma gama de prerrogativas à comunidade Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT), seja por
meio do ativismo judicial dos magistrados brasileiros, seja mediante
de atitudes isoladas perpetradas pelos estados da Federação no sen-
tido de conferir direito à comunidade sexodiversa (DE SÁ NETO;
GRUGEL, 2014, p. 66-67).

Muitos são os debates acerca da homossexualidade, no entanto, ainda


é imprescindível lembrar que a homossexualidade não encerra a comunidade
LGBT, que é extremamente vasta na qual coexistem lutas e pautas genéricas e
específicas. É precisamente a reflexão dessas múltiplas demandas e identifica-
ções o objeto do projeto de lei intitulado Lei de Identidade de Gênero, proposto
pelo deputado federal Jean Wyllys, já no ano de 2013. Referida proposta nor-
mativa revela a batalha diária protagonizada por travestis e transexuais diante

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dos empecilhos vividos em razão da deficiência legislativa sobre a disciplina


em comento.
Sobre a norma argentina, importante salientar que o Senado argentino
confirmou, com 55 votos (MOLINA, 2015, p. 5), a lei que permite que travestis e
transexuais escolham seu sexo no registro civil. A lei determina que identidade
de gênero é a experiência interior e individual tal como cada pessoa a percebe,
que pode obedecer ou não ao sexo verificado no momento do nascimento,
abarcando a vivência pessoal do corpo (ARGENTINA, 2012).
A regra institui, ainda, que qualquer pessoa poderá requerer a correção
de seu sexo no registro civil, abrangendo o nome de batismo e a foto de identi-
dade. Com a vigência da medida, a variação de sexo não carece mais do apoio
da justiça para reconhecimento, e o sistema de saúde deverá compreender ope-
rações e tratamentos para o ajustamento ao gênero escolhido (ARGENTINA,
2012).
Por fim, a finalidade fundamental desta pesquisa é debater determina-
das questões que se destacam no projeto de lei oferecido pelo deputado Jean
Wyllys à Câmara dos Deputados,
intitulado Lei de Identidade de Gênero – Lei João Nery, em comparação
com a lei argentina sobre o mesmo tema.

Avanços sobre a diversidade de gênero na América Latina

Na América do Sul foi trazida em tela a discussão da diversidade de


gênero pela primeira vez no Uruguai, a partir da publicação da lei uruguaia de
identidade de gênero, que posteriormente influenciou a discussão na Argentina.
No Brasil os direitos civis da população trans ainda não são garantidos de fato,
e seus avanços são tímidos. As progressões a respeito da mudança de gênero e
de nome, como também dos procedimentos administrativos para a realização
das cirurgias de transgenitalização estão enraizados no projeto de Lei João Nery,
inspirado no ordenamento argentino.
Na Argentina, especificamente, a lei nº 26.618 (ARGENTINA, 2010) do
matrimônio igualitário de 2010 possibilitou que pessoas do mesmo sexo con-
traiam, legalmente, matrimônio, possam ter filhos, herdem e se divorciem. Tal
norma contribuiu para que fosse aprovada a Lei de Identidade de Gênero do
país (Lei nº 26.743), a qual declara a diversidade sexual e de gênero como
direito individual. Somado a isso, reconhece a população trans como cidadãos

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e cidadãs de primeira categoria, vez que possibilita a modificação do nome e


do gênero nos documentos de identidade e traz a visibilidade para as cirurgias
de transgenitalização e demais modificações corporais, bem como descontrói
preconceitos existentes sobre a temática. Vale dizer o fato de não ser necessá-
rio o requerimento de nenhum tipo de laudo médico ou psicológico, além de
ampliar mencionadas garantias a estrangeiros e estrangeiras residentes no país.
Nota-se, portanto, ausência de burocratização no procedimento.
O referido disposto normativo traz nos artigos iniciais, in verbis:
ARTICULO 1º — Derecho a la identidad de género. Toda persona
tiene derecho:

a) Al reconocimiento de su identidad de género; Al libre desarrollo


de su persona conforme a su identidad de género; A ser tratada de
acuerdo con su identidad de género y, en particular, a ser identifi-
cada de ese modo en los instrumentos que acreditan su identidad
respecto de el/los nombre/s de pila, imagen y sexo con los que allí
es registrada.

ARTICULO 2° — Definición. Se entiende por identidad de género


a la vivencia interna e individual del género tal como cada persona
la siente, la cual puede corresponder o no con el sexo asignado
al momento del nacimiento, incluyendo la vivencia personal del
cuerpo. Esto puede involucrar la modificación de la apariencia o la
función corporal a través de medios farmacológicos, quirúrgicos o
de otra índole, siempre que ello sea libremente escogido. También
incluye otras expresiones de género, como la vestimenta, el modo
de hablar y los modales. ARTICULO 3º — Ejercicio. Toda persona
podrá solicitar la rectificación registral del sexo, y el cambio de
nombre de pila e imagen, cuando no coincidan con su identidad de
género autopercibida (ARGENTINA, 2012).

Percebe-se, pois, apurado conhecimento acerca da vivência transgê-


nera aplicado à norma jurídica, com vias de garantir a plenitude do Estado
Democrático de Direito através da garantia de direitos a todas (os) cidadãs (os),
sem distinção de gênero (trans ou cis).

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Projeto de Lei João W. Nery

Primeiramente, faz-se necessária breve explicação do nome atribuído ao


referido projeto. João W. Nery é o primeiro homem transexual brasileiro a ter
realizado cirurgias de adequação de gênero, sendo referência na luta da popu-
lação trans na garantia de seus direitos.
O projeto de Lei nº 5.002/2013, protocolado na Câmara dos Deputados
pelo deputado federal Jean Wylls (PSOL) e Érika Kokay (PT), dispõe sobre o
direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973.
O projeto abarca preceitos que envolvem o direito das pessoas a serem
tratadas de acordo com sua identidade de gênero, sendo, portanto, respeitadas
nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal, dos prenomes, da ima-
gem e do sexo que são registradas nos mesmos. O art. 1º do projeto em tela
especifica que não poderá constar nos documentos civis o sexo do nascimento
ou o nome filialmente outorgado, a não ser aquele que cada pessoa sinta que
é. No art. 2º está previsto o direito fundamental à identidade de gênero em
virtude da dignidade humana, validando assim, a identidade de gênero como
sendo algo especifico a cada um, podendo corresponder ou não com o sexo
que o foi conferido após seu nascimento. No parágrafo único do art. 2º expressa
a maneira que a referida identidade de gênero pode ser exercida, podendo ser
por meio da modificação da aparência ou da função corporal por meios far-
macológicos, cirúrgicos ou de outra índole. Ressalva que isso seja livremente
escolhido, tanto por intermédio de outras expressões de gênero, inclusive vesti-
menta, modo de falar e de trejeitos derivativos dos maneirismos sociais.
Ora, percebe-se nitidamente a aproximação da proposta brasileira perante
a lei argentina, com pequenos ajustes locais, porém com toda a matriz idêntica,
assemelhando-se a mera tradução do instrumento normativo vizinho.
Ressalte-se a importância e o cuidado do projeto em prever a não obrigato-
riedade de intervenção cirúrgica, terapias hormonais, tratamento ou diagnóstico
psicológico ou médico e de autorização judicial para inicio do processo de retifica-
ção do registro e dos documentos. Importante dizer, que a ausência de burocracia
prevista é de extrema importância para concretização efetiva do então proposto.
O artigo 6º expressa que caberá ao Registro civil de Pessoas Naturais
efetuarem a mudança de sexo e prenome, emitindo uma nova certidão de
nascimento, sendo necessária a imediata informação da mudança aos órgãos
responsáveis pelos registros públicos, e assim atualizem dados eleitorais, antece-
dentes criminais e peças judiciais. Nessa perspectiva o projeto de lei brasileiro

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traz a possibilidade de haver menção à mudança de sexo e de prenome nos


documentos pessoais, desde que tenha expressado autorização do interes-
sado. Já a lei argentina proíbe sob qualquer pretexto, a inserção de informações
que possam denotar a realização do procedimento.
Essa particularidade da proposta brasileira revela-se apurada, uma vez que
leva em conta a vontade da(o) interessada(o), que pode ter interesse na menção
da mudança de sexo e de prenome nos documentos em razão das diversas
identidades possíveis, em especial as mais subversivas, que fazem questão de
ostentar sua dissidência de maneira orgulhosa. Tudo isso sem prejuízo para a
segurança jurídica, evitando-se fraudes através do novo instituto, dispondo que
os números dos documentos oficiais não serão alterados.
Nesse sentido, o art. 7º do projeto de Lei nº 5.002/2013 preocupa-se com
a segurança jurídica:
Artigo 7º - A Alteração do prenome, nos termos dos artigos 4º e
5º desta Lei, não alterará a titularidade dos direitos e obrigações
jurídicas que pudessem corresponder à pessoa com anterioridade
à mudança registral, nem daqueles que provenham das relações
próprias do direito de família em todas as suas ordens e graus, as
que se manterão inalteráveis, incluída a adoção (BRASIL, 2013).

O projeto busca assegurar a segurança jurídica, sendo assim, não mudará


a titularidade dos direitos e obrigações jurídicas que correspondessem à pessoa
com anterioridade à mudança registral, além de assegurar aqueles que prove-
nham das relações próprias do direito de família em todas as ordens e graus.
Ao contrário da República Argentina o projeto de lei preocupou-se em deter-
minar as alterações necessárias e sem maiores complicações de documentos
como diplomas, certificados, CPF, passaporte, Carteira Nacional de Habilitação
e Carteira de Trabalho e Previdência Social.

Considerações finais

É notória e urgente a necessidade da aprovação do Projeto de Lei no Brasil.


O ordenamento jurídico atual não abarca os direitos da população transexual e
travesti, negando-lhes o acesso às garantias fundamentais. O Projeto, inspirado
na Lei de Identidade de Gênero da Argentina, visa à mudança de prenome
e gênero em cartório, sem a necessidade de acionar o Poder Judiciário, bem
como dispensa a necessidade de cirurgia transgenitalizadora para a realização

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do procedimento, tornando o processo mais humano enquanto reduz burocra-


cia e morosidade.

Referências

ARGENTINA, Ley n. 26.743 de mayo de 2012. Disponível em: http://www.infoleg.gov.


ar/infolegInternet/anexos/195000-199999/197860/norma.htm. Acesso em: 28/08/2015.

ARGENTINA. Ley n. 26.618, de 15 de julho de 2010. Promulgada em 21 de julho de


2010. Código Civil. Modificación. Boletín Oficial de la República Argentina, Buenos
Aires, 21 jul. 2010. Disponível em: http://www1.hcdn.gov.ar/BO/boletin10/2010-07/
BO22-07-2010leg.pdf. Acesso em: 08 jun. 2015.

BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 5.002/2013.


Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o art. 58 da Lei nº 6.015 de 31 de
dezembro de 1973. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1069623.
pdf, p.2.Acesso em: 25 de agosto de 2015.

DE SÁ NETO, Clarindo Epaminondas; GRUGEL, Yara Maria Pereira. Caminhando Entre


A (In) Visibilidade: Uma Análise Juridica Sobre O Projeto De Lei N° 5.012/2013–Lei De
Identidade De Gênero. Direito e Liberdade, v. 16, n. 1, p. 65, 2014.

MOLINA, Luana Pagano Peres. A visibilidade dos/as transexuais da Argentina: A expe-


riência da escola Mocha Celis e a criação da Lei de Identidade de Gênero. IV Simpósio
Internacional de Educação Sexual: Feminismos, Identidades de Gêneros e Políticas
Publicas. UEM. Disponível em: < http://www.sies.uem.br/trabalhos/2015/588.pdf>,
p.5. Acesso em: 26 de agosto de 2015.

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O MUNDO PELA PORTA DE TRÁS: POR UMA


BREVE DESCONSTRUÇÃO DA PRÁTICA DO
SEXO ANAL ENTRE HOMENS.

Kauan Amora Nunes


Doutorando em História
UFPA
kauan_cinefilo@hotmail.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas.

Resumo

A metafísica sempre operou com binarismos e estes binarismos acabaram, com


a ajuda de um processo poderoso de racionalização do pensamento, por definir
– e até restringir – a história do homem no ocidente, gerando hierarquizações
e exclusões. Compreendendo que a prática do sexo anal entre homens produz
uma dicotomia – “ativo” e “passivo” – quase metafísica, tamanha a naturalização
de seus papeis sexuais e sociais, onde um atua, respectivamente, como o macho
dominador e viril e o outro atua como o seu oposto física e intelectualmente
vulnerável, o artigo pretende oferecer bases teóricas para a desconstrução da
prática do sexo anal entre homens. Para tanto, quatro informantes foram consul-
tados acerca de suas experiências sexuais através de questionários devidamente
respondidos.
Palavras-chave: desconstrução; Derrida; sexo anal; homossexualidade; experi-
ência ética.

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Desconstrutivismo

A utilização do termo ‘desconstrução’ no título deste artigo não é à toa,


mas estratégica. Os alicerces do pensamento desconstrutivista derridiano estão
localizados em dois textos seus: no seu longo e reconhecido ensaio intitulado
Gramatologia (2004), e em seu A escritura e a Diferença (2002). Segundo o pró-
prio filósofo da desconstrução esses textos representam a porta de entrada para
a sua proposta filosófica.
Elizabeth Roudinesco1 diz que:
Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na
Gramatologia, o termo ‘desconstrução’ foi tomado da arquitetura.
Significa a deposição decomposição de uma estrutura. Em sua
definição derridiana, remete a um trabalho de pensamento incons-
ciente (‘isso se desconstrói’), e que consiste em desfazer, sem nunca
destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante.
Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da
metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a
ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de recons-
truções cambiantes (DERRIDA; ROUDINESCO apud JUNIOR,
2010, p. 12).

O objetivo da Desconstrução, além de desmantelar discursos fixos e expor


toda sua engrenagem e estrutura, é inverter hierarquias canonizadas:
Fazer justiça a essa necessidade significa reconhecer que, em uma
oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma
coexistência pacífica de uma face a face, mas com uma hierarquia
violenta. Um dos termos comanda (axiologicamente, logicamente
etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa,
primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia
(DERRIDA, 2001, p. 48 apud JUNIOR, 2010, p. 10).

Neste momento, sinto a necessidade de apontar que este é o objetivo


deste trabalho: oferecer instrumentos teóricos para a desconstrução da prática
do sexo anal entre homens.

1 Historiadora e psicanalista francesa.

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No cu dos outros é refresco

No total, foram coletados dados de quatro informantes através de questio-


nários. Todos autorizaram o uso gratuito de seus nomes reais e das informações
oferecidas para esta pesquisa.
Quando questionados se sentem mais prazer no ato de penetrar ou de
serem penetrados, Tiago Batista Silva, 29 anos, respondeu dizendo que sente
mais prazer ao ser penetrado, no entanto, mantém, em menor frequência, a
prática do “ativo” sexual, ao passo que Marcelo Rodrigues, 29 anos, afirmou
que: “gostaria de marcar a opção: “gosto dos dois ao mesmo tempo, penetrar
sendo penetrado, considero este ser o máximo do prazer” (maio/2016). Ricardo
Bezerra Sampaio, 26 anos, questionou a própria necessidade da penetração e
afirma que faz sexo tanto com penetração quanto sem penetração:
“Muita importância é dada à penetração – e na verdade ela é
só uma parte do prazer do sexo, que tem muito mais a ver com
autodescoberta e descoberta do corpo do outro. [...] Até as nomen-
claturas reforçam isso. “Ativo” e “passivo” – como se o primeiro
fosse mais importante que o último por ser responsável pela “ação”.
Ultimamente tenho experimentado sexo sem penetração e com
penetração (mas sem envolvimento de um pau); e é difícil manter
uma regularidade com essa experimentação, porque parece incon-
cebível a algumas pessoas que haja sexo sem penetração, que essa
prática é uma ‘preliminar’ ou um ‘meio-sexo’” (Ricardo, maio/2016).

Existe outra coisa importante de se salientar quando Ricardo é questio-


nado sobre a relevância da penetração no ato sexual. Além de achar que a
penetração não é imprescindível, Ricardo diz: “Já fui bastante passivo sendo
“ativo” e o já fui bastante ativo sendo “passivo”. E nem todas as minhas expe-
riências sexuais envolveram um pau (seja o meu ou o dos meus parceiros)”
(Ricardo, maio/2016). Isto nos faz pensar que o dispêndio de energia e de força
é um fato relevante na hora de distinguir tais papeis.
Por outro lado, Marcelo Rodrigues quando questionado sobre a relevân-
cia da penetração no ato sexual, distingue a noção de penetração da noção de
dominação afirmando que quando se trata de dominação a questão “independe
de quem penetra ou é penetrado, mas falando em penetração, considero-a
imprescindível para o prazer sexual completo” (Marcelo, maio/2016).

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Marcelo Rodrigues e Tiago Batista Silva, que se consideram “versáteis”, e


Ricardo Bezerra Sampaio, que não se considera exclusivamente nem “ativo” e
nem “passivo”, concordam que o “passivo” sexual sofre estigma social.
“Numa esfera mais específica, o “passivo sexual” é vítima de pre-
conceito inclusive entre a comunidade que o deveria acolher e
conviver bem com as diferenças: a LGBT. [...] Isso, além de demons-
trar a misoginia corrente entre homens gays, reforça uma certa ideia
de que o feminino está ligado ao frágil, ao meramente receptivo,
ao passivo. Como se não houvesse uma força nessas características
ligadas à receptividade, como se sem O Pau não houvesse possibili-
dade de prazer ou até mesmo de ato sexual”. (Ricardo, maio/2016).

É possível ressaltar duas questões do argumento de Ricardo, o precon-


ceito sofrido pelo “passivo” sexual dentro da própria comunidade LGBT, que
lhe deveria ser aberta e receptiva, mas que muitas vezes o oprime com adje-
tivos ofensivos e a cultura falocêntrica onde tudo gira em torno do símbolo
do falo e do uso do pau. A forma como se usa o pau em uma relação sexual
designa muito da orientação sexual e, aparentemente, até do caráter de alguém
e a forma de tratamento que ela receberá, inclusive entre seus pares.
Os informantes foram questionados sobre suas posições sexuais preferidas
com o intuito de compreender o quanto de poder e de desejo estão guar-
dados nestes momentos específicos de prazer. Tiago Batista Silva afirma que
prefere a posição de costas e com pernas para cima2. Como Tiago afirmou que
sente mais prazer ao ser penetrado e que mantém o ato de penetrar em pouca
frequência, entendemos que esta posição é sua preferida quando está sendo
penetrado3. O indivíduo se encontra, nesta posição, em situação de penetrado
e isto, neste momento específico, requer menos dispêndio de energia e, prin-
cipalmente, uma grande intensidade e força para suportar não só a penetração
em si – que está sob total domínio do parceiro -, mas algum peso do corpo do
outro sobre o seu. Será possível, nesta posição, o sujeito manter algum poder e
desejo que não o qualifique como mero receptor sexual?

2 O informante se referiu a posição sexual como ela é comumente chamada: de “frango assado”.
3 Esta informação está em caráter de suposição do autor do texto.

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Marcelo Rodrigues afirmou que sua posição sexual preferida é a “famosa


cavalgada”, quando o parceiro se senta sobre o pau do outro. Quando questio-
nado sobre o motivo que o leva a preferir esta posição, ele afirmou:
“É uma questão de controle, quando sou ativo nessa posição gosto
de apreciar o prazer de não fazer muito esforço, é uma posição
cômoda. Já quando passivo, gosto de ter o controle da entrada do
pênis. Essa posição se torna uma das minhas prediletas justamente
por isso, a pessoa que está sendo penetrada tem o controle sobre o
quanto do pênis é introduzido” (Marcelo, maio/2016).

Em comparação ao ato sexual anterior o parceiro “ativo” da “famosa


cavalgada” está em uma posição análoga a posição do “passivo” do ato do
“frango assado”. Ambos despendem menos energia no ato sexual e ambos
necessitam de maior força para suportar o peso do corpo do seu parceiro sobre
o seu, mas qual o motivo que leva o “passivo” sexual da posição chamada de
“frango assado” a ser reconhecido como um mero receptor e o “ativo” sexual
da “famosa cavalgada” ainda ser reconhecido como o dominador? É a pro-
priedade do falo. Na “famosa cavalgada”, o penetrado está aí em uma posição
verticalmente superior ficando por cima e detém o completo domínio do ato
da penetração decidindo a intensidade e a força do ato, assim poderíamos cha-
ma-lo de “ativo”.
Marcelo Rodrigues é um homossexual que transita facilmente entre hete-
rossexuais e homossexuais, haja vista que seu porte físico corresponde ao ideal
de virilidade propagado e seu comportamento pode ser reconhecido como
“discreto” – normalmente, uma exigência para que homens gays sofram menos
preconceito. Quando questionado se prefere que seu parceiro “passivo” assuma
o estereótipo do homossexual efeminado ou se, quando é penetrado, prefere
que seu parceiro “ativo” seja o oposto deste estereótipo, ele responde: “Não
tenho essas predileções, até acho interessante “comer” um homem com carac-
terísticas masculinas, transformar o machão em mulherzinha. E quanto a ser
passivo com um efeminado também não gera problemas, o que importa é o
desejo” (Marcelo, maio/2016). Embora Marcelo demonstre que os estereótipos
não exerçam qualquer relevância para ele se relacionar sexualmente com um
sujeito, a referência ao “macho viril” como mulherzinha, ou seja, a transforma-
ção súbita do homem masculino em “mulherzinha” ao ser penetrado ainda é

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sintoma, reflexo da forma como representamos tais papeis em nossa sociedade


patriarcal.
Tendo em vista o exposto, se os papeis sociais e sexuais do “ativo e pas-
sivo” são tão fluidos hoje em dia, por qual motivo é mais fácil que um “ativo” se
identifique como tal publicamente do que um “passivo” fazer a mesma coisa?
Renan Dellmont, 27 anos, diz que “muitos homens são passivos, mas
escondem isto por acharem que serão considerados ‘gays de mais’” (maio/2016).
O jovem, que se identifica como homossexual, como versátil e que não acha a
penetração imprescindível no ato sexual, reconhece que a sociedade enxerga o
“ativo” sexual como “um homem forte, másculo, barba e etc. O passivo seria o
mais esbelto, traços finos e etc.” (Renan, maio/2016). No entanto, defende que,
de acordo com suas experiências, não enxerga mais as definições destes papeis
dessa maneira.
Quando questionado se acha que o “passivo” sexual existe em situação
de inferioridade, ele diz:
“Não mesmo. Como falei antes. Existem passivos que dominam e
muito o ato sexual. Além do que a forma com que a pessoa sente
prazer não pode de forma alguma definir valores ou capacidades.
Por isto acredito que não o torna inferior”. (Renan, maio/2016).

Pode-se perceber, pelas respostas dos informantes, que há uma distinção


clara entre penetração e dominação, que há o reconhecimento de que a socie-
dade considera o “passivo” sexual como um ser inferior e vulnerável, mas que a
partir de suas experiências afetivas e sexuais estas considerações e a fixidez dos
papeis estão em situação de transformação. Talvez seja este o anúncio de uma
transformação na história e na cultura na forma como enxergamos os papeis
sexuais e de socialização na prática do sexo anal entre homens.

O sexo anal como uma experiência ética e erótica.

Estamos na área da linguagem, lugar onde Derrida iniciou a sua trajetória


filosófica. O Curso de Linguística Geral (1915), de Saussure, lançou a linguagem
ao status de disciplina. O sistema saussuriano da língua compreendido pelo
estruturalismo inaugural como “fenômeno social com regras que se estabele-
cem e se constituem à revelia do sujeito” (RODRIGUES, 2012, p. 145) tinha
limites que Derrida soube enxergar e ir além deles.

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Derrida percebe que, embora haja, por parte de Saussure, uma


ruptura com o ideal metafísico de sentido no reconhecimento de
que a ligação entre significante e significado é arbitrária, a linguís-
tica ainda se manteria como mais um sistema totalizante que pensa
a linguagem como capaz de conferir sentido a qualquer termo
(Ibidem, p. 146).

Se antes, em Saussure, o significante convocava através de um pacto social


e arbitrário o significado, com Derrida esta ideia é solapada porque, de acordo
com o filósofo, a diferença entre significante e significado é nenhuma.
O que era uma diferença opositiva na qual o significado poderia ser
alcançado pela presença do significante passa a ser, para Derrida,
um jogo de remetimentos e referências em que um significante
depende do seu anterior e do seu posterior para fornecer algum
“sentido”. Significantes passam, assim, a só serem compreensíveis
a partir de uma cadeia de significantes, e o significado é aquilo que
se dá dentro de uma cadeia de significantes, num jogo de diferen-
ças (Idem).

Ou seja, o significado deixa de estar subjugado pela existência do signi-


ficante e passa a ser o efeito de uma cadeia de referências e de remetências
constituída exclusivamente por significantes. Rodrigues relembra a analogia
butleriana de sexo/gênero feita com o par significante/significado derridiano:
“Aponto aqui para o paralelo ao questionamento de Derrida em relação ao par
significante/significado e à analogia entre a afirmação de Butler e a de Derrida,
quando ele diz que a diferença entre o significado e o significante não é nada”
(Idem, grifo da autora). Deste modo, utilizarei também o par derridiano para
pensar a questão da dicotomia “ativo e passivo”.
Judith Butler utiliza o par significante/significado derridiano para realizar
uma analogia e solapar com a estrutura binária sexo e gênero. Então, se para o
filósofo da desconstrução o significado nada mais é do que uma relação pro-
cessual e interminável de significantes para significantes em uma cadeia que os
conecta através de rastros, para a filósofa pós-estruturalista gênero, que cor-
responde aos significantes, nada mais é do que a performance que os corpos
exercem dando a ilusão de papel feminino, masculino ou qualquer outro, mas
que não são papéis determinados pelo sexo fêmea ou macho, são agora cons-
truídos socialmente através de atos performativos. Então, gênero para Butler,

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influenciada por Derrida, é um sentido provocado pela relação processual e


interminável de atos performativos para atos performativos constituídos em
cadeia e conectados através de rastros. Sob esta perspectiva, quando olho para
um corpo só sou capaz de dar um sentido para ele através da percepção de
repetição interminável de atos performativos.
Seguindo Butler e pensando com Derrida a questão da estrutura binária
“ativo e passivo”, a figura do “passivo” ocupa o lugar do significante derridiano e
através da repetição interminável de seu papel pensar a figura do “ativo” só será
possível quando existindo em sua função. Sendo assim, quando olho para um
corpo-existência só sou capaz de dar um sentido ao papel do “ativo” através
da percepção de repetição interminável do papel do “passivo”. Agora é o sig-
nificante-passivo que ocupa um lugar prioritário. Desta maneira, podemos até
pensar em manter os nomes “ativo” e “passivo” para se referir a quem penetra e
a quem é penetrado, respectivamente, já que seus papéis estão desconstruídos.

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Referências bibliográficas

JÚNIOR, Neurivaldo Campos Pedroso. Jacques Derrida e a desconstrução: uma intro-


dução. Revista Encontros de Vista. V. 1, p. 9-20, 2010.

RODRIGUES, Carla . Performance, gênero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de


J. Derrida. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), v. 10, p. 140-164, 2012.

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CORPOS, CORPOS, CORPOS:


DESALINHANDO-SE A UM PESQUISAR QUE SE AFETA

Lucio Costa Girotto


Graduado - UNIFESP-BS
lucio_girotto@hotmail.com

Mauricio Lourenção Garcia

Cristiane Gonçalves da Silva

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

Este trabalho é um recorte de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que


se intitula “Singularidades e Identidades: Descontinuidades entre sexo e gênero
em uma vivência Drag”, cujo objetivo fora cartografar o cambalear existencial
nos entre identidades de gênero e sexualidade por meio da vivência corporal
do cartógrafo em um curso de Drag Queen. Na introdução do trabalho, é des-
crito o exercício de dissecar alguns corpos apresentados, teorizados e ensinados
durante a graduação em Psicologia. Neste exercitar, formulava-se uma analítica
cartográfica ao corpo do pesquisador, que apostava na experimentação estética
de uma drag, figura que cambaleia entre linearidades de sexo, gênero e desejo.
Palavras-chave: Sexualidade; gênero; corpo; cartografia; política.

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Introdução

No percurso da formação em Psicologia pela Universidade Federal de


São Paulo, campus Baixada Santista (UNIFESP-BS), variadas corporalidades são
ensinadas e aprendidas. É um curso que veicula variadas compreensões da psi-
cologia e que também experimenta da metodologia de ensino interdisciplinar,
na aposta de compor saberes entre cursos da área da saúde; nessa gama de
ensinamentos, multiplicidades de corpos explicavam o sentir, o fazer, e o transar.
Julguei necessário deslinhificar alguns corpos-teorias ensinados em disciplinas
(e absorvidos no corpo do pesquisador) que se alinhavam em uma lógica de
corpo quebra-cabeça psico-sócio-biológico: modelos de corpos desenhados
em forma de encaixe aprendidos como verdades que podem ser conhecidas de
forma neutra, democraticamente, sem modificação alguma. Corpos totalitários
fadados ao verbo “ser”, retirados de uma ética de conexões com a vida; com-
posto por órgãos os quais veem objetos numa realidade opaca, um mundo sem
devir (informação verbal)1.
Era preciso praticar no corpo e escrita a lógica que não descreve os cor-
pos segundo funções e/ou sujeitos, para acompanhar a processualidade de uma
perfomance Drag, esta que, segunda a aposta de muitas autoras (BUTLER, 2014;
LOURO, 2013; PELÚCIO, 2014 e VENCATO, 2005), possibilita o cambalear
entre linearidades de sexo, gênero e desejo. Deleuze em sua leitura de Espinosa
(2002) sugere a definição de corpos segundo agenciamentos de velocidades e
lentidões, e como resultado de encontros afetivos; entendendo corporalidades
em termos geográficos de longitude – velocidades e lentidões de partículas
a-significantes - e latitude - intensidades afetivas que preenchem um corpo.
Nessa analítica cartográfica, aliado ao conceito de dispositivo de sexua-
lidade de Foucault (1983), possibilita perceber desejos, sexualidades e transas
para além de verdades ontológicas, entendendo estes como agenciamentos
políticos de poder e saber; corpos processuais controlados e em resistência,
permeados em jogos biopolíticos. Usando lembranças bibliográficas de aulas,
os corpos foram descritos em transas; corpos transantes como subjetivações de
desejos e performances.

1 Palestra ministrada por Luiz Fuganti no Festival Contemporâneo de Dança de São Paulo 2011. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=lIwxWe_Tvo4

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Corpos Transantes Extensivos Funcionais e Corpos Transantes


Pensantes

Luiz Orlandi (2008) pode ajudar a compreender algumas vivências corpo-


rais teorizadas na graduação em seu texto “Corporeidades em minidesfile”. Em
seu caminhar por alguns saberes ocidentais de corpo, ele se aventura em algu-
mas linhas formulativas, sendo nelas evidenciadas os corpos como instrumentos
da ciência e meio de percepção da consciência: filósofos como Aristóteles com
a percepção de corpo extensivo, Leibniz de um corpo implicado na ação (corpo
que age sobre o outro e vice-versa) e Descartes trazendo a percepção do corpo
como meio de percepção da consciência. Esses corpos ajudam a compor eto-
logias de corpo que sente, que pensa, que transa.
Percebia esses corpos em meu transar, segundo o livro de fisiologia
(GUYTON e HALL, 2011) que usava para estudar. A leitura dele traz alguns ana-
lisadores para se pensar como eram apresentados esses corpos; a organização
dos capítulos e os tópicos a serem discutidos estipulam uma política de corpo,
classificando-o segundo uma ordem de funcionamento e relevância.
Primeiramente os corpos são descritos segundo aspectos fisiológicos,
regulados por feedbacks positivo/negativo; corpos neuronais que operam atra-
vés de impulsos regulados por diferenciação de potência de voltagens. Corpos
que são delimitados pelas suas extensões (de altura, largura e profundidade) e
funções (ações que eles podem sofrer ou aliciar). Não há dificuldade para per-
ceber, em nossas vísceras, esses corpos explicados: é óbvia a percepção dos
nossos limites nos membros, nos músculos, nos órgãos, assim como em nos-
sas excitações, nossas descargas, nossas respostas (feedback). Tudo tão visível.
Uma complexidade delimitada segundo órgãos, cada qual com seus nomes e
suas regras.
A esses corpos regulados e reguladores, eu os nomeio de Corpos Transantes
Extensivos Funcionais masculino e feminino.
Masculino:
“A fonte mais importante de sinais sensoriais neurais para iniciar
o ato sexual masculino é a glande do pênis. A glande contém um
sistema de órgãos terminais sensoriais especialmente sensível, que
transmite a modalidade especial de sensação, chamada de sensa-
ção sexual para o sistema nervoso central. A massagem da glande
estimula os órgãos terminais sensoriais, e os sinais sexuais, por sua

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vez, cursam pelo nervo pudendo e, então, pelo plexo sacral para
a região sacral da medula espinal, finalmente, ascendendo pela
medula para áreas não definidas do cérebro”(GUYTON e HALL,
2011, p.1030, grifos meus).

Corpo biológico, foco irradiador das sensações de prazer, faz desse corpo
transante extensivo funcional início e finalidade de toda e qualquer experiência
sensorial. Fica mais ou menos evidente a relação quase intrínseca entre sensa-
ções, prazer e base anátomo-fisiológica, produzindo efeitos de naturalização
entre os termos. Este corpo passa por mim e eu me identifico neste fazer-tran-
sar: transo com o pênis através do contato com um corpo que o estimule, tudo
que friccione. A glande como parte mais sensível segundo as terminações ner-
vosas me excita; a ereção ocorre. Prazer. Orgasmo. Relaxamento.
Feminino:
“A estimulação sexual local da mulher, ocorre mais ou menos da
mesma maneira que no homem porque a massagem e outros tipos
de estimulação da vulva, da vagina e de outras regiões perineais
podem criar sensações sexuais. A glande do clitóris é especial-
mente sensível ao início das sensações sexuais.(...) Localizado em
torno do introito e estendendo-se até o clitóris, existe tecido erétil
quase idêntico ao tecido erétil do pênis. Esse tecido erétil, assim
como o do pênis, é controlado pelos nervos parassimpáticos que
passam pelos nervos erigentes, desde o plexo sacro até a genitália
externa” (Ibid. p.1054, grifos meus).

Como é possível observar, esse corpo transante extensivo funcional


feminino é explicado tendo como base o corpo masculino, fazendo-se parte
complementar de um transar dicotômico. Os autores parecem querer afirmar
e reiterar que o modelo e a referência é o masculino, como aponta os trechos
grifados. Essa conformação se passava em mim, numa classificação de não ser,
de eliminação, dado que como será possível observar mais abaixo, a identidade
se faz pelo negativo, pela oposição e pela dicotomia. Butler (2013), referindo-se
a Simone de Beauvoir, dá pistas de como se institui uma política que coloca
o corpo transante feminino segundo a lógica corporal masculina. Masculino
universal que se diferencia de um “Outro feminino”, fora das normas universais,
condenado a imanência.
Outro corpo, presente nesse livro de fisiologia e de sensação óbvia em
nossos viveres, é um corpo pensante, individual. Há uma dicotomia entre

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corpo-consciência e corpo extensivo-funcional, estipulando implicações cla-


ras entre os dois. Um corpo que pensa, que percebe segundo as sensações
recolhidas do mundo, corpo-consciência que conhece através de sensações
do corpo extensivo-funcional. Nesses corpos se cria um Eu, bem definido, bem
especifico em suas “partes”, bem estratificado em suas implicações para e com
o mundo. Um eu bem explicado, articulado e instituído.
A esses corpos, eu os nomeio de Corpos Transantes Pensantes Masculino
e Feminino:
Masculino:
“Estímulos psíquicos apropriados podem aumentar, em muito,
a capacidade de a pessoa realizar o ato sexual. O simples pen-
samento sobre sexo, ou mesmo sonhar que está participando de
relação sexual, pode iniciar o ato sexual masculino, culminando na
ejaculação” (GUYTON e HALL, 2011p.1031).

Percebo meus desejos direcionados segundo uma continuidade clara, e


simples. Penso os acontecimentos de meu corpo como causas de um “ser” coe-
rente; como uma ontologia explicativa de meus desejos e tesões. Ora, se sinto
todas essas sensações e meu desejo está direcionado para o sexo feminino, logo
sou homem, e heterossexual. Penso, logo sou; sou, logo transo. Meu desejo tem
nome, tem objeto definido e tem uma continuidade; meu pensamento se dá
segundo preposições já nomeadas.
Feminino:
“Ter pensamentos sexuais pode levar ao desejo sexual feminino,
o que ajuda bastante no desempenho do ato sexual. Esse desejo
se baseia nos impulsos psicológicos e fisiológico, muito embora o
desejo sexual de fato aumente, em proporção ao nível de hormô-
nios sexuais secretados” (Ibid. p.1054).

O corpo feminino pensante, em sua descrição, é apresentado como corpo


transante essencial, enquanto o masculino é secundário. Como uma maquina-
ria fisiológica, o masculino opera segundo seus instintos, bem definidos, bem
organizados. O sentir é apêndice de um transar masculino, enquanto no corpo
pensante feminino é determinante.

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Para além do corpo transante extensivo funcional, o corpo


erógeno

Eis que aparece o corpo erógeno, que me oferece um novo fazer-transar,


uma transa que não se opera pelas extensões ou por um pensar consciente;
transa-libidinal. Ao fundar a ideia de um sujeito psíquico baseado no constructo
teórico acerca do sistema inconsciente (ICS), Freud, como fundador da psica-
nálise rompe a lógica cartesiana vigente até o final do século XIX, inaugurando
um novo modo de se pensar a subjetividade. Esse rompimento - entre vários
matizes que não apontarei no momento - refere-se, fundamentalmente numa
proposição do corpo biológico como suporte das satisfações pulsionais. Sem
desconsiderar o aspecto metabólico das partes anátomo-biológicas do corpo, é
com a noção de zonas erógenas que Freud constituirá boa parte de sua metap-
sicologia. Basta ver a importância dada na relação entre modos de investimento
pulsional e zonas erógenas, na discussão apresentada sobre a organização da
libido, ou as chamadas fases libidinais.2
Na psicanálise aprendemos e sentimos o movimentar deste corpo que
se faz na falta; articulado em torno da noção fundamental de pulsão, o desejo
deste corpo se dirige a uma nostalgia de completude, em busca de um gozo
onipotente, gozo este que nunca será realizado. Corpo com o único objetivo
de prazer que descarrega deste desejo; corpo masturbatório. Eis o corpo fun-
dado segundo a “tríplice maldição sobre o desejo: a da lei negativa, a da regra
extrínseca, a do ideal transcendente” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p.12). O
corpo erógeno cria outras possibilidades de percepções para além dos corpos
transantes extensivo funcionais e pensantes. Mas fica enrolado segundo a lógica
de um desejo faltoso. A etologia desse corpo se limita pela lógica transcenden-
tal “pai-mãe-filho”.

Desalinhando-se ao limite: Corpo transante intensivo

Deleuze e Guattari (1976, 2012) nos ajudam a pensar em outro operar de


corpo, que pressupõe um desejar cuja natureza é implacavelmente disruptiva,

2 Anotações das aulas de psicanálise, mais especificamente dos Três Ensaios sobre a Sexualidade, de
Freud (2006)

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que precisa estar sempre sendo favorecida e liberada de suas constrições.


Explicitando o desejo como não sendo apenas a força que anima o psiquismo,
mas que, além de tudo, é imanente a outras forças animadoras do social, do
histórico, do natural. Um desejar que pode ter infinitas possibilidades de mon-
tagem; Corpo sem Orgãos (CsO), este que não se define em órgãos e suas
funções, mas pela potência amórfica que ele conduz, corpo de produção dese-
jante que auxilia em um experimentar invenções afetivas.
Esse corpo pode ser inspirado por Beatriz Preciado (2014, p.32), quando
ele manifesta o cu, como possibilidade de revolução: “os trabalhadores do ânus
são os novos proletariados de uma possível revolução sexual”. Ele faz um elogio
ao cu como “um orifício-entrada, um ponto de fuga, um centro de descarga”.
Os anus não mapeados na geografia anatômica e orgástica da diferença sexual
biomédica têm a potência de produzir prazer que foge do destino reprodu-
tivo ou romântico. Deleuze e Guattari (2012, p.13) falam “vamos, ainda não
encontramos ainda nosso CsO”. Este corpo fala: “vamos, ainda não utilizamos o
nosso cu”. Um pesquisar que arquiteta saberes entre bucetas e pintos, nos entre
machos e fêmeas.
Corpo transante intensivo, que não transa por fluídos dinâmicos, por suas
extensões, ou através de suas individualidades; mas sim por meio de devires;
um transar desindividualizante. Talvez por esse corpo intensivo transante, pos-
sibilite um pesquisar processual que se afeta a outros corpos-teorias, que cria
conhecimento por experimentação.

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Referências

BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2014

DELEUZE, G. Espinosa: Filosofia Prática. São Paulo: Escuta, 2002

DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs – vol. 3. São Paulo: 34, ed. 2, 2012.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo, Rio de Janeiro: Imago, 1976

FREUD, S. Um caso de Histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros


trabalhos, Imago: Rio de Janeiro, 2006.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: A vontade de Saber, Rio de Janeiro: Graal,


1984.

HALL, J. E.; GUYTON, C. A. Tratado de Fisiologia Médica, 12ª ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011.

LOURO, G. L. Um Corpo Estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria Queer, Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

ORLANDI, L.B. L. Corporeidades em minidesfile. Revista Eletrônica Alegrar, n. 1,


ago.2004. Disponível em: <http://www.alegrar.com.br/01/corpo/index.html>. Acesso
em: 25 abr. 2015.

PELÚCIO, L. Breve história afetiva de uma teoria deslocada. Florestan, n. 02, 2014.

PRECIADO, B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

VENCATO, A.P. Fora do armário, dentro do closet: o camarim como espaço de trans-
formação. Cad. Pagu, Campinas, n. 24, 2005.

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ENSAIO SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE:


O VALE DAS “(HOMOS)SEXUAIS”

Rodrigo Henrique de Jesus Nascimento


Graduando em Serviço Social1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
nassck@gmail.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

Discutiremos diversidade sexual a partir de um levantamento de artigos, qual


foi identificado com a temática em periódicos da Ciência da Religião, em seus
títulos. O surgimento das igrejas inclusivas LGBT, seu caráter (trans)formardor e
a importância frente as mudanças sociais a esta população, qual procura na reli-
gião um acolhimento. Em que medida combate os movimentos fundamentalistas
e disputa este espaço, que também é perpassado por uma relação de poder e
prática discursiva. Por fim, a combinação política com Direitos Humanos. Neste
caminho, (re)conhecendo a diversidade sexual, o religioso, a religião, a teologia
e a sociedade, como um todo, que constrói a humanização dos espaços de fé.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; religião; gênero; direitos humanos.

1 Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Religião (GEPER/PUCPR) e Grupo de Estudo


em Direito, Diversidade Sexual e Relações de Gênero (DIVERGE/UniBrasil)

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Introdução

Depois de uma busca por artigos em periódicos de Ciências da Religião2


que trabalhassem o tema diversidade sexual, realizamos uma Anal-ize3 do mate-
rial encontrado, metodologicamente filosofia da diferença, Zamboni e Balduci
argumenta que, “subverte-se a lógica sexual: é a realidade quem penetra o pen-
samento fazendo-o cruzar as mais diversas situações que se vive, e vice-versa.”
(2013, p. 291), assim, os conhecimentos, “crescem pelas perturbações que sofre,
pelas inquietações de estar no mundo.” (2013, p. 288)
Há tempos tenho perguntado me a efetividade das igrejas inclusivas e o
debate da religião às diversidades sexuais. É importante mensurar que existe
uma enorme disparidade entre os espaços disputados na religião por pessoas
LGBT e os espaços heteronormativos, cisnormativo e, principalmente, patriarcal
de muitas, tal como conhecemos os discursos fundamentalista4, Felicianos e
Bolsonaros5.
Ao participar de um culto de uma igreja inclusiva, pude perceber, con-
forme apresenta Reid,
[...] es una teología que entendiendo la presencia de Dios en la his-
toria y en la historia de los actos de liberación en la vida cotidiana
de los pueblos, no se limita a ser un catálogo de temas autorizados
por la iglesia, sino que continúa con una sospecha ideológica, con

2 Parte do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC) em andamento com o titulo Formar para a Diversida-
de Religiosa: Gênero e Diversidade Sexual: artigos e periódicos.

3 ZAMBONI, Jésio; BALDUCI, R. R. É de todo o exercício de excreção que se produz adubo para um jar-


dim de delícias a degustar com os sentidos, bem como para uma invasão das ervas inúteis que que-
rem insistir e existir. Isso de produzir fora, de lançar para o exterior aquilo que supostamente não nos
presta, é desta prática que se produz qualquer fundamento para o pensar e o viver. (2013,p. 286)

4 BARROS, Marcelo. No plano teológico, os fundamentalismos definem-se como uma atitude ou


tendência teológica ou espiritual que consiste em se agarrar ao que acreditam ser os fundamentos da
fé e lutar para que não sejam adaptados nem relativizados. (2008, p. 112)

5 STEFFEN, Luciana; MUSSKOPF André S. Lideranças e grupos religiosos conservadores têm, inclusi-
ve, posto em cheque o avanço e aprofundamento das discussões e práticas (especialmente no campo
das políticas públicas) no campo dos direitos humanos utilizando argumentos religiosos e teológicos
duvidosos. (2015, p. 60)

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un derecho a dudar de las intervenciones ideológicas en la teología


y en las iglesias. (REID, M. Althaus, 2008, pg, 58).

Entretanto, ainda, um discurso fortemente ligado ao convencional, quando


designam que o mundo gay é um espaço de pecado, apenas aqueles que com-
preendem a palavra de Deus e sua vontade teriam a compreensão. Ligavam
esta perspectiva de redenção ao casamento, relacionamento conjugal e estas
formas de união. Este comportamento é interessante, na medida em que, “[...]
esto entra la sexualidad, porque hablo del mercado que determina la produc-
ción y el intercambio de bienes pero también la producción e intercambios
de deseos, afectos y de amor.” (REID, M. Althaus, 2008, pg, 59). Neste caso, a
Igreja está disposta à “trabajar sus propios problemas con la sexualidad, y así
humanizarse? (REID, M. Althaus, 2008, pg, 61)
A Religião e Jesus6 Luz (um corpo normatizado)
No culto, alguns casais homoafetivos, pastores homens gays7 e pastora
mulher trans8. (A ultima, representatividade a uma porção feminina de Jesus9).

6 BARROS, Marcelo. De um lado, quase todas as religiões se desenvolveram em sociedades patriarcais


e adotaram o próprio modelo do patriarcalismo como linguagem da revelação divina: “Deus é Pai”.
Os ministros homens representam a divindade, e assim por diante. (2008, p.113).

7 MARANHÃO Fº., Eduardo Meinberg de Albuquerque. [...] é bom marcarmos que homossexuali-
dades/afetividades e transgeneridades não são sinônimos. Homossexualidades e homoafetividades
referem-se, respectivamente, a orientações sexuais e afetivas, enquanto as transgeneridades são que-
bras ou transgressões das normas de gênero esperadas de quem é designad@ de determinado sexo/
gênero ao nascer (ou na gestação). (2015, p. 49).

8 MARANHÃO Fº., Eduardo Meinberg de Albuquerque. Esta consideração nos leva a destacar que
identidades de gênero, expressões de gênero, orientações afetivas e orientações sexuais são coisas
distintas. Podemos entender identidade de gênero como o modo como a pessoa se sente, se per-
cebe, se entende em relação ao sistema sexo/gênero. Sua identidade de gênero pode ser feminina,
masculina, algo entre esses dois lugares ou nenhuma, em um espectro amplíssimo (incluindo os dois
lugares ao mesmo tempo, mais de dois lugares, nenhum, e misturas entre nenhum e mais de um
lugar). A identidade de gênero se associa à transgeneridade e à cisgeneridade. Na primeira, a pessoa
não se sente confortável com o sistema sexo/gênero que lhe foi imputado na gestação ou no nasci-
mento: sua identidade autêntica é aquela à qual se identifica, e não a outorgada compulsoriamente.
Na segunda situação, a pessoa se sente confortável e concorda com o sistema sexo/gênero que lhe é
designado na gestação ou no nascimento (2015, p. 50)

9 BOFF, Leonardo. A porção feminina de Jesus Mandrágora Vol. 20, No 20 2014 p. 129-145

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Aplicando, como nos apresenta Reid, formas diferentes de compreender o reli-


gioso, para de fato mudanças estruturais,
“La teología Queer utiliza nueva perspectivas afectivas, nuevas
maneras de ser comunidad que viene de los grupos y temáticas
excluidas en la iglesia. Esto escandaliza (en el sentido bíblico tam-
bién de ‘escándalo’) y enriquece la reflexión doctrinal, la liturgia
y la pastoral de la iglesia, así como la eclesiología.” (REID, M.
Althaus, 2008, pg, 66).

Mesmo que naquele espaço – nas igrejas inclusivas - haja fortes tendên-
cias a novas normativas de sexualidade, ainda é um local que se abre a acolher
as diversidades. Temos que nos atentar para onde caminhará esta forma de
teologia, enquanto ideologia. Perceber de que maneira sua ação provoca (des/
re)construção das relações de gênero. Causar mesmo,
Un Dios extraño, torcido, Queer. Un Dios fuera del armario de las
ideologías sexuales y Políticas fluido e inestable como nosotros, a
cuya imagen y semejanza fuimos hechos, un dios que se ríe y halla
placer en su destino divino de justicia transgresiva, la clase de jus-
ticia que desarticula las leyes y que finalmente hace de nosotros,
más que discípulos, amantes de Dios. (REID, M. Althaus, 2008,
pg, 69).

Sabemos, por isso e outras, que conjunturalmente, a igreja é um poderoso


espaço de disputa hegemônica, portanto, a luta é contra-hegemônica para sub-
versão da cultura. Musskopf, depois Reid, respectivamente, apresenta,
O processo de descolonização de Deus (e da religião) pressupõe
revisitar as imagens de Deus que legitimam, santificam e normati-
zam um mundo de relações machucadas. Incorporar a graça dos
vários movimentos envolvidos na luta por outro mundo possível
ainda é um desafio para a teologia e a religião. (MUSSKOPF, 2008,
p. 33)
¿Porqué lãs teólogas no salen del armario? Y no me refiero sola-
mente a los armarios gay, lesbianos, bisexuales o travestis que
existen aunque están ocultos, sino también al armario heterosexual.
[...]Entonces, el proyecto de hacer una teología sexual, ‘sin ropa
interior’ es una postura ética. Es establecer el principio ‘realidad’ en

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

la teología desde la perspectiva sexual. Es dejar mucha hipocresía y


mentira de lado. Es decir, que el objeto dela teología es reflexionar
sobre la relación entre Dios y los seres humanos, y no entre Dios y
el mundo de las ideologías. (REID, M. Althaus, 2008, pg, 62)

Direitos Humanos10 e Inconclusões

Entre, “a liberdade de crença se apresenta como um direito humano, e


não apenas como um direito heteronormativo, antidemocrático e confinado
a opressão e supressão de direitos das minorias sociais, sejam elas LGBT ou
demais minorias culturais e religiosas.” (SILVA. Laionel Vieira; BARBOSA,
Bruno. 2015, p. 85) e “[...] a modernidade não empurra simplesmente a religião
para dentro da dimensão espiritual da vida; ela exige que a religião aceite, em
nível cognitivo, seu lugar em uma sociedade cada vez mais plural.” (SOUZA,
Robson. 2015, p. 218)
Provocamos a ideia de que o paraíso não será tão interessante com a falta
de compreensão a multi/pluridiversidade humana, social e sexual. Podemos
pensar o “vale dos (homos)sexuais” como uma possibilidade que sugestivamente
convida as minorias sociais/sexuais a uma nova perspectiva de transcendente.
Rompemos com muitas violências e opressões fundamentadas a uma cultura
que privilegia sujeitos e submetem outros. Por fim (aqui), o futuro a nós per-
tence, seja com/para Deus-a/o/e.

10 SOUZA, Robson. Há que se destacar aqui a importância da “ideologia” dos direitos humanos: esse
status igualitário criou o espaço necessário para a consecução de acordos parciais e transitórios entre
interesses muitas vezes divergentes. (2015, p. 212)

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Referências

BARROS, Marcelo. O parto difícil de uma profecia erótica: o fundamentalismo reli-


gioso e a questão de gênero. Mandrágora: Vol. 14, No 14. 2008 p. 110-116

BOFF, Leonardo. A porção feminina de Jesus Mandrágora Vol. 20, No 20 2014 p.


129-145

MARANHÃO Fº., Eduardo Meinberg de Albuquerque . “Uma igreja dos direitos huma-
nos” onde “promíscuo é o indivíduo que faz mais sexo que o invejoso e inveja é
pecado”: notas sobre a identidade religiosa da igreja da comunidade metropolitana
(ICM) Mandrágora Vol. 21, No 2 2015 p. 5-37

MUSSKOPF, André Sidnei. Deus é brasileiro! Mas que brasileiro? Mandrágora: Vol. 15,
No 15. 2008. p. 26-34

REID, Marcella Althaus. Marx enun bar gay La Teología Indecente como una Reflexión
sobre laTeología de laLiberación y laSexualidad. Numen: revista de estudos e pesquisa
da religião, Juiz de Fora, 2008, v. 11, n. 1 e 2, p. 55-69

SILVA. Laionel Vieira; BARBOSA, Bruno. Entre cristianismo, laicidade e estado: As


construções do conceito de homossexualidade no Brasil. Mandrágora, v.21. n. 2,
2015, p. 67-88

SOUZA, Robson. Pós Estruturalismo e Religião: as novas possibilidades analíticas nos


estudos sobre as relações sociais de gênero. Mandrágora, v.21. n. 2, 2015, p. 207-236

STEFFEN, Luciana; MUSSKOPF André S. Direitos sexuais e direitos reprodutivos das


pessoas com deficiências: implicações teológicas Mandrágora Vol. 21, No 2 2015 p.
39-65

ZAMBONI, Jésio; BALDUCI, R. R. Filosofia da diferença bicha. In Currículos, gêneros


e sexualidades : experiências misturadas e compartilhadas./ Alexsandro Rodrigues,
Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto, organizadores. - Vitória, ES : Edufes, 2013, p.
283-291.

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DIGNIDADE EM DISPUTA: REFLEXÕES ACERCA


DO RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO TRANSGÊNERA
NO PALCO DO JUDICIÁRIO PARANAENSE

Francielle Elisabet Nogueira Lima


Bacharela em Direito - UFPR
Mestranda do PPGD-UFPR, área de concentração em
Direitos Humanos e Democracia
francielle.nogueiralima@gmail.com

Jacqueline Lopes Pereira


Bacharela em Direito - UFPR
Mestranda do PPGD-UFPR, área de concentração em Relações Sociais
jacqueline.lopes10@gmail.com

GT 04 -
Travestilidades, Transexualidades, Lesbianidades e Homosexualidades:
Transgressões e Resistências.

Resumo

Os indivíduos gênero-desviantes, por contestarem a norma posta e diversos


códigos sociais, têm os seus direitos fundamentais espoliados. Nessa esteira, o
direito à autoidentificação e ao nome, em que pese serem essenciais a qual-
quer cidadão, tornam-se sujeitos ao crivo do Poder Judiciário. Os tribunais,
no entanto, ao confrontarem demandas de retificação de registro civil, ainda
demonstram razões de decidir colidentes com a tutela geral da pessoa (que
também se traduz no princípio da dignidade da pessoa humana), denotando
discursos médico patológicos repletos de estigmas. O trabalho problematiza,
assim, o binarismo de gênero institucionalizado, colocando em destaque a judi-
cialização da condição transgênera.
Palavras-chave: condição transgênera; judicialização; binarismo; gênero.

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Introdução

Utilizando-se dos estudos sobre gênero como fio condutor, são descor-
tinadas questões que denunciam a marginalidade da condição transgênera.
Primeiramente, trazem-se as problemáticas advindas e impulsionadas pelas
ciências e teorias que dinamizam as concepções acerca do(s) gênero(s), e que
desestabilizam o tradicionalismo social do ser homem e do ser mulher. O bina-
rismo de gênero engendrado pelas instituições, contudo, persiste aniquilando as
experiências transgressoras, colocando-as à margem da sociedade. Os sujeitos
gênero-desviantes têm, assim, a sua cidadania invisibilizada e um dos reflexos
nefastos dessa exclusão social é a negativa do direito à autoidentificação e ao
nome, tão caros ao ordenamento jurídico pátrio que, não obstante, fundamen-
ta-se no princípio da dignidade humana.
Dessa forma, em um segundo momento, busca-se realizar uma breve
análise de casos que chegam ao Judiciário envolvendo as questões atinentes à
retificação ou alteração de prenome e designativo de sexo no registro civil – e
como a ratio decidendi dos tribunais ainda contribui para a disseminação de
preconceitos, tornando a sua tutela insuficiente.

1. O(s) gênero(s) como dimensão de poder e os desdobramentos


de sua transgressão

O abrir das cortinas para tratar de gênero implica a realização de uma


tarefa deveras cuidadosa, considerando a diversidade de territórios, culturas e
vieses científicos que podem ser imiscuídos na produção de seu conceito. A
atenção a esses elementos, somada às singularidades da percepção social de
cada teórica (o), consequentemente, torna-se essencial para um estudo analítico
capaz de conferir as compreensões e problemetizações necessárias e inerentes
ao assunto.
É reconhecendo essa multiplicidade de conteúdos que Raewyn CONNELL
e Rebecca PEARSE (2015) consignam a característica multidimensional do(s)
gênero(s), como estrutura, nas relações sociais – sobretudo nas relações espe-
cíficas com os corpos. Falar em gênero implica lidar com subjetividades e
coletividades simultaneamente, pois não se pode olvidar o poder das estruturas
na formação da ação individual de cada um (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 49).

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Dentro de um arcabouço mais contemporâneo, não se descuida da lei-


tura pós-estruturalista de Joan SCOTT (1995), que nutre referências à categoria
gênero como não sendo sentida apenas no discurso da diferença dos sexos,
mas, sobretudo, nos reflexos dessas diferenças nas instituições, nas estruturas,
nas práticas cotidianas, enfim, em tudo que constitui as relações sociais; nesse
sentido, tampouco deixamos de nos orientar pela percepção de FOUCAULT
(2005) quanto à elaboração política (ou um dispositivo, nas palavras deste teó-
rico) que engloba um conjunto heterogêneo de discursos e práticas que surte
efeito na produção de subjetividades, e que se mascara pela diferença que é
reduzida aos sexos, a priori, como uma realidade biológica.
Problematizando a perspectiva binária dos gêneros, por sua vez, BUTLER
(2003) assinala a permanência dos chamados “gêneros inteligíveis”, os quais
“instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero,
práticas sexuais e desejo” (BUTLER, 2003, p.38) e, na esfera desta estreita aná-
lise, nota-se como todo os aparatos institucionais seguem assegurando essa
continuidade, por exemplo, através de práticas pedagógicas, reforçando, assim,
o processo heteronormativo da educação (JUNQUEIRA, 2011).
Butler assinala, ainda, o preceito de que o gênero não é algo que se adquire
ou que reflete o que o ser é, mas é, sobretudo, um mecanismo através do qual
as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas. E aí é que
adentra o conceito de performatividade. Ao destrinchar os estudos da filósofa
estadunidense, Letícia LANZ elucida, didaticamente, como Butler argumenta
que “o gênero não pode ser reduzido a uma simples aparência superficial do
corpo vestido”, mas como “a parte do gênero que é performatizada é, dessa
forma, a verdade do gênero”, e como a performatividade “consiste na reiteração
de normas que precedem, constrangem e vão muito além do sujeito e nesse
sentido não podem ser tomadas como manifestação da ‘vontade‘ ou ‘escolha‘
(2014, p. 55).
LANZ sublinha, ainda, como a contemporaneidade mostra certa mitiga-
ção da rigidez dos moldes de masculinidade e feminilidade, uma vez que os
papeis sociais reservados a “homens” e “mulheres” não mais são suficientes
para identificar essas categorias1. Contudo, transgredir o dispositivo binário de

1 “O que dizer de homens que vão ao salão de beleza, cuidar das unhas, da pele e do cabelo, e
mulheres que malham em academias para aumentar sua musculatura, antigo distintivo exclusivo

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gênero, isto é, vivenciar outro gênero em sua integralidade, que não aquele
designado ao nascer em razão do sexo biológico, é patentemente visto como
um tabu, algo que ataca a ordem moral estabelecida, e resulta em repressões
de diversas instâncias, que culminam na condição de marginalidade das pes-
soas que fazem tal afronta, imputando a esses indivíduos gênero-desviantes um
papel irrelevante na cena social.
É de maior importância, por isso, denunciar as represálias direcionadas
àqueles que experimentam a condição transgênera, porquanto a realidade
evidencia cotidianamente a violência contra pessoas transgêneras, seja pela
chamada vigilância de gênero, por agressões físicas (que muitas vezes culmi-
nam na morte de transgêneros), pelo enquadramento da transexualidade como
distúrbio mental no rol de patologias da OMS, pela falta de acesso ao pleno
emprego, enfim, pela flagrante negação a essas pessoas de seus direitos mais
fundamentais – inclusive de reconhecimento da própria identidade.
O direito ao nome e a liberdade de ser genuinamente quem se é, tão subs-
tanciais à esfera da personalidade, são conquistas ainda esparsas para as pessoas
trans, condicionadas ao crivo do Poder Judiciário que, ponderando princípios
do ordenamento jurídico, institutos e leis, averiguam se há os requisitos neces-
sários para se conceder a alteração dos documentos oficiais de identificação.

2. Transgeneridade: (in)compreensões pela ciência jurídica e pelo


Poder Judiciário

O Direito funda-se em lógica binária à qual são contrapostas transgres-


sões de gênero. A vida não é resumida a papéis polarizados e contrapostos:
existem complexidades que extrapolam as pretensas categorizações insculpidas
pelas ciências jurídicas.
A ciência jurídica se contradiz por defender os direitos da personalidade
como indispensáveis à tutela da dignidade (SCHREIBER, 2014, p. 10) ao mesmo

dos homens. Até mesmo a capacidade de gestar e parir, atributo mais do que exclusivo da mulher
deixou de sê-lo, no momento em que transhomens não operados resolveram reproduzir. Não há
mais nenhuma característica ou atributo pessoal, papel social ou domínio profissional que possa ser
considerado como inequívoco e absoluto ‘domínio próprio e exclusivo‘ do homem ou da mulher
(...)” (LANZ, 2014, p. 20-21).

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passo em que tribunais constroem entendimentos que restringem esses mesmos


direitos a pessoas transgêneras por não compreenderem suas subjetividades.
O prenome tem peso na autopercepção da pessoa, assim como a sua
identidade de gênero, todavia, decisões tomadas por tribunais brasileiros leem
dogmaticamente a Resolução nº 1.955/2010 do CFM, condicionando a retifica-
ção dos documentos oficiais da pessoa trans à intervenção cirúrgica. A influência
médica reverbera na atuação do judiciário, que deixa a desejar em julgados
onde há colisão entre o direito ao nome e a segurança jurídica do registro civil.
É o caso do TJ-PR, que concede o direito somente após a cirurgia de trans-
genitalização, subordinando o direito da personalidade à realidade biológica2.
Os argumentos se embatem ou pelo fato de proteger a personalidade ou por
fazer prevalecer a verdade biológica. Porém, subordinar a alteração do pre-
nome de pessoa transgênera à realização de cirurgia que meramente se adéqua
à sua autopercepção é forma de chancelar o argumento de que a identidade
resulta de construtos biologicistas e não pelo sujeito.
Notando experiência argentina3 e os óbices da retificação de prenome, os
deputados federais Jean Willys e Érica Kokay propuseram o PL nº 5.002/2013
que busca refletir a autopercepção no registro civil através da retificação por

2 Essa conclusão é fruto do exame de acórdãos localizados em pesquisa junto ao banco de decisões
disponível no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Paraná (https://portal.tjpr.jus.br/jurispruden-
cia/). Destacamos duas decisões que inspiraram a análise atenta dos fundamentos do tribunal: a Ape-
lação Cível nº 1.091.843-7, apreciada pela 11ª Câmara Cível, Relator Des. Renato L. de Paiva, em
julgamento realizado em 02/07/2014, publicado no Diário de Justiça em 25/07/2014; e a Apelação
Cível nº 350.969-5, da 12ª Câmara Cível, Relator Des. Rafael A. Cassetari, em julgamento realizado
em 04/07/2007, publicado no Diário de Justiça em 20/07/2007. O primeiro julgado não concedeu
a alteração do nome no registro civil, enquanto o segundo autorizou a mudança, porém, ambas as
decisões se fundamentam na realização ou não da cirurgia de transgenitalização, de forma a subor-
dinar a alteração do nome à “verdade biológica”. Inclusive, os votos empregam termos da literatura
médica, como se observa do seguinte trecho extraído daquela decisão: “O transexual, por força de
sua ‘anomalia sexual’ e não por mera escolha, está fadado a um estigma e humilhação ao ostentar
uma aparência destoante do prenome e do sexo descritos em seu documento de identificação oficial.
Segundo a Resolução nº 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina o transexual é ‘portador de
desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à auto-
mutilação e/ou autoextermínio’.”
3 Lei nº26.743. Disponível em: <http://www.tgeu.org/sites/default/files/ley_26743.pdf>. Acesso em
28/06/2016.

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via administrativa4. O projeto representa o clamor pelo reconhecimento de


identidades que divergem do postulado dicotômico macho/fêmea. A dimensão
da alteração do texto legal é indispensável para a visibilidade da transgene-
ridade que, como visto, ainda é vinculada fortemente ao discurso médico
patologizador5.
Como as cortinas não se abriram à Lei João Nery e o poder Judiciário
ensaia suas falas subordinado a critérios médicos, aguarda-se a posição do
STF, que reconheceu a Repercussão Geral do RE nº 670.4226. O Ministro Dias
Toffoli entendeu que a palavra da Corte Suprema é imprescindível para definir
se o direito à autoidentificação deve prevalecer frente à imutabilidade do nome,
mesmo sem cirurgia de redesignação. Aguarda-se o posicionamento da Corte
para dirimir preconceitos, reestruturar falas de tribunais e dirigir os holofotes da
proteção do Estado brasileiro ao direito ao nome da pessoa transgênera.

Considerações finais

A dignidade que é proporcionada pela simples tutela do direito ao nome


encontra óbices em sua efetivação pelo Poder Judiciário. Questiona-se: em que
medida se pode admitir essa judicialização da condição transgênera? E em que

4 O artigo 4º exige que a pessoa seja maior de idade, apresente ao cartório uma solicitação escrita,
na qual deverá requerer a retificação registral da certidão de nascimento e a emissão de uma nova
carteira de identidade, conservando o número original e expressar o/s novo/s prenome/s escolhido/s.
Disponível em:<http://prae.ufsc.br/files/2013/06/PL-5002-2013-Lei-de-Identidade-de-G%C3%A-
Anero.pdf >. Acesso em: 28/06/2016.

5 O transexualismo é catalogado como transtorno comportamental na Classificação Internacional de


Doenças sob o código CID 10 F 64. Disponível em: <http://cid10.bancodesaude.com.br/cid-10-f/
f640/transexualismo>. Acesso em 26/06/2016.

6 Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. REGISTROS PÚBLICOS.REGISTRO CIVIL DAS PES-


SOAS NATURAIS. ALTERAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. RETIFICAÇÃO DO NOME E DO
GÊNERO SEXUAL. UTILIZAÇÃO DO TERMO TRANSEXUAL NO REGISTRO CIVIL. O CONTEÚDO
JURÍDICO DO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL. DISCUSSÃO ACERCA DOS PRINCÍ-
PIOS DA PERSONALIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA, INTIMIDADE, SAÚDE, ENTRE OUTROS, E A SUA CONVIVÊNCIA COM PRINCÍPIOS
DA PUBLICIDADE E DA VERACIDADE DOS REGISTROS PÚBLICOS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO
GERAL (STF – Relator Min. Dias Toffoli – 11/09/2014).

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ponto as decisões realmente refletem a substancialidade da autodeterminação


dos sujeitos e denunciam toda a exclusão social que é cotidianamente vivida
pelas pessoas transgêneras que buscam o Judiciário para tornar a sua vida um
pouco mais digna?
Atrelar o direito ao nome e designação de sexo no Registro Civil à cirurgia
de transgenitalização, como se vê reiteradamente nos construtos biologicistas
em decisões judiciais ao apreciar as vivências transgêneras, é contribuir para
a exclusão do plural. E embora o Poder Legislativo timidamente desponte sua
preocupação em facilitar a retificação, ainda assim, são poucos os parlamenta-
res que representam os interesses da minoria. Aguarda-se, por ora, a decisão do
STF a respeito do tema para que, ao menos no âmbito judicializado do direito
ao nome, sejam definidos parâmetros de argumentação coerentes com o fun-
damento do sistema jurídico: a dignidade da pessoa.

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Referências

ARGENTINA. Ley nº 26.743. Disponível em: http://www.tgeu.org/sites/default/files/


ley_26743.pdf. Acesso em 28/06/2016.

BRASIL. Projeto de lei nº 5.002/2013. Disponível em: http://prae.ufsc.br/files/2013/06/


PL-5002-2013-Lei-de-Identidade-de-G%C3%AAnero.pdf . Acesso em 28/06/2016.

______. Tramitação do Projeto de lei nº 5.002/2013. Disponível em: http://www.


camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565315. Acesso em:
28/06/2016.

____. TJ-PR. AC 1.091.843-7. Disponível em:  https://portal.tjpr.jus.br/jurispruden-


cia/j/11704668/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-1091843-7. Acesso em 26/06/2016.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

Classificação Internacional de Doenças. Transexualismo. CID10F64. Disponível


em: http://cid10.bancodesaude.com.br/cid-10-f/f640/transexualismo. Acesso em:
26/06/2016.

CONNELL, R.; PEARSE, R. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes,
2005.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano esco-


lar: a pedagogia do armário. In: MELLO, Elena Maria Billig; SILVA, Fabiane Ferreira
da (Orgs.). Corpos, gêneros, sexualidades e relações étnico-raciais na educação.
Uruguaiana, RS: UNIPAMPA, 2011. p. 74-92.

LANZ, L. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a confor-


midade com as normas de gênero. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2014.
342 f.

SCHREIBER, A. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e


Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul.-dez. 1995.

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QUANTOS ASSASSINATOS EXISTEM EM APENAS UM?:


TRILHAS INICIAIS PARA O ENTENDIMENTO DO
TRANSFEMINÍCIO NO BRASIL.

Tarcisio Dunga Pinheiro


Doutorando em Ciências Sociais – PPGCS/UFRN
tarccisio@gmail.com

Marcos Mariano Viana da Silva


Doutorando em Ciências Sociais – PPGCS/UFRN
marcosmariano08@yahoo.com.br

Mikarla Gomes da Silva


Mestranda em Ciências Sociais – PPGCS/UFRN
mikarlags@gmail.com

GT 04 -
Travestilidades, Transexualidades, Lesbianidades e Homosexualidades:
Transgressões e Resistências.

Resumo

A proposta do presente artigo é tecer alguns apontamentos acerca dos assas-


sinatos de travestis e mulheres transexuais no Brasil. Para isso, será utilizado a
ideia de ‘transfeminicídio’ como aporte substancial para o entendimento de
algumas lacunas conceituais e metodológicas que resultam, por exemplo, na
escamoteação de dados quantitativos, na imprecisão de relatórios e na sub-
notificação de casos. As informações incutidas no ensaio são provenientes de
uma pesquisa de doutorado, cujos elementos constituintes encontram-se e fase
embrionária. Entretanto, mesmo em fase inicial, a investigação tem apontado
para algumas variáveis que denotam a urgente necessidade de políticas públicas
e estatais que se debrucem no entendimento e na redução dos atos acometidos
à população em voga.
Palavras-chave: transfeminicídio; travestilidades; transexualides; gênero;
sexualidade.

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Introdução

O Brasil é o país recordista em assassinatos de travestis e mulheres tran-


sexuais em todo o mundo. De acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB)1, no
ano de 2014 50% (cinquenta por cento) dos crimes dessa natureza ocorreram
no país. No cenário nacional, dentro do segmento LGBTTT, as travestis e as
mulheres transexuais são as mais vulneráveis face aos crimes letais: contando
com uma população estimada em um milhão de pessoas, o risco de uma delas
ser assassinada é 9.354% (nove mil, trezentos e cinquenta e quatro por cento)
maior do que a soma das demais categorias - gays, lésbicas e bissexuais, que
juntas devem representar por volta de 19 milhões de pessoas, ou seja, cerca de
10% da população brasileira2.

Entre dados e dúvidas

Atualmente, o principal local de extração dos dados inerentes ao assassi-


nato de travestis e mulheres transexuais no Brasil é o Grupo Gay da Bahia (GGB),
que fornece anualmente o Relatório de Assassinatos de Homossexuais (LGBT)
no Brasil3. Além do GGB, existem mais duas fontes em que essas informações
são coletadas. Uma delas é a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República4, a segunda é a Transgender Europe5.
Entretanto, ao fazermos uma análise comparativa entre os relatórios (que
apresentam quase sempre apenas informações numéricas), percebe-se que há
uma discrepância entre as informações incutidas nas fontes. Ao observarmos, por
exemplo, as informações atinentes ao ano de 2013 vislumbra-se que, enquanto

1 https://homofobiamata.files.wordpress.com/2015/01/relatc3b3rio-2014s.pdf, acessado em 12 de ju-


lho de 2016.

2 Informações disponíveis em http://homofobiamata.files.wordpress.com/2014/02/relatorio-20146.


pdf, 12 de julho de 2016.

3 Disponível em https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/, acessado em 12 de ju-


lho de 2016.

4 http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/ .

5 http://tgeu.org/ .

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o GGB registrou um total de 108 (cento e oito) homicídios direcionados às


travestis e mulheres transexuais, a Transgender Europe computou 121 (cento
e vinte e uma) mortes em igual período. A Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, por sua vez, elaborou o relatório tomando como base
apenas os anos de 2011 e 2012.
As poucas produções e análises científicas que se baseiam nas informa-
ções dos assassinatos de travestis e mulheres transexuais do/no país utilizam com
maior frequência os dados do GGB. Uma das justificativas é a periodicidade
em que os relatórios são disponibilizados, visto que desde o ano de 2001 há o
levantamento desses crimes pelo órgão. Outra explicação está calcada no fato
de o relatório do grupo apresentar, mesmo que de maneira não tão significativa,
algumas informações qualitativas dos assassinatos (distribuição geográfica, pro-
fissão, faixa etária). Além disso, o grupo em questão é o único que possui uma
página eletrônica6 que atualiza em tempo real todos os assassinatos de pessoas
LGBTTT do país, utilizando informações de jornais e noticiários online de todo
o território nacional que culminam na construção do relatório anual.
Acadêmicos e militantes inferem que a atual metodologia para obten-
ção dos dados ainda é imprecisa, sobretudo porque nenhuma das fontes pode
ser delimitada como específica e/ou confiável. Ao contrário, esses números
apontam somente a “ponta de um iceberg”, cuja totalidade e realidade é esca-
moteada e subnotificada, conforme apontado pelos próprios responsáveis pela
coleta de dados. Eduardo Michels, coordenador do banco de dados da pesquisa
do GGB, infere que “a subnotificação destes crimes é notória, indicando que
tais números representam apenas a ponta de um iceberg de violência e sangue,
já que nosso banco de dados é construído a partir de notícias de jornal e inter-
net.” (RELATÓRIO DA VIOLÊNCIA LGBT, 2014).
Além do âmbito metodológico, há também um hiato de imprecisão na
perspectiva conceitual, visto que todos os homicídios computados no relatório
anual do GGB, independentemente de serem direcionados a lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros, são delimitados como casos
de ‘homofobia’. Neste certame, a alusão feita às infrações denota a motivação
como sendo uma consequência da orientação sexual das pessoas assassina-
das. No entanto, uma análise mais detalhada possibilita inferir que, além da

6 https://homofobiamata.wordpress.com/, acessado em 12 de julho de 2016.

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subnotificação numérica dos casos, existe um vácuo inerente à discussão em


torno da perspectiva da categoria ‘gênero’ no processo de construção e fomen-
tação do relatório.
Na tentativa de problematizar as tessituras inerentes às mortes de traves-
tis e mulheres transexuais brasileiras, desconstruindo a tipificação conceitual
de ‘homofobia’, a socióloga brasileira Berenice Bento alcunhou esse pro-
cesso sistemático de assassinatos de transfeminicídio. Segundo a autora, “O
transfeminícidio se caracteriza como uma política disseminada, intencional e
sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e
nojo.” (BENTO, 2014, p.2).

Das questões metodológicas

Conforme apontado, a atual configuração de coleta de dados e confec-


ção do relatório do GGB sedimenta algumas lacunas passíveis de reflexão. A
primeira delas é conceitual e está relacionada ao fato de todos as ocorrências
abarcadas pelo documento estarem demarcados conceitualmente como casos
de ‘homofobia’, deslocando a análise perspectiva da categoria ‘gênero’ para
a categoria ‘orientação sexual’. A orientação sexual das travestis e mulheres
transexuais vitimadas no país não pode ser o parâmetro distintivo nesses casos,
visto que as práticas e demandas sexuais dos sujeitos são procedentes de mar-
cadores idiossincráticos e individuais.
Algumas das etnografias brasileiras que declinaram suas atenções ao
cotidiano de travestis e mulheres transexuais (Benedetti, 2005; Kulick, 2008;
Pelúcio, 2009) inferem possibilidades de entendimento dessa conjuntura
quando os autores descrevem que as práticas sexuais das entrevistadas eram
sempre “uma caixinha de surpresas”. Boa parte dessas colaboradoras revela-
vam que a quantidade de vezes em que eram sexualmente ativas nas relações
com seus parceiros (clientes ou companheiros estáveis) era mais recorrente do
que se pudesse imaginar. Destarte, a hipótese que relaciona as práticas sexuais,
leia-se ‘homossexualidade’, dessa população à violência letal e sistemática é
descontruída.
Bento (2014) faz uma incursão teórica com o intuito de potencializar a
relação entre os assassinatos de travestis e transexuais tupiniquins com a doxa
do gênero, denominando-os conceitualmente, como apontado anteriormente,
de transfeminicídio. Sobre o neologismo, a socióloga infere: “Ao acrescentar

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“trans” ao “feminicídio”, por um lado, reafirmo que a natureza da violência


contra travestis, mulheres trans e mulheres transexuais é da ordem do gênero e,
por outro, reconheço que há singularidades nestes crimes.” (BENTO, 2014, p.3).
A segunda lacuna proveniente do relatório de GGB diz respeito à maneira
em que os dados são metodologicamente aferidos. Periodicamente, uma página
eletrônica (QUEM A HOMOFOBIA MATOU HOJE? - https://homofobiamata.
wordpress.com/) é alimentada com informações de jornais e noticiários online
de todas as regiões do Brasil e disponibilizadas em tempo real. No dia 2 de
novembro de 2015, por exemplo, o jornal Guia do Oeste Notícias7divulgou a
seguinte notícia: “Travesti é morto com 12 tiros dentro de casa em Santa Maria,
no DF”8. Na mesma data, a página ‘Quem a homofobia matou hoje?’, do GGB,
publicou a notícia em seu endereço eletrônico.
Essa configuração se repete diária ou semanalmente, dependendo do fluxo
de notícias: um jornal ou noticiário eletrônico de alguma localidade do país
disponibiliza uma notícia de assassinato de uma travesti ou mulher transexual
(que é erroneamente computado junto com os demais crimes de LGBTTT), em
seguida o Grupo Gay da Bahia/GGB disponibiliza essa informação na página
“Quem a homofobia matou hoje?” e, ao final do ano, todas as notícias dão ori-
gem ao Relatório de Assassinatos de Homossexuais (LGBT)9 no Brasil.

Quantos assassinatos existem em um só?

Podemos, a partir dessa conjuntura, fazer alguns questionamentos, tanto


às questões metodológicas, quanto às conceituais: o que acontece com os cri-
mes dessa natureza que são oriundos de localidades sem noticiários online?;
E os assassinatos que, mesmo em cidades com grande aparato informacional,
não são noticiados?; Por que o gênero não é respeitado, visto que ao invés de

7 http://guiadooeste.com.br/, acessado em 13 de julho de 2016.

8 Disponível em http://guiadooeste.com.br/g1-travesti-e-morto-com-12-tiros-dentro-de-casa-em-san-
ta-maria-no-df/, acessado em 13 de julho de 2016.

9 A sigla ‘LGBT’ assim está posta pois é dessa maneira que aparece no relatório. Porém é necessário
pontuar que esta vem passando por transformações que emanam da demanda dos movimentos de
militância. Atualmente, é mais corrente utilizar LGBTTT ou LGBTTTQI.

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“travesti é morta...” os noticiários quase sempre utilizam em suas matérias a


expressão “travesti é morto...”, deslegitimando a identidade de gênero dessa
população?
Outrossim, a quantidade numérica de morte de travestis e mulheres
transexuais no cenário brasileiro e as subnotificações não revelam outras carac-
terísticas que envolvem a subtração da vida dessas pessoas. As subjetividades
que permeiam e sistematizam esses assassinatos fazem refletir sobre o processo
de desumanização ao que essa população está inserida, visto que há um ritual
que reveste esse processo, uma estrutura que se repete.
As pessoas que às matam não se satisfazem em fazê-lo com um tiro ou
uma facada. São dezenas ou centenas, há a desfiguração dos rostos, os órgãos
genitais são retirados e colocados na boca, o silicone dos seios e das nádegas
é arrancado, o assassino que às atropelam fazem questão de passar com o
carro dezenas de vezes sobre o corpo. O corpo é totalmente dilacerado. No
pós-morte há uma continuação da violência simbólica. Não existem processos
criminais que investiguem essas mortes. Não há luto. As identidades de gênero
não são respeitadas no noticiário e nem no velório (quando este acontece), visto
que nem sequer o nome social é utilizado (BENTO, 2014).
São subtraídas vidas que, paradoxalmente, nunca puderam ser configura-
das como vidas. São válidas as contribuições da filósofa Judith Butler, quando
esta aponta que
Certas vidas não se qualificam como vidas, ou, desde o princípio,
não são concebidas como vida, dentro de certos marcos epistemo-
lógicos, então tais vidas nunca se considerarão vividas ou perdidas
no sentido pleno de ambas as palavras (BUTLER, 2010, p.13).

O que está em cena é um projeto de nação que retira constantemente


travestis e transexuais da categoria ‘humanidade’. Jaqueline Gomes de Jesus
(2015) identifica a sistemática forma de desumanização em processos grupais
e institucionais aos quais as experiências trans estão incutidas. Para isso, atenta
para a maneira como a categoria ‘cidadania’ foi, ao longo do tempo, criando
fronteiras estratégicas para deixar à margem os considerados ‘não cidadãos’ e
diagnostica como a população composta por lésbicas, gays, bissexuais, traves-
tis, transexuais, transgêneros e intersexuais é uma das mais excluídas, sobretudo
no que diz respeito a inclusão e produção de políticas públicas.

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Embora encontre-se em fase inicial, a pesquisa tem demonstrado que,


mais do que respostas, os casos de transfeminicídio no Brasil são abarcados
por questionamentos. Quantos acontecem?; Quantos são subnotificados?; Até
quando não haverá punição para os assassinos?; Como pensar em procedi-
mentos metodológicos que tragam confiabilidade ao aferimento dos dados?;
Quantas travestis e mulheres transexuais precisarão morrer para que haja um
desprendimento estatal que venha a promover políticas públicas?
Neste sentido, um dos principais subterfúgios para o entendimento dessa
conjectura é a ênfase na ideia de que a principal variável analítica é o gênero.

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Referências

Livros e artigos
BENEDETTI, M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond,
2005.
BENTO, B. Brasil: O país do transfeminicídio. In: Centro latino-americano em sexu-
alidade e direitos humanos, 2014. Disponível em http://www.clam.org.br/uploads/
arquivo/Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf.
BUTLER, J. Marcos de guerra: Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carrillo.
Buenos Aires: Paidós, 2010.
JESUS, J. Cidadania LGBTTTI e políticas públicas: identificando processos grupais e
institucionais de desumanização. In: Berenice Bento & Antônio Vladimir Félix-Silva.
(Org.). Desfazendo gênero: subjetividade, cidadania, transfeminismo. 1a.ed.Natal
(RN): EDUFRN, 2015, p. 341-358.
KULICK, D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2008.
PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de
AIDS. São Paulo: Annablume, 2009.

Páginas eletrônicas
http://guiadooeste.com.br/, acesso em 12 de julho de 2016.
https://homofobiamata.wordpress.com/, acesso em 12 de julho de 2016.
http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/, acesso em 12 de julho de 2016.
http://tgeu.org/, acesso em 12 de julho de 2016.

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O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE NO
DIREITO BRASILEIRO

João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira


Graduando de Direito - UFMG
niizufmg@hotmail.com

Bruna Camilo de Souza Lima e Silva


Graduanda de Ciências do Estado - UFMG
brunalimaa25@gmail.com

GT 06 - Afetos, erotismos, novas/outras conjugalidades: sexualidades (re)inventadas


nas vivências não heteronormativas

Resumo

O presente artigo procura analisar o tratamento jurídico dispensado a “novas”


configurações familiares no direito brasileiro. Mais especificamente debruçar-
-se-á sobre a multiparentalidade, brevemente conceituada como a existência
mútua e imprejudicável de mais que dois ascendentes diretos, ou seja, três ou
mais pais ou mães. Durante muito tempo o assunto foi plenamente ignorado
pelo poder Judiciário brasileiro, contudo, com os adventos do reconhecimento
do afeto enquanto valor constitucional para delimitação do que é “família”,
novas decisões têm sido vislumbradas pelos tribunais no país. Dentre elas a
permissão de alteração registral para abarcar situações de multiparentalidade.
Palavras-chave: multiparentalidade; direito; reconhecimento; família;
diversidade.

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Introdução

O conceito de família é mutável. Para compreendê-la é necessário estar


inserido dentro de um determinado contexto social, antropológico, cultural, his-
tórico e mesmo jurídico. Este último elemento de análise da família, contudo,
não pode ser tomado como critério de definição de seu conceito, mas mera-
mente de inteligibilidade desse constructo social pela ciência do direito. Tendo
isso em mente, cabe iniciar breve debate acerca dos limites da ciência jurídica
e, sobretudo, na norma.
O Direito – este com “D” maiúsculo e que por vezes é confundido com
seu próprio conjunto de regras e normas – é aplicado através de um ordena-
mento jurídico, que abrange quase tudo em matéria normativa, bem como os
critérios hermenêuticos a serem utilizados em sua aplicação. Contudo, é mis-
ter revelar o caráter “normalizador” do Direito, que, para além de unicamente
normatizar, cria padrões de “normal” na sociedade. Aquilo que é abarcado
pelo ordenamento jurídico é concebido como normal para os jurisdicionados
– mesmo que tal processo seja lento e gradual. Referido desdobramento jurí-
dico é plenamente vislumbrado em matéria de família e sucessões: a partir do
momento em que o concubinato passou a ser regulado pela Constituição de
1988 e pelo Código Civil de 2002, os reflexos na sociedade foram perceptíveis
no sentido de aderir legitimidade a tais relacionamentos.
Muitos partem do princípio de que as mudanças sociais mudam o direito,
mas essa atividade é muito mais imbricada do que comumente se imagina.
Ocorre, em verdade, uma troca de influências entre as bases de análise das
ciências jurídicas e sociais: do mesmo modo que a sociedade pressiona mudan-
ças no ordenamento jurídico de determinado país, as mudanças normativas
(por si só) também causam alterações no modo como a sociedade encara deter-
minadas situações.
A multiparentalidade não foge a esse constructo. A realidade experen-
ciada por várias famílias não foi considerada no momento de confecção da
norma, que sempre prevê um determinado tipo de família conservadora, diga-
-se: constituída por um pai, uma mãe e sua prole. Tal constatação pode ser
visualizada a qualquer tempo, basta uma rápida leitura dos livros IV e V de
nosso Código Civil para perceber a presunção de apenas uma configuração
familiar. Percebe-se, assim, que quando a norma não prevê determinadas situ-
ações, incumbe ao magistrado solucionar as questões que lhe são impostas em
razão do dever de jurisdição.

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O reconhecimento jurisprudencial dessas configurações familiares revela


grande potencial transformador no modo como a sociedade encara vínculos
afetivos que fogem ao padrão. Afinal, família, no fino trato de Giddens, é “um
relacionamento baseado na comunicação emocional, em que as recompensas
derivadas de tal comunicação são a principal base para a continuação do rela-
cionamento” (GIDDENS, 2003, p. 70).

Família

A construção do conceito de família perpassa condições históricas, cul-


turais, sociais e religiosas. Diante disso, tem-se por “família” uma forma de
organização e estruturação antropológica mutável, cuja função e membros
divergem cronológica e culturalmente.
A estrutura familiar antiga não se concentra em parentalidades nucleares,
ou seja, o conceito de família na antiguidade não se esgotava em pai, mãe e os
filhos desses, mas tinha uma concepção ampla: o casal gerador do filho não era
o único responsável pela educação, alimentação e cuidado deste, mas toda a
comunidade que os circundava.
A família em Roma era marcadamente pública e patrimonial. Orlando
Gomes define a família romana como sendo um “conjunto de pessoas sujeitas
ao poder do pater familias, ora grupo de parentes unidos pelo vínculo de cogni-
ção, ora o patrimônio, ora a herança” (GOMES, 2000, p. 33).
Com o advento do liberalismo e a prevalência dos direitos fundamentais
nos Estados de Direito contemporâneos, cada cidadão poderia – em tese – agir
como melhor lhe conviesse. Essa liberdade abarca, também, os agrupamentos
de indivíduos, sendo permitido a todos a livre confecção de laços de afeto, que
“reside antes no serviço e amor que na procriação” (VILLELA, 1979, p. 415).
Luiz Edson Fachin, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, tece perti-
nente observação no sentido de que é :
[...] inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta,
na sua evolução histórica, desde a família patriarcal tomana até
a família nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima
ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais
(FACHIN, 1999, p. 11).

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Dessa forma, a família passa a ser uma instituição privada, um agrupamento


de pessoas marcada pelo vínculo de afeto em uma concepção eudemonista1
(TEIXEIRA et RODRIGUES, 2010, p. 94). Sobre o assunto, Rosenvald e Farias
complementam:
Ao colocar em xeque a estruturação familiar tradicional, a con-
temporaneidade (em meio às inúmeras novidade tecnológicas,
científicas e culturais) permitiu entender a família como uma
organização subjetiva fundamental para a construção individual
da felicidade. E, nesse passo, forçoso é reconhecer que, além da
família tradicional, fundada no casamento, outros arranjos familia-
res cumprem a função que a sociedade contemporânea destinou à
família: entidade de transmissão da cultura e formação da pessoa
humana digna (FARIAS et ROSENVALD, 2015, p.7).

O pilar da família

Conforme visto, em virtude das mudanças sociais e econômicas pelas


quais a sociedade ocidental passou ao longo de sua história, o conceito de
família e seus componentes mudaram. No entanto, alguns de seus pilares
permaneceram.
O principal pilar constituidor do que chamamos “família” é o afeto; o
apoio; a necessidade de formar alianças para proteção mútua. Lévi-Strauss,
refletindo sobre a obra de Radcliffe-Brown – que trazia a ideia de família for-
mada estritamente pelo aspecto biológico – , lembrou-nos a carga social da
constituição familiar:
Sem dúvida, a família biológica está presente e se reproduz na
sociedade humana. Mas o que confere ao parentesco seu caráter
de fato social não é aquilo que ele tem de manter da natureza. É
o procedimento essencial pelo qual ele se afasta dela. Um sistema
de parentesco não se encontra nos laços objetivos de filiação ou
consangüinidade dados entre os indivíduos. Ele só existe na consci-
ência dos homens, é um sistema arbitrário de representações, e não

1 Eudemonista é a doutrina que considera a busca de uma vida plenamente feliz - seja em âmbito
individual seja coletivo -, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à
felicidade, perseguindo-a como um fim natural da vida humana.

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o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato. Isso não


significa que tal situação de fato seja necessariamente contradita
ou mesmo simplesmente ignorada. Radcliffe-Brown mostrou, em
estudos hoje clássicos, que mesmo os sistemas aparentemente mais
rígidos e mais artificiais, como os sistemas australianos de classes
matrimoniais, levam em conta o parentesco biológico. Mas essa
sua indiscutível observação deixa de lado o fato que, para nós, é
decisivo: na sociedade humana, o parentesco só pode se estabe-
lecer e se perpetuar por meio de, e graças a, relações de aliança
(LÉVI-STRAUSS, 2014, p. 64).

Percebe-se, a partir do texto citado, que há dois institutos sociais que,


apesar de frequentemente confluírem, não se confundem: “família” e “parenta-
lidade”. A diferenciação básica entre os termos está no fato de que o parentesco
é o vínculo formado e construído entre mães, pais e suas filhas e filhos. Quanto
ao conceito de família, este, conforme vimos, é mutável, porém sempre baseado
nas relações de aliança. “A paternidade como aquela que, fruto do nascimento
mais emocional e menos fisiológico” (FACHIN, 1996, p. 37).

Reconhecimento judicial da multiparentalidade

Relevante transformação social dos critérios afetivos para construção da


entidade familiar não poderia, simplesmente, ser descartada pela jurisprudên-
cia. Apesar de ainda
tímida e apegada a critérios rígidos, já é possível observar algumas deci-
sões de reconhecimento da multiparentalidade nos tribunais brasileiros.

Processo de nº 0711965-73.2013.8.01.0001

No dia 27 de junho de 2014, o Juiz de Direito Fernando Nóbrega, da 2ª


Vara de Família da Comarca de Rio Branco, proferiu sentença no processo de nº
0711965-73.2013.8.01.0001 reconhecendo a multiparentalidade em demanda
de Acordo de Reconhecimento de Paternidade com Anulação de Registro e
Fixação de Alimentos em face de dois requeridos.
Na sentença homologatória do acordo entre as partes, ficou evidenciado
que a genitora da criança vivia, à época da demanda, em outro relacionamento
estável com o pai socioafetivo. Contudo, o pai biológico, ao tomar conheci-
mento da situação, contatou com as partes e propôs acordo extrajudicial, que

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viria a ser homologado pelo magistrado da 2ª Vara de Família da Comarca de


Rio Branco. Com a homologação do acordo, que versava sobre matéria registral
e de alimentos, reconheceu-se a multiparentalidade in casu.
Da decisão extrai-se seu relatório:
A.S. DA S., P. C. DA S. e A. Q. DA S. E S., esta última assistida
por sua genitora, F. DAS C. F. DA S., entabularam acordo, no
âmbito da Defensoria Pública, que nominaram de “ACORDO DE
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE
REGISTRO E FIXAÇÃO DE ALIMENTOS”.
Por meio do pacto extrajudicial, A. reconheceu ser o pai biológico
de A., e autorizou a averbação de seu nome e dos ascendentes
paternos no assento de nascimento da filha, propondo pagar-lhe
alimentos na ordem mensal de 44% do salário mínimo.
A inicial veio instruída com documentos, dentre eles, laudo de
exame comparativo das impressões digitais do DNA, que foi con-
cludente no sentido de que a probabilidade da paternidade genética
de A. em relação à A. é superior a 99,999%.
Em audiência, os requerentes esclareceram que pretendem o reco-
nhecimento da paternidade biológica de A. em coexistência com
a paternidade registral de P., com quem a filha “…mantém laços
socioafetivos…”, tendo sido, ainda, celebrado acordo em relação
os alimentos em prol da menor, nos mesmos moldes da convenção
originária.
O Ministério Público exarou parecer pela não homologação do
acordo ao argumento de que inexiste previsão legal autorizadora
do reconhecimento da dupla parentalidade.
É o breve relatório. Decido.
Trata-se de pedido de homologação de acordo que visa declarar a
paternidade biológica de A. em relação à adolescente A. Q., com
inclusão de seu nome e dos ascendentes paternos no assento de
nascimento da menor, preservando-se a relação paterno-filial regis-
tral exercida por P.
A matéria em debate versa sobre a viabilidade jurídica e fática da
pluriparentalidade ou multiparentalidade (BRASIL, 2014).

Ainda do conteúdo da sentença, reproduz-se aqui seu dispositivo:

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Nessa linha de pensamento, estou plenamente convencido da


viabilidade jurídica do pleito homologatório do acordo celebrado
no termo de fl. 34, reconhecendo a coexistência da paternidade
biológica e socioafetiva da menor, com todos os efeitos jurídicos
decorrentes.
Isso posto, HOMOLOGO o pacto firmado judicialmente, para
reconhecer que A. S. DA S. É O PAI BIOLÓGICO de A. Q. DA S.
E S., sem prejuízo e concomitantemente com a paternidade regis-
tral e afetiva de P. C. DA S., mantendo-se inalterado o nome da
adolescente.
Também homologo o acordo celebrado entre pai e filha biológicos
quanto aos alimentos.
Após o trânsito em julgado, expeça-se mandado para averbação
dos nomes do genitor e dos avós biológicos no assento de nas-
cimento da adolescente, preservando-se a paternidade registral e
socioafetiva, arquivando-se o caderno processual (art. 10, inc. II,
do CC/02) (BRASIL, 2014).

A partir da decisão apresentada, que fez constar no assento de nascimento


da menor tanto os pais socioafetivos quanto os biológicos, houve o reconheci-
mento judicial de fato da multiparentalidade.

Considerações finais

A maneira com que encaramos a família, como visto, é construída dia-a-


-dia em um processo constante de transformação que perpassa diferentes áreas do
viver. O direito – vez que está inserido na sociedade, é construído por ela e para ela
– não pode se furtar de analisar e abarcar as transformações envolvendo a matriz
familiar, de modo a não excluir arbitrariamente configurações afetivas diversas.
O advento do Estado Democrático de Direito, originado com fortes
influências liberais2 apenas corrobora a desnecessidade – e inadequação – de
ingerência do Estado em matéria tão íntima e subjetiva. Qualquer intervenção
estatal (e judicial) no sentido de impedir novas configurações familiares não
encontra guarida na inviabilidade do reconhecimento pela ordem jurídica, mas
apenas revelam forte caráter conservador.

2 2 Liberal, aqui, reflete o posicionamento filosófico de valorização da individualidade e da livre bus-


ca da felicidade por cada indivíduo.

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Referências

BRASIL. 2ª Vara de Família da Comarca de Rio Branco. Tribunal de Justiça do


Estado do Acre. Decisão proferida em processo de nº 0711965-73.2013.8.01.0001.
Publicada em junho de 2014. Disponível em: http://www.rodrigodacunha.adv.br/
multiparentalidade-tac-sentenca-0711965-73-2013-8-01-0001-homologacao-de-
trans-acao-extrajudicial/. Acesso em: 29/05/2016.

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Editora Del Rey,
1996.

__________. Elementos críticos de direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. v.
6. ed. 7. São Paulo: Atlas, 2015.

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ISBN 978-85-61702-44-1 907 de Estudos sobre a Diversidade
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“BAIXOU A 1140 AQUI?”


DIFERENÇAS E DISTINÇÕES NAS PRAIAS GAYS DE
COPACABANA E IPANEMA

Alexandre Gaspari
Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais (PPGCS)
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
alexandregaspari@gmail.com

GT 07 - Gênero, sexualidade, espacialidades: intersecções em diferentes escalas do


urbano

Resumo

Este trabalho apresenta breve análise da pesquisa feita em dois trechos de praias
da cidade do Rio de Janeiro “amigáveis” a homossexuais: a Bolsa de Valores, em
Copacabana, e a Farme, em Ipanema. A pesquisa pretendeu analisar as relações
entre homens gays nessas praias e as tensões criadas a partir de diferenciações
que alimentam disputas territoriais e simbólicas, influenciadas por mudanças
socioeconômicas e de infraestrutura urbana na cidade. Tais distinções são
caracterizadas por interseccionalidades entre diversos marcadores sociais da
diferença. Se o corpo é o mais aparente deles, devido ambiente praiano, há
ainda outros fatores que afetam tais relações, como gênero, classe social, gera-
ção, raça, origem e mesmo local de moradia.
Palavras-chave: Homossexualidade; Corporeidade; Masculinidade; Classe
Social; Território.

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Introdução

Este texto apresenta parte de minha pesquisa de mestrado, realizada entre


março de 2013 e março de 2015, cujo trabalho de campo foi feito em duas praias
gays1 do Rio: a Bolsa de Valores, trecho da praia de Copacabana em frente ao
hotel Copacabana Palace, e a Farme, em frente à rua Farme de Amoedo, em
Ipanema, ambas na Zona Sul do Rio de Janeiro. Apresento percepções sobre as
relações observadas entre homens homossexuais nessas praias, tentando com-
preender a ocupação desses territórios urbanos e a disputa simbólica embutida
nesta ocupação.
A pesquisa se baseou em observação direta, com entrevistas não estrutu-
radas, e indireta, com observações sem o estabelecimento de contato verbal,
mas que permitiram captar falas, diálogos e gestos. Foram estabelecidos infor-
mantes, permanentes ou esporádicos. Outro canal de contato foram as redes
sociais2, que permitiram contato permanente com alguns informantes.

Marcadores da ocupação

Na cidade do Rio, a praia detém um poder simbólico particular, uma


“identidade” carioca, e é tida como um território relacional indistinto, aberto
a toda e qualquer pessoa: “talvez seja a praia o lugar mais central do Rio de
Janeiro, para todas as camadas sociais, sendo um lugar de representação e de
reprodução ritual ideal miniaturizada da sociedade carioca” (GONTIJO, 2002,
p. 51).
Entretanto, não é novidade que as praias do Rio são palco de múltiplas
particularidades, que as repartem em territórios menores, com fronteiras fluidas,
mas perceptíveis. Um espaço de interseccionalidades, onde classe, raça, gênero,
sexualidade, geração e local de moradia, entre outros marcadores sociais da

1 Para efeito de simplificação da leitura, será usado o termo “praia gay” para referência a esses trechos,
embora o termo “gay” esteja mais associado a homossexuais do sexo masculino. De qualquer forma,
vale ressaltar que é visivelmente perceptível que a frequência nesses locais é majoritariamente de
homens.

2 Foram feitos contatos e entrevistas pelo Facebook. Um dos informantes também manteve contato
mais constante pelo Whatsapp.

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diferença, estabelecem marcações no corpo, na interação, na performance e


no próprio espaço.
Quanto à sexualidade, há no Rio trechos de praias “amigáveis” a homosse-
xuais, identificadas simbolicamente pela bandeira do arco-íris3. E mesmo nesses
pequenos territórios é possível verificar clivagens e representações que deter-
minam mecanismos de inclusão ou exclusão. Tomando Becker (2012), criam-se
novos outsiders entre outsiders, relações de hierarquia e poder a partir da inte-
ração entre os sujeitos e até mesmo deslocamentos espaciais, como forma de
manter fronteiras de distinção.
O mais óbvio marcador nas praias cariocas em geral é o corpo.
Lugar privilegiado do bem-estar e do parecer bem através da forma
e da manutenção da juventude [...], o corpo é objeto de constante
preocupação. Trata-se de satisfazer a mínima característica social
fundada na sedução, quer dizer, no olhar dos outros. [...] Na moder-
nidade, a única extensão do outro é frequentemente a do olhar: o
que resta quando as relações sociais se tornam mais distantes, mais
medidas. (LE BRETON, 2007, p. 78)

A Bolsa e a Farme surgiram como ponto de encontro de homens gays dis-


postos a exibir seus corpos, além, claro, de serem ponto de socialização e lazer.
Contudo, a corporeidade não é o único fator de diferenciação. Nessa complexa
rede relacional, há distinções relativas a classe social, local de moradia, geração
e raça, que vão se pronunciando com as mudanças históricas e da infraestrutura
urbana do Rio.

A “poluição” da Bolsa

A Bolsa de Valores, em Copacabana Palace, segundo Green (2000), data


dos anos 1950. Uma das explicações para o curioso nome da praia é que:
Em meados da década de 1950, os homossexuais haviam ocupado
uma área em frente ao hotel Copacabana Palace por eles denomi-
nada “Bolsa de Valores”, referindo-se à qualidade dos encontros

3 Símbolo do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersex (LGBTI).

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e flertes que ocorriam lá. Carlos Miranda4, que começou a ir à


Bolsa em 1954, não sabia quando exatamente surgiu esse nome.
“Quando eu perguntei, me disseram que lá é onde você pode
mostrar-se para se valorizar. Lugar de valorização, de mostrar seu
corpo” (GREEN, 2000, p. 263)

Entretanto, cerca de 60 anos depois, esse cenário mudou. Composta por


cinco barracas, das quais apenas uma hasteia bandeiras do arco-íris, a Bolsa já
não é mais o lugar de ver e ser visto em nível de status, de importância social, de
cotação do corpo. A frequência atualmente observável é de homens “ursos” –
“a metáfora de um homem gay muitas vezes grande ou gordo e sempre peludo”
(FIGARI, 2007, p. 464) – e de travestis e transexuais femininas5, além, claro, de
homens e mulheres heterossexuais, incluindo casais com crianças.
Essa mudança de público deve-se a alterações socioeconômicas e urba-
nas ocorridas no Rio e, particularmente, em Copacabana. Velho (1973) mostra
os primeiros sinais de “popularização” do bairro no final dos anos 1960, numa
Copacabana até então considerada “cosmopolita” e “de vanguarda”. Com isso,
a “elite copacabanense” vai se deslocando para os bairros vizinhos de Ipanema
e Leblon e também para a Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade, cuja ocu-
pação imobiliária ganha força nos anos 1970.
Nos anos 1980, houve o aumento de linhas de ônibus oriundas do subúr-
bio e do Centro do Rio rumo a Copacabana. Em 1998, foi inaugurada a estação
do metrô Cardeal Arcoverde, a primeira do bairro, a cerca de 500 metros da
Bolsa. A nova infraestrutura urbana facilitou o acesso de uma população oriunda
das classes mais baixas. O informante Jorge6 apontou que o metrô aumentou
não somente a frequência do “povão” na Bolsa, mas também de heterossexuais.
“A Bolsa era exclusivamente gay. Hoje tá mais mista, com muito hétero”.
Mudou-se a ocupação territorial da Bolsa. Os corpos “cotáveis” se deslo-
caram para a Farme, na vizinha Ipanema, em busca de um palco melhor para
a exibição corpórea. Mas, sobretudo, em busca de distinção – embora nem
sempre admitam estas razões.

4 Informante de Green em sua pesquisa, assim como outros nomes presentes nas citações a este autor.
5 Embora com presença registrada, travestis e transexuais femininas foram analisadas de forma super-
ficial na pesquisa.

6 Nome fictício, assim como os de todos os informantes da pesquisa.

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O informante Morris frequenta Ipanema. Indaguei-o sobre o porquê não


ir à Bolsa. “Acho a praia suja”, disse. No entanto, dados do Instituto Estadual
do Ambiente (Inea) do período entre 2000 e 2014 mostram que a praia de
Copacabana, e a Bolsa em particular, registraram melhores índices de balneabi-
lidade do que Ipanema e a Farme.
Logo, a poluição ambiental, ainda que irreal, é utilizada para disfarçar o
“verdadeiro” perigo: a poluição social.
Onde as linhas são precárias, achamos ideias de poluição que vêm
para sustentá-las. O cruzamento físico da barreira social é conside-
rado uma poluição perigosa [...]. O poluidor torna-se um objeto de
desaprovação duplamente nocivo, primeiramente porque cruzou
a linha e, em segundo lugar, porque colocou outras pessoas em
perigo (DOUGLAS, 2012, p. 170)

Garot@s de Ipanema

Surgida nos anos 1990, a Farme se firmou simbolicamente como território


de barbies, que seriam homens bonitos e musculosos. Há, no entanto, outros
marcadores dessa “categoria” muitas vezes acusatória e que atualmente quase
não é reconhecida por quem se encaixaria nesse “padrão”.
Barbie [...] é um termo utilizado de modo um pouco pejorativo
[...] para designar os homens que mantêm relações sexuais com
homens, que se dedicam a uma espécie de culto do corpo muscu-
loso e viril e que seguem a moda “gay” norte-americana e europeia
– a moda clubber (referente a club). (GONTIJO, 2009, p. 36)7

A Farme também é um local de “cotação” dos corpos dos homens que a


frequentavam, mas com exigências a mais. Não basta apenas um corpo muscu-
loso e depilado, é preciso exibir símbolos de status: sungas de grife, tatuagens,
piercings. Tomando a diferenciação entre barbie e boy feita por Gontijo (2004),

7 Qualquer referência a essa categoria é feita comumente no feminino. Portanto, apesar de o termo
“barbie” representar um ideal estético e de vigor físico que se aproximaria de uma “supermasculini-
dade”, ele é sempre precedido por “a”: “a barbie”, “elas”, “as barbies”.

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verifica-se também o fator racial envolvido, já que os boys teriam “cor de pele
mais escura” (GONTIJO, 2004, p. 67) que as barbies.
Entretanto, a Farme atual apresenta uma diversidade maior de frequentado-
res do que quando surgiu. Homens são maioria, mas seus tipos físicos são variados,
bem como padrões estéticos e idades aparentes. Há mulheres, embora em número
muito menor. Grupos de homens e mulheres reunidos e casais heterossexuais,
com e sem filhos, também frequentam a praia, mas também são minoria. E muito
desse movimento foi facilitado pelo metrô, com a inauguração da estação General
Osório, no final de 2009, em situação semelhante à ocorrida na Bolsa em 1998.
No final de dezembro de 2014, havia um grupo de 12 pessoas na barraca
Lucia e Claudio, no que seria a “borda direita” da Farme. Eram seis homens
– três negros, dois brancos e um pardo –, três mulheres, todas negras, e três
crianças. Carregavam bolsas térmicas e caixas de isopor. Todos os homens do
grupo trajavam bermudões à altura do joelho. Dois trocavam beijos e se acari-
ciavam. Nenhum apresentava corpo “em boa forma”. E os homens se tratavam
no feminino na maior parte do tempo. Escutavam músicas em volume alto.
Primeiramente pagodes, e depois, funk carioca.
Carlos é negro, tem 278 anos, mora em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense,
e completou o segundo grau. Otávio tem 30 anos, é branco, mora no Centro do
Rio e é dentista. Os dois são nascidos em Campos dos Goytacazes, no norte
do estado do Rio de Janeiro, cidade a cerca de 300 quilômetros da capital.
Para ambos, ir à Farme é a possibilidade de exercício “livre” de sua homosse-
xualidade, sentimento que parece ser comum para quem é oriundo de cidades
de menor porte quando chega a metrópoles como o Rio ou São Paulo e que
parece atingir seu paroxismo em points gays, como aquele trecho da praia.
“Aqui a gente se sente bem”, explicou Otávio.
Nem Carlos nem Otávio disseram sentir discriminação na Farme. Contudo,
de acordo com reportagem de Ramiro Costa (s.d.) no site “Time Out” (www.
timeout.com.br/riodejaneiro), uma “nova’ praia gay estaria surgindo no Rio, e
por motivos relacionados à noção de poluição de Douglas (2012).
Há muito tempo a famosa Farme de Amoedo já não reina mais
absoluta na cotação do público gay no Rio de Janeiro. A explicação
é simples: fugir da confusão deste ponto, que ficou muito popular

8 Idade à época da pesquisa, assim como as demais.

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com o passar dos anos, principalmente no verão. (COSTA, http://


www.timeout.com.br/rio-de-janeiro/gls/features/39/a-nova-farme.
Acesso em 22 de março de 2013).

O novo local – a barraca da Denise – está bem próximo da “borda direita”


da Farme. Apesar da proximidade, Morris deixa claro que são espaços diferentes:
P – Há quanto tempo você frequenta a Farme?
R – Estou estranhando você chamar de Farme (risos). Você sabe que
existem dois grupos gays próximos à Farme que não se misturam, né? A
galera9 chama de Farme as barracas que têm as bandeiras do arco-íris.
Nesse ponto, ficam as bichinhas pão-com-ovo. Normalmente, a galera
mais pobre, menos glamourosa, sem roupas de marca, que mora no
subúrbio e na Baixada, que são magrinhas...
P – Mas a história da Farme aponta que ela surgiu com as barbies.
R – As barbies frequentam a Denise. Quando você diz “Farme”, as pes-
soas entendem outra coisa. Esse pessoal não se mistura. Todo mundo sabe
quem pertence a que trecho. Inclusive, as pessoas que erram são alvo de
comentários.
P – Que comentários?
R – “Baixou a 114010 aqui????”

Considerações finais

Bolsa e Farme comprovam que, embora sejam públicas, não foram feitas
para “qualquer pessoa”. Não basta ter um “corpo”: este é apenas o primeiro
símbolo de uma série de representações que determinam a dinâmica de ocupa-
ção desses territórios, supostamente “livres”, mas excludentes em sua essência.
As mudanças urbanas alteraram o perfil das duas praias. As camadas
populares e os corpos “fora de forma” que passaram a estar na Bolsa nos anos

9 A “galera” a que Morris se refere são os frequentadores da barraca da Denise, que se assemelham
ao que estamos chamando de “estilo barbie”.

10 Boate LGBT localizada na Praça Seca, Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Formada por
diversos ambientes, onde se toca desde música dos anos 1980, passando por música eletrônica e por
funk, havendo ainda um ambiente destinado à música ao vivo, sua frequência é bastante variada,
mas majoritariamente formada por pessoas do subúrbio carioca, de classes mais baixas.

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1980/1990 deslocaram os corpos “cotáveis” para a Farme – cotação que vai


além da boa forma física. E novas dinâmicas da cidade do Rio a partir dos anos
2000 provocaram novo deslocamento desses corpos, desta vez para a barraca
da Denise, vizinha à Farme.
Na “Denise”, não basta ter “corpo”. Não há “bichinhas pão-com-ovo”,
homossexuais afeminados, de corpo magro e de camadas baixas. A “galera mais
pobre”, “sem roupas de marca”, quando resolve se instalar lá, logo recebe olha-
res de reprovação: faz baixar um “espírito popular” na praia “nobre” e “distinta”.

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DINÂMICAS URBANAS VINCULADAS A GÊNERO


E SEXUALIDADE: ESTABELECIMENTOS GAY-FRIENDLY EM
UBERLÂNDIA1

Beatriz Ribeiro Soares


Doutora em Geografia (USP). Professora Titular do Programa
de Pós-graduação em Geografia, IG/UFU.
beatrizribeirosoares1@gmail.com

Bruno de Freitas
Doutorando, Programa de Pós-graduação em Geografia, IG/UFU.
freitasbrunode@gmail.com

GT 07 - Gênero, sexualidade, espacialidades: intersecções em diferentes escalas do


urbano

Resumo

O presente trabalho teve o objetivo de estudar o papel do urbano na consti-


tuição das territorialidades destinadas especialmente pelo grupo LGBT no setor
central de Uberlândia, MG, por meio da análise dos estabelecimentos gay-frien-
dly. Este trabalho se justificou pela necessidade de se dedicar maior atenção
aos temas relacionados às minorias sociais. No que concerne à metodologia,
realizou-se levantamentos documentais e revisão bibliográfica. Foi feito ainda,
um levantamento cartográfico. No entanto, a coleta de dados e informações foi
realizada nos empreendimentos de lazer, diretamente pelas/os pesquisadoras/
es. Foi a partir de evidências encontradas em campo, que foram problematiza-
das as múltiplas questões espaciais realizadas as suas análises.
Palavras-chave: Consumo LGBT. Contemporaneidade. Gay-Friendly. Urbano.

1 O presente trabalho é resultado de dissertação de mestrado intitulada: “Cidade, Gênero e Sexualida-


de: Territorialidades LGBT em Uberlândia, MG”.

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Introdução

O presente trabalho teve o objetivo de estudar o papel do urbano na


constituição das territorialidades destinadas especialmente ao grupo composto
por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT) no
setor central de Uberlândia, MG, sob a luz de questões relacionadas a gênero e
sexualidade consumo do lazer deste segmento de mercado, por meio da análise
dos estabelecimentos gay-friendly2.
Do ponto de vista científico, este trabalho se justificou pela necessidade de
se dedicar maior atenção das Ciências Humanas como um todo, aos temas rela-
cionados às minorias sociais. Do ponto de vista geográfico, a presente pesquisa
se justificou em função da necessidade de entender como se dá a consolidação
das múltiplas territorialidades eminentemente LGBT existentes.
No que concerne à metodologia, realizou-se levantamentos documentais
e revisão bibliográfica. Foi feito ainda, um levantamento cartográfico para que
os fenômenos estudados na área pudessem ser espacializados e interpretados.
No entanto, a coleta de dados e informações foi realizada nos empreendimen-
tos de lazer do setor central da cidade de Uberlândia, diretamente pelas/os
pesquisadoras/es por meio de observações diretas e abordagens a alguns indi-
víduos, durante o período de desenvolvimento da pesquisa.
Foi a partir de evidências encontradas em campo, que foram problemati-
zadas as múltiplas questões espaciais presentes no fenômeno da territorialização
das áreas de lazer LGBT e sua complexidade socioespacial. Neste sentido, foi
possível notar que o setor central da cidade de Uberlândia, detém espaços de
lazer direcionados a estas minorias sociais, que geram processos espaciais que
serão tratados ao longo deste trabalho.

Questões de gênero e sexualidades: fatores de constituição de


territorialidades LGBT

2 De acordo com o site “LGBT: a sua parada gay (2015)”, Gay-Friendly significa em português ami-
gável a gays, ou amigayveis, é um termo norte-americano que vem sendo utilizado no Brasil e para
se referir a lugares públicos e/ou privados que são abertos e receptivos ao público gay, ou seja, a
membros da comunidade LGBT.

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O presente tópico tece uma discussão teórica no que diz respeito à cons-
tituição dos territórios urbanos derivados do consumo, lazer, vida noturna e
exclusão de grupos minoritários (em específico o LGBT) no setor central da
cidade de Uberlândia. Nesta acepção, as discussões que dizem respeito ao
conceito de territorialização, por meio da apropriação do espaço por segmentos
de mercado específicos, preferencialmente ao grupo LGBT.
Para entender como se dão estes processos espaciais em Uberlândia,
foi necessário discutir alguns conceitos geográficos. Parte-se do entendimento
que o espaço se torna lócus de processos sociais complexos. Sobre o espaço
urbano, Corrêa (2005) afirmou que o mesmo é simultaneamente fragmentado e
articulado e mantém relações com outros espaços.
Santos (1985) considera que em função de suas relações, os elementos
espaciais formam um sistema comandado pelo modo de produção dominante
nas suas manifestações à escala do espaço é readequado com o tempo. Aqui
apresenta-se a reconfiguração causada pela apropriação do espaço urbano da
cidade de Uberlândia, por empreendimentos comerciais que possuem funções
de lazer para grupos eminentemente LGBT.
Sobre este conceito Albagli (2004), afirmou que as noções de espaço e
de território são distintas. O espaço representa um nível elevado de abstração,
enquanto que o território é o espaço apropriado por um ator, sendo definido e
delimitado por e a partir de relações de poder, em suas múltiplas dimensões.
O território não se reduz então à sua dimensão material ou concreta; ele é,
também, um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que se pro-
jetam no espaço. É construído historicamente, remetendo a diferentes contextos
e escalas.
Deve-se considerar que as cidades constituem-se um campo de inves-
tigação complexo. A densidade populacional e o grau de complexidade
informacional que permeiam seus sítios promovem o experimento das mais vari-
áveis manifestações culturais. Embora a cidade seja o foco da cultura de massa,
ela se apresenta como verdadeira manifestação da heterogeneidade humana. As
culturas, ou seja, as unidades vividas das experiências, que produzem determi-
nadas estruturas. Para entender os processos analisados, apresentam-se dados
inerentes a cidade estudada, bem como uma breve caracterização da mesma.

Localização e breve caracterização da área de estudo

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O município de Uberlândia acha-se localizado na Mesorregião do


Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (mapa 1), é o maior centro urbano regio-
nal. Uberlândia possuía no ano de 2014, uma população estimada de 654.681
habitantes, sendo que no Censo realizado no ano de 2010, 97,2% da população
vivia na zona urbana e 3,8% na zona rural, o que caracteriza um município
eminentemente urbano (IBGE, 2014).

Mapa 1: Uberlândia, MG: Localização do município estudado, 2016.

O município de Uberlândia se constitui no mais importante polo comercial


do Triângulo Mineiro. Além da economia industrial, agropecuária e de comér-
cio, possui uma oferta de serviços diversificada focada em diversos segmentos
de mercado, entre eles o LGBT. Esta oferta refere-se existência de boates, bares,
pubs, saunas direcionadas especialmente ao grupo LGBT.
A constituição dos estabelecimentos gay-friendly estudados ocorrem
em pontos distintos (mapa 2), e alguns, inclusive são localizados em locais

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de menor visibilidade, justamente para que o segmento de mercado LGBT de


alguns estabelecimentos seja ocultado. Neste sentido, entende-se que o que se
territorializam é o segmento de lazer LGBT, por meio de mecanismos comer-
ciais, que se utiliza da busca de consumidores socialmente marginalizados com
consumo potencial.

Mapa 2: Uberlândia, MG: Localização dos empreendimentos LGBT e/ou Gay-friendly no setor central
da cidade estudada, 2016.

Por meio de observações no mapa 2, pode-se entender que estes empre-


endimentos se localizam próximos um dos outros, contribuindo para os fluxos
espaciais e econômicos. Deve-se entender a heteronormatividade imposta pela
sociedade, é uma importante variável de análise para o estudo dos territórios
de lazer e consumo, direcionados a grupos socialmente marginalizados, que
dão origem aos diversos tipos de usos do espaço, por grupos específicos. Neste
sentido, passa-se a analisar os estabelecimentos gay-friendly estudados.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Novas Dinâmicas Urbanas: Os Estabelecimentos Gay-Friendly

A discussão que segue faz uma análise sobre uma prática espacial rela-
tivamente recente em Uberlândia, que diz respeito aos estabelecimentos Gay
Friendly. Em atividades realizadas diretamente em campo, foi questionado às/
aos responsáveis do empreendimento, qual era o público alvo em um destes
estabelecimentos gay-friendlys, os funcionários afirmaram que se trata de um
lugar que “você pode fazer o que quiser com quem quiser, o importante é diver-
tir e aproveitar a noite, sem rotulações” (Depoente P, 2015).
Estes estabelecimentos são compostos por espaços que possibilitam que
os indivíduos se expressem de acordo com suas personalidades e vontades. No
entanto, percebeu-se que a maioria das/os frequentadoras/es tem a ideia de que
este perfil heterogêneo de indivíduos que compõem estas áreas de lazer, que
tem por objetivo o respeito às diferenças, surge como oposição aos estabeleci-
mentos direcionados eminentemente ao público LGBT. Conforme depoimentos
obtidos nestes estabelecimentos:
Não me importo, nem quero fazer questão de frequentar um lugar
que é direcionado apenas pra pessoas LGBT, mas sim, um lugar
que isto seja o que menos importa, e o que seja respeitado seja as
diferenças, a diversidade (Depoente Q, 2015).
Gosto da variedade de estilos, pois aqui não tem apenas pessoas
gays, mas sim estilos diferenciados, pessoas modernas, que estão
à frente de seu tempo, não preocupando se os outros são gays ou
não, pois isto é o que menos importa (Depoente R, 2015).
Eu sou gay, mas não faço questão de apenas frequentar um espaço
que seja taxado que seja da gente, eu quero estar no meio de pes-
soas diferentes, com diferentes orientações sexuais, onde todos
sejam diferentes, do mesmo jeito que queria que todos pensassem
assim, pois o pessoal ainda é muito quadrado (Depoente S, 2015)

Por meio dos discursos acima, foi possível observar que, de certa forma,
as pessoas que frequentam estes estabelecimentos, acreditam não fazer sentido
frequentar estabelecimentos destinados eminentemente paro o grupo LGBT,
pois vêm a necessidade de transcender esta questão, e que o primordial é que
as pessoas se relacionem por meio da diversidade e diferenças existentes, com
o objetivo de superar a questão do preconceito na sociedade como um todo.

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Além disto, foi possível observar que a organização destes empreendimen-


tos faz questão que o mesmo seja frequentado por todos os estilos, independente
da cor, gênero, sexualidade, orientação afetivo-sexual, no entanto, deve-se res-
saltar que para que isto ocorra, estas pessoas têm de ter acesso ao consumo
nestes locais. Em lócus foi possível observar frequentadores (aparentemente
machos), que utilizam vestimentas femininas, sem extinguir de seus corpos e/ou
vestimentas, certas características entendidas pela sociedade enquanto mascu-
linas, como a barba e/ou pelos pelo corpo.
No entanto, deve-se entender que os estabelecimentos se apropriam dos
anseios de determinada parcela da população para constituir seus mercados.
Certamente, este discurso publicitário, foi estimulado por meio do incentivo ao
consumismo por parte de suas/seus frequentadoras/es. No entanto, as diversas
propagandas publicitárias asseguram que nosso dever é ser feliz, e a felicidade
requer o consumo. Dessa forma, o mercado encontra potencialidade suficiente
para sua efetiva totalização. Atualmente, o mercado é totalitário, ocupa todos os
espaços e se apodera das mentes (SANTOS; MEDEROS, 2011).
Ademais, entende-se que este perfil de empreendimento que recepciona
diferentes grupos urbanois e estilos em um determinado lugar, é relativamente
novo no município de Uberlândia, pois a partir de pesquisas realizadas por
Freitas e Portuguez (2013, 2015) nesta área de estudo, é possível afirmar que
não havia esta forma de organização de lazer no referido município, sendo que
eram mais usuais as pessoas se agruparem por estilos em comum, por questões
vinculadas principalmente por questões vinculadas à sexualidade.
Por isso, é necessário enfatizar que as questões vinculadas à identidade dos
sujeitos, criam processos socioespaciais que se alteram no tempo e espaço, de
forma fluída. No entanto, foi possível observar e analisar como são construídas
as diferentes formas de interação social entre determinadas/os frequentadoras/
es destes empreendimentos de lazer, bem como se dá a interação entre os
grupos.
Em geral, estas/es usuárias/os se intitulam enquanto um grupo alterna-
tivo, o que mostra que a questão da afirmação por meio da sexualidade não
é tão presente, como nos estabelecimentos eminentemente LGBT. Com rela-
ção a esses sistemas simbólicos enfatizados pode-se observar que o caráter de
liberdade de expressão é exaltado pelo respeito às diferenças e a pluralidade
convivendo em um mesmo espaço.

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No entanto, é importante abordar além da questão da identidade cultural


na pós-modernidade, mas entender e interpretar o convívio entre os diferentes
estilos, levando em consideração a construção histórico-social desses grupos,
como também a forma como eles estão distribuídos no espaço e como são
construídas as interações sociais entre estas pessoas. Por fim, é possível inferir
que estas práticas são realizadas por grupos sociais excluídos da sociedade, que
se sentem sem espaço próprio, mas que encontraram nestes locais uma forma
de poderem se expressar de acordo com suas identidades, se relacionar com o
diferente, pautados na troca de experiências.

Considerações Finais

Acredita-se que por meio do estudo realizado, foi possível analisar as


especificidades de um grupo socialmente marginalizado (LGBT) sob a ótica das
questões ligadas à gênero e sexualidade. Além disso, é possível afirmar que
existem diversos tipos de sociabilização LGBT, além disto, foi possível perceber
que, em sua grande maioria, os acessos e “inclusão” a indivíduos deste grupo
se dá por meio do consumo.
Foi possível detectar que o preconceito acarretado ao grupo LGBT é capaz
de criar territórios comerciais no setor central da cidade de Uberlândia, que são
derivados do consumo, lazer e/ou turismo, vida noturna e exclusão de grupos
minoritários (em específico o LGBT), pois o capitalismo contemporâneo enxer-
gou a possibilidade de obter lucros na especialização de serviços destinados às
minorias sociais com poder de consumo.
No entanto, a gênese destes territórios se dá por questões econômicas
(por parte dos empreendedores) e simbólicas (por parte das/os frequentado-
ras/es), pois estes últimos veem a possibilidade de se expressarem de acordo
com seus desejos relacionados à sexualidade nos territórios gerados por este
segmento de mercado. Entendeu-se que as/os usuárias/os se identificam com
o segmento comercial ofertado, que se constitui em espaços privados de lazer
que são capazes de criarem a ideia de “inclusão” às/aos mesmas/os.
Em síntese, pode-se afirmar que a maioria das/os frequentadoras/es acre-
dita estarem “inseridas/os” num processo de “inclusão” social. Entretanto,
entende-se que esta falsa ideia de “inserção” se dá por meio do consumo e
gera exclusão, principalmente por questões socioeconômicas. Por fim, foi pos-
sível entender que os empreendimentos comerciais estudados não possibilitam

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a inserção social de suas/seus frequentadoras/es. Isto porque, esta “inserção” se


dá por meio da aquisição de direitos sociais e/ou políticos direcionados a esta
minoria social e não somente a partir do consumo.

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Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, v. 6, p. 222-240, 2015.

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Ano XII. Nº 24. 1º Semestre 2011. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.
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VIVÊNCIAS DE CASAIS LÉSBICOS EM COMUNIDADES


LITORÂNEAS.

Frederico Rafael Gomes de Sousa


Bacharelando em Psicologia (UNIFOR)
Membro do Grupo de Pesquisa Interlocuções
Bolsista de Iniciação Científica e Tecnológica (BICT/UNIFOR)
fred-rafael@live.com

Vitória Rodrigues da Silva


Bacharelando em Psicologia (UNIFOR)
Membro do Grupo de Pesquisa Interlocuções
vitoriaaa@gmail.com

Aline Maria Barbosa Domício Sousa


Doutora em Psicologia Social (UMINHO / USP)
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Interlocuções
Docente da graduação em Psicologia (UNIFOR)
alinedomicio@unifor.br

GT 07 - Gênero, sexualidade, espacialidades: intersecções em diferentes escalas do


urbano.

Resumo

O estudo é fruto de uma pesquisa no litoral leste do Ceará, o qual objetiva-


-se entender de que forma as representações socioculturais de moradores no
contexto comunitário rural moldam as vidas de casais lésbicos que residem
no local. A partir de referenciais de estudos feministas desconstrucionistas e
interseccionais simbolizamos as vivências da população com auxílio de visi-
tas domiciliares, além de entrevistas semiestruturadas. A metodologia da
investigação-ação-participativa foi diferencial para o processo de imersão dos
pesquisadores que após a análise dos dados puderam inferir como estruturas
sociais heteronormativos influenciam nas expressões socioafetivas de casais lés-
bicos que se tornam silenciados e invisibilizados naquele contexto.
Palavras-chave: lésbicas; comunidades litorâneas; vivência; heteronormatividade.

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Introdução

Este trabalho é resultado de uma das pesquisas realizadas pelo Grupo


Interlocuções, cadastrado no Núcleo de Pesquisa da Universidade de Fortaleza
(NUPESQ/UNIFOR), que realiza estudos multidisciplinares sobre corporeidade,
gênero e sexualidades em parceria com comunidades litorâneas do Ceará,
além de estudos localizados em espaços comunitários e/ou ruas da cidade de
Fortaleza, sobre temas como: discriminação, vulnerabilidade psicossocial, pro-
cessos de exclusão psicossociais e/ou vivências gays/lésbicas. Os resultados são
frutos da pesquisa “Outras falas: discriminação interseccional sobre sexualida-
des, trabalho e gênero entre gays/lésbicas moradores de comunidades litorâneas
no Ceará, Brasil”1, do qual se destaca as influências heteronormativas da popula-
ção na forma como as vivências de casais lésbicos são simbolizadas e moldadas.
O objetivo deste estudo foi identificar de que forma as representações
socioculturais de moradores(as) de comunidades litorâneas afetam na (des)
construção das identidades e influenciam nas vivências de casais lésbicos. A
compreensão do conceito de vivência aqui proposta é facultada a partir do con-
tinum de consciência diante dos fatos da vida social, sendo assim, pressupõe-se
que o conhecimento é atribuído as histórias da vida de determinado(s) local(ais)
em momento de exterioridade do que somos (AMARAL, 2004).
Quanto à noção de comunidade, nos aproximamos do conceito defen-
dido por Góis (2008) que se alicerça na noção geográfica de território como
possibilidade de existência de subjetividades a partir do modo de vida local.
Sendo assim, há uma relação entre geografia e atividade comunitária prove-
niente dos elementos físicos e socioculturais que moldam espaços relacionais
como propulsores de modos subjetivos atribuídos, neste estudo, ao modo de
ser lésbico/gay identificados pela própria comunidade.
Propõe-se uma reflexão teórica a partir dos feminismos interseccionais
(NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2010), dos estudos de gênero desconstrucionistas
(FOUCAULT, 1988; LOURO, 2000; 2009; BUTLER, 1990;) sobre sistemas cis-
-heteronormativos e homofobia. A discussão torna-se inédita ao discutir o viés
metodológico da Psicologia Comunitária, na qual se utilizou da Investigação-
Ação-Participativa (FRIZZO, 2010; SARRIERA; SAFORCADA, 2010).

1 Trabalho de pesquisa desenvolvido com a Organização Não Governamental (ONG) Caiçara, localizada
no município de Icapuí, Ceará, após estabelecimento de parceria no mês de Março/2015 aos dias atuais.

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Metodologia

Partimos teórico-metodológicamente da Investigação-Ação-Participantiva


(IAPA), que se destaca pela junção entre pesquisa e intervenção. A escolha pela
IAPA se deu pelo caráter interativo, sendo construída pelos atores envolvidos na
pesquisa – agentes internos e externos. O primeiro passo foi a aproximação e
familiarização com a comunidade para a realização da análise de necessidades,
feita por agentes externos (pesquisadores) em conjunto com agentes internos
(moradores da comunidade) que contribuem na resolutividade das problemáti-
cas encontradas (FRIZZO, 2010; SARRIERA; SAFORCADA, 2010).
Dessa forma, no início do ano de 2015, realizamos contato com
Organizações Não Governamentais (ONG’s) atuantes no município e lideranças
da associação de moradores da comunidade, objetivando o mapeamento das
expressões socioculturais. Para a realização do levantamento de necessidades
e problemas, realizamos visitas domiciliares aos moradores da região que indi-
caram pessoas gays e lésbicas que poderiam contribuir com o estudo. Foram
feitas 40 visitas, sendo oito com o público-alvo gay/lésbico. Neste trabalho
destacamos duas visitas domiciliares com casais lésbicos de mulheres adultas
que possuem relacionamentos estáveis e residem com suas companheiras em
comunidades litorâneas do leste do Ceará.
Durante as visitas foi utilizado um roteiro semiestruturado com 5 per-
guntas, a fim de indagar sobre o modo de vida e as representações culturais
acerca da sexualidade das pessoas gays e lésbicas. Segundo esse intuito, após a
coleta de dados, utilizamos a técnica da Análise de Discurso (ORLANDI, 2003).
Para tanto, realizamos as transcrições das entrevistas, seguida de uma leitura
flutuante em que foi evidenciado, a partir dos discursos das entrevistadas, a
recorrência das vivências moldadas pela heteronormatividade, demonstrado
com a negação do real laço afetivo dos casais, principalmente, entre outros
aspectos que iremos discutir a seguir.

Resultados e Discussão

Durante a realização desta pesquisa, realizamos em torno de 40 visitas


domiciliares em comunidades litorâneas localizadas no litoral leste do estado
do Ceará. Dentro deste número, tivemos o contato com alguns(mas) interlo-
cutores(as) gays e lésbicas. Aqui apresentaremos o contato realizado com dois

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casais lésbicos que, mesmo morando juntas, demonstravam para a comuni-


dade serem parentes, um casal dizia-se mãe e filha e o outro, irmãs. Prado;
Machado (2008) nos apresentam um tipo de “cidadania subalterna” compar-
tilhada por homossexuais. Isto se dá porque a homossexualidade possui uma
contradição na vivência privada e pública, em que na primeira ela é vivida e
na segunda omitida. Há um perigo nessa subalternidade devido o enfraque-
cimento de certo reconhecimento político, o que para vivências de mulheres
lésbicas é algo delicado, tendo em vista sua posição política. O termo “lésbica”
é dotado de singularidade no movimento homoerótico, já que este costuma
ser representado por homens. Sendo assim, o termo ultrapassa a vida sexual,
reverberando nas ações cotidianas e nas suas relações com o mundo e consigo
mesmas (LIRA; MORAIS; BORIS, 2016). A (re)afirmação da identidade lésbica
possibilita a identificação coletiva e a organização em movimentos com capaci-
dade de gerar demandas por direitos sociais e de negociar com o poder público
na luta pelo alcance dos mesmos (VIANNA, 2015).
A interseccionalidade, conceito recorrente nos estudos de gênero e muito
difundida pelos feminismos negros durante os anos 70 (OLIVEIRA, 2010),
contribui para compreensão de como os diferentes domínios interagem na cons-
trução da identidade de gênero. Assim, os modelos clássicos de compreensão
dos fenômenos de opressão no interior das sociedades – gênero, deficiên-
cias, religião, orientação sexual, raça, classe e/ou região, se inter-relacionam,
criando um sistema que reflete a intersecção de múltiplas formas de opressão
(NOGUEIRA; OLIVEIRA, 2010). Ou seja, a construção das subjetividades das
entrevistadas é perpassada pelas intersecções relativas a orientação sexual, ao
gênero e ao território, cujas determinações sociais influenciam na vivência das
(suas) sexualidades.
É válido ressaltar que utilizamos o conceito de territorialidade em diferen-
tes escalas do urbano uma vez que estas identificam condições compartilhadas
pelos moradores do lugar em termos de pertencimento e segurança emocional.
Nestes termos, Amaro (2007) apresenta o sentimento psicológico de comuni-
dade como um dos elementos centrais da territorialidade2. Já McMillan (1996)
e Burroughs; Eby (1998) acrescentam a isto a segurança emocional. Notamos

2 Se configurando como um sentimento de pertença a determinado lugar e de ser mutuamente reco-


nhecido pela população e entorno locais, como fazendo parte de um grupo comunitário.

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nos discursos das interlocutoras que elas se sentem pertencentes àquele local,
mesmo que não se sintam seguras em assumir publicamente suas sexualidades.
É importante perceber a relação entre a vivência territorial e as produções cul-
turais acerca das identidades sexuais e de gênero, como afirma Butler (1990):
The cultural matrix through which gender identity has become
intelligible requires that certain kinds of “identities” cannot “exist”—
that is, those in which gender does not follow from sex and those
in which the practices of desire do not “follow” from either sex or
gender. (BUTLER, 1990, p 23-24).3

A compulsão da heterossexualidade cria um falso domínio na vida das


pessoas que, a partir de jogos de poder e seus mecanismos de controle, cons-
troem e regulam a sexualidade dos sujeitos. Dessa maneira, segundo Foucault
(1988), nos reportamos a uma forma de controle que não se dá a partir de
repressão explícita, mas de mecanismos imperceptíveis que buscam atuar na
esfera individual, vigiando, controlando, regulamentando e/ou moldando as
formas de ser. É pertinente considerar o exposto por Sack (1986, p.265) que
aproxima os mecanismos de controle com o conceito de territorialidade como
uma “tentativa, por um indivíduo/grupo, de atingir/afetar, influenciar, controlar
pessoas [...] e relacionamentos, pela delimitação e afirmação do controle sobre
uma área geográfica”.
É perceptível nas entrevistadas seu reconhecimento no “local” de homos-
sexuais de acordo com o que é produzido e disseminado socialmente. Elas se
reconhecem como pessoas sem voz na comunidade. Afirmam que preferem
ficar em casa e que não saem muito. Não há identificação delas com outros
LGBTs da comunidade. Ainda se aproximam da ficção heterossexual e, sendo
assim, não sofrem um preconceito escancarado.
Segundo Louro (2000, p. 27) “A produção da heterossexualidade é acom-
panhada pela rejeição da homossexualidade. Uma rejeição que se expressa,
muitas vezes, por declarada homofobia”. O receio de assumir publicamente a
sexualidade para a comunidade está ligado ao medo de rejeição e violência.

3 A matriz cultural que torna os gêneros inteligíveis admite que tipos de “identidades” não possam
“existir” – que são, aquelas que o gênero não é seguido pelo sexo e aquelas que a prática do desejo
não é “seguida” pelo sexo ou pelo gênero. (Tradução livre feita pelos autores).

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Estamos falando de um contexto fortemente heteronormativo (LOURO, 2009),


ou seja, um contexto que produz e reitera compulsoriamente a norma heteros-
sexual (BUTLER, 1990). Louro (2009, p. 90) escreve:
[Os(As)] que fogem à norma, poderão na melhor das hipóteses ser
reeducados, reformados (se for adotada uma ótica de tolerância e
complacência); ou serão relegados a um segundo plano (tendo que se
contentar com recursos alternativos, restritivos e inferiores); quando
não forem simplesmente excluídos, ignorados ou mesmo punidos.

Dessa forma, tentar se aproximar da norma é uma forma de evitar alguns de


seus efeitos, porém esses não são completamente exauridos, já que há um silen-
ciamento das moradoras pela comunidade. Porém, as entrevistadas vêem isso
como algo positivo, pois o silenciamento acontece junto com a invisibilidade.

Considerações finais

A partir deste estudo entendemos que as comunidades pesquisadas são


estruturadas socialmente a partir de padrões heteronormativos, na qual pedago-
gias de gênero e sexualidade são disseminadas e ditam a vida naquele espaço.
Percebemos que a existência das pessoas que não se encaixam nos padrões esta-
belecidos, sustentados em um modelo heteronormativo, são silenciadas e limitadas.
Os casais lésbicos que nos aproximamos a partir deste estudo optam por
não expor o real laço afetivo que as unem diante dos mecanismos de controle
vigentes na heteronorma, o que não as protege de serem vítimas de precon-
ceitos, fazendo-nos perceber a influência de representações socioculturais de
moradores(as) de comunidades litorâneas na (des)construção das identidades
destes casais, afetando diretamente suas vivências enquanto lésbicas.
Fora nos proporcionado, a partir do contado com a realidade local uma
reflexão crítica acerca do preconceito experienciados por casais lésbicos que
se interseccionam em múltiplas esferas. Finalmente é importante ressaltar que
a vida desses casais, mesmo que silenciada, é prova de resistência as normas
opressoras, ou seja, as mulheres que contatamos possuem em sua existência,
sua própria resistência. Tais espacialidades trazem, ainda, perspectiva de novos
estudos com foco maior nas diferentes escalas do urbano dentro das territo-
rialidades rurais no contexto litorâneo; sendo importante para a formação em

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psicologia e areas afins, bem como no eixo de sociedades mais justas e igualitá-
rias em defesa da diversidade de papéis sexuais e vivências lésbicas.

Referências

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A CONSTRUÇÃO DO PAPEL DA MULHER NA CIDADE: UMA


ESPACIALIDADE DE (NÃO) VIVÊNCIAS

Isabela Rapizo Peccini


Graduação
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFRJ
isabelapeccini@gmail.com

Orientadora: Marlise Sanchotene de Aguiar


Doutorado em Urbanismo
Pesquisadora de Pós Doutorado PROURB/FAU/UFRJ
Professora FAU/UFRJ
marlise.aguiar@uol.com.br

GT 07 - Gênero, sexualidade, espacialidades: intersecções em diferentes escalas do


urbano

Resumo

Este artigo é parte de pesquisa realizada para construção de Trabalho Final de


Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal
do Rio de Janeiro1, onde se entende que a cidade capitalista é produto e repro-
dutora de relações sociais construídas historicamente e, portanto, explicita e
espacializa desigualdades em seus espaços urbanos. Este artigo pretende dis-
cutir as relações entre as construções sociais das desigualdades de gênero e a
vivência das mulheres trabalhadoras no espaço público da cidade. O recorte se
dá, portanto, na contextualização de classe e gênero e a metodologia adotada
consiste na observação empírica e de extensa revisão bibliográfica teórica.

1 O referido estudo busca analisar não somente a vivência no espaço público da mulher trabalhadora
terceirizada dessa instituição, mas também a construção dos espaços de lazer existentes em seus
percursos diários. Como produto da pesquisa, seguiram análises de praças localizadas nos bairros de
moradia dessas mulheres e ao longo dos seus trajetos até o trabalho.

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Palavras-chave: cidade, mulher, espaço público, lazer, trabalho

Introdução

A cidade se apresenta como produto histórico, político e social da vida


coletiva (Harvey, 2005; Rolnik, 1995; Maricato, 2002) que reflete espacial-
mente as relações que se estabelecem entre as pessoas que a vivem. Lefebvre
(2000), por exemplo, constrói o conceito de urbano a partir da existência, em
seu espaço, dos conflitos sociais e, nesse sentido, denomina a cidade como o
espaço social. A cidade não é um objeto estático, é produto e (re)produtora des-
sas relações construídas ao longo dos tempos e contextos, constituindo papéis
que reforçam uma estrutura social pré-concebida.
Como sublinha Alambert (1997), a vida das mulheres e, mais ainda das
mulheres trabalhadoras, foi e é baseada em seu papel de reprodução, tanto pela
criação de filhos como pela responsabilidade de manutenção da vida familiar.
Este papel preenche a vida cotidiana das mulheres com afazeres que não lhe
dizem respeito somente, mas a um grupo de pessoas que lhes são relacionadas.
O que se espera das mulheres é uma série de ações, aparências, sentimentos,
pensamentos construídos socialmente como femininos.
A partir do momento em que o papel das mulheres na sociedade é cons-
truído em torno de sua responsabilidade pelo lar e pela família, também designa
à elas um espaço. Essa relação desigual determina que as mulheres que se man-
têm no espaço privado são as mulheres dignas, as afastando tanto do espaço da
rua como dos espaços de decisão da sociedade. Ao mesmo tempo, as mulheres
que se colocam na rua têm seus corpos vistos como públicos e suas ações
vistas como indignas. Nesse contexto, para que as mulheres utilizem o espaço
da cidade, precisa-se ter tempo e liberdade para tal; se sentir livre e à vontade
para construir relações com esses/nesses espaços; sentir o espaço da cidade
como seu e necessita, também, ter tempo em sua rotina para fazê-lo. Para isso,
a desconstrução do papel das mulheres enquanto responsável pela reprodução
é determinante.
Não temos [as mulheres] tido de fato a oportunidade de influenciá-
-lo [o espaço urbano], mesmo sendo evidente que experimentamos
a cidade de forma diferenciada dos homens, de modo geral.
Redesenhar as cidades é o suficiente se não transformamos as

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relações de dominação e desigualdades de gênero? (TAVARES,


2015, p. 114-115)

Pretende-se, neste artigo, debater como as relações de gênero se manifes-


tam no espaço urbano e, nesse contexto, buscar entender qual o lugar designado
às mulheres na cidade. Para apreender a importância do espaço urbano no pro-
cesso de exclusão e desigualdade de gênero, é necessário entender como se dá
a construção histórica do papel da mulher, sua relação com o trabalho e sua
vivência no espaço urbano, questões apresentadas nos três itens a seguir.

A Mulher na História
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino bioló-
gico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que ela-
bora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que
qualificam de feminino (Beauvoir, 1967, p. 9).

Como colocado por Beauvoir, a construção social e cultural do que é


feminino e masculino nos é imposta como um padrão natural, construído, refor-
çado ou desconstruído pela forma como se organizam as sociedades ao longo
da história. Se além de patriarcal, a sociedade é também racista, haverá uma
construção de papel social que se difere entre mulheres brancas e negras, mas
que estão ainda sendo pautadas por um comportamento ideal.
Ao voltar o olhar para as diferentes construções históricas das sociedades,
veremos que, mesmo em sociedades mais antigas, as mulheres eram colocadas
em um lugar inferior em relação aos homens. Nas residências gregas, verifica-se
a presença de espaços divididos por gênero: andrón–masculino, onde ocorriam
simpósios e pequenas reuniões e gineceu–feminino, normalmente pontos mais
isolados da casa e próximos à cozinha. Nas pólis gregas, o espaço da demo-
cracia era a ágora, onde se realizavam os debates e ações políticas. Porém, a
definição de quem era cidadão e exercia o direito à voz na ágora era limitada e
excluía as mulheres. Mais recentemente, a Declaração dos Direitos do Homem
as retirou da vida pública2, ignorando mais uma vez a sua contribuição na

2 A Declaração, porém, não fica sem uma resposta das mulheres da época. Em 1791, Olympe de Gou-
ges escreve a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, em resposta ao documento inicial.

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Revolução Francesa3, historicamente relatada como de realização masculina.


Em suma,
em todos os dados colhidos no processo de pesquisa sobre a histó-
ria das condições de vida das mulheres através dos tempos, pode-se
sentir que as pobres sempre foram o “burro de carga”, afundadas
no trabalho, as ricas ou privilegiadas sempre viveram mergulhadas
em seus triunfos intelectuais e mundanos, e todas elas foram sem-
pre apenas reprodutoras da espécie, escravas declaradas incapazes
pelas leis e códigos. (Alambert, 1997, p.51).

A Mulher no Trabalho

A divisão do trabalho por homens e mulheres se reflete na vivência destas


pessoas nos espaços públicos e privados. Se o trabalho da mulher é, predomi-
nantemente, no âmbito privado, ela não viverá de forma tão intensa o espaço
público e, consequentemente, este espaço não será pensado para ela, nem por
ela.
Aqui, consideramos os conceitos4 de trabalho reprodutivo–referente
à manutenção da vida (comer, beber, habitar, vestir), acontece no âmbito
doméstico e privado e não é remunerado; e trabalho produtivo – que produz
mercadoria, gera mais valia para o dono do meio de produção e, normalmente,
é remunerado.
Hoje, as mulheres constituem 45,5% da População Economicamente
Ativa/PEA no Brasil, havendo um crescimento gradativo deste dado nas últimas
décadas5. Apesar disso, sua inserção no mercado de trabalho ainda se dá de
forma desigual. As mulheres, de maneira geral, ocupam empregos mais precá-
rios, informais, em domicílio, ou ainda, recebendo salários mais baixos que o

3 Há registros de cerca de oitenta mulheres que guerrearam lado a lado aos homens, durante o perío-
do da Revolução Francesa. Vide: “Revolução Francesa e feminina”, disponível em <http://migre.me/
ufUeL> Acesso em 15/06/2016.

4 Sobre o assunto, vide: LÚCIO, Clemente D.; GARCIA, Mayra. Desafios para a Igualdade no Mercado
de Trabalho. Plataforma Política Social, 09/02/2016.Disponível em< http://migre.me/ufUfd>. Acesso
em 07/05/2016.

5 Cf. Síntese dos Indicadores Sociais (IBGE, 2016).

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dos homens por funções iguais (SILINGOWSCHI, 2007). Segundo a Pesquisa


Nacional por Amostra de Domicílios / PNAD (2014), a cultura da responsabili-
dade doméstica designada para a mulher faz com que 86% dos trabalhadores
domésticos sejam mulheres; 60% dos lares com empregadas domésticas são
chefiados por homens; as funções de doméstica e cuidadora empregam 20%
das mulheres ocupadas no país; e as mulheres receberam em média 74,5%
do rendimento de trabalho dos homens em 2014. Esta inserção desigual se dá
como consequência (e manutenção) da lógica que designa às mulheres a res-
ponsabilidade do trabalho doméstico e de discriminações e restrições sofridas
por elas, e influenciam diretamente em sua vivência cotidiana do espaço da
cidade.
Com a dupla jornada, as mulheres passam a ter dois espaços de trabalho:
dentro e fora de casa. Sua rotina passa por ir e voltar do local de seu trabalho
produtivo, mas também por realizar as compras necessárias para a casa, levar
filhos na escola, acompanhar idosos e crianças da família à médicos, entre
outras tarefas. Isto faz com que seu percurso seja distinto do homem que, nor-
malmente, vai de casa para o trabalho e do trabalho para casa, ou tem paradas
para o lazer após o expediente. Faz-se necessária a utilização de mais de um
meio de transporte para se chegar de um ponto a outro, o que é intensificado
pela má qualidade dos transportes públicos e pela vulnerabilidade das mulheres
nesses espaços, sofrendo, ainda, assédios e agressões. O espaço público deixa
de ser um espaço vivenciado pela mulher para o seu prazer, visto que seu
tempo é dedicado, inclusive em fins de semana, para os trabalhos produtivo e/
ou reprodutivo. A vivência das mulheres nos espaços privados e públicos está
portanto, majoritariamente, relacionada às suas responsabilidades de trabalho.

A Mulher na Cidade

Para entendermos o lugar designado para as mulheres na cidade, é


importante considerar que o espaço estudado aqui não é somente aquele
tradicionalmente definido pela arquitetura e pelo urbanismo, projetado por pro-
fissionais da área, mas vivenciado, ocupado e transformado pelas pessoas em
seu dia a dia (Rendell, 2000). Parte-se do pressuposto de que a produção desse
espaço não se dá de forma imparcial, ou seja, se dá pelos olhos e mãos do
patriarcado e do capital e pode funcionar, portanto, como agente de manuten-
ção das desigualdades fruto destes sistemas.

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A cidade capitalista é o espaço do mercado e ao mesmo tempo é, em si,


o mercado, portanto, está à venda e é marcada pela segregação, que acontece
fisicamente; de forma abstrata, pela divisão de territórios; e também por funções
(Rolnik, 1995). A marca da desigualdade se dá através do acesso ao espaço privado
(a moradia) e também pela falta de infraestrutura e recursos em certas localidades6,
conformando os processos de valorização ou desvalorização dos espaços urbanos
e gerando o que Maricato (2000) entende por áreas de exclusão urbanística.
As mulheres, por sua vez, sentem o espaço desigual de forma mais inci-
siva, até por terem cotidiano diferenciado em relação ao ser humano tomado
como modelo7. Nesse sentido, buscamos identificar situações de conflito vividas
pelas mulheres trabalhadoras na cidade como forma de espacializar e explicitar
estas desigualdades. Estudamos como se apresentam questões de segurança e
de lazer na cidade contemporânea, considerando-se que há situações e medos
vividos exclusivamente ou mais intensamente pelas mulheres. Isso se verifica,
simplificadamente, através da construção social da mulher: a forma como ela é
vista e o lugar em que ela é colocada na sociedade. Além da questão de perten-
cimento: pelo espaço público não ser o espaço designado à ela historicamente,
ela não se sente segura, pois não se sente parte do que não é feito pra ela.
São diversas as situações em que o espaço e/ou elementos do espaço
urbano (mobiliário, arborização, fachadas, revestimentos) influenciam dire-
tamente na vivência das pessoas e, mais especificamente, das mulheres. A
construção de paredes e muros cegos, sem porosidade, influencia na constru-
ção de lugares perigosos. De acordo com o manual “Espaços Urbanos Seguros”,
adaptação de manual homônimo chileno por iniciativa do Governo do Estado

6 A exemplo do que reflete a pesquisa de Sugai (2015, p. 181) que conclui, através da análise histórica
da localização de investimentos do Estado em Florianópolis e região metropolitana que a “sua dis-
tribuição espacial [dos investimentos públicos] não ocorreu de forma geograficamente equilibrada,
uniforme, homogênea ou determinada pelas demandas. Evidenciou-se também que a localização
desses investimentos não ocorreu de forma aleatória e também não foi calcada apenas em decisões
técnicas”.

7 Os livros Modulor I e Modulor II foram publicados, respectivamente, em 1948 e 1957 e reuniam te-
orias de proporções, descrições que deveriam ser aplicadas nos seus projetos. A incorporação dessas
proporções pode ser verificada em diversos edifícios e consolidou-se através da grande indústria que,
especialmente depois da Segunda Guerra, se ocupou de conceber casas em série.

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de Pernambuco, é importante a criação de situações que permitam com que


a/o pedestre exerça a “vigilância natural”, ou seja, que permita a ocupação do
espaço, a presença de pessoas e a comunicação entre elas. Essa situação pode
se dar pela abertura de muros, pelo comércio, por mobiliários de permanência,
pela iluminação, entre outros.
Mais um fator que, de certa forma, é comum a todos que utilizam os
espaços públicos é o lazer. Porém, ao analisarmos os espaços de lazer de alguns
dos bairros da cidade do Rio de Janeiro, constata-se um padrão que possibilita
a vivência predominante do homem. Qual é, portanto, o espaço da cidade uti-
lizado pelas mulheres especificamente para o seu lazer? Está dado seu lugar no
trabalho produtivo através da divisão sexual do trabalho e seu lugar no espaço
privado como responsável pela reprodução do lar, mas qual o lugar de diversão
e ócio das mulheres? Ele existe?
Além de quadras de futebol, esporte visto como masculino em nossa
sociedade, há parquinhos infantis e equipamentos para terceira idade na maio-
ria das praças. Não se identifica, porém, um espaço planejado para as mulheres.
Pode-se, ainda, perceber que, mesmo com o planejamento do espaço de lazer,
as únicas soluções encontradas são as que se relacionam a esportes vistos como
masculinos e espaços infantis com bancos ao redor que, por sua vez, não aten-
tam para o conforto de quem estará ali ou o sombreamento, por exemplo.
Quando há espaços que possibilitam outro tipo de atividade, como mesas de
jogos, estes são, na maioria das vezes, também apropriados por homens.

Considerações Finais

Se a cidade é o espaço social, construída de forma desigual entre classes


e entre homens e mulheres, é evidente a necessidade de incluir as mulheres no
pensar a cidade como agentes transformadoras e usuárias desse espaço. É pre-
ciso entender que não há o ser humano padrão e que a cidade precisa ser feita
para todas e todos. Enxergar o Urbanismo e o espaço urbano à luz de novas
perspectivas, que complementem as ferramentas, práticas e conhecimentos que
já nos utilizamos, é um caminho para que possamos construir cidades mais
seguras e igualitárias. A transformação do espaço precisa acontecer por diversos
aspectos, que incluem a segurança, a mobilidade, a possibilidade de estar e, de
fato, usufruir do espaço. Para tal, além do âmbito da construção física, é urgente
considerar a falta de representatividade das mulheres nos espaços de decisão
das transformações urbanas e a representatividade simbólica tanto na mídia

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como no próprio espaço da cidade e, ainda, a transformação da forma como o


papel social destas mulheres é construído.

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SUGAI, Maria Inês. Segregação silenciosa. Investimentos públicos e dinâmica socio-


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Disponível em ‹http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/shcu/article/
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“EL ÚLTIMO VAGÓN” LA APROPIACIÓN DEL ESPACIO


Y LAS PRÁCTICAS HOMOERÓTICAS ENTRE HOMBRES
EN EL METRO DE LA CIUDAD DE MÉXICO

José Octavio Hernández Sancén


Universidad Autónoma Metropolitana. Unidad Xochimilco (UAM-X)
Red Temática de Estudios Transdisciplinarios del Cuerpo y las Corporalidades
oct_sancen@yahoo.com

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urbano

Resumen

Esta propuesta es una reflexión en torno al espacio del Metro de la Ciudad de


México pensado como un espacio de “ligue” y socialización entre hombres,
quienes bajo un secreto a voces pueden permitirse toda clase de actos que
impliquen el contacto con el cuerpo, el deseo y el sexo. Entre sus vagones y el
reducido o amplio espacio de su interior, las prácticas homoeróticas son una
expresión de la sexualidad diferente, también llamada transgresora por preten-
der y ser explicita más allá de la ley. Prácticas que llevan consigo formas de
gestionar el placer y el deseo, maneras de construir y reconstruir identidades,
significados personales, vínculos de placer y poder, el reconocimiento de la
diversidad sexual y social.
Palabras clave: Metro, espacio, apropiación, prácticas homoeróticas, diversidad
sexual.

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Introducción: El Metro

Desde su primer servicio al público el 4 de septiembre de 1969, el Metro


ha demostrado ser el medio de transporte colectivo y masivo más importante
de la Ciudad de México. En su historia y en su creciente desarrollo, la red del
Metro ha intentado vincular transversalmente todo el territorio de la megaló-
polis. Aunque han sido varias las fases de su construcción, hasta el momento
este sistema de transporte cuenta con 12 líneas o rutas que conectan diversos
puntos geográficos de la ciudad en una amplia red de túneles subterráneos,
avenidas y puentes.
El Metro ha sido un facilitador en el traslado de millones de usuarios
“beneficiando” su economía ya que el costo por viaje a través de su historia ha
sido relativamente bajo ($5.00 MXN, $0.88 BRL el boleto) en relación a otros
transportes públicos de la ciudad y del mundo.
En el transcurso del tiempo, el Metro ha sido señalado como un lugar
público permeable de encuentros “privados” homoeróticos1, configurado por el
juego del anonimato y la prohibición, pero al mismo tiempo entre la liberación
y dinamismo del placer y la sexualidad entre sus “estaciones de transbordo, los
cambios de dirección en el mismo andén, los túneles de salida, los vagones más
desocupados a ciertas horas o los más llenos” (Sánchez, 2002:28); donde las
fronteras entre lo público y lo privado se desvanecen.
Por lo tanto, en este trabajo quiero hacer una reflexión en torno al “último
vagón” del Metro, al cual propongo pensar como un espacio para el “ligue” y
la socialización entre hombres, quienes bajo un secreto a voces, pueden permi-
tirse toda clase de actos que impliquen el contacto con el cuerpo. Lo anterior
me hace suponer que éstas prácticas tienen en sí mismas un componente de
transgresión (de la norma) que se cristaliza en el anonimato de los sujetos, donde
las identidades también son puestas en entre dicho como la manera, quizá no la
única, de apropiarse y sostener dicho espacio. El cuerpo, la mirada y la no pala-
bra, también son elementos que configuran y dan sentido a dichos encuentros.

1 Cuando hablo de prácticas homoeróticas es para referirme a una socialización erótica versátil y
dinámica entre personas del mismo sexo biológico, en este caso hombres, en las que se implican el
cuerpo, el deseo y la subjetividad. Las prácticas homoeróticas al ser una forma de expresión de la
sexualidad, son determinadas por la cultura y el contexto en el que se desarrollan.

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Desde este planteamiento, quiero debatir y destacar la importancia de


este espacio apropiado2 principalmente por los hombres y que ha perdurado
en el tiempo siendo expresión de la llamada diversidad sexual entendida como
un paradigma que propone una nueva manera de vivir la sexualidad humana
desde la riqueza de sus dimensiones en lo erótico, afectivo, sexual y de género
(Nuñez, 2016).
En este sentido me cuestiono lo siguiente: ¿es posible pensar el “último
vagón” como un espacio para la diversidad sexual y de expresión de las prác-
ticas homoeróticas entre hombres-usuarios del Metro?, ¿cómo se apropian y
significan el espacio del Metro de la Ciudad de México los usuarios-hombres?,
¿por qué el Metro es un espacio para los encuentros homoeróticos entre hom-
bres en la Ciudad de México?
Para intentar responder dichas preguntas, me basare en al menos seis
conversaciones sostenidas con hombres de entre 30 y 45 años de edad, quienes
participaron desde su diversidad social en términos de ocupación, escolaridad,
estatus y ubicación geográfica en la megalópolis como parte de la investigación
de posgrado por mi realizada (Hernández, 2016). La propuesta metodológica
fue de corte cualitativo mediante los sistemas conversacionales3 (González,
2007) y el trabajo etnográfico haciendo uso de la técnica de la observación
participante que permitió en todo momento recordar “que se participa para
observar y que se observa para participar” (Guber, 2001:60-62). En otras pala-
bras, el investigador sólo puede comprender desde adentro, es decir, procede
a la inmersión subjetiva.

El “último vagón”

El “último vagón”, es un espacio de un amplio significado, ya que para


muchos hombres representa la oportunidad para “metrear”, es decir, el “ligue”,

2 Por apropiación entiendo el acto de significar o dar sentido propio al lugar desde la experiencia del
sujeto por medio de las prácticas homoeróticas que ejercen los usuarios-hombres.

3 Un instrumento de la investigación cualitativa “que permiten al investigador descentrarse del lugar


central de las preguntas para integrarse en una dinámica de conversación, que va tomando diversas
formas, y es responsable de la producción de un tejido de información que implique con naturalidad
y autenticidad a los participantes” (González, 2007:32).

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la seducción, el placer y el sexo, interrelacionados con la aventura, la emoción


y el juego.
Por ejemplo, Raúl, un entusiasta usuario del “último vagón” comentó:
El Metro es un espacio de ligue, es para conocer gente, encuentros
sexuales fugaces, sexo sin compromiso, en general para relacionarse
[…] se da el “filtreo” o sea que si alguien se te queda viendo y te
hace un guiñito pues le sonríes. Hay un intercambio de miradas […]
Hay como un cortejo de a quien le gustas y pues… trato como de
seducirlo para que se baje en la misma estación conmigo y empiece
a platicar y me dé su teléfono y a lo mejor lo veo otro día, o en otras
se da un rápido “fajoteó” entre la multitud. Obviamente sucede en
las horas pico, en las mañanas cuando la gente va al trabajo como
entre las 8 y 10 de la mañana […] (Raúl).

Por otro lado, siguiendo la inquietud de Carlos Mosiváis (2009) sobre si es


posible el ligue en el Metro, él mismo nos comparte:
Muchos dicen que sí, que es lo más fácil, que si el Metro reconstruye
la ciudad y escenifica por su cuenta a la calle, incluye por fuerza al
sexo en sus variadas manifestaciones. En el Metro la especie vuelve
al desorden que niega el vacío, y eso permite las insinuaciones, el
arrejunte […] el faje discreto, el faje obvio, las audacias, las trans-
gresiones […] es la ambición de salirse con la suya o con el suyo,
las ambiciones todavía encendidas o ya apagadas, el frotarse de las
sensualidades […] (Monsiváis, 2009:112,169 y 172).

La construcción del espacio del metro se ve inspirada por las interac-


ciones al interior del mismo, donde confluyen prácticas privadas diversas que
trastocan lo público en privado. Un espacio de acceso inmediato y amplio para
los habitantes de la ciudad en lo diverso (clase social, edad, intereses). Espacio
cargado de sentido con una multiplicidad de significados.
Al momento de que se cierran las puertas y todo, podemos empezar
con la mirada, con este tipo de “filtreo”, con este tipo de coqueteo,
guiñando el ojo, ciertas miraditas que un hombre común y cor-
riente no le va hacer a otro hombre […] también me he encontrado
parejas, novios, todo tipo de gente, incluso gente que ni se le nota
y que lo es. Pero hay gente del otro lado de la moneda que puede
empezar a acercarse a ti y misteriosamente ya está su mano en la

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entrepierna o te está tocando el trasero o inclusive a lo que van,


si no te empiezan a tocar es porque ya casi te bajan el cierre del
pantalón y si no es que te están acariciando es porque ya te sacaron
todo, ya te sacaron genitales (Christian).

Apelo entonces, a los usos que se hace del Metro en la cotidianidad,


espacio de uso común y público donde suceden situaciones que no pueden ser
ignoradas, que provocan cuestionar y buscar respuestas partiendo de supuestos
diversos sobre su origen. Situaciones que trascienden la vida de quienes toman
normalmente el Metro, donde el placer hace de los sujetos “protagonistas” y
“victimas” de la sociedad en general al ser sujetos violentados por su orienta-
ción y prácticas sexuales.
La apropiación del espacio del Metro estará, entonces, vinculada a ele-
mentos simbólicos y procesos subjetivos y sociales que se condensan en este
acto propiamente humano y que, en el sentido del tema en discusión, adquiere
una connotación erótica desde los flujos y los cuerpos en movimiento.
De acuerdo a los testimonios de mis informantes y a la etnografía reali-
zada, el Metro es un espacio en el que se yuxtaponen otros usos, tiempos y
significados a la vez. Por ejemplo, en el sentido de la sexualidad, que en la pri-
vacidad de lo público y a través de los encuentros homoeróticos que sostienen
los usuarios-hombres a la luz del “anonimato”, el Metro deviene en un espacio
para el encuentro sexual posibilitando diversas formas de prácticas homoe-
róticas y de socialización de las que solo “algunos” son protagonistas ya que
pueden entrar y salir constantemente al estar implicados o ya iniciados en este
aspecto.
El Metro es el espacio donde se pueden reconocer, donde la sexualidad
puede ser expresada en el acto de la transgresión sujetada siempre al límite del
tiempo y del espacio. Es un espacio que surge de la tensión entre ambas fron-
teras, rompiendo la monotonía de sus certezas para introducir otra lógica que
le da sentido al tránsito y al sujeto que viaja en ese vagón erotizado. En otras
palabras, hay un desplazamiento y ruptura de sentido en el uso del espacio.
Son ellos quienes, al producirse el encuentro, le dan el sentido de lo erótico, de
“ligue”, de búsqueda, de “metreo”.
El ligue es muy variable, puede empezar desde el metro o desde
que estás en el andén, ya estás cazando a la víctima, o te están
cazando, o justamente subes en el metro y quedas apiñado uno
contra otro y demás, y ya nada más te reacomodas para tocar a

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quien tú quieres tocar o sencillamente se reacomodan y se recorren


para buscarte a ti. […] El contacto es como sentimental, o hay de
todas las variantes, debe tocarte el hombro, la mano, el dedo […]
empezar a sonreírte o guiñarte el ojo, etcétera, pero creo que la
gran mayoría son contactos físicos hacia los genitales, hacia el tra-
sero, al cachondeo y al manoseo (Ricardo).

De acuerdo a lo anterior, el Metro no es un espacio que tenga netamente


la connotación de la sexualidad o de la “homosexualidad”. Se usa para trans-
portarse a través de la compleja geografía de la ciudad, pero del viaje también
emergen momentos de encuentro para el “ligue”, “la amistad” y “el sexo” entre
los viajeros. La dinámica cotidiana propia del Metro hace del mismo un “espa-
cio erótico”. Por lo que se proyecta como un espacio alternativo susceptible de
ser apropiado desde otra lógica, adquiriendo otros sentidos y “nuevos” signifi-
cados para el comercio, el descanso, la seguridad, la restricción, el sentido de
pertenencia y otros más.

A modo de reflexión

El Metro es la columna vertebral donde convergen un sin número de ele-


mentos divergentes, de diversidad total y plena que lo hacen funcionar como
un elemento estructural de la vida cotidiana de la megalópolis. Por esto mismo
coincido con Monsiváis (2009) al decir que “el Metro es la ciudad” y en este
sentido es imposible pensar, hablar, escribir, reflexionar, vivir la Ciudad de
México sin aludir al Metro.
El “último vagón”, quizá como muchos otros espacios que se vislumbran
bajo el manto de la clandestinidad y el anonimato aparentes, aportan las con-
diciones necesarias para el sostenimiento de las conductas que son rechazadas
en el mundo exterior de las mayorías. Es un espacio que intenta adscribirse a
una normalidad abyecta como refugio artificial afectivo, imaginario y de placer
donde es posible transgredir los límites expuestos por la heteronormatividad a
las sexualidades diversas y disidentes. Es un espacio de frontera, edificado por
todos, quienes participan directamente o por quienes son meros mirones. En la
sociedad mexicana, por su historia patriarcal, la diversidad sexual ha edificado
sus propios espacios para sobrevivir al machismo, al acoso moral y la asfixia
cultural (Brito, 2010).

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Vida íntima, complicidad homosexual y relaciones amorosas confinadas


al ámbito de lo privado pero que en el caso del Metro y del “último vagón”,
cada vez más trasciende las fronteras impuestas por lo heteronormativo.
Redes clandestinas de reunión, comunicación, intercambio y encuentro
amparados por el anonimato que promueven las grandes multitudes. Fenómeno
fundamentalmente de lo urbano y de las masas, porque lo urbano permite más
la invisibilidad.
Un espacio de ambiente, de contexto homosocial y de materialización
del deseo sexual. Espacio donde los hombres (en su mayoría) no encuentran
(únicamente) su lugar en categorías hegemónicas de la identidad sexual como
gay y homosexual. La ortodoxia moral, la desolación amorosa y la falta de
reciprocidad afectiva como única vía para ejercer la vida sexual; pueden ser (a
mi parecer), los motores que coadyuvan la existencia de este fenómeno social
de lo humano en lo diverso, y al mismo tiempo el principal obstáculo para el
reconocimiento de la diversidad sexual en nuestra ciudad.

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nadie”. En Carlos Monsiváis. Que se abra esa puerta. Crónicas y ensayos sobre la diver-
sidad sexual. México: Paidós, pp. 17-45.

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de construcción de la información. México: McGraw-Hill Interamericana.

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Editorial Norma.

HERNÁNDEZ, José Octavio (2016). “EL ÚLTIMO VAGÓN”. El metro de la Ciudad de


México: Heterotopías y prácticas homoeróticas. (Tesis de maestría). México: UAM-X.

MONSIVÁIS, Carlos (2009). Los rituales del caos. México: Era.

NUÑEZ, Guillermo (2016). ¿Qué es la diversidad sexual?. 2ª edición. México:


Ariel-Paidós/PUEG-UNAM/CIAD.

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cer homosexual”. Memoria. Revista mensual de política y cultura. Núm. 155. Enero.
México: pp. 25-29.

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O SILÊNCIO LEGITIMADO SOBRE A LESBIANIDADE

Mariluce Vieira Chaves


Doutoranda em Política Social
Universidade Federal Fluminense
maluvives@yahoo.com.br

GT 08 - Gênero, diversidade sexual, emoção e moralidade

Resumo

Este trabalho tem como objetivo debater as relações que se estabelecem entre
convenções sociais e morais acerca da lesbianidade, enfatizando o paradigma
da heteronormatividade e o que pretendemos chamar do silencioso discurso
dos corpos lésbicos, desvelando as formas de opressão ainda existentes. Esse
texto resulta de análises documentais trazidas pelas publicações, entre os anos
de 1980 até 2015. A preocupação metodológica parte do levantamento de
publicações e também às pesquisas bibliográficas cujo conteúdo é de interesse
principalmente pelo gênero lésbico e a imagem construída a seu respeito.
Palavras-chave: lesbianidade; desencorajamento; sexualidade; homocultura.

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Introdução

Este estudo tem como objetivo debater as relações que se estabelecem


entre convenções sociais e morais acerca da lesbianidade, enfatizando o para-
digma da heteronormatividade e o que pretendemos chamar do silencioso
discurso dos corpos lésbicos, desvelando as formas de opressão ainda existen-
tes. Por vezes, não fazer nada, é a coisa mais violenta que temos a fazer (ZIZEK,
2014, pag. 169).
O principal aspecto que atraíram a atenção na construção desse estudo foi
que a lesbianidade não apresenta um conjunto tanto de corpos quanto de ideias
homogêneo em relação às posturas teóricas e às falas, trazidas para os debates
tanto acadêmicos, quanto midiáticos. Esse processo de construção dos sujeitos
políticos do movimento tem uma dinâmica entre eles. Percebe-se também que
não se pode supor uma homogeneidade no movimento, pois são compostos
por organizações e pessoas que alternam entre a cooperação e o conflito no
trato com outros grupos, a depender das reflexões políticas que cada grupo faz
da sua inserção social.
Importante ressaltar o caráter metodológico aqui trazido. Esse texto resulta
de análises documentais trazidas pelas publicações, ainda que difusas, entre o
período de 1980 até 2015. A preocupação metodológica diz respeito às sin-
gularidades, aos eufemismos e às características que envolvem esse grupo e
também às pesquisas bibliográficas cujo conteúdo é de interesse principalmente
pelo gênero lésbico. Num primeiro momento foram levantadas as publicações
direcionadas ao público lésbico que se inicia no Brasil na década de 1980. Um
contraponto a este levantamento se dá por meio do Jornal do Brasil, no qual
foi pesquisada a palavra “lésbica” em todo o seu acervo. Com base nestes dois
levantamentos foi possível categorizá-los para uma análise mais profunda.

Acontecendo em um passado não tão distante...

O levantamento histórico da lesbianidade e sua construção ocorrem de


forma quase análoga ao movimento feminista, dos anos 1960. Ocorre nos anos
1970 uma fissura no grupo, surgindo o grupo SOMOS em São Paulo, formado
quase que exclusivamente por gays, e a publicação do folhetim Lampião da
Esquina, também com notícias gays. Novamente ocorre uma ruptura e se forma
o grupo Lésbico-Feminista, este sim, exclusivamente lésbico, a partir de 1981;

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ainda nos anos 1982-1984, o grupo Lésbico-Feminista se transformou em Grupo


de Ação Lésbico Feminista (GALF), por suas participantes entenderem que as
suas questões não estavam contidas no foro privado, mas na política e sendo
assim, usavam da participação e ação política. Entre os anos 1982-1990, há um
quase silenciamento gay, por conta da epidemia de aids, quase porque flores-
cem outros grupos além do eixo Rio-São Paulo, como o Grupo Gay da Bahia e
o site um outro olhar.
A luta pelos direitos sociais, pois o que as torna invisíveis perante o
Estado, dilui os seus contornos no que se refere às políticas púbicas de prote-
ção. Portanto, para empreender essas ações de cidadania e possíveis políticas
sociais que visem à proteção social, pelo Estado, faz-se mister a visibilidade de
experiências concretas; por outro lado, a pouca produção acadêmica, literária,
cinematográfica e jornais de grande circulação tornam os debates em torno do
tema lesbianismo relevantes, enquanto emerge a desqualificação social desses
sujeitos e ao mesmo tempo, a sua irrelevância social, justificando a importância
da escolha do tema.
Sendo parte do processo de tornar invisíveis as formas de violência per-
cebe-se que a sociedade mostra compaixão e sensibilidade para as diferentes
formas de agressão e, ao mesmo tempo, mobiliza imenso instrumental para a
brutalidade, tendo como justificativa a dicotomia “bem” e “mal”, perpassada
pelo Estado chamado “laico”. Desta forma, a via da heterossexualidade com-
pulsória, é a via por meio da qual a experiência lésbica é percebida através de
uma escala que parte do desviante ao odioso ou é simplesmente apresentada
como invisível (RICH, 2010).

Vasculhando memórias

Importante ressaltar que o caráter metodológico aqui trazido resulta de


análises documentais de jornais periódicos de grande circulação e boletins e
revistas de circulação restrita para o público lésbico/gay, publicadas no período
entre 1980-2015.
Através do arquivo da Biblioteca Nacional, foi escolhido o Jornal do Brasil,
digitalizado em todas as suas edições entre 1980 a 2002. O Jornal do Brasil foi
escolhido por não ser, na época dos anos 1980, conservador ou como eram
chamados “de direita”. Explica-se esse período por ser da mesma época em que
foram publicadas as revistas e boletins de conteúdo lésbico/gay. Politicamente,

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esse período foi o de maior efervescência para vários movimentos sociais, inclu-
sive o movimento ainda chamado homossexual e suas visibilidades difusas, haja
vista o preconceito contido nos noticiários do jornal do Brasil.
Paralelamente, foi consultado o site www.umoutroolhar.com.br, com
publicações dos anos 2015 para se fazer um comparativo.

Tabela 1: Publicações Lésbicas


Publicação Estado Período Qnt. de edições
Jornal Chanacomchana São Paulo 1981 1 edição
Boletim Chanacomchana São Paulo 1982- 1987 12 edições
Boletim GALF - Um outro olhar São Paulo 1987-1993 18 edições
Revista Um outro olhar São Paulo 1993-2002 20 edições
Boletim Iamuricumá Rio de Janeiro 1981 1 edição
Fonte: Vieira, 2016 (baseado em informações do site www.umoutroolhar.com.br)

Verifica-se na Tabela 1 que a maioria das publicações voltadas para o


público lésbico/gay estava em São Paulo, porém, as pessoas recebiam esses
boletins/revistas em suas residências ou se desejassem, para manter oculta a sua
sexualidade, em caixas postais dos correios em diversos Estados.
No tocante às publicações lésbicas, o Boletim GALF – Um Outro Ollhar
e depois a Revista Um Outro Olhar tinham suas seções divididas em matérias
e notícias publicadas na mídia de forma geral que estivessem vinculadas à les-
bianidade; divulgação de livros, filmes, vídeos e outras revistas internacionais
sobre a temática; divulgação de eventos, debates e políticas públicas; espaço de
opiniões e críticas; relatos de homofobia e troca de correspondências.
Ao destacar a temática lésbica a Revista Um Outro Olhar se transformou
na Rede de Informação Um Outro Olhar (UOO) derivado do Grupo de Ação
Lésbica-Feminista (GALF), tendo promovido publicações impressas, no primeiro
momento como boletim, depois como revista (de 1989 a 2003). Desde 2004,
passa a ser uma magazine virtual, o que se pode ser acessado pelo site http://
www.umoutroolhar.com.br até hoje.  Segue na tabela abaixo um levantamento
sobre os temas abordados no ano de 2015 que se encontram disponíveis pela
UOO em seu site.

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Tabela 2: Categorização das publicações lésbicas


Tema de artigos publicados Quant. de Publicações em 2015
Homofobia 53
Visibilidade 2
Ativismo 7
Cultura 21
Direitos 62
Fonte: Vieira, 2016 (baseado em informações do site www.umoutroolhar.com.br)

Nessa Tabela 2 já de 2015, nota-se um percentual abrangente de artigos


publicados em torno principalmente das temáticas: homofobia, direitos (casa-
mento, adoção por exemplo) e eventos; no quesito comportamento, cultura
(filmes, livros etc), ativismo (continuidade das discussões sobre ser lésbica) e
visibilidade diminuíram em relação às publicações anteriores. O que torna
interessante verificar que ao mesmo tempo em que se somam direitos civis,
aumentam os crimes de homofobia e diminuem a visibilidade e as discussões
pertinentes ao companheirismo lésbico.
Para ratificar as comparações, segue a Tabela 3, com as publicações do
Jornal do Brasil. O Jornal do Brasil do Rio de Janeiro ditava tendências e com-
portamentos, o Jornal do Brasil era considerado influência até mesmo de outros
jornais em diversas regiões do Brasil.

Tabela 3: “Lésbica” no Jornal do Brasil


Percentual de
Edições disponíveis na Citações do termo
Ano Publicações com o
Biblioteca Nacional “Lésbica” em edições
termo “Lésbica”
1980 - 1984 1.729 27 1%
1985 - 1989 1.766 44 2%
1990 - 1994 1.813 57 3%
1995 - 1999 1.510 74 4%
2000 - 2002 1.081 48 (+101*) 4% (13%*)

* Em 101 edições foram divulgações de um único filme que ficou meses em cartaz.
Fonte: VIEIRA, 2016 (Baseado no arquivo do Jornal do Brasil)

Nesta tabela 3 verifica-se que o percentual em torno do tema “lésbica” foi


utilizado poucas vezes entre os anos 1980-2002. Foi possível estabelecer alguns

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critérios de separação por períodos/anos. Primeiro, 1980-1984, período em que


começa a distenção da ditadura militar, portanto, momento de fortalecimento
dos movimentos sociais, discussões políticas e de direitos da população como
um todo. Contudo, a palavra “lésbica” é indicada em apenas 1% dessas publi-
cações e isso somente por conta da indicação de um filme de Woody Allen,
Manhattan, com uma personagem lésbica. Entre 1985-1989, há uma explosão
de movimentos sociais, inclusive com várias greves, demonstrando insatisfações
populares; novamente há que se indicar que a palavra “lésbica” ainda carecia
de visibilidade, pois só apareceu em 2% de todas as publicações do jornal, com
conteúdo homofóbico, relacionando as lésbicas como agentes perpetradoras
de crimes sexuais, orgias, assassinatos e outras reportagens negativas. Nos anos
que se sucedem a partir de 1990 aparecem discretamente reportagens relacio-
nando as lésbicas a doenças sexualmente transmissíveis para os homens, como
sífilis e aids. Isso se deve ao momento de silenciamento em torno da homos-
sexualidade, principalmente a masculina e a sua relação com a aids, o que
indicava que ser homossexual não era “bom”.

Tabela 4: Categorização do Jornal do Brasil


Categoria 1980-1984 1985-1989 1990-1994 1995-1999 2000-2002
Homofobia - 5 7 13 9
Visibilidade - 6 6 7 6
Ativismo 1 2 1 6 1
Direitos Violados 1 3 2 2 3
Cultura 6 14 17 18 13
Crimes 1 6 2 - 1
Conquista de Direitos - - 2 5 2
Fonte: VIEIRA, 2016 (Baseado no arquivo do Jornal do Brasil)

Esmiuçando mais, por temática de notícias relacionadas às lésbicas no


Jornal do Brasil, encontramos na Tabela 4, não existia notícia sobre homofobia
nos anos 1980-1984 por conta da repressão militar, sem ser possível afirmar
a sua não existência; já nos anos subsequentes, há um aumento de período
a período nas notícias com traços homofóbicos; nos quesitos visibilidade, ati-
vismo e eventos, não há muitas notícias, apenas algumas notas; nota-se que
a partir da abertura democrática a inserção de livros e filmes com temáticas
lésbicas crescem, porém esses conteúdos são lançamentos internacionais. A

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conquista de direitos só começa a ser noticiada a partir dos anos 1990, porém
noticiando conquistas de direitos em países europeus e na América do Norte.

Considerações finais: Reatando passado e presente

Revisitando jornais, revistas e boletins, deduz-se que a lésbica era a peça


que nunca faltou no tabuleiro dos jogos de família. O silêncio tinha que estar
dentro de si mesma e de sua família; quando ocorria alguma notícia, essa era
tratada de maneira homofóbica em todas situações em que se reportava sua
sexualidade. Ao mesmo tempo, com as publicações voltadas para si, essas lés-
bicas percebiam não só o companheirismo, mas também essa dissecação de
seus desejos como um desafio, produzindo como resistência outros discursos
sobre si mesmas. 
Ainda há uma busca pelo socialmente correto, contido nas notícias dos
jornais e nas normas que não podem ser excedidas. Talvez como ponto funda-
mental para a discussão sobre a identidade lésbica esteja a questão da afirmação
da sua própria identidade, buscando novamente pontos de apoio com outras
mulheres lésbicas para que se aprofundem os laços.
Assim, outro ponto fundamental se refere à imagem preconceituosa e
negativa que foi sendo construída ao redor da lesbianidade, imagem esta que
deve ser combatida, a partir das resistências contrárias daqueles que não a acei-
tam enquanto existência válida.
Para finalizar a identidade lésbica favorecida pelo suporte das publicações
se tornou fortalecida durante os anos 1980 - 2015, com as publicações que nor-
teavam os encontros e tornavam esses grupos mais resistentes às homofobias
presentes em todos os cotidianos que se vivencia; infere-se que encontros e
eventos devam ser expandidos, principalmente pelas redes sociais com novas
formas de viver a vida reconhecendo a multiplicidade de prazeres e desejos
incontidos nos corpos lésbicos.

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Referências

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________________. Gênero não é um problema do campo da sexualidade. Disponível


em: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/01/judith-butler-feminismo-como-provo-
cacao/ Visitado em 19/08/2015.

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Coletiva. Versão on line ISSN 1809-4481. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/
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FACCHINI, Regina. De cores e matizes:sujeitos, conexões e desfios no movimento


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FLEURY, Sonia. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. RJ,
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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. I- A vontade de Saber. Trad. Maria


Thereza da Costa Albuquerque & J. A. Guilhon Albuquerque, 19ª Ed., Rio de Janeiro:
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PEREIRA, Potyara A. P. Política Social. Temas & Questões. São Paulo, Cortez, 2008.

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RICH, Adriane. A heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Trad. Carlos


Guilherme do Vale. Revista Bagoas, Natal, n. 5, v. 1, 2010.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça Social: a Política Social na


Ordem Brasileira. SP, Campus, 1987.

ZIZEK, Slavoj. Violência. SP, Boitempo, 2014.

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CÁRCERE E POPULAÇÃO LGBT:


ESTUDO SOBRE DIREITOS E ESTEREÓTIPOS

Amanda Rodrigues Campos Almeida


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus
Governador Valadares. Universidade Federal de Juiz de Fora.
dinha_rca@yahoo.com.br

Andreza Knaip Nobre


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus
Governador Valadares. Universidade Federal de Juiz de Fora.
andreza.knaip@gmail.com

Renato Santos Gonçalves,


Mestre, docente da Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus
Governador Valadares. Universidade Federal de Juiz de Fora.
renatosg@hotmail.com

GT 09 - Gênero, sexualidades e educação em sistemas de privação de liberdade

Resumo

A população LGBT encarcerada, duplamente rotulada como desviante, tem


sido alvo de invisibilidade e descaso do poder público, com reiterados des-
cumprimentos aos novos parâmetros de acolhimento e tratamento desse grupo.
Tendo em vista a Resolução Conjunta nº 01/2014 do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e Conselho Criminal de Combate à
Discriminação, publicada em 17 de abril de 2014, bem como entrevistas rea-
lizadas em visita à Penitenciária Francisco Floriano de Paula, de Governador
Valadares -­MG, buscaremos provocar reflexões acerca das diferenças sexuais e
identitárias a partir do panorama do sistema prisional brasileiro.
Palavras-chave: cárcere, LGBT, identidade de gênero, políticas públicas, igualdade.

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Introdução

O cenário em que versa o presente trabalho é o compreendido na reali-


dade do sistema prisional brasileiro. A abordagem realizada atinge indivíduos
rotulados como desviantes por ter (ou não) descumprido uma regra socialmente
criada e institucionalmente imposta (BECKER, 1928).
A heteronormatividade conservada nos discursos e práticas de grupos
sociais, políticos, culturais e econômicos enseja, através de relações de poder, a
manutenção de valores morais reacionários, tradicionalistas e antiliberais. Esses
valores, em consonância com a noção de moral, tradição e bons costumes,
bem como com as raízes patriarcais, machistas e sexistas da sociedade, con-
tribuem para a (re)produção de desigualdades e espaços de opressão ocultos
pelo falso caráter natural e inevitável da ordem binária dos sexos, constroem e
fortalecem práticas discriminatórias, adaptam os espaços, definem hierarquias e
marginalizam quem não se comporta de acordo com as normas preestabeleci-
das. Com isso, as pessoas que não se enquadram nem se adaptam aos moldes
heteronormativos passam a ser constituintes de um novo grupo de outsiders
(BECKER, 1928).
Pode-se afirmar, inclusive, que se trata aqui de indivíduos amplamente
rotulados como desviantes (alto grau de outsider), haja vista que, além de encar-
cerados, pertencem ao estigmatizado grupo LGBT1.
O que se tem, a partir disso, é um esforço para se desconstruir as noções
de significados aprisionadas aos binarismos masculino/feminino e heterossexual/
homossexual, cuja perpetuação acarreta em imposições de poder baseadas na
apresentação da diferença como uma anomalia. Nessa lógica, tendo em vista as
restrições de direitos para além dos concernentes à liberdade dos encarcerados,
pensou-se em uma medida capaz de mitigar tais violações, bem como reduzir
a incidência de violência contra a população LGBT dentro do sistema prisional,
tendo como resultado a Resolução Conjunta nº 01/2014 do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e Conselho Criminal de Combate
à Discriminação.
A resolução, que foi publicada em 17 de abril de 2014, e vigora desde
então, estabelece novos parâmetros de acolhimento e tratamento da comunidade

1 Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros (travestis, transexuais, intersexuais, etc).

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LGBT encarcerada, vez que dispõe sobre o direito ao uso do nome social, inclu-
sive para registros administrativos; estabelece a possibilidade de transferência de
gays, travestis e transexuais para espaços de vivência adequados à identidade
de gênero, mediante expressa manifestação de vontade, de acesso oferecido,
necessariamente, pelas agências punitivas; visa a garantir o direito ao uso de
roupas femininas ou masculinas, conforme o custodiado se identificar, à visita
íntima, à formação educacional; trata do direito à manutenção dos cabelos
compridos, caso o tenha, a fim de garantir as características definidoras de sua
personalidade.

LGBTs e cárcere

A situação dos gays, das lésbicas, das travestis e dos transgêneros que se
encontram no cárcere é absolutamente degradante, tendo em vista que adqui-
rem posições de vulnerabilidade (...) frente à incidência estigmatizadora do
sistema punitivo (CARVALHO, 2012, p. 15).
É manifesta a invisibilidade dessas pessoas, principalmente dentro do
cárcere, retratado ora pelo descaso e indiferença do poder público, ora pela
perceptibilidade figurada em torno da manutenção e do fortalecimento de estig-
mas e estereótipos. Em relação a esse descaso, expõe Karina Fioravante:
“(...) a partir do momento em que ignoramos as especificidades
de gênero, corremos o risco de cair em uma armadilha (...). Ou
seja, negando-se a necessidade de um recorte de grupo específica
estamos ofuscando importantes aspectos culturais e ideológi-
cos (...). Isso se aplica da mesma forma aos espaços carcerários.
Como pensar em políticas públicas específicas para a população
encarcerada ignorando as características singulares desses espaços,
compreendendo-os, portanto, de forma homogênea? É impossível.”
(FIORAVANTE, 2011, p. 35).

A prisão, ambiente que se mostra demasiadas vezes reprodutor de padrões


falhos, autoritários e heteronormativos, além de privar a liberdade dos desvian-
tes, os transforma, desarticulando suas personalidades, reformando seus corpos
e suas condutas a fim de promover a readequação de suas práticas e comporta-
mentos de acordo com a “normalidade”, com o socialmente aceitável.
Em relação à população LGBT, os esforços pelo amoldamento recaem
também sobre as questões sexuais, além das delitivas institucionalizadas que

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deram causa ao encarceramento. Verifica-se, por parte dos funcionários e dos


demais custodiados, dentre outras agressões, reiteradas tentativas tanto de femi-
nilizar as lésbicas quanto de masculinizar os gays, incluindo retaliações, atos de
violência, preconceito e discriminação.

Entre dados, normas e grades: a realidade da comunidade LGBT


em uma unidade prisional mineira

Com o objetivo de analisar empiricamente a situação da população LGBT


no sistema carcerário, inclusive quanto à verificação dos possíveis reflexos pro-
vocados por tal resolução, e elucidar questionamentos levantados até então,
realizou-se, no mês de novembro de 2014, uma visita ao presídio da cidade de
Governador Valadares.
A Cadeia Pública de Governador Valadares é acometida pela superlota-
ção, o que compromete o acesso a condições de ventilação e higiene adequadas
aos custodiados. Sua infraestrutura é destinada a manutenção de 249 presos.
Entretanto, até o mês de novembro de 2014, data da visita, contabilizou-se 765.
Destes, aproximadamente, 46 são mulheres, que se encontram encarceradas
em pavilhão separado da população masculina.
Foi perceptível, inicialmente, indiferença quanto à população LGBT, haja
vista, por exemplo, o desconhecimento de dados precisos sobre gays, lésbicas,
travestis e transexuais. Segundo Marluce Cristina Massariol2, as questões sobre
homossexualidade são veladas entre as próprias mulheres, mas a incidência é
maior do que entre homens.
Quanto à passagem de travestis no presídio e relatos de violência sexual,
verbal, física e/ou psicológica sofrida pelos presos homossexuais, a diretora
também desconhece, mas ressalta que, caso venha a ocorrer serão feitos os
procedimentos adequados (boletim de ocorrência, exame de corpo e delito,
etc). A diretora e um dos agentes penitenciários presentes na sala se mostraram
informados sobre a já referida Resolução nº 01/2014. Em contrapartida, Marluce
frisa que um dos custodiados homossexuais possui o nome social Kelly, mas
há uma grande resistência por parte dos agentes em respeitá-la. Quanto aos

2 Diretora de atendimento e ressocialização que atua há seis anos no presídio. Graduada em Direito e
Pós-graduada em Direito Público.

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demais custodiados, alguns a tratam pelo nome social, outros não, mas, por
parte dos agentes nunca foi observado.
“Sempre quando são perguntados sobre como está a convivên-
cia no alojamento, dizem que está tudo bem. Eles têm um tipo de
comunicação entre si que o que acontece fica entre eles, ninguém
conta. As coisas são transformadas lentamente, não há uma aceita-
ção rápida e tranquila. Para isso, há muito a ser feito para mudar a
mentalidade dos agentes e dos próprios presos.” (Marluce).

Ademais, no que se refere à visita íntima, a diretora disse que não existe
diferença no tratamento entre casais heterossexuais e homossexuais. Tem-se
como requisitos para a concessão da visita a apresentação da escritura de união
estável do casal, exames de HIV, Hepatite B, VDRL, preventivo e atestado de
antecedentes criminais. Segundo Marluce, durante os seis anos em que trabalha
no presídio, houve apenas um pedido proveniente de casal homossexual, que
foi deferido.
Contudo, o direito à visita íntima para a população LGBT em situação de
privação de liberdade é regulada pelos termos da Resolução CNPCP nº 4, de 29
de junho de 2011, a qual assegura em seus artigos 1º e 2º a visita íntima de outro
parceiro ou parceira, não necessariamente cônjuge ou união estável.
Um terceiro agente penitenciário nos informou que já houve passagem de
travestis no presídio e que estes sofreram violência constante (24 horas por dia,
disse – demonstrando demasiada naturalização quanto à violação de direitos)
por parte dos demais encarcerados, tanto verbal, quanto psicológica e sexual,
apesar do desconhecimento por parte de Marluce. Quando questionado sobre
o encaminhamento dos travestis para áreas específicas, notou-se um despre-
paro para lidar com o assunto e consequente preconceito. O agente destaca,
ainda, que o presídio funciona três vezes além da capacidade prisional que ofe-
rece e, por isso, está passando por uma fase de adaptação e de remanejamento
de custodiados. Fica claro o seu despreparo através do discurso carregado de
estigmas e resistência às diferenças.
“Eles não têm ala ou cela específica. Ficam juntos com os homens,
aliás, são homens, não é? Pra você ter uma ideia não aprisionávamos
mulheres aqui. Foi feita toda uma realocação dos presos para que
elas pudessem ter um pavilhão específico e que, ainda assim, não
é totalmente adequado à situação delas.” (Agente Penitenciário).

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No tocante à saúde, há a distribuição de preservativos, palestras perió-


dicas sobre prevenção de doenças realizadas por enfermeiros e psicólogo e
acompanhamento médico, odontológico e psicológico. Além disso, testes de
HIV e Sífilis são feitos em todos os custodiados.
Marluce nos concedeu a possibilidade de entrevistar um dos custodiados
homossexuais, Gleison Fernando Pereira – a saber, Kelly –, 28 anos, que não
se traveste nem faz uso de tratamento hormonal. Moradora de Governador
Valadares, é cabeleireira há treze anos, trabalhou em salões de beleza, foi presa
em fevereiro de 2014 e condenada por tráfico de drogas, apesar de afirmar que
foi obrigada, sob ameaça de morte, a assinar como proprietária da droga. Relata
que teve os cabelos, que eram grandes, cortados quando ingressou. Informa-
nos sobre uma travesti que foi presa há, aproximadamente, um mês (Resolução
01/2014 já em vigor), e que também teve os cabelos longos cortados e foi libe-
rada no dia seguinte.
Relata que conhece, no presídio, mais quatro homossexuais assumidos
socialmente, inclusive uma que se identifica como Rafaela e que, quando
ingressou, se encontrava em processo de hormonização, mas o tratamento não
foi mantido pela ausência de oferta.
Kelly afirma nunca ter sofrido violência sexual dentro do presídio, mas
que já aconteceu com amigos. Relata, entretanto, que sofre, constantemente,
violência verbal e psicológica, referindo-se a um dos quatro agentes penitenci-
ários que a violentam.
Quando questionada sobre a possibilidade de relatar os casos de violência
a alguma autoridade competente dentro da administração do presídio, responde
com medo da retaliação.
“Os homossexuais também sofrem violência por parte dos outros
presos e dos próprios agentes. Me chamam de viadinho, dizem que
eu tenho cara de doente, que não aguento trabalhar, só porque sou
magro. [...] relatar pra quem? Tenho medo de contar e me prejudi-
car ainda mais.” (Kelly).

Perguntamos a sua opinião a respeito da possibilidade de haver ala/cela


específica para a população LGBT. Kelly, então, responde:
“Quando eu cheguei fiquei doido pra cair numa cela só de homos-
sexuais. Acho que seria uma excelente ideia ter uma cela específica,

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porque sofremos muito preconceito. Inclusive, deveriam existir


agentes próprios para trabalhar nessa área, que não sejam tão pre-
conceituosos.” (Kelly).

Considerações Finais

Verifica-se, através das entrevistas, ausência de preocupação por parte


dos agentes quanto à população LGBT, o que demonstra o alto grau outsider do
grupo desviante ao qual pertence, uma vez que não se enquadram no padrão
de conduta imposto pelos “empreendedores morais” (BECKER, 1928).
Referido padrão de conduta se capilariza por toda a sociedade e agências
de poder (inclusive o punitivo), razão pela qual se percebe, de forma clara, a
ignorância e preconceito presente nas falas de um dos agentes entrevistados,
articulados a percepções carregadas de estereótipos, que corroboram para a
manutenção de violação de direito.
Verificou-se, nesse sentido, que os transgêneros e os gays têm seus cabelos
raspados como uma das reformas pertinentes aos corpos, sendo, dessa forma,
violentados, ainda que simbolicamente. Além disso, não se verifica a manu-
tenção de tratamentos hormonais e de vestimentas adequadas à identidade de
gênero; não se respeitam os nomes sociais pelos quais gostariam de ser reco-
nhecidas (os); são cerceados (as), por diversas vezes, do direito à visita íntima.
Nota-se, portanto, uma violência institucionalizada, provocada e/ou legitimada
pelas próprias agências punitivas.
Nesse sentido, a Resolução Conjunta nº 01/2014 do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e Conselho Criminal de Combate
à Discriminação não se torna efetiva simplesmente através de sua existência no
mundo jurídico; ao contrário, a partir dessa existência é que a efetividade se
constrói, na prática capacitada e inclusiva dos agentes penitenciários, diretorias
de unidades prisionais, dos envolvidos neste universo, de modo a respeitar a
identidade coletiva LGBT e suas demandas, ante as suas especificidades, de
modo articulado à preservação da identidade autônoma, projetos e a subjetivi-
dade de seus integrantes.

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Referências

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Revan, 2011, 2ª edição, julho de 2012. 1ª reimpressão, julho de 2014.

BECKER, Howard Saul. Outsiders; estudos de sociologia do desvio. 1928. Tradução


Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kuschnir. – 1 Ed. – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. Ed. 2008.

BRASIL. Cartilha Brasil sem homofobia – Programa de combate à violência e à dis-


criminação contra GLTB e de proteção da cidadania homossexual. Brasília, 2004,
Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Disponível em
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf>. Acesso em
nov/2014.

CARVALHO, Salo. Sobre as Possibilidades de uma Criminologia Queer. Revistas


Eletrônicas PUCRS. V. 4, n. 2. 2012.

FIORAVANTE, Karina Eugenia. Dissertação de Mestrado em Geografia - Universidade


Federal de Ponta Grossa. O espaço carcerário e a reestruturação das relações socio-
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Paraná, 2011, 168f.

NATIVIDADE, Marcelo Tavares. Homofobia religiosa e direitos LGBT: Notas de pes-


quisa. Latitude, Vol. 07, nº 1, 2013, pp. 33-51.

SILVA, Diego Patrick da. COSTA, Nicole Gonçalves da. FREIAS, Rafaela Vasconcelos.
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TORRES, Mariana Coelho. SILVA, Augusto Cesar Pinheiro. Presídios de Mulheres são
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Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 5, n. 1, p. 126-141,
jan./jul. 2014.

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GAYS E HOMENS QUE FAZEM SEXO COM OUTROS HOMENS


EM CURITIBA: UM RISCO BIOLÓGICO
PARA A POPULAÇÃO

Dhyego Câmara de Araujo


Bacharel em Direito pela UEL
Mestrando em Direito do Estado pela UFPR
dhyegohirota@hotmail.com

GT 12 - Diversidade sexual e de gênero, políticas públicas e serviço social

Resumo

Apoiado no instrumental teórico de Michel Foucault, o presente artigo busca


compreender e explicitar quais as estratégias de poder-saber emaranhadas no
aplicativo A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes, na medida em que se
trata de uma prática que se dá em torno do dispositivo da sexualidade, e que
este, por sua vez, funciona como mecanismo de operacionalização de tecno-
logias biopolíticas, emergindo, nesse contexto, como técnica de normalização
da população.
Palavras-chave: homossexualidade; aids; biopolítica; normalização.

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Introdução

Em 24 de abril de 2015 foi disponibilizada à população de Curitiba nova


política pública de saúde direcionada à prevenção e combate do vírus HIV/aids,
parte do projeto A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes (AHA). Bastando
fazer o download do aplicativo em seu celular, é possível aos cidadãos solicitar
o kit de autoteste de detecção da doença, com a única restrição de que sejam
maiores de 18 de anos, do sexo masculino e que se declarem gays ou homens
que fazem sexo com outros homens (HSH). Trata-se, conforme consta no site
oficial da prefeitura, de um projeto que visa à “expansão da testagem rápida e
gratuita anti-HIV entre as populações mais vulneráveis à infecção, ou seja, os
jovens gays e outros HSH1”.
Se por um lado essa atuação do poder público se apresenta como uma
forma de efetivação do direito fundamental à saúde de uma parcela da popula-
ção, por outro, lança tais indivíduos em um espaço de visibilidade no qual são
enxergados como portadores do vírus HIV/Aids, tendo em vista suas práticas
sexuais perigosas, suas condutas de risco, seu estilo de vida perverso. Graças
aos estudos de Michel Foucault a respeito do biopoder, tornou-se possível
vislumbrar nas políticas públicas as condições de possibilidade de sua imple-
mentação, as quais se apresentam, em sua maioria, enredadas a tecnologias
biopolíticas de controle e regulação da população.
Se em seu itinerário teórico acerca da biopolítica, Foucault nos coloca
diante da situação de desuso que caiu a noção de “doença reinante” no século
XVII (FOUCAULT, 2008, p. 79), a emergência da epidemia de HIV/aids três sécu-
los depois parece ter reavivado tal discurso, pois quando do seu surgimento, a
síndrome estabeleceu uma relação de contiguidade com a homossexualidade,
sendo por muitos designada como “peste gay”, uma doença ligada ao “instinto
gay”, ou como diz Trevisan (2002), ao “desejo gay”.
Passadas mais de três décadas de sua explosão e contenção, ultrapassadas
todas as falácias concernentes às ligações essencializantes estabelecidas entre
a homossexualidade e a Aids, tendo em vista a sua proliferação a outros indiví-
duos independentemente daqueles com quem se relacionam, aquela correlação

1 Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/curitiba-lanca-aplicativo-inedito-de-testagem-


-para-o-hiv/36202. Acesso em 04/06/2016.

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ainda persiste, tanto no imaginário como nas técnicas, o que se pode facilmente
constatar por meio das formas pelas quais até hoje as políticas preventivas de
DSTs dirigem-se, sobretudo, aos não-heterossexuais, como é o caso da política
pública de saúde de Curitiba aqui analisada.
Resquícios de uma construção do pensamento médico do século XVII,
somados a todo esforço ocorrido no momento da explosão do vírus no Brasil,
situação em que o movimento homossexual, junto aos interesses biopolíticos do
Estado e à sofisticação das ciências sociais advindas da academia, se uniram em
torno do combate contra a doença (MISKOLCI, 2011, p. 50). Desse modo, ges-
tou-se um solo de visibilidade dessas subjetividades aglutinadas sob o conceito
de homossexualidade, sujeitos de uma sexualidade perversa na medida em
que encarnam uma prática sexual perigosa para a sociedade tomada enquanto
corpo-espécie. Esse fenômeno foi denominado por Larissa Pelúcio (2009) de
“sidadanização”, vez que o processo de construção da cidadania desses sujeitos
se deu a partir de interesses estatais biopolíticos de caráter epidemiológicos que
culminou na criação de identidades estigmatizadas, cuja normalização mostra-
-se necessária.
Assim, tomando como figura paradigmática a implementação do AHA na
cidade de Curitiba, pretende-se traçar uma analítica das estratégias biopolíticas
ali engendradas na lógica do dispositivo da sexualidade, isto é, verificar qual a
curva de normalidade considerada ótima nesse contexto de atuação, e a par-
tir dela, quais os discursos que rondam essa tática de normalização do corpo
populacional.

A “sidadanização” dos homossexuais e a normalização do corpo-


espécie

No curso Segurança, Território, População, Foucault demarca o declínio


da concepção de doença reinante no período em que emerge uma nova moda-
lidade de enfrentamento das doenças que acometem a população. Surge, nesse
contexto, um novo aparato de saber-poder que passa a enxergar os processos
biológicos relacionados à saúde da população a partir de quatro novas noções:
caso, risco, perigo e crise. Essa construção político-biológica tornou possível a
medição dos casos de sucessos e fracassos de determinada intervenção no meio
social, de modo que a doença não se restringiria a algo que se deveria eliminar,
mas como uma distribuição de eventos no interior de dada população, na qual

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será possível precisar os riscos e perigos a que cada subgrupo está afetado em
virtude de sua idade, localidade, clima, etc. Se a oscilação de riscos e perigos
eleva-se a um nível cuja contenção ou controle se tornem muito difíceis, tem-se
o que se denominou por crise (FOUCAULT, 2008, ps. 75-78).
Com efeito, a tecnologia biopolítica demarca uma ruptura no modo de
percepção do real político-biológico, na medida em que não mais se opera
buscando a erradicação da doença, mas de fazê-la funcionar em relação a
outros elementos do real, possibilitando, em algum grau, a anulação de seus
efeitos. Através da noção de caso, a AHA levou em consideração a distribuição
dos casos de HIV-Aids de que o município tem acesso, de modo a tornar pos-
sível a individualização do fenômeno coletivo da doença, na mesma medida
em que coletivizou um fenômeno que seria individual, restringindo-se, porém,
aos homossexuais e aos HSH. Tal é a operação deflagrada pela noção de caso
sugerida por Foucault (2008, p. 78).
Quanto aos elementos de risco e perigo, fica claro também a sua efetiva-
ção na implementação, vez que, ao direcionar o aplicativo aos homossexuais e
aos HSH, os identifica enquanto grupo de alta probabilidade de contrair o vírus,
dado o seu comportamento de risco – o seu modo de vida. Na totalidade do
grupo populacional considerada, a partir do cálculo de riscos, estabeleceu-se
que estes não se apresentam da mesma maneira para todos, vez que há zonas
de mais alto risco em contraposição a outras em que este é menor, “em outras
palavras, pode-se identificar assim o que é perigoso” (FOUCAULT, 2008, p. 80).
Em relação ao risco de contrair aids, é mais perigoso ser homossexual e HSH,
esse é o discurso mais sutil veiculado por essa política pública.
Tais reflexões nos permitem constatar que a prefeitura de Curitiba, por
meio do aplicativo AHA, atua no entorno populacional da cidade irradiando
seus efeitos sobre homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens
de formas variadas. De fato, a sua concretização se encontra relacionada à
conquista de espaços e ações por sujeitos homossexuais no que se refere a
efetivação de direitos ou a sua visibilidade social. Entretanto, essa visibilidade
é capaz de obscurecer as artimanhas do biopoder que estão em jogo nesse
contexto. Ao lançar um aplicativo com um determinado fim – detecção, pre-
venção e combate de HIV/Aids – e estabelecer a especificidade do seu público,
denominado por eles de população-alvo – homossexuais e HSH – fortalece o
aparato estratégico de normalização daquela rede de associações tão repetida
e hipertrofiada existente entre a homossexualidade e a Aids.

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Aos verificarmos os efeitos perpetrados pela AHA, fácil a constatação de


que estamos diante de um projeto biopolítico de regulação e controle de um
grupo muito específico, que aqui poderíamos indica-lo por população. Na eco-
nomia do pensamento foucaultiano, entende-se população como uma unidade
portadora sentido em virtude de seus processos orgânicos, resultado da conju-
gação entre técnicas e saberes muito precisos sobre esse conjunto de indivíduos
considerados como corpo-espécie. Contudo, além dessa conotação, que em
sua superfície, aparenta estar ligada a fatores biológicos, a população vai tam-
bém ser pensada através de seu caráter público, isto é,
do ponto de vista de suas opiniões, das suas maneiras de fazer,
dos seu comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos
seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se
age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos.
A população é portanto tudo o que vai se estender do arraiga-
mento biológico pela espécie à superfície de contato oferecida
pelo público. Da espécie ao público: temos aí todo um campo de
novas realidades, novas realidades no sentido de que são, para os
mesmos mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o espaço
pertinente no interior do qual e a propósito do qual se deve agir
(FOUCAULT, 2008, ps. 98-99).

O aplicativo, ao traçar as curvas de normalidade inscritas no ambiente


biopolítico marcado pelo vírus, direciona sua atuação às condutas tidas como
mais perigosas, com vistas a fazê-las chegar o mais próximo possível das curvas
menos perigosas, e que, nesse contexto, teria como modelo ótimo de norma-
lidade a curva representada pela família heterossexual monogâmica. Aliás,
padrão ótimo cuja normalidade é pressuposta, vez que nem se aventa a pos-
sibilidade de manifestação e contágio no interior dessas práticas sexuais, pois
nem se dirige a elas tal medida. São presumidamente saudáveis porque inscritas
dentro de um padrão de vivências cujas formas de relacionar sexualmente são
consideradas a priori como seguras. O instrumental biopolítico se arranja em
torno desse nicho populacional, dessas curvas de normalidades vistas como
um risco para a própria espécie e com isso, progressivamente, atua visando
conduzi-las ao mais próximo possível de uma normalidade ótima, padrão, mais
saudável, aqui, heterossexual.

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Considerações finais

Em 1976 Foucault (2011) nos alertara para o fato de o sexo ter-se tornado
esse ponto imaginário através do qual todos os corpos se leem e são lidos,
ponto de condensação de sua totalidade e de aglutinação de sua identidade,
gestado no interior das redes do dispositivo da sexualidade. Alguns anos mais
tarde, explode a epidemia de HIV/Aids, incialmente classificada como uma
“peste gay”, denotativa de um estilo de vida marcado pela perversão e dege-
nerescência sexual, de corpos lidos enquanto sexualizados, e dispostos numa
escala hierárquica de estigmatização.
Por mais que Foucault tenha nos indicado o declínio da concepção de
doença reinante no século XVII, a emergência da Aids reavivou tais discursos
atrelando a doença aos modos de vida tidos como homossexuais, mas a partir de
então perpassada pelas novas noções elaboradas no bojo do desenvolvimento
dos mecanismos de segurança. São as noções de caso, risco, perigo e crise radi-
cadas no seio da normalização biopolítica e, nesse caso, irradiadas a partir do
dispositivo da sexualidade, que, em alguma medida, possibilitaram na década de
1980 a visibilidade conquistada por sujeitos LGBT no cenário nacional, alçando-
-os ao espaço da cidadania, todavia, a um ambiente de “sidadanização”.
Implodidas, em momento posterior, as falácias que atrelavam a Aids
aos sujeitos LGBT, resquícios desse processo são sentidos até hoje, bastando
atentar-se para as campanhas de combate e prevenção de DSTs dirigidas
exclusivamente a não-heterossexuais, como no caso do aplicativo A Hora é
Agora – Testar nos deixa mais fortes, política pública lançada pela prefeitura
de Curitiba no ano de 2015. Tais medidas delimitam aquelas subjetividades em
espaços estigmatizados por um discurso que as entende enquanto perigosas,
porque suas condutas, seus modos de vida, a sua estética, em suma, a sua
sexualidade perversa, carregam um tipo de risco biológico para o corpo social
tomado enquanto corpo-espécie.
Se no nível da superfície, a política pública em questão se apresenta como
efetivação do direito fundamental à saúde, ao delimitar seu público alvo - gays
e homens que fazem sexo com outros homens - tal iniciativa faz não mais que
reiterar todo um complexo de normalização instaurada a partir da heterossexu-
alidade compulsória, cujas práticas sexuais não são nem questionadas, vez que
tal medida a eles nem se dirige. Presumem-se como portadores de um modo de
vida saudável e uma sexualidade segura. Essas são as sutilezas que o biopoder
esfumaça, mas que as lentes de Michel Foucault ajudam a enxergar.

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Referências

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France


(1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008.

______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2011.

MILSKOLCI, Richard. Não ao sexo rei: da estética da existência foucaultiana à


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PELÚCIO, Larissa. Corpos indóceis – a gramática erótica do sexo transnacional e as


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Sabatine e Boris Riberio de Magalhães (Org.) Michel Foucault: sexualidade, corpo e
direito. Marília: 2011, ps. 105-132.

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A PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PARA A POPULAÇÃO LGBT E AS


RESPOSTAS RELIGIOSAS: O OLHAR DO ASSISTENTE SOCIAL

Graziela Ferreira Quintão


Mestre e doutoranda em Política Social /UFF
Assistente social do Ministério Público/RJ
grazielaquintao@yahoo.com.br

Resumo

A homofobia religiosa evangélica vem se destacando nas últimas décadas como


um fenômeno brasileiro com implicações importantes na obstrução da pro-
dução de políticas para a população LGBT. O alargamento dos direitos, assim
como ações que promovem a visibilidade e aceitação desses grupos sociais vêm
provocando reações conservadoras de diferentes vertentes da fé cristã, sobre-
tudo de evangélicos de origem pentecostal. Considerando a relevância desta
questão para a comunidade do Serviço Social, este trabalho apresenta uma
análise sobre o olhar do assistente social frente a temas referidos à homosse-
xualidade. A pesquisa foi realizada com assistentes sociais, com ou sem opção
religiosa, atuantes nos Ministérios Públicos Estaduais, com aplicação de ques-
tionários individuais.
Palavras-chave: Homofobia religiosa; evangélicos; políticas LGBT; Serviço
Social; assistentes sociais

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Introdução

Na cultura e na sociedade modernas, os indivíduos e a coletividade estão


manifestando dificuldades para ter suficientemente claros seus sinais de iden-
tidade. Uma referência de sentido tão poderosa como a religião deve estar
implicada, sem dúvida, neste problema. A religião funcionou como uma dessas
referências que contribuíam para proporcionar alguns símbolos de identidade,
porque se referia a uma tradição, a uma comunidade ou grupo, e a um estilo
de vida com determinados valores, e estruturava um modo de ver a realidade e
o mundo, transmitia e sinalizava um imaginário social, um modo de estruturar
a sociedade. “La religión era, en definitiva, una de las principales instancias
sociales a la hora de definir la identidad de personas y grupos.” (MARDONES,
1996, p. 108)
Um dos elementos ligados à religião e que vai experimentar o impacto da
globalização é a tradição. Não é que as tradições desapareceram, mas sim que
são profundamente afetadas; o que era algo considerado como absoluto e incon-
testável de geração em geração, se vê agora questionado e relativizado. Neste
sentido, Giddens (apud HALL, 2002) fala sobre uma des-tradicionalização ou,
melhor, uma ordem social pós-tradicional. Tradições que têm desempenhado
um papel estabilizador social de primeira ordem são submetidas à reflexão crí-
tica. Elas não desaparecem, mas sim, são reinterpretadas, reformuladas, sujeitas
a justificação. É evidente que, com esta crítica das tradições, a ordem social
vai perder estabilidade, dado que o terreno no qual foi baseado é menos firme.
(MARDONES, 1996)
A visão de mundo e comportamento de indivíduos e grupos são questio-
nados, e não é de se admirar portanto, que surjam movimentos de retorno à
pureza das doutrinas, de resgate de autoridade de algumas escrituras, ou seja,
uma afirmação das tradições, que rejeita todos os questionamentos. “El resul-
tado es el fundamentalismo, que podría ser definido como un modo tradicional
de defender la tradición o de afirmar la identidad de siempre sin reflexión cri-
tica.” (MARDONES, 1996, p. 110)
No contexto brasileiro, a homofobia religiosa evangélica vem se desta-
cando nas últimas décadas como um fenômeno com implicações importantes
na obstrução da produção de políticas para a população LGBT. O alargamento
dos direitos, assim como ações que promovem a visibilidade e aceitação desses
grupos sociais vêm provocando reações conservadoras de diferentes vertentes

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da fé cristã, sobretudo de evangélicos de origem pentecostal. Considerando a


relevância desta questão para a comunidade do Serviço Social, este trabalho
apresenta uma análise sobre o olhar do assistente social frente a temas referidos
à homossexualidade. A pesquisa1 foi realizada com assistentes sociais, com ou
sem opção religiosa, atuantes nos Ministérios Públicos Estaduais, com aplicação
de questionários individuais2.

Homofobia Religiosa e os Entraves na Produção de Políticas Para


a População LGBT

Os elementos precursores de uma hostilidade contra homossexuais ema-


nam da tradição judaico-cristã; para o pensamento pagão, a sexualidade entre
pessoas do mesmo sexo era considerada um elemento constitutivo, até mesmo
indispensável, da vida do indivíduo, sobretudo masculino. O cristianismo, por
sua vez, ao acentuar a Lei Judaica, começou a situar os homossexuais, não só
fora da Salvação, mas também, e sobretudo, à margem da Natureza. (BORRILO,
2013, p. 43) A homossexualidade, sendo uma sexualidade não reprodutora
(forma paradigmática do ato estéril por essência) constituirá, daí em diante,
a configuração mais acabada do pecado contra a natureza. (idem, p. 44) De
acordo com Natividade (2006), argumentos ‘naturalistas’ são utilizados tanto
na caracterização de um uso ‘sadio’ e apropriado do corpo, como na proposta
de manutenção dos papéis de gênero tradicionais e complementares. Borrilo
(2006) assinala que o sistema de dominação masculina do tipo patriarcal con-
solida-se com a tradição judaico-cristã, sendo introduzida uma nova dicotomia
heterossexualidade/homossexualidade. O cristianismo transformará a heterosse-
xualidade no único comportamento suscetível de ser qualificado como natural
e, por conseguinte, como normal, inaugurando assim, no Ocidente, uma época
de homofobia, ainda não praticada por outra civilização.

1 A pesquisa tratou da questão religiosa no exercício profissional do assistente social. (QUINTÃO,


2012)

2 Foram aplicados questionários com questões objetivas aos assistentes sociais participantes do IV
Encontro Nacional de Assistentes Sociais do Ministério Público, realizado entre os dias 19 e 21 de
setembro de 2012, no Rio de Janeiro, tendo sido devolvidos 80 questionários preenchidos.

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No Brasil, nos últimos anos, vem ocorrendo uma série de embates entre
defensores dos direitos LGBT e ativistas dos movimentos religiosos - especial-
mente as lideranças de denominações evangélicas de origem pentecostal.
A partir de 2004, um conjunto de iniciativas (ações e programas) gover-
namentais nacionais começava a assegurar a promoção de cidadania para a
população LGBT, evidenciando, concomitantemente, a necessidade de imple-
mentação de políticas públicas no combate ao preconceito, à discriminação e à
exclusão que atingem essa população. O alargamento dos direitos LGBT, assim
como ações que promovem a visibilidade e aceitação desses grupos sociais
vêm provocando reações conservadoras de diferentes vertentes da fé cristã,
sobretudo de evangélicos de origem pentecostal. Utilizando a retórica da liber-
dade de expressão, esses segmentos religiosos desqualificam e combatem a
diversidade sexual, adentrando a arena política através de seus representantes
no Congresso Nacional, que se articulam compondo frentes parlamentares e
interferindo na agenda do movimento LGBT no sentido de conseguir o veto de
leis e políticas que contrariam preceitos morais da sua comunidade religiosa.
Zylbersztajn (2012) não considera que a presença religiosa nos debates
políticos seja algo antidemocrático em si, mas apenas evidencia a inexistência
de recursos teóricos e argumentativos para a discussão do tema de forma qua-
lificada. A este respeito, Rorty (1996) considera que o argumento puramente
religioso precisa ser reestruturado e ganhar contornos seculares para ser apre-
sentado na arena política. A participação dos evangélicos no sistema político
brasileiro ocorre, principalmente, no poder legislativo. Nos discursos de par-
lamentares representantes de denominações evangélicas acerca do tema da
homossexualidade, termos como ‘ditadura gay’, ‘mordaça gay’, ‘destruição das
famílias’, entre outros mostram-se recorrentes.
A eleição do deputado (e pastor evangélico) Marco Feliciano (PSC/SP)
para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
dos Deputados (CDHM) gerou uma onda de manifestações contrárias em
redes sociais, campanhas e passeatas de grupos organizados e ativistas dos
movimentos LGBT, em decorrência do fato de ter o deputado Marco Feliciano
expressado opiniões consideradas racistas e homofóbicas - além do mesmo
não ter um histórico de atuação na temática dos direitos humanos. A gestão do
deputado Marco Feliciano na CDHM foi marcada pela aprovação de propostas
de teor anti-homossexual. A primeira ação de enfrentamento pelo deputado foi
a votação do projeto conhecido como cura gay, que pretendia derrubar trechos

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de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, que estabelece normas


para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual, vedando a atu-
ação dos mesmos em eventos e serviços que proponham tratamento e cura
da homossexualidade. Foi aprovada ainda, a convocação de plebiscito para
consultar a população sobre a união entre pessoas do mesmo sexo e a suspen-
são da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que obriga cartórios
a validar casamentos de homossexuais. Embora o projeto tenha sido aprovado
no colegiado, líderes da Câmara dos Deputados levaram a proposta a plenário,
que foi rejeitada pela maioria e arquivada. (ESTADÃO, 2013)
Pressões exercidas por parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica
culminaram no cancelamento do programa Escola Sem Homofobia, que ficou
conhecido como kit gay. O programa foi alvo da intensa mobilização dos setores
conservadores, dentre eles, parlamentares da FPE, a partir da desqualificação
do conteúdo e qualidade de seu material, assim como o público a que se desti-
nava, aproveitando de uma situação política específica pelos seus adversários.

O Olhar do Assistente Social

Um dos aspectos mais claros das mudanças que estão se produzindo na


identidade religiosa consiste na ênfase individual; as tendências religiosas são
menos institucionalizadas e muito mais difusas, o que supõe uma religiosidade
assumida consciente e livremente pelas pessoas.
É previsível então, que haja um aumento generalizado do fator individual
na determinação da identidade religiosa. A identidade religiosa na sociedade
atual é predominantemente reflexiva; em comparação com outros momentos
históricos, o crente atual necessita de reflexão, não pode entregar-se à tradição,
porque essa é questionada, e por outro lado, não há um só caminho ou opção,
já que vivemos numa sociedade pluralista. Desta forma, está fadado a refletir,
eleger e optar. As decisões que o crente vai tomar refletidas dentro de uma
fé e tradição religiosas estão submetidas (queira ou não) a uma confrontação
permanente com outras opções ou tradições religiosas e inclusive, dentro da
mesma tradição, com diversas interpretações. Tem, portanto, que viver uma
permanente reflexão ou interpretação da sua fé. A identidade religiosa, que era
praticamente imposta desde o nascimento, era raramente questionada e tinha
portanto, a virtude da estabilidade. Hoje, no entanto, tal estabilidade não é algo
que está dado, porque o indivíduo tem diante de si outras possibilidades. “De

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todos modos, lo que sí está claro es que la identidad reflexiva es más dinâmica,
abierta, flexible y expuesta a los avatares de un presente y, sobre todo, un
futuro bastante menos previsibles y que el individuo apenas puede controlar.”
(MARDONES, 1996, p. 127)
Serão apresentadas a seguir, algumas características do perfil dos assis-
tentes sociais participantes da pesquisa. Confirmando a tendência histórica da
profissão, a categoria de assistentes sociais é predominantemente feminina, con-
tando aqui com apenas 6,2% do sexo masculino. A faixa etária que prevalece
entre os assistentes sociais é até 30 anos e entre 41 e 50 anos, também sendo
significativa a de 31 a 40 anos. A maior parte dos assistentes sociais está con-
centrada na região Sudeste (56,25%). A maioria dos assistentes sociais acredita
em Deus e dentre os assistentes sociais que possuem uma religião (83,75%), foi
perguntado a qual religião pertencem, e verificou-se que a maioria dos assis-
tentes sociais é católica (69,23%), e em segundo lugar há um empate entre
evangélica e kardecista (12,30 % cada). Dentre os assistentes sociais que não
possuem religião (14 assistentes sociais), 11 possuem crença espiritual indepen-
dente de religião.
Vejamos a seguir, o posicionamento dos assistentes sociais em relação a
temas referidos à orientação sexual e identidade de gênero, conforme mostra a
tabela abaixo.

Adoção por casais


É favorável? União civil homoafetiva Transgenitalização
homoafetivos
Sim 86,25% 83,75% 66,25%
Não 5,0% 7,5% 10,0%
NS/NR 8,75% 8,75% 23,75%
Total 100,0% 100,0% 100,0%
Fonte: QUINTÃO (2012)

Em relação à união civil homoafetiva, todos os assistentes sociais que se


posicionaram contrários são evangélicos. Já em relação à adoção por casais
homoafetivos, entre os assistentes sociais que se posicionaram contrariamente,
a maioria é evangélica e os demais são católicos. Em relação à transgenitaliza-
ção, dos que se posicionaram contrariamente, houve empate entre católicos e
evangélicos.

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Considerações finais

Observamos que em relação às questões relativas à orientação sexual e


identidade de gênero, a maioria dos assistentes sociais é favorável à diversidade
de opções, embora as religiões cristãs dominantes apresentem posicionamentos
contrários, que reconhecem apenas as uniões heteroafetivas. Dessa forma, os
assistentes sociais, especialmente os católicos e kardecistas, parecem não ter a
religião como referência determinante, buscando nos princípios éticos da pro-
fissão um contraponto, que ao final, lhes dão uma direção a seguir.
Tal forma de lidar com a religião sinaliza o quanto na contemporaneidade,
há um aumento do fator individual na determinação da identidade religiosa.
(MARDONES, 1996) Com tantos outros referenciais éticos, o religioso não pode
entregar-se tão facilmente à tradição, mas buscar a reflexão e elaborar novas
formas de entendimento acerca das questões que lhes trazem conflitos éticos e
morais. Em seu exercício profissional, assistentes sociais religiosos devem ree-
laborar seus valores e crenças, adaptando a ética pessoal à modernidade, ao
mesmo tempo em que preservam sua identidade religiosa.

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Referências

BORRILO, D.. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Autêntica Editora,


Belo Horizonte, 2013.

ESTADÃO. Feliciano encerra gestão marcada por pauta antigays. São Paulo, dez
2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,feliciano-encerra-
-gestao-marcada-por-pauta-antigays,1110182,0.htm> Acesso em 20 de mar 2014.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. (tradução, Tomas Tadeu da


Silva, Guaracira Lopes Louro), 7.ª ed, Rio de Janeiro, Ed. DP&A, 2002.

MARDONES, J. M. Adónde va la religión? Cristianismo y religiosidad em nuestro


tiempo. Editorial Sal Terrae, 1996.

NATIVIDADE, M. Homossexualidade, gênero e cura em perspectivas pastorais evan-


gélicas. RBCS, vol.21, n°.61, São Paulo Jun., 2006

NATIVIDADE, M. e LOPES, P. V. L..O direito das pessoas GLBT e as respostas religio-


sas: da parceria civil à criminalização da homofobia.In DUARTE et al.(orgs). Valores
Religiosos e Legislação no Brasil. A tramitação de projetos de lei sobre temas morais
controversos. Garamond, Rio de Janeiro, 2009.

QUINTÃO, G.F. A Questão religiosa no trabalho do assistente social: fragmentos de


uma investigação na atualidade. Dissertação de mestrado, UFF, Niterói, 2012.

RORTY, R. Religion as a conversation stopper. In: Philosophy and social hope. Penguin
Books, 1999.

ZYLBERSZTAJN, J.. O Princípio da Laicidade na Constituição Federal de 1988. Tese


de doutorado. Faculdade de Direito, USP, 2012.

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PELA VIDA, PELA FAMÍLIA E PELA PROPRIEDADE


PRIVADA: HEGEMONIA, CONSERVADORISMO
CRISTÃO E POLÍTICAS SEXUAIS

Henrique Araujo Aragusuku


Graduado em Psicologia
Universidade Federal de Mato Grosso
henriquearagusuku@gmail.com

GT 12 - Diversidade Sexual e de gênero, políticas públicas e serviço social

Resumo

Este trabalho se propõe a levantar algumas reflexões sobre o atual cenário polí-
tico brasileiro, principalmente a partir da rearticulação das direitas e do avanço
do conservadorismo cristão, junto à consolidação da supremacia de um projeto
político economicamente neoliberal e socialmente conservador. Dentro dessas
reflexões, serão analisados os (des)caminhos das políticas sexuais e os retro-
cessos que marcam o atual momento político, impulsionados pela militância
pró-vida e pró-família (leia-se antifeminista e anti-LGBT) de setores cristãos da
política nacional, notadamente dos movimentos evangélicos.
Palavras-chave: hegemonia, conservadorismo, políticas sexuais, política
nacional.

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Introdução

No dia 17 de abril de 2016, foi aprovada a abertura do processo de impe-


achment da presidenta Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados, em uma
votação que durou seis horas, sendo um espetáculo midiático acompanhado por
multidões e manifestações contrárias e favoráveis, hipnotizando todo um país.
No momento da votação, cada deputado possuía um curto tempo para decla-
rar seu voto, proporcionando um verdadeiro show de horrores, escancarando
a podridão de um sistema político elitista e uma democracia desmoronada. A
recitação massiva dos mantras “pela família” e “por Deus”, acompanhados pelo
“voto sim ao impeachment”, reacenderam o alerta do avanço do conservado-
rismo no cenário político brasileiro. Não existe dúvida que o momento atual é
de avanço do conservadorismo político e de rearticulação das direitas no país,
sendo um cenário de retrocessos para as políticas sexuais, assim como para a
pauta dos direitos humanos e direitos sociais de forma geral.
É com muita atenção que devemos perceber que discursos ultraconserva-
dores e reacionários não estão isolados em lideranças políticas, mas possuem
eco na sociedade e, ainda que minoritária, relativa base de apoio social. Assim,
vimos declarações de concordância a discursos como de Jair Bolsonaro (PSC/
RJ), defendendo o golpe militar de 1964 e homenageando o Coronel Ustra,
ex-chefe do DOI-CODI1 de São Paulo, responsável pela tortura de diversos mili-
tantes de esquerda durante o regime militar, na qual se inclui Dilma Rousseff,
quando era militante do VAR-Palmares2. Lembrando que Jair Bolsonaro foi o
deputado federal mais votado do Estado do Rio de Janeiro, em 2014, com 464
mil votos.
A partir desse panorama, esse breve trabalho se propõe à levantar refle-
xões sobre o atual cenário político-social e econômico brasileiro, sobre a crise
institucional presente nos altos escalões da política nacional e, principalmente,
sobre os (des)caminhos das políticas sexuais e da cidadania LGBT no Brasil.
Foram buscados estudos sobre política e hegemonia, principalmente as leituras
gramscianas de Carlos Nelson Coutinho (1999, 2008), trazendo reflexões sobre

1 Órgão do Exército de inteligência e repressão durante o regime militar de 64.


2 Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), guerrilha urbana de Carlos Lamarca,
organizada na luta armada contra a ditadura.

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as intersecções entre Estado e sociedade civil, e a consolidação da supremacia


de grupos sociais dominantes. Além das imprescindíveis contribuições de auto-
re(as) que teorizam sobre política e sexualidade, dando destaque para aquele(as)
que trazem um recorte interseccional junto a classe, raça/etnia e gênero, sob
uma perspectiva crítica anticolonialista e anticapitalista.

Crise política, Impeachment e hegemonia

Uma pergunta é latente: como chegamos ao atual momento político? No


início dos anos 90, período logo após o fim ditadura militar, diversos parlamen-
tares notadamente do campo das direitas preferiam autodenominar-se como
“de centro”, em uma percepção quase pejorativa do “ser de direita” (KAYSEL,
2015). Atualmente, presenciamos um período de ascenso do “orgulho direi-
tista”, paralelo ao crescimento de movimentos organizados declaradamente de
direita, que ganharam corpo e visibilidade durante o exponencial crescimento
das manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma, em 2015 e 2016.
Entretanto, tais manifestações não direcionavam apenas os casos de corrupção,
o impeachment da presidenta e o Partidos dos Trabalhadores (PT), também hos-
tilizavam às políticas de esquerda como um todo: as políticas sociais, os partidos
de esquerda, os movimentos sociais. Não é mera casualidade que conviveram
pacificamente em tais manifestações, parlamentares corruptos, movimentos
neofacistas, militares saudosistas, cristãos fundamentalistas, e até defensores do
retorno da monarquia.
Vivemos os últimos os últimos quinze anos sob o governo do PT, que se
corroeu em casos de corrupção, junto a seu projeto de poder característico pela
instalação de um pacto de governabilidade com setores da elite brasileira e com
partidos tradicionais de direita política. A apropriação, pelo PT, do pragmatismo
eleitoral e das políticas neoliberais, fruto da convicção de sua capacidade de
gerência do capitalismo brasileiro, proporcionou um cenário de confusão ideo-
lógica e desfiguração das pautas da esquerda. Um governo que tem como pilar
central o corte de gastos do Estado (chamado ajuste fiscal), comprometendo a
manutenção de políticas sociais; secundarizando a reforma agrária, as políticas
ambientais e de direitos humanos, assim como foi majoritariamente o Governo
Dilma (2011-2016), poderia ser lido como de “direita”, entretanto, se faz com-
preendido pela maioria da população como um governo da esquerda.

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Apesar disso, foram nesses últimos quinze anos que tivemos os maiores
avanços nas pautas LGBT, tanto no âmbito sociocultural, quanto na esfera esta-
tal. Os anos 2000, podem ser caracterizados como uma década de ascenso
das pautas LGBT nacionalmente, coincidindo com um cenário político relativa-
mente favorável, abrindo caminhos para o surgimento de uma cidadania LGBT
brasileira. O avanço das direitas vem se mostrando como o principal empecilho
para a consolidação de políticas sexuais no Brasil, principalmente pelo ascenso
do conservadorismo cristão no cenário nacional.
Como apresentado por Carlos Coutinho (2008), a supremacia de um grupo
social se exerce a partir de uma combinação entre dominação e hegemonia,
tendo como alicerce a direção político-ideológica e o consenso da sociedade a
partir dos aparelhos privados de hegemonia, junto à capacidade da burocracia
em exercer coerção por meio da repressão. O Estado e a sociedade civil são
campos inter-relacionados, em que o autor qualifica:
Essas duas esferas se distinguem, justificando assim que recebam
em Gramsci um tratamento relativamente autônomo, pela função
que exercem na organização social e, mais especificamente, na
articulação e reprodução das relações de poder. Em conjunto, as
duas esferas formam o Estado em sentido amplo, que é definido por
Gramsci como “sociedade política + sociedade civil, isto é, hege-
monia escudada de coerção”80. (...) No âmbito da “sociedade civil”,
as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar
aliados para os seus projetos através da direção e do consenso. Por
meio da “sociedade política” – que Gramsci chama, de modo mais
preciso, de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção” –,
ao contrária, exerce-se sempre uma “ditadura”, ou, mais precisa-
mente, uma dominação fundada na coerção (p.54).

Neste sentido, o impeachment e o Governo Temer expressam a consoli-


dação da supremacia de um projeto político-econômico e sociocultural, mais
precisamente do neoliberalismo econômico e do conservadorismo político-
-social. Esse projeto já avançava gradualmente mesmo durante o Governo PT,
impulsionado por fortes aparelhos privados de hegemonia, na qual se enten-
dem a mídia, entidades, partidos, movimentos organizados, redes sociais, as
universidades. Como apresenta Gilberto Calil (2016), tais aparelhos privados
de hegemonia intensificaram, nos últimos anos, a disseminação de visões
reacionárias: “privatizações e ajuste social, repressão policial, machismo,

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instrumentalização do discurso ‘anti-corrupção’, reordenamento urbano exclu-


dente, mercantilização da vida, avanço do ‘politicamente incorreto’ agressivo e
desqualificador”.
As manifestações de junho de 2013 explicitaram uma rachadura no projeto
político-social dos governos petistas, apontando o fim do consenso caracteri-
zado pelo pacto social, intensificando o processo de recomposição hegemônica
que culminou no atual cenário político e na retirada do PT do governo. É ine-
gável, na constituição da atual conjuntura política, o papel das manifestações
massivas pelo impeachment, do protagonismo de instituições como a FIESP3,
dos aparelhos midiáticos, da circulação de informações nas redes sociais e de
modalidades de cyberativismo, demonstrando que o campo da sociedade civil
e da hegemonia são fundamentais na consolidação da supremacia de grupos
sociais e seus projetos políticos.

Políticas sexuais e conservadorismo cristão

Nesse processo de avanço das direitas no Brasil, o conservadorismo cris-


tão, principalmente com a propagação política dos evangélicos, vem ganhando
espaços privilegiados dentro do cenário nacional, se amparando sobre uma
política pró-vida (contra o aborto), pró-família (contra os movimentos feminis-
tas e LGBT) e assumidamente neoliberal, posicionando-se à extrema-direita da
política nacional. O caso do Partido Social Cristão (PSC) é exemplar, tendo
lideranças como Feliciano e Bolsonaro; além de lançar uma candidatura à pre-
sidência em 2014 – o próprio presidente do partido, Pastor Everaldo – com
um programa econômico radicalmente neoliberal, caracterizado de extrema-di-
reita, defendendo inclusive a privatização da Petrobrás. Esse casamento entre
economicamente liberal e socialmente conservador não é novidade no mundo,
tendo como exemplo o avanço da New Right e sua reação ao avanço das polí-
ticas sexuais nos Estados Unidos e na Inglaterra dos anos 60 e 70 (RUBIN, 1984;
WEEKS, 2002).
A chamada “bancada evangélica” do Congresso Nacional é muito pro-
vavelmente o agrupamento político que mais cresceu nos últimos dez anos,
acirrando a polarização contra os projetos legislativos vinculados às pautas

3 Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.

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feministas e LGBT. Não é por acaso que nem uma única lei para a popula-
ção LGBT foi aprovada em nível federal no Brasil, e atualmente o cenário é
de retrocessos, com a tramitação de projetos que regulamentam a “família”
como a união entre um homem e uma mulher; que dificultam a realização dos
abortos legais e recrudescem a criminalização do aborto; que tentam anular a
aprovação do casamento homoafetivo pelo judiciário. Ao menos dois partidos
médios são hegemonizados por evangélicos: o Partido Republicano Brasileiro
(PRB), dirigido majoritariamente pela Igreja Universal do Reino de Deus, e o
Partido Social Cristão (PSC), pela Assembleia de Deus. Entretanto, a influência
protestante alcança quase todos os partidos brasileiros, sendo uma das maio-
res bancadas do Congresso Nacional e infelizmente a bancada mais à direita4,
aliando-se às chamadas bancadas da bala (indústria de armamentos e segu-
rança) e do boi (ruralistas) nas proposições legislativas mais reacionárias.
Nesse processo de derrubada do PT do governo, lideranças evangélicas
tiveram um papel protagonista, na qual podemos citar, como principal articu-
lador do impeachment, o ex-presidente da Câmara dos Deputados e afundado
em suspeitas de corrupção, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), autor de dois projetos
legislativos polêmicos: a criminalização da “heterofobia” e a maior restrição
ao aborto legal. No atual governo Temer, temos a nomeação de dois ministros
evangélicos e a indicação de André Moura (PSC/SE) como líder do governo na
Câmara. O ascenso da bancada evangélica está diretamente vinculado com
a capacidade de articulação de seus aparelhos privados de hegemonia, con-
trolando jornais, rádios, rede de televisão (mais notadamente a Rede Record),
redes comunitárias, igrejas, entre outros. E é importante ressaltarmos: a mili-
tância conservadora de setores evangélicos na política não é um fenômeno
brasileiro, mas se faz presente em praticamente todo o continente americano
(VILLAZÓN, 2015).
A agenda da bancada evangélica se unifica, fundamentalmente, em torno
de sua militância pró-vida e pró-família, principal impedimento para a consoli-
dação de direitos sexuais e de avanços nas pautas dos movimentos feministas

4 Em uma pesquisa da Datafolha (http://goo.gl/cSmx7F) sobre o posicionamento das bancadas, a evan-


gélica esteve enquadrada em praticamente todas as perguntas (apenas uma não) como “tendência
à direita” acima da média geral no Congresso, e foi a que proporcionalmente mais votou a favor do
impeachment.

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Sexual e de gênero
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e LGBT no cenário nacional. A formulação da teoria da “ideologia de gênero”


– jargão que reuni todas as perspectivas que compreendem o gênero e a sexu-
alidade como constructos socioculturais – possibilitou um polo antagonista,
aglutinando diversos setores conservadores (de evangélicos à católicos) contra
as pautas feministas e LGBT (LIONÇO, 2014). O principal reflexo disso foi a
derrubada dos termos “gênero” e “orientação sexual” do Plano Nacional da
Educação, em 2014, e de muitos planos municipais e estaduais, em meio a
diversas manifestações conservadoras nas câmaras de vereadores e assem-
bleias legislativas, em 2015. Infelizmente, o termo “ideologia de gênero” ganhou
espaço nos debates políticos em torno da sexualidade e do gênero na mídia e
nas casas legislativas.

Considerações finais

É possível pensarmos em políticas sexuais a partir da teoria política grams-


ciana, levantando reflexões sobre as diferentes correlações de forças políticas,
as disputas em torno do poder estatal, as formações hegemônicas e a consoli-
dação da supremacia de determinados grupos sociais. A leitura de um cenário
político a partir dessa perspectiva, assumindo a complexidade dos fenômenos
político-sociais, nos possibilita pensar em estratégias para a transformação social
e a radicalização da democracia, assim como a recomposição dos espaços da
esquerda política nas esferas do Estado e da sociedade civil.

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Sexual e de gênero
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Referências

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em: http://blogjunho.com.br/reflexoes-sobre-a-ascensao-da-direita/. Acesso em:
23/05/16.

COUTINHO, Carlos N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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ensaios. São Paulo: Cortez, 2008.

KAYSEL, André. Regressando ao Regresso: elementos para uma genealogia das direi-
tas brasileiras. In CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (org.). Direita, volver!: o retorno
da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2015.

LIONÇO, Tatiana. “Ideologia de gênero”: a emergência de uma teoria religiosa sobre


os riscos da democracia sexual. Revista Fórum, 2014. Disponível em: http://www.
revistaforum.com.br/2014/09/27/ideologia-de-genero-emergencia-de-uma-teoria-reli-
giosa-sobre-os-riscos-da-democracia-sexual/. Acesso em: 25/05/16.

RUBIN, Gayle. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In
CAROLE, Carole V. (org.). Pleasure and danger: exploring female sexuality. Londres:
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VILLAZÓN, Julio A. Velhas e novas direitas religiosas na América Latina: os evangéli-


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______________. Sexuality and its discontents: meanings, myths and modern sexu-
alities. New York: Routledge, 2002.

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ISBN 978-85-61702-44-1 991 de Estudos sobre a Diversidade
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A MULHER TRANS: ENTRE RECONHECIMENTIO, DIREITOS E


EDUCAÇÃO

Monique Rodrigues Lopes


Especialista em Sociologia e Filosofia - FETREMIS Professora de História do
Ensino Fundamental do Estado de Minas Gerais
moniquerodrigueslopesprof@gmail.com

Andrey da Silva Brugger


Mestrando em Ciências Sociais – UFJF. Bolsista CAPES Professor de Direito
Constitucional do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora
andreybrugger@hotmail.com

GT 12 - Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas Públicas e Serviço Social

Resumo

O presente trabalho problematiza a questão da necessidade de reconhecimento


e atribuição de capacidades às mulheres transexuais. Problematizamos as opres-
sões sofridas por este grupo vulnerável através de comentários sobre as políticas
públicas e direitos no âmbito das capacidades, como a morte prematura, a
questão da saúde, a segurança de poder andar pelos lugares públicos e apon-
tamos a importância da educação, tendo a escola como lócus principal, para a
construção de uma sociedade justa, igualitária e solidária, já que entendemos
que o ambiente educacional é o primeiro momento de socialização, onde as
crianças e adolescentes farão trocas de saberes simbólicos, aprendendo e apre-
endendo valores e práticas. Enxergamos a possibilidade da educação para a
democracia inclusiva e igualitária.
Palavras-chave: diversidade; capacidade; política; gênero; direitos e
reconhecimento

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Sexual e de gênero
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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo expor, de maneira exploratória,


dado o caráter inicial da pesquisa que os autores estão empreendendo, os pri-
meiros apontamentos sobre o objeto a ser desenvolvido em pesquisas futuras.
Acreditamos que a propositura da presente comunicação poderá nos dar subsí-
dios suficientes para colocar em pauta nosso(s) problema(s) principal/principais
de investigação: no caminho pelo reconhecimento de direitos das Mulheres
Trans*, em que parte da caminhada estamos? Quais são as demandas que pre-
cisam ser melhores formuladas? Qual a prática social, política, comunitária que
isso pode requerer?
Buscando formular de maneira melhor essas questões e tentando, ainda
que de maneira não conclusiva, apontar políticas já em curso e aperfeiçoamen-
tos ou novos caminhos, e admitindo que não temos “a autoridade da vivência”,
mas nos colocando como “aliados” dos direitos das Mulheres Trans, sabendo
que o discurso é uma ferramenta de poder e um objeto pelo qual se luta,
mormente o acadêmico – local em que este trabalho está inserido, “aprovei-
taremos” de nossa posição privilegiada para vocalizar interesses, sem “roubar”
protagonismo.

Reconhecimento e Capacidades: o pano de fundo político-


filosófico dos direitos e políticas para as Mulheres Trans

O estudo presente tem por recorte a situação de vulnerabilidade das


Mulheres Trans. Nossa pesquisa parte do referencial teórico da luta por reco-
nhecimento retomada por Axel Honneth, baseado em Hegel. Honneth (2003)
propõe que a eticidade é construída com base na luta por reconhecimento das
esferas de personalidade das pessoas, a saber: o amor, o direito e a solidarie-
dade (estima).
Honneth começa com o amor na infância, quando começamos a traçar
nosso sentido da existência de um Outro independente, principalmente quando
saímos da simbiose com nossa mãe. Estando cercado de amor familiar ou frater-
nal (amizade), a Pessoa desenvolve a ideia de autoconfiança. Essa autoconfiança
é indispensável para os projetos de autorrealização das Pessoas.

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O Direito pode, por seu turno, desenvolver a ideia de respeito. O respeito


pelo direito alheio, o reconhecimento das esferas de direitos subjetivos, que
podem ser requeridos e tidos como trunfos em demandas sociais.
Já a solidariedade tem sua importância estabelecida na aceitabilidade
social das características individuais a partir de valores existentes na comuni-
dade política em questão.
O reconhecimento não é apenas a identificação cognitiva de uma pessoa,
mas a atribuição de valor positivo a uma pessoa.
Essa é a busca das Mulheres Trans que gostaríamos de expor. Porque ao
não serem reconhecidas, este grupo acaba por internalizar essa imagem nega-
tiva de si mesmas e passam a moldar suas escolhas e ações a partir dela. A falta
de reconhecimento oprime, instaura hierarquias, frustra a autonomia e causa
sofrimento (SARMENTO, 2016,p.242).
Também é teoricamente importante o Enfoque das Capacidades teorizado
por Martha Nussbaum e Amartya Sen (1993), para quem os direitos devem ser
entitulados às pessoas para que elas escolham a vida que querem viver, para
que possam viver uma vida que mereça este nome e seja plenamente humana.
Essa lista é tida por Martha como um parâmetro mínimo de justiça social,
a lista é aberta e mutável, contando com 10 (dez) capacidades, que são as
seguintes: vida; saúde física; integridade física; sentidos, imaginação e pensa-
mento; emoções; razão prática; afiliação; outras espécies; lazer; controle sobre
o próprio ambiente (NUSSBAUM, 2013, p.91-93).
A primeira capacidade listada por Nussbaum é a Vida. Isto é, ter a capa-
cidade de viver até o fim de uma vida humana de duração “normal”; isso quer
dizer não morrer prematuramente, ou antes que a própria vida se veja tão redu-
zida que não valha a pena vive- la. A expectativa de vida do brasileiro, em
2016, é de 75,2 anos (IBGE); a expectativa de vida das mulheres trans é de 301
a 35 anos. Percebe-se que a expectativa das mulheres trans cai praticamente à
metade, não sendo, portanto, uma vida de duração “normal”.
A segunda capacidade é a de ter saúde física. Ser capaz de ter boa saúde,
incluindo a saúde reprodutiva; de receber uma alimentação adequada, de dis-
por de um lugar adequado para viver (NUSSBAUM, 2013, p.92). Conforme

1 Conforme noticiado em: http://diversidadeiff.blogspot.com.br/2015/04/expectativa-de-vida-de-trans-


no-brasil.html. Acesso em 25 de junho de 2016.

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demonstra Camila Guaranha (2013), as mulheres trans encontram enormes


dificuldades para acessar o Sistema Único de Saúde, tendo muitas vezes sua
construção de personalidade rejeitada como um “corpo que não importa”,
possuindo sua identidade de mulher trans patologizada. A questão da saúde é
uma preocupação quanto ao reconhecimento da cidadania das Mulheres Trans.
Muitas delas deixam de buscar acesso e auxílio por conta de estigma, pre-
conceito e opressão advindos dos funcionários do Sistema de Saúde. Direitos
básicos como serem chamadas pelo nome social – que já foi normatizado em
portaria pelo Ministério da Saúde – não são respeitados.
Além disso, o estigma é tão forte que quando essas mulheres buscam
o sistema de saúde, são logo identificadas com tratamentos como “colocar
silicone”, cirurgia de transgenitalização, tratamentos hormonais e combate a
doenças sexualmente transmissíveis; sendo ignorado o tratamento de saúde das
mulheres trans de maneira integral.
As demais capacidades também sofrem lesões na perspectiva das mulhe-
res trans. Por exemplo, a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores
primordiais que contribuem para a opressão sofrida no ambiente escolar, que
acabam levando à evasão (MOREIRA, 2012).
Sobre as emoções, também, aqui, os relatos que já ouvimos é de uma
barreira a ser transposta. As mulheres trans são, em sua maioria, desejadas,
fetichizadas, mas não amadas, não destinatárias e receptoras de afeto genuíno.
A lista de Nussbaum complementa, em nosso entender, a ideia de reco-
nhecimento de Honneth. A teoria social de Honneth, ainda que provada
empiricamente nas lutas sociais, não pode ser judicializada, não há como juri-
dicizar a ideia de “estima” ou de “amor”. Lado outro, a lista de Nussbaum
consegue ser moldada também para a linguagem dos direitos. Nas palavras exa-
tas de Nussbaum (2013, p.345), “todos nós temos direito, baseados na justiça, a
um mínimo de cada um dos bens centrais da lista das capacidades”.

Educação e gênero

Numa perspectiva pós-estruturalista galgada no método de desconstru-


ção de Jaques Derrida e também imbuída de uma análise foucaultiana no que
tange as relações de poder, é que propomos questionamentos sobre os pilares
e parâmetros estabelecidos pela sociedade. Assim, concentramos essa parte
do estudo mais especificamente na escola como instituição indispensável para

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problematizar questões que envolvem as políticas de inclusão e espaço para


reflexão. Numa tentativa de revolução possível onde as formas de resistência,
transformações e respeito possam se expandir para além do âmbito escolar.
Analisando o trabalho de Louro (1999 podemos perceber a análise que
é feita a cerca da questão binária e dicotômica homem-mulher. Louro argu-
menta que não são propriamente questões sexuais, mas as maneiras como são
valoradas é que acabam por reforçar a dicotomia. Essas relações atuam então
num padrão heteronormativo tido como natural e a assim os ensinamentos,
saberes e valores também são repassados. Quem foge a essa “norma”, desvia
dos padrões socialmente construídos fica sujeito a margem, ao não- acesso, aos
não- direitos.
Discutir gênero então se torna primordial no ambiente escolar, pois faz
parte também da formação da identidade dos sujeitos. Assim, observa Louro
(1999) que os sujeitos podem exercer a sexualidade de diferentes formas. Nada
obstante, a norma faz com que os sujeitos se identifiquem por padrões social-
mente estabelecidos como masculinos e femininos e dessa maneira constroem
sua identidade de gênero.
Nota-se a escola como uma primeira sociedade, onde se aprende como
agir, o que preferir qual pensar é pertinente, qual habilidade pode e deve ser
desenvolvida. Segundo Louro (1997, 2004), habilidades como bordar, pintar e
outras atividades manuais faziam parte do aprendizado para ser “prendada”.
Uma educação voltada para o lar, para a família. Essa cadeia de pensamento
sutilmente imposta não era questionada, mas vista como natural e inquestionável.
Porém, com a multiplicação das identidades de gênero dos grupos tidos
como “minorias” é que Louro (2004) chama atenção para esse tipo de identi-
dade fronteiriça que permeia entre o masculino e o feminino como é o caso
da população trans. Como fogem ao padrão heteronormativo imposto são vis-
tos na maioria das vezes com resiliência patológica, como anormais. Tendo na
escola, como dito anteriormente, esses espaços de diferenças, atos do cotidiano
como ir ao banheiro, ou a simples chamada feita pelo professor causam cons-
trangimento diário, por verem negados seus direitos ao nome social e uso do
banheiro, questões já judicializadas perante o Supremo Tribunal Federal, contri-
buindo para o preconceito, arraigado a construção de uma sociedade machista
e heterossexual que vai excluindo e marginalizando não só na escola, mas mui-
tas vezes também dentro do ambiente familiar.

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Interessante ressaltar que nos Parâmetros Curriculares Nacionais, PCN


(BRASIL, 1997) temos no que tange ao eixo de temas transversais, a questão do
estudo das sexualidades, não de gêneros. Segundo Louro (1999) apesar de arti-
culáveis, não se confundem. Cita a História da Sexualidade de Foucault numa
tentativa de compreender os “discursos que se regulam e se normalizam instau-
rando saberes que produzem verdades.”
Dessa forma, como afirma Louro, currículos escolares muitas vezes aca-
bam por contribuir para a reprodução de uma ordem social estratificada. Uma
forma organizada de reprodução de conhecimento, de fatores normalizadores.
Atualmente dentro dos temas transversais dos PCN’s já temos a proposta
da discussão de gênero e não só mais de sexualidade, entretanto, ainda que seja
um avanço, esbarramos no problema do discurso não se efetivar na prática.
Os temas transversais são tratados, infelizmente, como acessórios ao obje-
tivo primordial que é “cumprir conteúdo”. Não havendo assim na maioria das
vezes reflexões de gênero ou de raça na construção dos próprios conteúdos
ministrados como é perceptível nos estudos de história e geografia por exemplo.
A História nos livros didáticos não é contada por transexuais, homosse-
xuais ou até mesmo por mulheres, não existe representatividade nesse sentido.
Muitos professores alegam que não há formação adequada para essas
abordagens em sala de aula e da incumbência quase que exclusiva do corpo
docente de trabalhar esses temas. Que seria necessário um trabalho conjunto
com as famílias, principalmente no que diz respeito às famílias com crianças e
adolescentes que sofrem preconceito na questão de gênero na relação familiar
além da escola.
Outras vezes nos deparamos com preconceitos e discriminações vin-
dos do próprio corpo docente que ao invés de propor uma reflexão, apenas
reproduzem os “padrões” socialmente aceitos e tidos como “caminhos certos”,
levando em consideração suas vivências e subjetividades.
A escola deveria buscar uma nova interpretação que ao invés de afir-
mar estereótipos proponha novas análises, quebra de paradigmas no sentido
de construção dessa igualdade de gênero. Afim de que se possa efetivar não
só o respeito à diversidade, os valores e crenças propostos no PCN, mas tam-
bém garantir o pleno desenvolvimento da pessoa humana, seu preparo para o
exercício da cidadania e qualificação para o mercado de trabalho, conforme
previsto no art. 205 da Constituição Federal.(1988), gerando uma sociedade
democrática e inclusiva.

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Considerações finais

Buscamos neste estudo demonstrar a necessidade de atribuir reconheci-


mento e capacidades às mulheres trans, como medida de realizar a plenitude
de suas vidas em uma base de justiça e que reforce a dignidade humana intrín-
seca que possuem.
Tentamos apontar alguns dos direitos que estão em foco, de maneira exem-
plificativa, focando na questão da educação, a revolução possível, que pode
capacitar tanto as mulheres trans para buscarem seus direitos, suas demandas e
interesses, quanto educar as outras pessoas para conviverem de maneira inclu-
siva, vendo as mulheres trans como merecedoras de respeito e consideração
por todos.
É nosso dever vocalizar isso e buscar ações concretas rumo à dignidade
de todas e todos. Para, de fato, construirmos uma sociedade justa, igualitária e
solidária.

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Referências

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: plu-


ralidade, cultura e orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997.Disponivel em: <http://
portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf > Acesso em: 10 de maio de 2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil, Brasília:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, art. 205.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22º ed. Organização, introdução e revisão


técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GUARANHA, Camila. Travestis e Transexuais: a questão da busca pela saúde.


In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis,
2013. Disponível em: < http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/
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2016

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e trad.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.. Petrópolis: Vozes, 2000.
p. 103-133.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tabela de Mortalidade. Disponível


em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagi-
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LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


2.ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1997. . Sexualidade Contemporânea: Políticas
de identidade e pós-identidade. IN: UZIEL, Anna Paula: RIOS, Luís Felipe; PARKER,
Richard (Orgs.) Construções da Sexualidade : gênero, identidade e comportamento
em tempos de AIDS. Rio de Janeiro. Pallas/ Programa em Gênero e Sexualidade IMS/
UERJ/ABIA, 2004. p 200-214

MOREIRA, Yan Faria. Saindo do armário e da escola: índice e causas de evasão de


indivíduos não heterosexuais das instituições de ensino. In: Anais seminário nacional de
educação, diversidade sexual e direitos humanos. Disponível em: < http://periodicos.

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ufes.br/gepss/article/view/3807/3022>. Acesso em 28 de junho de 2016. NUSSBAUM,


Martha C.; SEN, Amartya (Eds). Quality of life. Clarendon Press Publication, 1993.

NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da Justiça: deficiência, nacionalidade, pertenci-


mento à espécie; tradução Suzane de Castro. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodolo-


gia. Belo Horizonte: Fórum, 2016

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NOTAS SOBRE A SELETIVIDADE NO ACESSO À SAÚDE VIVIDA


PELA POPULAÇÃO TRANS.

Pablo Cardozo Rocon


Mestrando em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo.
pablocardoz@gmail.com

Francis Sodré
Doutora em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo.
francisodre@uol.com.br

Alexsandro Rodrigues
Doutor em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo.
xela_alex@bol.com.br

GT 12 - Diversidade sexual e de gênero, políticas públicas e serviço social.

Resumo

A partir de uma síntese de produções dos campos das Ciências Sociais, Humanas
e da Saúde, este artigo propõe duas notas sobre a seletividade no acesso à
saúde vivenciada pela população trans. Aponta-se que só é possível discutir a
saúde da população trans brasileira por que existe o SUS, nesse sentido, univer-
salizar o acesso à saúde para essa população pressupõe lutar pela efetivação
deste sistema público de saúde conciliado com os princípios e valores éticos
da Reforma Sanitária brasileira como universalidade, integralidade, equidade,
justiça social e participação popular.
Palavras-chave: Transexualidade, Travestilidades, Saúde, Corpo.

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Introdução

Os trânsitos que as pessoas trans realizam nos gêneros a partir das mudan-
ças em seus corpos são interpelados por normas hegemônicas sobre gênero e
sexualidade presentes nas relações sociais. Segundo Froemming et al. (2010,
p.166 - 167):
A ordem social contemporânea se estrutura de forma que no
dualismo hétero/ homo, a heterossexualidade seja naturalizada e
compulsória. [...] A linha de inteligibilidade do humano é pensada
a partir do “corpo – gênero – sexualidade” e dos pólos masculino
e feminino, e na relação destes com seus opostos, dada assim tam-
bém a nossa capacidade de compreensão da existência do outro.

Os autores, em diálogo com Butler (2014, p.45) que diz que “a instituição
de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero
como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo
feminino [...] por meio das práticas e do desejo sexual.”, afirmam que na socia-
bilidade atual, as construções no gênero devem seguir as categorias disponíveis
nas formas femininos x masculino, homem x mulher, restando aos que nes-
sas categorias não se enquadram a desumanização de suas vidas. Tais normas
compreendem os corpos e gêneros num sistema binário que “produz a ideia de
que o gênero reflete, espelha o sexo e que todas as outras esferas constitutivas
dos sujeitos estão amarradas a essa determinação inicial: a natureza constrói
as sexualidades e posiciona os corpos de acordo com as supostas disposições
naturais.” (BENTO, 2006, p.90).
Michel Foucault (2013) relata que o século XVIII foi marcado por uma
maior preocupação e cuidado com o sexo. O autor discorre sobre o surgimento
do que nomeou “dispositivo da sexualidade”, segundo qual passou a regular as
práticas sexuais a partir de diversas estratégias de administração populacional e
disciplinação dos corpos, produzindo uma sociedade de normalização, e valo-
rando o sexo com fins procriativos.
Em diálogo com Foucault (2013), Ferreira e Aguinsky (2013, p. 224) afir-
mam que “diferentes instituições ideológicas, tais como família, a medicina, o
sistema escolar, de justiça, de segurança, entre outros, constroem significados
sobre corpos e desejos”. Tais instituições colaboraram para a elaboração do
dispositivo da sexualidade e do gênero em sua forma binária conforme também

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apontou Laqueur (2001). Estas instituições continuam reproduzindo como valo-


res hegemônicos o gênero em sua forma binária e a heterossexualidade como
compulsória.
Ao buscarem transformar seus corpos, as pessoas trans - transexuais, tra-
vestis e transgêneros - entram em conflito com essas normas, e são punidas
com a condução a uma vida recortada por uma série de expressões da questão
social - pobreza, fome, violência, etc - resultantes da exclusão do mercado de
trabalho, da escola, saúde, famílias – instituições reguladoras e reprodutoras
das normas de gênero. (ALMEIDA e MURTA, 2013; BENTO, 2006; ROMANO,
2008; ROCON et al, 2016).
Foucault (2013) e Laqueur (2001) revelam o papel da saúde, da higiene
pública, e da medicina enquanto ciência e profissão, na produção e reprodução
das normas de gênero e sexualidade a partir da formulação de políticas, pro-
gramas e práticas profissionais. Isso pode justificar o fato dos estabelecimentos
da saúde pública se mostrarem como ambientes hostis às pessoas travestis e
transexuais, tornando essa população, dentre o seguimento de Lésbicas, Gays,
Bisexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), a que mais enfrenta dificuldades para
acessar o sistema público de saúde (MELLO et al., 2011).

Notas sobre a seletividade.

Nos últimos anos, o Ministério da Saúde empenhou-se em ações que


pudessem enfrentar as dificuldades vividas pelas pessoas LGBT no acesso a
saúde. Merecem ser destacados: a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS que
garantiu o acesso livre de discriminação e com direito ao nome social, a inclu-
são do nome social no Cartão do SUS, a Política Nacional de Saúde Integral
LGBT, e a criação do Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde
(PTSUS). Todavia, pesquisas tem mostrado que essas legislações não tem pro-
duzido efeitos positivos no cotidiano dos serviços de saúde.
Nesse sentido, a partir de uma síntese de produções científicas dos cam-
pos da Ciências Sociais, Humanas e da Saúde, este artigo organiza duas notas
sobre a seletividade enfrentada pela população trans no acesso a saúde.

1. Transfobia e Travestifobia nos serviços de saúde.


Muitos serviços de saúde tem se mostrado seletivos em suas portas de
entrada, da atenção básica a alta complexidade, apresentando episódios de

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discriminação trans-travestifóbicos praticados por trabalhadores envolvidos em


todo itinerário percorrido na busca do atendimento em saúde.
Duarte (2008), Romano (2008), Muller e Knauth (2008) e Rocon et al
(2016), responsabilizam a transfobia e a travestifobia praticadas por trabalha-
dores da saúde nos variados estabelecimentos e níveis de atenção à saúde,
como uma das principais barreiras ao acesso à saúde pela população trans,
destacando desrespeito ao nome social como uma das principais formas de
manifestação discriminatória dos trabalhadores da saúde para com a população
trans.
Essa realidade tem levando a dezenas de pessoas trans a deixarem de pro-
curar serviços de saúde nos casos de adoecimento, bem como ao abandono de
tratamentos em saúde, promovendo um profundo quadro de seletividade por
meio da exclusão do acesso ao Sistema Único de Saúde. (ROCON et al, 2016;
ROMANO, 2008; MULLER e KNAUTH, 2008).

2. O diagnóstico no processo transexualizador.


Em 2008, o Ministério da Saúde por meio da portaria 1707 criou o Processo
Transexualizador do SUS (BRASIL, 2008), sinalizando avanços na oferta de ser-
viços específicos para o cuidado em saúde da população trans ao incorporar os
procedimentos transgenitalizadores, reconhecendo as transformações corporais
vivenciadas por essa população como necessidade em saúde. Todavia, a refe-
rida portaria autorizou apenas os procedimentos MTF (masculino pra feminino),
beneficiando mulheres transexuais com serviços de hormonioterapia, cirurgias
para retirada do pomo de Adão, alongamento das cordas vocais e cirurgias
de neoculpovulvoplastia (mudança de sexo MTF). Somente em 2013, com
a ampliação do Processo transexualizador do SUS a partir da Portaria 2803,
homens transexuais e pessoas travestis tiveram suas demandas por hormonio-
terapia e no caso dos homens trans, os procedimentos do tipo FTM (feminino
para masculino) como mastectomia, histerectomia e neofaloplastia (mudança
de sexo FTM), incorporados pelo SUS (BRASIL, 2013).
O Processo Transexualizador do SUS representa um importante avanço
em direção à promoção do cuidado em saúde a população trans. Contudo,
o acesso a esse programa tem sido mediado por um processo de diagnóstico
apontados por Arán et al (2008), Bento (2006;2008), Almeida e Murta (2013),
Rocon et al (2016), dentre outros autores, como promotor de seletividade na
medida em que, a partir de um ideal de “transexual verdadeiro”, engendrado

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ISBN 978-85-61702-44-1 1004 de Estudos sobre a Diversidade
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pelas verdades concebidas para gênero e sexualidade a partir do gênero binário


e da heterossexualidade compulsória, impedem dezenas de pessoas travestis e
transexuais brasileiras ao direito ao cuidado em saúde no processo de transfor-
mação de seus corpos.
Nesse cenário, parte da população trans impedida de acessar os serviços
do Processo Transexualizador do SUS, ficará fadada aos riscos de adoecimento
e morte envolvidos na utilização de hormônios sem acompanhamento médico
e nas aplicações do silicone industrial, bem como, será privada do acesso aos
suportes psicológico e social oferecidos por esse programa. Dessa forma, um
programa potencial à promoção da saúde e cidadania da população trans tor-
na-se seletivo e ineficiente a partir do processo de diagnóstico (ROCON et al,
2016).

Considerações finais

O direito a saúde pública no Brasil representa uma vitória histórica para


toda a população brasileira. Fruto da 8ª Conferencia Nacional de Saúde, agi-
tada pelo Movimento pela Reforma Sanitária no Brasil, em meio ao processo de
redemocratização do país, consolidou a saúde pública na constituição de 1988
como direito de todos a ser garantido pelo Estado mediante políticas sociais.
Esse direito foi materializado e operacionalizado através da criação do Sistema
Único de Saúde por meio da lei 8080/90 e da lei 8142/90, que instituiu um
sistema de saúde público, único, integral, universal com participação da socie-
dade civil organizada.
Portanto, é preciso reafirmar que só existem Processo Transexualizador
do SUS, Política Nacional de Saúde Integral LGBT e Carta dos Direitos dos
Usuários da Saúde, porque existe o SUS. É o Sistema Único de Saúde com seus
princípios e valores ético-políticos, que sustenta a possibilidade de se discutir e
promover a Saúde LGBT, e assim a saúde da população Trans, no Brasil.
A discriminação transfóbica e travestifóbica, o desrespeito ao nome social
e o diagnóstico do processo transexualizadores se apresentam como uma
afronta ao SUS, na medida em que nega seus princípios, e exclui do acesso à
saúde, dezenas de brasileiros que não se enquadram nos padrões hegemônicos
para sexualidade e gênero.
Apesar dos avanços em direção ao combate à essa realidade, ela ainda se
faz presente nos cotidianos dos serviços de saúde. Assim, é preciso compreender

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que a luta pela garantia do direito à saúde a toda população trans brasileira não
pode se fazer desconectada da luta em defesa do SUS. É possível apontar tam-
bém como possibilidade de solução a essa problemática, a impressão, pelos
trabalhadores do SUS em seus processos de trabalho em saúde, dos valores
da Reforma Sanitária Brasileira, produzindo contra hegemonias no cotidiano
dos serviços, movimentos de resistência e rupturas com modelo biomédico de
atenção à saúde, modelo mercadológico, ante SUS, que fundamenta paradig-
mas como gênero binário, a heteronormatividade, e a saúde como ausência de
doença.

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“EN EL NOMBRE DE ROSA”: 20 AÑOS DEL MOVIMIENTO


TRANS EN EL SALVADOR

Amaral Palevi Gómez Arévalo


Doctor en Estudios Internacionales en Paz, Conflicto y Desarrollo
Rede O Istmo
amaral.palevi@gmail.com

GT 13 - Por uma nova história do gênero e da sexualidade

Resumen

La presente comunicación tiene como objetivo presentar una narrativa inicial


sobre la organización del movimiento de personas transexuales, transgéneros
y travestis (Trans) en El Salvador entre 1996 a 2016. Utilizando la noción de
Genealogía propuesta por Foucault se dividen en tres periodos temporales:
1) Origen, espacios de trabajo sexual marginales y la Discoteca Oráculos en
San Salvador; 2) Procedencia, rememora los primeros pasos organizativos y
diversificación del movimiento trans entre las décadas de 1990 hasta 2009 y 3)
Emergencia, como ente político diferenciado a partir de 2010.
Palabras clave: El Salvador; Movimiento Trans; Organización; Política Sexual;
Historia.

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A manera de introducción

Las personas transexuales, transgéneros y travestis (trans) en El Salvador


han estado expuestas/os a una serie de violaciones que incluso ha conllevado
la muerte de muchas/os de ellas/ellos. A pesar de las difíciles condiciones de
vida de las personas trans desde hace 20 años se puede decir que existe un
movimiento trans que lucha por conseguir una mejor calidad de vida y el res-
peto de los Derechos Humanos de cualquier persona independientemente de
su identidad o expresión de género. Esta historia es poco conocida.
Retomando el concepto de genealogía propuesto por Foucault (1993), esta
comunicación presenta una narrativa inicial sobre la organización del movi-
miento trans salvadoreño.

I. Origen: Trabajo sexual de calle y la Discoteca Oráculos

En El Salvador las personas que han presentado en su cotidiano una identi-


dad o expresión de género diferente a la norma binaria masculino/femenino son
relegados/as a espacios marginales y precarios. Ejemplo de esto en la década de
1960 fue el mítico salón-bar La Praviana en el centro histórico de San Salvador.
Este fue un reconocido lugar de reunión de hombres pobres que ejercían el
trabajo sexual utilizando ropas de mujer.
En el imaginario social salvadoreño, el hecho de ser un hombre homose-
xual era (y continua siendo) relacionado al trabajo sexual de calle. Esto conlleva
por una parte a que todo hombre que se reconoce como homosexual tiene al
trabajo sexual de calle tanto como posible guion de vida o el resultado final de
asumir su orientación sexual.
En 1976, surge la Discoteca Oráculos (Gayelsalador, 2008). Este espacio
se convirtió en el lugar de encuentro para homosexuales y la realización de
shows de travestis. Homosexuales de clase media que ejercitaban el travestismo
y que poseían un mejor nivel económico tuvieron en Oráculos una plataforma
para manifestar su expresión de género y orientación sexual, sin los riesgos que
conlleva el estar en la calle y ejercer el trabajo sexual. Los shows de travestis
fueron la táctica para atraer clientes a la discoteca durante su existencia, la cual
coincidió con el desarrollo de la guerra interna de El Salvador entre los años
1980 hasta 1992.

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II. Procedencia: En el nombre de Rosa

Un primer colectivo de cinco a diez travestis y hombres gays a consecuen-


cia del VIH, comenzaron a reunirse a finales de 1991 en el Parque Cuscatlán
de San Salvador. Este grupo inicial, dadas las condiciones del conflicto armado
aún vigente, recibían amenazas de los cuerpos de seguridad por las reuniones
que realizaban, ya que eran etiquetadas que su objetivo era promover el homo-
sexualismo. El doce de agosto de 1992 ese grupo adquiere una formalización
institucional, crease la Fundación Nacional para la Prevención, Educación y
Acompañamiento de la Persona VIH/SIDA (Fundasida).
Al interior de Fundasida un primer colectivo de diversidad sexual se
estructura bajo el nombre de Grupo Entre Amigos en 1994. En este grupo se
reúnen tanto personas gay como travestis. No obstante, dadas las condiciones
de violencia y homicidios contra personas travestis o travestidos (Cruz; Sánchez;
Azcunaga, 1999, p. 62), en 1996 se organiza el primer colectivo exclusivamente
de travestis al interior de Fundasida. Este colectivo se denominó “En el nom-
bre de Rosa” (Cabrera; Parada, 2009, p. 11). Este nombre fue una forma de
homenaje póstumo a Rosa una joven travestí de 15 años muerta por un ataque
transfóbico.
Entre 1997 y 1998 los crímenes contra personas de diversidad sexual son
más evidentes, inclusive se sospechó que tales crímenes respondía a las acciones
de un criminal en serie (Hernández; Hernández, 1998). En un principio se foca-
lizaban en travestis que ejercían trabajo sexual de calle, pero luego se desplazó
hacia hombres homosexuales de clase media. Esta situación reforzó la idea de
organización de un colectivo de travestis. Para 1998 se conoce que el colectivo
En el nombre de Rosa ya contaba con 20 integrantes (TENORIO, 1998), exclusi-
vamente travestis que ejercían trabajo sexual de calle en San Salvador.
En 1999 este colectivo da el primer paso para ser reconocidos jurídica-
mente al interior de El Salvador, presentando la solicitud de personería jurídica
ante el Ministerio de Gobernación, bajo el nombre de Asociación para la
Libertad Sexual el Nombre de la Rosa. Dados los patrones de discriminación
existentes en El Salvador hacia personas de la diversidad sexual, en el año 2001,
su petición fue denegada por la Dirección General del Registro de Asociaciones
y Fundaciones Sin Fines de Lucro, afirmando que esa petición violentaba “nor-
mas de derecho natural, los fines que persigue la familia, la constitución del

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matrimonio, las buenas costumbres, la moral y el orden público” (Corte Suprema


de Justicia, 2009, p. 1).
Después de tres años se presenta un amparo ante la Corte Suprema de
Justicia el 13 de enero de 2004, aduciendo que el razonamiento que justificaba
la negación de la personería jurídica violentaba los derechos constitucionales
de igualdad y libre asociación de aproximadamente 120 miembros afiliados a la
Asociación en ese momento (Corte Suprema de Justicia, 2009, p. 1-2).
Entre 1999 hasta 2004 la Asociación ejecutó actividades apoyadas por
otras organizaciones (Cabrera; Parada, 2009, p. 11). En el año 2004, con la
ayuda de William Hernández y a iniciativa de Mónica Amaranta la El Nombre
de la Rosa, transforma su estrategia ante la Dirección General de Registros y
presenta una solicitud de personería jurídica bajo el nombre de Asociación
Salvadoreña para Impulsar el Desarrollo Humano (ASPIDH), eliminando toda
indicación formal como asociación de mujeres trans.
En esa misma época en otras ciudades fuera del área metropolitana, los
concursos de belleza trans promueven espacios políticos para deconstruir este-
reotipos negativos respecto a sus identidades. Por ejemplo, se conoce que en las
ciudades de Santa Ana, Sonsonate, La Unión, Aguilares, San Miguel y Usulután
desarrollan concursos de belleza desde el año 2004.
Entre 2006 y 2007 inició actividades la Asociación Ángeles Arcoíris Trans
del Departamento de la Paz que aglutina mujeres trans, radicada en la ciu-
dad de Zacatecoluca, zona paracentral de El Salvador. Su trabajo de incidencia
básicamente consistía en acciones educativas y preventivas sobre VIH en los
municipios del Departamento de La Paz (RODRÍGUEZ, 2009).
En 2008 Karla Avelar inició los procesos organizativos para la creación
de la Asociación Comunicando y Capacitando a Mujeres Trans con VIH en El
Salvador (Comcavis-Trans). Esta organización nace dadas las condiciones de
discriminación que las mujeres trans padecen y en específico las mujeres trans
viviendo con VIH.
En esta misma época se conoce la existencia del Movimiento por la
Diversidad Sexual y Derechos Humanos Trans (MDSDH Trans) que luego se
denomina como Asociación Salvadoreña de Trangéneras, Transexuales y Travestís
(Astrans). Enfocando su trabajo en la realización de procesos de hormonización
hacia personas trans y la promoción de derechos humanos en personas LGBT
en áreas postergadas (rurales). Entre sus objetivos se encuentra que el Ministerio

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de Salud reconozca su responsabilidad y asuma la atención de la reasignación


sexual de mujeres y hombres trans.
La emergencia política del movimiento de Diversidad Sexual en El Salvador
se efectúa por medio de la estructuración de la Alianza por la diversidad sexual
LGBT que tuvo como principal objetivo coyuntural en 2009, el detener la pro-
puesta de reforma constitucional para prohibir el matrimonio y la adopción por
parte de personas del mismo sexo. En este mismo año, la Corte Suprema de
Justicia (2009) declara ha lugar el amparo solicitado por la entonces Asociación
El Nombre de la Rosa. En este mismo año la ahora nombrada Asociación para
Impulsar el Desarrollo Humano, logra obtener su personería jurídica, pero sin
hacer mención en sus estatutos de su identidad trans.

III. Emergencia: Marcha contra la transfobia

Considero el día 17 de mayo de 2010 -o mejor dicho la noche- donde


surge el movimiento trans. Esto se debe a que las organizaciones trans realizan
por primera vez una marcha específica para denunciar la transfobia y los crí-
menes de odio que este sector de la población padece. Realizando una marcha
que inició en el Monumento de El Salvador del Mundo, icono de la identidad
nacional (LÓPEZ, 2011), hasta el Monumento de la Justicia. Una característica
particular de esta marcha fue su realización en horario nocturno. Esta marcha
se ha realizado anualmente desde esa fecha.
En ese mismo año en la ciudad de La Unión, en el Oriente del país, un
colectivo de hombres gays y trans inician una serie de reuniones educativas y
capacitaciones gracias al proyecto de atención a Poblaciones Vulnerables a ITS
y VIH de Cruz Roja Salvadoreña. Cuando este proyecto finalizó entra en escena
Médicos del Mundo, quienes retoman a este grupo bajo sus acciones educa-
tivas en el marco de los proyectos que ejecutaba en la zona. Por cuatro años
el ahora Colectivo LGBTI Estrellas del Golfo participa en diversas actividades
educativas y organizativas dirigidas por Médicos del Mundo. Por ejemplo, el
17 de mayo de 2012, en el parque central de La Unión se colocó un stand para
disminuir los patrones discriminatorios de la población.
En 2011 el movimiento trans salvadoreño da muestras de articulación
internacional por medio de la realización del Foro de Despatologización de las
Identidades Trans, realizado el 23 de octubre de ese año.

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En el año 2012 surge la Asociación Colectivo Alejandría El Salvador


que centra sus esfuerzos en desarrollar procesos de incidencia política, sen-
sibilización y capacitación para mejorar el acceso a la educación, formación
profesional, así como fortalecer la respuesta nacional al VIH.
Para el año 2013 se conoce la existencia de la Red de Organizaciones
Trans de El Salvador (RedTransal). Esta aglutinaba a 4 organizaciones trans
existentes en esa época: Aspidh, Comcavis, Astrans y Colectivo Alejandría. El
principal producto obtenido de está articulación fue la organización y realiza-
ción del Foro de Divulgación del Plan de incidencia Juntas y Juntos por una Ley
de Identidad de Género en El Salvador. Esta red, da paso a la creación de la
Mesa permanente por una Ley de Identidad de Género, la que está conformada
por 7 organizaciones, siendo cinco asociaciones trans de San Salvador y las
otras dos de defensa de Derechos Humanos.
El 4 de mayo de 2013 es asesinada la activista trans Tania Vásquez lo que
representó un duro golpe para las diversas organizaciones trans. Ante la pasi-
vidad por esclarecer este asesinato por las autoridades correspondientes; Karla
Avelar presentó una solicitud de audiencia ante la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos. La audiencia fue realizada el día 29 de octubre de 2013.
El 11 de enero de 2014, se conforma la Asociación Generación Hombres
Trans de El Salvador conocidos como HT503. Una de sus principales apuestas
como colectivo ha sido la discusión de la masculinidad hegemónica (CONNELL,
2003), para no reproducir estos mismos patrones en la construcción de las
masculinidades de sus miembros. El colectivo está articulándose con otras orga-
nizaciones de hombres trans a nivel regional, y por ello en noviembre de 2015
se estructura la Red Centro América de Hombres Trans (Re Cath).
Al finalizar el año 2015 se propuso la creación de la Asociación de Mujeres
Transgenero/Transexual de la Universidad de El Salvador (Asmutrans Ues). No
obstante, esta acción no se concretizó.
Al finalizar el año 2016, se estaban realizando acciones específicas para
introducir la propuesta de Ley de Identidad de Género en la Asamblea Legislativa
por parte de la Mesa permanente por una Ley de Identidad de Género.

Palabras de cierre

Este es un primer intento, inconcluso, para sistematizar la historia del


movimiento trans en El Salvador. Se puede afirmar que este movimiento tiene

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una existencia de 20 años. Su origen se da en los espectáculos de travestismo y


el ejercicio del trabajo sexual de calle por parte de mujeres trans. No obstante,
con la conformación del colectivo En el nombre de Rosa en 1996, marca la pro-
cedencia de este movimiento. En el año 2010 se presenta una clara emergencia
del movimiento trans, el cual realiza un llamado a la sociedad en general sobre
sus particularidades y la vulnerabilidad social que enfrentan.

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RODRÍGUEZ, Nicolás. Asociación Ángeles de la Paz. Elsalvadorg.com, 2009.


Disponible en: http://www.elsalvadorg.com/portal/content/blogcategory/1/7/3/93/
Acceso en 16 abr. 2016.

TENORIO, Óscar. Homosexuales en la mira. El Diario de Hoy, San Salvador 07 de jun.


1998. Reportaje, p. 08-09.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

TEM DORES QUE A GENTE GOSTA: UMA BREVE HISTÓRIA


GRECO-ROMANA DO SEXO ANAL ENTRE HOMENS

Kauan Amora Nunes


Doutorando em História - UFPA
kauan_cinefilo@hotmail.com

GT 13 - Por uma nova história do gênero e da sexualidade.

Resumo

Compreendendo que a utilização do cu para o prazer sexual é considerada um


tabu e este é o local onde são exercidas as forças do poder a fim de uma disci-
plinarização das práticas sexuais, podemos afirmar que a história, independente
de suas transformações, sempre reservou ao homem penetrado – o “passivo”
– um estigma de fragilidade e vulnerabilidade tanto física quanto emocional
que poucas vezes foi problematizado, mesmo pela bibliografia acadêmica que
busca discutir questões acerca do mundo LGBT. Sendo assim, este artigo – que
também pode ser visto como uma breve introdução a história do sexo anal no
ocidente – pretende, através do método histórico-descritivo, investigar as trans-
formações históricas do sexo anal na Grécia e em Roma.
Palavras-chave: sexo anal; desconstrutivismo; história ocidental; sexualidade;
homocultura.

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O sexo anal na história de Grécia e Roma

Ao longo da história construímos papeis fundamentais nas relações sexu-


ais: o papel do “ativo” e do “passivo”. Convencionamos a chamar de “passivo”
aquele que é penetrado pelo parceiro, e que, portanto, está em posição de
subjugação e submissão. O “passivo” exerceria um papel de inferioridade, tanto
física quanto emocional. Mas, será mesmo que devemos definir tais papeis
tendo como único fator determinante a penetração? Desta forma não estaremos
condenando todas as mulheres ao papel de “passivas” para o resto de suas
vidas, haja vista que elas são as penetradas em suas relações sexuais? Quais são
outros fatores tão importantes quanto a penetração que devemos adotar para
definir tais papeis? Definir é realmente importante?
A forma como responderíamos esta questão na contemporaneidade tem
influências da história da Grécia e de Roma. Portanto, retornemos para lá a fim
de entender o que somos e como podemos mudar.
A Pederastia na Grécia Antiga: antes de falar sobre estes papeis sexuais,
falarei acerca de um conjunto formado por três coisas que eram analisadas nas
práticas sexuais dos gregos. Estas três coisas eram o ato, o desejo e o prazer.
Nas práticas sexuais, pode-se fazer uma distinção entre o ato, o
desejo e o prazer. Na experiência dos gregos, os três formam um
conjunto: a realização do ato sexual vem acompanhada de prazer
e isso desperta o desejo. O desejo deseja o prazer, que se obtém
com o ato. (LARRAURI, 2009, p. 55, grifos meus).

A reflexão das práticas sexuais dos gregos era realizada através da dinâ-
mica entre estas três coisas. Ou seja, não importa se o desejo e o prazer vinham
através do ato sexual com pessoas do mesmo sexo ou não, mas se este conjunto
estava vinculado com aquilo que lhes era de maior valor: a qualidade da tem-
perança, ou se estava vinculado com aquilo que desprezavam: o excesso e o
exagero. O objeto sexual tinha apenas que ser belo e desejável, pouco impor-
tando o sexo. Para os gregos, existe em todos os homens um apetite sexual que
se satisfaz com pessoas que são belas, indiferente do sexo.
É claro que a prática sexual entre os gregos já era construída em cima de
dois extremos: o “ativo” e o “passivo” (embora não conhecidas exatamente com
estes nomes).

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Em torno desse único ato sexual, existem duas posições possíveis:


uma ativa e outra passiva. O privilégio ético e vital da atividade
sobre a passividade é indiscutível, por isso o indivíduo que obtém
prazer mediante sua atividade na penetração é o sujeito ativo,
enquanto o que ocupa o posto passivo de ser penetrado não é mais
que um objeto de prazer sexual (Ibidem, p. 56).

Os “penetradores” eram, geralmente, homens mais velhos, livres e de sta-


tus social superior, ao passo que os “penetrados” eram os jovens adolescentes
do sexo masculino de status inferior. A relação entre este homem de maior
idade com um jovem adolescente era muito bem vista e incentivada pela socie-
dade grega. Ela tinha caráter educacional, pois era a chance do jovem de ter
uma relação afetuosa com seu mestre e aprender todas as suas qualidades,
como conhecimentos militares, políticos e artísticos, sendo educado para se
tornar um verdadeiro cidadão.
A pederastia (paiderastia) na Grécia antiga era vista como um rito de pas-
sagem da juventude para a vida adulta. Esta relação entre um homem mais
velho que ensinava tudo que sabia para um jovem adolescente que via nesta
relação a sua chance de ascensão social e o caminho certo para se tornar um
cidadão exemplar apesar de ser ter caráter pedagógico e de ser incentivada pela
maioria dos gregos ainda assim deveria seguir uma série de regras coercitivas.
Por exemplo, o penetrante, também conhecido como erastes, jamais deveria
se submeter ao papel de penetrado, também conhecido como eromenos. O
eromenos, por sua vez, jamais deveria corresponder os cortejos realizados pelo
erastes e, acima de tudo, deveria mostrar-lhe respeito e admiração. Por outro
lado, o erastes deveria sempre ser um exemplo para seu eromenos e protege-lo
da vergonha social de ser penetrado sexualmente.
Vale ressaltar que a ideia de ‘penetração’ nas relações sexuais entre o
erastes e o eromenos se dava através da prática intercrural – ou interfemoral –,
onde o erastes posicionava sue pênis entre as coxas do seu eromenos, que, por
sua vez, deveria sempre se colocar em posição de submissão e não demonstrar
desejo ou prazer.
Em matéria de sexo, esse relacionamento tinha também seus cri-
térios, pois o jovem tinha que manter sua condição de passivo, e
o mais velho buscava a satisfação por meio da masturbação ou na
posição intrafemural. Há controvérsias sobre a prática de sodomia
entre os parceiros, e é provável que não existisse, pois nesse ato um

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dos parceiros teria que ficar em posição de submissão, próprio de


mulheres, além de não se ter notícia de iconografia mostrando tais
práticas. (CORINO, 2006, p. 23).

Em A homossexualidade na Grécia Antiga (1994), Dover afirma que:


Se um eromenos respeitável não busca nem espera prazer sensual
do contato com um erastes, recusa qualquer contato até que o eras-
tes prova que é merecedor da concessão de favores, jamais permite
a penetração de qualquer orifício de seu corpo, e nunca age como
uma mulher, desempenhando um papel de subordinado numa
posição de contato, e se, ao mesmo tempo, o erastes gostaria que
ele infringisse as regras e, observasse uma certa flexibilidade com
relação à regra, e talvez até fosse ocasionalmente um pouco flexí-
vel com a regra, em que circunstancias um homem efetivamente se
submete à penetração anal por outro homem, e como a sociedade
encara esta submissão? (DOVER, 1994, p. 148).

Segundo Dover, a resposta é clara. O homem que aceitasse deliberada-


mente ser penetrado no ânus por outro homem abriria mão de seus direitos e
privilégios de cidadão da polis e não poderia assumir cargos públicos, como foi
o caso de Timarco:
Temos a história de um jovem ateniense chamado Timarco, de
grande beleza e de boa família, que começou a se prostituir nas
ruas de Cerâmico e Pireu. Ele buscava o prazer puro e simples. Era
um “devasso”, chegando a ter dois amantes ao mesmo tempo. Ao
chegar à idade adulta entrou na política, no entanto foi atacado por
Ésquines em um discurso que se tornou célebre. Ésquines expôs a
público seu passado e por causa disso Timarco veio a suicidar-se
(CORINO, 2006, p. 21).

Como podemos perceber, a pederastia na Grécia antiga deveria possuir


um caráter menos sexual do que pedagógico e educacional. É válido perceber
que a prática, comum na sociedade grega, já anunciava a criação dos papeis
sexuais e de suas representações como conhecemos hoje: o erastes era res-
ponsável por transmitir para o seu eromenos, geralmente rapazes entre os 12 e
18 anos, toda a sua sabedoria e seus conhecimentos, para que este pudesse se
tornar um dia o detentor dos privilégios e direitos de um cidadão livre.

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Em Esparta, cidade grega conhecida pelo seu enorme poder bélico e edu-
cação militar, a relação sexual livre era encorajada na formação do guerreiro e
era símbolo de força e virilidade.
Em Esparta, uma sociedade guerreira, os casais de amantes homens
eram incentivados como parte do treinamento e da disciplina militar.
Essas práticas dariam coesão às tropas. Em Tebas, colônia espar-
tana, existia o Pelotão Sagrado de Tebas, tropa de elite composta
unicamente de casais homossexuais. Eram extremamente ferozes,
pois lutavam com muita bravura para que nada acontecesse a seus
parceiros. Em campo de batalha eram quase imbatíveis. Assim,
podemos ver que a homossexualidade dos espartanos em nada
influenciava sua condição de homens e guerreiros (CORINO, 2006,
p. 20-21).

A reflexão sobre prática do sexo anal em relações sexuais entre homens


na Grécia antiga está profundamente envolvida pela questão da história da
homossexualidade (embora este conceito seja desconhecido pelos gregos). Se
em Atenas, cidade conhecida pela sua educação intelectual, lugar onde nasce-
ram Sófocles, Tucídides e Sócrates, a pederastia era vista como uma tradição
comum entre os cidadãos, um ritual de boas-vindas a maioridade – embora
existissem certas regras para melhor funcionamento –, em Esparta, cidade que
educava seus jovens rapazes desde cedo para que se tornassem grandes guer-
reiros, a prática era incentivada como parte fundamental na educação militar,
pois, não só acreditava-se que assim os laços entre os soldados seriam muito
mais fortes como acreditava-se que eles se tornariam imbatíveis.
A Sodomia em Roma: De um ritual pedagógico - quase antropofágico
- de transmissão de conhecimento e de sabedoria que servia como fonte de ins-
piração para alguns, a prática do sexo anal entre homens começou aos poucos
a ser vista com olhares acusatórios graças a influência do pensamento cristão
em Roma. Durante este período, não só a prática foi condenada, mas seus pra-
ticantes também o eram. Os homossexuais eram condenados a morte e eram
responsabilizados por tragédias, catástrofes e epidemias.
Antes de concentrar neste momento, quando a homossexualidade e o
sexo anal passaram a ser vistos como crimes e maldições puníveis com morte,
gostaria de refletir como esta mudança aconteceu gradativamente, tendo antes
sido vistas como práticas socialmente aceitáveis, inclusive entre respeitados
poetas e imperadores.

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Embora a cultura e mitologia grega tenham sido apropriadas pelos roma-


nos e algumas coisas tenham sido alteradas, no que se diz respeito ao sexo e
aos atos sexuais, a diferenciação da estrutura de “ativo e passivo” se sustenta em
uma cultura patriarcal, onde o “ativo” deve ser qualquer cidadão romano livre
e o “passivo” deve ser um homem em condição inferior ou um escravo. Não
existia problemas em um homem penetrar outro homem, desde que o homem
que penetre seja um romano livre e o penetrado esteja em situação de submis-
são não apenas sexual, mas social.
A questão da masculinidade romana tem sido muito discutida, e
uma ideia que se firmou nos últimos anos em relação ao comporta-
mento sexual no mundo grecoromano, durante o final da República
e o início do Império, é que as categorias homo e heterossexuais
são instrumentos analíticos inadequados, sendo substituídos por
funções de passivo e ativo. Baseados em fontes literárias, aristo-
cráticas, diversos estudos apresentam o “homem romano” como
aquele que não deveria ser objeto de prazer de outros, seja de
outro homem ou de outra mulher, e tanto felação como cunilín-
gua aparecem como atos degradantes (...) A pederastia constituía
pecado menor, desde que fosse a relação ativa de um homem livre
com um escravo ou um homem de baixa condição (LOURDES,
2003, p. 303 apud ASSIS, 2006, p. 33).

Em A homossexualidade desconstruída em Levítico 18, 22 e 20, 13 (2006),


Dallmer de Assis cita o caso de Júlio César, líder e político romano, quando se
entregou ao Rei Necomedes da Bitinia.
Assim como aconteceu com Júlio César, citado por Seutonius,
quando se entregou ao rei Necomedes da Bitinia. O mesmo pas-
sou a ser chamado entre outras coisas de: a rainha da Bitinia. É
relevante notar que ninguém fez piadas por Júlio César ter-se dor-
mido com Necomedes, mas de como tudo aquilo havia acontecido
(ASSIS, 2006, p. 33).

Na medida em que os costumes da cultura grega foram gradualmente


sendo aceitos pelos romanos, algumas coisas foram se tornando hábito, mas
com outros significados. Se, na Grécia antiga, a pederastia era um ritual pedagó-
gico onde o erastes transmitia seus conhecimentos e virtudes através da relação
sexual para o eromenos, em Roma, o sexo anal era uma satisfação do prazer do

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homem livre, em geral do orgulhoso pater famílias (pai de família), com um de


seus escravos. Este ato era visto como uma tentativa do escravo de satisfazer seu
dono e deixa-lo feliz, mesmo sem seu consentimento. O homem penetrado se
tornava alvo de escárnio. Era chamado de catamita, que vem do latim catami-
tus, palavra para se referir ao amante jovem e passivo do homem livre.
Durante o Império Romano, a propagação do pensamento cristão influen-
cia diretamente na forma como os romanos veem a homossexualidade e o
sexo anal: “Constantino, primeiro imperador romano cristão, exerceu sua auto-
ridade exterminando sacerdotes efeminados, por investigação de Filo. Assim,
especialmente com Filo de Alexandria a perseguição por homossexuais ganha
expressão” (ASSIS, 2006, p. 34).
A visão dos imperadores romanos sobre a homossexualidade era bastante
plural. Dos 12 primeiros imperadores em Roma, apenas Claudio se interes-
sou exclusivamente por mulheres, todos os outros mantiveram relações com
homens. Calígula e Nero foram dois dos mais polêmicos. Calígula teve vários
amantes homens e fazia questão de demonstrar seu afeto em público. Também
costumava estuprar presos de guerra. Nero chegou a se casar duas vezes com
homens. O seu primeiro marido foi castrado e tratado como imperatriz. No seu
segundo casamento, Nero se submetia ao seu marido como uma mulher.
Adriano foi outro imperador conhecido por seu amor homossexual.
Viveu até o fim dos seus dias com Antínoo, um jovem grego. Depois de sua
morte, Adriano nomeou uma cidade de Antinoópolis, em sua homenagem.
Heliógabalo, o imperador subversivo, recusou os costumes da religião de Roma
e adotou um estilo de vida profano. Relacionou-se com homens e com mulhe-
res de condições inferiores. Gostava de homens viris e bem dotados.
Podemos concluir que a história mostra que a penetração é imprescin-
dível para a distinção dos papeis de “ativo” e “passivo”. Esta hierarquização e
opressão históricas são reflexos de sociedades e culturais patriarcais e sexistas.
Mas também esta história anuncia que devemos pensar novas formas de socia-
bilidade, novas experiências afetivas e sexuais e novas formas de prazer.

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Referências bibliográficas

ASSIS, Dallmer Palmeira Rodrigues de. A homossexualidade desconstruída em


Levítico 18, 22 e 20, 13. 2006. 151 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião).
Universidade MetodistA DE São Paulo, 2006.

CORINO, Luiz Carlos Pinto. Homoerotismo na Grécia Antiga – Homossexualidade e


bissexualidade, mitos e verdade. Revista Biblos. Rio Grande, 19, p. 19-24, 2006.

DOVER, Kenneth James. A homossexualidade na Grécia antiga. São Paulo: Nova


Alexandria, 1994.

LARRAURI, Maite. A sexualidade segundo Michel Foucault. São Paulo: Ciranda


Cultural, 2009.

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INTERSEXUALIDADE E A IMPOSIÇÃO DE
UM CORPO GENERIFICADO

Mikelly Gomes da Silva


Doutoranda em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
mikellygs@gmail.com

Mikarla Gomes da Silva


Mestranda em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
mikarlags@gmail.com

Marcos Mariano Viana da Silva


Doutorando em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
marcosmariano08@yahoo.com.br

GT 13 - Por uma nova história do gênero e da sexualidade

Resumo

Esse trabalho tem como objetivo apresentar a intersexualidade como condição


corpórea que põe em evidência os limites da binaridade genital. Ao problema-
tizar o intersexo pretende-se desconstruir o sexo como destino de um corpo
heteronormativo para mostrar o que e como as diferentes possibilidades cor-
póreas podem significar ou ser ressignificadas. O trabalho dialoga com a teoria
queer, sobretudo, com Judith Bulter (2015), pois procuramos evidenciar os dis-
cursos que disciplinam e regulam os corpos intersexos na pretensão de (re) criar
um sexo em congruência com o gênero, encaixando-o no modelo heteronor-
mativo de existência.
Palavras-chave: Intersexo; Gênero; Sexo; Binaridade; Norma.

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Introdução

A intersexualidade é compreendida como condição corpórea que não


corresponde à típica noção binária sobre os corpos masculinos e femininos.
As pessoas intersexo nascem com características sexuais que desmontam a
genitália como único caminho possível (vagina ou pênis). Dessa maneira, estes
sujeitos são concebidos como sendo intersexo por atravessarem questões cro-
mossômicas, gonodal e/ou genital. O termo intersexo é utilizado para apresentar
uma ampla variação natural dos corpos, essa variação pode ser percebida no
nascimento, no período de transição da infância para adolescência ou na fase
adulta. Embora, ser intersexo esteja relacionado, tão somente, as características
biológicas não incidindo na identidade de gênero, tão pouco, sexual, ao longo
da história os sujeitos intersexos foram aprisionados na produção discursiva de
um verdadeiro sexo pensado em relação direta com a categoria gênero, cons-
truído a partir da binaridade.
Na concepção do ativista e intersexo Mauro Cabral (2005), intersexo
é uma definição geral para explicar a variedade de condições nas quais as
pessoas nascem com órgãos reprodutivos e anatomias sexuais que estão em
desencaixe com a definição padrão de masculino ou feminino. Estes corpos
deslocam nossos parâmetros culturais binários, embaralham e causam “estra-
nheza” para aqueles que os veem.
Deste modo, os intersexos são corpos que transitam as expressões de
humanidades entendidas pelo saber médico como legítimas, sendo associado
à patologia ou a chamada “ambiguidade genital”. Essa classificação dos inter-
sexos como “anormalidade” parece justificar a intervenção médica com intuito
de (re) fazer este corpo anormal adequando-se ao ideal do dimorfismo sexual
(LAQUER, 2001). Destarte, os estudos de Machado (2005) e Cabral (2005) ela-
boram pesquisas e vivências que podem ser percebido como uma produção de
si, através do conhecimento e da reflexão crítica dos conhecimentos acerca da
intersexualidade, por intermédio dos sujeitos intersexos

O corpo intersexual no processo histórico: representações e


possibilidades

A intersexualidade é encontrada nos mais variados momentos da histó-


ria, no entanto seu significado modifica-se no contexto social-cultural. Este é

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frequentemente associada ao hermafroditismo, pois se encontram entrelaçados


historicamente. Essa vinculação entre hermafrodita e intersexo presente no ima-
ginário cultural é alimentado, principalmente, pela mitologia, que produz uma
série de personagens com essa identificação, como por exemplo, Tirésias.
No século XIX a intersexualidade aparece como sinônimo do hermafro-
ditismo, essa figura aparece como monstro, como destaca Foucault (2001),
moralmente corrompido, logo uma imperfeição da natureza. No século XX, a
questão intersexo sai do campo moral e instalam-se nos questionamentos médi-
cos, as más-formações genitais passam a serem percebidas como anomalias do
desenvolvimento sexual.
Nas sociedades ocidentais por muitos séculos ligou-se o sexo à procura
da verdade. No caso intersexo não foi diferente, nossa sociedade ligou a ver-
dade ao sexo, gênero e corpo humano.
Somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa
verdade e que necessita dela para funcionar; temos que dizer a ver-
dade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade
ou a encontrá-la. O poder não para de questionar, de nos questio-
nar; não para de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da
verdade, ele a profissionaliza, a recompensa. Temos que produzir
a verdade como, afinal de contas, temos que produzir riqueza, e
temos que produzir a verdade para produzir riquezas. E, de outro
lado, somos julgados, condenados, classificados, obrigado a tarefa,
destinados a certa maneira de viver ou certa maneira de morrer,
em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos
específico de poder. (FOUCAULT, 1999, P. 29)

Os sujeitos intersexos são invisibilizados socialmente e tem sua identidade


marcada pela abjeção. O silêncio que percorre a condição intersexo explica-
-se por ser considerado hegemonicamente como um assunto próprio para os
saberes médicos. Paula Sandrine Machado (2005) afirma que são os conheci-
mentos, em termo de pensamento reflexivo acerca dos intersexos como um
campo discursivo, que produzem os novos rearranjos nas relações familiares,
de gênero, sexuais, dentre outras. Sendo esses deslocamentos o que fomenta a
visibilidade do que antes estava invisível. Portanto, o sujeito intersexo emerge
por intermédio do campo médico e se ressignifica através das discussões que
tal campo elabora. O exemplo disso é o “Consenso de Chicago de 2006”, o
qual traz novas terminologias em torno dos intersexos, sendo, então, a mais

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destacada a especialidade médica, que tem base na genética. Um dos obje-


tivos do Consenso foi uma revisão na nomenclatura, onde a genética passa
a designar uma classificação para os atores intersexos, com base na busca da
“verdade” a qual estaria na ordem da realidade corporal.
Conforme aponta Anne-Fausto-Sterling (1993) até o início do século XIX
estes sujeitos estavam sob o domínio do saber jurídico, neste período eles
eram classificados como hermafroditas e, como aponta os escritos de Foucault
(2001) sob eles constituíam um tipo de monstruosidade. É a partir da interven-
ção médica sob estes sujeitos que se diversificam as classificações (Intersexo1,
Hermafrodita, Peseudo-hermafrodita feminino. Pseudo-hermafrodita mascu-
lino, Hermafrodita verdadeiro, Desordem do desenvolvimento do sexo/sexual,
Anomalia da diferenciação sexual).
Sobre os “hermafroditas” e os “pseudo-hermafroditas”:
A ideia central sobre a qual se baseia essa classificação era de que a
“verdade” sobre o sexo seria determinada pela “natureza das gôna-
das”. Assim, possuir testículo ou ovários foi durante muito tempo,
o marcador inequívoco da diferença entre homens e mulheres
“verdadeiros”. Assim como os balizadores para distinguir o “verda-
deiro” do “pseudo” hermafrodita (MACHADO, 2005. P.113).

A busca pela verdade dos corpos sexuados pode ser percebida nos cam-
pos médicos e psiquiátricos, os quais elaboram uma ideia de realidade fundada
em uma suposta natureza dos corpos/sexo/gênero/desejo. Apenas nos últimos
anos as ciências humanas começou produzir reflexões sobre os corpos e subje-
tividades intersexo, são essas reflexões entre campos discursivos que permitem
a elaboração e, consequentemente, ressignificação de classificações. Entende-se
que há uma série de campos de saber-poder que falam dos sujeitos intersexo,
mas, em muitos casos, era negada a fala e a experiência desses sujeitos.

1 Optamos a utilização do termo intersexo, pois essa dominação foi apropriada pelo ativismo inter-
sexo dos anos de 1990 que tinham como interesse o fim das cirurgias corretoras na infância, como
aponta Machado em seus textos.

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A binaridade e a ficção do modelo heteronormativo

O gênero foi construído em uma proposta dicotômica entre sexo/gênero.


A lógica do gênero hegemônico baseada na matriz heterossexual foi guiada
para pensar a natureza e cultura. Em virtude desta concepção o sexo é definido
como natural e o gênero como cultural.
Concebida originalmente para questionar a formulação de que a
biologia é o destino, a distinção entre o sexo e gênero atende à
tese que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológi-
cos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não
é nem o resultado causal do sexo nem tão pouco aparentemente
fixo quanto o sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente
contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como inter-
pretação múltipla do sexo. (BUTLER, 2015. P.25/26)

No entanto, ao reduzir o gênero a um aspecto adquirido culturalmente


pode-se dizer que o gênero é colocado sob a ideia de essência, por considerar
que há um destino, mesmo que não seja a biologia é a cultura, visto que por
considerar os destinos formulados ao gênero se produz uma estrutura que fixa o
sexo na natureza e na cultura o gênero, por esta lógica os sujeitos são enquadra-
dos em uma estrutura heteronormativa. Com isso, queremos dizer que sujeitos
nascidos com vaginas (natureza/biologia) são colocados obrigatoriamente nas
expressões culturais e sociais femininas (funções/cultura) o mesmo acontece
para os sujeitos nascidos com pênis (natureza/biologia) em expressões masculi-
nas (funções/cultura).
Logo, somos inseridos em uma estrutura binária imperativa, que ordena
e determina que façamos uma escolha única/definitiva, um sexo: masculino ou
feminino como uma ordem compulsória do sexo/gênero e também dos dese-
jos, fazendo assim com que o sexo e o gênero permaneçam em um número de
dois. Deste modo, a heteronormatividade se configura como uma estrutura defi-
nidora da condição de pessoa, dotada de normas de inteligibilidade (BUTLER,
2015) socialmente instituídas e mantidas para dar coerência e continuidade.
Butler (2015) critica esse modo classificatório e binário de pensar o gênero
como uma forma estática, estrutural. A fixidez encontrada na estrutura de
gênero é refutada pela autora, sobretudo, a crítica feita à dicotomia natureza/
cultura feita por Lévi-Strauss e as argumentações de teóricas feministas que

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concebem na universalização proposta à concepção de gênero. Como aponta a


autora, a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss guiou algumas teóricas femi-
nistas para elucidar a distinção natureza/cultura. Para Butler, a relação binária
entre natureza e cultura promove uma relação hierárquica, uma vez que a cul-
tura impõe significado à natureza, “transformando-a, consequentemente, num
“Outro” a ser apropriado para seu uso ilimitado, salvaguardando a idealidade
do significante e a estrutura de significação conforme o modelo de dominação”
(BUTLER, 2015. P.74), ao desfazer a distinção natureza/cultura compreende-se
que “argumentar que não há sexo que não seja já e, desde sempre o gênero.
Todos os corpos são generificados desde o começo de sua existência social o
que significa que não há “corpo natural” que preexista a sua inscrição cultural”
(SALIH, 2012. P. 89).
As questões de gênero atravessam os discursos de normas bem como o
de normalidade. Romper, fugir ou escapar destas regras instituídas coloca os
sujeitos à margem, considerados por vezes “anormais”, uma vez que há um
deslocamento das regras sociais. A estrutura heteronormativa produz uma con-
tinuidade normalizadora nos sujeitos com suas práticas reguladoras de formação
e divisão do gênero na medida em que a identidade é apresentada através de
um ideal normativo ao invés de experiências diferentes (BUTLER, 2015).
Portanto, podemos considerar a inteligibilidade de gênero como agente
controlador do indivíduo, pois há na busca de um verdadeiro sexo, consequen-
temente, um investimento nos papéis que padronizam o gênero e o sexo. Logo,
na inteligibilidade se promove a conformidade e continuidade dos gêneros inte-
ligíveis, ou seja, atua-se sob o corpo uma conformidade biológica, uma ação
linear do sexo, gênero, prática sexual e desejos.

Considerações finais

Ao deparar-se com a intersexualidade, sujeitos que põem em cena os


limites do binário/genital e também da inteligibilidade dos corpos, os saberes
médicos, saberes jurídicos e a concepção social de sexo e gênero promovem
uma mobilização de mecanismos para controlar, disciplinar, normalizar os cor-
pos abjetos que não correspondem a “naturalidade” da dualidade sexual e,
nesse momento se postula (re) fazer os corpos cirurgicamente e socialmente
(função destinada à família e outras instituições como a escola e igreja).

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Os dispositivos de regulação acendem no corpo as marcas significadas


socialmente, limitando materialmente uma fixidez de discursos. O corpo como
diz Butler (2015) “é um processo de materialização que se estabiliza ao longo do
tempo para produzir o efeito de limite, fixidez, e superfície que chamamos de
matéria” (BUTLER, 2015. P. 9). Na condição intersexual o sexo ao embaralhar-se
com o gênero (como finalidade) produz discursos que limitam as possibilidades
corpóreas, visto que tanto o sexo quanto o gênero são caracterizados como
“dados naturais” dentro de uma perspectiva hegemônica binária.
Como aponta Bento (2006) é nas formulações de um “verdadeiro sexo”
que as intervenções cirúrgicas nos corpos intersexos e transexuais tem como
matriz em comum a heterossexualidade natural. Em ambos os casos há um
diagnóstico com necessidades de tratamento, algo a ser corrigido biológico ou
psicologicamente na tentativa de adequar os sujeitos nas normas de gênero.
Ressaltamos que as normas de gênero são apresentadas em uma série infinita
de efeitos discursivos que vinculam crianças intersexos a um sexo em congru-
ência com o gênero de socialização.

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Referências

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sexual/Berenice Bento. - Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ Judith


Butler; tradução, Renato Aguiar. –Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CABRAL, Mauro. & BENZUR, Gabriel. Cuando digo intersex. Um dialogo introduc-
torio a laintersexualidad. Cadernos Pagu(24), Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/
Unicamp, 2005.

FAUSTO-STERLING, Anne. Os cinco sexos: porque macho e fêmea não são o bas-
tante. Livremente traduzido por Alice Gabriel. Originalmente o texto aparece em The
Sciences March/April. 1993, p.20-24.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-


1976), (trad. de Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001.

MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produ-
ção do sexo (como se fosse) natural. Cadernos Pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.
249-281.

SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução e notas: Guacira Lopes Louro. –
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

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SOBRE A BRANQUITUDE DA TEORIA FEMINISTA: PENSANDO


O CUIDADO, A MATERNIDADE E A
RELAÇÃO COM O OUTRO

Georgia Grube Marcinik


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
georgia_marcinik@hotmail.com

Amana Rocha Mattos


Doutora em Psicologia
Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Social
amanamattos@gmail.com

GT 15 - Intersecções entre gênero, sexualidade e o curso da vida

Resumo

O presente trabalho localiza-se na necessidade de pensarmos a branquitude


constitutiva da teoria feminista, presente nas construções subjetivas do ser
mulher. Neste sentido, propomos uma reflexão – disparada pelos pressupostos
do pensamento de feministas negras e do feminismo interseccional – sobre a
importância de desconstruirmos discursos higienistas e colonizadores do saber
dentro do feminismo branco que acabam por reproduzir e reforçar hegemo-
nias e relações de saber-poder intragênero. Para tal, utilizaremos as discussões
acerca da dimensão do cuidado e os sentidos da maternidade, que são apre-
sentadas recorrentemente como temas universais relacionados à vivência das
mulheres, mas que produzem reverberações divergentes entre os feminismos
negro e branco.
Palavras-chave: Feminismo; Interseccionalidade; Branquitude; Cuidado;
Maternidade.

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Introdução

O presente trabalho localiza-se na necessidade de pensarmos a branqui-


tude constitutiva da teoria feminista, presente nas construções subjetivas do
1

ser mulher, visto que tal condição produz efeitos e divergências dentro de uma
estrutura racializada do gênero dentro do movimento feminista e suas ramifica-
ções. Partimos da inquietação enquanto autoras brancas e acadêmicas, com as
discussões sobre lugares de fala no feminismo como um todo e sobre como os
diálogos com o feminismo negro2 tensionam categorias que o feminismo branco
não vem discutindo, como é o caso da branquitude; ou que vem universali-
zando em suas produções teóricas e críticas, como é o caso da dimensão do
cuidado e os sentidos da maternidade. Tanto o debate sobre o cuidado quanto
sobre a maternidade e seus efeitos sobre a vida das mulheres (direitos sexuais
e reprodutivos, trabalhistas, invisibilidade social, divisão de tarefas domésticas,
etc) são temas que, ao serem pautados pelas feministas, levantam importantes
questões geracionais e relativas aos cursos da vida de mulheres. Propomos uma
reflexão sobre esses temas que discuta os atravessamentos raciais que se fazem
presentes nesse campo de debates.
Ao analisarmos o movimento feminista a partir de uma perspectiva his-
tórica, incontestavelmente, verificamos que sua contribuição – através de lutas
políticas e práticas de resistência – foi (e continua sendo) imprescindível na
conquista, garantia e legitimação de direitos para as mulheres. Por outro lado,
podemos afirmar que a historicidade desse movimento se consolidou através
de um discurso atravessado por uma visão eurocêntrica e universalizante sobre
as mulheres.

1 Entendemos por branquitude a racialização da pessoa branca através dos traços da identidade racial,
ou seja, considerar a branquitude como um marcador social do sujeito, que foi ao longo do tempo
se consolidando e se constituindo normativamente através da interlocução de privilégios históricos
e políticos, é imprescindível para que se entenda a posição sistemática desses sujeitos no que diz
respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo
imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. Portanto, para se entender
a branquitude, é importante entendermos de que formas se constroem as estruturas de poder concre-
tas em que as desigualdades raciais se ancoram (BENTO, 2014; SCHUCMAN, 2014).

2 Não há aqui a intenção e universalização do movimento feminista negro, sabemos da diversidade do


movimento feminista, inclusive de feministas negras e não brancas. Apenas buscamos problematizar
as construções discursivas e reflexivas pela intersecção étnica-racial.

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O feminismo localizado academicamente como clássico, tradicional e até


mesmo hegemônico, começou a ser problematizado na década de 1960 por
mulheres negras norte-americanas3. Segundo Carneiro (2003, p.118), as diferen-
ças e desigualdades presentes no universo feminino não são reconhecidas por
este, o que consequentemente faz com que mulheres vítimas de outras formas
de opressão – não considerando apenas o sexismo – continuem sendo silencia-
das e invisibilizadas neste espaço. Assim, refletindo sobre o contexto brasileiro,
a autora afirma que há uma “insuficiência teórica e prática (...) para integrar as
diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e
pluriculturais”. Essas problematizações “(...), vêm exigindo a reelaboração do
discurso e [das] práticas políticas do feminismo. E o elemento determinante
nessa alteração de perspectiva é o emergente movimento de mulheres negras
sobre o ideário e a prática política feminista no Brasil”.
Neste sentido, propomos uma reflexão – disparada pelos pressupostos
do pensamento de feministas negras e do feminismo interseccional – sobre a
importância de desconstruirmos discursos higienistas e colonizadores do saber
dentro do feminismo branco que acabam por reproduzir e reforçar hegemo-
nias e relações de saber-poder intragênero. Ao mesmo tempo, buscaremos
fazer uma reflexão sobre a branquitude constitutiva da teoria feminista. Para
tal, utilizaremos as discussões acerca da dimensão do cuidado e os sentidos
da maternidade, que são apresentadas recorrentemente como temas universais
relacionados à vivência das mulheres, mas que produzem reverberações diver-
gentes entre os feminismos negro e branco.

Feminismo negro e interseccionalidade: tensionando a


branquitude da categoria “mulher”
A diversificação das concepções e práticas políticas que a ótica das
mulheres dos grupos subalternizados introduzem no feminismo é
resultado de um processo dialético que, se, de um lado, promove
a afirmação das mulheres em geral como novos sujeitos políticos,
de outro exige o reconhecimento da diversidade e desigualdades
existentes entre essas mesmas mulheres (CARNEIRO, 2003, p.119).

3 Que denominam este feminismo como sendo o “feminismo branco”, devido à invisibilidade confe-
rida às questões de raça dentro do movimento.

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O movimento feminista negro começa a emergir no Brasil a partir de


1980, ao elaborar uma agenda específica que busca combater tanto as desigual-
dades de gênero como intragênero, visibilizando a condição específica do ser
mulher negra e, que na maioria das vezes, está atravessada por outros marcado-
res sociais, como, por exemplo, classe social/econômica e raça. Neste sentido,
o combate ao racismo e a discriminação racial se torna uma prioridade política
para esses sujeitos (CARNEIRO, 2003).
A constante insistência em dar visibilidade ao discurso marginalizado de
mulheres negras, investigando como marcadores sociais atravessam os sujeitos
nessas produções de saberes e práticas de resistência é um ponto crucial para
entendermos e ressignificarmos o papel dos discursos feministas nas diversas
questões que envolvem os processos de subjetivação das mulheres.
Segundo Brah (2006, p. 341), não podemos analisar isoladamente os
problemas que afetam as mulheres, sequer universalizá-los: “Dentro dessas
estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas
como categorias diferenciadas”, isto é, os discursos de feminilidades assumem
significados específicos a partir das diferentes trajetórias que atravessam não
apenas as questões de gênero, mas de raça, classe e geração.
Para tanto, a abordagem interseccional considera a diversidade e as dife-
renças organizadas pelos diversos marcadores sociais – raça, etnia, classe,
orientação sexual, gênero, geração, entre outros – para compreender critica-
mente a produção de desigualdades sociais e provocar novas formas de pensar
o lugar das diferentes possibilidades de ser sujeito, inclusive academicamente.
Constitui-se assim um contexto mais abrangente que amplia a visibilidade de
identidades e experiências de sujeitos na cena pública; experiências e identi-
dades sociais que se articulam através do complexo cruzamento de diferentes
marcadores sociais da diferença (BRAH, 2006; CRENSHAW, 1994).
Crenshaw (1994) nos convoca a refletir, através do conceito de intersec-
cionalidade, sobre a desconstrução de uma perspectiva universalizante da(s)
mulher(es) e de estereótipos que são produzidos a partir das concepções
dominantes, neste caso, do feminismo branco – propondo uma agenda anties-
sencialista que possa mediar as constantes tensões entre as afirmações sobre
as múltiplas identidades e a contínua necessidade em se fazer políticas grupais.
Brah (2006) propõe compreender a racialização do gênero através da intersec-
cionalidade das diferenças:

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Discussões sobre o feminismo e o racismo muitas vezes se centram


na opressão das mulheres negras e não exploram como o gênero
tanto das mulheres negras como das brancas é construído através
da classe e do racismo. Isso significa que a “posição privilegiada”
das mulheres brancas em discursos racializados (mesmo quando
elas compartilham uma posição de classe com mulheres negras)
deixa de ser adequadamente teorizada, e os processos de domina-
ção permanecem invisíveis (BRAH, 2006, p. 351).

Compreender o impacto das diversas discriminações e exclusões sociais


que as questões étnico-raciais produzem é insuficiente. Por meio de novos
modos de constatação sobre a pluralidade de subjetivações da mulher, os femi-
nismos negro e branco precisam ser “tratados como práticas discursivas não
essencialistas e historicamente contingentes” (BRAH, 2006, p.358), podendo
trabalhar em conjunto mediante articulações políticas e práticas feministas
antirracistas e de uma análise conceitual das questões de diferença, que servem
de maneira pontual para determinadas lutas e pautas.
A partir das observações expostas, exploraremos esse debate em uma
discussão mais específica a respeito do cuidado e da maternidade dentro dos
discursos destes feminismos, assunto este, que ainda traz inquietações sobre os
atravessamentos da branquitude nos mesmos.

Sobre a dimensão do cuidado e os sentidos da maternidade

Para pensarmos o debate acerca do cuidado com o outro e a maternidade


a partir dos pressupostos de teóricas feministas, precisamos entender que a
todo o momento essas questões estão sendo produzidas socialmente e atraves-
sadas constantemente pelos discursos de gênero, lugares sociais e geracionais.
Podemos afirmar que há um silenciamento dos corpos femininos – a partir de
discursos naturalizados pela sociedade – que acabam por reproduzir e reforçar
posições de iniquidade de papeis e lugares sociais inerentes aos modos de sub-
jetivação dos sujeitos (MATTOS; PÉREZ; ALMADA; CASTRO, 2013).
Há um reconhecimento por parte das feministas brancas e negras de que
o papel – construído socialmente – da mulher e/ou do feminino está (ainda)
diretamente associado ao cuidado do outro e à maternidade, logo, ocupam
espaços direta ou indiretamente relacionados ao âmbito doméstico, da ordem
do privado. Entretanto, esses espaços são ocupados de diferentes formas por

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diferentes mulheres quando, além de relacionarmos o cuidado e a materni-


dade às problematizações de gênero, interseccionalmente consideramos outros
marcadores sociais como raça, classe e geração, por exemplo. Discussões que
aparentemente são universais para o feminismo branco e que visam a reestrutu-
ração dos papéis e a quebra deste silenciamento cotidiano, para que possam ter
reconhecimento em outras esferas além da do cuidado e maternidade – como
por exemplo o âmbito profissional – são vistas através de diferentes perspectivas
entre as feministas negras e brancas.
Primeiramente, sabemos que ao relacionarmos o cuidado ao feminino,
não podemos deixar de observar que tais normatizações são representadas nos
diferentes cursos da vida. Por exemplo, os cuidados de crianças e pessoas mais
velhas que mulheres exercem são marcados por processos de interação que
são construídos a partir da ideia de ética do cuidado, isto é, o cuidado é visto
como uma necessidade que implica em uma relação para com o outro e que ao
mesmo tempo resulta na aceitação do sujeito que cuida (reincidentemente femi-
nino) à uma responsabilização deste (SEVENHUIJSEN, 1998). Segundo Castro
(2001), as diferenças intergeracionais do cuidado são estruturadas de acordo
com “os cursos da ação para esses sujeitos, ou seja, o contexto de condições
que possibilitam a ação para ambos” (p.43). Assim, podemos dizer que tais
relações não devem ser pensadas como “naturais”, mas como uma construção
social que produz valores e arranjos sociais.
Ao considerarmos estas afirmações, podemos ressaltar a necessidade de
problematizar as dimensões do cuidado nas discussões entre as feministas bran-
cas e negras. A branquitude presente na teoria feminista não possibilita uma
reflexão plural do cuidado, essencializando uma dimensão que não deve ser
monopolizada, mas sim, repensada através das intersecções de raça (atravessa-
das também por classe). Segundo hooks (1995):
O sexismo e o racismo atuando juntos perpetuam uma iconografia
de representação da negra que imprime na consciência cultural
coletiva a ideia de que ela está neste planeta principalmente para
servir aos outros. Desde a escravidão até hoje o corpo da negra
tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de
uma presença feminina natural orgânica mais próxima da natureza
animalística e primitiva (p.468).

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Assim, a discussão que o feminismo branco, acadêmico vem fazendo sobre


a maternidade e questões reprodutivas (aborto, contracepção, educação infan-
til, cuidados parentais, etc.) acaba por referenciar e reificar um corpo feminino
branco, cisgênero, privilegiado economicamente, ainda que essa referência não
seja explícita na maior parte das vezes. Observamos essa marca nas discussões
sobre aborto, por exemplo, que recorrentemente pautam concepções de corpo,
autonomia e liberdade da mulher atravessadas por pressupostos liberais, em que a
“escolha” e a noção de corpo individual trazem, de maneira implícita, marcas his-
tóricas do corpo e da experiência de mulheres brancas de classes mais favorecidas.

Considerações finais

Neste trabalho, discutimos como o silenciamento de questões raciais, que


não perspectivam a branquitude dos conceitos tidos como universais no feminismo,
excluem reflexões necessárias e prementes da pauta teórica e prática do campo,
contribuindo para a marginalização de experiências de mulheres não-brancas em
relação ao cuidado e às questões relacionadas à maternidade e reprodução.
Legitimar e reivindicar a desconstrução de papéis femininos universalizados
de cuidado e maternidade para que se possa ocupar outros lugares transgresso-
res que buscam a ascensão social/política/econômica presente no discurso do
feminismo branco exige reconhecer que, considerando as estruturas de sexismo,
racismo e capitalismo presentes em nossa sociedade, está presente no feminismo
branco sempre o risco de continuidade na (re)produção de formas de opressão.
Se tomarmos como exemplo o cenário brasileiro, relacionando o escravismo ao
trabalho doméstico, percebemos que através da renúncia da mulher branca em
ocupar estes espaços, eles acabam por ser naturalizados – histórica e socialmente
– pela doméstica, mulher negra, de classes populares (DAVIS,2005).
Esta hegemonização de saberes sobre o ser mulher, o cuidado e a mater-
nidade através da branquitude da teoria feminista coloca grupos (atravessados
por outros marcadores interseccionais) em maior situação de vulnerabilidade
e exclusão social, o que permite que diversos dos espaços que estão em luta
política de equidade de gênero, continuem sendo espaços de opressão. Para
tanto, vemos a importância da ressignificação das relações raciais, de cuidado
e maternidade como potencialidades políticas, pois é através da afetação das
relações com o outro e do deslocamento naturalizado da branquitude que as
infinitas possibilidades de subjetivação e diferença poderão ser visibilizadas.

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Referências

BENTO, M. A. S. “Branqueamento e branquitude no Brasil” Em I. Carone, M. A. S.


Bento (Orgs.) Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre branquitude e branquea-
mento no Brasil (pp. 25-57). Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu (26), Janeiro-Junho de


2006: p. 329-376.

CARNEIRO, S. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, v.17, n.49, São Paulo,


Set./Dez. 2003; Disponível em: Estud. av. vol.17 no.49 São Paulo Sept./Dec. 2003.

CASTRO, L.R.. Da invisibilidade à ação: Crianças e jovens na construção da cultura.


In: Lucia Rabello de Castro (Org.), Crianças e jovens na construção da cultura (p.
19-46). Rio de Janeiro: FAPERJ/NAU.

CRENSHAW, K. W.. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and


Violence Against Women of Color. In: Martha Albertson Fineman, Rixanne Mykitiuk,
Eds. The Public Nature of Private Violence. New York: Routledge, 1994, p. 93-118.

DAVIS, A. Y. Mujeres, raza y classe. 2ª Edicion. Madri: Akal, 2005.

HOOKS, B. Intelectuais Negras. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464,


jan. 1995.

MATTOS, A. R.; PEREZ, B. C.; ALMADA, C. V. R.; CASTRO, L. R.. O cuidado na


relação professor-aluno e sua potencialidade política. Estudos de Psicologia (Natal.
Online), v. 18, p. 369-377, 2013.

SCHUCMAN, L. V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierar-


quia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.

SEVENHUIJSEN, S. Citizenship and the ethics of care: Feminist considerations on jus-


tice, morality and politics. Londres, Nova York: Routledge, 1998.

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SUJEITOS DESVIANTES: MULHERES, INSTITUIÇÕES


REGULADORAS E ABANDONO SOCIAL

Roberta Olivato Canheo


Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Mestranda em Direito e Sociologia no Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF)
rocanheo@gmail.com

GT 15 - Intersecções entre gênero, sexualidade e o curso da vida

Resumo

O presente artigo pretende visibilizar o abandono social a que estão predestina-


das as mulheres compreendidas como seres desviantes (outsiders). Objetiva-se
demonstrar de que maneira poder, normalidade e gênero se interseccionam,
tendo como foco as trajetórias de vida de mulheres dentro de instituições
reguladoras, em especial manicômios, hospitais psiquiátricos e penitenciárias.
Assim, também a loucura e a criminalidade são colocadas aqui como conceitos
moldados de acordo com padrões históricos e culturais específicos, sendo que
para as mulheres, a exigência de conformidade com padrões de gênero e de
normalidade faz-se portanto evidente.
Palavras-chave: abandono; sexualidade; gênero; desvio; instituições reguladoras

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Em “Antropologia do Devir: Psicofármacos – abandono social – desejo”,


João Biehl analisa de que maneira a reflexão sobre psicofármacos de uma mulher
chamada Catarina denota um sistema de valores vigente no qual a subjetivação
dominante encontra-se a serviço do capitalismo. Catarina, mulher transformada
em figura abjeta, tanto pela família como pela medicina, encontrava-se aban-
donada no Vita, um asilo em Porto Alegre. Catarina acreditava que a família
não se lembrava dela, e contava que quem a havia mandado para o hospital
psiquiátrico era o ex-marido, sendo que seus irmãos também a haviam deixado
no Vita (BIEHL, 2008 p. 414-417), instituição do tipo “casa geriátrica”, não inco-
mum, onde se encontram abandonados de várias idades e que não raramente
recebe verbas de organizações filantrópicas ou estatais (BIEHL, 2008 p. 425).
Durante toda a sensível narrativa de Biehl, o abandono se faz presente,
marcado intensamente por um recorte de gênero. Este abandono não se mate-
rializa apenas em relação ao destino final traçado para Catarina – esperar a
morte em um asilo –, mas em diversos contextos sociais, mediados por institui-
ções como prisões e manicômios, aos quais as mulheres estão inseridas. É o que
se pretende demonstrar neste trabalho.
Voltando à história de Catarina, relatava ela que sua “ex-família” a con-
siderava o resultado de um tratamento médico mal sucedido, o que era usado
para justificar seu abandono, que “tinha uma história e uma lógica sobre as
quais ela não tinha autoridade simbólica”. Seu discurso sugeria ainda que hoje
é possível que nos tornemos coisas médico-científicas e ex-humanos, quando
assim conveniente para os outros (BIEHL, 2008, p. 419). Quando demandado
aos funcionários o motivo pelo qual Catarina estava ali, respondiam que era
“louca” ou que estava “fora da casinha”, adjetivos e expressões comumente
dirigidos às mulheres nas mais diversas situações (BIEHL, 2008, p. 426).
Todavia, Biehl percebe no decorrer da pesquisa que os relatos de Catarina
acerca da família e dos caminhos médicos por ela percorridos coincidiam com
as informações descobertas através de arquivos e do campo. A história dessa
mulher já é marcada de início por um primeiro abandono, o de seu pai, sendo
ela confinada à vida doméstica, vez que “ela tinha que cuidar da casa enquanto
os irmãos menores ajudavam a mãe na roça” (BIEHL, 2008, p. 428-429). Mais
tarde, um segundo abandono apresenta-se, desta vez o de sua mãe, que adoen-
tada, fora deixada para morar com ela e sua família, ainda que Catarina tivesse
outros irmãos, o que fortalece a ideia de que mulheres devem ser cuidado-
ras, acolhedoras e zeladoras dos membros da família. Na mesma época, mais

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abandonos: Catarina começa a apresentar dificuldades para andar, o que gera


a demissão da fábrica em que trabalhava, e descobre que seu marido a estava
traindo. Após a separação, o ex-marido também passou a guarda da filha mais
nova do casal a seu patrão, e em relação aos irmãos, havia um sentimento de
desobrigação em cuidar dela, já que defendiam que ela havia sido passada para
o marido no momento do casamento, pensamento moral machista ainda resis-
tente nas tessituras de nosso cotidiano. (BIEHL, 2008, p. 432-436)
Na análise dos diversos prontuários, os diagnósticos variavam, “de ‘esqui-
zofrenia’ e ‘psicose pós-parto’ a ‘anorexia’ e ‘anemia’, passando ainda por
‘psicoses não determinadas’ e ‘desordens de humor’”. Os sintomas psiquiátricos
tratados pareciam se confundir com os efeitos da medicação, sem que houvesse
preocupações por parte dos médicos. Esses saberes e técnicas médicos não se
originam somente da intersecção entre normalidade e gênero, mas “de um poder
presente em diversas esferas da sociedade e que pretende padronizar formas de
existência e colonizar o saber médico de acordo com seus interesses” (LIMA,
2016). Durante tais tratamentos, era, outrossim, notória a dificuldade de contato
entre os hospitais e os familiares de Catarina, que muitas vezes era novamente
abandonada em tais estabelecimentos após as altas (BIEHL, 2008, p. 433-434).
Após conversar com os familiares, o autor percebe que apostavam na
futura invalidez de Catarina, tal qual havia ocorrido com sua mãe, sendo que
“seu corpo ‘defeituoso’ tornou-se então uma espécie de campo de batalha, no
qual decisões eram tomadas sobre a sua sanidade”, a partir da premissa de ela
conseguir ou não agir como um ser humano. Sua desumanização e o controle
sobre seu corpo eram, portanto, explícitos (BIEHL, 2008, p. 436).
Por fim, depois de realizado um atendimento a Catarina por geneticis-
tas do Hospital das Clínicas, constatou-se, passados catorze anos desde sua
entrada no mundo psiquiátrico, que ela sofria de uma doença genética respon-
sável pelos danos físicos, mas que sua consciência permanecia inalterada, não
apresentando qualquer patologia mental ligada a essa condição genética. Biehl
completa que, ao revisar outros históricos familiares, observou a recorrência
de mulheres abandonas por seus maridos, sendo que “estratégias econômicas
e reprodutivas, bem como exclusões relacionais, são articuladas ao redor das
portadoras visíveis da referida doença. Estas práticas de gênero afetam direta-
mente o modo como as portadoras vivem e morrem.”. A escolha pelas vidas
que merecem ser vividas apresenta correlação direta com a dominação por
gênero, portanto. (BIEHL, 2008 p. 438-440).

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A história de Catarina não é fato isolado no que diz respeito ao campo da


saúde mental. Os prontuários médicos dos grandes hospitais do início do século
XX no Brasil demonstram que expressões como “‘gênio independente’, ‘não
obedecia ao pai’, ‘separou-se do marido’, ‘escrevia livros’, ‘trabalhava muito’, ‘era
preguiçosa’, ‘apaixonou-se por um rapaz’, ‘cantava o dia todo’, ‘desobedeceu ao
patrão’, ‘reclamava do salário’, ‘inclinações políticas subversivas’” repetem-se
insistentemente, ainda que tais condutas não possam ser compreendidas como
patológicas ou como infrações por si só. Porém, eram consideradas à época
aberrações que escapavam ao estabelecido para as mulheres, e a repetição
indica a tentativa de se afirmar tais comportamentos como traços desviantes.
(LIMA, 2016). E é constante a indicação de familiares como responsáveis pela
internação como também pela alta clínica dessas mulheres.
Daniela Lima, citando a pesquisa de Vacaro (2011) sobre os prontuários
das mulheres na década de 1930 no Sanatório Pinel em São Paulo, apresenta
o caso de M. de P, que contava com 21 anos à época da internação, cuja
“doença” fora toda fundamentada e comprovada por elementos fornecidos por
seu irmão. A busca por autonomia ou ainda as crises relativas aos papéis dele-
gados compulsoriamente às mulheres já configurava um sinal de demência ou
de desequilíbrio mental diante das instituições reguladoras. A base para a deci-
são de internação e os diagnósticos eram quase que exclusivamente feitos a
partir dos relatos do pai, do marido ou de irmãos, em detrimento de categorias
médicas de avaliação.
Para Vacaro, além dos inúmeros elementos, como ilusões, alucinações,
com que se operava a definição de loucura, vislumbravam-se outros compo-
nentes, não considerados pelo saber médico como menos científicos, “como,
por exemplo, pudor, indiferença pelo meio social ou pela família” (VACARO,
2011, pp. 10-11 Apud LIMA, 2016). A partir do estudo dos prontuários enten-
de-se que o “desvio de conduta” das mulheres poderia levar à descoberta de
outros meios femininos de experiência que por se apresentarem como mudan-
ças foram punidos com o confinamento. (VACARO, 2011, p. 14).
A afirmação de que as mulheres eram loucas e mentirosas por seus fami-
liares era, assim, comum, e uma leitura atualizada desses prontuários indica
também a tentativa de encobrir abusos no âmbito doméstico através da acusa-
ção de loucura. Nas palavras de Daniela Lima, “gênero e loucura são moldados
de acordo com padrões históricos e culturais específicos. Para ambos, a exigên-
cia de conformidade com padrões de gênero e de normalidade” (LIMA, 2016).

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O abandono de mulheres não se apresenta exclusivamente nas institui-


ções sanatórias, mas sim em todas as instituições reguladoras. Um segundo
exemplo emblemático é o fenômeno observado nas instituições carcerárias.
O Livro “Presos que menstruam” de Nana Queiroz (2015), traz relatos
muito elucidativos para se enxergar essa realidade. Em um dos momentos, a
autora demonstra sua indignação com as condições da cela destinada ao con-
finamento em uma das penitenciárias, no que o carcerário lhe responde que
não havia um castigo alternativo a ser recomendado à diretora. Quando indaga
sobre a possibilidade de se proibirem as visitas por algum tempo, ele rebate
dizendo “— Aí é que está: esse castigo a vida já deu pra elas. Quase nenhuma
recebe visitas” (QUEIROZ, 2015, p. 109).
A autora pontua ainda que ao ser preso um homem, geralmente sua famí-
lia espera pelo seu regresso, em casa, ao passo que ao ser presa uma mulher,
nota-se que comumente ela é abandonada pelo marido, perde a casa, e seus
filhos são entregues aos familiares e abrigos. “Enquanto o homem volta para um
mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo” (QUEIROZ,
2015, p. 44).
A história do direito ao sexo nos presídios escancara também uma grande
assimetria no tratamento dispensado aos homens e às mulheres. A Lei de
Execução Penal prevê, desde 1984, a visita do cônjuge como um direito de
condenados e de presos provisórios. Apesar de haver certa discussão sobre
o texto, acerca da necessidade ou não da continuidade da vida sexual para
se ter acesso ao direito de visita do cônjuge, considerou-se que nos presídios
masculinos, sendo um direito ou um benefício, “a visita íntima deveria ser con-
cedida — afinal, não pensavam em maneiras mais eficientes de conter o ‘natural
instinto violento masculino’ do que saciando ‘o incontrolável impulso sexual
intrinsecamente masculino’”.
Apesar de a lei não mencionar gênero em nenhum momento, enten-
deu a administração penitenciária que este direito deveria ser concedido tão
somente aos homens condenados e presos provisórios. Essa desconsideração
da visita íntima nas prisões femininas perdurou até março de 1991, quando
uma resolução publicada pelo Ministério da Justiça recomendou que o direito
fosse assegurado aos presos de ambos os sexos. Apenas então em 2001, ativis-
tas, durante o primeiro encontro do Grupo de Estudos e Trabalhos Mulheres
Encarceradas, conseguiram que os diretores e diretoras de unidades femininas
se comprometessem a proporcionar a visita íntima. Alcançado o direito, após

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a realização de levantamentos, de separarem o local, traçarem as regras, trans-


pareceu, todavia, o desinteresse por parte dos companheiros. (QUEIROZ, 2015,
p. 132-133)
— Quando se conseguiu esse direito: cadê os homens? — conta
Sônia Drigo, advogada que estava envolvida com o trabalho à
época. — A gente achou que teria muito mais interessados, mas
não existe companheiro pra isso. Não existe parceiro que se sub-
meta à vergonha da revista íntima, que vá e mantenha a relação
afetiva. Nossa sociedade é simplesmente (ainda) assim: a mulher é
fiel ao homem e ele não é fiel à mulher. Logo, arruma outra lá fora
e deixa de ir. (QUEIROZ, 2015, p. 133)

Através dos relatos, resta evidente que tanto as instituições como a própria
sociedade são coniventes e produtoras do abandono das mulheres, em especial
quando essas mulheres são diferenciadas por apresentar um comportamento
tido por desviante. Segundo Becker (2008, p. 18-20), uma das concepções mais
comuns de desvio é a que “o identifica como algo essencialmente patológico,
revelando a presença de uma doença”, sendo que esta noção de patologia
incita discordâncias quando é o comportamento que é descrito como desviante
ou não. A concepção de desvio pode também ser apenas estatística, que iden-
tifica o desviante como aquele que diverge excessivamente à média, estando
esta concepção muito longe da “preocupação com a violação de regras que
inspira o estudo científico dos outsiders”.
Há ainda a concepção funcional de desvio, que considera as funções ou
metas de um grupo e aquilo que ajudará ou atrapalhará sua realização. Para o
autor, essa concepção ignora o aspecto político do fenômeno, limitando a com-
preensão. Mas a principal concepção de desvio é a sociológica, a partir da qual
o desvio ou o desviante são conhecidos pelas regras socialmente impostas e
pela reação social à figura de quem se tornou um desviante. E aqui, entendendo
que o desvio e o desviante são produtos dessas regras e dessa reação social,
devemos nos concentrar atentamente a um estudo sociológico e criminológico
da Sociedade e das Instituições, em especial daquelas reguladoras, objeto de
análise neste artigo (BECKER, 2008, p. 20-21).
O pensamento de Becker suscita questões fundamentais acerca do que
é o desvio e quem é o desviante, possibilitando uma melhor compreensão do
que faz de um ser um indivíduo desviante. Pela sua análise, conclui-se que o

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desviante é produzido a partir de alguém ou de algo, e não constitui uma cate-


goria com vida própria, que possui vida em si mesma. A produção deste desvio,
o qual produz o outsider, se dá de fato pela imposição social de regras. Assim,
o chamado “outsider” é aquele que por alguma razão, seja ela qual for, não
se fixa ao regulamento arbitrado socialmente, mantendo-se distante de certos
padrões colocados por esse regulamento.
Nesse contexto, ao analisarmos as trajetórias de vida e relatos dessas
mulheres em instituições reguladoras, resta evidente que são seres produzidos
fora da norma, são vistas como outsiders, e a abjeção existente é referente a
esses corpos cujas vidas não são tidas como vidas, cuja materialidade é vista
como não importante, cujo abandono é o único destino previsível.

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Referências bibliográficas

BECKER, Howard S. (2008). Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro:


Zahar. Disponível em <https://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2010/10/
becker-howard-s-outsiders-estudos-de-sociologia-do-desvio.pdf>. Acesso em 15
nov. 2015.

BIEHL, João. (2008). “Antropologia do Devir: Psicofármacos – abandono social –


desejo”. Revista de Antropologia, 51(2):413-449. Disponível em: http://joaobiehl.net/
wp-content/uploads/2009/07/Biehl-2008-RevAntropologia2.pdf. Acesso em 15 nov.
2015.

LIMA, Daniela. Aproximações entre movimento feminista e antimanicomial. Blog da


boitempo, jan. 2016. Disponível em <http://blogdaboitempo.com.br/2016/01/12/apro-
ximacoes-entre-movimento-feminista-e-antimanicomial/>. Acesso em 15 jan. 2016.

QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015, 1a ed.

VACARO, Juliana Suckow. A Construção do Moderno e da Loucura: Mulheres no


Sanatório de Pinel de Pirituba (1929-1944). São Paulo, Universidade de São Paulo,
2011.

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“A LUTA CONTINUA, COMPANHEIROS (MAS NÃO


PARA TODOS)!”: A HETERONORMATIVIDADE NO
SINDICATO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Henrique de Oliveira Santos


Bacharel em Direito (UERJ)
Membro do GT-Carreira do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (SINTUFRJ / UFRJ)
hosantos@hucff.ufrj.br

Diego Santos Vieira de Jesus


Doutor em Relações Internacionais (PUC-Rio)
Professor Adjunto do Programa de Mestrado Profissional em
Gestão da Economia Criativa da Escola Superior de Propaganda e
Marketing do Rio de Janeiro (ESPM-Rio)
dvieira@espm.br

GT 16 - Relações de gênero, diversidade sexual, trabalho, tecnologia e educação


profissional: interlocuções, diálogos e desafios contemporâneos

Resumo

O objetivo é examinar o esvaziamento das discussões sobre direitos civis e trabalhis-


tas LGBT no Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (SINTUFRJ). O argumento central aponta que o SINTUFRJ assumiu
papel primordial na mobilização contra a precarização do trabalho dos técnico-
-administrativos em educação (TAEs) na UFRJ e nas demais universidades federais
no Brasil. Entretanto, o engajamento do SINTUFRJ na transformação dos TAEs em
sujeitos políticos e sociais não pressupôs a eliminação de padrões heteronormativos
no estabelecimento de objetivos, estratégias e mecanismos de reivindicação sindi-
cais, de forma a se enfraquecer a atuação do grupo de trabalho LGBT do SINTUFRJ
e se reduzir o peso das temáticas LGBT nas propostas do sindicato.
Palavras-chave: heteronormatividade; sindicalismo; técnico-administrativo em
educação; globalização; universidades federais.

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Introdução

O Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ), o SINTUFRJ, tem como papel principal lutar pela valori-
zação dos trabalhadores técnico-administrativos em educação (TAEs) da UFRJ.
Seu papel é fomentar na base as discussões e formular propostas para encami-
nhá-las às plenárias nacionais da Federação de Sindicatos dos Trabalhadores
Técnico-Administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil
(FASUBRA), que tem por objetivo reunir todos os sindicatos de base dos TAEs
das universidades públicas federais do Brasil. O SINTUFRJ tem uma relevância
muito grande pela sua dimensão e importância para as universidades públicas
federais do Brasil, já que orienta as discussões nas demais universidades públi-
cas federais. A FASUBRA traz para discussão as decisões das bases e formula
as propostas a serem discutidas pelos servidores e o Governo Federal, o que
baliza as políticas a serem instituídas pela Administração Pública para regular
as relações de trabalho dos TAEs (SINTUFRJ, 2016, p.3-4). Nesse diapasão, o
SINTUFRJ propôs a criação do GT-LGBT para discutir as questões pertinentes
a essas temáticas junto aos TAEs da UFRJ. Apesar da iniciativa de criação desse
GT, observamos o papel secundário que as discussões em torno de direitos civis
e trabalhistas LGBT têm no Sindicato, o que se confirma pelo funcionamento
quase nulo do GT.
Em novembro de 2014, ocorreu o primeiro Seminário LGBT da FASUBRA,
que girou em torno de discussões sobre direitos civis e trabalhistas da comu-
nidade LGBT. No que diz respeito aos direitos civis, foi realizada uma crítica
à cultura heteronormativa e constatada a necessidade do estabelecimento de
vínculos entre os movimentos sindical e LGBT, de forma a enfrentar posições
conservadoras manifestas por congressistas em nível federal. Em relação aos
direitos trabalhistas, foram destacados os desafios do preconceito no ambiente
de trabalho e no próprio movimento sindical, sendo debatidas iniciativas para o
levantamento de demandas como uso do nome social e diretos previdenciários;
a produção de cartilhas que abordem especificamente tais demandas como a
do  Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS  (UNAIDS); e a
busca por igualdade de oportunidades promovida pela Internacional de Serviços
Públicos (ISP) visando a combater o preconceito e a discriminação também no
movimento sindical. Dentre as propostas feitas pelo seminário, cabe destacar o
incentivo às entidades de base para a realização de seminários sobre a temática

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LGBT, a promoção de discussão das temáticas LGBT em Plenárias e GTs e a


construção de parcerias e apoios mútuos de movimentos sociais LGBT para
atividades e campanhas com o intuito de conquistar e garantir direitos civis da
população LGBT (FASUBRA, 2014). Entretanto, desde então, pouco se avançou
no debate sobre as temáticas LGBT nos sindicatos da categoria, inclusive no
SINTUFRJ. As discussões sobre as temáticas LGBT contam com a participação
de pouquíssimos membros, e menções apenas breves a tais questões são feitas
nos documentos produzidos pelo sindicato e no seu próprio website. Em junho
de 2016, o GT-LGBT do Congresso do SINTUFRJ não pôde ser realizado por
“falta de quórum”.
Baseando-se na Teoria Queer, tal qual desenvolvida por Richard Miskolci
(2016), o objetivo é examinar o esvaziamento das discussões em torno de direi-
tos civis e trabalhistas de servidores técnico-administrativos LGBT no Sindicato
dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(SINTUFRJ). O argumento central aponta que o SINTUFRJ assumiu papel pri-
mordial na mobilização contra a precarização do trabalho dos TAEs na UFRJ
e nas demais universidades federais no Brasil em face da dinâmica excludente
do processo de globalização e seus impactos nas condições de trabalho nes-
sas instituições de ensino superior. Entretanto, o engajamento do SINTUFRJ na
transformação dos TAEs em sujeitos políticos e sociais não pressupôs a elimina-
ção de padrões heteronormativos no estabelecimento de objetivos, estratégias
e mecanismos de reivindicação pelos membros do sindicato, de forma a se
enfraquecer a atuação do grupo de trabalho LGBT do SINTUFRJ e se reduzir
o peso das temáticas LGBT nas propostas do sindicato. Não se gera, assim, o
reconhecimento pleno da diferença na sua dimensão de riqueza, pré-requisito
para uma luta que enseje uma transformação social mais ampla.

O técnico administrativo em educação enquanto sujeito político


e social: o papel do SINTUFRJ

Um dos efeitos da globalização é a precarização das condições de traba-


lho de modo geral, inclusive atingindo os trabalhadores técnico-administrativos
em educação no Brasil, o que gera a sua objetificação. Os sindicatos das uni-
versidades públicas brasileiras podem ser locais de luta pela transformação
dessa lógica de objetificação dos servidores na estrutura contemporânea da

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educação superior no Brasil para sua colocação enquanto sujeitos políticos e


sociais (SANTOS, 2000, p.29; OLIVEIRA, 1999).
A luta do SINTUFRJ contra a precarização das relações de trabalho dos
TAEs resultante do processo de globalização tem sido constante e pode-se,
portanto, observar que o sindicato em tela tem papel fundamental na luta
pelos direitos dos TAEs da UFRJ. Essa luta se enquadra nos objetivos gerais do
SINTUFRJ, que podem ser resumidos conforme se segue: lutar pela melhoria
e preservação das condições de trabalho da categoria; lutar em defesa dos
direitos e interesses individuais e coletivos dos trabalhadores e trabalhadoras
da UFRJ; lutar em defesa das liberdades individuais e coletivas, pelo respeito à
justiça social, pelos direitos  fundamentais de  homens  e  mulheres  e  pelo  fim 
de  toda  e  qualquer  forma  de exploração e opressão; defender a solidariedade
entre os trabalhadores e trabalhadoras da UFRJ para a concretização da paz e
do desenvolvimento em escala global (SINTUFRJ, 2010).

A heteronormatividade no SINTUFRJ

O movimento sindical trouxe ao espaço público demandas de redistri-


buição econômica, mas, ao longo de muito tempo, ignorou as reivindicações
específicas das populações negras, das mulheres e da comunidade LGBT. Em
face de um novo repertório de demandas num cenário político em que as
instituições tradicionais como o Estado passavam a ser questionadas em suas
representatividade e autoridade, os sindicatos viram a necessidade de ampliar o
diálogo com novos movimentos sociais que afirmavam que o privado era político
e a desigualdade ia além do econômica (MISKOLCI, 2016, p.21-22). Ao buscar
a interação com movimentos sociais que lutam pelos direitos civis e trabalhistas
de negros, mulheres e LGBTs, o SINTUFRJ procurou colocar-se formalmente
como um instrumento de emancipação política e humana ao defender ideias no
campo da consciência de classe e de garantia de direitos. O GT-LGBT coloca
que, dentre suas propostas, ocupa papel central o enfrentamento do machismo
e da LGBTfobia em todas as suas formas de manifestação (SINTUFRJ, s.d.). O
sindicato teria, assim, supostamente uma ação voltada para o combate a ações
sistêmicas que criam obstáculos ao usufruto dos direitos de cidadania de pes-
soas com diferentes orientações sexuais e identidades de gênero.
Ainda que o SINTUFRJ tenha assumido papel importante no enfrentamento
da exploração econômica dos TAEs e se mostrado integrado a movimentos

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sociais e populares que se colocam no campo progressista, a defesa formal da


livre orientação sexual e das múltiplas identidades de gênero não necessaria-
mente conduziu ao enfrentamento da discriminação de gênero e sexualidade
no ambiente de trabalho dos TAEs da UFRJ e mesmo dentro do próprio sindi-
cato. Como outras entidades sindicais, o SINTUFRJ sinaliza, com a criação de
um GT-LGBT, a suposta intenção de promover rupturas no sistema capitalista a
partir de uma concepção ampla de emancipação e assim desestabilizar padrões
heteronormativos naturalizados na sociedade com o desenvolvimento das rela-
ções capitalistas de produção (SECRJ, 2015). Entretanto, a criação desse GT
parece ter mais a finalidade de um alinhamento superficial com outros movi-
mentos sociais e a construção de uma causa aparentemente mais democrática
para ganhos em termos de visibilidade e reconhecimento, acompanhado da
assimilação de um discurso transformador da ordem heteronormativa sem um
efetivo endereçamento de crenças e identidades excludentes dos sindicalistas.
Como ficou evidente nas entrevistas realizadas, a maior parte dos mem-
bros do SINTUFRJ naturaliza a heterossexualidade na esfera sindical, como
também esvazia, desconhece ou mesmo desmerece o debate sobre as ques-
tões civis e trabalhistas LGBT. Reitera-se a ligação do sindicalista a uma noção
de masculinidade associada à força, à dureza e até mesmo à agressividade da
luta contínua, que gera, em especial entre os homens, relações de camarada-
gem. “A luta continua, companheiros !” é uma frase constantemente dita pelos
homens sindicalistas nas reuniões do SINTUFRJ. Em vez de contribuir para
reverter uma ordem excludente em termos das identidades de gênero e orien-
tações sexuais, o sindicato acaba por consolidar espaços políticos generificados
e reiterar a dominação dos interesses e das ideologias associadas à masculini-
dade hegemônica no movimento sindical, os quais excluem a população LGBT.
Preservando-se os arranjos patriarcais e heteronormativos dos princípios da luta
sindical, a capacidade de definição da agenda de reivindicações do SINTUFRJ
continua estrategicamente posicionada nas mãos de homens heterossexuais,
que preservam um discurso inclusivo de tolerância e de respeito à diversidade
sem efetivamente promoverem um reconhecimento das diferenças de identi-
dade de gênero e orientação sexual na sua dimensão de riqueza.
O preconceito com relação a homossexuais fica claro em piadas de cunho
machista que os próprios sindicalistas fazem entre eles – “depois de velho, esse
cara [companheiro de sindicato] resolveu escorregar no quiabo” – e no uso
do referencial religioso por alguns membros do SINTUFRJ para condenar a

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orientação sexual dos servidores gays: “Jesus ama o pecador, mas não o pecado
dessa gente”. Observa-se, neste exemplo, a colocação da homossexualidade
como abjeção, espaço no qual a coletividade insere aqueles classificados como
ameaças ao bom funcionamento e à ordem social (MISKOLCI, 2016, p.23), inclu-
sive a sindical. Muitos membros do SINTUFRJ mostraram desconhecimento ou
mesmo desprezo em relação às discussões conduzidas pelo GT-LGBT. Ainda
que integrantes do próprio GT recusem valores morais violentos que instituem a
linha de abjeção, eles manifestam a dificuldade de mobilização de outros sindi-
calistas para as discussões do GT, o que justifica a irregularidade na realização
das reuniões e o baixo quórum nos encontros. Muitos temem a ameaça cons-
tante de retaliações e violências pelos próprios membros do sindicato, grande
parte criada e residente em comunidades mais humildes do Rio de Janeiro,
marcadas por valores patriarcais. Por conta disso, muitos membros LGBT do
sindicato adotavam comportamentos heterossexuais tidos como discretos ou
mesmo não revelavam sua orientação sexual no ambiente de trabalho na UFRJ
ou para “companheiros” do próprio sindicato.

Considerações finais

Como lembra Miskolci (2016, p.44), a experiência de abjeção deriva não


só do julgamento negativo do desejo homoerótico, mas do não-cumprimento
das expectativas relacionadas ao gênero e à manutenção da heterossexualidade
como modelo inquestionável. Nesse sentido, se por um lado o SINTUFRJ lutou
para tornar os TAEs sujeitos políticos e sociais, por outro ele contribuiu para
que alguns desses servidores fossem continuamente rotulados como abjetos. O
esvaziamento do GT-LGBT e a permanência da violência no discurso de sindi-
calistas contra gays, lésbicas e transgêneros – mesmo sob a defesa do princípio
de tolerância pelo sindicato – revelam que o foco da luta sindical continua cen-
trado nas questões de redistribuição econômica, mas pouco fez para eliminar,
no ambiente de trabalho na universidade e na sociedade em nível mais amplo,
uma ordem de violência simbólica dirigida àqueles que não se enquadram em
padrões heteronormativos.

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Referências

FASUBRA. Carta do I Seminário LGBT da FASUBRA Sindical. Brasília, 21 nov. 2014.


Mimeo.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2 ed. Belo


Horizonte: Autêntica, 2016.

OLIVEIRA, Francisco. A Face do Horror. Departamento de Sociologia da Faculdade


de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999.
Digitado.

SANTOS, Milton. Por uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência


universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SECRJ. Sindicato marca presença na fundação da UNA-LGBT. SECRJ website, 2015.


Disponível em: <http://secrj.org.br/noticias/sindicato-marca-presenca-na-fundacao-
-da-una-lgbt/>. Acesso em: 23 jun. 2016.

SINTUFRJ. Estatuto do SINTUFRJ. 10 jul. 2010. Disponível em: <http://sintufrj.org.br/


estatuto.html>. Acesso em: 24 jun. 2016.

SINTUFRJ. GT LGBT, s.d. Disponível em: <http://www.sintufrj.org.br/LGBT/>. Acesso


em: 23 jun. 2016.

SINTUFRJ. Jornal do SINTUFRJ. Ano XXIV, n. 1156, 19 abr. - 1 maio. 2016.

VIII Congresso Internacional


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Sexual e de gênero
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A PERSPECTIVA DE RELAÇÕES DE GÊNERO, DESAFIOS PARA


ERGONOMIA: ATIVIDADES DA MULHER TRABALHADORA
QUE OCUPA CARGOS TRADICIONALMENTE MASCULINOS1

Mislene Aparecida Gonçalves Rosa


Mestranda em Educação Tecnológica - Bolsista CNPq
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
misleneag@gmail.com

Raquel Quirino
Pós-Doutora em Educação.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.
Departamento de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
quirinoraquel@hotmail.com

GT 16 - Relações de gênero, diversidade sexual, trabalho, tecnologia e educação


profissional: interlocuções, diálogos e desafios contemporâneos.

Resumo

Este artigo, de natureza teórica e empírica, descreve e aborda algumas con-


dições de trabalho da mulher trabalhadora, sob a perspectiva de relações de
gênero e intervenções ergonômicas. A partir da década de 1970, intensificou-
-se a participação da mulher no mercado de trabalho e, nos últimos anos elas
deixaram de atuar somente naquelas áreas tipicamente femininas para ocupar
espaço em profissões ditas masculinas que exigem força e resistência. Os pro-
blemas abordados são as dificuldades encontradas pelas mulheres trabalhadoras

1 Pesquisa realizada com recursos do Programa Institucional de Fomento à Pesquisa do CEFET-MG


(PROPESQ) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

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entrevistadas nesses ambientes laborais e a necessidade de adaptações ergonô-


micas dos postos de trabalho, de forma a atender as suas necessidades pessoais
para a execução de suas atividades de forma eficiente e segura.
Palavras-chave: RELAÇÕES DE GÊNERO; ERGONOMIA; DIVISÃO SEXUAL
DO TRABALHO.

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1. Introdução

Este artigo apresenta reflexões, apoiadas em fundamentos teóricos e


empíricos, sobre as relações de gênero e ergonomia, sob o ponto de vista da
mulher trabalhadora. Em seus limites, pretende analisar as principais dificulda-
des enfrentadas pelas mulheres, em áreas e profissões tipicamente masculinas,
sob o aspecto ergonômico do trabalho.
A metodologia utilizada na pesquisa teve como base a realização de um
levantamento do referencial teórico a partir de trabalhos científicos publica-
dos, que discutem a inserção da mulher no mercado de trabalho, selecionando
trechos de entrevistas realizadas por suas autoras para correlacioná-los com a
teoria estudada. Também foram realizadas observações diretas das atividades
de trabalho de mulheres operárias, valorizando as informações obtidas em con-
versas informais. A partir das falas dos (as) entrevistados (as), buscou-se construir
categorias de analises discutidas à luz do referencial teórico sobre ergonomia e
divisão sexual do trabalho.
Na década de 1970 observou-se um forte movimento de incorporação
das mulheres no mercado de trabalho e, nos últimos anos, tem-se registrado a
tendência do ingresso de mulheres em cargos tradicionalmente ocupados por
homens (DIEESE, 2012). No entanto a mera descrição de um cargo não equi-
vale àquilo que realmente é feito pelo (a) trabalhador (a), pois, a subjetividade
humana faz com que, mesmo quando homens e mulheres exercem as mesmas
atividades, as tarefas realmente realizadas na prática, são diferentes. Por isso a
abordagem ergonômica, a partir da perspectiva de relações de gênero, torna-se
fundamental para analisar as situações de trabalho, desvelando a vivência das
trabalhadoras em relação à organização do trabalho e evidenciar aquilo que é
fonte de pressões, de dificuldades e de desafios, suscetíveis de gerar o adoeci-
mento e acidentes da mulher operária.
Apesar de já estarem presentes em setores industriais tipicamente mascu-
linos, tais como a mineração (QUIRINO, 2011) e a construção civil (RESENDE,
2012), as mulheres enfrentam, além das dificuldades culturais e sociais, as difi-
culdades de ordem física, por esses setores serem fundamentalmente assentados
em atividades pesadas e que exigem força.
Nesse cenário é necessário discutir como a ergonomia pode contribuir
para melhorar a qualidade de vida no trabalho em uma perspectiva de relações
de gênero, porque, por mais que a igualdade de direitos seja respeitada, homens

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e mulheres têm subjetividades e necessidades biológicas distintas no ambiente


laboral, quer seja nas condições ergonômicas, na organização do trabalho, ou
na especificação dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI) necessários à
atividade desenvolvida.

2. Breves aproximações teórico conceituais

2.1 Divisão sexual do trabalho e relações de gênero


Hirata e Kergoat (2008) defendem que a divisão sexual do trabalho é
resultante das relações sociais, que destinam aos homens o serviço produtivo e
às mulheres o reprodutivo e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das
funções com maior valor social adicionado.
Hirata (2004) também discute a questão da qualificação versus a com-
petência na perspectiva de gênero. Para a autora todas as definições de
competência fazem aparecer figuras e características masculinas: criatividade,
responsabilidade, iniciativa, capacidades técnicas, autonomia no trabalho. As
mulheres raramente estão presentes em cargos que requerem tais característi-
cas. As competências ditas femininas não são reconhecidas nem remuneradas,
são consideradas atributos naturais da mulher, na medida em que não foram
adquiridas pela formação profissional.
No entanto, tal assertiva foi negada por Raquel Quirino (2011) quando,
em sua pesquisa, constatou que as competências “ditas femininas” são extrema-
mente valorizadas no mundo do trabalho da mineração. Porém, não obstante
a essa “pseudo valorização” das competências femininas, Quirino (2011) con-
cluiu que tais habilidades, construídas nas relações sociais travadas no ambiente
doméstico, não têm sido levadas em consideração para a promoção delas a
cargos de comando, prestígio e poder.
Embora observe-se o predomínio das mulheres nas áreas estereotipa-
das como femininas (serviços domésticos, educação, saúde e serviços sociais,
por exemplo), destaca-se o expressivo percentual de mulheres ocupadas na
indústria de transformação (12,4%), setor tipicamente masculino, conforme
pesquisa divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos, DIEESE (2012, p. 217).
De acordo com a relação da Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (CNAE), a indústria de transformação engloba empresas com ele-
vado grau de risco, o que demanda uma atenção maior para promover a saúde

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e proteger a integridade do (a) trabalhador (a), conforme determina a Norma


Regulamentadora – NR 4 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE, 2001).
Portanto, analisar as condições ergonômicas sob o ponto de vista da
mulher trabalhadora em empresas de grau de risco elevado, para identificar pos-
síveis elementos discriminatórios na perspectiva de relações de gênero, torna-se
importante para a promoção da igualdade de oportunidades entre homens e
mulheres.
2.2 Ergonomia
Conforme Daniellou (2004) a Ergonomia é ao mesmo tempo um conjunto
de conhecimentos sobre o ser humano – fisiologia, psicologia, funcionamento
cognitivo – e uma prática de ação, sendo assim pode-se entender a Ergonomia
como sendo o estudo científico da relação entre o (a) trabalhador (a) e seus
meios, métodos e espaços de trabalho. Os trabalhos em Ergonomia têm uma
dupla vertente: desde a redefinição de especificações da compra de mobiliário
e ferramentas de trabalho - Ergonomia física; até a compreensão dos aspectos
mentais da atividade de trabalho das pessoas, homens e mulheres.
Um aspecto importante da Ergonomia é o posto de trabalho; suas fer-
ramentas e elementos devem estar de acordo com as dimensões físicas do
ocupante do posto de trabalho, pois, a inadequação antropométrica produz um
desequilíbrio postural expondo o (a) trabalhador (a) à posições desconfortáveis,
repetitividade dos gestos, maior esforço despendido, fatores causais das doen-
ças ocupacionais (VIDAL et al., 2000).
Todavia a organização do trabalho também deve ser considerada, enten-
dendo a Ergonomia como uma “disciplina para ação sobre o real” (LIMA, 2011,
p.36). Em princípio, a Ergonomia organizacional encontraria muitas dificulda-
des, pois não está fundamentada numa objetividade plena, no entanto, constitui
o campo no qual o (a) trabalhador (a) é percebido como um agente competente
e organizado num sistema de produção, gerando assim maior satisfação no
trabalho.
Em sua atividade de trabalho o ser humano interage com os diversos
componentes do sistema de trabalho, com os equipamentos, instrumentos,
mobiliários e questões subjetivas como hierarquia e gestão organizacional.
Sabe-se que os (as) trabalhadores (as) toleram mal as tarefas fragmentadas, com
tempos curtos para execução, principalmente quando esse tempo é imposto
por uma máquina ou pela gerência; sentem-se bem quando solicitado a resol-
verem problemas ligados à execução das tarefas; logo a Ergonomia busca tratar

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o (a) trabalhador (a) como um ser que pensa e age, não apenas como mero
executor e extensão da máquina (VIEIRA et al., 2008).

3. Adaptação das condições de trabalho

Segundo Santos e Fialho (1998), postos de trabalho devem estar em harmo-


nia com a característica física do ocupante, também a Norma Regulamentadora
17 no item 17.1, determina “parâmetros que permitam a adaptação das condi-
ções de trabalho” (NR-17, 1990).
Nesse sentido, o primeiro questionamento das empresas deveria ser:
quem é este ou quem são esses (as) trabalhadores (as) para quem vou adaptar
o trabalho?
Hirata e Kergoat (1994) afirmam que a classe operária tem dois sexos, esta
afirmação contraria a tendência em apresentar uma imagem de classe operária
relativamente homogênea. As autoras afirmam que as condições de trabalho
dos trabalhadores e das trabalhadoras são quase sempre assimétricas, portanto
analisar em termos de unidade de classe operária sem considerar o sexo social
poderá levar a um conhecimento falso das relações de trabalho.
Segundo dados empíricos da pesquisa de doutorado sobre o trabalho das
mulheres na mineração realizada por Quirino (2011), o setor de mineração vem
gradualmente inserindo mulheres em suas áreas técnico-operacionais. Conforme
entrevista realizada pela autora com um Gerente de Recursos Humanos e um
Diretor Operacional,
“Não há na empresa nenhuma formalização quanto à contrata-
ção de homens ou mulheres para quaisquer áreas ou funções. A
decisão final é do gestor, dono da vaga. Na maioria das vezes é o
supervisor que escolhe com quem quer trabalhar. A variável ‘sexo’
não está presente nas formalizações de contratação da empresa.”
(Gerente de RH)

“A adequação de espaços físicos não é justificativa para a não con-


tratação de mulheres na indústria mineral. É preciso apenas definir
diretrizes claras para contratação e adequação desses espaços.
Quanto se tem o olhar voltado para os resultados, o que importa é o
talento, a competência da pessoa. Não se é homem ou mulher. Os
investimentos em espaços físicos adequados são mínimos quando
comparados ao retorno que se pode obter.” (Diretor Operacional)

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A partir dos relatos dos entrevistados por Quirino (2011) há que se refletir
até que ponto preocupações de natureza ergonômica se fazem presentes nas
políticas de contratação de mulheres pelas empresas. Constata-se que apesar
de os entrevistados afirmarem que não existe impedimento para contratação
de mulheres, a autora adverte que devido a inadequação dos espaços físi-
cos tornou-se um hábito contratar apenas homens para as áreas operacionais
(QUIRINO, 2011, p.75). O que, certamente, compromete a inserção das mulhe-
res nesse setor produtivo.
Resende (2012, p.22), discute a inserção de mulheres nos canteiros de obras
da Construção Civil. Segundo a Norma Regulamentadora 18, referente às condi-
ções e meio ambiente de trabalho na indústria da Construção Civil, canteiro de
obra é definido como “área de trabalho fixa e temporária, onde se desenvolvem
operações de apoio e execução de uma obra”. A autora questiona as entrevista-
das sobre como é trabalhar no canteiro de obras na Construção Civil:
“Facilidades tipo assim, a mulher ela é mais detalhista, entendeu?
Então a gente para fazer um esquadro, para puxar um ponto de
nível, a gente olha mais detalhe a gente faz a coisa mais bem feiti-
nha, entendeu? Agora a dificuldade é a questão de peso, entendeu,
porque você não pode escolher trabalho, entendeu? Hoje, você tá
aqui tirando um pontinho, mas está chapando uma massa, enten-
deu? A dificuldade é o peso.” (Pedreira)
“O ponto fraco, você pega muito peso. É cansativo, né? É muito
estressante. O ponto positivo, assim, é que você entra no mer-
cado... mulher pedreira, gente é uma coisa do outro mundo. Você
aprende coisas que você jamais sonharia em aprender, entendeu?
O difícil mesmo é o peso. É mais pesado, entendeu?” (Servente)

No que se refere às tarefas exercidas no canteiro de obras, os relatos


citados estão de acordo com Tomasi (1999) quando enfatiza que as tarefas são
perigosas, insalubres e demandam uma mão de obra jovem, forte, corajosa e
de boa vontade não só para conviver com essas condições, como também para
adquirir os conhecimentos necessários para a sua execução.
As entrevistadas também confirmam os pressupostos de Ricardo Antunes
(1999) ao afirmar que as empresas se apropriam intensificadamente da polivalência
e multiatividade do trabalho feminino, da experiência que as mulheres trabalhado-
ras trazem das suas atividades realizadas na esfera do trabalho reprodutivo. Para
o autor, ainda que não tenham consciência desse fato, as próprias trabalhadoras

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exaltam tais competências: detalhamento, agilidade, destreza, precisão, fineza,


obediência, paciência, disciplina, responsabilidade, dedicação, delicadeza.
Enfim, as mulheres têm acesso a postos de trabalho tradicionalmente mas-
culinos, mas as relações de trabalho aumentam a precariedade e a instabilidade
de uma grande proporção da força de trabalho feminina, criam e/ou reprodu-
zem condições de trabalho precarizada e um dos resultados desse processo é
que para terem êxito na profissão a “mulher precisa ser considerada homem”.
Constata-se que não basta identificar as desigualdades, é preciso problematizar
as relações sociais de sexo travadas no ambiente laboral de forma coerente e
promover ações coordenadas para transformar as práticas sociais.

4. Considerações finais

A finalidade deste artigo foi correlacionar as dificuldades relatadas por


mulheres trabalhadoras com a classificação de riscos ergonômicos dos seus pos-
tos de trabalho. Compreendendo por risco ergonômico, conforme proposto por
Vidal (2010), a condição ou a prática que traga obstáculos à produtividade, que
desafie a boa qualidade ou que traga prejuízos ao conforto, segurança e bem
estar do (a) trabalhador (a). Este trabalho buscou refletir sobre as peculiarida-
des do trabalho da mulher em ambientes geralmente associados a estereótipos
masculinos.
A preocupação com a ergonomia nos ambientes de trabalho tem assumido
relevância nas empresas, pois a definição da ergonomia coloca em primeiro
plano seu objeto (interação trabalhador (a) e atividade no contexto de trabalho)
e seu objetivo de propor medidas concretas para uma melhor adaptação dos
meios tecnológicos de produção e dos ambientes de trabalho, contribuindo
para a produtividade e para a qualidade de vida do (a) trabalhador (a).
A opção pelo estudo teórico e pesquisa qualitativa acerca dos temas
necessários à compreensão do fenômeno estudado - relações de gênero no
ambiente de trabalho e fatores ergonômicos -, permitiu identificar e analisar
as percepções de mulheres sobre suas próprias condições de trabalho. Visa
também contribuir para que ações promotoras de uma real adaptação das
condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, de
modo a proporcionar um máximo de conforto, segurança e desempenho efi-
ciente, sejam implantadas, conforme os parâmetros estabelecidos na Norma
Regulamentadora 17.

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Brasil. Ministério do Trabalho (MT). Norma Regulamentadora Ministério do Trabalho e


Emprego. NR-4: Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina
do Trabalho. 2001.

DANIELLOU, François. A ergonomia em busca de seus princípios: debates epistemo-


lógicos. São Paulo: Edgard Blücher, 2004.

DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. A situ-


ação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos 2000. São Paulo: DEESE,
2012.

HIRATA, Helena. KERGOAT, Daniele. A Classe Operária tem dois Sexos. Estudos
Feministas. v.2, n. 3, p.93-100,1994.

HIRATA, Helena. O universo do trabalho e da cidadania das mulheres: um olhar do


feminismo e do sindicalismo. In: COSTA, Ana Alice, et. al. (orgs.) Reconfiguração das
relações de gênero no trabalho. São Paulo: CUT, p. 13-20, 2004.

HIRATA, Helena. KERGOAT, Danièle. Divisão Sexual do Trabalho Profissional e


Doméstico: Brasil, França e Japão. In: COSTA, Albertina de Oliveira et. al. (orgs.).
Mercado de Trabalho e Gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: FGV, p.
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LIMA, Francisco de Paula Antunes. Ergonomia, ciência do trabalho, ponto de vista do


trabalho: a ciência do trabalho numa perspectiva histórica. Revista Ação Ergonômica,
v. 1, n. 2, 2011.

QUIRINO, Raquel. Mineração também é lugar de mulher! Desvendando a (nova?!)


face da divisão sexual do trabalho na Mineração de Ferro. Belo Horizonte: UFMG,
2011. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, 2011.

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RESENDE, Maria Cristina. Mulheres em ambientes masculinizados: análise da inser-


ção de mulheres nos canteiros de obras da Construção Civil em duas empresas
de Belo Horizonte: Faculdade Novos Horizontes, 2012. Dissertação (Mestrado em
Administração) – Programa de Mestrado Acadêmico em Administração, Faculdade
Novos Horizontes, Belo Horizonte, 2012.

SANTOS, Neri dos; FIALHO, Francisco. Manual de análise ergonômica do traba-


lho. Curitiba: Gênesis, v. 2, p. 316, 1997.

TOMASI, Antônio de Pádua Nunes. A construção social da qualificação dos tra-


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VIDAL, Mario Cesar et al. Introdução à ergonomia. Apostila do Curso de Especialização


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VIEIRA, Carlos Eduardo Carrusca; BARROS, Vanessa Andrade; ANTUNES LIMA,


Francisco de Paula. Uma abordagem da Psicologia do Trabalho, na presença do traba-
lho. Psicologia em Revista, v. 13, n. 1, p. 155-167, 2008.

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EQUIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO NA ENGENHARIA

Rodrigo Salera Mesquita1


Mestrando em Educação Tecnológica – Bolsista CEFET.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.
rodrigosmesquita@yahoo.com.br

Raquel Quirino2
Pós-Doutora em Educação.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.
Departamento de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
quirinoraquel@hotmail.com

GT 16 - Relações de gênero, diversidade sexual, trabalho, tecnologia e educação


profissional

Resumo

O presente artigo discute questões importantes para a sociedade contempo-


rânea relacionada à equidade e relações de gêneros no mundo do trabalho, e
a participação da mulher nos espaços públicos, no Brasil. Destaca a crescente
escolarização feminina e a conquista de uma área, que até poucas décadas era
de atuação pouco usual ao público feminino: a engenharia. Discussões teóricas
e indicadores sociais denotam a crescente participação feminina nos processos
de escolarização e no mundo do trabalho assalariado, e, no intuito de aprofun-
dar as discussões pela equidade entre gêneros, se faz necessário problematizar
uma área, historicamente, pouco usual à atuação feminina.

1 Mestrando em Educação Tecnológica do CEFET-MG, Licenciado em Letras.

2 Doutora em Educação, Professora do Programa em Educação Tecnológica do CEFET-MG.

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Palavras chave: Mulher na engenharia. Relações de gênero. Equidade de gênero.


Igualdade de gênero

1 Introdução

O presente artigo discute questões importantes para a sociedade con-


temporânea relacionadas às relações e equidade de gêneros nos espaços
educacionais e no mundo do trabalho. Destaca a participação da mulher nos
espaços públicos, sua crescente escolarização e a conquista de uma área de
atuação pouco usual ao público feminino em décadas passadas: a engenharia.
Estudos como os empreendidos por Quirino (2011), sobre a atuação de mulhe-
res no segmento de mineração; Resende (2012) sobre o trabalho feminino na
construção civil; Lombardi (2004) sobre a atuação feminina nas áreas de enge-
nharia evidenciam um avanço das pesquisas acadêmicas sobre as relações de
gênero em áreas tradicionalmente masculinas. Porém, não obstante as discus-
sões teóricas e os indicadores sociais que demonstram a crescente participação
feminina nos processos de escolarização e no mundo do trabalho assalariado,
a problematização de algumas áreas pouco usuais historicamente à atuação
feminina ainda é de suma importância.

2 Igualdade e equidade de gêneros

Idealismos à parte, o que se espera em uma sociedade dita organizada é


uma equidade ou paridade entre os gêneros. Homens e mulheres como par-
tes equilibradas de uma sociedade diferente, porém, não desigual. Mas o que
podemos denominar como equidade de gêneros?
Na definição aristotélica, reconhecida e utilizada pelo Direito Romano,
equidade é um apelo que se faz à justiça para retificar a lei quando ela se
revela insuficiente; é a justiça aplicada ao caso concreto (MAFFETONE e VECA,
2005). Os autores esclarecem que na criação das leis, consideram-se todos os
indivíduos como iguais, tendo as leis caráter universal. É exatamente o caráter
universal da lei que a faz estar sujeita ao erro, pois, sendo os indivíduos diferen-
tes entre si, pode revelar uma imperfeição na lei gerando casos específicos em
que a lei terá difícil aplicação.
Para os casos em que a lei se mostra insuficiente, a equidade surge como
forma de julgar com base na justiça do que a lei se propõe a realizar e, não, na

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lei em si. Na concepção de Kant, o conceito de equidade não está ligado ao


direito e, sim, ao tribunal da consciência. (ALMEIDA, 2006, 209).
Assim, a aplicação do princípio da equidade é inerente ao conceito da jus-
tiça que o direito se propõe a praticar. Enquanto a lei generaliza, considerando
todos iguais, a equidade preenche possíveis lacunas na lei que poderiam causar
injustiças devido ao fato de as pessoas serem diferentes (CORDEIRO, 2014).
Assim, a igualdade ou equidade de gêneros não se constitui em um pro-
blema das mulheres, mas deve ser discutido e buscado plenamente por toda
a sociedade, visto que, trata-se de uma questão de direitos humanos, condi-
ção prévia e indicador de desenvolvimento sustentável dos países. E é com o
fortalecimento dos movimentos feministas que surge à bandeira de luta pela
igualdade de gêneros de forma a ultrapassar os determinismos biológicos.
Para Piazzolla (2008) o feminismo liberal reclama uma igualdade de
gênero, por entender de que as mulheres também são cidadãs e por isso detém
os mesmos direitos que os homens, portanto, deveriam ser incluídas no espaço
público, do qual sempre estiveram excluídas.

3 Escolhas educacionais das mulheres no Brasil

Entre os anos de 2010 e 2014, as mulheres já representam a maior fração


entre os estudantes matriculados nas universidades brasileiras. Em 2010, elas
representavam 56,3% do total de matrículas e 62,4% do total de graduados no
ensino universitário.
As pesquisas do INEP indicam que o percentual médio de ingresso de
mulheres até 2013 foi de 55% do total em cursos de graduação presenciais. Se
o recorte for feito por concluintes, o índice sobe para 60%. Desse total aproxi-
mado de 7,2 milhões de matrículas, 3,9 milhões foram de mulheres, contra 3,2
milhões do sexo oposto (Brasil, 2013).
A despeito do espaço alcançado pelas mulheres nas ciências e da cres-
cente presença feminina do ensino superior, dados do Censo da Educação
Superior (INEP, 2014), indicam a tendência das alunas de se concentrarem em
determinadas áreas de estereótipos femininas, mais ligadas ao cuidado, em
detrimento às ciências duras, mais relacionadas às áreas de exatas.
As dificuldades para as mulheres inserirem-se nessas áreas são históricas
e culturais e demandam estudos mais específicos. No entanto, autores como
Hirata (2002), Carvalho (2003), Lombardi (2010), Quirino (2011), dentre outros/

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as, ao estudarem a inserção das mulheres nas áreas tecnológicas e nas enge-
nharias afirmam que a tecnologia ainda é conjugada no masculino. No entanto,
tais pesquisas constatam que é crescente o número de mulheres que ingressam
nessas áreas majoritariamente masculinas.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, nas
profissões da Ciência e Tecnologia, profissionais e técnicos do sexo masculino
representam 81,5% do total, sendo que, no nível técnico a discrepância é ainda
maior, 89% são homens e apenas 11% são mulheres. (BRASIL, 2010).
Tais escolhas das mulheres, consequentemente, resultam em menor remu-
neração, menor ascensão social e perpetuam o entendimento do senso comum
de que Ciência e Tecnologia “não é coisa para mulher”.
Entre as profissões menos procuradas pelas mulheres estão aquelas das
áreas da engenharia. No Brasil, até 2002, por exemplo, apenas 14% dos empre-
gos formais nessa área eram ocupados por mulheres, ao passo que nas áreas de
saúde, tais como odontologia, 51% eram ocupados por elas. (OLINTO, 2009).

4 Teto de vidro e labirinto de cristal: desafios para a mulher no


mercado de trabalho

Dois tipos principais de exclusões são enfrentados pelas mulheres: i)


exclusão vertical: que se refere à sub-representação das mulheres em postos
de prestígio e poder, mesmo nas carreiras consideradas femininas; ii) exclusão
horizontal: que se refere ao reduzido número de mulheres em determinadas
áreas do conhecimento, em geral, de maior reconhecimento para a economia
capitalista, as consideradas ciências “duras” – exatas e engenharias.
Outro conceito que corrobora a ideia da exclusão e discriminação femi-
nina devido ao gênero é o conceito Labirinto de Cristal trazido por Betina
Stefanello de Lima (2013). A autora aponta que é possível perceber barreiras,
ainda que não formais, ao longo da carreira da mulher e não apenas no “topo”.
Esse conceito contribui para o entendimento de duas importantes questões:
a) Transparência do vidro: mesmo não havendo barreiras formais
que impeçam a participação de mulheres em cargos e posições
de poder, essas dificuldades enfrentadas pelas mulheres são reais
e não podem ser avaliadas somente pela ausência de dispositivos
legais contra a atuação profissional feminina;

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Sexual e de gênero
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b) Posição do teto: existe uma barreira invisível, mas real, para


ascensão das mulheres. Essa barreira, de certa forma, permite
que elas transitem pelas posições próprias da carreira, mas
somente até determinado ponto.

5 Participação feminina no mercado de trabalho das Engenharias

A inserção de mulheres nas escolas de engenharia aconteceu de forma


muito tímida, acontecendo apenas a partir da década de 1920. (SILVA TELLES,
1984; PORTINHO, 1999). A primeira mulher a se diplomar na Escola de Minas
de Ouro Preto, como Engenheira de Minas, Metalurgia e Civil foi Aimée Barbosa
da Silva, em 1947, quando a instituição já contava mais de 70 anos de existên-
cia. Na década de 1970, o ingresso de mulheres nas engenharias se torna mais
visível e se consolida na década de 1990 (FACCIOTTI; SAMARA, 2004).
Todavia, a presença de mulheres nas engenharias demorou a se concreti-
zar. Dentre as 38 engenheiras mulheres formadas na Escola de Minas de Ouro
Preto, desde a sua fundação, 84%, ocorreu somente nas décadas de 1980 e
1990. Mais da metade delas, contudo, (55% ou 21 engenheiras) se formaram
nos anos de 1990 (LOMBARDI, 2004).
Segundo os dados da RAIS, em 2009, havia 41.207.546 ocupações no
mercado formal de trabalho no Brasil. Desses, 205.604 são ocupações da enge-
nharia, representando 0,5% do total de vínculos formais no Brasil. As ocupações
da engenharia concentram-se na Região Sudeste, representando 62,4% do total
no Brasil.
Tradicionalmente a engenharia é uma profissão masculina, segundo
demonstram os dados da RAIS no período 2004-2009, entretanto, é possível
notar um crescimento contínuo da participação das mulheres nas ocupações da
engenharia. No Brasil, a participação das mulheres evoluiu de 14,4% em 2004
para 16,2% em 2009, 1,8 ponto percentual maior, conforme RAIS 2004-2009.
Ao analisar dados do INEP percebe-se que o número de engenheiros
do sexo masculino saltou de 103.548 em 2000 para 225.915 em 2014, o que
corresponde a um crescimento de 118% no período. Entretanto, o número de
mulheres engenheiras nesse mesmo período partiu de 20.253 para 51.784, o
que representa um crescimento de 156%; no qual as mulheres apresentaram
um crescimento 32% maior que os homens no período. Observa-se que de
2004 até 2014 houve uma diminuição da proporção dos homens no mercado
de trabalho da engenharia: naquele primeiro ano eles correspondiam a cerca de

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85% do mercado, enquanto que neste último ano são 81%. Todavia, as mulhe-
res correspondiam a 15% em 2004, passando a representar 19% em 2014.
Portanto, tem sido expressivo o crescimento da mulher no mercado de trabalho
da Engenharia.
No período pesquisado o aumento das matrículas femininas nos cursos de
engenharia foi de 84%, em comparação ao masculino. Esses números permitem
inferir que está havendo um movimento em que a engenharia está lentamente
sendo incluída nas escolhas profissionais das mulheres.
Um exemplo que indica a inclusão da engenharia no rol de possibilidades
profissionais das mulheres vem da Escola Politécnica da USP. No espaço de
quarenta anos, entre 1950 e 1980 formaram-se 536 engenheiras e somente na
década de 1990, formaram-se 764. Ou seja, em dez anos, formaram-se 30%
a mais engenheiras que nas quatro décadas anteriores (FACCIOTTI; SAMARA,
2004).

Considerações finais

A superação das diferenças entre homens e mulheres na educação, no


trabalho em geral, e na área de engenharia, em particular, requer o incentivo a
estudos que possam focalizar os diversos aspectos da divisão sexual do trabalho
que se estabelece na mais tenra idade – na definição de tarefas domésticas – até
as diferenças que se determinam ao longo da experiência escolar e ocupacio-
nal, incluindo as posições ocupadas nas mais altas hierarquias profissionais,
assim como na busca pela igualdade e equidade de gêneros.
A maior participação feminina nas engenharias pode implicar em transfor-
mações sociais e econômicas com impactos favoráveis para toda a sociedade,
por representar um maior contingente de força de trabalho disponível e pela
crescente escolarização evidenciada nesse grupo social.
O crescente interesse demonstrado pelos governos norte-americanos e
europeus na criação de programas que incentivem o interesse feminino pelas
carreiras das engenharias é um indicador do potencial econômico que este con-
tingente feminino representa (HESA, 1994).

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ISBN 978-85-61702-44-1 1072 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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ISBN 978-85-61702-44-1 1074 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

APONTAMENTOS MICRO-ANALÍTICOS SOBRE


A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES:
ENTENDIMENTOS SOBRE SEXUALIDADES E HIV

José Sena Filho


Doutorando em Linguística Aplicada UFRJ/CNPq
senaufrj@gmail.com

GT 17 - “Manda nudes!”: semioses contemporâneas e governamentalidade

Resumo

O presente estudo traz ao debate modos de produção de subjetividade de um


sujeito focal, gay e soropositivo, no contexto de uma cidade do interior da
Amazônia. Atento aos diferentes regimes de poder que disputam a orientação
de entendimentos e pertencimentos produzidos pelo sujeito focal, a proposta
dedica-se a análise discursiva de alguns momentos interacionais em que são
mobilizadas instituições sociais, como a mídia, com as quais ele negocia enten-
dimentos sobre sua realidade. Guiado principalmente pelas reflexões de Michel
Foucault e Judith Butler, a ideia é promover um momento de reflexividade sobre
uma vivência homossexual e soropositiva no interior da Amazônia Oriental.
Palavras-chave: sexualidades; soropositividade; subjetividade.

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Introdução

A presente discussão traz a debate parte dos estudos empreendidos sobre


a produção de subjetividades de sujeitos LGBT’s no contexto contemporâ-
neo, com atenção especial a realidade sociocultural do interior da Amazônia
Oriental (Ver SENA FILHO, 2016). Atento as performances discursivas de João1
e aos modos como socioconstroi entendimentos sobre si e sobre seu mundo
social, a proposta é problematizar como ele disputa/negocia a produção de si
diante de diferentes regimes de poder que agenciam suas possibilidades de ser,
sobretudo seus entendimentos sobre ser homossexual e soropositivo. Dando
destaque a parte de uma interação focal, buscarei ler essa dinâmica de vida no
intento de promover um momento de reflexividade, atento aos entendimentos
que emergem na interação e que apontam para condições de vulnerabilidade e
sofrimento humano na tessitura dessa subjetividade.

Noções teóricas e metodológicas orientadoras

Este estudo parte da compreensão de que sujeitos são produzidos por


processos históricos, culturais e políticos complexos e diferenciados, e que ser
sujeito em um determinado mundo social é estar “sujeito a” outro(s) sujeito(s) ou
a diferentes instituições sociais (FOUCAULT, 1993; 2010). Nesse sentido, des-
taco a centralidade do papel da linguagem na produção de subjetividades na
vida social contemporânea. Seguindo as orientações de Wortham (2001), Moita
Lopes (1996, 2006), dentre outros, adoto uma perspectiva socioconstrucionista,
o que significa dizer que nossos mundos sociais são produzidos pelas nossas
práticas discursivas e multissemióticas. É preciso dizer ainda, que a produção
de sujeitos também é orientada/construída em práticas sociais situadas, em que
dimensões micro evidenciam, de modo indissociável, aspectos macro impli-
cados em tais práticas. A linguagem, ao ser entendida como lugar de construir
sentidos/significados, encaminha nosso olhar então, não apenas para processos
discursivos de natureza linguística, mas para dimensões do corpo e das per-
formances, por exemplo, presentes nas nossas ações cotidianas na tessitura da
vida.

1 Nome fictício utilizado para preservar a identidade do sujeito da pesquisa.

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Judith Butler (1990) colocará em causa importantes reflexões sobre a per-


formance e a produção do gênero e da sexualidade. Para a autora, o corpo
também é submetido à coerção das instituições sociais e suas relações de
poder, o que pode condicionar, em grande medida, seus modos de performar e
produzir os sujeitos no mundo social. Há no posicionamento da autora um teor
político fundamental, no sentido de problematizar verdades produzidas sobre
os corpos, e que criam uma aparência de substância para modos hegemôni-
cos de performar gênero e sexualidades. Assim como Foucault, Butler (1990),
Pennycook (2006), dentre outros, tem apostado na possibilidade dos sujeitos
poderem resistir e até subverter condições opressoras ao qual são submetidos
nas realidades vividas das quais fazem parte. Há nessa visão, uma performati-
vidade, a qual funciona como um ‘operador discursivo’ sobre as performances
e os corpos, e que potencializam o desvio, e a reinvenção das subjetividades.
Sendo orientado por essas noções fundamentais, é que a pesquisa, de
caráter preliminar, tem se dedicado a desenvolver uma leitura multissituada
das performances discursivas de João, no intento de produzir entendimentos
sobre os modos como ele significa suas subjetividades. Para isso, o trabalho
tem investido na noção de entextualização (BAUMAN & BRIGGS, 1990), preo-
cupado com trajetórias textuais (BLOMMAERT, 2005; FABRÍCIO, 2013) que são
mobilizadas pelas performances de João, e que orientam a leitura sobre como
regimes de governamentalidade (FOUCAULT, 2008), agenciam possibilidades
de “ser” deste sujeito focal. Situado na perspectiva de uma Linguística Aplicada
Indisciplinar (MOITA LOPES, 1996; 2006), o trabalho se desenvolve por meio de
uma etnografia multissituada (GUIMARÃES, 2014) no diálogo com um sujeito
focal no território Amazônico.
Conforme tem defendido Bloomaert (2005) Bloomaert e Rampton (2011),
a noção de contexto deve atender a demandas locais e translocais, sendo o
contexto, da mesma forma que o texto, emergente nos processos comunicativos
e de produção de sentidos. Os textos ao serem produzidos em diferentes prá-
ticas interacionais são sempre parcialmente locais e emergentes, pois são fruto
de um ato, de uma interação, que resulta de noções almejadas e experiências
já vividas. Há uma noção de tempo e espaço importantes nesse processo, pois
repertórios culturais e sociais diferentes, no tempo e no espaço, são mobilizados
nas práticas sociais vividas. É nesse sentido, que pretendo estabelecer um debate
a partir de apontamentos situados sobre a produção de uma subjetividade gay
e soropositiva no interior da Amazônia oriental, onde discursos circulam e são

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mobilizados em diferentes processos de entextualização, ou seja, são passiveis


de serem tornados textos em diferentes movimentos de descontextualização e
recontextualização.
Ao observarmos essas trajetórias textuais e contínuos processos de entex-
tualização poderá se tornar possível trazer a evidencia como performances
discursivas de João, e seus interlocutores, mobilizam e socioconstroem enten-
dimentos sobre gênero/sexualidades e HIV em grupos e redes interpretativas
distintas (FABRÍCIO, 2013). Por fim, é válido demarcar que nessas trajetórias
textuais os recursos semióticos são importantes elementos que nos ajudam a ler
a prática social, para tanto, seguindo Silverstein (1985), opero com as noções
de ordem indexical, a qual “constrói categorias no mundo social que podem
se cristalizar no decorrer do tempo e da história, criando, assim, modos essen-
cializados e específicos para certos sujeitos e grupos sociais” (MELO; MOITA
LOPES, 2014, p.661), e pista linguísticas, as quais evidenciam na interação social
diferentes ações semióticas.

Apontamentos situados

João faz parte do grupo dos sujeitos mais atingidos pelo HIV nessa quarta
década de existência do vírus, segundo os dados da UNAIDS2. Jovem e gay, João
vive em um interior da Amazônia Oriental, onde sua sorologia é desconhecida.
Diagnosticado aos 18 anos, aos 19 João aceitou participar da pesquisa iniciada
em agosto de 2015. É com base em anotações de campo e trechos de duas
entrevistas realizadas de agosto de 2015 a agosto de 2016, que apontarei alguns
entendimentos orientadores de como João tem performado sua subjetividade.
José: “e... bom, como a gente vai conversando algum tempo, e....
desde agosto, né, julho né. E... eu queria que tu me falasses um
pouco e... antes dessas relações sexuais, como era essa coisa e...
essa ideia de Aids, HIV, o que era isso pra ti?”

2 Site oficial da Unaids: Disponível em: http://www.unaids.org.br/ Acessos em 10, 19, 22 de agosto de
2015.

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A título de exemplo, a pergunta acima motivou, no fluxo de uma das


entrevistas, João a falar do seu entendimento sobre Aids e HIV.
50 João: “eu achava que era muito estereotipado, eu achava que
tinha cara mesmo.
51 Achava que... enfim que eu ia saber porque se a pessoa fosse
muito magra, ou sei lá,
52 se tivesse uma aparência, que os filmes dos anos 1990 mostra-
ram né,
53 eu achava que aquilo ainda era assim,
54 então acho que por isso, rolava menos preocupação ainda. Não
existia uma preocupação de..
55 ah será que pode acontecer, aquele pensamento clássico de
nunca vai acontecer comigo.”

Nesse pequeno trecho, as pistas linguísticas “muito estereotipado”, “cara”


(linha 50), “muito magra”, (linha 51) e “aparência” (linha 52) mobilizam um con-
junto de entendimentos sobre a imagem social e física de um sujeito soropositivo,
que João projeta metapragmaticamente. Essa imagem foi massivamente eviden-
ciada na mídia brasileira nos anos de 1980 e 1990 (BRASIL, 2014), e produziu
um discurso cristalizado dessa compreensão, e que reverbera até os dias atuais.
É possível afirmar que esse entendimento de João foi entextualizado desse sig-
nificado cristalizado, partindo de suas experiências sociais sobre o tema. Essa
noção é reforçada de modo explícito quando João se remete aos filmes da
década de noventa, conforme enuncia na linha 52: “que os filmes dos anos 1990
mostraram né”. A partir da performance discursiva de João, fica evidente a rele-
vância da mídia na produção de discursos hegemônicos e orientadores de seus
entendimentos (Sobre mídia e HIV, ver GONÇALVES & VARANDAS, 2005). Há
também aqui, a mobilização de um discurso recorrente no senso comum que
agencia entendimentos para determinados corpos que podem ser lidos como
saudáveis ou como doentes, o que leva também a certos limites autorizatórios
sobre com quem posso ou não correr riscos em práticas sexuais eventuais,
conforme relatou João sobre sua vida sexual em outros momentos da entre-
vista. João entextualiza, ainda, um discurso muito recorrente no senso comum
na linha 54, “nunca vai acontecer comigo”, reforçado pelas pistas linguísticas
“menos preocupação” e “não existia uma preocupação” (linha 55), o que ele
identifica como um pensamento clássico para muitos sujeitos soronegativos, os

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quais possuem pouca informação, provavelmente, sobre a realidade HIV con-


temporaneamente. Em outro trecho, motivo João a falar sobre sua relação com
pessoas do seu mundo social, se falavam sobre HIV, por exemplo.
71 “Na verdade esse é o tipo de conversa que a gente não tinha,
72 isso era tipo sobre conversar sobre sexualidade,
73 que foi algo que a gente só foi conversar depois de muito tempo,
74 e depois que fui descobrir que era todo mundo viado e sapatão,
75 mas ninguém confiava um no outro pra dizer que era viado e
sapatão (risos).
76 E... mas não rolava esse tipo de conversa”.

João indica o caráter ‘marginal’ das conversas sobre sexualidade, assim


como sobre HIV/Aids. Esse entendimento mobiliza um reflexividade sobre a
desinformação e o desinteresse pelo tema no contexto da juventude referente
ao mundo social do qual participa. Esse aspecto é reforçado em outros momen-
tos da entrevista, em que João afirma que antes de ser diagnosticado, nem ao
menos tinha interesse em saber sobre o tema, o que também ocorreu quando
teve que lidar com sua sexualidade.
Para finalizar essa brevíssima explanação, o que as performances discur-
sivas de João tem colocado em evidência são os limites da circulação dessas
noções e dos entendimentos sobre sexualidades e sobre DST/Aids, o que engloba
também seu mundo social mais imediato. Isso é relevante pois indica modos
de compreensão de si e da realidade social que constitui sua subjetividade,
sendo revelador de como essas práticas sociais cotidianas e menos estabiliza-
das, podem ser cruciais para entender como outras estruturas de poder tem
agenciado o debate sobre gênero e sexualidades, e sobre praticas sexuais e DST/
Aids. Há uma produção flagrante de um quadro de vulnerabilidade desse grupo
de jovens, viabilizado em boa medida pela falta de diálogo e informação em
diferentes instancias de suas vidas sociais, como a família, a escola, a igreja, por
exemplo, aspectos que emergem no decorrer da pesquisa.

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GÊNERO NO DESIGN: O USO DE OBJETOS COMO


MEIO PARA PERFORMATIVIDADE

Talita Meier Marques Rodrigues


Graduada em Desenho Industrial
Estudante de Mestrado em Design - PUC-Rio
talitameiermr@gmail.com

Denise Berruezo Portinari


Doutora em Psicologia
Professora do departamento de Design - PUC-Rio
denisep@puc-rio.br

GT 17 - “Manda nudes!”: semioses contemporâneas e governamentalidade

Resumo

Este trabalho propõe estabelecer uma relação entre o design de produtos e


a(s) sexualidade(s) e estereótipos de gênero. Buscamos compreender como tais
estereótipos se apresentam no imaginário social e de que forma o design dá
corpo a eles. A atribuição de significado às formas, materiais, cores e nomes
utilizados no design de produtos demonstra sua contribuição para a (re)pro-
dução das diferenças de gênero com as quais a cultura material trabalha. Esta
reprodução de estereótipos não é idealizada conscientemente, mas favorece
a manutenção de um sistema binário de diferenciação pautada em ideais que
possuem origens socioculturais.
Palavras-chave: gênero; cultura material; design; sexualidade; imaginário.

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Introdução

Este texto parte de uma reflexão feita por Adrian Forty em seu livro
Objetos de Desejo, especificamente no capítulo em que aborda a diferencia-
ção nos produtos industriais. Forty sustenta que certas divisões do âmbito social
podem também ser encontradas nos objetos, uma vez que não se pode separar
o produto das condições em que ele foi configurado e do sujeito que realiza
esse processo (FORTY, 2013, p. 12). Nesta abordagem, o design é entendido
como um produtor de mitos1 e de imaginário, materializando diferenças já exis-
tentes na sociedade como aquelas entre homens e mulheres, crianças e adultos,
patrões e empregados e entre classes sociais. Ao observar a variedade dos pro-
dutos oferecidos no mercado, podemos perceber como se dão as diferenças
na sociedade, pois vemos de que forma esta sociedade é percebida pela indús-
tria. Ou seja, tal qual ocorre com outros modos de representação, “conhecer
a amplitude dos diferentes designs era conhecer uma imagem da sociedade”
(FORTY, 2013, p.128). É importante ressaltar aqui que me aproximo da articu-
lação feita por Forty, em que o designer não é posto como agente causador
da diferença, nem mesmo o sujeito com a intenção por trás da profusão de
produtos diferentes. O objetivo do design – talvez o maior – é a obtenção de
lucro para o fabricante e a indústria capitalista se aproveita do desejo de indi-
vidualidade presente na sociedade para multiplicar suas possibilidades de lucro
(FORTY, 2013, p. 119-124).
Em História da Sexualidade I (2015), Foucault critica a hipótese de que o
poder manifesta seu controle de forma proibitiva, reprimindo e silenciando o
discurso sobre o sexo. Ao invés disso, defende uma dimensão produtora dos
mecanismos de poder, que regulam a sexualidade através de técnicas discursi-
vas e se apoiam n a produção do saber. Dessa forma, para além de censurar-se
as falas sobre o sexo, as formas modernas do poder agem na (re)produção

1 Forty mobiliza o conceito exposto por Barthes em Mitologias, em que objetos, textos, imagens e
outras “coisas aparentemente familiares exprimem todos os tipos de ideias sobre o mundo” (FORTY,
2013, p. 15). O senso comum tende a naturalizar certos conceitos e ideais frente a todas as manifes-
tações da realidade que, embora não deixem de fazer parte do contexto em que vivemos, é constru-
ída historicamente. Estes ideais e conceitos nos quais nos baseamos para reagir e interpretar tudo à
nossa volta são construídos por mitos que exprimem significados. O conceito “é simultaneamente,
histórico e intencional; é móbil que faz proferir o mito” (BARTHES, 1975 p. 140).

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incessante da sexualidade e do binarismo de gênero. (FOUCAULT, 2015). O


poder é, portanto, um produtor de discurso e nós funcionamos como reprodu-
tores deste, fazendo parte da manutenção do dispositivo. Mesmo indiretamente,
o discurso de poder se manifesta em todo o espectro social: relações privadas,
classes, grupos, informações, comunicação. O poder está presente na lingua-
gem, sendo esta uma forma de percebê-lo: a própria forma como a língua é
estabelecida reflete o discurso de poder, à medida que as mensagens são con-
formadas a ser expressas dentro de uma determinada forma (BARTHES, 2015).
Articulando a questão de Forty ao conceito de performatividade de
gênero, propõe-se que a variedade de produtos e a sua distribuição em catego-
rias que reproduzem os marcadores de diferenças sociais (masculino/feminino,
infantil/adulto, popular/luxo, entre outras) pode ser entendido como uma forma
de “performatividade” ou de materialização dessas diferenças, correspondendo
mais ou menos àquilo que Forty chama de sua “encarnação”. Judith Butler
(2000) desenvolve o conceito de performatividade para abordar questões de
gênero e materialização das diferenças sexuais, onde a materialidade é também
marcada e formada, de maneira simultânea, por práticas discursivas (BUTLER,
2000, p. 110). Segundo Butler, “(…) a performatividade deve ser compreendida
não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática
reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia”
(BUTLER, 2000, p. 110). No conceito de performatividade, esta identidade de
gênero se constitui – e, com o design, se materializa – ao mesmo tempo em que
se dá a escolha e o uso dos bens.

A construção das diferenças de gênero

A classificação ou ordenação do mundo é característica presente em toda


cultura. Pode apresentar-se de forma complexa ou simplificada em sua lógica,
mas o ato de encaixar o mundo em categorias está sempre presente. Teresa de
Lauretis (1994, p.207) define diferença sexual como conceitos abstratos que
obtemos acerca do que é masculino e feminino, mas principalmente a diferença
da mulher em relação ao homem. Esta classificação é feita no campo do incons-
ciente político, que é perpetuado pela sociedade como um todo, inclusive pelas
mulheres. As denominadas tecnologias de gênero representam as característi-
cas e os ideais de cada gênero e contribuem para a continuidade deste modelo
regulatório. Ao classificar os indivíduos por gênero, os posicionamos dentro de

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ISBN 978-85-61702-44-1 1085 de Estudos sobre a Diversidade
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um grupo social, ao qual a escolha de se pertencer não é livre, mas também


não é por uma coerção inteiramente externa e arbitrária. Dentro de uma cul-
tura, a noção de que o masculino e o feminino são distintos e se complementam
simbolicamente atribui a cada sexo um conjunto de conteúdos sociais, valores
e hierarquias (LAURETIS, 1994 p. 211). Muitas das características estereotípicas
relacionadas ao sexo dos indivíduos vêm de como é representada culturalmente
a manifestação da sexualidade em cada um. Em referência a Lucy Bland (1981),
Lauretis cita que “a polaridade ‘masculino/feminino’ tem sido e ainda é um dos
temas centrais de quase todas as representações da sexualidade (...) a sexuali-
dade masculina é considerada ativa, espontânea, genital, facilmente suscitada
por ‘objetos’ (...) a sexualidade feminina é vista em termos de sua relação com
a sexualidade masculina”. Não é inesperado que, em uma sociedade patriarcal
como a nossa, o masculino seja a referência a partir da qual classificamos as
diferenças sexuais. O próprio conceito de mulher é constantemente criado e
modificado por discursos que precedem o design, e por ele mesmo.
Entretanto, para Judith Butler (2000), não é possível desassociar a própria
diferença sexual das práticas discursivas, o que não quer dizer que tais práticas
criam a diferença “do nada”, mas que ela depende do discurso para ser mar-
cada e instaurada. O sexo é também normatizado – para garantir a hegemonia
de um sistema binário heterossexual – e depende de atos de performatividade
para reiterar o discurso e produzir efeitos regulatórios no corpo físico. Dessa
forma, o gênero não deve ser entendido apenas “como um construto cultural
que é simplesmente imposto sobre a matéria (...) Ao invés disso, uma vez que
o próprio ‘sexo’ seja compreendido em sua normatividade, a materialidade do
corpo não pode ser pensada separadamente da materialização daquela normal
regulatória” (BUTLER, 2000).
A vida dos homens e mulheres de classes média e alta do século XIX era
acentuadamente dividida: à mulher cabia a função de receber visitas e dedicar-
-se à maternidade, enquanto ao homem cabiam funções de comando e decisões
políticas, pois julgava-se que possuíam qualidades como força e retidão (FORTY,
2013). Segundo Laqueur, citado na dissertação de Marina Nucci (2010), a ideia
científica de diferenciar os sexos começa a partir do final do século XVIII, onde
até então predominava um sistema de “sexo único”, onde o homem era visto
como o ser humano original que possuía uma inversão – a mulher – cujos
órgãos sexuais eram internos devido à falta de calor. Acreditava-se, inclusive,
que seria possível um corpo feminino transformar-se em masculino quando

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recebesse calor. O inverso, porém, não era possível, uma vez que também
era afirmado que a natureza ia sempre em direção à perfeição. Justamente na
época em que começam a ocorrer lutas políticas por uma mudança no papel
da mulher, o movimento da ciência é justamente de separar cada segmento
do corpo entre masculino e feminino, tornando a fisiologia completamente
distinta de acordo com o sexo. A anatomia do corpo feminino começa a ser
utilizada como recurso para justificar sua inferioridade, relegando às mulheres
apenas o papel da maternidade e excluindo-as da vida pública (NUCCI apud
SCHIEBINGER, 2010).

A performatividade de gênero e a sua relação com os produtos

As afirmações de diferença sexual, mais comuns durante o século XIX, são


ideias que para serem naturalizadas contam com mecanismos de construção do
saber como a educação formal, a religião, a mídia e o design. Este último con-
tribui com a caracterização dos objetos feita a partir dos estereótipos de gênero
definidos e, por não basear-se tanto nas palavras, mas sim em signos visuais,
oferece “sinais duradouros, visíveis e tangíveis das diferenças entre homens e
mulheres tal como se acreditava que existissem” (FORTY, 2013 p. 95). Para
Cheryl Buckley (1986), uma das razões que leva o design a produzir diferencia-
ções é o viés que exclui as mulheres na história do design. As poucas que são
citadas na literatura sobre o design são definidas, devido ao seu gênero, como
usuárias de produtos femininos ou têm seu nome colocado abaixo de seus
maridos, irmãos ou pais.
O papel da mulher em alguns setores do design, ainda segundo a autora,
é travado pelos estereótipos criados no patriarcado, que possui respaldo nas
teorias científicas citadas anteriormente, que foram utilizadas como justificati-
vas para relegar determinados papéis sociais e profissionais para as mulheres. O
que Buckley argumenta é que, para entender a situação das mulheres em rela-
ção ao design – tanto como criadoras quanto como usuárias – é preciso lembrar
que este foi criado no contexto patriarcal e que, portanto, “os ideais de habilida-
des e necessidades do design para as mulheres tem sua origem no patriarcado”
(BUCKLEY, 1986 p. 4). Buckley afirma que, neste contexto, considera-se que
mulheres possuem determinadas habilidades como meticulosidade, destreza e
ornamentação, “o que faz com que elas estejam naturalmente aptas a certas
áreas da produção do design”, como joalheria, bordado, ilustração e cerâmica,

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para citar algumas. Poderíamos citar também a produção de roupas, e argu-


mentar que a indústria da moda também possui muitos homens trabalhando em
sua produção, porém o lugar que eles ocupam normalmente é visto com maior
sofisticação. O que a autora propõe como discussão é o entendimento de que
a justificativa da predisposição biológica é também uma criação do contexto
patriarcal, e que é preciso entender as razões pelas quais certas habilidades e
necessidades são atribuídas às mulheres como designers ou consumidoras, em
função de uma definição histórica que associa a mulher ao serviço doméstico
e dedicação ao casamento e à maternidade. Tais estereótipos são comumente
reforçados também pela propaganda, que associa o produto ao seu usuário
ideal.
A diferenciação sexual, reforçada principalmente ao longo do final do
século XVIII (NUCCI, 2010), sedimentou a posição social da mulher como um ser
de corpo fragilizado, emocional e dependente, não muito propício para a inteli-
gência e a atividade. Por outro lado, o homem mantinha sua posição como um
ser ativo, viril e capaz de controlar as emoções e agir racionalmente. Portanto,
quando extrapolamos estas descrições estereotípicas dos sexos para o aspecto
visual do produto encontramos características descritas como “ornamentada,
delicada e curvilínea”, que devem ser evitadas quando há a necessidade de
expressar imponência, poder e admiração. Neste caso, as formas ditas mas-
culinas apresentam firmeza, grandeza, planos retilíneos, ângulos retos, poucos
detalhes ornamentais e são consideradas adequadas na arquitetura (FORTY
apud BLONDEL, 2008).

Considerações finais

A variabilidade de produtos é considerada necessária para a identificação


subjetiva do consumidor com o produto e para provocar uma sensação de
exclusividade que é importante na estratégia de venda. No entanto, a forma
como reproduzimos os conceitos e ideais nos produtos também deve ser obser-
vada como parte de nosso contexto social e histórico, ao contrário de uma
naturalização simples apoiada em uma interpretação de natureza que também
é histórica. Sob ponto de vista das questões de gênero, produtos desenvolvidos
sem preocupação social podem reproduzir valores sexistas e alimentar uma
cultura patriarcal ou heteronormativa. Podemos perceber uma tendência atual
em que marcas, atentas à força de movimentos sociais, procuram demonstrar

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uma visão de maior diversidade de gênero. Tal atitude é tomada como uma via
de projetar a ideia de que a marca é consciente da necessidade de diversidade
sexual, e explorar um mercado que valoriza esta forma de pensar. Podemos
citar como exemplos marcas como a Zara, que lançou a coleção Ungendered
e a C&A, que em uma de suas recentes campanhas publicitárias apresentou
homens e mulheres que trocavam as roupas entre eles. Porém, esta tendência
pode ser problematizada, uma vez que ao olharmos as peças disponíveis nas
coleções, percebemos que ainda há resistência em apresentar uma estética que
fuja daquilo que é considerado básico e aplicável ao masculino: é bastante difícil,
por exemplo, encontrar nessas campanhas homens usando saias. O vestuário
“agênero”, embora apresente-se como sendo a favor da diversidade, é também
produzido dentro de um contexto de sociedade patriarcal e heteronormativa.

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Referências

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BUCKLEY, Cheryl. Made in patriarchy: toward a feminist analysis of women and


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org/stable/1511480> Acesso em: 19 abr. 2016.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. Tradução:
Tomaz Tadeu da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedago-
gias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

FORTY, Adrian. Objeto de desejo. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

____________. Masculino, feminino ou neutro? In: Arte & Ensaios, Escola de Belas
Artes, UFRJ. Rio de Janeiro, 2008. p. 134-143. Disponível em: < http://www.ppgav.
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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo: Paz e


Terra, 2015.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa


(Org.). Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994. p. 206-242.

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A REPATOLOGIZAÇÃO DAS HOMOSSEXUALIDADES


NA “PSICOLOGIA CRISTÔ

Cleber Michel Ribeiro de Macedo


Especialização em Gênero e Sexualidade CLAM/IMS/UERJ
Mestrando do PPG em Saúde Coletiva do IMS/UERJ
cleberribmacedo@gmail.com

GT 18 - Ativismos e produções acadêmicas LGBT, feministas e queer em tempos de


ascensão conservadora no Brasil

Resumo

Atualmente, no Brasil e em outros países há profissionais que conectam religião,


psicologia e posicionamentos controversos em torno das homossexualidades.
Um dos efeitos dessa conexão é a chamada proposta psicoterapêutica de
“reversão da homossexualidade” ou “cura gay”. Nesse contexto, no país, essa
abordagem parece encontrar em alguns “psicólogos cristãos” evangélicos seus
principais agentes de propagação; apesar de o Conselho Federal de Psicologia
(CFP) proibir qualquer abordagem patologizante da homossexualidade. A partir
de fontes documentais públicas, examinam-se as concepções de homossexua-
lidades produzidas e difundidas a partir dessa articulação contemporânea entre
religião e psicologia.
Palavras-chave: Homossexualidade, Homofobia, Psicologia, Evangélicos,
Psicólogos Cristãos.

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Introdução

Existem atualmente, no Brasil e em diversos outros países, profissionais


que conectam religião, psicologia e posicionamentos controversos em torno
das homossexualidades. Nos âmbitos em que eles operam, esses discursos
e práticas terapêuticas têm como efeito a recondução da homossexualidade
ao campo do desvio e da “anormalidade”, de onde ela teria sido subtraída há
mais de quarenta anos pela psiquiatria (CONRAD, 1997; KUTCHINS; KIRK,
1997; RUSSO, 2004). Estas vertentes, situadas ambiguamente entre o campo
religioso, o científico e a arena política, que as convenções atuais tanto jurídi-
cas das democracias liberais, quanto científicas e clínicas caracterizam como
homofóbicas, são conhecidas por promover o que chamam de “reversão da
homossexualidade” ou “cura gay”.
Conforme Michel Foucault (2014), o “homossexual” emerge como catego-
ria psicológica, psiquiátrica e médica, caracterizada em meados do século XIX.
As instituições sociais assumiram seu controle alterando concomitantemente
suas definições ao longo do tempo. Com o processo de secularização iniciado
no Ocidente, em especial nos países de língua inglesa, a partir do final da idade
média, a responsabilidade por controlar “comportamentos sexuais inaceitáveis”
passou da Igreja para o sistema judiciário criminal (KUTCHINS; KIRK, 1997).
Ao longo do século XX, no Brasil, nos Estados Unidos e em diferentes países
da Europa foram inúmeras as intervenções médico-psicológicas que propunham
a reversão de condutas sexuais desviantes, em particular da homossexualidade.
Essas intervenções eram embasadas em variados pressupostos, que – não obs-
tante sua diversidade – compartilhavam a busca pela “origem” ou “causa” do
“homossexualismo” e a motivação para extirpá-lo. Dentre esses pressupostos
têm-se concepções endocrinológicas, neurológicas, psíquicas, pedagógicas e
morais, que legitimavam essas tentativas. Elas variavam conforme o contexto e
os atores que as encabeçavam; em geral, médicos, psiquiatras, psicanalistas e
psicólogos (FRY; MACRAE, 1983; KUTCHINS; KIRK, 1997; GREEN, 1999).
A transformação das concepções de homossexualidade tanto no cená-
rio científico quanto no político e social contribuíram para que essa categoria
fosse retirada do campo do patológico e a ela atribuído o estatuto de norma-
lidade. Não obstante, a perspectiva da aceitação da homossexualidade como
uma variante legítima da sexualidade humana não é consenso na arena religiosa
(MACHADO; PICCOLO, 2010; NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2013).

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Atualmente, existem articulações que viabilizam a propagação, na


sociedade brasileira, da ideia de uma abordagem psicoterapêutica da homosse-
xualidade como desvio a ser corrigido. Nesse contexto, no Brasil, essa abordagem
parece encontrar em alguns “psicólogos cristãos” seus principais agentes de
propagação; apesar de o Conselho Federal de Psicologia (CFP) proibir qualquer
abordagem patologizante da homossexualidade através da Resolução 01/1999,
que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da
orientação sexual.

Psicólogos cristãos

No Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO)1 do Ministério do Trabalho,


que tem o objetivo de identificar as ocupações no mercado de trabalho, para
fins classificatórios, junto aos registros administrativos e domiciliares, consta a
profissão de psicólogo e de suas respectivas especialidades, dentre outras, a de
psicólogo jurídico, do trânsito, do esporte e a de “outros psicólogos” – nenhuma
das especialidades listadas no CBO contempla qualquer vinculação entre psi-
cologia e religião. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), dentre
outras atribuições, é o órgão máximo que regulamenta, orienta e fiscaliza o
exercício profissional de psicólogo. Embora os psicólogos cristãos legalmente
habilitados a atuar como “psicólogos” estejam subordinados ao CFP, esse órgão
não legitima esse atributo como “especialidade”. Não obstante, o órgão não tem
coibido efetivamente sua publicização até o momento2.
Para compreender em que consistiria a identidade declarada dos “psicó-
logos cristãos” no Brasil, podemos tomar de empréstimo alguns elementos da
“declaração de fé” de uma das mais representativas associações que atuam nesse
sentido, o Corpo dos Psicólogos e Psiquiatras Cristão (CPPC). Essa instituição,

1 Fonte: http://site.cfp.org.br/leis_e_normas/cbo-catalogo-brasileiro-de-ocupacoes/
2 Em 2012, o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG) notificou oficialmente a
Diretoria Nacional do Corpo dos Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), que a entidade deveria
retirar do seu site a associação entre os termos “psicólogo” e “cristão” e “psicologia cristã”. Em co-
municado aos membros da entidade, Karl Kepler, presidente do CPPC, informa que respondeu ao
CRP-MG, argumentando que “psicologia cristã” se encontra no site apenas em uma menção crítica
e que o Conselho não tem competência para controlar associações civis, dessa forma não acatou a
notificação (DEGANI-CARNEIRO, 2013, p. 65).

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fundada em 1976, identifica-se como um fórum permanente de estudos de


questões das áreas da psicologia, psiquiatria, saúde e religião, congregando
estudantes e profissionais da área “psi”. Para o CPPC, o psicólogo cristão é o
profissional que “crê na bíblia como palavra inspirada por Deus; na Igreja, como
comunidade terapêutica; e, no valor do empreendimento científico como parte
de busca da verdade, coexistindo com a revelação bíblica”.

Controvérsias atuais

Essa controvérsia acerca das homossexualidades, especialmente na profis-


são regulamentada de psicólogo no Brasil, desencadeia algumas questões. Qual
o alcance na profissão, e qual o sustento conceitual desses projetos de “reversão
da homossexualidade”? Qual o contexto de emergência dessas propostas, na
articulação entre psicologia e religião? Em que consiste a “cura” para os gays
proposta por alguns psicólogos cristãos? Qual o lugar da “reversão sexual” na
“psicologia cristã”? A partir de fontes documentais públicas, examinam-se as
concepções de homossexualidades produzidas e difundidas a partir dessa arti-
culação contemporânea entre religião e psicologia.

Considerações finais

A transformação do cenário religioso brasileiro, com o vigoroso aumento


do número de evangélicos e a expressiva entrada em cena desses atores nos
mais diferentes campos de atuação, como o político e o científico, introduz e
potencializa novas vozes e posicionamentos para o debate em torno da regula-
ção da sexualidade.
Nesse cenário, fica patente a mobilização (a favor de, e contra) em torno
de proposições psicoterapêuticas para a “reversão da homossexualidade” de
diferentes agentes, como psicólogos cristãos, psicólogos ‘laicos’ (representando
os Conselhos de Psicologia), pastores evangélicos, advogados, políticos, jorna-
listas, ativistas pró diversidade sexual e pesquisadores; também, de diferentes
instituições, como os Conselhos de Psicologia, os partidos políticos e as suas
alianças, o Poder Legislativo, organizações nacionais e internacionais.
Ponderando a singularidade dessas profissionais que forjam sua identi-
dade profissional conectada à sua vinculação religiosa – psicólogos cristãos; e
observando os constantes embates em torno de práticas e discursos acerca das

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homossexualidades entre essas profissionais com os Conselhos de Psicologia,


seremos guiados pelas seguintes perguntas gerais: quais as concepções de
homossexualidade são produzidas e/ ou disseminadas por esses profissionais
e quais as implicações dessa atuação? Qual o respaldo teórico-conceitual dos
“psicólogos cristãos”? Qual a articulação eles promovem entre psicologia e reli-
gião? A quem interessa essa articulação?

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Referências

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Resolução CFP Nº 001/99. Disponível em: <site.cfp.org.br>. Acesso em: 14 abr. 2015.

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Cap. 05. p. 97-113.

DEGANI-CARNEIRO, Filipe. Psicólogos evangélicos: interseção entre religiosidade e


atuação profissional em Psicologia no Brasil. 2013. 136 f. Dissertação (Mestrado) -
Curso de Psicologia, Centro de Educação e Humanidades - Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro /


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FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
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GREEN, James N. Beyond Carnival: male homosexuality in twentieth-century Brazil.


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KUTCHINS, Herb; KIRK, Stuart A. The fall and rise of homosexuality. In: KUTCHINS,
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MACHADO, Maria das Dores Campos; PICCOLO, Fernanda Delvalhas. Religiões e


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NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Diversidade sexual e religião: a


construção de um problema. In: NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. As
Novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de
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RUSSO, Jane. Do Desvio ao transtorno: a medicalização da sexualidade na nosogra-


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CONSERVADORISMO RELIGIOSO NA ARENA POLÍTICA:


DESAFIOS E IMPASSES PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E
OS ATIVISMOS LGBT

Graziela Ferreira Quintão


Mestre e doutoranda em Política Social /UFF
Assistente social do Ministério Público/RJ
grazielaquintao@yahoo.com.br

João Bôsco Hora Góis


Doutor em Serviço Social PUC-SP/Boston College
Professor Associado IV /UFF, Pesquisador 1B /CNPq
jbhg@uol.com.br

Resumo

Nos últimos anos, vem ocorrendo uma série de embates entre defensores dos
direitos LGBT e ativistas dos movimentos religiosos - especialmente as lide-
ranças de denominações evangélicas. Utilizando a retórica da liberdade de
expressão, esses segmentos religiosos desqualificam e combatem a diversidade
sexual, adentrando a arena política através de seus representantes no Congresso
Nacional, que se articulam compondo frentes parlamentares e interferindo na
agenda do movimento LGBT. Este trabalho propõe examinar as particularida-
des do enfrentamento do movimento LGBT com os segmentos evangélicos, a
partir de episódios recentes envolvendo parlamentares da Frente Parlamentar
Evangélica, que tiveram repercussão na mídia e geraram controvérsias.
Palavras-chave: homofobia religiosa; arena política; produção de políticas para
população LGBT; Frente Parlamentar Evangélica; movimento LGBT.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Introdução

No contexto das lutas em torno da definição do que seja uma sexuali-


dade legítima e de quais pessoas estão socialmente autorizadas a exercê-la,
mesmo em Estados de longa tradição democrática, por vezes tem sua laicidade
explicitamente colocada em xeque, sendo este um fenômeno particularmente
preocupante no âmbito de democracias de frágil tradição, como a brasileira,
onde os debates sobre direitos sexuais e reprodutivos são marcados por fortís-
sima oposição religiosa. (MELLO et al., 2012)
No movimento da democracia representativa, todos os grupos sociais
devem ter o direito de participar das decisões do poder. Assim como ocorre
com movimentos sociais de trabalhadores, de minorias étnicas, de mulheres,
de homossexuais e outros, os grupos religiosos também se articulam a fim de
influenciar a agenda de políticas públicas e a proposição de leis. Nesse sentido,
uma importante estratégia utilizada pelos segmentos evangélicos de origem
pentecostal tem sido eleger parlamentares que representem seus interesses na
arena política, como forma de proteger os preceitos morais de sua comunidade
religiosa.
Visando contribuir para a construção de conhecimento e estratégias de
enfrentamento por pesquisadores e ativistas LGBT, apresentamos algumas refle-
xões e construções argumentativas acerca dos dados iniciais da pesquisa de
doutorado Homofobia religiosa evangélica e os embates na produção de políti-
cas para a população LGBT.
No presente trabalho, buscamos examinar as particularidades do enfrenta-
mento do movimento LGBT com as lideranças evangélicas, a partir de episódios
recentes, que tiveram repercussão na mídia e geraram controvérsias. Como
recurso metodológico, fazemos referência aos discursos e debates proferidos em
audiências públicas derivadas de proposições legislativas e projetos de decreto
constitucional apresentados na Câmara Federal, assim como ações e programas
governamentais federais voltados para a população LGBT, que sofreram inter-
rupções ou foram vetados em decorrência de pressões dos setores evangélicos.
Como fonte de consulta, utilizamos os vídeos das referidas audiências públicas,
complementadas pelas notas taquigráficas, notícias e matérias de veículos midi-
áticos, condizentes às mesmas.

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As Particularidades do Enfrentamento do Movimento LGBT com


os Segmentos Evangélicos

A participação dos evangélicos no sistema político brasileiro ocorre, princi-


palmente, no poder legislativo. Os primeiros embates entre o então movimento
homossexual brasileiro (MHB) e a bancada evangélica no Congresso Nacional
ocorreram na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-19881, tendo um dos
membros da bancada evangélica, ainda em formação no Congresso Nacional,
o deputado José Viana (PMDB-MA), contestado a evidência científica de que
homossexualidade não é doença. O termo ‘orientação sexual’ foi aceito pelas
duas subcomissões, mas excluído pela Comissão de Sistematização, e defini-
tivamente rejeitado pelo plenário, em janeiro de 1988. Apesar da derrota, as
reivindicações do movimento tinham recebido muita publicidade, e nos anos
seguintes, vários Estados e municípios incorporaram medidas contra a discrimi-
nação por orientação sexual na sua legislação básica. (HOWES, 2003)
Em 2003, foi criada a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) do Congresso
Nacional, com o objetivo de congregar, por meio de cultos semanais, os par-
lamentares evangélicos. Através desses cultos, poderia ser engendrada uma
‘mobilização estratégica’ em torno de bandeiras de luta da FPE quanto à pro-
moção e conversão evangélica no âmbito do legislativo. (DUARTE, 2012)
Como ocorre em outras frentes parlamentares, o pluripartidarismo foi
uma estratégia de atuação adotada pelos dirigentes da FPE, que abarca tendên-
cias ideológicas afins para defender demandas conjunturais. Constitui-se em
um modo de atender reivindicações de determinados segmentos, rompendo as
barreiras das estruturas dos partidos políticos. A FPE defende os interesses da
comunidade evangélica, fazendo oposição à aprovação de projetos que ferem
os preceitos bíblicos, o que significa que a oficialização do ‘homossexualismo’
deveria ser combatida e, portanto, não receber o apoio sob a forma da lei, por
ser nociva à sociedade, à moral e aos ‘bons costumes.’ “Reações religiosas que
desqualificam a diversidade sexual são insufladas por sujeitos que percebem
a expansão dos direitos dos homossexuais e a visibilidade e aceitação desta

1 João Mascarenhas foi o primeiro representante do MHB a se apresentar no Congresso Nacional, ante
duas Subcomissões da Constituinte. (CÂMARA, 2015)

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parcela da população como ameaçadora de seus valores e da própria ordem


social.” (NATIVIDADE & LOPES, 2009, p. 79).
Pressões exercidas por parlamentares da FPE culminaram no cancela-
mento do programa Escola Sem Homofobia, que ficou conhecido como kit gay.
O programa foi alvo da intensa mobilização dos setores conservadores, dentre
eles, parlamentares da FPE, a partir da desqualificação do conteúdo e qualidade
de seu material, assim como o público a que se destinava, aproveitando de
uma situação política específica pelos seus adversários. Em entrevista coletiva,
concedida a veículos midiáticos, a presidente Dilma Rousseff justificou seu posi-
cionamento contrário e decisão de interrupção do referido projeto dizendo que
Não aceito propaganda de opções sexuais. Não podemos intervir
na vida privada das pessoas. O governo pode, sim, ensinar que é
necessário respeitar a diferença e que você não pode exercer práti-
cas violentas contra os diferentes. É uma questão que o governo vai
revisar, não haverá autorização para esse tipo de política de defesa
A, B ou C. Agora, lutamos contra a homofobia. (UOL EDUCAÇÃO,
2011)

Foi noticiado, entretanto, que parlamentares evangélicos pressionaram a


Presidente, colocando em jogo a possibilidade de ser instaurada uma comissão
parlamentar de inquérito na área da educação por causa do projeto do material
que seria distribuído às escolas para promover a diversidade e de convocação
do então ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, para esclarecer a multiplica-
ção de seu patrimônio. O governo, porém, negou que esses tenham sido os
motivos do cancelamento do projeto (idem).
Destacamos também o debate sobre a criminalização da homofobia,
decorrente da tramitação do Projeto de Lei da Câmara PLC 122/2006. Desde
o início de sua trajetória, essa proposta enfrenta oposição de setores religiosos
conservadores, envolvendo a reprodução de estigmas e a desqualificação dos
homossexuais (NATIVIDADE & LOPES, 2009). Militantes religiosos têm se posi-
cionado na esfera pública, contra a aprovação da criminalização da homofobia,
utilizando argumentos que ressaltam o direito à liberdade religiosa. Isto porque
o direito dos grupos religiosos de expressar opinião contrária à homossexuali-
dade estaria cerceado, inclusive, no âmbito da atuação em trabalhos pastorais
de reversão da homossexualidade. Ao longo da tramitação da PLC 122/2006,
evidenciou-se um jogo de forças entre os representantes dos movimentos dos

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homossexuais e segmentos religiosos. Em 2011, a senadora Marta Suplicy pro-


pôs uma nova redação para o projeto, a fim de deixar expresso que não se
criminalizaria a “manifestação pacífica de pensamento fundada na liberdade de
consciência e de crença”. Contudo, não houve adesão dos opositores ao pro-
jeto, que passou por várias redações. Em 20 de novembro de 2013, a pressão
de parlamentares evangélicos retirou o PLC 122/2006 da pauta da CDHM, com
o pretexto de se buscar novamente um “texto de consenso”, até que foi arqui-
vado em janeiro de 2015, e apensado ao projeto de reforma do Código Penal.
(ESTADÃO, 2015)
Tais embates evidenciam que as tensões não ocorrem apenas na oposi-
ção ao projeto apresentado, mas envolvem a atuação dos movimentos sociais
e contextos específicos, como períodos eleitorais e a disposição dos ocupantes
de cargos no poder Executivo em reconhecer a legitimidade dos direitos de
minorias sexuais.
Outro episódio recente envolvendo um parlamentar evangélico gerou gran-
des controvérsias. A eleição do deputado (e pastor evangélico) Marco Feliciano
(PSC/SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados (CDHM) gerou uma onda de manifestações contrárias
em redes sociais, campanhas e passeatas de grupos organizados e ativistas dos
movimentos LGBT, em decorrência do fato de ter o deputado Marco Feliciano
expressado opiniões consideradas racistas e homofóbicas - além do mesmo
não ter um histórico de atuação na temática dos direitos humanos. Líderes
evangélicos o apoiaram e o pastor evangélico Silas Malafaia (conhecido por
suas declarações contrárias à homossexualidade) escreveu em uma rede social:
“nós não pautamos nossas ações pelo que a mídia quer ou grupos de pres-
são do ativismo gay. O PSC não pode dar ‘mole’.” Sendo assim, o deputado
Marco Feliciano foi eleito presidente da CDHM, em março de 2013. Houve
manifestações e atos de protestos nas ruas, assim como nas primeiras sessões
da Comissão presididas pelo mesmo, que reagiu, aprovando um requerimento
para restringir o acesso do público às reuniões do colegiado. (FOLHA DE SÃO
PAULO, 2013)
A gestão do deputado Marco Feliciano na CDHM foi marcada pela apro-
vação de propostas de teor anti-homossexual. A primeira ação de enfrentamento

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pelo deputado foi a votação do projeto conhecido como cura gay2, que pre-
tendia derrubar trechos de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia,
que estabelece normas para os psicólogos em relação à questão da orientação
sexual, vedando a atuação dos mesmos em eventos e serviços que proponham
tratamento e cura da homossexualidade. Foi realizada uma audiência pública
proposta pelo Deputado Feliciano, para discutir o ‘direito de deixar a homos-
sexualidade’, e na ocasião, palestraram a psicóloga Marisa Lobo, e o pastor
evangélico Silas Malafaia defensores do referido PDC. As narrativas de defesa
construídas pelos mesmos têm o sentido de legitimar o discurso religioso na
arena política, a partir da apropriação (sem um rigor científico) de conhecimen-
tos do campo da psicologia, psicanálise, genética, etc, ocorrendo um processo
de transfiguração desse discurso puramente religioso, que ganha contornos
seculares (RORTY, 1996).
O que se pretende ressaltar é o fato de tais discursos e práticas, deriva-
dos de certas interpretações teológicas e exegeses bíblicas particulares, não se
limitarem aos templos religiosos, programas de rádio e televisão, mas adentra-
rem a arena política através dos parlamentares evangélicos que representam
essas denominações religiosas, ferindo os princípios constitucionais da laicidade
estatal. Zylbersztajn (2012) sustenta que a laicidade do Estado brasileiro não é
plena, e que o processo de consolidação da laicidade é histórico e construído,
tal como ocorre com os demais direitos fundamentais. De acordo com Pierucci
(2008), pessoas livres (re) querem Estados laicos. O autor refere-se enfatica-
mente à secularização do Estado com seu ordenamento jurídico, e menos à
secularização da vida, considerando que esta pode refluir, mas a do Estado não.

Considerações finais

Como afirmaram Mello et. all (2014, p. 315), “nunca se teve tanto, e o que
há é praticamente nada”, referindo-se ao paradoxo sobre as políticas públicas
para a população LGBT no Brasil.

2 Trata-se do Projeto de Decreto Constitucional (PDC 234/11), apresentado pelo deputado federal João
Campos (PSDB-GO), que havia sido arquivado a pedido de seu próprio proponente, devido, entre
outras razões, a pressões internas do seu próprio partido.

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Conforme vimos, ao movimento LGBT na atualidade, são colocados obs-


táculos que se referem à produção de políticas públicas e ampliação de direitos
civis para essa população. Uma possibilidade de superação de tais obstácu-
los parece estar no enfrentamento de seus opositores na arena política, o que
implica, em utilizar as estratégias dos mesmos, mobilizando as bases de seu
movimento a fim de eleger parlamentares que representem seus interesses na
arena política. E ainda, uma melhor articulação de parlamentares (das frentes
parlamentares pró LGBT e outras frentes que os representem) pela aprovação
de projetos de lei favoráveis à população LGBT, assim como a criação de novas
frentes parlamentares através da união de representantes setoriais LGBT de par-
tidos políticos diversos, que atuem de forma a superar divergências partidárias,
garantindo o trabalho em conjunto e criando assim, possibilidades de enfrenta-
mento da onda conservadora no Congresso Nacional.

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Referências

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do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 9, 2015.

DUARTE et al.(orgs). Valores Religiosos e Legislação no Brasil. A tramitação de pro-


jetos de lei sobre temas morais controversos. Garamond, Rio de Janeiro, 2009.

ESTADÃO. Projeto que criminaliza a homofobia será arquivado no Senado. São Paulo,
jan. 2015. Disponível em http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,projeto-que-crimi-
naliza-homofobia-sera-arquivado-no-senado,1617260. Acesso em 05 jun 2016.

FOLHA DE SÃO PAULO. Pastor organiza abaixo-assinado para presidir comissão


na Câmara. São Paulo, mar 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
poder/2013/03/1240319-pastor-organiza-abaixo-assinado-para-presidir-comissao-de-
-direitos-humanos.shtml> Acesso em 20 de mar 2014.

HOWES, R. João Antônio Mascarenhas (1927-1998): pioneiro do ativismo homosse-


xual no Brasil. Cad. AEL, v.10, n.18/19, 2003

MELLO, L. et al.. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre
alcances e possibilidades. Cadernos Pagu (39), julho-dezembro de 2012.

________________ ..Políticas Públicas de Segurança para a população LGBT no


Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(1), jan-abr, 2014.

NATIVIDADE, M. & LOPES, P. V. L..O direito das pessoas GLBT e as respostas religio-
sas: da parceria civil à criminalização da homofobia. In DUARTE et al.(orgs). Valores
Religiosos e Legislação no Brasil. A tramitação de projetos de lei sobre temas morais
controversos. Garamond, Rio de Janeiro, 2009.

RORTY, R. Religion as a conversation stopper. In: Philosophy and social hope. Penguin Books, 1999.

UOL Educação. Não aceito propaganda de opções sexuais. Da Redação, São Paulo,
mai, 2011. Disponível. em <http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/05/26/nao-a-
ceito-propaganda-de-opcoes-sexuais-afirma-dilma-sobre-kit-anti-homofobia.htm>
Acesso em 20 mar 2014.

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A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” COMO ESTRATÉGIA POLÍTICO-


SEXUAL E A REAÇÃO DO CONSERVADORISMO NO BRASIL

Henrique Araujo Aragusuku


Graduado em Psicologia
Universidade Federal de Mato Grosso
henriquearagusuku@gmail.com

GT 18 - Ativismos e produções acadêmicas LGBT, feministas e queer em tempos de


ascensão conservadora no Brasil

Resumo

Este trabalho tem como objetivo realizar uma análise sobre a ideologia de
gênero como estratégia discursiva de disputa política, sendo uma proposição
conservadora, em termos de políticas sexuais, e de oposição às políticas impul-
sionadas pelos movimentos LGBT e feministas. Para a construção dessa análise,
foi realizado um amplo levantamento bibliográfico e documental, possibilitando
a esquematização de uma genealogia desse conceito, assim como a sinteti-
zação de seus principais desencadeamentos políticos. É importante ressaltar
que essa análise se faz vinculada a uma leitura panorâmica do cenário político
nacional, compreendido como marcado pela reorganização e eventual avanço
do conservadorismo e das direitas políticas.
Palavras-chave: ideologia de gênero, conservadorismo, políticas sexuais,
democracia

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Introdução

Como apresentam diversos autores (MILLETT, 2000; RUBIN, 1984; WEEKS,


2002), a sexualidade é um constructo histórico, percorrido por disputas políticas
e tensionamentos sociais, com implicações diretas em nossa organização eco-
nômica e sociocultural. O conceito de “gênero” surge como um contraponto
ao espectro naturalizante do “sexo”, a partir do desenvolvimento dos estudos
feministas a partir de meados do século XX. Entretanto, é fundamental compre-
endermos que a divisão entre “gênero” e “sexo” não deve produzir categorias
antagônicas (sexo/natureza – gênero/cultura), que reforçam a naturalização da
sexualidade, mas categorias híbridas e interseccionais, ampliando o campo da
sexualidade para além do ato sexual e da esfera biológica.
A politização e consequente desnaturalização da sexualidade ao longo do
século XX, com o essencial protagonismo dos movimentos feministas e LGBT,
produziu novas formas de socialização e novas instituições políticas e eco-
nômicas (WEEKS, 1998). Como uma reação, atualmente presenciamos fortes
tensionamentos à noção de “gênero” propagada pelos movimentos feministas
e LGBT. Em confluência a isso surge o conceito da ideologia de gênero, for-
mulado pela intelligentsia católica, em contraponto as “ameaças aos valores
familiares”1. Assim, vivemos atualmente uma reação à desconstrução de um
alicerce do cristianismo: a família nuclear tradicional, com sua divisão sexual
hierárquica e estática.
A partir disso, a ideologia do gênero ganhou um papel de destaque nos
debates públicos – dentro do atual cenário político brasileiro de avanço do
conservadorismo político e das direitas – se tornando a principal bandeira de
antagonismo às políticas feministas e LGBT. Para o conservadorismo político-
-sexual brasileiro, o momento é de ofensiva; para os movimentos de esquerda
e suas políticas sexuais, é de reorganização. Esse artigo procura realizar uma
reflexão sobre o avanço da ideologia de gênero na conjuntura nacional, suas
raízes históricas e suas consequências políticas, os atores sociais envolvidos e
as articulações em torno dos ataques às políticas de promoção de diversidade

1 Como a nota da Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) considera a
aprovação da “ideologia de gênero” em Planos Municipais de Educação (SCHERER; SILVA; SCARA-
MUSSA, 2015).

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sexual e de gênero no Brasil, a partir de uma ampla revisão bibliográfica e


documental.

Breve genealogia da “ideologia de gênero”


A ideologia de gênero é uma tentativa de afirmar para todas as
pessoas que não existe uma identidade biológica em relação à
sexualidade. Quer dizer que o sujeito, quando nasce, não é homem
nem mulher, não possui um sexo masculino ou feminino definido,
pois, segundo os ideólogos do gênero, isto é uma construção
social.2

O termo ideologia de gênero ganhou visibilidade política no Brasil a par-


tir de 2014, com os tensionamentos em torno do Plano Nacional de Educação
(PNE), culminando na retirada das referências à “orientação sexual” no plano,
pelo Congresso Nacional. Entretanto, não se trata de um fenômeno estritamente
brasileiro. A ideologia de gênero, termo que simplifica e aglutina as teorias que
desnaturalizam nossas relações sociais e sexuais, vem sendo “combatida” na
maioria dos países que possuem determinado nível de hegemonia cristã, seja
por meio de manifestações, cartilhas, livros, conferências, e outras formas de
disputa de narrativas.
O livro The Gender Agenda: Redefining Equality3, da escritora estaduni-
dense Dale O’Leary, publicado nos anos 90, é um ponto inicial para entendermos
as atuais formulações teóricas que buscam contradizer os movimentos feministas
e LGBT, principalmente por ser amplamente citado nos materiais sobre ideolo-
gia de gênero. A autora constrói uma linha histórica do avanço das políticas de
gênero internacionalmente, dando tons de uma conspiração pela destruição dos
valores cristãos, aprofundando inclusive nas diferentes perspectivas de femi-
nismo e nas políticas de gênero da Organização das Nações Unidas (ONU). Em
um texto recente, a autora crítica a matéria Generation LGBTQI, do New York
Times, apresentando que as pautas LGBT são uma extensão da “gender agenda”

2 Trecho da nota escrita pelo Cardeal Orani João Tempesta (2015), Arcebispo Metropolitano do Rio de
Janeiro.

3 Há disponível uma versão em espanhol do livro, em: https://goo.gl/25uuRO.

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e que as teorias de gênero constituem as bases ideológicas dessa nova geração


que flexibiliza as regras sexuais (O’LEARY, 2013).
Outro texto bastante citado é o Perspectiva de género: sus peligros y avan-
ces , escrito por Jutta Burggraf, publicado em 2005, seguindo a linha de O’Leary,
4

apesar de ser mais sintético e atualizado, propagando que a “perspectiva de


gênero” tem suas raízes no marxismo, se ampara nos movimentos feministas
e LGBT, e tem como objetivo “desconstruir a sociedade” atacando prioritaria-
mente a família e a religião. Jutta Burggraf era uma teóloga bastante influente
e professora da Universidade de Navarra5 (CHAPA; FLANDES, 2011). Ángela
Aparisi, também professora de Navarra, no artigo Ideologia de género: de la
natureza a la cultura, a partir de diálogos com os escritos de Laura Pazzani6,
dentre as diversas questões levantadas, defende que “la familia heterossexual,
y su estabilidad temporal, deben ser promovidas por los sistemas jurídicos, al
tratarse de la ecología humana básica” (APARISI, 2009, p. 192).
Com edição traduzida para o português, o livro do argentino, advogado
pró-vida e professor de Bioética, Jorge Scala (2010), La Ideología del Género
o El género como herramienta de poder7, deu as bases para a introdução do
conceito no Brasil. Para Scala (2010), a “ideología de género, por ser falsa y
antinatural, a la postre no convence, y sólo puede implantarse em forma tota-
litaria” (p. 13) e que “es la actual ideología del mal” (p. 189). O autor também
apresenta o que considera os antecedentes históricos da ideologia de gênero:
1 - Ideólogos da “revolução sexual”, a partir da fusão entre a proposições de
Marx e Freud (Reich e Marcuse); 2 - construtivistas sociais (Derrida e Foucault);
3 - existencialistas ateus (Simone de Beauvoir); e 4 - feminismo de gênero,

4 Há traduções desse texto para o português, como em: http://goo.gl/jbldEQ. O texto também circula
de forma equivocada, sobre o nome “A ideologia de gênero: seus perigos e alcances” e com autoria
da “Conferência Episcopal Peruana (http://goo.gl/iHSfpp).

5 A Universidade de Navarra é vinculada à Opus Dei, uma corrente da Igreja Católica. Lembrando que
em dezembro de 2008, o Papa Benedicto XVI apontava os perigos da palavra “gênero”, em discurso
para a Cúria Romana.

6 Italiana, especialista em Bioética e membra do Comitê Internacional de Bioética da UNESCO, crítica


à ideologia de gênero, referenciada a partir de seu livro Identità di genere?Dalla differenza alla in-di-
fferenza sessuale, de 2008.

7 Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte da família. Editora Kathechesis, 2012.

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basicamente o feminismo teórico estadunidense, que posteriormente se junta


ao “lobby homossexual”.
Para termos uma noção do avanço internacional da ideologia de gênero,
temos a cartilha L’idéologie du genre, editada pelo movimento La Manif Pour
Tous (2013), que encampou uma poderosa campanha contra a aprovação da lei
do casamento homoafetivo na França (apelidada de mariage pour tous), orga-
nizando manifestações massivas naquele país, principalmente em sua capital
Paris, em 2013, ano de aprovação da lei. Há também uma versão em italiano
dessa cartilha, editada pela vertente italiana desse movimento (ASSOCIAZIONE
LMPT, 2014). Mais recentemente, temos a nota da American College of
Pediatricians (CRETELLA; METER; MCHUGH, 2016), utilizando o termo gender
ideology para afirmar que os “fatos” biológicos que determinam a realidade e
não uma ideologia, em referência à questão trans em crianças.
A noção da ideologia de gênero tem sua fermentação no Brasil a partir
de teóricos vinculados ao catolicismo, em especial padres e bispos, entretanto
quando chega ao Congresso Nacional alcança as lideranças evangélicas e se
populariza entre os fiéis de ambas vertentes do cristianismo. A partir da vitória
da ideologia de gênero, com a retirada do termo “orientação sexual” do PNE, em
2014, tal discurso é instrumentalizado como estratégia de mobilização popular
contra a “destruição da família” e o avanço do “marxismo cultural”. Logo, a
ideologia de gênero se torna uma bandeira central do avanço do conservado-
rismo cristão no Brasil, que é marcantemente protagonizado pelos evangélicos
na esfera estatal.
Dentro desse cenário, a autointitulada psicóloga cristã, filiada ao Partido
Social Cristão (PSC) e vinculada à Igreja Assembleia de Deus, Marisa Lobo, vem
se promovendo a partir do boom da ideologia de gênero no Brasil, publicando
o livro Ideologia de Gênero na Educação, em 2016, distribuindo-o para parla-
mentares e figuras públicas, além de organizar um curso de capacitação sobre
ideologia de gênero, no Paraná.

Avanço do conservadorismo e o atual momento político

É de acordo com diversas análises (CRUZ; KAYSEL; CODAS, 2015) que


compreendemos que vivemos, atualmente, um momento de ofensiva do con-
servadorismo político no Brasil, que se desenrola em meio a uma crise de
legitimidade governamental – culminando no afastamento da presidenta Dilma

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Rousseff (PT) do cargo – além de uma crise econômica nacional, agravada pelo
cenário de crise internacional. No Brasil, a ofensiva da ideologia de gênero
tomou proporções aterradoras, com a realização de manifestações populares
conservadoras em diversas câmaras de vereadores e assembleias legislativas
para a aprovação de leis contrárias à “ideologia de gênero”. Apesar da oposi-
ção dos movimentos feministas e LGBT em muitas dessas sessões legislativas,
o cenário geral foi de retrocesso nas políticas sexuais, seja pela retirada da
menção à “gênero” e “orientação sexual” dos projetos legislativos, ou pela apro-
vação de leis assumidamente repressoras. O momento mais marcante se deu
com os protestos pela retirada da “ideologia de gênero” dos Planos Municipais
e Estaduais de Educação, que lotaram as casas legislativas em todo o país, no
ano de 20158.
Logo no início do primeiro mandato de Dilma (2011-2014) tivemos o pri-
meiro levante conservador contra uma política LGBT, por meio de campanhas
nas redes virtuais e denúncias nas casas legislativas, desencadeando o cance-
lamento da distribuição dos materiais do Escola Sem Homofobia, fazendo o
Governo Federal recuar a ponto de dizer que “não faz propaganda de opções
sexuais”. Em seguida, em 2013, o pastor ultraconservador, Deputado Federal
Marco Feliciano (PSC/SP), vinculado a Assembleia de Deus, assume a presidên-
cia da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), desencadeando uma
onda de protestos em todo o país, produzindo sérios atritos entre o Governo
Federal e sua base política evangélica. Naquele momento não havia ideologia
de gênero, entretanto o acirramento do antagonismo entre as lideranças cristãs,
principalmente conservadoras, e o campo político à esquerda já era um dado9.
O conservadorismo cristão, fortemente alinhado com o liberalismo econô-
mico, se tornou um dos alicerces do processo de impeachment da presidenta,
visto para a direta política como um símbolo da derrocada das políticas de
esquerda: do “marxismo cultural”, da “ideologia de gênero”, da “ditadura gay”,
da “doutrinação comunista”. Como apresenta Flávia Biroli (2015), o avanço da
ideologia de gênero em nossa sociedade, em sua essência, é uma ameaça à

8 Ao menos dez Estados retiraram a “ideologia de gênero” dos Planos Estaduais de Educação (PEE), e
um número muito maior de munícipios fizeram o mesmo em seus planos municipais (PME).

9 Algumas figuras emblemáticas do conservadorismo cristão eram antes da base política de sustenta-
ção do Governo do PT, como Marco Feliciano (PSC/SP) e Eduardo Cunha (PMDB/RJ).

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consolidação de valores básicos da democracia, como o respeito à diversidade


humana, a laicidade do Estado e o combate à discriminação e violência contra
minorias. Em suas palavras:
Vejo as ofensivas contra a “ideologia de gênero” como a busca de
naturalização de posições – as visões bem situadas e particulares
de alguns, no caso de grupos religiosos, apresentadas como fossem
universais. Nesse caso, o recurso à ideia de que existe uma natu-
reza/verdade e uma ideologia/falsidade é o dispositivo central para
a universalização de uma posição bem situada.

Neste sentido, a ideologia de gênero não é um fenômeno isolado, sendo


uma especificidade, em termo de políticas sexuais, do avanço do conserva-
dorismo político no Brasil. Uma estratégia política que busca não apenas o
retrocesso das políticas feministas e LGBT, mas também a consolidação da
naturalização do mundo social, visando a manutenção do sistema econômico
capitalista e seu ordenamento sociocultural racista, patriarcal e heterossexista.

Conclusão

A reinvenção das estratégias políticas do conservadorismo e das direitas


no Brasil vem desencadeando uma série de retrocessos em termos de políticas
sociais e políticas de direitos humanos, trazendo sérios riscos para a consolidação
de processos de ampliação da cidadania e democratização do poder econô-
mico e político. A ideologia de gênero está inserida dentro desse mais recente
ascenso conservador, se tornando o principal discurso opositor à possibilidade
de rediscutirmos nossas normas e hierarquias sexuais, ainda estruturalmente fin-
cadas no paradigma cristão heterossexual, cisgênero, monogâmico e patriarcal.

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LUTA POR RECONHECIMENTO: DAS CONQUISTAS AOS


RETROCESSOS

Leandro Rocha dos Santos


Mestrando em Filosofia - PPGFIL
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
leandro_rocha2006@htomail.com

GT 18 - Ativismos e produções acadêmicas LGBT, feministas e queer em tempos de


ascensão conservadora no Brasil

Resumo

Inspirado em algumas discussões filosóficas sobre o problema das liberdades


individuais, o objetivo deste trabalho é oferecer luz às discussões políticas da
luta por reconhecimento de direitos sexuais das pessoas LGBTI e inferir as reais
consequências que a sua não concessão provoca, refletindo desde a ausência
de políticas públicas e direitos civis, por exemplo, até processos de exclusão e
estigmatização. Como efeito disso, percebe-se um expressivo aumento das vio-
lências, que são fomentadas por diversas instituições sociais como a família, a
igreja e pelo próprio direito – por meio de seus legisladores, instâncias e ordena-
mentos jurídicos –, reificando, ao que nos parece, esse estigma social brasileiro
que são as violências contra as pessoas LGBTI.
Palavras-chave: liberdade individual; reconhecimento; direitos sexuais; violên-
cias; diferenças

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Introdução

Em uma época em que as liberdades individuais das pessoas LGBTI1 vêm


sendo constantemente restringidas, mesmo diante de significativas conquistas,
surge a necessidade de pensar quais são os agravantes da ilegítima intervenção
da sociedade e do Estado na vida de seus membros. O pluralismo e as diferen-
ças são características marcantes da sociedade moderna, e é a partir deles que
pensaremos os direitos sexuais das pessoas LGBTI nas democracias contempo-
râneas. Sinalizaremos que sua negação, por parte do Estado e das instituições
sociais, reforça os preconceitos e estigmas sociais, contribuindo para o aumento
da violência psicológica, simbólica e física, contrária às bases democráticas.
Ao mesmo tempo, no Brasil, uma questão importante vem sendo revisi-
tada com maior frequência: as discussões em torno das homossexualidades e
suas agendas de lutas. Há, de fato, questões ligadas a essa problemática que se
tornaram polêmicas, dada a falta de adequada compreensão da sua dimensão.
Infelizmente, as discussões em torno da adoção de filhos por casais homossexu-
ais, do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, da luta por visibilidade e
do reconhecimento social, por exemplo, não são levadas tão a sério. Estão conta-
minadas por concepções abrangentes, calcadas em uma moralidade, sobretudo,
de viés religioso. A impressão que se tem é que, por serem entendidas como
questões “marginais”, não devem ser discutidas com a devida seriedade, o que
expõe de forma clara os golpes pelos quais as liberdades individuais acabam
tendo que enfrentar e evidencia-se, com isso, o crescente avanço e consolida-
ção de grupos conservadores à frente de instâncias legítimas de exercício do
poder representativo, como é o caso do Congresso Nacional.

Luta por reconhecimento: agenda de lutas, onda conservadora e


ataques à liberdade

Os movimentos de insurgência que, nos últimos anos, vêm acontecendo


no Brasil, sobretudo, a partir das jornadas de junho de 2013, expõem justamente

1 Sigla para designar lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos. Sobre essa discussão,
Júlio Assis Simões e Regina Facchini fazem uma abordagem histórica em Na trilha do arco-íris: do
movimento homossexual ao LGBT (2008).

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esses lados opostos de uma luta que mostra as contradições do sistema capi-
talista, bem como a insegurança política em torno da crise representativa de
nossa democracia.
Ressurgem, no meio dessas crises, questões bem mais antigas, sobretudo,
no campo da sexualidade. Setores reacionários e conservadores se levantam
contra a agenda de lutas dos movimentos sociais, especialmente, contra os direi-
tos sexuais das pessoas LGBTI, os direitos trabalhistas, em favor da privatização
e do sucateamento da educação púbica, e surgem manobras políticas (inclusive
dentro de partidos intitulados de “esquerda”), tentando aprovar projetos de lei e
ementas, no intuito de impor uma agenda de retrocessos para o país. Contudo,
não se pode olhar a contingencialidade desses fenômenos de maneira isolada,
sectária ou criticá-las, desconsiderando sua historicidade.
Se formos a fundo, verificaremos que as justificativas dadas por aqueles
que são contrários à concessão de direitos sexuais às pessoas LGBTI são frágeis,
quando não, inconsistentes. Há aqueles que se apoiam na tradição, dizendo
que determinadas escolhas não são compatíveis com os princípios da família
tradicional, da religião e da moral vigente. Mas, como se sabe, tanto a religião
e a moralidade, quanto a família, são construções sociais que foram se corpo-
rificando, e compete, portanto, àqueles que se engajam nessas lutas, o papel
de desnaturalização desses elementos, pois todos eles são socialmente datados
e geograficamente localizados sob um determinado regime de verdades em
dadas relações de poder.
Diante disso e dos ataques que as liberdades individuais vêm sofrendo, se
faz necessário propor ações que, articuladas por meio de táticas e estratégias
políticas, reivindiquem não só o direito de exercer a própria liberdade indivi-
dual, mas sobretudo, que o pleno exercício dessa liberdade consiga acumular
forças e fazer alianças na luta por reconhecimento. Não apenas a participação
direta nos direitos de distribuição, mas, sobretudo, exigir a participação e usu-
fruto dos direitos de reconhecimento.
É importante, antes de mais nada, dizer em que consiste os direitos de
distribuição e os direitos de reconhecimento, até mesmo para melhor compre-
ender as motivações daqueles que os reivindicam. A partir da distinção feita
pela filósofa Nancy Fraser (1947-) em relação a esses direitos, José Reinaldo
de Lima Lopes (2005, p.72) afirma que “os direitos de distribuição são tradi-
cionalmente chamados direitos sociais e têm uma função especial: desfazer

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as injustiças estruturais e inevitáveis do sistema de classes existente no capita-


lismo”. Mas, para que eles existam, é necessário, antes, admitir algumas coisas:
(a) que existem classes sociais; (b) que as classes sociais não são um
fenômeno cósmico, mas institucional e histórico; (c) que as classes
sociais geram situações de injustiça; (d) que a produção social da
riqueza é um empreendimento social comum; (e) que a injustiça
das classes consiste na apropriação desigual dos resultados sociais
da produção da riqueza; (f) que mesmo aqueles menos capazes
e menos produtivos, se ainda assim forem reconhecidos como
membros da sociedade, têm direito a ser mantidos dentro dela por
mecanismos de distribuição da riqueza. (LOPES, 2005, p.72)

Entretanto, os direitos de reconhecimento possuem, segundo Fraser, outra


dimensão. Por meio deles, podemos pensar em questões mais específicas e
buscar compreender fenômenos que, muitas vezes sem essa compreensão, não
conseguem ser captados de modo inteligível. Para Fraser (1997) apud Lopes
(2005, p. 72), eles precisam partir dos seguintes pontos:
(a) que existem na sociedade grupos estigmatizados; (b) que os estig-
mas são produtos institucionais e históricos, e não cósmicos; (c) que
os estigmas podem não ter fundamentos científicos, racionais ou
funcionais para a sociedade; (d) que as pessoas pertencentes a gru-
pos estigmatizados sofrem a usurpação ou a negativa de um bem
imaterial (não mercantil, nem mercantilizável), mas básico: o res-
peito e o auto-respeito; (e) que a manutenção social dos estigmas é,
portanto, uma injustiça, provocando desnecessária dor, sofrimento,
violência e desrespeito; (f ) que os membros de uma sociedade,
para continuarem pertencendo a ela, têm direito a que lhes sejam
retirados os estigmas aviltantes.

Direito ao reconhecimento, portanto, não é direito ao privilégio, mas é o


direito de ser visto sem discriminação seja por causa de sua orientação sexual,
credo, cor ou qualquer outra forma de expressão de sua identidade. Na luta por
reconhecimento, portanto, busca-se restituir à pessoa ofendida sua dignidade,
tendo como expressão maior a luta pela diferença. É o desejo de que as iden-
tidades, sejam elas quais forem, sejam tratadas jurídica e politicamente como
equivalentes, ou seja, o direito de ser diferente e de que essa diferença seja um
traço irrelevante.

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A partir dessa constatação e de seus desdobramentos, a diferença se


apresenta como uma ameaça à ordem, e todas as formas de sexualidade não-
-binárias são vistas como anormais, gerando um desconforto às pessoas LGBTI,
vistas como a escória da sociedade e uma ameaça à “verdadeira” família. Isso
é evidenciado pela agenda de retrocessos e da retirada dos direitos de alguns
grupos estigmatizados como aconteceu em setembro de 2015, por exemplo, na
ocasião da aprovação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei 6583/2013,
que tramitava desde 2013 na Câmara dos Deputados, conhecido como o
Estatuto da Família, que define “família” como a união entre homem e mulher,
por meio de casamento ou união estável, e exclui de sua composição a união
entre pessoas do mesmo sexo.
O que está em jogo nessa proposta é a negativa de direitos às pessoas
LGBTI, a discriminação institucionalizada e, no contexto do regime democrá-
tico, o cerceamento aos direitos fundamentais. Ao se deparar com projetos de
lei ou ementas constitucionais como esse, que ferem os princípios democráti-
cos, o que resta a fazer é mobilizar os movimentos sociais, articulando lutas
conjuntas com os demais setores da sociedade, para que se impeça a ascensão
de setores reacionários, que constantemente ameaçam as conquistas de grupos
estigmatizados.
Frente a essa crescente onda conservadora, é preciso atentar para duas
questões. Por um lado, exigir que o Estado garanta as condições para que haja
o desenvolvimento das liberdades e das expressões identitárias mais diferentes.
Por outro, desconfiar dos discursos que enxergam na lei o único instrumento
eficaz de combate às violências às quais as pessoas LGBTI são submetidas.
Há um grande equívoco em pensar que assegurando essas condições ou que
somente a criminalização das violências às pessoas LGBTI, por exemplo, dimi-
nuir-se-ão os crimes de ódio ou extinguir-se-ão os preconceitos arraigados na
cultura. Prova disso é a persistência da violência contra as mulheres, que reforça
a ideia de que a criação da Lei Maria da Penha não foi (e ainda não continua
sendo) suficiente, em si mesma, para diminuir os números da violência – pelo
contrário, trouxe à tona contradições e gerou grande sentimento de impunidade
frente às estatísticas.
Contudo, algumas políticas vêm sendo implementadas ao longo dos anos
para que a população LGBTI tenha sua cidadania assegurada, como é o caso
do uso do nome social por pessoas transexuais. Mas, entre a lei e a prática,
há um abismo que separa as pessoas transexuais das demais pessoas, pois,

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quando precisam utilizar desses recursos, frequentemente passam por situações


de humilhação, constrangimento e vexame, como no caso constatado recen-
temente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em que um
estudante transexual, ao recorrer ao Posto de Atendimento Médico da refe-
rida Instituição, fora discriminado, como relatado em nota pela Associação dos
Docentes da Universidade Rural (ADUR):
A usual postura de desrespeito administrativo aos direitos tem
resultado em práticas de violências transfóbica e de gênero siste-
máticas nas universidades. O mais recente caso foi tornado público
pela denúncia de violência contra o discente transexual que, num
momento de vulnerabilidade resultante de prática de assédio den-
tro da universidade, tentou suicídio. A cadeia de práticas abusivas
não se interrompeu e ao buscar o Posto de Atendimento Médico
da UFRRJ foi caluniado, mal atendido e ferido tanto pela autori-
dade médica, quanto pela assistência em enfermagem (que acusou
de falsificação de documento por constar no mesmo seu nome
do registro civil e seu nome social). Este fato por si só é apenas
uma demonstração de como a administração central da UFRRJ
tem sido negligente no que diz respeito à garantia de direitos da
população LGBTTI ruralina. Mas para além das triviais e inefica-
zes sindicâncias, as quais não punem quem violenta, exigimos que
este caso seja encaminhado aos Conselhos Regionais de Medicina
e Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro, com vistas a avaliar
o comprometimento ético desses trabalhadores diante de um
paciente em situação de extrema vulnerabilidade. (ADUR, 2016)

Nesse sentido, e a partir desses apontamentos, a criminalização como


única forma de combate às violências, seria, no mínimo, utópica, quando não,
romântica. É fundamental tipificar os crimes de ódio praticados contra as pes-
soas LGBTI, porém sua criminalização, como um fim em si mesmo, deve vir
acompanhada de políticas públicas que deem conta das especificidades pelas
quais as pessoas LGBTI passam, desde o incentivo de amplos debates nacionais
sobre a questão da educação sexual e de gênero nas escolas, até a aprovação
de leis afirmativas que garantam a cidadania plena da população LGBTI.
Também precisamos questionar e criticar o binarismo de gênero, que
exclui e promove processos de naturalização. Nesse sentido, a proposta dos
pós-colonialistas, dos queer e dos saberes subalternos é a de uma política da
diferença, do reconhecimento de quem é diferente para transformar a cultura

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hegemônica. Uma política da diferença exige, portanto, uma necessidade de ir


além da tolerância e da inclusão, mudando a cultura como um todo por meio
da incorporação da diferença, do reconhecimento do “Outro” como parte de
todos nós.

Considerações finais

Nosso objetivo, com essa discussão, foi evidenciar os retrocessos e con-


sequências que essa falta de tolerância e acentuado preconceito – fomentada,
sobretudo, pela moral cristã e legitimada muitas vezes pelo próprio Estado –
desencadeia na sociedade. Por isso, é importante resgatar duas coisas: primeiro,
a importância do respeito à individualidade e sua expressão como forma de
enriquecer a sociedade por meio da diferença de identidades e culturas e, em
concomitância, refletir sobre o quão maléfico pode ser a interferência pater-
nalista do Estado quando esse não respeita a laicidade que o fundamenta e,
sobretudo, quando seus representantes ferem os princípios democráticos.
Feitas essas considerações, nosso intuito foi considerar também que a
luta pela liberdade individual nem sempre foi uma constante na história do
pensamento humano. Assim como a luta pelos direitos das mulheres, a luta por
reconhecimento e pelos direitos sexuais das pessoas LGBTI, por exemplo, tam-
bém é um fenômeno que precisa ser historicizado, uma vez que os problemas
podem se alterar mediante as relações e dinâmicas próprias de cada momento
histórico. O que se constata atualmente é que, diferentemente de outras épo-
cas, as liberdades individuais vêm sendo ameaçadas, a ponto de não se saber
mais até onde a sociedade, a religião, a família, o direito e o Estado podem ou
não intervir na liberdade dos indivíduos. Enquanto os princípios que organizam
nossa sociedade estiverem fundamentos em visões tradicionais, calcadas em
uma moralidade, sobretudo, de origem cristã, e não em princípios políticos, será
praticamente impossível haver conquistas e avanços importantes.
Vários desafios se apresentam como urgentes frente à agenda de lutas
e da onda conservadora que está em curso, sobretudo, na luta por reconhe-
cimento das pessoas LGBTI. O importante é não se resignar, é se colocar em
movimento, provocar rupturas e resistências, contestando veemente o modelo
heterormativo de sociedade, na tentativa de romper as imposições dos padrões
de comportamento heterossexista e desmantelá-lo, por meio de práticas dis-
cursivas, estratégias e táticas de enfrentamento. E, com isso, demonstrar as

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reais consequências que essa internalização e padronização da igualdade (e


repulsa à diferença) ocasiona, marginalizando e excluindo comportamentos ou
expressões que fujam às regras da normalidade, tornando passível de repulsa,
violência, constrangimento e opressão às diferenças.

Referências

ADUR. Nota de Repúdio à Administração Central da UFRRJ sobre casos de trans-


fobia e violência de gênero. Disponível em: <http://www.adur-rj.org.br/portal/
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Revista Internacional de Direitos Humanos. Ano 2, nº 2, pp.65-95, 2005.

RIOS, Roger Raupp. “Direitos sexuais, uniões homossexuais e decisão do Supremo


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LEIVAS, Paulo Gilberto Logo (orgs). Homossexualidade e direitos sexuais: reflexões a
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sexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

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DIVERSIDADE E SEXUALIDADE EM GRUPOS DE


DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: REFLEXÕES
SOBRE A PRÁTICA EM SAÚDE

Mariana Galvão Pereira


Mestranda em Enfermagem
Faculdade de Enfermagem/Universidade Federal de Juiz de Fora
marigalvaop@gmail.com

Luiza Vieira Ferreira


Mestranda em Enfermagem
Faculdade de Enfermagem/Universidade Federal de Juiz de Fora
luiza.luvieira@hotmail.com

Rafael Carlos Macedo de Souza


Mestrando em Enfermagem
Faculdade de Enfermagem/Universidade Federal de Juiz de Fora
rafaelcarlos_souza@hotmail.com

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

Os direitos à saúde sexual e à saúde reprodutiva são direitos humanos, conso-


lidados em leis nacionais e declarações internacionais. Não existe direito mais
importante que outro, o que existe é a necessidade do pleno exercício da cida-
dania, através do conjunto dos direitos humanos. O objetivo é refletir sobre a
prática dos Grupos de Direitos Sexuais e Reprodutivos e buscar subsídios teóri-
cos para consolidá-lo como um local para o diálogo amplo sobre sexualidade e
diversidade de gênero. E para, além disso, propomos aqui estratégias para que
esse espaço seja algo para além dos padrões heteronormativos. Indicamos que
os grupos educativos sejam espaços menos técnicos e cada vez menos utilizem
metodologias da educação tradicional.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; política; gênero; homocultura.

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Introdução

O direito a saúde é inicialmente descrito em nosso país como direito


social no Art. 6º da constituição, é consolidado como direito de todos e dever
do Estado no Art. 196. Para garantia dos direitos o Sistema Único de Saúde
(SUS) foi criado por intermédio da lei nº 8.080/1990, descrevendo como seus
princípios: a equidade, a integralidade, universalidade e a participação social.
Entendendo que o conceito ampliado de saúde é considerado para além da
ausência de doenças e esse trabalho tem o intuito de refletir sobre o direito à
saúde sexual e reprodutiva.
Os direitos à saúde sexual e à saúde reprodutiva são direitos humanos,
também, consolidados em leis nacionais e declarações internacionais. Os direi-
tos humanos se inscrevem na ótica dos direitos sociais, partindo do pressuposto
que estes são universais, inerentes à condição de pessoa e não relativos à inser-
ção social ou cultural. Respeitar os direitos humanos é promover a vida em
sociedade, sem discriminação, e para a igualdade de direitos é necessário o res-
peito às diferenças. Não existe direito mais importante que outro, o que existe é
a necessidade do pleno exercício da cidadania, através do conjunto dos direitos
humanos (BRASIL, 2013).
Em esfera nacional, citamos como marcos em termos de legislações refe-
rentes aos direitos sexuais e reprodutivos o Programa de Assistência Integral
à Saúde da Mulher (PAISM/1984); a Constituição Federal de 1988; a Lei nº
9263/1996 que regulamenta o planejamento familiar; a Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher – 2004; a Política Nacional dos Direitos
Sexuais e os Direitos Reprodutivos – 2005; a Portaria nº 2.836/2011 que institui
a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (BRASIL, 2013).
Podemos notar a importância do tema para a promoção da saúde da
população em geral, além da redução da vulnerabilidade de grupos populacio-
nais que possuem seus direitos humanos violados em função da sexualidade
como a população LGBTTI, as profissionais do sexo e as pessoas que vivem com
HIV/Aids. E também os grupos que erroneamente se pressupõe uma inatividade
sexual, como idosos, deficientes físicos, adolescentes, pessoas em situação de
prisão e de rua (BRASIL, 2013).
O conceito de vulnerabilidade é estabelecido por Ayres (1999) para com-
preender de forma mais completa o complexo processo das práticas de saúde

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como sociais e históricas, necessitando da intervenção de outros setores da


sociedade. Portanto, os profissionais de saúde exploram as vulnerabilidades
individual; compreende o grau de qualidade de compreensão da informação e
de aplicação da mesma em sua vida; social; os fatores sociais que determinam
o acesso às informações, exposição a violência, educação, trabalho, moradia,
lazer e outros; e programática; refere-se ao grau de comprometimento das insti-
tuições, do gerenciamento, dos recursos nos diversos níveis de atenção.
Partindo do pressuposto que todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direito, a orientação sexual e a identidade de gênero
não deveriam ser motivos para discriminação e por consequência de aumento
de vulnerabilidade, porém, a realidade é que mesmo com leis e Constituições
a violação desses direitos ainda acontece, por meio do ódio, do preconceito,
da exclusão e até mesmo da violência física (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA,
2007).
Sendo assim, o objetivo é refletir sobre a prática dos Grupos de Direitos
Sexuais e Reprodutivos (GDSR) e buscar subsídios teóricos para consolidá-
-lo como um local para o diálogo amplo sobre sexualidade e diversidade de
gênero. E para, além disso, propomos aqui estratégias para que esse espaço seja
algo para além da educação tradicional.

O fazer na APS: instrumentalizando o espaço da diversidade

A APS (Atenção Primária a Saúde) é destinada a promover a qualidade


de vida, a desenvolver as habilidades pessoais, a autonomia do indivíduo e
a criação de ambientes favoráveis à saúde que irão proporcionar um maior
conhecimento do indivíduo pela sua própria saúde, contribuindo assim, com
uma maior adesão no desenvolvimento do autocuidado (ROCHA et al., 2012;
PINTO; CYRINO, 2015). E para que exista êxito dos usuários do SUS na prática
do autocuidado, os profissionais de saúde deverão realizar uma prática mais
humanizada reconhecendo a subjetividade de cada ser, garantindo desta forma
o que é preconizado pelo Art. 4º da Carta dos Direitos dos Usuários do SUS
(2011) acrescido do respeito ao direito da pessoa de ser atendida sem distinção
de idade, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero dentre outros.
Antes mesmo da divulgação da Carta dos Direitos dos Usuários do SUS
(2011), tivemos a 13ª Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 2008) que teve
discussões pautadas na inclusão da orientação sexual e da identidade de gênero

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como fatores de determinantes sociais da saúde, como, uma forma de se tam-


bém garantir os direitos sexuais e reprodutivos.
Os primeiros desafios para se fazer valer o direito de todo cidadão vai ao
encontro do que seria a implementação de estratégias para garantir a acessi-
bilidade da população nas instituições de saúde, principalmente, a população
que possui maiores vulnerabilidades como a população LGBTTI. E, essa imple-
mentação de novas estratégias, tem o objetivo de diminuir a discriminação e
promover o direito à saúde de todos (BRASIL, 2012).
Quando se trabalha em um serviço de saúde que está intimamente ligado
a rotina da comunidade adstrita, uma das melhores formas de se promover a
saúde é indo até as pessoas que irão compor o público alvo da ação que se
pretende desenvolver; o que poderá proporcionar o desenvolvimento de uma
ação transformadora que envolverá a sociedade em toda a sua totalidade.
Mas, atualmente, o fazer na APS sofre uma inversão de valores e está
focada em um quantitativo de atendimentos por dia, sendo estipulado um limite
máximo de 15 minutos por atendimento individual e 60 minutos para o desen-
volvimento de atividades educativas à nível primário de atenção, limitando-se
a realização de 2 ações educativas ao ano (JUIZ DE FORA, 2016). Então, como
ficaria a realização das ações educativas voltadas para a promoção da saúde,
como a realização dos GDSR? Enfrentaríamos um retrocesso na prática da pro-
moção da saúde como um espaço destinado para a construção de um saber
coletivo?

A diversidade de gênero no GDSR

O GDSR se apresenta como uma das várias ações educativas que devem
e podem ser realizadas pelos profissionais que atuam na APS. Nas atividades
em grupo, os sujeitos se mostram como participantes ativos no processo, pos-
sibilitando a construção do conhecimento a partir das experiências do saber
popular em articulação com o saber científico, proporcionando uma dialogici-
dade entre os atores envolvidos (FREIRE, 2004). Assim, é possível que a pessoa
reconheça suas necessidades e compartilhe suas dúvidas de forma a possibilitar
uma articulação com as discussões sobre sexualidade, diversidade de gênero,
reprodução, contracepção e relações sociais (BRASIL, 2013).
A ação de educação em saúde tem o intuito de sensibilizar a comunidade
sobre a igualdade entre os sexos; sobre o conhecimento do corpo humano;

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as maneiras de prevenir infecções sexualmente transmissíveis; o planejamento


familiar e/ou métodos contraceptivos; o sexo como algo além da reprodução
humana, mas constitutiva de relações amorosas e afetivas entre pessoas; as dife-
renças dos conceitos de sexo e gênero; o respeito às diferenças (BRASIL, 2009).
O desenvolvimento dessa ação educativa fica a cargo dos profissionais
de nível superior que atuam na APS, como: enfermeiros, médicos, assistentes
sociais e dentistas, podendo, ainda, promover uma articulação com os demais
profissionais do serviço. Na população participante dos grupos, temos pessoas
gays, bissexuais, lésbicas, travestis, transexuais e héteros, cabe ao serviço e aos
profissionais compreender que as demandas de cada grupo são complexas e
únicas, necessitando que os grupos se adequem para respondê-las de maneira
resolutiva, inclusiva e com qualidade (BRASIL, 2013).
Durante os grupos, os profissionais devem utilizar-se da linguagem sim-
ples, acessível a todos os presentes, além de realizarem suas ações seguindo
seus preceitos éticos, almejando sempre o adequado acolhimento e à auto-
nomia das pessoas, para isso faz-se necessário abordar os participantes com
uma escuta atentiva, ouvir o outro sem expressar juízo de valor e preconceitos,
reconhecendo este outro como um ser único, singular e dono de suas ações
(BRASIL, 2013).
Uma revisão integrativa sobre sexualidade e enfermagem realizada em
duas revistas principais da área, apontam o quanto o conceito de sexualidade
para a profissão ainda é arraigada nos aspectos biológicos (COSTA; COELHO,
2011). Outros estudos mostram a dificuldade de acesso da população LGBTTI
aos serviços de saúde, destaca-se o preconceito por parte dos profissionais que
restringe esta população ao buscar pelo serviço, assim os usuários relataram
que utilizam dos serviços apenas em casos de sintomas patológicos, mantendo
um conceito de saúde ligado apenas à ausência de doenças (GARCIA, et al.,
2016; TAQUETTE; RODRIGUES, 2015).
Nos estudos supracitados e em nossa vivência, presenciamos como a
LGBTfobia invade os serviços de saúde e fere as diretrizes do Sistema Único
de Saúde (SUS), os direitos humanos e os direitos sociais constitucionais. Então,
toda a distância do serviço de saúde pode agravar ainda mais a vulnerabilidade
dos sujeitos envolvidos nesse novo movimento social, o que nos aproxima da
necessidade de buscar consolidar o espaço dos GDSR como um local para
promover a saúde sexual, sensibilizando sobre as diferenças, sendo um espaço
inclusivo e que aconteça para além dos muros e horários fixos da Unidade de

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Saúde, mas que ocorra também em ambientes sociais e de uso coletivo, como:
escolas, praças, quadras entre outros.

Considerações finais

A criação de políticas de saúde para grupos específicos é algo inicial-


mente antagônico aos princípios supracitados, como a universalidade. Porém, a
realidade brasileira é repleta de iniquidades que devem ser combatidas diaria-
mente por todos os profissionais de saúde.
Do ponto de vista epidemiológico, a atenção a saúde da população LGBTTI
deve compreender que os agravos à saúde estão intrinsecamente ligados aos
determinantes sociais de saúde. Sendo assim, enfatizamos que as necessidades
de saúde, não dizem respeito apenas às consequências das representações que
recaem sobre suas práticas sexuais e modos de vida, sendo consideradas des-
viantes do padrão de normalidade, implicando uma heteronormatividade moral
vigente nas relações humanas. Esse pressuposto inicial é peça-chave para a
compreensão de como as práticas sexuais não-heterossexuais são concepções
patologizantes como forma de justificar o atendimento da população nos serviços.
Entendemos que a inserção do tema de valorização da diversidade sexual
e de gênero nos serviços de saúde são um passo importante para alcançarmos
um respeito e diminuição dos preconceitos. O primeiro passo é a integração
das políticas de saúde integral das minorias nos currículos em saúde, pois são
esses que estarão atrás da mesa acolhendo - ou não - a todos usuários. O res-
peito à diversidade é uma luta que cabe a todos, uma vez que, cada episódio
de preconceito nos serviços nos afasta da construção de um SUS realmente
equânime, universal e integral.
Indicamos que os grupos sejam espaços menos técnicos e cada vez menos
com metodologias da educação tradicional. Por que não utilizar, as artes: o
cinema, a música, a performance, as pinturas. Os GDSR, além de um espaço
para sensibilizar a população em geral é uma maneira de aproximar os pro-
fissionais da rede para o tema de saúde da população LGBTTI. Além de um
espaço de contracepção e reprodução, defendemos um espaço de uma prática
dialógica e que construa o respeito a diversidade humana.

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Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília-DF: Ministério da Saúde, 2012.
32 p. : il. (Série E. Legislação de Saúde)

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revisão sistemática. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 19, n. 52, p. 57-70,
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FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30. ed.


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JUIZ DE FORA - Prefeitura. Secretaria de Saúde. Catálogo de Normas da Atenção


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PINTO, T. R.; CYRINO, E. G. Com a palavra, o trabalhador da Atenção Primária à


Saúde: potencialidades e desafios nas práticas educacionais. Interface (Botucatu),
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PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Princípios sobre a aplicação da legislação interna-


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ROCHA, P. A. et al. Promoção da Saúde: A concepção do enfermeiro que atua no


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TAQUETTE, S. R.; RODRIGUES, A. O. Experiências homossexuais de adolescen-


tes: considerações para o atendimento em saúde. Interface-Comunicação, Saúde,
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GÊNERO: O QUE O CRISTIANISMO PRECISA SABER?

Rodrigo Henrique de Jesus Nascimento


Graduando em Serviço Social1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
nassck@gmail.com

GT 22 - Educação, religião e direitos humanos: diálogos interdisciplinares sobre a


diversidade sexual e de gênero

Resumo

A partir de um levantamento de artigos que tenham como temas gênero e


sexualidade na área da ciência da religião, pretendemos apresentar elementos
discutidos sobre o ser mulher. A história produzida para construir uma femi-
nilidade submetida aos interesses patriarcais. A partir de onde começamos a
construir a igualdade de gênero nas religiões? Sabendo as relações de poder
que se (inter)relacionam com gênero. O processo sócio-histórico e as fases
de desenvolvimento da moral religiosa a partir das lutas sociais, feminista. E
apontar de que maneira a defesa pelos/por Direitos Humanos faz-se urgente,
necessária e possível.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; religião; gênero; educação; direitos
humanos.

1 Pesquisador do Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GEPER), desta mesma instituição.

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Introdução

O caminho que se percorreu foi uma pesquisa em instituições de ensino


com área de ciência da religião e seus respectivos periódicos, assim, neste,
identificar a partir dos títulos quais tratavam sobre os temas de gênero. Entre as
muitas coisas encontradas, reunimos uma síntese que elenca os papéis sociais
de gênero, e as im(a)plicações na religião à partir de conceitos como corpo,
aborto, feminismo, teologia da libertação.
Suscitaremos reflexão do ensino religioso, o que aprendemos? O que
sabemos? É importante pautar os desafios pedagógicos do ensino religioso
e, concomitantemente, das de ser homem e ser mulher com as sexualidades.
Assim,
identificar nos discursos, particularmente nos religiosos, os aspec-
tos que promovam a vida e a valorização de todos os seres, bem
como reconhecer suas limitações e intrincados jogos de poder
que evidenciem discursos de superioridade de uns sobre outros,
é função da Educação como um todo e do Ensino Religioso espe-
cialmente. (JUNQUEIRA, Sérgio; SCHLOGL, Emerli; KLUK, Claudia
Regina, 2013, p. )

Gênero, Religião e Sociedade

Particularmente no ocidente há maior incidência do cristianismo, consi-


derando também a colonização portuguesa que trouxe toda a sua “inquisição”
e discursos padrões de “civilidade” conseguimos compreender a influência que
tivemos a um pensamento “colonializado”. No imaginário e santificado temos
Eva e Maria, aquelas que, enquanto mulheres, representaram a feminilidade da
sociedade. Eva quem comeu o fruto proibido e Maria quem teve os pecados2
da criação redimidos ao ser escolhida para a maternidade daquele que era o
messias. Neste sentido,

2 JARSCHE. Haidi l. A versão mítica da mulher como origem do mal (sofrimento), do conhecimento e
do pecado é o cerne da tradição patriarcal. Se tiramos a serpente, a árvore e a mulher da cena, não
teremos pecado, nem inferno, nem castigo eterno e nem necessidade de salvador! (1994, p. 34)

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somos culpabilizadas principalmente através dos nossos corpos.


Ele é considerado santuário do desejo e do pecado. Somos acu-
sadas da origem do mal no mundo. Responsáveis pelo sofrimento
humano e pelo juízo final, também! Como se não bastasse todas
as atrocidades ditas e cometidas pela posição misógina, inven-
taram a Maria, mãe de Jesus, como modelo perfeito de mulher:
calada, submissa, obediente, pura e virgem. Seu papel? Redimir a
culpa de Eva!! Esta mulher está no imaginário feminino católico até
hoje. E também no imaginário dos homens, que a criaram. Mas,
esta Maria “santa” criada para submeter às mulheres já não é o
único modelo de fé que prevalece no meio popular As mulheres e
homens populares libertários/as compreenderam a vida de Maria
de Nazaré através do Magnificat (Lc 1), ressignificando sua fé numa
mulher libertada, profética e corporalmente mulher como outra de
sua época. (JARSCHE. Haidi l, 1994, p. 40)

Por este motivo, os movimentos feministas tencionaram novos elementos


para perceber o mundo, mas principalmente a religião para as mulheres. No
discurso e no corpo3, a resistência4 ao poder,
[...] também aparece relacionado à sexualidade. Sofrimento e
repressão, caracterizados por uma situação de pecado, são experi-
mentados por muitas mulheres ao nível da sexualidade. É nesta área
que, de maneira especial e massiva, as mulheres experimentam nos
seus corpos o efeito de uma ideologia patriarcal. (JARSCHE. Haidi
l, 1994, p. 29)

3 HUNT, Mary. Creio que o corpo é um instrumento de conhecimento a partir do momento em que
ele se torna um mecanismo para conhecer o mundo que nos cerca. Ter um corpo bonito, perfeito, é
diferente de ter um corpo deficiente ou enfermo, porque temos que superar nossas limitações para
compreendermos o lugar de nosso corpo no mundo. Assim, também, quando nosso corpo enve-
lhece, nossa relação com o mundo vai se transformando, pois novos limites nos são colocados. O
corpo, secularmente manipulado, é o primeiro lugar de opressão das mulheres. Pode-se dizer que
ele é o locus no qual o patriarcado é encenado. (2007, p. 49)

4 HUNT, Mary. Desde que Eva foi culpabilizada pelo mal da humanidade, nosso pecado está impresso
em nossa alma e o nosso corpo é o reflexo desse pecado, por isso sempre sedutor, tentador. Significa-
tivamente, aquilo que deveria ser qualidade do ser humano (sedução) é visto ao reverso, como sinal
de inferioridade e maldição. (2007, p. 50)

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A principal forma de enfrentamento a cultura patriarcal, portanto, está


à partir do (re)conhecimento da identidade mulher, do corpo para resistir e a
ideologia qual funda à partir do feminismo. Uma das principais lutas enquanto
direito reprodutivo e o mais cerceado pelo religioso é o aborto e
[...] se, por um lado, a utilização da noção dos direitos reprodutivos
trouxe alguns problemas de ambiguidade, por outro, ela ampliou a
noção de cidadania das mulheres para além da reprodução e como
um direito que permitiu cruzar, do ponto de vista do exercício da
política, os direitos individuais com a retomada do enunciado “meu
corpo me pertence” (para reafirmar o direito à interrupção de uma
gravidez indesejada, ou à escolha do método contraceptivo e ao
uso de tecnologias), e com a noção dos direitos sociais que dizem
respeito a toda a sociedade. (OLIVEIRA, Eleonora. 1994, p. 3)

O direito de abortar como direito de quem aborta5; como direito de


mulher, combate o proibicionismo advindo de uma instituição patriarcal como
igreja6. Sampaio apresenta a ideia de que “a sociedade é por si só abortiva. O
princípio da vida tão reclamado pela igreja, está sendo abortado na miserabi-
lidade. E nós, ainda discutindo as suas picuinhas dogmáticas” (SAMPAIO, T.
M. V, 1994, p. 65). A impressão até aqui é que “na solidão da luta pela despe-
nalização do aborto que as mulheres têm enfrentado esse princípio carregado
de uma “lógica” construí da na ética do egoísmo, da moral e do patriarcado”
(OLIVEIRA, Eleonora. 1994, p. 7).
Baseamos os direitos sexuais e reprodutivos como uma das reivindicações
que abarca uma série de mudanças necessárias para a mulher hoje. Evidente

5 TOMITA, Luiza Eskito. A misoginia e a dominação/opressão sobre as mulheres é claramente percep-


tível nos documentos da igreja que procuram normatizar e controlar o corpo da mulher. E a forma
mais poderosa de se controlar o corpo da mulher é normatizar seu poder de fecundar e procriar.
Aborto significa o domínio que a mulher pode ter sobre seu corpo e sexualidade para procriar no
momento que lhe convém. (1994, p. 28)

6 CARNEIRO, Fernanda. As proibições doutrinárias acerca deste ato revelam atitudes de poder tem-
poral, motivadas por uma subjetividade construí da com valores que subordinam a mulher e não a
respeitam como ser autônomo e maduro e que impregnam as estruturas de poder das igrejas. (1994,
p. 11)

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que na subjetividade de cada sujeito estão os interesses de como vive lá, mas
cabe ressaltar que a politização e a empatia para o que acontece cotidiana-
mente às mulheres são relevantes à ética humana. O principio da vida pública,
dos interesses públicos, das obrigações do Estado de direito, do reconheci-
mento da dignidade7 e tudo que é pertinente/processual/sintomático às relações
de gênero no sistema do patriarcado. Há em comum,
[...] à idéia de que vivemos em um mundo violento. Confere-se
à violência um certo status ontológico, como se fosse universal e
essencial à dinâmica social. Ela, a violência, deixa o acanhado lugar
de adjetivo para se transformar em um destacado substantivo. É
“senso comum” que a violência é parte integrante da sociedade.
Senso comum, como se isso fosse um dado natural. Mas o senso
comum é ele mesmo um dado cultural. (SOUZA, Sandra Duarte,
2007, p. 15)

Nada aqui isenta o homem, particularmente, a construção da masculini-


dade. Muito pelo contrário: falar violência de gênero responsabiliza o masculino,
o patriarcado.
As representações socioculturais de homens e mulheres, que
evocam a desigualdade social baseada na diferença sexual, são
sacramentadas pela religião, naturalizando, dessa forma, a violência
de gênero. A própria representação da divindade cristã como mas-
culina é um indicador do lugar privilegiado de poder do homem
em nossa sociedade. (SOUZA, Sandra Duarte, 2007, p. 18)

“A religião, seja qual for a origem, sempre foi decisiva na definição de


padrões comportamentais femininos.” (ALMEIDA, Jane Soares.2007 p. 60). (Re)

7 CARNEIRO, Fernanda. É a vitalidade de uma mulher, como direito originário de existência digna,
que se afirma no exercício de sua liberdade. E liberdade, aqui, é a capacidade de incluir-se no do-
mínio da história e fazer escolhas imersas no meio ambiente concreto, cotidiano, íntimo, pessoal.
Trata-se de um ato pessoal, sem nenhum efeito danoso sobre a humanidade, a não ser se realizado
nas condições atuais de negligência) indiferença, desamor e ausência de solidariedade. Aí, sim, um
desastre ecológico indefensável e que atinge somente as mulheres em sua saúde e dignidade. (1994,
p. 10)

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forçando a cultura a partir dos seus discursos de sagrado e profano, publico e


privado. E Almeida fundamenta,
Para as mulheres, a situação de inferioridade em que viviam no
espaço privado estendeu-se ao espaço público, tendo como agra-
vante as dificuldades oriundas do meio familiar representadas pela
dupla jornada de trabalho e o cuidado com a família. Esculpia-se,
assim, uma ambigüidade em relação ao sexo feminino: se, por um
lado, existia o desejo de serem esposas e mães, por outro lado
o anseio de fazer parte da população economicamente ativa sig-
nificava deixar o primeiro espaço ao abandono. (ALMEIDA, Jane
Soares.2007 p. 55).

Portanto, “o casamento e a maternidade eram a salvação feminina;


honesta era a esposa mãe de família; desonrada era a mulher transgressora que
desse livre curso à sexualidade ou tivesse comportamentos em desacordo com
a moral cristã.” (ALMEIDA, Jane Soares.2007 p. 59). E na política é usada exa-
tamente destas formas. Elevando a família ao patamar de estruturação natural,
santificado e reconhecido, e problemas (re)correntes era responsabilidade da
mulher por suas ações. Com isso, “[...] por meio da pressão da Igreja Católica
tinha como alvo principal a sexualidade feminina que, ao ultrapassar o permi-
tido, ameaçaria o equilíbrio da família e do grupo social. (2007, p. 59).

Feminismo

Em contrapartida a isso tudo, há dentro da própria igreja católica movi-


mentos que disputam a subversão desta lógica. Existem várias tendências deste
processo, mas indico particularmente a teologia feminista. Tomita apresenta,
A teologia feminista da libertação, com seu berço na teologia
da libertação latino-americana, busca ser uma reflexão feita por
mulheres no contexto sociopolítico dos excluídos na América
Latina, a partir de uma perspectiva de gênero. Neste sentido, a teo-
logia feminista da libertação quer refletir sobre os temas atuais que
provocam e desafiam as mulheres na vida cotidiana em busca de
sua autonomia enquanto seres de plenos direitos. (TOMITA, Luiza
Eskito, 2007, p. 50)

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Há sim, histórias para acontecer/acontecendo dado o engajamento e as


conquistas até então. “Acrescente-se a isso a variedade de situações de vida
das mulheres – economia, idade, raça, nacionalidade – e ficará óbvio que as
escolhas são mais condicionadas às atuais diferenças de qualidade do que de
quantidade para mulheres em todo o mundo”, afirma Hunt (2007, p. 40). A
mudança é, segundo Boff,
mensagem e a prática de Jesus significam uma ruptura com a situa-
ção imperante e a introdução de um novo tipo de relação fundado,
não na ordem patriarcal da subordinação, mas no amor indiscrimi-
nado que inclui a igualdade entre o homem e a mulher. A mulher
irrompe como pessoa, filha de Deus, destinatária do sonho de Jesus
e convidada a ser, como os homens, também.

Considerações Finais

A contribuição da teologia feminista toca principalmente a luta por Direitos


Humanos. Esta luta tem o caráter pedagógico de desconstruir ao mesmo tempo
em que constrói uma nova sociedade e novas sociabilidades, pautadas na igual-
dade, equidade e justiça social.
Tirar da religião todo o pecado, todas as fogueiras, todas as inquisições
para anunciar a transformação. Impedindo o aprisionamento por meio de
discursos religiosos duvidosos, culposos e criminalizantes para permitir a liber-
dade do pensamento, conhecimento e, fundamentalmente da vida. Os Direitos
Humanos precisam do Estado Laico!

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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

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pectiva histórica. Mandrágora. Vol. 13, No 13. 2007. p. 52-63

BOFF, Leonardo. A porção feminina de Jesus. Mandrágora. Vol. 20, No 20. 2014. p.
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HUNT, Mary. O direito humano à justiça reprodutiva: uma perspectiva feminista teo-
-ética. Mandrágora. Vol. 13, No 13. 2007. p. 39-44

JARSCHE, Haidi I. Corpo de mulher, corpo culpabilizado. Mandrágora. Vol. 1, No 1.


1994. p. 29-42

JUNQUEIRA, Sérgio; SCHLOGL, Emerli; KLUK, Claudia Regina. Ensino religioso: um


estudo sobre sua relação com gênero e orientação sexual Religare 10 (2), 142-151,
setembro de 2013

OLIVEIRA, Eleonora M. Aborto / Cidadania: tecendo a democracia. Mandrágora. Vol.


1, No 1. 1994. p. 1-8

SAMPAIO. Tânia M. O corpo excluído de sua dignidade - uma proposta de leitura


feminista da profecia. Mandrágora. Vol. 1, No 1. 1994. p.42-52

SOUZA, Sandra Duarte. Violência de gênero e religião: alguns questionamentos que


podem orientar a discussão sobre a elaboração de políticas públicas. Mandrágora.
Vol. 13, No 13. 2007. p. 15-21

TOMITA, Luiza E. Aborto no Brasil colonial - uma resenha. Mandrágora. Vol. 1, No


1. 1994. p. 25-28

TOMITA. Luiza E. Da exclusão a objeto de prazer: o corpo das mulheres oferece notas
para uma reflexão teológica feminista. Mandrágora. Vol. 13, No 13. 2007. p. 45-51

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RELAÇÕES DE GÊNERO, FEMINISMOS E COMUNICAÇÃO


PARA A CIDADANIA: A PERSISTÊNCIA DA
SUBREPRESENTAÇÃO DAS MULHERES E DA INVISIBILIDADE
DAS LÉSBICAS NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Cláudia Regina Lahni


Pós-doutora em Comunicação (UERJ)
UFJF-Facom
lahni.cr@gmail.com

Daniela Auad
Pós-doutora em Sociologia (UNICAMP)
UFJF-Faced
auad.daniela@gmail.com

GT 23 - Imprensa gay em questão

Resumo

Contribuir para a construção de uma sociedade igualitária, com reflexão e ação.


Este é o objetivo do presente trabalho, que se encaminha em tal sentido a partir
de uma pesquisa que colabora com a constituição de um campo de intersecções
entre Comunicação para a Cidadania, Educação e Relações de Gênero. Para
isso, mostramos a memória dos trabalhos apresentados no Grupo de Pesquisa
Comunicação para a Cidadania da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação), com temas sobre Relações de Gênero, em
2015, quando se deu a comemoração dos 40 anos de 1975, Ano Internacional
da Mulher, instituído pela ONU. A análise da investigação é comparada ao que
foi apresentado em 2005, verificando-se a autoria, temas e aportes teóricos dos
artigos.
Palavras-chave: Relações de Gênero; Feminismos; Direito à Comunicação,
Lesbianidades, Mulheres e Conhecimento.

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Introdução

Em 1º de janeiro de 2015, Dilma Rousseff foi empossada presidenta do


Brasil, iniciando o exercício de seu segundo mandato no cargo. Dilma (PT),
primeira mulher presidenta da República, foi eleita no ano anterior, com mais
de 54 milhões de votos. Já em março de 2015, houve protesto nas ruas, que
pedia a renúncia ou o afastamento da presidenta. Em 17 de abril de 2016, com
acusação de crime de responsabilidade por “pedaladas fiscais”, a Câmara dos
Deputados autorizou o processo de impeachment, sendo que em 12 de maio
assumiu o presidente interino Michel Temer (PMDB). Em 8 de julho de 2016,
foi noticiado que, conforme a Procuradoria da República, a “pedalada” não é
crime1. O processo de impeachment continuou.
Em outubro de 2015, entre outras ações, com uma reforma administrativa,
o então Governo Dilma criou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial,
da Juventude e dos Direitos Humanos. Não obstante houvesse críticas a essa
reunião das antigas secretarias em um ministério, no dia 18 de fevereiro de
2016, para oficializar tal reforma, a Câmara dos Deputados aprovou emendas à
Medida Provisória (MP) 696/2015, com trechos contrários à população LGBTT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros) e ao aborto.
Em 2015, foi tema da redação do Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio): “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”.
Quase oito milhões de pessoas fizeram a prova, realizada nos dias 24 e 25
de outubro e que também contou com perguntas sobre as teorias da filósofa
Simone de Beauvoir - teórica fundamental para o feminismo -, entre outras. As
perguntas e, principalmente, o tema da redação foram amplamente noticiados e
comentados nas redes sociais, o que contribuiu para aumentar a reflexão sobre
a desigualdade de gênero, no País. Já em maio de 2016, ficamos chocadas com
a notícia de um caso de estupro coletivo, no Rio de Janeiro, que foi filmado
e divulgado em rede social. Ainda em maio de 2016, outro caso de estupro
coletivo foi noticiado. Nas redes sociais e nas ruas, mulheres de todo o País se
manifestaram contra a violência contra a mulher e reforçaram a campanha “Eu
luto pelo fim da cultura do estupro”.

1 Conforme reportagens publicadas nos sites da EBC, Estadão e outros (2016).

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Em 2015, comemorou-se 40 anos do Ano Internacional da Mulher, ins-


tituído pela ONU (Organização das Nações Unidas), considerado um marco
na luta pelos direitos das mulheres. Também comemorou-se o 20º aniversário
da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres e a adoção da Declaração
e Plataforma de Ação de Pequim, documento final da Conferência que listou
12 pontos prioritários de trabalho com o objetivo de alcançar a igualdade de
gênero e eliminar a discriminação contra mulheres e meninas em todo o mundo
(www.onumulheres.org.br). Entre as 12 áreas temáticas do documento, desta-
camos: Educação e Capacitação de Mulheres; Mulheres e Mídia; Direitos das
Meninas. Diferente disso, no Brasil, em 2015, houve destaque no noticiário e nas
redes sociais para a discussão dos planos municipais e estaduais de educação,
que deveriam ser aprovados em todo o País. Ocorreu que setores conservado-
res da sociedade – liderados por bancadas evangélicas – apresentaram vetos a
iniciativas que tratavam de igualdade, identidade de gênero, orientação sexual
e sexualidade nas escolas. Por sua vez, educadoras, pesquisadoras, movimentos
feministas, LGBTTs e grupos pró-diversidade se colocaram contrários ao veto,
realizaram protestos nas ruas, Câmaras e na Internet. No Facebook, comuni-
dades e páginas – como “É Pra Falar de Gênero Sim” – motivaram o debate
e as manifestações. A discussão começou com a retirada de gênero do Plano
Nacional de Educação. Em 2016, ocorrem protestos contra o Programa Escola
Sem Partido, Projeto de Lei n. 867/2015, que pretende incluir na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional uma negação à liberdade de expressão de pro-
fessoras e professores, nos moldes de lei já aprovada no estado de Alagoas
(http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/).
No GP (Grupo de Pesquisa) Comunicação para a Cidadania da Intercom
(Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), como
aparecem as reflexões sobre relações de gênero? É importante mencionar que
entendemos cidadania como exercício de direitos e luta pela manutenção
e ampliação de direitos (Manzini-Covre, 1995), trata-se de cidadania ativa e
democrática (Benevides, 1998).
Como parte de uma pesquisa, realizada em 2012 (Lahni e Lacerda, 2013)
sobre a constituição, temas e aportes teóricos do Grupo entre 2001 e 2011,
realizamos, a partir da categoria gênero, uma reflexão a respeito dos trabalhos
do GP em 2005 (Lahni e Auad, 2013). No presente artigo, voltamos à análise de
2005 para refazer o caminho em 2015 e um estudo comparativo.

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Em 2005 e 2015, Gênero e Comunicação para a Cidadania

Além da importância dos eventos de 1975 e 1995 para os governos e


organismos internacionais, o Dicionário Mulheres do Brasil, organizado pela
feminista Schuma Schumaher e por Érico Vital Brazil (2000, 229, 238, 239),
salienta a importância do Ano Internacional da Mulher e das conferências mun-
diais para a igualdade de gênero. No verbete “Feminismo pós-1975”, com o
subtítulo “A segunda onda feminista no Brasil”, o Dicionário traz ações e even-
tos realizados no País “em prol da construção de uma sociedade igualitária”.
Segundo a publicação, “o apogeu desse processo de integração internacional
da luta das mulheres se deu com a realização da IV Conferência Mundial da
Mulher (Beijing, 1995)”.
Para nós, Gênero é assumido como categoria de análise (Scott, 1989),
também no presente texto, com a intencionalidade de não perpetuar posturas
neutras nos processos de construção do conhecimento e de produção midi-
ática. Tais posturas tornariam invisíveis grupos de mulheres para quem e por
quem políticas igualitárias de comunicação devem ser formuladas e implanta-
das (Lahni e Auad, 2013).
Assim, fizemos uma reflexão a respeito dos trabalhos do GP, com base na
categoria gênero, em 2005. No trigésimo aniversário do Ano Internacional da
Mulher, o então NP (Núcleo de Pesquisa) Comunicação para a Cidadania não
apresenta nenhum trabalho que verse sobre a temática comunicação e relações
de gênero. Já quanto à autoria, os 24 trabalhos, que constam na programação
e anais, foram assinados por 20 mulheres e 12 homens (os últimos números
são maiores por conta da coautoria). Quanto às referências, de 22 pessoas que
aparecem entre as referências bibliográficas mais de uma vez (duas vezes, três,
quatro e cinco vezes), 15 são homens e 7 são mulheres; entre as pessoas mais
citadas, 4 são homens e 1 é mulher.
Além das questões de gênero (ausência do tema e baixa representativi-
dade feminina nas referências), percebemos a presença de autores/as que têm
trabalhos na comunicação ou nas ciências sociais e humanas sobre cidadania e
identidade, especialmente.
Embora tenhamos notado um olhar para mulheres e relações de gênero no
NP Comunicação para a Cidadania, em 2005, esse olhar não reverte em refle-
xão sistematizada sobre o tema. Entendemos que trabalhos que adotem gênero

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como categoria ou no interior de suas temáticas podem ter assumido maior


presença no Núcleo de Pesquisa (NP) Comunicação e Cultura das Minorias.
Verificamos nos anais de 2005 os trabalhos do NP Comunicação e Cultura
das Minorias. De um total de 30 trabalhos, 9 eram sobre a temática gênero. Tal
grupo foi extinto e, então, parte de suas pesquisadoras/es e temáticas usuais se
somaram ao Comunicação para a Cidadania.
Já em 2015, quando da comemoração dos 40 anos do Ano Internacional
da Mulher e de 20 anos da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, o GP
Comunicação para a Cidadania contou com 71 trabalhos na programação do
Congresso Nacional da Intercom. Esses artigos foram apresentados em oito dife-
rentes sessões, sendo uma intitulada Cidadania, Mídia e Relações de Gênero.
Quanto à autoria, foram 63 mulheres e 26 homens. Do total, encontramos 13
artigos sobre gênero. A autoria é majoritamente feminina também nos artigos
sobre gênero, em 2015.
Na tabela, relação de temas dos Artigos, apresentados em 2015 sobre
relações de gênero, e suas autorias por sexo. Na primeira coluna encontram-
-se os temas; nas demais está assinalado se a autoria é de uma mulher (ou
mais), um homem ou ambos, o que está marcado com um X

Temas Mulher Homem Ambos


Publicidade e população LGBT 2X - -
Cobertura jornalística sobre performance de atriz transexual
- X -
em Parada LGBT
Cotidiano e memória de mulheres - - X
Mulheres na publicidade 2X - -
Cobertura jornalística de adoção por casais LGBT - X -
Cobertura jornalística sobre aids e homossexuais - - X
Mobilização feminista, com corpos desnudos e internet X - -
Narrativas queer no jornalismo e epistemologia - X -
Trans-subjetividade na blogosfera 2X - -
Lei anti-homofobia em jornais X - -
Discursos midiáticos sobre o corpo feminino 2X - -
Funk ostentação e gênero 2X - -
Turismo e prostituição, na Copa, em jornais X - -
Total de autoras/es 13 (+2) 3 (+2) 2

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Percebemos essa importante presença no GP e ainda a existência de varia-


dos assuntos. Notamos, no entanto, que o termo feminismo aparece no título
de apenas um dos 13 artigos; nas palavras-chave, o termo feminismo aparece
em dois artigos; os mesmos artigos incluem os termos mulher e mulheres entre
as palavras-chave. Destacamos que seis artigos versam sobre comunicação e
população LGBT. Os outros sete artigos tratam mais diretamente de temas que
enfocam mulheres, sendo um deles sobre prostituição e outro sobre mulheres
trans.
Sobre as referências bibliográficas, nos trabalhos de 2015 aparecem teó-
ricas das relações de gênero e feminismo. Na tabela a seguir, apresentamos a
relação de autoras/es mais citadas. Diferente de 2005 – cuja tabela apresenta
as referências de todos os artigos que totalizaram 24, mostramos as/os mais
citadas apenas nos trabalhos sobre relações de gênero que somam 13 (o total
de artigos é 71).
Nomes de autoras e autores citadas/os em trabalhos do GP, em 2015,
em dois ou mais artigos sobre gênero – Na tabela, nome (primeira coluna) e
quantidade de artigos em que a/o autor/a é referência

BUTLER, Judith cinco


LOURO, Guacira Lopes quatro
LIPOVETSKY, Gilles três
SCOTT, Joan três
FOUCAULT, Michel três
PELÚCIO, Larissa três
AUAD, Daniela dois
BENTO, Berenice dois
BOURDIEU, Pierre dois
COLLING, Leandro dois
COGO, Denise dois
GIDDENS, Anthony dois
GREEN, James dois
LAHNI, Cláudia dois
LAURETIS, Teresa de dois
MARTIN-BARBERO, Jesus dois
MISKOLCI, Richard dois
OROZCO-GOMES, Guillermo dois

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PAIVA, Raquel dois


PISCITELLI, Adriana dois
PRECIADO, Beatriz dois
SANTAELLA, Lúcia dois
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi dois

Vemos que, entre as referências bibliográficas que mais aparecem nos tra-
balhos de gênero, em 2015, do total de 23 autoras/es, 14 são mulheres e 9 são
homens. Em cinco trabalhos aparece apenas uma autora, Judith Butler – filósofa,
estadunidense (Sara Salih, 2012), sendo especialmente associada à teoria queer.
A segunda mais citada, que aparece em quatro artigos, é a brasileira Guacira
Lopes Louro, doutora em Educação (Louro, 2003). Ainda quanto às referên-
cias, notamos como citadas duas ex-coordenadoras do GP Comunicação para a
Cidadania e uma ex-coordenadora do NP Comunicação e Cultura das Minorias.

Considerações finais

Como já mencionamos, é necessário refletir sobre a pesquisa, a fim de


contribuir para a graduação em jornalismo e, dessa maneira, termos jornalistas
formadas que atuem pelos direitos de todas as pessoas. Com este trabalho,
percebemos uma maior presença de estudos sobre relações de gênero e comu-
nicação, no GP Comunicação para a Cidadania da Intercom. Este crescimento
– de nenhum trabalho com a temática, em 2005, para 13 artigos com essa temá-
tica, em 2015 – é bastante positivo e certamente reflete o trabalho de mais de
10 anos da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal, a qual
apresenta programas de incentivo, como o Prêmio de Igualdade de Gênero
junto ao CNPq e o evento Mulher e Mídia.
O aumento também reflete uma possível migração de pesquisado-
ras/es do então NP Comunicação e Cultura das Minorias (extinto) para o GP
Comunicação para a Cidadania. Nesse ponto, entretanto, há que se notar que,
em 2005, os trabalhos sobre gênero no NP de Minorias somaram 30% do total
de trabalhos apresentados; já no GP de Cidadania, em 2015, os trabalhos sobre
gênero somaram 18,30%. Isso pode mostrar a não migração de pesquisadoras/
es vindas/os do NP de Minorias para o GP de Cidadania ou, ainda, em caso
contrário, um decréscimo dos trabalhos sobre gênero no âmbito deste espaço.

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Também consideramos importante pensar quantas são as pesquisadoras


da Comunicação para a Cidadania que são referência sobre gênero. Quem são
elas? Temos um acúmulo da área sobre a temática? Se elas pouco aparecem,
por que a invisibilidade?
Finalmente, também notamos nos 13 trabalhos sobre relações de gênero,
em 2015, que um diz respeito a mulheres trans e seis dizem respeito a homos-
sexuais. Desses, há os se referem a gays e aqueles que se referem à população
LGBT. Em meio a esses, as lésbicas aparecem em dois trabalhos, dentro do con-
junto, sem ser o foco principal de nenhum. A palavra, por vezes, não está nem
no significado da sigla LGBT. Assim, percebemos que há muito o que caminhar,
na pesquisa de comunicação e relações de gênero.

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Referências

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Livro, 1970.

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: Referendo, Plebiscito e


Iniciativa Popular. São Paulo: Ática, 1998.

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/ - 11/07/2016 - acesso em 12 de julho de


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http://politica.estadao.com.br/noticias/geral - 08/07/2016 - acessoem 12 de julho de


2016.

http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2016/04 - 17/04/2016 - acesso em 12 de julho


de 2016.

http://www.onumulheres.org.br – acesso em 9 de julho de 2015 e em 12 de julho de


2016.

LAHNI, Cláudia Regina, AUAD, Daniela. Relações de gênero e exercício de direitos:


o que contam os trabalhos do Comunicação para a Cidadania no ano de 2005. In:
LAHNI, C.R., LACERDA, J.S.(orgs.). Comunicação para a Cidadania: objetos, concei-
tos e perspectivas. São Paulo: Intercom, 2013, p. 111-129.

LOURO, Guacira Lopes. Corpo, gênero e sexualidade – um debate contemporâneo


na educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 9


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SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

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SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 2000.

SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil Para Análise Histórica. Nova York: Columbia
University Press, 1989.

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“TCHAU, CONSERVADORISMO!” UM OLHAR


REFLEXIVO SOBRE O MOVIMENTO LGBT E O DIÁLOGO
COM O SERVIÇO SOCIAL.

Gleydson Felipe Duque de Paiva


Bacharel em Serviço Social, Centro Universitário Geraldo Di Biase
Prefeitura Municipal de Volta Redonda, Assistente Social
gleydson.felipe@hotmail.com

Luiza Carla Cassemiro


Mestre em Serviço Social
Universidade Veiga de Almeida, Docente do Curso de Serviço Social
luizac.cassemiro@gmail.com

GT 27 - Diversidades Sexuais e de Gêneros: Dinâmicas e interações na vida social

Resumo

Indispensável que sejam abordados temas ligados ao gênero e sexualidades no


âmbito acadêmico. Para tanto, faz-se necessária compreensão das trajetórias per-
passadas pelos movimentos sociais relativos a tais temáticas, especificamente,
o Movimento LGBT, como objeto de estudo, fazendo-se presente, possibili-
tando diálogos com o cotidiano profissional do Assistente Social. O Serviço
Social visa atuar na minimização das desigualdades sociais. Do mesmo modo, o
Movimento LGBT tem sua agenda política voltada pela promoção da igualdade.
Consequentemente, ambos se tornam indissociáveis. O desafio da profissão é a
promoção debates, discussões relativas à temática, desmistificando conceitos e
respeitando a diversidade sexual.
Palavras-chave: Gênero, Sexualidades, Movimento LGBT e Serviço Social.

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Introdução

O presente artigo, apresentado no VIII Congresso Internacional de Estudos


sobre a Diversidade Sexual e de Gênero da ABEH – Associação Brasileira de
Estudos da Homocultura – tem como finalidade refletir a importância das dis-
cussões de temáticas de gênero, sexualidades e diversidade sexual, no contexto
da formação profissional dos assistentes sociais, bem como a relação entre o
movimento LGBT com a prática profissional destes profissionais.
A reflexão proposta neste, toma como base um debate com as temáticas
de gênero, sexualidades, explicitando o movimento social LGBT, como grande
protagonista no cenário de direitos sociais, cidadania e liberdade.
O debate enfrenta resistências de alguns docentes, discentes do curso,
que desconsideram o fato de que o Serviço Social possa debater estas temá-
ticas. Ainda é possível se perceber visões de mundo, ações influenciadas por
uma postura conservadora, reacionária, preconceituosa, como se dá a incorpo-
ração destes assuntos nas disciplinas ofertadas pelo curso.
Desta forma, a pesquisa busca investigar o processo de incorporação dos
debates que têm essas temáticas como foco, tanto na academia como na socie-
dade, uma vez que, do ponto de vista acadêmico, mais especificamente no
Serviço Social, tais discussões ainda têm se dado, aparentemente, em eventos
pontuais e/ou disciplinas eletivas, principalmente no que se refere a sexualida-
des e diversidade sexual.
O reflexo da não incorporação, ou da insuficiência de debates das refe-
ridas temáticas resulta quase sempre em práticas profissionais permeadas por
preconceitos e senso comum. No caso específico do Assistente Social, que atua
na divisão sócio e técnica do trabalho, essa incorporação se faz mais premente.
Portanto, configura-se importante uma educação que promova a igualdade de
gênero e diversidade, garantindo um caminho eficaz para suscitar debates em
torno de um espaço democrático, onde tais diferenças das desigualdades, do
preconceito e das relações de poder.
Diante do contexto supracitado, para iniciar a discussão, faz-se necessário
um olhar acerca da trajetória histórica LGBT, como movimento social e, poste-
riormente, uma analogia com a profissão do Assistente Social.

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O Movimento Social LGBT

Analisar um grupo de indivíduos que lutam por interesses comuns como


movimento social requer a compreensão da trajetória histórica e cultural trans-
passada. Movimentos sociais emergem de ações pontuais destes determinados
grupos, não sendo caracterizado apenas por estas ações. Para a existência de
um movimento faz-se necessária ter pauta e agenda.
De acordo com Gohn (1997), os movimentos sociais podem ser divididos
em cinco categorias. A primeira é a dos movimentos construídos a partir da
origem social da Instituição que apoia ou obriga seus demandatários; a segunda
trata dos movimentos construídos a partir de características da natureza humana
(cor, raça, sexo, etc.); a terceira diz respeito aos movimentos que se emergem
de determinados problemas sociais (criação de serviços sociais; de preserva-
ção); a quarta faz referência aos movimentos a partir de conjunturas políticas e,
por fim, a quinta caracteriza os movimentos que surgem a partir de ideologias.
(GOHN, 1997; p. 268-271)
Diante da afirmação da autora, nesta segunda categoria é que se encontra
o movimento social LGBT, o qual surgiu em decorrência de inúmeros casos de
preconceito, repressão policial e descaso com a população LGBT e, com enfo-
que ainda maior, com a população “T” (Transexuais, Travestis e Transgêneros).
Inicialmente o movimento LGBT fazia referência apenas aos homosse-
xuais do sexo masculino, logo em seguida, foram introduzidas as lésbicas e,
posteriormente os bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros. O objetivo é
promover e garantir, através de ações e lutas sociais, a equidade no acesso aos
direitos humanos.
Segundo Montaño & Duriguetto (2011) muitos questionamentos e reivin-
dicações ocorreram nos acontecimentos de maio de 1968, como o da defesa
do exercício da livre sexualidade, dos protestos contra a discriminação homofó-
bica, racista e sexista, que tinham como palavra de ordem “é proibido proibir”,
foram determinantes para a organização e o desenvolvimento do movimento
de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros (LGBT). (MONTAÑO,
DURIGUETTO; 2011).
No Brasil, o movimento LGBT teve seu marco inicial explicitado a par-
tir da década de 70, no período da Ditadura Militar, onde houveram diversas
manifestações em busca de mudanças na ordem social. Para Mamberti (2006)

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“o movimento reivindicava a emancipação e cidadania para os homossexuais


(...)” (MABERTI apud SILVA, SILVA, PEREIRA & SILVA, 2012).
Posteriormente, na década de 19801, houve uma nova configuração, as
lésbicas participantes do Grupo Somos decidiram fundar o Grupo de Ação
Lésbico-Feminista, pois não se sentiam contempladas nas reivindicações do
movimento social.
Na contemporaneidade, o movimento LGBT ainda perpassa por diversas
lutas, sobretudo, ganhando uma maior visibilidade – foram instituídas políticas
públicas em prol da promoção da cidadania LGBT – e, com isso, obteve diver-
sas conquistas. E, como todo movimento social, possui diversos agentes que
atuam como opositores. Neste contexto, Gohn (1997) afirma que:
Os opositores de um movimento social são sempre os sujeitos que
detêm o poder sobre o bem demandado. Não necessariamente são
antagônicos aos movimentos. (...) Não se trata de ser contra ou a
favor da entidade que detém a posse, a propriedade ou o controle
do bem demandado. Trata-se de se opor àqueles sujeitos, no que se
refere exclusivamente ao bem demandado. (GOHN, 1997; p. 262)

Durante a trajetória do movimento, este conquistou alguns direitos


pautados em Leis. Tais como: o casamento igualitário, a adoção de crianças
e adolescentes por casais homoafetivos; a utilização do nome social para as
pessoas trans, Dia nacional contra a Homofobia, Política Nacional de Saúde
Integral LGBT e agendas/dadas políticas.
Após anos de obscurantismo e negação de direitos à comunidade LGBT,
esta população passa a ter atenção do poder público. Uma das reivindicações
do Movimento LGBT era para que as políticas públicas dirigidas aos LGBT dei-
xassem de ser ações pontuais e incipientes, ou seja, deixassem de ser frágeis e
sem continuidade. Neste âmbito surgem os Centros de Referência e Promoção
da Cidadania LGBT.

1 Neste momento, o movimento era conhecido como movimento GLS (Gays, Lésbicas e Simpati-
zantes), posteriormente, por volta da década de 90, passa a ser chamado de GLBT (Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Transexuais e Travestis). Somente em 2008, passa a ser LGBT.

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O programa visa combater a discriminação e a violência contra LGBT e


promover a cidadania desta população em todo território nacional, respeitando
as especificidades desses grupos populacionais.
É através disseminação de informações sobre direitos e sua defesa que o
programa atua no combate à homofobia; além da produção, implementação e
monitoramento de políticas públicas transversais, isto é, em todas as áreas de
governo, a fim de promover a cidadania LGBT.

Gênero e Serviço Social

O Serviço Social é uma profissão de caráter crítico-interventivo, que visa


atuar na minimização das expressões da tão multifacetada Questão Social. A
expansão do Serviço Social se dá a partir da evolução do capitalismo, com
a precarização do trabalho e divisão explícita de classes. Neste contexto, o
Serviço Social trabalha em favor da igualdade social e diretamente na viabiliza-
ção da garantia de direitos. De acordo com Iamamoto & Carvalho,
(...) o Serviço Social como profissão inscrita na divisão social
do trabalho, situa-se no processo da reprodução das relações
sociais, fundamentalmente como uma atividade auxiliar e subsi-
diária no exercício do controle social e na difusão da ideologia
da classe dominante junto à classe trabalhadora. (IAMAMOTO &
CARVALHO; 2011, p.101).

Quando se trata de gênero, o Serviço Social também tem papel relevante.


A categoria gênero abrange não somente questões relativas à sexualidade, mas
também questões de identidade. Identidade de gênero é a forma na qual o
indivíduo se identifica. Essa identidade de gênero é a que deve prevalecer nas
relações sociais.
Por exemplo, um (a) indivíduo(a), mesmo nascendo com o órgão genital
masculino, pode se identificar como mulher e, por isso, É MULHER. E ainda,
talvez mais complexamente para o entendimento de parte da sociedade, esse
(a) mesmo (a) indivíduo (a), com órgão masculino, se identifica como mulher,
pode ter desejo e atração por mulher, sem deixar de ser MULHER, conforme
sua identidade de gênero.
O Serviço Social, de maneira a viabilizar a garantia de direitos, atende
a todos os tipos de indivíduos e, deste modo, está intrinsecamente ligado ao

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gênero, fazendo necessário estar munido de informações e orientações relativas


ao tema. É indissociável do trabalho do Assistente Social a discussão acerca de
gênero.
Para Bezerra & Veloso,
Dois pontos têm contribuído para aumento de importância da cate-
goria “relações de gênero” na reflexão sobre as relações sociais.
São eles a análise da formação e da intervenção profissional que
ocorrerão em relações sociais constituídas e constituintes das rela-
ções de gênero e a análise da profissão propriamente dita, que é
composta majoritariamente por mulheres, salientando-se a forte
presença do gênero na construção da identidade profissional.
(BEZERRA & VELOSO; 2015 p.183).

Os autores referem-se à atuação profissional com a necessidade de uma


formação no qual o estudo de gênero contribua para criação de condições para
o desenvolvimento profissional em sintonia com a realidade. Tratando da neces-
sidade de reconhecer as relações sociais construídas com base na organização
social de gênero, as quais os profissionais em processo de formação precisam
desvelar não apenas no que diz respeito aos usuários, mas também em relação
a si mesmos.
É imprescindível a visualização das relações de gênero no Serviço Social,
principalmente pelo fato de a profissão ser majoritariamente feminina. Com sua
gênese no conservadorismo, por intermédio das damas de caridade, o Serviço
Social perpassou por trajetória histórica marcada pela presença feminina.
Sobretudo, cabe a reflexão de que o Serviço Social atua na minimização
das desigualdades sociais, onde se situa a desigualdade relacionada ao gênero.
Neste viés, é imprescindível relacionar gênero ao Serviço Social. Mais que isso,
o Assistente Social atende sem juízo de valores, objetivando a superação de
demandas e lutando contra as violações de direitos, assim como, questões rela-
cionadas a raça, etnia e religião.

Considerações finais

O Serviço Social tem como matéria-prima a questão social, que engloba


diversas expressões, nas quais o profissional assistente social se articula para
minimizá-las, combatendo com as mazelas destas expressões.

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Olhar a realidade de forma crítica e comprometida com a garantia de direi-


tos e da emancipação dos sujeitos é imprescindível para o trabalho do assistente
social. Posicionar-se dessa forma requer ética e compreensão de mundo que
perpassa formas ideológicas de dominação que a atual ordem social vigente
impõe. O assistente social, nesta perspectiva, busca contribuir com reflexões de
liberdade, se posicionando nas reivindicações nas lutas pelos direitos e garantia
dos sujeitos sociais independente da sua sexualidade. Qualquer tentativa de
impedir a vivência afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo configura-se
como violação dos direitos.
Compreende-se como preconceito toda e qualquer atitude de discrimina-
ção. O movimento LGBT não deve ser tratado de forma diferente, o assistente
social deve lutar para garantir condições de existência dignas para estes cida-
dãos, além de analisar, intervir de forma rigorosa e incansável na exterminação
do preconceito.

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Acesso em 29 de junho de 2016.

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São Paulo: Saraiva, 2015.

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FEMININO: O GÊNERO DA VIOLÊNCIA

Mikarla Gomes da Silva


Mestranda em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
mikarlags@gmail.com

Marcos Mariano Vianna


Doutorando em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
marcosmariano08@yahoo.com.br

Tarcísio Dunga Pinheiro


Doutorando em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
tarccisio@gmail.com

GT 27 - Diversidades sexuais e de gêneros: dinâmicas e interações na vida social 

Resumo

O trabalho tem como objetivo apresentar a lei 11.340/06 mais conhecida como
Lei Maria da Penha, esta que se estabelece como primeira ferramenta legal
de enfrentamento a violência de gênero contra a mulher. Desta maneira, este
trabalho tem como intuito avaliar a Lei 11.340/06, a priori, com uma análise
sobre a violência doméstica contra o feminino e como esta se interliga com
novos conceitos como o feminicídio e transfeminicídio, uma vez que à violência
contra a mulher é fruto de uma construção histórica, cultural e social pautadas
nas categorias de gênero e de relação de poder. Neste sentido, os sujeitos que
correspondem a Lei Maria da Penha são mulheres1, estas que são pensadas a
partir da performatividade (BUTLER, 2003).

1 Grifos dos autores

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Palavras-chave: Violência; Lei Maria da Penha; Gênero.

Introdução

A Lei N° 11.340/06, Lei Maria da Penha, surge no cenário nacional como


uma reivindicação do movimento de mulheres e movimento feminista como
proposta de combate a violência contra o gênero feminino. A Lei é uma luta his-
tórica de mulheres que ao longo do tempo luta por representatividade e contra
o sistema hegemônico que dá ao homem poder absoluto. Deste modo, pode-se
caracterizar por uma luta pelo direito de ser mulher e questionar as práticas
de dominação masculina marcadas pelas violências físicas, entre outras, no
corpo da mulher. Logo, a Lei 11.340/06 surge como forma de coibir a violência
doméstica, mostrando-se ao longo de seus dez anos de implementação como
um marco na efetivação de políticas públicas de enfrentamento à violência
contra a mulher.
Segundo Lana Lage Lima (2010), após a criação das Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher em 1985, a outra política pública de
gênero que provocou maior impacto social foi a Lei 11.340/06. Esta Lei é enten-
dida como a concretização de um instrumento legal de combate á violência
contra as mulheres. A Lei Nº 11.340 de 07 de agosto de 2006:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar


contra a mulher, nos termos do § 8o  do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dis-
põe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal
e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. (BRASIL, 2006)

E ainda:
Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica
e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psi-
cológico e dano moral ou patrimonial (BRASIL, 2006)

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A Lei 11.340/06 foi criada para punir, prevenir e erradicar a violência


doméstica e familiar contra o gênero feminino, esta não faz nenhuma referên-
cia no que diz respeito ao sexo, logo a Lei Maria da Penha é entendida como
uma política pública de gênero que protege o gênero feminino, ou seja, esta é
baseada em virtude do gênero e não do sexo, dando possibilidades teóricas de
problematizar a dessencialização da imagem da mulher sustentada na genitali-
zação do corpo a partir de Butler (2003) e Bento (2006).
Em 2014 foi apresentada pela deputada Jandira Feghali um Projeto de
Lei Nº 8.032 de 2014 que visa ampliar a proteção que trata a lei 11.340/06 as
mulheres transexuais e transgêneros. O projeto sugere mudança no Art.5º:
Art. 1º Esta lei amplia a proteção de que trata a Lei 11.340, de 7
de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – às pessoas transexuais
e transgêneros.
Art. 2º O parágrafo único, do art. 5º da Lei 11.340, de 7 de agosto
de 2006 – Lei Maria da Penha – passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 5º ............................. Parágrafo único. As relações pessoais
enunciadas neste artigo independem de orientação sexual e se
aplicam às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem
como mulheres.” (BRASIL, 2014, p. 1)

A lei 11.340/06 é uma política específica no combate à violência domés-


tica que retira dos Juizados Especiais Criminais a autoridade de julgar os crimes
de violência contra a mulher. Lei que se estabelece como primeira ferramenta
legal de enfrentamento a violência de gênero contra a mulher.
Deste modo, a Lei Maria da Penha é importante para pensar gênero, ou
melhor, corrobora nos estudos de gênero para demonstrar que ao longo da
história se vem travando uma luta contra o sistema patriarcal, este que é evi-
denciado a partir dos dados do Mapa da Violência (WAISELFIS, 2015). Sendo
assim, a ampliação e aplicação da Lei 11.340/06 a partir do projeto de lei
8.032/14 elucidará a legislação deixando mais evidente os sujeitos amparados
pela Lei.
Destarte, analisar a violência marcada no feminino sob essa perspectiva é
importante para evidenciar as interseções dos sujeitos que a lei  ampara. Desta
maneira, este trabalho tem como intuito avaliar a Lei 11.340/06, a priori, com

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uma análise sobre a violência doméstica contra o feminino e como esta se inter-
liga com novos conceitos como o feminicídio e transfeminicídio.

Sistema hegemônico machista e os crimes contra o feminino

A Lei Maria da Penha é compreendida como uma política pública de


gênero conforme aponta Bandeira (2014), Farah (2004), Lima (2010), Lisboa
(2010) e Dias (2007). Estas autoras evidenciam a importância da Lei como
política pública e historicizam como uma luta do gênero feminino contra a vio-
lência “legítima” de um sistema social apresentando os avanços dessa política
na sociedade brasileira. Destarte, problematizar gênero no campo de políticas
instaura uma visibilidade antes negada às mulheres.
Falar da Lei Maria da Penha é colocar em evidência o sistema hegemônico
machista, sistema de estrutura de dominação masculina (BOURDIEU, 2005),
onde o homem é visto hegemonicamente e verticalmente pautado em uma
masculinidade que tem como característica fundante a honra, principalmente,
no nordeste brasileiro (ALBURQUERQUE JÚNIOR, 2003).
Por muito tempo a essencialização dos gêneros acabou por conferir
ao feminino a subordinação do homem, designando uma mulher vítima e o
homem como sujeito de opressão e dominação ao essencializar o feminino
criando pressupostos de um masculino “puro”. Deste modo, o sistema hegemô-
nico machista concentra sua atenção na subordinação das mulheres e encontra
a explicação para este evento na “necessidade” do homem dominar a mulher
(SCOTT, 1995).
Para elucidar a violência contra o feminino que o sistema hegemônico
machista acarretou e acarreta em nossa sociedade, Mariza Corrêa (1981) em eu
livro “Crimes da Paixão” apresenta-nos os crimes passionais, crimes praticados
por homens que estabelecidos em um sistema de poder se viam sujeitos deten-
tores de suas mulheres. A autora traz uma abordagem histórica e política dos
procedimentos judiciais, um exercício de compreensão de lei e suas aplicações
que permitiu a absolvição de alguns acusados de crimes passionais. Corrêa
(1981) tenta responder o porquê esse tipo de homicídio parece oferecer o pri-
vilegio da impunidade, onde mais uma vez vê-se a mulher em uma situação
subordinada. Crimes estes que eram legitimados e absolvidos judicialmente no

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derramamento de sangue, lavagem da honra. O questionamento que se faz


ao ler o livro é: como a sociedade encontra artifícios/justificativas/formas para
decidir sobre a justiça e legitimidade deste ato de violência?
Portanto, como vimos à violência contra a mulher é fruto de uma constru-
ção histórica, cultural e social pautadas nas categorias de gênero e de relação
de poder. Neste sentido, os sujeitos que correspondem a Lei Maria da Penha
são mulheres, estas que são pensadas a partir da performatividade (BUTLER,
2003).

Feminicídio e Transfeminicídio: a violência contra as mulheres

Feminicídio é um termo que surge com a sul africana Diana Russel para
evidenciar o assassinato de mulheres, mas este ganha notoriedade com os
estudos da Lagarde (2008) que traz os assassinatos de mulheres não trans2 na
Ciudad de Juárez no México em 1993, onde mulheres operárias e da indús-
tria têxtil foram encontradas mortas com amplo grau de crueldade: queimadas,
esquartejadas, jogadas em lata de lixo.
O feminicídio, crime contra a mulher, retira todo caráter de crime de amor,
como reivindica e reivindicava a luta feminista e de movimento de mulheres.
Ao chamar de crime passional é como se tirasse toda a subjetividade feminina
e reconhecesse o sujeito masculino como sujeito absoluto, detentor de poder
(vítima e vitorioso). A lei do feminicídio outorgada no Brasil em 15 de março de
2015 coloca a mulher em ênfase, esta é a vítima e não a “réu”. O feminicídio
acaba ganhando status teórico, político e judicial, logo uma reinterpretação dos
crimes vistos como passionais.
Diante da discussão sobre o feminicídio, a socióloga Berenice Bento,
cunha o termo transfeminicídio para evidenciar a violência, morte de mulheres
transexuais e travestis. Bento (2014) apresenta o termo transfeminicídio para
fazer um paralelo do número de mortes de mulheres transexuais e travestis que
foram mortas no Brasil. A autora afirma que as mulheres trans e travestis são
mortas com o mesmo grau de crueldade pelo sistema hegemônico machista,

2 O uso do termo não trans se alinha a proposta de Berenice Bento (2016) apresentada no texto:
“Transfeminicídio: violência de gênero e o gênero da violência” In: Dissidências sexuais e de gênero.
Leandro Colling (Org.). Editora: Edufba, 2016.

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uma vez que são mortas por transvalorar as normas de gênero, deste modo,
uma morte, violência e marginalização de um corpo que transvalora as normas.
Bento (2014) apresenta o transfeminicídio para reforçar a violência contra
as mulheres transexuais e travestis, uma vez que estas foram retiradas do texto
final da Lei de Feminicídio, “jogada” feita pela bancada evangélica que com-
preende mulher a partir do termo reducionista biológico e que vê na genitália a
representação de gênero.
Dessa maneira, trazer para discussão a pluralidade de mulheres que cons-
titui as identidades de gênero é importante para apresentar em números reais
a violência contra o feminino, pois estas oferecem uma leitura social mais ade-
quada para entendermos como o feminino é (re) significado na sociedade atual.
Assim sendo, os números apresentados pelo Mapa da Violência de 2015 nos
fazem pensar o gênero atravessado por outras categorias, mulheres negras e
pobres são vítimas frequentes. Logo, questionamos: que dados serão apresen-
tados no futuro (se) quando as mulheres transexuais e travestis forem abarcadas
nessa estatística?

Considerações finais

Como vimos à mulher ao longo do processo histórico foi pensada como


o sujeito de submissão, dominação, inferioridade. Estas características parecem
apontar uma naturalização da violência contra o feminino, uma vez que a serem
colocadas à margem do poder são vitimadas pela opressão masculina.
A violência contra o feminino dada das mais infinitas formas se configura
em uma sociedade que por outro lado constrói o homem sob a égide do poder.
Desta maneira introjetados dentro do machismo, o que se dá como resposta de
uma violência que só aumenta é a (re) produção social do machismo em níveis
extremos.
Ao trabalhar mulheres incorporamos no questionamento da efetividade
da Lei Maria da Penha, os novos sujeitos representados socialmente a partir da
identidade de gênero. O que nos faz avançar para os números que já se apre-
sentam alarmantes. Problematizar as mulheres transexuais, mulheres travestis
nesta lei faz-nos compreender as tensões sociais que configuram a imagem do
feminino.
Portanto, o diagnóstico que apresenta o Mapa da violência em 2015 tra-
duz em números, cor (negra), classe social (baixa) e região brasileira (Nordeste)

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as mulheres e lugares que atrelados de maneira mais intrínseca vivem a violên-


cia contra o feminino. Entretanto, acreditamos que a Lei Maria da Penha, a Lei
de Feminicídio e quem sabe no futuro a Lei de Transfeminicídio junto às políti-
cas de enfrentamento reeduquem a sociedade brasileira com o intuito de coibir,
prevenir e extinguir a violência contra as mulheres.

Referências

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artes/Durval Muniz de Albuquerque Júnior; prefácio de Margareth Rago. FJN, Ed.
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PERSPECTIVA QUEER E A PROPOSTA NÃO-BINÁRIA

Francine Natasha Alves de Oliveira


Doutoranda e mestre em Letras: Estudos Literários
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) |
Área: Teorias da Literatura e Representações Culturais
francine.alves.oliveira@gmail.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O crescente número de pessoas que se identificam como não-binárias revela


um esforço pela desnaturalização da base de gênero binária. Contudo, a partir
da diferenciação entre indivíduos que estão de acordo com o gênero que lhes é
designado ao nascer e aqueles que não estão, estabelece-se um novo binarismo,
o cis/trans. Com esta nova conceituação, a identidade não-binária vem sendo
classificada sob o polo trans do binarismo em questão. Este artigo pretende
discutir o posicionamento não-binário também em relação aos conceitos de cis
e trans, uma vez que, politicamente, a comunidade trans apresenta demandas
específicas e é importante, para tanto, que o lugar de fala do sujeito não-binário
não se confunda com aquele de pessoas transgênero, principalmente travestis e
transexuais binárias.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; política; gênero; não-binário.

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Introdução: resistindo à assimilação

Nos Estados Unidos, a ideia de se retomar o termo “queer”, no fim da


década de 1980 e início da década de 1990, antes usado pejorativamente para
se referir a homossexuais – principalmente a homens afeminados ou a mulheres
masculinizadas –, está relacionada com um desejo de auto-afirmação a partir
da capacidade de definir a si mesmo/a, dando ao sujeito o poder de rejeitar a
classificação identitária imposta pela sociedade. A apropriação de uma palavra
usada por heterossexuais para ofender gays e lésbicas é feita estrategicamente
para subverter o sentido de um termo, nesse caso, queer, e enfraquecer seu
poder de ofensa, tornando-o uma designação positiva.
Sendo assim, “queer”, outrora degradante, passaria então a ser usado para
marcar uma “política da diferença” (JAGOSE, 1996, p. 76), mudança influen-
ciada pelo pensamento pós-estruturalista ao desconstruir a identidade como
elemento fixo e coerente. Em vez de se apresentar como uma unidade, o sujeito
se torna fragmentado, culturalmente construído e não essencial.

Tensões

Muitos grupos e pesquisadores que se autodenominaram “queer”, porém,


foram criticados por apresentarem interesses políticos de classe-média, mascu-
linos, brancos e com base em valores heteronormativos e liberais (SULLIVAN,
2003). Enquanto o movimento estadunidense Queer Nation defendia uma polí-
tica de solidariedade entre indivíduos queer e clamava pela participação de
todos, o campo acadêmico, segundo Gloria Anzaldúa (apud GOLDMAN, 1996),
desde seu surgimento, teve lésbicas e gays brancos de classe média como pro-
dutores da Teoria Queer a controlar a pesquisa e a produção do conhecimento.
Para Goldman (1996), a afirmação de Anzaldúa serve para alertar sobre a
importância de cada autor elaborar os significados aplicados em nossas teorias,
evitando o risco de tornar “queer” uma acepção muito vaga e passível de adqui-
rir qualquer significado ou aspecto particular dentro de um texto.
Se cada sujeito pode narrar a si mesmo e construir sua “queeridade”,
“queer” pode, de fato, adquirir sentidos diferentes em contextos diversos, ape-
sar de não se tratar de um termo completamente vazio de significado. Para
muitos, essa polissemia é uma característica positiva, enquanto para outros ela

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é responsável não só por minar o potencial político do queer, mas também por
permitir um uso indiscriminado e vazio da palavra.
O caráter ambíguo do termo “queer” vai de encontro à rigidez de rótu-
los existentes dentro do próprio meio LGBT, permitindo a criação de novos
espaços e identificações não restritos à sexualidade ou à expressão de gênero.
Infelizmente, ainda é possível notar certo apego a classificações dentro do movi-
mento LGBT e mesmo a preferência por um discurso normativo que privilegia a
homossexualidade e deixa temas como a travestilidade ou até a bissexualidade
à margem em termos de reconhecimento e validação, devido à potencialidade
de ruptura com delimitações precisas – ou bem estabelecidas – de gênero e
sexualidade.
Pela perspectiva da assimilação, um “movimento queer” continua a ser
percebido como estratégica e ideologicamente radical, contudo, pela visão
de muitos teóricos, a própria noção de um movimento unificado deve ser
questionada.
Apesar dos debates e polêmicas em torno da questão, muitos ainda se
utilizam do termo como mero sinônimo para LGBT até os dias atuais. Outros
procuram criticar essa adoção, uma vez que, como “termo guarda-chuva”, ele
não problematizaria as diferenças internas ao movimento LGBT, acabando por
apaga-las e por dar a impressão de que a comunidade existe como um todo
isento de conflitos (SULLIVAN, 2003), o que Ruth Goldman chama de “riscos
inerentes” (1996, p. 170) de se abraçar a denominação como uma significante
identitária, que leva ao desaparecimento da própria diversidade para a qual se
deseja chamar a atenção.
Em uma concepção norte-americana que começa, no século XXI, a se
reproduzir no Brasil, ser queer é valorizar a fluidez, admitir e abraçar a multi-
plicidade em detrimento das noções de identidade “naturais” ou “essenciais”
constantemente reforçadas por normas de inteligibilidade sociais que supõem
um sujeito “coerente” e estável, principalmente no que diz respeito à “matriz de
inteligibilidade” de sexualidade e gênero (BUTLER, 2010). Apesar de a palavra
“queer”, em si, ainda se manter mais restrita ao âmbito acadêmico, suas ideias
e propostas têm sido cada vez mais difundidas.
O sujeito que se auto-identifica como queer rejeita a objetividade de iden-
tidades sexuais como “gay”, “lésbica”, “bissexual” ou de identidades de gênero
como “masculino”, “feminino” ou, eventualmente, até mesmo “transexual”. A
definição de si como queer significa também um desejo de não ser “nomeado”,

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de não ser rotulado pelo outro, uma vez que, segundo Richard Miskolci, “[n]
a perspectiva queer, as identidades socialmente prescritas são uma forma de
disciplinamento social, de controle, de normalização” (2013, p. 18).

Desdobramentos

Como mencionado, a Teoria Queer apenas recentemente chegou ao


Brasil, por meio de pesquisas universitárias e da ação de grupos ativistas com
acesso ao conhecimento acadêmico que procuraram dar visibilidade à ideia de
se criticar e questionar a heteronormatividade e os valores a ela associados. Na
prática, pessoas que se viam literalmente violentadas pelas normas de gênero e
sexualidade passaram a adotar novas maneiras de se identificar fora dos binaris-
mos determinados por “masculino” e “feminino”, bem como “heterossexual” e
“homossexual”, aceitando a multiplicidade e a fluidez das expressões de gênero
e sexualidades. Dessa forma, na medida em que mais ativistas e estudantes
universitários se interessam pelos Estudos Queer, maior é o movimento de
questionamento das normas e de incorporação, em seu cotidiano, de descons-
truções propostas pela Teoria Queer.
O potencial político subversivo de um movimento queer, contudo, não
está isento de críticas, uma delas relacionada a um excesso de classificações
que emergiram e ainda emergem na busca da auto-determinação, como se para
cada especificidade em termos de gênero ou de sexualidade fosse preciso criar
uma nova nomenclatura. Para muitas pessoas, dentro e fora da comunidade
LGBT, o queer costuma estar associado a uma infinidade de jargões e teorias
que se limitam apenas ao campo discursivo, mas que não permitem o vislumbre
da desconstrução a nível prático.
Conforme alerta Rocko Bulldagger, há um grande número de artigos e
ensaios que se preocupam em explicar detalhes e minúcias de sub-identidades,
expondo todo tipo de “distinções que alienam os queers uns dos outros” (2006,
p. 138), enfraquecendo a possibilidade de abraçarmos aliados em potencial.
De fato, há contradições dentro dos próprios Estudos Queer e algumas
tensões vão surgindo tanto no âmbito acadêmico quanto no âmbito de ativistas
que se guiam pelas propostas inovadoras de um movimento que não se pre-
tende restringir por regras e verdades definitivas.

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Expressão não-binária

Dentro das possibilidades de se colocar contra as normas de gênero que


impõem ao indivíduo uma identidade baseada principalmente em seus órgãos
sexuais, algumas pessoas têm se identificado como não-binárias, ou seja, como
sujeitos cujo gênero não corresponde ao binário homem/mulher. Questões de
gênero que procurem se distanciar do sistema heterocisnormativo são comple-
xas justamente por desestabilizarem um pensamento que é internalizado pelos
seres humanos desde muito cedo, passando a enxergar construções culturais
como dados naturais.
Em geral, nas definições para “não-binário” encontradas na internet,
reproduz-se a noção de que, por não se identificar com o gênero que lhe foi
designado ao nascer, a pessoa não-binária é um indivíduo trans. Essa concep-
ção se contrapõe à de um indivíduo cis, que se identifica com o gênero que lhe
foi designado. Contudo, colocar a identidade não-binária dentro de um polo
binário – aquele formado por cis/trans – vai de encontro a sua própria classi-
ficação, a qual pretende negar o binarismo em si. A identidade não-binária é,
antes, um devir trans que, sobremaneira, não se realiza por completo como
transgeneridade da forma como esta é conceituada.
À luz do Manifesto contrassexual (2014), de Paul B. Preciado, seria mais
proveitoso encarar a identidade não-binária como um “contragênero”, por
representar uma designação alternativa, contradisciplinar e que comporta uma
fluidez das expressões de gênero. Seria, portanto, uma pós-identidade em con-
sonância com o antiassimilacionismo queer, uma maneira de associar o corpo
a um discurso que amplia as possibilidades de práticas de gênero sem que elas
sejam previamente definidas.
Como “contragênero”, a identidade não-binária deve, então, ser vista como
uma das estratégias para “evitar a reapropriação dos corpos como feminino
ou masculino no sistema social” (PRECIADO, 2014, p. 35) e, em consonân-
cia, evitar também outras reapropriações binárias concernentes aos gêneros e
suas expressões, a fim de escaparem das limitações discursivas promovidas pela
rotulação. Trata-se, nas palavras de J. Jack Halberstam, de procurar meios para
se criar uma “nova desordem mundial” (2012, p. xii) que vise à libertação das
amarras normativas.
Quando falamos em “transgênero”, referimo-nos a um guarda-chuva de
categorias identitárias que envolvem expressões que não estão em conformidade

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com a matriz de inteligibilidade de sexo e gênero. Ainda que o espectro da


transgeneridade seja amplo, politicamente, ele costuma ser representado pelas
travestis e transexuais, cujas demandas são relativamente diferentes daquelas
apresentadas por indivíduos não-binários, além de se mostrarem mais palpáveis
quando apresentadas a uma sociedade que ainda preza pela inteligibilidade dos
corpos segundo uma lógica binária.
Ademais, em termos legais, problemas como a incompatibilidade de
documentos e a necessidade de retificação do nome de batismo, por exemplo,
bem como a necessidade de modificar seus corpos medicamente, por meio
de hormonização e procedimentos cirúrgicos, para que estes reflitam sua real
identidade de gênero, ainda precisam ser exaustivamente debatidos em direção
à legitimação da transgeneridade como um todo. Nesse sentido, é importante
que pessoas não-binárias reconheçam as diferenças sociais e políticas das iden-
tidades trans a fim de que seu discurso não sobreponha aquele proferido por
militantes transexuais e travestis.
É necessário também evitar hierarquizações feitas a fim de comparar os
níveis de opressão sofridos por cada grupo. Antes, é preciso enxergar que a
legitimidade dessas identidades atualmente mais visíveis abriria caminho para
debates mais profundos, que envolveriam a própria expressão não-binária, que
não apenas é incompreendida, mas que tem, com frequência, sua própria exis-
tência questionada.
Podemos argumentar que a terminologia a diferenciar cisgêneros e trans-
gêneros foi cunhada pelos oprimidos, configurando-se como estratégia de
resistência por partir do sentido oposto de formação do discurso: trata-se do
“dominado” que nomeia o “dominante”. Contudo, o fato de não se originar do
lado hegemônico do discurso não suprime a existência de relações de poder
internas ao grupo oprimido em questão, não contemplando a todos os indiví-
duos identificados como trans de maneira igualitária. Além disso, a nomeação
de si pelo outro permanece nos casos em que se impõe a necessidade de se
adotar uma ou outra nomenclatura, sem haver a abertura para entre-lugares.
Aparentemente, certas convenções adquiriram o status de verdade
também no âmbito queer, desencadeando uma espécie de policiamento clas-
sificatório por meio do qual se reproduz a possibilidade convencionada e se
rechaça a reflexão voltada para questionamentos internos e autocríticas.

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Considerações finais

Levando-se em consideração o contexto queer de problematizar bina-


rismos e naturalizações, bem como a importância da autodeterminação, a
expressão não-binária pretende a negação dos gêneros que reproduzem o
paradigma do dimorfismo sexual, um posicionamento que rejeita os limites do
masculino e do feminino. A subversão que resulta da não aceitação do gênero
designado no nascimento expõe a fragilidade dessas categorias associadas à
suposta diferenciação biológica dos corpos.
O não-binário é uma das formas de problematizar a cisnormatividade e
coloca-la em xeque. Contudo, se o objetivo da identidade e/ou da expressão
não-binária é o de resistir à imposição do binário, classificar o sujeito não-biná-
rio como transgênero pode representar uma incoerência, por inserir a categoria
dentro de outro binarismo que se pretende estável e tem demonstrado relativa
rigidez em termos de conceituação. A identificação não-binária pode ser uma
forma de desestabilizar o tradicional pensamento ocidental estritamente dual
que tem se mostrado presente até mesmo em teorias desconstrucionistas.
Se, por um lado, o não-binarismo soa autoexplicativo na medida em
a nomenclatura, por si só, rejeita proposições binárias, por outro lado, há a
construção de uma nova separação de conceitos e posicionamentos que opõe
a cisgeneridade – referente à expressão daqueles que se identificam com o
gênero que lhes foi designado ao nascer – à transgeneridade – para designar
quem, de alguma forma, não está de acordo com a atribuição de gênero na
ocasião de seu nascimento. Nesse contexto, estabelece-se que expressões de
gênero não-binárias só podem estar no espectro trans da referida polarização,
uma vez que não são consideradas manifestações cis. Afirmar que a identidade
não-binária necessariamente se classifica como trans acaba refletindo uma ten-
tativa de normatização e fixação de conceitos que surgiram do desejo de resistir
a rótulos precisos, imutáveis e de fácil assimilação.
Ainda que a motivação para se considerar a identidade não-binária como
transgênera possa ser justificada pela não conformidade entre sexo e gênero
– característica específica da cisgeneridade –, podemos questionar a concei-
tuação generalizada a partir das perspectivas múltiplas de uma expressão que
pode, por exemplo, comportar a identificação parcial com o gênero designado
na ocasião do nascimento. Levando-se em consideração nuances como essa,
notamos que o potencial não-binário não está apenas no questionamento direto

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da matriz de inteligibilidade sexual, mas também na possibilidade de trair tanto


as normas tradicionais quanto as novas regras que parecem emergir, inadverti-
damente, das propostas de desconstrução da sociedade heteronormativa, mas
que acabam se mostrando também limitadoras.

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Referências

BULLDAGGER, Rocko. The End of Genderqueer. In: SYCAMORE, Mattilda Bernstein


(Ed.). Nobody Passes: Rejecting the Rules of Gender and Conformity. Berkeley, CA:
Seal, 2006. p. 137-148.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 3. ed.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

GOLDMAN, Ruth. Who Is That Queer Queer? Exploring Norms around Sexuality,
Race, and Class in Queer Theory. In: BEEMYN, B.; ELIASON, M. (Ed.). Queer Studies
– A Lesbian, Gay, Bisexual, and Transgender Anthology. New York and London: New
York University, 1996, pp. 169-182.

HALBERSTAM, J. Jack. Gaga Feminism – Sex, Gender, and the End of Normal. Boston:
Beacon, 2012.

JAGOSE, Annamarie. Queer Theory – An introduction. New York: New York University,
1996.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: Um aprendizado pelas diferenças. 2. ed. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1, 2014.

SULLIVAN, Nikki. A Critical Introduction to Queer Theory. New York: New York
University, 2003.

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS TRANSGÊNERO NO


PARÁ: A CARTEIRA DE NOME SOCIAL

Sávio Barros Sousa


Bacharel em Direito
saviobarros@outlook.com

Milton Ribeiro da Silva Filho


Doutorando em Sociologia e Antropologia
mfo@ufpa.br

GT 25 - Construções Trans* em Debate

Resumo

O presente trabalho discute o papel desempenhado pelo Comitê Gestor do


Plano Estadual de Segurança Pública de Combate a Homofobia – doravante,
o Comitê – na instituição da carteira de nome social para travestis e transexu-
ais no Estado do Pará. Este trabalho analisa o contexto, fático e normativo, de
criação desta política pública, aliando a leitura de relatórios, com entrevistas
semiestruturadas. Tendo como principal foco a análise desta política pública
como mecanismo para o reconhecimento integral ao direito de personalidade
de travestis e transexuais, bem como as possibilidades de acesso a outros meca-
nismos de cidadania.
Palavras-chave: transexuais; travestis; representatividade; política pública;
discriminação.

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Breve história do Comitê

O Comitê Gestor do Plano Estadual de Segurança Pública de Combate a


Homofobia é um grupo de trabalho do Conselho Estadual de Segurança Pública
(CONSEP) do Estado do Pará, que congrega representantes de órgãos estaduais
e representantes da sociedade civil, no sentido de dar cumprimento ao Plano
Estadual de Combate a Homofobia no seu eixo direito a segurança, combate
a violência e impunidade. Sobre o contexto de criação do Comitê, comenta
Francisca1:
“Em 2004 teve aquele programa, “Brasil sem Homofobia”, qua-
tro anos depois o Pará [...]. Tanto é que o comitê tem o mesmo
nome do plano. Ai nesse comitê compõe entidades governamen-
tais e representantes da sociedade civil [...]. Dessa sopa de letrinhas
um representante de cada. Então um representante de cada segui-
mento. Fazem parte dos seguimentos governamentais a SEGUP2
– que coordena as ações do comitê – a polícia militar, a polícia civil,
a defensoria pública, o sistema penal e entraram dois novos mem-
bros da sociedade civil, a OAB e o Conselho Regional de Psicologia
[...] E mais SDDH.”3 (Francisca,entrevista, jan.2016).

O Programa a que Francisca se refere foi fruto das ações do Conselho


Nacional de Combate à Discriminação. Um dos eixos se referia ao direito à
segurança, direito especialmente associado à segurança pessoal, combate a dis-
criminação e a impunidade contra pessoas LGBT.
A Coordenação de Proteção a Livre Orientação Sexual (CLOS) é uma ins-
tância administrativa dentro da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos
(SEJUDH) do Estado do Pará foi responsável pela elaboração do Programa Pará
Sem Homofobia que apresenta proposições do programa do Governo Federal.
Sobre o contexto de criação do programa, afirma Souza Junior:

1 “Francisca” é assistente social e acompanha as ações do Comitê desde a sua fundação.

2 Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social.

3 Sociedade Paraense de defesa de Direitos Humanos.

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A construção desse programa foi fruto da articulação entre o


Governo do Estado e o Movimento LGBT. Essa articulação se deu
pela ocupação de cargos públicos, dentro da estrutura do Governo,
por parte de algumas lideranças que atuavam também dentro de
partidos políticos, em particular do Partido dos Trabalhadores (PT)
e também de outros partidos coligados, como o Partido Comunista
do Brasil (PCdoB). Foi o caso em particular da CLOS, em que o
coordenador e os assessores foram indicados pela atuação desta-
cada no Movimento LGBT (caso do coordenador) e nos partidos
políticos dos quais faziam parte (caso dos assessores). (SOUZA
JUNIOR, 2011, p. 111).

A SEJUDH juntamente com a Secretaria de Estado de Segurança Pública


e Defesa Social (SEGUP), usando como inspiração o Programa Pará Sem homo-
fobia, deu origem ao Plano Estadual de Combate a Homofobia. Sobre o Plano,
comenta “Rio” 4:
“O Plano, ele é muito amplo, mas ele é voltado principalmente para
segurança pública e cidadania, porque ele foi elaborado dentro
desta Secretaria [...]. E uma das coisas principais seria tentar garantir
um atendimento humanizado e com qualidade para essas pessoas,
tentar fazer com que o funcionário público do sistema de segurança
pública pudesse ver e olhar essas pessoas como um cidadão como
outro qualquer, sem fazer qualquer discriminação e independen-
temente da sua aceitação ou por essas pessoas, mas tratá-la com
respeito como todo e qualquer usuário do serviço de segurança
pública deve ser” (Rio, entrevista, fev.2016).

Comenta ainda o interlocutor, fazendo alusão ao fato de que houve uma


resistência inicial a representação de todos os seguimentos da militância LGBT
compreendidos no movimento. Tornar a representação da sociedade civil mais
paritária dentro destes órgãos colegiados é uma forma de promover uma cons-
trução de políticas públicas mais próximas daquele que é o destinatário final
destas políticas. Sobre isso comenta ainda “Rio”:
“Olha, o Comitê tem exatamente a importância de congregar
diversos seguimentos da sociedade, tanto do Estado, onde nós

4 “Rio” é delegado de policia civil, coordenou as atividades do Comitê de 2012 a 2014 e foi citado
pelos outros três entrevistados.

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representamos os diversos órgãos do estado, quanto da sociedade


civil e principalmente se procurava ter sempre presente os segui-
mentos, né?... Que trata da homossexualidade [...]. Ali não vai ter
apenas a vontade do estado de aplicar um plano que foi devida-
mente traçado durante alguns anos, mas você vai ter o interesse
da sociedade, daquela parcela da sociedade que está diretamente
interessada na aplicação, de fazer valer direitos, de fazer valer cida-
dania” (Rio, entrevista, fev.2016).

O interlocutor comenta a finalidade do Comitê, interferir no sentido de


aproximar a sociedade civil em sua parcela LGBT das instituições onde se pro-
duzem políticas públicas de segurança. Sobre essa questão comenta Leonardo
Boff:
Mas ela (democracia) pode ser melhorada e enriquecida com a
energia acumulada pelas centenas de movimento sociais e pela
sociedade organizada que estão revitalizando as bases do país e
que não aceitam mais esse tipo de Brasil (...). Agora os atores sociais
querem completar essa obra de magnitude histórica com mais par-
ticipação. (PALHARES, 2014, p. 110).

A proposta de criação do referido Comitê foi apresentada a plenária do


CONSEP, na 214ª Reunião Ordinária, por meio da Resolução 155/10 o Comitê
foi efetivamente criado.
Está previsto ainda na normativa que representantes de outros órgãos
poderão ser chamados há compor as ações do Comitê, por exemplo, represen-
tantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, OAB-PA e outros.
Os demais artigos da Resolução se referem à previsão de apoio para as
atividades que devem ser oferecidas pelos órgãos de segurança pública para
as ações do Comitê e a aprovação do relatório mensal/anual por parte do
Presidente do CONSEP.
A normativa não prevê orçamento próprio para o custei das atividades e
ações do Comitê, atrelando seu funcionamento às determinações da Secretaria
de Estado de Segurança Pública e Defesa Social e aos outros órgãos do Sistema
Estadual de Segurança Pública.

A Carteira de Nome Social

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A participação dos representantes do Comitê na instituição da carteira de


nome social para pessoas travestis e transexuais foi fundamental para a institui-
ção desta política pública, criada pelo Decreto nº 726/2013 (PARÁ, 2013) que
homologou a Resolução nº 210/2012 do CONSEP (CONSEP, 2012).
A Resolução é reconhecida como um avanço significativo, pois na época
o Estado do Pará era o segundo Estado da federação a instituir esta política no
Brasil.
Sobre as experiências de travestis e transexuais, comenta Alexandre Vale:
Para transexuais, travestis e transgêneros, a “desconstrução” dos
sexos não constitui apenas uma questão teórica, mas uma prática
concreta: el@s decompõe a representação social da feminilidade e
do corpo feminino em signos que são por el@s apropriados e dos
quais se servem em suas práticas sociais. Estas práticas convidam
a repensar o processo de construção social dos sexos bem como
os fundamentos sociais da produção individual de uma aparência
e de uma identidade de sexo, de gênero ou performativa. (VALE e
PAIVA, 2006, p. 66-67).

O reconhecimento do nome social para essas populações é uma forma de


garantir o direito de personalidade pleno a pessoas travestis e transexuais, uma
vez que o nome de nascimento que não está em conformidade com o gênero
ostentado pela pessoa, se torna um constrangimento quando surge em locais
onde se efetuam registros públicos ou em órgãos públicos. Sobre essa questão
comenta Bento:
Após a cirurgia e de todas as transformações, as pessoas transe-
xuais ainda tem que apresentar documentos com o gênero não
identificado, o que gera constrangimentos infindáveis. Em nossos
cotidianos somos chamados a nos identificar inúmeras vezes. Abrir
uma conta em um banco, ter um cartão de crédito, fazer uma matri-
cula, procurar um emprego. Em todos esses atos, se espera que haja
uma correspondência entre os documentos emitidos pelo Estado e
as performances de gênero. (BENTO, 2008, p. 147).

É sabido que a Lei sozinha não tem o condão de acabar com práticas
discriminatórias como as enfrentadas cotidianamente por travestis e transexuais
quando se lida com a questão do nome social, mas as normativas são um passo

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significativo no reconhecimento do direito de personalidade dessas pessoas.


Sobre a importância da Carteira naquele momento, comenta “Rio”:
“Uma das coisas mais importantes, que eu acredito nestes três anos
que nós passamos, foi à criação da carteira de identidade social.
Isso ai, realmente, de encontro ao seguimento trans e de travestis
por ter o seu nome, o nome pelo qual elas querem ser conhecidas
e serem chamadas, registrado com uma validade em todo o estado.
Isso foi todo um processo, né? De validação[...] Começou com uma
portaria e decretos do Governo do estado, determinando que elas
fossem aceitas [...] Atendidas pelo nome, até a criação da carteira...
Então foi um processo completo de cidadania” (Rio)

Sobre os embates internos para a instituição desta política pública no


Comitê, comenta “Berlin”:
“[...] logo no início foi aprovado que teria uma carta de identi-
dade de gênero... A pessoa teria que ir à secretaria de justiça para
se declarar uma transexual ou uma travesti para receber aquela
carta para ir à polícia civil para tirar sua carteira. Eu comecei a
lutar encima disso, para que fosse tirada essa carta [...] É a necessi-
dade desse documento, porque... Porque não se levava para outros
municípios, as meninas teriam que vir de Itaituba, de Santarém,
tinha que vir de Abaetetuba5 [...] Para poder tirar sua carteira com
nome social, e... Eu me lembro assim bem que teve muita briga
interna, muitas discussões, muitas reuniões para que houvesse essa
supressão e eu cheguei a chorar na mesa lá, é [...] Eu até cheguei
a falar grosseiramente com alguns membros do Comitê, que estão
dentro de gabinetes, dentro de um escritório e não sabem o que a
gente sente na pele aqui fora” (Berlin, entrevista, fev. 2016).

Faz-se necessário um apontamento sobre a atuação de Berlin ao reportar


a construção desta política pública. Pois foi sob sua atuação direta que a Carta
de Identidade de Gênero foi suprimida da versão final do projeto. Nesse sentido,
muito longe de esgotar as discussões sobre a necessidade da Carta, é radical
apontar que o sujeito “subalterno” de Gayatri Spivak foi ouvido, foi percebido

5 Municípios paraenses.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

e teve sua vontade levada em consideração naquele momento (SPIVAK, 2010,


p. 16-17).
Esse argumento requereria mais tempo e espaço para seu desenvolvi-
mento, mas pode-se aludir ao fato de que sem aquela representatividade, sem
aquela presença, essa política pública poderia ter nascido um pouco diferente.
A Carta de Identidade de Gênero apenas burocratizaria o acesso a um direito
que não é exigido a pessoas cisgênero6, logo não está em conformidade com o
direito e princípio fundamental da isonomia e da não discriminação.
Complementa ainda Berlin:
“Assim, é um pouco relativo... Tem meninas que não se contentam
com a carteira, tem meninas que dizem, ’ a não, só quero se trocar
todos os meus documentos que a carteira não me interessa’, mas
assim é 20%, porque 80% querem a sua carteira, tem meninas que
ainda eram chamados pelo nome masculino em escolas particulares
mesmo tendo a lei do município que todas as travestis e transexuais
teriam direito, desde 2012, ao nome social dentro da escola, mas
tem muitos gestores que ainda relutam [...] Desconhecem a própria
lei, e com a carteira facilitou muito, entendeu?” (Berlin, entrevista,
fev. 2016)..

O reconhecimento, mesmo que administrativo, do nome social pode ser


a diferença entre o acesso ao sistema púbico de saúde ou educacional, por
exemplo. Quando se fala em sistema de segurança pública, esse reconheci-
mento tangência situações ainda mais delicadas como, por exemplo, o acesso
à segurança pessoal, seja por meio dos diversos órgãos que compõe o sistema
ou no momento de lavratura de um Boletim de Ocorrência.

Considerações finais

Ao analisar a atuação do Comitê Gestor do Plano Estadual de Segurança


Pública de Combate a Homofobia, este trabalho se focou na instituição da
Carteira de Nome Social para travestis e transexuais. Todo o processo que se
inicia com a discussão, no âmbito do Comitê, passando pela aprovação na ple-
nária do CONSEP e consequente expedição do Decreto nº 726/2013, representa

6 Cisgênero é o indivíduo que se identifica com o gênero que lhe é atribuído ao nascer.

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um avanço e se constitui como política de efetivação de direitos e reconheci-


mento de cidadania para essa população.
O direito ao reconhecimento, ao nome, a uma identidade é o pressuposto
para se acessarem outros direitos. Estudar, ir ao posto de saúde ou a delegacia
é viver com plenitude a vida civil sem o risco de ser discriminada. Entretanto,
como já lembrado, a Lei sozinha não é capaz de acabar com a discriminação
histórica e cultural que pessoas transgênero estão submetidas em seu cotidiano.
A Carteira de Nome Social é apenas uma das políticas que foram levadas
a frente pelo Comitê e, por sua abrangência, afeta uma diversidade de sujeitos
que antes eram invisibilizados, mas existem outros problemas que, infelizmente,
essa política pública não pode dar conta como a questão da violência e do
acesso ao mercado de trabalho. Essas questões que poderão ser tratadas em
trabalhos futuros.

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Referências

BENTO, Berenice. O que é Transexualidade? São Paulo: Brasiliense, 2008. Coleção


Primeiros Passos.

CONSEP. Resolução nº 210 de 19 de dezembro de 2012. Institui a Carteira de Nome


Social (Registro de identificação social) para pessoas travestis e transexuais no Estado
do Pará. Disponível em: <https://www.sistemas.pa.gov.br/sisleis/legislacao/834>.
Acesso em: 21 jan. 2016.

PALHARES, Joaquim Ernesto (Org.). Participação social e democracia. São Paulo:


Editora Fundação Perseu Abramo, 2014.

PARÁ. Decreto nº 726 de 29 de abril de 2013. Homologa a Resolução nº. 210/2012


do Conselho Estadual de Segurança Pública - CONSEP. Disponível em: <https://www.
sistemas.pa.gov.br/sisleis/legislacao/834>. Acesso em: 21 jan. 2016.

SOUZA JÚNIOR, Samuel Luiz. Direitos sexuais e políticas públicas: combate a


discriminação para a concretização dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexu-
ais, travestis e transexuais (LGBT) no Estado do Pará. Tese de Mestrado. Instituto de
Ciências Jurídicas, Pós-graduação em Direito. Belém: Pará, 2011.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010.

VALE, Alexandre Fleming Câmara; PAIVA, Antônio Cristian Saraiva (Orgs.). Estilísticas
da Sexualidade. Fortaleza: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal do Ceará. Campinas: Pontes Editores, 2006.

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FORMAÇÕES SOBRE DIREITOS LGBT PARA AGENTES DE


SEGURANÇA PÚBLICA: DIFICULDADES NA DEFESA DA
CIDADANIA PARA LGBT NO PARÁ

Sávio Barros Sousa


Bacharel em Direito
saviobarros@outlook.com

Luanna Tomaz de Souza


Doutora em Direito
luannatomaz@hotmail.com

GT 04 -
Travestilidades, transexualidades, lesbianidades e homossexualidades:
transgressão e resistência

Resumo

Este trabalho discute o papel desempenhado pelo Comitê Gestor do Plano


Estadual de Segurança Pública de Combate a Homofobia, na defesa dos direi-
tos LGBT no Estado do Pará. A pesquisa identificou demandas que trouxeram
avanço na questão da proteção e segurança dos e das LGBT. Dentre estas, o
artigo trata especificamente da política de formação de agentes de segurança
pública, uma atividade que visa sensibilizar os agentes do Estado que lidam
diretamente com este público, principalmente, nas ruas. O trabalho finaliza
com alguns apontamentos sobre as dificuldades encaradas pelos interlocutores
na execução destas atividades.
Palavras-chave: homofobia; políticas públicas; violência policial.

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Introdução

A atuação do Comitê Gestor do Plano Estadual de Segurança Pública


de Combate a Homofobia – doravante, o Comitê – se dá em observância ao
que prevê o Plano Estadual de Combate a Homofobia e sob a cooperação de
diversos órgãos públicos e da sociedade civil. Mesmo o Comitê tendo surgido
em 2010, o Plano só começou a ser efetivamente colocado em andamento em
2012.
As ações gestadasno plano visam coibir práticas de violência institucional
contra pessoas LGBT, motivadas por uma cultura de homofobia1 institucionali-
zada em órgãos de segurança pública e que, historicamente, negam cidadania
e direitos a essas populações. Analisando essa questão de uma perspectiva
crítica, comenta Foucault(1988, p. 54):
Vinculou-se, como isso, a uma prática médica insistente e indis-
creta, volúvel no proclamar de suas repugnâncias, pronta a correr
em socorro da lei e da opinião dominante (...). Mas além destes
dúbios prazeres, (o discurso médico) reivindicava outros poderes,
arvorava-se em instância soberana dos imperativos da higiene,
somando os velhos medos do mal venéreo aos novos temas da
assepsia, os grandes mitos evolucionistas às modernas instituições
da saúde pública, pretendia assegurar o vigor físico e a pureza
moral do corpo social, prometia eliminar os portadores de taras,
os degenerados e as populações abastardas. Em nome de uma
urgência biológica e histórica, justificava os racismos oficiais, então
iminentes. E os fundamentava como “verdade”.

Foucault(1988) denuncia a normalização de práticas discriminatórias


como uma política de Estado, mesmo com o advento de uma nova consciên-
cia global sobre liberdade, justiça e igualdade, a partir da segunda metade do
século XX, não houve muita mudança no status quo ocupado pelos sujeitos
sexo divergentes. Ainda pautado em um saber médico e, em termos filosóficos,

1 Embora se reconheça a necessidade de visibilizar as diferentes formas de preconceito, o que tem


sido reivindicado pelos movimentos com expressões como: LGBTfobia ou homolesbotransfobia,
será utilizada a expressão “homofobia” neste texto para se fazer referência ao nome do Comitê.

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essencialista, a compreensão do senso comum sobre as vivências LGBT ainda é


muito limitada. Sobre essa construção discursiva, comenta Figari(2007, p. 260):
O discurso médico-legal, em síntese, traça definitivamente as formas
psíquicas e somáticas da inversão masculina e feminina. Inversão
ou homossexualismo adquirem uma identidade, que embora con-
fusa e ambígua, pelo menos sedimentará uma “marca” que recairá
sobre os indivíduos que praticam o homoerotismo: o estigma da
degeneração e a enfermidade. Assim como os loucos, as histéricas,
os vagabundos – até em certa medida os negros -, os homossexuais
são uma anomalia social que se combate, se rechaça, se reprime e
se busca curar.

Essa perspectiva ainda se encontra na raiz de muitas das dificuldades


reportadas pelos interlocutores mais a frente. Entretanto, essa análise dos dis-
cursos não pode ser apartada de uma compreensão macroestrutural que, da
mesma forma, se vasculariza nas relações interpessoais.
Os entrevistados comentam vários dos problemas enfrentados pelas
atividades de formação como as dificuldades com expressões de sexismo e
homofobia dos agentes em formação, neste sentindo comenta Francisca:
“Então a gente dividia, por exemplo, em discutir questão de gênero,
para que os policiais pudessem entender que isso era uma cons-
trução social [...]. A gente era desrespeitada, sim! a Antônia2 foi
uma das pessoas que contribuiu muito, quando ela colocava a
identidade dela de mulher lésbica [...] A aversão deles era até maior
[...] Havia momentos em que a gente estava mesmo desgastado,
cansadas mesmo, mas nem por isso a gente desistiu” (Francisca,
entrevista, jan.2016).

Outro elemento trazido pela entrevistada se relaciona ao que esta chama


de “desrespeito” enfrentado por palestrantes no momento das formações.
Comenta a entrevistada que uma das palestrantes, ao colocar sua identidade
de mulher lésbica, era alvo de uma “aversão” maior por parte dos agentes de
segurança pública.

2 Nome fictício.

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Outros autores e autoras denunciam a heterossexualidade como o padrão


imposto que sujeita e os corpos e as subjetividades. Nesse sentido afirmou
Monique Witting (1992), teórica feminista francesa, “os discursos que acima de
tudo nos oprimem, lésbicas, mulheres e homens homossexuais, são aqueles
que tomam como certo que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a
heterossexualidade” (WITTIG, 1992, p. 2). A teórica feminista denúncia à norma
heterossexista como a base, a origem dos discursos opressores, discursos esses
já identificados por Foucault. Esse pensamento será resgatado por Butler(2003,
p. 38-39):
A noção de que pode haver uma “verdade” do sexo, como Foucault
a denomina ironicamente, é produzida precisamente pelas práticas
reguladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz
de normas de gênero coerente. A heterossexualização do desejo
requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétri-
cas entre “feminino” e “masculino” (...) Nesse contexto, “decorrer”
seria uma relação política de direito instituído pelas leis culturais
que estabelecem e regulam a forma e significado da sexualidade.

Sarah Salin, comentando o pensamento de Judith Butler (2015, p. 71) na


mesma obra, afirma:
Butler descarta a ideia de que o gênero ou o sexo seja uma “subs-
tancia permanente”, argumentando que uma cultura heterossexual
e heterossexista estabelece a coerência dessas categorias para per-
petuar e manter o que a poeta e crítica feminista AdrienneRich
chamou de “heterossexualidade compulsória” – a ordem domi-
nante pela qual os homens e as mulheres se veem solicitados ou
forçados a ser heterossexuais.

Há um esforço discursivo no sentido de estabelecer a heterossexualidade


como o padrão, essa seria uma das “verdades” da sexualidade, e todas as expe-
riências sobre sexualidade que foge a ele são entendidas e compreendidas a
partir dessa matriz (usando um termo desenvolvido por Butler).

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Nesse sentido, a violência homofóbica3 se constitui como um problema de


ordem social, que deveria ser passível de intervenção jurídica, acrescentaBor-
rillo,“enquanto problema social, a homofobia deve ser considerada como um
delito suscetível de sanção jurídica; todavia, a dimensão repressora é destituída
de sentido se ela não for acompanhada por uma ação preventiva”(BORRILLO,
2010, p. 106) não apenas a Lei, mais as políticas públicas de segurança, educa-
ção, saúde e outras se somam no momento de se construir um combate mais
efetivo à violência homofóbica. Em outras palavras, essas práticas geram um
contra discurso necessário.
Mesmo com dificuldades em efetivar as formações, os resultados das
ações são expressivos. Como alude Francisca, “Tudo bem, é a passo lento, mas
nós chegamos a capacitar, na região metropolitana de Belém até Castanhal4,
acho que mais de mil policiais militares e em torno de seiscentos policiais civis,
delegados, escrivãs”, os números também aparecem nos relatórios e dão pistas
sobre o alcance, à efetividade das ações do Comitê e as mudanças que podem
advir dessas ações.
O seguimento das travestis e transexuais que vivem da prostituição é,
historicamente, o seguimento mais frágil e com menor proteção e visibilidade.
Não é apenas justo, mas uma questão de humanidade e respeito aos Direitos
Humanos destas pessoas que suas pautas e necessidades fossem colocadas em
primeiro plano no momento de criação e gestão das ações do Plano Estadual
de Segurança Pública de Combate a Homofobia.
Mais uma vez a questão da falta de informações coesas e confiáveis esbarra
na falta de preocupação com pesquisas quantitativas e qualitativas sobre como
os seguimentos LGBT receberam as ações do Comitê. Questionada sobre os
resultados das ações de formação com os policiais Francisca, confirma:
“Olha, não há nenhuma pesquisa feita ainda sobre isso, tentar
sondar as meninas que estão na pista para ver mudou algo nessa
relação. Eu escutei, de uma maneira muito informal, esporadica-
mente [...] Uma travesti ou uma transexual, chegar comigo e dizer,

3 Utiliza-se o termo homofobia pela ampla inserção do termo, inclusive aparece no próprio nome do
Comitê, mas estes autores tem consciência dos problemas que o termo apresenta, levantados princi-
palmente por outros seguimentos do movimento LGBT.

4 Cidade que compõe a região metropolitana de Belém.

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“poxa, melhorou bastante essa forma agora como eles abordam a


gente, então faltou mesmo uma pesquisa mais efetiva que compro-
vasse isso” (Francisca, entrevista, jan.2016).

Um dos problemas enfrentados para a efetividade das ações é a escassez


de informações sobre a violência homofóbica e transfóbica em números reais,
que possam ser operacionalizados pelas autoridades públicas. Sobre essa ques-
tão, acrescenta o informe Livres & Iguais das Nações Unidas (ONU, 2012, p. 1):
Os dados oficiais sobre violência homofóbica e transfóbica são
escassos e irregulares. Relativamente poucos países têm sistemas
adequados para monitoramento, registro e notificação de ódio
homofóbico e crimes transexuais. Mesmo onde existem tais siste-
mas, as vítimas podem não confiar na polícia o suficiente para se
expor, e os próprios policiais podem não ter sensibilidade suficiente
para reconhecer e adequadamente registrar o motivo. No entanto,
reunindo tudo o que está disponível nas estatísticas nacionais e
completando-as com relatórios de outras fontes, um padrão claro
emerge – de violência brutal, generalizada e muitas vezes impune.

Como alertado pelo informe, os dados não são precisos, mas aquilo que
existe dá uma ideia do panorama ruim no qual as populações LGBT vivem em
diversos países. No Brasil não é diferente, existem informações nacionais, mas
estas acabam por padecer dos mesmos problemas, como a subnotificação, seja
porque a vítima não confia no sistema de segurança pública ou pelo próprio
preconceito institucionalizado que invisibiliza esse tipo de violência.
Entretanto, com o objetivo de suprir essa informação e dar maior emba-
samento fático, uma das entrevistas deste trabalho é ativista do movimento
transexual e milita nessa causa a mais de 25 anos. Comenta Berlin:
“Não, mudou [...] Como eu ando muito com elas, eu faço trabalho
com elas à noite [...] As abordagens, eles chegavam com elas para
abordar para revistar, com grosseria e eram totalmente desconhe-
cedores de direitos e devido ao policial esta fardado, se achar no
direito todo poderoso de humilhar as pessoas, essa conduta deles
é já uma conduta de quartel. Depois destas formações, amenizou,
ficaram mais flexíveis, mesmo na hora da formação tinha muito
debate, muitos assim... Até oficiais mesmo, “não, porque não aceito
e não vai ser [...]”, você pode não aceitar dentro da sua casa, mas
se está fardado você está prestando um serviço para a comunidade

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você recebe do governo, então você vai ter que tratar essa pessoa
com mais sensibilidade, porque você está sendo pago por essas
pessoas” (Berlin, entrevista, fev.2016)

A entrevistada confirma que o cotidiano das travestis e transexuais que


trabalham na rua melhorou com a promoção das formações e empresta a
esse trabalho um pouco da sua vivência e experiência, trabalhando com esse
público, para confirmar seu posicionamento.
Um último ponto a ser tocado quando se lida com a questão das for-
mações, e questão essa que se apresenta dorsal quando se trata das ações
de qualquer órgão ou iniciativa do Poder Executivo, se refere à abertura dos
gestores para as questões relacionadas aos direitos Humanos ou mais especifi-
camente aos direitos LGBT.
As ações do Comitê estão estritamente vinculadas a aberturas políticas e
administrativas dentro do Conselho de Segurança Pública, ou seja, mesmo que
exista vontade nos sujeitos para levar a cabo ações e projetos, isto esbarra nas
limitações políticas e orçamentárias.
Essas limitações só podem ser “vencidas” com articulação política e a lide-
rança de coordenadores sensível às pautas e demandas do movimento LGBT.

Considerações finais

Como esclarecido no decorrer do texto, a política de formação para


agentes de segurança visa dar a possibilidade de formação complementar para
agentes públicos e se inscreve dentro dalógica de proteção de direitos e desen-
volvimento da cidadania para pessoas LGBT. Entretanto essa discussão não
pode ser desvinculada de uma análise micropolítica das relações de poder.
Essa relação se inscreve na origem das práticas discriminatórias, seja para LGBT
ou para outros grupos subalternalizados, sendo impossível pensar uma solução
para o problema da violência sem que se pense o nível mais baixo nessa cadeia,
qual seja o estágio das relações interpessoais.
Nos relatos de Francisca e Berlin, é possível extrair que grande parte do
enfrentamento para a construção das políticas públicas e a continuidade das
atividades do Comitê se deve a uma cultura de preconceito que naturaliza situ-
ações discriminatórias contra pessoas LGBT.
Por meio de sua atuação, o Comitê possibilitou a visibilidade e o enfren-
tamento a pautas antes ignoradas. As formações com agentes e servidores do

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Sistema de Segurança Pública do Estado do Pará se inscrevem dentro dessa


cadeia de relações de poder e afetam diretamente a relação entre os sujeitos.
Os avanços aqui discutidos foram possíveis com a articulação mais pró-
xima entre os órgãos de segurança pública e os representantes da sociedade
civil, entretanto não se pode acreditar que apenas a institucionalização das
lutas será capaz de abarcar todas as demandas dos sujeitos LGBT. Como bem
exposto pelos interlocutores, as articulações de sujeitos sensíveis as demandas
do movimento LGBT são fundamentais para que as políticas públicas sejam
criadas e as demandas atendidas. Mas isso não seria possível sem uma articula-
ção forte do próprio movimento LGBT.

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Referências

BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2010.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FIGARI, Carlos. @s “outr@s” cariocas: interpelações, experiências e identidades


homoeróticas no Rio de Janeiro: séculos XVII ao XX. Belo Horizonte: Editora da
UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.

FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 1988.

ONU. Livres & Iguais: Nações Unidas pela igualdade LGBT. 2012. Disponível em:
<https://www.unfe.org/system/unfe-42-sm_violencia_homofobica.pdf>. Acesso: 07
jan. 2016.

SALIN, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

WITTIG, Monique. O Pensamento Hétero. The Straight Mind and other Essays.
Boston: Beacon, 1992.

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O DIREITO E AS MULHERES

Laura de Almeida Schefer


Graduanda do 6º período de Direito das FIVJ
lauradealmeidaschefer@gmail.com

GT 27 - Diversidades Sexuais e de Gêneros: dinâmicas e interações na vida social

Resumo

Um olhar atento para o ordenamento jurídico de um Estado é uma fonte valiosa


de estudo para entender os retrocessos e desafios da mulher na sociedade atual.
A legislação brasileira, durante muito tempo, encarou as mulheres como fracas,
frágeis e incapazes de fazer suas próprias escolhas, porém, felizmente, essa
visão arcaica vem sendo superada ao longo dos anos. Diante do avanço das
bancadas conservadoras no Congresso Nacional, o movimento feminista deve,
a cada dia mais, reforçar a luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Uma
grande aliada nessa empreitada é a CF\88, que trouxe uma ideia revolucionária
de igualdade.
Palavras-chave: ordenamento jurídico brasileiro; mulher brasileira; feminismo;
poder feminino; Direito.

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Introdução

A partir da análise da frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”


da grande filósofa francesa, Simone de Beauvoir (1967, p.9), pode-se concluir
que as diferenciações entre homens e mulheres não são de natureza biológica,
contudo puramente social. Como afirma:
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma
que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho
e o castrado que qualificam de feminino. (BEAUVOIR,1967, p.9).

O enfrentamento da desigualdade entre homens e mulheres na


Constituição de 1988

A política brasileira é marcada por um forte conservadorismo, e as mulhe-


res acabam assumindo um papel secundário na elaboração das leis, como
consequência disso surge uma legislação ultrapassada, que não respeita e valo-
riza os direitos femininos. Um efeito na prática da falta de representatividade
das mulheres é a atual composição da Câmara dos Deputados, com cerca de
10% de parlamentares do sexo feminino.
Conforme a CF\88 preconiza, em seu artigo 5º inciso I, “homens e mulhe-
res são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição”. Dessa
forma, é vedado qualquer tipo de discriminação positiva, que vise estabele-
cer diferenciações entre homens e mulheres. Na opinião de Leonardo Martins
(2013, p.235):
A única distinção com embasamento fisiológico que não se choca
contra o dispositivo em pauta é a distinção necessária em torno dos
fenômenos da gravidez, do nascimento e da maternidade que têm
o condão de constituir direitos e obrigações diferentes para ambos
os sexos.  

Brasil: uma terra machista e desigual

O Código Civil de 1916 previa que, caso a mulher tivesse contraído matri-
mônio deflorada, o marido poderia anular a união em até dez dias. No CC\16
incumbia ao cônjuge:

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Representar legalmente a família; administrar os bens do casal e os


bens particulares da mulher, mesmo no regime de separação total
dos bens, além de lhe competir exclusivamente, o direito de fixar
o domicílio da família e a obrigação de lhe prover a manutenção.
(BARRETO 2010).

Segundo o entendimento da professora Vólia Bomfim Cassar (2015), os


artigos da CLT que continham diferenciações entre trabalhadores e trabalhado-
ras, como a imposição de um descanso de quinze minutos para que a mulher
possa iniciar jornada extraordinária de trabalho, não foram recepcionados pela
CF\88. Por outro lado, os preceitos legais que trazem diferenciações com base
em critérios biológicos, como amamentação e maternidade, foram recepciona-
dos pela CF\88, pois são necessários para a proteção da mulher no mercado
de trabalho.
Ademais, o Código Penal, em sua redação original, previa tipos penais,
como de rapto e sedução, que visavam tutelar os costumes e o pátrio poder,
sempre com enfoque na sexualidade da mulher, que deveria se manter casta.
De acordo com Nelson Hungria (1947, p.139):
A vítima deve ser mulher honesta, e como tal se entende, não
somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual,
é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com
o minimum de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa
de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente
desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini
patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta.

Com o advento da Lei 11.106/05, houve a descriminalização das condutas


que faziam alusão ao termo “mulher honesta”, extinguindo assim a punibilidade
daqueles indivíduos que tivessem praticado às condutas previstas na lei.
Até o ano de 2009, o CPB tinha a seguinte previsão do crime de estupro:
“constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.
O tipo penal exigia uma relação heterossexual e era imprescindível a introdu-
ção do pênis na vagina, mesmo que de forma parcial, sendo que somente a
mulher poderia ser vítima do crime e apenas o homem sujeito ativo. Já o aten-
tado violento ao pudor, exigia a presença de atos libidinosos para configurar o
tipo penal.

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Após a entrada em vigor da lei 12.845\09, o Titulo VI do CPB passou a


tutelar a Dignidade Sexual, e não os costumes como anteriormente. Depois de
2009, os tipos penais do estupro e do atentado violento ao pudor foram unifi-
cados, surgindo, a partir daí, uma nova configuração para o crime de estupro:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Nesse caso, o estupro é um crime comum, que não exige qualquer qualidade
pessoal do sujeito ativo e passivo.
É oportuno lembrar que Nelson Hungria (1947, p.115) defendia a tese que
o estupro marital não seria crime” O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do
casamento) a cópula intra matrimonium é recíproco dever dos cônjuges”. Caso
o marido abusasse sexualmente da esposa não seria punido, pois estaria abar-
cado pelo exercício regular de direito, que é uma causa excludente de ilicitude.
Fernando Capez (2015, p.311) adverte que:
Segundo conhecida fórmula de Graf Zu Dohna, “uma ação juridi-
camente permitida não pode ser, ao mesmo tempo, proibida pelo
direito. Ou, em outras palavras, o exercício de um direito nunca é
antijurídico. ”

Aborto uma realidade sombria e não discutida

Nota-se que as incongruências apresentadas acima já foram superadas


ao longo dos anos, porém atualmente ainda há a luta do movimento feminista
para que o Estado brasileiro descriminalize a prática do aborto, que é a quinta
maior causa de mortalidade materna no país. Infelizmente, o aborto ainda é um
tabu a ser quebrado, e somente o debate pode romper todos os estigmas em
torno desse tema. A criminalização do aborto é extremamente cruel, pois retira
das mulheres o direito de dispor livremente de seu corpo, e leva as mesmas a
agirem na ilegalidade, recorrendo a procedimentos inseguros.
Em suma, o direito brasileiro pune aquela gestante que realiza o aborto
em si mesma ou permite que outro lhe provoque, com pena de 1 a 3 anos de
detenção. Já o terceiro, que realiza o procedimento com consentimento da ges-
tante, está tipificado no artigo 126 do CPB com pena de 1 a 4 anos de Reclusão.
A gestante apenas poderá realizar a interrupção da gravidez de forma segura
pelo SUS nas três hipóteses elencadas abaixo:

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Aborto necessário: o procedimento só pode ser realizado pelo médico, e


não necessita de consentimento da gestante.
No caso, ambos os bens (vida da gestante e vida do feto) são juridi-
camente protegidos. Um deve perecer para que o outro subsista. A
lei penal, portanto, escolheu a vida da gestante ao invés da vida do
feto. (GRECO, 2015, p.246).

Aborto humanitário: nos casos de violência sexual, apenas o médico pode


realizar o procedimento, e é imprescindível que haja o consentimento da ges-
tante ou, se menor, de seu representante legal.
Aborto de feto anencéfalo: o objetivo do crime de aborto é tutelar a vida
em formação, porém segundo entendimento do STF o feto anencéfalo é uma
vida inviável, e por isso a gestante poderia realizar um parto antecipado tera-
pêutico sem incorrer no crime tipificado no artigo 124 do Código Penal.

Um pequeno passo rumo ao fim da violência doméstica e


familiar no Brasil:

A propósito, a violência doméstica e familiar ainda é uma realidade no


Brasil, e os algozes em sua maioria são maridos, namorados, companheiros ou
pais, enfim as agressões são praticadas onde as mulheres deveriam se sentir
seguras. Felizmente, as vítimas estão rompendo o silêncio e denunciando os
agressores com a ajuda de uma grande aliada, a Casa da Mulher Brasileira, que
oferece diversos serviços como: Defensoria Pública e Ministério Público.
Em relação às garantias previstas na lei, atenta-se para o fato de que a
mulher que for vítima de violência física, sexual, patrimonial, psicológica e moral
no ambiente doméstico ou familiar poderá requerer medidas protetivas, com
intuito de salvaguardar sua integridade física e psíquica. Pode haver a requisição
de afastamento do agressor do lar, proibição de comunicação com a ofendida,
familiares e testemunhas, proibição de frequentar determinados lugares, dentre
outros pedidos.
A lei do feminicídeo foi sancionada em 2015 pela então presidenta da
República, Dilma Rousseff, e qualificou o crime de homicídio com previsão de
12 a 30 de Reclusão para casos em que as vítimas foram mortas pelo simples
fato de serem mulheres. Atente-se para o fato de que apenas a punição do

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agressor não é garantia de que a violência nunca mais irá ocorrer, mas sim um
dos inúmeros exemplos da política maciça de encarceramento.

Considerações finais

Como foi disposto acima, a luta das mulheres por igualdade ainda não
está no fim, o Brasil ainda necessita percorrer um longo caminho para extin-
guir toda forma de violência contra a mulher, e a solução seria o investimento
maciço em educação de meninos e meninas, para que acabem com essa visão
sexista de ver o mundo. Os tempos são outros, e as mulheres assumem, cada
vez, mais um papel de destaque na sociedade. Sendo assim, é hora do Brasil
encarar o poder feminino.

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GÊNERO E SEXUALIDADES NA FORMAÇÃO DE PEDAGOGOS/


AS: DIÁLOGOS ACERCA DE ENTENDIMENTOS E PRÁTICAS
DISCENTES

Apolônia de J. Ferreira Silva


Pedagoga (UFV/DPE)
Mestranda em Educação (UFOP/ Projeto Caleidoscópio)
apoloniasilva13@gmail.com´

Prof. Dr. Marco Antonio Torres


Professor Adjunto II (UFOP/Projeto Caleidoscópio).
torresgerais@gmail.com.

Resumo

A pesquisa busca analisar como estudantes do curso de Licenciatura em


Pedagogia de uma universidade pública da região sudeste do Brasil tem se
apropriado da categoria gênero e das noções das sexualidades. De caráter qua-
litativo, a investigação fez um levantamento teórico para contextualização do
trabalho e tem utilizado de entrevistas e questionários com discentes regular-
mente matriculados/as no sétimo período. Os estereótipos de gênero e referentes
às sexualidades aparecem nas entrevistas, indicando que estes ainda são um
desafio no campo educacional. Compreender como os fazeres e saberes des-
tes discentes se produzem é um passo importante para entender a resistência
diante de propostas que compreendam gênero e as sexualidades numa pers-
pectiva menos heteronormativa.
Palavras-chave: Diversidade; Formação inicial; Gênero; Pedagogia; Sexualidades.

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Introdução

A partir das experiências como discente e docente no curso de Licenciatura


em Pedagogia, foi possível perceber que nem sempre a academia atende as
demandas referentes aos Estudos de gênero e das sexualidades em sua grade
curricular. Nesse sentido, consideramos importante enfatizar a ausência de con-
teúdos e práticas que possibilitem um diálogo mais preciso entre professores/as
e alunos/as acerca desta discussão. Por outro lado reconhecemos que existem
discursos que sustentam compreensões heteronormativas no ambiente da for-
mação discente. Diante disso, este trabalho apresenta os caminhos e análises
de uma pesquisa que se encontra em andamento em um Programa de Pós-
graduação em Educação. A investigação se propõe a analisar a maneira com a
qual, graduandos/as do curso de Licenciatura em Pedagogia articulam em seus
discursos a categoria gênero e noções referentes às sexualidades. Consideramos
dois aspectos que justificam nossa pesquisa: as políticas públicas em educação
e a produção de conhecimentos que analisam como a heteronormatividade tem
sido problematizada nos ambientes educacionais.
Acreditamos ser necessário enfocar que a problemática deste trabalho
acontece no momento em que convivemos com os/as graduandos/as como
sujeitos que possivelmente, podem desconhecer e/ou reprimir a própria sexu-
alidade e se deparam com conteúdos didáticos abrangentes da área, os quais
devem ser trabalhados em sala de aula. Aqui localizamos a relevância acadê-
mica, a produção de conhecimento que analisem a heteronormatividade. Ela
está diretamente relacionada com o contexto social apresentado. Inicialmente
temos as questões emergentes acerca do gênero e das sexualidades que aden-
tram cada vez mais à educação e especificamente à formação docente. As
questões chegam via discursos religiosos, médicos, acadêmicos, políticos e dis-
ponibilizados pelas diversas mídias. Consideramos importante compreender
como o gênero e as sexualidades são produzidos nestes discursos, sendo que
a princípio parecem se mesclar. Abordagens que variam desde perspectivas da
educação sexual até aquelas que produzem uma crítica política, numa perspec-
tiva de desconstrução da matriz heterossexual. Assim, pode-se analisar quais
discursos são produzidos entre os/as graduandos/as em Pedagogia e como estes
sujeitos se posicionam no cenário atual, como se apropriam ou não de discus-
sões acadêmicas da área educacional

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As posições que assumem professores/as diante de seus discentes, nas ins-


tituições educacionais como a escola e a Universidade, se referem aos modos
que eles/as legitimam discursos numa disputa que tem crescido na sociedade:
grupos que lutam pela pertinência do debate de gênero na educação escolar
e aqueles contrários a qualquer debate que envolva as diversidades na escola.
Assim, consideramos que o período de graduação dos sujeitos desta pesquisa
está matizado também por fatores que contribuem no surgimento de lacunas no
que diz respeito à diversidade, à inclusão e às práticas educativas relacionadas
às questões de gênero e das sexualidades.

Caminhos percorridos até o momento no campo de pesquisa

O trabalho está sendo desenvolvido no Instituto de Ciências Humanas


e Sociais, localizado na cidade de Mariana, Minas Gerais, onde o curso de
Licenciatura em Pedagogia é ministrado por meio de uma Universidade Pública.
Até o momento, foram produzidas entrevistas com três alunas com idades entre
21 e 23 anos, matriculadas no sétimo período do curso, o que equivale ao
último ano de graduação, por acreditar que nesse semestre, as estudantes já
estariam inseridas e familiarizadas com o curso. Sendo assim, para a elaboração
da pesquisa, adotamos como linha de pesquisa os Estudos de gênero, intera-
gindo diretamente com as práticas políticas, sociais e culturais. Inicialmente, foi
realizado uma pesquisa bibliográfica e uma revisão de literatura, uma vez que
elas serviram como suporte à pesquisa.
Revisando a literatura acadêmica, foi possível perceber que Richard
Miskolci (2009) localiza o conceito de heteronormatividade no trabalho de
Michael Warner, em 1991, noção que consideramos necessária para a com-
preensão acerca das questões propostas neste estudo. Este autor indica estudos
referentes às noções das sexualidades discutidas por Michel Foucault, espe-
cificamente nas análises discursivas relacionadas à família, reprodução e
heterossexualidade. Michael Warner, Judith Butler, entre muitos/as autores/as
elaboraram análises sociais retomando Michel Foucault, especificando a sexu-
alidade como um dispositivo de poder da modernidade ocidental, isto é, como
forma de regulação social.
Diversas análises (CASTRO, 2008; LOURO, 1995; 2000 e LOURO et.al.
2001 e 2003), apontam que as sexualidades, vêm adquirido formas variadas.
Pesquisadores/as indicam que oficinas e palestras não são ainda suficientes a

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ponto de se tornarem efetivas para os meios discentes e docentes em ques-


tão. Soma-se a isto uma ambiência social em que a palavra gênero tem sido
eliminado do Plano de Educação ao redor dos debates em que fundamentalis-
tas têm chamado de “Ideologia de gênero”. Considero que os/as graduandos/
as dialogam com essa ambiência a partir dos conhecimentos que acessam
na Universidade, mas também são profundamente marcadas pelos fazeres e
saberes em suas famílias, nos grupos religiosos que participam, nos círculos
de amizade, entre outros. A existência de corpos nos limites das definições de
homem e mulher é tomada na comunidade escolar como perigosa e/ou acin-
tosa aos valores morais, estes corpos muitas vezes são execrados, impedidos,
desclassificados, pois indicam uma sexualidade que não ganha inteligibilidade
nos discursos heteronormativos. Sujeitos que apresentem identidades sexuais
e de gênero além das normas de gênero têm se constituído como ameaça e
motivo de retaliações públicas dentro e fora dos sistemas educacionais. Pelas
normas de gênero toma-se como fundamento a heterossexualidade compulsó-
ria, o dimorfismo sexual e o privilégio do masculino (Butler, 1999).
No atual contexto das políticas públicas em educação, muito se discutiu
da temática referente à identidade de gênero e a orientação sexual, conforme
propostas das políticas de direitos humanos defendidas nos Princípios de
Yogyakarta (CORRÊA & MUNTARBHORN, 2006) e no Plano Nacional de
Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de LGBT (BRASIL, 2009).
Durante as reuniões de estudo do Plano Nacional de Educação (PNE) essas
temáticas ganharam corpo, juntamente com as questões etnorraciais. Contudo,
questionamentos de grupos religiosos, majoritariamente, sustentados por ban-
cadas da Câmara e pelo Senado Nacional, reorientaram o PNE e dele retiraram
quaisquer referências a gênero e as chamadas diversidades. Isto se deu nas três
esferas da federação de modos diferentes, contudo reiterando as normas de
gênero, evitando qualquer indagação da hegemonia da heterossexualidade.
Quanto à relevância social da pesquisa é importante considerar que de
acordo com estudos voltados para as Ciências Sociais, as pessoas são social-
mente treinadas para manterem um relacionamento afetivo-amoroso com outra
do sexo1 oposto, demarcando assim um caráter biologicista reproduzido pela

1 Utilizo o termo sexo, ao me referir a conformação física, orgânica, que permite distinguir o homem e
a mulher, atribuindo-lhes um papel específico na reprodução e enfatizando características biológicas

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heteronormatividade. Nesse sentido, tudo o que foge às normas de gênero,


pode ser considerado estranho ou anormal. Via um conjunto de discursos temos
a tentativa de regulação/normalização da tríade corpo-gênero-desejo na escola,
na família, no mundo do trabalho, enfim, em toda parte. Por isto compreender
a produção de discurso na formação docente se caracteriza como relevante,
uma vez que os/as professores/as inseridos/as em um contexto escolar devem
atentar para a reprodução mesmo que involuntariamente da matriz heterosse-
xual em um cenário em que a lésbicas, gays, transexuais, travestis, entre outros/
as demandam por reconhecimento. .
Tanto os questionários como as entrevistas foram dirigidos às alunas com
o intuito de apreender como é o discurso entre elas e os/as seus/suas familiares
em relação ao gênero e as noções de sexualidades, veículos e agências que pre-
tendem utilizar na intenção de esclarecer possíveis duvidas dos/das seus/suas
alunos/as, questionamentos a respeito da suposta “Ideologia de gênero”, pre-
sentes no PNE conforme defendem aqueles/as contrários à discussão de gênero
e sexualidades nas escolas, entre outros/as. Vale destacar que entre os objetivos
propostos por essa possível “Ideologia de gênero”, estaria ampliar a divulgação
dos temas, para que o controle da evasão escolar e o enfrentamento as discri-
minações de gênero fossem efetivas.

Os enunciados das entrevistas piloto

De acordo com as análises de Michel Foucault (1993), cedo ou tardia-


mente, as discussões acerca do gênero e das sexualidades surgem, ora no
âmbito escolar, em casa ou na rua, contudo, é o modo que são operacionali-
zadas e/ou articuladas que indica a problemática que a formação da Pedagogia
deva enfrentar. Seja com amigos/as, com a própria família ou por meio de veí-
culos ou agências midiáticas, conversas formais ou informais, influenciam direta
ou indiretamente na constituição do sujeito e de suas identidades, sejam elas
sexuais e/ou de gênero. “Eu tive as primeiras informações sobre sexo na escola e
acho que acabei conversando mais com os amigos do que com a minha própria
família” (Joaquina Silveira). Entretanto, caberá ao/a estudante de Licenciatura
levar em consideração a grande responsabilidade em pensar o espaço da escola

atribuídas as suas genitálias.

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como algo que não pode ser monopolizado por interesses de grupos e/ou movi-
mentos que não reconheçam o direito de LGBT, impedindo-os/as de usufruírem
das possibilidades sociais disponibilizadas a todos/as. Competirá ao/a profes-
sor/a incubência de promover um melhor manuseio da matriz heterossexista,
dialogando e/ou reconhecendo a legitimidade das diferenças.
A internet por diversas vezes apareceu no decorrer das entrevistas como
uma forte aliada no que tange aos Estudos de gênero e as sexualidades, de
maneira que foi o meio mais citado quando a interrogação foi sobre veícu-
los e agências utilizados para orientar e/ou informar. “Acredito que todos os
meios são amplos, mas o principal é a internet [...] hoje é um meio tecnológico
que possibilita buscarmos várias temáticas para trabalhar com nossos alunos
até mesmo sobre o gênero e a sexualidade” (Bernadete Matarazzo). Diante
disso, no prosseguimento da pesquisa, pretendemos tentar entender e explorar
o que essas estudantes percebem na internet, que a torna tão imprescindível,
ampliando ainda mais o debate.
Até o momento, as entrevistadas se consideraram despreparadas com a
possibilidade da discussão envolvendo o gênero e as sexualidades em âmbito
escolar mesmo já estando prestes a concluírem a graduação. Segundo elas, o
fato de não terem desfrutado da oportunidade de um maior diálogo no decor-
rer do curso, contribuiu fortemente para o que consideram como inaptidão.
Para Dalva Uzay, “Não estou preparada! Acho que me faltou muita base na
disciplina que cursei [...] e me falta base ainda hoje!” No caso específico do
debate acerca da “Ideologia de gênero”, foi notado por meio das entrevistas,
que mesmo no final da graduação e já tendo cursado disciplinas específicas, as
estudantes demonstraram desconhecer toda a discussão apresentada no decor-
rer nos últimos meses. Tal ocorrência acaba por provocar um sinal de alerta
com o intuito de chamar atenção aos discursos produzidos nas Universidades.

Considerações Finais

O andamento deste trabalho, no que tange a análise de como estudantes


do curso de Licenciatura em Pedagogia de uma Universidade Pública pensam
os assuntos relacionados à categoria gênero e as noções das sexualidades, tem
demonstrado ser um movimento de profundas expectativas. Segundo os refe-
renciais teóricos com os quais dialogamos, os indivíduos se organizam a partir
de infinitas experiências sociais, demonstrando que a escola, a família, bem

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como os meios de comunicação, em especial a internet, articulam e colocam


em movimentos inúmeros discursos que acabam por reforçar a permanência da
heteronormatividade.
Nesse seguimento, até o presente, está sendo possível notar que a busca
por elucidações à questão “Como os/as estudantes de Licenciatura em Pedagogia
pensam a categoria gênero e as noções das sexualidades”, tendem a ser muito
mais expressivas do que se possa imaginar. Cogitar o gênero e as sexualidades
possibilita um emaranhado de alternativas que oportuniza a continuidade desta
investigação.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1209 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

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teoria e aos métodos. Trad. Maria J. Alvarez, et. ali. Porto: Porto Editora, 1994.

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(PNLGBT) (2009). Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos. Disponível em: <
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VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 1210 de Estudos sobre a Diversidade
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ISBN 978-85-61702-44-1 1211 de Estudos sobre a Diversidade
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AS LIMITAÇÕES DO DIREITO AO LIVRE EXERCÍCIO


DA PESSOALIDADE E A IDENTIDADE DE GÊNERO:
DESCONSTRUINDO A NORMATIVIDADE DE GÊNERO

Mateus Oliveira Barros


Graduando de Direito pela UFMG
moliveira.ufmg@gmail.com

Paula Rocha Gouvêa Brener


Graduanda de Direito pela UFMG
brener.paula@outlook.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente artigo se propõe a refletir sobre o papel da identidade de gênero


para formação da personalidade do indivíduo diante do atual ordenamento
pátrio. Partindo de uma análise da eficácia horizontal dos direitos fundamentais,
busca evidenciar como o conceito atual dos direitos da personalidade elenca-
dos no Código Civil brasileiro engessam as possibilidades individuais e projetos
de vida, atingindo diretamente a pessoalidade do sujeito. A limitação propiciada
por essas normas se apresenta anacrônica frente ao contexto atual, devendo,
portanto, discutir a desconstrução da normatividade de gênero, enquanto passo
necessário para a emancipação dos sujeitos em relação a uma percepção bina-
rista e conservadora de gênero.
Palavras-chave: gênero; direitos fundamentais; personalidade; identidade; efi-
cácia horizontal.

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Introdução

É inegável a influência exercida pelo ordenamento jurídico sobre a iden-


tidade das pessoas, em especial quando normatiza limites à pessoalidade e às
possibilidades de uso dos direitos da personalidade. A atual estrutura normativa
pátria impõe limitações ao livre uso do corpo e aos demais direitos de persona-
lidade, conformando um cenário de engessamento e imutabilidade que cerceia
a liberdade individual e afeta gravemente a formação da identidade de gênero.
De forma alguma se quer negar o valor da normatização das garantias
fundamentais. De fato, a constitucionalização desses direitos é um importante
passo para a livre formação identitária e para a realização das pessoas em
sociedade. Os direitos fundamentais se referem àqueles direitos e garantias da
pessoa humana constitucionalmente positivados cujo respeito é uma imposição
universal.
Ademais, não se afirma aqui que a identidade de gênero e a liberdade em
relação à pessoalidade sejam somente limitadas juridicamente. A sociedade, à
medida em que determina o que considera um padrão ético e aquilo que se
denomina “bons costumes”, fixa uma hegemonia e exerce também enorme
papel na repressão da pessoalidade.
Entretanto, enquanto elemento central da cultura, o Direito e as balizas
que ele impõe ao livre desenvolvimento da personalidade representam um
desafio que deve também ser enfrentado e mesmo descontruído.
Diante disso, o presente trabalho discute, num primeiro momento, como
a normatização do conceito de identidade de gênero está inserida no rol dos
direitos da personalidade no Código Civil; em seguida, será discutido o papel da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais nesse cenário, como uma via para
menor restritividade da personalidade; e, por fim, proporemos uma descons-
trução da normatização de gênero, como um primeiro e fundamental avanço
nesse contexto.

1. A identidade de gênero e o direito civil da personalidade

Gênero, segundo Jesus, não se limita à percepção biológica do sexo, mas


algo construído culturalmente, algo que vem da autopercepção e de como a
pessoa se expressa socialmente. A formação da identidade de gênero, desse
modo, é algo que traz valores socialmente construídos e as percepções do

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próprio sujeito sobre seu corpo e suas expressões enquanto parte da sociedade.
(JESUS, 2012)
As identidades de gênero não são estruturas imutáveis, visto que a per-
sonalidade humana se modifica e se adapta, como bem mostram os estudos
contemporâneos da Psicologia e da Sociologia. É mais acertado, como nos mos-
tram Carvalho e Stancioli, falar em status de gênero: as expectativas sociais de
apresentação comportamental, gestual, linguística, emocional e física diferen-
ciada conforme aos sexos e, consequentemente, a aparência corporal. Gênero,
a partir desse conceito, envolve papéis, estereótipos, representações e constru-
ções simbólicas e materiais (STANCIOLI, CARVALHO, 2011).
Esse conceito, no entanto, apresenta um problema central, uma vez que
atribui ao conceito de gênero uma derivação externa, referente a papéis e não
à subjetividade. Melhor seria conceituar o termo como um elemento identitário
próprio, fluido, referente às próprias noções de adequação de si, valorizando a
autopercepção em detrimento dos padrões socialmente impostos.
A doutrina brasileira defende que entre os direitos fundamentais não há
hierarquia, visto que todos são inerentes à personalidade humana. Desse modo,
há de se perceber que eles não são absolutos e que deveria caber à pessoa a
possibilidade de reduzi-los ou afastá-los mediante própria vontade. Entretanto,
não é o que se verifica no Código Civil Brasileiro que, em seu artigo 11, postula
que os direitos da personalidade são “irrenunciáveis, não podendo o seu exer-
cício sofrer limitação voluntária”1.
Essa norma, por mais breve que pareça, exerce enorme impacto no exer-
cício dos direitos da personalidade. A partir dela, tais direitos, que deveriam
operar enquanto uma proteção à liberdade e à autonomia do indivíduo, aca-
bam por se reduzir a um “rol fixo, pré-estatuído e irrenunciável de prerrogativas
individuais e intrínsecas, descritas no artigo 11 CC” (LOPES, 2014).
Outro exemplo do engessamento está no artigo 13, caput, do Código
Civil , que inviabiliza o livre uso do corpo. Conforme Laís Lopes, isso se deve
2

1 “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenun-
ciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.”

2 “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar dimi-
nuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”

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a uma noção implícita na norma de que haveria uma essência nos corpos a ser
mantida, preservada em sua forma original (LOPES, 2014).
A importância dessa limitação imposta pela norma não pode de forma
alguma passar despercebida. Os direitos da personalidade, em especial quando
tocam a identidade, consistem nos aspectos de formação do próprio indivíduo.
Desse modo, “proibir a ‘renúncia ao exercício de direitos da Personalidade’
é inviabilizar a própria existência pessoal!” (STANCIOLI, CARVALHO, 2011,
p.270).
Resta claro o anacronismo do ordenamento brasileiro quando a ele se
integram, ainda hoje, determinações vinculantes como a do Conselho Federal
de Medicina, que considera a transexualidade como patologia (exposição de
motivos da resolução CFM nº 1.652/2002). Não obstante a crescente realização
das cirurgias de redesignação sexual, a abordagem da resolução não reconhece
a liberdade da identificação de gênero, mas determina requisitos vinculados a
uma absurda ideia de patologização3.
Essa limitação é grave na medida em que impõe ao sujeito uma limitação
do seu próprio eu. Não apenas devido ao papel psicológico da identidade, mas
também dos aspectos físicos e sua influência na subjetividade. Afinal: “de fato,
o corpo se tornou o lugar da identidade pessoal. Sentir vergonha do próprio
corpo seria sentir vergonha de si mesmo” (PROST, VINCENT, 2009, p.105).

2. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

A identidade humana é um conjunto características da pessoa que a


fazem um ser único e individual, que atua modificando a sociedade e por ela
é modificado. A formação desta identidade está permeada por vários fatores e
nunca para de se desenvolver, estando incluída entre os direitos de personali-
dade. Consistem eles, segundo Stancioli, em:

3 “Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as
características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência
desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de outros
transtornos mentais.”, CFM nº 1.652/2002.

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direitos subjetivos que põem em vigor, através de normas cogentes,


valores constitutivos da pessoa natural e que permitem a vivência
de escolhas pessoais (autonomia), segundo a orientação do que
significa vida boa, para cada pessoa, em um dado contexto históri-
co-cultural e geográfico. (STANCIOLI, 2010, p.02)

A garantia desses direitos, bem como de preceitos que primam pela digni-
dade, autonomia, respeito e individualidade, visa proteger o espaço da pessoa
de poder formar e expressar sua identidade. No entanto, a forma como foram
construídos os direitos de personalidade no Código Civil, limitando de forma
absoluta seu livre uso e revogação, ocasiona conflitos com as normas constitu-
cionais de liberdade, autonomia e dignidade.
Frente a isso, uma possível solução é a aplicação da teoria da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais. Segundo a qual, à medida que coloca os
direitos em um mesmo patamar de importância, questiona situações conflitan-
tes entre princípios fundamentais. Nesse casos, Alexy explica:
Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando
algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o
outro, permitido -, um dos princípios terá de ceder. Isso não sig-
nifica, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado
inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de
exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem
precedência em face de outro sob determinadas condições. Sob
outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de
forma oposta.(ALEXY, 2008, p. 93/94)

Dessa forma, considera-se que os impeditivos estatuídos no Código Civil


não impediriam a plena constituição das identidades, uma vez sopesados com
os princípios constitucionais da intimidade, autonomia, liberdade e dignidade.
Frente a isso, é inegável que, a exemplo, “o direito fundamental do livre
uso do corpo deve implicar a acessibilidade a técnicas médicas de manipula-
ção, como a cirurgia de transgenitalização, a ser franqueadas na esfera pública.”
(STANCIOLI, CARVALHO, 2011, p.286).

Considerações finais: a desconstrução da normatização de


gênero como um primeiro passo

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Há ainda um longo caminho a ser percorrido até a plena liberdade dos


direitos da personalidade. No entanto, a desconstrução do seu aspecto nor-
mativo representaria um grande avanço, libertando aqueles que atualmente
dispendem esforços hercúleos e mesmo se sacrificam para transgredir as nor-
mas e serem eles mesmos.
De fato, como afirma Foucault, há uma moral orientada para a ética e
moral orientada para o código. No entanto, são elas igualmente importantes
e cooriginais, ou seja, uma influência, modifica e/ou conforma a outra. Diante
disso, a desconstrução dessas limitações em âmbito normativo são um passo
importante, na medida em que influencia também as construções éticas da
sociedade (FOUCAULT, 2014).
Claramente isso já representaria uma libertação no que concerne ao
aspecto formal desses direitos, que, uma vez não balizados pela norma, pode-
riam se efetivar sem deixar argumentos para amparar o conservadorismo.
Diante disso, importante abordar a inovação ao conceito de pessoa para
o direito civil, trazida por Stancioli que destaca a “alteridade” como um de seus
elementos centrais. Naturalmente, “a identidade só se constrói na presença do
outro” e por isso “é necessário que haja o reconhecimento público das diversas
formas de vivência sexual” (STANCIOLI, CARVALHO, 2011, p.286).
Interessante as observações de Cysneiros acerca do conjunto de expec-
tativas que se formam sobre os corpos ainda não concebidos. A lógica binária
conforma um conjunto de características esperadas do sujeito que virá ao
mundo antes mesmo de sua concepção, sendo a identidade de gênero e a
sexualidade campos de uma batalha que se inicia antes mesmo da sua existên-
cia (CYSNEYROS, 2013, p.197).
As limitações impostas pelo direito obstaculizam o livre desenvolvimento
da pessoalidade, lado a lado com esse conjunto de expectativas apriorísticas da
sociedade, colocando-se como mais uma barreira a ser enfrentada e rompida.
Diante desse cenário, acreditamos que um passo essencial é a descons-
trução dessa normatização de gênero, que perpassa pela transgressão dessas
normas. Mais do que isso, é preciso se apropriar dessas normas e conceitos,
desde já derrubando as barreiras por eles impostas com os argumentos da efi-
cácia horizontal dos direitos. Vale ressaltar que:
Tal aporte passa pela política de autoafirmação de identidades
possíveis (homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade,

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pansexualidade, celibato, etc.) e nunca limitadas heteronomativa-


mente como forma de bem viver4 (STANCIOLI, CARVALHO, 2011,
p.286).

Diante dos princípios constitucionais de direito à intimidade, autonomia,


dignidade e liberdade, não há porque aceitar as imposições limitadoras da pes-
soalidade impostas pelas demais normas do ordenamento. Por óbvio que o
cenário ideal perpassa pela revogação dessas normas estáticas e, também, pela
mudança de concepção da sociedade. Mas até que se alcance esse patamar
ideal, é essencial assegurar a livre formação da subjetividade conforme a iden-
tificação de gênero individual.

4 Importante aqui ressaltar a discordância dos autores da classificação do celibato enquanto identida-
de. Trata-se de um comportamento e não uma identidade sexual. Melhor seria dizer assexualidade,
caso este em que o desinteresse pela prática sexual conforma a identidade não consistindo em mero
hábito comportamental.

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Thürler. Salvador: EDUFBA, 2013. P.193 a 218.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres, v.2. Tradução Maria
Thereza da Costa Alburqueque. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e


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PROST, Antoine; VINCENT, Gérard. História da Vida Privada 5: Da Primeira Guerra a


nossos dias. Tradução Denise Bottmann, 7ª reimpressão. São Paulo: Companhia das
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STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara. Da integridade física ao livre uso do corpo:


releitura de um direito da personalidade. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado;
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Org.). Manual de Teoria Geral do Direito Civil. Belo
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STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou Como


Alguém se Torna o que Quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

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“LGBTTRABALHADORES”: OS FORA DA NORMA


INSERIDOS NO MERCADO DE TRABALHO

Rafael Paulino Juliani


Mestrando em Psicologia
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
rpjuliani@gmail.com

Rosemeire Aparecida Scopinho


Doutora em Sociologia
Professora Associada no Departamento de Psicologia da Universidade Federal
de São Carlos – UFSCar
scopinho.rose@gmail.com

GT 11 - “We Can Do It” - a desconstrução homocultural das práticas nas relações de


trabalho

Resumo

Por conceber sexo, gênero e sexualidade baseados em sistemas binários, natu-


rais e fixos e por organizar as práticas sociais a partir da premissa de que a
heterossexualidade é a única e correta forma de viver a sexualidade, diz-se que
nossa sociedade é hegemonicamente heteronormativa. Marginalizam-se, assim,
todas as outras formas de configuração e vivência das identidades de gênero e
sexualidades que permeiam os extremos binários (masculino/feminino, hétero/
homossexual). Desta forma, percebe-se a exclusão psicossocial de pessoas
LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) em diversos âmbitos da vida
social, impactando significativamente também nas suas relações de trabalho.
Este cenário acirra-se desde a década de 1990, quando as profundas mudanças
ocorridas no mundo do trabalho vêm dificultando ainda mais o acesso e per-
manência de pessoas que, visivelmente, fogem do padrão posto no mercado
de trabalho formal. Este trabalho pretende analisar as representações de um
grupo de pessoas que destoam dos padrões heteronormativos, quer seja por

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orientação sexual ou identidade de gênero, acerca de suas trajetórias de vida


e suas relações com o trabalho. Adota-se uma metodologia qualitativa, entre-
vistas semiestruturadas como instrumento de coleta de dados, analisados por
meio de análise temática. Os dados apontam para vivências de preconceito nos
âmbitos familiares, escolares e profissionais que impactam na forma como os
sujeitos percebem a si mesmos e aos outros e condicionam a maneira como
se relacionam socialmente. A escola e o trabalho adquirem sentido de local de
constrangimento, sofrimento, luta, mas também de superação, realização, utili-
dade e exercício da cidadania.
Palavras-chave: Heteronormatividade, trajetórias de vida, exclusão psicossocial,
sentidos do trabalho.

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Introdução

A sociedade contemporânea é, hegemonicamente, heteronormativa.


Organiza a sexualidade e o gênero de forma binária e fixa e elege a heterosse-
xualidade como modelo correto, natural e única forma de viver a sexualidade e,
consequentemente, de organizar a dinâmica das relações sociais. Butler (2003),
a esse respeito, argumenta que gênero não é algo que somos e sim que faze-
mos; não é algo natural, mas sócio e culturalmente construído por meio de
discursos e de ações, de maneira performativa.
Porém, ao optarmos por manter o reducionismo de gênero ao caráter
unicamente biológico de ter pênis ou vagina (LEITE JÚNIOR, 2012), damos
continuidade a um processo de patologização de todas as identidades que se
constituem fora desse mesmo modelo e excluímos aquelas pessoas que des-
toam dos padrões heteronormativos de diversos âmbitos da vida social como:
a família, escola e também o mundo do trabalho que, apesar das crises que o
envolvem, ainda possui importância fundamental na organização da vida mate-
rial e simbólica dos sujeitos sociais.
A partir da década de 1990, no caso brasileiro, intensificou-se no mundo
do trabalho uma profunda reestruturação produtiva do capital. Assim, muitos
dos paradigmas até então utilizados para organizar a produção e o trabalho
das grandes empresas foram então substituídos (LOPES, 2009; MATTOSO e
POCHMANN, 2010). Os empregos formais existentes foram, em parte, substi-
tuídos por novas e mais flexíveis formas de contratação da força de trabalho.
Porém, grande parte desta força de trabalho não possui qualificação profissional
e/ou o nível de escolaridade exigidos para reinserir-se nas novas configurações
das empresas. Além destas, encontram-se em situações cada vez mais exclu-
dentes aquelas pessoas que não possuem as “qualidades sociais” exigidas pelas
organizações. É o caso de negros, idosos, pessoas com necessidades especiais,
pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), com barreiras ainda
maiores para travestis e transexuais.
No Brasil, país que mais mata travestis e transexuais no mundo (TGEU
- TRANSGENDER EUROPE, 2015), o preconceito em forma de transfobia difi-
culta o acesso de pessoas transgênero ao mercado formal de trabalho, a uma
fonte segura de renda e a uma série de outros benefícios materiais e simbólicos,
o que impacta na forma como estas pessoas percebem-se e são percebidas, não
apenas pelo mercado de trabalho em si, mas pela sociedade de forma geral.

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Frente ao exposto, este trabalho tem por objetivo analisar as representações


sociais de um grupo de pessoas que destoam dos padrões heteronormativos,
quer seja por orientação sexual ou identidade de gênero, acerca de suas traje-
tórias de vida e suas relações com o trabalho.

Método

Utilizando métodos qualitativos, foram realizadas realizou, até o presente


momento, quatro entrevistas semiestruturadas com pessoas que, visivelmente,
destoam dos padrões heteronormativos, quer seja por orientação sexual ou
identidade de gênero. Todos residiam no estado de São Paulo e concordaram
em participar da pesquisa de forma voluntária e livre, tendo também assinado
um termo de consentimento livre e esclarecido.
Abaixo, segue a descrição da forma como os entrevistados, apresentados
com nomes fictícios, se identificavam, com relação às suas orientações sexuais,
identidades de gênero, suas idades e profissões dos mesmos:
- Anderson: homem transexual, heterossexual, 43 anos, segurança;
- Bárbara: transgênero, homossexual, 37 anos, esteticista;
- Valentina: travesti, homossexual, 42 anos, enfermeira; e
- Letícia: mulher cisgênero, lésbica, 40 anos, tapeceira.
As entrevistas foram, integralmente, gravadas e, posteriormente, transcri-
tas. Os dados foram analisados por meio do método de análise temática de
conteúdos, segundo Minayo (1999).

Resultados e discussão

O pai de Valentina, mesmo antes de ela sentir-se atraída afetiva-sexual-


mente por homens, trabalhava no sentido de enquadrá-la em uma norma de
comportamentos masculinos que julgava ser a correta. Para tanto, valeu-se,
diversas vezes, da força física para obrigá-la, por exemplo, a tirar a camisa con-
tra sua vontade para que pudesse fazer parte do “time sem camisa” nas partidas
de futebol.
Bárbara conta que, no período escolar, passou por situações de perse-
guição, xingamentos e ameaças físicas (alunos de outra sala a encurralaram e
tentaram queimá-la com um isqueiro enquanto a xingavam de “veadinho”). Por
esta razão, diz ter sido uma criança mais solitária, com medo de se enturmar

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com os demais e ficar vulnerável a novas situações de violência, sendo sempre


mais introspectiva nesta fase de sua vida.
Segundo Junqueira (2012), a escola brasileira, ao longo de sua história,
estruturou-se com base em um conjunto de valores e crenças responsáveis por
reduzir a figura do “outro”, do diferente e, consequentemente, inferior, per-
vertido, contagioso, todos aqueles que destoam do ideal social masculino,
heterossexual, branco, física e mentalmente “normais”. Situações como as
relatadas por Valentina e Bárbara são exemplos de um regime de vigilância e
controle do gênero e da sexualidade aplicados em diversos contextos (não ape-
nas escolares, mas familiares e até mesmo profissionais) na tentativa de manter
uma ordem heterossexual das relações sociais. Estes processos de normatização
impactam, direta ou indiretamente, na formação e perspectivas acadêmico-
-profissionais destes sujeitos, já que a escola também é local privilegiado da
preparação técnica e moral para a vivência no mundo do trabalho.
Assim como nas famílias e nas escolas, o ambiente de trabalho também
pode tornar-se local de enquadramento dos sujeitos, seus corpos e desejos,
naquilo que se entende como legítimo e adequado ao mundo produtivo.
Anderson conta que, no período de treinamento de um dos empregos que
teve (entregador de frios), o supervisor responsável por ensinar-lhe as rotinas da
função que desempenharia desviou-se desta tarefa e empreendeu esforços para
ensinar-lhe algo que julgava ser mais pertinente ao contexto de trabalho:
“A pressão foi tão grande em cima daquilo que em nenhum
momento ele me ensinou como preencher uma ficha, como fazer
um pedido, como mexer no equipamento. Não! Ele ficou toda
hora falando que mulher tem que se maquiar, a mulher bonita é a
mulher que tem o cabelo assim. Ou seja, não ia trabalhar lá, não
ia conseguir. Voltei a vender bala em boteco” (Anderson – homem
transexual).

Conforme Butler (2003) e Pereira (2012), o rompimento com o binarismo


de gênero/a multiplicidade de configurações dos corpos TTs, choca e causa
incômodo à sociedade, o que não ocorre apenas nas relações cotidianas, mas,
principalmente, naquelas mais marcadas pelo conservadorismo e pela moral,
como o contexto do trabalho. Assim, os trabalhadores LGBT, mais visivelmente
fora dos padrões heteronormativos, vivenciam violações e discriminações que,

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não raramente, acarretam desmotivações, depressões e, em casos mais severos,


tentativas de suicídio. O entrevistado Anderson o fez por três vezes:
“Porque eu ia trabalhar, tinha sempre alguém que falava “Ô sapa-
tão! Pega pão lá para mim!”. E era cliente! “Ô machão! Você não é
machão? Pega lá aquela caixa de cerveja lá para mim!”. Quer dizer,
eu nunca fui funcionário, eu nunca fui a pessoa, o vendedor, nada.
Eu fui: Sapatão!” (Anderson – homem transexual).

Para os entrevistados, o trabalho adquire sentidos diversos, contraditó-


rios ou mesmo compensatórios. Anderson compreende o trabalho como uma
necessidade/obrigação, como local de constrangimentos, de humilhação, de
desespero, de luta, provação de valores socialmente reconhecidos, mas tam-
bém como local de superação, realização profissional e exercício de direitos.
Também Bárbara reconhece o trabalho como fator para sentir-se social-
mente útil, além de orientar e sanar algumas das incertezas que possuía quanto
ao seu futuro:
“Eu sinto que nessa época eu era muito perdida. Eu não tinha nada,
meus pais não podiam pagar uma faculdade para mim. Nessa
época eu fiquei desempregada, até me prostitui. Você não sabia o
que você ia fazer, o que ia ser. E quando eu comecei a desenvol-
ver esse trabalho (designer de sobrancelhas) começou a dar certo,
sabe? Então eu fiquei muito feliz, você se sente útil para alguma
coisa. Parece que você serve para alguma coisa. Até então, você
sempre se sente a escória da sociedade.” (Bárbara –transgênero)

Nardi (2003) afirma que o processo de filiação do sujeito a uma comu-


nidade salarial o insere em uma estrutura coletiva que o integra na dinâmica
social e possibilita o exercício da cidadania, a vivência de códigos morais da
sociedade, além também de inscrevê-lo na lógica protetora do Estado, com
as garantias e benefícios materiais e simbólicos que lhe permitem planejar seu
futuro e manter a vida. Para Dubar (2012), a pertença a um trabalho conduz ao
aprendizado e ao engajamento subjetivo, o que permite ao trabalhador pensar
seu futuro. Para além da obtenção de renda, exercer uma atividade laborativa
implica em presença no mercado de trabalho e na dinâmica das relações sociais,
significa dizer: “Eu existo e possuo utilidade social”. Este ato, que também é

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político, oferece ao sujeito trabalhador uma perspectiva emancipatória e a pos-


sibilidade de autogovernar-se e ser um cidadão (SENNETT, 2009).
De forma geral, os entrevistados avaliaram positivamente as suas trajetórias
de trabalho. No entanto, Anderson chamou a atenção para algo que acredita
teria lhe auxiliado a ter ido mais além:
“Eu acho que eu teria a oportunidade de buscar muito mais coisas.
Não tive realmente por falta de apoio, mas não é apoio de pai e
mãe, amigos, não. Apoio legal. Apoio de você ter o direito de ir ao
banheiro, de por a roupa que você quer por. Eu deixei de trabalhar
em lojas porque o uniforme era saia, lencinho. No M. L. (um de seus
empregos) as meninas usavam saia e lencinho. Eu briguei de uma
forma que eu usava a calça dos meninos e acabou. E foi assim em
todos os meus serviços. Então onde eu pude fazer assim eu fiz e
trabalhei. Mas a partir do momento que eu não tive esse apoio eu
não consegui” (Anderson – homem transexual).

Este trecho da fala de Anderson é questão basal para justificar e reforçar


a necessidade da criação e efetiva prática de cultura e políticas organizacionais
que estejam voltadas à inclusão e, talvez mais fortemente, à permanência de
pessoas que destoam dos padrões heteronormativos nos contextos de trabalho.
Ditas práticas são, justamente, o apoio que Anderson solicitou para somar-se
à força que estes sujeitos demonstram possuir em suas trajetórias de vida para
lidar com uma sociedade que, ainda hoje, se choca com as diversas formas de
se expressar o gênero e viver a sexualidade.

Considerações finais

Três dos quatro entrevistados estavam exercendo atividade laboral remu-


nerada quando da realização das entrevistas. Este fato evidenciou que, em
alguma medida, os sujeitos entrevistados conseguiram ter acesso ao mercado de
trabalho, quer seja em um contexto privado, público ou ainda como autônomos
e micro empresários, entretanto, não de maneira isenta de preconceitos e cons-
trangimentos. Assim, entende-se que a reflexão possibilitada por esta pesquisa
nos coloca o desafio de pensar em conjunto, academia/mundo do trabalho,
práticas e políticas organizacionais em duas direções. A primeira refere-se à
inclusão de pessoas LGBT no mercado formal de trabalho, visto que parte desta
população ainda não compõem os quadros de funcionários das empresas, até

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mesmo por questões mais anteriores como a expulsão do núcleo familiar e a


possibilidade de formação básica e profissional; a segunda, diz respeito, princi-
palmente, às ações direcionadas à permanência daqueles sujeitos LGBT que se
inserem na dinâmica do mercado formal de trabalho e que com bravura ques-
tionam as normas sociais, ainda bastante conservadoras, e que lhes indicam a
margem como local de existência. Enfrentar este desafio, em última instância,
significa confrontar os discursos empresariais, que se autodenominam moder-
nos e socialmente inclusivos, e as práticas gerencias que, pautadas nos mais
tradicionais métodos de gestão da força de trabalho, buscam a racionalidade
que garanta a sobrevivência no mercado.
A presença destes sujeitos no mercado de trabalho lhes confere visibili-
dade social, não somente para aqueles que estão dentro da norma (pretensos
“acolhedores” da diferença/diversidade), mas significativamente para outros
LGBT. São, assim, modelos de representatividade para a população LGBT por
contrariarem as limitações da exclusão social, que lhes indicam a margem como
única possibilidade de existência.

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Referências

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Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização pro-


fissional. Tradução Fernanda Machado. Cadernos de Pesquisa, v.42, n.146, p.351-367,
2012.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Pedagogia do armário e currículo em ação: heteronor-


matividade, heterossexismo e homofobia no cotidiano escolar. In: MISKOLCI, Richard;
PELÚCIO, Larissa (Orgs.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos.
São Paulo: Annablume, 2012.

LEITE JÚNIOR, Jorge. Transitar para onde? Monstruosidade, (des) patologização,


(in)segurança, social e identidades transgêneras. Revista de Estudos Feministas,
Florianópolis, v.20, n.2, p. 559-568, mai/ago 2012.

LOPES, Márcia Cavalcanti Raposo. Subjetividade e trabalho na sociedade contempo-


rânea. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-112, mar./jun., 2009.

MATTOSO, Jorge Eduardo Levi; POCHMANN, Márcio. Globalização, concorrência e


trabalho. Cadernos do Cesit, Campinas, UNICAMP, 2010.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade.
14 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

NARDI, Henrique Caetano. A propriedade social como suporte da existência: a crise


do individualismo moderno e os modos de subjetivação contemporâneos. Psicologia
& Sociedade, v. 15, n. 1, p. 37-56, jan./jun., 2003.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos Trópicos. Apontamentos à margem sobre
pós-colonialismos, feminismos e estudos queer. In: Contemporânea – Revista de
Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 2, n. 2, p. 371-394, 2012.

SENNETT, Richard. El Artesano. Barcelona: Anagrama, 2009.

TGEU - TRANSGENDER EUROPE (Alemanha). Trans Murder Monitoring (TMM) pro-


ject. 2015. Disponível em: <http://tgeu.org/tmm-idahot-update-2015/>. Acesso em: 28
jan. 2016.

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DO DIAGNOSTICO DE TRANSTORNO DE GÊNERO À


CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO: UMA REVISÃO
BIBLIOGRÁFICA E DOCUMENTAL A PARTIR DAS
CONSIDERAÇÕES DA TEORIA QUEER

Juliana Perucchi
Universidade Federal de Juiz de Fora, Ciências Humanas e Psicologia
jperucchi@gmail.com

Helena Santos Braga de Carvalho


Universidade Federal de Juiz de Fora, Ciências Humanas e Psicologia
helenasbc@hotmail.com

Lucas Barbosa da Silva


Universidade Federal de Juiz de Fora, Ciências Humanas e Psicologia
barbosatkd@gmail.com

GT 04 -
Travestilidades, transexualidades, lesbianidades e homossexualidades:
transgressões e resistências

Resumo

No presente trabalho, sob a luz da Teoria Queer,é apresentada uma análise


documental das portarias nº 457, de 19 de Agosto de 2008, e nº 2.803, de 19 de
novembro de 2013, ambas do Ministério da Saúde, e também da Resolução nº
1.955/2010 do CFM (Conselho Federal de Medicina), no intuito de demonstrar a
discriminação, o reducionismo biológico e a necessidade imposta de patologi-
zação no chamado “Processo Transexualizador” conduzido pelo Sistema Único
de Saúde (SUS), o qual é regulado pelos instrumentos normativos supramencio-
nados. Almeja-se elucidar os dispositivos normativos que compõem o processo

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

que desencadeia uma série de exigências de cuidados em saúde, no nível da


atenção primária até a alta complexidade com a cirurgia de transgenitalização.
Palavras-chave: Transexualidade; Processo Transexualizador; Reducionismo
Biológico; Patologização; Hormonioterapia.

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Introdução

No estudo em voga nos preocupamos em entender aspectos complexos


do “Processo Transexualizador” do SUS,como a necessidade do diagnóstico
como condição de ingresso, passando pelos tratamentos hormonais, psicoló-
gicos, psiquiátricos até o momento da cirurgia de mudança de sexo, levando
em consideração a definição de “sexo” utilizada por Foucault como um “ideal
regulatório” e os ensinamentos da Teoria Queer, segundo os quais a orientação
sexual e o conceito de gênero fazem parte de um constructo social materiali-
zado nos corpos.
Dividiu-se o estudo em duas partes.
A primeira consiste em uma análise técnica e minuciosa das portarias
do Ministério da Saúde nº 457, de 19 de Agosto de 2008, e nº 2.803, de 19 de
novembro de 2013 e a Resolução 1.955/10 do Conselho Federal de Medicina,
com o intuito de destacar trechos e recortes desses dispositivos normativos
com o propósito de evidenciar a falta de sensibilidade com a comunidade “T”
durante o processo transexualizador, destacando o reducionismo biológico pre-
sente, a patologização de um determinado grupo e as consequências geradas.
Na segunda parte do estudo é feita uma revisão bibliográfica com rele-
vância no que se refere ao tratamento hormonal, que se inicia logo no início
do processo após o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero. Por ser
um assunto de grande importância e por se tratar da primeira fase do processo
a causar mudanças sólidas nos corpos dos indivíduos a ele submetidos, deu-se
destaque a hormonioterapia, a fim de transparecer todas as implicações desse
tratamento, tanto corporal quanto social.

Da análise documental

Constata-se que o que se convencionou chamar de “processo transe-


xualizador” do SUS busca, nos dispositivos normativos acima mencionados,
patologizar a transexualidade, utilizando ainda o termo “transsexualismo”. Como
exemplo, pode-se citar a segunda consideração da Resolução nº 1.955/10 do
CFM, que diz que o paciente transexual, para fins do “processo transexualiza-
dor”, deve ser “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual,
com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”.

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Um dos pontos de destaque é a necessidade do diagnóstico psiquiátrico


de “Transtorno de Identidade de Gênero” como condição ao ingresso do pro-
cesso que desencadeia na trangenitalização; a respeito desse diagnóstico, a
filósofa Judith Butler diz:
“O diagnóstico reforça formas de avaliação psicológica que pressu-
põem que a pessoa diagnosticada é afetada por forças que ela não
entende. O diagnóstico considera que essas pessoas deliram ou
são disfóricas. Ele aceita que certas normas de gênero não foram
adequadamente assimiladas e que ocorreu algum erro ou falha. Ele
assume pressupostos sobre os pais e as mães e sobre o que seja ou
o que deveria ter sido a vida família normal. Ele pressupõe a lingua-
gem da correção, adaptação e normalização. Ele busca sustentar as
normas de gênero tal como estão constituídas atualmente e tende
a patologizar qualquer esforço para produção do gênero seguindo
modos que não estejam em acordo com as normas vigentes...”
(BUTLER, 2009, p. 97).

Nesse sentido percebeu-se ao discorrer da análise feita que o reducio-


nismo biológico presente nos dispositivos normativos supramencionados, tem o
intuito de relacionar o gênero feminino e masculino aos seus órgãos biológicos,
vagina e pênis, respectivamente, além de materializar a estética tanto masculina
quanto feminina a pretexto de consolidar a ordem binária dos sexos, a exem-
plo disso cita-se as cirurgias presentes no processo transexualizador, além da
cirurgia de transgenitalização: plástica mamária reconstrutiva bilateral incluindo
prótese mamária de silicone bilateral, histerectomia c/ anexectomia bilateral e
colpectomia em usuárias sob processo transexualizador, mastectomia simples
bilateral, tireoplastia, cirurgias complementares de redesignação sexual(consiste
em cirurgias complementares tais como: reconstrução da neovagina realizada,
meatotomia, meatoplastia, cirurgia estética para correções complementares
dos grandes lábios, pequenos lábios e clitóris e tratamento de deiscências e
fístulectomia).
Os estudos queer tem mostrado cada vez mais a multiplicidade que a cate-
goria gênero pode ter, quando se insiste em um sistema binário, e um processo
que ajuda a reproduzir esse mesmo sistema binário é para manter a sujeição
dos corpos, negar a diversidade sexual e corporal existente em nossa sociedade
e docilizar o corpo do indivíduo. Nesse contexto onde até mesmo a escolha do
transexual ou travesti é colocada em interesse, Butler diz:

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“Num certo sentido, precisamos nos desfazer para que sejamos nós
mesmas: precisamos ser parte de um extenso tecido social para
criar quem nós somos. Este é, sem dúvida, paradoxo da autono-
mia, um paradoxo que é intensificado quando as regulações do
gênero funcionam para paralisar a capacidade de ação do gênero
em vários níveis. Até que essas condições sociais tenham mudado
radicalmente, a liberdade requererá não-liberdade, e a autonomia
estará enredada em sujeição.” (BUTLER, 2009, p. 122).

Medicalização, medicamentalização e hormonização de pessoas


transexuais no processo transexualizador:

O processo transexualizador previsto pelo sistema único de saúde (SUS)


contém em seus procedimentos o tratamento hormonal (hormonioterapia) que
se inicia logo após o diagnóstico e é mantido ao longo de suas etapas agregadas
aos acompanhamentos clínicos especializados. O processo é caracterizado por
impor regulamentações e seguir regras rígidas pautadas em literaturas médicas
patologizantes que excluem dos processos aqueles que não as seguirem, dessa
forma a população “T” se sujeita e fica assujeitada ao SUS.
A relação de transexuais e travestis com a hormonioterapia é rodeada por
uma idealização das mudanças corporais e sociais através da medicalização
visto que o uso de hormônios é considerado como um dos primeiros passos
para o início da transformação e construção dos corpos. Nesse sentido, há um
esforço de fabricar um corpo que “legitime” as identidades afim de obter reco-
nhecimento e pertencimento social, o que revela uma concepção nitidamente
fundada no binarismo biológico.
Visto que existem grandes divergências entre as concepções médicas e a
dos transexuais e travestis acerca do processo transexualizador, muitas pessoas
não tem acesso a acompanhamento médico adequado para a hormonização
que em muitos casos se inicia através da automedicação. Esta tem como impul-
sionador o repasse de informações, que atualmente tem tido como facilitador a
Internet, possibilitando a criação de redes de produção e divulgação de conhe-
cimento de forma colaborativa por pessoas no processo de transexualização,
como também espaços de resistência.
“Neste sentido, trata-se de fazer valer os saberes locais, descontí-
nuos, ‘desqualificados’, ‘ilegítimos’, contra e em negociação com

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as instâncias teóricas que pretendem filtrá-los, hierarquizá-los,


ordená-los em nome de um conhecimento único, que se apresenta
como ‘verdadeiro’ e aplicável a qualquer um (FOUCAULT, 1977).
Deslocamentos de saberes dominantes em direção a saberes locais
e minoritários (HARAWAY, 1991) serão bem- vindos e devem ser
incorporados na gestão de novas políticas. ” (ARAN; MURTA,
2009, p.34)

Considerações finais

A população “T” no Brasil é um dos grupos que se encontra em maior


grau de vulnerabilidade social, estando constantemente exposto a agressões
físicas, insultos transfóbicos, além da dificuldade de imersão do transexual no
contexto social, a exemplo dos obstáculos construídos a sua socialização em
ambientes púbicos e na busca por um emprego, fazendo com que muitos aca-
bem optando por um caminho mais rápido como a prostituição. A respeito
destas dificuldades insuperáveis, cite-se ainda que a alteração do nome social
em documentos oficiais é demasiadamente demorada, sendo que tal mudança,
muitas vezes somente realizada após a cirurgia de mudança de sexo, poderia
facilitar o acesso dos transexuais ao convívio social com o devido reconheci-
mento de seu gênero.
Nessa conjuntura, percebemos que o “processo transexualizador” emerge
para poder normatizar aqueles que, segundo a Resolução nº 1.955/2010 do
CFM, possuem desvio psicológico permanente de identidade sexual, além de
patologizar um determinado grupo que não pertence às normas binárias do
“sexo” e materializar a diferença sexual a pretexto de consolidar a normativa
heterossexual. Em suma, o processo de mudança de sexo, do modo como ainda
desenvolvido, se torna uma alternativa aos considerados “desviantes” de se ade-
quarem ao tradicional sistema binário dos sexos, uma forma de manter o statu
quo ante.

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Referências

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de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

Butler, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual?. In:Cadernos Pagu,


Campinas: 2003.p. 219-260.

Butler, J. (2009). Desdiagnosticando o Gênero. In:Physis Revista de Saúde Coletiva.


Rio de Janeiro: 2009 p. 95-126.

Foucault, M. A ordem do discurso (5ª ed.). São Paulo: Edições Loyola, 1999.

Foucault, M. Historia da Sexualidade I: A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 1999.

Foucault, M. Aula de 17 de março de 1976. In:Foucault, Michel. Em defesa da


Sociedade . São Paulo: Martins Fontes, 2005.p. 285-315.

ARAN, Márcia; MURTA, Daniela. Do diagnóstico de transtorno de identidade de


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tecnologia e saúde. Physis,  Rio de Janeiro ,  v. 19, n. 1, p. 15-41, 2009 

FOUCAULT, M. Cours du 7 janvier, 1976. Dits et écrits II. Paris: Galimard, 1977. p.
160-174.

HARAWAY, D. Simians, Cyborgs, and Women. The Reinvention of Nature. London:


Free Association Books, 1991.

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GÊNERO, SEXUALIDADES E ADOLESCÊNCIAS:


INTERSECÇÕES IDENTITÁRIAS POSSÍVEIS FORA DO(S)
ARMÁRIO(S)? REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA NUM
CENTRO DE CIDADANIA LGBT

Silvana Marinho
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/UERJ
marinho.silvana@gmail.com

GT 15 - Intersecções entre gênero, sexualidade e o curso da vida

Resumo

Este artigo discutirá as relações de gênero, sexualidades e adolescências como


categorias em articulação, ou seja, como categorias concretas que expressam
intersecções identitárias e constituem a existência dos sujeitos, sob um corte
de classe. Questiona-se a existência dessas identidades interseccionais fora dos
armários que atravessam a vida de adolescentes não heteronormativos a partir
da experiência num Centro de Cidadania LGBT. O artigo provocará considera-
ções de que essas intersecções compõem o quadro de hierarquias de poder na
teia social consubstanciando processos de discriminação e violação de direitos,
como também espelham os múltiplos processos de diferenciação, identidades
e resistências.
Palavras-chave: gênero; sexualidades; adolescências; classe; interseccionalidades.

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Introdução

As discriminações de gênero, classe e sexualidade incidem de forma


distinta sobre adolescentes, o que merece atenção. Nesse sentido, a partir de
um corte de classe, discutiremos as relações de gênero, sexualidades e adoles-
cências como categorias em articulação, ou seja, como categorias concretas
que expressam intersecções identitárias e constituem a existência dos sujeitos
adolescentes.
Entendemos o gênero como construção social do masculino e do femi-
nino. Como construção social, o gênero é também uma construção histórica, o
que indica que há uma pluralidade do conceito, já que diversas são as formas
de se constituir masculino e feminino historicamente, de acordo com a cultura,
a sociedade, a classe, a raça, a idade etc. Este é um ponto importante para
contrapor os argumentos essencialistas sobre gênero, descontruir polaridades e
reconhecer pluralidades de pertencimentos de gênero (LOURO, 1996).
Gênero é uma forma de classificação social que, articulada a outras vari-
áreis classificatórias, desenha relações sociais de poder, mas também como um
conceito plural, se refere às vivências múltiplas de sujeito. O termo identidade
de gênero permite abranger um leque identitário para além do binômio homem
e mulher, contemplando identidades travestis e transexuais1, bem como formas
de masculinidade e de feminilidade com as identidades de gays, bissexuais e
lésbicas.
Heilborn (2010) infere que os padrões de gênero nos impelem a pensar
sob uma determinada moralidade de gênero que incide na sexualidade, a qual
se trata de um domínio social que implica em aprendizagens sucessivas de
códigos sociais relativos ao contexto da vida sexual. Portanto, é uma esfera de
modelação sociocultural, tal qual como o gênero, e também funciona como um
marcador social que, em virtude das relações de poder, sustenta discriminações
e desigualdades.

1 As vivências da travestilidade e da transexualidade são experiências identitárias no terreno do gê-


nero. O pertencimento de gênero dessas pessoas não condiz com as expectativas sociais impostas à
sua genitália de nascimento. Conforme Bento (2006), a transexualidade quebra os paradigmas que
traduzem a construção social de gênero necessariamente associada à anatomia da genitália do in-
divíduo, sendo, portanto, uma experiência de conflito com as normas de gênero. A transexualidade
expressa, assim, múltiplas vivências de masculinidades e feminilidades.

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Dito isto, o questionamento disparador deste artigo é a possibilidade de


existência dessas identidades interseccionais fora de tantos armários2 que atra-
vessam a vida de adolescentes não heteronormativos, a partir da experiência
no Centro de Cidadania LGBT Niterói (CC LGBT)3, um serviço do Programa
Estadual Rio sem Homofobia4, vinculado à Secretaria de Assistência Social e
Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, no qual a autora em tela atuou
como assistente social.
Ao olhar para os processos de diferenciação não somente como desigual-
dade e opressão, mas também como afirmação de identidade e diversidade, sem
perder de vista que essas relações estão inscritas na sociabilidade do capital,
provocaremos considerações de que tais intersecções ao mesmo tempo em que
compõem o quadro de hierarquias de poder na teia social consubstanciando
processos de discriminação e violação de direitos, espelham também identida-
des e resistências, ampliando o mosaico dos marcadores sociais e culturais.
Trata-se de um debate interseccional que exige uma reflexão teórica
conjugada à realidade cotidiana. A intersecção de marcadores sociais e cul-
turais indica a multiplicidade de diferenciações em articulação e tem status
teórico indissociável à luta feminista, denominando-se interseccionalidades ou

2 Chamamos de armários os diversos processos de invisibilização, assujeitamento e aniquilamento das


expressões de gênero e de sexualidades de adolescentes, na mesma proporção em que se constituem
nas relações sociais as vigilâncias de gênero e o controle dos corpos através dos discursos e práticas
que educam para padrões heteronormativos e ecoam em diversos espaços, como a família, a escola,
a religião, as politicas públicas etc.

3 Os CC’s LGBT são serviços de atendimento jurídico, social e psicológico para LGBTs (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais) e seus familiares e amigos, funcionando também como centros de
irradiação de informações. Nos CC’s busca-se atender casos de discriminação e violência homoles-
bobitransfóbica; orientar sobre direitos; formar e ou fortalecer a rede de apoio social; sensibilizar e
capacitar gestores públicos e segmentos da sociedade sobre homofobia e cidadania LGBT e contri-
buir para a formulação de políticas públicas.
4 O Programa Rio sem Homofobia tem como proposta de ação a disseminação de informações sobre
direitos e a defesa e garantia de direitos como formas de combate à homolesbobitransfobia. Dentre
seus principais serviços estão o Disque Cidadania LGBT 0800 0234 567 – um serviço de atendimen-
to telefônico gratuito, com funcionamento diário, 24h/dia – e os Centros de Cidadania LGBT (CC’s
LGBT) que funcionam de forma regionalizada no âmbito estadual, a saber: Capital - Rio de Janeiro
(Região Metropolitana); Nova Friburgo (Região Serrana I); Duque de Caxias (Baixada I); Niterói (Re-
gião Leste).

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

categorias de articulação. O termo interseccionalidade5 possui diferentes abor-


dagens no pensamento feminista6. Iremos nos debruçar sobre a linha chamada
construcionista, tendo em vista a maneira como essa abordagem se apropria de
diferença, poder e margens de agência (agency) dos sujeitos.
Como assinala Piscitelli (2008), as leituras construcionistas tratam dos
aspectos dinâmicos e relacionais da identidade social e examinam a diferença
como experiência, como relação social, como subjetividade e como identidade.
Sob este olhar, a identidade se altera como resultado de práticas de articulação
entre os marcadores, não apenas como formas de categorização exclusivamente
limitantes.
Nessas leituras, a diferença nem sempre se constitui como um marcador
de hierarquias ou opressão, podendo ser vista como diversidade e formas de
agência política. Nessa abordagem há “distinções entre categorias de diferen-
ciação e sistemas de discriminação, entre diferença e desigualdade” (PISCITELLI,
2008, p. 268).
Além disso, sob a ótica construcionista o poder não é unilateral, ao con-
trário, ressalta-se a importância de se apreender o poder como relação, e,
portanto, como potencial para formas de resistência e como possibilidade de
agenciamento do sujeito, ou seja, sua capacidade de agir, mediada cultural e
socialmente.
Diante do exposto, essa abordagem será uma importante chave para
mediar o nosso desafio de apreender os processos identitários inscritos numa
realidade macrossocial de dominação e exploração própria da ideologia bur-
guesa, mas também no campo da cultura, que opera, contraditoriamente,

5 Trata-se de um termo inicialmente proposto no interior do feminismo negro por Kimberlé Crenshaw,
uma jurista da Universidade de Columbia, no sentido de refletir acerca da complexidade da intera-
ção entre raça, gênero e classe, demonstrando a desigualdade estrutural que mulheres negras viven-
ciam (PISCITELLI, 2008).

6 Piscitelli (2008), ao fazer uma breve aproximação a esses conceitos, sinaliza que há duas linhas
de abordagem no pensamento feminista, uma linha chamada sistêmica e outra construcionista. A
centralidade da contestação entre elas é a apropriação de diferença, poder e margens de agência
(agency) em cada uma. A linha sistêmica deu o pontapé inicial ao debate da interseccionalidade
com Kimberlé Crenshaw.

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ideologias opressoras (sexistas, homofóbicas, adultocêntricas, racistas entre


outras) e resistências.

1. E quando o assunto é diversidade sexual e de gênero na(s)


adolescência(s)?

Adolescência é também uma construção social e também se refere a


um conceito plural, com determinantes históricos, sociais e culturais. Portanto,
temos no cenário social diferentes adolescências, permeadas por diferentes
marcadores sociais, como classe social, gênero, raça/etnia, orientação sexual,
religião, região, territorialidade etc.
Para Leite (2013) a compreensão comum espraiada sobre adolescência é
aquela que a vê como uma etapa de preparação para a vida adulta, uma fase
de maturação tanto das capacidades biológicas como das socioculturais. Se
consultarmos os documentos brasileiros norteadores de políticas públicas para
esse segmento social7, veremos que convergem com esse entendimento acres-
cido da ideia de que se trata também de uma fase de relativa independência
econômica, o que nos convoca a refletir sobre as suas condições concretas de
um lugar social mais subalternizado no conjunto das relações sociais de poder.
Adolescências expressam uma plataforma de direitos sexuais. Tal defesa
respalda-se pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Federal
8069/90, e também pelo arcabouço teórico e legal nos planos nacional e inter-
nacional em relação aos direitos sexuais de adolescentes.
Os direitos sexuais podem ser lidos como o “direito a ter controle sobre seu
próprio corpo e direito de exercer sua sexualidade sem sofrer discriminações ou
violência” (VENTURA, 2004, p. 20). Esses direitos emergem no cenário inter-
nacional na década de 1990 com a Conferencia Internacional sobre População
e Desenvolvimento - CIPD (Cairo, 1994) e a IV Conferência Mundial sobre a
Mulher - CMM (Pequim, 1995). No documento final do Programa de Ação da
CIPD (1994), há o reconhecimento da sexualidade de adolescentes:

7 A área da saúde é vanguarda no campo desses direitos. Destacam-se: Marco Legal. Saúde, um direito
de adolescentes (Ministério da Saúde, 2005); Marco Teórico e Referencial. Saúde Sexual e Saúde
Reprodutiva de Adolescentes e Jovens (Ministério da Saúde, 2006).

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Deve-se prestar muita atenção à promoção de relações de respeito


mútuo entre os gêneros e, em particular, a satisfação das neces-
sidades em matéria de educação dos adolescentes e de serviços
para que possam lidar de maneira positiva e responsável com a sua
sexualidade ( FNUAP, 1995 , p.17).

O Brasil é signatário desses instrumentos internacionais, entretanto, a


materialização desses direitos para mulheres e para a população LGBT ainda
não está no plano que se espera, e para o segmento adolescente, considerando
as relações de poder geracionais, a incorporação desses direitos é ainda mais
distante e enfrenta reações mais conservadoras.
Seus corpos são cerceados do direito de expressar suas próprias inter-
pretações de gênero diferentes do padrão normativo para sua genitália e suas
sexualidades são aniquiladas quando não atendem às expectativas heteronorma-
tivas. Há uma representação social sobre eles, consubstanciada pelas ideologias
dominantes classista, sexista, homofóbica e adultocêntrica, como se não fossem
sujeitos de direitos e de desejos.
Cabe nos preocuparmos com o que se constata no 2º Relatório Sobre
Violência Homofóbica no Brasil, da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, datado em 2012, (p.07):
[...] Confirmando os dados de 2011, em 2012 o relatório continua
a apontar que jovens e adolescentes continuam sendo as maiores
vítimas de violência homofóbica no Brasil, ou seja, 61,43% das víti-
mas estão na faixa etária entre 13 e 29 anos.

2. A dimensão interseccional no cotidiano de um Centro de


Cidadania LGBT

A partir de um breve levantamento documental nas planilhas de aten-


dimentos do CC LGBT Niterói no período de julho de 2012 a abril de 2015,
– período no qual a autora em tela atuou como assistente social do referido
órgão – é possível dizer que com relação à idade de usuárixs atendidxs no ser-
viço, a população adolescente e jovem, que corresponde à faixa etária de 12 a

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29 anos8, é expressiva, constituindo mais da metade dos atendimentos (63,2 %


dos casos).
No entanto, ao desagregarmos esse período de idade de 12 a 29 anos em
três faixas-etárias, teremos o seguinte retrato: adolescentes, de 12 a 17 anos,
representam apenas 3,5%; já os/as jovens que estão saindo recentemente da
adolescência (18 a 21 anos) correspondem a um total de 20% dos atendimen-
tos; e o segmento jovem adulto (22 a 29 anos) alcança 39% dos atendimentos.
Considerando esse percentual ainda tímido de atendimentos de 3,5% de
adolescentes é importante indagar onde estão os/as adolescentes que sofrem
diversas violências em razão da sua expressão sexual e de gênero não heteronor-
mativa. Por que essas situações não têm tido expressividade nos atendimentos
do CC LGBT Niterói?
Podemos argumentar que é a cultura dos armários fechados que se ins-
titucionaliza nas diferentes políticas sociais, isto é, a cultura da invisibilização
dessas intersecções identitárias, colocando para “debaixo do tapete”, ou melhor,
para “dentro do armário”, o assunto.
No que diz respeito à intervenção da equipe técnica do CC LGBT Niterói
com adolescentes, ela se dá em camadas, ou seja, os atendimentos se desdo-
bram num movimento de: aproximação com a família; acionamento da rede
de serviços; visitas domiciliares; visitas institucionais para estudos de caso; ati-
vidade educativa na escola; envio de relatórios técnicos de atendimento do CC
LGBT aos órgãos do Sistema de Garantia de Direitos para dar ciência do acom-
panhamento, registrar o olhar da equipe sobre o caso e, assim, não se perder de
vista a temática LGBT em sua complexidade.
Vale dizer, também, que os estudos de caso interinstitucionais buscam dar
relevo ao assunto da diversidade sexual e de gênero, que é intrínseco aos casos,
embora comumente seja mantido “dentro do armário” por profissionais da rede
de serviços. Tais estudos de caso, portanto, permitem que o assunto da diversi-
dade não fique subsumido na compreensão das demandas, sobretudo quando

8 O Estatuto da Juventude, lei 12.852/13, abrange a juventude entre 15 a 29 anos de idade e o ECA,
lei 8069/90, compreende a adolescência a partir dos 12 anos. Assim, utilizamos o período de idade
que vai desde a adolescência prevista no ECA até o limite de idade da juventude previsto no Estatuto
da Juventude.

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das situações de conflito familiar, já que o motor dos conflitos é a não aceitação
familiar da expressão sexual e/ou de gênero do/a adolescente.
Desse modo, a intervenção em camadas cumpre uma função pedagó-
gica que permeia todo o fazer profissional das equipes. Numa perspectiva
crítico-dialética, a concepção do que significa educar confere um componente
político à ação no horizonte da garantia de direitos.
Há que se refletir, ainda, que todas essas camadas se fazem necessárias
tendo em vista os desafios de se afirmar a sexualidade e a expressão de gênero
de adolescentes não heteronormativxs, que são mantidos em armários “a sete
chaves”. Com a experiência no CC LGBT Niterói, tomando como referência a
observação participante, é possível denunciar que os direitos sexuais de adoles-
centes são comumente desrespeitados e negligenciados, inclusive por práticas
institucionais e profissionais fundamentadas no plano da moralidade e não da
ética profissional e do estatuto legal. Adolescentes LGBTs sofrem vários tipos
de violências (física, verbal, sexual, psicológica) cotidianamente, tanto no seio
familiar, como no ambiente comunitário e escolar, e ainda violências institucio-
nais perpetradas pelo próprio poder público. São diminuídos/as, rejeitados/as e
cerceados/as no terreno das suas identidades e subjetividades.
As estudiosas das abordagens das interseccionalidades chamam a atenção
para a necessidade de se olhar as intersecções identitárias no cotidiano e nas ações
programáticas dos serviços relacionados às diversas políticas públicas setoriais, e,
sobretudo, no âmbito da intervenção do trabalho profissional das equipes que
neles atuam. Afinal, as interseções identitárias conformam sujeitos concretos, que
existem na realidade concreta; elas contribuem para a vulnerabilidade de diferen-
tes grupos, uma vez que o cruzamento, por exemplo, do machismo, do sexismo,
do adultocrentrismo, do racismo e da homofobia irão criar lugares sociais e polí-
ticos desiguais para alguns grupos, como é o caso do segmento adolescente. Esse
contexto sugere, portanto, o uso do conceito de interseccionalidade.

Considerações finais

Diante de um cenário de cerceamentos das possibilidades de ser adoles-


cente em sua pluralidade, reflete-se aqui sobre os mais variados armários que
precisam ser abertos para que possamos afirmar a existência das expressões de
gênero e de sexualidades de adolescentes. O chamado “sair do armário” do seg-
mento adolescente é um processo que, atravessado pela ideologia adultocêntrica,

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esbarra com tantos outros armários no percurso, como a família, a escola, a reli-
gião, a mídia etc, que obriga esse grupo social a procurar diferentes chaves a
fim de abrir armários grandes, pequenos, largos, de ferro, de madeira, antigos,
mofados e por aí vai. A busca por essas chaves se expressa de diferentes formas.
São várias as estratégias – de sobrevivência e de resistência – que adolescentes
se apropriam no cotidiano das discriminações e sofrimentos pelos quais passam.
Reconhecer o poder de agência do sujeito adolescente, suas possibilida-
des históricas, suas práticas de resistência e contra-hegemonias, seja no âmbito
macropolítico ou no microssocial, pois também é esfera onde se operam ruptu-
ras ideológicas e se quebram paradigmas, é fundamental para o distanciamento
de um olhar tutelar para com esse segmento social.

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sexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente


– ECA.

______. Lei 12.852 de 05 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude.

______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 2º Relatório


Sobre Violência Homofóbica no Brasil. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assun-
tos/lgbt/dados-estatisticos. Acesso em: maio/2016.

FNUAP. Resumo do Programa de Ação – CIPD’94. Brasília: FNUAP – Fundo de


População das Nações Unidas, 1995.

HEILBORN, M. L. Sexualidade e Orientação Sexual. [Videoaula em DVD]. Curso de


Especialização em Gênero e Sexualidade (EGeS) – CLAM/IMS/UERJ. Rio de Janeiro:
CEPESC; Brasília, DF: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010.

LEITE, V. Sexualidade Adolescente como direito? A visão de formuladores de políticas


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LOURO, G. L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M.J.M, MEYER, D. E. e


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PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de


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VENTURA, Miriam. Direitos Reprodutivos no Brasil. FNUAP, 2004.

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SOBRE SER TRAVESTI, PUTA E MORAR EM CASA COM


A FAMÍLIA: NOTAS SOBRE OS CASOS DE EVITAÇÃO
NOS RELACIONAMENTOS FAMILIARES

Marcos Mariano Viana da Silva


Doutorando em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
marcosmariano08@yahoo.com.br

Mikelly Gomes da Silva


Doutoranda em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
mikellygs@gmail.com

Mikarla Gomes da Silva


Mestranda em Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
mikarlags@gmail.com

GT 15 - Intersecções entre gênero, sexualidade e o curso da vida

Resumo

Este trabalho objetiva problematizar a manipulação das identidades (MOORE,


2000) no convívio familiar de pessoas trans, usando como estudo de caso a his-
tória de vida de uma travesti e sua família que concordaram em colaborar com
a pesquisa, assim como também utilizando referências comparativas para con-
frontar a forma como outros trabalhos, por exemplo: Don Kulick (2008), Larissa
Pelúcio (2009) e Hélio Silva (1993) abordaram as relações familiares das travestis
e/ou transexuais. O trabalho também aborda os casos de evitação ocorridos no
ambiente familiar de acordo com a concepção de Sarah Schulman (2010).
Palavras-chave: Família; identidade; gênero; travesti; evitação.

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Introdução

Este trabalho almeja problematizar a manipulação das identidades


(MOORE, 2000) no convívio familiar de pessoas trans, usando como estudo
de caso a história de vida de uma travesti e sua família que concordaram em
colaborar com a pesquisa1. Pretende-se também abordar os casos de evitação
ocorridos no ambiente familiar de acordo com a concepção de Sarah Schulman
(2010).
O caso em questão é o de Sheila2, uma travesti negra com 31 anos de
idade que mora com seu companheiro no bairro do Alecrim em Natal-RN. A
família de Sheila mora bem próximo, no mesmo quarteirão e o contato com a
sua família é diário. Na casa dos pais residem sua mãe, seu pai e dois irmãos
mais novos. Um dos irmãos de Sheila é amigo de um dos autores e foi através
dele que se deu a aproximação com Sheila e sua família. Houve várias conver-
sas informais, entrevistas sem e com o uso do gravador com Sheila, assim como
também bate-papos e entrevistas gravadas com a sua mãe, seu irmão do meio
e seu companheiro.

Sobre ser travesti, morar em casa e consumir.

Há uma diferença entre o gênero imposto e o gênero construído (MOORE,


2000), até porque o indivíduo assume várias posições de sujeito. Como é fazer
programa, voltar pra casa e ser recebida pela sua mãe? E como é não ter dinheiro
para comprar acessórios e roupas para o investimento na sua identidade de
gênero?
A discussão trazida por Moore (2000) levanta o tema que não existe um
só modo de viver a nossa identidade. Somos homens, mulheres, travestis e tran-
sexuais vivendo em nossas variedades de existências e nos diferenciando graças
aos nossos contextos sociais. Maria Luiza Heilborn (1996), também problema-
tiza sobre essa questão em outros termos quando apresenta a noção do ser ou

1 Esse trabalho é um recorte da dissertação: “Entre lembranças, desejos e moralidades”, de Marcos


Mariano Viana da Silva apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, 2016, sob
a orientação de Berenice Bento.

2 Todos os nomes usados nesse trabalho são fictícios.

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estar homossexual. Pretendemos problematizar sobre como é ser filha, como é


estar ‘puta’, como é namorar ‘machão’, ‘comer viado’ e morar na mesma casa
que a sua mãe. Nas conversas com a mãe de Sheila, ela se mostrou bastante
preocupada com o fato da filha se prostituir, afirmando que tinha pavor de tal
atitude e que fazia de tudo para a filha não recorrer à prostituição. Percebemos
com isso uma tensão nas relações familiares, o fato de que a filha preferir se
prostituir para ganhar dinheiro e investir no próprio corpo é algo que estremece
as relações de poder no espaço doméstico.
Kulick (2008) na sua etnografia em Salvador acompanha os investimentos
corporais que as travestis assumem, como por exemplo, a aplicação de silicone
industrial, a importância na arrumação dos cabelos, a compra de roupas e até
mesmo o fato de algumas travestis sustentarem seus parceiros fixos. Sheila argu-
menta que se prostitui para comprar coisas de sua necessidade e desejo, como
fazer a unha, o cabelo, comprar roupas e acessórios que segundo ela são caros
e que não daria para comprar com um salário mínimo.
“Quem escolhe essa vida de prostituição... É uma vida arriscada.
Eu não gosto, o pai não gosta, mas é uma coisa que é dela que-
rer, então isso a gente não gosta, mas você não pode fazer nada”
(Entrevista realizada com a mãe de Sheila em 01/10/2015).

“Porque eu tenho minha profissão de cabelo, mas não ‘tá’ dando,


mas o que aparecer, uma faxina, alguma coisa, eu faço, mas se
aparece um programa, a pessoa ‘tá’ precisando eu vou mesmo,
‘mainha’ não gosta, mas eu vou...” (Entrevista realizada com Sheila
em 01/10/2015).

Devido à preocupação da mãe com a atividade de Sheila se prostituir,


Sheila confessou que costuma não falar tudo pra sua mãe para não assustá-
-la e preocupá-la ainda mais, mesmo ficando evidente durante o processo de
pesquisa que Sheila e sua mãe nutrem uma pela outra um vínculo de amizade,
afeto e cumplicidade bem intenso.
“Têm coisas que a gente esconde, né? Não pode. Nem a faca
entrando você diz, mas assim, noventa e oito por cento, tudo dito
a ela. Pra ela também não tem como esconder não, se eu tiver
muito calada, começar a estralar o dedo, ela diz: “porque ‘tá’ tão
nervosa?”, eu: “mulher, pelo o amor de Deus! Bote a carta e vire

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as cartas! Pelo o amor de Deus!”. Ela presta atenção, ela repara em


tudo, em tudo, em tudo, em tudo ela repara”.
“Mas o que você esconde, você esconde por quê?” (pesquisador).
“Ah, certas coisas assim, pessoas que eu saio no programa, às vezes
brigas com Daniel do nada... Certas coisas assim, entendeu? Ou o
que alguém disse de mim, pra ela também não ficar machucada,
magoada, que tem certas coisas que querendo ou não, vai magoar
a sua mãe, mas fora isso. Eu digo: “eu te amo”, “ai, que mulher
chata”, dou cheiro, abraço e falo: “olha, Leoa! não sei o quê””(En-
trevista realizada com Sheila em 27/10/2015).

Em comparação com os casos estudados em pesquisa anterior3, a história


de vida de Sheila é marcada pela aceitação familiar quase que incondicional,
pois mesmo quando Sheila morava na casa dos pais, ela ouvia reclamações
sobre o ato de se prostituir, mas nunca foi impedida de trabalhar como profis-
sional do sexo. Sheila não foi expulsa de casa e mesmo quando decidiu morar
junto com Daniel, seu companheiro, frequenta a casa da mãe diariamente. Na
última conversa que o pesquisador teve com a mãe de Sheila, ela relatou em
tom de brincadeira: “ela se mudou, mas a mesma coisa que nada porque vive
aqui, passa o dia todinho aqui. Ela usa a casa dela como dormitório”. Porém,
é importante frisar que essa aceitação familiar não é tão comum entre as traves-
tis e transexuais, apesar de ocorrer com mais frequência em comparação com
gerações passadas, como pode ser visto no estudo de Luma Andrade (2012) que
relata alguns casos das suas colaboradoras de pesquisa que residem na mesma
casa dos pais e passaram por todo o processo de transição entre os seus fami-
liares. Em contrapartida, em gerações passadas como descrito por Kulick (2008)
em sua etnografia com travestis em Salvador na década de 1990, por exemplo,
pôde-se observar:
“[...] apesar da rejeição inicial, as famílias (e particularmente a
mãe) acabam eventualmente aceitando a condição de travesti e às
vezes, nas breves visitas, as recebem com boas vindas. Entretanto,
são poucas as travestis que se deixam enganar por tal recepção,
supondo que seja incondicional. A maioria sabe que a aceitação

3 Relações familiares de travestis e transexuais em Natal-RN, de Marcos Mariano Viana da Silva. Mo-
nografia apresentada à coordenação do curso de bacharelado em Ciências Sociais da UFRN, 2013.

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da família dura enquanto durarem os presentes e o suporte material


que podem oferecer. No momento em que o dinheiro acaba, as
portas da casa natal tornam a se fechar para as travestis” (KULICK,
2008, p. 194).

Outra característica encontrada na vivência familiar de Sheila e que tam-


bém foi citada em outras etnografias como Kulick (2008) e Andrade (2012)
é a prática de alguns familiares chamarem a pessoa trans ainda pelo nome
civil, mesmo afirmando reconhecer que assumem a sua identidade de gênero
feminina.
“A coisa que é mais difícil na minha relação com a minha irmã é
questão de chamar pelo nome porque eu continuo chamando ela
pelo nome... Enfim, muito tempo chamando a pessoa pelo mesmo
nome”.
“Mas ela se incomoda ou não?” (Pesquisador).
“Não, eu acho que não, mas enfim, eu entendo que na frente das
pessoas eu não deva fazer isso” (Entrevista realizada com o irmão
de Sheila em 01/11/2015).

De fato, Sheila relatou que não se incomoda quando os familiares a


chamam pelo nome dado no nascimento dentro de casa, mas não atende se
qualquer pessoa chamá-la pelo nome masculino em público. A mãe de Sheila
a chama pelos dois nomes, o civil e o social, e a trata às vezes por “ele”, por
“ela”. Para as travestis e transexuais serem tratadas no feminino indica para elas,
existirem com inteligibilidade de gênero, a partir do momento que em casa elas
têm a identidade feminina reconhecida, os laços familiares são fortalecidos e
elas sentem que têm o apoio familiar para ser o que são como travestis e/ ou
transexuais.

A evitação nos relacionamentos familiares

Sheila e o seu irmão relataram nas entrevistas não sofrer preconceito das
pessoas que formam seu núcleo familiar mais próximo, ou seja, o pai, a mãe e
o irmão mais novo. Porém, há uma parte da família que os discrimina por con-
siderarem que os dois tem uma conduta social desviante, uma vez que o irmão
de Sheila é homossexual. Quando foi perguntado à Sheila se a sua família tinha

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mudado de atitude desde que ela se “assumiu” como travesti a resposta foi a
seguinte:
“Mudou da parte da minha tia, da filha dela, meio preconceituosa,
porque como eu disse, o povo tem uma visão de travesti, você sabe
qual é, né? Drogas, sexo e Rock and Roll, e vida de travesti não
é isso, vida de uma travesti que se preze não é só glamour como
você abre o Face4 de muitas e vê só academia, festas, não. Você
tem uma vida diária, então vamos contar a vida diária, o que é que
você enfrenta? As pessoas que viram a cara pra você, que cos-
pem quando você passa, que lhe apontam, entendeu? Mas, tirando
isso, o negócio é meu pai, minha mãe me aceitando e meu irmão...
Beijo no pé porque no ombro é luxo. Não dou nem cabimento
(Entrevista realizada com Sheila em 27/11/2015).

E o irmão acrescenta:
“Tem um preconceito enorme, viu? A família também tem pre-
conceito. A gente acabou que eu e meu irmão não participamos
mais dos eventos familiares se não for aqui, né? Porque a família da
gente é essa, mas tem as outras partes, né? Não vai porque os trajes
não podem, porque não sei o quê, imagina o constrangimento, né?
Ontem, inclusive, a gente ‘tava’ falando sobre isso: “não, porque
você precisa ser o macho alfa, né?” Ou então, o ‘viado’ que ‘tá’ ali
no armário, que ninguém quer saber e fica aquela coisa, como se
você precisasse esconder alguma coisa e como se alguém tivesse
sempre alguma coisa pra lhe ofender com isso, né?

“Os eventos familiares vocês não vão porque vocês não querem ir
ou porque não são convidados?” (Pesquisador)

Não, nem é convidado. E às vezes o convite é assim, pra não dizer


que não chamou, né? “Se quiser, não sei o quê”, não rola, não rola
(Entrevista realizada com o irmão de Sheila em 01/11/2015).

Pode-se perceber nos relatos narrados por Sheila e seu irmão as tentati-
vas de anulação por parte de alguns familiares do acesso dos dois ao convívio
familiar de uma maneira quase velada, como no exemplo descrito pelo o irmão

4 Rede social Facebook.

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de Sheila, através da inexistência de convites para participar de eventos fami-


liares ou como a forma dos convites citados: “pra não dizer que não chamou”.
Essas tentativas de anulação das identidades trans do convívio social podem ser
definidas como casos de evitação, tal qual caracterizados por Sarah Schulman
(2010), ou seja, um fenômeno mais comum e mais fácil de ser executado do
que a homofobia e/ou a transfobia. A evitação acontece quando as pessoas são
cortadas, excluídas de participarem em conversações, comunidades, estruturas
sociais, quando não é permitida qualquer voz sobre como elas mesmas são
tratadas, não podendo falar ou retrucar. A evitação é uma forma de crueldade
mental que é desenhada para que se finja que a vítima não existe ou nunca
existiu. A evitação é um fenômeno diferente e ao mesmo tempo inerente à
homofobia e/ou transfobia, existe não no aspecto de rejeitar, de destruir ou matar
o outro, mas de tentar atribuir a esse outro uma capa de invisibilidade perante
o mundo (SCHULMAN, 2010). Segundo Schulman, a evitação é multiplicativa
porque pode ocorrer em vários lugares, na escola, na igreja, no trabalho, nas
relações pessoais e também no núcleo familiar. A evitação diz respeito a uma
estratégia de invisibilização do outro de um modo não explícito para a socie-
dade, maquiando assim o preconceito e a homofobia e/ou transfobia.

Considerações finais

Em suma, esse trabalho visou problematizar, a partir da apresentação das


narrativas de Sheila e sua família sobre o trânsito entre as fantasias de identidade
(MOORE, 2000) de Sheila entre ser filha e garota de programa, assim como
também sobre os casos de evitação sofridos em situações familiares pelo fato
de ser travesti e morar em casa com a família. Pensando comparativamente
com os estudos de Kulick (2008), Hélio Silva (1993) e Larissa Pelucio (2009) e
usando como fonte secundária o trabalho de Andrade (2012), podemos sugerir
que a aceitação familiar por parte da família se tornou menos cruel, dando pos-
sibilidades de surgimento de brechas capazes de atravessar a barreira exclusão,
invisibilidade e violência das pessoas trans no convívio familiar.

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Referências

ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis Na Escola: Assujeitamento ou Resistência à


Ordem Normativa. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação.
Fortaleza, 2012.

HEILBORN, Maria Luiza. “Ser ou Estar Homossexual: dilemas de construção da iden-


tidade social” In: PARKER, Richard e BARBOSA, Regina. Sexualidades Brasileiras. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 136-145.

KULICK, Don. Travesti- prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2008.

MOORE, Henrieta L. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e vio-


lência. (Tradução: Plínio Dentzien; Revisão: Adriana Piscitelli.). In: Cadernos Pagu, n.
14, 2000).

PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preven-
tivo de aids. – São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009.

SCHULMAN, Sarah. Homofobia Familiar: uma experiência em busca de reconheci-


mento. Tradução: Felipe Breno Martins Fernandes. In: Revista Bagoas (v. 4, n. 5, jan./
jun. 2010).

SILVA, Hélio R. S. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume- Dumará/


ISER, 1993.

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(HOMO)SEXUALIDADES FEMININAS E A GINECOLOGIA

Ana Rita da Silva Rodrigues


Mestranda emAntropologia Social Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
anadasilva87@gmail.com

GT 12 - Diversidade sexual e de gênero, políticas públicas e serviço social

Resumo

Neste trabalho procuro explorar o tema da homossexualidade feminina


no campo da saúde, do corpo e degênero. Realizo também uma breve refle-
xão sobre as políticas públicas voltada para este público, em especial após
o PAISM(Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher) na década de
80, promovidas pelo Ministério da Saúde. O trabalho está dividido em 2 par-
tes: uma primeira mais voltada para a invisibilidade da lesbianidade na área da
saúde. Já a segunda foca na epidemia de HIV e suas consequências, além de
noções de corpo e gênero.
Palavras-chave: lesbianidade; saúde pública; corpo; gênero; ginecologia.

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A invisibilidade da lesbianidade na área da saúde

Discussões sobre a sexualidade da mulher incluindo aspectos da


sua vidasexual e do prazer, para além da sua função reprodutiva, são rela-
tivamente recentes.Somente depois da década de 1980 com a reformulação
do PMI(ProgramaMaterno-Infantil), com a criação do PAISM(Programa de
Assistência Integral à Saúde da mulher) e com as Conferências de Cairo(1994) e
Pequim(1995) que as dimensões da sexualidade e da reprodução começaram
a ser problematizadas na qualidade de esferas individuais e autônomas, res-
saltando que caberia à mulher tomar suas próprias decisões sobre as questões
relativas à sua saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e
violência.
O PAISM foi implementado no Brasil em 1983 pelo Ministério da
Saúde numa tentativa de romper com a visão tradicional do sistema médico
da mulher/mãe/reprodutora, tendo como objetivo oferecer uma assistência à
mulher em todas as fases de sua vida. O programa é fruto da discussão sobre
os direitos reprodutivos e sexuais a partir da atuação do movimento de mulhe-
res e profissionais de saúde(RODRIGUES & SCHOR, 2010). Assim, iniciou-se
no cenário brasileiro uma mudança conceitual no campo da saúde quanto à
forma de apreender a mulher: da mulher-mãe, nos programas de saúde mater-
no-infantil, à mulher-sujeito, mulher como individualidade própria, e assim,
dotada de necessidades de saúde para além da tarefa de gerar filhos.
Há também uma crítica à medicalização do corpo feminino. A mulher é
assistida na, e a favor da, sua saúde. E desta forma, a saúde deixa de ser enten-
dida como um consumo de serviços médicos. Neste sentido, o programa busca
garantir às pacientes seus direitos, enquanto mulheres, no exercício pleno e
consciente de sua sexualidade e não apenas na sua função reprodutiva.
Embora seja um programa vitorioso na ótica das políticas públicas de
saúde, o PAISM encontra barreiras para sua concretização. Avaliações recen-
tes demonstram que, contrário às suas bases conceituais, o Programa passou
a prestar atenção quase que exclusiva à saúde reprodutiva e sexual, não indo
além de umas poucas experiências isoladas e descontínuas (AGUIAR, 2004).
Em 2003 teve início a construção da Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da mulher - Princípios e Diretrizes (PNAISM)-, quando a equipe técnica
de saúde da mulher avaliou os avanços e retrocessos alcançados na gestão
anterior. Em maio de 2004 o Ministério da Saúde lançou a PNAISM, construída

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a partir da proposição do SUS – de equidade, universalidade e integralidade


– ampliando as ações para grupos historicamente alijados das políticas públi-
cas, nas suas especificidades e necessidades, como o de mulheres lésbicas
(AGUIAR, 2004).
A ideia de instrumentalização das mulheres sobre seus corpos e sua saúde
para que elas possam tomar suas próprias decisões, inclusive acerca de sua
sexualidade, mobilizou uma reivindicação pelo auto domínio do corpo. Tal pos-
tura colocou em evidência os diferentes tipos de expressão sexual e a decisão
dos sujeitos sobre a escolha de suas práticas sexuais, levantando questionamen-
tos sobre a heterossexualidade como único padrão fixo de sexualidade.
Porém, para que as decisões reprodutivas e sexuais sejam realmente
“livres” é necessário que existam certas condições de materiais e de infraestru-
tura, tais como transporte, creches, serviços de saúde acessíveis, humanizados
e bem equipados. Portanto, não basta existir um conjunto de direitos que defen-
dam a integridade e autonomiados corpos das mulheres, é necessário construir
uma rede de infraestrutura, com intervenções sociais, que possibilite que tais
direitos sejam de fato usufruídos (RODRIGUESe SCHOR, 2010).
O comportamento homossexual feminino, de forma ainda mais acentuada
que a sexualidade feminina heterossexual, tendeu historicamente à invisibili-
dade no discurso médico-ginecológico e no campoa cadêmico. A ênfase que
a epidemia da AIDS deu nos anos de 1980 às práticas homossexuais mascu-
linas como alvo de transmissão do vírus HIV contribuiu para a crença de que
mulheres lésbicas seriam o único corpo inofensivo à infecção pelavia sexu-
al(ALMEIDA, 2009).

Aids, corpo e gênero

O grande paradoxo da experiência da doença é que ela é tanto a mais


individual quanto a mais social das coisas. É também difícil discernir se saúde
e doença pertencem ao domínio privado ou ao público. Os laços entre esses
dois domínios não são imutáveis e, no campo da saúde e da doença, passaram
por transformações frequentes. No entanto, o corpo ainda pertence ao domínio
privado(HERZLICH, 2004).
Embora a era em que as tradições religiosas faziam do corpo um
tabu seja agora um passado distante, as sensações do corpo são

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ainda assuntos da intimidade, envolvendo até mesmo sigilo e ritu-


ais individuais cotidianos. Prestar atenção a estados corporais é
uma atividade que diz respeito a relacionamentos fundamentais:
é a família que ainda está profundamente implicada na preserva-
ção da saúde e em seus cuidados. Além disso, a saúde e a doença
afetam vários aspectos da vida privada, em especial o amor e a
sexualidade (HERZLICH, 2004).

Contudo, não podemos falar de doença, corpo e saúde sem também-


considerá-los como fenômenos pertencentes a esferapública. Dessaforma, na
construção simbólica e discursiva, adoença – econsequentementea saúde –
refletetodo umcontexto histórico, social e cultural.
Portanto, é inegável que a ciência interfere na constituição da ideia de
corpo do indivíduo, do que é normal e do que é patológico. Isto significa dizer
que a produção de qualquer conhecimentos e dá sempre através de um pro-
cesso que é coletivo, onde ciência, indivíduo e sociedade estão em constante
articulação, numa construção e desconstrução mútuas (AGUIAR, 2004).
As primeiras associações que o senso comum estabelece com a Aids é a
ideia de que esta é uma doença relacionada a uma sexualidade promíscua, com
a consequente discriminação da pessoa infectada. A permanência da represen-
tação dicotômica entre mulher/mãe/esposa (moças “boas”)e mulher/prostituta
(moças “más” epromíscuas) contribuiu significativamente para que as mulheres
não fossem identificadas, de imediato, como vulneráveis à Aids. Isto fez com
que, no final da década de 1980, o aumento da incidência da epidemia na
população feminina ocidental se desse de forma rápida e silenciosa.
Esta dificuldade em reconhecer a vulnerabilidade das mulheres diante de
uma epidemia revela o retrato de uma sociedade quer e força a desigualdade
nas relações sociais de gênero, alimentando, entre outros aspectos, a perpe-
tuação de uma ”duplamoral” quanto ao comportamento sexual de homens e
mulheres, na esfera pública e privada. O homem permanece culturalmente
significado como um sujeito com uma sexualidade ativa que independe de
relações afetivas ou reprodutivas e, à mulher, por sua vez, cabe ser o oposto,
com uma sexualidade passiva voltada para a reprodução: a mulher/esposa/mãe,
tal como definida pelo modelo biomédico (GIFFIN, 1999). E, associados a isto,
estão barreiras psicológicas, sociais e culturais, como o desconhecimento da
mulher de seu próprio corpo, o pudor no que se refere a estetipo de conheci-
mento e concepções religiosas de cunho ideologicamente patriarcal.

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Portanto, mais do que compreender uma enfermidade com base em suas


representações sociais, é preciso compreender como essas representações são
utilizadas, transformadas e construídas de acordo com o estoque de conheci-
mento que se tem acerca da doença e do adoecer. Logo, esta construção passa
necessariamente pelos conceitos de saúde e doença, de normale patológico
que vigoram em nossa sociedade.

Mulheres com relações homoeróticas, ginecologia e formas de


prevenção

Em estudos conduzidos na cidade de SãoPaulo, observa-se que 18% a


35% de população de mulheres que fazem sexo com mulheres nunca haviam
realizado o exame de Papanicolaou. (FACHINNI, 2009). Essas estimativas são
maiores do que as encontradas para a população geral feminina residente na
mesma cidade, 13, 9%. Tais da dos sinalizam que um contingente significativo
de mulheres que fazem sexo com mulheres encontra-se excluído dos serviços
de atenção/cuidado à saúde. Com isso podemos dizer que o princípio de uni-
versalidade quanto os de integralidade e equidade adotados pelo Sistema Único
de Saúde estão sendo descumpridos, visto que há um contingente de mulheres
excluída da assistência e que elas tendem a ser vistas de modo unidimensional
e, muitasvezes, são discriminadas e desestimuladas a acessar serviços de saúde.
A bibliografia sobre o tema aponta a relação da primeira ida ao gineco-
logista com a primeira experiência sexual, esta sendo heterossexual. Tal fato
revela a importância de fatores associados a convenções de gênero, pois as
primeiras vias de acesso estão ligadas principalmente ao início da vida heteros-
sexual e a maternidade (FACHINNI, 2009).
Outro aspecto relacionado à frequência a serviços ginecológicos levan-
tado por Facchini diz respeito aos atributos e posturas corporais. Todas as
mulheres, independentemente de suas inserções sócio-econômicas, quese refe-
riram como “mais masculinizadas” ou “mais masculina” estão entre aquelas que
tiveram frequência baixa e irregular de realização de exames ginecológicos e
de Papanicolau, ou nunca os realizaram. A ida ao ginecologista pode ser com-
preendida como uma afirmação de necessidades femininas, e, portanto, uma
conduta para as mulheres lésbicas que se percebem como femininas. Para as
mulheres que possuem atributos e posturas corporais “masculinizadas”, a con-
sulta adquire um significado de explicitar os trejeitos desviantes, que somado às

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representações de que o envolvimento lésbico não oferece riscos nem requer


ações específicas com a saúde, tornam a busca por cuidados ginecológicos
especialmente complexo e difícil.
Outro fator que é destacado é o relato da orientação sexual para o/a pro-
fissional de saúde. Tal fato parece estar relacionado, para aquelas mulheres que
frequentam periodicamente o ginecologista, como uma forma de direcionar
a consulta à sua experiência, evitando perguntas desnecessárias ou que não
fazem sentido a sua vivência(FACHINNI, 2009).
A literatura sobre o tema relata vários episódios de tratamento ina-
dequado relacionados ao relato da orientação sexual.Os episódios envolviam
mudança de atitude por parte do/a profissional, comentários preconceituosos,
ausência de oferta de exames clínicos, de mamas ou Papanicolaou. A queixa
mais comum refere-se ao fato de o/a profissional, após o relato, agir como se
não tivesse recebido a informação ou como se não tivesse nada a comentar ou
orientar a respeito(FACHINNI, 2009).
Por fim, chamo a atenção para as diversas formas de homossexualidade
feminina e das experiências homoeróticas. Dessa forma, não podemos consi-
derar que uma mulher que tenha identidade sexual lésbica nunca tenha tido
uma relação heterossexual ou que nunca mais a terá. Da mesma forma que
uma mulher que tenha identidade sexual heterossexual nunca tenha tido uma
experiência homossexual ou que nunca venha a ter. Assim, a categoria“mu-
lher exclusivamente homossexual – ou heterossexual” desaparece dando lugara
um cenário mais dinâmico onde mulheres transitam por diferentes experiências
afetivo-sexuais.

Considerações finais

A partir das questões exploradas no decorrer deste texto, podemos afir-


mar que, com a emergência da epidemia de AIDS, observou-se uma crescente
preocupação com a sexualidade, particularmente questões referentes à homos-
sexualidade masculina. O tema da homossexualidade feminina e sua relação
com a saúde mantiveram-se marginais a todo esse processo.

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Notou-se uma escassa produção científica abordando a temática saúde e


homossexualidade femininano Brasil, a inexistência de políticas de saúde con-
sistentes para o enfrentamento das dificuldades e necessidades desta população,
o parco conhecimento sobre suas demandas e a ausência de tecnologias de cui-
dado à saúde adequadas – aliados à persistência de prenoções e preconceitos
– convertem-se, no âmbito da saúde pública, em desperdício de recursos, em
constrangimento durante o atendimento, em assistência inadequada e, muito
provavelmente, em um grande contingente de mulheres com problemas de
saúde não diagnosticados e não tratados.

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Referências

ALMEIDA, G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids


entre mulheres que se auto definem como lésbicas. Physis: Revista de Saúde Coletiva.
Rio de Janeiro, v.19, n.2, 2009.

AGUIAR, J.M. Mulher, aids e o serviço de saúde: interfaces. 2004. 150p. Dissertação
de Mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública. FIOCRUZ, Rio de
Janeiro.

BARBOSA, Maria Regina. Mulheres que fazem sexo com mulheres: algumas estima-
tivas para o Brasil. In: Cad. Saúde Pública, vol22, n 7, Rio de Janeiro, 2006.

COELHO, LeilaMachado. A Representação Social da Homossexualidade Feminina


nos Ginecologistas do Ponto de Vista das Mulheres Lésbicas e Bissexuais. In: Revista
Tesseract, ISSN 1519-2415, edição 4, 2001.

FACHINNI, Regina. Mulheres, diversidade sexual, saúde e visibilidade social.


In: Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde/organizadores
LuísFelipeRios... [etal.]. - Rio de Janeiro: ABIA, 2004.

.Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com
mulheres em SãoPaulo, Brasil. In: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25 Sup 2:S291
- S300, 2009.

GIFFIN, K., 1999. Poder e Prazer: considerações sobre o gênero e a sexualidade


feminina. In: Ribeiro, M. O Prazer e o Pensar. Cores/Editora Gente.

HERZLICH, C. Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência privada


e a esfera pública. In: Physis: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2004.

RODRIGUES, Juliana & SCHOR, Néia. Saúde sexual e reprodutiva de mulheres lésbi-
cas e bissexuais. In: Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, 2010.

WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e


homofobia, 2001.

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“ME DÁ LICENÇA QUE EU TÔ CORTANDO PRA EXU”:


MARCAS DA DIFERENÇA E CONSTRUÇÃO DA
RESISTÊNCIA NOS ESPAÇOS DE TRADIÇÕES
AFRO-AMERÍNDIAS DE CAMPINA GRANDE – PB

Lucas Gomes de Medeiros


Graduando em História
Bolsista ic.
Universidade Estadual da Paraíba
lucas.gomes.medeiros.historia@gmail.com

Jussara Carneiro Costa


Profa. Doutora
Departamento de Serviço Social
Orientadora ic.
Universidade Estadual da Paraíba
juscosta@hotmail.com

GT 20 - Espaço, Sociabilidade, Sexualidade.

Resumo

O estudo se preocupa com a análise da articulação entre os marcadores sociais


da diferença (a exemplo de sexualidade, gênero e credo religioso) cujos discur-
sos de ódio que os envolvem são acionados hegemonicamente na composição
de abjeções e limitação de direitos que marcam espaços e praticantes das reli-
giões de tradição afro-ameríndia em Campina Grande, no estado da Paraíba.
Frente ao fundamentalismo crescente, esses mesmos espaços de abjeção são
também produtores de resistências e estratégias múltiplas que, questionando
normas e dispositivos de controle, elaboram outras lógicas de compreensão de
corpos, espaços e sociabilidades.
Palavras-chave: marcadores sociais da diferença, abjeção, resistência, religiões
afro-ameríndias, espaços.

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Introdução

Em abril de 2012, ano de eleições municipais, o vereador Olímpio Oliveira


(PMDB) propôs em plenário a proposta de Projeto de Lei nº 059/2012, que
visava proibir peremptoriamente em todo o território municipal e distritos a
imolação ritual1 de animais. Na ocasião, o vereador afirmou que em Campina
Grande, assim como no resto do país, rituais dos mais cruéis contra os animais,
movidos por tipos fanáticos e por religiões de matriz africana repetem-se sob a
pecha impune de serem práticas de “cunho religioso”2.
O apelo do vereador continuou insistindo na impossibilidade de a
sociedade aceitar a convivência com práticas sacrificais religiosas. Estas inevita-
velmente se desenrolam, segundo ele, nas mais variadas formas de maus-tratos
e crueldades com o único intuito de satisfazer caprichos de praticantes de sei-
tas religiosas. A pena imputada aos infratores poderia variar de dez até trinta
Unidades Ficais de Campina Grande (UFCG) por cada cabeça de animal morto,
ficando a fiscalização sob responsabilidade da Coordenação de Meio Ambiente
do município.
Além de toda a defesa do projeto, o vereador Olímpio Oliveira autorizou
a circulação de um panfleto que reforçava imageticamente a sua cruzada contra
as casas de Jurema Sagrada, Umbanda e Candomblé. Na imagem (Fig. 1), ani-
mais fogem desesperados das mãos assassinas de um homem completamente
vestido de branco, circundados por palavras de ordem e apelos pelo fim da
utilização de animais em cultos religiosos.

1 A imolação ritual, vulgarizada como “sacrifício animal”, consiste na utilização de certos animais
específicos, tais como aves, caprinos, bovinos e raramente suínos, além de outros alimentos, nas
cerimônias de “obrigação”, tal como são chamados os rituais que alimentam Orixás, Nkisis e enten-
didades da Jurema Sagrada.

2 As aspas são do próprio vereador Olímpio Oliveira em seu pronunciamento. Cf.: No Candomblé:
Vereador de CG quer proibir o sacrifício de animais em rituais religiosos. In: < http://www.paraiba.
com.br/2012/04/20/31382-vereador-de-cg-quer-proibir-o-sacrificio-de-animais-em-rituais-religio-
sos-de-candomble>. Último acesso: 12/07/2016.

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Figura 1. Panfleto da campanha do vereador Olímpio Oliveira pela aprovação do Projeto de Lei nº
059/2012.

A argumentação do vereador ainda recorre à Declaração Universal dos


Direitos dos Animais da UNESCO de 1978. Acionando o artigo 11º: “Todo o
ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto
é, um crime contra a vida”, o texto proibicionista considera que as práticas de
imolação ritual em terreiros de tradição afro-ameríndia são desnecessárias e
destituídas de significado e valoração cultural. Apesar de toda a dura campanha
empreendida pelo vereador, o projeto de lei não conseguiu votos necessários
para sua aprovação, porém, não chegou a ser totalmente arquivado.
Cabe perceber a partir dos fatos relativos ao referido projeto de lei que
as comunidades de terreiro de Campina Grande, apesar de uma insistência
do vereador em ter um “mandato na rua”, foram completamente alienadas de
qualquer participação ou discussão a respeito do texto e de suas implicações
legais. Yalorixás, babalorixás, juremeir@s e outr@s membr@s das comunidades
de terreiro, porém, reagiram. Nessas reações e resistências é que vamos nos
apoiar na discussão que decorre do texto ora introduzido.
Mãe Goretti de Oxum Opará, juremeira e yalorixá da Tenda de Umbanda
Boiadeiro Zé Firmino / Ilê Axé Oxum Opará no bairro Rocha Cavalcanti, foi
uma das líderes religiosas que acompanharam de perto todo o desenrolar do
projeto de lei. Certa ocasião, o vereador Olímpio Oliveira passava por uma
rua próxima de onde reside Mãe Goretti. Inflamada pelos constantes ataques

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realizados pelo vereador tanto na câmara quanto em redes midiáticas às práti-


cas do povo de santo, a sacerdotisa se dirigiu a ele em tom de ironia: “O senhor
por acaso é vegetariano? ”; o vereador respondeu-lhe virando as costas.
Usando como provocação esse projeto de lei hoje quase esquecido,
inclusive entre @s praticantes das religiões de terreiro, pretendemos realizar
uma análise que valorize a intersecção entre os marcadores sociais da diferença
de gênero, sexualidade, e outros, e sua articulação com a criação de espaços
de abjeção que podem ser reapropriados e ressignificados por sujeit@s como
espaços de sociabilidade e de resistência.
Pretendemos falar das experiências do povo de santo fazendo o esforço
de perceber que discursos como o do vereador em questão, longe de se preocu-
parem unicamente com questões bioéticas, apontam para o alinhamento com
agendas religiosas conservadoras que cada vez mais tem ocupado espaço na
política e na sociedade, em detrimento de práticas religiosas que não se orga-
nizam segundo o modelo judaico-cristão de compreensão da relação homem/
natureza.
Interessa, dessa forma, atentar para a maneira como os terreiros de Jurema
Sagrada, Umbanda e Candomblé de Campina Grande aparecem nos discursos
que classificam os espaços da cidade, tendo em vista que estes estão localiza-
dos nas zonas mais periféricas e de difícil acesso, independendo de seu status
financeiro. Da mesma maneira, importa perceber quais os marcadores sociais
da diferença que estes espaços congregam, assim como a maneira pela qual
estão articulados na produção das abjeções para com as religiões afro-ame-
ríndias e seus praticantes. Objetivamos também compreender como estes são
estrategicamente acionados nos discursos que naturalizam os ataques (verbais e
físicos) aos espaços de sociabilidade dos terreiros.
Anteriormente falamos em resistência, e retornamos a ela para expor a
última nuance que perpassa este texto. Da mesma forma que discursos político-
-religiosos se articulam em meio às relações de poder, organizações e práticas
de sociabilidade e resistência também aparecem como reposta e reivindicação
de espaço na cidade. Assim, desejamos também saber como os terreiros de
Campina Grande organizam sua resistência para continuar existindo em meio
ao contexto apresentado.

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Marcadores sociais da diferença e as experiências de abjeção nos


terreiros

No percurso de nossas experiências e pesquisas nos terreiros, conhece-


mos dados mantidos ainda de forma pouco organizada por algumas federações
de cultos espíritas e de Umbanda em Campina Grande, que nos informam ter a
cidade aproximadamente quatrocentas comunidades de terreiro, nas suas mais
diversas tradições e nações3. Esse número considerável de templos religiosos se
distribui entre os diversos bairros periféricos, bem como adjacências rurais, e
evidentemente subnotificações devem ser consideradas nessa cifra.
Em uma leitura pouco cuidadosa da forma de organização da cidade
desconsideraríamos o fato de os terreiros se localizarem onde estão. Como
apontamos, não há exceção se o terreiro possui uma sede moderna e rica, seu
espaço de atuação é restrito pela própria necessidade de resguardar com segu-
rança o culto.
Tanto é alto o número de comunidades de terreiro que ainda resistem,
quanto o de ataques violentos aos seus cultos e sociabilidades. Mãe Goretti,
Mãe Yara e Pai Antunes, praticantes de ramos diversos das religiões de santo,
compartilham em comum a experiência da abjeção e da resistência. A primeira,
de casa de Candomblé Nagô Egbá com a Jurema Sagrada, e @s últim@s dirigen-
tes de casas de Candomblé Angola com Ketu.
Mãe Goretti, há alguns anos, teve sua casa apedrejada e objetos religiosos
danificados, além de insultos constantes e um abaixo assinado que reuniu mil
e duzentas assinaturas para retirar o seu terreiro do bairro. Mãe Yara, moradora
do bairro do Araxá, já teve o telhado do terreiro e de sua casa apedrejados
diversas vezes e objetos d@s filh@s de santo roubados. Pai Antunes é vítima,
desde a fundação do seu terreiro no bairro Jardim Borborema, de sequenciais
ataques e insultos com discurso de ódio; só no ano passado a casa do sacerdote
foi atacada com coquetéis molotov e pedradas três vezes em menos de um
mês e meio. Ironicamente, um desses ataques ocorreu no exato dia em que a

3 Nação se refere, no Candomblé, à tradição africana da qual o terreiro descende. As mais predomi-
nantes em Campina Grande são casas que cultuam os Orixás da nação Nagô Egbá, ketu e Nkisis da
nação Angola. A maioria desses terreiros, majoritariamente os de tradição Nagô Egbá, se configuram
como cruzamento com a Umbanda, e com a religião local de tronco indígena, a Jurema Sagrada.

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OAB-PB e o Fórum de Diversidade Religiosa da Paraíba se reuniam na casa de


Pai Antunes para discutir medidas contra os ataques sofridos.
O Ilê Axé Babá Obá Igbô, que tem Pai Antunes como zelador, foi o mais
atacado. A casa é majoritariamente frequentada por sujeit@s que apresentam
dissidências sexuais e de gênero; a associação dessas ao espaço de margem
que a religião ocupa aumenta ainda mais a abjeção experimentada pel@s pra-
ticantes. Isso fica evidenciado em citações do tipo: “Além de macumbeiro é
bixa”, entre outras classificações a ele atribuídas (MEDEIROS; SOUZA, 2015).
Resistindo, Pai Antunes encara o fato de ser e acolher essas pessoas como um
tipo de missão.
À presença recorrente de corpos dissidentes nesses espaços, atribuímos
ao fato de tais práticas apresentarem uma concepção de universo que rompe
com as dicotomias que caracterizam o judaico-cristianismo. A saber, corpo e
alma, sagrado e profano, material e espiritual, masculino e feminino etc., se
apresentando como loci de sociabilidade e resistência diante de uma cidade
conservadora.
Entendemos, a partir de Foucault (2015), que o dispositivo da sexualidade
é uma dinâmica de poder que se baseia na regulamentação de corpos, afetos,
desejos, para determinar quais as categorias de sujeit@s são ou não viáveis; este
sendo incorporado no discurso médico, judicial, religioso e outros, penetra nos
corpos de maneira cada vez mais detalhada e controla as populações de modo
cada vez mais global.
Na ausência de concepções moralizantes acerca da sexualidade, ques-
tionando o lugar de masculinidades e feminilidades nos transes ritualísticos e
mostrando formas mais horizontais na maneira de conectar-se ao sagrado, essas
práticas não atestam apenas as falhas do dispositivo da sexualidade, elas pro-
blematizam as sobreposições entre os gêneros, questionam as centralidades e
verdades que perpassam o discurso religioso fundamentalista etc.
Conectando questões de gênero, sexualidade, credo e outras, essas prá-
ticas questionam as várias formas de organização e classificação d@s sujeit@s,
que se baseiam em processos de normatização característicos das sociedades
ocidentais modernas e que fazem viger a linha da abjeção. A “norma”, anun-
ciada por Foucault como elemento referendado pela articulação dos saberes no
Ocidente, é o elemento que rege a ordem discursiva que se apresenta vigente;
a mesma opera por meio de “processos de normalização”, ou seja, estabelece

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um padrão de conduta a ser seguido e classifica como “anormal” e, portanto,


“abjeto”, aquel@ que dele é dissidente (GADELHA, 2013, p. 11-73).
Compreender de que maneira os marcadores sociais da diferença natu-
ralizam os ataques aos terreiros fica fácil à medida que entendemos como
essa articulação corresponde a um padrão normativo hegemonicamente
estabelecido.

Considerações finais

Todos os espaços que compõem a cidade são perpassados por discursos


que os classificam e hierarquizam. As comunidades de terreiro de Campina
Grande têm se fortalecido continuamente como referência nos lugares mais
periféricos e esquecidos da cidade, sendo por esse e outros motivos procurados
pelos mais diversos tipos de sujeit@s que expressam dissidências às normas de
gênero, sexualidade e outras. Quando um projeto de lei como o do vereador
Olímpio Oliveira ganha tanta expressão, para nós é sinal de que os discursos
que o fundamentam não se expressam sozinhos, mas estão articulados com
outros discursos que miram sujeit@s e práticas consideradas desviantes.
A violência que caracteriza a intolerância religiosa é produto direto dos
processos que acabamos de elencar, e esta pode se expressar em agressões
morais, cerceamento das liberdades ou evoluir para formas mais agressivas,
como nos casos registrados nas casas d@s três líderes religios@s. Na cidade, um
clima de silêncio impune para com a situação do povo do axé se instaura, a intro-
jeção da norma chega ao ponto de permitir que qualquer macumbeir@ possa
ser identificad@ como praticante de “religiões satânicas”, como sacrificador@s
de animais indefesos ou até de criancinhas, espíritos confusos necessitad@s de
conversão.
Certa vez, nos contou Pai Antunes, estando com outro babalorixá momen-
tos antes de alimentar Exu, um pregador evangélico lhes bate à porta na tentativa
de “pregar” a palavra de Deus, antes de responder, Pai Antunes foi antecipado
por Pai Carlos de Oxum, que respondeu (mal) humorado: “Pode ‘pregar’ aí na
parede e me dá licença que eu tô cortando pra Exu”.

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Referências

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de


Maria Thereza da C. Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 2ª edição. Rio de
Janeiro/São Paulo: Paz &Terra, 2015.

GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introduções e


conexões a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

MEDEIROS, L. G.; SOUZA, Rebeca de A. Chuta, duas vezes, que é macumba e de


veado. Anais do II Seminário Internacional Desfazendo Gênero. Salvador: UFBA, 2015.
Disponível em: << http://www.desfazendogenero.ufba.br/>>. Acesso em: 14/12/2016.

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A RESISTÊNCIA DA IDENTIDADE DE GÊNERO DE UMA


TRAVESTI NO ESPAÇO DE TRABALHO.

Dr. Luís Antonio Bitante Fernandes


Prof. Adjunto III do ICHS/CUA/UFMT
bitante67@hotmail.com

GT 11 - “We Can Do It” a desconstrução homocultural das práticas nas relações de


trabalho.

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo estabelecer um diálogo com as práticas


sociais de uma mulher trans em suas relações de trabalho. Com foco em leitu-
ras de propostas queer, da qual se utiliza da desconstrução como metodologia
de análise das relações em sociedade, debateremos e contextualizaremos o
presente estudo que contempla pesquisas na intersecção das áreas de Relações
de Gênero, Sexualidades e Identidades, em conexão com as práticas discursi-
vas que destacam os corpos e as corporalidades como elementos relevantes.
Corpos e corporalidades produzidos, identificados e interpretados socialmente
como contraditórios, mas que, ao mesmo tempo, levantam indícios de integra-
rem um conjunto de técnicas de normatização e subordinação numa leitura
foucaultiana.
Palavras-chave: gênero; mulher trans; identidade de gênero; homocultura.

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Introdução.

Como parte do projeto de pesquisa - “Identidades Possíveis: uma análise


da perspectiva de gênero e sexualidade”1 - que vem sendo desenvolvido na
cidade de Barra do Garças - Mato Grosso, junto a Universidade Federal de
Mato Grosso, Campus do Araguaia, este trabalho trás um recorte de pesquisas
que se propõem a um debate acerca das relações de trabalho e as estratégias
de usos de identidades dissidentes que transitam entre a identidade de gênero
feminina e o uso do corpo masculino como dispositivos de preservação da dig-
nidade nas relações de trabalho.
Na primeira fase de desenvolvimento da pesquisa, ouvimos duas travestis,
utilizando-se da técnica de História de Vida, que relataram suas experiências
e percepções de sentimentos em corpos não reconhecidos e, portanto, vistos
como estranhos. Neste artigo utilizaremos as experiências de uma delas em seu
espaço de trabalho e como ela usa de dispositivos de estratégias para “I can!”,
assim “they can!”; “We Can Do It!”2. Sua incorporação ao sistema de trabalho
formal dá a ela certa ‘visibilidade’, esta não menos carregada de preconceitos,
mas que ao se sentir “respeitada”, em seu ambiente de trabalho, torna sua iden-
tidade de gênero invisível. Neste contexto, vale ressaltar que a subalternidade
torna-se expressiva e a voz daquelas(es) que não as possuem, são significante-
mente importantes.

Dispositivos de poder e a desconstrução.

Enquanto método utilizado para o desenvolvimento da pesquisa, utili-


zamos as narrativas de nossa colaboradora, coletada por meio da técnica da
História de Vida e, dentro desta perspectiva, o uso da técnica de “roteiro sexual”
do qual se compreende como o “[...] lugar da sexualidade na construção da
pessoa em distintos contextos culturais de uma sociedade complexa e hete-
rogênea” (Heilborn 1999, p. 40) e o local de onde se afirmam a existência de
vínculos entre a esfera sexual, as relações de gênero e a subjetividade (Heilborn,
1999).

1 Projeto cadastrado na UFMT com apoio do CNPq (MCTI/CNPq/Universal/ 2014) e FAPEMAT (Edital
Universal/003/2014)

2 Numa tradução simples: “Eu posso!”, “eles podem!”; “Nós podemos fazer isso!”.

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Para análise, tomamos como referencial Michel Foucault e os Estudos


queer. Foucault trás a ideia de dispositivos de poder, ou seja, um conjunto hete-
rogêneo de discursos e práticas sociais, uma verdadeira rede que se estabelece
entre elementos tão diversos, como a literatura, enunciados científicos, insti-
tuições e proposições morais. Esses dispositivos são elaborados e sustentados
pelo discurso sobre o sexo e das tecnologias de normatização das identidades
sexuais como formas de controle da vida (Foucault, 1999).
A contribuição de Judith Butler (2003), aos Estudos de Gênero e aos
Estudos Feministas, se dão por meio de ideias reflexões que irão problemati-
zar a categoria Gênero. Essa problematização só é possível no diálogo com o
método da desconstrução proposto por Jacques Derrida (2011). Nesta proposta
a desconstrução passa pela elaboração do conceito de suplementaridade, do
qual os significados são organizados por meio de diferenças em uma dinâmica
de presença e ausência, ou seja, o que parece estar fora de um sistema já está
dentro dele, e o que parece natural é histórico. Para tal, o procedimento analítico
mostra o implícito dentro de uma oposição binária, o que leva a desconstrução
e, portanto, ao explicitar o jogo entre presença e ausência no deslocamento dos
binarismos.

Do Gênero às estruturas do poder: pensando na identidade de


gênero.

A categoria Gênero, enquanto categoria historicamente instituída no


cenário das lutas políticas de mulheres surge na chamada segunda onda do
Feminismo para combater as posições daqueles que justificam as desigualdades
sociais entre homens e mulheres, remetendo-se, geralmente, as características
biológicas.
É imperativo, então, contrapor-se a esse tipo de argumentação. É
necessário demonstrar que não são propriamente as características
sexuais, mas é a forma como essas características são representa-
das ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai
constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada
sociedade e em um dado momento histórico. (LOURO, 1997, p.21)

Rejeitando o determinismo biológico, implícitos em discursos dos quais


utilizam-se de termos como sexo ou diferença sexual, gênero aparece como o

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caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo (Scott, 1995).


Desta forma, para Scott, o gênero serve como uma ferramenta analítica e, ao
mesmo tempo, uma ferramenta política. E mais, podemos pensar na subalter-
nidade das mulheres que, segundo Spivak (1988), estariam desprovidas de uma
gramatica própria na construção de suas falas.
Observa-se que para o fato de que as caracterizações de social e rela-
cional, para Louro (1997), não se devem levar a conferir à categoria gênero a
construção de papéis masculino e feminino. O fato de remetermos o caráter
social para o gênero, não se nega que o mesmo se constitui com ou sobre
corpos sexuados e que, portanto, a prática social se dirige aos corpos. Numa
perspectiva estruturalista implica na compreensão da alteridade, ou seja, a exis-
tência do masculino está associada ao seu oposto, o feminino. Assim, o gênero
se constrói sobre o seu corpo biológico, que é sexuado. Temos, então, a possi-
bilidade de vários masculinos e femininos.
Para os pós-modernos, gênero pode ser mutável, assim temos a presença
de múltiplos gêneros e não somente o masculino e o feminino. Macho e fêmea
como uma contingência que pode ser mudado graças às novas tecnologias.
O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, dentro da fluidez que
as relações permitem, acentuando que os projetos e as representações sobre
mulheres, homens e outros são diversos. Assim o gênero irá se diferir não ape-
nas entre as sociedades ou a dados momentos históricos, mas estará demarcado
no interior das sociedades ao considerar os diversos grupos que a compõem,
como étnicos, religiosos, raciais, de classe e outros.
Para Butler, em Problemas de Gênero, desenvolve o argumento que o
gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no
interior de um quadro regulatório altamente rígido que se cristaliza ao longo do
tempo para produzir a aparência de substância, de uma espécie de ser natural
(2003).
Numa superação da categoria gênero, a teoria queer avança na análise
focando na análise do discurso enquanto produtor de saberes sexuais por meio
do método desconstrutivista. Queer mantém sua resistência aos regimes de
normalidade, mas reconhece a necessidade de uma epistemologia do abjeto,
baseado em investigações interseccionais. Desse modo, não são os sujeitos
que tem experiências, mas, ao contrário, são experiências que constituem os
sujeitos.

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Foucault (1999), em sua obra, busca produzir uma história dos diferentes
modos de subjetivação do ser humano dentro da nossa cultura, a cultura oci-
dental. Na medida em que seu trabalho vai tomando formas diversas de abordar
o tema, destacamos duas categorias de interpretação do mesmo problema: a
objetivação e a subjetivação. É a partir destas categorias que entenderemos a
categoria de sujeito e as relações de poder.
Assim, quer pensando na objetivação do sujeito como sujeito falante, pro-
dutivo e vivente, realizada por modos de investigação que procuravam obter
um estatuto de ciência; quer estudando a objetivação do sujeito enquanto divi-
dido no interior de si próprio e perante os outros, Foucault, em uma passagem
da Microfísica do Poder, coloca que:
Queria ver como este problema de constituição podiam ser resol-
vidos no interior de uma trama histórica, em vez de remetê-los a
um sujeito constituinte. É preciso se livrar do sujeito constituinte,
livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa
dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que
eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de histórica que dê
conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de
objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcen-
dente com relação ao campo de acontecimento, seja perseguindo
sua identidade vazia ao longo da história. (1999, p.7)

Se Foucault trabalha a questão do indivíduo e do sujeito, é porque a


eles são atribuídos significados diferenciados e aqui cabe entender esta dife-
renciação. Esta diferenciação aparece quando trabalhados os processos de
objetivação e subjetivação que concorrem conjuntamente na constituição do
indivíduo, sendo que os primeiros constituem-se enquanto objeto dócil e útil e
os segundos, enquanto sujeitos e estes, enquanto indivíduos presos a uma iden-
tidade que reconhecem como sua.
Esses processos de subjetivação do indivíduo enquanto sujeito, sobre-
posto aos processos de objetivação vão explicitar por completo a identidade
do indivíduo moderno como objeto dócil, útil e sujeito. Sendo assim, sempre
que houver referências aos processos de objetivação e subjetivação serão em
relação ao indivíduo e o termo sujeito expressará o resultado da constituição do
indivíduo ante os mecanismos de subjetivação presentes na atualidade.
A ideia de Foucault (FONSECA; 2002) é mostrar que as relações propõem
avançar na compreensão de uma nova economia das relações de poder, que

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consiste na ligação entre as formas de resistência aos diferentes tipos de poder.


Uma vez que tais formas seriam capazes de evidenciar as relações de poder e
ver onde se inscrevem, de descobrir seus pontos de aplicação e os métodos que
utilizam. O que vemos é que podemos pensar nas relações de poder a partir do
confronto das estratégias de poder/resistência.
O processo dessa subjetivação nasce do poder e do saber, criando uma
dimensão da subjetividade que não depende deles, mas que devem ser consi-
derado nas relações de poder tratadas por Foucault.
Fonseca coloca que:
[...] uma vez que o poder analisado segundo a perspectiva das estra-
tégias de que ele se utiliza em domínios diversos da vida cotidiana
dos indivíduos, é impossível pensar a seu respeito sem se estar
pensando na própria constituição do sujeito, em decorrência da vin-
culação direta e necessária entre essa constituição e os domínios da
vida cotidiana investidos pelas relações de poder. (2003, p.30)

Poder é um termo relacionado a um correlato definido, a um objeto ou


uma ideia definida e que possam ser nomeados por uma palavra: poder. Mas,
ele cria uma concepção de poder que se diferencia de uma ideia de poder
como um objeto definido e possível de ser identificado, localizado, manipulado
e, por fim, nomeado.
Nessa concepção, pode-se verificar a presença e ausência do poder, uma
concepção ontológica que se opõe a sua ideia de relações de força. Assim, o
poder não existiria, mas o que encontramos são feixes de relações de poder, de
relações de força.
Essa operacionalidade se apresenta muito mais na produção do que pela
repressão, como características das relações de força, isto é, se desenvolvem
nas relações de força e se apoia nos mecanismos de produção das ideias, das
palavras e das ações.
Nas palavras de Foucault tem-se:
[...] o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido
não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estra-
tégia, que seus efeito de dominação não sejam atribuídos a uma
‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas,
a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de rela-
ções sempre tensas, sempre em atividades, que um privilégio que

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se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha
perpetua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se
apodera de um domínio. (2002, p.26)

É com base nesse caráter relacional que compreenderemos algumas


estruturas das relações de gênero presentes nas sociedades, a partir de locais
historicamente constituídos, locais de produção de saber e poder.

O corpo útil na estratégia de subversão do poder.

Trazemos um pequeno recorte da fala de uma de nossas colaboradoras.


Em seus registros de experiência de vida ela relatou sobre a sua condição de
atividade de trabalho atualmente. Como vermos em suas palavras, ela dá uma
significativa importância ao modo como se veste para desempenhar sua ativi-
dade de labor.
Ao fazermos a junção de nossas observações e sua fala, percebemos que
a vestimenta determina uma prática de relação de poder que estão naturaliza-
das nas relações cotidianas. Durante as três entrevistas realizadas ficaram claro
que diante de nós estava uma pessoa que se travestiu para, estrategicamente,
sobreviver no mundo do trabalho, fazendo de seu corpo algo útil e dócil.
Ao perguntarmos como ela se percebe enquanto travesti, sua resposta nos
leva a pensar o que Foucault chama de estratégias de poder que se constituem
em espaço micro, vejamos:
Entrevistador: Você se vê como trans? Como travesti?

Colaboradora3: - Eu me vejo sim. Como uma trans. Como uma,


olha só. A travesti ela se vê tanto, até em determinado momento
eu posso me considerar até como uma travesti, mas eu acho que a
travesti se vê tanto incomodada com essa personalidade de gênero
que ela quer mostrar pra sociedade que ela é mulher. Por isso, ela
vive vinte quatro horas, vinte e quatro horas, vestida como mulher.
Porque ela acha que a sociedade não está vendo ela. E é verdade.
Verdade, a sociedade fecha os olhos. Já a pessoa que se sente como
trans, o jeito que a gente vê, a pessoa não vê. Não importa se ele

3 A colaboradora hoje trabalha em uma escola do município como coordenadora pedagógica, mas
por muito tempo trabalhou nas ruas.

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está vestido do modo de trabalho, como eu estou vestido aqui pra


trabalhar, trabalhar em serviço formal, não um serviço que envolve
prostituição, um serviço formal, concurso e tudo, mas ela se acha
uma mulher. Por que ser mulher, elas entendem, alguma das traves-
tis também entendem, ser mulher não está na roupa, não está em
você sair vestido pela sociedade, vestido na rua, gritando “eu sou
mulher”. Está na mente, e a mente faz o corpo. Estou me sentindo
aqui uma mulher, fazendo uma avaliação, fazendo uma participa-
ção em um projeto de graduação. Projeto que eu já passei por isso,
não pretendo parar, vou dar continuidade. Estou continuando, pre-
tendo fazer especialização. Sou especialista. E vou continuar. Mas
eu vou continuar desse meu jeito aqui. Eu me sinto uma mulher.

O destacado em sublinhado demonstra toda a sua concepção de travesti;


travesti é aquela que se veste para ser vista como mulher. No caso dela, sua per-
cepção de mulher já superou a necessidade de visibilidade, assim se considera
uma mulher trans, pois se sente como mulher, independente de sua vestimenta.
Na objetivação de seu corpo ela se traveste em ‘homem’ como estratégia de
sobrevivência.
Essa estratégia constrói um imaginário em que o reconhecimento e res-
peito só de dão pelo fato de que, em seu local de trabalho, o corpo aparece
travestido de masculino. Em seu jaleco o nome de nascimento vem estampado
no bolso superior esquerdo. Nome atribuído à conformidade em relação ao seu
sexo atravessa sua identidade de gênero.
Para subjetivação de seu corpo em uma identidade de gênero da qual se
percebe, ela elabora todo um discurso de desconstrução da norma heterocom-
pulsória. Está na mente e a mente faz o corpo.

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Trad.


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e a Constituição do Sujeito. São Paulo: EDUC,


2003.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 13a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
(Vol.1)

________________. Microfísica do Poder. 14a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

________________. Vigiar e Punir. 26 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002c.

HEILBORN, Maria Luiza. “Entre as tramas da sexualidade brasileira”. In: Estudos


Feministas. Florianópolis, 14(1): 336, janeiro-abril/2006.

________________. Sexualidade: o olhar das ciências sociais. RJ: Zahar, 1999.

LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estrutura-


lista. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

________________. (org.). O corpo educado: pedagogia da sexualidade. Belo


Horizonte: Autêntica: 2001.

SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Revista Educação e
Realidade. V.16, nº2, jul/dez 1990. pp. 5-22.

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A VALORIZAÇÃO DAS IDENTIDADES SEXUAIS EM SITUAÇÕES


DE CÁRCERE: ENTRE DESAFIOS E PROPOSTAS PEDAGÓGICAS

Viviane Conceição Antunes


Doutora em Letras Neolatinas - UFRRJ
Área de interesse: Variação Sintática, cidadania
e africanidade no ensino de Espanhol
vivianecantunes.ufrrj@gmail.com

Pedro Giorgio de Souza Rodrigues


Licenciando em Letras – Português/Espanhol
Área de interesse: Identidades sexuais e cidadania
pedro.giorgio@outlook.com

GT 09 - Gênero, sexualidades e educação em sistemas de privação de liberdade

Resumo

No tocante à relação entre sexualidade, gênero e educação em regime fechado,


ressaltamos que há três lados bem marcados: o de aceitação/aproximação,
o de repúdio e o de silenciamento.  Baseando-nos nos estudos de WALSH
(2009), SORIANO AYALA (2002) e NELSON (2006), propomos: i) discutir as
possibilidades de compreensão e de mudanças com relação à negociação das
identidades sexuais no entorno educativo prisional; e ii) com vistas a vislumbrar
saídas pedagógicas plausíveis, analisar dois materiais audiovisuais: a entrevista
do professor Marcelo Souza - Suzy Brasil - que atua como professor no com-
plexo de Gericinó em Bangu, Rio de Janeiro - e o Programa Profissão Repórter
tangente ao presídio Central de Porto Alegre. Concebemos que a integraliza-
ção, a respeitabilidade e as estratégias de reintegração dos que se encontram
em regime prisional precisam da interferência séria da educação, num grande
movimento de ação e mudança.
Palavras chave: formação cidadã; sexualidade; cárcere.

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Primeiras palavras: identidades sexuais e entornos de


aprendizagem

Neste artigo, nos propomos a apresentar como o tema da orientação


sexual é tratado nos documentos da educação brasileira, bem como as pro-
postas de atuação concernentes a seu mover em situações de cárcere. Estamos
atentos a uma perspectiva intercultural crítica, que se desvela num processo de
caráter político, descolonizador e de mudança, baseada no fortalecimento da
representatividade, autonomia e auto-identificação dos agentes sociais.
La interculturalidad entendida críticamente aún no existe, es algo por cons-
truir (WALSH, 2009:4) e essa construção não depende apenas da valorização
das diferenças. Entendemos que dar aulas significa, sobretudo, interferir crítica
e positivamente no olhar dos estudantes sobre o mundo. Segundo ANTUNES
(2010), a promoção do ensino-aprendizagem já realiza esse processo, mas
a partir da inerência da transversalidade na formação cidadã, requerida nos
documentos educacionais brasileiros (PCN (1998); OCN (2006); DCN (2013)),
cabe-nos levar os sujeitos a repensarem verdades absolutas concernentes à
sexualidade e suas diversas formas de opressão.
As DCN (2013:298), ao fazer menção à educação no cárcere, registram
que tanto o trabalho como as atividades educacionais não atendem à grande
maioria dos apenados. Valendo-se de dados do Info/PenDEPEN/MJ (2009), des-
tacam que somente 9,68% dos internos (39.653) estudam. Segundo a Lei de
Execução Penal Brasileira nº 7.210/841, concernente à Assistência Educacional,
nos mostra os caminhos da educação dentro dos regimes de reclusão e obriga-
ções dos órgãos competentes acerca das condições para que sejam ministradas
as aulas. A Resolução nº 03, de 11 de março de 2009 e as Diretrizes Nacionais
para a Oferta de Educação nos estabelecimentos penais também reforçam seus
direitos.
Entretanto, o sentimento de pertencimento precisa ser levado em con-
sideração nas tarefas reflexivas de história, filosofia, sociologia e geografia;
na compreensão dos textos escritos e orais em português, espanhol, inglês;
nas situações desveladas nos problemas de matemática, física e química; no
desenvolver do olhar estético nas artes plásticas e na literatura; no cuidado,

1 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm. Acesso: jun. 2016.

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entendimento dos seres nas aulas de biologia e de educação física. Este sen-
timento deve ser vivenciado dentro e fora da sala de aula, dentro e fora do
ambiente prisional. A aculturação escolar é um grande empecilho, uma vez que
apaga a diversidade e a diferença (KLEIMAN:1998, 269).
Não estamos embandeirando um inédito movimento de mudança, mas
procurando retirar as vendas da hipocrisia e do silêncio de diversos setores
governamentais, muitas escolas e universidades que não dão o devido destaque
às absurdas violências cometidas dentro e fora de seu entorno, por conta da
questão sexual. As taxas continuarão acontecendo e aumentando enquanto não
se derem conta de sua responsabilidade diante do problema.

Para LOURO (1999), os indivíduos não vivem em seus corpos naturalmente


da mesma maneira. A sexualidade, neste sentido, não se restringe ao corpo,
é permeada por rituais, linguagens, representações, convenções que a carac-
terizam. Em nossa concepção, a escola tem que preparar os estudantes para
aproximar-se dessa questão e compreendê-la. Passos como esses configuram
uma formação de cidadãos responsáveis capazes de atuar ativa e democrati-
camente numa sociedade de cunho multicultural (SORIANO AYALA, 2002:9)

2 Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2016/06/cada-28-horas-um-homossexual-


-morre-de-forma-violenta-no-brasil.html.

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A negociação das identidades sexuais no entorno educativo


prisional

No tocante à relação entre sexualidade, gênero e educação em regime


fechado, ressaltamos que há três lados bem marcados: o de aceitação/aproxima-
ção, o de repúdio e o de silenciamento. Dos três, consideramos o silenciamento
o mais complexo, pois pressupõe a total anulação de pessoas, em seu sentido
mais amplo. Não tocar no assunto, ou fazer que as pessoas o tomem como algo
já resolvido, esvazia a própria essência da discussão.
Para ampliarmos nosso tema, voltemos ao termo identidade. Para Fabrício
e Lopes (2004:16), o conceito de identidade está pautado em práticas advin-
das de contextos sociais específicos, responsáveis pela atribuição de sentidos e
articulação de consequências que se estabilizaram, acomodaram e são dadas
como verdades absolutas. A relação entre a entrevista de Jô Soares ao profes-
sor de biologia Marcelo Souza (2011) e o programa Profissão Repórter sobre
o Presídio Central de Porto Alegre (2015) se dá justamente por conta da refe-
rência às lacunas supracitadas, da presença do debate sobre sexualidade e da
divergência entre a “normalidade” e a “transversal” das escolhas sexuais. Três
visões sobre o assunto sobressaem em sua análise: as questões concernentes
à dicotomia aceitação/aproximação, ao repúdio e ao silenciamento. Quando
enfatizamos uma realidade, diferente da que estamos acostumados, nos gera
certa estranheza, mas esta não pode ser alheia nem superior a um olhar sem
distinções, com igualdade de direitos, de cultura, verdade e visibilidade.
Diversos fatores nos levaram a uma anulação do diferente, empurrando o
que era considerado profano para margem da sociedade. Era fácil e importante
descartar o que não se podia explicar ou não se queria valorizar. A matriz colo-
nial de poder precisava ser resguardada (Walsh, 2012). E hoje? Vamos continuar
a mantê-la?
Quem comete crime e este é comprovado precisa cumprir pena, mas pre-
cisa, antes de tudo, ser tratado como cidadão e ter direito à defesa, como todos
deveriam ter. Quantas vezes perguntaram ao um gay ou lésbica agredida como
tudo começou? Quantos são os casos se julgam como importantes e não viram
números estatísticos? Os danos são irreparáveis.

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Em todas essas idas e vindas de grupos sociais ditos minoritários, surge,


junto à luta feminista, um novo ideal ou um novo olhar para os movimentos;
emerge a Teoria Queer. Esta traz consigo o lado social e cidadão dos não-
-heteros, com novas diretrizes no caminho da conquista por um espaço, por
voz e reconhecimento de sua identidade, uma sociedade sem rótulos e sem
separações. O que realmente nos importa nesse momento é como se podem
conceber as identidades sexuais na educação (NELSON, 2006:216).

Gêneros e diferenças nas carceragens brasileiras: materiais


audiovisuais em análise

Comunidades carcerárias vivem uma realidade muito diferente do que


a lei descreve e do que se costuma relatar. A carceragem no Brasil sofre com
superlotações, ocasionado muitas vezes por negligência dos órgãos responsá-
veis pelo seu controle e operação. Seguindo esse mesmo caminho, cavilemos:
há preocupação com o indivíduo, com a(s) identidade(s) de gênero de um
presidiário? As entidades LGBTs do lado de fora dos muros precisam lutar
incansavelmente: não desistem e buscam ser ouvidos por meio da mídia, como
ocorreu no Profissão Repórter gravado na penitenciária em Porto Alegre.
No Presídio Central de Porto Alegre, vemos que se delimitou quem tem
voz, quem pode ser reinserido, quem tem direitos ou mais privilégios dentro
do xadrez. Durante a reportagem, vemos diversas alas dentro da prisão, três
em especial destaco aqui neste trecho: LGBT, dos trabalhadores e da cozinha.
Nestas três alas, vemos um dos grandes problemas de seleção dentro do cárcere,

3 Rio -  Imagens chocantes, nas quais a travesti Verônica Bolina aparece com o rosto desfigurado.
Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-04-16/prisao-de-travesti-sera-inves-
tigada.html.

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na ala dos trabalhadores e na cozinha não vemos gays e travestis presidiários;


são isolados de funções, acomodações mais confortáveis e de instrumentaliza-
ção para o futuro retorno à sociedade.
Quando relacionamos a educação técnica dentro das escolas prisionais,
observamos que os índices não mudam, algo que também não é visto no pro-
grama do IDDD (Instituto de Defesa ao Direito de Defesa4). Não há transex e
ou representantes de grupos LGBTs nas palestras ministradas. Ocorre um apa-
gamento desses cidadãos, sua presença não se faz perceptível e nem se fala
a respeito. Outra questão séria no que tange à inserção dos não-heteros na
comunidade prisional é a falta de convívio dos familiares e dos agentes peniten-
ciários. Vivenciamos nas cadeias nacionais uma segregação vista aqui fora, o
isolamento em vez de aproximação.
Hoje, temos alguns presídios no Brasil que possuem alas LGBTs, um passo
no avanço a integridade física destes prisioneiros. As travestis nas carceragens
servem de mulas ou recurso sexual de presidiários que não recebem visitas ínti-
mas, triste realidade. O mais espantoso e que há, na grande maioria dos casos,
um silenciamento desses crimes contra a integridade física e mental do grupo
em destaque. Na educação, esta visão fica bem marcada como vemos na entre-
vista do professor Marcelo Souza, dada no Programa do Jô (2011).
Existe um distanciamento entre os internos e também entre educadores
e reclusos. A distorção do real, a inversão dos fatos e a brusca mudança da
realidade através dos novos acontecimentos, como o conhecimento da perso-
nagem Suzy Brasil, interpretada pelo docente, geram um distanciamento e a
repressão direta ou indireta entre as partes em questão. Temos, então, um fator
importante: a força que o rótulo da sexualidade causa, o estranhamento e a
transformação dos sujeitos a partir do rótulo.
Marcelo Souza (2015) conta que alunos, ao descobrir sua personagem,
deixam de frequentar as aulas e pensam em afastar-se do ensino no Complexo
de Gericinó, com o aumento da fama da Suzy. Olhamos agora, por outro ângulo,
a história: temos um graduado que tem sua sexualidade oculta, silenciada no
ambiente de trabalho para que o mesmo possa ser exercido sem repúdio e da
mesma maneira não trabalha o tema, pois pode ser visto como um incentiva-
dor para a causa. É reprimido não somente pelos detentos, mas também pela

4 Dsponível em: http://www.iddd.org.br/. Acesso: jun.2016.

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equipe educacional da instituição. Vemos que o silenciamento é muito mais


doloroso e egoísta. Não dá a oportunidade de ser discutida a questão afim de
que considerações sejam postas em xeque. O repúdio pode ser combatido com
mudanças de pensamentos, com viabilidade de novos caminhos pedagógicos
interculturais, pois é visível, tangível. Mas... não podemos esmorecer. A denún-
cia é o caminho.

A modo de conclusão

A primeira mudança para uma educação verdadeiramente inclusiva e de


ampla discussão é não haver maiores ou menores, certos ou errados, desiguais
(LINS e ESCOURA, 2016), o debate deve ser levado a outro patamar, patamar
esse de igualdade de direitos e de visibilidade, numa crítica de cunho intercul-
tural. Despertar o interesse pela ocupação das mentes, pela agentividade ética,
por debates, pela efetiva inserção da educação no cárcere nos ajudam a por em
pauta o tema deste trabalho nas salas de aulas.
É preciso que a discussão travada aqui não se encerre, não seja silenciada.
Um olhar para as identidades sexuais num universo de educação carcerá-
ria, através da interculturalidade crítica, é imprescindível. Faz-se necessária a
exposição das realidades, o acesso a leituras e a conhecimentos diversos que
demonstrem diferentes culturas provenientes dos guetos, dos grupos ditos mino-
rizados, e figure novas realidades.
Urge que a integralização, a respeitabilidade e as estratégias de rein-
tegração dos que se encontram em regime prisional sejam ancoradas nas
interferências éticas e sérias da educação. É essencial a existência de um grande
movimento de ação e mudança reais, principalmente em termos educacionais.
Nesse debate, devem inserir-se e dialogar o poder público, as especificidades
do sistema prisional e as demandas da sociedade como um todo.

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em narrativas contemporâneas. UFJF: Veredas, v. 11, 2004.  

KLEIMAN, A. B. “Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola”. In:


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LINS, B. A.; MACHADO, B. F. e ESCOURA, M. Diferentes, não desiguais: a questão


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NELSON, C. D.  A  Teoria Queer em Lingüística Aplicada: Enigmas sobre. “sair do


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A PREP E A MEDICALIZAÇÃO DOS CORPOS SÃOS

Denise Portinari
Doutora em Psicologia Clínica
Professora Adjunta Departamento de Artes e Design PUC-RIO.
denisep@puc-rio.br

Simone Wolfgang
Doutora em Design
Professora Adjunta Departamento de Design da UNICARIOCA
simone.wolfgang@terra.com.br

GT 21 - Políticas públicas, processos educativos e subjetividades: reinvenções,


potencialidades e tensões na temática da diversidade sexual

Resumo

Em julho de 2014, a Organização Mundial da Saúde recomendou a homens


homossexuais aderir a PrEP, “profilaxia pré-exposição”1 como forma de preven-
ção ao HIV. A Prep é o uso de uma medicação anti-HIV, por seronegativos com
fins preventivos. A maioria dos estudos PrEP se concentrara em populações
LGBTT, sob o argumento de uma utilização “relativamente simples”, aliada a
uma alta eficácia preventiva. Todavia, a ingestão dessa medicação não passa
incólume ao corpo humano, os possíveis e severos efeitos colaterais são uma
realidade pouso estudada. Ainda assim, pesquisadores vêm afirmando que eles,
seriam um um pequeno preço a pagar, tendo em conta a proteção contra o HIV
oferecida por essas moléculas.
Além dos aspectos relacionados com a saúde das populações listadas acima,
há também questões mais subjetivas por trás da recomendação anti-retrovi-
ral pela OMS, estamos diante de uma mudança de paradigma do advento da

1 Prep é a utilização da droga anti- HIV “ Truvada “ por seronegativos para fins preventivos

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prevenção? Seria essa uma passagem das políticas de sexo seguro, calcada na
abstinência, para um modo mais contemporâneo de biopolítica, envolvendo a
medicalização do corpo saudável e práticas de controle biológico e o controle
do comportamento sexual de populações LGBTT?
Palavras-chave: Aids; homosexualidade; biopolítica; PrEP; homocultura.

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Introdução

Nosso trabalho, trata de uma nova modalidade de prevenção ao HIV/


Aids, a profilaxia PrEP. Ela consiste em uma série de estudos para avaliar se a
utilização de uma pílula que combina duas drogas anti-retrovirais, comerciali-
zadas sob o nome de Truvada, pode reduzir significativamente a propagação do
HIV entre pessoas soronegativas. Em suma, a PrEP é o uso diário de uma droga
anti–HIV, o “ Truvada “ com o objetivo de prevenir infecções pelo vírus HIV.
No Brasil, o estudo é realizado pelo Instituto Nacional de Doenças Infecciosas
Evandro Chagas – Fundação Oswaldo Cruz .
O principal objetivo desse artigo, é explorar as possibilidades e conse-
quências da recomendação do uso de PrEP , através de uma breve análise do
discurso da mídia , literatura e artigos científicos sobre o assunto.
Para conduzir nossos argumentos sobre PrEP , vamos tentar entender as
razões que levaram ao surgimento e ascenção deste método de prevenção
e colocar algumas perguntas sobre eventuais problemas da gestão da saúde
pública relacionados ao HIV/Aids, ligadas a popularização dessa profilaxia .
A PrEP chamou a nossa atenção, quando em Julho de 2014, a Organização
Mundial de Saúde, lançou uma recomendação sugerindo a todos os homens
homossexuais e mulheres trans a usarem a profilaxia pré-exposição como uma
estratégia para prevenir o HIV.

A PrEP e o universo da prevenção ao HIV

A PrEP surgiu em um universo de prevenção ao HIV que por quase três


décadas foi povoado essencialmente por mensagens de “sexo seguro”. Se a pro-
filaxia se consolidar como política de saúde pública, será necessário desenvolver
novos conceitos teóricos relacionados à PrEP de forma a orientar a concepção
desse novo mecanismo de prevenção, que ao contrário das políticas de sexo
seguro, não se baseia no uso do preservativo, e sim no uso de uma droga.
Diante de uma possível mudança teórica tão drastica, relativizar a PrEP é
absolutamente necessário. As práticas ligadas a profilaxia devem ser levantadas,
assim como um questionamento dos aspectos mais fracos da terapia, como,
os efeitos colaterais, escolha de populações alvo e ínidices de sucesso, por
exemplo.

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Do ponto de vista das ciências humanas e sociais, isso pode ser feito de
diferentes maneiras. Podemos começar, por exemplo, analizando os protocolos
de estudo e manuais para a implementação da PrEP e seus resultados. Outra
maneira de fazer isso é recolher informações das pesquisas que estão sendo
conduzidas, tanto com voluntários, quanto com pesquisadores e, para poder
cruzar essas informações com a literatura relacionada com a questão da saúde
pública, sociologia da saúde e medicina social.

Estamos diante de uma real mudança no paradigma da


prevenção ao HIV?

A recomendação da OMS foi amplamente divulgada pela mídia em dife-


rentes partes do mundo, marcando a entrada da PrEP no dispositivo central
de prevenção ao HIV/Aids, proporcionando a promoção de uma mudança
paradigmatica drástica (marcada por um esquema de prevenção, que estava
em operação desde a década de 1990) centrada quase exclusivamente em
mensagens de sexo seguro. No Brasil, a maioria das campanhas de prevenção
abordam, essencialmente, a recomendação do uso do preservativo, portanto,
após duas décadas de “sexo seguro”, de repente, surgiu um novo recurso rela-
cionado à prevenção: as terapias medicamentosas.
Este movimento paradigmático mostra como uma mudança no domínio
prático da gestão de risco ligados ao vírus HIV – com a utilização de uma
molécula química para evitar a contaminação – podendo assim, alterar drasti-
camente a cobertura teórica de prevenção. Outro ponto crucial para se pensar
esse movimento na forma de se conceber a prevenção, é o deslocamento para-
digmatico, que falava quase sempre do lugar das práticas de abstinência e vai
aos poucos trazendo com a PrEP, um modelo de gestão de riscos, bio-política.
Pode-se pensar nas políticas de sexo seguro como uma representação das
práticas de abstinência e/ou o controle direto do comportamento sexual através
da disciplina, quase sempre a partir de uma sentença obrigatória de uso do
preservativo masculino.
A adoção de PrEP seria, portanto, uma forma contemporânea de ges-
tão de saúde, onde se destacam os mecanismos de segurança e de gestão de
riscos, baseados no biocontrole e na medicalização individual. Há também,
uma intensificação dos mecanismos de biopolítica na passagem do modelo de
saúde das políticas de abstinência para o controle comportamental/ social. Por

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enquanto, há um completo abandono do modelo preventivo anterior, o que


vemos hoje é o início de uma convivência entre as duas estratégias; estratégias
de disciplina/ abstinência e prevenção medicamentosa do HIV com o uso de
drogas em populações específicas. De acordo com Foucault, é no interior das
formas disciplinares que surgem as formas de biopolítica. Em o “O nascimento
de biopolítica” Foucault disse:
“Aquí também, por sínal, basta ver o conjunto legislativo’ as obrí-
gacóes disciplinares que os mecanismos de segurança modernos
incluem, para ver que não há urna sucessáo: leí, depois disciplina,
depois seguranca, A seguranca é urna certa maneira de acrescen-
tar, de fazer funcionar, além dos mecanismos propriamente de
seguranca, as velhas estruturas da lei e da disciplina. Na ordem
do direito, portante, na ordem da medicina, e poderia multipli-
car os exemplos. (…)Trata -se da emergencia de tecnologias de
segurançano interior seja de mecanismos que sao propriamente
mecanismos de controle social, dos mecanismos que tém por fun-
ção modificar em algo o destino biológico da espécie. (Foucault,
2004 pp14-15)

A recomendação da OMS sobre PrEP e seu uso como uma política de


saúde pública é como um movimento de medicalização, com base na adoção
de uma “tecnologia de segurança” como um meio de proteção e limitação de
riscos. Nesta operação, ha a garantia de um corpo aparentemente saudável a​​
partir da ingestão de uma partícula química, o que pode trazer vantagens uma
“segurança a mais” e desvantagens (efeitos secundários, toxicidade cumulativa,
etc).
De acordo com (LeBreton 2003 p65), em Adeus ao Corpo, esse movi-
mento de medicalização do corpo, se trata de uma modulação química dos
comportamentos e dos afetos – ou, no caso de PrEP, do erotismo – “que mani-
festam uma dúvida fundamental com relação ao corpo que convém manter à
nossa mercê por meio da molécula apropriada.”
Pode-se também pensar na PrEP como um mecanismo de “controle
social”, se mostrando como uma nova faceta dos dispositivos de prevenção
que, se por um lado, trouxe algo de novo para um universo carente de possi-
bilidades, por outro, pode promover a redução de características terapêuticas
específicas relacionadas com a sexualidade humana e prevenção a Aids.

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Neste contexto, o sistema educativo/preventivo ligado ao HIV/Aids, que


deveria promover a educação e o diálogo na busca de prevenção e cuidados/
tratamento, está sendo reduzido a ingestão uma droga como medida profilática
em detrimento da promoção do conhecimento dos detalhes da doença e da
melhora nos cuidados de saúde e a consciência com o cuidado de si. A pre-
venção vem passando da prescrição comportamental - “use sempre camisinha”
– que não deixa de trazer consigo algum nível de diálogo, para prescrição de
medicamentosa – um comprimido por dia para prevenir a Aids, fazendo assim
a exclusão de de toda uma dinâmica subjetiva ligada ao HIV/Aids.

As razões da PrEP a doença inscrita no corpo são.

Precisamos refletir sobre as razões da recomendação da OMS estar


centrada em certas parcelas da população LGBTT em detrimento de toda a
população sexualmente ativa. O argumento oficial atravessa a economia os cus-
tos altos da PrEP, inviabilizando sua aplicação ampla, e a crença epidemiológica
de que a incidência de contagio pelo HIV é maior em homens que fazem sexo
com homens, em detrimento do resto da população.
No entanto, o relatório anual do Departamento da Saúde do Brasil (em
relação a Aids e Hepatites Virais) de 2013 mostra uma imagem diferente, entre
pessoas do sexo masculino, a transmissão heterossexual foi responsável por
mais de 40% das contaminações, enquanto as contaminações relacionada a
relacionamentos homossexuais e bissexuais se reporta a pouco mais de 30%
dos casos registrados.
A preparação de uma estratégia preventiva enraizada na PrEP deve ser
analisada com cuidado de forma a não incentivar a estigmatização ligada ao
HIV/Aids, que atualmente é um dos principais fatores problemáticos para a pre-
venção. A segmentação dos protocolos PrEP pode nutrir a convicção de que
apenas as populações LGBTT estão susceptíveis a infecção pelo HIV.
Pode-se dizer que existem duas grandes opiniões sobre a utilização da
PrEP. Por um lado estão as organizações que apoiam a recomendação da OMS,
apoiada por médicos e pesquisadores da profilaxia, as empresas farmacêuticas
que patrocinam e apoiam este tipo de estudo fornecendo drogas. Nesses casos,
as razões para apoiar a PrEP, são semelhantes às descritas pela OMS como a
sensibilidade e a vulnerabilidade de grupos socialmente marginalizados, além

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da falta de apoio para uma prevenção eficaz, sendo então a PrEP uma maneira
simples de se evitar novas contaminações com apenas um comprimido por dia.
A OMS justifica a recomendação afirmando que “a PrEP é uma maneira
rápida e segura para melhorar os serviços de saúde na prevenção do HIV / SIDA
entre os grupos vulneráveis”, como profissionais do sexo, homens homossexuais
e mulheres transexuais. A agência afirma que essas pessoas têm uma tradição
histórica de ausência de serviços de saúde especializados na prevenção.
A recomendação da OMS também se apoia nos resultados dos vários
estudos de PrEP realizados desde 2006 por diferentes instituições governamen-
tais em parceria com as empresas farmacêuticas e fundações que conduzem
estudos tradicionalmente relacionadas com a saúde. Alguns desses estudos
mostram uma alta taxa de sucesso entre 80 e 90%, muito embora as primeiras
contaminações entre pessoas que estavam em uso da PrEP começaram a surgir
em 2015 e 2016 em artigos da mídia. “Registrada primeira infecção de HIV por
usuário de PrEP” (Caparica, 2016).
Do outro lado estão aqueles que não apoiam a iniciativa ou a apoiam
com reservas, tais como organizações não governamentais, coletivos LGBTT
e grupos de defesa dos direitos humanos , que questionam a validade dessa
medida como um mecanismo preventivo legítimo.
As reivindicações desses grupos são diversas, e vão desde as questões de
segurança relacionadas com a medicação, até os aspectos subjetivos ligados a
uma prevenção que se foca quase que exclusivamente em populações minori-
tárias. Sabe-se que efeitos colaterais graves podem ser uma realidade no uso do
Truvada, e que, por hora, ainda não houve tempo para testar possíveis danos
a longo prazo, ou, ainda se a exposição prolongada de indivíduos saudáveis a​​
uma droga é válida, uma vez que essa exposição ao vírus pode não acontecer.
Algumas pessoas estão mais vulneráveis do que outras e escolher quem deve
correr o risco de sofrer os efeitos colaterais de PrEP deve ser feito de forma per-
sonalizada e não randomica.
Deve-se questionar se a PrEP é de fato é uma forma “rápida e segura de
melhorar os serviços de saúde na prevenção do HIV/Aids entre os” grupos vul-
neráveis” como apontado pela OMS, e se não se trata simplesmente de reforçar
algumas questões problemáticas que estão diretamente ligadas a epidemia de
HIV tais como a estigmatização de parcelas LGBTT, reforçando a noção de
grupos de risco e a crença de que a Aids é uma doença limitadas a certos seg-
mentos da população.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Conclusão

A recomendação da PrEP para determinados grupos–alvo pode ter um


enorme impacto na forma como as pessoas percebem a Aids. Aprovar e divul-
gar sem distinção um método de prevenção que tem como principal alvo as
populações LGBTT, pode perpetuar a ideia de que os homens gays são o prin-
cipal vetor da doença. A desconstrução deste tipo de estigma é absolutamente
necessário para educar a população em geral sobre o HIV/Aids e torná-la cons-
ciente de que qualquer um pode ser suscetível à infecção pelo virus.

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Sexual e de gênero
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Referências

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BRASIL, “Aids no Brasil”, Brasília, Ministére de la Santé, 2014b

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ladobi.uol.com.br/2016/02/hiv-infeccao-prep/

FOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population, Paris, Gallimard, 2004

LeBRETON, D. L´adieu au corps, France, Metailie, 2013.

OMS, Recommandations sur la PrEP en 2014. OMS Media Center 2014.

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A VISÃO DE MUNDO E A DIVISÃO SEXUAL DO


TRABALHO DAS PRODUTORAS RURAIS PARTICIPANTES DA
“MARCHA DAS MARGARIDAS” DO MUNICÍPIO
DE PORTEIRINHA - MG1

Soraia M. Guimarães
Mestranda em Educação Tecnológica - Bolsista CEFET
soraia.mguimaraes@hotmail.com

Raquel Quirino
Pós-Doutora em Educação.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.
quirinoraquel@hotmail.com

Resumo

O presente artigo apresenta um breve histórico acerca do movimento, suas


reivindicações e conquistas, entre outros aspectos, a fim de evidenciar a sua
importância na constituição das mulheres como sujeitos históricos e sociais,
discutir as contribuições do movimento social denominado “Marcha das
Margaridas” na vida das produtoras do meio rural. O estudo busca discutir as
alterações na constituição de visão de mundo e na prática social dessas mulhe-
res participantes da marcha. Escolheu-se como unidade de pesquisa o meio
rural da cidade de Porteirinha, situada no norte de Minas Gerais. Os resultados
evidenciam que a inserçãono movimento social “Marcha das Margaridas”, tem
levado a alterações substanciais na realidade prática e simbólica dessas produ-
toras rurais.
Palavras chave: Marcha das Margaridas. Movimento Social Rural. Mulher do
Campo. Lavradoras. Relações de Gênero no meio rural.

1 Pesquisa realizada com recursos do Programa Institucional de Fomento à Pesquisa do CEFET-MG –


PROPESQ e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

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Introdução

O presente artigo aborda as relações de gênero e a divisão sexual do


trabalho no meio rural em interlocução com movimento social rural feminino
denominado Marcha das Margaridas, no município de Porteirinha, Estado de
Minas Gerais. Identifica e analisa, em seus limites, as contribuições do movi-
mento na constituição da visão de mundo de mulheres lavradoras participantes
da marcha.
No meio rural a realidade sócia histórica das mulheres é marcada pela
exclusão social, haja vista que nesse contexto destacam-se, historicamente, a
dominação masculina, revelada pela disparidade econômica, política e social,
na qual a mulher tem direitos muito aquém dos homens. Nesse contexto des-
tacam-se as lutas e movimentos sociais em defesa dos direitos da trabalhadora
do campo, tais como a Marcha das Margaridas, que segundo Fernandes (2012,
p.31), “surgiu da grande necessidade que as mulheres trabalhadoras rurais do
campo e da floresta têm pela igualdade de gênero”.
A Marcha acontece bienalmente como movimento social de base femi-
nista e rural, contribui para a quebra de paradigmas enraizados na sociedade e
altera a forma de pensar, a visão de mundo e propicia conquistas substanciais
para as mulheres do campo.

A Divisão sexual do trabalho no meio rural

Nas sociedades pré-históricas já havia um padrão de organização social


baseado na repartição distinta de tarefas entre homens e mulheres. Para Héritier
(1997, p.24), tal divisão “[...] nasce de limitações objetivas e não de predispo-
sições psicológicas de um ou outro sexo para tarefas que desse modo lhe são
atribuídas” e apresenta-se como duas esferas de trabalho distintas: uma esfera
masculina externa ao meio doméstico e uma esfera feminina limitada ao meio
privado.
Segundo Quirino (2011, p. 43),
[...] evidencia-se, ainda que não de forma declarada, certo determi-
nismo biológico, pelo qual se deduziria que as mulheres no trabalho
são inferiores por natureza e que a sua submissão na sociedade tem
uma base concreta na sua conformação biológica. Portanto, difícil
ou mesmo impossível de ser suplantada.

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Também Engels (1977, p. 70-71) afirma que, “[...] a primeira divisão do tra-
balho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos” e
já ressalta a opressão de classes e de sexos. Porém, Quirino (2011, p. 44) reforça
que “a questão da opressão da mulher deixa de ser do domínio da biologia e é
inserida no domínio da história, da cultura, tornando possível assim vislumbrar
a sua superação por meio da ação política, pois se não é algo natural, pode ser
superada.”
Para Hirata e Kérgoat (2001, p. 599), as atividades realizadas pelas mulhe-
res no espaço privado são consideradas como trabalho de pouca importância e
sem relevância econômica, vistas como ajuda e, assim, a atividade de trabalho
produtivo é algo que não lhe cabe.
Também no meio rural evidencia-se a divisão sexual do trabalho, pois,
desde muito cedo os meninos e as meninas aprendem determinadas funções
específicas (SCHWENDLLER, 2002, p. 2).
Atestam Salvaro (2004) e Melo (2001) que nos assentamentos destaca-se
a dupla e/ou tripla jornada de trabalho da mulher assentada. Nesse contexto, a
mulher trabalha o dia todo e no fim da tarde retorna ao seu lar com afazeres da
casa e os cuidados das crianças. Isto quando não está inserida nos movimentos
sociais, que por sua vez, leva a mulher a uma tripla jornada de trabalho.
Segundo Abramovay (2000, p. 348), nessa divisão de trabalho a mulher
é responsável pela reprodução social do seu grupo familiar, tanto no trabalho
doméstico, quanto na força de trabalho produtivo. No entanto, não obstante há
uma relevância na produção agrícola, seu trabalho ainda permanece invisível
(ABRAMOVAY, 2000:349).
Entretanto, diante do avanço científico e tecnológico que tem facilitado o
acesso à informação e aos movimentos sociais rurais, sobretudo os que lutam
pelos direitos femininos, a visão de mundo das mulheres lavradoras, vêm se
alterando ao longo do tempo, fato que foi contatado na presente pesquisa.

A Marcha das Margaridas

A produtora Rural Margarida Alves destacou-se na luta pelos direitos


das mulheres do campo nas décadas de 1970-1980. Nasceu em 05 de Janeiro
de 1933, em Alagoas Grande, Estado de Pernambuco. Era sindicalizada e foi
eleita como presidente do Sindicato Rural em 1973. Em 12 de Agosto de 1983,
Margarida foi assinada e, tal fato, comoveu produtores rurais e a opinião pública

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de todo o país. A partir de então, Margarida Alves tornou-se o símbolo de luta


das mulheres rurais.
Realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CONTAG, Federações e Sindicatos, a Marcha da Margaridas se firmou na
agenda do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais –
MSTTR. Realizada a partir do ano 2000 se consolidou na luta contra a fome,
a pobreza e a violência sexista no campo apresentando uma pauta de reivin-
dicações para negociação contando com milhares de mulheres participantes
(CONTAG, 2015).
O movimento apresenta a partir de uma perspectiva feminista uma crítica
ao modelo de desenvolvimento hegemônico. Contribuindo para a democrati-
zação das relações sociais no MSTTR e nos demais espaços políticos visando a
superação das desigualdades.

Conquistas da Marcha das Margaridas

No decorrer das cinco manifestações da Marcha das Margaridas realizadas


no Brasil, as trabalhadoras rurais conseguiram algumas conquistas no campo de
disputa da sociedade2. Para garantir o acesso à terra e à sua documentação, dar
apoio às mulheres assentadas e à produção da agricultura familiar, foi criado o
Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural – PNDTR (com
unidades móveis em todos os estados), por meio do qual foram atendidas mais
de um milhão de mulheres.
Dentre as maiores conquistas das mulheres por meio da Marcha das
Margaridas destacam-se:
• Titulação Conjunta Obrigatória da Terra – Edição da Portaria 981 de 2
de outubro de 2003. Em decorrência, hoje, mais de 70% dos títulos de
terra emitidos têm a mulher como primeiro titular;
• A criação e funcionamento do Fórum Nacional e Estadual de Elaboração
de Políticas para o enfrentamento à Violência contra as Mulheres do
Campo e da Floresta e a elaboração e inserção de diretrizes na Política
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres voltadas
para o atendimento das mulheres rurais.

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Visão de mundo das mulheres participantes da Marcha das


Margaridas

A quinta Marcha das Margaridas foi realizada no mês de agosto de 2015,


saindo da cidade de Porteirinha, situada na região norte do Estado de Minas
Gerais, rumo à Brasília. Aproximadamente 40 mulheres seguiram de ônibus
fretado pelo sindicato e viajaram cerca de 810 quilômetros até chegar a capital
federal para mostrar sua força e determinação na luta pelos seus direitos sociais
e para se constituírem como sujeitos protagonistas da própria história.
As afirmações de Ambramovay (2000, p. 351) evidenciam os limites
atribuídos às mulheres, sobretudo em relação ao acesso à terra, ao crédito, à
assistência técnica, à capacitação profissional e a outros direitos civis e sociais.
Tais questões são corroboradas por duas entrevistadas: Maria de Lourdes, uma
pequena produtora rural de 52 anos, casada e mãe de 03 filhos, que desde o
início participa da Marcha das Margaridas e Maria Socorro, 46 anos, casada,
mãe de 03 filhos e há 05 anos participa do movimento. As entrevistadas relatam
o quanto participar da Marcha contribuiu para sua mudança de vida e dá pistas
das profundas alterações ocorridas em suas visões de mundo. Os desabafos
visivelmente críticos e politizados revelam mulheres conscientes de seus direi-
tos, atentas a uma agricultura sustentável:
Eu digo que já melhorou muito, sabe? Principalmente a luta das
mulheres já melhorou muito a situação. Tem os empréstimos,
acesso ao crédito... deu uma melhorada, mas ainda falta muita
coisa. (Maria de Lourdes. Produtora Rural - Coordenadora do
Coletivo de Mulheres do Norte de Minas Gerais).
Nesses espaços ajuda a despertar quanto aos nossos direitos e ajuda
também nos nossos deveres, isso graças ao nosso coletivo e nossas
Marchas e aí nós conseguimos diferenciar uma coisa da outra. O
direito de ser cidadão, o direito de ir i vir e o direito das políticas
públicas que antes a gente não conhecia e hoje a gente tem mais
conhecimento. Temos que melhorar muito, ainda desejamos muito
mais, isso melhorou muito depois de nossa participação. (Maria do
Socorro. Produtora Rural).

Já o discurso de Maria José, 45 anos, casada, com filhos, revela que hoje
se sente “empoderada” para “bater de frente” com quer que seja que coloque
em risco seus direitos:

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Ah... Pra mim mudou muitas coisas! Tive um conhecimento muito


“aproveitativo”. Muitas vezes a gente não conhecia e não sabia dos
direitos que a gente tinha. Às vezes, a gente ficava calada diante
das situações, a gente não tinha como responder. Hoje, a gente tem
um conhecimento e pode “bater de frente” com a situação. (Maria
José, produtora rural).

Nos discursos apresentados, evidencia-se que a vivência no movimento e


os conhecimentos advindos dessa experiência têm levado as mulheres partici-
pantes da Marcha das Margaridas a mudarem sua prática social, posicionando-se
mais criticamente diante da realidade que as cercam. Isso se deve às ampliações
realizadas em suas visões de mundo diante da constatação das inúmeras possi-
bilidades que o mundo oferece além dos muros de suas casas.

Considerações finais

Nesse artigo evidenciam nos estudos teóricos que a as relações de gênero


e a divisão sexual do trabalho são construtos simbólicos, culturais e materiais
que permanecem ao longo do tempo e trazem em seu bojo a dominação mas-
culina e a desvalorização do trabalho da mulher.
Entretanto, os discursos das entrevistadas, mulheres lavradoras, subsumi-
das nas relações de trabalho, revelam em seu labor diário um trabalho duplicado
ao cuidar da casa, do marido e, quase sempre, de inúmeros filhos, além de tra-
balharem no serviço pesado da lavoura. Relegadas a apêndices dos maridos,
pais e filhos, essas mulheres são oprimidas por sua condição feminina e explo-
radas economicamente, seus direitos sobre a terra, à capacitação profissional,
e outros, são negados, perpetuando as relações conflituosas entre homens e
mulheres na sociedade.
Todavia, as lutas dos movimentos sociais, sobretudo a “Marcha das
Margaridas” têm oferecido a essas mulheres oportunidades de aprendizado e
de socialização, promovendo alterações definitivas na consciência coletiva e
em suas visões de mundo.

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Referências

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Nacional de Trabalhadores Rurais (CONTAG). In: ROCHA, Maria Isabel Baltar (Org.)
Trabalho de Gênero: mudanças, persistências e desafios. São Paulo: Editora 34, 2000.
p. 347- 375.

COMISSÃO NACIONAL DE MULHERES TRABALHADORAS RURAIS- CNMTR.


Revista da Marcha das Margaridas 2007. CONTAG, Março de 2008.

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Trad.


Leandro Konder. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

FAZENDA, Ivani, Metodologia da Pesquisa Educacional/Ivani Fazenda (org.) In:


Gamboa, p. 107 – 12 ed., São Paulo: Cortez, 2010.

FERNANDES, Alessandra do Patrocínio. A Reforma Agrária, a mulher e a exclu-


são feminina: a “Marcha das Margaridas”, um exemplo de luta pela igualdade.
(2010).2012. 40p. Graduação em História. UEG- Universidade do Estado de Goiás.
Disponível em: <www.cdn.ueg.br> Acesso em: 06 Abril 2015.

HÉRITIER, Françoise. Masculin/Féminin: la pensée de la différence. Paris: Ed. Odile


Jacob, 1997.

<https://www.contag.org.br/index.php?modulo=portal&acao=interna&codpa-
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<http://www.fetaesc.org.br/index.php/marcha-das-margaridas/> Acesso em: 25 Abr.


2015.

KÉRGOAT, Daniéle. Novas Configurações da divisão Sexual do Trabalho, In: Caderno


de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595, set. dez.2007.

HIRATA, Helena. Nova Divisão Sexual do Trabalho: Um Olhar Voltado para Empresa
e a Sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002. 336p.

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LUSA, Mailiz, O Serviço Social e as lutas Sociais no campo: Movimentos Sociais a


partir das Relações de Gênero e da conquista de direitos. Disponível em: <www.
cibs.cbciss.org> Acesso em: 12 Abr. 2015.

MELO, Lígia A. Injustiças de Gênero: o trabalho da mulher na agricultura familiar ,


Fundação Joaquim Nabuco. Disponível em: <http://www.spm.gov.br> Acesso em: 10
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MELO, Elisabete Josefa de. Gênero e Jornada de Trabalho em Assentamentos Rurais.


In: Revista Pegada Eletrônica. V.2, n 2, outubro, 2001.

PACHECO, M.E. Sistemas de reprodução: uma perspectiva de gênero. Perspectivas


de Gênero: Debates e questões para as ONGs. Recife: GT Gênero - Plataforma de
Contrapartes Novib / SOS CORPO Gênero e Cidadania, 2002.

QUIRINO, Raquel. Mineração também é lugar de mulher! Desvendando a (nova?!)


face da divisão sexual do trabalho na mineração de ferro. Tese de Doutorado. Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerias – UFMG, 2011.

SALVARO, Giovana I. J. Ainda precisamos avançar: os sentidos produzidos por traba-


lhadoras/es rurais sobre a divisão sexual do trabalho em um assentamento coletivo do
Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST) em SC. 2004. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

SCHWENDLER, S.F. A construção do feminino na luta pela terra e na recriação


social do assentamento. Disponível em: <http://www.landless-voices.org>, University
of Nottingham: Inglaterra, 2002. Acesso em: 27 Mai. 2015.

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EQUIDADE DE GÊNERO NO MUNDO DO


TRABALHO DA ENGENHARIA1

Rodrigo Salera Mesquita


Mestrando em Educação Tecnológica – Bolsista CEFET.
rodrigosmesquita@yahoo.com.br

Raquel Quirino
Pós-Doutora em Educação.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG
quirinoraquel@hotmail.com

Resumo

Abordam-se nesse artigo discussões teóricas e indicadores sociais que denotam


a crescente participação das mulheres nos processos de escolarização e no
mundo do trabalho em áreas historicamente pouco usuais à atuação feminina,
tais como as engenharias. Destacam-se as relações de gênero no programa de
mobilidade estudantil internacional Ciências sem Fronteiras, tendo como locus
de pesquisa o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, desta-
cando suas contribuições para a inserção social e profissional das mulheres no
mundo do trabalho da engenharia.
Palavras chave: Mulher na engenharia. Relações de gênero; Ciência Sem
Fronteiras.

1 Pesquisa realizada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais –
FAPEMIG.

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Introdução

Discute-se questões relacionadas às relações e equidade de gêneros


nos espaços educacionais e no mundo do trabalho, a participação feminina
nos espaços públicos, sua crescente escolarização e a conquista de uma área
de atuação pouco usual ao público feminino: a engenharia em diálogo com
o Programa Ciência Sem Fronteiras, criado pelo Governo Federal em 2011.
Evidencia-se como as relações de gênero no Programa estão ocorrendo, tendo
como unidade de pesquisa o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais - CEFET-MG e questiona até que ponto a participação em tal programa
de mobilidade internacional contribui para a inserção e as atividades profissio-
nais das mulheres no mundo do trabalho da engenharia.
Estudos empreendidos por Quirino (2011), sobre a atuação de mulheres
no segmento de mineração; Resende (2012) sobre o trabalho feminino na cons-
trução civil; Lombardi (2004) sobre a atuação feminina nas áreas de engenharia
evidenciam um avanço das pesquisas acadêmicas sobre as relações de gênero
em áreas tradicionalmente masculinas. Porém, a problematização de algu-
mas áreas pouco usuais, historicamente, à atuação feminina ainda é de suma
importância.

Participação feminina no mercado de trabalho das engenharias

Evidencia-se no Brasil uma mudança no perfil das trabalhadoras nas últi-


mas décadas com o aumento da escolaridade. Dados do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) demonstram que entre
os anos de 2010 e 2014, as mulheres já representam a maior fração entre os
estudantes matriculados nas universidades brasileiras. Em 2010, elas represen-
tavam 56,3% do total de matrículas e 62,4% do total de graduados no ensino
universitário. O percentual médio de ingresso de mulheres até 2013 foi de 55%
do total em cursos de graduação presenciais. Se o recorte for feito por con-
cluintes, o índice sobe para 60%. Desse total aproximado de 7,2 milhões de
matrículas, 3,9 milhões foram de mulheres, contra 3,2 milhões do sexo oposto
(Brasil, 2013).
Porém, Melo, Lastres e Marques (2004) ao traçarem um quadro da inser-
ção das mulheres no sistema científico, tecnológico e de inovação no Brasil,
evidenciam que a participação feminina na produção do conhecimento e no

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ensino, relacionados ao campo da tecnologia e da inovação, ainda está aquém


da presença feminina na Universidade. Há um crescente número de mulheres
profissionais engajadas em atividades científicas e este contingente de pesquisa-
dores avança na direção da maior qualificação profissional embora, por razões
históricas, permaneça menor a presença feminina em áreas tradicionalmente
ocupadas por homens, especialmente nos setores das engenharias e na pes-
quisa tecnológica aplicada.
Entre as profissões menos procuradas pelas mulheres estão aquelas das
áreas da engenharia. No Brasil, até 2002, por exemplo, apenas 14% dos empre-
gos formais nessa área eram ocupados por mulheres, ao passo que nas áreas de
saúde, tais como odontologia, 51% eram ocupados por elas. (OLINTO, 2009).
Evidencia-se, assim, nessa polaridade de escolhas das mulheres por determi-
nadas áreas em detrimento de outras, denominado de fenômeno do labirinto
de cristal, que por sua vez, contribui para o fenômeno do teto de vidro, que
se refere à sub-representação das mulheres em postos de prestígio e poder,
mesmo nas carreiras consideradas femininas.
Em 2004, as ocupações da engenharia no Brasil somavam 147.231,
tendo variado 39,6% no período entre 2004 e 2009, alcançando
205.604 em 2009. (BRASIL, 2004, 2009). As vagas no mercado for-
mal de trabalho ocupadas por mulheres representavam 14,6%. Essa
participação evoluiu para, em 2009, 17,8% das ocupações totais da
engenharia – 3,2% pontos percentual maior que em 2004. Esses
indicativos sinalizam um processo de feminização no mercado da
engenharia em nível nacional.

Segundo os dados da RAIS, em 2009, havia 41.207.546 ocupações no


mercado formal de trabalho no Brasil. Desses, 205.604 são ocupações da enge-
nharia, representando 0,5% do total de vínculos formais no Brasil. As ocupações
da engenharia concentram-se na Região Sudeste, representando 62,4% do total
no Brasil.
Tradicionalmente a engenharia é uma profissão masculina, segundo
demonstram os dados da RAIS no período 2004-2009, entretanto,
é possível notar um crescimento contínuo da participação das
mulheres nas ocupações da engenharia. No Brasil, a participação
das mulheres evoluiu de 14,4% em 2004 para 16,2% em 2009; 1,8
pontos percentual maior, conforme RAIS 2004-2009.

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No período pesquisado o aumento das matrículas femininas nos cursos de


engenharia foi de 84%, em comparação ao masculino. Esses números permitem
inferir que está havendo um movimento em que a engenharia está lentamente
sendo incluída nas escolhas profissionais das mulheres.
Um exemplo que indica a inclusão da engenharia no rol de possibilidades
profissionais das mulheres vem da Escola Politécnica da USP. No espaço de
quarenta anos, entre 1950 e 1980 formaram-se 536 engenheiras e somente na
década de 1990, formaram-se 764. Ou seja, em dez anos, formaram-se 30% a
mais engenheiras que nas quatro décadas anteriores (FACCIOTTI, 2004).

O Rograma Ciência Sem Fronteiras no CEFET-MG

Com o objetivo de apresentar uma resposta às demandas sociais pela


busca do desenvolvimento tecnológico e de fomentar uma melhor qualificação
de sua força de trabalho nas áreas científicas tecnológicas, em meados do ano
2011, o Governo Federal criou o Programa Ciências sem Fronteiras (CsF).
O Programa propunha promover, consolidar, expandir e internacionali-
zar a CT&I no Brasil, com ações de formação de recursos humanos em CT&I
apostando na internacionalização da educação, por meio da mobilidade de
estudantes ao exterior, para a troca recíproca de conhecimentos. O Programa
CsF previa a oferta de 101 mil bolsas em quatro anos, para o intercâmbio de
estudantes, desde a graduação até o pós-doutorado, e estágios em universida-
des e empresas de diversos países.
O CsF priorizou ações nas áreas consideradas estratégicas para o desenvol-
vimento tecnológico e industrial do país, que abrange as engenharias e demais
áreas tecnológicas.
Em 2012 o CEFET-MG foi credenciado no Programa Ciência sem
Fronteiras e até o segundo semestre de 2014 enviou cerca de 700 aluno/as para
a mobilidade estudantil internacional. Dentre os países escolhidos pelos alunos
destacam-se, por ordem de prioridade, os Estados Unidos, seguidos pelo Reino
Unido, Alemanha e Canadá.
Confirmando as estatísticas oficiais da predominância masculina nas áreas
tecnológicas, dos quase 700 alunos/as enviados pelo CEFET-MG, para a mobili-
dade estudantil pelo CsF, 63% são do sexo masculino e 37% do sexo feminino.
Todavia, esse percentual feminino participante do CsF é considerável, quando
comparado ao número de mulheres matriculadas nos curso de engenharia.

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Podemos assim, inferem que existe um grande interesse das mulheres pela qua-
lificação internacional oferecida pelo CsF.
Sobre as dificuldades, discriminações e preconceitos pela sua condição
feminina, os relatos de algumas das egressas do Programa são animadores:
Não sofri nenhum preconceito quando participei do processo sele-
tivo, tampouco quando fazia o curso no exterior. Pelo contrário, os
alemães são muito receptivos e incentivam muito a gente. (Aluna
do curso de Engenharia de Materiais, na Alemanha).

Apesar de me sentir um pouco um “peixe fora d’água” numa sala


em que só havia duas mulheres, fui bem tratada lá fora. Tive certo
medo, o que é normal em uma situação nova, mas foi tudo muito
legal. (Aluna do curso de Engenharia Mecânica, na Inglaterra).

Sobre o aprendizado advindo da experiência, as alunas entrevistadas tam-


bém focam no desenvolvimento de competências comportamentais, tais como
autonomia, autoconfiança e ainda nas questões turísticas, culturais e aprendi-
zado do idioma.
O maior aprendizado foi pessoal. Aprendi a ser mais independente,
resolver meus problemas, ser mais paciente, já que para me fazer
ser entendida precisava ser por meus sentimentos em outra língua,
o que exigia muita calma. Também aprendi a ter mais pontualidade,
disciplina e foco. São atos que com qualquer alemão você aprende.
São muito determinados e focados, hora de trabalho é trabalho,
pausa é pausa (não continuam falando de trabalho) e horário, sem-
pre chegar no horário. (Aluna do curso de Engenharia de Materiais,
na Alemanha).

Os depoimentos coletados podem inferir que as relações de gênero estão


sendo bem dirimidas no âmbito do CsF. Porém, ações que incentivem mais
mulheres a se interessarem pelos cursos das áreas tecnológicas ainda preci-
sam ser viabilizadas, tanto em nível de políticas públicas quanto na própria
instituição.
Em um trecho de uma entrevistada, realizada em novembro de 2015 com
uma jovem Engenheira Mecânica, graduada em 2014, que atua como coorde-
nadora de suprimentos e equipamentos numa indústria pode-se perceber que
seguir na carreira da engenharia é um desafio ainda maior para as mulheres:

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Não tive apoio nenhum de meus familiares para a escolha da enge-


nharia. Quando perguntei meu pai o que ele achava de eu fazer
engenharia civil ele disse, “ótimo, você vai ser uma boa pedreira”.
Na visão dele eu não tinha nada que me meter com essa profissão.
Era coisa de homem. Eu tinha que buscar algo mais feminino.

Também, para avaliar a eficácia do objetivo do programa de possibili-


tar uma formação com qualidade de uma força de trabalho técnico-científica
altamente especializada, voltados para o aprendizado de novas tecnologias e
inovação será necessário um aprofundamento nas metodologias adotadas por
parte das instituições responsáveis.

Considerações finais

Foram evidenciados as dificuldades, os desafios, os avanços e oportu-


nidades experimentados por essas estudantes que, não obstante a lógica da
exclusão feminina das áreas técnicas e tecnológicas vem desafiando a cultura
patriarcal e traçando um novo perfil mais feminino da Ciência e Tecnologia no
Brasil. No entanto, observa-se que as fronteiras da desigualdade de gêneros na
área de CT&I estão se deslocando, mas ainda estão longe de serem rompidas.
É inegavelmente que a educação é importante para o desenvolvimento econô-
mico e social do mundo moderno e tem sido apontada como uma das questões
que podem possibilitar a redução das disparidades sociais e econômicas de um
país ou região.
Pesquisas indicam que, no Brasil, cresce cada vez mais a participação
feminina nas atividades da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) e nas enge-
nharias. Infere-se, também, que políticas públicas, por exemplo, o CsF, que vêm
sendo desenvolvidas no Brasil nos últimos anos esteja facilitando o acesso da
mulher à Educação Profissional, ao Ensino Superior e a inserção nas áreas de
C&T. Porém, a divisão sexual do trabalho não é algo novo, o que tem mudando
são as “faces” dessa divisão em determinados segmentos nos quais predomi-
nam a força de trabalho masculina ou feminina (QUIRINO, 2011).
A superação das diferenças entre homens e mulheres na educação, no
trabalho em geral, e na área de engenharia, em particular, requer o incentivo a
estudos que possam focalizar os diversos aspectos da divisão sexual do trabalho
que se estabelece na mais tenra idade – na definição de tarefas domésticas – até
as diferenças que se determinam ao longo da experiência escolar e ocupacional,

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incluindo as posições ocupadas nas mais altas hierarquias profissionais, assim


como na busca pela igualdade e equidade de gêneros.
A maior participação feminina nas engenharias pode implicar em transfor-
mações sociais e econômicas com impactos favoráveis para toda a sociedade,
por representar um maior contingente de força de trabalho disponível e pela
crescente escolarização evidenciada nesse grupo social.
Se de fato o Brasil pretende desenvolver-se economicamente, de forma
sustentável, é necessário um investimento massivo em setores como educação
e C&T. Além disso, torna-se fundamental estimular que metade da força de tra-
balho economicamente ativa participe desses setores estratégicos para o país.
Após o exposto, podemos inferir que, no Brasil, atuar na área de engenha-
ria é um desafio, principalmente para as mulheres. Sendo, então, a engenharia
uma área tradicionalmente masculina e que enfrenta tantos desafios, o que leva
uma mulher a escolher essa profissão? Certamente, é uma questão de difícil
resposta, que demanda mais estudos para ser compreendida no tocante às
subjetividades e objetividades que encerram os processos de escolarização e
escolhas profissionais desse grupo social específico. Espera-se que as infor-
mações e reflexões contidas no presente artigo possam fomentar o debate e
incentivar novas pesquisas na temática.

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A PERSPECTIVA DE RELAÇÕES DE GÊNERO, DESAFIOS PARA


ERGONOMIA: ATIVIDADES DA MULHER TRABALHADORA
QUE OCUPA CARGOS TRADICIONALMENTE MASCULINOS1

Mislene Aparecida Gonçalves Rosa


Mestranda em Educação Tecnológica - Bolsista CNPq
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
misleneag@gmail.com

Raquel Quirino
Pós-Doutora em Educação.
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.
Departamento de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica
quirinoraquel@hotmail.com

GT 16 - Relações de gênero, diversidade sexual, trabalho, tecnologia e educação


profissional: interlocuções, diálogos e desafios contemporâneos.

Resumo

Este artigo, de natureza teórica e empírica, descreve e aborda algumas con-


dições de trabalho da mulher trabalhadora, sob a perspectiva de relações de
gênero e intervenções ergonômicas. A partir da década de 1970, intensificou-
-se a participação da mulher no mercado de trabalho e, nos últimos anos elas
deixaram de atuar somente naquelas áreas tipicamente femininas para ocupar
espaço em profissões ditas masculinas que exigem força e resistência. Os pro-
blemas abordados são as dificuldades encontradas pelas mulheres trabalhadoras

1 Pesquisa realizada com recursos do Programa Institucional de Fomento à Pesquisa do CEFET-MG


(PROPESQ) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

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entrevistadas nesses ambientes laborais e a necessidade de adaptações ergonô-


micas dos postos de trabalho, de forma a atender as suas necessidades pessoais
para a execução de suas atividades de forma eficiente e segura.
Palavras-chave: RELAÇÕES DE GÊNERO; ERGONOMIA; DIVISÃO SEXUAL
DO TRABALHO.

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Introdução

Reflexões sobre as relações de gênero e a ergonomia são apresentadas do


ponto de vista da mulher trabalhadora e as principais dificuldades enfrentadas
por elas em áreas e profissões tipicamente masculinas, sob o aspecto ergonô-
mico do trabalho.
Realizou-se um levantamento teórico a partir de trabalhos científicos que
discutem a inserção da mulher no mercado de trabalho selecionando trechos
de entrevistas realizadas por suas autoras para correlacioná-los com a teoria
estudada. Também foram realizadas observações diretas das atividades de tra-
balho de mulheres operárias, valorizando as informações obtidas em conversas
informais.
Na década de 1970 observou-se um forte movimento de incorporação
das mulheres no mercado de trabalho e, nos últimos anos, tem-se registrado a
tendência do ingresso de mulheres em cargos tradicionalmente ocupados por
homens (DIEESE, 2012). No entanto a mera descrição de um cargo não equi-
vale àquilo que realmente é feito pelo (a) trabalhador (a), pois, a subjetividade
humana faz com que, mesmo quando homens e mulheres exercem as mesmas
atividades, as tarefas realmente realizadas na prática, são diferentes. Por isso a
abordagem ergonômica, a partir da perspectiva de relações de gênero, torna-se
fundamental para analisar as situações de trabalho, desvelando a vivência das
trabalhadoras em relação à organização do trabalho e evidenciar aquilo que é
fonte de pressões, de dificuldades e de desafios, suscetíveis de gerar o adoeci-
mento e acidentes da mulher operária.
Apesar de já estarem presentes em setores industriais tipicamente mascu-
linos, tais como a mineração (QUIRINO, 2011) e a construção civil (RESENDE,
2012), as mulheres enfrentam, além das dificuldades culturais e sociais, as
dificuldades de ordem física, por esses setores serem fundamentalmente assen-
tados em atividades pesadas e que exigem força. Nesse cenário é necessário
discutir como a ergonomia pode contribuir para melhorar a qualidade de vida
no trabalho em uma perspectiva de relações de gênero, porque, por mais
que a igualdade de direitos seja respeitada, homens e mulheres têm subjeti-
vidades e necessidades biológicas distintas no ambiente laboral, quer seja nas
condições ergonômicas, na organização do trabalho, ou na especificação dos
Equipamentos de Proteção Individual (EPI) necessários à atividade desenvolvida.

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Divisão sexual do trabalho e relações de gênero

Hirata e Kergoat (2008) defendem que a divisão sexual do trabalho é


resultante das relações sociais, que destinam aos homens o serviço produtivo e
às mulheres o reprodutivo e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das
funções com maior valor social adicionado, nas quais as as ompetências ditas
femininas não são reconhecidas nem remuneradas; são consideradas atributos
naturais da mulher, na medida em que não foram adquiridas pela formação
profissional.
No entanto, tal assertiva foi negada por Quirino (2011) quando, em sua
pesquisa, constatou que as competências “ditas femininas” são extremamente
valorizadas no mundo do trabalho da mineração. Porém, não obstante a essa
“pseudo valorização” das competências femininas concluiu que tais habilida-
des, construídas nas relações sociais travadas no ambiente doméstico, não têm
sido levadas em consideração para a promoção delas a cargos de comando,
prestígio e poder.
Embora observe-se o predomínio das mulheres nas áreas estereotipa-
das como femininas (serviços domésticos, educação, saúde e serviços sociais,
por exemplo), destaca-se o expressivo percentual de mulheres ocupadas na
indústria de transformação (12,4%), setor tipicamente masculino, conforme
pesquisa divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos, DIEESE (2012, p. 217).
Portanto, analisar as condições ergonômicas sob o ponto de vista da
mulher trabalhadora em empresas de grau de risco elevado, para identificar pos-
síveis elementos discriminatórios na perspectiva de relações de gênero, torna-se
importante para a promoção da igualdade de oportunidades entre homens e
mulheres.

Ergonomia

Conforme Daniellou (2004) a Ergonomia é ao mesmo tempo um conjunto


de conhecimentos sobre o ser humano – fisiologia, psicologia, funcionamento
cognitivo – e uma prática de ação, sendo assim pode-se entender a Ergonomia
como sendo o estudo científico da relação entre o (a) trabalhador (a) e seus
meios, métodos e espaços de trabalho. Os trabalhos em Ergonomia têm uma
dupla vertente: desde a redefinição de especificações da compra de mobiliário

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e ferramentas de trabalho - Ergonomia física; até a compreensão dos aspectos


mentais da atividade de trabalho das pessoas, homens e mulheres.
No posto de trabalho as ferramentas e elementos devem estar de acordo
com as dimensões físicas do ocupante do posto de trabalho, pois, a inadequa-
ção antropométrica produz um desequilíbrio postural expondo o (a) trabalhador
(a) à posições desconfortáveis, repetitividade dos gestos, maior esforço despen-
dido, fatores causais das doenças ocupacionais (VIDAL et al., 2000).
Todavia a organização do trabalho também deve ser considerada, enten-
dendo a Ergonomia como uma “disciplina para ação sobre o real” (LIMA, 2011,
p.36). Em princípio, a Ergonomia organizacional encontraria muitas dificulda-
des, pois não está fundamentada numa objetividade plena, no entanto, constitui
o campo no qual o (a) trabalhador (a) é percebido como um agente competente
e organizado num sistema de produção, gerando assim maior satisfação no
trabalho.
Em sua atividade de trabalho o ser humano interage com os diversos
componentes do sistema de trabalho, com os equipamentos, instrumentos,
mobiliários e questões subjetivas como hierarquia e gestão organizacional.
Sabe-se que os (as) trabalhadores (as) toleram mal as tarefas fragmentadas, com
tempos curtos para execução, principalmente quando esse tempo é imposto
por uma máquina ou pela gerência; sentem-se bem quando solicitado a resol-
verem problemas ligados à execução das tarefas; logo a Ergonomia busca tratar
o (a) trabalhador (a) como um ser que pensa e age, não apenas como mero
executor e extensão da máquina (VIEIRA et al., 2008).

Adaptação das condições de trabalho

Segundo Santos e Fialho (1998), postos de trabalho devem estar em harmo-


nia com a característica física do ocupante, também a Norma Regulamentadora
17 no item 17.1, determina “parâmetros que permitam a adaptação das condi-
ções de trabalho” (NR-17, 1990). Nesse sentido, o primeiro questionamento das
empresas deveria ser: quem é este ou quem são esses (as) trabalhadores (as)
para quem vou adaptar o trabalho?
Hirata e Kergoat (1994) afirmam que a classe operária tem dois sexos, esta
afirmação contraria a tendência em apresentar uma imagem de classe operária
relativamente homogênea. As autoras afirmam que as condições de trabalho
dos trabalhadores e das trabalhadoras são quase sempre assimétricas, portanto

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analisar em termos de unidade de classe operária sem considerar o sexo social


poderá levar a um conhecimento falso das relações de trabalho.
Segundo Quirino (2011), o setor de mineração vem gradualmente inserindo
mulheres em suas áreas técnico-operacionais. Conforme entrevista realizada
pela autora com um Gerente de Recursos Humanos e um Diretor Operacional,
Não há na empresa nenhuma formalização quanto à contrata-
ção de homens ou mulheres para quaisquer áreas ou funções. A
decisão final é do gestor, dono da vaga. Na maioria das vezes é o
supervisor que escolhe com quem quer trabalhar. A variável ‘sexo’
não está presente nas formalizações de contratação da empresa.”
(Gerente de RH)

A adequação de espaços físicos não é justificativa para a não con-


tratação de mulheres na indústria mineral. É preciso apenas definir
diretrizes claras para contratação e adequação desses espaços.
Quanto se tem o olhar voltado para os resultados, o que importa é o
talento, a competência da pessoa. Não se é homem ou mulher. Os
investimentos em espaços físicos adequados são mínimos quando
comparados ao retorno que se pode obter. (Diretor Operacional)

A partir dos relatos dos entrevistados por Quirino (2011) há de se refletir


até que ponto preocupações de natureza ergonômica se fazem presentes nas
políticas de contratação de mulheres pelas empresas. Constata-se que apesar
de os entrevistados afirmarem que não existe impedimento para contratação
de mulheres, a autora adverte que devido a inadequação dos espaços físi-
cos tornou-se um hábito contratar apenas homens para as áreas operacionais
(QUIRINO, 2011, p.75). O que, certamente, compromete a inserção das mulhe-
res nesse setor produtivo.
Resende (2012, p.22), discute a inserção de mulheres nos canteiros de
obras da Construção Civil. Segundo a Norma Regulamentadora 18, referente
às condições e meio ambiente de trabalho na indústria da Construção Civil,
canteiro de obra é definido como “área de trabalho fixa e temporária, onde se
desenvolvem operações de apoio e execução de uma obra”. A autora questiona
as entrevistadas sobre como é trabalhar no canteiro de obras na Construção
Civil:
Facilidades tipo assim, a mulher ela é mais detalhista, entendeu?
Então a gente para fazer um esquadro, para puxar um ponto de

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nível, a gente olha mais detalhe a gente faz a coisa mais bem feiti-
nha, entendeu? Agora a dificuldade é a questão de peso, entendeu,
porque você não pode escolher trabalho, entendeu? Hoje, você tá
aqui tirando um pontinho, mas está chapando uma massa, enten-
deu? A dificuldade é o peso.” (Pedreira)

O ponto fraco, você pega muito peso. É cansativo, né? É muito


estressante. O ponto positivo, assim, é que você entra no mer-
cado... mulher pedreira, gente é uma coisa do outro mundo. Você
aprende coisas que você jamais sonharia em aprender, entendeu?
O difícil mesmo é o peso. É mais pesado, entendeu? (Servente)

No que se refere às tarefas exercidas no canteiro de obras, os relatos


citados estão de acordo com Tomasi (1999) quando enfatiza que as tarefas são
perigosas, insalubres e demandam uma mão de obra jovem, forte, corajosa e
de boa vontade não só para conviver com essas condições, como também para
adquirir os conhecimentos necessários para a sua execução.
As entrevistadas também confirmam os pressupostos de Antunes (1999)
ao afirmar que as empresas se apropriam intensificadamente da polivalência e
multiatividade do trabalho feminino, da experiência que as mulheres trabalhado-
ras trazem das suas atividades realizadas na esfera do trabalho reprodutivo. Para
o autor, ainda que não tenham consciência desse fato, as próprias trabalhadoras
exaltam tais competências: detalhamento, agilidade, destreza, precisão, fineza,
obediência, paciência, disciplina, responsabilidade, dedicação, delicadeza.
Enfim, as mulheres têm acesso a postos de trabalho tradicionalmente mas-
culinos, mas as relações de trabalho aumentam a precariedade e a instabilidade
de uma grande proporção da força de trabalho feminina, criam e/ou reprodu-
zem condições de trabalho precarizada e um dos resultados desse processo é
que para terem êxito na profissão a “mulher precisa ser considerada homem”.
Constata-se que não basta identificar as desigualdades, é preciso problematizar
as relações sociais de sexo travadas no ambiente laboral de forma coerente e
promover ações coordenadas para transformar as práticas sociais.

Considerações finais

A preocupação com a ergonomia nos ambientes de trabalho tem assumido


relevância nas empresas, pois a definição da ergonomia coloca em primeiro
plano seu objeto (interação trabalhador (a) e atividade no contexto de trabalho)

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e seu objetivo de propor medidas concretas para uma melhor adaptação dos
meios tecnológicos de produção e dos ambientes de trabalho, contribuindo
para a produtividade e para a qualidade de vida do (a) trabalhador (a).
A opção pelo estudo teórico e pesquisa qualitativa acerca dos temas
necessários à compreensão do fenômeno estudado - relações de gênero no
ambiente de trabalho e fatores ergonômicos -, permitiu identificar e analisar
as percepções de mulheres sobre suas próprias condições de trabalho. Visa
também contribuir para que ações promotoras de uma real adaptação das
condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, de
modo a proporcionar um máximo de conforto, segurança e desempenho efi-
ciente, sejam implantadas, conforme os parâmetros estabelecidos na Norma
Regulamentadora 17.

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EXPERIÊNCIAS DE VIDA DE VIADOS DO INTERIOR.


SILÊNCIO E RESILIÊNCIA

Maurício Pereira Gomes


Mestre em História Cultural pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC
gomesupo@hotmail.com

GT 13 - Por uma nova história do gênero e da sexualidade

Resumo

Nesta comunicação reuno alguns aportes teóricos da pesquisa que estou desen-
volvendo sobre a trajetória de vida de homens homossexuais de minha geração,
que vivem em pequenas cidades do interior do Estado de Santa Catarina, no
Brasil. Explorando suas experiências, procuro identificar, entender e problema-
tizar como, na trajetória de vida de cada um deles, em meio a determinadas
condições históricas e sociais, houve o desenvolvimento de formas alternati-
vas de subjetivação, negociação, resistência e agência, desafiando uma cultura
heterossexual hegemônica. Ao final, sinalizo algumas impressões preliminares
tomadas no trabalho de campo (entrevistas) que ainda está sendo realizado,
com realce às vivências de silêncio e resiliência que marcaram e persistem em
suas trajetórias.
Palavras-chave: viados; experiências; interior; silêncio; resiliência.

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Introdução

A permanência no interior. Experiências de vida uma geração. Os viados.

Compreedendo a sexualidade como algo constituído na sociedade e na


história, e permeada por relações de poder, que se estabelecem mediante práti-
cas e relações e cujos conflitos se dão no campo discursivo (FOUCAULT, 2011),
meu projeto de tese comporta uma escolha deliberada pelo estudo da trajetória
de sujeitos homossexuais que vivem em cidades do interior. Assim, leva em
conta e em alguma medida pretende desafiar a noção difundida no âmbito
das ciências sociais de que o contexto urbano, por propiciar o anonimato e/ou
ampliar uma rede de sociabilidades, pode oferecer mais liberdade e, com isso,
aumentar o poder de agência dos homossexuais.
Estou particularmente interessado em homossexuais que integram a
minha geração, categoria que uso aqui no sentido de “um coletivo de indiví-
duos que vive uma determinada época ou tempo social, tem aproximadamente
a mesma idade e compartilha alguma forma de experiência, ou vivência, ou
tem a potencialidade para tal” (BRITO DA MOTTA, 2010, p. 229); mas, com a
cautela proposta por Camilo Braz (2015), segundo o qual é preciso “evitar uma
suposta homogeneidade de experiências e memórias de uma mesma ‘geração’,
uma vez que as atuações de distintos marcadores sociais da diferença evocam
sempre diferentes condições de existência” (p. 518).
Atento à lição de que a nós, intelectuais das ciências sociais e humanas,
cabe o desafio de produzir um saber insurgente ao sul do equador (MISKOLCI,
2014), e assumindo minha condição de homossexual, me aproprio da expressão
viado - corrente em minha geração, ouvida, temida e, ao mesmo, tempo dita
em minha infância, juventude e idade adulta. E, ao lado de seu substantivo - a
viadagem - a coloco em discurso, incorporando-as como categorias teóricas
centrais em minha tese. Assim proponho levando em conta a lição de Judith
Butler (1997):
Uma pessoa não é apenas determinada pelo nome que é chamada.
Ao ser chamada por um nome de insulto, uma pessoa é humilhada
e menosprezada. Mas o nome contém outra possibilidade tam-
bém: ao ser insultada, à pessoa é dada, paradoxalmente, uma certa
possibilidade para a existência social, iniciada na vida temporal
da linguagem que excede o objetivo prévio que anima o insulto.

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Assim, a injúria pode aparecer para fixar ou paralisar, mas também


produz uma inesperada e capacitada resposta. Ser chamado é ser
interpelado, logo o insulto corre o risco de inaugurar um sujeito no
discurso que usa a língua para reagir à ofensa (BUTLER, 1997, p.2).1

Antevejo nesta proposta a dupla vantagem de abandonar a expressão gay,


tão vulgarizada, mas pouco problematizada, colada que é com a noção de
identidade que está integrada (de modo conservador) nas camadas médias; e,
também, de dar relevo e centralidade à nossa realidade local, ao contexto social
e cultural brasileiro, nossa experiência marginal (PELÚCIO, 2014). Justamente
por isso é importante destacar e refletir sobre essa peculiaridade específica do
termo viado em comparação com seu congênere queer, outro maldito, mas da
cultura anglo-saxônica:
Queer é um nome da língua inglesa que também é um insulto res-
significado. Mas queer nunca possuiu essa história de erro e desvio
que o nome viado possui. Queer sempre foi estranho/esquisito e
continua a ser (apesar do uso político mais conotado atualmente).
Viado não perdeu o sentido de insulto nem o posto de maior ofensa
atribuída a um homem. Queer não é palavrão de escolha para
insultar alguém como viado ainda é. Essa diferença só engendra
polissemia em nossa língua, portanto em nossa própria cultura. Nós
precisamos nos haver com o fato de nossa sociedade reservar a
algumas pessoas uma ontologia do menosprezo baseada na injúria,
no erro, no desvio e na desumanização (SILVA, 2014, p. 5).

Resistência a uma convocação heteronormativa.

Meu corpus de pesquisa, composto por homens de minha geração que


vivem em cidades do interior e que são abertamente homossexuais, está se reve-
lando rico para um estudo interessado em entender como em suas experiências
de vida resistiram à convocação para uma padronização heteronormativa, tal
como teorizado por Michel Warner e Lauren Berlant (2002), cabendo, aqui,
considerar o estudo de um conceito fundamental em minha futura tese:
Por heteronormatividad entendemos aquellas instituciones, estruc-
turas de comprensión y orientaciones prácticas que hacen no sólo que la

1 Tradução de Leandro Soares da Silva (2014, p.2).

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heterosexualidad parezca coherente – es decir, organizada como sexualidad


– sino también que sea privilegiada. Su coherencia es siempre provisional y su
privilegio puede adoptar varias formas (que a veces son contradictorias): pasa
desapercibida como lenguaje básico sobre aspectos sociales y personales; se
la percibe como un estado natural; también se proyecta como un logro ideal o
moral (BERLANT; WARNER, 2002, p. 230).
Richard Miskolci (2009, p. 182) aprofunda a exata compreensão do termo
explicando que a heterossexualidade - vista como um modelo a ser seguido - pas-
sou por dois períodos históricos. Um primeiro, que se estendeu desde o final do
século XIX a meados do século passado, em que a homossexualidade através dos
dicursos médicos e legais foi inventada, patologizada e criminalizada, sendo a hete-
rossexualidade considerada compulsória. E um segundo momento, iniciado com a
descriminalização da homossexualidade em diversos países, em meados do século
XX e que ainda é vivenciado, em que prevalece a heteronormatividade. Com ela,
a cobrança social e cultural não mais é para que os homossexuais deixem de sê-lo,
mas que vivam como os heterossexuais, o que leva o professor a afirmar:
Muito mais do que o aperçu de que a heterossexualidade é com-
pulsória, a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que
fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo
aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto.
Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normaliza-
dos, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo
histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos
para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do
modelo supostamente coerente, superior e ‘natural’ da heterosse-
xualidade (MISKOLCI, 2009, p. 156-157).

A necessária problematização dialoga com o paradoxo apontado por


David M. Halperin (2012) e que também foi vivenciado no Brasil no processo
histórico de formação e afirmação de identidades homossexuais: ao mesmo
tempo em que houve uma constante tensão entre um anseio por reconheci-
mento e integração social, com a atuação de processos de normalização e
controle, por outro lado, uma cultura renitente em sua relação com as experi-
ências de rejeição e abjeção,2 se reelaborou de modo contínuo, agregando e

2 “Na análise cultural, a noção de abjeto é estendida para abarcar tudo aquilo que ameaça o conforto
da sensação de identidade e ‘mesmidade’: o monstruoso, o corpo feminino, o homossexual, a deca-

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fazendo novos usos de produtos culturais múltiplos, muitos dos quais de uma
cultura hegemônica, branca e heterossexual.
São experiências que não serão encaradas como uma prova incontestável
e uma explicação acabada do que era a viadagem. Esta seria uma abordagem
nada queer, eis que teria por pressuposto a existência de uma identidade dada
de antemão e fixa. Além disso, redundaria na percepção da experiência como
uma evidência para o modo diferente de ser e agir dos viados, como se isso
fosse algo igualmente dado, pronto e acabado. Pelo contrário, como explicado
por Joan Scott (1998, p. 301), ao invés de tomarmos a experiência como a
evidência que sustenta uma explicação, devemos ter em mente que a própria
experiência é algo resultante de um conjunto de circunstâncias, ou seja, é cons-
truída, social, histórica e discursivamente (através da linguagem).
Tais pressupostos levam Richard Miskolci (2009) a afirmar:
[...] Não são sujeitos que têm experiências, mas, ao contrário, são
experiências que constituem os sujeitos. Assim, elas criam sujeitos
marcados por processos sociais que precisam ser reconstituídos,
explicados e analisados pelo pesquisador. A invisibilidade da expe-
riência esconde sua criação social e histórica: os sujeitos marcados
pela diferença (p. 173).

A viadagem e as experiências daqueles homossexuais são encaradas,


assim, como resultantes de processos sociais e culturais específicos, localizados
e datados. Processos contínuos e interligados de normalização que, mediante
lógicas classificatórias e interrelacionadas de inferiorização, criaram e criam a
regra (os sujeitos naturais e normais) e as exceções, os outros (no caso os via-
dos), marcados pela diferença e estigmatizados (MISKOLCI, 2009, p. 172-173).
Essas são ferramentas importantes para se pensar e pesquisar a constru-
ção de subjetividades viadas, tal como pretendo na minha pesquisa. Afinal, ao
se apropriar das noções de experiência e dos processos de normalização, dou
destaque às práticas sociais e às relações de poder que nelas estão implicadas,
às formas de sujeição e controle, mas, ao mesmo tempo, ao que mais me inte-
ressa, aos espaços de resistência e agência.

dência, o corrompido e o pútrido, o desfigurado, o canibalismo, a perversão e a morte, o horroroso”


(SILVA, 2000, p. 13).

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Considerações finais

O trabalho de campo até aqui realizado está revelando uma complexi-


dade muito maior daquela imaginada, com diferentes vivências e estratégias
no convivio e eventual desafio a processos permanentes de normalização. De
modo preliminar e mais genérico, já posso afirmar que, na maioria das traje-
tórias de vida que tive oportunidade de ouvir e (pré) analisar, não obstante os
espaços e visibilidades conquistadas há a presença constante, tanto no passado
como no presente, das práticas relacionadas com o silêncio (não referência à
homossexualidade). Talvez essas tais circuntâncias estejam a indicar a necessária
conjugação da noção de resistência à de resiliência, realçando os componente
de tenacidade e elastecidade constantes da primeira. Categorias teóricas que
deverão ser desenvolvidas e problematizadas.

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Referências

BERLANT, Lauren; WARNER, Michael. Sexo en público. In: MÉRIDA JIMÉNEZ, Rafael
M. Sexualidades transgresoras. Barcelona: Icaria, 2002, p.229-257.

BRITO DA MOTTA, Alda. A atualidade do conceito de gerações na pesquisa sobre o


envelhecimento. Sociedade e Estado, v. 25, n. 2. Brasília, UnB, maio-agosto de 2010.

BRAZ, Camilo. Entre sobreviventes e bichas dos tempos dourados – memória, homos-
sexualidade e sociabilidade na cidade de Goiania, Brasil. Cadernos Pagu, Campinas,
nº 45, julho-dezembro de 2015, p. 503-525.

BUTLER, Judith. Excitable speech. Nova York, Routledge, 1997.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro:


Graal, 2011. 176p.

HALPERIN, David. How to be gay. Cambridge and London: Harvard University Press,
2012. 549p.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da nor-


malização. Sociologias, Porto Alegre: ano 11, nº 21, jan-jun. 2009, p. 15-182.

______. Um saber insurgente ao sul do equador. Periódicus. 1ª edição, Salvador,


maio-outubro/2014, p. 1-25.

PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer
no Brasil. Periódicus. 1. ed. Salvador, maio-outubro/2014, p. 1-24.

SCOTT, Joan. A invisibilidade da experiência. Projeto História.São Paulo, nº 16, 1998,


p. 297-325.

SILVA, Leandro Soares da. Vinte quatro notas de viadagem. Periódicus. 2. Ed. Salvador,
novembro/2014-abril/2015, p. 1-11.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria Cultural e educação – um vocabulário crítico. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. 125p.

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VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM TRAUMA CULTURAL

Martina Von Mühlen Poll


Mestrandas em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria;
tinavmp@gmail.com

Fernanda de Oliveira Alves


Mestrandas em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria;
falves.psi@gmail.com

Cláudia Maria Perrone


Doutora, prof. no curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria
cmperrone@ig.com.br

GT 08 - Gênero, diversidade sexual, emoção e moralidade.

Resumo

A violência de gênero está presente na sociedade ao longo de sua história, há


a existência de um padrão moral repetitivo de violência contra grupos minori-
tários como é o caso da mulher, dos homossexuais e pessoas transexuais que
permeia as relações de gênero e poder na sociedade contemporânea. Esse
problema constitui um trauma cultural. O presente estudo tem o objetivo de
analisar e discutir a violência entendida sob a forma de um trauma cultural de
gênero. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, em que se realiza uma reflexão
com base na teoria psicanalítica. A sociedade contemporânea não desenvolveu
um olhar para as questões do trauma, o que aponta para o fato de que a vio-
lência contra estas minorias constitui o ponto cego da cultura, na qual o trauma
não é reconhecido.
Palavras-chave: trauma; violência de gênero; cultura; normatividade;
invisibilidade.

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Introdução

A violência de gênero está presente na sociedade ao longo de sua história,


constituindo uma questão complexa e multifacetada que viola os direitos huma-
nos das vítimas. No Brasil, as mulheres que sofrem violência possuem como
amparo a Lei Maria da Penha, que constata como violência doméstica e familiar
contra a mulher cinco tipos de violências às quais as mulheres estão submeti-
das. Essas são: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (BRASIL,
2006). Esta lei não se refere à proteção às mulheres transexuais, ficando a cargo
subjetivo de alguns juízes entenderem que violências sofridas por estas tam-
bém se classificam como violência doméstica e devem ser abarcadas pela lei.
Soma-se a isso a luta do movimento LGBT em transformar a homofobia em
crime para que assim exista amparo legal para os indivíduos que sofrem violên-
cias de gênero.
Felman (2014) observa que a violência de gênero não é cometida somente
contra a sua vítima direta, ferindo toda a sociedade, uma vez que viola as leis
estabelecidas para o respeito mútuo entre os cidadãos. Assim, questionamo-nos
sobre as consequências da violência para a vítima, para as relações que ela
estabelece e para a sociedade. Na busca por ampliar o olhar sobre a temática e,
principalmente sobre seu encadeamento com a cultura e como as relações de
gênero se configuram nela, somos levados as considerações feitas por Felman
(2014), o qual, ao fazer uma relação entre os estudos de trauma, violência e
história, situa a violência de gênero como um trauma cultural.
Freud, em seus escritos a partir de 1920, traz o trauma como sendo o
resultado de um excesso pulsional no psiquismo que se sobrepõe a capaci-
dade de ligação e elaboração. Essa energia pulsional é incapaz de obedecer ao
princípio do prazer e permanece, então, sob a sua forma não ligada, não con-
seguindo transformar-se em uma representação e assim ser dotada de sentido
e significado. Esse excesso pulsional pode ser causado por um evento externo,
como é o caso de um ato de violência. Assim, o trauma não pode ser transmi-
tido por meio de palavras na forma de um relato organizado, o que lhe confere
um caráter de invisibilidade perante a cultura (FREUD, 1920).
Além disso, a cultura ao não ver o trauma, repete-o, pois assim está
reafirmando seu caráter de irrepresentabilidade e invisibilidade, refletindo na
estrutura repetitiva da violência de gênero dentro das relações estabelecidas
na sociedade. Acrescentamos ainda que, ao não conseguir ver e reconhecer o

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trauma, ele se torna, assim, um trauma cultural que diz respeito ao inconsciente
da cultura (FELMAN, 2014).
Com base nessas considerações e tendo em vista a importância e a neces-
sidade de debater sobre a amplitude das questões que perpassam as relações
de gênero, o presente estudo tem o objetivo de analisar e discutir a violência
contra a mulher, transexuais e homossexuais, entendida sob a forma de um
trauma cultural de gênero. Para tanto, consiste em uma pesquisa qualitativa,
com a busca de autores que abordam a temática. Realizou-se uma reflexão em
cima do que os autores trazem sobre o assunto tendo como guia para isso a
teoria psicanalítica.

O trauma da violência de gênero

Para compreender a complexidade da violência de gênero é preciso que


tenhamos o entendimento de gênero como algo desnaturalizado e não perten-
cente às diferenças biológicas. Entendemos gênero como uma relação política
que é gerada no campo discursivo como um efeito da linguagem, compreen-
dendo também as relações de poder construídas historicamente (NARVAZ e
KOLLER, 2007). Dentre as possíveis consequências da violência, traremos, aqui,
o trauma psicológico.
Freud (1920) fala que o trauma é causado por um evento que rompe todas
as defesas do aparelho psíquico. Dessa forma, o psiquismo é invadido por uma
sobrecarga de energia pulsional que excede sua capacidade de ligação. Tal
energia permanece não ligada a nenhuma representação, não sendo reconhe-
cida e associada pelo psiquismo (LEJARRAGA, 1996). A não representação faz
com que a experiência traumática não consiga ser assimilada como uma memó-
ria constituinte do sujeito e, portanto, incapaz de ser organizada e transmitida
sob a forma de uma narrativa tradicional (MALDONADO e CARDOSO, 2009).
Assim, os acontecimentos traumáticos não conseguem ser articulados e dotados
de sentido pelos sujeitos, não havendo palavras capazes de transmitir a dimen-
são do que foi vivido, bem como, não conseguem ser convertidos em emoções
fidedignas à magnitude do que vivenciaram.
Com base nessas considerações, observamos a dificuldade de transmitir o
trauma e de compartilhá-lo socialmente por meio da emoção e da linguagem, o
que lhe confere um caráter de invisibilidade perante as relações e à sociedade,
apesar de se manifestar sob vias que não as representacionais e trazer graves

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repercussões. Nesse sentido, Felman (2014) fala de uma cegueira cultural em


ver o trauma de gênero, refletindo em uma sociedade que não vê suas evidên-
cias nem seus danos causados, tão pouco consegue dimensioná-los. Pelo fato
de não conseguir ser representado e significado no momento em que ocorre,
o trauma é pleno em ressonâncias, sinalizando a falta do elemento temporal
(LEJARRAGA, 1996). Assim, as marcas deixadas pelo evento traumático insta-
lam no psiquismo um presente contínuo.
Com isso ressaltamos a gravidade da violência de gênero, visto que o
sofrimento desencadeado se estende ao longo da vida da vítima. O invisível do
trauma corresponde a uma falha de comunicação dentro de relações de gênero
e se manifesta na dinâmica e nos acontecimentos das relações sociais.
Podemos refletir que uma das razões para tal é a posição ocupada por
estas minorias na cultura. Como exemplo, Kehl (1998) aponta que a relação
entre a mulher e a feminilidade foi pautada, desde suas origens em nossa socie-
dade, na determinação de um lugar social comum ao feminino na família e no
espaço doméstico. Diante disso parece não haver uma preocupação da cul-
tura com as questões relacionadas à vida pública da mulher. Outro aspecto
importante que entra em questão nesta invisibilidade do trauma causado pela
violência de gênero é a objetificação e opressão do corpo da mulher, que por
vezes passa a ser colocado em um lugar de livre disponibilidade perante seu
agressor.
Homossexuais e transexuais também são colocados pela cultura em uma
posição diferente ao padrão heteronormativo hegemônico, no qual há uma não
aceitação destas identidades. Arán (2006) traz que a transexualidade, por ser a
não conformidade entre sexo e gênero, ainda é tratada como patologia pelos
discursos da saúde e também pela psicanálise. Entendemos que estes discursos
constroem saberes e padrões normativos que dizem respeito a uma moralidade
do que é aceitável e do que não o é. Com isso podemos pensar que a não
aceitação destas identidades corre o risco de se refletir como violência e por
consequência como um trauma de gênero na cultura.
O trauma não comporta a possibilidade de esquecimento. Maldonado e
Cardoso (2009) ressaltam o caráter literal das manifestações do trauma, fazen-
do-se presente nos atos e nas manifestações corporais. Em termos de cultura
esse traço também cabe, visto a restrição da linguagem e das emoções para se
referir à violência de gênero e a literalidade das falas que se prendem aos fatos
concretos (FELMAN, 2014).

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Felman (2014) aponta para uma cegueira cultural em ver o trauma, refle-
tindo em uma sociedade que não vê o trauma de gênero e, além disso, vira as
costas para suas manifestações e consequências. Assim, o discurso das vítimas
e da cultura sobre os traumas de gênero permanece, até a atualidade, um dis-
curso esvaziado, onde a capacidade de representação não se dá e a repetição
dos casos de violência de gênero ocorre diariamente.

O trauma de gênero na cultura

A partir destas constatações nos questionamos sobre o que esse fato diz
sobre a nossa cultura e as relações de gênero nela construídas. Entendemos que
as raízes disso podem ser encontradas na estrutura da cultura que é construída
por moralidade e normatividade que dizem sobre as condutas dos sujeitos e
que possuem repercussões no viver e na forma de construção e de acolhimento
das emoções pela sociedade.
A violência de gênero acaba por ser legitimada por parte da sociedade,
muitas vezes encobrida sobre o véu do casamento, no qual as relações de
gênero são vivenciadas de maneira traumática, visto que a violência sofrida
acaba por ser abafada e vista como naturalizada por seus membros e pela
sociedade (FELMAN, 2014). Assim, torna-se um tema que não é discutido com
a profundidade necessária. Tanto mulheres quanto homossexuais e transexu-
ais estão submetidos a um julgamento social que manifesta uma estranheza
quanto à manifestação destas identidades na cultura, o que aumenta mais ainda
a cegueira em reconhecer o que de fato significa o trauma de gênero e o que
de fato ele diz sobre as relações e a sociedade.
Okin (2008) aponta que nos debates contemporâneos sobre gênero há
uma tendência a separar questões públicas de questões privadas, separando-se
assim o pessoal do político. Para a autora tal percepção chega ao ponto de o
político e o público serem discutidos de maneira isolado ao que é privado ou
pessoal. Esta dicotomia entre público e privado está presente originalmente na
divisão de trabalho, que designava ao homem as ocupações da esfera pública,
econômica e política e às mulheres a esfera privada da domesticidade e repro-
dução (OKIN, 2008). O que acaba por colaborar com a ideia de que os traumas
sofridos dentro de relações privadas, como o casamento por exemplo, aca-
barem por não serem reconhecidos como questões que devem ser discutidas
coletivamente, reforçando, assim, a invisibilidade da violência de gênero.

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Soma-se a isso a ideia de que “grande parte da experiência real das “pes-
soas” enquanto elas viverem em sociedades estruturadas por relações de gênero,
de fato depende de qual é seu sexo” (OKIN, 2008, p.310). Para Narvaz e Koller
(2007) as práticas e produções discursivas acabam por legitimar desigualdades
de gênero e normalizar papéis e lugares de gênero nas relações sociais dos
sujeitos, sendo estas sexuais, afetivas ou familiares.
Felman (2014) fala que o ato de ver vai além do fisiológico e torna-se
um ato inconscientemente político. Com base nisso, refletimos o que habita o
inconsciente cultural que confere a cultura a sua deficiência em ver os traumas
de gênero. O autor aponta o fato de existir uma espécie de prescrição política
para não ver a violência de gênero, refere, ainda, que tal prescrição que enco-
bre a visão é motivada pelo ódio. Assim, o ódio que não é reconhecido pela
cultura como tal e encontra sua forma de expressão na violência psicológica,
física e sexual, por exemplo.
O ódio permanece de forma latente na cultura o que dificulta a construção
de discussões por parte da sociedade sobre o que está no cerne da violência
de gênero que habita as relações de gênero e a sociedade contemporânea.
Entendemos que este ódio nasce das concepções culturais do certo e do errado,
entendimentos estes calcados em construções morais que podem gerar o ódio
contra o que desvia do considerado certo. Este ódio que exclui o considerado
diferente, exclui também da visão a violência que sofrem.
Para Birman (2012) também entra em questão o narcisismo da nossa cul-
tura, na qual o imperativo é o individualismo e as vivências solipsistas, nas quais
o outro é considerado um inimigo e um rival, sendo assim, não há vivências de
solidariedade e de alteridade. Esta questão colabora com os posicionamentos
políticos e sociais perante as violências de gênero.

Considerações finais

Conclui-se que a violência de gênero constitui um trauma dentro das


relações e na cultura contemporânea, visto que diz respeito a algo que não
consegue ser representado e significado, o que se nota pelos seus discursos
coletivos esvaziados sobre a violência de gênero e na sua repetição histórica.
Não há espaços na cultura para que o trauma seja representado e dotado de
emoções que realmente expressem a amplitude do que foi vivido, negando-se a
dimensão de sua existência e de seus efeitos nas vivências subjetivas e coletivas

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do sujeito que o vivenciou. Também é negado às mulheres, homossexuais e


transexuais espaços de construção e reconhecimento de sua importância na
vida pública. Esse cenário reforça a necessidade do debate sobre a violência de
gênero na cultura contemporânea ser posto em questão, com o questionamento
dos padrões morais e no caminho da construção de um diálogo necessário
sobre as questões que estão na raiz da violência e que também encobrem sua
visão.

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Referências

ARÁN, M. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora.


v. 9, n.1. Rio de Janeiro Jan./June 2006.

BIRMAN, J. O Sujeito na Contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atuali-


dade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

ENTRE A TÉCNICA E A MORAL:


PENSANDO A SEXUALIDADE NO DIREITO

Andressa Regina Bissolotti dos Santos


Mestranda em Direitos Humanos e Democracia
Universidade Federal do Paraná
bissolottiandressa@gmail.com

Dhyego Câmara de Araújo


Mestrando em Direito do Estado
Universidade Federal do Paraná
dhyegohirota@hotmail.com

GT 06 - Afetos, erotismos, novas/outras conjugalidades: sexualidades (re)inventadas


nas vivências não heteronormativas

Resumo

O presente trabalho busca explicitar os meandros do jogo travado pelas e a partir


das subjetividades LGBT no interior do Direito, sobretudo levando-se em con-
sideração os modos de fabricação dessas identidades através da economia de
discursos relacionados aos saberes psi, biológicos, morais e jurídicos. Nessa com-
plexa rede de saber-poder, verifica-se que o debate pretensamente técnico do
discurso jurídico é fortemente carregado pelas regras e padrões de caráter moral,
sobretudo quando se discute no judiciário direitos relativos a pessoas LGBT, cujo
nível de discriminação sofrido varia de acordo com a posição moralmente aceitá-
vel que ocupa o indivíduo ou grupo em questão. Vislumbra-se a atuação do direito
como ator de depuração da sexualidade, ao tratar da homossexualidade através do
conceito jurídico de homoafetividade, espaço subjetivo higienizado que se tornou
baliza do reconhecimento de direitos, tanto mais restringidos ao tratar de direitos
de pessoas trans. Todo esse cenário a demonstrar que certas mudanças puderam
e podem ser efetivadas via judicialização, mas é preciso atentar para os efeitos
deflagrados por esse jogo, que tem no seu bojo uma moral institucionalizada.  
Palavras-chave: direito; moral; sexualidade; homoafetividade; pessoas trans.

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Introdução

Precisamos “verdadeiramente” de uma verdadeira identidade?


Parafraseando Michel Foucault, que ao invés de identidade, havia nos questio-
nado a respeito de um verdadeiro sexo, as duas questões, no limite, apontam
para o mesmo sentido: o sexo enquanto construtor de uma identidade fixa
pautada na sexualidade dos corpos, isto é, os corpos enquanto identidades
sexuadas.
A fabricação dessas subjetividades tidas como verdadeiras e, portanto,
imutáveis, se dá através de uma rede complexa de saberes interligados entre
si capaz de instaurá-las sob o manto de certezas científicas pelos discursos psi
e biológicos, dispostas em uma hierarquia política e social de acordo com as
regras morais que passam a habitar o âmbito jurídico como corpos sexualizados
construídos por todos esses aparatos discursivos em conjunto.
O presente trabalho pretende abordar as formas a partir das quais são
consideradas tais subjetividades no campo do direito, demonstrando o caráter
higienizante na homoafetividade, conceito jurídico depurado da sexualidade
presente na palavra homossexualidade, para, em seguida, adentrar no debate
a respeito das identidades trans, corpos que não adentraram o ambiente clean
criado pela juridicidade dos laços homoafetivos e que, por tal razão, ainda
habitam os espaços subjetivos de marginalização, promiscuidade, violência e
degeneração. 

A sexualidade no discurso jurídico da ‘família homoafetiva’

Nos corredores das Faculdades de Direito do país corre uma novidade:


ela foi chamada de ‘Direito Homoafetivo’. Responsável por congregar as discus-
sões acerca da existência jurídica das relações afetivo-sexuais entre pessoas do
mesmo sexo, esse ‘novo’ ramo do Direito surgiu após a concretização de um
processo de luta judiciária que se estendeu por toda a primeira década deste
século, culminando na decisão proferida na ADPF 132/ADI 4277, a qual decla-
rou: as famílias homoafetivas têm existência jurídica. Na academia os trabalhos
que abordam as homossexualidades são considerados old school: a manifesta-
ção já foi dada, pessoas homossexuais se casam e adotam crianças, não há mais
do que se falar.

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Pensemos a trajetória desse novo campo do Direito. Em 2001 o PL


1151/1995, de autoria da então deputada Marta Suplicy, foi definitivamente
arquivado. Com a perda da esperança no Legislativo, o Judiciário acabou se
tornando em espaço privilegiado de lutas: o então movimento GLBT girou seus
esforços de articulação para advogados, juízes, promotores (MELLO, 2005).
Um pouco antes Maria Berenice Dias cunhara o termo homoafetividade,
ao qual fez referência pela primeira vez em obra intitulada União homossexual:
o preconceito e a justiça, publicada no ano 2000, que em sua quarta edição
passou a se chamar União homoafetiva: o preconceito e a justiça. Em constan-
tes manifestações, a autora declarou que a cunhagem do termo tinha a intenção
de destacar o aspecto afetivo dessas relações, afastando a imagem de promis-
cuidade que recaía sobre elas.
A adoção dessa estratégia no meio jurídico veio de parelha com as cam-
panhas de alguns grupos do próprio Movimento LGBT, no sentido de promover
uma imagem mais socialmente aceitável de homossexual, que foi acompanhada
por uma prática de desvalorização de aspectos mais ‘marginais’ das existências
gays e lésbicas (MISKOLCI, 2007).
Esse movimento é facilmente identificável no discurso jurídico da família
homoafetiva: os argumentos ‘doutrinários’ e jurisprudenciais correntemente utili-
zam o elemento da quase correspondência com a norma como forma de pautar
direitos. Nesses termos, defendia-se que as relações homossexuais deveriam ser
juridicamente reconhecidas porque nelas nada havia de diferente em relação
às heterossexuais – o que requeria, é claro, que a visibilidade se centralizasse
em sujeitos específicos, relegando a uma nova margem aquelas composições
incapazes de se assemelharem à norma.
Nesses termos, grande parte da produção doutrinária que acompanhou
o formato do ‘Direito Homoafetivo’ é caracterizada por uma forte idealiza-
ção das relações familiares como um todo, acompanhada da celebração do
amor romântico e da pureza das relações amorosas injustiçadas que se busca
reconhecer. O próprio voto do Ministro Ayres Britto, relator da ADPF 132, é
constante em sua celebração da família nuclear como espaço natural e primeiro
de realização e de afetividade.
A sexualidade foi retirada não apenas do termo: toda a argumentação
precisou ser dela depurada, para que fosse juridicamente aceita. Curiosamente,
a tradução em termos técnicos e/ou jurídicos das demandas do movimento no

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campo das conjugalidades e parentalidades passou muito mais por uma higieni-
zação (RIOS, 2013) do que por uma tecnicização.
OLIVEIRA (2007), ao entrevistar magistrados brasileiros acerca de suas
posições quanto às conjugalidades homoeróticas, apontou para a proeminência
de argumentos morais e religiosos, sobre quaisquer argumentos técnicos. Foi
às noções morais dos magistrados que a advocacia defensora dessas teses teve
de apelar; a discussão não se deu em termos de liberdade, ou legalidade, mas
sim em termos do que poderia ou não ser considerado normal e/ou legítimo no
comportamento sexual humano1.
No fim, inobstante o giro de um campo eminentemente político – o
Legislativo – para um campo supostamente técnico – o Judiciário – a discussão
permaneceu sendo travada em termos morais e religiosos. O Judiciário parece,
assim, ser tão político quanto as demais instâncias que se propõem a discutir a
sexualidade.

A discussão em torno do uso dos banheiros por pessoas Trans

Chegou recentemente ao Supremo Tribunal Federal Recurso Extraordinário


845.779/SC, cuja discussão gira e torno do debate sobre as expressões de
gênero, mais especificamente no que diz respeito às múltiplas questões relacio-
nadas à identidade de transexuais, travestis e transgêneros, posto que se atribuiu
efeitos de repercussão geral, mas que, no caso em questão, dizia respeito ao
direito de Ama Filho frequentar banheiro público feminino.
O ministro relator Luiz Barroso, acompanhado pelo voto do ministro Edson
Fachin, afirmou tratar-se de questão de ponderação entre o direito de uso de
banheiro feminino de acesso ao público por parte de pessoas mulheres-trans e
o direito de privacidade das mulheres-cis, afirmando que o suposto constran-
gimento das últimas não se compara com o desconforto sofrido por aquelas
obrigadas a utilizarem banheiros masculinos, em razão de que, nesse caso, a
agressão seria dirigida “à natureza dessas pessoas, uma agressão à identidade
dessas pessoas, ao modo como elas se percebem, ao modo como elas vivem
suas vidas”.

1 Essa é uma tendência, fique claro, não só brasileira: Butler (2003) ao abordar a discussão dos Pactos
Civis na França, observa o mesmo movimento.

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Muito embora se posicionem de modo favorável à afirmação dos direitos


ali discutidos, os votos dos ministros citados ainda se reportam à noção de
identidade ou às expressões de gênero como algo fixo, radicado no âmbito da
natureza humana, que diria respeito, portanto, a uma imutabilidade, posto que
se trataria de algo que se é. Armado sob essa mesma justificativa naturalizante,
cujo sinal, entretanto, fora invertido, encontra-se o argumento do ministro Luiz
Fux, que requisitou vistas do processo na medida em que a análise de tais temas
suscitam “desacordo moral tão expressivo”.
Acrescentando que existe pessoas que se vestem de mulher para praticar
pedofilia ou abuso sexual, Fux argumentou: “Imagine como ficará o pai mais
conservador que tem uma filha, sabendo que ela está numa escola e qualquer
pessoa com gênero idêntico ao dela vai poder frequentar o mesmo banheiro
que a filha”. Na mesma linha assinalou o ministro Lewandowski ao sublinhar
sua preocupação com a “proteção da intimidade e da privacidade de mulheres
e crianças do sexo feminino que estão numa situação de extrema vulnerabili-
dade quando estão no banheiro”.
Vislumbra-se, nos argumentos contrários, a construção dessas subjetivi-
dades sob uma chave interpretativa que as compreende a partir de categorias
essencializadoras, ou melhor, num entrecruzamento entre a biologia e a moral,
que apontam para um terreno no qual se pressupõe como filtro de inteligibili-
dade desses corpos suas identidades sob suspeita, ou mesmo perigosas, pelo
simples fato de sua expressão de gênero não corresponder à norma heterosse-
xual e cisgênero estabelecida. Norma que se credita como estável e que atribui
tal caráter a todos os corpos tidos em relação a ela como anormais, que por sua
vez, por transitarem por uma zona de ambiguidade – de nomes, de genitálias,
de comportamentos – “sugere[m] uma ambiguidade maior e, por isso, mais
perigosa ou capaz de causar desordem simbólica. A ideia de que a ‘verdadeira
identidade’ está oculta ou confusa, impedindo a ‘dignidade e personalidade’
exigidas [...]” (CARRARA; VIANNA, 2006, p. 244).
A evocação de uma verdadeira identidade nos remete à clássica pergunta
de Michel Foucault ao prefaciar o dossiê sobre Herculine Barbin: “Precisamos
verdadeiramente de um verdadeiro sexo?” (FOUCAULT, 1982, p. 1 – grifos do
original). Para o autor, a afirmativa obstinada à essa pergunta tem suas raízes
cravadas na modernidade, e o seu desenrolar fez com que, para barrar os aci-
dentes da natureza ou mesmo da dissimulação consciente dos indivíduos que se
aproveitavam de certas estranhezas anatômicas, houvesse um grande interesse

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moral no diagnóstico médico do verdadeiro sexo (FOUCAULT, 1982, p. 3 – gri-


fos no original).
É nesse contexto que se vê confluir duas categorias até então distintas,
quais sejam, o monstro e o desviante sexual, que passam a se comunicar entre si,
processo cuja tradução se deu na emergência do monstro sexual (FOUCAULT,
2001, p. 76). De início, uma monstruosidade que dizia respeito à uma mistura
dos sexos, a uma transgressão dos limites naturais do corpo, superado, pos-
teriormente, pela condenação de gostos perversos, “aparece a atribuição de
uma monstruosidade que não é mais jurídico-natural, que é jurídico-moral; uma
monstruosidade que é a monstruosidade da conduta, e não mais a monstruosi-
dade da natureza” (FOUCAULT, 2001, p. 91).
Seja pela monstruosidade da natureza, porque vistos como aqueles capa-
zes de subverter a ontologia de uma verdadeira identidade primeira ou de um
sexo único; seja pela monstruosidade dos comportamentos, porque represen-
tadas no bojo das ações jurídicas sob uma “imagem de desordem urbana, em
que o duplo desvio sexual (homossexualidade e prostituição) aparece conec-
tado à pobreza, ao tráfico e às favelas” (CARRARA, VIANNA, 200, p. 245),
ou como figuras perigosas cuja presença em banheiros públicos deixariam os
que ali se encontrassem em estados de vulnerabilidade, a fabricação dessas
subjetividades é operacionalizada por todo esse enredo complexo construído
pelos saberes médicos, biológico e psi emaranhados na moral, em uma estreita
parceira com o direito.
Tais reflexões revelam o forte teor moral higienizante em que estão mer-
gulhados os debates jurídicos a respeito de gênero e sexualidade, sobretudo
quando se discute direitos relativos a transexuais, travestis e transgêneros, que
carregam em seus corpos e condutas que confundem os olhares discriminató-
rios algo que para esses estaria no nível da perversão, da degenerescência e
da periculosidade: monstros sexuais do século XXI sobre os quais recaem os
efeitos de um preconceito institucional porque embaralham as noções de um
verdadeiro sexo.

Considerações finais

No clássico História da Sexualidade Foucault (2014) retrata as formas atra-


vés das quais o Direito passou a se relacionar com a sexualidade, regulando-a
nos termos de normas de natureza e funcionamento extra-jurídicos. A esfera

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jurídica passou a operar em circularidade de sentido com a esfera normalizadora/


disciplinar (FONSECA, 2002) e a sexualidade é sempre um ponto de convergên-
cia nesses esquemas: convergência entre disciplina e biopolítica, entre moral e
Direito. Entre regular o acesso às possibilidades legítimas de relações humanas
e criminalizar as expressões desviantes da norma sexual, o Direito permaneceu
como um dos saberes-poderes capazes de dizer a verdade sobre o sexo.
Com as recentes conquistas judiciais em prol dos direitos LGBT, atores
do campo jurídico e mesmo dos movimentos LGBT passaram a enxergar e
tematizar o Direito – principalmente o campo judicial – de forma diversa: como
espaço de lutas, de garantia de direitos. De fato, certas mudanças puderam ser
efetivadas através da judicialização. Mas é preciso atentar para os termos em
que essas mudanças se deram.
O fato é que o modo de operar do Direito em relação à sexualidade pouco
mudou. Ele permanece detendo o poder de dizer da legitimidade das relações
humanas, tendo apenas expandido o número de relações em seu bojo; mas as
experiências e vivências excluídas permanecem existindo, permanecem resis-
tindo. A sexualidade permanece sendo esse espaço de confluência de poderes
e discursos; esse espaço em que a pretensa técnica jurídica revela-se em sua
verdadeira face: a de uma moral institucionalizada.

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lência letal contra travestis no município do Rio de Janeiro. Physis: Revista de saúde
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Limonad, 2002.

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Irley Franco). Rio de Janeiro: F. Alves, 1982.

______. Os anormais. Curso no Collège de France (1971-1975). (Tradução de Eduardo


Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 1ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

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Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento


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<http://www.academia.edu/288793/Panicos_Morais_E_Controle_Social>. Acesso em:
28/10/13.

RIOS, Roger Raupp. As uniões homossexuais e a “família homoafetiva: o direito


de família como instrumento de adaptação e conservadorismo ou a possibilidade de
sua transformação e inovação. Civilista.com. ano2. n.2. 2013. Disponível em: <http://
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Acesso em: 04/10/2014.

OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. “Isto é contra a natureza...”: acórdãos judiciais
e entrevistas com magistrados sobre conjugalidades homoeróticas em quatro esta-
dos brasileiros. IN: GROSSI, Miriam Pillar; MELLO, Luiz; UZIEL, Anna Paula (orgs.).
Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de
Janeiro: Garamond, 2007. Pp.131-152.

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SEXUALIDADE E PRECONCEITO:
INTOLERÂNCIA E DISCRIMINAÇÃO DENTRO
DA PRÓPRIA COMUNIDADE LGBT

Nathália Hernandes Turke


Discente do curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de
Londrina (UEL)
nathalia.turke@hotmail.com

Caroline Pianta de Paula


Discente do curso de Psicologia da UniCesumar – Campus Maringá
carol.pianta13@ hotmail.com

Virgínia Iara de Andrade Maistro


Doutora em ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL)
Docente da UEL das disciplinas: Metodologia e Prática de Ensino de Ciências
Biológicas e Estágio Supervisionado Obrigatório da Licenciatura em Ciências
Biológicas e Sexualidade/Saúde. Docente do Curso de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências Biológicas na disciplina Educação Sexual/Sexualidade.
virginiamaistro@yahoo.com.br

GT 08 - Gênero, diversidade sexual, emoção e moralidade

Resumo

Em uma sociedade oriunda de preconceitos enraizados historicamente, a qual


ignora episódios de exclusão e segregação de minorias, a comunidade LGBT+
luta por seus direitos, contribuindo para maior justiça e igualdade. Contudo, se
dentro da população há preconceito, o que se espera de uma comunidade espe-
cífica? Objetivou-se fazer um levantamento do preconceito existente (ou não)
dentro da própria comunidade LGBT+ através da aplicação de um questionário
online para 87 pessoas, destacando os principais alvos desta discriminação, bem

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como as justificativas para tal. Notou-se enorme intolerância mesmo dentre as


minorias, sendo a maior parte voltada para pessoas bissexuais e transexuais,
revelando que há necessidade de maior conhecimento e respeito por parte de
toda a sociedade.
Palavras-chave: Identidade de gênero; orientação sexual; heteronormatividade;
padrões sociais; homofobia.

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Introdução

Aprende-se desde cedo que há diferenças entre as pessoas, onde nota-se


que os amigos, os familiares, entre outros, apresentam características que os
tornam únicos. Ao crescer, descobre-se que as diferenças vão além – todos
possuem pensamentos, atitudes, crenças, valores e gostos diferentes – e, como
biopsicossociais, há a criação de afinidades entre as singularidades, formando
grupos com objetivos em comum, surgindo uma sociedade.
O contexto histórico, social, cultural e político são determinantes para a
criação de valores, crenças e pensamentos preconceituosos dirigidos às pessoas
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), os quais se enraizaram na his-
tória como a herança dos colonizadores europeus. Apesar da modernização de
um país com mais de 500 anos de história, bem como transformações sofridas
em mais de cinco séculos, ainda há costumes que insistem em não se modifi-
car. Mesmo sendo o preconceito negado na maioria das esferas da sociedade,
onde pessoas dizem que o mesmo está deixando de existir por conta de uma
mudança social relacionada com a valorização dos direitos legais da comu-
nidade LGBT, esta população continua a ser alvo de discriminação a diversos
níveis (COSTA et al., 2010).
O preconceito é a forma mais vil de discriminação, de não respeitar o
simples direito do outro de existir e ser da forma que ele quiser. Segundo Ramos
e Carrara (2006), desde a década de 80, o movimento homossexual brasileiro
divulga o termo homofobia para designar crimes motivados pela orientação
sexual, sendo caracterizado, de acordo com Leony (2006, p.1), como o “ódio
explícito, persistente e generalizado; manifesta-se numa escala de violência
desde as agressões verbais (...) até os extremados episódios de violência física,
consumados com requintes de crueldade”.
Clarke et al. (2010) destaca que apesar de existir certa partilha na discri-
minação entre identidades categorizadas, as pessoas bissexuais e transexuais
são alvo de diferentes experiências e preconceitos, onde muitos pensam que
ser bissexual é possuir certo grau de confusão de identidade, sendo promís-
cuos, possuindo vários parceiros ao mesmo tempo; e transexuais fogem às
regras de uma sociedade onde o gênero é visto de forma rígida e binária, e por
isso excludente. A sociedade evoluiu, porém, diversas vezes, se esqueceu dos
ensinamentos da infância sobre as diferenças, do respeito ao outro. Portanto,
nota-se que as pessoas caminham a passos curtos, de forma lenta em direção

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a um futuro onde as singularidades possam ser o que une uma comunidade e


não o que a separa.
Se dentro de uma sociedade há preconceito, o que dizer dentro de um
grupo, de uma comunidade específica? A comunidade LGBT+ é historicamente
conhecida por sempre lutar por seus ideais, buscar seus direitos e contribuir
para uma sociedade mais justa e igualitária. Diante disto, esse trabalho teve por
finalidade constatar se há preconceito dentro da própria comunidade LGBT+ e,
se sim, quais os principais alvos desta discriminação (homossexuais, bissexuais
e/ou transexuais), bem como os motivos existentes para tal.

Metodologia

A presente pesquisa foi realizada com a aplicação online de um questioná-


rio para 87 pessoas LGBT+ (homossexuais, bissexuais, transexuais e assexuais).
O questionário foi dividido em duas partes, sendo a primeira necessária para
o conhecimento do sexo (masculino ou feminino), gênero (cisgênero ou trans-
gênero) e orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual,
assexual ou não definido).
A segunda parte foi composta por quatro perguntas de cunho pessoal,
onde o entrevistado deu sua opinião acerca de algo real ou pôde escrever
sobre situações que já aconteceram consigo mesmo, sendo as questões: “Curto
macho, corpo e jeito de homem. Se fosse pra ficar com um viadinho (afemi-
nado) prefiro ficar com mulher. Qual a sua opinião sobre essa afirmação?”, “Eu
não ficaria com um/uma bissexual porque são pessoas promíscuas, que estão
em cima do muro. Não sabem o que querem e, se eu tentar um relacionamento,
com certeza eu vou ser traído/a por alguém do sexo oposto. Qual a sua opinião
sobre essa afirmação?”, “Em um debate em uma comunidade no Facebook,
alguns gays não aceitaram a entrada de travestis, por afirmarem que as mesmas
mancham, denigrem a imagem dos homossexuais, enfatizando que as travestis
são bizarras, medonhas e que para ser gay não precisa virar mulher. Qual a
sua opinião sobre o ocorrido?”, “Se quer uma mulher que se pareça com um
homem, por que não fica logo com um cara? O que acha dessa afirmação?”.
Os questionários foram avaliados mediante as seguintes questões: “Há
preconceito dentro da própria comunidade LGBT+? Quais as justificativas das
pessoas preconceituosas para tal?”.

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Resultados e Discussão

Com relação à primeira parte do questionário, teve-se como resultado


que, dentre as 87 pessoas entrevistadas, 44 são do sexo masculino e 43 do sexo
feminino, tendo ficado equilibrada a proporção de homens e mulheres. Em rela-
ção ao gênero, 73 pessoas são cisgêneros, enquanto 14 são transgêneros, sendo
11 transexuais homens e 3 transexuais mulheres. No que se refere à orientação
sexual, obteve-se 1 assexual, 4 heterossexuais, 12 pansexuais, 22 bissexuais, 47
homossexuais e uma pessoa não possui o sexo definido.
A segunda parte do questionário, composta por perguntas de cunho
pessoal, teve como finalidade avaliar se há preconceito dentro da própria
comunidade LGBT+ e, se sim, foram feitas as seguintes questões ao analisar
os resultados: “Qual a intensidade?”. “Quem sofre o maior preconceito? Gays
“afeminados”? Lésbicas “masculinas”? Transexuais? Bissexuais?”. “Por parte de
quem esse preconceito é mais intenso?”.
A primeira questão da segunda parte do questionário teve como finalidade avaliar
se há preconceito contra homens homossexuais “afeminados” – 6 pessoas concorda-
ram com a afirmação preconceituosa , sendo dois homens, cisgêneros, homossexuais,
com ensino médio completo; dois homens, cisgêneros, bissexuais, com ensino médio
completo; duas mulheres, cisgêneros, bissexuais, com ensino médio completo. Além
disso, duas pessoas afirmaram que um dia concordaram com essa afirmação (um
homem, cisgênero, homossexual, com o ensino superior incompleto e uma mulher,
cisgênero, homossexual, com ensino superior incompleto) –, mas que, ao obter mais
informações sobre o assunto, percebeu quanto equivocada ela é.

Quadro 1 – Respostas dos entrevistados para a primeira pergunta da segunda parte do questionário.
Resposta para a sexta questão: ““Curto macho, corpo e jeito de homem.
Pessoa
Se fosse pra ficar com um viadinho (afeminado) prefiro ficar com
entrevistada
mulher”. Qual a sua opinião sobre essa afirmação?”
Entrevistado É o preconceito que foi inserido na cabeça de homossexuais ou bissexuais.
35 Apesar de terem a mesma orientação sexual, o preconceito prevalece.
Entrevistado Misógina, heteronormativa e infelizmente muito comum, principalmente no
59 meio gay.
Precisei de muita instrução pra não falar mais isso, coisa que fazia aos 15/16
Entrevistado
anos. Hoje acho ridículo dizer isso, mas pode ser uma questão de falta de
69
informação.
Entrevistado Há um tempo eu diria que concordo com essa frase. Hoje sinto vergonha de
75 um dia ter concordado com isso.

Fonte: Dados organizados pelos autores, com base nas respostas dos entrevistados

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Com relação à segunda pergunta, a qual diz respeito à bifobia, das 87


pessoas entrevistadas, 8 demonstraram, explicitamente, preconceito contra
bissexuais, sendo 1 mulher cisgênero homossexual e 7 homens cisgêneros
homossexuais, e 3 afirmaram que já sentiram isso um dia.
A terceira pergunta tratou da transexualidade e o preconceito envolvido
não apenas pela orientação sexual de uma pessoa transexual, mas também por
sua identidade de gênero. Apenas 4 pessoas concordaram com a afirmação
(direta ou indiretamente), porém a maioria respondeu que o preconceito sofrido
por travestis e transexuais continua sendo imenso não apenas pela sociedade
em geral, mas dentro da própria comunidade LGBT+.

Quadro 2 – Respostas dos entrevistados para a oitava pergunta da segunda parte do questionário.

Resposta para a oitava questão: “Em um debate em uma


comunidade no Facebook, alguns gays não aceitaram
a entrada de travestis, por afirmarem que as mesmas
Pessoas
Descrição mancham, denigrem a imagem dos homossexuais,
entrevistadas
enfatizando que as travestis são bizarras, medonhas e
que, para ser gay, não precisa virar mulher. Qual a sua
opinião sobre o ocorrido”?
Cada um se sente bem como quiser ser. O problema é a
Entrevistado Homem, cisgênero,
bagunça ou o fatos que a MAIORIA denigre a imagem
25 homossexual
dos gays.
Existe muito preconceito dentro da própria comunidade
LGBT+. É aquela famosa frase: “Quando a educação
Entrevistado Mulher, cisgênero,
não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”.
39 homossexual
Vejo que algumas pessoas da própria comunidade ainda
reproduzem pensamentos heteronormativos.
Homem,
Entrevistado Acho que muitas travestis e transexuais sofrem diversos
transgênero,
50 preconceitos dentro da própria comunidade LGBT+.
pansexual
Entrevistado Homem, cisgênero, Temos que lutar muito contra a transfobia, inclusive no
70 transexual meio LGBT+. A heterocisnormatividade ainda prevalece.
Mulher, Ai... Ainda tem muito gay que pensa assim, né? Chega
Entrevistado
transgênero, a ser triste. Uma pena que até os gays reproduzam
78
homossexual homofobia.

Fonte: Dados organizados pelos autores, com base nas respostas dos entrevistados

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A última pergunta levantou opiniões sobre mulheres lésbicas que se ves-


tem com roupas masculinas, as chamadas “lésbicas bofes”. Felizmente, apenas
duas pessoas demonstraram preconceito ao dar sua opinião sobre a afirmação:
Se quer uma mulher que se pareça com um homem, por que não fica logo
com um cara? – entrevistado 36: “Faz um pouco de sentido” (mulher, cisgê-
nero, bissexual) e entrevistado 44: “Eu concordo. Sou mulher e não fico com
“caminhoneira”, questão de gosto. Respeito quem goste, mas confesso que não
entendo” (mulher, cisgênero, homossexual).
Através dessa pesquisa, observou-se que o “grupo” que menos sofre pre-
conceito dentro da própria comunidade LGBT+ são as lésbicas “bofes”, contudo,
as proporções de pessoas homofóbicas (quando se fala em gay “afeminado”) e
transfóbicas são maiores do que se imaginava; e a maior parte vem de homens
e mulheres cisgêneros e bissexuais (homofobia contra gays “afeminados”) e de
homens cisgêneros homossexuais (bifobia e transfobia).

Considerações finais

A maior parte deste preconceito ainda existe por conta de uma questão
histórica, onde se eleva a heteronormatividade, impondo o que é certo (homens,
másculos e fortes e mulheres, femininas e delicadas) perante a sociedade, bem
como por falta de informação sobre os diferentes grupos da comunidade LGBT+.
E este modo heteronormativo de pensar, este preconceito, também é refletido
dentro da própria comunidade LGBT+.
O que não se pode esquecer é que se hoje em dia a sociedade está
começando a se tornar mais flexível, diminuindo este tabu imposto anos atrás,
é porque, em dado momento, travestis, transexuais, lésbicas “bofes” e gays “afe-
minados” foram às ruas e deram “a cara a tapa” para conseguir um pouco de
respeito. Levanta-se, então, a questão: “Se o preconceito continua sendo tão
grande dentro do movimento LGBT+, não havendo, muitas vezes, respeito dos
próprios membros para com a “minoria”, como querem que toda a sociedade
os respeite?”.

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Referências

CLARKE, E., ELLIS, S., PEEL, E., RIGGS, D. Lesbian, Gay, Bisexual,
TransandQueerpsychology: na introduction. Cambridge: Cambridge University
Press, 2010.

COSTA, C. G., PEREIRA, M., OLIVEIRA, J. M. de, NOGUEIRA, C. Imagens sociais das
pessoas LGBT. In C. Nogueira & J. M. de Oliveira (Eds.). Estudo sobre a discrimina-
ção em função da orientação sexual e da identidade de género (p. 93-147). Lisboa:
Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, 2010.

LEONY, M. C. Homofobia, controle social e políticas públicas de atendimento.


Pernambuco. 2006. Disponível em: <http://www.adepol-se.org.br/Download/Artigo_
homofobia_Publica%C3%A7%C3%A3o2%5B1%5D.doc>. Acesso em: 12 abril 2016.

RAMOS S., CARRARA, S. A constituição da problemática da violência contra


homossexuais: a articulação entre o ativismo e a academia na elaboração de políticas
públicas. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, 16(2), 185-2005. 2006.

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A AUTOAGRESSÃO REGULATÓRIA:
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Danilo Araújo de Oliveira


Aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Educação, mestrado em
Educação
Universidade Federal de Sergipe
danilodinamarques@hotmail.com

Ramon Ferreira Santana


Aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Letras, mestrado em
Estudos Literários
Universidade Federal de Sergipe
ramonmanfredini@hotmail.com

GT 01 - Gênero (s), sexualidade (s), multiplicidade (s): micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

Este trabalho apresenta algumas considerações preliminares relacionadas à ideia


de autoagressão regulatória a partir do levantamento teórico das discussões
mais recentes de gênero, especialmente tomando-se como referência Butler
(2016), Louro (2011), Scott (1995) e Rich (2010). Esses apontamentos, no entanto,
atendendo aos requisitos do próprio feminismo de matriz pós-estruturalista, não
se limitam tratar somente as questões ligadas às mulheres, mas outras também
relacionadas às demais minorias sociais, como exemplo, os homossexuais. A
partir de uma revisão bibliográfica, evidencia-se que as discussões relacionadas
a esta ideia de autoagressão regulatória, em uma sociedade que, através de
seus inúmeros recursos de dominação, impõe-nos a conduta heterossexual, são
extremamente necessárias.
Palavras-chave: diversidade; sexualidade; gênero; homocultura; autoagressão
regulatória.

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Introdução

O objetivo do presente trabalho é apresentar algumas considerações


preliminares acerca do conceito de autoagressão regulatória, tomando como
referência os mais recentes estudos relacionados ao feminismo de matriz pós-
-estruturalista, bem como os estudos ligados à homocultura e à diversidade
sexual. A necessidade de que este conceito seja melhor compreendido se dá
pelo fato de vivermos, todos nós, em uma sociedade que, através dos seus
inúmeros mecanismos de dominação, impõe a conduta heterossexual como
referência basilar na formação dos sujeitos. No entanto, a partir das conside-
rações apontadas por Butler (2016), Louro (2011) Scott (1995) e Rich (2010),
cada vez mais as questões de gênero e de sexualidade têm sido amplamente
discutidas em diversos âmbitos, seja sob o viés da filosofia, da antropologia, da
sociologia, entre outros.
Para isto, este trabalho estará dividido em três partes, sendo elas: 1) a
questão de gênero na contemporaneidade, que trata, em linhas gerais, acerca
de algumas das principais teorizações relacionadas ao conceito de gênero na
atualidade; 2) a heterossexualidade compulsória e os mecanismos de domina-
ção, que trata de como a sociedade da qual fazemos parte nos impõe, seja de
modo inconsciente ou mesmo através do uso de diversos tipos de violência,
a conduta heterossexual; e 3) a autoagressão regulatória, que trata especifica-
mente de uma análise, ainda que parcial, do conjunto a que se refere o presente
conceito.
Convém ressaltar que em tempos de mudanças tão profundas e necessá-
rias, pensar a maneira como nós nos comportamos, nessa chamada modernidade
tardia, no sentido que Stuart Hall (2014, p. 14) coloca, bem como a própria
maneira como nós nos constituímos é ainda extremamente necessário, posto
que as incertezas são também uma referência e, por isso, um viés de constantes
análises e reanálises do que está sendo construído teorica e metodologicamente.

A questão de gênero na contemporaneidade

O termo “gênero” hoje tem adentrado inúmeros espaços, não somente no


âmbito das teorias sociais específicas ou mesmo nos discursos acadêmicos rela-
cionados à sexualidade: falamos aqui também de espaços físicos – as escolas,

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as assembleias ou mesmo o plenário – que fazem toda discussão relacionada a


este conceito entrar em enorme ebulição.
No Brasil, devemos a Guacira Lopes Louro (2011) algumas das conside-
rações mais apropriadas a que se refere a ideia de gênero, posto que as suas
pesquisas, bem como as traduções por ela feitas de textos basilares relaciona-
dos a essa questão, foram amplamente difundidas nos espaços acadêmicos e
escolares. O conceito de gênero evidenciado por Louro (2011, p. 18) está dire-
tamente ligado à história do feminismo contemporâneo, implicado linguística e
politicamente em suas lutas.
Por feminismo contemporâneo, convém ressaltar, compreende-se toda
mobilização acadêmica que, a partir de 1968, tem sido fortemente influen-
ciada pelos movimentos feministas em suas duas primeiras ondas e por suas
produções, sejam através de livros, jornais, revistas, bem como através de suas
marchas, seus protestos públicos e suas ações políticas.
Com isso, efetuadas as desconstruções relacionadas aos binarismos
homem/mulher, masculino/ feminino, macho/fêmea, faz-se necessário que se
adote outro termo que não se limite aos determinismos biológicos que o termo
“sexo” impõe, mas implique também todas as questões relacionadas ao caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo (SCOTT, 1995, p.
72). Daí a adoção do termo “gênero”, inicialmente utilizado pelas feministas
americanas.
Neste sentido, conforme ainda aponta Louro (2011, pp. 25-26), quando se
enfatiza o caráter fundamentalmente social do gênero, não se está excluindo sua
construção biológica. O que se busca, através da constituição deste conceito, é
pensar o quanto as relações sociais, as formações ideológicas e as relações de
poder influenciam diretamente a significação daquilo que, ainda que proviso-
riamente, constitui nossas identidades, sejam elas de natureza étnica, racial ou
sexual.
Dessa maneira, chegamos à concepção de gênero apontada por Judith
Butler (2016, p. 69), quando esta afirma que o gênero é a estilização repetida
do corpo, ou seja, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura
reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo, para produzir a apa-
rência de uma substância, de uma classe natural de ser.
Logo, todo discurso que considera o gênero uma estrutura meramente bio-
lógica e natural, cuja construção é amplamente orientada pelo meio social do
qual fazemos parte, desmembra-se, visto que o mapeamento genealógico dos

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parâmetros políticos que norteiam o modo como essa ontologia é construída,


ratificam como essas estruturas são criadas e policiadas através das inúmeras
relações de poder que se estabelecem no interior da sociedade. Com isso, rati-
fica-se que “os gêneros se produzem, portanto, nas e pelas relações de poder”
(LOURO, 2011, p. 45).
Sob este prisma, infere-se que, tomando como referência as considera-
ções de Butler (2016, pp. 25-26), a distinção entre sexo e gênero atende à tese
de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero
é culturalmente construído e, consequentemente, não é nem o resultado causal
do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo.

A heterossexualidade compulsória e os mecanismos de


dominação

Mediante o descompasso existente entre a performatividade dos gêne-


ros, conforme é possível observar através de uma leitura mais cuidadosa deste
conceito, e as estruturas sociais altamente reguladoras e rígidas, adentramos na
análise de um mecanismo que tem sido amplamente estudado por teóricos que
tratam da sexualidade, dos corpos e das culturas minoritárias: a heterossexuali-
dade compulsória.
Para isto, um dos principais artigos relacionados ao termo é, sem dúvi-
das, o texto de Adrienne Rich, publicado originalmente em 1980, Compulsory
Heterosexuality and Lesbian Existence. Nele, a poeta e ensaísta estadunidense
propõe a ideia da heterossexualidade como uma instituição política que retira
das mulheres o seu poder.
Através das inúmeras instituições que compõem a nossa sociedade, sejam
elas o casamento, a igreja, a família, a maternidade etc., o homem – no caso,
branco, heterossexual e cristão – faz uso de diversos mecanismos que não ape-
nas retiram das mulheres a possibilidade de controlarem elas próprias as suas
vidas e tomarem as suas decisões, como também impõem compulsoriamente a
sua heterossexualidade. Para Rich (2010, p. 19), as mensagens da Nova Direita
dirigidas às mulheres têm sido, precisamente, as de que elas são parte da pro-
priedade emocional e sexual dos homens e que a autonomia e a igualdade
dessas mulheres ameaçam a família, a religião e o Estado.
Logo, as instituições pelas quais as mulheres tradicionalmente são controla-
das, como dito, a maternidade no contexto patriarcal, a exploração econômica,

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a família nuclear, a heterossexualidade compulsória, entre outras, todas elas têm


se fortalecido enormemente através de legislações, discursos religiosos, imagens
midiáticas e esforços de censura (RICH, 2010, p. 19). Todos esses mecanismos
de dominação ratificam, deste modo, a estratificação hierárquica existente entre
homens e mulheres em nossa sociedade – estratificação ainda mais violenta
quando consideramos, por exemplo, a existência das lésbicas.
Os referidos mecanismos de dominação estão intimamente relacionados
à chamada economia dos bens simbólicos de Pierre Bourdieu (2014, p. 115)
quando este afirma que um outro fator determinante da perpetuação das dife-
renças entre os homens e as mulheres é a permanência que a economia dos
bens simbólicos, do qual o casamento em sua estrutura tradicional é peça cen-
tral, deve à sua autonomia relativa, que permite à dominação masculina nela
perpetuar-se, acima das transformações dos modos de produção econômica.
Isto se dá inclusive, ainda de acordo com o teórico francês, com o apoio per-
manente e explícito que a família, principal guardiã do capital simbólico, recebe
das Igrejas e do Direito.
Assim, Rich (2010, p. 31) infere ainda que a ideologia do romance hete-
rossexual nos é imposto desde muito cedo, por meio das histórias infantis, os
contos de fada, o cinema, a televisão, a literatura, a música, as pompas do
casamento etc., apagando, consequentemente, qualquer comportamento que
esteja desvinculado dessa lógica heterossexual. Em outras palavras, as fábu-
las de gênero estabelecem e fazem circular a denominação errônea de que o
gênero se limita a fatos naturais (BUTLER, 2016, p. 13). Com isso, a heterosse-
xualidade compulsória é o mecanismo que nos doutrina que somente o amor
heterossexual tem valor em nossa sociedade e em nossa cultura.
Consequentemente, as mulheres são as maiores vítimas dessa mentira
criada pela lógica da heterossexualidade compulsória, pois ela cria a profunda
falsidade, a hipocrisia, e a histeria no diálogo heterossexual, pois toda relação
heterossexual é vivida através do nauseante estroboscópio dessa mentira que
coloca um sem-número de mulheres aprisionadas dentro de um roteiro pres-
crito, uma vez que elas não podem olhar para além do parâmetro do que é
aceitável (RICH, 2010, p. 41).
Se considerarmos a falta de privilégios que aflige as mulheres em nossa
sociedade, observaremos que a homossexualidade masculina e a homosse-
xualidade feminina possuem diferenças significativas, pois, para as lésbicas,
como se não bastasse a estratificação social mediante o fato de elas serem,

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biologicamente, mulheres, ainda as assola o fato de elas serem mulheres


homossexuais.

A autoagressão regulatória

Para que possamos adentrar, finalmente, à ideia de autoagressão regula-


tória, faz-se necessário mais uma vez retomar o que coloca Rich (2010, p. 28)
quando esta, ao tratar das questões ligadas à heterossexualidade compulsória,
aponta para o fato das mulheres que, mediante sua desvantagem econômica,
procuram escapar dos inúmeros tipos de violência – estejam eles ligados ao
local de trabalho dessas mulheres, ou mesmo a outras instituições sociais –,
voltam-se para o casamento como uma forma esperada de proteção.
Diz-se que estas mulheres, vítimas da imposição social que exige a afirma-
ção da sua sexualidade através do casamento, cometem a chamada autoagressão
regulatória, pois, ao passo que elas não veem outra possibilidade de inserção
na sociedade senão através do casamento, elas se lançam ao matrimônio como
ferramenta de sustentação da sua própria sobrevivência. Há ainda casos mais
delicados quando as próprias lésbicas, impedidas de vivenciarem a sua sexuali-
dade, também são socialmente obrigadas a inserirem-se no seio de uma família
erguida nos moldes tradicionais da heterossexualidade compulsória.
Além desta ser uma agressão que as mulheres são obrigadas a exercer
sobre si mesmas, por isso o prefixo “auto”, é possível inserir este tipo de agres-
são a um conjunto denominado por Butler (2016, p. 43) de práticas reguladoras,
pois são elas as responsáveis pela formação e pela divisão de gênero na cons-
tituição da identidade e na coerência interna do sujeito, ainda que o que se
concebe como “identidade”, “coerência” e “sujeito”, na contemporaneidade,
possa sofrer inúmeras alterações ou descontinuidades.
Logo, a autoagressão regulatória acaba por ser o mecanismo de escape
que inúmeros gays, lésbicas, bissexuais, entre outras minorias, fazem uso no
intuito de atenderem à heterossexualidade compulsória que a sociedade da
qual fazemos parte exige que atendamos. Esta é uma tentativa desesperada de
aderir a uma estrutura familiar que não atende de modo pleno a maneira como
sua própria sexualidade se comporta. No entanto, na ausência de outros meca-
nismos que lhe proporcionem uma inserção social mais aceitável, somado ainda
ao discurso do medo, conforme indicou Wittig (1992), o matrimônio dentro de

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um modelo tradicional se torna o escudo protetor das exigências, dos comentá-


rios e dos olhares preconceituosos.

Considerações finais

Esta é somente uma sutil contribuição para que melhor possamos com-
preender o modo como o problema da autoagressão regulatória merece maior
atenção, dado o diálogo que ele propõe com o que se tem pesquisado acerca
das questões de gênero e da heterossexualidade compulsória. A necessidade
dessa compreensão mais ampla acerca do que somos, ainda que provisoria-
mente, posto que de um instante para o outro, é possível que passemos a ser
algo totalmente diferente, se dá para que se atenuem os descompassos exis-
tentes entre a maneira como se comporta a nossa sociedade e a diversidade
presente no seio dessa própria sociedade.
Assim, quando a visibilidade dessas questões atingirem os espaços que
lhes são convenientes – as escolas, por exemplo –, a enorme barreira que o
preconceito construiu talvez possa começar a ser desconstruída. Com isso, a
formação de uma consciência coletiva atenta a essas questões será o remédio
mais eficaz para que todos os seres humanos – independentemente de qualquer
classificação de natureza social, étnica ou racial, possa viver com a dignidade
que lhe é de direito.

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Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução para o português de Maria


Helena Kühner. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução


para o português de Renato Aguiar. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução para o


português de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 2.
ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução para o português


de Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estru-


turalista. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas. Natal,


vol. 4, n. 5, 2010, pp. 17-44.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

WITTIG, Monique. The straight mind and others essays. Boston: Beacon, 1992.

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AS REZADEIRAS DO CARIRI PARAIBANO: RELATOS DE


RESISTÊNCIA, POTÊNCIA E CUIDADO

Rebeca Araújo de Souza


Graduanda em Serviço Social - UEPB - CCSA
Rebeca94souzaaraujo@gmail.com

Jussara Carneiro Costa


Professora Doutora - UEPB - CCSA
Juscosta@hotmail.com

Maria Luiza Pereira Leite


Mestranda em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas UFPB - PPGBH
Marialuizapereiraleite@gmail.com

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s), micropolítica, performances e


práticas discursivas

Resumo

O presente artigo trata da prática da reza em Boa Vista – PB, analisando a sua
constituição desde os primórdios da fundação da cidade, e através das influ-
ências de origem católica européia, indígena, africana. Acentuando a potência
subversiva da reza frente à norma e a sua constituição como uma prática recon-
figurada que subverte a força normativa dos dogmas na religação com o divino.
Problematizando como as mulheres desenvolveram mecanismos de cuidado
de si, aumentando suas subjetividades. Constituindo um cuidado sobre/ para
o outro/ a de forma que destoam e desconstroem a lógica do farmacopoder.
Ressaltando como o oficio da reza representa um lugar de refúgio, notabili-
dade e voz para as mulheres em outras épocas e nos dias de hoje diante da
heteronormatividade.
Palavras-chave: Potência; Memória; Cuidado; Resistência; Mulheres

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Introdução

O presente trabalho pretende localizar o oficio da reza como cenário de


resistência das mulheres ao longo do tempo, representando uma prática de
cuidado. E como a reza se constitui como discurso reconfigurado que subverte
a norma, sendo um retrato da construção da memória das mulheres que sobre-
viveram e transformaram os seus espaços cotidianos.

Boa Vista: a reza e os saberes subalternos

As práticas indígenas, de origem africana e o distanciamento da Igreja a


vários pontos das capitanias, seja devido à distância de localidade ou pela pró-
pria negligência da Igreja, construíram um contexto propício a uma geração de
costumes que vingam até os nossos dias. São os/as nossos/as curandeiros/as, can-
tadores/as, boiadeiros/as, rezadeiras/es que guardam poderosas orações, rezas e
benditos transmitidas pela tradição oral e, por isso, cada vez mais raros/as.
Boa Vista foi fundada por andarilhos que penetravam até o interior em
busca de fincar uma sesmaria, os Oliveira Lêdo, por meados do século XVI.
No município nasceram minha avó Laura Gonzaga, seus irmãos e irmãs e meu
avô Valfredo Gomes. Como lócus afetivo, Boa Vista sempre me nutriu muitas
inquietações, mas foram os aportes epistemológicos com que estive em con-
tato nos últimos tempos que me possibilitaram delinear e dar corpo às minhas
inquietações.
Refiro-me de modo mais especifico aos saberes subalternos que, con-
forme observa o sociólogo Richard Miskolci (2014) questionam a inflexão entre
saber/ poder no ocidente, desde o filosofo grego Platão (348/347 a.C) em torno
da cisão dicotômica entre natureza e razão, fixando uma dicotomia que divide
o que é do mundo ideal do mundo físico, sendo uma relação onde um ponto
oposto sempre será inferior ao outro. Foucault (1999/ 1980-1988/ 1990/ 2008)
traz uma abordagem que nos apresenta como o poder de dominação extrai sua
força através do estabelecimento da norma pelos processos de normatização
dos corpos e da medicalização das condutas. Na inflexão entre saber/poder
podemos identificar as especificações e desenrolamentos sobre o poder de
Michel Foucault que argumenta o mesmo como uma rede tensionada e que se
estende de forma micro em diversas instâncias da sociedade, pelas quais é pos-
sível perceber o poder como um exercício. Como desdobramento da analítica

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proposta por Foucautl, Gilles Deleuze aponta a sociedade de controle, carac-


terizada pelo capitalismo sobre produção com foco no consumo. Já o filosofo
queer Beatriz Preciado (2011) enfatizará a existência de um farmacopoder dis-
correndo sobre os processos de medicalização das condutas e corpos.
A preocupação com o tipo de ética construída derivada de tal modelo
levou o filósofo Friedrich Nietszche a questionar os seus efeitos individu-
ais e coletivos na vida das pessoas. Retomadas pelo também filosofo Michel
Foucault (1994) as provocações nietzscheanas apontaram para uma construção
de cuidados sobre si e assim para com os outros, são condutas de vida para se
preservar e aumentar a própria subjetividade. Foucault (1994) argumenta que
o funcionamento dessa engrenagem do poder torna as subjetividades fracas e
governáveis, e que é preciso desenvolver uma estética e cuidado de si o que
está ligado a inúmeras práticas, disciplinas, organização de vida que visam nos
ajudar a vivenciar o mundo, o presente. Preciado (2011) dirá que os corpos que
estão localizados na fronteira, os subalternos, tem grande potência de vida para
se colocar frente à norma.
Foi assim que me reencontrei com Boa Vista e as rezadeiras, ressignifica-
das para mim como lugar de resistência das mulheres com a prática da reza.
Através da análise argumento que as práticas por elas desenvolvidas integram
um conjunto de técnicas de si que se elaboram transformando-se e atingindo
um determinado modo de ser e de agir se construindo como uma arte do cui-
dado de si e do cuidado com os outros.

Terra de coronel, mulheres protagonistas

No caso do nordeste brasileiro, como é possível perceber na análise


desenvolvida pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior (2007),
podemos encontrar muitas características de um sistema patriarcal rígido. A
ordem superior de cada sesmaria era o pai, chamado de patriarca da famí-
lia, abaixo de suas ordens estava todo o funcionamento do local, embora as
mulheres organizassem o cotidiano, cuidando dos filhos, culturas, animais
e empregados/as não tinham esse destaque, salvo alguns poucos exemplos.
Quando o patriarca morria sua viúva exercia algum poder de comando reco-
nhecido na casa, mas apenas como representante do patriarca. Dessa forma,
embora reconheça o perigo representado pelo uso do termo patriarcado, pela
superficialidade advinda da pretensão a universalidade que o enreda, ainda se

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faz útil para a compreensão de alguns mecanismos de opressão como nos fala
Adriana Piscitelli (2008).
Em Boa Vista-PB muitas dessas mulheres adquiriram notabilidade assu-
mindo a responsabilidade pela organização da vida religiosa de cada localidade,
por meio de rezas e novenas. Muitas capelas tinham difícil acesso, outras não
tinham pároco, constituindo-se, na ausência da instituição religiosa no local, em
verdadeiros locais de resistência das mulheres numa sociedade regida por rígi-
dos princípios heteronormativos, com traços acentuadamente patriarcais. Era o
lugar onde elas exerciam autoridade e tinham voz, formando beatas, rezadeiras,
curandeiras.
A região do Cariri, pelo seu múltiplo cenário, construiu crenças peculia-
res com raízes em várias culturas e que eram praticadas, principalmente, pelas
mulheres, e Boa Vista se destaca até os dias de hoje por esse movimento de
constituição de crenças e saberes. São simpatias, rezas, curas de enfermidades
que dificultavam a lida cotidiana para “abrir os caminhos” por onde passavam
saberes resguardados pela tradição oral, passados de mães para filhas, de avós
para netas e assim por diante, através dos tempos.
Dona Ritinha, rezadeira da região a qual entrevistei, narra suas estórias,
sempre risonha, enfatizando a alegria de ser patrimônio imaterial histórico de
Boa Vista, título recebido da Câmera de Vereadores local. Mesmo com a saúde
debilitada, pede para nos rezar e nos orienta para pegarmos alguns galhos da
acácia que sombreia a sua casa. O ramo é parte importante da reza, serve
como um tipo de imã que suga para si os maus fluídos, por isso tem que ser
verde viçoso. Dona Ritinha prepara cuidadosa, o galho verde, pede para que eu
me sente com postura ereta no banco à sua frente e descruze braços, pernas e o
cabelo, pois assim o mau olhado sairá de mim sem se prender em nenhum nó.
A reza é um momento de interação. Quem é rezado/a participa respon-
dendo as perguntas da rezadeira e recebe conselhos e receitas de banhos, chás
e infusões. Ao longo do dia, ainda percorrendo a cidade, a madrinha Lidinha de
minha mãe conta que D.Ritinha apagara até incêndio de curral, ia aonde fosse
chamada, costurava mortalhas para os defuntos que não tinham posses, levando
uma vida de muitas andanças e muito trabalho, o que se confirma nos relatos da
própria Dona Rita, cujas narrativas parecem lhe emprestar mais vigor ao corpo
envelhecido quando, seguida de gestos animados, transforma sua experiência
numa fonte de cuidados, conselhos e orientações para se levar uma boa vida.
Dona Rita atualiza para mim a face da personagem “O Narrador” de Walter

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Benjamim (1994), pois suas estórias, vivências são recriadas através de sua fala
e de seu jeito de falar, atualizando-se nas nossas vidas como aprendizado.
Outra rezadeira da região é Rosa, esposa de um sobrinho de minha avó.
Rosa me fala que aprendeu a reza com sua mãe, conta que: “antigamente o
povo tinha muita crença, mas hoje em dia com médico e remédio o povo não
tem mais” (21/03/15). Ela me explica que “é preciso pegar três galhinhos verdes
de alguma planta” e assim começa: “com dois te botaram” e aponta com o
dedo para os seus próprios olhos, “com três eu te tiro” aponta para os galhos.
Em seguida nos orienta: “depois reza três Ave Maria, três Pai Nosso, oferecido
as cinco chagas de Cristo” (21/03/15).
Rosa fala que o pai era curado de cobra porque alguma rezadeira havia
lhe benzido quando uma cobra o feriu e ele tinha sarado. Sendo assim bas-
tava que cuspisse na boca de algum animal ou pessoa picada que o veneno
se transformava em força para o corpo e a pessoa/ou animal se reabilitava, a
cura de cobra pela rezadeira é um rito complexo, um copo de água é pego e
dentro colocado areia fina e limpa, manda-se que o doente beba um pouco
da água, a areia serve para filtrar o veneno, depois o doente fica em completo
isolamento, pois seu corpo está frágil e qualquer pessoa mal intencionada pode
derrubá-lo apenas com os seus maus sentimentos. Seu pai ainda contava que
muito usado para curar picada de serpente era o pinhão roxo, pois quando um
tejuaçu – lagarto médio da região também conhecido como tejo ou tiú – era
picado recorria ao pinhão e assim voltava e batia na cobra, repetindo isso mui-
tas vezes, até que vencia a briga.
Rosa criou toda uma família à base da reza, rezava também seus animais,
seu rebanho de leite, quando ainda o tinha. Ela me explica que: “mau olho faz a
gente ficar pra baixo, muito desanimado e só a reza é capaz de tirar, o médico
essas coisas não resolve. E o mau olho pega em tudo, de bebê, planta a animal,
seja gente considerada feia ou bonita. E quando a pessoa a ser rezada está
muito carregada, é preciso esconder um galhinho no peito para que não passe
para si. Tem que se rezar de frente a uma porta aberta por aonde o quebranto o
mau olho vá embora, e depois se pega o ramo e se joga o mais longe possível”
(Diário de campo, 18/12/15 e 21/03/15).
A prática de cura pela reza destoa dos processos de medicalização da
medicina moderna, a pessoa a ser rezada é como: “um todo que faz parte de
um todo maior – a vida – onde cada criatura tem seu lugar e é amada em um
ciclo sem fim” como me disse Dona Ritinha (21/03/15).

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Na reza não existe oposição entre corpo e alma: “a doença que está no
meu corpo está na minha alma, e o que está na minha alma está no meu corpo”
(depoimento de D. Rita, 21/03/2015). Enquanto na reza para carne criada – tor-
ções, inchaços ou ossos quebrados - um pano é costurado a reza é sussurrada,
aos poucos a torção se esvai, o fastio, a tristeza. A reza se constituí como uma
prática reconfigurada que subverte a força normativa dos dogmas na religação
com o divino, um cuidado de si e para com o outro, destruindo dicotomias,
repassando vivências e aprendizado, demonstrando ser uma potência efetiva
de vida que resiste com as mulheres e as mulheres por toda história com ela.

Considerações finais

Talvez os motivos que mantenham a reza ainda viva tenham a ver com
aquilo que tenta apagá-la, como se tenta fazer com todos os lócus de práticas
sociais que alimentam a potência de ação dos sujeitos e uma força de subver-
são. A potência da reza aparece com vigor nas narrativas das rezadeiras. Homi
Bhabha (1992), autor pós-colonial indiano nos dirá que o que está em jogo é a
luta pela posse da narrativa histórica, é a tentativa da norma de apagar a outra
versão que se compreende em uma narrativa rica e muito difícil de contrapor,
é preciso que as diferenças, os subalternos, as multidões queer contem suas
experiências, insurreições e memória. José Jorge de Carvalho (2001) nos fala da
incorporação dessas experiências/ narrativas orais, os balbucios, seus gestos,
seus silêncios para inscrever uma versão múltipla e sem máscaras da história.
Essa questão é que me alimenta para voltar atrás de minhas memórias desde
Bete e Inha, primas segunda, com quem passei boa parte da infância e que
me contavam suas experiências de vida, de fé, de sobrevivência. É preciso que
essas narrativas não se percam, é preciso não se calar, é preciso que se conte a
própria vivência.
Nietzsche argumenta sobre o corpo como um fio condutor, sendo o
corpo o nosso guia mais seguro e efetivo para elucidarmos a tudo, ele ainda
nos diz que o corpo, os sentidos, os instintos e os afetos nos permitem habitar e
compreender nitidamente a realidade, e assim o é o corpo da rezadeira em exer-
cício, suas mãos que se erguem com o ramo em sinal de cruz, rastreando-nos
a expulsar o mal, sua voz sussurrada, seus olhos firmes. Se a vida e o humano
são vontade de potência, assim o são essas mulheres que mediante uma prática
de oralidade reconfigurada reafirmam a completude do corpo, do devir e dos

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afetos – afeto aqui como potência interpretativa do mundo. A potência dessas


mulheres adensa sua resistência frente ao aspecto da heteronormatividade que
se revela com mais força. Essa potência vem de muito tempo atrás e assim
vigora até hoje.

Referências

BHABHA, Homi K. (Org.). O local da cultura. Belo Horizonte, UFMG, 1998.

CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horiz. antropol.,
Jul 2001, vol.7, no.15, p.107-147(disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v7n15/
v7n15a05.pdf)

PISCITELLI, Adriana. “Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências


de migrantes brasileiras”. Revista Sociedade e Cultura , v.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263-
274. (Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fchf/article/view/5247/4295)

FOUCAULT, Michel. “As técnicas de si”. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813.
(Disponível em: http://cognitiveenhancement.weebly.com/uploads/1/8/5/1/18518906/
as_tcnicas_do_si-_michel_foucault.pdf)

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. a arte de inventar o passado.


Ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007. 256 p.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: O Aprendizado pelas Diferenças. Belo Horizonte:


Editora Autêntica, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Lisboa: Guimarães Editores, 1996.

PRECIADO, Beatriz. Multidões Queer: Notas para uma Política dos “Anormais”. In:
Estudos Feministas. Florianopólis, 19 [1], Jan__ Abr – 2011.

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REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO


E DO MOVIMENTO LGBTT NO RECONHECIMENTO
DE DIREITOS AOS HOMOSSEXUAIS.

Tatiana Sada Jordão Araujo


Doutoranda em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
Procuradora Federal lotada na Procuradoria Regional Federal da 2ª Região.
Universidade Federal Fluminense
tatiana.jordao@agu.gov.br

GT 08 - Gênero, diversidade sexual, emoção e moralidade

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar o papel do Poder Judiciário no


reconhecimento de direitos aos homossexuais. Pretende demonstrar que a deci-
são do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu como entidade familiar a
união entre pessoas do mesmo sexo, desde que preenchidos os requisitos exigi-
dos para o reconhecimento da união estável entre homem e mulher, representa
uma grande vitória para a democracia e serve de paradigma para esse novo
olhar que a sociedade impõe que se tenha sobre os direitos sociais como um
todo. Ao fazê-lo, irá procurar demonstrar, ainda, que as movimentações jurídi-
cas que levaram a isso dependeram, em alguma medida, do protagonismo do
movimento LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêne-
ros) brasileiro.
Palavras-chave: homossexualidade, união estável, entidade familiar, movimento
LGBTT; Poder Judiciário.

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Introdução

Na época em que a Constituição da República de 1988, denominada


por Ulisses Guimarães de “Constituição Cidadã”, foi elaborada, diferentes movi-
mentos sociais, não só o movimento homossexual, buscavam transportar para a
esfera pública diversas questões antes consideradas de âmbito privado, dentre
elas questões relativas ao gênero e sexualidade. O reconhecimento da equidade
de gênero e da existência de diversas formas de família como direitos consti-
tucionais são resultados claros da pressão de grupos feministas e de mulheres.
(CARRARA, 2010).
Quanto aos direitos relacionados à orientação sexual e à identidade de
gênero, adverte Sérgio Carrara (2010) com propriedade que:
“a não inclusão na nova Carta constitucional da “orientação sexual”
e da “identidade de gênero” entre as diversas situações de discri-
minação a serem combatidas pelos poderes públicos evidencia o
quanto o contexto político daquele momento era desfavorável para
o então chamado Movimento Homossexual Brasileiro, ou, como se
designa atualmente, Movimento LGBT”. (CARRARA, 2010, p. 134).

Contudo, ressalta o autor que, mesmo com eventuais “derrotas”, a estru-


tura geral da Constituição, aí incluído seus princípios fundamentais, admite que
o Poder Judiciário analise o caso concreto e garanta o exercício de certos direi-
tos, contribuindo ainda para a criação de novas leis relativas a essa minoria
social. (CARRARA, 2010).
Muitos direitos que, no passado, eram negados aos homossexuais foram
reconhecidos ao longo do tempo. E esse reconhecimento de direitos contou
com a forte participação do Poder Judiciário, influenciado por alguns atores,
como o movimento LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
trangêneros).
O marco histórico da participação do Judiciário nessa temática pode ser
atribuído ao célebre julgamento realizado pelo STF em que por unanimidade de
votos se reconheceu como entidade familiar a união homoafetiva.
Ao destacarmos o papel desempenhado pelo movimento LGBTT nessa
luta pelo reconhecimento de novos direitos, não pretendemos desconsiderar a
importância dos demais atores sociais. O próprio Estado é um ator importante

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nesse processo de reconhecer gradativamente os direitos de minorias que até


boa parte dos anos de 1980 estava inviabilizada.
Contudo, o protagonismo do movimento homossexual brasileiro teve
fundamental importância para a conquista no âmbito judicial de diversos direi-
tos negados aos homossexuais e para a construção e o fortalecimento de uma
identidade, já que ao longo do tempo foi se fortalecendo, tornando-se um inter-
locutor respeitado no espaço público. É importante salientar que a influência do
movimento ocorreu em meio às pressões contrárias de outros atores, como os
grupos religiosos. Mas mesmo com todas essas pressões o STF conseguiu dar a
sua contribuição para o reconhecimento de uma ordem jurídica plural.

A Importância do Movimento LGBTT para a Conquista dos


Direitos Civis, Políticos e Sociais.

Em termos gerais, é possível desdobrar a cidadania em três níveis: direitos


civis (direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade), direitos políticos
(direito do cidadão à participação no governo da sociedade) e direitos sociais
(direito à saúde, à assistência social, à previdência social, ao trabalho, ao salário
justo).
De acordo com a teoria de T. A. Marshall (apud CARVALHO, 2008, p.
10), a conquista desses direitos, na Inglaterra, se deu de forma bastante lenta.
Primeiramente, foram introduzidos os direitos civis, no século XVIII; um século
depois foram introduzidos os direitos políticos. Por fim, no século XX, foi a
vez dos direitos sociais. Para Marshall essa é uma ordem não só lógica, mas
também cronológica. Assim, para o autor a inversão dessa ordem ocasionará a
alteração da própria natureza da cidadania.
Em que pese essa sequência estabelecida por Marshall, os países segui-
ram seus próprios caminhos. E com o Brasil não foi diferente. Pelo menos duas
diferenças merecem destaque quando se compara a sequência proposta por
Marshall e a experiência brasileira. Aqui os direitos sociais precederam os
outros, bem como foi dada maior ênfase a esses direitos.
O protagonismo do movimento homossexual brasileiro teve fundamental
importância para a conquista de diversos desses direitos negados aos homosse-
xuais e para a construção e fortalecimento de uma identidade, já que ao longo
do tempo foi se fortalecendo, tornando-se um interlocutor respeitado no espaço
público.

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O tema da identidade se destaca como questão central relacionada à


sexualidade. Castells (2002) destaca que a construção de identidades se utiliza
de materiais fornecidos pela história, geografia, biologia, pelas instituições pro-
dutivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos
aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Contudo, esses materiais
são processados e tem seus significados reorganizados por grupos sociais, indi-
víduos e sociedades em função de tendências sociais e culturais enraizadas na
estrutura social e no seu quadro de espaço e tempo.
Atualmente, fala-se na chamada “crise de identidade” como consequên-
cia de um amplo processo de mudança que vem transformando a sociedade
moderna desde o final do século XX. Nesse viés, velhas identidades que durante
muito tempo estabilizaram o mundo social estão em declínio, fazendo surgir
novas identidades e a fragmentação do indivíduo, que antes era visto como
sujeito unificado (HALL, 2006, p. 07).
As sociedades da modernidade tardia se caracterizam como sociedades
em mudança constante, rápida e permanente, diferentemente das sociedades
tradicionais. (GIDDENS, 1999, p. 44).
Na modernidade as práticas sociais estão sendo sempre reformuladas na
velocidade em que as informações sofrem mutações. Assim, os modos de vida
produzidos nas sociedades modernas são totalmente diferentes daqueles pro-
duzidos pelas sociedades tradicionais. A modernidade tardia trouxe uma nova
concepção do sujeito individual e sua identidade. Dessa forma, as identidades
que eram impostas pelas tradições culturais e formadas de acordo com valores
transmitidos, como, por exemplo, a família formada por um homem e uma
mulher e seus filhos, são reformuladas. Há uma verdadeira desarticulação das
identidades estáveis do passado.
Nesse contexto, é inegável que o movimento homossexual possui con-
siderável relevância para a construção da identidade homossexual. Foucault
(2005) defende a ideia de que a identidade não é algo estático, estando em
permanente construção nos diversos espaços públicos por onde os indivíduos
circulam, negociam e renegociam com os outros.
Atualmente, o termo oficialmente usado para designar o movimento homos-
sexual brasileiro é movimento LGBTT por ser mais genérico e abarcar todos os
segmentos: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros.
É possível afirmar que ao longo da sua existência o movimento foi incor-
porando diferentes temas à sua agenda e tornando-se um interlocutor respeitado

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em diferentes espaços políticos. Através de diferentes grupos, o movimento


LGBTT tem demandado o respeito aos direitos e atendimento às necessidades
da população homossexual. Entre tais direitos encontra-se o do reconhecimento
da legitimidade da união entre pessoas do mesmo sexo.

A Participação Do Poder Judiciário no Reconhecimento da União


Estável Entre Pessoas do Mesmo Sexo como Entidade Familiar

O Poder Legislativo fechou os olhos para a realidade social desse seg-


mento de indivíduos deixando de legislar sobre o tema. Nesse contexto,
aparece o Poder Judiciário como um importante ator capaz de garantir o reco-
nhecimento de direitos aos homossexuais. Sabe-se que o Legislativo tende a
ser mais cauteloso na exposição de suas opiniões, principalmente em razão de
seus integrantes serem escolhidos diretamente pelo voto popular. Com efeito,
acaba ficando à cargo do Judiciário, que possui independência e autonomia
outorgadas pela Constituição, a importante tarefa de assumir uma postura mais
progressista em assuntos polêmicos como esse.
O sociólogo Carlos Alberto Almeida (2007), em sua obra “A cabeça do
Brasileiro”, sustenta que o Congresso Nacional representa o brasileiro médio
e que os membros do Judiciário são oriundos de camadas mais escolarizadas.
Assim, conclui o autor que os integrantes daquele Poder são mais conservado-
res em razão do elemento cultural e da baixa escolaridade.
Pierre Bourdieu (2013) também atribui à educação familiar e à educação
escolar o gosto ou as preferências de determinado grupo social. Tais prefe-
rências tem o poder de unir aqueles que são produto de condições objetivas
parecidas, distinguindo-os daqueles que, estando fora do campo socialmente
instituído das semelhanças, propagam diferenças inevitáveis. Assim, podemos
afirmar que a postura assumida pelos integrantes do Judiciário, por serem deten-
tores de um elevado capital cultural, opõe-se aos integrantes do Legislativo que,
de acordo com a Pesquisa Social Brasileira realizada por Carlos Alberto, repre-
sentam o brasileiro médio pertencente a uma classe mais baixa de escolaridade.
Grande parte dos obstáculos encontrados pelos homossexuais para terem
seus direitos reconhecidos e efetivados decorre da divergência de posiciona-
mento acerca da definição de entidade familiar. O conceito de entidade familiar
ao longo do tempo sofreu profundas transformações que estão diretamente
relacionadas com as constantes mudanças de costumes de nossa sociedade.

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Tradicionalmente, o conceito de entidade familiar apresentava um perfil


hierarquizado e patriarcal, sendo certo que todas as Constituições anteriores a
de 1988 vinculavam a ideia de família ao instituto do casamento1. Contudo, a
vigente Constituição não vincula o conceito de família ao casamento. Essa des-
vinculação está em consonância com as transformações sociais que ocorreram
ao longo do tempo. Na atualidade o vínculo afetivo passa a ser mais valorizado
nas relações familiares. Dentro dessa nova concepção de família, o afeto, o
carinho e o amor são valores que promovem a dignidade e o desenvolvimento
da personalidade no seio familiar.
Segundo Gustavo Tepedino (2008, p. 394) o elemento finalístico de prote-
ção estatal é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade. Nesse
prisma, todas as normas formais de direito devem obedecer essa perspectiva,
em particular aquelas que disciplinam o direito de família. Assim, devem ser
abandonadas “todas as posições doutrinárias que, no passado, vislumbraram
em institutos do direito de família uma proteção supra-individual seja em favor
de objetivos políticos, atendendo a ideologias autoritárias, seja por inspiração
religiosa” (TEPEDINO, 2008, p. 394). A família tem o importante papel de pro-
mover a dignidade humana. Por isso, a análise das entidades familiares depende
da concreta verificação do entendimento desse elemento finalístico. Dessa
forma, merecerá proteção jurídica e do Estado a entidade familiar que promover
a dignidade e a realização da personalidade de seus integrantes.
O Supremo no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132
reconheceu como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo
sexo, desde que preenchidos os requisitos exigidos para o reconhecimento da
união estável entre homem e mulher.
Nesse julgamento, foi salientado que a evolução do direito que cabe
aos homossexuais teve início há anos, já que com a promulgação do Código

1 Constituição de 1937: “Art. 124 A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a pro-
teção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de
seus encargos.” Constituição de 1946: “Art. 163 A família é constituída pelo casamento de vínculo
indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.” Constituição de 1967: “Art. 167 A família
é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.” Emenda Constitucional
1/1969: Art. 175 A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públi-
cos.”

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Napoleônico deixou de ser considerado crime a prática homossexual. Frisou-se


ainda que todos os países da Europa ocidental possuem esse entendimento;
que, recentemente, a Argentina também aprovou legislação no mesmo sentido;
e, que o Canadá e a África do Sul obtiveram o mesmo avanço mediante deci-
são jurisdicional. Trata-se de um marco histórico na caminhada da comunidade
homossexual.
A decisão do Supremo representa uma grande vitória para a democra-
cia e serve de paradigma para esse novo olhar que a sociedade impõe que se
tenha sobre os direitos sociais como um todo. Cabendo destacar que esse posi-
cionamento assumido pela mais alta Corte dependeu, em alguma medida, do
protagonismo do movimento LGBTT brasileiro. É sobre isso que discorreremos
a seguir.

Considerações finais

O Supremo Tribunal Federal, órgão do Poder Judiciário considerado extre-


mamente conservador, ao longo do tempo, vem buscando atuar de maneira a
concretizar a justiça social. Isso pode ser visto, de forma bastante clara, na deci-
são em que esse Tribunal reconheceu a legitimidade da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar.
Contudo, é importante esclarecer que essa mudança de paradigma para
se pensar o conceito de entidade familiar, como toda grande mudança, precisou
de tempo razoável para ser efetivada. Com efeito, foi preciso realizar uma ver-
dadeira reforma de mentalidade dos magistrados, superando-se a ultrapassada
visão puramente formalista de aplicação do Direito. Dessa forma, aos poucos
a Judiciário vem se reinventando, despindo-se dos modos tradicionais de agir e
pensar e reconhecendo que muitos dos seus conhecimentos técnicos não são
suficientes para revelar a solução mais adequada. E toda essa reforma contou
com a importante participação do movimento homossexual.
Assim, podemos afirmar que o movimento homossexual possui conside-
rável relevância para a construção da identidade homossexual. O protagonismo
desse movimento exerceu fundamental participação para a conquista dessa
importante vitória para democracia que é o reconhecimento da legitimidade da
união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

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Referências

ALMEIDA, Alberto Carlos. A Cabeça do Brasileiro. Rio de Janeiro. Editora Record,


2007.

BOURDIEU. Pierre. A distinção. Crítica Social do Julgamento. Porto Alegre: Editora


Zouk, 2013.

CARRARA, S. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. In: Bagoas n. 5.


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MUDANÇA DE PARADIGMA NA REALIZAÇÃO DO DIREITO


DOS HOMOSSEXUAIS: O CASO DO CÓDIGO PENAL MILITAR.

Tatiana Sada Jordão Araujo


Doutoranda em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
Procuradora Federal lotada na Procuradoria Regional Federal da 2ª Região.
Universidade Federal Fluminense
tatiana.jordao@agu.gov.br

GT 01 - Gênero(s), sexualidade(s), multiplicidade(s): micropolítica, performances e


práticas discursivas.

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar a mudança de paradigma na rea-


lização do Direito que ocorreu no âmbito do Poder Judiciário. Essa mudança,
ainda que precise ser aperfeiçoada, tem contribuído para um melhor desem-
penho da nossa democracia Iremos demonstrar como o Poder Judiciário foi
derrubando as barreiras para reconhecer direitos aos homossexuais, investi-
gando de que maneira e em que medida o movimento LGBTT influenciou nesse
processo. Com vistas a viabilizar a adequada análise dessa questão iremos fazer
um estudo de caso, julgado no Supremo Tribunal Federal. Nesse julgamento foi
determinado a remoção de termos preconceituosos contra homossexuais do
Código Penal Militar, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orienta-
ção sexual como liberdade existencial do indivíduo.
Palavras-chave: homossexualidade, movimento LGBTT, Poder Judiciário,
Supremo Tribunal Federal, Código Penal Militar.

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Introdução

O reconhecimento de direitos aos homossexuais vem encontrando obstá-


culos para serem efetivados. São obstáculos de diversas naturezas, como moral
e religiosa, que impedem os homossexuais de terem seus direitos assegurados.
Histórias de discriminação, preconceito, violência e exclusão são viven-
ciadas cotidianamente pelos homossexuais. O processo de estigmatização que
começa dentro da própria família se propaga para os diversos espaços públicos,
como o mercado de trabalho, as escolas, os serviços de saúde, previdência e
assistencial social, os espaços de lazer, os espaços de consumo, os espaços
religiosos e etc. Nesse processo de estigmatização é desenvolvido uma técnica
de desvalorização que faz com que os homossexuais se coloquem em uma
posição de inferioridade e percam a sua autoestima, prejudicando dessa forma
a sua socialização.
Esse trabalho pretende analisar como, gradativamente, o Poder Judiciário
foi derrubando as barreiras para reconhecer direitos aos homossexuais, investi-
gando de que maneira e em que medida o movimento LGBTT (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros) influenciou nesse processo.
Com vistas a viabilizar a adequada análise dessa questão iremos fazer
um estudo de caso, qual seja, da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 291 ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) questio-
nando a constitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar que tipificava
como crime a “pederastia ou outro ato de libidinagem”, punindo com pena de
detenção de seis meses a um ano o militar que praticar ou permitir que com
ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à adminis-
tração militar.

Mudança de paradigma na realização do Direito: a


inconstitucionalidade do Código Penal Militar.

A crescente apresentação de demandas ao Poder Judiciário relaciona-


das com os direitos interditados dos homossexuais guarda uma íntima relação
com significativas mudanças nos modos de operação do Direito no Brasil. Tais
mudanças, ainda que precisem ser aperfeiçoadas, têm contribuído para um
melhor desempenho da nossa democracia.

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Uma das principais funções do Direito está relacionada à prestação juris-


dicional. A efetiva prestação jurisdicional só se torna possível se houver uma
verdadeira reforma de mentalidade dos magistrados e da estrutura de opera-
cionalização do Direito. Isso implica em problematizar a continuidade de um
Poder Judiciário atrelado a tradições que há muito deveriam estar superadas.
Essas tradições compreendem não só a solenidade dos atos, a linguagem rebus-
cada e até os trajes dos julgadores, como também a maneira de julgar e a forma
de solucionar os conflitos de interesses.
O exagerado formalismo utilizado por muitos magistrados não é condi-
zente com o nosso atual estágio de desenvolvimento. Tal formalismo “consiste
no apego quase fanático a pormenores das formalidades legais, mesmo quando
isso é evidentemente inoportuno, injusto ou acarreta graves conflitos sociais.”
(DALLARI, 2008, p.3).
Com efeito, é forçoso reconhecer que o juiz deve exercer uma função cria-
tiva, não sendo mero aplicador da lei. Isso porque, caso a solução da demanda
não esteja prevista integralmente na norma, ele “terá que recorrer a elementos
externos ao direito posto, em busca do justo, do bem, do legítimo. Ou seja, sua
atuação terá de se valer da filosofia moral e da filosofia política.” (BARROSO,
2010, p. 26).
Dalmo Dallari (2008) verifica que de fato muitos juízes estão assumindo
uma postura mais consciente de seu papel social e de sua responsabilidade,
iniciando um processo de reformas que tem por objetivo dar ao Judiciário a
organização e a postura necessárias para que cumpra a função de garantidor
de direito e distribuidor de Justiça. Esse processo de reformas, denominado de
movimento renovador e democratizante, teve início na França e na Itália na
década de setenta do século XX e encontra muitos seguidores no Brasil. Entre
nós, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) 1 é um exemplo
desse movimento reformador no âmbito da nossa magistratura. Essa associação

1 Além de atender às finalidades inerentes a toda entidade de classe, a Ajuris tem participado intensa-
mente dos grandes debates nacionais e da discussão de temas relacionados com o exercício pleno da
cidadania. Essa linha de atuação apoia-se no pressuposto de que a manutenção de uma sociedade
democrática exige constante vigilância, aliada ao exercício permanente do juízo crítico sobre todas
as instituições, e não apenas sobre o Poder Judiciário, e é particularmente necessária nos tempos que
correm. (ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL, 2012).

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busca conseguir que o Judiciário saia da acomodação e procure assumir um


papel proativo na busca da justiça. (DALLARI, 2008).
É inegável que setores consideráveis do Poder Judiciário, mesmo aqueles
considerados extremamente conservadores, ao longo do tempo, vêm bus-
cando atuar de maneira a concretizar a justiça social. Isso pode ser visto ao
examinarmos a recente decisão do STF que determinou a remoção de termos
preconceituosos contra homossexuais do Código Penal Militar (Decreto-Lei
1.001/1969).
A Procuradoria-Geral da República (PGR) ingressou com a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 291 no STF questionando a
constitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar que tipificava como
crime a “pederastia ou outro ato de libidinagem”, punindo com pena de deten-
ção de seis meses a um ano o militar que praticar ou permitir que com ele se
pratique “ato libidinoso, homossexual ou não”, em lugar sujeito à administração
militar.
De acordo com a PGR, o mencionado dispositivo violava os princípios da
isonomia, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da pluralidade e do
direito à privacidade. Além do mais, a norma impugnada foi editada em 1969,
em um contexto histórico marcado pelo autoritarismo e pela intolerância às
diferenças, em plena ditadura militar.
A Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu o posicionamento de que
a hipótese não era de declaração de invalidade de todo o texto, uma vez que
a proibição da prática de atos libidinosos tem como objetivo assegurar que as
instalações militares estejam integralmente voltadas à execução das finalidades
próprias às Forças Armadas. Além disso, ela preserva a ordem, hierarquia e
disciplina militares, fundamentos indissociáveis do funcionamento das Forças
Armadas e resguardados pelo próprio texto constitucional.
De acordo com a AGU, apenas o uso das expressões “pederastia” e
“homossexual ou não” é desnecessário e confere à norma conteúdo discrimina-
tório, incompatível com os princípios constitucionais da igualdade, da liberdade,
da dignidade da pessoa humana e da pluralidade. Com efeito, a supressão dos
termos em nada alteraria o âmbito do tipo penal em exame, que abrange a prá-
tica de todo e qualquer ato libidinoso praticado em área sujeita à administração
militar.
Por oito votos a dois, prevaleceu o entendimento da AGU. Segundo o
relator, Ministro Roberto Barroso, “a prática de atos libidinosos, ainda que

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consensuais, no local de trabalho, caracteriza-se como conduta imprópria, seja


no ambiente civil ou militar. Tanto é assim que permite-se a rescisão do contrato
de trabalho por justa causa nessa hipótese e a demissão do servidor público
civil. Portanto não está em discussão a possibilidade de se sancionar questão de
conduta imprópria no local de trabalho e sim a natureza e o grau da sanção.”
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016).
Barroso afirmou, ainda, que o Código Penal Militar promove uma crimi-
nalização excessiva nesse caso, e que o direito penal é o último e mais drástico
mecanismo punitivo a ser aplicado pelo Estado.
“Como se sabe, o direito penal constitui o último e mais drás-
tico instrumento de que se pode valer o Estado. Daí porque a
criminalização de condutas somente deve ocorrer na medida do
estritamente necessário, quando não houve outro modo de tutelar
bens jurídicos relevantes. Este é o princípio da intervenção mínima
do direito penal, também aplicável na seara militar.” (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2016).

É importante destacar que inúmeras pressões foram exercidas pela tomada


de uma decisão que privilegiasse a lógica da ampliação da cidadania, levando o
Judiciário a adotar essa posição extremamente inovadora. Tal pressão foi exer-
cida, dentre outros atores, pelo movimento LGBTT.
As pressões e a legitimidade política do movimento LGBTT certamente
influenciaram na difusão da ideia de que as expressões pejorativas e discrimi-
natórias utilizadas no Código Penal Militar são manifestações inadmissível de
tolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados.

A importância do movimento LGBTT para a conquista dos


direitos interditados dos homossexuais

Ao destacarmos o papel desempenhado pelo movimento LGBTT nessa


luta pelo reconhecimento de novos direitos, não pretendemos desconsiderar a
importância dos demais atores sociais. O próprio Estado é um ator importante
nesse processo de reconhecer gradativamente os direitos de minorias que até
boa parte dos anos de 1980 estava inviabilizada.
Contudo, o protagonismo do movimento homossexual brasileiro teve fun-
damental importância para a conquista no âmbito judicial de diversos direitos

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negados aos homossexuais e para a construção e o fortalecimento de uma


identidade, já que ao longo do tempo foi se fortalecendo, tornando-se um inter-
locutor respeitado no espaço público. É importante salientar que a influência
do movimento ocorreu em meio às pressões contrárias de outros atores, como
os grupos religiosos. Mas mesmo com todas essas pressões conseguiu dar a sua
contribuição para o reconhecimento de uma ordem jurídica plural.
No Brasil, o movimento homossexual teve como ponto de partida a década
de 1950, apesar de nessa época ainda não haver movimento social organizado.
A organização política começou a se consolidar na passagem da década de
1970 para a de 1980. É corrente o entendimento de que o movimento homosse-
xual brasileiro teve início nas páginas do jornal Lampião de Esquina, publicado
pela primeira vez em abril de 1978, na cidade do Rio de Janeiro. De acordo
com Facchini (2009), o movimento passou por transformações, apresentando
diferentes momentos, que podem ser chamados de ondas renovatórias.
A primeira onda surgiu nos anos 1970 como um projeto de politização da
questão da homossexualidade, contrastando com o gueto e outras associações
anteriores, tidas pelos primeiros militantes como não-politizada, voltada apenas
para a sociabilidade. Facchini (2009) afirma que o grupo SOMOS, fundado
em São Paulo em 1978, inspirado no movimento argentino Nuestro Mundo
da Frente de Libertación Homossexual (FLH), foi o primeiro a ser reconhecido
por possuir uma proposta de politização da homossexualidade. Esse grupo, de
acordo com a autora, adquiriu notoriedade em razão de ser o primeiro grupo
brasileiro, bem como pelo impacto de sua atuação, tornando-se referência
para centenas de pessoas que se envolveram em suas atividades e pela extensa
documentação produzida.
A segunda onda teve início durante o processo de democratização dos
anos 1980 e de mobilização da Assembleia Constituinte, época também do
surgimento da epidemia da Aids – chamada peste gay ou câncer gay. Segundo,
Facchini (2009) nessa fase houve a institucionalização do movimento homos-
sexual. O movimento centraliza suas forças na garantia do direito à diferença.
Há uma tendência a estabelecer organizações de caráter mais formal do que
comunitário. As ideias de contracultura, de grupos com concepções político-re-
volucionárias são afastadas. Percebe-se um menor envolvimento do movimento
com projetos de transformação social, passando a se dedicar de forma mais
ativa às ações pragmáticas, voltadas a garantia do direito a não-discriminação.

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Por fim, foi na segunda onda renovatória que o movimento brasileiro se aproxi-
mou do internacional.
A partir dos anos 1990 inicia-se a terceira onda, havendo uma prolifera-
ção de identidades políticas no interior do movimento. Facchini (2009) chama
esse período de reflorescimento do movimento. Nesse período há um apro-
fundamento da redemocratização através da implementação de uma política
de prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids, baseada na ideia
de parceria entre o Estado e a sociedade civil e no incentivo às políticas de
identidade. Verifica-se verdadeira parceria com o Estado e com o mercado
segmentado.
É possível afirmar que ao longo da sua existência o movimento foi incor-
porando diferentes temas à sua agenda e tornando-se um interlocutor respeitado
em diferentes espaços políticos, como no Judiciário. Através de diferentes ações,
o movimento LGBTT tem demandado o respeito aos direitos e atendimento às
necessidades da população homossexual.
Nesse contexto, o Judiciário vem, através de decisões judiciais cada vez
mais flexíveis proferidas pelo país afora, atualizando o direito e garantindo o
seu reconhecimento aos homossexuais. A determinação feita pelo STF de que
seja removido do Código Penal Militar termos e expressões considerados dis-
criminatórios a homossexuais, demonstra claramente a efetiva participação do
Judiciário na concessão desses novos direitos.

Considerações Finais

O Judiciário vem assumindo, a cada dia de forma mais acentuada, uma


função fundamental na efetivação do Estado Democrático de Direito. Vem
cumprindo de modo mais efetivo seu papel de “guardião da Constituição” e,
por conseguinte, colaborando para a preservação dos valores e princípios que
a fundamentam essa Carta Magna. Ainda que de forma gradativa e parcial, a
magistratura brasileira aos poucos se reinventa. Vai se valendo da criatividade,
da abordagem multiprofissional e de um novo senso ético. Torna-se, como nos
ensina Luís Roberto Barroso (2007, p. 9), “co-participante do processo de cria-
ção do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de
sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.”
Tudo isso se dá à luz da ideia de maior relevância que reside em adotar a solu-
ção mais apta a alcançar os fins socialmente colimados.

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Essa dinâmica renovadora pôde ser observada na decisão do Supremo


Tribunal Federal que determinou a remoção de termos preconceituosos contra
homossexuais do Código Penal Militar. Esse Tribunal, órgão do Poder Judiciário,
considerado extremamente conservador, atuou de maneira a concretizar a jus-
tiça social. Para tanto contou com a influência de alguns atores, dentre os quais
destacamos o movimento homossexual. O protagonismo desse movimento
exerceu fundamental participação para a conquista de mais essa importante
vitória para essa minoria historicamente discriminada, qual seja, a remoção
de termos preconceituosos contra homossexuais de uma legislação datada de
1969.

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Referências

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e Política no Brasil Contemporâneo. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado,
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todoestado.com/revista/RERE-23-SETEMBRO-2010-LUIS-ROBERTO-BARROSO.pdf.
Acesso em 01 jun. 2016.

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do Direito Constitucional no Brasil. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado,
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DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São


Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

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CONSERVADORISMO RELIGIOSO NA ARENA POLÍTICA:


DESAFIOS E IMPASSES PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS
E OS ATIVISMOS LGBT

Graziela Ferreira Quintão


Mestre e doutoranda em Política Social /UFF
Assistente social do Ministério Público/RJ
grazielaquintao@yahoo.com.br

João Bôsco Hora Góis


Doutor em Serviço Social PUC-SP/Boston College
Professor Associado IV /UFF, Pesquisador 1B /CNPq
jbhg@uol.com.br

GT 18 - Ativismos e produções acadêmicas LGBT, feministas e queer em tempos de


ascensão conservadora no Brasil

Resumo

Nos últimos anos, vem ocorrendo uma série de embates entre defensores dos
direitos LGBT e ativistas dos movimentos religiosos - especialmente as lide-
ranças de denominações evangélicas. Utilizando a retórica da liberdade de
expressão, esses segmentos religiosos desqualificam e combatem a diversidade
sexual, adentrando a arena política através de seus representantes no Congresso
Nacional, que se articulam compondo frentes parlamentares e interferindo na
agenda do movimento LGBT. Este trabalho propõe examinar as particularida-
des do enfrentamento do movimento LGBT com os segmentos evangélicos, a
partir de episódios recentes envolvendo parlamentares da Frente Parlamentar
Evangélica, que tiveram repercussão na mídia e geraram controvérsias.
Palavras-chave: homofobia religiosa; arena política; produção de políticas para
população LGBT; Frente Parlamentar Evangélica; movimento LGBT.

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Introdução

No contexto das lutas em torno da definição do que seja uma sexuali-


dade legítima e de quais pessoas estão socialmente autorizadas a exercê-la,
mesmo em Estados de longa tradição democrática, por vezes tem sua laicidade
explicitamente colocada em xeque, sendo este um fenômeno particularmente
preocupante no âmbito de democracias de frágil tradição, como a brasileira,
onde os debates sobre direitos sexuais e reprodutivos são marcados por fortís-
sima oposição religiosa. (MELLO et al., 2012)
No movimento da democracia representativa, todos os grupos sociais
devem ter o direito de participar das decisões do poder. Assim como ocorre
com movimentos sociais de trabalhadores, de minorias étnicas, de mulheres,
de homossexuais e outros, os grupos religiosos também se articulam a fim de
influenciar a agenda de políticas públicas e a proposição de leis. Nesse sentido,
uma importante estratégia utilizada pelos segmentos evangélicos (neo) pen-
tecostais1 tem sido eleger parlamentares que representem seus interesses na
arena política, como forma de proteger os preceitos morais de sua comunidade
religiosa.
Visando contribuir para a construção de conhecimento e estratégias de
enfrentamento por pesquisadores e ativistas LGBT, apresentamos algumas refle-
xões e construções argumentativas acerca dos dados iniciais da pesquisa de
doutorado Homofobia religiosa evangélica e os embates na produção de políti-
cas para a população LGBT.2
No presente trabalho, buscamos examinar as particularidades do enfrenta-
mento do movimento LGBT com as lideranças evangélicas, a partir de episódios
recentes, que tiveram repercussão na mídia e geraram controvérsias. Como
recurso metodológico, fazemos referência aos discursos e debates proferidos em

1 O termo (neo) pentecostal será utilizado aqui para englobar tanto as denominações evangélicas
pentecostais quanto as neopentecostais, considerando a proximidade das suas concepções teórico-
-doutrinárias acerca da homossexualidade.

2 O objetivo central desta pesquisa visa apreender os nexos entre a expansão da produção de políticas
e direitos igualitários para a população LGBT no Brasil, na última década, e as reações conservado-
ras dos setores evangélicos na arena política, focalizando as percepções e ações dos parlamentares
da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), no Congresso Nacional.

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audiências públicas derivadas de proposições legislativas e projetos de decreto


constitucional apresentados na Câmara Federal, assim como ações e programas
governamentais federais voltados para a população LGBT, que sofreram inter-
rupções ou foram vetados em decorrência de pressões dos setores evangélicos.
Como fonte de consulta, utilizamos os vídeos das referidas audiências públicas,
complementadas pelas notas taquigráficas, notícias e matérias de veículos midi-
áticos, condizentes às mesmas.

As Particularidades do Enfrentamento do Movimento LGBT com


os Segmentos Evangélicos

A participação dos evangélicos no sistema político brasileiro ocorre, princi-


palmente, no poder legislativo. Os primeiros embates entre o então movimento
homossexual brasileiro (MHB) e a bancada evangélica no Congresso Nacional
ocorreram na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-19883, tendo um dos
membros da bancada evangélica, ainda em formação no Congresso Nacional,
o deputado José Viana (PMDB-MA), contestado a evidência científica de que
homossexualidade não é doença. O termo ‘orientação sexual’ foi aceito pelas
duas subcomissões, mas excluído pela Comissão de Sistematização, e defini-
tivamente rejeitado pelo plenário, em janeiro de 1988. Apesar da derrota, as
reivindicações do movimento tinham recebido muita publicidade, e nos anos
seguintes, vários Estados e municípios incorporaram medidas contra a discrimi-
nação por orientação sexual na sua legislação básica. (HOWES, 2003)
Em 2003, foi criada a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) do Congresso
Nacional, com o objetivo de congregar, por meio de cultos semanais, os par-
lamentares evangélicos. Através desses cultos, poderia ser engendrada uma
‘mobilização estratégica’ em torno de bandeiras de luta da FPE quanto à pro-
moção e conversão evangélica no âmbito do legislativo. (DUARTE, 2012)
Como ocorre em outras frentes parlamentares, o pluripartidarismo foi
uma estratégia de atuação adotada pelos dirigentes da FPE, que abarca tendên-
cias ideológicas afins para defender demandas conjunturais. Constitui-se em
um modo de atender reivindicações de determinados segmentos, rompendo as

3 João Mascarenhas foi o primeiro representante do MHB a se apresentar no Congresso Nacional, ante
duas Subcomissões da Constituinte. (CÂMARA, 2015)

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barreiras das estruturas dos partidos políticos. A FPE defende os interesses da


comunidade evangélica, fazendo oposição à aprovação de projetos que ferem
os preceitos bíblicos, o que significa que a oficialização do ‘homossexualismo’
deveria ser combatida e, portanto, não receber o apoio sob a forma da lei, por
ser nociva à sociedade, à moral e aos ‘bons costumes.’ “Reações religiosas que
desqualificam a diversidade sexual são insufladas por sujeitos que percebem
a expansão dos direitos dos homossexuais e a visibilidade e aceitação desta
parcela da população como ameaçadora de seus valores e da própria ordem
social.” (NATIVIDADE & LOPES, 2009, p. 79).
Pressões exercidas por parlamentares da FPE culminaram no cancela-
mento do programa Escola Sem Homofobia, que ficou conhecido como kit gay.
O programa foi alvo da intensa mobilização dos setores conservadores, dentre
eles, parlamentares da FPE, a partir da desqualificação do conteúdo e qualidade
de seu material, assim como o público a que se destinava, aproveitando de
uma situação política específica pelos seus adversários. Em entrevista coletiva,
concedida a veículos midiáticos, a presidente Dilma Rousseff justificou seu posi-
cionamento contrário e decisão de interrupção do referido projeto dizendo que
Não aceito propaganda de opções sexuais. Não podemos intervir
na vida privada das pessoas. O governo pode, sim, ensinar que é
necessário respeitar a diferença e que você não pode exercer prá-
ticas violentas contra os diferentes. É uma questão que o governo
vai revisar, não haverá autorização para esse tipo de política de
defesa A, B ou C. Agora, lutamos contra a homofobia. (UOL
EDUCAÇÃO, 2011)

Foi noticiado, entretanto, que parlamentares evangélicos pressionaram a


Presidente, colocando em jogo a possibilidade de ser instaurada uma comissão
parlamentar de inquérito na área da educação por causa do projeto do material
que seria distribuído às escolas para promover a diversidade e de convocação
do então ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, para esclarecer a multiplica-
ção de seu patrimônio. O governo, porém, negou que esses tenham sido os
motivos do cancelamento do projeto (idem).
Destacamos também o debate sobre a criminalização da homofobia,
decorrente da tramitação do Projeto de Lei da Câmara PLC 122/2006. Desde
o início de sua trajetória, essa proposta enfrenta oposição de setores religiosos
conservadores, envolvendo a reprodução de estigmas e a desqualificação dos

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homossexuais (NATIVIDADE & LOPES, 2009). Militantes religiosos têm se posi-


cionado na esfera pública, contra a aprovação da criminalização da homofobia,
utilizando argumentos que ressaltam o direito à liberdade religiosa. Isto porque
o direito dos grupos religiosos de expressar opinião contrária à homossexuali-
dade estaria cerceado, inclusive, no âmbito da atuação em trabalhos pastorais
de reversão da homossexualidade. Ao longo da tramitação da PLC 122/2006,
evidenciou-se um jogo de forças entre os representantes dos movimentos dos
homossexuais e segmentos religiosos. Em 2011, a senadora Marta Suplicy pro-
pôs uma nova redação para o projeto, a fim de deixar expresso que não se
criminalizaria a “manifestação pacífica de pensamento fundada na liberdade de
consciência e de crença”. Contudo, não houve adesão dos opositores ao pro-
jeto, que passou por várias redações. Em 20 de novembro de 2013, a pressão
de parlamentares evangélicos retirou o PLC 122/2006 da pauta da CDHM, com
o pretexto de se buscar novamente um “texto de consenso”, até que foi arqui-
vado em janeiro de 2015, e apensado ao projeto de reforma do Código Penal.
(ESTADÃO, 2015)
Tais embates evidenciam que as tensões não ocorrem apenas na oposi-
ção ao projeto apresentado, mas envolvem a atuação dos movimentos sociais
e contextos específicos, como períodos eleitorais e a disposição dos ocupantes
de cargos no poder Executivo em reconhecer a legitimidade dos direitos de
minorias sexuais.
Outro episódio recente envolvendo um parlamentar evangélico gerou
grandes controvérsias. A eleição do deputado (e pastor evangélico) Marco
Feliciano (PSC/SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) gerou uma onda de manifesta-
ções contrárias em redes sociais, campanhas e passeatas de grupos organizados
e ativistas dos movimentos LGBT, em decorrência do fato de ter o deputado
Marco Feliciano expressado opiniões consideradas racistas e homofóbicas4
- além do mesmo não ter um histórico de atuação na temática dos direitos
humanos. Líderes evangélicos o apoiaram e o pastor evangélico Silas Malafaia
(conhecido por suas declarações contrárias à homossexualidade) escreveu em

4 O deputado Marco Feliciano havia postado numa rede social, que “africanos descendem de ancestral
amaldiçoado por Noé. Isso é fato.” E também, que “a podridão dos sentimentos homoafetivos leva ao
ódio, ao crime, à rejeição.” Além de ter associado a Aids a uma doença gay. (NATIVIDADE, 2013)

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uma rede social: “nós não pautamos nossas ações pelo que a mídia quer ou
grupos de pressão do ativismo gay. O PSC não pode dar ‘mole’.” Sendo assim, o
deputado Marco Feliciano foi eleito presidente da CDHM, em março de 2013.
Houve manifestações e atos de protestos nas ruas, assim como nas primeiras
sessões da Comissão presididas pelo mesmo, que reagiu, aprovando um reque-
rimento para restringir o acesso do público às reuniões do colegiado. (FOLHA
DE SÃO PAULO, 2013)
A gestão do deputado Marco Feliciano na CDHM foi marcada pela apro-
vação de propostas de teor anti-homossexual. A primeira ação de enfrentamento
pelo deputado foi a votação do projeto conhecido como cura gay5, que pre-
tendia derrubar trechos de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia,
que estabelece normas para os psicólogos em relação à questão da orientação
sexual, vedando a atuação dos mesmos em eventos e serviços que proponham
tratamento e cura da homossexualidade. Foi realizada uma audiência pública
proposta pelo Deputado Feliciano, para discutir o ‘direito de deixar a homos-
sexualidade’, e na ocasião, palestraram a psicóloga Marisa Lobo, e o pastor
evangélico Silas Malafaia defensores do referido PDC. As narrativas de defesa
construídas pelos mesmos têm o sentido de legitimar o discurso religioso na
arena política, a partir da apropriação (sem um rigor científico) de conhecimen-
tos do campo da psicologia, psicanálise, genética, etc, ocorrendo um processo
de transfiguração desse discurso puramente religioso, que ganha contornos
seculares (RORTY, 1996).
O que se pretende ressaltar é o fato de tais discursos e práticas, derivados
de certas interpretações teológicas e exegeses bíblicas particulares, não se limi-
tarem aos templos religiosos, programas de rádio e televisão, mas adentrarem
a arena política através dos parlamentares evangélicos que representam essas
denominações religiosas, ferindo os princípios constitucionais da laicidade esta-
tal. Zylbersztajn (2012) sustenta que a laicidade do Estado brasileiro não é plena,
e que o processo de consolidação da laicidade é histórico e construído, tal como
ocorre com os demais direitos fundamentais. De acordo com Pierucci (2008),
pessoas livres (re) querem Estados laicos. O autor refere-se enfaticamente à

5 Trata-se do Projeto de Decreto Constitucional (PDC 234/11), apresentado pelo deputado federal João
Campos (PSDB-GO), que havia sido arquivado a pedido de seu próprio proponente, devido, entre
outras razões, a pressões internas do seu próprio partido.

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secularização do Estado com seu ordenamento jurídico, e menos à seculariza-


ção da vida, considerando que esta pode refluir, mas a do Estado não.

Considerações finais

Como afirmaram Mello et. all (2014, p. 315), “nunca se teve tanto, e o que
há é praticamente nada”, referindo-se ao paradoxo sobre as políticas públicas
para a população LGBT no Brasil.
Conforme vimos, ao movimento LGBT na atualidade, são colocados obs-
táculos que se referem à produção de políticas públicas e ampliação de direitos
civis para essa população. Uma possibilidade de superação de tais obstácu-
los parece estar no enfrentamento de seus opositores na arena política, o que
implica, em utilizar as estratégias dos mesmos, mobilizando as bases de seu
movimento a fim de eleger parlamentares que representem seus interesses na
arena política. E ainda, uma melhor articulação de parlamentares (das frentes
parlamentares pró LGBT e outras frentes que os representem) pela aprovação
de projetos de lei favoráveis à população LGBT, assim como a criação de novas
frentes parlamentares através da união de representantes setoriais LGBT de par-
tidos políticos diversos, que atuem de forma a superar divergências partidárias,
garantindo o trabalho em conjunto e criando assim, possibilidades de enfrenta-
mento da onda conservadora no Congresso Nacional.

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Referências

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do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 9, 2015.

DUARTE et al.(orgs). Valores Religiosos e Legislação no Brasil. A tramitação de projetos


de lei sobre temas morais controversos. Garamond, Rio de Janeiro, 2009.

ESTADÃO. Projeto que criminaliza a homofobia será arquivado no Senado. São Paulo,
jan. 2015. Disponível em http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,projeto-que-crimi-
naliza-homofobia-sera-arquivado-no-senado,1617260. Acesso em 05 jun 2016.

FOLHA DE SÃO PAULO. Pastor organiza abaixo-assinado para presidir comissão


na Câmara. São Paulo, mar 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
poder/2013/03/1240319-pastor-organiza-abaixo-assinado-para-presidir-comissao-de-
-direitos-humanos.shtml> Acesso em 20 de mar 2014.

HOWES, R. João Antônio Mascarenhas (1927-1998): pioneiro do ativismo homosse-


xual no Brasil. Cad. AEL, v.10, n.18/19, 2003

MELLO, L. et al.. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre
alcances e possibilidades. Cadernos Pagu (39), julho-dezembro de 2012. Disponível
em <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n39/14.pdf> Acesso em 20 mar 2014.

________________ ..Políticas Públicas de Segurança para a população LGBT no


Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(1), jan-abr, 2014.

NATIVIDADE, M. & LOPES, P. V. L..O direito das pessoas GLBT e as respostas religio-
sas: da parceria civil à criminalização da homofobia. In DUARTE et al.(orgs). Valores
Religiosos e Legislação no Brasil. A tramitação de projetos de lei sobre temas morais
controversos. Garamond, Rio de Janeiro, 2009.

RORTY, R. Religion as a conversation stopper. In: Philosophy and social hope. Penguin
Books, 1999.

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UOL Educação. Não aceito propaganda de opções sexuais. Da Redação, São Paulo,
mai, 2011. Disponível. em <http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/05/26/nao-a-
ceito-propaganda-de-opcoes-sexuais-afirma-dilma-sobre-kit-anti-homofobia.htm>
Acesso em 20 mar 2014.

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UTILIZAÇÃO (OU NÃO) DO NOME SOCIAL:


(TRANS) SUBJETIVIDADES EM ÂMBITO ACADÊMICO

Nathália Hernandes Turke


Discente do curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de
Londrina (UEL)
Nathalia.turke@hotmail.com

Fábio Augusto Joinhas


Discente do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de
Londrina (UEL)
fabio.joinhas@gmail.com

Julián Asaff Azevedo


Discente do Curso de Educação Física da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT)
julian_azevedo@hotmail.com

GT 04 -
Travestilidades, Transexualidades, Lesbianidades e Homosexualidades:
Transgressões e Resistências

Resumo

Identidade de gênero é um conceito extremamente abrangente e que atualmente está


conquistando grande visibilidade em discussões referentes à sexualidade. Quando
tratado em âmbito acadêmico, é algo posto à prova, principalmente no que se refere
a pessoas transexuais e o direito ao uso do nome social. A presente pesquisa foi
realizada com a aplicação online de um questionário para 13 pessoas transexuais,
bem como através de uma entrevista com uma mulher transexual, tendo por obje-
tivo principal mostrar as dificuldades e preconceitos que estas pessoas estão sujeitas
ao tentar mudar seu nome de registro para o nome social em âmbito acadêmico.
Percebeu-se a extrema importância do tratamento de pessoas transgênerxs pelo
nome social, evitando constrangimento e humilhação por parte dxs mesmxs.
Palavras-chave: Identidade de gênero; transexualidade; preconceito; padrões
sociais; escola/universidade.

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Introdução

“Identidade de gênero” pode ser definida como a experiência interna


e individual sentida por cada pessoa em relação ao gênero, a qual pode, ou
não, corresponder ao sexo atribuído ao nascimento, estando incluso o senti-
mento pessoal do corpo, incluindo o modo de se vestir, falar e agir, o que nada
tem a ver com a “orientação sexual” de cada indivíduo – relaciona-se com a
capacidade de cada pessoa de sentir atração emocional, afetiva ou sexual por
indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero
(PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007).
Em termos de gênero, os seres humanos são identificados como cisgê-
nerxs (cis), sendo indivíduos que se identificam com o sexo ao qual nasceram,
ou transgênerxs (trans), xs quais não se reconhecem pelo sexo biológico (defi-
nido ao nascimento). Levando-se isso em consideração, destaca-se que uma
pessoa transgênerx pode ser assexual, heterossexual, homossexual, bissexual
ou pansexual.
Quando se fala em inclusão social de pessoas transexuais, deve-se levar
em conta que nem sempre há respeito com relação ao direito do uso do nome
social, principalmente dentro do ambiente acadêmico, o qual é garantido por
lei, segundo a resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015. Ressalta-se que o
nome social é definido como o nome pelo qual pessoas transexuais se identi-
ficam independentemente do sexo e nome encontrados em seu registro civil.
Ao refletir sobre a importância da escola perante a sociedade, surge a
questão relativa ao preconceito enfrentado por aqueles que desafiam as normas
de papéis masculinos e femininos no espaço escolar (VIEIRA & NETO, 2015).
Pereira (2008) destaca que toda pessoa tem direito ao nome, erigindo-o a um
direito inerente à personalidade do indivíduo, não podendo jamais ser motivo
e fonte de humilhação e ofensas, situações constrangedoras e preconceituo-
sas. Porém, muitos professores ainda se negam a tratar xs alunxs transexuais
pelo nome social, não aceitando mudar seu nome na chamada, insultando x
estudante.
De acordo com Zambrano (2003), a permissão para a troca de nome e
sexo no registro civil, independentemente da realização da cirurgia, resolveria o
problema mais agudo da vida cotidiana dxs transexuais. A conquista do direito
ao nome social cria mais oportunidades de ensino e aprendizado na escola.

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Sendo assim, esse trabalho teve o objetivo de conhecer as dificuldades e


preconceitos que pessoas transexuais estão sujeitas ao tentar mudar seu nome
de registro para o nome social em ambiente acadêmico (escolar e universitário),
bem como compreender a importância da utilização, por parte de todas as pes-
soas, do nome social ao se dirigir a homens e mulheres transgênerxs.

Metodologia

A presente pesquisa foi realizada com a aplicação online de um ques-


tionário para 13 pessoas transexuais, as quais foram selecionadas através de
conversas em redes sociais, bem como através de uma entrevista com uma
mulher transexual. O questionário foi dividido em duas partes, sendo a primeira
necessária para o conhecimento do gênero (masculino, feminino ou não biná-
rix), orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual ou
assexual), idade e escolaridade dx entrevistadx. A segunda parte foi composta
por perguntas pessoais sobre sua trajetória desde a infância até a juventude ou
idade adulta, bem como sua dificuldade em mudar, em âmbito acadêmico, o
nome de registro para o social, incluindo a importância da utilização do nome
social por parte da sociedade.

Quadro 1 – Perguntas aplicadas na segunda parte do questionário


Número da Questão Perguntas aplicadas
Questão 01 Quando se “descobriu” transexual?
Já assumiu para o mundo que é transexual? Se sim, com qual idade?
Questão 02
Se não, por quê?
Fale um pouco sobre como foi sua passagem da infância para a
Questão 03
adolescência (mudança no corpo e afins).
Já sofreu preconceito na escola/universidade por ser transexual? Se
sim, esse preconceito ocorre, na maioria das vezes, por outros alunos
Questão 04 da escola (colegas de sala, de outras salas e afins...) ou por parte dos
professores e coordenação pedagógica (supervisores, coordenadores,
diretores...)?
Na escola/universidade, colocaram seu nome social na chamada? Ou
Questão 05
continuam te tratando pelo nome de registro?
Questão 06 Como se sente quando te tratam pelo seu nome de registro?
Acha importante todos os locais aceitarem mudar seu nome de registro
Questão 07
para o nome social? Por quê?
Fonte: Dados organizados pelos autores, com base nas questões propostas

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Os questionários foram avaliados mediante as seguintes questões: “A


maioria das pessoas entrevistadas usa seu nome social em âmbito acadêmico
ou continua utilizando o nome de registro?”, “Quais os preconceitos sofridos
por uma pessoa transexual na escola/universidade?”, “Por que é tão importante,
para estas pessoas, a mudança do nome de registro para o social?”.

Resultados e discussão

Com relação à primeira parte do questionário, teve-se como resultado


que, dentre as 14 pessoas entrevistadas, 11 são transexuais masculinos, 2 são
transexuais femininos e 1 é transexual não binárix. Com relação à orientação
sexual, 5 são heterossexuais, 4 pansexuais, 3 bissexuais e 1 é homossexual.

Quadro 2 – Estatística do sexo e gênero e orientação sexual de cada participante da entrevista


Gênero/ Transexual não
Transexual Masculino Transexual Feminino
Orientação Sexual binárix
Homossexual 01 (7,14%)
Bissexual 03 (21,43%)
Pansexual 03 (21,43%) 01 (7,14%)
Heterossexual 04 (28,57%) 02 (14,28%)

Fonte: Dados organizados pelos autores, com base nas respostas dos entrevistados

Houve variação na faixa etária, tendo quatro entrevistados (30,80%) 16


anos, dois (15,40%) 18 anos e oito (57,14%) mais que 18 anos. No que diz res-
peito à escolaridade, 5 (38,50%) estão cursando o ensino médio, sendo que 3
estudam em escola pública e 2 em escola particular, enquanto que 9 (64,28%)
cursam o ensino superior – todxs graduandxs de universidades públicas.
A segunda parte do questionário foi composta por questões de cunho
pessoal, tendo as três primeiras o objetivo de conhecer um pouco sobre x entre-
vistadx. Ao serem questionadxs sobre quando se “descobriram” transexuais,
todxs foram unânimes ao dizer que sempre se sentiram diferentes das demais
pessoas, mas não sabiam os motivos disso ou “qual nome” dar a esta diferença.
Muitxs começaram a entender o que é ser transexual e passaram a se identificar
como tal através de palestras, conversas com amigos e pesquisas na internet – a
maioria, apenas por volta dos seus 15 anos ou após adentrar na universidade,

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como expõe o entrevistado 11, transexual masculino, ao falar sobre as mudan-


ças ocorridas em seu corpo entre a infância e a juventude, expondo como
apenas pôde ser “ele mesmo” quando chegou à faculdade:
“Foi a época mais horrível da minha vida, pra ser sincero foi ali que
eu morri, que meu corpo sem traços começou a ser rotulado pela
sociedade. Sempre questionava por que tinha nascido assim, por
que meus irmãos nasceram homens no corpo certo e eu não, só
imaginava que era um castigo. Lembro de rezar para morrer assim
que entendi que meu corpo não seria como imaginava, que ele teria
intrusos (seios) e outras coisas. Mas por questões religiosas, imagi-
nava que nada do que fizesse me tornaria um homem e que deveria
me aceitar como era. Passei então a tentar ser uma “mulher”, mas
era sempre algo que não conseguia manter por muito tempo. Até
chegar na faculdade e ver que não era bem assim, que poderia ser
eu, ser homem.” (Entrevistado 11)

Dxs 14 entrevistadxs, 10 já assumiram para o mundo sua transexualidade,


variando apenas no momento em que isto ocorreu – alguns se exibiram com o
sexo oposto ao que nasceu entre 10 e 23 anos, enquanto que dois disseram que
apenas o fizeram após os 30 anos de idade. Quando indagadxs sobre como foi
sua passagem da infância à juventude, mais de 80% dxs entrevistadxs disseram
que já não se achavam mais “normais” ao adentrar na puberdade, momento
onde o corpo começa a se transformar, e que estas mudanças foram as mais
constrangedoras e assustadoras de toda a sua vida.

Quadro 3 – Respostas dos entrevistados para a terceira pergunta da segunda parte do questionário

Respostas referentes à questão: “Fale um pouco


Pessoa
Descrição sobre como foi sua passagem da infância para a
entrevistada
adolescência (mudança no corpo e afins)”.
Sofri muito bullying e era extremamente antissocial.
Entrevistadx Transexual masculino –
Eu odiei a menstruação e os peitos, mas tentei me
05 universidade pública.
conformar.
Entrevistadx Transexual masculino – Odiava meu corpo, raramente me olhava no espelho
13 de escola pública. e era muito depressivo.
Foi no momento que descobri que meu corpo era
Entrevistadx Transexual feminina – diferente dos das minhas amigas e por não menstruar
08 universidade pública. entendi que “não tinha o que precisava pra ser uma
menina”.

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Entrevistadx Transexual masculino – Foi repleta de momentos constrangedores, ao tentar


04 escola particular. esconder as curvas e intrusos.
Fonte: Dados organizados pelos autores, com base nas respostas dos entrevistados

Nove dxs quatorze entrevistadxs asseguraram continuar sendo tratados


pelo nome de registro em âmbito acadêmico, ou seja, xs professorxs não muda-
ram seu nome para o social na hora da chamada. Xs cinco que disseram serem
tratadxs pelo nome social já estão na universidade e afirmaram que só foi pos-
sível a mudança de nome ao solicitá-lo, legalmente, ao coordenador do curso,
como expõe o entrevistado 07: “Colocaram depois que eu mandei uma carta
para a coordenadora do curso com a lei do MEC, que eu tinha direito” e a
entrevistada 08: “Pude solicitar o nome graças à conquista de um grupo de
pessoas e também porque já havia uma travesti na universidade”.
Todxs xs entrevistadxs foram unânimes ao dizer que é de suma impor-
tância todos os lugares aceitarem mudar seu nome de registro para o social,
expondo que se sentem desconfortáveis ao serem tratadox pelo sexo de registro
– utilizaram palavras como “tristes, nervosos, desconfortáveis, incomodados,
com vergonha, constrangidos, “um lixo”, ofendidos”, ao expressar seus senti-
mentos quanto a isso. Alguxs até enfatizaram que, quando isso ocorre, não
respondem, fingem que não é com elxs.

Quadro 4 – Respostas dos entrevistados para a sétima pergunta da segunda parte do questionário

Respostas referentes à questão: “Acha importan-


Pessoa
te todos os locais aceitarem mudar seu nome de
entrevistada Descrição
registro para o nome social? Por quê?”
Lógico que sim. O uso do nome de registro
Entrevistadx Transexual masculino – deslegitimar o gênero das pessoas, a forma como
10 universidade pública queremos que a sociedade nos veja. Sem falar no
constrangimento, no preconceito, nas agressões.

É um direito básico ser chamada pelo nome, é artigo


Entrevistadx Transexual feminina – com qual me identifico. A situação do nome de
08 universidade pública registro é muito constrangedora e priva as pessoas
trans de circularem pelos espaços sociais.
Sim. Meu sonho é entrar pra faculdade no próximo
Entrevistadx Transexual masculino –
ano com meu nome social, poder conseguir meu
03 escola particular
trabalho usando o meu nome social.

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Acho importante não somente por ser uma questão


trans, mas por saber que seu nome está relacionado
Entrevistadx Transexual não binário
com sua identidade subjetiva, que cabe somente a
11 – universidade pública
mim fazer esse tipo de escolha, de como quero ser
tratada.
Entrevistadx Transexual masculino – Sim, pois a minha imagem não me representa com o
07 universidade pública nome de registro.
Fonte: Dados organizados pelos autores, com base nas respostas dos entrevistados

Através disso, é possível observar que todxs xs entrevistadxs que ainda


estão na escola não tiveram o direito de mudar seu nome de registro para o
social e isto ocorre, provavelmente, porque a maioria dxs professorxs não acei-
tam esta mudança – mesmo nas universidades, não bastou x alunx pedir para
ser tratadx por outro nome; isso apenas foi possível através de um pedido oficial
ao colegiado do curso.

Considerações finais

Através dessa pesquisa, foi possível notar que há enorme dificuldade, por
parte de indivíduos transexuais, em mudar seu nome e sexo definidos no regis-
tro civil pelo social em ambientes públicos e privados, principalmente dentro de
escolas e universidades. Isso ocorre por conta da não aceitação da maioria das
instituições em alterar o nome sem um pedido judicial. Nem todxs xs entrevis-
tadxs são tratadxs pelo nome social em ambiente acadêmico, ressaltando que
xs que o são apenas conseguiram este direito ao entrar com um pedido formal
ao colegiado do curso, destacando estarem amparadxs por lei, ou seja, perce-
be-se que a maioria dos professores ainda se nega a mudar o nome na hora da
chamada.
Conclui-se que é de extrema importância o tratamento de pessoas trans-
gênerxs pelo nome social, evitando assim o constrangimento e a humilhação
por parte dxs mesmxs, seja publicamente como individualmente.

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Referências

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Conselho Nacional


de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais.
Resolução n. 12, de janeiro de 2015. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília,
12 mar. 2015. Seção 1, p. 3.

PEREIRA, R. D. B. O transexualismo e a alteração do registro civil. 2008. Disponível


em: <http://jus.com.br/artigos/11211/o-transexualismo-e-a-alteracao-do-registro-
-civil#ixzz3SlfxNeCs>. Acesso em: 30 mar. 2016.

PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA: princípios sobre a aplicação da legislação internacio-


nal de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Trad.
Jones de Freitas. Rev. técnica Sonia Corrêa e Angela Collet. Yogyakarta/Indonésia,
2007.

VIEIRA, T. R.; NETO, F. C. Direito à adequação do nome do transexual no ambiente


escolar. In: IV Simpósio Internacional de Educação Sexual, 2015, Maringá, PR, Brasil.
Anais... Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2015 p.2.

ZAMBRANO, E. Trocando os documentos: um estudo antropológico sobre a cirur-


gia de troca de sexo. Dissertação de Mestrado não publicada, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS,
2003.

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SUMÁRIO

A FORMAÇÃO CIDADÃ POR MEIO DOS LETRAMENTOS: REFLETINDO SOBRE


PERFORMANCES DE GÊNEROS NA ESCOLA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1407
Amanda Cordeiro Quintella | Alexandre José Cadilhe

MÍDIA E MULHER ATLETA – O PRECONCEITO AINDA IMPERA?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1411


Ana Clara de Melo Villaça | Gabriela Teixeira Paula | Selva Maria Guimarães Barreto

A CONSTRUÇÃO LINEAR SEXO, GÊNERO, SEXUALIDADE:


POR UMA DESCONSTRUÇÃO QUE LIBERTE A PESSOA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1415
Daniel Paulino da Silva

A PRESENÇA FEMININA NA ÁREA DESPORTIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1420


Gabriela Teixeira Paula | Ana Clara de Melo Villaça | Selva Maria Guimarães Barreto

O IMPACTO DO NOME SOCIAL E COTIDIANO ESCOLAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1424


Katrini Alves da Silva | Leandro Leal de Freitas

AQUI DENTRO É COISA SÉRIA! (TRANS)PONDO O USO DO BANHEIRO E DO


NOME SOCIAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1428
Matheus Moura Martins | Ronaldo Batista de Araújo | Sandro Prado Santos

ROUPA E PERFORMANCE COMO POSICIONAMENTO SOCIAL DA IDENTIDADE


DE GÊNERO DOS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1432
Paula Parra Alves de Oliveira

LINHAS E TRAÇADOS DAS EXPERIÊNCIAS TRANS SOBRE CORPO HUMANO


NO CAMPO DO ENSINO DE BIOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1435
Sandro Prado Santos | Elenita Pinheiro de Queiroz Silva

DIVERSIDADE SEXUAL NA EDUCAÇÃO EM UMA


SOCIEDADE HETERONORMATIVA E PATRIARCAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1439
Roberto Pacobahyba Rodrigues | Aderine Moutinho de Paula Amaro Crispim de Souza

VIII Congresso Internacional


ISBN 978-85-61702-44-1 1405 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

ILUMINANDO MENTES INTOLERANTES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1443


Roberto Pacobahyba Rodrigues | Matheus Almeida Felix
Francine Nascimento de Oliveira

POR QUE GÊNERO E SEXUALIDADE NA AULA? QUESTÕES DE SEXISMO E


VIOLÊNCIA NA ESCOLA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1448
Matheus Couto Hotz | Rúbia Dias Botelho | Alexandre José Cadilhe

TEORIA QUEER E PSICANÁLISE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1453


Natália de Andrade de Moraes | Fernanda de Oliveira Alves | Claudia Maria Perrone

BATUCLAGEM DIVERSAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1457


Ana Maria Dietrich | Daniele da Silva Benicio | Felipe Borges Debossam Moreira

REPENSANDO DIREITOS HUMANOS NA ESCOLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1461


Ana Maria Dietrich | Juliana Fabbron Marin Marin

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ISBN 978-85-61702-44-1 1406 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

A FORMAÇÃO CIDADÃ POR MEIO DOS


LETRAMENTOS: REFLETINDO SOBRE
PERFORMANCES DE GÊNEROS NA ESCOLA

Amanda Cordeiro Quintella


Graduanda em Letras – UFJF
amandacquintella@yahoo.com

Alexandre José Cadilhe


Doutor em Estudos da Linguagem – UFF
Prof. Adjunto – Departamento de Educação da UFJF
alexandre.cadilhe@ufjf.edu.br

Introdução

A presença de temas como gênero e sexualidades no conteúdo esco-


lar tem sido discutida e considerada necessária por profissionais da educação.
Ainda assim, surgem dúvidas sobre como trabalhar esses temas presentes no
cotidiano dos professores. Deste modo, neste estudo, buscamos refletir sobre
este problema, bem como propor uma atividade que alinhe Letramentos e
Teoria Queer na sala de aula da Educação Básica.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa do
terceiro e do quarto ciclos do Ensino Fundamental buscam orientar a prática
docente em sala de aula. Nesse documento, são apresentados objetivos gerais
do ensino, sendo um deles:
Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural
brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e
nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada
em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de
etnia e outras características individuais sociais. (p.7)

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ISBN 978-85-61702-44-1 1407 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Esse objetivo está em concordância com a Declaração dos Direitos


Humanos (DUDH), como é perceptível no seguinte trecho: “2- A instrução será
orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do
fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamen-
tais.” (Artigo XXVI).
Além destes documentos, Bentes (2014) destaca a importância “de cons-
trução e formação de sujeitos capazes de conhecer, respeitar e solidarizar-se
com as diferenças” (p.44), já que são constantes os conflitos no ambiente esco-
lar diante de indivíduos considerados fora do padrão construído socialmente.
Portanto, considerando que na DUDH “toda pessoa tem capacidade para
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos” (Artigo II) e que “toda pessoa
tem direito à instrução” (Artigo XXVI), esta instrução necessita seguir os obje-
tivos propostos pelos documentos norteadores e ser usada como instrumento
de diminuição da violência gerada pelos preconceitos e como caminho para a
formação de sujeitos críticos e que respeitem as alteridades.

O trabalho com gênero e sexualidades por meio de práticas de


letramento

Moita Lopes (2010) busca soluções para a abordagem dos temas sexua-
lidades e gênero em sala de aula sugerindo o uso da teoria queer. Segundo o
autor:
A posição queer acarreta o entendimento da sexualidade como
dinâmica e cambiante, o que implica compreender que os objetos
de desejo podem mudar durante a vida ou em práticas discursivas
diferentes: nossas performances de sexualidade podem ser mutá-
veis. Essa percepção envolve a concepção da sexualidade como
algo que nunca está pronto ou que está sempre se fazendo e que
pode ser construída e re-construída discursivamente.” (p.141)

Logo, a teoria colaboraria com a desconstrução das visões de sexuali-


dades e gênero padronizadas e difundidas como únicas no meio social. Além
disso, os alunos refletiriam sobre as diferenças e atravessamentos identitários
variados individuais, como explica o autor por meio de exemplos (p.137).
Já em Moita Lopes & Fabrício (2010), os autores alinham teoria queer e
estudos sobre Letramentos, considerando que “as práticas de letramento são

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ISBN 978-85-61702-44-1 1408 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

práticas discursivas envolvendo qualquer tipo de conversa sobre texto” (p.290),


nas quais os participantes de posicionam. Sendo assim, pelo fato de gênero e
sexualidades constituírem assuntos que permeiam o meio social, estão presen-
tes em textos (sejam orais ou escritos) que podem ser usados para promover
conversas e questionamentos sobre os temas.
Desta forma, apresentamos uma sugestão para abordar questões de
gênero em uma turma de 6º ano do ensino fundamental a partir de uma prática
de Letramento com o uso de três tiras, sendo duas de Maurício de Souza e uma
do cartunista Jean Galvão, que abordam a questão de brincadeiras que são indi-
cadas como “de menino” ou “de menina”. O objetivo da prática de letramento
realizada é de questionar os/as estudantes sobre essa questão de forma crítica e
reflexiva. Além disso, a atividade inicial proposta pode ser continuada por meio
de outros textos e de produções feitas pelos alunos, como, por exemplo, listas
de brincadeiras e brinquedos classificados como “de menina” e “de menino”,
que podem ser refeitas após as discussões visando à retirada das classificações.

Considerações finais

A atividade indicada constitui uma possibilidade da promoção de práti-


cas de letramento alinhada à teoria queer para trabalhar gênero e sexualidades
na escola, contribuindo com a formação de cidadãos mais éticos, assim como
orientam os PCNs, e colaborando com a melhoria do espaço escolar, como
sugere Moita Lopes (2010):
Que a escola seja um lugar de re-criar e politizar a vida social, de
compreender a necessidade de não separar cognição e corpo, de
se livrar de discursos binários aprisionadores, de se questionar inin-
terruptamente e de se preocupar com justiça social e ética! (p. 144 )

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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

BENTES, A.C. Oralidade, Política e Direitos Humanos. In ELIAS, V. (org.). Ensino de


Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Contexto, 2014.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino funda-


mental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental: Brasília: MEC/SEF,
1998. 106 p.

FABRICIO, B.F. & MOITA LOPES, L.P. A dinâmica dos (re)posicionamentos de sexua-
lidade em práticas de letramento escolar. In MOITA LOPES, L.P. & BASTOS, L.C. Para
além da identidade: fluxos, movimentos e trânsitos. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG,
2010.

MOITA LOPES, L.P. Sexualidades em sala de aula: discurso, desejo e teoria queer. In
MOREIRA, A.F. & CANDAU, V.M. (org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e prá-
ticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2010.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1410 de Estudos sobre a Diversidade
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MÍDIA E MULHER ATLETA – O PRECONCEITO AINDA IMPERA?

Ana Clara de Melo Villaça


Graduanda na Faculdade de Educação Física e Desportos
Universidade Federal de Juiz de Fora
claramelo14@hotmail.com

Gabriela Teixeira Paula


Graduanda na Faculdade de Educação Física e Desportos Universidade
Federal de Juiz de Fora
gabrielatpaula@hotmail.com

Selva Maria Guimarães Barreto


Doutora em Educação
Professora na Faculdade de Educação Física e Desportos
Universidade Federal de Juiz de Fora
selva.barreto@ufjf.edu.br

Introdução

Nunca foi fácil para as mulheres adentrarem à prática esportiva pois quase
sempre havia empecilhos que dificultam o avanço a sua inserção sistematizada,
sendo um grande exemplo disso os Jogos Olímpicos que, por muitos anos, não
reconheceram as modalidades femininas (VALPORTO, 2006).
No Brasil, nas primeiras décadas no início do século XX, a natação, assim
como as ginásticas, o vôlei e o tênis, foram incorporados como esportes volta-
dos para as mulheres, tendo como base os conceitos e interesses impostos pelo
Estado visando à mulher saudável, a beleza estética valorizando a feminilidade
e, tendo como princípio norteador, a reprodução da espécie gerando filhos
fortes e saudáveis (DEVIDE, 2003; 2004; GOELLNER, 2005). Porém, no final do
mesmo século, surgem as atletas olímpicas da Alemanha Oriental, causando,
um choque “cultural” muito realçado pela imprensa.
Assim, vem sendo percebido através da influência que a imprensa escrita
proporciona com relação a exaltação do corpo da mulher no decorrer dos

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

tempos, é que, a estética e a exaltação do corpo feminino aparecem em maior


evidência do que o sucesso do desempenho, habilidade e eficiência na prá-
tica esportiva, que no caso, deveriam receber maior destaque (DEVIDE, 2003;
GOELLNER, 2005; ALTMANN, 2015).
Sendo assim, o presente trabalho visa fomentar uma discussão inicial
sobre o poder que a mídia exerce perante as práticas esportivas de mulheres
atletas, seja na exaltação do belo ou de preconceitos.

Metodologia

Trata-se de um artigo de revisão bibliográfica sistemática com viés na


revisão integrativa onde foram coletados notícias de mulheres no esporte e
os preconceitos que sofreram em mídias virtuais, chegando até a atual notícia
envolvendo a tenista Maria Sharapova. A análise e coleta de dados foram rea-
lizadas, através de revisões de matérias ou jornais on-lines no período entre os
dias 8 a 12 de junho de 2016.

Resultados

Elencamos para análise, notícias que falassem de 3 atletas brasileiras sendo


elas, a jogadora de futebol Marta quase sempre denominada de “Pelé de saias”,
a jogadora de vôlei Keila e a judoca Edinanci denominada de hermafrodita, e 2
estrangeiras, as tenistas Serena Williams usualmente comparada a um gorila e a
Maria Sharapova que “mereceu” a seguinte manchete: “Quase perfeita - Maria
Sharapova supera a chuva, mas não a celulite, e arrasa rival em Roland Garros”
(CORREIO BRASILIENSE, 2009; SOARES, 2013; MANCHETE FOLHA DE SÃO
PAULO, 2013; SILVA, 2014; DESMOND-HARRIS, 2015).

Considerações finais

A mídia estabelece padrões e os diferentes corpos sociais, de forma acrítica


e irresponsável, os acata, perpetuando e estimulando em uma cultura calcada
em algumas ideias e comportamentos enraizados, arcaicos e preconceituosos
visto que, ainda hoje, vivemos em uma sociedade patriarcal, machista e sexista
que apenas observa a prática da mulher de forma estética e não profissional.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Felizmente pode-se notar uma crescente onda de questionamentos e pro-


testos em relação ao padrão estabelecido como “ideal” pela mídia/sociedade,
o que fomenta discussões em diversas áreas e está diretamente ligado com o
movimento feminista e à mudança de paradigmas na prática esportiva feminina
e seus estereótipos.
Cabe a todos os povos a construção, a vivência e manutenção de um
olhar mais crítico sobre o que perpassa em sua cultura e sociedade, além de
estimular as diferenças e igualdades entre os sexos, haja vista o fato de que a
exaltação do corpo da mulher vir antes do resultado obtido pelo desempenho
desportivo da mesma, diferentemente do que acontece no âmbito da prática
esportiva masculina, o que denota uma segregação na prática esportiva entre
homens e mulheres.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências
ALTMANN, H. EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR relações de gênero em jogo. São Pau-
lo: Cortez, 2015. 174 p.

CORREIO BRASILIENSE. A difícil vida de uma atleta hermafrodita. Correio bra-


siliense, 23 nov. 2009. Disponível em: <http://www.pbagora.com.br/conteudo.
php?id=20091123105235>. Acesso em: 09/06/16.

DESMOND-HARRIS, J. Cada vitória de Serena Williams vem acompanhada de racis-


mo e sexismo revoltantes. Geledés, São Paulo, 12 jun. 2015. Disponível em: <http://
www.geledes.org.br/cada-vitoria-de-serena-williams-vem-acompanhada-de-racis-
mo-e-sexismo-revoltantes/>. Acesso em: 09/06/16.

DEVIDE, F. P. História das Mulheres na natação brasileira no século XX: das ade-
quações às resistências sociais. 2003. 347f. Tese (Doutorado em Educação Física e
Cultura) - Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2003.

____________. A natação como elemento da cultura física feminina no início do sé-


culo XX: construindo corpos saudáveis, belos e graciosos. Movimento, Porto Alegre,
v. 10, n. 2, p.125-144, maio/ago., 2004.

GOELLNER, S. Mulher e esporte no Brasil: entre incentivos e interdições elas fazem


história. Revista Pensar a Prática, v.8, n.1, p.85- 100, jan/jun. 2005.

MANCHETE. Quase perfeita - Maria Sharapova supera a chuva, mas não a celuli-
te, e arrasa rival em Roland Garros. Folha de São Paulo, São Paulo, 01 jun. 2013.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/paywall/signup-colunista.shtml?ht-
tp://www1.folha.uol.com.br/fsp/corrida/111839-5-minutos.shtml>. Acesso em:
08/06/16.

SILVA, G. C. A feminilidade em teste no esporte. Xadrez verbal, São Paulo, 12 dez.


2014. Disponível em: <https://xadrezverbal.com/2014/12/12/a-feminilidade-em-tes-
te-no-esporte/>. Acesso em: 09/06/16.

SOARES, L. Jogadora Marta conta como foi difícil entrar para o futebol; leia entre-
vista. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jun. 2013. Disponível em: <http://www1.
folha.uol.com.br/folhinha/2013/06/1302974-jogadora-marta-conta-como-foi-di-
ficil-entrar-para-o-futebol-leia-entrevista.shtml>. Acesso em: 09/06/16.

VALPORTO, O. Atleta, substitutivo feminino: vinte mulheres brasileiras nos Jogos


Olímpicos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.

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A CONSTRUÇÃO LINEAR SEXO, GÊNERO, SEXUALIDADE:


POR UMA DESCONSTRUÇÃO QUE LIBERTE A PESSOA

Daniel Paulino da Silva1


Graduando em Direito
Universidade Federal de Juiz de Fora - Campus Governador Valadares
danyel_silva23@hotmail.com

Resumo

A sociedade é marcada por uma linearidade sexo, gênero, sexualidade, que


engessa e limita a pessoa no desenvolvimento integral de sua pessoalidade. Este
trabalho parte da análise de uma reflexão histórica, tratando da influência cristã
nesta linearidade, bem como o reflexo que ocorre no Direito brasileiro. A pessoa
construída socialmente e culturalmente é dotada assim de uma imutabilidade
de características previamente instituídas a ela antes do seu próprio desenvol-
vimento da pessoalidade. Assim é importante uma visão plural e ampla, que
propicie uma desconstrução da linearidade exposta, para que a pessoa possa
construir o ser pessoa em uma essência transcendental, com a consequente
absorção pelo Direito, de uma maneira não limitadora.
Palavras-chave: sexo, gênero, sexualidade, imutabilidade, desconstrução

1 Graduando em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares


Bolsista do Projeto de Extensão “Observatório do Orçamento Público de Governador Valadares” –
UFJF-GV
Voluntário do Projeto de Pesquisa “Teoria da Decisão Judicial e Jurisdição Constitucional”  - UFJF/
PROPESQ
Integrante do Grupo de Estudo “A História do Direito vista pelo processo de constitucionalização
brasileiro” da UFJF-GV

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Um Direito orientado pela moral cristã: a linearidade sexo,


gênero e sexualidade

O Direito é fruto de um fenômeno social, que regula as diversas situações


e relações das pessoas. Assim sendo, o Direito é dotado de uma historicidade,
vale ressaltar, a influência direta que o Direito brasileiro recebeu do Direito
Canônico. O registro civil de pessoas naturais é uma influência direta da Igreja
Católica, que o estado incorporou essa função. Influências que vigoram ainda
no Direito Contemporâneo, exemplo direto, é a Lei brasileira número 6.015 de
1973, que trata dos registros públicos, em seu artigo 54, II traz:
II. o sexo do registrado

O exposto corrobora com a visão de que o direito brasileiro tratou e ainda


trata a pessoa, influenciado por uma moral cristã naturalizada, que aprisiona o
ser pessoa na lógica relação engessada: sexo, gênero e sexualidade.

O “ser pessoa” em sexo, gênero e sexualidade: influência externa

Na sociedade cada pessoa nascida é rotulada logo ao nascimento através


de características biológicas, se nasce com pênis é pertencente ao sexo mascu-
lino, se nasce com vagina é pertencente ao sexo feminino. Esta análise biológica
dos corpos incorpora-se ao Direito, sendo a pessoa já no registro civil, caracte-
rizada de acordo com seu sexo, este passa a ser uma característica apriorística.
O Direito dispõe assim de um modo de ser pessoa, com características
pré-constituídas. No artigo 11 do Código Civil brasileiro de 2002, estatui que:
Art. 11. (...) os direitos da personalidade são intransmissíveis e irre-
nunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Isso corrobora com a visão limitadora que o Direito tem da pessoa, que
fica limitada em sua pessoalidade, com riscos ao não desenvolvimento pleno de
sua própria identidade de gênero e identidade sexual.

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Uma construção social da ideia de sexo e gênero e a


hierarquização cultural do gênero

Em uma abordagem da matriz da inteligibilidade, é possível ter uma ideia


de que a identidade de gênero é uma construção de adequação ao contexto
social, para a representação de papeis, o ser homem e o ser mulher. O gênero
no papel que assume é uma característica que aprisiona a pessoa em sua essên-
cia, dotado de um ideal de imutabilidade sendo pré-definido socialmente.
(BUTLER, 2003, p. 200)
O gênero mostra-se como um reflexo da identidade pessoal, que fica
impossibilitada para um desenvolvimento que fuja aos padrões, ou seja, o que
é determinado socialmente.
Os moldes sociais são limitadores da pessoa, a construção que se faz da
noção de identidade de gênero é o reflexo cultural de uma sociedade voltada à
hierarquização em torno dessa estrutura.
Cabe ressaltar a importância de Simone de Beauvoir em seus estudos
que opõe natureza e cultura em torno desta construção. Representando a forte
influência cultural que existe na construção do corpo, sendo este o puro reflexo
da linearidade já exposta, sexo, gênero e sexualidade, sendo um aparato para
desigualdades socialmente construídas. Desigualdades que se mostram na dis-
paridade entre o homem e a mulher e também quanto à representação cultural
da heterossexualidade frente aos movimentos LGBTi2. (BEAUVOIUR 1980, v. 2).

Considerações finais

Através da análise do exposto, observa-se que a linearidade sexo, gênero e


sexualidade é uma construção social, que possuí raízes ligadas ao cristianismo,
campo das ciências biológicas e chega a ter reflexo identitário com tendência
ao aprisionamento pelo direito, que não abarca tal complexidade. Porém a pes-
soalidade não se desenvolve no sentido unívoco que a pessoa é submetida, a
pessoalidade possui múltiplas facetas.
A desconstrução que quebre com o processo naturalizado do gênero é
importantíssimo para um desenvolvimento pleno e integral da pessoalidade,

2 É o acrônimo para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e intersexuais.

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refletindo em uma transcendência além da própria pessoa. Devendo assim o


Direito incorporar essa tendência, para que a pessoa não fique limitada a um rol
de características que são atribuídas com base em análises superficiais, como
na determinação do sexo por exemplo.
A desconstrução destes dados apriorísticos e limitadores que são: sexo,
gênero, sexualidade, vem a levantar o enfoque de um desenvolvimento pleno
da pessoa, colocando em pauta uma própria reconstrução do que é ser pessoa.

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Referências

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de jan. de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União
–Seção 1 – 11/01/2002, Página 1.

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dez. de 1973. Lei de registros públicos. Diário Oficial
da União – Seção 1 – 31/12/1973, Página 13528.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução


de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª Ed., 2003.

DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo. V. 2. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

LOPES, Laís Godoi. Corpos e práticas da pessoalidade: a emergência e a desconstru-


ção da identidade de gênero. Dissertação – Faculdade de Direito e Ciências do Estado,
UFMG, Minas Gerais, 2014.

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A PRESENÇA FEMININA NA ÁREA DESPORTIVA

Gabriela Teixeira Paula


Graduanda na Faculdade de Educação Física e Desportos
Universidade Federal de Juiz de Fora
gabrielatpaula@hotmail.com

Ana Clara de Melo Villaça


Graduanda na Faculdade de Educação Física e Desportos Universidade
Federal de Juiz de Fora
claramelo14@hotmail.com

Selva Maria Guimarães Barreto


Doutora em Educação Professora na Faculdade de Educação Física e
Desportos Universidade Federal de Juiz de Fora
selva.barreto@ufjf.edu.br

Introdução

A presença esportiva feminina não é algo muito recente, sendo registrada


há alguns séculos, porém, somente a partir das primeiras décadas do século XX
que as mulheres conquistaram maior espaço, ganhando mais visibilidade neste
território tido como tipicamente masculino (GOELLNER, 2005).
Até recentemente existia o entendimento de que o suor excessivo, o
esforço físico, as emoções fortes, os músculos definidos, a liberdade de movi-
mentos, a leveza das roupas e a seminudez, realidades comuns ao universo da
cultura física eram associados ao público masculino (GOELLNER, 2005).
Sendo a corporalidade feminina limitada à reprodução humana, já que,
a ‘verdadeira feminilidade’ era a meiga, gentil e fisicamente frágil mulher
doméstica.

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No início do século XX, uma nova abordagem sobre o bem-estar físico


já considerava a prática de algumas formas de atividade esportiva e exercício
físico leves como atitudes benéficas para a saúde das ‘futuras mães e esposas’.
Mesmo com essa ideia e havendo uma prescrição limitante de quais os esportes
que se consideravam adequados às mulheres, estes deviam ser praticados só
por mulheres jovens e solteiras (ADELMAN, 2003).
Desta forma, considerando os fatos, o objetivo do trabalho constitui em
desvelar as relações de sexo e a presença de mulheres no esporte, sendo atle-
tas, ou integrantes de equipes, nas comissões técnicas e de gestão na atualidade
de esportes de alto desempenho, por exemplo.

Metodologia

O procedimento metodológico consistiu em uma análise de referencial


teórico, com revisão bibliográfica sendo que a amostra foi composta por análise
dos artigos: “A baixa representatividade de mulheres como técnicas esportivas
no brasil”; “As narrativas sobre o futebol feminino- o discurso da mídia impressa
em campo”; “Feminismos, mulheres e esportes: questões epistemológicas sobre
o fazer historiográfico”; “Futebol é ‘coisa para macho’? pequeno esboço para
uma história das mulheres no país do futebol”; “Mulheres atletas: re-significa-
ções da corporalidade feminina”; “Mulheres e futebol no brasil: entre sombras e
visibilidades”, referentes ao tema (presença da mulher no esporte) e análise de
mídia escrita onde foram retirados em sites esportivos notícias e depoimentos
de mulheres que sofreram preconceito ou passaram por dificuldades no esporte.

Dados coletados

Muitas são as dificuldades encontradas por mulheres no alto rendimento,


alguns fatos podem ser relatados sobre a realidade do mundo esportivo atual:
“Elas são tão boas quanto eles, mas na hora de buscar patrocínio a
diferença do sexo pesa. Do boxe ao golfe, as mulheres escreveram
seu nome na história dos esportes, mas os salários ainda não acom-
panharam” (PÔSSA, 2016).

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ISBN 978-85-61702-44-1 1421 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

“Na lista dos 100 atletas mais bem pagos do mundo, em 2015, há apenas
duas mulheres. Ambas tenistas: em 26ª lugar, Maria Sharapova, e a americana
Serena Williams na 47ª posição do ranquing” (PÔSSA, 2016).
“... O Brasil é conhecido como o país do futebol sim, o mascu-
lino. Só. Aqui falta o apoio das empresas, dos governos, e uma
divulgação melhor. Tem gente que dá a desculpa de que o futebol
feminino não dá o mesmo retorno que o masculino. Mas se nin-
guém mostrar, como poderão conhecer para falar se possui retorno
ou não? O futebol não tem um clube que seja só de mulheres...”
(AMORIM, 2013).

Essa desigualdade entre homens e mulheres no esporte provoca questio-


namentos, e deve ser discutida para que as dificuldades continuem diminuindo
gradualmente, pela busca da igualdade de direitos e visibilidade no esporte.

Considerações finais

A situação em que se encontram as mulheres no meio esportivo é clara.


O acesso e a visibilidade foram aumentando gradativamente durante os anos,
já se tem uma melhora, porém, o público feminino ainda encontra diversas
dificuldades no meio esportivo. Elas precisam conviver com diferenças salariais,
vulgarização, críticas à aparência física e imposição de estereótipos e questio-
namentos sobre suas competências.
A exclusão que a mulher ainda sofre nesse meio não é por conta de uma
possível falta de habilidades, ou incompetência, mas por suas características
femininas. Para alcançar os altos cargos, é preciso que elas consigam superar
todos esses empecilhos.
A gestão esportiva é realizada em sua maioria por homens, que tendem a
contratar outros homens para os diversos cargos presentes nos esportes, o que
reforça a prevalência masculina nesse espaço. Por isso, contata-se que uma das
barreiras encontradas pelas mulheres é a falta de oportunidade. A função de
mulheres permanece restrita às ações de menor expressão, como em categorias
de base e em esportes considerados mais apropriados às mulheres, como as
ginásticas e o nado sincronizado, possuindo assim, maior aceitação.
Embora as dificuldades sejam grandes, as mulheres atualmente encon-
tram nos resultados, nas suas qualidades, no apoio da família, amigos e outras

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pessoas de confiança , na sua entrega e motivação para o trabalho os meios


de superar os obstáculos e devem continuar fazendo para que haja conquistas
cada vez maiores no espaço esportivo.

Referências

ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina.


Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 360, jul/dez. 2003

AMORIM, Quézia. Mulheres no esporte: falta divulgação e sobra preconceito:


Conheça o trabalho do Centro Olímpico, opção diferenciada para mulheres que
desejam praticar esporte em São Paulo. 2013. Disponível em: <http://www.prefeitura.
sp.gov.br/cidade/secretarias/esportes/noticias/?p=157732>. Acesso em: 28 jun. 2016.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilida-


des. Rev. Bras. Educ. Fís. Esp, São Paulo, v. 19, n. 2, p.143-151, abr/jun.2005

NANNA, Pôssa, Salário menor para mulheres também é realidade no esporte.


Disponível em: <http://www.ebc.com.br/esportes/2016/03/salario -menor-para-mulhe-
res- tambem-e-realidade-no-esporte>. Acesso em: 25 de julho de 2016

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O IMPACTO DO NOME SOCIAL E COTIDIANO ESCOLAR

Katrini Alves da Silva


Mestranda em Educação (PPGE/UFSCar)
Licenciada em Ciências Sociais (UNESP Araraquara)
katrinialves@gmail.com

Leandro Leal de Freitas


Doutorando em Educação (PPGE/UFSCar)
Mestre em Ciência Política (PPGPol/UFSCar)
leandroleal@live.com

GT 02 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

O presente trabalho é derivado de uma pesquisa em fase inicial, cujo


objetivo central é investigar como as escolas públicas do interior do Estado de
São Paulo1 agenciam o reconhecimento de crianças e adolescentes transgêne-
ros através da obrigatoriedade do uso do nome social.
Como docentes no ensino básico, estabelecemos contato direto e cons-
tante com alunas e alunos LGBTTs. No cotidiano, observamos tensões, não só
em relação às sexualidades dos estudantes, mas também em relação às identida-
des trans2, como a dificuldade de gestores e docentes em tratar as pessoas pelo
gênero ao qual elas se identificam, ou dar o mesmo tratamento a relações homo-
afetivas como é dado às relações heteroafetivas. Nesse contexto, encontramos
um problema prático, qual seja a falta de formação e informação dos docentes
e gestores ao lidar com essas temáticas, pautados pelo desconhecimento e por,

1 Como recorte espacial, estabelecemos como foco as escolas pertencentes à circunscrição da Direto-
ria Regional de Ensino de Jaboticabal.
2 Neste projeto, chamo os sujeitos transexuais também pelos termos “trans” ou “transgêneros”. Este
último que aponta para além das questões que envolvem o debate biológico e de mudança de sexo,
mas que ressalta as questões de identidade e identificação de gênero.

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muitas vezes, moral conservadora. Tal fato contribui para a perpetuação de vio-
lências em um espaço que deveria ser de inclusão e cidadania.
A democratização da escola pública é uma demanda que não foi conso-
lidada e desde a constituição de 1988 estamos na construção de uma escola
mais plural. Importante pensar como o reconhecimento da diversidade vai
mexer com a cultura escolar institucional, isso a partir da educação inclusiva
para reforço da cidadania. Parte da dificuldade da aplicação das políticas inclu-
sivas advém, inclusive, da maneira como as dissidências sexuais e de gênero são
frequentemente silenciadas na e pela escola, uma vez que as
Minorias sexuais e de gênero também são temas ausentes no tocante
aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Embora estes ressaltem a
necessidade de se tratar a sexualidade como tema transversal, nada
é mencionado, mais especificadamente, em relação à homossexu-
alidade(...). Sem uma referência explícita ao tema da discriminação
contra homossexuais e outras diversidades sexuais (como travestis,
transexuais, bissexuais etc.) no espaço escolar, resta ao/à educa-
dor/a apenas a interpretação da necessidade ou não da inclusão
do tema a partir da leitura dos objetivos, já que pode interpretá-
-los apenas como a necessidade de questionar as representações
sociais acerca do masculino e do feminino, sem mencionar outras
práticas sexuais que sejam divergentes da norma heterossexual.
(DINIS, p; 2008, p. 480).

A ideia da educação inclusiva surgiu visando inserir na escola regu-


lar os portadores de deficiências físicas e cognitivas (BARRETO; REIS, 2011).
Posteriormente, a noção de inclusão se ampliou para garantir a conservação na
escola de todos e todas que tivessem sua permanência ameaçada, como é o
caso das travestis e transexuais.

Contextualização

Em 2014, Geraldo Alckmin, atual governador do estado de São Paulo, outor-


gou a deliberação 126/14 do CEE (Conselho Estadual de Educação) que determina
que as escolas tratem pelo nome social as crianças e adolescentes identificados
como transexuais e travestis. Posteriormente a este decreto, o Governo Federal
também outorgou uma exigência similar a todo território nacional. Em 2015,

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dados da Secretaria Estadual de Educação3 apontam que triplicou o número de


matrículas de crianças e adolescentes trans na escola pública.
Ao pensar esse processo outorgado de uso do nome social, tanto no
âmbito estadual quanto no federal, estamos debatendo a política de Escola
Inclusiva. Tal ideia encontra-se pautada na LDB (Lei de Diretrizes e Bases), que
rege o ensino básico desde 1996. O estado de São Paulo, em geral, tem se man-
tido muito resistente à ideia de escola inclusiva, estando quase sempre atrás do
Governo Federal, que precisava imputar e insistir na aplicação de decretos que
privilegiavam a diversidade e diferença. Segundo Sanfelice (2010), a Secretaria
de Estado é tão conservadora que em alguns pontos chega a contrariar a Lei de
Diretrizes e Bases. Tanto a LDB (1996) quanto a Constituição de 1988 garantem
liberdade para as escolas definirem seus currículos pedagógicos; o estado de
São Paulo, contrariando essa normativa, cria uma diretriz geral que todas as
instituições estaduais devem seguir (SANFELICE, 2010). Contudo, na questão do
nome social de pessoas trans, o estado de São Paulo se antecipou, pautando o
decreto antes do Governo Federal.

Considerações finais

Quem são os responsáveis pela implementação, na escola pública, das


políticas inclusivas? Gestores e professores. No entanto, existe uma lacuna
entre a aplicabilidade das políticas e a disposição do corpo gestor e docente.
Com base na experiência de pesquisa e na experiência profissional, entende-
mos que há resistência na aplicação das resoluções, não só para a política
de nome social, mas várias outras propostas inclusivas, como por exemplo,
as que vigoram tanto sobre questões de gênero e sexualidade, como também
sobre questões raciais, dentre outras diferenças. Isto posto, deve-se compreen-
der de onde vem a resistência desses atores em relação à implementação dessas
normativas. Dessa forma, a contribuição da pesquisa se coloca na atuação da
gestão e do corpo docente, com vistas a promover um debate para que se per-
mita pensar uma escola realmente democrática e inclusiva. Vislumbramos uma

3 De março a junho de 2015 o número de pedidos de inclusão do nome social nos documentos escola-
res aumentou de 44 para 127. Disponível em: <http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/educacao-fe-
cha-o-semestre-com-tres-vezes-mais-alunos-que-adotaram-nome-social>. Acesso em 10 ago. 2016.

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escola promovedora de igualdade, onde essas minorias não sejam mais oprimi-
das ou suprimidas dentro desses espaços de formação.

Referências

BARRETO, C.S.G. REIS, M.B.F. Educação inclusiva: do paradigma da igualdade para o


paradigma da diversidade. Polyphonía, v. 22/1, jan./jun. 2011, p. 19-32.

DINIS, N. F. Educação, relações de gênero e diversidade sexual. Educação &


Sociedade, Campinas, vol. 29, n. 103, p. 477-492, maio/ago. 2008.

SANFELICE, J. L.; A política educacional do Estado de São Paulo: apontamentos,


01/2010. Nuances: Revista do Curso de Pedagogia, Vol. 17, pp.145-160, Presidente
Prudente, SP, Brasil, 2010.

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AQUI DENTRO É COISA SÉRIA! (TRANS)PONDO


O USO DO BANHEIRO E DO NOME SOCIAL NA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Matheus Moura Martins


Graduando em Ciências Biológicas – FACIP/UFU. Bolsista CAPES/PIBID
matheusmmm12@yahoo.com.br

Ronaldo Batista de Araújo


Graduando em Ciências Biológicas – FACIP/UFU. Bolsista CAPES/PIBID
araujo.ronaldob@gmail.com

Sandro Prado Santos


Drn. Educação (PPGED/FACED/UFU)
sandrobio@yahoo.com.br

Esse texto propõe reflexões em composição com as preocupações que


se ocupam o Simpósio Temático: Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas,
práticas e poderes em disputa. Retomamos duas investigações realizadas no
âmbito de um projeto de Graduação (Licenciatura/Ciências Biológicas) intitulado
Diálogos com travestis: (Trans)formação inicial e continuada de professores/as
da Educação Básica e de um Trabalho de Conclusão de Curso Cenas escolares
vivenciadas por travestis da cidade de Ituiutaba/MG: lembranças, aproximações
e distanciamentos dos processos de estigmatização (BARBOSA, 2013). Esses
possibilitaram ações de ensino, pesquisa e extensão (2013-2015) com travestis e
professores/as de Biologia.
A partir dos questionamentos apresentados pelo ST supracitado - Quem
são as pessoas que importa falar e dar visibilidade na escola? Quais corpos
são considerados como possibilidades de vidas vivíveis nos/pelos currícu-
los escolares? – realizamos uma articulação entre as narrativas de travestis e

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professores/as Biologia escolar do município de Ituiutaba/MG1 na tentativa de


refletir acerca do uso do banheiro e do nome social por sujeitos trans no espaço
da Educação Básica e seus efeitos/ressonâncias nos modos de (Re)existir nesse
espaço generificado.
Uma investigação realizada na cidade de Ituiutaba/MG (BARBOSA, 2013)
aponta que as travestis enfrentam sérias dificuldades de ter suas identidades
respeitadas, sobretudo, ao fazer uso dos banheiros e utilizar o nome social. No
entanto, posteriormente, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação
e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais decretou
a Resolução nº 12 de 16 de Janeiro de 2015 (BRASIL, 2015) que regulamenta
parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas
travestis e transexuais nos sistemas e instituições de ensino, formulando orien-
tações para operacionalização do tratamento pelo nome social (Art. 2º) e o uso
do banheiro (Art. 6º).
Assim como Cruz (2011, p.86): “O que a escola está dizendo para alunos e
alunas sobre a travesti quando se diz que não há lugar para seu xixi?”. O que a
escola estará dizendo para professores/as comunidade? E o que estará dizendo
para a travesti sobre si mesma? Além disso, percebemos ser um problema a
utilização do nome social pelas travestis.
Os/as professores/as ao sentirem inquietados/as pela utilização do banheiro
pelas travestis, apontam ações, tais como: o uso do banheiro dos/as professores/
as, funcionários/as e da direção, a criação de um terceiro espaço e banhei-
ros que tenham pouco/nenhum fluxo de alunos/as. Outros posicionam como
não permissivos a utilização do banheiro por sujeitos que borram as fronteiras
de gênero. Tais posicionamentos são reiterados na fala das travestis. E o que
isso significaria? O banheiro dos/as professores/as, funcionários/as, o terceiro
banheiro, da direção, espaços de pouco fluxo seriam territórios assexuados?
Nos depoimentos das travestis são preponderantes as insistências dos/
as professores dirigirem-se a elas por meio do nome de batismo, registrado
nos documentos oficiais (identificação civil) em detrimento do nome social em
consonância com a forma em que se reconhecem e identificam nas relações
sociais. Alguns docentes desqualificam a utilização do nome social ajustando-o

1 As investigações configuram-se em estudo qualitativo em Educação. Utilizamos como ferramentas


para produção dos dados narrativos, entrevistas semiestruturadas.

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no campo de apelidos, fantasias e falta de seriedade, ao passo que outros reco-


nhecem esse Direito garantido pela lei, mostrando preocupações de como
identificá-las em instrumentos escolares. Ao persistir na utilização do nome de
registro da travesti a escola aprisiona a norma, (re)produzindo constrangimento
e situação vexatória e humilhante permanentemente (BENTO, 2008).

Considerações finais

As duas investigações denunciaram a instituição escolar como um espaço


guardião e um campo disputado de regulamentação das normatividades de
gênero e sexualidade, sendo qualificada por uma professora como um “espaço
de coisa séria”, desqualificando as transexperiências - como um modo ilegal de
(re)existir. O banheiro e o nome social são dispositivos que capturam as tran-
sexperiências para o campo da (a)normalidade/(i)legalidade, territorializando-as
em espaços estigmatizados, de irregularidade, de pouco fluxo, de fantasia, de
imoralidade, dentre outros. Dessa forma, a figura da travesti é problemática,
indesejada, intempestiva, disparatada e bagunçada, ou seja, uma presença
desafiadora e desassossegadora no espaço escolar. Esse contexto trouxe res-
sonâncias em ações desenvolvidas pelo Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência – PIBID – Subprojeto Biologia e (re) significações do com-
ponente curricular Corpo, Gênero e Sexualidade do curso de Licenciatura em
Ciências Biológicas da referida instituição.

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Referências

BARBOSA, L. C. F. de F. Cenas escolares vivenciadas por travestis da cidade de


Ituiutaba/MG: lembranças, aproximações e distanciamentos dos processos de estig-
matização. 60f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Biológicas)
- Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba, 2013.

BENTO, B. A. de M. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.

BRASIL. Diário Oficial da União. Resolução nº 12 de 16 de Janeiro de 2015. Conselho


nacional de combate à discriminação e promoções dos direitos de lésbicas, gays, tra-
vestis e transexuais, n. 48, seção 1, p.3, mar.2015. ISSN: 1677-7042.

CRUZ, E. F. Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano escolar.


Psicologia Política, v. 11, n. 21, jan/jun, 2011, p. 73-90.

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ROUPA E PERFORMANCE COMO POSICIONAMENTO


SOCIAL DA IDENTIDADE DE GÊNERO DOS ARTISTAS
CONTEMPORÂNEOS

Paula Parra Alves de Oliveira


Integrante do MidCid
Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura - UNISO
parra.paula@gmail.com

A heterossexualidade ainda é o modelo hegemônico nas sociedades oci-


dentais. Mas a partir das discussões feministas dos anos 1960, esse modelo
sofre fratura que se dá, principalmente, pelo questionamento do que deve ser
privado ou público, ao alegar que “o pessoal é político” (ANDREU 2014). Esse
questionamento enfatizou como somos formados e produzidos sujeitos generi-
ficados, o que permitiu uma expansão para incluir a formação das identidades
sexuais e de gênero (HALL, 2002).
As identidades sociais contemporâneas, entretanto, são deslocadas e frag-
mentadas, e o sujeito perde o “sentido de si”. Não há uma identidade fixa ou
permanente, o que permite assumir identidades que não são unificadas e podem
ser contraditórias (HALL, 2002). Em outras palavras, não há mais uma identidade
única para sustentar o sujeito multifacetado, assim como a representatividade
por meio da legitimação e exclusão se torna insustentável, pois o sujeito se
reconhece em fragmentos representativos, e não em uma representação única.
Com isso, no contemporâneo, o sujeito passa a agenciar e negociar suas vivên-
cias com o que é o outro, podendo permear-se entre diferentes identidades e
construir um espaço híbrido, o campo das possibilidades e impossibilidades
denominado entre-lugar (BHABHA, 1988).
A identidade de gênero pode ser verificada como a relação entre sexo,
gênero, prática sexual e desejo (BUTLER 2002). O gênero, por sua vez, se
mostra performativo, resultante de um regime que regula as diferenças de
gênero. Neste regime, os gêneros se dividem e hierarquizam de forma coerci-
tiva (BUTLER, 2008). Portanto, pode-se dizer que a teoria da performatividade
demonstra como a repetição das normas, muitas vezes feita de forma rituali-
zada, cria sujeitos que são o resultantes dessas repetições.

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Nesse cenário, artistas contemporâneos trazem a performance de gênero


como forma de levar ao público além da mensagem na música, a subjetividade
de seus corpos e roupas, os quais remetem a esse lugar entre o masculino e o
feminino. Terno e barba dividem espaço do figurino com saias, blusas cropped,
roupas coladas ao corpo e maquiagem. Os gestos, movimentos e expressões
que evocam a feminilidade confrontam com vozes masculinas, roucas e inten-
sas. Essa composição híbrida causa, aos olhos do outro o estranhamento.
Artistas como Jaloo, Liniker e Johnny Hooker utilizam a imagem do sujeito
híbrido e multifacetado como forma de questionar a construção social do que
é ser homem no Brasil. Artistas esses que reiteram outros artistas, de gerações
passadas, como Ney Matogrosso e Dzi Croquetes, os quais, no palco, com ves-
tes femininas ou animalescas e maquiagem pesadíssima, como uma máscara,
vinham a discutir a mesma posição e performance de gênero na sociedade.
Na construção histórica da sociedade brasileira, um homem usar saia e/
ou maquiagem ainda remete, ao padrão hegemônico, algo degradante. O posi-
cionamento da performance de gênero desses artistas, portanto, respondeu em
um passado próximo e continua a responder de forma provocativa a esse padrão:
ser mais feminino não desvaloriza a pessoa como ser humano, e portanto não há
motivos para se sentir inferior ao se aproximar da imagem da mulher na sociedade.
Essa discussão tem se afirmado em diferentes âmbitos da sociedade e encon-
tra na moda o espaço de grande reverberamento. Estilistas conceituados como
Marco Marco trouxeram para as passarelas da NYC e LA Fashion Week de 2016 a
diversidade de corpo e gênero: Travestis, transexuais, drag queens e homossexuais.
Corpos magros e gordos, altos e baixos, protagonizam o desfile, o que rompe com
o padrão Fashion. Agambem (2009) define moda por introduzir no tempo uma
peculiar descontinuidade. No momento, o presente se divide entre um “não mais”
e um “ainda não”, o que (des)constrói o padrão hegemônico de forma atualizada,
mas revitaliza as discussões e performances sobre gênero na moda do pós-punk,
final da década de 80, que coincide com as discussões da teoria queer.
Essa reiteração das performances de gênero também remete ao fenômeno de
tradição e tradução, discutido por Hall (2002). Emergem as identidades culturais que
não são fixas e que obrigam o agenciamento dessas novas culturas com o padrão, em
uma tradução das identidades, uma fusão, um hibridismo. Ao mesmo tempo, também
existe fortes tentativas para reconstruir as identidades purificadas, para restaurar a coe-
são, o “fechamento” e a tradição. Vê-se a confirmação disso no pronunciamento de
alguns líderes e formadores de opinião da dita “família tradicional” em seus discursos,
contra essa possibilidade de não existir uma diferenciação do gênero para as roupas.

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Referências

AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Arcos,


2009.

ANDREU, Oscar G. Por uma perspectiva social e política de gênero e Sexualidade.


In: Bagoas: Revista de estudos gays / Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Centro de Ciências Humanas, Letras e Arte – V. 8, n.11. Natal: EDUFRN, 2007.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BUTLER, Judith. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades


transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

HALL, Stuart. Identidade cultural pós-moderna. 5 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

MARCO, M. #MarcoMarcoShow - Collection Four Pt 1 at NY Style Fashion Week at


Gotham Hall. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FDV3hzdBAVo>.
Acesso em: 27 mai 2016.

MARCO, M. #MarcoMarcoShow - Collection Four Pt 2 at LA Style Fashion Week.


Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=71hrVZLoIxs>. Acesso em: 27
mai 2016.

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LINHAS E TRAÇADOS DAS EXPERIÊNCIAS TRANS SOBRE


CORPO HUMANO NO CAMPO DO ENSINO DE BIOLOGIA

Sandro Prado Santos


Drn. Educação (PPGED/FACED/UFU) – Ensino de Ciências e Matemática
Universidade Federal de Uberlândia – FACIP/UFU
sandrobio@yahoo.com.br

Elenita Pinheiro de Queiroz Silva


Doutora em Educação Universidade Federal de Uberlândia - Educação
elenita@ufu.br

Este trabalho apresenta o desenho de uma pesquisa, em andamento, para


uma tese de doutoramento sobre os modos de significação e experimentação
de corpos trans vivenciados por sujeitos trans e professores/as de Biologia no
espaço escolar. Nesse sentido, problematizamos: O que os corpos trans têm a
ensinar aos textos da Biologia escolar? As transexperiências podem ser tomadas
como “[...] importantes especialmente porque tratam de descolar/desconstruir
as narrativas hegemônicas acerca do corpo - deste corpo que temos dito ser
branco, masculino, heterossexual, jovem, etc., e a partir do qual todos os outros
são comparados e tomados como diferentes” (SANTOS, 2007, p. 143, destaque
do autor).
Nessa investigação utilizamos o conceito de experiência que se aproxima
daquele proposto por Larrosa (2002) em que define a experiência como “(...)
o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (p. 21). Esse conceito
atravessado pela ideia da transexualidade como experiência nos faz dizer da
transexperiência. Esta revela traços estruturantes das verdades para gêneros,
para as sexualidades e subjetividades (BENTO, 2009). Nesse contexto, com-
preendemos o corpo como um espaço de produção e reinvenção de si que
nunca está acabado, mas sempre em processo, um constante devir atraves-
sado por perspectivas biológicas, psicológicas, sociais, culturais e temporais (LE
BRETON, 2013).

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Inspirados nos estudos, deleuzianos e foucaultianos, consideramos que os


corpos trans e a disciplina escolar de Biologia compõem territórios marcados
por diferentes linhas que se cruzam, por meio de relações de poder e produ-
ções de significados sobre o corpo humano. Utilizamos o termo trans para
expressar as vivências que atravessam e vazam a naturalização dos corpos, a
biologização das identidades, o binarismo dos gêneros e os enquadramentos
classificatórios, principalmente as experiências travestis e transexuais. Falar de
experiências trans e seus modos de articulação com o ensino do corpo humano
em Biologia são tarefas que exigem uma composição cartográfica (DELEUZE;
GUATTARI, 1995). Por tal natureza, significações, experimentações e subjetiva-
ções o acompanhamento dos fluxos processuais é uma exigência do estudo em
pauta. Assim, encontramos na Cartografia, formulada por Gilles Deleuze e Félix
Guattari (DELEUZE; GUATTARI, 1995), pistas para praticar o estudo da compre-
ensão dos sentidos e experimentação de corpos trans, vivenciados por sujeitos
trans e professores/as de Biologia, no espaço escolar e suas ressonâncias nas
formas de ensinar Biologia na escola. Tomamos a escola como investimento bio-
político de produção e controle dos corpos e das subjetividades. Consideramos
que os corpos trans e a disciplina escolar de Biologia compõem territórios mar-
cados por diferentes linhas que se cruzam, por meio de relações de poder e
produções de significados, assim como a composição de uma cartografia. A
utilização da Cartografia possibilita a composição do problema de investigação,
as estratégias e os modos de constituição analítica da investigação que pro-
cura traçar linhas e acompanhar movimentos corporais para esboçar um mapa
do corpo trans e registrar as orientações, direções e criações das experiências
trans. Os traçados esboçados por este estudo, portanto, têm por objetivo mos-
trar os mapas formados pelas experiências trans sobre corpo humano que, com
base na perspectiva aqui adotada, evidenciam expansões, fraturas, conquistas e
aberturas nos estudos convencionalmente produzidos no campo do ensino de
Biologia. Tomaremos como material de análise, as vozes de sujeitos trans, bem
como professores/as de Biologia que convivem/conviveram com as experiên-
cias trans no espaço escolar. Ao utilizarmos um método cartográfico de caráter
inventivo, apostamos na potencialidade do corpo-mapa criado pelos sujeitos
trans ao campo do ensino de Biologia.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1436 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Considerações finais

Apostamos que uma investigação das ressonâncias de corpos trans no


espaço escolar potencializará deslocamentos e pluralidades na discussão do
ensino de Biologia, bem como no campo da Formação de Professores/as de
Ciências/Biologia, contribuindo para a pesquisa na grande área da educação.
A análise da pesquisa deve nos informar a respeito do quão interessante
foram os efeitos produzidos nas noções de corpos em circulação no espaço
escolar a partir das transexperiências vivenciados por sujeitos trans e profes-
sores/as de Biologia e quais foram as articulações engendradas que podem
potencializar outros textos sobre corpo humano a partir das transexperiências
no espaço do ensino de Biologia.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1437 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

BENTO, Berenici. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexu-


alidade. Bagoas, n.4, 2009, p. 95-112.

DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Fêlix. Mil Platôs, v. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O Sujeito
da Educação: Estudos Foucaultianos. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 35 –86.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas: Papirus,


2013.

SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos. O corpo que pulsa na escola e fora dela. In:
WORTMANN, Maria Lúcia Castagna et al (Orgs.). Ensaios em estudos culturais, educa-
ção e Ciência: a produção cultural do corpo, da natureza, da ciência e da tecnologia:
instâncias e práticas contemporâneas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p.
131-146.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1438 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

DIVERSIDADE SEXUAL NA EDUCAÇÃO EM UMA


SOCIEDADE HETERONORMATIVA E PATRIARCAL

Roberto Pacobahyba Rodrigues


Pós-graduação Cultura de Tecidos Vegetais - UFLA
CEIA Barão de Langsdorff
rpacobahyba@prof.educacao.rj.gov.br

Aderine Moutinho de Paula


Graduação em Letras-Literatura
CEIA Barão de Langsdorff
ademoutinho@hotmail.com

Amaro Crispim de Souza


Mestre em Filosofia - UERJ
CEIA Barão de Langsdorff
amarosouza@globo.com

A questão da Identidade de gênero e diversidade sexual, embora tenha


sido objeto de sérios estudos, ainda não foi suficientemente discutida pela nossa
sociedade, sendo ainda um tema tabu e de difícil assimilação. Cultuamos valo-
res, conceitos e preconceitos que foram criados e sistematizados ao longo da
nossa história. Nesse sentido, podemos afirmar que a nossa sociedade carac-
teriza-se pela negação da diversidade e peculiaridades das expressões sexuais.
Temos a falsa ideia de que esse preconceito é de uma minoria, quando na ver-
dade está enraizado no tecido social. Independentemente da sua capacidade
intelectual ou aptidões físicas, os indivíduos que se enquadram nesse perfil
serão sempre vistos como párias que devem ser excluídos a todo custo.
Este ser dicotomizado, cindido, esvaziado e depauperado psiquicamente,
é obrigado a metamorfosear-se num outro ser completamente diferente, para
não sucumbir em um meio hostil. Essa distorção o leva a negar sua condição,
alienando-se num emaranhado de valores que o impedem de afirmar-se como

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ISBN 978-85-61702-44-1 1439 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

diferente, induzido a se perceber como fazendo parte de uma sociedade iguali-


tária e que será respeitado da mesma forma que os indivíduos em conformidade
com essa sociedade heteronormativa e patriarcal. Esta igualdade aparente tem
sido motivo de muitos equívocos, pois esconde as reais condições em que vive
esse grupo em nosso país.
Mediante ao papel da escola na socialização, construção e difusão do
conhecimento, foi inserido no Projeto Político Pedagógico de 2016 do Centro
de Ensino Integrado Agroecológico Barão de Langsdorff, localizado em Magé,
RJ, o Projeto Diversidade Sexual na Educação. O projeto foi dividido em 4 eta-
pas e subtemas considerados importantes para a compreensão da diversidade
e seus desdobramentos:
1 - Construção do Grupo de Trabalho: foi realizada de forma democrá-
tica e de livre adesão ao projeto, sendo composto por um professor
orientador, cinco professores colaboradores e alunos das turmas
do 1º, 2º e 3º ano do ensino médio, com objetivo de unir o corpo
docente e discente para a discussão e articulação das ações posterio-
res do projeto.
2 - Diversidade Sexual, esta oficina foi realizada no dia sete de abril de
2016 e foram abordados os seguintes subtemas pela Assistente Social,
Suellen Araújo: O que é Diversidade Sexual? Foi apresentada a
diversidade sexual, explicando ao corpo discente as diferentes orien-
tações sexuais; Mitos e Verdades sobre o tema da diversidade sexual:
neste momento foram desconstruídas e discutidas diversas questões
referentes a temática. As turmas participaram com entusiasmo, apre-
sentando opiniões e questionamentos dando um feedback positivo a
proposta de trabalho; Direitos e Avanços Legais: nesta fase da oficina,
foram apresentados os direitos e avanços legais do movimento LGBT
aos alunos e o vídeo “E se fosse com você”. Para finalizar a oficina
foi proposto um abraço coletivo, para enfatizar a seguinte mensagem:
“Nossas diferenças nos fazem especiais e que juntos somos mais
fortes”.
3 - Dia Internacional contra Homofobia, esta oficina foi realizada em
dois dias, 16 e 17 de maio de 2016, pelo grupo de trabalho do pro-
jeto, para marcar o Dia Internacional contra Homofobia. Dividida
da seguinte maneira: Explicou-se aos alunos que a data do Dia
Internacional contra a Homofobia, foi escolhida para marcar uma

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ISBN 978-85-61702-44-1 1440 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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importante conquista, lembrando a exclusão da Homossexualidade


da Classificação Estatística Internacional de Doenças, realizada
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 17 de maio de 1990,
oficialmente declarada em  1992. Foi apresentada também a reali-
dade da comunidade LGBT ao redor do mundo, desde os países que
já legalizaram o casamento homoafetivo e adoção de crianças até
aqueles em que a homossexualidade é punida com pena de morte.
Em seguida foi apresentado o vídeo: Campanha contra Homofobia
na Rússia, desenvolvido pela organização Russia Freedom Fund. Ao
finalizar o primeiro dia de trabalho foi sugerido aos alunos a confec-
ção de cartazes contra a Homofobia para a montagem de um mural
na escola, que ficou exposto durante uma semana, com cartazes de
todas as turmas do colégio. No segundo dia de trabalho foi pedido
aos alunos que viessem ao colégio de camisa preta em protesto a
violência e em solidariedade a todas as pessoas que já sofreram direta
ou indiretamente o peso da homofobia. Cada turma registrou seu
protesto com fotos e vídeos, e criaram legendas para estas, que foram
divulgados nas redes sociais.
4 - Formação da Identidade, Estrutura de Sociedade, Rótulos e
Preconceitos: a culminância do projeto foi realizada em dois dias, no
dia 28 de junho foi celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBT,
através da construção de um mural exposto durante a semana e os
alunos se pintaram com as cores da bandeira do movimento LGBT.
No dia 01 de julho, foi realizado uma mesa redonda com a seguintes
temáticas: Formação da Identidade, Estrutura de Sociedade, Rótulos
e Preconceitos. Debatendo-se como a diversidades étnica, racial, cul-
tural, religiosa e sexual, conseguem sobreviver em uma sociedade
heteronormativa e patriarcal. Finalizando a culminância, foi enfati-
zada com os alunos a seguinte mensagem: “Respeito ao próximo, a
palavra chave para uma vida em sociedade”.

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Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

Diversidade Sexual na Educação, Rogério Diniz Junqueira (organizador), Brasília:


Ministério da Educação, UNESCO, 2009.

Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.

Lei n.º 9.608, de 18 de fevereiro de 1998, Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

AUAD, Daniela. Educar meninos e meninas: relações de gênero na escola. São Paulo:
Contexto, 2006.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1442 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
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ILUMINANDO MENTES INTOLERANTES

Roberto Pacobahyba Rodrigues


Pós-graduação em Cultura de Tecidos Vegetais - UFLA
CEIA Barão de Langsdorff
rpacobahyba@prof.educacao.rj.gov.br

Matheus Almeida Felix


Estudante Secundarista
CEIA Barão de Langsdorff
mfelix299@gmail.com

Francine Nascimento de Oliveira


Estudante Secundarista
CEIA Barão de Langsdorff
francinenascimento17@gmail.com

Diante do anseio de construirmos uma sociedade e uma escola mais jus-


tas, solidárias, livres de preconceito e discriminação, é necessário identificar e
enfrentar as dificuldades que temos tido para promover os direitos humanos
e, especialmente, problematizar, desestabilizar e subverter a homofobia. São
dificuldades que se tramam e se alimentam, radicadas em nossas realidades
sociais, culturais, institucionais, históricas e em cada nível da experiência coti-
diana. Elas, inclusive, se referem a incompreensões acerca da homofobia e de
seus efeitos e produzem ulteriores obstáculos para a sua compreensão como
problema merecedor da atenção das políticas públicas. Ao mesmo tempo em
que nós, profissionais da educação, estamos conscientes de que nosso trabalho
se relaciona com o quadro dos direitos humanos e pode contribuir para ampliar
os seus horizontes, precisamos também reter que estamos envolvidos na tessi-
tura de uma trama em que sexismo, homofobia e racismo produzem efeitos e
que, apesar de nossas intenções, terminamos muitas vezes por promover sua
perpetuação. (UNESCO, 2009)
Mediante ao papel da escola no combate a homofobia, foi realizado na
III Feira Multidisciplinar do Centro de Ensino Integrado Agroecológico Barão de

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ISBN 978-85-61702-44-1 1443 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Langsdorff, em Magé, RJ, um trabalho sobre a Diversidade Sexual na Escola,


esclarecendo mitos, apresentando a temática e trazendo questões à comuni-
dade escolar e comunidade do entorno.

Metodologia

A III Feira Multidisciplinar que teve como tema “Haja Luz no Mundo” foi
realizada no dia 25 de novembro de 2015, e foram organizados 12 stands divi-
dindo as turmas em diferentes subtemas.
O stand que trabalhou o subtema diversidade sexual foi composto por
alunos do 1º, 2º e 3º anos do ensino médio regular e integrado. Durante o
evento a comunidade escolar e do entorno, realizavam visitas aos stands sendo
dividido em grupos.
Chegando ao stand “Iluminando Mentes Intolerantes”, os visitantes eram
recepcionados com duas mensagens, uma na parede com o pedido: “Ao entrar,
deixe seu Preconceito abaixo”, com uma seta indicando a lixeira e outra na
porta com um desenho feito por um aluno, com uma mistura da estátua da jus-
tiça com a estátua da liberdade, indicando uma união entre justiça e liberdade
em prol ao Movimento LGBT. Após entrarem os visitantes iam passando pelas
diferentes etapas que compunham o stand:

1 - O que é Diversidade Sexual?


Nesta etapa foi esclarecido e debatido a sociedade heteronormativa e a
realidade das múltiplas orientações.

2 - Orientações Sexuais
Nesta etapa foram esclarecidas cada uma das orientações sexuais: gay,
lésbica, bissexual, intersex, transexual, pansexual e assexual.

3 - A Bandeira LGBT
Nesta etapa foi ilustrado e comentado o sentido de cada uma das cores
da bandeira do Movimento LGBT.

4 - Quadro Up e Down
Nesta etapa foram debatidos alguns termos que foram substituídos ao longo
dos anos por termos mais atualizados e corretos, dentro da temática LGBT.

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5 - Um Retrato da AIDS no Brasil


Nesta etapa com auxílio de um banner foi apresentado um levantamento
da AIDS no Brasil, onde fica desconstruído Homossexualidade como sinô-
nimo da doença. (Fonte: Boletim Epidemiológico - Ministério da Saúde
- Tabela 16 - Casos de AIDS notificados no Sinan em indivíduos com 13
anos de idade ou mais, segundo categoria de exposição hierarquizada,
por sexo, ano de diagnóstico e região de residência. Brasil, 2013-2015).

6 - Nosso Sangue Salva Vidas


Nesta etapa foi trabalhado o porquê de homossexuais não poderem doar
sangue, questionando a igualdade, respaldada na Declaração Internacional
dos Direitos Humanos.

7 - Mapa Mundi e os Direitos LGBT


Nesta etapa um banner apresentava a realidade da Comunidade LGBT no
mundo. (Fonte ILGA)

8 - O que é Família?
Nesta etapa os participantes eram questionados: O que representa Família
para você? A partir daí eram apresentadas e discutidas frases e fotografias
de famílias heteroafetivas e homoafetivas, bem como famílias compostas
só pela mãe ou pai, ou avós.

9 - Consideramos Justa toda Forma de Amor


Nesta etapa os participantes eram expostos a um painel montado com
fotos de diversos casais compreendendo toda a diversidade dentro do
tema Amor.

10 - Pesquisa de Opinião
Ao fim da visita ao stand, era realizada uma pesquisa de opinião para
avaliar o nível de homofobia da comunidade escolar, bem como, da
comunidade do entorno que visitou a feira. Foram confeccionadas cédu-
las, e os visitantes votavam entre as quatro alternativas possíveis: Aceito;
Aceito e Apóio; Não Aceito, Mas Respeito; Não Aceito e Nem Respeito.

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Considerações finais

Com base na pesquisa de opinião realizada ao longo da Feira, obtivemos


o seguinte resultado, após contagem dos votos.

Não Aceito, Não Aceito,


Aceito Aceito e Apoio
Mas Respeito Não Respeito
Comunidade CEIA 18 20 22 3
Visitantes 9 4 9 2
Total 27 24 31 5

Conclui-se, portanto que a homofobia não se encontra instalada na uni-


dade escolar, principalmente entre o corpo discente, apesar de alguns casos
isolados ocorridos no colégio, que fomentou a necessidade de trabalhar a temá-
tica na escola.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

Diversidade Sexual na Educação, Rogério Diniz Junqueira (organizador), Brasília:


Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, UNESCO, 2009.

Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.

Lei n.º 9.608, de 18 de fevereiro de 1998, Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; SILVA. Juventudes e sexualidade.


Brasília: UNESCO, 2004.

AUAD, Daniela. Educar meninos e meninas: relações de gênero na escola. São Paulo:
Contexto, 2006.

Boletim Epidemiológico - AIDS e DST - ISSN: 1517-1159 - Ministério da Saúde -


Secretaria de Vigilância em Saúde - Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais.

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POR QUE GÊNERO E SEXUALIDADE NA AULA?


QUESTÕES DE SEXISMO E VIOLÊNCIA NA ESCOLA

Matheus Couto Hotz

Rúbia Dias Botelho

Alexandre José Cadilhe

Resumo

Temas transversais como o gênero, a sexualidade e a diversidade tem sido tópi-


cos de debate já há algum tempo. O objetivo do trabalho foi observar como
uma escola, através do seu corpo docente, se posiciona diante da emergência
destes temas na sala de aula, bem como na manutenção ou na quebra dos
paradigmas relacionados a essas questões. A partir de observações na sala de
aula, pudemos destacar a influência das masculinidades hegemônicas na per-
formance de estudantes, além da percepção da necessidade de uma formação
continuada do profissional da educação.

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Introdução

A seguinte análise tem como propósito construir uma compreensão sobre


questões de gênero e sexualidade em aulas de Língua Portuguesa. Trata-se de
um estudo exploratório realizado a partir da disciplina de Prática em Saberes
Escolares de Língua Portuguesa, no curso de Letras da UFJF – espaço curricular
destinado a reflexões sobre a escola e o ensino, a partir da qual somos orienta-
dos a observar aulas de língua portuguesa em uma escola em Juiz de Fora - MG.

Objetivo

Em nossa inserção na escola,buscamos observar como o professor e a


instituição atuam em prol de um ambiente que “opera na direção da hetero-
geneização e da diferença” (Moita Lopes, 2010, pág. XX), notando também a
percepção do aluno como um “ser descorporificado e, portanto, em abstração,
só existe na sala de aula, normalmente nos discursos nos quais a voz dos/as
professores/as é central” (Idem, 2010, pág. XX).

Métodos

Nesta pesquisa, apresentamos duas análises frente a situações vividas no


ambiente escolar, sendo elas três entrevistas com professores e uma ocorrência
em sala de aula. Usamos da situação de sala de aula para discutir o conceito de
masculinidade hegemônica (Connell, 1995), que notamos fortemente presente
no ambiente escolar em questão. Também discutimos, a partir das entrevistas,
a necessidade de uma formação continuada. À luz do conceito de multicul-
turalismo em vertente intercultural (Candau, 2010), buscamos problematizar a
situação da escola na qual formos inseridos, que, a partir de sua lógica mono-
cultural, reforça padrões dominantes e excludentes.

Análise dos dados

Através de perguntas direcionadas às questões de gênero, sexualidade e


diversidades, investigamos até que ponto os professores estavam orientados a
transpor estes temas para a sala de aula. Observamos também a como dos
professores de agir com as diferenças e situações ligadas a tais questões. A

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situação, descrita no diário abaixo, foi uma ocorrência de machismo durante


uma de nossas observações, na qual destacamos não só as atitudes dos alunos
quanto o posicionamento tomado pela professora.

Durante uma das observações na turma de 7º ano da Escola Muni-


cipal Clarice Lispector, nos deparamos com uma situação na qual a
professora de português teve de atender a um chamado a porta. Du-
rante sua ausência foi pedido que houvesse silêncio e que os alunos
focassem em uma atividade linguística. Uma das alunas levantou-se
e foi apontar o lápis, ao voltar para sua carteira passou por um dos
alunos, o qual já havia apresentado problemas de indisciplina, que
a assediou fisicamente. Diante disso outro aluno incomodou-se com
a situação e repreendeu o colega, que usou de uma expressão chula
(“veadinho”) para desmoralizá-lo. A professora frente a tal situação
enviou o aluno responsável pela agressão à diretoria

P: Em seu tempo como professor (a), com que frequência aborda


temas transversais, além dos conteúdos tradicionais da sua matéria?
R: Professor 3: Três vezes por ano.
P: Na sua percepção a escola lida bem com a diversidade? Há algum
exemplo que possa citar?
R: Professor 2: Pedagogicamente sim, porém os alunos não se respei-
tam quanto a raça a que pertencem e nem quanto a opção sexual.
Houve um episodio de uma aluna cuja mãe assumiu ser lésbica. A
aluna passou a sofrer discriminação por parte dos colegas de escola.
Os professores das turmas trabalharam os temas que envolviam a
questão da discriminação e do “bullying” porém não tiveram tanto
êxito.
P: O que você compreende por “gênero”?
R: Professor 3: Cada ser humano se vê de uma forma, os heterosse-
xuais são a maioria, mas sabemos que existem homens e mulheres
que não se identificam com seu sexo de nascimento por isso o so-
frimento, a aceitação e a mudança que é lenta e gradual. Ainda não
tive um aluno transexual, apenas homossexuais.

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Conclusão

Acreditamos na necessidade de uma discussão mais ampliada de temas


relativos à diversidade de gênero esexualidade para que a escola adote uma
ótica mais abrangente e multicultural, seguindo uma visão menos monocultu-
ral, que privilegie masculinidades hegemônicas e atitudes machistas na sala de
aula. Também destacamos a importância da formação continuada dos profis-
sionais envolvidos na construção da escola. Não somente ela é o bastante para
a criação de um ambiente mais inclusivo, mas já é extremamente significativa.
Dessa forma, reconhecemos a necessidade da informação não só na criação de
um ambiente escolar menos opressor, mas também na contribuição da forma-
ção de um profissional sempre preocupado em tornar a educação uma melhor
experiência.

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Referências

CANDAU, V.M. Multiculturalismo e educação: desafios para as práticas pedagógicas.


In MOREIRA, A.F. & CANDAU, V.M. (org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e
práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2010.

CONNELL, R. Políticas da masculinidade. In Educação & Realidade. Rio de Janeiro,


20[2], 1995.

MOITA LOPES, L.P. Gênero, sexualidade, raça em contextos de letramentos escolares.


In MOITA LOPES, L. P.(Org.). Linguística aplicada na modernidade recente. São Paulo:
Parábola, 2013.

MOITA LOPES, L.P. Sexualidades em sala de aula: discurso, desejo e teoria queer. In
MOREIRA, A.F. & CANDAU, V.M. (org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e prá-
ticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2010.

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TEORIA QUEER E PSICANÁLISE

Natália de Andrade de Moraes


Mestranda em Psicologia (UFSM)
ntdandrade@gmail.com

Fernanda de Oliveira Alves


Mestrandas em Psicologia (UFSM)
falves.psi@gmail.com

Claudia Maria Perrone


Doutora em Letras (PUCRS)
Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Psicologia
cmperrone@ig.com.br

A invenção da psicanálise produziu uma diversidade de tensionamentos


no social, sobretudo no que diz respeito ao campo da sexualidade. Associada
ao desejo, a sexualidade foi demarcada por Freud como o fundamento da vida
psíquica e a essência da atividade humana. Através de um deslocamento produ-
zido pela escuta de pacientes, o psicanalista aproximou o sexual do campo do
pulsional, ampliando sua abrangência e afastando-o do sexo animal, biológico.
Assim, para a psicanálise, o campo do sexual faz referência à pulsão, ao desejo
e ao gozo, indicando sua constituição na experiência com o Outro1.
Como teoria que versa sobre o sexual, a psicanálise tem sido chamada a
discorrer cada vez mais sobre as atuais transformações no campo da sexuali-
dade, seja quanto aos deslocamentos nos lugares do feminino e do masculino,
quanto à diversidade de expressões do sexual (CECCARELLI, 2012), sobre as
novas configurações familiares (ARÁN, 2009), etc. A posição dos psicanalistas,

1 Em Lacan, o Outro é o espaço da alteridade, o campo da linguagem. Como discurso do inconscien-


te, é o lugar de onde vêm as determinações simbólicas da história do sujeito, o arquivo dos ditos dos
outros que foram importantes para ele, desde antes do seu nascimento (QUINET, 2012).

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tal como o campo teórico psicanalítico, não é homogênea; enquanto alguns


autores propõem uma leitura normativa da teoria freudiana, outros buscam pro-
blematizá-la de modo a acolher as novas formas de subjetivação.
Ocorre que, ainda que seja subversiva em relação a questões como a
sexualidade infantil e a posição desejante da mulher, a psicanálise é marcada
pelas variantes sócio-históricas que determinaram seu tempo, o que inclui
os discursos sobre a sexualidade. Nesse sentido, em que medida a produção
psicanalítica tem se mantido como prática clínica e teoria crítica que permite
reconhecer e acolher as diversas manifestações da sexualidade (ARÁN, 2009).
Considerando a produção científica da área, pode-se identificar o deli-
cado lugar ocupado por psicanalistas e psicólogos frente a expressões plurais
da sexualidade, que vão desde leituras normativas a posturas preconceituosas
(GAVARINI, 2008; PERRONI; COSTA, 2008). Nesse sentido, faz-se necessário
rever e atualizar as concepções psicanalíticas; problematização que se torna
possível a partir da abertura ao diálogo com outras teorias e áreas do conhe-
cimento, tal como a Teoria Queer. Neste estudo, propõe-se indicar alguns
caminhos na construção desse diálogo, centralizando a questão nas múltiplas
possibilidades de ser sujeito.
De acordo com Salih (2012), a Teoria Queer traz reflexões sobre a for-
mação do sujeito e percebe a subjetividade e a identidade como um processo
sem fim, não sendo possível definir e nem determinar uma forma de ser única
e estática. Ainda segundo a autora, a obra de Butler, importante expoente do
pensamento queer, é permeada por leituras psicanalíticas, foucaultianas e femi-
nistas que se relacionam. Diante disso é necessário articular a psicanálise nesse
discurso para que seja possível expandir as percepções e posicionamentos sobre
as questões de gênero no discurso psicanalítico.

Diálogos entre Psicanálise e Teoria Queer

O termo queer traduz-se do inglês como adoentado, esquisito, estra-


nho. Admite, ainda, a tradução de “homossexual”, indicando um uso ofensivo
da palavra. A escolha pelo termo Movimento Queer indica a apropriação do
insulto homofóbico para positivá-lo. Enquanto movimento, o Queer não se res-
tringe à luta contra a homofobia, aliando-se a todas as causas e lutas de pessoas
e grupos marginalizados, perseguidos, tornados invisíveis e, assim, despidos de
direitos.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1454 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Enquanto teoria, o Queer vem questionar igualmente esses limites e as


possibilidades de existência diversa em um mundo que exclui e deslegitima o
que destoa do que se supõe regra. No caso da diversidade sexual, Judith Butler
busca desmontar as ideias pré-concebidas de sexo, gênero, identidade e prá-
ticas sexuais, bem como suas articulações “naturais”. Para a autora, trabalhar
com uma noção binária de gênero empobrece a capacidade de lidar com o
outro, este que será incessantemente comparado a um ideal (Porchat, 2013).
Para Butler (2015), é o poder, logo, o discurso, o que opera na produ-
ção de uma estrutura binária, sendo a linguagem o que produz a construção
fictícia de sexo que sustenta os regimes atuais. Nesse processo, o corpo não é
determinante, mas determinado; é o meio sobre o qual se inscrevem os valores
e significados culturais. Assim, tal como na psicanálise, para a Teoria Queer o
corpo necessita de interpretação, não sendo um fim em si mesmo. O que sig-
nifica que: o que se diz de um corpo não apenas descreve, mas constitui esse
corpo.

Considerações finais

A Teoria Queer e a Psicanálise têm em comum um discurso sobre o sujeito


e suas diferentes formas de subjetivação e expressão no mundo. Entende-se
diante disso que essa teoria está, tal como a psicanálise, intimamente associada
ao desejo, sem definir padrões de comportamentos específicos ao sistema sexo/
gênero de cada sujeito. Ao sair das delimitações do binarismo sexual, é possível
pensar a pessoa com identificações múltiplas em seu desenvolvimento.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1455 de Estudos sobre a Diversidade
Sexual e de gênero
ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

Referências

ARÁN, M. A psicanálise e o dispositivo da diferença sexual. Estudos Feministas, v.17,


n.3, p.653-73, 2009.

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 10.ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

CECCARELLI, P.R. O que as homossexualidades têm a dizer à psicanálise (e aos psica-


nalistas). Bagoas, n.8, p.103-123, 2012.

GAVARINI, L. Novas normas e formas de laço social: a sexualidade na sombra. Estilos


da Clínica, v.13, n.25, p.54-59, 2008.

PERRONI, S.; COSTA, M.I.M. Psicologia Clínica e homoparentalidade: desafios con-


temporâneos. In Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder. 2008.

PORCHAT, P. Tópicos e Desafios para uma psicanálise Queer. In: FILHO, F. S. T. [et
al] (org.). Queering : problematizações e insurgências na psicologia contemporânea.
Cuiabá: EdUFMT, 2013

QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.

SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1456 de Estudos sobre a Diversidade
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ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento:
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BATUCLAGEM DIVERSAS

Ana Maria Dietrich


Docente da UFABC
anamdietrich@gmail.com

Daniele da Silva Benicio


Discente de Engenharia de Gestão – UFABC
daniele.s.benicio@gmail.com

Felipe Borges Debossam Moreira


Discente do Bacharelado de Ciências e Humanidades - UFABC
felipe.moreira@aluno.ufabc.edu.br.

O Programa apresenta-se como uma continuidade do projeto extensão


Batuclagem implementado de 2011 até 2016 pela Pro-Reitoria de Extensão
da UFABC. No início a ação extensionista principal foi a realização de ofici-
nas voltadas para a educação ambiental e ensino de práticas musicais ligadas
a percussão na quadra da Escola de Samba Tradição de Ouro (Bairro Santa
Terezinha, Santo André - SP), que atuou como parceira no projeto. Nos anos
subsequentes o projeto se expandiu e chegou a um público de 7000 pessoas,
realizou oficinas em escolas da Rede Pública de Ensino, bem como em insti-
tuições sociais. Atuou em Santo André, São Bernardo e Mauá. Tendo como
metodologia a Arte-educação, o objetivo era inserir as tenras gerações nas pre-
ocupações ambientais atuais. Por meio da contação de histórias, da elaboração
de instrumentos com materiais recicláveis, de jogos didáticos e brincadeiras,
estimular, de forma lúdica, que tal público desenvolva reflexões e mudanças
de postura sobre suas práticas cotidianas quanto ao meio ambiente, ajudando
assim a formar cidadãos conscientes. A contação de história instiga a imagi-
nação, a criatividade, a oralidade, incentiva o gosto pela leitura, contribui na
formação da personalidade da criança envolvendo o social e o afetivo.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1457 de Estudos sobre a Diversidade
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

A contação de histórias é atividade própria de incentivo à imagina-


ção e o trânsito entre o fictício e o real. Ao preparar uma história
para ser contada, tomamos a experiência do narrador e de cada
personagem como nossa e ampliamos nossa experiência vivencial
por meio da narrativa do autor. Os fatos, as cenas e os contex-
tos são do plano do imaginário, mas os sentimentos e as emoções
transcendem a ficção e se materializam na vida real. (RODRIGUES,
2005, p. 4).

É na educação Infantil e Fundamental que se tem o início do processo de


educar do indivíduo para tomar o seu lugar na sociedade. A questão principal é
de conscientizar o aluno, ou seja, a criança e torná-lo um agente multiplicador
da informação. Na atual versão, pretende-se promover a contação de histórias
ligada a literatura infanto-juvenil com objetivo de se difundir informações e
reflexões sobre o patrimônio imaterial brasileiro de lendas brasileiras, afro-bra-
sileiras, além de trabalhar as múltiplas diversidades incluindo a de orientação
sexual, gênero, geração e etnia. Temos como pano de fundo a sensibilização
para as questões sobre diversidades e direitos humanos, afim de promover for-
mas de pensar e de se refletir diferentes das hegemônicas, e ao mesmo tendo
difundindo a contação de histórias com vistas de se valorizar a tradição oral.

Experimentando a diversidade

A diversidade das narrativas presentes nesses em contos e lendas afro-bra-


sileiras deve ser explorada como forma de se aprofundar o conhecimento do
patrimônio imaterial brasileiro de origem africana, além de sensibilizar nosso
público alvo, tenras gerações e a Terceira Idade, às questões relativas a diversi-
dades e a promoção de Direitos Humanos.
Lembramos que o objetivo inicial do projeto - a reflexão e promoção de
valores relativos a Educação ambiental, não será deixado de lado, uma vez que
haverá a problematização dessas questões nas narrativas das lendas e contos,
pensando-se por exemplo, se os recursos naturais são respeitados, de que forma
são vistos e inseridos em práticas cotidianas.
Segundo o Manual de aplicação de Educação Patrimonial (IPHAN, 2013),
entende-se oralidade a principal forma de comunicação de um grupo, é sua
própria língua por meio da qual pessoas diferentes e com modos de vidas diver-
sos, se entendem e podem partilhar de um referencial de sentidos e significados.

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ISBN 978-85-61702-44-1 1458 de Estudos sobre a Diversidade
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Quando pensamos em narrativas de histórias infanto-juvenis logo nos


vem a cabeça contos da tradição europeia como a Branca de Neve. Só que tais
contos pouco têm a ver com a cultura brasileira, além de promover uma fragili-
zação do feminino. Assim, pensa-se em recuperar narrativas afro-brasileiras por
meio de pesquisa em bibliografia especializada e também por meio da pesquisa
direta na comunidade. Visa-se com isso combater a naturalização do precon-
ceito (Ibid., p. 79). Essa naturalização parte de padrões sociais e estereótipos, da
inquestionável prática de conceitos negativos. A partir das pressões realizadas
pelo Movimento Negro em busca de transformações, frente as desigualdades
sociais e educacionais entre brancos e negros no Brasil, na segunda metade da
década de 1990, o governo federal adotou algumas alterações em livros didáti-
cos que apresentavam imagem estereotipadas de negros e indígenas.
Nesse sentido, os mitos e estereótipos que cercam noções naturalizadas
pelo senso comum de juventude e velhice, o corpo jovem é definido em opo-
sição ao corpo idoso. O primeiro ganha atributos ligados ao que definimos na
sociedade capitalista como força e saúde, tais como agilidade física e men-
tal, rapidez, coordenação motora; enquanto que o segundo é visto quase sem
qualidades, ao contrário, defeituoso, decadente, fraco, lerdo, descoordenado,
doente.

Considerações finais

Acredita-se que a partir da oralidade, em especial, da contação de his-


tórias, é possível problematizar estereótipos da cultura hegemônica, branca,
patriarcal e masculina. Ideias muitas vezes difundidas como o padrão estético
branco louro europeu, a visão da mulher fragilizada (princesa) perto de rapazes
super heróis (príncipes), o casamento hetero-afetivo como sinônimo de finais
felizes, entre outros estereótipos tão largamente difundidos, podem ser pro-
blematizados sendo consideradas outras possibilidades a partir da valorização
das diferenças e das diversidades. Isso está em consonância para se pensar as
múltiplas possibilidades de uma educação em direitos humanos desde as tenras
idades.

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Referências

RODRIGUES, Edvânia Braz Teixeira. Cultura, arte e contação de histórias. Goiânia,


2005.

Educação Patrimonial: Manual de aplicação: Programa Mais Educação / Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. - Brasília, DF: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc,
2013.

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REPENSANDO DIREITOS HUMANOS NA ESCOLA

Ana Maria Dietrich


Pós-Doutora pelo Departamento de Sociologia do IFCH da Unicamp
Universidade Federal do ABC
anamdietrich@gmail.com

Juliana Fabbron Marin Marin


Mestranda em Políticas Públicas
Universidade Federal do ABC
julianafabbron@gmail.com

Acreditamos, na linha do PNEDH/2003 que “educar em direitos humanos


é fomentar processos de educação formal e não formal, de modo a contribuir
para a construção da cidadania, o conhecimento dos direitos fundamentais, o
respeito à pluralidade e à diversidade sexual, étnica, racial, cultural, de gênero
e de crenças religiosas”. Formar cidadãos que incorporem os conceitos de
Direitos Humanos no ambiente escolar é algo imensamente prioritário, pois a
escola é um espaço de sociabilização e formação, que potencializa o encontro
das diversidades, da aprendizagem e da construção. Esse pensamento vai de
encontro à concepção contemporânea dos Direitos Humanos que promove um
diálogo entre esses e os “conceitos de cidadania democrática, cidadania ativa
e cidadania planetária, por sua vez inspiradas em valores humanistas e emba-
sadas nos princípios da liberdade, da igualdade, da equidade e da diversidade,
afirmando sua universalidade, indivisibilidade e interdependência” (Ibid).
O Projeto de Curso proposto de Educação em Direitos Humanos se
articula com um Grupo de Pesquisa do CNPQ certificado pela UFABC, o
‘Laboratório de Estudos e Pesquisas da Contemporaneidade’. Os objetivos deste
Projeto são implantar e ofertar um curso de Aperfeiçoamento em Educação em
Direitos Humanos que forneça subsídios para formar profissionais da educa-
ção básica e profissionais ligados às áreas do Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos (mídia, educação não-formal e justiça e segurança); propor

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uma atuação pedagógica voltada à promoção, consolidação e difusão dos


direitos humanos, com foco na promoção de práticas democráticas, na disse-
minação do conteúdo dos direitos humanos e na orientação de práticas de não
discriminação. O curso visa, também, fornecer subsídio para a realização de
práticas pedagógicas voltadas à consecução da cultura dos direitos humanos no
ambiente escolar e elaboração de materiais didáticos específicos de educação
em direitos humanos.
Há nesse Curso a construção do conhecimento a partir da articulação
entre o conhecimento acumulado no âmbito acadêmico, pelos movimentos
sociais e por educadores e educandos a partir de sua experiência.
Os cursistas são orientados a realizar atividades pedagógicas práticas (aulas
experimentais, atividades de sensibilização e mobilização da equipe da escola,
reorganização do espaço escolar, atividades de pesquisa e vivência dentro da
comunidade escolar, entre outras) em seus espaços educacionais de atuação,
preferencialmente no desenvolvimento próprio de suas funções, investindo na
articulação entre formação e trabalho. Estas atividades são acompanhadas e
avaliadas pela equipe do curso - à luz das diretrizes conceituais, legais e meto-
dológicas - sendo entendidas como laboratório de novas práticas pedagógicas
e estratégia de consolidação e multiplicação dos conhecimentos.
A metodologia trata dos conteúdos com foco no perfil de cada cursista e
da comunidade escolar a qual está inserido. Para tanto, são realizados encon-
tros presenciais e atividades em educação a distância - na plataforma Tidia -,
onde são disponibilizados os conteúdos em pesquisa e vivência comunitária.
Em nossa concepção pedagógica, atividades em educação a distância são
aquelas relacionadas aos conteúdos disponibilizados na plataforma Tidia, mas
também compreendem atividades de pesquisa e de vivência comunitária que
propiciem um trabalho concreto no enfrentamento das temáticas dos cursos.

Considerações finais

Na concretização do curso de aperfeiçoamento Educação em Direitos


Humanos, mesmo com a abordagem de destaque que a questão de diversidade
foi vista, inclusive com um Módulo voltado a essa temática, houve pouquíssi-
mos projetos de intervenção dos cursistas apresentados sobre a temática LGBT.
Sobre gênero, houve maior número de trabalhos finais, porém, ainda ficou
muito aquém do tema mais estudado: africanidades.

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Baseados na experiência de apresentação dos trabalhos durante o


Simpósio, acreditamos que essa invisibilidade do movimento LGBT nos traba-
lhos finais se deu pela falta de conhecimento de metodologias apropriadas e de
linguagem específica voltada para o público infantil. Isso mostra a importância
de se pensar estratégias e instrumentos metodológicos para que os professores
de ensino básico, principalmente do Fundamental I, consigam tratar questões
LGBT já com os alunos mesmo em sua tenra idade (5 a 11 anos) e descontruam
a educação sexista que até então é imposta.

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Referências Bibliográficas

BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. PNDH. Comitê Nacional


de Educação em Direitos Humanos. – Brasília: Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2006

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Sexual e de gênero
RELATOS DE
EXPERIÊNCIA

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SUMÁRIO

EXPERIMENTAÇÕES DISSIDENTES EM GÊNERO E SEXUALIDADE NO


COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COMO
PRÁTICAS DE LIBERDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1469
William Scheidegger Moreira | Fernando Altair Pocahy

O EMBODIMENT DA POLÍTICA NA BELEZA DO CERTAME MISS T BRASIL . . . . 1474


Aureliano Lopes da Silva Junior

ATUAÇÃO DE MEMBROS DA COMISSÃO DA DIVERSIDADE SEXUAL E


DE GÊNERO DA OAB-PR NA DISCUSSÃO DOS PLANOS DE EDUCAÇÃO
MUNICIPAIS E ESTADUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1481
Rafael dos Santos Kirchhoff | Ligia Ziggiotti de Oliveira
Andressa Regina Bissolotti dos Santos

DESENHOS ANIMADOS: (RE) PENSANDO GÊNERO E ESTÉTICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . 1488


André Luiz Bernardo Storino

DESCOLANDO GÊNERO E SEXUALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1495


Barbara Orsi | Eva Célem | Natasha Ribas

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER, MASCULINIDADES E FEMINILIDADES . . . . . . . . 1504


Beatriz Hiromi da Silva Akutsu | David Emmanuel da Silva Souza

O ATRAVESSAMENTO DA VIOLÊNCIA EM OFICINAS DE GÊNERO E


SEXUALIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1510
Bruna da Silva Paulino | Angelina Costa Baron | Amana Mattos

RELATO DE EXPERIMENTAÇÃO DE AULA VISANDO DESCONTRUÇÃO


DE ESTEREÓTIPOS HOMOLESBOTRANSFÓBICOS POR MEIO DE
FERRAMENTA DIALÓGICA, EM CLASSE DE ALUNOS ESTUDANTES DE
DIREITO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1518
Irapoan Nogueira Filho

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Sexual e de gênero
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COLETIVO DUAS CABEÇAS: A EXPERIÊNCIA DA LUTA AO DIÁLOGO. . . . . . . . . . . 1525


Juber Marques Pacífico

PAPÉIS DE GÊNERO E VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1533


Natalia Caroline Soares de Oliveira | Beatriz Hiromi da Silva Akutsu

FACEBOOK E HOMOFOBIA: A VIOLÊNCIA COMO


INIBIDORA DA HOMOAFETIVIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1540
Rodrigo Luiz Nery

“SEM DÚVIDAS ESSE TRABALHO DEIXOU MARCAS”: ESTUDANTES


DO ENSINO MÉDIO E SUAS VIVÊNCIAS NA SEMANA DE COMBATE À
LGBTTIFOBIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1548
Rosalinda Carneiro de Oliveira Ritti

PLEGARIA ROSA LGBTI EL SALVADOR: RECUPERANDO LA DIGNIDAD


HUMANA A TRAVÉS DEL DUELO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1556
Amaral Palevi Gómez Arévalo

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E MAPEAMENTO DA LGBTFOBIA EM TERRITÓRIO


NACIONAL: “TEM LOCAL”, UMA PLATAFORMA COLABORATIVA COMO UM
RETRATO DO PROBLEMA NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1564
Antonio Carlos Pinto da Fonseca Junior

RELATO DA OFICINA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA MULHER


REALIZADA COM MULHERES ENCARCERADAS EM REGIME SEMIABERTO . . . . 1572
Beatriz Hiromi da Silva Akutsu | Natalia Kleinsorgen

PERFORMANCE/INSTALAÇÃO & INTERATIVIDADE: GÊNERO, SEXUALIDADE,


DIREITO E DEMOCRACIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1579
Gabriel Cerqueira Leite Martire | Gustavo Agnaldo de Lacerda
Mariana de Vasconcellos Tauil

GEOGRAFIA, GÊNERO E EDUCAÇÃO: A UTILIZAÇÃO DE TEMAS TRANSVERSAIS


NA ELABORAÇÃO/APLICAÇÃO DE PROJETOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1589
Bruno de Freitas

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Sexual e de gênero
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DINÂMICAS DOS INSULTOS COMO FERRAMENTA DE FORMAÇÕES EM DEFESA


DOS DIREITOS HUMANOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1598
Flávia Luciana Magalhães Novais | Diego Carrilho da Silva

SOBRE “EU NÃO QUERO VOLTAR SOZINHO” EM SALA DE AULA.. . . . . . . . . . . . . . 1605


Lídia Lobato Leal

GRUPOS DE FAMILIARES DE PESSOAS TRANS: CONSTRUINDO SABERES E


POSSIBILITANDO ENCONTROS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1610
Eric Seger de Camargo | Fernanda Carrion da Silva | Flávia Luciana Magalhães Novais

DISCUTINDO GÊNERO E SEXUALIDADE NO ENSINO MÉDIO: AMPLIANDO O


DIALÓGO ENTRE FUTUROS PROFESSORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1615
Julio Cezar Pereira Araujo

A EXPERIÊNCIA DO FESTIVAL DAS DIVERSIDADES


PRISMA E A VISIBILIDADE E O EMPODERAMENTO DOS LGBTIS NA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC UFABC. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1623
Juliana Fabbron Marin Marin | Raimundo Nonato Braz Neres

PROJETO EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS UFABC. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1628


Ana Maria Dietrich | Daniele da Silva Benicio

RELATO DE EXPERIÊNCIA DO EIXO ACOLHIMENTO DO CRDH: GRUPO DE


VIVÊNCIAS PARA PESSOAS TRANS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1633
Flávia Luciana Magalhães Novais | Hellen Santos | Diego Carrilho da Silva

“SE A GENTE NÃO CONTINUAR COM ESSA LUTA, VAI SER CADA VEZ PIOR
[...]”– LEITURAS DE UMA VIVÊNCIA FORMATIVA SOBRE DIVERSIDADE DE
GÊNERO E SEXUAL EM UMA ESCOLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1640
Idália Lino dos Santos | Roniel Santos Figueiredo | Marcos Lopes de Souza

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EXPERIMENTAÇÕES DISSIDENTES EM GÊNERO E


SEXUALIDADE NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL:
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COMO PRÁTICAS DE LIBERDADE

William Scheidegger Moreira


Graduando em Pedagogia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
william-Scheidegger@hotmail.com

Fernando Altair Pocahy


Doutorado em Educação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
pocahy@uol.com.br

Relato de experiência

O presente trabalho consiste em um relato de experiência sobre uma


atividade formativa na graduação em pedagogia, articulada a uma proposta
de acompanhamento de trabalho docente em Educação Infantil. Trata-se de
observação de práticas docentes, realizada em uma creche municipal loca-
lizada em uma comunidade da zona norte do Rio de janeiro. A experiência
a ser problematizada foi produzida a partir do encontro com uma turma de
maternal II, frequentada por 25 crianças com faixa etária de 3 a 4 anos de
idade. A turma era conduzida por uma professora regente, duas agentes de
educação infantil, que atuavam na turma em horários distintos, sendo uma auxi-
liar responsável pelo auxílio pedagógico no turno da manhã e uma auxiliar
responsável pelo auxílio pedagógico no turno da tarde, e um professor subs-
tituto, que assumiria a turma após um mês acompanhando a classe, a contar
do primeiro dia do estágio de observação. O estudo em tela teve como obje-
tivo a problematização das atividades de sala de aula, a partir de um olhar

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interessado sobre as relações de gênero e sexualidade, apoiado em reflexões


de estudiosas feministas e queer como Louro (2012), entre outras. Com o apoio
de leituras endereçadas às questões de gênero em perspectiva interseccional,
procedeu-se a observações de prática de/em pesquisa-intervenção, tomando
como objeto privilegiado discursos-práticas que regulam, normatizam e padro-
nizam as performances de crianças na creche. Na turma em que o trabalho foi
realizado era comum a separação de espaços, demarcados como femininos
e masculinos, como por exemplo, os lugares onde as mochilas eram pendu-
radas e a chamada de classe, que se apresentava aos alunos com um lugar
específico para nomes de meninos, impressos em papel branco e colados em
papel azul como plano de fundo, bem como lugares específicos para nomes de
meninas, impressos em papel branco e colados em papel rosa como plano de
fundo. Essas cores que, socialmente, são utilizadas para demarcação de papeis
sociais e delimitações de performances femininas/masculinas antes mesmo de
nascermos, frequentemente faziam-se presentes no cotidiano da instituição,
assumindo um caráter conservador e separatista. Ao longo do trabalho, foram
observadas também as formas de circulação das crianças pelos espaços da ins-
tituição, que também eram apresentadas de maneira dicotômica, evidenciando,
ainda que sutilmente, que pessoas do gênero masculino ocupam determina-
dos espaços físicos e simbólicos e pessoas do gênero feminino ocupam outros
espaços físicos e simbólicos. Esses espaços não permitem tensionamentos ou
desestabilidades e, desde muito cedo, discursos movimentam as práticas de
profissionais da Educação, interpelando de forma normativas experimentações
discentes que ganhavam/produziam corpo em sala de aula. Esses discursos de
poder orientam crianças de creche sobre sua forma correta de sentar ou se por-
tar ou a escolha do brinquedo ideal, dotado de masculinidade para meninos e
feminilidade para meninas, entre outras formas de experimentação do lúdico.
Essa pedagogia dos corpos (Louro, 2012) aplica-se de forma direta e visível,
através de discursos e práticas, e de maneira indireta e sutil, como na separa-
ção entre meninos e meninas em filas para a merenda e em representações de
situações e/ou informes em murais - que constantemente vinham representados
por casais heteronormativos, como no caso dos murais informativos para festa
junina, sempre compostos por um menino e uma menina como par ideal, ves-
tindo roupas de caipira, o que terminava por invisibilizar outras representações
de arranjos sexuais e de gênero.

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Sexual e de gênero
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Um olhar diferenciado para as questões de gênero

A partir de situações como as descritas acima, o trabalho buscou com-


preender os efeitos dos ideais regulatórios de gênero e sexualidade nas práticas
docentes, suas repercussões nas experimentações pedagógicas e no brincar-co-
nhecer das crianças, tanto quanto refletir sobre posturas e situações cotidianas
vivenciadas por crianças e profissionais de Educação no dia a dia da educação
infantil. Alguns estudiosos afirmam que “a escola delimita espaços. Servindo-se
de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela
separa e institui. Informa o lugar dos pequenos e dos grandes, dos meninos e
das meninas.” (Louro, 2012) Considerando a creche como instituição dotada
de especificidades próprias e envolta de políticas educacionais que buscam o
desenvolvimento integral dos sujeitos infantes, contextualizá-la a atual conjun-
tura escolar pode significar uma legitimação ainda mais ampla do atual status
quo, que garante o sujeito heterossexual e cis gênero como participante social
de maior valia nos arranjos sociais por estarem dentro dos padrões socialmente
estabelecidos como normais e morais. O método de apoio em pesquisa con-
siste em uma observação inspirada em modelos de pesquisa participativa e os
achados analisados em perspectiva discursivo-desconstrucionista, notadamente
fundamentos nos estudos foucaultianos queer. Os achados do estudo indicam
a proliferação e a permanência de posições conservadoras e práticas hetero-
normativas e sexistas tecendo o cotidiano escolar, sendo vivenciadas com forte
apelo às representações binárias de gênero. Esta evidência nos aponta para uma
perniciosa margem à expansão de expressões e fazeres cotidianos regulados
por discursos heteronormativos. No entanto, por outro lado, o estudo revela
práticas de resistência no cotidiano. Mesmo com o forte caráter conservador de
alguns profissionais da instituição, algumas poucas crianças mantinham posicio-
namentos políticos de reivindicação das próprias práticas de circulação pelos
espaços da creche, assim como de reivindicação das brincadeiras e experi-
mentações que gostariam de protagonizar. Ainda que, em alguns casos, essas
reivindicações e enfrentamentos das políticas normativas sexuais e de gênero
surgissem como demanda advinda das crianças, frequentemente essas deman-
das eram ignoradas ou interpretadas como condutas “desviadas” sob a óptica
de alguns professores, professoras e auxiliares de educação infantil. Durante a
experiência, essas práticas de resistência puderam ser observadas durante ati-
vidades desenvolvidas pela professora regente da turma que acompanhamos.

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Com a entrada do professor substituto, percebemos um tensionamento produ-


tivo em termos de uma ´dissidência´ às condutas docentes até então vigentes,
balizadas fortemente por normas de gênero e sexualidade. Isto é, se algumas
atividades pedagógicas eram explicitamente heteronormativas. Antes da subs-
tituição entre os professores, eram comuns atividades pedagógicas com cores
específicas para meninas e cores específicas para meninos. Os brinquedos ofe-
recidos aos alunos durante os horários de “atividades livres”, frequentemente
eram distribuídos separadamente, sendo meios de transporte e bonecos de
ação endereçados apenas para meninos e jogos de panelas, bonecas e bolsas
apenas para meninas. Durante os impasses entre as crianças, por disputas de
brinquedo, a representação social do brinquedo disputado sempre tinha maior
peso frente as decisões de apaziguamento dos docentes. Se a disputa era dada
entre pares – dois meninos ou duas meninas – promovia-se uma conversa para
que se pudesse chegar a conclusão de quem estava com o brinquedo primeiro.
Entretanto, se os impasses se davam entre um menino e uma menina, frequen-
temente o caráter social do brinquedo era levado em consideração. Não era
perguntado aos alunos quem havia encontrado primeiro aquele brinquedo,
independente do ocorrido, se o objeto em disputa fosse um carro, o menino
teria direito a ele, se fosse uma boneca, o direito seria da menina. À entrada
do professor substituto, percebemos um fazer pedagógico em preocupação crí-
tica, evidenciando algumas atividades e preocupações com a interpelação de
gênero. Essas passaram a ser repensadas e (re)formuladas (por exemplo, as ativi-
dades de divisão e ocupação do espaço de sala foram redefinidas, brincadeiras
e atividades educativas passaram a ser revistas e repensadas, etc). Ao aplicá-las
de maneira não tradicional, percebeu-se como resposta da maioria dos alu-
nos certo grau de resistência, o que ousaríamos ponderar tratar-se de algum
estranhamento. Com as mudanças estruturais nas atividades pedagógicas, as
crianças passaram a denunciar, de maneira compulsória, atos e/ou comporta-
mentos de outras crianças que cruzavam as linhas de divisão entre meninos e
meninas que antes lhes eram impostas. Os lugares da chamada de classe, já não
eram mais demarcados como um lado para meninas e um lado para meninos,
entretanto, ainda que o discurso pedagógico, naquele contexto, tivesse trans-
cendido ao binarismo sexual e de gênero, antes importo como regra irrefutável
às crianças, os discentes permaneciam, por si só, conservando a ideia de um
lado só para meninas e um lado só para meninos. As poucas crianças que ten-
tavam transcender a regra que já não era mais docente, recebiam críticas de
outras crianças, muitas vezes seguidas de denúncias ao professor.

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Considerações finais

Ao longo de um mês, tantos os discursos quanto as atividades pedagó-


gicas começam a sofrer certa reconfiguração nos termos de conduta docente
mais ampla, buscando atender a pluralidade do grupo e a preocupação com
as resistências. Ao desenvolver do trabalho, sentiu-se a necessidade de ações
explicativas a respeito de questões sexuais e de gênero, não apenas voltado
ao corpo discente, mas que também contemplasse o corpo docente. Com o
passar do tempo, foi apresentado a alguns docentes e a algumas auxiliares de
turma diferentes pontos de vista em relação às condutas estabelecidas por eles/
elas próprios/as no dia a dia da instituição. Aos poucos, os murais informativos
passaram a propor outras representatividades que não fosse só a heterossexual,
branca e cis gênero, abrangendo maiores possibilidades de arranjos familiares
e de identidades sexuais e de gênero. As práticas machistas/ (hetero)sexistas
– verbais e não verbais – passaram a ser repensadas com a turma, com bons
efeitos no cotidiano. Ao longo do período de um mês, as falas sexistas/machis-
tas entre os alunos diminuíram consideravelmente. Em contraponto, o respeito
entre os discentes ampliou de maneira perceptível, com uma redução sensí-
vel de comentários e provocações preconceituosas. Consideramos, pois, que
os efeitos de uma posição crítica e voltada à compreensão da diversidade e
da importância das interpelações de gênero no cotidiano, pode repercutir nos
termos do alargamento de experimentações pedagógicas comprometidas com
posturas democráticas e sensíveis à diversidade.

Referências

LOURO, G.L., In: O corpo educado: pedagogia da sexualidade. Belo Horizonte,


Autêntica: 2000

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O EMBODIMENT DA POLÍTICA NA BELEZA DO CERTAME MISS


T BRASIL

Aureliano Lopes da Silva Junior


Doutor em Saúde Coletiva
Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero,
Políticas e Direitos/UERJ
aurelianolopes@gmail.com

GT 04 -
Travestilidades, Transexualidades, Lesbianidades e Homossexualidades:
Transgressões e Resistências

Resumo

O presente trabalho analisa o concurso de beleza voltado para travestis e mulhe-


res transexuais, o qual foi organizado pela Associação de Travestis e Transexuais
do Rio de Janeiro/ASTRA-Rio em parceria com o Programa Rio Sem Homofobia
da SUPERDir/SEASDH-RJ. Concebido como uma ação política e cultural em
prol de travestis e mulheres transexuais, o Miss T Brasil levou ao palco entre os
anos de 2012-2015 temas como saúde, cidadania, direitos, política, entre outras.
Através do mote da beleza, tais temas estiveram em pauta para afirmar uma
identidade trans e visibilizá-la publicamente de uma forma que este coletivo
concebia como positiva.
Palavras-chave: Miss T Brasil; Concurso de Beleza; Beleza; Travestilidade;
Transexualidade.

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Introdução

Este trabalho apresenta algumas reflexões e provocações advindas da tese


de doutorado intitulada “‘Linda, doce, fera’: a construção de corporalidades
políticas no concurso de beleza Miss T Brasil” (IMS/UERJ, 2016). Utilizando-me
do método etnográfico, realizei trabalho de campo nos anos de 2012, 2013 e
2014 no concurso de beleza Miss T Brasil, realizado desde 2012 na cidade do
Rio de Janeiro. Organizado pela Associação de Travestis e Transexuais do Rio
de Janeiro/ASTRA-Rio em parceria com o Programa Rio Sem Homofobia da
Superintendência de Direitos Coletivos, Individuais e Difusos da Secretaria de
Assistência Social e Direitos Humanos do governo do estado do Rio de Janeiro
– SUPERDir/SEASDH-RJ e utilizando-se do mote da beleza, entendida pelo dis-
curso nativo como “cultura trans” e algo próprio e encarnado (embodiment)1
na constituição de si deste coletivo, o Miss T Brasil concebia-se como uma
ação cultural e política que buscava construir modelos de representação para
travestis e mulheres transexuais alternativos àqueles marcados pelo preconceito
e marginalidade no imaginário social.
O lugar a mim delegado pelo campo nos três anos desta etnografia foi
o de alguém que estaria registrando acadêmica e fotograficamente o projeto
Miss T Brasil, de modo que pude ter acesso tanto ao seu palco como aos seus
bastidores. Principalmente neste segundo espaço, atuei como um auxiliar da
organização e pude ter acesso a um ambiente de produção de um concurso
de beleza. Nos anos de 2013 e 2014, também acompanhei as candidatas deste
certame brasileiro que foram enviadas para participação no mundial Miss
International Queen, realizado anualmente deste 2004 na cidade de Pattaya,
Tailândia. Neste concurso tido como o Miss Universo para travestis e mulheres
transexuais, desempenhei a função de um follower, ou seja, fui o acompanhante
das candidatas brasileiras, auxiliando-as nas mais diversas tarefas necessárias,
como tradução do inglês para o português, auxílio com suas bagagens e vesti-
mentas, etc.

1 Faço uso deste termo e conceito no mesmo sentido de Ochoa (2014) e Connel (2012), as quais o
utilizavam para falar de processos de construção de determinada corporalidade e sua

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Produzindo a beleza feminina trans

A ideia inicial de transformar um concurso de beleza em tema da tese veio


da suposição de que ao se falar sobre beleza, grupos sociais diversos também
estavam dizendo sobre concepções de si, de corpo e/ou de sujeito; e de que o
formato concurso de beleza poderia ser utilizado de forma estratégica na cria-
ção de uma imagem pública exemplar segundo esta concepção que tais grupos
faziam de si. Deste modo, a figura da Miss T, concebida como representante da
dita “população trans”2, parecia apresentar-se como uma versão ideal e mode-
lar do que uma mulher trans era ou poderia/deveria ser: o corpo construído
para um concurso de beleza parecia maximizar espetacularmente práticas coti-
dianas de produção de si de sujeitos femininos que de alguma forma encarnam
o padrão majoritário de beleza da sociedade ocidental contemporânea, o qual
muitas vezes é concebido como o próprio feminino – ou o “feminino universal”,
nos dizeres de Ana Maria Batista (1999) ou uma “feminilidade hegemônica”,
segundo conceituação de Marcia Ochoa (2014).
Neste sentido, a hipótese de que sob a rubrica da beleza este grupo de tra-
vestis e mulheres transexuais (como diversos outros possíveis) também estavam
falando sobre noções de corpo, sujeito e saúde mostrou-se pertinente: saberes
sobre cuidados, práticas e serviços em saúde eram constantemente construídos
e reconstruídos nos bastidores e, aqui, destacavam-se aqueles mais diretamente
relacionados às modificações corporais, cirurgias plásticas e recursos e ser-
viços voltados para a construção de seus corpos femininos. Temas correntes
no campo da saúde de travestis e mulheres transexuais, como as cirurgias de
transgenitalização e o protocolo oficial que gira em torno deste procedimento,
ocupavam um plano secundário neste grupo, sendo os tratamentos estético-
cosméticos e cirurgias para colocação de próteses de silicone e feminização
facial as que pareciam ser as mais desejadas e discutidas, o que coloca sob tal
rubrica da beleza o que este grupo concebia como uma imagem encarnada de
si que, de forma modelar, seria visibilizada para outrem em um concurso de
beleza.

2 Forma como este coletivo tem sido nomeado na Política LGBT brasileira. Para uma análise desta
temática, ver Aguião (2014).

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Mostrar-se para uma câmera e deixar-se ser fixada nesta imagem ia ao


encontro tanto do que o discurso oficial apregoava como seu regime de visibi-
lidade como da forma como as candidatas desejavam ser registradas, ou seja,
como belas, femininas e em um evento que aparentemente goza de legitimidade
no meio social. De acordo com os discursos proferidos por Majorie Marchi, ide-
alizadora e organizadora do Miss T Brasil, no palco das edições de 2013 e 2014
deste certame:
É com imensa emoção que mais uma vez, pelo segundo ano, que
a gente com toda humildade, com todo carinho se coloca nesse
importante espaço de cultura de nosso estado pra celebrar o nosso
orgulho. Nosso orgulho com muita honra em existir e provocar
cotidianamente a sociedade. É extremamente emocionada que
comemoro dois anos do nosso projeto. Um projeto que começou
desacreditado, como nós, discriminado, como nós, que as pessoas
riam do projeto, como riem de nós. As pessoas não acreditavam
que travestis e transexuais podiam ser visibilizadas longe do risível,
longe de páginas policiais ou longe do vitimismo e do sofrimento
que também é comum ao nosso segmento. Mas nós também somos
felizes, somos vitoriosas, temos orgulho de existir e esse projeto per-
mite esse dialogo, essa visibilidade massiva. Eu tenho muito orgulho
de poder contar com o carinho, a credibilidade desse grupo de
lindas meninas que confiaram no projeto e foram cuidadosamente
garimpadas de todas as regiões do país. Uma salva de palmas
pras representantes... [palmas] não representantes de travestis e
transexuais, mas como eu digo desde a primeira edição, legítimas
representantes da beleza feminina brasileira (MISS T BRASIL, 2013).

Mas hoje vamos ter uma missão importante, de escolher a repre-


sentante lúdica da beleza, da feminilidade e de orgulho trans. Hoje
esse ano especialmente o tema escolhido por nós se chama ‘O
orgulho de existir’, porque nós temos orgulho. E como eu venho
dizendo desde a primeira edição, ah, mas tanta coisa que as tran-
sexuais e travestis sofrem e concurso de Miss? Eu tenho direito ao
lúdico, o belo também me pertence. E até o fútil se eu quiser, mas
o importante é saber que a gente não quer só comida, a gente quer
comida, diversão e arte [palmas] (MISS T BRASIL, 2014).

O grande objetivo do Miss T Brasil era criar uma imagem para travestis
e mulheres transexuais vista por elas como positiva, nomeada como “visibili-
dade positiva”. A “visibilidade positiva” mostrava-se como ferramenta política

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na construção de um regime de visibilidade alternativo àquele geralmente pre-


sente no imaginário social, que associa transgeneridade com marginalidade e/
ou patologia (Carvalho, 2015). Como afirmava Majorie Marchi, ali elas eram
“legítimas representantes da beleza feminina brasileira” ao mesmo tempo em
que reiteradamente afirmavam sua identidade trans. Tópicas como a celebração
de uma identidade feminina trans e o orgulho de visibilizá-la publicamente de
uma forma vista como legítima por este grupo – juntamente com o enquadre
de uma linguagem e universo que giravam em torno de ideias de direitos e cida-
dania, dados, por exemplo, pela já mencionada ASTRA-Rio, nomeada como
organizadora do certame, e pelo apoio institucional do Governo do estado do
Rio de Janeiro através do Programa Rio Sem Homofobia e também da já men-
cionada – parecia politizar e “nobilitar” (Rahier, 1998) a beleza feminina trans:
utilizando-se de um formato considerado por muitas pessoas como reiterativo
de um ideal normativo de feminilidade e beleza (cisgêneras), o Miss T promovia
a produção deste mesmo corpo ideal para mulheres cisgênero para travestis e
mulheres transexuais, porém, ao também sobrepor a este sujeito modelar os
anseios e desejos deste grupo e/ou “população trans” e não negar as inúmeras
discriminações e violências a que são vulneráveis, talvez estivesse levando ao
palco uma espécie de resposta, ou “um perverso ato de vingança”, nos dizeres
de Juana Rodriguez (2015), contra um mundo que reiteradamente define como
abjeto (Butler, 2002), não legítimo (Namaste, 2000) e/ou objeto de permanente
escrutínio social (Connell, 2012) o lugar social ocupado por travestis e mulheres
transexuais. Não foi à toa que os temas/slogan escolhidos para cada um dos
anos do Miss T condensassem tais ideias de visibilidade positiva e criação de
determinado sujeito político através da beleza: “A beleza em prol da cidadania”
(2012); “A beleza contra a transfobia” (2013); e “Pelo orgulho de existir” (2014).

Considerações finais

Constituindo-se paradoxalmente tanto como um local de reiteração de


determinado ideal normativo de beleza feminina “universal” ao mesmo tempo
em que rompe tal ideal ao trazer a dita “beleza trans” para o seu centro, o Miss
T Brasil parece ter produzido algo único tanto na vida daqueles e daquelas que
dele fizeram parte como no imaginário social relacionado à travestis e mulheres
transexuais. Este certame conjugou direitos, cidadania e beleza; exaltou deter-
minada corporalidade feminina ao mesmo tempo em que não negava todas

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as outras possibilidades fora deste padrão ideal; promoveu um espelhamento


entre cisgeneridade e transgeneridade; em seus bastidores, discutiu temas como
saúde e trabalho, entre tantos outros. Enfim, promoveu um espetáculo baseado
em uma corporalidade reconhecida socialmente como bela e a nobilitou com
as identidades, vivências e histórias daquelas travestis e mulheres transexuais
que passaram pelo seu palco.
O Miss T Brasil como foi aqui brevemente apresentado aconteceu entre
os anos de 2012 e 2015 (edição esta que não acompanhei para a tese). No iní-
cio de 2016, Majorie Marchi, a grande responsável por este projeto e tudo que
ele mobilizava, faleceu. O Miss T Brasil certamente continuará, mas talvez não
da forma como foi construído nestes primeiros anos: com uma cara, um corpo
e uma identidade fortemente identificável, mas um tanto quanto difícil de ser
classificado como reiterativo, transgressor ou qualquer adjetivo que apressada-
mente tente dar conta do que estética, política e afetivamente se passou em seu
palco.

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Referências

AGUIÃO, Silvia. ‘Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constitui-


ção dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo’. Tese (Doutorado),
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2014.

BATISTA, Ana Maria Fonseca de Oliveira. O telefone sem fio, a sobrinha do presi-
dente e as duas polegadas a mais – concepções de beleza no concurso Miss Universo.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1997.

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan. Sobre los límites materiales y discursivos del
“sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002.

CARVALHO, Mário Felipe de Lima. “Muito prazer, eu existo!: Visibilidade e


Reconhecimento no Ativismo de Pessoas Trans no Brasil. Tese (Doutorado), Instituto
de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

CONNELL, Raewyn. Transsexual women and feminist thought: Toward new unders-
tanding and new politics. Signs, v. 37, n. 4, p. 857-881, 2012.

NAMASTE, Viviane. Invisible lives: The erasure of transsexual and transgendered peo-
ple. Chicago: University of Chicago Press, 2000.

RAHIER, Jean Muteba. Blackness, the Racial/Spatial Order, Migrations, and Miss
Ecuador 1995-96. In: American Anthropologist, v. 100, nº2, p.421-430, 1998.

RODRÍGUEZ, Juana María. Sexual Futures, Queer Gestures, and Other Latina Longings.
Nova York: NYU Press, 2014.

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ATUAÇÃO DE MEMBROS DA COMISSÃO DA DIVERSIDADE


SEXUAL E DE GÊNERO DA OAB-PR NA DISCUSSÃO DOS
PLANOS DE EDUCAÇÃO MUNICIPAIS E ESTADUAL

Rafael dos Santos Kirchhoff


Coordenador da Área Jurídica do Grupo Dignidade
Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PR
rafael@kadvocacia.com.br

Ligia Ziggiotti de Oliveira


Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia –
Universidade Federal do Paraná
Membra da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PR
ziggiotti@gmail.com

Andressa Regina Bissolotti dos Santos


Mestranda em Direitos Humanos e Democracia -
Universidade Federal do Paraná
Membra da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PR
bissolottiandressa@gmail.com

GT 02 - Ativismos e movimentos sociais

Introdução

No decorrer da primeira década do século XXI, o Judiciário se tornou


ponto nevrálgico de pautas LGBTI. Demandas como o “casamento gay” migra-
ram dos espaços do Poder Legislativo – cuja linguagem é evidentemente política
– para o espaço do Poder Judiciário – cuja linguagem se pretende exclusiva-
mente técnica –, e galgaram determinadas conquistas. MELLO (2005) traçou os
termos da virada ainda no início desse processo.
A segunda década deste novo século, contudo, parece reservar surpresas.
Iniciamos nosso apoio à militância LGBTI quando o Legislativo deixava de ser

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visto como campo de lutas estéril e passava a ser visto como uma constante
ameaça de retirada de direitos.
Ilustra-se tal reflexão. Em 2013, de um lado, o Conselho Nacional de
Justiça aprovava a Resolução nº 175, que tornaria obrigatório aos cartórios cele-
brarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo. De outro, o pastor Marcos
Feliciano (PSC-SP) assumia o cargo de Presidência da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias no Congresso Nacional. No Paraná, as eleições de 2014
colocariam o PSC (Partido Social Cristão) entre os partidos com mais cadeiras
na Assembleia Legislativa.
Tal é o cenário paradoxal que compõe o pano de fundo de experiência
relatada. Parte-se da atuação de uma das dezenas de Comissões em funciona-
mento na atual gestão da OAB-PR. Trata-se da Comissão da Diversidade Sexual
e de Gênero (CDS), constituída nesta Seccional em 2013. Narra-se o papel
do grupo no debate dos Planos de Educação municipais e estadual, em 2015,
quando se articularam, com êxito, determinados setores políticos para a retirada
– e, em determinados municípios, mesmo para a proibição – de abordagens
afeitas a “gênero”, “orientação sexual” e “identidade de gênero” nas escolas
através das diretrizes curriculares.
O trajeto de construção de nossas iniciativas, ainda em curso, é descrito.
Transita-se, como detalhado a seguir, pela atuação dos(as) membros(as) como
interlocutores(as) em diálogo com as escolas, com a mídia, com grupos religiosos
e demais personagens ligadas ao debate; como agentes capazes de influenciar
as decisões legislativas à ocasião dos embates parlamentares; e como potenciais
provocadores(as) de posicionamento judicial no sentido de barrar a violação
dos direitos da população LGBTI.
A análise refletida dos resultados obtidos e do redirecionamento conjunto
em face de perspectivas futuras permite abordar os limites e as possibilidades
do espaço ocupado pela CDS da OAB-PR diante do atual contexto político e
jurídico para a adequada tratativa da temática.

1. A experiência de advocacy da Comissão da Diversidade Sexual


e de Gênero no debate anunciado

Desde 2013, a Ordem dos Advogados do Brasil passou a instalar Comissões


de Diversidade Sexual nos Conselhos Federal, Estaduais e nas subseções. No
Paraná, a Comissão correlata foi instalada no mesmo ano.

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Estranhamentos iniciais com a abordagem de direitos da população


LGBTI pela advocacia foram paulatinamente superados com a atuação da então
Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Seccional do Paraná – atualmente
Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero – em auxílio a reais demandas
tanto da própria advocacia, carente de especialistas para tratar de temas cada
vez mais comuns no cotidiano da profissão, e mesmo da instituição1, quanto
dos movimentos sociais e do Poder Público.
Por ocasião das votações dos Planos de Educação estadual e municipais,
a OAB/PR congregou esforços para barrar retrocessos através das Comissões de
Diversidade Sexual (CDS), de Estudos Sobre Violência de Gênero (CEVIGE) e de
Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), em atenção ao efeito cascata da retirada
de metas de combate à discriminação por gênero, orientação sexual e identi-
dade de gênero do Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n.º 13.005/2014)
e aos movimentos de grupos ultraconservadores com significativa representa-
ção política e grande poder de mobilização. Temia-se – justificadamente, como
demonstrado ao longo do trabalho – a aprovação de emendas ao texto original,
nos demais âmbitos federativos, com viés ainda mais radical do que a mera
retirada das metas específicas.
Desfavoravelmente, a votação dos planos em âmbito estatual e municipal
se deu em curtíssimo espaço de tempo. O plano nacional estabelecia o prazo
de um ano da sua publicação para que estados e municípios aprovassem os
correspondentes locais. O resultado foram aprovações atropeladas pelas Casas
Legislativas, as quais, em geral, receberam a mensagem com o texto original
dos respectivos Poderes Executivos já ao final do prazo. Mesmo assim, um
conjunto de ações imediatas e de médio prazo foi gestado e executado por
referidas Comissões.
Em síntese, distribuíram-se as etapas de atuação da CDS no debate dos
Planos de Educação em três frentes: 1. Interlocução com a comunidade envol-
vida com a temática, compreendidas as personagens atuantes em escolas,
em lideranças religiosas e entre os meios formadores de opinião; 2. Influência
sobre agentes políticos em exercício de atividade legislativa, para acompanha-
mento do posicionamento quanto educação, gênero e diversidade sexual; 3.

1 Por exemplo, os serviços prestados a companheiras e companheiros de profissionais homossexuais


pela entidade de classe e o reconhecimento da identidade social de trans com a implantação do
nome social no âmago da OAB.

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Sexual e de gênero
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Articulação para se exigirem providências judiciais, em especial no âmbito do


Supremo Tribunal Federal (STF), para a aferição da inconstitucionalidade de
Planos de Educação.
A idealização dessas frentes de atuação se apresentaram em concomitân-
cia, mas, com a derrota no âmbito legislativo, destrinchada no último tópico,
a terceira via se projeta como perspectiva futura, ao passo que a primeira se
fortalece desde o início da atuação efetiva da Comissão.
Dentre as estratégias de intervenção no contexto das escolas, das lide-
ranças religiosas e dos meios formadores de opinião, citam-se três momentos
ilustrativos: 1. Estruturação do Projeto Jovens Multiplicadoras de Cidadania, por
iniciativa e por execução da CEVIGE, em parceria com a CDS2; 2. Reunião,
em 19 de junho de 2015, com estas duas Comissões, da CDDH, e ainda a da
Mulher Advogada, a da Liberdade Religiosa, a de Direito de Família, em con-
junto com lideranças religiosas3; 3. A realização do chamado Ciclo de Reuniões
Abertas, ao longo do segundo semestre de 2015, sobre Educação, Gênero e
Diversidade Sexual, organizado pela CEVIGE, pela CDDH e pela CDS4.
Dentre as estratégias de intervenção no contexto legislativo, buscou-se
negociar com os(as) atores(as) políticos(as) envolvidos(as) no processo de revi-
são dos Planos. No âmbito estadual, na Assembleia Legislativa do Estado do
Paraná, e, no âmbito municipal, na Câmara Municipal de Curitiba, entregaram-
se pareceres a vereadores(as) e deputados(as) estaduais delineando contornos
da relevância da abordagem de gênero e de sexualidade nas escolas.
Realizaram-se falas nas audiências públicas e, em conformidade com a
disponibilidade de agenda dos(as) representantes eleitos(as), reuniões pessoais
com a Presidência das Comissões para esclarecimentos adicionais. Nesta opor-
tunidade, destacou-se o desconhecimento generalizado e a resistência quanto
aos direitos LGBTI. Por fim, dividiram-se os(as) membros(as) das Comissões para
acompanhar as votações tanto na Assembleia Legislativa quanto na Câmara

2 Objetiva-se formar lideranças em debates sobre gênero e sexualidade entre alunas da rede pública
do ensino médio local. A ideia se concretizou, até o presente momento, no Colégio Costa Viana de
São José dos Pinhais.
3 Objetivava-se esclarecer ações tomadas pela instituição no tocante aos Planos de Educação.
4 Este evento, de ampla divulgação, objetivava reproduzir o formato de audiências públicas e ouvir
especialistas sobre determinado tema, bem como a própria advocacia, representantes do Poder Pú-
blico e da sociedade civil organizada.

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Municipal, no dia 22 de junho de 2015, quando aprovada a grande maioria das


emendas aos Planos.
As manifestações ultraconservadoras invadiram estes espaços com carta-
zes ofensivos a mulheres e à população LGBTI. O peso institucional da OAB,
neste âmago, revelou-se importante, pois os espaços de pressão ao Legislativo
se encontravam tomados por discordantes da chamada “ideologia de gênero”,
de modo a limitar o ingresso da maioria dos(as) defensores(as) da preserva-
ção dos Planos.  Em resposta, a Presidência da Seccional paranaense emitiu
nota pública repudiando as distorções observadas nas discussões legislativas
em torno do termo “gênero” e conclamou as partes à racionalidade, ao respeito
e ao diálogo. Dentre outras recomendações, defendeu a manutenção do texto
original dos projetos de lei enviados pelos respectivos Poderes Executivos.
Diante do debate exacerbado e de denúncias aparentemente infundadas
sobre a distribuição de cartilhas com materiais impróprios nas escolas, levadas
a cabo pelo deputado estadual Gilson de Souza (PSC-PR) por ocasião da vota-
ção do Plano Estadual de Educação na Assembleia Legislativa, as Comissões
protocolaram pedido de providências junto ao Ministério Público Estadual, soli-
citando investigações. Esta atuação já aporta à última frente de atuação traçada
pelos(as) membros(as) da CDS.
 Dentre as estratégias de intervenção no contexto judicial, a CDS, con-
juntamente com a CEVIGE e com a CDDH, produziu parecer fundamentado
no ordenamento jurídico pátrio e nas normativas internacionais em defesa da
inconstitucionalidade dos Planos de Educação Municipais de Cascavel e de
Paranaguá. Nestes casos, alteraram-se os Planos de Educação para proibir,
expressamente, o emprego dos termos “gênero”, “orientação sexual” e “identi-
dade de gênero” nos ambientes escolares.
A inconstitucionalidade teratológica flagrada no âmbito daqueles entes
federativos parece ampliar as chances de êxito junto ao STF, o que se pretende
alcançar, futuramente, por proposição do Conselho Federal da OAB.

2. Resultados e perspectivas futuras

Ao Plano Municipal de Curitiba, encaminhado pelo Executivo para análise


da Câmara, 61 emendas foram apresentadas. 49 (80%) pleiteavam a retirada de

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termos como “diversidade” e “gênero” das diretrizes curriculares5. A votação se


realizou durante a tarde do dia 22 de junho de 2015, e inobstante o advocacy
realizado, todas as referências àqueles termos foram retiradas.
O Plano Estadual de Educação paranaense foi votado no mesmo dia, em
duas sessões plenárias: uma extraordinária e uma ordinária. As emendas pro-
postas pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do
Estado, que em grande medida conduziam à retirada daqueles mesmos termos,
foram aprovadas por 43 votos. Apenas 3 foram contrários. Na segunda sessão,
o texto final obteve 37 votos favoráveis e 4 votos contrários6. Absorve-se tal
resultado como vitória dos setores conservadores.
Apesar desta conclusão, é possível pinçar pontos menos negativos: a
atuação das Comissões levou à tomada de posição institucional da Seccional
da OAB/PR no debate; a mobilização gerada pelo Ciclo de Reuniões Abertas
revelou significativa adesão da comunidade acadêmica, da sociedade civil
organizada e mesmo do Poder Público, apesar de não ressoar em apoio popu-
lar; o possível ajuizamento de ação perante o STF contra os referidos planos
municipais, visando à aferição da inconstitucionalidade7, permite colher um
posicionamento razoável da Corte, responsável pela última palavra no âmbito
judicial, sobre a questão.

Considerações finais

Abre-se um universo de discussões sobre a importância do espaço escolar


no aprendizado do fazer o gênero. Se o gênero não é um ser, mas um fazer, que
espaço pode ser mais central do que a escola? Dele não é possível se retirar
gênero nem sexualidade.
O gênero está na educação física, nas brincadeiras de intervalo, nos cor-
redores, mas se apaga e se naturaliza. Por isso, salta aos olhos apenas aquele
que funciona como desvio, como abjeção (BUTLER IN: LOURO, 2013) e passa
a denunciar a artificialidade de todos os processos generificadores.

5 Conforme publicado no sítio eletrônico da Câmara Municipal de Curitiba no informe “PME: ques-


tões gênero e diversidade compõem 80% das emendas”.
6 Conforme publicado no sítio eletrônico da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná no informe
“Assembleia deve concluir nesta terça-feira (23) a votação do Plano Estadual de Educação”.
7 Iniciativa semelhante, aliás, aprovou-se pela Seccional de Tocantins.

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Como millitantes pelos direitos humanos de mulheres e pessoas não


cis-heterossexuais, colhemos da experiência relatada a impressão de que o
avançado debate nas academias tem valor limitado. O direito, como espaço de
disputa, tem sido editado nos termos daqueles que defendem permanências ou
mesmo retrocessos.
Que o Judiciário continue identificado como aliado ao combate desses
retrocessos não nos parece algo dado. É hora de se olhar para trás e se percebe-
rem os riscos dos caminhos tomados; perceber o necessário retorno da disputa
em termos políticos e não apenas técnicos. Assim, quem sabe, possamos nos
realinhar e rumar à direção desejada: adiante.

Referências

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. IN: LOURO,
Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Trad. dos artigos
Tomaz Tadeu da Silva. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. Pp. 151-172.

MELLO, Luiz. Novas Famílias: Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo.


Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

DESENHOS ANIMADOS: (RE) PENSANDO GÊNERO E


ESTÉTICA.

André Luiz Bernardo Storino


Mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas.
FEBF/EURJ
Núcleo de Estudos e Pesquisa Diferenças, Educação, Gênero e Sexualidades –
NuDES.
Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro-SEEDUC
albstorino@yahoo.com.br

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

Uma escola de periferia composta, na sua maioria, de adolescentes e


jovens negras/os que presenciam diariamente diferentes formas de violência
desde simbólica, verbal e até mesmo física por diversos fatores: cor da pele,
aquisição econômica, gênero, identidade de gênero e orientação sexual. Mas
indagados sobre tais violências acreditam não as ter sofrido, devido à banaliza-
ção e naturalização das mesmas.
Analisando as práticas, os discursos e discussões durante as aulas de filo-
sofia que pude constatar uma postura intolerante, preconceituosa e até mesmo
discriminatória, seja em algumas falas, como em ações que envolviam discus-
sões de gênero como questões de representatividade e padrão de beleza, cujo
padrão açambarca a junção dos seguintes marcadores: branco, magro e heteros-
sexual. Resultando identidade de gênero e de beleza dadas, prontas, acabadas
e padronizadas, onde não se concebe outro tipo de beleza e excluem qualquer
identidade que não se coaduna com a padronizada.
Este relato de experiência é resultado do Projeto didático-pedagógico ela-
borado no curso de especialização em Gênero e Sexualidade, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, como trabalho de conclusão de curso, e que foi apli-
cado, em parte, nas aulas de filosofia, para as turmas do terceiro ano do ensino
médio, na Escola Estadual Monteiro Lobato, localizada no bairro de Xerém, 4º
Distrito do município de Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro, no ano

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

de 2015. Escola, na qual atuo como docente da disciplina de filosofia para as


turmas do ensino médio.
O conteúdo do segundo bimestre, Natureza e Cultura, enseja a discussão
acerca da essencialização e naturalização, sobre a formação e manutenção dos
estereótipos de beleza como os marcadores do gênero e da sexualidade, uma
vez que esta atribuição das diferenças à natureza negligencia o processo de
socialização e seus modelos decididos previamente, cujos aparatos ideológicos
se encarregam de informar e fiscalizar. (CARRARA, 2010) A compreensão do
conceito gênero como uma construção social que distingue a dimensão bioló-
gica (mesmo sabendo que esta figura dentro de disputas políticas) da dimensão
social, pois embora a diversidade biológica configure-se como produto da natu-
reza (SILVA, 2014), ser homem e ser mulher advêm da relação cultural, ou seja,
homem e mulher são “produtos da realidade social e não decorrência da ana-
tomia de seus corpos” (CARRARA, 2009, p.42), são categorias “socialmente
construídas e não podem ser considerados naturais, fixos ou predeterminados”
(MOORE, 1997, p.3).
O caminho para discutir a essencialização e naturalização desses mar-
cadores sociais foram os desenhos animados. Partindo deles, neles e com eles
repensar as (des) construções sobre gênero e padrões de beleza, pois “a cons-
trução do gênero também se faz por meio de sua desconstrução” (LAURETIS
apud. LOURO, 2014, p. 39). A proposta ganhou corpo para repensar as corre-
lações de força e as associações que são sugeridas explicitamente entre gênero
e beleza pela mídia, que robustecem as opiniões do senso comum: de que há
uma “normalidade” simétrica entre ser heterossexual branco e possuidor de
físico nas proporções midiáticas da beleza.

Caminhos percorridos

O objetivo foi refletir sobre a (des) construção de gênero e beleza impos-


tos pela sociedade utilizando-se dos desenhos animados e conhecer os seus
mecanismos de propagação e persuasão. A fim de analisar de que modo esses
discentes da periferia, a partir de seus discursos e práticas, assumiam, recha-
çavam ou ressignificam estes modelos estereotipados de gênero e beleza. Um
desafio para que se possa repensar não só a formação das alunas e dos alunos
como também reconhecer, e até mesmo construir, ferramentas que possam ser
úteis nas situações cotidianas.

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Passeamos, num primeiro momento, pelos conceitos que as/os discentes


traziam como representação do que seria ter gosto e ser bela/o e “formas”
corretas de se viver o “gênero” – entendido como modos de ser homem e ser
mulher. Visitamos o conceito de cultura, de forma bem ampla, pensado como
meio em que o sujeito é ao mesmo tempo “formado” e é formador. Pensamos
como, nesta mesma ideia de cultura, são construídos os modelos de gênero, os
padrões de beleza, os discursos das essências e naturalização como seus meca-
nismos de manutenção.
Feitas as análises de alguns desenhos (a saber: Scooby Doo, He-Man e
She-Ra, Família Jackson, Capitão Planeta, Três Espiãs Demais, Cavaleiros dos
Zodíacos, Mulan , Caverna do Dragão entre outros), foi possível identificar os
modelos predominantes de mulher-feminina e o homem-masculino, ou seja, os
traços considerados delicados são sempre atribuídos ao feminino, mesmo que
este feminino tenha a mesma força física que o masculino. (RAEL, 2013).
Algumas falas foram marcantes, pois ao discutir a representação da mulher
em Mulan, um dos alunos refletiu que mesmo sendo ela uma heroína, neces-
sitou de um Homem, o imperador, para validar os seus feitos: “professor, mas
se não fosse o imperador perdoar ela o que seria?” Outra aluna, muito espon-
taneamente, pondera, que “nunca tinha pensado assim, achava que era natural
a mulher cuidar da casa”. Mesmo que tais mulheres possam ser guerreira, o
serviço ainda é mantido sob seus domínios.
Os desenhos animados também nos permitiram pensar a representação
da estética negra, que quando não está ausente, faz-se presente em um nítido
processo de branqueamento, a qual é perceptível pelos traços, o cabelo é um
exemplo. Uma fala marcante encontra-se nesta fala “meu cabelo é bom”, é a
tentativa de uma aluna afirmar que não era negra, pois mesmo sendo a sua pele
“escura”, o seu cabelo não é “ruim”, crespo. As representações povoam os ima-
ginários de uma boa parte das/dos discentes que não querem ser identificadas/
os como negras/os, pois pensam ser a/o negra/o aquilo que dela/e foi feito pela
sociedade e pelos meios de comunicação: marginal ou serviçal ou boçal.
De um modo geral, nas revistas impressas, comerciais de TV, filmes e,
sobretudo, nos desenhos animados, há predominância da cor clara, dos cabelos
lisos e traços finos associados à pessoa branca, enquanto o negro é associado
e caricaturado como mal e feio, o serviçal ou o meliante. Seus lugares são
sempre aqueles da chacota, os quais, na maior parte das vezes, só se prestam
para manter, no jogo político, os estereótipos e alimentar os preconceitos. A

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Sexual e de gênero
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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

relação de poder entre aquelas/es que produzem estas representações e aque-


las/es que são representadas/os retrata a posição em que a/o negra/o ainda
ocupa na sociedade, de um modo geral, relação esta estrutural e politicamente
institucionalizada.
Para amarrar as discussões suscitadas pelas analises dos desenhos anima-
dos acerca das discussões de gênero assistimos ao vídeo “Acorda Raimundo...
Acorda”, que levanta a discussão sobre os papeis sociais entre mulher e homem.
As questões de representações étnico/racial foram rematadas com a exibição do
vídeo “Pele Negra, Máscara Branca”.
Em “O Riso dos Outros”, documentário de Pedro Arantes, trabalhamos
os mecanismos de manutenção dos estereótipos e sua interseccionalidade, que
nestas relações que são corroboradas por práticas adocicadas como parecem ser
as práticas do humor, as quais não questionam a manutenção da discriminação
racial, como também de gênero, entre outras, e a promoção de preconcei-
tos por meio das “piadas e brincadeiras” que se supõem neutras e ingênuas.
Estas práticas são apenas alguns dos degraus das estruturas de conservação que
camuflam e reforçam posturas e práticas preconceituosas e discriminatórias seja
em relação ao gênero e/ou raça, construídas e veiculadas midiaticamente nas
representações midiáticas.
A representação midiática cria uma espécie de manutenção e propagação
dos estereótipos de beleza, ao mesmo tempo em que os associa ao gênero e
à orientação sexual reforçando, seja no aluno e na aluna, como também nos
grupos aos quais eles pertencem, uma espécie de discurso único que sustenta
a orientação sexual heterossexual como “única, natural e normal” e a beleza
branca como a “padrão”. (LOURO, 2013)

Caminhos de retorno

A proposta contida no projeto balizou-se na ideia de repensar o ponto de


vista sobre o gênero e os padrões de beleza midiáticos possibilitando não só
ampliar o entendimento do assunto por parte dos alunos e das alunas, como a
partir delas/es, seja individual ou coletivamente, desenvolver ações que favore-
çam a construção de ambiente acolhedor das diferenças, no qual a diferença é
entendida como caminho seguro para a equidade. A diferença pela diferença,
a diferença na multiplicidade. (GALLO, 2014)

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Como atividade de avaliação, depois da divisão dos grupos de trabalho,


foi proposto dois dias para as apresentações das atividades que consistiram em
uma apresentação em forma de seminário e a outra em exibição de um curta
produzido por elas e eles utilizando os recursos de seus celulares.
Alguns grupos apresentaram, a partir dos vídeos, situações cotidianas que
acontecem envolvendo tanto relações de gênero como de raça, atualizando
assim a discussão. Diversos foram os trabalhos e pontos de vista, contudo um
dos mais marcantes se deu na produção de um grupo que resolveu realizar uma
releitura do curta “Acorda Raimundo. Acorda...” O filme apresenta a troca de
papéis e de funções que ocorre entre o masculino e feminino, desnaturalizando
as funções como lugares fixos e denunciando a construção dos papéis preesta-
belecidos tanto para a mulher quanto para o homem.
Um dos grupos criou um vídeo nos mesmos moldes. Assim, após mos-
trarem a inversão dos papéis como no filme original, cuja mulher assume as
funções “ditas” masculinas; e o homem, as “ditas” femininas, aparecem todas
as meninas jogando baralho, enquanto os meninos preparavam o lanche.
Subvertendo, dessa forma, o que a maioria delas/es presencia, quase sempre,
em suas próprias casas, cuja comida é preparada pela mãe (mulheres), enquanto
o pai e amigos (homens) a esperam.
Assim como no vídeo original, a última cena é a volta aos papéis “ditos
normais”: homem saindo para o trabalho e mulher fazendo os serviços da cozi-
nha (café). Neste momento, no vídeo das/os discentes, aparecem os meninos
jogando baralho e as meninas na cozinha e todas, em coro de indignação,
entoam a seguinte frase: “Bem que poderia ser verdade”. Esta frase foi suficiente
para fomentar uma discussão acerca dos meios de manutenção desses papéis e
a sua desnaturalização.
Ao final da exibição do vídeo produzido por elas e eles e a frase “Bem
que poderia ser verdade” ecoando na sala, o grupo levantou uma discussão
quase que exigindo saber quais seriam os meios para que aquela situação, cuja
mulher se encontra, seja desfeita. Bom, esse é o desejo de quase todas/os nós
que trabalhamos na perspectiva dos Estudos de Gênero e Sexualidade. A equi-
dade viesse o quanto antes, mas ainda teremos que realizar muitas discussões
como esta.

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Considerações finais

Precioso é saber que estão construindo um novo olhar para estas rela-
ções, um olhar diferente, questionador, que, gosto de pensar, não voltará a
ser o que era antes, um olhar impulsionador de novas práticas, com novos
“saberes e fazeres”. Saber que foi possível se debruçar em conceitos tais como
heteronormatividade, machismo, sexismo, feminismo, diferença, identidade,
racismo, cotas, cidadania, direitos humanos, entre outros mais, que apareceram
em alguns comentários, os quais, sutilmente, nos permite repensar nossa prática
docente frente às representações hegemônicas. Gosto de acreditar que as falas,
que foram muitas, traz em si mesmas uma capacidade de mudança, de aban-
dono das narrativas totalizantes.
Saber ainda que as/os discentes foram protagonistas do conhecimento,
discutiram, questionaram, colocaram sobre suspeita algumas “verdades” que
teimam em se manter de pé, mas as quais as pernas estão bambas. Produziram
saberes com outros fazeres.

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Referências

CARRARA. Sergio et al. (orgs.). Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade.


V2. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília, DF: Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres, 2010.

______. Gênero e diversidade na escola: formação de professores/as em Gênero,


Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. Rio de Janeiro:
CEPESC; Brasília: SPM, 2009.

GALLO, Silvio. Diferença, multiplicidade, transversalidade: para além da lógica identi-


tária da diversidade. In: RODRIGUES, Alexsandro; DALLAICULA, Catarina; FERREIRA,
Sérgio Rodrigo da S.. Transposições: lugares e fronteiras em sexualidade e educação.
Espírito Santo: EDUFES, 2014.

LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade: O “normal”, O “diferente” e


o “excêntrico”. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre
(Orgs). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 9 ed..
Petrópolis, RJ: vozes, 2013.

______. Gênero, sexualidade e educação: Um a perspectiva pós-estruturalista.16


ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014

MOORE, Henrietta, Compreendendo sexo e gênero. Trad. Júlio Assis Simões. Londres:
Routledge, 1997, p. 813-830. Disponível em: http://e-clam.net/moodle/course/view.
php?id=10 Acesso em: 20 de junho de 2013. (arquivo para uso interno do curso de
Especialização em Gênero e Sexualidade/EGEs-EURJ)

RAEL, Claudia Cordeiro. Gênero e sexualidade nos desenhos da Disney. In LOURO,


Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs). Corpo, gênero e
sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 9 ed.. Petrópolis, RJ: vozes,
2013.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos


culturais. 14 ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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DESCOLANDO GÊNERO E SEXUALIDADE

Barbara Orsi
Graduanda - PUC-Rio.
Design, Corpo e Sexualidade
barbaraorsi@outlook.com

Eva Célem
Graduanda - PUC-Rio.
Design, Corpo e Sexualidade
eva.celem@gmail.com

Natasha Ribas
Graduanda - PUC-Rio.
Design, Corpo e Sexualidade
natasharibasf@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

Como bolsistas de Iniciação Científica em Design, no LARS - Laboratório


de Representação Sensível, sob orientação da professora Denise Portinari, temos
direcionado ao longo dos últimos semestres nossos estudos para questões de
gênero e sexualidade e a prática da Pesquisa Criativa1.
No segundo semestre de 2015, começamos a buscar meios através dos
quais pudéssemos investigar mais a fundo os Estudos de Gênero, e resolve-
mos juntar a investigação desses temas em uma pesquisa prática, explorando

1 “Os Métodos de Pesquisa Criativa Participativa são abordagens de pesquisa nas quais os participan-
tes são convidados a se expressar em meios não tradicionais, como através da construção de um
objeto 3D, 2D, ou compartilhando a experiência através da fala ou escrita. [...] Uma linha paralela
da atividade pode ser encontrada dentro da arte e do design, onde pesquisadores estão pedindo a
participantes para criar “coisas” físicas, visuais e experimentais como parte do processo de pesqui-
sa.” Tradução livre, retirado de https://creativeresearchmethods.wordpress.com/

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a percepção de questões de gênero e sexualidade. Conservando a opção pelo


desenvolvimento de uma metodologia de Pesquisa Criativa, decidimos aplicar
a alunas/os calouras/os de Design na disciplina de Psicologia e Percepção na
PUC-Rio, uma oficina de colagens manuais no 1º semestre de 2016.
A prática da Pesquisa Criativa como forma de problematização e de
investigação de questões ligadas a corpo, gênero e sexualidade pode trazer
contribuições qualitativas para os estudos da área. É importante lembrar que
trata-se de uma forma de pesquisa que enfatiza a participação, o envolvimento,
o questionamento e a transformação de todos os participantes no próprio
processo, e que não visa a produção de um conhecimento “objetivo” (o que
constitui via de regra a finalidade dos métodos de pesquisa mais tradicionais).
Os resultados da pesquisa criativa são ao mesmo tempo materiais e imateriais;
visa-se tanto proporcionar aos participantes uma experiência de subjetivação
através do questionamento e da facilitação da produção de novas formas de
expressão em relação aos temas pesquisados, quanto a produção propriamente
dita dessas formas de manifestação e a sua difusão como forma de intervenção
nas questões e temas abordados. Considerando as especificidades da prática e
dos objetivos da Pesquisa Criativa, algumas ressalvas e cuidados metodológicos
se impõem ao planejamento desta proposta de pesquisa. É preciso lembrar
também que trata-se de uma pesquisa cujas questões, desdobramentos e ins-
trumentos específicos vão sendo evidenciados no próprio decorrer da pesquisa.
O objetivo principal aqui é o de envolver pesquisadores e interlocutores em
um processo integrado de desenvolvimento de atividades criativas a partir da
discussão de relatos e perspectivas individuais relacionadas às questões con-
temporâneas de gênero e sexualidade. Esse objetivo primeiro é duplo, pois
envolve também uma pesquisa metodológica sobre os princípios e as práticas
da Pesquisa Criativa. Ao mesmo tempo, há também um objetivo secundário,
relacionado aos efeitos esperados do próprio processo de pesquisa, consistindo
na sensibilização dos participantes da pesquisa para tais questões e para o papel
político desempenhado pelo Design na configuração de ideias e valores que as
concernem. Finalmente, há também que se considerar o objetivo da produção
material e audiovisual decorrentes da experiência da pesquisa e de suas formas
de compartilhamento e de difusão. Com a finalidade de atender aos requisitos
colocados pelos dois primeiros objetivos, decidiu-se que os interlocutores da pri-
meira experiência (colagem) seriam voluntários selecionados entre as alunas/os
calouras/os de Design da disciplina “Psicologia Percepção”. A razão da escolha

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desse perfil deve-se ao fato de que 1) são sujeitos que estão iniciando a sua tra-
jetória de formação em Design, momento propício para o desenvolvimento da
prática da reflexão crítica como parte integrante e necessária dessa formação; 2)
encontram-se em um momento de transição entre os espaços escolar e universi-
tário que traz consigo a abertura de novas perspectivas e vivências em relação
às questões de gênero e de sexualidade; e 3) a disciplina em questão propõe o
exame da noção de que as nossas percepções são construídas a partir de deter-
minações sócio-culturais, ambientais e políticas e que são sempre passíveis de
transformação — o que torna a pesquisa proposta uma extensão prática das
noções examinadas no curso.

Colagem: uma prática política

As primeiras produções artísticas a utilizarem materiais do cotidiano (como


folhas de jornal, revista, pedaços de madeira e embalagens reaproveitadas)
foram criadas por dois grandes nomes do Cubismo: Pablo Picasso e Georges
Braque, ambos criando em território francês no comecinho da década de 1910.
Isso, ao menos, é o que consta na maioria das publicações sobre Colagens.
Entretanto, não se pode negar que tal prática esteve presente em diferentes
momentos históricos em diversos continentes. Gerald Brommer (1994, p. 12)
nos afirma já haver resquícios da colagem no século XII no Japão, ou em emble-
mas tribais da África e no século XV na região da Pérsia e Turquia. Entretanto a
Colagem apenas assumiria o patamar de “Arte” quando os pintores cubistas a
incorporaram em seus trabalhos.
Ao trazer elementos “inapropriados” para suas telas de pintura, Pablo
Picasso estaria propondo também uma tensão nos fundamentos tradicionais da
Pintura, e não só isso, estaria também propondo novas visualidades ao dialogar
com o crescimento da imprensa (meios de comunicação massivos e populares).
Segue o que Anna Fabris (2003) disse sobre isso:
Ao utilizar materiais que eram desprezados pelos defensores da
arte pura — recortes de jornal sobre acontecimentos sociopolíti-
cos contemporâneos, ficção romântica serializada, anúncios —,
Picasso e outros artistas acabam por tornar instáveis os limites con-
vencionais entre “arte” e “cultura de massa”. (FABRIS, 2003, p. 12).

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Como sabemos muitas das produções feministas nas artes em geral (para
citar algumas: pintura, literatura, design e zines) acabam por não serem reco-
nhecidas, ou ao menos citadas na maioria das pesquisas e publicações oficiais
nesse campo. Uma das colagistas — atuando no movimento de resistência (des)
artística Dadaísmo — que recebeu esse apagamento, foi Johanne Höch, ou
como preferia ser chamada, Hannah Höch. Com intensa produção no período
entre 1910-1960, Hanna desenvolveu2 uma série de fotocopiartes, fotomonta-
gens e colagens na região da Alemanha.
Foi em um momento particularmente crítico, marcado por uma inflação
desenfreada e por fortes tensões sociais que o Dadaísmo se constitui. Na pas-
sagem de 1918-1920 (período em que o Dadaísmo esteve mais ativo) ainda se
sentia o fim da Primeira Guerra Mundial, a forte tradição artística e violências
sociais. RoseLee Goldberg (2006), nos conta sobre sua forte inclinação política
na cidade de Berlim, Nova Iorque, e Barcelona, mais precisamente sobre sua
intensa movimentação cultural nas noites de Zurique no Cabaré Voltaire. Entre
as passagens que mais chamam atenção desse período é a descrição de uma
das noites nesse cabaré dadaísta.
Nessa “taberna festiva” - como também era chamado o Cabaré Voltaire - as
palavras eram inventadas, os poemas escritos em versos sem sentido, as vogais
equilibravam-se em poemas sonoros, ali haviam máscaras e figurinos sendo
criados. Segue um trecho das escritas que Goldberg (2006, p. 50): transcreve a
partir das anotações de Arp3 — um dos jovens dadaístas criadores do espaço,

No palco de uma taberna festiva, multicor e heterogênea, veêm-


-se várias figuras peculiares e bizarras representando Tzara, Janco,
Ball, Huelsenbeck, madame Hennings e esse humilde servo. Um
pandemônio total. As pessoas ao nosso redor estão gritando,

2 Em uma de suas passagens pelo Mar Báltico, quando alugou um pequeno apartamento nessa região,
Hannah se deparou com uma “oleografia emoldurada” nas paredes desse apartamento. Fabris (2003)
nos conta que essa oleografia continha a pintura do Imperador Guilherme II e em seus ombros um
jovem artilheiro. Curiosamente havia uma pequena fotografia (a do proprietário da casa) fixada no
capacete do artilheiro. Havia com essa fotografia um elo entre as gerações, entre as hierarquias e
também a intervenção fotográfica de uma pessoa não envolvida na tela da pintura. Essa mistura de
materiais e ousadia a profanar a tela, influenciaria grande parte do trabalho de Hannah Höch.
3 Arp escreveu a nota para o quadro Cabaré Voltaire, pintado por Janco, também dadaísta da época.
Marcel Janco, Cabaret Voltaire, (1916).

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gargalhando e gesticulando. Nossas respostas são suspiros de amor,


saraivadas de soluços, poemas, mugidos, e miaus (...). Tzara está
forçando as nádegas para trás com uma dançarina oriental. Janco
está tocando um violino invisível, e parece exagerar em mesurar e
trejeitos. Madame Hennings, com o rosto de madona, está sentada
com as pernas em spaccato. Huelsenbeck está batendo sem parar
no grande tambor, com Ball acompanhando-o ao piano, pálido
como um fantasma. Deram-nos o título honorário de niilistas.
(GOLDBERG, 2006, p. 49).

Diante desse panorama, Fabris (2003) nos chama atenção para o que interessava
aos Dadaístas — inclusive a Hannah Höch —, com a produção de colagens e
fotomontagens.
Era, sobretudo, com o rompimento da uniformidade de superfície na
representação. E isso, graças à multiplicação dos pontos de vista da colagem e
à sua interpenetração nos diferentes fragmentos de imagens, cuja objetividade
deveria ser interpretada num duplo sentido: como tomada de posição contra o
“expressionismo pós-futurista”, caracterizado pela falta de engajamento e pelo
vazio conceitual, e como visualização irônica dos acontecimentos políticos
contemporâneos. E, mais que isso, a criação Dadaísta não se tratava de postu-
lar novas leis estéticas, mas sim de buscar novos conteúdos que pudessem ser
traduzidos por novos materiais.
A partir dessas reflexões, podemos ainda pensar — com a criação das
Colagens Dadaístas — as suas principais características: o fragmento, os restos,
os vestígios, elos quebrando a linearidade do tempo e seus rasgados papeis.
Rasgos que não se tratavam apenas do corte físico, mas também do valor sim-
bólico que possuía como ruptura com o passado, com a linearidade.

Queerizando a cultura material no Design

A oficina foi realizada com cerca de 40 alunos, sendo coordenada pela


estagiária de docência Camila Olivia-Melo4, utilizando o espaço da disciplina
PSI1130 - Psicologia e Percepção, que é ministrada a calouros do curso de

4 Colagista do coletivo feminista Maracujá Roxa e doutoranda em Design na PUC-Rio.

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Design por Denise B. Portinari5. Na sala em que a atividade foi feita, procura-
mos expor diversos tipos de materiais do cotidiano, visando a abertura que os
alunos teriam ao escolhê-los, relacionando-os as suas experiências particula-
res. Entre os materiais utilizados, disponibilizamos revistas de diversos assuntos,
retalhos de tecido, botões, pedaços de madeira, lantejoulas, papéis de bala e
afins.
A atividade iniciou-se com uma breve apresentação sobre o surgimento
das colagens no movimento dadaísta e seus principais precursores, com o
intuito de servir como um referencial para a turma, visto que a maioria não
havia tido experiências posteriores com essa prática artística. Em seguida distri-
buímos folhas de papel ofício, e pedimos que os alunos fizessem uma colagem
que expressasse as percepções pessoais e individuais de cada um sobre gênero
e sexualidade — suas práticas, manifestações, sentimentos, posição política e
qualquer outro aspecto que desejassem expressar sobre o assunto. Pedimos que
utilizassem os primeiros quinze minutos para observar os materiais, idealizar a
colagem e juntar tudo que fosse interessante para eles. Seguido disso, demos
vinte e cinco minutos para cortarem e montarem as colagens, e mais quinze
minutos para colarem.
Após realizada a dinâmica, fomos ao Laboratório de Fotografia e Estúdio
da PUC-Rio para fotografar as colagens produzidas para que, posteriormente,
pudessem ser compiladas na forma de uma revista online6 com os resultados
gráficos.

Descolando gênero e sexualidade: Resultados

Passadas algumas semanas após a oficina de colagem, a turma se reuniu


para uma sessão de debate sobre o resultado da atividade. Primeiramente, a
estagiária Camila Olivia-Melo mostrou às alunas/os a revista digital que mostra
os resultados da oficina, que consiste em uma compilação dos trabalhos realiza-
dos em sala, com seus devidos créditos a cada autora(o) das colagens. Feito isso,
ao passar as páginas da revista, as alunas/os foram reconhecendo suas obras e

5 Doutora em psicologia clínica e professora adjunta no Curso de Graduação em Design e no Progra-


ma de Pós-Graduação em Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
6 A revista online está disponível em: https://issuu.com/camilamelopuni/docs/colagens_cor/1

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as/os convidamos a dar uma breve explicação sobre quais foram as motivações
para o uso dos materiais e das imagens e qual era a mensagem que desejavam
transmitir.
Nesse momento, pudemos notar que temas que estavam em voga no
momento — como o caso da menina de dezesseis anos que foi estuprada por
trinta homens no Rio de Janeiro — foram recorrentes nas colagens, bem como a
questão do corpo da mulher “fragilizado” e “indefeso” que nos é quase imposta
goela à baixo pela sua reprodução exaustiva e incessante nos veículos midiáti-
cos. Seguem alguns relatos7 desse momento em sala:
“No dia que a gente foi fazer a colagem tinha tido aquele estu-
pro coletivo uns dias atrás e eu tava bem com isso na cabeça.”
(Entrevistada 1)
“Quando eu vi essa imagem, eu lembrei de um texto que eu tinha
lido sobre como a linguagem corporal da mulher parece sempre
estar se protegendo de alguma coisa.” (Entrevistada 2)
“[a colagem está falando sobre] essa ideia da mulher estar sempre
feliz e esconder essa parte emocional e, por exemplo, não poder
falar o que ela pensa, nem o que ela sente na sociedade sem ser
oprimida.” (Entrevistada 3)

A partir disso, pode-se observar que os assuntos que permeiam o dia-a-


dia vieram à tona quando se dá a liberdade para criar dentro do campo das
artes e do design. A força visceral com que as emoções atravessam, dobram,
rasgam, picotam, fazem e se desfazem no papel, a raiva, o ódio, o amor e, prin-
cipalmente, a inconformidade com questões recorrentes vividas nos cotidianos
de cada um se manifestam da maneira mais transparente possível na colagem.

Considerações finais

Em um momento em que os paradigmas metodológicos que devem nor-


tear a produção científica vem sendo cada vez mais discutidos nas disciplinas
sociais e humanas, a área do Design empenha-se para ampliar o reconheci-
mento e a validação de suas formas próprias de produção do conhecimento, os

7 Neste relato de experiência, optamos por não divulgar os nomes dos entrevistados.

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estudos de gênero, por sua vez, constituem um campo especialmente aberto


a novas abordagens e à renovação metodológica, constituindo historicamente
uma área que questiona as divisões tradicionais entre sujeito e objeto de pes-
quisa, promovendo a pesquisa como experiência vivida de transformação e
subjetivação.
Esperamos ter contribuido para a trajetória formativa de designers atra-
vés de um método de pesquisa criativa que é simultaneamente investigativo
e pedagógico, crítico e produtivo, e que coloca em cena o papel político do
Design como agente de produção das configurações materiais e imateriais da
sociedade.
A conscientização acerca das implicações políticas do Design deveria
constituir uma orientação importante na formação de todos os jovens estu-
dantes da área uma vez que o design molda as formas culturais da visibilidade,
refletindo em suas abordagens os valores de uma cultura orientada pela domi-
nação do masculino sobre o feminino, e do normal sobre o desviante.

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Referências

BIRMINGHAM INSTITUTE OF ART & DESIGN (Reino Unido). Creative Research


Methods: supporting academic researchers using participatory creative research
methods. 2013. Disponível em: <https://creativeresearchmethods.wordpress.com/>.
Acesso em: 19 nov. 2015

BROMMER, Gerald. Collage Techniques: A Guide for Artists and Illustrators. Nova
York: Watson-guptill Publications, 1994. 160 p.

FABRIS, Annateresa. A fotomontagem como função política. História, vol. 22, n.1,
p.11-57. 2003.

GOLDBERG, RoseLee. A arte da Performance: do Futurismo ao Presente. São Paulo:


Martins Fontes, 2006.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER, MASCULINIDADES E


FEMINILIDADES

Beatriz Hiromi da Silva Akutsu


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
da Universidade Federal Fluminense
biakutsu@gmail.com

David Emmanuel da Silva Souza


Mestrando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
da Universidade Federal Fluminense
davidemmanuel9@hotmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

O presente relato tem por objetivo discutir a experiência de docência


na disciplina optativa Violência contra a mulher, masculinidades e feminilida-
des no curso de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) no primeiro
semestre do ano de 2016. Para isso, abordaremos a nossa trajetória acadêmica,
o motivo pelo qual escolhemos esse tema, bem como a escolha do caminho
metodológico. Ao final, registraremos as nossas impressões pessoais.
Somos formados em Direito e iniciamos o mestrado no Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense em
março de 2015. Escolhemos a linha de pesquisa Direitos Humanos, Governança
e Poder, porque desde a graduação já trabalhávamos com temáticas relaciona-
das à sexualidade e gênero e tal linha é a que nos possibilita dar continuidade
às nossas pesquisas sobre violência contra a mulher e masculinidades.
Em cumprimento ao estágio docência obrigatório, no segundo semestre
de 2015, tivemos a experiência de dividir a disciplina Direito e Sexualidade,
da graduação em Direito, com o professor Eder Fernandes. Acreditando que a
temática da violência contra a mulher e seus reflexos possuem alta relevância e,
por essa razão, precisam ser debatidos com os futuros profissionais do direito,

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decidimos, no semestre seguinte, ofertar a disciplina optativa Violência contra a


mulher, Masculinidades e Feminilidades.
Levando em consideração que a violência contra a mulher é uma expres-
são da assimetria de poder nas relações de gênero, e que o poder não é algo
estático, mas dinâmico e relacional, exercido tanto pelo homem quanto pela
mulher, embora em proporções diferentes, e que, além disso, são os homens e
as mulheres que produzem os seus papéis sociais que legitimam a violência, no
planejamento das aulas, procuramos escolher temas que discutissem a temática
em uma perspectiva relacional dos gêneros. Assim, buscamos refletir de que
forma as construções sociais das feminilidades e das masculinidades podem
estar relacionadas com a prática da violência contra a mulher.
No total, foram 15 encontros, cada um deles com duração de duas horas.
A maior parte deles consistiu na discussão de artigos por nós disponibilizados.
Os alunos, que já haviam lido o texto, eram divididos em pequenos grupos e
tinham tempo suficiente para a discussão. Escolhemos esse formato por acre-
ditarmos que pequenos grupos fomentam a participação de todos e de todas,
ao contrário do que pode ocorrer na disposição da aula tradicional - em que
o professor se coloca na frente e expõe o tema para os alunos - ou em rodas
de discussão com a totalidade da turma, quando apenas alguns ou algumas se
sentem confortáveis para expor sua opinião.
Inicialmente, com o objetivo de fornecer um panorama geral sobre os
movimentos feministas, disponibilizamos um texto que tratava das principais
correntes, suas características e reivindicações centrais. A escolha desse tema se
deu por algumas razões. Primeiro, porque sabemos que nem todas as pessoas
têm acesso à discussão e, principalmente, por considerar que o feminismo foi
e é determinante para o enfrentamento da violência contra a mulher e para a
desconstrução de estereótipos de gênero.
Na aula seguinte, por acreditar que não é possível abordar a violência
contra a mulher sem discutir a socialização violenta dos homens, uma vez que
seu principal elemento formador de subjetividade é o repúdio ao feminino,
discutimos os estudos de masculinidades. A escolha dessa temática revela-se
importante porque acreditamos que o enfrentamento da violência contra a
mulher só é possível quando os homens forem capazes de refletir e transformar
suas práticas, condutas e privilégios, para que, a partir disso, possamos cami-
nhar no sentido da redistribuição de oportunidades e alcance da justiça.

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Um ponto de destaque para o segundo dia de aula foi a discussão sobre


a utilização do banheiro feminino por mulheres transexuais. A discussão se
estendeu sobre aspectos sociais, cultura de estupro e essencialização da mulher
a partir de determinantes biológicos. Levantamos a discussão, portanto, do que
é ser mulher. Dentre as respostas dadas, por exemplo, um aluno questionou
“agora vocês vão dizer que trans é mulher?”, enquanto que uma aluna disse
não ter problema contra mulheres trans, mas, por se considerar “feminista radi-
cal” (nos termos precários que teve acesso), entendia que permitir a entrada
de “mulheres com órgãos genitais masculinos” favorecia a prática de violência
perpetrada contra “mulheres de verdade”. Obviamente as afirmações do aluno
e da aluna causaram tumulto em sala de aula. Diante das defesas apresentadas
por outros alunos e alunas do acesso ao banheiro feminino pelas mulheres
trans enquanto consagração da identidade de gênero e da dignidade, pudemos
aprofundar a questão sobre o que é ser mulher e iniciamos a discussão sobre a
desnaturalização dos corpos e dos padrões de feminilidades, a fim de recons-
truir a história dos estereótipos de gênero, tornando visíveis as distinções entre
sexo, gênero, identidade de gênero, orientação sexual e práticas sexuais.
Nas aulas que se seguiram, discutimos as teorias sobre a violência contra
a mulher, com enfoque na teoria relacional. Essa teoria, sem desprezar a assime-
tria de poder existente nas relações de gênero, procura problematizar o binômio
“vítima e algoz”, que trata as relações de forma universal, como se todas elas
fossem essencialmente iguais. Assim, na perspectiva relacional, é defendida a
compreensão da mulher em situação de violência como sujeito, capaz de trans-
formar a sua situação. No encontro subsequente, exibimos o filme “Preciosa”
(2009), seguido da discussão de um artigo sobre violência intrafamiliar, que
retomou o debate relacional da violência, como ato comunicacional entre as
partes. As aulas posteriores foram dedicadas à exibição de documentários e
filmes que versavam sobre o tema, tendo uma delas sido dedicada à discussão
sobre violência contra a mulher transexual.
No último encontro, voltado para a discussão sobre a inclusão das mulhe-
res trans na abrangência da Lei Maria da Penha, restou incontroversa a cobertura
a ser aplicada a essas mulheres, pois consideram que a identidade de gênero
prevalece sobre o discurso médico e biológico. Os alunos compreenderam a
importância de acobertar as mulheres trans por entenderem que se a Lei Maria
da Penha constitui uma proteção às mulheres, as mulheres trans estão também
inseridas. Ademais, surgiu o questionamento sobre a inclusão dos homens trans

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na cobertura da referida lei. Por entenderem que por mais que os homens trans
devam ter sua identidade masculina respeitada, a violência cometida contra
eles decorre do fato de “já terem sido mulheres”. Portanto, por mais que possa
soar desconsideração quanto à identidade masculina, na verdade a inclusão
restaria por entender que estes homens, em específico, permanecem sofrendo
violências provocadas pelo exercício do poder patriarcal e do machismo de
outros homens.
Durante o curso, percebemos o quão difícil é romper com o discurso
hegemônico. No início de um dos encontros, propomos a seguinte dinâmica:
faríamos duas colunas no quadro: (i) homem; (ii) mulher, e cada um deveria
dizer características que considerasse femininas e masculinas. Após a organi-
zação das características nas colunas correspondentes, os escritos “homem” e
“mulher” seriam trocados: no lugar de “mulher” passaria a constar “homem” e
vice-versa. Após a realocação, faríamos o seguinte: se “sensibilidade” foi asso-
ciado inicialmente à mulher, perguntaríamos “existe homem sensível?”. Caso
a resposta fosse positiva, a característica seria riscada. O objetivo dessa dinâ-
mica é demonstrar que as características consideradas tipicamente femininas
ou masculinas, com exceção de alguns aspectos biológicos, são construídas
socialmente.
Para a nossa surpresa, todos e todas responderam que era difícil - ou
quase impossível - realizar a atividade, já que durante as aulas o que fizemos
foi exatamente o oposto, ou seja, estimulamos a desconstrução de estereótipos
de gênero. Assim, continuamos a aula com a discussão de relatos de homens
e mulheres que vivenciaram situações de violência. No entanto, no decorrer
do debate, percebemos que algumas pessoas apresentavam discursos que
desconstruíam estereótipos de gênero, mas outras ainda defendiam seus argu-
mentos com base em aspectos biológicos. Com isso, notamos que nem sempre
a resposta à pergunta direta expressa a realidade, pois as pessoas têm a tendên-
cia de dar “respostas ideais”, de acordo com os seus valores e visões de mundo.
No que se refere às avaliações, procuramos escolher um modelo que não
obrigasse as pessoas a estar em sala de aula, mas que as estimulasse a frequen-
tar os encontros. Assim, a avaliação foi dividida em três partes: (i) participação
nas discussões e nos filmes; (ii) entrega do artigo escrito (em grupo); (iii) apre-
sentação do artigo em sala (em grupo). Para obter a média final, todas as notas
foram somadas e divididas por três. O trabalho deveria versar sobre algum
dos temas discutidos, bem como utilizar algumas das bibliografias indicadas

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para leitura. Para a apresentação dos artigos, propomos que os trabalhos fos-
sem circulados, com uma semana de antecedência, entre os professores e os
alunos, para que todas e todos tivessem tempo suficiente para ler. No dia da
apresentação, propomos a formação de uma roda de conversa, de forma que
esse formato propiciasse a discussão horizontal dos artigos. Assim, após cada
grupo se apresentar, foi aberto o debate entre todos e todas presentes. Na nossa
experiência enquanto alunos da graduação do curso de Direito, notamos que a
pesquisa é pouco estimulada na universidade. Então, o que queremos com esse
tipo de formato não é cumprir uma mera formalidade, como o lançamento de
notas, mas sim fomentar o interesse pelo debate e pela reflexão.
Com relação à metodologia das aulas – conforme já comentado acima
– tivemos o cuidado de escolher um formato diferente do tradicional que prio-
rizasse a participação de todos e de todas, assim como o debate horizontal.
Somadas a isto, as nossas preocupações centrais eram: introduzir no curso de
Direito discussões anteriormente relegadas à esfera doméstica; romper com a
ideia de que o gênero se resume às questões das mulheres; desconstruir este-
reótipos de gênero; ressignificar o conceito de violência; democratizar a esfera
privada; e empoderar os alunos e as alunas para o enfrentamento dessas ques-
tões na vida cotidiana e em outros espaços dentro da faculdade.
A utilização desse tipo de dinâmica trouxe resultados satisfatórios. Embora
tenhamos percebido que, nas aulas de discussão de textos, nem todas as pes-
soas tinham lido o que era pedido, notamos que a falta de leitura não impedia
o debate, uma vez que eles se estendiam às reflexões sobre notícias de jornais,
propagandas, filmes, músicas e outros conhecimentos já adquiridos. Isso nos
fez perceber que mais importante do que seguir um rígido cronograma pre-
viamente estabelecido - semelhante às metodologias tradicionais utilizadas em
salas de aula - é estimular o hábito de questionar o que está posto e transportar
essas críticas a outros espaços.
Além disso, notamos que proporcionamos um espaço horizontal e plu-
ral para diversas discussões, que, embora sejam necessários, nem sempre são
encontrados nas universidades. Como exemplo, podemos citar a manifesta-
ção de um aluno, que nos agradeceu por propiciar um espaço como aquele
para assuntos tão importantes; assim como outra aluna, que sugeriu que a aula
tivesse duração de três horas. Por outro lado, notamos, também, que levar esse
tipo de discussão à Faculdade de Direito pode provocar incômodos, como no
caso de um aluno que se manifestou, em voz baixa, para outro companheiro

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da sala, durante a exibição do documentário sobre uma mulher transexual “não


acredito que eles (nós, no caso) perdem uma aula com essa besteira. Só existe
XX ou XY”.
Diante de situações como essa, fica ainda mais evidente para nós que a
desconstrução de estereótipos de gênero e a desnaturalização de violências é
uma tarefa que demanda tempo e paciência. Assim, por considerar que esse é
um processo lento e contínuo, julgamos imprescindível discutir essa questão
desde a educação infantil.

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O ATRAVESSAMENTO DA VIOLÊNCIA EM OFICINAS DE


GÊNERO E SEXUALIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR

Bruna da Silva Paulino


Estudante de Graduação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Psicologia
brunapaulino@outlook.com

Angelina Costa Baron


Estudante de Graduação
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Psicologia
angelinabaron@hotmail.com

Amana Mattos
Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
amanamattos@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

Zona Sul do Rio de Janeiro, com vista para o mar e com morros como
plano de fundo: este é o cenário no qual se localiza uma escola pública de
educação básica do município do Rio. Conhecida na região como uma escola
que recebe estudantes “problema” transferidos por outras instituições públicas
de ensino, a escola tem como característica o corpo discente majoritariamente
composto por pessoas de classe baixa que residem em favelas e a presença de
projetos de aceleração da aprendizagem de estudantes.
O presente Relato de Experiência se baseia no trabalho feito pela equipe
PIBID de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro1, formada

1 Apoio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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por cinco estagiárias, uma professora orientadora e uma professora supervisora


do colégio. Neste projeto, trabalhamos as temáticas de gênero e sexualidade
em oficinas semanais.Desenhos de corpos, confecção de vaginas e pênis com
massinha de modelar, dinâmicas sobre estereótipos de gênero e preconceitos
foram algumas das atividades realizadas, das quais já participaram cerca de 120
estudantes da escola. As oficinas têm sete encontros semanais com cada grupo.
Neste trabalho, discutimos o tema da violência que atravessou o trabalho
com uma turma composta por adolescentes de 13 a 15 anos, acompanhada
pelo mesmo professor desde o início do ano letivo. Abordamos episódios e
falas ocorridas nos encontros e descritos nos relatórios de campo. Seguindo
a concepção de Libardi e Castro (2014), compreendemos a violência em suas
diversas formas de manifestação. Entretanto, priorizaremos o que as autoras
nomeiam como “violências sutis”, que por vezes passam despercebidas aos
olhos de quem a pratica, de quem a recebe e de quem observa.

As “violências sutis” nas oficinas com jovens


“Enquanto uma aluna expunha algumas conversas que teve com
homens homossexuais na praia, alguns garotos da sala começaram
a chamá-la de ‘sapatão!’e, enfurecida, ela dizia: ‘Cala a boca! Pede
exame então pra ver se eu sou sapatão mesmo!’.” (István Bacsa,
estagiário PIBID, em relatório da atividade)

Iniciamos com este breve registro da primeira conversa com a turma,


quando apresentamos o projeto. Como na maioria das turmas, a menção das
palavras “gênero” e “sexualidade” deram vazão a diversas colocações, dúvi-
das, opiniões diversificadas, por vezes bem cristalizadas, além de manifestações
orais e corporais de entusiasmo e resistência, o que nos faz pensar como nessa
escola a discussão de gênero e sexualidade convoca os e as estudantes para os
debates. Percebemos também a importância de organizarmos as atividades de
forma que a configuração da sala, as falas da equipe e as propostas sejam o
mais horizontal possível, para que todos/as consigam se sentir confortáveis para
se colocarem.
Assim, por diversas vezes a atividade acabou tomando um rumo diferente
do que foi previamente pensado pela equipe, tornando-a imprevisível e repleta
de trocas e reflexões. Como é possível observar na citação acima, estas colo-
cações nem sempre são compartilhadas pelos membros da equipe. Contudo,

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defendemos que o silenciamento dos/as participantes descaracterizaria a ideia


de uma atividade pensada para ser democrática, tornando-a uma mera trans-
missão de conhecimentos e posicionamentos da equipe, numa lógica de levar
o saber ao outro.
O que será tomado como violência nesse relato foi caracterizado como
tal pela equipe a partir do entendimento de que a violência deve ser direta-
mente relacionada com contexto social, histórico e cultural no qual se insere e
de que existem diversos agentes implicados em situações de violência, dentre
eles o que observa – posição ocupada pela equipe. Libardi e Castro (2014)
apontam que uma situação é caracterizada como violenta por algum dos agen-
tes envolvidos – principalmente receptor e observador – quando os mesmos
identificam na ação uma intenção do emissor de causar algum incomodo ou
afetação negativa no receptor. Ainda segundo as autoras, o traço comum com-
partilhado pelos diversos tipos de violências seria, portanto, o prejuízo causado
ao agente receptor da ação, seja este prejuízo de caráter físico, psicológico ou
social. Além disso, evidencia-se a importância de percebermos que muitas das
falas dos e das estudantes são sustentadas por códigos e condutas culturais, o
que torna as situações comuns e na maioria das vezes faz com que o sujeito
agente da violência não a perceba como tal, assim como o receptor (LIBARDI,
CASTRO, 2014). Analisa-se, portanto, as colocações com o cuidado necessário
para não rotular os seus falantes e seus receptores como essencialmente sendo
violentos e violentados.
Nesse sentido, já no primeiro encontro, a violência se apresentava de uma
forma bem sutil, através do que é comumente considerado como brincadeira ou
“zoação” entre os e as estudantes: a utilização de rótulos ou identidades que em
sua maioria são consideradas socialmente como depreciativas. Entendemos que
o termo “sapatão” fora utilizado para causar desconforto na menina e torná-la
motivo de riso, o que traz em si violência. Entendemos também que a reação
da aluna de se defender veementemente da “acusação” dos colegas, evidencia
o desconforto da mesma com a suposta brincadeira e ainda a possível consci-
ência da intenção negativa dos meninos ao utilizarem tal rótulo.
Ao surgir nos encontros falas ou ações entendidas pela equipe como vio-
lências, como o uso pejorativo do termo “sapatão” supracitado, a postura inicial
é a da escuta. Contudo, em alguns momentos,esta se torna mais difícil devido
ao nível da colocação, como por exemplo, em um encontro em que levamos
perguntas feitas por eles e elas e em uma questão sobre a pessoa ter ou não

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direito de agredir o próximo por conta de ciúme, um dos alunos afirmou que
“puxava sua namorada pelos cabelos quando a via conversando com outros
meninos”. Nestes momentos, apesar das intervenções da equipe irem na dire-
ção de entender melhor o que foi dito, a postura corporal, expressão facial e
até mesmo entonação de voz, por vezes acabamos demonstrando bastante afe-
tação com o que foi colocado. O tema da violência, nesse sentido, mostrou-se
extremamente delicado, levando para as supervisões as posturas e intervenções
da equipe, em um trabalho de constante reflexão e mudança.

A violência presente nos dispositivos de manutenção da ordem


escolar
“Cheguei ao colégio por volta das nove e quinze da manhã. Logo
na entrada me deparei com um cartaz comunicando o óbito de
um ex-aluno que atualmente era funcionário da escola, mais tarde
soube que este havia falecido após ser atingido por uma bala per-
dida em um tiroteio na comunidade, o cartaz lamentava o ocorrido
e as palavras vinham carregadas de solidariedade e dor” (Thamara
Guilherme, estagiária PIBID, em relatório de atividade)

Trazemos acima um excerto de relato de um dos dias mais difíceis e agita-


dos no trabalho com a turma. Neste episódio de óbito do ex-aluno, vivenciado
diretamente pela escola, a violência surge em sua forma em sua forma mais
visível, a qual, segundo Libardi e Castro (2014), pode ser caracterizada como
violência física, onde há uma agressão e um dano direto ao corpo.
Já no começo da atividade, que foi iniciada sem que a equipe se ativesse
à situação, a resistência da turma era grande, com forte agitação das e dos par-
ticipantes. Em determinado momento, os meninos da turma se envolveram em
uma briga com meninas de outra turma, como mostra o relato a seguir:
“percebi uma grande agitação na porta do auditório, gritos e xin-
gamentos surgiram e a maioria dos meninos correu em direção
à confusão. Ao chegar à porta percebi que estava acontecendo
uma briga generalizada entre os meninos e um grupo de meninas
que não conhecíamos, mas que aparentavam estar no recreio,
elas e eles se socavam e chutavam mutuamente enquanto profe-
riam alguns xingamentos impossíveis de serem entendidos” (Bruna
Paulino, estagiária PIBID, em relatório de atividade)

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Por conta desse acontecimento, dois meninos da turma foram levados


à secretaria por uma funcionária, que se identificou como a professora das
meninas envolvidas no episódio, para que fossem advertidos. Os meninos que
continuaram conosco relataram que as meninas haviam começado a provo-
cá-los e agredi-los, e diziam que elas não tinham “desvantagem” na briga por
serem mulheres. De fato, como presenciado por um estagiário, as meninas pare-
ciam não apenas ter incitado como também sustentado a briga com a mesma
vontade que os meninos até o fim. Contudo, a punição disciplinar recaiu sobre
dois participantes da oficina, causando bastante revolta em um deles. Aqui,
uma movimentação que fugia completamente à ordem da escola foi imediata-
mente advertida e os dois alunos levados foram identificados pela professora
que os buscou como os que tinham “batido nas meninas”. Uma análise mais
aprofundada sobre o acontecido não foi feita pelo colégio, e apesar de todo
corpo docente saber o quanto os e as estudantes estavam afetados/as com o
óbito do funcionário, o mecanismo utilizado foi o da repressão à desordem.
Segundo Bispo e Lima (2014), retomando alguns autores como Benjamin
e Freud, a violência também pode ser observada nas práticas de algumas ins-
tituições sociais, tendo como uma de suas características a legitimidade dada
por normas e leis baseadas na manutenção de uma considerada ordem cul-
tural. Essa violência, descrita pelos autores como institucionalizada, também
está presente no ambiente escolar, onde alguns dispositivos institucionais de
controle são evocados quando os e as estudantes apresentam algum comporta-
mento que vá de encontro a esta ordem institucionalizada. Com a experiência
na escola, percebemos que o dispositivo de controle mais acionado em casos
de “desordem” da lógica escolar é a direção, a qual habitualmente responde
a essas demandas com advertências, suspensões e solicitando a presença dos
pais. Assim, observamos que as posturas adotadas pela direção acabam, tam-
bém, se caracterizando como uma violência sutil, já que utiliza da autoridade
para punir os e as estudantes que não correspondem às suas normas.
Normas que por vezes são também perpassadas por outros discursos que
causam dano ao próximo e/ou a um grupo específico, como mostra o relato
de falas da diretora direcionadas a dois alunos que entraram no site “xvideos”
(website de vídeos pornográficos) durante uma de nossas atividades, no com-
putador em que estava sendo utilizado pela equipe. Os alunos foram levados à
direção pela professora supervisora do projeto, que acompanhava a atividade:

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“Mas de todas as falas, duas falas da diretora causaram em mim


e Angelina espanto, vontade de sair da reunião, por completa
desnecessidade de serem feitas. A primeira foi quando a diretora
perguntou se um dos alunos queria entrar pra mesma vida que fez
o irmão dele ser assassinado no morro. ‘Você quer?’. E o menino de
cabeça baixa dizia que não. A segunda foi quando a diretora, agora
falando com o outro aluno, perguntou: ‘O que você tem entre as
pernas? Uma vagina? Não! Então honre o que você tem!’.” (István
Bacsa, estagiário PIBID, em relatório da atividade)

Novamente, a afetação dos estagiários mostra-se presente, só que dessa


vez direcionada à direção do colégio. O que torna mais difícil o debate sobre
o que está sendo dito, a forma como está sendo dito e o efeito que pode cau-
sar naqueles que escutam. Há, então, um trabalho para criarmos estratégias
de condução em relação a esses episódios sem que a equipe “desautorize”
(palavra muito utilizada pela professora supervisora) as falas do corpo docente.
Além disso, torna-se notável o quanto que a escola pode recorrer à violência
institucional em suas tentativas de encaixar os e as estudantes em suas nor-
mas de comportamento e postura, (re)produzindo, muitas vezes, discursos de
extrema agressão aos e às estudantes, como ao perguntar se o menino queria
ser “assassinado como seu irmão havia sido”, e também a grupos específicos,
por exemplo, ao reproduzir o discurso de que “homens devem honrar aquilo
que têm entre as pernas”, o que não somente tem como base o machismo como
também a transfobia.

Considerações Finais

Ao longo do trabalho de campo, fomos convocadas, a todo tempo, a


refletir o quanto o debate sobre gênero e sexualidade dispara outras questões
nas pessoas que participam – sejam estudantes ou estagiárias. Especificamente
neste trabalho, a escolha pelo atravessamento da violência nas atividades de
campo se motivou principalmente pela forma como estes episódios violentos
são observados não só entre os e as estudantes – na maioria das vezes por meio
de brincadeiras ou de relatos de vivências –, como também pela forma que a
violência é tomada pelasescolas como uma estratégia de combate e de repres-
são às ações e falas do corpo discente que fogem àquilo que é esperado pela
escola – muito baseado no que é institucionalmente e socialmente considerado
adequado.

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Assim, refletir sobre o tema da violência é imprescindível para que pos-


samos dar continuidade ao nosso trabalho de forma satisfatória, até mesmo
porque, como foi possível observar nos exemplos utilizados, boa parte dessas
falas e atitudes violentas acabam sendo diretamente relacionadas às identidades
de gênero e às sexualidades, e com isso tornam-se um forte meio de propaga-
ção de posições sexistas e LGBTfóbicas. Por fim, consideramos que tal discussão
mostra a importância de oficinas e atividades que busquem debater gênero e
sexualidade no ambiente escolar, já que em muitas escolas não há espaços
voltados para a escuta e acolhimento das demandas e dúvidas de estudantes.
Reafirmamos a importância de nos mantermos, enquanto equipe, em constante
reflexão, para que essas conversas e atividades busquem ao máximo dialogar
com a realidade experienciada, para que se sintam implicados/as e confortáveis
para levarem seus questionamentos, posicionamentos e impressões.

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Referências

BISPO, Fábio Santos; LIMA, Nádia Laguárdia de. A violência no contexto escolar:
uma leitura interdisciplinar. Educ. rev.,  Belo Horizonte ,  v. 30,  n. 2,  p. 161-180, 
jun.  2014. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-46982014000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em  28  jun.  2016.  http://
dx.doi.org/10.1590/S0102-46982014000200008.

LIBARDI, Suzana Santos; CASTRO, Lucia Rabello de. Violências “sutis”: jovens e gru-
pos de pares na escola. Fractal, Rev. Psicol.,  Rio de Janeiro ,  v. 26, n. 3, p. 943-962, 
Dec.  2014.  Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1984-02922014000300943&lng=en&nrm=iso>. Acesso em  28  Junho  2016. 
http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1237.

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RELATO DE EXPERIMENTAÇÃO DE AULA


VISANDO DESCONTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS
HOMOLESBOTRANSFÓBICOS POR MEIO DE
FERRAMENTA DIALÓGICA, EM CLASSE DE ALUNOS
ESTUDANTES DE DIREITO

Irapoan Nogueira Filho


Doutor em Psicologia Social
Professor Adjunto (Instituto Três Rios - UFRRJ)
infilho@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

O presente trabalho constitui na exposição de uma experiência ainda em cons-


trução/andamento desde o ano de 2011, no exercício da disciplina Psicologia
Aplicada ao Direito, no Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro. Trata-se de uma proposta de exercício de análise coletiva dos discur-
sos produzidos pela turma, acerca da identidade de gênero e orientação sexual
das pessoas. Tendo em vista tratar-se de um fenômeno que ocorre no exercício
profissional do autor, opta-se aqui pela escrita em primeira pessoa. Procuro, por
meio da escrita em primeira pessoa, descrever as condições segundo as quais
surge a proposta de ensino aqui apresentada, sua execução, bem como efeitos
nos estudantes e no professor.

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Início

No segundo semestre de 2011 ocorreu a primeira vez em que lecionei a


disciplina Psicologia Aplicada ao Direito, para alunos do segundo período do
curso. Após tomar conhecimento da ementa, e realizar diálogo com os membros
representantes do colegiado do curso de Direito, apresento uma proposta de
uma disciplina onde os alunos aprendam efetivamente assuntos da Psicologia,
mas aplicados ao Direito. Minha intenção era construir uma ementa que os alu-
nos conseguissem instrumentalizar em suas futuras práticas profissionais. Desta
maneira, a disciplina ficou dividida em duas partes: 1) introdução às Psicologia
Jurídica e Forense; 2) abordagens de temas que são comuns à prática do Direito,
e objetos de estudo da Psicologia, a saber: juventude, produção social de rela-
ções de gênero, produção social de relações de raça, crime, trabalho, loucura
e Saúde Mental, identidade de gênero, e orientação sexual, performatividade
sexual. Essa proposta foi apreciada e aprovada pelos membros do colegiado, e
foi então posta em exercício.
Todavia, ao chegar nas aulas referentes à identidade de gênero e orienta-
ção sexual, os alunos apresentavam muitas dúvidas e questionamentos sobre o
conteúdo, contra argumentando com expressões de senso comum sobre quem
seriam “os travecos, as bichas e as sapatões”. Eu necessitava demostrar para
eles como havia discursos preconceituosamente estereotipantes acontecendo
na classe, mas desejava sobretudo modificar a percepção dos alunos sobre esse
tipo de discurso. Avaliei que uma mudança na percepção seria mais eficaz do
que uma mera avaliação corretiva da fala emitida. Pensei, então, na preparação
de uma aula-intervenção, com o intuito de provocar efeitos de desnaturalização
de suas próprias atividades discursivas.

A proposta

Para desenhar esta proposta de ensino-intervenção, primeiramente tracei


as seguintes premissas-objetivo a serem transmitidas:
- Existe diversos modos de existência;
- Estes distintos modos de existência guardam semelhanças e diferenças
entre si;
- As diferenças quanto a identidade de gênero e orientação sexual são
diferenças como outras quaisquer.

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E, a partir daí, duas conclusões-objetivo a serem transmitidas:


- Pessoas de diferentes orientações e identidades podem ter aspectos
semelhantes entre si.
- É equivocado um discurso sobre o outro como exoticidade estereotipada.
Eu tinha então premissas e objetivos traçados. Fazia-se necessário pensar
como auxiliálos a percorrer esse caminho, dentro de suas próprias ferramentas
subjetivas, afetivas e cognitivas. Pareceu-me interessante então, abordar suas
fábulas pessoais acerca daquilo que dentro de suas respectivas territorialidades
se compusesse enquanto campo de alteridade, de desconhecido. No caso, as
fábulas tecidas nas narrativas sobre quem seriam os LGBTTI.
Michel de Certeau (1994) aponta a presença, na operação de criação de
regimes de alteridade, da composição de uma posição de fábula para o outro,
e esse outro seria definido segundo o contexto de sua fábula. Esta fábula é não
somente gerada, mas é concebida enquanto irregular, fora da Norma, e que
precisa pela Norma ser interpretada para ser enquadrada e/ou controlada.
As Normas, no caso da população aqui atendida, são aquelas do Homem
(DELEUZE & GUATTARI, 1997): o pensamento a partir da perspectiva do
homem-branco-heterossexualurbano-classe média-cristão. Modelo de pensa-
mento que é tomado por modelo de pensamento padrão, normativo, mas que
não é exercido de forma homogênea. Aquilo que foge ao modelo é -quando
percebido- colocado como irregular, foi dito. E a fábula é, portanto, operação
e produto. Serve para aparar, traduzindo os modos heterogêneos de existência
gerando contornos que sirvam ao modelo dominante, corroborando seu modo
de existência, e – por último e não menos importante – gerando manutenção
de modos de relações (e de relações de poder) (psico)sociais.
A intervenção por mim pretendida era de, então, retirar estes contornos
e podas, de tornar possível para aqueles alunos o diálogo com modos hetero-
gêneos de existência. Para isto, faz-se necessário provocar ruptura no modelo,
gerando protrusão naquilo que dá base à possibilidade da fábula. Utilizando uma
das possibilidades apontadas por Certau (1994), o pensamento Esquizoanalítico
(DELEUZE & GUATTARI, 1995a, 1995b, 1997) pôde fornecer ferramentas para
este acontecimento pretendido.
Um conceito interessante mobilizado dentro da Esquizoanálise (DELEUZE
& GUATTARI, 1995b) é o de palavra de ordem. Eles criam este conceito para
explicar que a principal função da linguagem é dar ordens, incitar novas coor-
denadas semióticas: antes de comunicar uma informação, a linguagem antes

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ordena às pessoas a agirem de determinada maneira, e “esta maneira são as


coordenadas”. Quando se diz: “Não há farinha”, não se informa que falta fari-
nha. Dá-se uma ordem para que haja como se não houvesse farinha. E, ainda,
quando se cria um estereótipo (p.ex., a fábula da “travesti”), tem-se uma ordem
de possíveis e impossíveis ações em relação à “travesti”.
E -é importante reiterar- a função da fábula é construir/constituir campo
de alteridade domesticada para servir ao modelo vigente. Daí se resulta discur-
sos contraditórios, como por ex: a femininização do homem homossexual e a
masculinização do tratamento à travesti. Mas tantos os homens homossexuais
quanto as travestis não são “grupos”, membros de uma espécie, mas são duas
populações bem heterogêneas, cujas singularidades são apagadas pelo estereó-
tipo da fábula: “a bicha, o traveco”.
A estratégia por mim escolhida para desmantelar este estereótipo foi a de
dar aos alunos uma tarefa cuja realização tornasse inviável o funcionamento da
fábula, e não apenas isso – colocasse a mesma em curto-circuito, apontando
a mesma de volta para eles. A realização da estratégia é apresentada a seguir.

A aula-intervenção

Reuni, em uma folha, a descrição de 10 pessoas distintas, separadas em


espectros masculinos e não-masculinos. A descrição de cada uma destas pes-
soas apenas omitia orientação sexual e identidade de gênero. Organizei a turma
em grupos, distribui as folhas, e explicitei a tarefa:
1. Vocês receberam uma folha com 10 pessoas1. Eu quero que vocês
observem as descrições, como se fosse na vida comum. Na primeira
série de 5 pessoas eu quero que vocês digam se essa pessoa é uma
mulher heterossexual, bissexual, homossexual, ou uma travesti. Na
segunda, eu quero que digam se essa pessoa é um homem heteros-
sexual, bissexual, homossexual, e – se for o caso – se é abusador de
crianças2.

1 Algumas famosas, outras de meu convívio pessoal.


2 Em tempo: em toda lista que ministro há de fato um homem, heterossexual, que foi preso por abusar
várias crianças. O espectro feminino era composto majoritariamente por travestis, porque transfobia
(discurso de “o travesti/traveco é assim pra se prostituir”) tinha sido reincidente, quando em aulas
anteriores eu abordei produção social de relações de gênero.

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2. Após cada grupo discutir e anotar, nós vamos passar a discussão pes-
soa por pessoa, e ver o que cada grupo nomeou, e analisar o porquê
da decisão.
Observei os diálogos, passando pelos grupos, sem interferir na discussão.
E após encerradas todas as nomeações em todos os grupos, abri para discussão
ampla.

Discussão

Quando eles escutavam as justificativas, inevitavelmente alguém ques-


tionava cada justificativa, porque se identificava com aquela pessoa. E, eles
próprios apontavam como era equivocado cada julgamento que estava sendo
realizado. Por exemplo, uma aluna de mais idade questionava o fato de outros
alunos dizerem que uma das pessoas enumeradas era uma mulher homossexual
por causa de uma de suas características enumeradas ser usar cabelo curto. A
mesma aluna utilizava cabelo curto, e ela dizia que a deixava mais jovem, e se
identificava enquanto heterossexual. Enfim, conforme as análises foram progre-
dindo, eles foram apontando como estava sendo estereotipado e como havia
julgamento nos discursos – porque foram se sentindo ofendidos com as decla-
rações. As narrativas que sustentavam os estereótipos (as
fábulas) atingiram uns aos outros. “Fogo cruzado” discursivo.
Depois de passar sem pressa, pela análise do discurso de todos os gru-
pos acerca de cada uma das pessoas, eu descrevi quem essas pessoas eram
-incluindo, agora, sua identidade de gênero e orientação. E por fim fiz a última
solicitação do exercício:
- O que vocês acham de suas falas agora?
Neste momento, o desejado era um processo reverso, que de fato ocor-
reu: eles criticaram os discursos proferidos quando se identificavam com
aquela pessoa. E agora descobriram que aquela pessoa em questão eles tra-
tavam usualmente como um outro, estranho, exótico, tipificado. As narrativas
que sustentavam os estereótipos (as fábulas) se voltaram contra eles mesmos. A
narrativa não fazia mais sentido.
A reação dos alunos foi de inicialmente silêncio, por vezes olhando-se
entre os membros do próprio grupo, por vezes com olhar vago. Manifestações
começaram, aos poucos, a surgir, mas desta vez apontando o próprio julga-
mento, tanto pela descoberta de identificar-se com alguém que era tratado num

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campo de alteridade distante, como tanto por descobrir o quão equivocado


estava o próprio julgamento estabelecido.

Considerações finais

O debate se estendeu durante a aula seguinte, movido por perguntas e


falas dos alunos. Até o final da disciplina, os discursos apresentaram falas equi-
vocadas suas próprias, de amigos, de parentes, e até de outros professores do
curso. Outras falas aplicavam questões LGBTT em conteúdos de outras dis-
ciplinas. Alguns alunos LGBTT têm se exposto de forma mais amena, menos
receosos (“saídas do armário”). Repliquei a mesma aula-intervenção nas 4
vezes posteriores em que apliquei a disciplina (a mesma é ofertada uma vez
ao ano). Desde então houve alunos interessados em discutir Direito e questões
LGBTT, e chegamos a fazer um seminário para discutir homolesbotransfobia,
com trabalhos de alunos e palestrantes externos. Dois alunos da última turma se
incomodaram com questões relativas ao direito de escolha acerca de realização
de “cirurgia reparatória” para população intersexual, e estamos no momento
produzindo pesquisa sobre o assunto.
Este instrumento tem sido refletido e modificado por mim, no sentido de
tentar uma abrangência de um espectro de pessoas o mais heterogêneo pos-
sível. A quantidade de tempo inerente à disciplina (2 horas por semana), bem
como a não possibilidade institucional de modificar sua carga horária têm sido
outros limitadores. Uma questão que ainda se faz necessário trabalhar - e para
qual ainda não tenho ferramenta formalizada – é a desnaturalização da “vida
dentro do armário” – fenômeno que é mostrado pela mídia sob uma ótica hete-
ronormativa e heterocêntrica, resultando em uma abordagem humorística -e
equivocada- do fenômeno.

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Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,


1994. DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs -capitalismo e esquizofrenia, vol.1. Rio
de Janeiro, Ed. 34, 1995.

DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs -capitalismo e esquizofrenia, vol.2. Rio de


Janeiro, Ed. 34, 1995b.

______. Mil platôs -capitalismo e esquizofrenia, vol.4. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1997.

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COLETIVO DUAS CABEÇAS: A EXPERIÊNCIA DA LUTA AO


DIÁLOGO

Juber Marques Pacífico


Graduando em Ciências Sociais - UFJF
Coletivo Duas Cabeças - Militante
jubermpacifico@hotmail.com

GT 02 - Ativismos e os movimentos sociais

Introdução

A apresentação deste trabalho busca ressaltar a importância que tem


a militância para as conquistas sociais e políticas de uma comunidade, bem
como, mostrar as dificuldades que existem para se efetivar direitos àqueles (as)
que não estão inseridos (as) na norma. Busco demonstrar os caminhos per-
corridos pelo Coletivo Duas Cabeças que possibilitaram debates, discussões e
ações que resultaram em políticas institucionais para LGBTIs1 de dentro e fora
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Este relato captura nossas ações e motivações, nossas inquietudes e inter-
locuções, e principalmente mostra como a experiência da militância possibilitou
uma transformação na maneira de ver o mundo. Em um mundo em que cada
vez mais as experiências parecem perder o seu valor, aproveitamos para reafir-
mar o nosso olhar para as coisas que nos transformam e que nos possibilitam
também transformar o outro. Larrosa (2002) nos ensina que:
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A
cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase
nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organi-
zado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto

1 Sigla que abrange Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais. Além disso, quan-
do ultilizamos LGBTI estamos considerando como inseridos na representação não-binários.

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célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o


nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência
é cada vez mais rara. (Larrosa, 2002, p. 21)

As experiências que estão demonstradas nesse trabalho foram as que


me tocaram, que me aconteceram e que me transformam. O Coletivo Duas
Cabeças possibilitou que todos nós nos enxergássemos, nos sensibilizássemos
e lutássemos pelo grupo e é exatamente nessa busca que nos encontramos, em
nossa sensibilidade e empatia. Em um mundo onde são cada vez mais raras as
experiências, podemos iniciar nosso trabalho dizendo ser ele um relato simples
de uma experiência valiosa.

A emergência histórica do coletivo

Nossa história começa em meados de 2014. Ao sentir a necessidade da


existência de grupos que discutissem a LGBTIfobia2 na (UFJF), fizemos algumas
reuniões com outros estudantes e idealizamos a criação de um Coletivo LGBTI
durante a realização do estamPARANDO a homofobia, ato de repúdio ocorrido
no dia 6 de junho de 2014 no Restaurante Universitário (RU) da UFJF. Tal ato
foi motivado por um episódio de lesbofobia ocorrido com uma aluna da uni-
versidade em uma casa noturna da cidade, durante a festa de encerramento das
olimpíadas da instituição.
Nos reunimos em um encontro com a presença de estudantes da comu-
nidade LGBTI, bem como pessoas de fora do ambiente acadêmico, e criamos
o Coletivo Duas Cabeças. O nome foi sugerido por um participante que se
identifica como homossexual. Duas Cabeças é o nome de um Exu e que na
umbanda simboliza o fim da inércia, dando movimento, trazendo mudanças e
abrindo caminhos. O Exu Duas Cabeças é representado por uma cabeça femi-
nina e outra masculina, simbolizando a parte feminina que há em todo homem
e a parte masculina de toda mulher. O nome chama a atenção, pois possui forte

2 Optamos por usar o termo “LGBTfobia” no lugar o termo “homofobia” pois acreditamos que tal
termo consiga abarcar de forma mais completa a violência que sofrem as pessoas cuja sexualidade
e identidade de gênero sofrem ataques psicológicos, físicos e sociais. Acreditamos que “LGBTfobia”
represente todas as formas de assédios que ocorrem contra Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e
Transexuais , não binários e intersexuais.

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significado e foi pensado exatamente porque nós, LGBTI, assim como as religi-
ões africanas, temos um lugar periférico na sociedade.
O lançamento oficial do Coletivo se deu no dia 28 de agosto de 2014
com a mesa de debates Coletivo Duas Cabeças: contra o racismo, o machismo
e a homofobia. Houve uma significativa mobilização dos grupos de militância
que apoiaram e participaram do evento. O Coletivo da Diversidade Sexual e de
Gênero Duas Cabeças nasceu com a missão de promover ações que garantam
a cidadania e os direitos humanos da comunidade LGBTI e não binários3, con-
tribuindo para a construção de uma sociedade democrática, na qual nenhuma
pessoa seja submetida a quaisquer formas de discriminação, coerção e vio-
lência em razão de sua orientação sexual e identidade de gênero, conforme
estabelecido pelo Estatuto do Coletivo4.
Com o passar do tempo, o Coletivo Duas Cabeças se tornou referência de
luta, resistência e combate às variadas formas de discriminação que acontecem
diariamente na UFJF. Mas também foi às ruas e, através de inúmeras ações, às
quais citaremos abaixo, ganhou notoriedade no município de Juiz de Fora como
Coletivo que luta pela diversidade.

A integração dos diferentes atores

O Coletivo é aberto a todas as pessoas, independente de sua orientação


sexual e/ou identidade de gênero. Atualmente o integram cerca de 30 partici-
pantes, em sua maioria estudantes de diversos cursos da UFJF, com variadas
orientações sexuais e identidades de gênero. As reuniões acontecem sema-
nalmente, sempre ao ar livre, possibilitando uma verdadeira interação com as
pessoas que transitam pelo espaço universitário, com discussões acerca das
ações organizadas pelo grupo.
Mesmo sendo um Coletivo formado na maioria por homens gays, as mili-
tantes transexuais se tornaram referência do movimento, sendo assim a maioria
das pautas do Coletivo foram norteadas para a buscar de direitos de pessoas
trans, como Nome Social e a Campanha Libera Meu Xixi, campanhas que

3 Designamos como não binários os indivíduos que não possuem identidade de gênero masculina ou
feminina, indivíduos cuja identidade de gênero não se posiciona na lógica binária.
4 O Estatuto do Coletivo fora aprovado no dia 23 de janeiro de 2016 em assembleia geral, com a
representação de toda a sigla LGBTI.

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discutiremos a seguir. Com isso, nossa imagem está sempre atrelada às lutas
das trans e travestis. Uma das participantes trans e figura de grande destaque na
militância é Bruna Leonardo. Nas palavras dela:
Já participava de outros movimentos, já militava antes de entrar no
Coletivo, mas foi depois que eu entrei no Coletivo que eu ganhei
visibilidade e que as pautas das trans também ganharam visibili-
dade. Quando cheguei no grupo me senti muito bem acolhida por
todos . (Bruna Leonardo, 2016)

Luta e diálogo: o equilíbrio que buscamos

Nossas lutas são para garantir a conquista de direitos humanos plenos


para todas as pessoas, principalmente àqueles relativos à orientação sexual ou
identidade de gênero que divergem da heteronormatividade5 e da cisnorma-
tividade6 e contra quaisquer formas de preconceito e discriminação a esses
indivíduos, sejam individuais ou coletivos, de natureza social, política, jurídica,
religiosa, cultural ou econômica. Para possibilitar uma maior discussão sobre os
temas correlatos, realizamos mesas de debates, encontros e rodas de conversas.
Uma dessas atividades foi a mesa As experiências trans e suas intersec-
ções com os sistemas de saúde e jurídico: reflexões acerca da (des)legitimação
de identidades, ocorrida no dia 11 de dezembro de 2014. Fizemos um debate
sobre as vivências trans e as intersecções com os sistemas de saúde e jurídico.
Contamos com a participação da integrante do Coletivo Duas Cabeças e do
grupo Visitrans7, Bruna Leonardo; do advogado João Beccon; a psicóloga do
Serviço de Assistência Especializada em AIDS Gláucia David; e Thiago Nery,
homem trans e integrante do grupo Visitrans.

5 Diz-se da matriz, conjunto de normas e regras, social e culturalmente construídas que instituciona-
lizam a heterossexualidade como padrão normal para a sexualidade humana.
6 Refere-se à matriz, relacionada à heteronormatividade, que institui como normais indivíduos com
as identidades de gênero cis, ou seja, pessoas que se identificam com o gênero que lhes foram desig-
nados no nascimento – ou antes dele.
7 Visitrans é um grupo formado por várias pessoas que atuam em Juiz de Fora na promoção da visibili-
dade e dos direitos de transexuais, travestis, intersexuais e não-binários. ´coordenado pela professora
Dra. Juliana Perucchi e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
– FAPEMIG.

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Ao perceber que era necessário fazer uma militância focada também em


questões a níveis municipais, realizamos em setembro de 2015 a Conferência
Municipal dos Direitos LGBTI de Juiz de Fora com apoio da DIAAF – Diretoria
de Ações Afirmativas. O evento contou com a participação da Presidenta da
Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
Cristina Couto Guerra; com o Presidente do Movimento Gay de Minas (MGM)
Marco Trajano; o vereador Jucélio Maria; a Diretora de Ações Afirmativas da
UFJF, Carolina Bezerra; a militante transexual Bruna Leonardo e o Coordenador
Especial de Políticas de Diversidade Sexual do Governo do Estado de Minas
Gerais, Douglas Miranda. Conseguimos propor medidas que possibilitem a
defesa dos direitos fundamentais e humanos da população LGBTI de Juiz de
Fora e ações para o Governo do Estado de Minas Gerais, através da Secretaria
de Direitos Humanos. Além disso, elegemos delegados (as) que representaram o
município na Conferência Estadual dos Direitos LGBT, que aconteceu em Belo
Horizonte, em novembro de 2015.
Além desses eventos, são realizados encontros informais entre os participan-
tes e não-participantes do Coletivo Duas Cabeças, chamados de diversinique8,
com o objetivo de promover integração e a sociabilidade com base no respeito
às diferenças. Nos encontros, os participantes conversam sobre temas rela-
cionados às suas vivências, experiências e acontecimentos causados pela sua
orientação sexual ou identidade de gênero. Este é um momento-chave para a
quebra de preconceitos, pois possibilita o contato e a troca de experiências com
as mais diferentes vivências. Com uma proposta mais lúdica, os Diversiniques
nos proporcionam momentos em que as barreiras são deixadas de lado. O
Coletivo Duas Cabeças em pouco mais de um ano e meio de existência con-
seguiu vitórias importantíssimas para os alunos e alunas da UFJF. Partiu de nós
o movimento pelo uso do nome social na instituição. Foram muitas reuniões,
coletas de mais de mil assinaturas em um abaixo assinado e manifestações para

8 Os diversiniques foram idealizados pela militante Bruna Leonardo e logo se tornaram um sucesso.
Ele constitui uma oportunidade de interação entre seus participantes e todos os espaços disponíveis
no campus universitário. A importância desse encontro está exatamente na questão da ocupação dos
espaços, nossa presença no bosque da UFJF cria impacto visual, pois sempre levamos a bandeira da
diversidade e penduramos em uma das arvores para demarcar espaço e para mostrar nossa presença
do diferente em um meio onde antes só havia a imagem da heteronormatividade.

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que conseguíssemos a aprovação do nome social como um direito dos alunos


e das alunas da UFJF.
Outra campanha da qual estamos participando é a Libera Meu Xixi, criada
pela Diretoria de Ações Afirmativas para que a identidade de gênero seja respei-
tada nos banheiros da instituição. O Coletivo já possui importantes conquistas,
bem como reconhecimento pelas várias campanhas realizadas com o intuito de
estabelecer diálogos entre a sociedade e o poder público buscando a efetivação
dos direitos da comunidade LGBTI.
A Campanha Libera Meu Xixi significa uma possibilidade de discussão
sobre a normatividade existente nos corpos. Causou-nos grande indignação os
relatos das travestis e transexuais que ficavam horas sem ir aos banheiros por
medo de serem hostilizadas, muitas só usavam os banheiros de casa, único
lugar onde se sentiam seguras. Muitas delas relataram ainda, que já na adoles-
cência, não utilizavam os banheiros da escola por medo de agressão dos outros
indivíduos.
Aqui a questão do corpo é central, pois indivíduos são podados de até
mesmo realizar suas necessidades fisiológicas por puro preconceito e discrimi-
nação. Por isso, quando estudamos gênero entendemos:
como norma, como o mecanismo por meio do qual são produzidas
e naturalizadas as noções de masculino e de feminino. O efeito do
gênero como substância, como classe de ser, é estabelecido pela
reiteração de uma série de gestos, movimentos e estilos corporais,
que criam a ideia de um corpo com gênero constante. A normati-
vidade do gênero refere-se a propósitos, aspirações, preceitos que
norteiam as ações dos sujeitos e, também, ao processo de normali-
zação, que é a maneira como ideias e ideais dominam os corpos e
estabelecem os critérios para a definição de um homem e de uma
mulher normal. (PARAÍSO, 2014, p. 238)

A Campanha tem objetivo desafiador que é discutir tais preceitos de gênero


para descontruir formas de pensar onde as transexuais e travestis representam
risco à dignidade alheia. Além disso, mais uma vez discutimos tais preceitos à
luz dos direitos fundamentais, onde discriminar qualquer pessoa se torna um
crime contra a própria sociedade.

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Conclusão

Parece-nos importante salientar que movimentos de mudança social


necessitam de organização e militância, ou seja, a experiência do Coletivo Duas
Cabeças só pôde ser realizada e continuar sendo porque houve uma organiza-
ção e muito comprometimento por parte dos militantes.
Aos que leem essas linhas que possam pensar ser fácil a criação e manu-
tenção de um Coletivo, eu digo que a tarefa é árdua. Reunir em um mesmo
grupo opiniões e vivências completamente diferentes e realidades desiguais é
um exercício que exige diálogo e empatia. A violência que pessoas trans sofrem
diariamente não é a mesma que os gays sofrem, que não é a mesma violên-
cia que atinge as lésbicas. O grande sucesso do Coletivo consistiu no fato de
que, mesmo diante de diferenças, até mesmo ideológicas, estabeleceram-se
consensos e neles estavam as nossas lutas contra as discriminações diárias que
sofremos.
A participação das pessoas, principalmente as vítimas dos preconceitos, é
essencial para a transformação que tanto buscamos. O Coletivo Duas Cabeças
nos mostrou que é preciso resistência para combater agressões, coragem para
transformar as situações e diálogo para buscar entendimento.

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Bibliografia

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista


Brasileira de Educação, São Paulo: 2002, p. 20 - 28.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Normas de gênero em um currículo escolar: a produ-


ção dicotômica de corpos e posição de sujeito meninos-alunos. Estudos Feministas,
Florianópolis: 2014, p. 237 – 256.

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PAPÉIS DE GÊNERO E VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

Natalia Caroline Soares de Oliveira


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
da Universidade Federal Fluminense
natoliveira88@gmail.com

Beatriz Hiromi da Silva Akutsu


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
da Universidade Federal Fluminense
biakutsu@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

O presente relato tem por objetivo descrever e discutir a nossa experiên-


cia da realização da oficina de enfrentamento à violência contra a mulher, que
ocorreu durante o evento Sexualidade e Gênero: desafiando estereótipos, em
um Colégio Estadual em Niterói/RJ, que preferimos não identificar, no dia 27 de
junho de 2016.
Tal oficina faz parte do Projeto Corporalidades, Diálogo e Acolhimento:
ações contra violências, que é um conjunto de ações de extensão que bus-
cam contribuir para o empoderamento, mobilização e emancipação de grupos
vulneráveis, numa perspectiva participativa e dialógica, tendo como objetivo
central o combate à violência, à discriminação e ao preconceito. Esse Projeto
surgiu a partir do trabalho do nosso grupo de pesquisa Sexualidade, Direito e
Democracia da Universidade Federal Fluminense e da urgência de se pensar
ações efetivas de enfretamento aos estigmas sociais que diversos grupos como
mulheres, pessoas negras, gays, lésbicas e transexuais sofrem. O formato princi-
pal de atuação se dá através de oficinas, compostas, basicamente, das seguintes
atividades: rodas de conversa, dinâmicas de grupo, atividades lúdicas, e práticas
corporais.

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Em meados de maio de 2016, fomos convidadas pela professora Carolina


Bertassoni para realizar uma palestra na referida escola sobre feminismo e vio-
lência contra a mulher. No entanto, como acreditamos que esse formato não
favorece a concentração e participação de todos e de todas - principalmente,
quando se trata de adolescentes - propusemos a realização de uma oficina.
O evento estava marcado para o início de junho, mas por um impedimento
da direção da escola - não sabemos ao certo o que ocorreu -, foi cancelado.
Diante dessa situação, a professora Carolina, ao informar sobre a impossibili-
dade, pediu-nos desculpa e prometeu fazer um esforço para remarcar outra
data. Dias depois, recebemos a notícia de que a nova data estava prevista para
o dia 27 de junho e que o evento ocorreria em apenas um dia, ao contrário da
primeira proposta, que previa dois dias de atividade.
Inicialmente, a oficina seria coordenada por três mulheres: nós duas e Natalia
Kleinsorgen. No entanto, por um imprevisto, Natalia Kleinsorgen não pôde estar
presente no dia, embora tenha nos ajudado com a preparação das dinâmicas.
A professora Carolina havia nos informado que o público alvo da oficina
seria alunos e alunas do oitavo ano - em torno de 30 pessoas -, que haviam
sido escolhidos por terem tido bom desempenho durante o semestre e por
não terem, em geral, oportunidade, de participar de eventos extraclasse, já que
esses eram reservados às pessoas do ensino médio. Além disso, informou-nos
que a violência era uma realidade na vida de muitas das participantes, e, que,
por essa razão, tal tema tinha sido por elas solicitado.
Durante a preparação das atividades, a nossa preocupação era escolher
dinâmicas que proporcionassem as seguintes situações: deixassem as pessoas à
vontade para falar e estimulasse a concentração e a discussão.
O evento foi iniciado às 08h da manhã com palestras sobre temas diversos.
A nossa oficina estava marcada para as 10h. No entanto, minutos antes do seu
início, fomos avisadas por Carolina que a professora responsável por cuidar da
turma que participaria da nossa oficina havia “perdido” os alunos e as alunas.
Diante dessa situação, sugerimos à Carolina a possibilidade de recrutar quaisquer
pessoas que estivessem livres na escola e interessadas em participar da atividade.
Para a nossa surpresa, quase todas as pessoas com as quais falamos se
interessaram em participar. Assim, começamos a oficina com 30 minutos de
atraso e tivemos 2 horas para desenvolver as atividades. A oficina foi composta
por aproximadamente 15 pessoas, entre 13 e 34 anos, dentre elas estavam duas
mulheres responsáveis pela limpeza do colégio e o diretor adjunto.

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Dinâmica da mímica

Com a finalidade de deixar o clima mais descontraído, propusemos uma


dinâmica de apresentação, na qual cada um/uma, após dizer o seu nome, diria
algo que gosta de fazer começando pela primeira letra do nome e seguido de
mímica, por exemplo: meu nome é Natália e eu gosto de nadar (fazendo a mímica).

Dinâmica dos papéis de gênero

Após as apresentações, com a intenção de desconstruir os papéis de


gêneros, entregamos um papel em branco para cada um/uma. O objetivo era
que os meninos escrevessem uma característica que considerassem típica femi-
nina e as meninas, uma masculina. Enquanto isso, dividimos a lousa em duas
partes, em um lado escrevemos “mulher”, e, no outro, “homem”. Após todos e
todas entregarem os papéis escritos, colamos com um durex as características
nos lados correspondentes. Depois disso, no lado que estava escrito “mulher”
colocamos “homem” e vice-versa. As características “voz suave”, “sensíveis”,
“cuidadosa”, “maquiadas”, “delicadas”, foram associadas às mulheres, enquanto
as características “nojentos”, “chatos”, “bagunceiros”, “agressivos”, “usar cueca”,
“legais”, “grossos”, “mal criados”, “ignorante”, “safados” e “insensíveis” foram
relacionadas aos meninos. Em seguida, iniciamos as perguntas. Por exemplo,
“voz suave” foi associada, inicialmente, à mulher, e, ao trocarmos, tivemos que
perguntar “pode um homem ter a voz suave?”, ou “usar cueca” foi inicialmente
uma característica dos meninos, ao trocarmos perguntamos “mulheres pode-
riam usar cuecas?” ao que todos responderam afirmativamente. A cada resposta
afirmativa, a característica era riscada. E, assim, a dinâmica seguiu até esgota-
rem todas as perguntas. Ao final, notamos que todas as características haviam
sido riscadas, o que indica que tudo que havia sido considerado tipicamente
masculino ou feminino, na verdade, não tinha gênero.

Dinâmica da linha da violência

Nessa atividade, só as mulheres participaram, enquanto os homens fica-


ram sentados observando. Traçamos uma linha azul no chão e metade das
participantes ficou de um lado e a outra metade do outro. Levamos situações
sexistas de senso comum, que muitas mulheres costumam ouvir, como, por

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exemplo: “em um almoço de família, um tio seu pergunta ‘e o namorado? ‘”;


“quando as pessoas acham que por você ser bonita não pode ser inteligente”,
“quando acaba de acordar e um parente seu diz que você tem que arrumar o
cabelo”; “você tem um irmão, mais ou menos da sua idade, e ele pode sair ou
levar a namorada pra casa e você não”. A cada frase lida, se as mulheres tives-
sem vivenciado ou conhecido outra mulher na mesma situação, tinham que
dar um passo à frente. Caso isso não fosse verificado, permaneciam no lugar.
Inicialmente, observamos que embora elas tivessem vivenciado ou conheces-
sem mulheres em tal situação, muitas delas não deram o passo a frente, no
entanto, ocorreram diferentes manifestações, como conversas paralelas e frases
como : “quem nunca viu isso?”. Logo após algumas frases serem lidas e com
um pouco mais de descontração e conforto entre todas, a dinâmica prosseguiu
e elas conseguiram dar um passo a frente quando achavam que deveria. O
objetivo dessa dinâmica era demonstrar que todas as mulheres estão expostas a
diversas situações de violência, que são naturalizadas como parte do cotidiano.
O fato de estarem de frente umas para as outras só reforçou a ideia de que
todas as mulheres, independente de suas diferenças, sofrem - ou já sofreram -
em alguma medida violência.

Dinâmica é violência ou não é?

Nessa dinâmica tanto os homens quanto as mulheres participaram.


Levamos outras frases do senso comum que costumamos ouvir e reproduzir no
nosso cotidiano, como, por exemplo, “meu namorado não gosta que eu tenha
amigos homens”, “Piriguete não sente frio”, “Amigo de mulher é viado”. Lemos
uma por vez, procurando discutir se o que está ali é ou não uma situação de
violência contra a mulher. Essa atividade foi a que mais estimulou o debate. A
seguir, elencaremos algumas das que mais suscitaram discussões.
“Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.
Quando lemos essa frase, as pessoas convergiram em um ponto: se a situ-
ação fosse muito grave, a mulher teria que ser ajudada. No entanto, essa mulher
teria que demonstrar um interesse em ser ajudada, porque, muitas vezes, a
pessoa que oferece ajuda - nos casos em que a mulher reata o relacionamento
- acaba sendo vista como intrometida ou alguém que quer atrapalhar a rela-
ção. As nossas intervenções procuraram ser sempre no sentido de não impor
verdades, mas levá-los a pensar, a questionar a situação a que estavam sendo

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apresentados. Então, diante de manifestações como “tem mulher que gosta de


apanhar porque não separa do marido”, procuramos responder com provoca-
ções, no seguinte sentido “será mesmo que alguma mulher gosta de apanhar?
Vocês não acham que as relações violentas envolvem outras questões, como
dependência econômica, afetiva, filhos...?”. Entre uma discussão e outra, uma
das mulheres que trabalhava na escola, voluntariamente, manifestou-se e con-
tou a sua história. Em síntese, ela disse que o ex-marido, com o qual tinha
uma filha e havia sido casada por anos, havia ameaçado-a. Diante da primeira
ameaça, ela nos contou que o denunciou, pois não deixaria qualquer situação
de violência passar impune. Em meio às discussões e depoimentos como o
dessa mulher, embora todos tivessem concordado com o fato de que a mulher
tem que ser ajudada, ouvimos muitos comentários no sentido de que, quando
ajudamos e defendemos uma vítima de violência e logo após ela volta para o
companheiro, a pessoa que ajudou fica conhecida como a “ruim da história”, e,
muitas das vezes, perde até a amizade ou qualquer tipo de relação que pudesse
existir.
“Mulher que anda de roupa curta quer aparecer”.
Ao lermos essa frase, prontamente as mulheres se manifestaram de
maneira contrária, e muitas delas argumentaram que mesmo que a roupa curta
fosse usada para “aparecer”, ninguém, a não ser ela própria, teria algo a ver com
isso.
“Piriguete não sente Frio”
Logo em seguida, essa frase foi levantada e a associação de roupa curta à
“vulgaridade” foi realizada. O momento que gerou mais polêmica foi quando o
diretor adjunto, manifestou-se com o seguinte exemplo “quando a mulher está
vestindo uma roupa curta e sobe em um ônibus ou uma escada no shopping,
ela precisa tomar certos cuidados, ela puxa a saia, por exemplo, para baixo”.
Com isso, o diretor pretendeu dizer que quando a mulher veste roupas mais
compridas, que cobrem o corpo, não precisa se preocupar com essas situações.
Ainda na discussão dessa frase, o diretor - olhando-a dos pés à cabeça - referiu-
se, de forma inconveniente e constrangedora, à Natalia Oliveira que conduzia
a oficina, afirmando que, se ela estivesse na praia de biquíni, ele não pode-
ria ser impedido de olha-la. Tal fato logo gerou certo incômodo e levantou o
debate entre ele e outro participante da oficina que também faz parte do nosso
grupo de pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia da Universidade Federal
Fluminense, Gustavo Lacerda. Assim, Gustavo, contrapondo o exemplo dado

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pelo diretor, indagou-lhe o seguinte: se ele estivesse andando pela praia, sem
camisa, ficaria incomodado se um gay o cantasse ou olhasse para ele somente
pelo fato de estar sem camisa? Em resposta, o diretor disse que sim, que se sen-
tiria incomodado. Após essa conversa, a mensagem que parece ter sido captada
por todos e todas é que, independente do gênero, das roupas que veste - sejam
elas curtas, decotadas, ou compridas até o pé - as pessoas tem que se sentir
livres para ser o que quiserem ser e para estar como quiserem estar. Essa dis-
cussão gerou muitos comentários, principalmente pelo fato de a maioria serem
mulheres, que, de alguma forma, já sofreu algum tipo de assédio devido a roupa
que estava usando. As mulheres relataram como ficaram e ficam incomodadas
com certos olhares na rua, e que, além disso, o corpo pertence somente à elas,
e, por isso, têm a liberdade para ditar as próprias regras.

Dinâmica de fechamento

Pedimos para que todos e todas escrevessem nas fichas entregues o que
acharam da oficina e o que poderíamos melhorar. Dentre vários comentários,
surgiram: “Não é não, cara!”; “Adorei, porque trabalha com reflexões para pen-
sar soluções de combater às relações verticais de poder”; “A oficina foi ótima
para esclarecer assuntos antes não falados, e também para nos ensinar que
independente de tudo temos que ter todos os mesmos direitos”; “prazeroso,
estimulante, esclarecedor, empatia com quem sofre”.
Notamos pelos comentários que, de uma forma geral, os/as participantes
gostaram da atividade e tiveram espaço para discutir questões fundamentais da
atualidade, e que, além disso, o debate e a interação de todos e de todas pro-
porcionou uma maior compreensão da importância de rever e pensar sobre a
violência contra a mulher.
Logo em seguida, passamos o vídeo da CAMTRA (Casa da Mulher
Trabalhadora), que mostrou a campanha de enfrentamento à violência contra
a mulher, realizada pelo Núcleo de Mulheres Jovens. O objetivo do vídeo era
fechar a oficina com um momento lúdico e de relaxamento, que não deixasse
de abordar questões relacionadas com o combate da violência contra a mulher.
A experiência de realizar essa oficina foi muito importante para nós não
somente pela relação com nossas pesquisas de mestrado e com o grupo de
pesquisa do qual fazemos parte, mas, principalmente, pelo retorno e carinho
que todos nos demonstraram; pela conscientização e debates que as dinâmicas

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proporcionaram; e, por visualizar, ainda que em um horizonte distante, que esse


é um dos possíveis caminhos para a transformação das estruturas tradicionais da
sociedade que mantêm as desigualdades entre os gêneros

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FACEBOOK E HOMOFOBIA: A VIOLÊNCIA COMO


INIBIDORA DA HOMOAFETIVIDADE

Rodrigo Luiz Nery


Especialista em Gênero e Diversidade na Escola
Universidade Federal de Lavras
rodrigoneryprofessor@hotmail.com

A Internet, através das redes sociais, tem sido uma grande disseminadora
de informações, enunciados e opiniões acerca dos mais diversos temas. Através
do Facebook, muitos movimentos debatem e defendem seus ideais, porém, há
inúmeros/as usuários/as que utilizam deste espaço para expressarem suas opini-
ões e semearem discórdias, compartilhando informações de todas as espécies,
e tudo isso de uma forma mais fácil, direta e sem receios de um contato real.
A legislação acerca dos crimes virtuais vêm ganhando destaque, mas, mesmo
assim, o “povo virtual” quer falar, expressar e lutar por suas ideologias.
As temáticas que envolvem os/as LGBTT1 têm ganhado cada vez mais
espaço nas redes sociais e, com isso, são crescentes as discussões acaloradas
entre esse público e aqueles/as mais conservadores/as, que tentam justificar
com inúmeros argumentos o porquê da “não-aceitação” da orientação sexual
que divirja da heterossexual.
A homofobia, no Facebook, é compartilhada, curtida e comentada o
tempo todo. Problematizar o que leva esses sujeitos a incitarem ódio e discrimi-
nação é importante para passarmos a entender o que motiva essa disseminação
de preconceito e, a partir daí, levar às escolas e ambientes de trabalho debates
que façam os/as alunos/as e colaboradores/as a refletirem sobre essas temáticas,
formando cidadãs/ãos que sejam críticos/as e que também possam contribuir
para o combate a esse tipo de intolerância.

1 LGBTT: Sigla para denominar as Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.
Porém, neste trabalho, a problematização será em torno das orientações sexuais, e não em torno das
questões de gênero; sendo assim, essa sigla, durante a leitura, deve ser associada aos gays, lésbicas
e bissexuais.

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É necessário entender o que faz esses sujeitos não aceitarem que a homos-
sexualidade não é uma opção, mas sim uma orientação, da qual o indivíduo
não tem capacidade de escolha, conforme CARRARA et al. (2009, p. 127):
“Muitos cientistas e ativistas não consideram correto, hoje em dia,
referir-se à homossexualidade ou à bissexualidade como ‘opções’,
dado que, em se tratando de escolhas, seria mais fácil ‘optar’ pela
heterossexualidade, que é aceita como ‘normal’, ao invés de ‘optar’
pela homossexualidade, que é discriminada e perseguida. O que se
sabe é que a orientação sexual existe sem que a pessoa tenha con-
trole direto sobre ela. Não se trata, portanto, de algo que se escolhe
voluntariamente ou se modifique segundo as conveniências”.

A maioria dos discursos que violentam verbalmente o público LGBTT é


composta de afirmativas das quais dão a entender que o sujeito “está” homos-
sexual porque quer, e não porque ele assim o “é”. Este texto é parte de um
relato de experiência intitulado “Facebook e Homossexualidade: Enunciados e
Preconceito na Rede Social”, aprovado como trabalho de conclusão de curso na
especialização em “Gênero e Diversidade na Escola”, pela Universidade Federal
de Lavras.

Análise dos discursos homofóbicos:

A crença em que atos de carinho entre pessoas do mesmo sexo devem


ser repudiados faz com que os/as homofóbicos/as defendam a violência contra
os/as homossexuais. Quando um indivíduo sofre violência física (ou verbal),
motivada por homofobia, muitos/as argumentam que este indivíduo fez por
merecer ao se expor em público.
No dia em que a Suprema Corte dos Estados Unidos liberou a união
entre pessoas do mesmo sexo em todo o país, o Facebook criou um aplica-
tivo para “colorir” a foto dos/as usuários/as que apóiam a causa LGBTT. Um
dia depois, o usuário Vagner publicou o seguinte texto: “Quem viu a foto de
Mark Zuckerberg e de outros CEOs, empresas e celebridades no dia de hoje
certamente notou uma diferença: todas elas estão coloridas em celebração à
aprovação do casamento gay nos Estados Unidos. Isso porque, em homenagem
ao dia que marca a decisão da Suprema Corte norte-americana, o Facebook

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criou a página CelebratePride. Com ela, qualquer usuário da rede social pode
manifestar seu apoio ao movimento LGBT e à sua conquista.”
Em seguida, Vagner comenta, em sua própria publicação, uma imagem
com as cores do arco-íris: “O arco-íris nunca representará outra coisa para
minha vida a não ser a aliança de Deus para com o homem, o que passar disso
é o diabo tentando roubar o símbolo que Deus patenteou.” Nessa frase, Vagner
critica a utilização do arco-íris como símbolo dos movimentos LGBTT, visto
que, na Bíblia, há a utilização do arco-íris como a marca de uma aliança de
Deus com o mundo, simbolizando que não ocorreria outro dilúvio no planeta.
A seguir, veremos os enunciados de alguns/as usuários/as da rede social a partir
dessa publicação:
Carla: Fato, nascemos de um fruto conjugal de um homem e de
uma mulher, que denominamos Pai e Mãe, herança de Deus, que
chamamos de família... Nunca pessoas do mesmo sexo serão capa-
zes de se reproduzirem formando a tão sonhada e desejada família...
Vagner: Falou tudo terceira [referindo-se a Carla], não é a toa que
você é sargento!!!! E um dia tbm será primeira como eu, quem sabe
oficial.
Vagner: Sodoma e Gomorra revolta total.
Peter: É o fim dos tempos. E tem gente que apóia essa pouca
vergonha.
Natan: E a ira do Senhor está chegando.
Jairo: Eu sou muito contra! Um dia eu estava em um restaurante,
tinha dois sujeitos, se acariciando, minha filha perguntou pai pq o
senhor está bravo e quer ir embora, eu falei não quero que vc veja
este tipo de abominação. Um deles levanto e pergunto pra mim o
que vc tem contra, eu olhei bem pra ele e falei, tenho uma ponto
40 e dois pentes, e estou louco para usar, quer ser o primeiro [?] ele
olhou bem pra mim e saiu de perto.
Vagner: Eu estou doido para usar meu teyser!!!!
Adilson: Pouca vergonha!!!

A usuária Carla traz sua posição contra a união homoafetiva com o dis-
curso de que seres do mesmo sexo jamais poderão se reproduzir e conclui que
isso faz com que seja impossível formar-se, então, uma família. Vagner elogia a
posição da colega de trabalho (ambos são membros do Exército Brasileiro), enal-
tecendo-a, e em seguida outros enunciados surgem com usuários que também

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não concordam com a união homoafetiva, chamando esse tipo de relaciona-


mento de “pouca vergonha”, insinuando que é o “fim dos tempos”.
Porém, os enunciados mais graves virão a seguir, quando Jairo e Vagner
declaram o ódio e a vontade de usar do poder que possuem, em suas posições
no Exército, para acabar com homossexuais que se assumem e vivem suas
vidas em público. Jairo relata sobre um episódio no restaurante. Jairo ameaçou
utilizar sua arma (instrumento de trabalho) para agredir um casal homoafetivo
por estar trocando carícias no local. Vagner, então, mostra seu desejo em utili-
zar seu “teyser” (escreve-se “taser”), que se trata de uma arma de eletrochoque
utilizada para imobilizar o alvo. O que torna esses comentários mais preocu-
pantes é o fato de serem disseminados por pessoas que trabalham nas Forças
Armadas, que divulgam publicamente seu desejo por violência contra os/as
homossexuais.
De fato, sabemos que as Forças Armadas são extremamente radicais e
avessas à homossexualidade. Inclusive, o Exército é contra o projeto de lei
7582/2014, da deputada Maria do Rosário (PT-RS), que criminaliza crimes de
ódio e intolerância contra minorias e grupos religiosos e migrantes, tendo como
ponto principal a homofobia.
Vale lembrar o caso ocorrido em 2008, quando o militar Laci Marinho
de Araújo assumiu seu relacionamento homoafetivo e foi acusado de deserção
e expulso da corporação. Comprova-se, assim, o quanto é difícil quebrar esse
preconceito dentro das corporações das Forças Armadas.
Vagner é um disseminador de discursos homofóbicos no Facebook. Em
outra postagem, ele critica um caso que gerou uma enorme onda de precon-
ceito, em agosto de 2015: numa foto, publicada no Facebook, um cabo, vestindo
sua farda, beija seu suposto namorado. Vagner fica indignado e publica em seu
perfil um texto homofóbico incitando o ódio e pedindo para que outros mem-
bros do Exército repudiassem o ato: “COMPLETAMENTE INDIGNADO. UM
CABO DO EXERCITO DO O 12º GAC QUE ESTÁ SEDIADO EM JUNDIAÍ (SP)
TIRAR UMA FOTO FARDADO COMETENDO ATO LIBIDINOSO E DEPOIS VAI
DIZER QUE É DIREITO DOS LGBT GLS PARA O INFERNO F.D.P QUER FAZER
SELF SEU VIADO TIRA GLORIOSA FARDA QUE TANTO AMO; E RESPEITO
VAMOS DIVULGAR E BOTAR ESTE VERME NO LUGAR QUE ELE MERECE”
A publicação de Vagner causou tanta polêmica, que está em diversos sites
na Internet. Abaixo, iremos observar os enunciados gerados a partir do compar-
tilhamento desta publicação de Vagner:

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Benício: a vida privada dele ninguém tem que se intrometer, se


ele quiser fazer sexo fardado com outro homem ele pode mas a
questão é: A foto se tornou pública e isso é transgressão disciplinar
e vai contra o regulamento interno do Exército, se ele quer dar uma
de aparecido então que apareça apenas para o namorado dele e
não desrespeite a instituição. Essa fotografia exposta dessa maneira
é passível de expulsão do militar da incorporação, como eu disse, o
Exército não admite o homossexualismo, isso é desde que o Exército
existe e ninguém vai mudar essas leis, então o soldado deveria ter
pensado duas vezes antes de se expor dessa maneira. Eu sou hetero
e não tenho absolutamente nada contra os gays, e assim como eu
respeito minha instituição, ele não é diferente de mim também e
deve respeitá-la. Abraços.
Thaís: Me diga os artigos do regulamento do exército que proíbe
homossexuais e que proíbe demonstração de afeto FORA DO
QUARTEL. Você pelo jeito trabalha lá deve saber mais do que eu.
Difamar e ameaçar os outros que deveria ser passível de expulsão,
mas infelizmente é o comportamento que mais ocorre nas institui-
ções militares e passa pela impunidade.
Dênis: “Exército não admite homossexualismo” – É exatamente por
isso q o pais ñ vai pra frente! Em pleno século XXI ainda ter d depa-
rar c/ esse tipo d ignorância. Desde quando a orientação sexual
d alguém muda caráter? Cada um continua sendo do jeito q é,
e sempre foi. Independente da sua sexualidade!! Tanta coisa mais
importante para se preocupar. Eu sou gay, e ñ tenho absolutamente
nada contra os heteros! Só acho q um pensamento retrógrado, e a
unanimidade?! Se resume em burrice!! #Fato
Benício: Me errem, não vou perder meu tempo discutindo com os
senhores, civis não entenderão o espírito do militarismo. #BRASIL
ACIMA DE TUDO, DE TUDO MESMO. Conversar com gente igno-
rante é dar murros em ponta de faca.
Thaís: Cadê os artigos do regulamento? Seja inteligente e mostre,
já que trabalha lá.
Benício: Não preciso provar nada aos senhores. Passar bem.
Thaís: Como identificar uma pessoa que não sabe debater e apre-
sentar argumentos sólidos? Pelos comentários e pela indisposição
de provar o contrário. Fui.
Benício: Beleza o “intelectual” coisa ridícula, todos aqui estão a
teu favor pois você está numa página de pessoas da sua índole, vai
la no quartel e pergunta pra todos os militares se eles concordam

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com sua opinião, coisa tosca! Para de mimimi, o exército não vai
mudar por causa da lamentação dos senhores então fica com meu
FODA-SE.
Leandra: Tá começando a expor bem os argumentos...
Benício: Leandra,não e darei o prazer da minha resposta porque
quanto mais mexe com bosta mais ela fede kkkkk vocÊ no mínimo
deve ser um lgbt que fica seguindo modinha pra postar foto colo-
rida no face e se passar por vítima dizendo que a sociedade é
homofóbica. Dá até preguiça de comentar essa pag ekkkkkkk vai
catar coquinho minha filha, pra ser educado.
Leandra: Verdade. Quanto mais pedimos pra nos mostrar o artigo
que mostra onde está que ele não pode beijar quem ele quiser
fora do local de trabalho é desrespeito ao exército mais revoltadi-
nho você fica. Não sigo modinha alguma, luto pela minha causa
e pode ter certeza que tenho muito mais caráter que pessoas que
enxem a boca pra falar de Deus, mas não faz nada para demonstrar
amo ao próximo. Nunca me fiz de vítima para nada e você não
me conhece. Não sabe nada de minha vida. Então defenda seus
princípios com seus argumentos embasados porque quando você
faz comentários como acima fica parecendo aqueles moleques que
não tem o que dizer e começa procurar coisas pessoais pra atacar.
Pra ser educada contigo, vai estudar pra ver se expande essa mente
pequenina que você carrega.

Percebemos que os enunciados acima giraram em torno de Dênis, Thaís e


Leandra contra Benício. Este não tem argumentos para responder as indagações
a ele impostas, e parte para violência verbal, inferiorizando os três comenta-
ristas por serem homossexuais/simpatizantes da causa LGBTT. Em momento
algum, Benício comprovou em qual regulamento está clara a afirmativa que fez
no seu primeiro comentário sobre a proibição de um militar manifestar publica-
mente sua orientação sexual. Mesmo que existisse alguma coisa subentendida
a respeito disso, fica evidente que Benício não a conhece, ele segue um dis-
curso que, certamente, é disseminado nas instituições militares, comprovando
o quanto estes/as servidores da pátria, em sua maioria, são preconceituosos/as
e agressivos/as a tudo que é contrário a heteronormatividade.
Segundo BORGES e MEYER (2008, p.60), cerca de 150 pessoas morrem
por ano no Brasil em decorrência da violência por discriminação sexual, e o país
é o campeão de crimes contra sexualidades consideradas não-hegemônicas,

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já que se comprovou que a cada três dias ocorre um assassinato. Essa esta-
tística não é só acerca de assassinatos contra homossexuais, mas a qualquer
crime motivado por considerar alguém inferior, contrário ou anormal diante do
que o/a assassino/a considera como padrão, e concluem que “comportamentos
homofóbicos variam desde a violência física da agressão e do assassinato até a
violência simbólica, em que alguém considera lícito afirmar que não gostaria de
ter um colega ou um aluno homossexual”.
As redes sociais estão impregnadas de publicações e enunciados que ins-
tigam a violência contra os/as homossexuais, a maioria delas insinuando que
seria uma forma eficaz de “endireitar” o indivíduo, tornando-o heterossexual
à força; outros acreditando que se o indivíduo deseja viver sua homossexuali-
dade, este deve vivê-la de forma privada, às escondidas, sendo merecedor/a de
ataques físicos e verbais caso ultrapasse as paredes de sua casa para vivenciá-la
em um ambiente público, como já exposto em um dos comentários analisados.
Evidencia-se a necessidade de medidas protetoras e de políticas públicas que
defendam os Direitos Humanos, evitando violências, cada vez mais frequentes,
e propiciando mais liberdade às/aos LGBTT, sem que estes/as vivam sob a pre-
dominância da insegurança.
O Facebook possui uma ferramenta para denunciar qualquer publicação
considerada ofensiva, e funciona com muita precisão. Cabe a nós, enquanto
humanos/as e educadores/as, lutar por uma sociedade em que todos/as possam
amar e se respeitarem pelo que são enquanto participantes ativos desta comu-
nidade, e não pelos papéis exercidos em suas intimidades, num contexto sexual.

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Referências

BORGES, Zulmira Newlands; MEYER, Dagmar Estermann. Limites e Possibilidades


de uma Ação Educativa na Redução da Vulnerabilidade à Violência e à Homofobia.
Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas Educacionais. Rio de Janeiro, v. 16, nº 58, p.
59-76, janeiro/março, 2008.

CARRARA, S. L. (Org.); HEILBORN, Maria Luiza (Org.); ARAÚJO, L. (Org.); ROHDEN,


Fabíola (Org.); BARRETO, A. (Org.). Gênero e Diversidade na Escola - Formação de
Professoras/es em Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais.
Rio de Janeiro; Brasília: CEPESC; Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2009.

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“SEM DÚVIDAS ESSE TRABALHO DEIXOU MARCAS”:


ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO E SUAS VIVÊNCIAS NA
SEMANA DE COMBATE À LGBTTIFOBIA

Rosalinda Carneiro de Oliveira Ritti


Doutora em Educação
Universidade Federal de Juiz de Fora
rosaritti@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e formação docente

Resumo

Este texto objetiva relatar a experiência de um trabalho realizado durante a


Semana de Combate à LGBTTIfobia (16 a 20 de maio) a partir das aulas de
Filosofia para o Ensino Médio em uma escola pública federal de Juiz de Fora. As
atividades do trabalho contaram com o protagonismo dos/as estudantes tanto
nas propostas quanto na execução. Foram realizadas em quatro dias da semana
e depois tiveram avaliação através de debate e escrita individual. As avaliações
indicam a satisfação da turma com a realização do trabalho e trazem refle-
xões bastante significativas com relação às experiências vivenciadas, como, por
exemplo, a importância das discussões sobre o tema no âmbito escolar.
Palavras-chave: LGBTTIfobia. Semana de Combate à LGBTTIfobia. Experiência.
Escola. Educação.

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Como professora de Filosofia em uma escola pública na cidade de


Juiz de Fora e envolvida nas discussões de relações de gênero e sexualida-
des no Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e
Diversidade (GESED), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), trago o
compromisso de constantemente inserir tais discussões em minhas aulas. Neste
ano (2016), por ocasião da Semana de Combate à LGBTTIfobia (de 16 a 20
de maio), momento em que o GESED programava intervenções no âmbito da
UFJF visando à sensibilização e problematização do tema junto à comunidade
acadêmica, decidi estender a ação para a escola em que atuo como professora.
Inicialmente, pensava em algo que abrangesse a escola toda, envolvendo todos
os segmentos de ensino1. No entanto, dificuldades iniciais como o pouco tempo
para mobilização de colegas e, até mesmo, a percepção de certo desinteresse
por parte de algumas pessoas com as quais procurei iniciar a proposta, fize-
ram-me repensar e, assim, direcionar as ações para um âmbito menor. Dessa
maneira, contando com o apoio da Coordenação do Ensino Médio e de colegas
que atuam nas disciplinas de História e Sociologia, desenvolvemos alguns deba-
tes em nossas aulas. No presente relato, no entanto, foco no trabalho realizado
em uma turma de segundo ano do Ensino Médio, na disciplina de Filosofia, cuja
orientação ficou sob minha responsabilidade, mas que contou com um grande
protagonismo dos/as estudantes, tanto na idealização das atividades quanto na
execução das mesmas. Esta turma foi escolhida entre as cinco nas quais leciono
(três de segunda série e duas de primeira) porque possui um grupo de estu-
dantes bastante interessados e participativos, destacando-se das demais nesse
sentido, condição que me inspirou confiança na realização das atividades.

A proposta, o trabalho

A proposta do trabalho surgiu após uma aula em que me dediquei às


discussões que ressaltam os aspectos construcionistas e diversos das sexuali-
dades, trazendo reflexões acerca da necessidade do respeito às diferenças e
do reconhecimento dos direitos de todas as pessoas, independentemente de
suas orientações sexuais e identidades de gênero. As atividades do trabalho

1 A escola conta com o primeiro e o segundo segmentos do Ensino Fundamental (1º ao 5º e 6º ao 9º


anos), o Ensino Médio e a Educação de Jovens e Adultos, ocupando os três turnos.

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deveriam envolver pesquisas sobre os temas em sites confiáveis e precisaria tra-


zer propostas de intervenções na escola no decorrer da Semana em que alguns
segmentos da sociedade lutavam contra a LGBTTIfobia. Sugeri, ainda, que tal
atividade pudesse ser parte das avaliações que comporiam a nota trimestral
dos/as estudantes, o que aconteceria através de um processo de autoavalia-
ção. A turma se entusiasmou de imediato. Dos/as 26 estudantes, 22 acataram
a proposta. Os demais alegaram problemas diversos para cumprimento das
tarefas (tempo, saúde e transferência de escola). Sugeri intervenções artísticas,
cinema e confecções de cartazes como exemplos, mas deixei em aberto para
que a turma desenvolvesse as propostas, oferecendo-me para orientação das
mesmas e enfatizando o protagonismo da turma que deveria trazer e executar
as ideias buscando todos os recursos necessários para seu desenvolvimento. E
assim aconteceu. Em poucos dias os/as estudantes se ocuparam das pesquisas,
discutiram as ideias em momentos que extrapolavam os horários das aulas,
buscaram os recursos e fizeram suas propostas. Assim tivemos:
1. Confecção de cartazes que foram espalhados por toda a escola
(segunda e terça-feiras): Os cartazes foram confeccionados em carto-
linas coloridas contendo frases com questionamentos e provocações
diversas, além de propagar a semana de combate à LGBTTIfobia. Para
a confecção dos cartazes os/as estudantes utilizaram o turno inverso
ao de suas aulas, além do espaço de uma aula de Filosofia e uma de
Sociologia que, no caso, foi solicitada à professora.
2. “Você sabia?” (quarta-feira): Os/as estudantes colocaram frases
complementando a pergunta: “Você sabia?” em folhas de papel no
formato A4 e, através de um barbante penduraram no pescoço. As
frases faziam menção à violência sofrida em função da LGBTTIfobia,
apontavam gestos discriminatórios, exemplificavam atitudes precon-
ceituosas, desconstruíam imagens. Os/as estudantes circularam assim
pela escola, sentindo a curiosidade das pessoas que às vezes faziam
alguma pergunta as quais procuravam responder.
3. Dia temático “Nem homem, nem mulher” (quinta-feira): Chegaram à
escola e mudaram a roupa misturando os figurinos masculinos e femi-
ninos. Tomaram o cuidado de não reforçar estereótipos, criando, assim,
visuais diversos que ao embaraçar os gêneros, provocavam olhares
curiosos e espantados. Nesse dia também distribuíram panfletos que

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levei da campanha feita pelo GESED na UFJF, contendo fotos e infor-


mações sobre a diversidade sexual e de gênero.2
4. Desenho com giz de corpos pelo chão representando a violência con-
tra pessoas LGBTTI. Essa atividade não foi executada porque, deixada
para o último dia (sexta-feira), contou com o desânimo da turma, que
se sentiu desprestigiada pela escola em seu movimento.
A primeira aula de Filosofia que se seguiu aos eventos foi dedicada a
uma avaliação das atividades da semana produzida pelas/os estudantes. Foi um
momento em que cada um registrou suas impressões e trouxe seus sentimentos
com relação à experiência vivenciada. Em outra aula, produziram a autoavalia-
ção orientada por algumas questões propostas por mim (disponibilidade para
pesquisa do tema; disponibilidade para os encontros e preparação das tarefas;
esforço para reflexão sobre o tema; o que ficou/marcou do/no trabalho). Dessas
duas aulas ficaram registradas, em áudio e texto escrito, respectivamente, as
falas que trago a seguir.

O que ficou/marcou?

Esta foi uma pergunta feita na autoavaliação, mas que, de certa forma,
apareceu também na conversa que tivemos para a avaliação das atividades
desenvolvidas. Nenhum/a estudante deixou de expressar algo nesse sentido e,
como pontos que marcaram a importância do trabalho, aparecem a possibili-
dade de construírem conhecimentos, de refletirem sobre o tema e de estenderem
a discussão para além da escola.
“Aprendi muito com esse trabalho, aprendi muito além de uma
matéria da escola, realmente foi um aprendizado que foi muito além
dos muros do colégio. Aprendi pra vida o respeito ao próximo.”.
“Comecei a refletir muito mais depois das intervenções e comparti-
lhei alguns sentimentos com pessoas próximas.”.
“Problematizei, conversei sobre o tema em casa, com meus pais,
que também é primordial o conhecimento e um nível de respeito
que é digno dos LGBTTI da parte deles.”.

2 Na foto: estudantes que aparecem com tarja no rosto não apresentaram autorização de responsáveis
para publicação de fotos. Por esse motivo têm suas identidades preservadas.

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Importante também foi perceberem o que pessoas LGBTTI passam por


serem diferentes do que a sociedade autoriza ou espera delas. Destaco, nesse
momento, a possibilidade te terem vivenciado situações em que puderam “sen-
tir na pele” o preconceito e o desprezo.
“Aprendi coisas que nem imaginava. Tentei me sentir do mesmo
jeito que os que sofrem com a LGBTTIfobia, porém acho que isso
é muito difícil”.
“O garoto passou por mim e disse: ‘É lésbica, é?’. E eu pensei: ‘Deve
ser horrível viver isso todo dia! Desprezo, preconceito...’”.
“O trabalho fez com que os alunos se colocassem no lugar dos
LGBTTI, que sofrem, sim, com preconceitos e discriminações”.

Em suas falas e escritas, os/as estudantes trazem a vontade de mudar,


olhando com outros olhos e mudando suas atitudes. Muitos/as já assumem tal
mudança.
“O que ficou? Mais respeito à diversidade, aos LGBTTI.”.
“Aprendi a realmente tentar medir a minha fala, temos que respei-
tar, independente do gênero.”.
“Bom, para mim, foi um trabalho muito produtivo para o meu
mundo e o mundo externo. Acredito que refletir e ver meus cole-
gas refletindo (fazendo-me questionar) me fez bem e, com certeza,
mudou muita coisa.”.
“Me fez refletir muito sobre muitas coisas que eu achava que eram
bobas, e não tinha noção de que eram imensas.”.
“Quero acabar com meus próprios preconceitos.”.

As atividades desenvolvidas propiciaram às/aos estudantes o contato


não só com suas próprias concepções, suas ignorâncias e preconceitos, como
também com concepções, ignorâncias e preconceitos alheios. Ao misturarem
os gêneros nas vestimentas, ao distribuírem panfletos e colarem cartazes pela
escola, o olhar e a fala do outro trouxeram desconforto, espanto e até mesmo
indignação. Refletiram sobre as reações das pessoas e puderam perceber a gra-
vidade desse tipo de discriminação.
“A gente tava panfletando e vendo as pessoas rasgarem o papel.
Tipo assim: Ah! Por que vocês tão fazendo isso? Tá feio!”.

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“A gente foi colar os cartazes e certa pessoa achou que não pre-
cisava e falou: ‘Nossa! A aula de vocês é isso?’ Tipo: Ah! Essa é
uma questão que não importa! O que importa é Física, Química,
Matemática... isso importa. Mas você falar de homofobia... a maio-
ria das pessoas não se importa!”.
“Você tá fantasiada de que? De sapatão?”.
“Pude ver que em um colégio com uma diversidade enorme de
pessoas e pensamentos, ainda existem muitos pensamentos homo-
fóbicos, ofensivos e invasivos. Para mim foi o que mais me marcou
é de que maneira esse assunto é tratado pelos professores e alunos.
Talvez por ser minoria? Ou por não ser meu problema? De tanto
não ser ´meu problema’ as pessoas se tornam ignorantes.”.
“Percebi que falar de LGBTTIfobia é um tabu. Pessoas quando
percebem que o movimento é sobre isso, se retraem. Acho que o
preconceito está mais presente do que pensávamos”.
“Mesmo com tantas discussões atualmente, pude perceber quanta
ignorância e intolerância existe por aí.”.

Nesse sentido, aparece a decepção dos/as estudantes por não se sentirem


apoiados pela escola. Eles/as esperavam algum envolvimento por parte de seus/
suas professores/as. Foram unânimes ao afirmar que se sentiram muito solitá-
rios/as em suas ações.
“Fiquei um pouco decepcionada com a atitude dos professores que
não deram importância e não apoiaram como eu achei que iria ser,
mas mesmo assim, valeu a pena”.
“Esperava mais participação dos professores”.
“Fiquei chateada com o pouco apoio da instituição.”
“Foi uma coisa feita pelos cantos. Parecia que era só do 2B e acho
que todo mundo tinha que querer se envolver.”.

Ao mesmo tempo, consideraram que o trabalho possibilitou o incômodo e


provocou um pensamento sobre o tema, além de terem percebido que algumas
pessoas se sentiram contempladas com as atividades realizadas.
“Acho que ficou uma boa ideia da mensagem que queríamos pas-
sar. Talvez tenhamos conseguido mudar a opinião de bastantes
pessoas, ou, no mínimo, incomodá-las e mostrar que há outras for-
mas de olhar para os LGBTTI.”.

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“No nosso colégio, pessoas se sentiram mais livres...”.

“Eu acho que conseguimos dar um certo impacto, mesmo eu vendo


que as pessoas, no geral, nos olharam de um jeito de desprezo e
achando que não tínhamos motivos para protestar.”.
“Cara! Se uma pessoa conseguiu se sentir mais feliz nessa semana
porque alguém deu importância ao que ela é... Pô! Valeu, cara!”

De tudo isso, ficou a vontade de continuar, entrar na luta, fazer algo para
mudar o que entenderam como realidade das pessoas LGBTTI e ver o tema
sendo tratado na escola.
“Eu espero que esse trabalho não acabe aqui. Espero que a gente
fale mais, informe mais, faça mais...”.
“Desse trabalho ficou o espírito de acabar com a homofobia, o
espírito de luta”.
“Precisamos falar mais da LGBTTIfobia e esse trabalho, pra mim, foi
uma inspiração para estudar e entender muito mais o assunto, além
de lutar contra a homofobia.”.
“Sentia além do desprezo, um pouco de falta de informação. Por isso
acho que a escola tinha que trabalhar desde o Ensino Fundamental,
falar mais do preconceito, da LGBTTIfobia...”.

Considerações finais

A experiência desse trabalho foi muito gratificante para mim. Percebi tam-
bém o quanto se trata de uma luta importante que precisa ser cada vez mais
assumida por nós, educadoras e educadores. Primeiro porque o preconceito e
a desinformação ainda são muito arraigados em nossa cultura e precisam ser
enfrentados intensamente. Segundo porque pequenas ações, como julgo terem
sido as propostas realizadas pelo trabalho em questão, têm potencial para trans-
formações que possam ser bastante significativas.
Como maior dificuldade apontada pelos/as estudantes, fica o não envolvi-
mento de outros/as professores/as nas atividades, embora eu tenha esclarecido
que se tratava de uma proposta particular de minha parte e não tenha solicitado
nenhuma parceria nesse sentido. Mesmo assim, eles/as esperavam mais parti-
cipação ou pelo menos comentários de incentivo, que também dizem não ter
acontecido. Este foi o motivo para que não realizassem o que programaram

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para o último dia da semana. Ainda quanto às dificuldades, apontaram também


o pouco tempo para a realização das atividades além da observação de que,
mesmo entre eles/as algumas ações ainda precisam se concretizar no cotidiano,
citando como exemplo piadinhas constantes direcionadas por alguns colegas a
uma pessoa que está assumindo sua orientação sexual em sala de aula.
Lembro que esse trabalho não foi imposto à turma, mas proposto. Proposta
que contou com a adesão de 22 estudantes em uma turma de 26, mesmo que
tal adesão tenha, a princípio, trazido alguma dificuldade: “Adorei participar das
intervenções. Sair pelos corredores, na minha opinião, foi uma decisão difícil
porque todos vão te julgar, porém, quando decidi ir, tomei a melhor decisão
de não me importar com a opinião malvada e preconceituosa”. A proposta
sugeria pesquisas e ações que foram feitas com seriedade e prazer: “foi um
prazer pesquisar, não um fardo”. Ao observá-las/los em nosso debate, pude
perceber as expressões de indignação, de espanto e também de felicidade pelas
experiências vivenciadas. Senti o quanto queriam falar do que sentiram e o
quanto ficaram tocados, reconhecendo que eu também passei por momentos
como os deles/as e entendendo que não é fácil implementar atividades assim
no ambiente escolar: “Gostaria de parabenizar a professora, pois teve pulso
para fazer esse trabalho e, assim como os alunos, também ouviu comentários
(positivos e negativos)”.
Finalizo esse relato dizendo do meu prazer em ter vivenciado esses
momentos e da minha vontade em permanecer na luta. Trabalhar as questões
de gêneros e sexualidades na educação de nossos jovens e de nossas crianças
é algo que não se pode deixar para amanhã. Formar docentes que se incluam
nessa luta é de fundamental importância para a construção de uma sociedade
em que todas as pessoas possam existir.

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PLEGARIA ROSA LGBTI EL SALVADOR: RECUPERANDO LA


DIGNIDAD HUMANA A TRAVÉS DEL DUELO

Amaral Palevi Gómez Arévalo


Doctor en Estudios Internacionales en Paz, Conflicto y Desarrollo
Rede O Istmo
amaral.palevi@gmail.com

GT 02 - Ativismos e os movimentos sociais

Padre Santo también te pedimos por todos nuestros hermanos y


hermanas que ya partieron por la injusticia, por el odio y por la
discriminación…

V Plegaria Rosa LGBTI 2016

A manera de introducción

Todos los años en El Salvador son asesinadas lesbianas, gay, bisexuales,


personas trans e intersexuales (LGBTI) con un alto conato de violencia y tor-
tura (Mendizábal, 2015; Linares, 2014). Estos hechos son desapercibidos por la
mayor parte de la población. Por una parte, los altos índices de violencia que
experimenta El Salvador encubren estos crímenes de odio fundamentados en la
orientación sexual y expresión de género de sus víctimas. Ya que en la mayoría
de veces, parafraseando las palabras de Judith Butler (2010), las vidas de perso-
nas LGBTI al interior de El Salvador, no son suficientemente vidas dignas de ser
reconocidas y menos aún lloradas en un duelo.
Ante la situación anterior la Asociación Salvadoreña de Derechos
Humanos “Entre Amigos”, primera organización que defiende los derechos
humanos de personas gay, lesbianas, bisexuales y trans desde 1994, promueve
como parte de sus acciones de visibilidad y de incidencia política actividades
para recordar a las personas LGBTI muertas por crímenes de odio. La primera

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actividad de este tipo se registra en 1995 y consistió en la colocación de velas


en la Plaza Morazán para recordar a un grupo de travestis asesinadas en el
contexto de la guerra. En 1998 en la realización de la segunda Marcha del
Orgullo Gay-Lésbico se colocaron velas para denunciar los crímenes de tra-
vestis y homosexuales que incrementaron entre la realización de la primera
y segunda marcha (AP ARCHIVE, 1998). Así también se recuerda la misa de
acción de gracias que se realizó en 2003 en el marco de la Marcha del Orgullo
Gay (Comisión Internacional de Derechos Humanos para Gays y Lesbianas,
2004).
El objetivo de este relato de experiencia es realizar un proceso de siste-
matización y análisis inicial de las Plegarias Rosa LGBTI realizadas entre 2012 a
2016, destacando que dicha actividad ejecuta tanto una gestión política de la
perdida y de la violencia homofóbica como también fomenta un espacio para
que parejas, madres y amigos de víctimas de crímenes de odio por orientación
sexual y expresión de género dispongan de un momento para recordar la vida
de personas LGBTI asesinadas.

Surgimiento

Como se comentó anteriormente, ofrecer un espacio de duelo ha sido


parte de las acciones que ha promovido “Entre Amigos” desde el surgimiento
de la asociación. No obstante, la primera Plegaria Rosa no se convoca desde
esta perspectiva tradicional católico.
El 18 de mayo de 2012, el Sistema de las Naciones Unidas en El Salvador
y UN-Globe (iniciativa mundial de funcionarias y funcionarios de Naciones
Unidas en apoyo a la comunidad LGBT), en el marco de la conmemoración del
Día Internacional contra la Homofobia y la Transfobia realizan un Cine Fórum
de la película Plegarias por Bobby (Prayers for Bobby) en el auditorio del Museo
Nacional de Antropología “Dr. David J. Guzmán – MUNA.
Inspirados por la temática de la película y con el objetivo de recordar a
personas LGBTI asesinadas por medio de un acto político a través del duelo,
“Entre Amigos” promueve la primera Plegaria Rosa, como un acto de duelo
público y colectivo para demandar de forma pacífica al Estado Salvadoreño
una respuesta pronta y efectiva contra los crímenes de odio que padecen las
personas LGBTI.

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Descripción

La primera Plegaria Rosa se realiza el día 23 de junio de 2012. Por parte


de “Entre Amigos” nombró esta actividad como Acto Ecuménico para conme-
morar a las víctimas producto de los crímenes de odio. Para su organización
se reconoce la colaboración del Comité 28 de Junio (el cual se encargaba de
organizar las actividades de junio diverso) y posiblemente un patrocinio del
American Jewish World Service. El acto consistió en colocar veladoras de colores
sobre una manta blanca formando la palabra LGBTI. El lugar de realización fue
la Plaza de El Salvador del Mundo. Se realizó un performance de dos hombres
y una mujer trans asesinados, a los cuales les rodeaba una cinta amarilla, siendo
la representación de una acción pericial de la policía ante una escena de homi-
cidio. Se realizó una lectura de versículos de la Biblia, existiendo representantes
religiosos, entre los cuales uno manifestó que “Dios es también diversidad”. Una
madre realiza una invocación por el asesinato de las diferentes personas LGBTI
y acto siguiente enciende la primera veladora, luego todos los participantes
colaboran en encender las demás. Se colocan mensajes escritos con nombre de
las personas LGBTI asesinadas sobre la manta blanca.
En el año 2013 esta acción adquiere el nombre de Plegaria Rosa LGBTI
El Salvador. Se realizó el 22 de junio de 2013, en la Plaza de El Salvador del
Mundo. En ese año se inaugura la colocación de un lema identificativo para
cada año. En esta oportunidad el lema fue: Una vela de Esperanza. En una mesa
cubierta por banderas del arcoíris se colocaron veladoras blancas. La Iglesia
Evangélica Protestante de El Salvador (IEPES) tuvo una participación muy visible
en esta actividad. La mayoría de participantes vestían camisetas negras alusivas.
Sobre la plaza se colocó un banner de fondo blanco con el mapa de El Salvador
rellenado con los colores de la bandera del arcoíris y adentro de aquel la sigla
LGBTI elaborada por medio de fotografías de personas. Ordenadamente cada
uno de los participantes colaboró en colocar y encender las veladoras blancas
alrededor del mapa de El Salvador. Cuando se finalizó de rodear el mapa de
veladoras, dos madres recordaron sus hijos, un momento muy emotivo para
todos los asistentes. Para el cierre se realizó una oración colectiva en la cual
los participantes se tomaron de las manos para recordar a las personas LGBTI
asesinadas.
La Tercera Plegaria Rosa LGBTI se realizó el 14 de junio de 2014, en la
Plaza de El Salvador del Mundo. El lema de ese año fue: En memoria de las

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víctimas por crímenes de odio. Varias personas ondean banderas del arcoíris
alrededor de la Plaza. Se colocó un banner en la Plaza con el logotipo diseñado
para ese año que fueron tres velas de contorno blanco sobre un fondo rosado,
y sobre ellas se colocaron veladoras blancas. A la par de este banner se colocó
otro con diferentes fotografías de personas LGBTI muertas en El Salvador. Luego
de las palabras de los líderes religiosos, entre las cuales resonó en muchas
ocasiones la palabra “impunidad”, se procedió a encender las veladoras. Para
finalizar se realizó una liberación de globos en la plaza.
Esta Tercera Plegaria profundiza en su sentido político, ya que se emite un
comunicado. Entre las demandas se pueden nombrar (Asociación Salvadoreña
de Derechos Humanos “Entre Amigos”, 2014):

1. Creación de políticas públicas que brinden y garanticen la seguridad


en el cumplimiento de los derechos humanos de las personas que for-
man parte de la Diversidad Sexual.
2. Capacitación y sensibilización hacia los funcionarios de las entidades
de seguridad pública sobre temáticas de Diversidad Sexual.
3. Colocar un alto a la impunidad de los crímenes de odio de personas
LGBTI.
4. Creación de una Ley de Identidad y/o Expresión de Género.
5. Creación de una Ley de No Discriminación por Orientación Sexual,
Identidad y/o Expresión de Género.

La cuarta Plegaria Rosa LGBTI se realizó el 20 de junio de 2015, en la Plaza


de El Salvador del Mundo. El lema de ese año fue: Porque mientras los Crímenes
de Odio sigan impunes, no habrá Justicia en El Salvador. El equipo organiza-
dor portaba camisetas blancas con el lema Dignidad para Todos y Todas, en
la parte frontal. El acto tuvo modificaciones respecto a los años anteriores. La
primera de ellas fue que los banners identificativos se colocaron verticalmente y
las veladoras blancas tradicionalmente utilizadas dieron paso a velas de colores
tipo cirios. También en esta oportunidad se colocó un énfasis especial en recor-
dar a activistas LGBTI muertos en el último año. Se realizaron unas palabras
alusivas por parte del sector religioso que se hizo presente. Dos madres repre-
sentando a familiares de personas LGBTI asesinadas estuvieron presentes. A
cada uno de los participantes se les entregó una vela, al encenderlas se solicitó

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levantarlas en alto, representando una plegaria de justicia para que las muertes
de todas las personas LGBTI no continúen impunes.
La Quinta Plegaria Rosa LGBTI se realizó en la Plaza de El Salvador del
Mundo, el 18 de junio de 2016. En está ocasión se aprovechó la actividad para
hacer un homenaje a las personas muertas en Orlando (EE. UU.), aparte de
recordar y denunciar las muertes de personas LGBTI en El Salvador. El lema prin-
cipal de la actividad estuvo representado por el hashtag #EsteEsNuestoFuturo,
el cual marcó las actividades políticas de diversidad sexual entre mayo y junio
de 2016. Este hashtag se originó por la prohibición de una campaña publicitaria
de una compañía telefónica que apelaba a las diferencias como una condición
de los seres humanos. El movimiento de diversidad sexual se apropió de ese
mensaje.Como lema secundario se utilizó una frase de Eduardo Galeano: Los
muros de la desigualdad están empezando a desmoronarse. Esta afirmación,
nace del coraje de ser diferente.
Existieron nuevos elementos simbólicos que se incorporaron a la activi-
dad entre los que destacaron fue la colocación de cruces blancas con manchas
rojas alrededor de la plaza, la colocación de una rainbow flag sobre el césped
y la utilización de farolitos1 para proteger las velas. Como en otros años, una
madre en representación de familiares de personas muertas dio su testimonio,
en su discurso manifestó que: “La violencia me quitó un hijo, pero me quedaron
todos ustedes”. Se realizó una plegaria en nombre de las personas fallecidas. Un
representan religioso dio su mensaje. Un coro ejecutó varias piezas musicales.
Las velas se encendieron y los presentes rodearon la bandera del arcoíris, levan-
tando sus velas y las cruces manchadas de sangre.

Reflexión

Un primero punto, que esta actividad resalta es la realización de un acto


ecuménico con diversos representantes de la iglesia anglicana. Tradicionalmente
se tiene una perspectiva de desconexión entre los sectores religiosos y temas de
diversidad sexual. La presencia y el oficio ministerial que estos representantes
realizan al interior de la actividad, rompe este estereotipo de separación.

1 Los farolitos son cubiertas elaboradas con papel celofán. Son representativos de la fiesta católica del
7 de septiembre que se realizan en las ciudades de Ahuachapán y Ataco en el occidente del país.

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En segundo lugar, se debe mencionar el importante espacio creado por


medio de la Plegaria Rosa, para que familiares de personas LGBTI asesinadas
por crímenes de odio tenga un espacio tanto individual y colectivo para devol-
ver la dignidad humana a sus familiares asesinados. No obstante, destaca la
participación de madres en este acto de luto, lo cual conlleva a sugerir que el
duelo por la muerte de personas LGBTI tiene género, y en este caso es feme-
nino. Así surgen las preguntas ¿Dónde están los padres? ¿Cuál es el luto que los
hombres realizan?
Respecto a los activistas y otras personas LGBTI presentes en la actividad,
más que ser una acción de trabajo, ya que algunos están al interior del equipo
organizador, igual que las madres presentes, para ellos y ellas se vuelve tam-
bién un espacio de luto para recuperar la dignidad humana de sus amistades
asesinadas.
En tercer lugar, la Plegaria Rosa se transforma en un espacio de memoria
colectiva para la comunidad de diversidad sexual en El Salvador. Planificado o
no, en la Plegaria Rosa se realiza un proceso de remembranza de las personas
LGBTI asesinadas, y por medio de este acto el olvido de sus vidas, sus cuerpos
e ideales no se realizan. En cuarto lugar, la Plegaria Rosa es un espacio para la
lucha política y reivindicación de ciudadanía por medio de la realización de un
duelo público y colectivo, que adquiere un sentido de protesta pacífica ante el
Estado.
Quiero resaltar el lugar simbólico de realización de este acto: El Salvador
del Mundo. La Plaza de El Salvador del Mundo es el ícono por antonoma-
sia que representa al sujeto salvadoreño (LÓPEZ, 2011). La realización de la
Plegaria en esta plaza acciona a nivel simbólico que todo el país se encuentra
en luto por estas vidas LGBTI que fueron muertas por crímenes de odio. Así, la
Plegaria Rosa promueve un mecanismo de denuncia ante la violencia de Estado
representada por sus omisiones al mantener en la impunidad los crímenes de
personas LGBTI cometidos por su orientación sexual, identidad y/o expresión
de género.
La Plegaria Rosa divisa recuperar y reconstruir la Dignidad Humana de las
personas LGBTI asesinadas por crímenes de odio, por medio de la realización
de un duelo público y colectivo mostrando que las personas LGBTI son vidas
tan dignas como cualquier otra que merecen ser recordadas en un duelo. Al
mismo tiempo se promover una gestión política de la violencia asesina homo-
-lesbo-bi-transfóbica que se experimenta en el país.

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Para finalizar es necesario hablar sobre los retos de la Plegaria Rosa al


interior de El Salvador. En primer momento, el cómo masificar la participa-
ción a esta actividad, para que se vuelva igual de importante que la Marcha
por la Diversidad Sexual que reúne entre 6,000 a 7,000 personas. Retomando
palabras de Butler (2006), considero relevante reflexionar: ¿Cómo fortalecer la
diversidad sexual en El Salvador como una comunidad política por medio de la
realización del duelo al interior de la Plegaria Rosa LGBTI?

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Referencias

AP ARCHIVE. El Salvador: Gay protesters demand right to pólice protection. 1998.


Disponible en: http://www.aparchive.com/metadata/youtube/fd7561369dd34996b-
36d83925a704ecc Acceso en: 19 de Jun. 2016.

ASOCIACIÓN SALVADOREÑA DE DERECHOS HUMANOS “ENTRE AMIGOS”.


Comunicado Tercera Plegaria Rosa. San Salvador: Asociación “Entre Amigos”, 2014.

BUTLER, Judith. Vida precaria: El poder del duelo y la violencia. Buenos Aires:
Paidós, 2006.

______. Marcos de Guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós, 2010.

Comisión Internacional de Derechos Humanos para Gays y Lesbianas (IGLHRC).


Resumen GLTBI América Latina y el Caribe 2003. New York: IGLHRC, 2004.

LINARES, Mónica. Informe de El Salvador sobre Derechos Humanos de las Personas


Trans. San Salvador: Asociación Solidaria para Impulsar el Desarrollo Humano, 2014.

LÓPEZ, Carlos. Mármoles, clarines y bronces. Fiestas cívico-religiosas en El Salvador,


siglos XIX y XX. Soyapango: Editorial Universidad Don Bosco, 2011.

MENDIZÁBAL, Modesto. Informe sobre la situación de los Derechos Humanos de


las mujeres trans en El Salvador. San Salvador: Procuraduría para la Defensa de los
Derechos Humanos, 2015.

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VIOLÊNCIA DE GÊNERO E MAPEAMENTO DA LGBTFOBIA


EM TERRITÓRIO NACIONAL: “TEM LOCAL”,
UMA PLATAFORMA COLABORATIVA COMO UM
RETRATO DO PROBLEMA NO BRASIL

Antonio Carlos Pinto da Fonseca Junior


Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e
Propaganda
UNITAU – Universidade de Taubaté - SP
tenholocal@gmail.com

GT 02 - Ativismos e Movimentos Sociais

A violência de gênero foca a performance das pessoas sob a identidade e


orientação sexual. Pessoas cis têm o sexo atribuído como natural, condizente à
identidade, sofrendo tipos de agressão enquanto se apresentam como homem
ou mulher atrelados à sua orientação sexual. Pessoas trans, que não adequam
o sexo atribuído naturalmente à sua identidade sofrem agressões sendo homem
ou mulher trans. Fora da divisão homem X mulher, pessoas que se identifi-
cam não-binárias são vítimas em outra esfera. Assim não podemos retratar a
violência à comunidade LGBT simplesmente como homofobia. Para que se
possam criar ações de enfrentamento, assim como reconhecer cada perfor-
mance de gênero é preciso identificar o que as faz distintas como o que as
faz semelhantes. Ao criar uma sigla que represente o máximo da sexualidade
não-heterossexual em identificações contemporâneas, coloca-se, muitas vezes,
anseios de cada grupo apagados por alguma identidade. LGBT - Lésbicas, Gays,
Bissexuais e Transexuais - e também completada com IQA+ - Intersexuais,
Queer (ou não-binários), Assexuais - e o símbolo de “+”, indicando que outras
identificações irão surgir ou sair da invisibilidade, confirmam a dinâmica sexual
humana, como mostra a Escala de Sexualidade de Alfred Kinsey (1948) e Escala
de Orientação Sexual de Henry Benjamim (1960). Ressalta-se que o termo Gay,
apesar de englobar homens e mulheres não heterossexuais, designa homens

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homossexuais, apagando o feminino, obrigando as homossexuais femininas a


reforçarem sua definição como Lésbica.
Pretendo problematizar que a raiz da violência aos LGBT está na miso-
ginia, o ódio ao feminino, porém analiso caso a caso como a misoginia se
projeta, distanciando-me do significado central da palavra, aversão às mulheres.
Na sociedade brasileira atual, em que o masculino ainda é dado como gênero
superior, reproduz-se na naturalização dos corpos, aqueles aceitos e aqueles
considerados abjetos. Na gestação há a primeira violência de gênero, a nome-
ação do sujeito, como mostra Fábio Figueiredo Camargo, em seu artigo “Da
Violência Perpétua”:
É nessa humanização que sofremos nossa primeira violência, per-
petrada por interesses do estado, mas incentivada e acatada pela
família. Uma criança sem nome, e portanto, sem gênero, é impen-
sável no universo familiar ainda hoje. Somos marcados pelo gênero
e desde então condenados a seguir os padrões estabelecidos pelos
entes que nos amam. (CAMARGO, 2017)

Após o estágio social de identificação “menino e menina”, se constrói


a idealização heteronormativa da performance do indivíduo, seja com base
na religião ou no status quo, culpabilizando-o pela negação, pois o macho é
tomado como dominante e a fêmea é dominada. Pessoas que não se enqua-
dram nesse modelo estariam sistematicamente corrompendo a norma e por isso
causam desconforto, o qual corroboraria para as agressões.
A plataforma de mapeamento da LGBTfobia Tem Local funciona no
endereço temlocal.com.br e está disponível gratuitamente. É uma ferramenta
que recebe dados de agressão pela própria pessoa ou um expectador do ato,
criando um raio-x da violência mais aprofundada que pesquisas já existentes,
as quais não qualificam a vítima por sua identidade de gênero e orientação
sexual. Através de um sistema de coleta, em que a vítima seja identificada pela
sua identidade cis ou trans e sua orientação sexual, pode-se mapear de apro-
fundadamente como ocorre a violência de gênero no país. Nos relatos contidos
na Plataforma é visível a violência ao feminino descrita pelas vítimas, direta ou
indiretamente, assim como a crueldade é maior quando a vítima se comporta
de forma feminizada.
A plataforma se diferencia da coleta de dados de ONGs e órgãos de segu-
rança devido à não utilização do termo homofobia, por não contemplar toda a

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comunidade. Na prática significa que uma pessoa transexual identificada por


seu sexo de registro, ao relatar uma violência, é menos um dado contabilizado
para o diagnóstico da transfobia. Assim como uma lésbica caracterizada como
homossexual é um apagamento de características da violência à mulher. Tem
Local se propõe a receber informações do usuário, o qual se identifica con-
forme sua performance, com isso o banco de dados se torna mais completo e
direciona os tipos de violência, podendo gerar ações específicas de combate a
cada fobia da comunidade.
Dos relatos recebidos destaco alguns que ilustram como a diferença das
identidades e gêneros geram violências distintas porém da mesma raiz:
Um cara com sotaque carioca estava intimidando as mulheres lés-
bicas, falando que iria estupra-las porque isso era falta de pênis e
que iria matar os gays. Os seguranças presentes no local não fize-
ram nada.
http://temlocal.com.br/Relatos/Visualizar?b=1136

Analisando mulheres cis lésbicas ou bissexuais podemos identificar que a


misoginia ocorre pelo julgamento de mulheres que não estão se comportando
como deveriam, pois elas fogem do escopo da performance esperada de uma
mulher heterossexual. A lesbofobia tem como fator determinante o caso da
pessoa “ser menos mulher”, e é exercida por agressões verbais ou físicas, pois a
lésbica é tomada como alguém que merece ser punida e corrigida, como pode
ser observado no relato que incita o estupro corretivo. Isso também se faz em
xingamentos, assédio e fetichização de sua sexualidade a serviço do opressor,
que costuma ser um homem cis. O ataque às lésbicas ocorre na invalidação do
feminino, pois espera-se que mulheres sejam submissas ao masculino. Atrelado
a isso há o sentimento de competitividade com o homem, que sendo um ser
fálico, julga ser mais completo e apto a corresponder ao desejo feminino. Desse
modo, lésbicas são julgadas, primeiramente, por, supostamente, invadirem o
território que deveria ser de exclusividade masculina e, em seguida, são pen-
sadas enquanto falhas por não terem o órgão masculino e serem incapazes
de copular com outra mulher. A misoginia divide espaço entre a vítima ser o
feminino passível de ódio e o não cumprimento da norma pré-estabelecida. Em
casos em que a vítima é masculinizada ou sem os trejeitos que se espera de
uma mulher, a agressividade pode ser ainda maior.

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No caso de homofobia, ataques aos homens cis gays, teremos outra dinâ-
mica. Segue um relato:
Voltava pra casa caminhando e um cara começou a conversar
comigo. Viemos conversando por uns 10 minutos. O Aterro é uma
área de cruising. Quando chegamos à altura da minha casa atraves-
samos uma das passarelas e paramos numas árvores entre as pistas.
Alí ele me estrangulou, eu desmaiei. Acordei com a língua cortada
e dores pelo corpo. Acho que ele me chutou.
http://temlocal.com.br/Relatos/Visualizar?b=51

A misoginia pode ser percebida quando esse corpo masculino na prática


sexual faz o papel feminino para o prazer masculino, devendo ser punido por
isso. Cruising, como a vítima descreve, são locais em que ocorre a popular
“pegação”, ou encontro furtivo muito disseminado entre homens gays, cujo ato
sexual ocorre em espaço público. Não há comprovação do ato em si entre eles,
porém, o agressor, por estar presente no parque conhecido pela prática, mostra
seu ódio a homossexuais quando ataca sua vítima com um estrangulamento
seguido de chutes. A agressão ao homossexual pretende retirar o feminino
desse corpo.
Nos casos em que há ameaça de morte vê-se um tom de higienização por
parte do agressor, como pode-se ler no trecho a seguir;
Segunda feira, dia 9/05/2016, o agressor criou uma situação no 2º
andar da biblioteca da UFU, (...) Uma colega tentou solucionar o
caso quando ele disse: “vou matar todos os gays da biblioteca”. A
bibliotecária pediu pra ele se acalmar e ele disse “ não vou me acal-
mar... estou avisando vou matar os gays da biblioteca”. (...) hoje, dia
11/05/2016, no banheiro, ele disse pra um aluno que adentrou o
local: “que foi... por que tá me olhando?” falou de forma agressiva.
A vítima se assustou porque o agressor veio pra cima dele.
http://temlocal.com.br/Relatos/Visualizar?b=1147

O agressor quando esbraveja querer matar “todos os gays” passa a ideia de


que gays carregam em si algo que deva ser exterminado. Na visão do agressor,
o homem gay abre mão do seu privilégio masculino ao ter sua parte feminina
aflorada, seja em trejeitos, vestimenta ou prática sexual. A misoginia contamina

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e diminui o sujeito, fazendo com que ele seja visto como homem de menor
valor.
Quando analisamos a bifobia temos que ressaltar que parte dos ataques
sofridos acontecem na própria comunidade LGBT que não se isenta de ser
também preconceituosa. O ataque à suposta e frequente análise da indecisão
deste indivíduo, usando agressões que vão desde homem ou mulher bissexual
ser tratado(a) como uma pessoa falha, ao não ser nem homo ou heterossexual, e
ser incapaz de confiança, até a ataques que a/o aproxima da homo/lesbofobia.
O bissexual é a orientação sexual mais apagada. No trecho a seguir, a vítima,
de performance descrita como afeminada, sofre ataques que se aproximam da
homofobia:
Estava (...) afeminado (...), estava maquiado, de unhas pintadas e
uma camisa bem chamativa. (...) decidi ir pela rua da Papa G por
ter mais chances de estar movimentada, já o sair decidi a andar
perto de um grupo de afeminados, e percebi olhares, ao chegar
perto da estação mercadão um grupo de senhores falavam alto
sobre “Os viados passando do outro lado” que tínhamos que mor-
rer e que estavam todos no “bar gay” fazendo suruba que ali era
um lugar de orgias (...)passou um carro preto cheio de homens e
começou a andar devagar, (...) só ouvi eles gritarem “Viado, Bicha”
e me chamando para fazer sexo com eles, fiquei (...).”
http://temlocal.com.br/Relatos/Visualizar?b=75

Vemos que a misoginia, intrínseca às agressões ao homem bissexual, se


aproximam da homossexualidade do homem cis gay, o que é visto como desis-
tência da masculinidade naturalizada socialmente e aceitação de características
femininas, sejam elas evidentes e performáticas ou apenas sugeridas ao gay
assumido, mesmo que heteronormativo, por não exercer sua masculinidade
plena. O ódio ao feminino é feito pela dispensa do poder masculino dito pela
sociedade heteropatriarcal como norma. Podemos transpor a mesma lógica à
mulher bissexual, sendo ela alvo de ataques que se aproximam da lesbofobia.
Apesar de estar na mesma sigla e no mesmo conjunto de preconceitos
de ordem sexual, as pessoas transexuais exercem, além de sua identidade de
gênero, uma performance distinta das pessoas cis. Se tratarmos exclusivamente
de orientação, a sigla não deveria contemplar essa comunidade, porém, por
serem ainda tratadas em sua formação sexual como homoeróticas, se enqua-
dram no grupo em questão. As pessoas transexuais não são rigorosamente

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homossexuais, afinal, a partir da aceitação de seu gênero, sua orientação recai


na heterossexualidade, se relacionando com frequência com o sexo oposto
seja ele cis ou trans. A misoginia aqui é redobrada quando o ódio ao femi-
nino tem desdobramentos que vão desde o homem biologicamente definido,
que se identifica como mulher, e por isso sofre a violência ao negar absoluta-
mente características do macho, quanto à mulher biologicamente definida que
se identifica como homem e não cumpre seu papel de fêmea. É, sem sombra
de dúvidas, a identidade que mais sofre violência, tendo casos alarmantes de
assassinatos, além da negligência sofrida desde sua exclusão social. No trecho
abaixo podemos comprovar a violência:
Já são 14 as pessoas assassinadas em Tubarão este ano. O tra-
vesti Adriano Mendes dos Santos, 28 anos, foi morto a pedradas
e teve o rosto completamente desfigurado ontem de madrugada.
O crime ocorreu em um terreno baldio, na avenida Padre Geraldo
Spettmann, próximo a rodoviária, no bairro Dehon. O seu corpo
foi encontrado por um casal que passava pelo local ontem pela
manhã, por volta das 7 horas. Adriano era natural de Paranaguá
(PR) e estava hospedado na casa de outros travestis.”
http://temlocal.com.br/Relatos/Visualizar?b=1110

Podemos observar que não basta a morte da transexual para demonstrar


a misoginia intrínseca sob o corpo feminino que renega sua identidade compul-
sória de nascimento. É necessária que a violência perpetue com desfiguração
e outros artifícios para eliminar sua feminilidade. É comum que mulheres trans
sejam humilhadas em seus assassinatos, trazendo à tona o que há de mascu-
lino, cortando seus cabelos, arrancando as próteses ou retirando os vestígios do
feminino existentes. A própria matéria, tratando a vítima no masculino e gra-
fando seu nome de registro, corrobora a violência, deixando claro que a morte
é resultado de uma farsa cometida pela vítima. Homens trans passam por um
processo parecido sendo expostos nus ou estuprados, forçando esses corpos
à lembrança de que nunca serão masculinos, demonstrando que a misoginia
ataca ao fortalecer o não pertencimento desses corpos ao grupo dos machos.

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Considerações finais

A plataforma disponibiliza uma ferramenta de fácil acesso ao usuário pela


qual qualquer um possa fazer denúncias. Os criadores, Marcus Lemos, Thiago
Bassi e Antonio K.valo (codinome do autor deste artigo) atuam em defesa de
direitos humanos LGBT no Rio de Janeiro. A partir daí houve uma grande expo-
sição do projeto na mídia e denúncias chegaram de diversos locais, começando,
assim, o mapeamento. Como a plataforma é colaborativa e aberta, cria-se uma
ação de coleta de dados junto a coletivos. Estes, ligados a características especí-
ficas de sua localidade, além de denunciar, prestam algum tipo de acolhimento
às vítimas. A articulação com advogados, psicólogos, e casas que acolhem pes-
soas expulsas de suas famílias, faz com que a plataforma se torne atrelada a
coletivos já existentes nas cidades. O projeto quer disseminar esse atendimento,
incentivando ações coletivas que possam enfrentar a violência.
Os dados registrados estão disponíveis para consulta. O Tem Local se
prontifica a registrar o maior número de dados com o objetivo de traçar um
diagnóstico da violência no país para que sejam criadas políticas públicas refe-
rentes aos casos. Enquanto houver apenas o foco da homofobia não haverá
debate aprofundado de gênero no país.

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO,
Guacira Lopes. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Trad. Tomaz
Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

CAMARGO, Fábio Figueiredo. Da violência perpétua. Conferência apresentada no IV


SINAGI em 20/05/2016. (No prelo)

TEM LOCAL. http://temlocal.com.br. Acesso em 29/06/2016

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RELATO DA OFICINA DE ENFRENTAMENTO À


VIOLÊNCIA CONTRA MULHER REALIZADA COM
MULHERES ENCARCERADAS EM REGIME SEMIABERTO

Beatriz Hiromi da Silva Akutsu


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense
biakutsu@gmail.com

Natalia Kleinsorgen
Mestra em Mídia e Cotidiano pelo Programa de Pós-graduação em Mídia e
Cotidiano da Universidade Federal Fluminense.
natkbb@gmail.com

GT 02 - Ativismos e os movimentos sociais

O relato que segue é sobre uma experiência com mulheres encarceradas


em regime semiaberto. Em maio de 2016, fomos convidadas pela professora da
área de humanas para falar sobre o tema da violência contra mulher, no Centro
de Progressão Penitenciária (CPP) Feminino “Dra. Marina Marigo Cardoso de
Oliveira” de Butantan, da capital paulista, no período das 18h às 21h.
Considerando a pesquisa Mulheres e crianças encarceradas: um estudo
jurídicosocial sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio
de Janeiro, de autoria de Luciana Boiteux, Maíra Fernandes, Aline Pancieri e
Luciana Chernicharo (2015), que apontava para padrões de violência sofridas
por mulheres encarceradas antes da prisão, optamos por falar sobre o tema
de maneira abrangente. Elegemos, portanto, a metodologia de oficinas, tendo
como norte aproximação, escuta e acolhimento das mulheres participantes.
Nunca havíamos tido a experiência de falar com mulheres encarceradas, e
sequer havíamos estado em alguma unidade prisional. Nossa principal preo-
cupação era promover um ambiente minimamente acolhedor do início ao fim,

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diante do peso da existência naquele lugar e da própria proposta, que era falar
sobre violência dentro de um espaço desumanizado.
Depois de algumas conversas, chegamos à conclusão de que nossa
expectativa era mais sobre o que poderíamos aprender do que ensinar. Afinal,
qualquer atividade de escuta entre mulheres, de troca de experiências entre
pessoas do sexo feminino, é extremamente engrandecedora: quanto mais ouvi-
mos, mais conseguimos nos identificar nos relatos e projetar soluções juntas.

Dinâmica de apresentação “Quem sou eu + massagem”

Assim que entramos na sala de aula, dissemos que tínhamos uma


proposta diferente para a apresentação de todas nós “sentadas nas próprias
cadeiras, convidamos todas a fechar os olhos. Enquanto isso, nós estaremos cir-
culando na sala. Vocês saberão que é a hora de se apresentar quando sentirem
que estão sendo massageadas nas costas. O tempo de apresentação será igual
ao tempo de recebimento da massagem. Vocês podem falar o que quiserem
sobre vocês”.
Assim, iniciamos as apresentações: as mulheres fecharam os olhos, cada
uma de nós ficou em um lado da sala e começamos a revezar as massagens,
uma por vez. Em virtude da quantidade de pessoas e da disponibilidade de
tempo, pedimos que uma das professoras cronometrasse 30 segundos para
cada massagem. Para que pudéssemos identificar as pessoas que já haviam
se apresentado, entregamos, ao final de cada massagem, um papel A4 para a
atividade seguinte.
Na maior parte das apresentações, as mulheres diziam o nome, a idade
- entre 21 e 60 anos - e a quantidade de filhos que tinham. Praticamente todas
elas eram mães. Nos impressionou o fato de que cada vez que falavam sobre
suas famílias, parecia que nunca tinham sido afastadas do convívio, embora
soubéssemos que a maioria não recebe visita do companheiro e dos filhos.
Ouvimos frases como “tenho uma família linda me esperando”.
Ainda sobre a pesquisa (BOITEUX et. al, 2015) que traçou o perfil das
mulheres grávidas encarceradas no Rio de Janeiro, os dados apontam que apenas
14% recebiam visitas frequentes dos familiares. Além disso, uma comparação
entre o interesse de presos masculinos e femininos aponta que o principal ques-
tionamento entre os homens é sobre o andamento dos processos, enquanto que
para as mulheres é sobre os filhos que estão do lado de fora. Este panorama nos

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mostra algumas semelhanças entre a nossa experiência e o resultado apresen-


tado pelas pesquisadoras cariocas.
Atendendo às nossas expectativas, notamos que essa dinâmica propiciou
um clima de relaxamento e união entre elas, chegando, até mesmo, a estimular
que fizessem massagem umas nas outras.

Dinâmica “Desencaixando a violência + roda de conversa”

Aproveitando o ambiente de relaxamento, propiciado pela dinâmica ante-


rior, demos início a segunda parte da oficina, que denominamos “Dinâmica
desencaixando a violência + roda de conversa”. Esperávamos que esse fosse o
momento mais tenso e delicado do encontro. A nossa proposta, nesse momento,
era a de “falar o menos possível e ouvir o máximo que pudéssemos”.
Assim, para essa dinâmica foram dedicadas duas horas. Nos primeiros
vinte minutos, falamos sobre a importância de discutir esse tema; sobre os tipos
de violência contra a mulher, bem como sobre quem são os principais perpetra-
dores desse tipo de ação: os homens. Durante a nossa fala, procuramos explicar
cada tipo de violência dando exemplos de situações encontradas na vida real.
Quando mencionamos a violência institucional, uma das reeducandas
perguntou se as agressões que elas sofriam dentro do CPP feminino poderiam
ser enquadradas nessa classificação, ao que respondemos afirmativamente. As
denúncias foram: deboche por parte das agentes, agressões físicas, alimentos
estragados, descaso com a saúde, falta de remédio e de atendimento médico,
etc.
Já nesse primeiro momento, algumas histórias sobre agressões vividas por
elas lá dentro começaram a surgir - tanto as praticadas entre as próprias ree-
ducandas, quanto as que eram perpetradas pelas agentes penitenciárias. Foram
vários os relatos sobre estupros de meninas recém chegadas, ao mesmo tempo
em que algumas veteranas demonstraram preocupação em proteger as mais
novas; outros diziam respeito à ausência de confiança na relação entre elas -
ora você tem uma amiga, ora ela pode se voltar contra você. Segundo elas, é
esse clima de desconfiança que favorece a desunião. Nesse momento, um dos
relatos mais impactantes referia-se à uma lésbica que foi fazer “uma saidinha”
no dia das mães e acabou tendo suas partes genitais e membros decepados por
se envolver dentro do CPP feminino com a namorada de um traficante.

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Em meio às intervenções, tivemos que nos manter firmes durante a expo-


sição do tema, para que a discussão não se estendesse muito nesse momento,
já que a segunda parte seria dedicada ao debate. Após a exposição da temá-
tica, apresentamos a nossa proposta: pedimos que cada uma delas, utilizando
o papel A4 recebido na dinâmica anterior, escrevesse ou desenhasse, em 20
minutos, alguma situação de violência vivenciada por uma mulher conhecida.
Ao final do tempo estimado para a atividade, começamos a leitura dos
papéis, sorteando. Uma de nós pegava um do bolo e lia, depois a outra e,
assim, sucessivamente. As meninas se mostravam apreensivas a cada sorteio,
o que viemos entender ser um misto entre expectativa de ter seu material
exposto - apesar de anônimos -, e ter que ouvir algo obscuro e triste sobre as
companheiras. Nós também nos tornávamos apreensivas a cada papel, e ten-
távamos conversar sobre eles com calma, sem deixar transparecer muito da
nossa emoção, embora em muitos momentos tenha permanecido um silêncio
constrangedor e uma atmosfera pesada que parecia interminável e, ao mesmo
tempo, insustentável.
De uma maneira geral, os escritos e os desenhos relatavam situações de
estupros (inclusive corretivo, institucional, de vulnerável e familiar), sequestro,
espancamento, todo tipo de agressão por parte de familiares - principalmente,
pelos companheiros -, alienação parental, calúnia, etc.
Um dos casos, por causa da caligrafia, não conseguiu ser compreendido,
mesmo com a ajuda das professoras, e a autora acabou se identificando e con-
tando pessoalmente o ocorrido. Ela contou que aos 14 anos, época em que
era muito pressionada pela comunidade por não corresponder aos padrões de
feminilidade, mandou um papel de carta para o sobrinho de um policial. Ao ter
acesso ao bilhete, o tio, abusando de sua autoridade institucional, resolveu estu-
prá-la como forma de “ensiná-la a ser mulher”. Ao término de sua história, ela
nos disse que, durante a explanação do tema sobre estupro corretivo, conseguiu
perceber o quanto essas situações são recorrentes, o que a encorajou a com-
partilhar com as outras a sua história. Nesse momento catártico, percebemos
que muitas mulheres se solidarizaram e a consolaram, o que nos fez pensar em
abandonar a dinâmica.
Mais dois papéis foram abertos, mas percebendo que a situação estava
insustentável, resolvemos perguntar se elas queriam continuar com o processo:
algumas responderam que sim, mas outras demonstraram vontade de parar. A
mínima quantidade de mulheres desconfortáveis nos fez decidir interromper a

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atividade e antecipar o intervalo. Ocupamos menos tempo do que havíamos


programado, e, por isso, lançamos mão de uma das dinâmicas alternativas, que
tínhamos pensado.
De início, a nossa impressão era de equívoco sobre a metodologia esco-
lhida, até porque muitas mulheres reclamaram de termos proposto algo tão
pesado e desgastante, para um ambiente que em geral já carrega todas essas
características. Apesar da sensação de que tínhamos errado, tentamos argu-
mentar que o nosso objetivo era que elas se enxergassem nas experiências das
companheiras, ainda que soubéssemos o quão difícil a tarefa poderia ser.

Dinâmica “Vantagens de ser mulher”

Depois do intervalo que precisamos fazer, assim que acabamos a segunda


dinâmica, foi o momento de tentarmos recuperar a autoestima das mulheres,
que ainda estavam bastante abaladas pelo momento anterior.
A proposta desta terceira dinâmica era dividir as mulheres em grupos.
A partir daí, solicitamos que escrevessem as vantagens e desvantagens de ser
mulher na sociedade. Depois, elas apresentariam o resultado da reflexão, esco-
lhendo uma representante do grupo para, na frente da turma, expor. Assim elas
o fizeram.
Ao longo do processo de reflexão, passávamos pelos grupos perguntando
se precisavam de ajuda e supervisionando como andavam os trabalhos. Este
contato com elas foi muito importante, para que sentíssemos a resposta sobre
as atividades, até então. Para nós, a tomada de consciência de que todas as
mulheres já sofreram algum tipo – ou muitos tipos – de violência na vida, era
um reflexo da dinâmica anterior, uma maneira de se entenderem, e nos enten-
derem, como parte de uma classe socialmente explorada e violentada. Para nós,
era importante que vissem nas companheiras uma espécie de espelho, e que,
neste processo, descobrissem que são mais parecidas do que imaginavam, e
que podem contar umas com as outras mais do que imaginavam. Ouvir delas
essas conclusões nos fez começar a pensar que a proposta estava dando certo.
Ainda durante este processo dos grupos, uma menina perguntou porque
não fazíamos este tipo de atividade com as agentes – enquanto estávamos na
sala, em dois momentos distintos, as autoridades entraram para fazer a conta-
gem. O clima era péssimo. Se havia falatório, todas se calavam e ajeitavam a
postura. Quando as profissionais saíam, voltava a atmosfera de descontração e

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os deboches: “será que ela finalmente aprendeu a contar?”, brincavam as meni-


nas. Sim, por que não fazer com as representantes do Estado? Nos perguntamos
também. Assunto para outro momento, porém, foram elas a nos trazerem essa
demanda. “Se as agentes passassem por situações como essa, certamente nos
tratariam de forma mais humana”, reclamou uma delas. Nós tínhamos nossas
dúvidas, se era possível humanizar o tratamento das que trabalhavam lá, mas,
de qualquer maneira, a denúncia e a proposta ficaram registradas.
Começaram, finalmente, as leituras do que haviam elencado como vanta-
gens e desvantagens de ser mulher. No meio do processo da apresentação do
primeiro grupo, decidimos que leríamos apenas as vantagens. Apesar de ter sido
importante elas refletirem também sobre as desvantagens, achamos que seria
mais interessante darmos destaque ao que elas consideravam “bom”. Para nós,
e para elas, já não eram mais necessários momentos de desconforto e pesar. Era
momento de união. Todas concordaram com a decisão. Ser mãe; não precisar
se alistar; ser guerreira; ser forte; ser sensível; ser vaidosa; ser compreensiva; ser
maravilhosa – foram algumas das características comentadas. A cada grupo que
se apresentava, aconteciam palmas e comemorações, tornando a sala de aula
em algo parecido com uma torcida de futebol. Foi, definitivamente, um espaço
necessário e catártico no sentido de celebrar a existência enquanto mulher.

Dinâmica “Abraço dominó + abraço coletivo”

Levando em consideração o impacto da discussão desse tema na reali-


dade de todas nós, tivemos o cuidado de escolher uma dinâmica que nos desse
o retorno das atividades realizadas - com a impressão que ficou nas participan-
tes, como elas estavam se sentindo -; que proporcionasse alívio e acolhimento
através do abraço; que saíssemos todas - participantes, facilitadoras e professo-
ras - mais fortalecidas; e que encerrasse a noite com chave de ouro.
Fizemos um círculo com as 52 mulheres presentes, e, sem que tivéssemos
proposto, todas deram as mãos. Sugerimos que uma por uma falasse em duas
ou três palavras sobre como estava se sentindo. Após cada depoimento, essa
pessoa seria abraçada pela do lado e, assim, sucessivamente. A primeira mulher
que se voluntariou a falar foi a que relatou sua experiência pessoal sobre o
estupro pelo policial, agradecendo a nossa presença ali e oportunidade de des-
cobrir que outras mulheres também passam por situações similares. A partir daí,
escutamos as mais variadas considerações sobre a atividade, desde “eu estou

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sentindo fome e sono” até “eu não saberia que tinha passado por situações
violentas até ouvir a palestra de hoje”. Quase todas agradeceram por estarmos
ali, alegando sentirem-se aliviadas, mais conectadas umas com as outras e, em
alguns momentos, livres.
Após todas serem ouvidas - inclusive nós e as professoras - propomos um
abraço coletivo. Nossa ideia era que pulássemos e gritássemos algum “grito de
guerra” juntas, mas fomos alertadas para a impossibilidade de fazer barulho.
Decidimos, então, aproximarmos ao máximo dentro desse abraço e falarmos
uma frase escolhida por elas, que tivesse força suficiente, mesmo sem ser gri-
tada. Para a nossa surpresa, depois de umas duas sugestões aleatórias, logo
existiu um consenso: a frase escolhida foi “liberdade para todas”.

Referências bibliográficas

Boiteux, Luciana et al. Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social


sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro, Grupo
de Pesquisa em Política de Drogas e Direito Humanos do Laboratório de Direitos
Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), Rio de Janeiro, 2015.
Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B6311AmqcdPVRmlXb25wakx2TVE/
view> Acesso em: 07/06/2016

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PERFORMANCE/INSTALAÇÃO & INTERATIVIDADE: GÊNERO,


SEXUALIDADE, DIREITO E DEMOCRACIA

Gabriel Cerqueira Leite Martire


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
Universidade Federal Fluminense (UFF),
atuante nas áreas: pesquisa, arte e direito
gclm85@yahoo.com.br

Gustavo Agnaldo de Lacerda


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
Universidade Federal Fluminense (UFF),
atuante nas áreas: pesquisa, direito e movimento LGBT
guslacerda.div@gmail.com

Mariana de Vasconcellos Tauil


Graduanda em Ciências Sociais
Universidade Federal Fluminense (UFF),
atuante nas áreas: gestão de projetos culturais e políticas públicas
tauilmariana@gmail.com

Este relato de experiência envolve uma atividade que intitulamos


Performance/Instalação & Interatividade. Trata-se de uma produção artística
que trabalhou com teoria e prática. Essa produção foi realizada em praça
pública, onde foi possível transpor para o plano material alguns conteúdos e
conceitos que foram estudados na linha de pesquisa em direitos humanos. Tal
abordagem faz parte do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense – UFF, que possibilitou o surgimento do
grupo de pesquisa “Sexualidade, Direito e Democracia”, tendo como ideali-
zador e coordenador o professor Dr. Eder Fernandes Monica. Assim, o grupo
vem reunindo estudos sobre diversidade, desigualdade e marcadores sociais da
diferença em termos de classe, raça, gênero e sexualidade.

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O projeto teve como objetivo geral combater discursos, relações e con-


figurações verticalizadas de poder. Por isso, os objetivos específicos tiveram
como eixos algumas dinâmicas capilares de provocação participativa, que serão
melhor observadas ao longo desse relato, bem como em relação ao desenvol-
vimento da parte metodológica.
Quanto à viabilidade para realização da obra Performance/Instalação &
Interatividade, esta teve como facilitador sua inserção no Circuito das Artes.
Nessa ocasião, esse evento estava ocorrendo na Praça Getúlio Vargas em Icaraí,
Niterói – RJ.
O Circuito das Artes de Niterói reuniu moda, música, gastronomia e
diversas outras manifestações artísticas, criando uma rede de interações entre
diversas produções e públicos distintos. Essas atrações são circulantes, ou seja,
de tempos em tempos transitam pelas diversas praças da cidade de Niterói.
O Circuito das Artes é um evento que não cobra a entrada do público,
assim como dos artesãos e artistas integrantes, por isso necessita de colabo-
rações e patrocínios públicos e privados para funcionar. Cabe ressaltar que o
Circuito é desvinculado de dependências partidárias. Isso porque, o objetivo
é criar uma ocupação cultural que visa democratizar os espaços públicos da
cidade, através da manifestação de redes de encontros. Assim, artistas de diver-
sos segmentos e pequenos empreendedores podem participar dessa ocupação
cultural. Isso facilita as inserções e as autorizações para a criação de atividades
diversas, individuais ou em grupos, nos espaços públicos.

Bases teóricas

A proposta é desenvolver uma breve abordagem sobre determinadas


perspectivas teóricas em torno do conteúdo trabalhado na produção artística.
Sendo assim, é impossível, metodologicamente, não cair em alguns descuidos
generalizantes diante do universo teórico que envolve questões de diversidade,
desigualdade e marcadores sociais da diferença.
Para algumas autoras que desenvolvem estudos na temática de gênero
e sexualidade, como Donna Haraway (2004), MacKinnon é apontada por sua
crítica teórica nos processos de representação e análise da violência em termos
de gênero. Para MacKinnon, a utilização da figura de mulheres coisificadas
sexualmente implicam na construção social da sexualidade.

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Outra autora, Scott (1990), contribui para a análise da discussão temática


a partir do desenvolvimento da conceituação de gênero ao longo da história.
Desse modo, Scott explora “a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo
sexual nas várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como fun-
cionavam para manter a ordem social e para mudá-la” (1990, p. 3). Nessas
expressões de gênero, observou-se que as relações sociais estabelecem divisões
de poderes, cujas hierarquias criam um simbolismo de controle e dominação.
Esses estudos mostravam que deviam ser desconstruídas visões conserva-
doras e deterministas, para se impulsionarem movimentos tanto no âmbito das
experiências pessoais e subjetivas, quanto nas atividades públicas e políticas.
As diferenças não devem ser transformadas em hierarquias. Para isso
sugere-se a implementação de espaços mais abertos de discussão, evitando que
o conceito de gênero se torne limitado e alvo de controle. Em suma, diferenças
existem e fazem a complexidade da vida. Preocupante é, quando as diferenças
se tornam marcadores de desigualdades.
Gênero, raça e sexualidade entraram na pauta de profundos debates,
principalmente, para questionar as relações de poder, os entrelaçamentos e
a exploração que se fazem dessas categorias, hoje em dia, por exemplo, no
amplo mercado de consumo. A retomada dessas categorias, para a discussão
na produção artística que foi realizada, pretende problematizar a normatização
das formas como os corpos devem agir.
Com efeito, as imagens, por exemplo, buscam definições da sexualidade
como se elas fossem verdades. Contudo, “os significados que damos à sexuali-
dade e ao corpo são socialmente organizados, sem dizer o que o sexo é, ou o
que ele deve ser” (WEEKS, 2000).
Uma das formas de perceber tais questões é despertar a consciência para
a forma como as coisas são realizadas. Ao perceber discursos funcionam, como
eles se transformam ao longo da história e das manifestações culturais, possivel-
mente conseguiremos questionar por que as coisas são como são hoje em dia.
“A sexualidade está sujeita à modelagem sociocultural [...]. Isso contraria bas-
tante a nossa crença normal de que a sexualidade nos diz a verdade definitiva
sobre nós mesmos e sobre nossos corpos” (WEEKS, 2000).
Alguns dos fatores que vêm ajudando a desmistificar os tradicionais con-
ceitos essencialistas são os debates e pesquisas em torno do construtivismo.
Outros avanços são alcançados em razão dos esforços das ações feministas,

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LGBT, raciais, dentre outras políticas de afirmação, visualização e formalização


de direitos para o acesso horizontal nas relações de poder.
No sentido de avançar ainda mais o aprofundamento sobre as relações de
poder em termos de gênero, raça e sexualidade, a Teoria queer ganha lugar de
destaque na problematização. Isso porque, ela se insere nas novas formas de
percepção sobre as estruturas pré-estabelecidas e naturalizadas socialmente.
As novas perspectivas de embates envolvendo gênero, raça e sexualidade
tendem a questionar arranjos fixos de identidades. Por outro lado, pensar no
sujeito requer soluções possíveis para que as identidades possam ser reconhe-
cidas e fluírem sem que isso determine formas de exclusão, discriminação e
desigualdade. “Emerge assim um pensamento queer, não-normalizador, uma
teoria social não heterossexista e que, portanto, reconhece a sexualidade como
um dos eixos centrais das relações de poder em nossa sociedade” (PELÚCIO,
2015, p. 2).
Nesse sentido, tem-se por base a crítica às estruturas impostas pelos
discursos binários ou assimilacionistas em distintos campos. Por isso, “não
há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade
é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus
resultados”, como afirma a filosofa Judith Butler (2003, p. 48).
É nesse contexto que se toma por referência os estudos queer, visto que
os “deslocamentos permitiram, ainda, que as identidades sociais fossem desna-
turalizadas e interrogadas. [...] No âmbito dos estudos queer, identidades são
contextuais, não são fixas” (PELÚCIO, 2015, p. 6).
Nesses termos, é preciso “observar o modo como as fábulas de gênero
estabelecem e fazem circular sua denominação errônea de fatos naturais”
(BUTLER, 2003, p. 12).
Em termos de classes que se constituem, trazer essas reflexões para a
lógica de consumo implica a criação de um modelo de ciência econômica
crítica, que integre “em nível mais profundo, o reexame de conceitos e mode-
los econômicos que lidem com o sistema de valores subjacente e reconheça
sua relação com o contexto cultural” (CAPRA, 1982, p. 172). A lógica que vem
impregnando o sistema econômico é alimentada por uma cultura com raízes
em valores masculinos e de orientação yang.
A lógica de mercado vem sendo arquitetada segundo a lei de oferta e
demanda (FLORES, apud WOLKMER, 2004, p. 361-362). Contudo, Joaquín
Herrera Flores parece compartilhar o entendimento de Fritjof Capra, ao dizer

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que “os problemas culturais estão estritamente interconectados com os proble-


mas políticos e econômicos” (FLORES, apud WOLKMER, 2004, p. 363)
Por isso, qualquer ação que se espera transformadora na direção do exer-
cício constante por práticas de inclusão, respeito e igualdade, requer a vigilância
crítica sobre modelos de produção e reprodução de submissões, discriminações
e opressões.
Assim, as bases teóricas abriram espaço para o desenvolvimento da pro-
dução artística na medida que foi possível compreender como são moldadas as
identidades e como se procedem as relações de poder nas sociedades.

Provocando o lugar de encontro: o ativismo na performance/


instalação

As imagens em anexo representam uma ponte com os relatos que se tra-


duzem aqui de modo quase literário.
Preferimos apresentar os relatos assim, porque para nós as experiências
foram sentidas de forma quase poética. Não colhemos nomes das pessoas
que interagiram com a produção artística, apenas vivenciamos e trocamos
conhecimentos.
Assim, o início dos trabalhos na manhã de domingo começaram como
uma página em branco. Nessa página foi preciso riscar para dar vida ao que
antes estava só no campo das ideias.
A vida se faz...não só, mas com a colaboração das vidas que fluem nos
corpos, nas sensibilidades, na natureza.
O olhar que se encanta, que atrai, que vive, que pulsa e flui nas pincela-
das da vida. Eis que as pessoas chegam, cada uma com a sua inquietação.
Estava lá...vendendo balas na praça, e algo me encantou...Vim de Caxias,
pés em contato direto com o chão, vivendo na pobreza, quase na miséria.
Não fui oferecer bala para aquelas pessoas que pintavam alí. Aproximei-me por
curiosidade. Parece que foi um encantamento e fiquei admirando o que via. – O
que estão fazendo? O que é isso? (Perguntou a pessoa). E lá fomos nós explicar
e oferecer uma oportunidade para a pessoa interagir na produção artística.
Largou as balas em um banco e pegou no pincel. Sua primeira aula
e parecia que fez aquilo sua vida inteira...Encantou-nos. Não queria
mais parar, mas o trabalho nas ruas chamava, e precisava retomar

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a venda das balas. O mundo urbano e a luta por dinheiro pareciam


tomar seus sonhos agora.
Tivemos a certeza que aquele dia fez muita diferença em sua vida.
Enquanto pessoas manifestavam nas ruas, alguém se sentia agora
cidadã.
Nada aconteceu de forma programada...O destino nos revelou
muito mais que uma lição no domingo do dia 16 de agosto de 2015.
Pintei flores e raízes...Uma não vive sem a outra.

Estava observando aquelas pessoas pintando...Algo me chamou atenção!


Algo me impulsionava! – O que estão fazendo? (Assim revelava e perguntava
outra pessoa) – Estamos fazendo arte! Você gostaria de participar? (Perguntamos)
– Claro! (Respondeu a pessoa) – Então, vamos pedir que pinte esse cabelo aqui.
(Dissemos) E fez com todo zelo e muita vontade. Não se contentou...Depois
de uma volta pela praça, e muitas observações, teve que voltar algumas horas
depois para dar um retoque final...Será que a identidade, o gênero, a vontade
de agir e a consciência da pessoa que conquistou o direito de usar os espaços
públicos, o direito de trabalhar em cargos antes exclusivos de alguns, tudo isso
motivou a pessoa inconscientemente!? Não sabemos.
Momento mágico! Quando vemos essas pessoas interessadas e partici-
pando por livre vontade, ou talvez por encantamento, por curiosidade.

Considerações finais

O Circuito das Artes abriu espaço para se pensar formas diferenciadas de


interação entre pessoas. Nessas relações, foi possível integrar pesquisas desen-
volvidas sobre marcadores sociais da diferença com dinâmicas para o público.
As atividades realizadas com o público que se encontrava na praça gerou
uma série de acontecimentos positivos. Alguns desses casos foram exemplifica-
dos, conforme expomos nos registros constantes neste relato.
Por fim, optou-se aqui por resumir o relato de modo diferenciado dos
padrões formais. Isso porque, tentou-se evitar criar rótulos ou identificações
para pessoas que viveram a atividade. Frequentemente são criadas definições
para pessoas, como se pudéssemos determinar o que elas são.
Assim sendo, tal abordagem tem como proposta somar os momentos e situ-
ações que marcaram a vivência com a Performance/Instalação & Interatividade.
Ao mesmo tempo, a dinâmica sugeriu a abertura das pesquisas acadêmicas

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para dialogar teorias com o público, buscando maior proximidade e linguagens


mais acessíveis.
Talvez seja interessante pensar no incômodo sugerido pela escrita do
relato, que evita ao máximo a identificação dos corpos, o que, com um olhar
mais atencioso, é possível perceber quem são as pessoas que participaram das
atividades, através das imagens constantes no anexo.
Acredita-se que esse acontecimento tenha contribuído para se pensar
novas estratégias de poder a partir de dentro das relações já existentes, cons-
truindo uma consciência subversiva ou de resistência. Logo, pensamos que a
arte pode ser utilizada também como mecanismo de combate às desigualda-
des, caso seja construída com tal objetivo.

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CAPRA, Fritjof. O impasse da economia. In: CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São
Paulo: Cultrix, 1993.

FLORES, Joaquín Herrera. Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade da


Resistência. Traduzido por Carol Proner. Cap. 11, in: WOLKMER, Antonio Carlos. Org.
Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2004.

HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma


palavra. Tradução de Mariza Corrêa; Revisão de Iara Beleli. Artigos: Cadernos Pagu
(22) 2004, pp. 201-246. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a09.
pdf>. Acessado em 19 de junho de 2016.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estru-


turalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. Disponível em: <https://bibliotecaonlinedahisfj.
files.wordpress.com/2015/03/genero-sexualidade-e-educacao-guacira-lopes-louro.
pdf>. Acessado em: 15 de março de 2016.

PELÚCIO, Larissa. Teoria Queer/Estudos Queer. In: CARRARA, Sérgio...[et al]. (Org.).
Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília,
DF: Secretaria Espacial de Políticas para as Mulheres, 2015.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade,
v.16, n.2, jul./dez. 1990, p. 5-22.

WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo
educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

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Anexo – Fotografias da performance/instalação feitas durante a atividade.

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GEOGRAFIA, GÊNERO E EDUCAÇÃO:


A UTILIZAÇÃO DE TEMAS TRANSVERSAIS NA
ELABORAÇÃO/APLICAÇÃO DE PROJETOS

Bruno de Freitas
Doutorando, Programa de Pós-graduação em Geografia, IG/UFU.
freitasbrunode@gmail.com

GT 01 - Práticas Escolares e de Formação Docente

Resumo

O objetivo do presente relato é apresentar os resultados obtidos pela execução


de uma atividade prática em uma turma do 8° Ano do Ensino Fundamental da
Rede Básica de Ensino, no Centro Educacional de Santa Vitória, MG. A atividade
consistia em possibilitar a compreensão crítica da mulher no mundo contem-
porâneo. Do ponto de vista metodológico ressalta-se que prática estruturou-se
anteriormente à sua aplicação, pois a Universidade possibilitou inúmeras leitu-
ras e discussões, por meio das aulas teóricas. Considera-se que a realização da
presente atividade possibilitou que os alunos dessem início à compreensão das
questões femininas de forma crítica e reflexiva.
Palavras-Chave: Ensino de Geografia. Gênero. Temas Transversais.

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Introdução

O objetivo do presente relato é apresentar os resultados obtidos por meio


da execução de um projeto em uma turma do 8° Ano do Ensino Fundamental
da Rede Básica de Ensino. A atividade realizada consistia em possibilitar a com-
preensão crítica do papel da mulher no mundo contemporâneo em Geografia,
se pautando nos Temas Transversais Orientação Sexual e Pluralidade Cultural.
Do ponto de vista metodológico ressalta-se que o presente trabalho estruturou-
se anteriormente à aplicação desta atividade em sala de aula, uma vez que a
Universidade possibilitou inúmeras leituras e discussões, por meio das aulas
teóricas, bem como a elaboração do projeto que a ser executado.
Além disto, foi realizado de um levantamento fotográfico na internet, com
imagens relacionadas à temática trabalhada, elaboração de material didático
com o objetivo de nortear os alunos na execução do trabalho, ressalta-se que
todas as atividades realizadas foram acompanhadas diretamente no campo de
execução. Neste sentido, foi proposto que a partir da realização destas ativida-
des, os alunos pudessem participar e observar às questões que os circundam,
contribuindo para a formação do cidadão crítico, reflexivo.

Utilização dos Parâmetros Curriculares Nacionais em Práticas


Educativas em Geografia

A utilização dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) na elaboração


do projeto se justifica, pois este documento propõe orientações gerais sobre o
currículo básico. Ressalta-se que se priorizou para na análise a utilização dos
PCN’s: Geografia, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual para o desenvolvi-
mento da temática elegida, bem como seu desenvolvimento no âmbito escolar.
De acordo com o PCN os Temas Transversais:
Ao lado do conhecimento de fatos e situações marcantes da rea-
lidade brasileira, de informações e práticas que lhe possibilitem
participar ativa e construtivamente dessa sociedade, os objetivos
do ensino fundamental apontam a necessidade de que os alunos
se tornem capazes de eleger critérios de ação pautados na justiça,
detectando e rejeitando a injustiça quando ela se fizer presente,
assim como criar formas não violentas de atuação nas diferentes
situações da vida (BRASIL, 1998a, p.35).

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Considera-se que as questões que envolvem a mulher no contexto con-


temporâneo, devem ser tratadas sob uma abordagem plural, sendo as mesmas
corroboradas pelos PCN’s ao enfatizarem a necessidade de se trabalhar ques-
tões de gênero em seus diversos aspectos, além da valorização de características
étnicas e culturais destas mulheres.
Sobre o ensino de Geografia, é interessante compreender como as abor-
dagens de gênero se relacionam com esta ciência e com os temas transversais.
Portanto, torna-se elementar analisar o PCN Temas Transversais, pois é referên-
cia formal dos conteúdos para a escola. De acordo com o PCN de Geografia, o
tema transversal Orientação Sexual recomenda que o professor transmita valo-
res em relação à sexualidade, na perspectiva de gênero, por exemplo, ao tratar
de questões relativas à população e suas desigualdades. De acordo com este
tema é possível perceber o papel da Geografia ao trabalhar a perspectiva de
gênero:
Ao estudar movimentos migratórios em Geografia, podem-se
incluir as perspectivas de gênero, analisando as consequências das
migrações nos arranjos familiares, nas ocupações profissionais e
na ocupação de espaços A Geografia pode representar a muitas
mudanças na esfera doméstica refletem mudanças nas relações de
gênero, mostrando a mulher menos confinada ao lar, o homem
mais comprometido na esfera doméstica e na paternidade, o que
acaba gerando novas configurações familiares e a revisão de papéis
sexuais (BRASIL, 1998c, p. 304).

Isto porque, muitas mudanças na esfera doméstica refletem nas relações


de gênero, mostrando a mulher menos confinada ao lar, o homem mais com-
prometido na esfera doméstica e na paternidade, o que acaba gerando novas
configurações familiares e a revisão de papéis sexuais.
A Geografia assume seu papel ao defender a própria história das mulhe-
res, suas lutas pela conquista de direitos e as enormes diferenças que podem ser
encontradas ainda hoje nas diversas partes do globo. De acordo com os PCN
de Geografia, é interessante “situar em um mesmo patamar os papéis desem-
penhados por homens e mulheres na construção da sociedade contemporânea
ainda encontra barreiras que ancoram expectativas bastante diferenciadas com
relação ao papel futuro de meninos e meninas” (BRASIL, 1998b, p. 45).
No entanto, a escola, enquanto formadora de cidadãos, não pode rea-
firmar os preconceitos em relação à capacidade de aprendizagem de alunos

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de diferentes sexos. Além disto, no ambiente escolar manifesta-se preconceitos


relativos à diversidade de raça, etnia e cultura. Neste sentido, o tema transversal
Pluralidade Cultural (1998d), contribui no sentido de fazer com que os alunos
percebam as diferenças presentes no espaço. Ressalta-se que para fins deste
projeto será dada atenção às questões culturais relativas às mulheres:
A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento
e à valorização de características étnicas e culturais dos diferentes
grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualda-
des socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias
e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao
aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país com-
plexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal (BRASIL, 1998d,
p. 121).

Neste sentido, a Geografia subsidiará o entendimento do papel da mulher


no mundo contemporâneo, por meio do reconhecimento das especificidades
existentes, entre cada região global. Além disto, constitui tema de estudo, além
de poder explicar os avanços progressivos do movimento de mulheres ao longo
do tempo no que se refere à maior participação das mulheres na esfera pública
em todos os aspectos: na política, cultura, trabalho remunerado e outros. Por
isso, a Geografia deve desmistificar estereótipos ligados ao gênero.

Detalhamento das Atividades Desenvolvidas

No primeiro momento utilizou-se de dois mapas fixados na lousa com


as principais regiões geográficas: América do Norte, América Central, América
do Sul, África, Europa, Ásia, Oriente Médio e Oceania. Neste sentido, a dinâ-
mica consistia em ilustrar estas grandes regiões globais. Este preenchimento se
deu por meio da utilização de imagens obtidas na internet que diziam respeito
à diversidade socioeconômica, étnica, cultural e religiosa de indivíduos com
gênero feminino. Estas imagens referiam às representações de mulheres negras,
brancas, pardas, indígenas, de baixo e alto poder aquisitivo, lideranças políticas,
etc.
As respectivas imagens foram entregues aleatoriamente aos alunos, quando
foi recomendado que os alunos preenchessem o mapa de acordo com a visão
que tinham acerca das características sociais, culturais, econômicas e religiosas

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das mulheres, de acordo com cada uma das grandes regiões globais repre-
sentadas no mapa. Isto porque, objetivava-se saber quais eram as concepções
regionais femininas da turma, no que diz respeito às variáveis socioeconômicas,
étnicas, culturais e religiosas da mulher ao longo do espaço global.
Após o preenchimento do mapa, foi possível perceber que o mesmo
representava de forma homogênea as características étnicas, socioeconômicas,
culturais e religiosas de cada região global. Neste sentido, foi possível perceber
que os alunos representaram estas características de forma muito bem distintas
de acordo com cada região, mesmo se considerando que os mesmos sabiam
que existiam heterogeneidades por entre as regiões.
Neste sentido, foi possível observar que as representações na América do
Norte havia a concentração de mulheres brancas com cargos executivos, líde-
res políticas (ainda que estas fossem de outras regiões do mundo), mulheres que
exercem funções profissionais vinculadas ao militarismo. Esta representação
também ocorreu na Europa, sendo que o que diferia era que estas mulheres são
louras. Em oposição a esta concepção por parte dos alunos, foi possível perce-
ber que os alunos entendem que a África é composta por mulheres negras, de
baixo poder aquisitivo e que ocupavam posições rudimentares no mercado de
trabalho, ou até mesmo que trabalham na lavoura para o próprio sustento.
Foi possível perceber que o entendimento dos alunos no que se refere às
mulheres asiáticas se restringia às suas características étnicas. Neste sentido, os
alunos afirmaram que “as mulheres da Ásia são brancas e possuem os olhos
puxadinhos”(Ernesto1, 2013). Além disto, é possível afirmar que a representação
das mulheres no Oriente Médio estava vinculada às representações religiosas,
por meio do reconhecimento de vestimentas, tais como a burca. Percebeu-se
que na Oceania não havia nenhuma característica que fosse capaz de fazer
com que os alunos tivessem uma representação acerca das questões abordadas
nesta atividade.
Interessante ressaltar que a única região que foi representada de forma
heterogênea foi a América do Sul, pois nesta região continha negras, brancas,
líderes políticas, mulheres com cargos executivos e vinculados à agricultura.
Chama-se a atenção de que este fato se deve por entenderem que o Brasil

1 Os sujeitos de pesquisa foram identificados por codinomes, com o objetivo de preservar a identida-
de dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

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representa a América do Sul e neste país haver grande diversidade étnica, socio-
econômica, cultural e religiosa.
Deu-se início aos questionamentos a partir da atividade realizada, quando
o executor da oficina questionou o porquê da concentração em cada região de
mulheres com características semelhantes. Os alunos responderam que este
fato se deve por “existir pessoas da mesma etnia e que há lugares mais desen-
volvidos do que os outros” (Antônia, 2013).
Os alunos afirmaram que este fato se deve por questões de exploração
destas regiões e a mesmas não serem desenvolvidas, no caso a África. A pro-
fessora regente explicou que esta região é caracterizada por índices de pobreza
elevados e ao mesmo tempo possuem mulheres, ainda que em menor intensi-
dade que ocupam altos cargos e outras que são brancas. E que neste sentido,
devem-se analisar as questões espaciais de forma complexa.
Foi explicado aos alunos que não é porque uma mulher habite um país
desenvolvido, seja sinônimo de que a mesma tenha os mesmos acessos obtidos
pela grande maioria da população. Isto porque ao mesmo tempo as regiões
vistas enquanto desenvolvidas, também há problemas socioeconômicos e as
regiões pobre também há parcela da população que possuem de significativo
poder econômico.
Sobre as questões étnicas foi explicado que estas regiões existem dife-
renças e, por exemplo, podem existir mulheres asiáticas em outros lugares do
mundo, da mesma forma que podem existir negras em outras regiões do espaço
global. Sobre as questões religiosas foi afirmado que as religiões são bem dis-
tribuídas ao longo do espaço global o que não significa dizer que cada região
possui características completamente delimitadas espacialmente.
Finalizou-se esta dinâmica questionando aos alunos percebem a composi-
ção socioeconômica, étnica, cultural e religiosa da mulher por entre as regiões
globais. Além disto, foi questionado se há possibilidade de ser diferente, se ana-
lisado a representação do mapa preenchido por eles. Os alunos apresentaram
que nas grandes regiões há diferenças, mesmo que em pequenas proporções.
Neste sentido realizou-se outra dinâmica acerca da representação por imagens
no outro mapa sem preenchimento.
Neste sentido, os alunos iniciaram a atividade, mas desta vez com um
olhar mais complexo no que se refere às temáticas trabalhadas tangem às
questões femininas contemporâneas pelo espaço global. Na realização da ati-
vidade os alunos reforçavam que na África existem mulheres brancas, louras,

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representatividades políticas e da mesma forma que na Europa existem mulhe-


res negras e com características étnicas asiáticas e outras variáveis.
Por meio da realização da presente atividade, foi possível observar que
as variáveis socioeconômicas, étnicas, culturais e religiosas se apresentaram de
forma heterogênea no mapa. Mas ressalta-se que mesmo os alunos tendo esta
consciência não desvincularam os estereótipos e representavam as diversidades
em menor intensidade nas regiões, neste sentido considera-se a atividade rea-
lizada relevante, pois possibilitou outro olhar por parte dos alunos, no que ser
refere a estas questões.
Neste sentido o executor da oficina questionou se os alunos sabiam
alguns dos motivos que são responsáveis por esta complexidade. Os mesmos
responderam que pelo próprio processo de colonização fez com que houvesse
deslocamentos de mulheres de algumas regiões do mundo para outras e este
fator fez com que existisse esta miscelânea socioeconômica, étnica, cultural e
religiosa ao longo das regiões globais.
Foi questionado se este fato que ocorreu neste período foi capaz de dar-se
início a esta diversidade no espaço global, e como ocorre este processo na atu-
alidade. Os alunos afirmaram que na contemporaneidade estes fluxos ocorrem
com maior intensidade, em função da própria facilidade de deslocamentos que
algumas pessoas detêm, o que possibilita que as mesmas se desloquem com
mais frequência pelas mais variadas regiões do mundo.
Além disto, foi discutido por meio das respostas obtidas em outro momento
da dinâmica, quando os alunos pontuaram que a mulher “é desvalorizada no
mercado de trabalho” (Manoela, 2013). O executor da oficina questionou aos
alunos se os mesmos sabiam o porque desta desvalorização da mulher em
suas posições de trabalho e sociais. Neste sentido os alunos afirmaram que “a
mulher é vista enquanto fraca e não podem assumir profissões masculinas e que
era vista enquanto capaz de cuidar apenas da casa, dos filhos e do marido”
(Narciso, 2013). Isto fez com que “a mulher não ocupasse papéis importantes
na sociedade por causa do machismo” (Antonieta, 2013).
Após este momento o executor da oficina explicou que, as próprias con-
cepções machistas que a sociedade tem, faz com que a mulher seja alvo destas
consequências negativas. E que por isso devem ser repensadas as concepções
destas questões pelos alunos e que isto reflita na família e na sociedade como
um todo. O executor da oficina terminou esta atividade afirmando que há a

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necessidade das mulheres se reconhecerem enquanto capazes de ocupar e


atuar em qualquer área de nossa sociedade.

Considerações Finais

É possível afirmar que as atividades realizadas com o alunos da rede


básica de ensino foram capazes de abarcar diversas questões e discussões rea-
lizadas na Universidade, sendo no que se refere ao entendimento das questões
socioeconômicas, políticas, culturais da mulher ao longo do espaço geográfico.
Além disto, é possível afirmar que a utilização dos temas transversais, possibili-
tou a realização de um trabalho complexo, que refletiu na formação crítica dos
alunos envolvidos nas atividades realizadas.
Além disto, foi capaz de abarcar de forma abrangente a própria temática
trabalhada no projeto executado. Neste sentido, as atividades desenvolvidas
contribuíram efetivamente, pois possibilitaram a representação feminina de
forma subjetiva despertando a criatividade, fazendo com que estes alunos des-
fizessem ideias preconcebidas e dessem início ao entendimento das questões
femininas como algo rico e valioso.

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Referências

BRASIL - Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


Apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998a.

_________. Parâmetros curriculares nacionais: Geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997b.

_________. Parâmetros Curriculares Nacionais: Temas Transversais: Orientação


Sexual. Brasília: MEC/SEF, 1998c.

_________. Parâmetros Curriculares Nacionais: Temas Transversais: Pluralidade


Cultural. Brasília: MEC/SEF, 1998d.

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DINÂMICAS DOS INSULTOS COMO FERRAMENTA DE


FORMAÇÕES EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

Flávia Luciana Magalhães Novais


Mestranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS
flanovais@gmail.com

Diego Carrilho da Silva


Graduando em Enfermagem UFRGS

GT 02 - Ativismos e Movimentos Sociais

Trazer à luz assuntos que tratem especificamente sobre diversidade sexual


e relações de gênero torna importante dentre muitas razões, devido ao grande
número de violências ocorridas contra a população LGBT. Assim, ações que
visem o enfrentamento contra essas violências se tornam fundamentais na
efetivação da cidadania e a garantia dos direitos humanos dessa população.
Neste contexto o Núcleo de Pesquisas em Sexualidade e Relações de Gênero
(NUPSEX), vinculado ao Programa de Pós Graduação de Psicologia Social e
Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cria o
Centro de Referência em Direitos Humanos, Relações de Gênero, Diversidade
Sexual e de Raça (CRDH).
O CRDH é um programa de extensão universitária que tem por objetivo
a articulações de projetos de extensão que atuem com a promoção de direitos
humanos de mulheres (cis, travestis e trans), pessoas lgbt e polulação negra. O
programa é composto por quatro projetos divididos em dois eixos principais
de atividades. Um dos eixos atua no acolhimento de pessoas em situação de
violência devido a sua orientação sexual, identidade de gênero ou raça, bem
como o acompanhamento e encaminhamento dessas pessoas para rede de
apoio especializada. O segundo eixo foca na formação em unidades de saúde
e comunidade em geral sobre as temáticas abordadas pelo CRDH, assunto que
será o foco deste relato de experiência.

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O projeto envolvido no eixo das formações intitulado Formação Para a


Rede de Saúde e da Educação Sobre Diversidade Sexual e Relações de Gênero.
O seu objetivo é qualificar profissionais que atuam na rede de saúde, segurança,
assistência social e educação, sobre diversidade sexual e corporal nas relações
de gênero, através de espaços coletivos de discussão teórico-metodológica. As
atividades desenvolvidas pelo projeto tem como foco a sensibilização das rela-
ções de gênero e sexualidade através de formações presenciais ou a distância.
Nas formações presenciais são realizadas oficinas com abordagem da educação
popular de Paulo Freire (1987), que objetiva a educação para a consciência polí-
tica. Bem como considera o educando como gerador de sua própria educação,
criando relações entre o seu objeto de estudo e a realidade.
Outro conceito fundamental é o de gênero que, para a norte-americana
Joan Scott (1995), como uma maneira de constituir as relações sociais através
de diferenças associadas aos sexos e é uma das primeiras formas de significar
as relações de poder. Sobre estas relações de poder, é essencial o entendimento
que o preconceito gera representações sociais que colocam alguns grupos em
situação de vulnerabilidade, gerando privações e violações de direitos individuais
e de grupos. E estas situações de privações e violações podem ser reproduzidas
em instituições ligadas a saúde e a educação. Sendo assim, é necessário que os
agentes destas áreas saibam desnaturalizar as relações de poder que alicerçam
atitudes discriminatórias.
Uma das oficinas realizadas pelo projeto é a Oficina dos Palavrões. A
dinâmica da atividade consiste em um momento no qual os participantes são
convidados a trazer para o grupo todos os tipos de insultos que conhecem e
então estes são escritos em um local visível para todos. A partir dos palavrões
são questionados os porquês destas palavras serem ofensivas, quem elas ofen-
dem e de qual maneira. Quase sempre as ofensas envolvem manifestações de
homofobia, sexismo, racismo, classismo, entre outros. A partir da análise de
uma destas oficinas propomos uma discussão a cerca das identidades que são
colocadas como ofensas e quais os mecanismos envolvidos na atribuição destas
identidades.
Bicha, viado, sapatão, pão com ovo, poc poc, bunita, barbie, fancha,
sapa, caminhoneira, tia, irene, cafuçu. Muito comumente utilizadas, estas pala-
vras nos apresentam identidades (Oliveira, 2015, Aguião, 2008, Filho e Palheta,
2008) ou modos de expressar o gênero e a sexualidade nos meios de sociabi-
lidade homossexual. Estes termos, muito mais que definir grupos distintos com

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características em comum, podem fixar posições de sujeitos hierarquizadas e


normatizadas através de marcações sociais e culturais de diferença.
Quando queremos descrever algo que não sabemos denominar, procura-
mos salientar características que apontam para especificidades determinantes
do objeto. Assim, a partir de definições do que é e do que não é, com o que
se parece e com o que não se parece, se é bom ou ruim, criamos as referên-
cias para que então nosso interlocutor possa interpreta-las e formular o objeto
que tentamos nos remeter. No processo de nomeação das identidades sexuais,
descritas acima, o processo é semelhante. Quando identificamos alguém por
alguma das categorias acima, estamos associando características baseadas nos
diversos marcadores sociais da diferença para descrever quem a pessoa é, de
onde ela vem, o que ela faz ou deixa de fazer. Entre os marcadores sociais
de diferença que aparecem nesses processos de negociação identitária estão
classe, raça, gênero, corporalidade, idade, para citar apenas alguns entre tantos.
O processo de identificação, tanto por auto atribuição ou atribuída por
outrém, significa fazer diferenciações (Silva, 2004), ou seja, numa sociedade
onde as relações sociais são desiguais essas diferenciações criarão grupos valo-
rizados ou desvalorizados, de acordo com o tipo de relações estabelecidas.
Portanto grupos poderão ser desvalorizados em relação a outros e desta forma
poderão ocorrer discriminações e consequentemente a violação de direitos
humanos. Relações desiguais aqui nos remetem às normas sociais que colocam
um padrão de cidadão de classe média, branco, heterossexual, cisgênero por
exemplo, como o modelo a ser seguido, e o que for diferente disso sendo os
“outros” ou os “diferentes”.
As relações que perpassam essas nomeações podem ser percebidas
quando analisamos qual (ou quais) marcador(es) estão imbricados no processo
de nomeação e ao que eles remetem socialmente. Por exemplo, a identidade
atribuída como “bicha pão com ovo” remete a um gay pobre que se veste mal
(Carvalho-Silva e Schilling, 2010). Logo, ao definir um gay como bicha pão com
ovo, o que está em jogo, pensando nos marcadores de diferença, é a marcação
de uma pessoa pertencente à classe baixa com pouco poder aquisitivo, asso-
ciando também a uma desvalorização em relação a pessoas de classe média
ou pessoas ricas com mais poder aquisitivo. Em estudo onde foram analisadas
as interações sociais nos meios de sociabilidade homossexual, França (2010)
relata que, em determinada boate de São Paulo, a vestimenta utilizada pelos fre-
quentadores definia os tipos de relações que aconteceriam entre eles. Podemos

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pensar, a partir disso que, ao identificar um gay como bicha pão com ovo, além
de o estarmos desqualificando por seu contexto de origem, estaremos também
delimitando suas possibilidades de ações em determinados contextos.
Vale destacar que não é somente a classe que opera nessas marca-
ções e delimitações. Outros marcadores também estarão presentes, de forma
concomitante, definindo privações e privilégios de acordo com as relações esta-
belecidas. Se pensarmos também que as bichas pão com ovo podem ser ou não
associadas com comportamentos ditos como afeminados, podemos perceber
que, junto com a classe, estarão em análise as formas como esse gay age na
sociedade. Portanto também serão classificadas de acordo com sua performati-
vidade de gênero, ou seja, os modos como expressam o gênero (Butler, 1991). A
referência às “bichas poc poc ou quá quá” como “extremamente” afeminadas,
com voz fina e geralmente mais novas também fornece pistas sobre essas dife-
renciações. Estas identidades são extremamente rechaçadas e normalmente são
considerados como modelo aos estereótipos do gay nos meios de comunicação
e entretenimento (Araújo, 2008). Estas configurações de marcadores também
atuarão nas relações estabelecidas quando os objetivos forem as possibilidades
de interação afetivo-sexual.
No que tange aos comportamentos sexuais, deparamo-nos com uma
hierarquia na qual os comportamentos são classificados conforme se aproxi-
mam ou se distanciam das normas sociais de masculinidade e feminilidade. Os
comportamentos que são tidos como remetendo à feminilidade, como o papel
passivo no ato sexual (as “passivas”), são comumente vistos como inferiores se
relacionados aos papeis ativos relacionados a masculinidade (os “ativos”). Em
diversos estudos sobre a “pegação” e prostituição entre homens, a masculini-
dade é tida como moeda de troca importante (Perlongher, 1987, França, 2014)
e define as configurações dos pares que atuarão no ato. Conforme forem apre-
sentado comportamentos que se distanciem da figura do macho, os mesmos
vão sendo menos desejáveis e então sofrerão penalidades (Oliveira, 2015) que
definirão aqueles que conseguirão mais ou menos parceiros.
O “cafuçu” (Soares, 2012) identidade que associa gays com classe social
baixa, mas com uma corporalidade tida como desejável (musculoso e “pegada
forte”), acaba tendo maior notoriedade por ser uma identidade atribuída à uma
masculinidade considerada “viril”, o que o coloca num nível de desejabilidade
alto por apresentar as características do macho ideal (Oliveira, 2015). Essa cate-
goria normalmente é atribuída não só a homossexuais como também se refere

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a heterossexuais com as mesmas características. Entretanto as identidades não


são fixas e apresentam certa fragilidade. A problemática desta identidade ficaria
relacionada à questão da raça, pois o termo remete a uma hipersexualização do
corpo negro, impondo que estes somente serão são aceitos nos jogos eróticos
caso apresentem, além das características associadas à masculinidade, compor-
tamento sexual ativo e possuir um pênis grande, reafirmando o estereótipo do
homem negro (Souza, 2009).
Entretanto, ainda em Silva (2004) vemos que as identidades apresentam
fronteiras que podem ser subvertidas dependendo da forma como são elas são
delimitadas. As questões da hipersexualização inscrevem esses corpos em rela-
ções ambíguas quando consideradas as articulações entre desejo, classe social
e raça. Em estudo sobre as homossexualidades negras em favelas do Rio de
Janeiro, Moutinho (2006) constatou que apesar dos preconceitos e da sujei-
ção do homem negro às desigualdades sociais, estes apresentam uma maior
gama de possibilidades de circulação em meios privilegiados e maior chance
de novas experiências vividas em comparação a mulheres lésbicas negras e
homens heterossexuais negros.

Considerações Finais

A dinâmica dos insultos se torna importante no trabalho destas identida-


des, pois ela traz os mecanismos de atribuição que é bem marcado a partir dos
marcadores sociais da diferença e as formas de hierarquias criadas por elas. A
naturalização destas nomenclaturas que ocorre no meio homossexual confunde
essa discriminação em forma de humor terminando por ser aceita por toda
comunidade. Nas atividades propostas pelo centro, que envolvem formação a
partir de rodas de conversas, tratar destas identidades é importante para, além
de desnaturalizar esse humor, também utilizar da ambiguidade que elas pos-
sam ter e assim apresentar as diversas formas de expressar as sexualidades e o
gênero, para que também se desnaturalizem as possíveis rigidez em expressões
esperados por normas sociais.

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Referências

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BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-


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para versão do artigo “Contingent Foundations: Feminism and the Question of
Postmodernism”, no Greater Philadelphia Philosophy Consortium, em setembro de
1990.

CARVALHO-SILVA, HAMILTON HARLEY DE, SCHILLING, FLÁVIA. Fronteiras Da


Sexualidade, Fonteiras Do Consumo: Sobre Jovens Homossexuais Do Subúrbio De
São Paulo. Seminário Internacional Fazendo Gênero 9 : Diásporas, Diversidades,
Deslocamentos. - Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.

FILHO, MILTON RIBEIRO DA SILVA, PALHETA, SANDRA PEREIRA. Ser Ou Não


Ser? Os Gays Em Questão: Uma Leitura Antropológica Das Gírias Utilizadas Pelos
Homossexuais De Belém-Pa.   In: 26a. Reunião Brasileira de Antropologia, 2008,
Porto Seguro. 26a. Reunião Brasileira de Antropologia, 2008.

FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexu-


alidade, consumo e produção de subjetividades na cidade de São Paulo. Tese de
doutorado (Ciências Sociais). Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Unicamp, 2010.

MOUTINHO, LAURA. Negociando com a adversidade: Negociando com a adversi-


dade: Negociando com a adversidade: reflexões sobre “raça”, reflexões sobre “raça”,
reflexões sobre “raça”, (homos)sexualidade e (homos)sexualidade e desigualdade
social no Rio de desigualdade social no Rio de Janeiro Janeiro. Estudos Feministas,
Florianópolis, 14(1): 336, janeiro-abril/2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/
Tomaz Tadeu da Silva (org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.

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desafios e potencialidades de nos re-inventarmos

SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SOUZA, ROLF RIBEIRO DE. As Representações do Homem Negro e suas consequên-


cias. Revista Forum Identidades. Ano 3, Volume 6 | jul-dez de 2009.

OLIVEIRA, TIAGO DE LIMA. Viado Não, Canibal: masculinidade, sexualidade e


produção de cidade a experiência do homoerotismo em João Pessoa – PB. Revista
Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 235 - 249, ago.
/ dez. 2015.

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SOBRE “EU NÃO QUERO VOLTAR SOZINHO”


EM SALA DE AULA.

Lídia Lobato Leal


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás- IFG,
Doutoranda do Grupo OLHO/FE/UNUCAMP.

A presente reflexão se dá a partir de um módulo de aulas da disciplina


Arte, realizada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiás
-Campus Goiânia, em 2015. O módulo era “Quem sou eu?” e foi aplicado em
turmas do 1º ano do Ensino Técnico Integrado ao ensino médio em Eletrotécnica,
Instrumento musical e Controle Ambiental.
Na modalidade Técnica Integrada ao Ensino Médio, o/a discente estuda as
disciplinas básicas do ensino médio formal integrado às disciplinas da formação
profissional à que está vinculado/a via prova de acesso.
A disciplina Arte, no IFG é oportunizada aos/as discentes tendo como
proposta as quatro linguagens da arte ( dança, teatro, música e artes visuais)
que por estarem apenas no 1º ano do ensino médio são trabalhadas pelos/as
professores/as especializados/as em cada uma das linguagens, no prazo de um
semestre.
Dentro deste módulo “Quem sou eu?”, busquei trabalhar, em artes visuais,
com os atravessamentos que a pergunta gera. Com as produções de sentidos
amparadas pela diversidade étnica, de gênero, sexual e religiosa. Os objetivos
eram: experimentar/fruir, debater e produzir imagens (fotográficas e vídeos) que
deveriam ser debatidas novamente quando de sua exibição em sala de aula.
Além das referências bibliográficas de artes, também utilizei referên-
cias visuais com obras de Sammy Sfoggia, Yasumasa Morimura e Frida Khalo.
Referências áudio visuais foram: “Uma história de amor e Fúria”1, “ Eu não quero

1 Luis Bolognesi, animação, Brasil, 2013

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voltar sozinho”2 e trechos de “Yndio do Brasil”3. Todas essas referências buscavam


alinhavar a proposta da experimentação em arte, do debate sobre o tema “quem
sou eu?” expandindo para uma educação pela diversidade através da exibição
dos trabalhos dos alunos e das imagens (tanto paradas quanto vídeos/filmes).
Quando o filme de 17 minutos “Eu não quero voltar sozinho” foi apre-
sentado em sala de aula, especificamente na turma do curso de Eletrotécnica,
tínhamos visto imagens de Yasumasa Morimura, travestido de Frida khalo na
semana anterior, era uma fotografia onde o artista “reelabora”, a partir de todo
um reposicionamento de sentidos, a si mesmo como Frida Khalo. A discussão
sobre este trabalho de Morimura solicitou dos alunos um esforço de trans-
bordamento de subjetividades para entender as conexões sobre este “quem
sou eu-outro?” que cada um de nós pode ser. Conversamos sobre arte, sobre
feminismo, sobre sexualidade, sobre ser gente, sobre as peles craqueladas que
teimam em ser contidas nos cubículos cartesianos, aquelas peles que se esgar-
çam para além desses limites e os possíveis porquês de Morimura escolher
aquela forma de expressão para sua arte.
Na semana em que trabalhamos com a obra de Morimura, os/as discentes
tinham que trazer uma atividade de colagem que deslocasse alguém de sua posi-
ção de conforto e convencionalismo da produção de subjetividades cultural e
social. Fomos ver as colagens produzidas e mais uma vez muitas questões foram
expostas, sempre nos pautando pelo respeito à diversidade humana em suas
formas de expressão. Mas principalmente eu buscava me basear no “agridoce
prazer da experimentação” (TADEU, 2004, p.12) e propunha àqueles/as jovens
também embrenharem-se no jardim rizomático proposto por Gilles Deleuze.
Nessa atividade vimos corpos distorcidos, coloridos, maravilhosos e tam-
bém assustadores, todos eles foram fruídos por todos os alunos presentes e
foram expostas as formas de fazer, mas, principalmente as experiências e possi-
bilidades que aquelas imagens apontavam.
A surpresa se deu quando fomos assistir “ Eu não quero voltar Sozinho”,
onde inverti a ordem de experimentação para iniciar com um exercício de frui-
ção, o que é muito comum em se tratando do ensino de arte. (Atenção: spoiller)
Exatamente na cena ápice do filme (beijo entre os dois personagens principais)

2 Daniel Ribeiro, Brasil, 2010.


3 Sylvio Back, Brasil, 1995.

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um aluno começa a xingar e falar alto que ele não era obrigado a ficar na sala
vendo “pouca-vergonha”, ficou muito nervoso e saiu. Eu não parei o filme, nem
fui atrás para tentar conversar com ele, pois fiquei preocupada em como a
turma reagiria à situação. Era uma turma de 26 alunos do curso de eletrotécnica,
em sua maioria meninos. Então após o fim do filme fomos realizar o debate
tanto sobre o ocorrido quanto sobre os possíveis porquês de tal reação. Ouvi
dos alunos que era mesmo difícil ver um filme onde meninos da idade deles se
beijavam que isso contrastava com o que tinham aprendido em casa, mas que
estavam percebendo que amor, é amor, independente de ser entre meninos
com meninos ou meninas com meninas. Confessaram que existe uma enorme
pressão da parte da família e da sociedade para que sigam padrões preestabele-
cidos e que era muito difícil viver seguindo tais expectativas. Foi uma conversa
muito enriquecedora, pois aqueles adolescentes sentiram, experimentaram a
possibilidade de expressarem as pressões a que estão expostos.
Depois tentei conversar com o aluno que saiu da sala, mas ele nunca
mais voltou à minha aula. E ainda hoje fico me perguntando se segui por um
caminho que “retirou” da aula de arte um adolescente ou se os que ficaram é
que aprenderam algo sobre o que é viver nesse mundo “Demasiado Humano”.
Ainda ronda sobre mim esta sombra que aflige muitos docentes. Eu pode-
ria ter utilizado metodologias mil para trabalhar o filme, talvez devesse ter
preparado mais os/as fruidores/espectadores para aquela aula, mas isso eu acho
que nunca saberei. O que sei é que este acontecimento está sempre em minha
mente quando estou preparando um módulo de aulas, uma aula específica e
buscando imagens e filmes para compor um repertório. Mas, como busquei
trabalhar pela filosofia da diferença utilizo um quase-mantra: faça rizoma, não
enraíze, nem plante (DELEUZE e GATTARI, 1995). Isso me faz pensar que existe
uma complexidade na relação que se estabelece entre o/a fruidor/espectador de
uma obra e a obra em si, essa complexidade ativa forças criativas, subjetivas que
podem revelar pulsões, metáforas, abstrações e poéticas das mais variadas for-
mas, oportunizando transformação em todos os envolvidos no processo ( ROSSI,
2003). Ou poderíamos ainda nos refugiar em Heródoto para lembrar que nunca
mais seremos os mesmos após nos banharmos no rio e nem o rio será o mesmo.
Busco refletir este acontecimento pela vertente de partilha do sensível
proposto por Jaques Rancière (2009) onde o político atua nas subjetividades,
onde somente se participa da sociedade, da cultura, da arte, da política pelo
engajamento, do ruído e do silêncio como forma de experiência. Então, quando

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aquele aluno xingou, não era a mim que ele queria atingir, mas atingiu, porque
não passamos por esse tipo de situação ilesos. Seus gritos representavam silen-
ciamentos sucessivos de como deveria se comportar, do que era esperado dele
enquanto menino hétero. Aquela reação representou sua experiência de estar
no mundo e ser pressionado por anos a fio a fazer o que se esperava dele: Uma
reação violenta ao que é diferente do que lhe fora ensinado em casa. Cabe à
sociedade como um todo assumir a responsabilidade da fratura e da descons-
trução a essas expectativas tanto para o que é “masculino” quanto para o que é
“feminino”, para a sexualidade CIS ou não.
Como a arte, através das imagens que disponibiliza, pode ser agente de
ação nas frestas? A resposta, suponho, está na própria pergunta. Nas frestas!
Nos entre lugares, na partilha de subjetividades outras, que não estão dispostas
nas prateleiras dos conhecimentos enlatados a que muitos professores se acos-
tumaram, seja através dos livros didáticos, dos artistas consagrados neoclássicos
_e até modernos, ou nos filmes cheios de clichês que muitas vezes são exibidos
em sala para passar o tempo.
Diz-nos Rancière (2009) que, as “práticas estéticas” se vinculam às praticas
artísticas que intervém nas maneiras de distribuição, nos fazeres, nas suas rela-
ções com maneiras de ser e formas de visibilidade, ou seja, a arte possibilita outras
intervenções, fazeres, maneiras de ser e também contribui para uma elaboração
e novos repertórios de visibilidade. Em resumo: Compõe-se política com ima-
gens, pois elas revelam/escondem/ampliam/esvaziam as possibilidades de estar
no mundo. Essa partilha da sensibilidade é corroborada por Judith Butler não nos
termos que Rancière nos apresenta, mas pelo seu caráter político, a saber: “ O
poder que a princípio parece externo, pressionado sobre o sujeito, pressionando
o sujeito à subordinação, assume uma forma psíquica que constitui a identidade
do sujeito” (BUTLER, 2011, p. 13- tradução nossa). Dentro dos mecanismos que
constituem as subjetividades do sujeito e sua identidade, estão as imagens com
as quais este sujeito se relaciona cotidianamente e que lhe conferem também
subjetividades e identidades. Com suas voltas especulares sobre si mesmas, as
imagens podem promover as fratura de nossas certezas ontológicas.
Quiçá isto tenha acontecido no percurso desta aula que relatei, pois espero
que tanto para minha prática docente, quanto para os discentes que ali se encon-
travam e principalmente para aquele que interrompeu o processo de fruição do
filme aos gritos e xingamentos, tenham todos passado pelo processo, pela expe-
rimentação, pela inquietação, pela dor de ser confrontado e de ter as certezas
sacudidas.

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Referência Bibliográficas

BUTLER, Judith. Mecanismos Psíquicos del Poder - Teorías sobre la sujeción. 3ª ed.
Barcelona-ES: Ediciones Cátedra, 2011. Trad. Jacqueline Cruz.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs- capitalismo e esquizofrenia. Volume I.


Rio: Editora 34, 1995. Trad. Aurélio Guerra Neto.

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível- estética e política. 2ª ed. Rio: Editora 34,
2009. Trad. Mônica costa Netto.

ROSSI, Maria H. Wagner. Imagens que Falam- Leitura da arte na escola. 2ª ed. Porto
Alegre: Editora Mediação, 2003.

TADEU, Tomaz. A Filosofia de Deleuze e o Currículo. Goiânia: Faculdade de Artes


Visuais, 2004. 74p. (coleção Desenrêdos).

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GRUPOS DE FAMILIARES DE PESSOAS TRANS: CONSTRUINDO


SABERES E POSSIBILITANDO ENCONTROS

Eric Seger de Camargo


Graduando em Educação Física da UFRGS
eric.w.seger@gmail.com

Fernanda Carrion da Silva


Mestranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS
carrionfe@gmail.com

Flávia Luciana Magalhães Novais


Mestranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS
flanovais@gmail.com

GT 02 - Ativismos e Movimentos Sociais

O Centro de Referência de Direitos Humanos (CRDH) é um projeto de


extensão vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de
Gênero (NUPSEX) no qual pensam-se as ações de acolhimento às pessoas vio-
ladas em seus direitos referentes a gênero, sexualidade e raça, enquanto uma
escuta qualificada de sujeitos que vivenciam violências e discriminações asso-
ciadas à homofobia, lesbofobia, transfobia, racismo e sexismo. Dentre as muitas
atividades realizadas, podemos destacar acompanhamentos e encaminhamen-
tos para a rede de atenção às políticas públicas e espaços de direitos humanos,
além da execução semanalmente de uma roda de conversas com/entre familia-
res de pessoas trans11, que será o tema deste relato.
As ações do CRDH tem como foco principal a promoção do respeito às
mais variadas formas de expressão da sexualidade, tendo uma atuação focada

1 Pessoas que não se identificam com o sexo e gênero correspondente ao que lhes foram designados
no momento de seu nascimento.

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em atividades de cunho educativo dentro do espaço universitário, na rede de


políticas públicas e também na sociedade civil como um todo. Contando com
uma equipe multidisciplinar composta de estudantes e profissionais de áreas
da Psicologia, Serviço Social, Educação Física, Enfermagem, pensam-se ações
baseadas nos preceitos da Clínica Ampliada do SUS, cujo foco se dá na pre-
venção da saúde e promoção da qualidade de vida, fazendo uma crítica ao
modelo médico/hospitalocêncrito/curativo/tecnológico (Brasil, 2009). Ou seja,
percebe-se o homem como um todo, considerando suas dimensões psicoló-
gica, biológica, social, histórica e política e dando voz ao sujeito para que ele
participe ativamente de seu processo de saúde.
De acordo com Peres (2010), o diálogo com outros saberes surge como
possibilidade de uma escuta clínica e institucional que vai além do recorte
psicológico, para se compor com os processos psicossociais, políticos e cul-
turais, de modo a tomar as cenas e discursos como complexidades que são
constituídas por diversos componentes de subjetivação na feitura dos sujeitos
contemporâneos.
A partir dos acolhimentos realizados por membros do grupo junto a pes-
soas trans, percebeu-se que muitos dos embates nas vidas dessas pessoas se
relacionava com a dificuldade de compreensão de suas famílias acerca de suas
identidades de gênero. Muitas das vezes a falta de compreensão sobre o tema,
dúvidas e incertezas são determinantes para que muitos familiares/responsáveis
por jovens trans não consigam acolhê-los e dar algum tipo de suporte, o que
dentre muitas outras coisas está relacionado à situação de vulnerabilidade e
abandono que muitas dessas pessoas encontram-se.
A roda de conversa proposta pelo CRDH surgiu como a possibilidade de
criar um espaço onde familiares e/ou responsáveis por pessoas trans possam
trocar experiências, com o objetivo de que assim todos possam conhecer muito
mais sobre a temática, longe de julgamentos carregados de preconceito. A idéia
é que a partir do acompanhamento desses encontros, a equipe do CRDH ajude
a esclarecer algumas dúvidas e fomentar as discussões , além de dar apoio aos
participantes e seus familiares ou responsáveis.
A importância desse tipo de espaço é tido a partir da possibilidade de
repassar informações acerca do tema das transexualidades, bem como dar
suporte à familiares que estejam em processo de muito sofrimento - que é
causado muitas das vezes pela total falta de conhecimento acerca do tema.
São encontros onde os familiares e/ou responsáveis trazem à tona dúvidas,

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incertezas, medos e curiosidades sobre a população trans. A troca de experiên-


cias é uma ferramenta muito importante para a compreensão da transexualidade
não como uma patologia, e na construção de uma sociedade mais tolerante e
diversa, já que esses familiares, uma vez que fortalecidos, podem se configurar
em multiplicadores da discussão acerca das identidades de gênero para além
do binarismo hegemônico.

O grupo

O grupo formado pela CRDH se caracteriza por ser aberto, o que implica
que as pessoas não precisam estar presentes em todas as reuniões e que pes-
soas novas podem ser integradas ao mesmo durante a sua execução. Outra
característica é que esse grupo também é hegemônico, ou seja, as famílias que
irão participar das reuniões não passam por uma triagem prévia e não se cons-
tituem critérios de inclusão e de exclusão para as pessoas integrarem o grupo.
Desse modo, tem-se a peculiaridade de que durante os encontros há a presença
de diferentes pessoas ao longo dos encontros, em diferentes níveis de contato e
engajamento com movimentos transativistas, o que cria rico espaço para con-
versas e debates entre as famílias que o compõe.
Os primeiros três encontros do grupo foram pautados por conversas livres
entre as famílias que o compõe. As pessoas ocupavam o tempo narrando suas
trajetórias com a/o familiar transexual e, principalmente, compartilhando infor-
mações, experiências e modos de facilitar o processo transexualizador de suas/
seus familiares. Entretanto, a equipe percebeu um esvaziamento de pautas após
três semanas dessa modalidade de encontros, as mesmas pessoas falando de
forma a ocupar todo o momento do grupo, além das/os componentes do grupo
solicitarem por algumas respostas da equipe.
Desse modo, foi proposto que os integrantes do grupo, juntamente com
a equipe facilitadora, montassem um cronograma de assuntos de interesse das
famílias a serem debatidos nos encontros seguintes. Chegou-se às seguintes
temáticas: questões geracional, de orientação sexual e de identidade de gênero;
mudanças corporais e visuais decorrentes do processo transexualizador; invisi-
bilidade de homens trans; cisgeneridade e cissexismo; diagnóstico de loucura
e disforia de gênero; procurando sinais/pistas/causas das identidades transexu-
ais; movimentos de despatologização das identidades transexuais; adaptação
da família com os nomes e pronomes que as pessoas revogam durante e após

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o processo de transexualização; processo de culpa evergonha ao revelar para a


família ampliada e conhecidas/os da família acerca do processo transexualiza-
dor de um/a familiar; e, preocupações das/os integrantes do grupo com o futuro
e relações pessoais/profissionais de sua/seu familiar transexual. Vale ressaltar
que essas temáticas são abordadas pelas/os integrantes do grupo, de modo a
compartilharem suas experiências de acordo com os tópicos estipulados.
As demandas que mais aparecem por parte das pessoas que integram
o grupo durante os encontros é esclarecimentos acerca de nomenclaturas de
cisgeneridade, transexualidade, binarismo, não-binarismo e para que as famílias
narrem como é o processo transexualizador de sua/seu familiar. A equipe faci-
litadora dos encontros estimula que as/os integrantes do grupo debatam acerca
das questões e se posiciona de modo pontual, com o intuito de fomentar os
debates e possibilitar que se criem identificações entre as pessoas.

Considerações finais

Percebe-se que, durante os encontros do grupo, as pessoas criam redes


de apoio, alargando ou modificando suas percepções acerca de sua dinâmica
familiar e sobre sua relação com sua/seu familiar transexual. Quando as/os inte-
grantes do grupo compartilham suas experiências e recebem retornos de pessoas
que passam por situações parecidas, acabam por compreender de forma mais
congruente como podem modificar suas percepções patológicas acerca da
transexualidade. Para além, a potência mais evidente durante os encontros é a
aceitação que essas famílias estão sentindo em relação ao processo transexua-
lizador de sua/seu parente.

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Referências

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de


Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada /
Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização
da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009.

PERES, Willian Siqueira. Cartografias clínicas, dispositivos de gêneros, Estratégia Saúde


da Família. Estudos Feministas, Florianópolis, 18(1): 288, janeiro-abril/2010.

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DISCUTINDO GÊNERO E SEXUALIDADE NO ENSINO MÉDIO:


AMPLIANDO O DIALÓGO ENTRE FUTUROS PROFESSORES

Julio Cezar Pereira Araujo


Graduando em Licenciatura Plena em Pedagogia
Univerisdade Federal Fluminense - Bolsista PIBID/CAPES
juliocezar.p.araujo@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

Introdução

Este trabalho tem como objetivo relatar uma intervenção realizada em


uma escola Estadual, no município de Santo Antônio de Pádua/Rio de Janeiro,
durante atividades do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência), onde discutimos questões de gênero e sexualidade no ambiente
escolar. Como metodologia fez-se uso de oficinas, vídeos e dinâmicas de gru-
pos, desenvolvidos com alunos do 3º ano do Ensino Médio Curso Normal
(Modalidade Formação de Professores) com 22 alunos (17 meninas e 5 meninos)
entre 17 a 23 anos.
As atividades propostas (PIERRO; ORTIZ, 2011), atravessaram as ativida-
des que estavam sendo desenvolvidas de acordo com o cronograma do projeto.
O projeto inicial, visou uma prática pouco difundida nas escolas públicas bra-
sileiras: a orientação profissional com formandos do ensino médio de formação
de professores. Nossa inserção se justificou pelo fato de que, ao realizarmos
atividades do PIBID/CAPES, verificamos que os alunos desta escola demonstra-
vam desânimo e pouco interesse em seguirem na carreira docente após os três
anos de formação integral. Ao iniciarmos os encontros da orientação profissio-
nal fundamentada na abordagem sócio histórica (BOCK, 2002), possibilitamos
aos participantes um espaço para refletir sobre quem são, o que querem, seus
medos e angustias quanto a suas escolhas e principalmente visualizar os desa-
fios futuros com mais consciência e responsabilidade.

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Ao percurso que se foi construindo as discussões, a temática de gênero e


sexualidade revelou-se. Durante o período de execução do projeto, duas alunas
foram vistas no banheiro da escola se beijando, e ao entrarem no banheiro, duas
colegas presenciaram a cena. Velozmente, a situação foi propagada pelo colé-
gio, ampliando o número dos sujeitos que estavam sabendo do ocorrido. Toda
a cena, ocasionou constrangimentos as alunas, que foram pressionadas pela ins-
tituição escolar a contarem o ocorrido aos seus familiares. O caso é encerrado
com a transferência escolar das duas meninas (“por uma livre espontaneidade”).
Ao meu ver, a escola não é um espaço para que estas práticas sejam realizadas
(relações afetivas), mas se compreendermos a atitude binária que está por trás
deste contexto, perceberemos que se fosse um casal heterossexual, a situação
não teria se propagado desta forma, pois está naturalizado em nosso cotidiano
a ideia da sexualidade, envolvendo apenas o homem e mulher. A escola está
situada em uma cidade do interior do Rio de Janeiro, ao qual, consideramos
conservadora. Em sua maioria, a equipe escolar é composta por católicos e
evangélicos, tornando o conservadorismo uma prática constante na escola.
Percebendo a necessidade de levantamento do tema, tivemos como obje-
tivo, desmitificar um tabu de resistência encontrada no âmbito escolar, no que
diz respeito as discussões de gênero e sexualidade nas escolas, pois os mesmos
encontram-se em formação, sendo fundamental para a construção identitária
do professor.

Gênero enquanto campo de disputa

Desde os primórdios, a categoria de gênero é apresentada com atribui-


ções distintas. O ser feminino, deve possuir uma trajetória de mãe, mulher
“prendada”, doce, sem ambição profissional, “recatada e do lar”. Já a trajetória
masculina, deve ser voltada para a competividade, liderança, força bruta e com
o impedimento de demonstrar suas fraquezas, derrotas ou até mesmo chorar.
Estas fundamentações nas diferenças, estão diretamente ligadas a produção de
hierarquias de gênero (Meyer, 1996).
Portanto, desempenhar um papel de menino/a ou homem/mulher, são
atributos construídos perante a vivência sociocultural que estabelecemos com
o meio em que vivemos. Joan Scoot define o gênero como “um elemento cons-
titutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e
o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (1995, 86).

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Atualmente, as relações de gênero viraram um campo de disputa, seja


ela social, individual, política, familiar, religiosa, etc. Como não poderia ser
diferente, a escola não está desassociada destes grupos sociais. Devemos reco-
nhece-la enquanto um dispositivo que não é neutro. A mesma, encontra-se
atrelada a conceitos pré-produzidos e reproduzidos. Fica visível o quanto os
assuntos voltados para o gênero e sexualidade se evidenciam no cotidiano
escolar, mas discutir estas temáticas em um curso de formação de professo-
res, ainda é um tabu a ser enfrentado. Mesmo como futuros professores, eles
não possuem nenhuma discussão teórico-metodológica, ou leituras relevantes
a temática. Partindo desta análise, que decidimos iniciar as atividades, trans-
pondo as atividades iniciais da orientação profissional.

Relatando a experiência: gênero e sexualidade em disputa

No início, refletir sobre as atividades que poderiam ser aplicadas foi


uma tarefa árdua. Não estávamos produzindo com crianças, onde o lúdico
se faz presente e eficaz. Neste caso, estávamos com adultos, que já possuem
conceitos moldados pela sociedade. Seguramente, estes futuros professores,
encontrarão episódios que necessitarão de uma reflexão sobre as temáticas.
Como organização metodológica, foram realizadas oficinas, vídeos e dinâmi-
cas de grupos. Neste relato, elucidarei três atividades que foram desenvolvidas
durante o projeto.

Atividade 1 - Aparelho excretor reproduz?

Objetivo: Discutir o tema da homofobia, a fim de tirar as dúvidas dos


educandos, promovendo nos alunos, uma tomada de consciência em relação a
seus estigmas e pré-conceitos.
Desenvolvimento: Exibimos alguns vídeos que trataram da questão de
gênero na escola e como algumas atitudes influenciam na geração futura e como
trabalhar com estas questões nas escolas. Em seguida, focamos no assunto da
homofobia onde exibimos o vídeo “Levy Fidelix e o aparelho excretor – Bee
comenta”
Resultados alcançados: A partir dessa atividade, conseguimos alcançar
uma série de reflexões que fizeram os alunos repensarem seus preconceitos de
gênero e de sexualidade.

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Atividade 2 - Concordo e discordo

Objetivo: Identificar as percepções dos/as jovens sobre as relações de


gênero no cotidiano e, a partir disso, debater com o grupo sobre as questões e
pontos de vista mais polêmicos.
Desenvolvimento: Dinâmica do concordo e discordo.
Apresentação de fichas com frases para que possam ser lidas e discutidas
pelos alunos.
Exemplos:
• Hoje em dia, os homens estão menos machistas do que antigamente.
• As garotas de hoje desejam encontrar um homem para casar e têm
medo de ficar sozinhas.
• Existem coisas só para meninos, como futebol, e coisas só para meni-
nas, como cozinhar e dançar ballet.
Resultados alcançados: A principal intenção foi alcançada, que era gerar
discussão sobre os assuntos abordados e gerar uma reflexão sobre o nosso posi-
cionamento perante a sociedade ao qual estamos inseridos.

Atividade 3 - Mural interativo: tem gente de todo o tipo

Objetivo: Contribuir para a ampliação do repertório dos alunos sobre


as masculinidades e feminilidades possíveis, bem como estimular o respeito à
diversidade no espaço educativo.
Descrição da atividade: A ideia desta atividade é construir, junto com os/as
alunos/as, um painel com imagens de homens e mulheres realizando atividades
que rompam com o “modelo comum” de masculinidade e feminilidade, com
o qual outros/as alunos/as e funcionários/as possam interagir. Posteriormente,
produzimos uma discussão sobre os resultados da atividade. Sua realização
consiste em três etapas:
1ª ETAPA: Os alunos foram convidados a procurar imagens que retratem
situações “pouco comuns” (aquelas que rompem com a concepção tradicional
dos papéis de homens e mulheres), como, por exemplo: homem cozinhando
para uma mulher; mulher exercendo cargos predominantemente masculinos;
homens dançando ballet; mulher grafitando; homens usando saia.
2ª ETAPA: Os alunos organizaram as imagens selecionadas no painel de
cartolina e pensaram com eles poderiam estimular os outros a refletir sobre o

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que estava sendo exposto. Cada grupo recebeu uma lista com diversos adje-
tivos. Estes adjetivos foram usados para nomear as figuras trazidas por eles.
Exemplos:

BONITO/A CORAJOSO/A MODERNO/A


FORTE ESTILOSO/A CUIDADOSO/A

3ª ETAPA: A discussão com os/as alunos/as tratou dos preconceitos exis-


tentes em relação a estilos, comportamentos e atitudes das pessoas. Por que
um homem bailarino é taxado de “bonita”? Um homem pode gostar de andar
de skate e costurar ao mesmo tempo? Uma mulher pode trabalhar como piloto,
manobrista ou mecânica? Como ela é vista pela sociedade? Há situações na
escola/instituição em que os meninos são considerados “veados”, ou as meninas
são consideradas “mulher-macho”? Incitar o respeito à diversidade e a negação
de práticas discriminatórias foi o objetivo final desta atividade.
Resultados alcançados: A produção desta atividade, gerou uma ótima
reflexão e discussões sobre as imposições de feminilidades e masculinidades.
Além disso, a desconstrução de estereótipos foi levantada a todo momento,
dando espaço a novas concepções e novos olhares sobre o outro.

Exposição do trabalho final produzido por alunos do 3º ano do Ensino Médio.

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Análise e discussão dos resultados

O projeto que se iniciou com a abordagem da orientação profissional,


precisou ser interrompido para que as discussões de gênero e sexualidade
entrassem em cena. Os/as alunos/as foram solícitos as demandas existentes.
Mas, discutir está temática, é uma tarefa árdua. As atividades nos evidenciam
que os sujeitos carregam consigo trajetórias, convicções e conceitos pré-estabe-
lecidos que lhes foram atribuídos.
A atividade 1, surgiu para evidenciar uma “normalidade”, nas discussões
sobre a homossexualidade. Após a exibição do vídeo intitulado: “Levy Fidelix
e o aparelho excretor”, discutimos sobre a polêmica levantada pelo candidato
Levy Fidelix em campanha à Presidência da República. Os/as alunos/as se
posicionaram de forma clara e respeitosa, frente aos assuntos discutidos. Não
tivemos a intenção de “converter” pensamentos, ou muito menos, tornar as
ideias um parâmetro, mas levar os/as alunos/as, a refletiram sobre o que os
tocavam naquele momento, sobre o social, sobre o que a escola não aborda.
Para Larrosa (1994, p.36), “o mais importante não é que se aprenda algo exte-
rior, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma
forma de relação reflexiva ao educando consigo mesmo”.
A influência religiosa de muitos/as alunos/as fez-se presente e algumas das
falas eram reproduzidas da ótica social. A discussão foi sustentada, por perce-
ber que precisamos dar visibilidade as minorias (homossexuais, travestis, trans.) e
principalmente, respeitá-los. Enquanto futuros professores, tentamos realizar uma
reflexão para o âmbito educacional, mostrando que a sexualidade é um processo
natural do conhecimento do corpo. Para Schindhelm (2011, p. 5) a sexualidade “é
produto de um trabalho permanente de ocultação, de dissimulação ou de misti-
ficação na escola, um reflexo do que se produz da mesma forma na sociedade”.
A meu ver, a atividade 2 foi uma atividade simples e sucinta, no que se
diz respeito a atingir os objetivos. Notoriamente, alguns/mas alunos/as reprodu-
ziram discursos do senso comum, como exemplo: “Eu acho que a mulher deve
sim ficar em casa cuidando da casa e dos filhos”; “Os homens são assim, por
que eles nasceram assim”. Mas, outros discursos vinham para contrapor estes
pensamentos: “Eu não acho. Eu não quero ficar em casa cuidando apenas do
meu marido e dos meus filhos. Quero trabalhar, ser independente e ter o meu
próprio dinheiro”; “Nós homens, também amamos e temos sentimentos, apesar
de as meninas não conseguirem perceber”.

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Os discursos explicitados, nos mostra como o posicionamento de cada


sujeito, se reproduz a partir da própria vivência social. Um grupo de alunos/
as conservadores se mantinham um discurso de família, submissão, pecado,
religião, Deus. Já outros os/as alunos/as, conseguiam perceber que estas discus-
sões, vão para além de instituições sociais, que impõem uma norma. A escola
é assim, um espaço com diversas redes sociais. Assim como uma rede, temos
grupos que “enquadra e normaliza [...] dentro de padrões, reproduzindo dico-
tomias e políticas da verdade entre certo/errado, normal/anormal, verdadeiro/
falso, natural/antinatural” Schindhelm (2011, p. 6).
Na atividade 3, o processo de construção foi o mais produtivo.
Problematizamos os adjetivos nomeados. Aplicar o adjetivo “ousado” ao casal
gay, “carinhosa” ao casal de lésbica e “corajoso” e “forte” a um menino prati-
cando ballet foram alguns dos que mais nos debruçamos a discutir. Ao analisar
o ousado na foto do casal gay, reflito sobre a norma binária que a sociedade
tenta nos impor. Para Milhomem (2012, p. 12) “de formas sutis e variadas – e
sempre de maneira insidiosa – a homofobia faz parte de nossas rotinas diárias.
Ela é consentida e ensinada em nossas escolas”.
Defendemos que estas discussões sejam intensificadas no ambiente esco-
lar, gerando respeito, igualdade entre os gêneros e um desenvolvimento social.

Considerações Finais

Após o término do projeto, demonstramos a minha imensa satisfação com


o trabalho realizado e produzido em parceria com os/as alunos/as. Semana após
semana, tentamos desmitificar um tabu de resistência encontrada no âmbito
escolar, no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade na escola.
Sabemos que a escola possui um papel de suma importância na formação des-
tes futuros/as professores/as, trazendo à tona assuntos poucos discutidos, mas
que os mesmos habitam em discursos reproduzidos do senso comum. Gerar
criticidade, a fim de entender os processos e discussões existentes e de poder
questionar o nosso próprio comportamento e nossas próprias convicções é
sempre um desafio a ser enfrentado (LOURO, 2013). Além disso, questionamos
e refletimos sobre a importância da temática na formação de professores/as,
para que esses/essas possam discutir de maneira crítica, os discursos e práticas
reproduzidos.

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Referências bibliográficas

BOCK, Silvio Duarte. Orientação Profissional: abordagem sócio-histórica. São Paulo:


Cortez, 2002.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e Educação. In SILVA, Tomaz Tadeu da. (org) O


sujeito da Educação: estudos Foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

MEYER, Dagmar Estermann. Do poder ao gênero: uma articulação teórico analítica.


In: LOPES, Marta. L.; MEYER, Dagmar E.; WALDOW, Vera (Org.) Gênero e saúde.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 41-51.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação
& Realidade, v.20, n.o 2, julho/dezembro de 1995, pp. 71-99 Porto Alegre, UFRGS/
FACED

MILHOMEM, Maria. O QUE DIZEM OS PROFESSORES SOBRE GÊNERO E


SEXUALIDADE NA ESCOLA: experiências vividas na rede municipal de Palmas
Tocantins. In: 17º Encontro Nacional da Rede Feminista e Norte e Nordeste de Estudos
e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero, 2012. Disponível em: <http://www.
ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/17redor/17redor/paper/viewFile/24/17>. Acesso em:
13/07/2016

PIERRO, Gabriel Di. ORTIZ, Marília. Gênero fora da caixa. Guia prática para edu-
cadores e educadoras. 1° Edição 2011. Disponível em: <http://www.soudapaz.org/
upload/pdf/genero_fora_da_caixa_web.pdf> Acesso em: 25/11/2014.

SCHINDHELM. Virginia Georg. A sexualidade na educação infantil. Revista Aleph.


ISSN 1807-6211. Ano V, nº 16. Novembro, 2011. Disponível em: <http://www.uff.br/
revistaleph/pdf/art9.pdf>. Acesso em: 13/07/2016.

YOUTUBE. Levy Fidelix e o aparelho escretor. Vídeo (14min05s). Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=KZC2Tsn_DLE>. Acesso em: 12/07/2016.

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A EXPERIÊNCIA DO FESTIVAL DAS DIVERSIDADES


PRISMA E A VISIBILIDADE E O EMPODERAMENTO DOS
LGBTIS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC UFABC

Juliana Fabbron Marin Marin


Mestranda em Políticas Públicas
Universidade Federal do ABC
julianafabbron@gmail.com

Raimundo Nonato Braz Neres


Graduando em Planejamento Territorial
Universidade Federal do ABC
brazneres@hotmail.com

GT 02 - Ativismo e os movimentos sociais

No espaço universitário informações são facilmente difundidas e o seu


acesso por parte de quem cotidianamente se encontra neste ambiente é facili-
tado. Discutir questões relativas a gênero, orientação sexual e os recortes dentro
destes aspectos é algo que acontece de forma reiterada. Todavia, o acesso a
informações e discussões não necessariamente inibe a prática de preconceito e
discriminação.
Em 2015, na Universidade Federal do ABC, localizada no Estado de São
Paulo, na região do Grande ABC, LGBTIs, mulheres feministas, negras e negros
foram vítimas de ameaças LGBTfóbicas, machistas e racistas. Pichações foram
feitas em locais mais vulneráveis da universidade, ameaças verbais foram pro-
feridas falando sobre mortes de LGBTIs e o antigo estigma, que vem desde a
década de 80, de que a AIDS é atribuída a LGBTIs se perpetuou nas pichações.
LGBTIs da Universidade, reunidos em um grupo de integração chamado
PRISMA Diversidades UFABC, sentiram a necessidade de transformar o que
antes era um grupo de integração em um Coletivo, adquirindo caráter de mili-
tância, com o intuito de combater as ações LGBTfóbicas e promover projetos
de inclusão social.

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Uma das primeiras ações realizadas pelo Coletivo, além do combate à


LGBTfobia decorrente das pichações foi o planejamento de uma Semana das
Diversidades, que mais tarde se tornou Festival em função do número de even-
tos pensados. O Primeiro Festival realizado contou com algumas atividades nos
mais diferentes âmbitos; aconteceram desde eventos acadêmicos até artísticos
e esportivos.
A partir deste evento a maturidade do coletivo cresceu e a visibilidade
aumentou, o que permitiu uma base mais sólida para a construção do 2º
Festival das Diversidades, evento foco de discussão e reflexão deste relato de
experiência.

O 2º Festival das Diversidades Prisma UFABC

No ano de 2016, o Coletivo realizou o 2º Festival das Diversidades Prisma


UFABC, entre os dias 11 e 17 de junho, almejando ser mais inclusivo do que
o ano anterior e abordar temáticas que mesmo dentro do movimento ainda
parecem invisibilizadas. O Festival teve início em um sábado, dia 11 de junho,
com o lançamento do Observatório LGBT que está sendo construído a partir
da iniciativa de integrantes da UFABC. Outras atividades realizadas no festi-
val foram intervenção artística e cultural de abertura do evento; seminário de
abertura do Festival com a presença do Eduardo Suplicy, Alessandro Melchior
(coordenador do programa Transcidadania) e Silmara Conchão (secretária da
Secretaria de Políticas para as Mulheres de Santo André); participação de ONGs
e Movimentos Sociais em Stands, nos quais podiam expor seu trabalho; pales-
tra sobre Sexo, Saúde e Prevenção; bate­-papo com Janaína Leslão, escritora
dos Livros ‘A princesa e a costureira’ e ‘Joana princesa’; LGBTs no Mercado de
Trabalho,­seminário e workshop com empresas; atividades culturais, intervenções
e exposições artísticas, com a participação de artistas plásticas e performance
da Drag Queen Leandra Gitana; sarau com a presença do cantor Lineker; Cine
Purpurina: transmissão e debate sobre o documentário ‹Bichas’; roda de capo-
eira; dança circular; palestra sobre gênero, diversidade e sociedade; roda de
bate-papo genero e raça; seminário referente as diversidades sobre a sexuali-
dade: bissexualidade, pansexualidade e assexualidade; peça teatral ‹Meninos
também amam’, abordando a afrohomossexualiadade; roda de bate-papo sobre
gênero e religião; queimada finíssima: jogo de queimada em espaço aberto da

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Universidade; seminário de encerramento chamado ‘TRANSformação Cidadã’;


festa de encerramento do Festival das Diversidades.
As atividades propostas para o Festival ultrapassam as discussões acadê-
micas. LGBTIs se encontram em uma condição de vulnerabilidade social, mas
ser LGBTI vai muito além do espaço que somos colocados, o espaço de sujeitos
que sofrem preconceitos e discriminações. Ser LGBTI é mais um fator que se
soma a diversos outros na compreensão das nossas identidades. Queremos cul-
tura, diversão e arte. Queremos espaços na academia e também no mercado de
trabalho, no teatro, no esporte, nas mais variadas expressões artísticas.
Assim, o Festival das Diversidades Prisma surge como um contraponto
à vulnerabilidade e ao espaço que somos aceitos na sociedade. Ele é iniciado
com o objetivo de ser um espaço de voz e empoderamento de LGBTIs, que se
concretiza por meio de intensa visibilidade, tanto para a comunidade acadê-
mica quanto para a comunidade civil das cidades do Grande ABC, de forma
que LGBTIs se tornam agentes e protagonistas das diversas atividades e eventos
culturais, artísticos, acadêmicos, expositivos e interativos realizados. O foco são
os sujeitos que em suas vivências teoricamente transgridem o ideal de socie-
dade heterocisnormativa que nos é imposta. Somos guetificados, alocados em
determinados espaços sociais para sermos aceitos, mas na realidade, estamos
em todos os lugares. Estamos na academia, na militância, nas empresas, na roda
de capoeira. Somos artistas ou escritores, esportistas, professores. Nós estamos
em todos os lugares, em todas as profissões, em todos os espaços, mas o que
nos é dado é o espaço do sofrimento, da dor, do constante debate das dificul-
dades em ser LGBTI e do enfrentamento a preconceitos e discriminações.
O Festival das Diversidades Prisma na Universidade Federal do ABC passa
a atuar buscando a ruptura do padrão que rege o cenário social. Os sujeitos
que não representam a sociedade heterocisnormativa ainda são marginalizados,
sofrem diversos tipos de violências físicas, psicológicas, simbólicas, a nós são
atribuídos espaços específicos e restritos. Transformar esta condição requer a
ampliação de oportunidades e de representatividade destes sujeitos nas mais
variadas esferas, como sociais, culturais, políticas e acadêmicas.
Com a concretização do Festival mostramos para esta sociedade opres-
sora e excludente que a Universidade é sim o lugar de mulheres transexuais,
homens trans, travestis, transgêneros, lésbicas, gays, bissexuais e intersexuais.
A Universidade é um lugar de todas e todos, independente de gênero, orien-
tação sexual, raça e classe. LGBTIs em condição de extrema vulnerabilidade

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social, que sequer têm a oportunidade ou até mesmo possibilidade de acesso ao


ambiente universitário, passam a ocupar um espaço que ainda é protagonizado
pelo padrão heterocisnormativo e que carece de representação da população
LGBTI.
A educação e a cultura são pontos fundamentais quando se discutem
questões relativas a gênero e diversidade sexual. Pensar no ambiente em que
a educação se dissemina, como a universidade, reafirma a ideia de que todos
devem ter acesso a ela. A representatividade destes sujeitos vulneráveis social-
mente dentro das universidades ainda é baixa, senão quase nula, pois o acesso
se torna mais difícil quanto mais vulneráveis forem os sujeitos, vez que precon-
ceitos, discriminações e violências se tornaram parte de sua trajetória de vida
e impedem ou dificultam sua ascensão no que tange ao acesso a educação,
ao trabalho e até mesmo nas relações interpessoais. Neste sentido, o Festival
mostrou que através de muita luta podemos, sim, resistir e ocupar estes espaços
das mais variadas formas e ao mesmo tempo desconstruir os padrões hetero-
cisnormativos impostos pela sociedade, resistir ao preconceito, discriminação
e homo­lesbo­bi­transfobia, quebrar tabus, paradigmas, ousar e estabelecer a
Universidade Federal do ABC-UFABC como um lugar que se tem diversidades
e no qual são desconstruídos padrões de forma interseccional, abordando o
machismo, a misoginia, o racismo, a gordofobia, os recortes de classe, a diver-
sidade sexual e de gênero nas suas mais variadas nuances.
É importante levar em consideração que existem lutas que se interseccio-
nam, mas cujo protagonismo deve ser respeitado. Em muitos pontos lutas do
movimento feminista, LGBTI, negro, ou de classe se cruzam, entretanto, as expe-
riências e vivências são distintas, de forma que o diálogo entre os movimentos
tende a somar, a elevar a compreensão das intersecções e propiciar ambientes
mais inclusivos. Com o intuito de reafirmar todas as lutas e a importância delas,
o Festival se fez com a participação do Coletivo Negro e do Coletivo Feminista
Interseccional da Universidade, ativistas independentes, movimentos sociais e
Organizações Não Governamentais LGBTIs, representando diversas cidades do
Grande ABC, ampliando, assim, as discussões e experiências ao levar em con-
sideração diferentes recortes.

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Considerações finais

O 2º Festival das Diversidades consolidou a ocupação do espaço univer-


sitário tanto pela comunidade acadêmica, quanto pela sociedade civil LGBTI
e pró-desconstrução do padrão heterocisnormativo de gênero e orientação
sexual, promovendo a luta por direitos, pela visibilidade e pela representativi-
dade, através da participação de diversas pessoas que foram protagonistas de
suas vivências, de suas histórias e de suas habilidades. Negras, travestis, homens
trans e cis, professores, gays, assexuais, crianças, lésbicas, intersexuais, trabalha-
dores, pansexuais, transgêneros, negros, mulheres transexuais e cis, adultos, não
binários, alunos, heterossexuais trans e cis, funcionários terceirizados, bissexu-
ais, acadêmicos, jovens, representatividades de todas as formas e que muitas
vezes se cruzam, todos juntos, todos com vozes, expondo, explicitando suas
vivências, suas histórias, interagindo com todos e pautados na horizontalidade.
Uma ilha de aparente utopia sendo concretizada, por apenas alguns dias, mas
com um poder avassalador e capaz de gerar muitas transformações naqueles
que participaram da experiência.
Contudo, temos ciência que a luta é árdua, sabemos que por mais que
tenha acontecido a conquista de determinados espaços de forma temporária, de
maneira ousada para afirmar nossas existências, muitos sujeitos se mostraram
incomodados com isso, até mesmo se sentindo constrangidos e ameaçados, por
verem tanta diversidade, tanta pluralidade. Saímos do lugar restrito que nos é
imposto e conquistamos um espaço que muitas vezes nos é tirado. Desta vez
os marginalizados, excluídos, violentados, agredidos, com direitos cerceados e
com a dignidade da pessoa humana afligida foram ouvidos.
Estamos vivendo em um período de extremo conservadorismo político
e social e a ocupação de espaços por LGBTIs se faz mais do que necessá-
ria, pois espaços como os de Universidades Federais vão muito além de uma
representação meramente acadêmica; as Universidades Federais são também
espaços políticos e de socialização, de interação com o mundo e com a socie-
dade, e de empoderamento. E que venham nos próximos anos o 3°, o 4°, o 5°
Festival das Diversidades e assim sucessivamente, perpetuando-­se este como
um evento que além de necessário, faz parte do diálogo, da história e da luta na
Universidade Federal do ABC UFABC.

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PROJETO EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS UFABC

Ana Maria Dietrich


Docente da UFABC
anamdietrich@gmail.com

Daniele da Silva Benicio


Discente de Engenharia de Gestão – UFABC
daniele.s.benicio@gmail.com

GT 01 - Práticas Escolares e de Formação Docente

Segundo o PNEDH/ 2003: “educar em direitos humanos é fomentar pro-


cessos de educação formal e não formal, de modo a contribuir para a construção
da cidadania, o conhecimento dos direitos fundamentais, o respeito à plurali-
dade e à diversidade sexual, étnica, racial, cultural, de gênero e de crenças
religiosas”. Formar cidadãos que incorporem os conceitos de Direitos Humanos
no ambiente escolar é algo imensamente prioritário, pois a escola é um espaço
de sociabilização e formação, que potencializa o encontro das diversidades,
da aprendizagem e da construção. Visando esta linha do PNEDH, a Professora
Doutora Ana Maria Dietrich coordenou o projeto de ensino, pesquisa e exten-
são Educação em Direitos Humanos (EDH), criado pela Universidade Federal
do ABC em parceria com o Ministério da Educação e Cultura (MEC) /Secretaria
de Direitos Humanos de São Paulo.
O projeto articulou-se com o Grupo de Pesquisa do CNPQ certificado
pela UFABC, com liderança da Ana Maria Dietrich, Laboratório de Estudos
e Pesquisas da Contemporaneidade. Também vinculou-se ao Laboratório
Memória dos Paladares, sediado na UFABC, campus de Santo André e que
mantém o Centro de Documentação homônimo.
Seus objetivos foram contribuir para a consolidação de uma cultura dos
direitos humanos e combater as formas de preconceitos, exclusão e violência
no ambiente escolar. Sua ação se fez por meio de cursos semipresenciais de
formação continuada voltados para educadores. Pretendeu-se também elaborar

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materiais didáticos e de pesquisa acadêmica, além de fortalecer o diálogo entre


os movimentos sociais, ONGs, associações de Direitos Humanos e a univer-
sidade. O curso forneceu subsídio para a realização de práticas pedagógicas
voltadas à consecução da cultura dos direitos humanos no ambiente escolar.
Dessa forma, contribuiu-se para a formação de profissionais da educa-
ção básica e profissionais ligados às áreas do Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, enfatizando uma atuação pedagógica voltada à promoção,
consolidação e difusão dos direitos humanos, com foco na promoção de prá-
ticas democráticas, na disseminação do conteúdo dos direitos humanos e na
orientação de práticas de não discriminação.
O público alvo foi de professores/as de Educação Básica da Rede pública
de Ensino da cidade de São Paulo, demais profissionais da rede pública de
Educação Básica e outros públicos interessados. O curso foi oferecido na moda-
lidade semipresencial pela plataforma Tidia. A proposta didática do curso levou
em conta os diferentes perfis de cursistas, tanto no que diz respeito à diver-
sidade de funções entre trabalhadores da educação, como também aqueles
profissionais de outras áreas que atuam na escola, na rede de proteção ou em
movimentos sociais.
Os cursistas foram orientados a realizar atividades pedagógicas práticas
(aulas experimentais, atividades de sensibilização e mobilização da equipe da
escola, reorganização do espaço escolar, atividades de pesquisa e vivência dentro
da comunidade escolar entre outras) em seus espaços educacionais de atuação,
preferencialmente no desenvolvimento próprio de suas funções, investindo na
articulação entre formação e trabalho. Estas atividades foram acompanhadas e
avaliadas pela equipe do curso - à luz das diretrizes conceituais, legais e meto-
dológicas - sendo entendidas como laboratório de novas práticas pedagógicas
e estratégia de consolidação e multiplicação dos conhecimentos. Privilegiou-se
uma avaliação final diferenciada que teve como foco a atuação orgânica dos
educadores. Assim, o trabalho final foi um projeto de intervenção em educação
em direitos humanos, apresentado em forma de pôster no I Simpósio Nacional
de Pesquisa de Educação em Direitos Humanos, realizado no dia 4 de junho
no Campus São Bernardo da UFABC. O evento também ficou marcado pela
formatura de 300 alunos do curso de Aperfeiçoamento EDH – UFABC.

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Encontros presenciais

Foram realizados quatro encontros presenciais. A cada um dos encontros


presenciais foram abordados de forma transversal, todos os fundamentos e con-
ceitos básicos tratados em cada um dos cursos, dialogando com o perfil dos
cursistas e de suas comunidades escolares. Os encontros presenciais também
abordaram conhecimentos para que os cursistas venham a utilizar as tecnolo-
gias de informação e comunicação, interagindo com a plataforma de educação
a distância com todos os conteúdos e atividades disponibilizados, conforme
seus interesses, suas necessidades de aprofundamento teórico e de desenvol-
vimento prático, ao unir as atividades de pesquisa e vivência comunitária com
as de elaboração de trabalhos requeridos pelo curso (memorial, diagnósticos,
relatórios, proposta de intervenção e auto avaliação processual).
O curso realizado estava dividido em módulos temáticos conforme seção
a seguir.

Módulos

Foram trabalhados os seguintes módulos:


• Modulo I – Introdução e Fundamentos filosóficos e históricos dos
Direitos Humanos e a construção dos marcos regulatórios
• Modulo II – A educação como construtora de uma cultura de Direitos
Humanos
• Modulo III – Direitos Humanos e o Projeto Político Pedagógico da
escola
• Módulo IV – Direitos Humanos, Diversidades e a Escola
• Módulo V – Direitos Humanos e materiais didáticos
• Módulo VI – Plano de Ação Educacional e Avaliação

As questões de gênero e diversidade sexual foram discutidas no Módulo


4. Esse módulo discutiu temáticas transversais e a correlação com o ensino/
educação. Foram analisados os conceitos de igualdade, diferença e diversidade
e sua importância como elementos referenciais de uma prática docente em
Direitos Humanos.
Dentro da dinâmica escolar foi discutido o respeito e valorização das dife-
renças e combate ao preconceito e à discriminação com base na raça/etnia,

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relações de gênero, linguagem, religião, política ou opinião, origem nacional,


geracionais, condições físicas ou mentais, entre outras.
Por último, foi analisado a tríade escola, participação e emancipação
social, sendo que a escola foi vista como tempo e espaço de realização de
Direitos Humanos e de promoção e valorização da diversidade.

Projetos de intervenção

No I Simpósio Nacional de Pesquisa de Educação em Direitos Humanos,


realizado no dia 4 de junho no Campus São Bernardo da UFABC, evento mar-
cado pela formatura de 300 alunos do curso, foi apresentado o trabalho final
projeto de intervenção em educação em direitos humanos, apresentado em
forma de pôster.
Dentre os 300 trabalhos apresentados, alguns destacam-se pelos resul-
tados obtidos. No pôster Refletindo sobre a questão de gênero na educação
infantil - A influência da escola e da família na construção da identidade de
gênero da criança discutiu-se o processo de construção das identidades de
gênero nas atividades diárias da educação infantil, analisando as práticas e os
discursos para discutir e desconstruir preconceitos linguísticos em relação ao
gênero e proporcionar momentos de reflexão e troca de experiências com as
famílias. Inicialmente foram distribuídos aleatoriamente brinquedos às crianças,
para observação de suas reações, além de análise dos espaços da escola para
refletir sobre as relações de como os meninos e as meninas são representados.
Após a realização do projeto, notou-se a importância do papel da escola no tra-
balho da desconstrução de estereótipos e do preconceito de gênero. A escola
deve oferecer diversas opções de brinquedos e brincadeiras que oportunizem
o desenvolvimento das crianças, dando voz a elas, provocando-as, trabalhando
para que desenvolvam sentimento de empatia e respeito ao próximo. Fazer
reflexões constantes sobre suas práticas pedagógicas, além de discussão com
as famílias.
Já no trabalho As relações de gênero: uma análise sobre alguns danos do
machismo causado às mulheres, homo e transexuais na sociedade brasileira teve
como objetivos apresentar aos estudantes os números alarmantes sobre os pre-
conceitos e às violências causadas a este público, debatendo o papel da mulher
na sociedade, a violência sexual e a doméstica, incentivando atitudes positivas
de aceitação, respeito e solidariedade com o próximo, além de analisar sobre

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acolhimento familiar, preconceito e a importância do diálogo entre os familiares


sobre o tema. Foram utilizadas análises de filmes, textos e documentários, den-
tre eles o filme Transamérica, documentário “Não gosto de meninos” e o vídeo
de performance da atriz Viviane Bellabone que se crucificou na 19ª Parada Gay
de São Paulo. Após a prática, os alunos passaram a reconhecer e respeitar a
diversidade e as identidades dos demais.
Em Esse brinquedo é “de menina”. Com quais brinquedos brincar? Os
objetivos foram ampliar os conceitos relativos ao brincar e ao faz-de-conta na
educação infantil, mostrando que a criança, ao se divertir, fantasia, imagina e
cria, desconstruindo-se os preconceitos nos funcionários e pais. Também foram
criados brinquedos e formas de brincar que representem os papéis que homens
e mulheres assumem em nossa sociedade para construção um ambiente de res-
peito e tolerância aos direitos da criança, como a direção de brincadeiras com
objetos que representassem, por exemplo, os utilizados em um salão de beleza.
Na Educação Infantil, o brincar é constante. As crianças dão significado a todo
tipo de objeto e até mesmo aos movimentos do corpo. Foi possível observar
que desenvolver respeito e tolerância ao diferente também é uma construção
contínua.

Considerações finais

Mesmo com a abordagem de destaque que a questão de diversidade foi


vista no curso de aperfeiçoamento Educação em Direitos Humanos, inclusive
com um Módulo voltado a essa temática, houve pouquíssimos projetos de
intervenção dos cursistas apresentados sobre a temática LGBT. Sobre gênero,
houve maior número de trabalhos finais, porém, ainda ficou muito aquém do
tema mais estudado: africanidades.
Baseados na experiência de apresentação dos trabalhos durante o
Simpósio, acreditamos que essa invisibilidade do movimento LGBT nos traba-
lhos finais se deu pela falta conhecimento de metodologias apropriadas e de
linguagem específica voltadas para o público infantil. Isso mostra a importância
de se pensar estratégias e instrumentos metodológicos para que os professores
de ensino básico, principalmente do Fundamental I, consigam tratar questões
LGBT já com os alunos mesmo em sua tenra idade (5 a 11 anos) e descontruam
a educação sexista que até então é imposta.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA DO EIXO ACOLHIMENTO DO CRDH:


GRUPO DE VIVÊNCIAS PARA PESSOAS TRANS

Flávia Luciana Magalhães Novais


Mestranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS
flanovais@gmail.com

Hellen Santos
Doutoranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS
helenpsi@yahoo.com.br

Diego Carrilho da Silva


Graduando em Enfermagem UFRGS
dipolska@gmail.com

GT 02 - Ativismos e Movimentos Sociais

O relato de experiência a seguir, situa as ações de acolhimento às pessoas


violadas em seus direitos referentes a gênero, sexualidade e raça, enquanto uma
escuta qualificada de sujeitos que vivenciam violências e discriminações asso-
ciadas à homofobia, lesfobia, transfobia, racismo e sexismo. Acompanhamentos
e encaminhamentos para a rede de atenção às políticas públicas e espaços de
direitos humanos, além da execução semanalmente de um grupo de vivências
de pessoas trans binárias e não binárias constitui umas das principais estratégias
de acolhimento executada por uma equipe de professores, alunos de pós gradu-
ação e graduação integrantes do Centro de Referência em Direitos Humanos em
relações de gênero, sexualidade e raça (CDRH), enquanto programa de exten-
são do Núcleo de pesquisa em sexualidade e Relações de gênero (NUPSEX) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no decorrer dos anos 2011- 2016.
O CDRH tem por objetivo promover o respeito à liberdade em relação
às expressões da sexualidade, gênero e raça, por meio de ações educativas no
espaço universitário, na rede de políticas públicas, assim como na sociedade
civil. Deste modo, complementar às ações do Eixo Acolhimento, foco do nosso

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relato, são executadas dentro do projeto do CDRH formações de capacitação


e sensibilização nos serviços e espaços escolares, de saúde, assistência social e
de proteção social. Apenas encaminhar os sujeitos em vulnerabilidade devido
aos preconceitos e estigmas naturalizados nem sempre garante o acesso inte-
gral e humanizado, o que nos convoca a refletirmos sobre a Clínica Ampliada
enquanto um conceito da saúde coletiva, potente para ultrapassar a noção de
indivíduo medicalizado e reduzido a individualidade, com vistas a compreen-
der o homem em seu contexto sócio-histórico.
Conforme Brasil (2009), a clínica ampliada é, então, uma crítica ao modelo
médico/hospitalocêntrico/curativo/tecnológico e visa focar a prevenção da
saúde e a promoção da qualidade de vida. A superação da clínica tradicional
é necessária para que se estabeleça uma relação de encontro entre sujeitos,
caracterizando uma coprodução de compromissos singulares que nega qual-
quer elemento a priori para que as experiências de cada um sejam levadas em
consideração em todos os procedimentos dentro da saúde pública. A clínica
ampliada propõe, enfim, enxergar o homem como um todo, considerando suas
dimensões psicológica, biológica, social, histórica e política e dando voz ao
sujeito para que ele participe ativamente de seu processo de saúde.
Assim, a clínica ampliada pressupõe o compartilhamento e co-responsa-
bilidade da atenção aos sujeitos entre a equipe e entre equipes de trabalho. São
diversas as formações universitárias dos envolvidos na equipe do CDRH, de
maneira que nossas ações de acolhimento pautam-se na lógica da integralidade
e transversalidades de saberes. Segundo Peres (2010), o diálogo com outros
saberes surge como possibilidade de uma escuta clínica e institucional que vai
além do recorte psicológico, para se compor com os processos psicossociais,
políticos e culturais, de modo a tomar as cenas e discursos como complexida-
des que são constituídas por diversos componentes de subjetivação na feitura
dos sujeitos contemporâneos.
Neste sentido, pautamo-nos como referencias para produzirmos espaços
de encontros da diferença e diversidade, tanto ao reconhecer as singularidade,
trajetórias de vida e acesso a redes de apoio dos sujeitos que nos procuram,
como produzir outros modos de ampliar, facilitar o acesso e produzir tecnolo-
gias de cuidado humanizadas e integradoras às demandas da população. Peres
(2010) assinala o modo como se cruza o plano das diferenças sociais, políticas
e culturais mais amplas e o plano das experiências particulares, lembrando que
entre esses dois níveis não é possível uma oposição distinta determinada por

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uma contradição, pois as lutas sociais são pessoais e coletivas. A idéia é promo-
ver uma clínica ampliada e intercessora, que dialogue com múltiplos saberes e
processos de subjetivação, em especial os estudos sobre gênero e sexualidades.
Ou seja, como afirma Benevides (2002), clínica e social são indissociáveis
e é mais uma questão a ser tratada no registro ético-político do que no jurídico
ou simbólico. Trata-se de tomar clínica e social como linhas em regime de
variação contínua, mesclando-se de tal maneira que só caberia pensar em opo-
sição – complementação se as tomarmos como universais. A clínica-dispositivo
pode intervir de modo a tornar a história pessoal como uma das linhas que
atravesssam e são atravessadas pela enunciação de uma época, produzidas por
um coletivo-multiplicidade que não pode ser reduzido a noção de molar social.
Grupo de Vivência para pessoas Trans: possibilidade de vivências
Como dito anteriormente, o Centro de Referência em Direitos Humanos,
o CRDH, tem como princípios básicos o direito à liberdade e o respeito à diver-
sidade nas formas de vivência e constituição dos indivíduos. Com uma atuação
que teve início em 2011, o CRDH trabalha com diversas situações de violações
de direitos humanos ligadas às questões de gênero, orientação sexual, raça e
classe.
Para o enfrentamento dessas questões de violação de direitos humanos
em vários âmbitos como raça, identidade de gênero, classe, orientação sexual,
o CRDH tem como conceito central o de interseccionalidade (Crenshaw, 2002,
Carneiro 2001). Dessa forma, é no reconhecimento de que cada sujeito é for-
mado por uma rede de relações formadas por marcadores sociais de diferença.
Ou seja, reconhece-se que as relações sociais são formadas por hierarquizações
onde gênero/sexo/sexualidade, raça/etnia, classe social, religião, entre outros,
são articulados, criando vulnerabilidades. (SILVEIRA Et al, 2015)
As relações de poder são estabelecidas de forma desigual dependendo de
quais dos marcadores sociais atravessam as vivências. Pensa-se num sujeito a
partir dos preceitos de Foucault (1983), onde este não existe de forma anterior
e definitiva, ou seja, este é criado e recriado historicamente. Supera-se também
algumas dicotomias que são calcadas nas atuações de maneira geral, como a
de indivíduo-sociedade, saúde-doença, sujeito-coletivo. Tais binarismos, bem
como a valorização de explicações biológicas dicotomizantes e crenças reli-
giosas muito conservadoras produzem discursos que colocam em cheque a
existência de certos indivíduos e a garantia de seus direitos básicos. As diferenças
entre os corpos, a partir desses discursos, são transformadas em desigualdades,

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onde mulheres travestis e pessoas trans são colocados como “patológicos” ou


“anormais”, Silveira ( 2015)
A prática cotidiana do acolhimento no CRDH se dá a partir da valoriza-
ção da trajetória de vida, pensando nele como uma maneira de construir um
encontro entre as pessoas ligadas diretamente à equipe formada por docentes,
estudantes e profissionais voluntários, e as pessoas que buscam ajuda a par-
tir dos serviços do centro. Nesse sentido, pensa-se o acolhimento como uma
possibilidade de promover encontros capazes de construir processos e produ-
zir novas possibilidades de vida, onde a garantia dos direitos humanos seja
exercida.
Assim, o ato ou efeito de acolher a partir dos preceitos da Política Nacional
de Humanização (Brasil, 2006), tem como pressuposto o de construir uma atu-
ação baseada na inclusão. Dessa forma, o acolhimento feito pela equipe do
CRDH tem o compromisso com o reconhecimento do outro, respeitando seus
objetivos, seus modos de viver e às suas demandas.
A partir dos encontros possibilitados pelos acolhimentos especialmente
relacionados à questões de violação de direitos à pessoas trans, com casos de
transfobia em escolas, centros de saúde, problemas familiares ligados à essa
temática e levando em consideração também outros marcadores sociais como
raça e classe, percebeu-se a necessidade da criação de um espaço onde sujeitos
pudessem trocar experiências e construir vínculos, foi construído o Grupo de
Vivências para pessoas trans binárias e não binárias.
Entende-se o grupo como uma forte ferramenta para a construção de
possibilidades de vida e contrapondo tendências onde grupo é visto como
“subproduto, tratamento mais barato e acessível à população com poucos
recursos financeiros, ou tratamento indicado para serviços públicos de saúde,
pelas mesmas razões econômico-financeiras e/ou por atender mais gente em
menos tempo” Benevides (2002), pensando especialmente na ruptura com prá-
ticas de cunho psicoanalíticas a qual a imagem do trabalho com grupos estava
associada.
Ou seja, grupo como dispositivo de intervenção como possibilidade de
superar movimentos contemporâneos individualizantes e privativas da experiên-
cia subjetivo-política (Benevides, 2002), com o intuito de superar conceituações
patologizantes acerca da vivência trans, e possibilitar o encontro, construir for-
mas de ação e superação de violências relacionadas a transfobia.

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Pensa-se o grupo como um importante ferramenta para criação de novas


possibilidades de vida para além do sofrimento, da exclusão, da transfobia. As
questões de vulnerabilidades que se atravessam em cada um dos participantes
são valorizadas, pensando no encontro - tanto com a equipe do CRDH como
com os demais – como uma ferramenta para se pensar em formas de enfren-
tamento do preconceito, novas maneiras de viver e possibilidades de vida. O
grupo é aberto, ou seja, qualquer pessoa que se identifique como trans (binário
ou não binário) pode participar. Como parte da equipe do CRDH, duas coorde-
nadoras acompanham as reuniões, construindo junto com os participantes um
espaço de trocas e vivências, desenvolvendo um trabalho coletivo composto de
reciprocidades e respeito.
A partir de reuniões semanais, os participantes do grupo trazem em suas
falas inquietações do cotidiano, tensões familiares, dúvidas, angústias. Para além
de um espaço da terapia, o grupo pensa em soluções para alguns problemas,
novas formas de perceber e enxergar as situações, respeitando as limitações e
os processos de cada um.
O cotidiano dos participantes do grupo é permeado pela constante luta
no reconhecimento de sua identidade de gênero, porém nossas atividades nos
apontam para uma perspectiva positiva com relação ao enfrentamento das ten-
sões cotidianas ocasionadas pela discriminação e preconceito. Em feedback
recente, realizado com os participantes para avaliação do desempenho do
grupo, alguns dos relatos demonstram maior facilidade nas questões do dia
a dia com a família e nas suas relações interpessoais, bem como também em
iniciativas de ações cotidianas antes não pensadas. Alguns membros relataram
que após o inicio de sua participação no grupo conseguiram diminuir as tensões
com seus familiares quando abordadas as questões de identidade de gênero e
outras minorias, bem como na aproximação dos mesmos com estes assuntos,
para que então possam continuar no seu processo de transição de forma não
anônima. Outros membros também apontaram para uma melhora na sua auto
estima e inclusive no incentivo da confecção do nome social, mesmo sem o
conhecimento de familiares sobre sua identidade.
Outra dificuldade relatada em algumas falas gira em torno da transição,
normalmente relacionada a ambiguidade identitária, onde o contexto muitas
vezes obrigue a definição de qual identidade pode ser acessada. Em ambientes
tidos como inseguros assume-se a que está relacionada ao gênero atribuído
(o que normalmente causa muito constrangimento e violência) não havendo

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espaço para expressão de sua real identidade. O acompanhamento de cada


processo demonstra que também s gradativamente os membros relatam uma
maior confiança no enfrentamento destes tipos de situações, e conseguindo
expor sua identidade pelo seu gênero de identificação e não o designado no
seu nascimento. O grupo é um espaço de trocas de vivência para além do mero
compartilhamento de dor e sofrimento: é uma possibilidade de encontros e for-
talecimento, produzindo vidas e redefinindo as trajetórias desses sujeitos que a
cada dia percebem que suas vidas são possíveis de serem vividas para além da
marginalização e do silêncio.

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Referências

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ou falsa dicotomia? In: Rauter, C., Passos, E. & Benevides, R. (Eds.), Clínica e Política:
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BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de


Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada /
Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização
da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009.

CARNEIRO, A.S. Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na América


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CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos de discrimi-


nação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas. Vol. 10, nº1. Florianópolis.
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Janeiro: Graal, 1984

SILVEIRA, R. S., MACHADO, P. S., NARDI, H.C. Diversidade Sexual e Relações de


Gênero nas Políticas Públicas: o que a laicidade tem a ver com isso?. Porto Alegre:
Deriva/Abrapso, 2015.

PERES, Willian Siqueira. Cartografias clínicas, dispositivos de gêneros, Estratégia Saúde


da Família. Estudos Feministas, Florianópolis, 18(1): 288, janeiro-abril/2010.

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“SE A GENTE NÃO CONTINUAR COM ESSA LUTA,


VAI SER CADA VEZ PIOR [...]”– LEITURAS DE UMA
VIVÊNCIA FORMATIVA SOBRE DIVERSIDADE DE
GÊNERO E SEXUAL EM UMA ESCOLA

Idália Lino dos Santos


Especialista em Antropologia com Ênfase em Culturas Afro-Brasileiras
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Jequié (UESB)
Idália.lsantos@gmail.com

Roniel Santos Figueiredo


Biológo, Mestrando do Programa de Pós Graduação em Relações Étnicas e
Contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
ronielbiologia@hotmail.com

Marcos Lopes de Souza


Doutor em Educação, Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia
markuslopessouza@gmail.com

GT 01 - Práticas escolares e de formação docente

Palavras iniciais

A escola foi produzida enquanto uma instituição intencionada na uni-


formização e controle dos corpos, dos gêneros e das sexualidades delegando
o lugar da margem para quem ousasse transgredir as fronteiras estabelecidas
pelas normatizações. Segundo Junqueira (2012), para quem escapa das normas
de sexo, gênero e de sexualidade, nossas escolas ainda se pautam em duas
pedagogias: a do insulto e a do armário. Na primeira os/as alunos/as que não
se enquadram no modelo hegemônico são ofendidos/as por insultos, apelidos
e vexações, conduzindo-os/as à segunda pedagogia, submetendo estes/estas

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discentes ao esconderijo do segredo e dos silenciamentos de suas ações que


são tidas como nefastas e perniciosas em uma sociedade heteronormativa.
Esses discursos de ódio estão incutidos no ambiente escolar de diversas
formas não apenas nas atitudes dos/as alunos/as, mas também dos/as professo-
res/as que fomentam e alimentam preconceitos e discriminações. É essa relação
da docência com as questões de gênero e sexualidade que buscamos discutir
neste trabalho. Nesse sentindo, destacamos a necessidade de um processo de
formação permanente que discuta gênero e sexualidade em uma perspectiva
que reconheça as diferenças.
Souza (2016) realizou um curso de extensão com professoras/es e gradu-
andas/os e percebeu que, apesar do discurso religioso ser uma amarra para o
desenvolvimento da formação, após o curso a maioria das/os participantes se
reconheceu mais segura e motivada para discutir a temática na escola. Borges
e Meyer (2008) investigaram uma ação de formação continuada realizada com
docentes da educação básica e perceberam que o curso contribuiu para que
as educadoras repensassem em suas práticas educativas, especialmente, em
suas posturas preconceituosas. As autoras também identificaram que muitas/os
docentes não participaram do curso para não serem vistas/os como lésbicas ou
gays, ou mesmo com receio de serem reconhecidas/os como um/a defensor/a
das ditas minorias.
Diante do exposto, este trabalho objetiva relatar e analisar uma vivência
formativa sobre diversidade sexual e de gênero assumida por uma professora
de uma escola estadual no interior baiano e com o apoio do Núcleo de Estudos
em Diversidade de Gênero e Sexual da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia – UESB. A autora deste artigo é professora da escola, compõe o núcleo e
foi quem assumiu essa proposta formativa na escola.
Este estudo toma como base os referenciais pós-críticos ligados aos
gêneros e às sexualidades buscando, desta maneira, problematizar, borrar e
questionar as verdades postas e prontas, compreendendo o quanto são limita-
das as explicações e os modelos generalistas e voltando, portanto, a atenção
para as minúcias, que escapam e subvertem a “ordem” naturalizante e naturali-
zada (PARAÍSO, 2012).

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Relatos sobre o caminho construído para o desenvolvimento da


proposta formativa

O processo formativo foi realizado em uma escola estadual da cidade


de Jequié-BA. O primeiro encontro ocorreu durante a jornada pedagógica, em
março de 2015. Neste dia houve uma participação maior de docentes, bolsistas
do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e também
da equipe gestora da escola, talvez por ser uma atividade obrigatória para todas/
os. Neste encontro foi exibido o curta-metragem Vestido Novo (2007) do dire-
tor e roteirista espanhol Sergi Pérez. Este artefato narra a história de Mário, um
garoto que vai para o colégio, no dia do Carnaval, com um vestido rosa e as
unhas pintadas e o quanto isso perturba a sala de aula e a equipe gestora da
escola. Após a exibição, houve debates sobre diversidade de gênero e seus
atravessamentos no espaço escolar.
O segundo encontro aconteceu em abril, no período noturno, pelo fato
de muitos/as professores/as não terem disponibilidade no diurno. Fizemos essa
tentativa, na esperança de termos mais pessoas no encontro, mas apenas duas
professoras participaram. Neste dia exibimos o curta-metragem brasileiro Eu
não quero voltar sozinho (2010) do diretor Daniel Ribeiro. Nosso propósito foi
questionar o discurso da heterossexualidade como algo natural e o destino de
todas as pessoas, inserindo as discussões de diversidade sexual no processo
formativo. Após a exibição foram levantados apontamentos sobre a homofobia
na escola.
No terceiro dia, ocorrido em maio, houve a apresentação do filme
Orações para Bobby (2009), dirigido por Russell Mulcahy. O longa-metragem
conta a história de Bobby, um garoto que se suicida muito jovem por não con-
seguir lidar com a rejeição da família, especialmente da mãe, em relação à
sua homossexualidade. A repulsa da mãe em relação à homossexualidade do
filho é pautada no discurso religioso cristão. Após a projeção do filme, abrimos
para a discussão entre as/os participantes. Neste dia o número de professoras/
es também foi pequeno, mas algo nos chamou a atenção: a diretora tinha mar-
cado uma reunião no mesmo horário com alguns/as professores/as e todos/as
estavam presentes, porém após o término da reunião, nenhum/nenhuma deles
quis participar do encontro formativo.

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Este foi o último dos encontros ocorridos, talvez a baixa adesão por parte
dos/as docentes tenha desestimulado a continuidade do trabalho. De qualquer
forma, os momentos tocaram as pessoas que os vivenciaram.
Neste relato traremos algumas questões que foram mais instigantes
durante os três encontros ocorridos. Para a construção e análise dos dados,
utilizamos dos registros elaborados durante as observações dos encontros e
também de alguns escritos produzidos pelos/as participantes em relação aos
artefatos culturais.

As adversidades e afrontamentos ocorridos ao longo do trabalho

Uma situação que causou incômodo na autora deste artigo foi quando no
primeiro encontro, um professor da escola disse não concordar com aquilo, que
via como uma coisa da mídia e que a rede Globo agora estava exibindo “gays
bonzinhos”. Ele disse ser evangélico, não aprovava essas atitudes e ainda relatou
que ele e os pastores não concordavam, pois eram fundamentalistas e que tudo
isso era uma falta de respeito. Após a fala dele, todas/os ficaram calados/as e,
em seguida, uma colega perguntou ao professor: “Se aquele garoto [se referindo
a Mário – personagem do curta Vestido Novo] fosse seu filho, o que você faria?”
Perguntou duas vezes e ele silenciou. A discussão foi retomada, o professor che-
gou a falar outras coisas e depois se ausentou.
A presença do discurso religioso na fala do professor é algo recorrente
nos trabalhos com a temática em questão. O professor fala de um lugar e uti-
liza da autoridade das igrejas protestantes para se posicionar. Neste caso ele
reitera que há um incentivo ou investimento por parte das mídias televisivas
em colocar a homossexualidade como uma possibilidade de vivência da sexu-
alidade e entendemos que isso incomoda os discursos normativos pautados na
heteronormatividade. Dialogar sobre as ditas minorias sexuais, no caso, lésbi-
cas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais no espaço escolar é
entendido, pelo professor como falta de respeito. Este desrespeito se refere a
não seguir uma determinada lógica fundamentada no discurso judaico-cristão
que compreende as outras expressões de gênero e sexualidade como demoní-
acas, antidivinas e contrárias aos valores da família tradicional (NATIVIDADE;
OLIVEIRA, 2013).
Por outro lado, é interessante perceber como a sua colega o inquietou
quando lhe perguntou sobre a possibilidade de Mário ser seu filho. O silêncio

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foi a resposta dada pelo professor. Ressaltamos este aspecto apontando que há
outros posicionamentos sobre diversidade de gênero e sexual que não estão em
conformidade com as normatizações. A professora problematizou estas ques-
tões ao se colocar daquela maneira.
No segundo encontro, uma das professoras retomou o episódio ocorrido
no primeiro dia e comentou que, ao se falar sobre gênero e sexualidade, as pes-
soas levam tudo para o lado religioso e que, portanto, se a gente não continuar
na luta, pode ser cada vez pior. Esta outra professora também destoa do pri-
meiro docente e passa a questionar: por que o discurso religioso é tão potente
quando se fala destas questões? Porque esse incômodo tão grande por parte de
algumas pessoas?

As potencialidades dos artefatos culturais nas discussões sobre


gênero e sexualidade

Durante o processo formativo, os artefatos culturais contribuíram, em


especial, para suscitar os discursos das/os docentes sobre as questões de gênero
e sexualidade. Por exemplo, na análise dos escritos de algumas pessoas sobre
o curta Vestido Novo, percebemos discursos naturalizantes e essencialistas do
que é ser feminino e masculino, considerando reprovável a atitude do garoto
em ir para a escola com um vestido rosa, pois se estaria quebrando as regras
daquele ambiente. Outro discurso diz respeito à necessidade de anunciar a
família, a atitude de Mário, ou seja, chamar os familiares para irem até a escola,
como se ele estivesse feito algo considerado anormal ou errôneo e que, por-
tanto, precisava ser corrigido.
Os artefatos também instigaram as/os participantes a perceberem o quanto
as questões de gênero e sexualidade atravessam continuamente o ambiente
escolar, mesmo quando não são convidadas e que, os/as docentes estão assu-
mindo posições sobre essas temáticas todos os dias em sua vivência profissional.
O que os vídeos permitem problematizar é que, geralmente, tomamos decisões
com base em muitas das nossas verdades e, poucas vezes, ouvimos as/os outras/
as pessoas, mormente, nossos/as estudantes e, talvez, muitas dessas verdades
têm produzido dor e sofrimento em muitas pessoas. Uma professora relatou,
por exemplo, que o curta lhe permitiu perceber a sua falta de preparo em lidar
com essas situações sem constranger a criança. Como dito por Louro (2012, p.
91) “[...] parece impossível tratar da educação da sexualidade de nossos alunos

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e alunas como se essa não nos afetasse: somos todos e todas arrastados nesse
processo”.
Por meio dos vídeos, as/os participantes relataram situações em que as
sexualidades ditas “excêntricas” adentravam a escola, mas eram silenciadas, ou
seja, a escola não agia diante de processos de discriminação, preferindo calar-se
ou mesmo adiar as intervenções. Uma professora trouxe o caso de uma estu-
dante lésbica que deixou a escola e não voltou mais. Estas produções culturais
também provocaram as/os participantes a pensarem em fatos que ocorreram
na família ou com amigas/os, como a história narrada por uma licencianda do
PIBID em que seu amigo ainda tem medo de se assumir para a família e de ser
desprezado pela sua igreja. Logo, os artefatos seduziram e mobilizaram as/os
participantes em se colocarem frente aos debates sobre gênero e sexualidade.

Desistir, recuar, resistir..., o que fazer?

Neste processo formativo elaborado e desenvolvido na escola, em vários


momentos, ocorreram situações de insegurança, medo e frustração, sobretudo
em relação à participação das/os professoras/es da escola. Para a autora do
artigo e também docente do colégio, foi muito inquietante ver seus/suas colegas
não valorizando o trabalho realizado, inclusive da própria equipe gestora que
apenas esteve presente no primeiro dia. Mesmo porque, ela mobilizou as/os
colegas, estudantes e pesquisadoras/es do Núcleo de Estudos em Diversidade
de Gênero e Sexual da Universidade, que assumiram o trabalho conjuntamente.
Salientamos que foram feitas a divulgação de cada encontro duas sema-
nas antes, enviando e-mail, colocando avisos nos murais da escola e na sala
dos/as professores/as, além dos convites informais, divulgando as datas aos/
às colegas, porém, algumas vezes percebia-se o silêncio ou até o deboche de
alguns/algumas pessoas. Uma questão permaneceu: Por que houve pouca ade-
são das/os docentes, mesmo a formação ocorrendo na escola?
Apesar de o trabalho ter sido finalizado em maio e não terem ocorridos
outros encontros, duas pessoas, uma professora e um professor (este assumida-
mente protestante), conversaram com a autora do artigo e disseram que mesmo
com as dificuldades, ela não deveria desistir do trabalho. Talvez a autora ainda
se sinta só neste lugar, sem apoio de fato ou mesmo alguém para desabafar. Às
vezes o silêncio ou o medo nos enclausura.

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Compreendemos que apesar das amarras e percalços, é interessante per-


sistir, insistir no trabalho, mesmo que ocorram derrotas, que muitos/as não nos
escutem, ou talvez não queiram ouvir e que tenhamos de recuar algumas vezes.
Como diz Louro (2007), discutir gênero e sexualidade, nesse tipo de aborda-
gem, é uma posição política, é assumir uma postura que caminha na contramão
dos discursos hegemônicos a respeito da temática e, portanto, muitos/as não
desejarão que coloquemos esses discursos sob suspeita.

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Rio de Janeiro, v. 16, n. 58, p. 59-76, jan./mar. 2008.

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heterossexismo e homofobia no cotidiano escolar. In: MISKOLCI, R; PELÚCIO, L.
Discursos fora da ordem: sexualidade, saberes e direitos. São Paulo: Ananablume,
2012, p. 277- 303.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões


teórico-metodológicas. Educação em Revista. Belo Horizonte. n. 46, 2007, p. 201-218.

LOURO,G.L.Sexualidade: lições da escola. In: MEYER, D. E.E. et al. Saúde, sexuali-


dade e gênero na educação de jovens. Porto Alegre: Mediação, 2012, p. 93-96.

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PARAÍSO, M. A. Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação e currículo:


trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, D. E;
PARAÍSO, M. A. (org.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo
Horizonte: Mazza Edições; 2012.

SOUZA, M. L. de. Diversidade de gênero e sexual: apontamentos de uma proposta de


formação docente. In: SEFFNER, F; CAETANO, M. (org.). Discurso, discursos e contra-
discursos latino-americanos sobre a diversidade sexual e de gênero. Rio Grande do
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