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Direitos Humanos e Democracia Volume 1
Direitos Humanos e Democracia Volume 1
DIREITOS HUMANOS
DIREITOS HUMANOS
E DEMOCRACIA
E DEMOCRACIA
DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA
DESAFIOS JURÍDICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA
VOLUME I
VOLUME I
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
DIREITOS
HUMANOS E
DEMOCRACIA:
DESAFIOS JURÍDICOS
EM TEMPOS DE PANDEMIA
VOLUME I
1ª edição
2020
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
CONSELHO EDITORIAL
COMITÊ EDITORIAL
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser
reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser
criado, sem o prévio e expresso consentimento da Editora. A utilização
de citações do texto deverá obedeceras regras editadas pela ABNT.
As ideias, conceitos e/ou comentários expressos na presente obra são
criação e elaboração exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma
responsabilidade à Editora.
Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.
CDD-Doris: 341.12191
ISBN: 978-65-5790-025-3
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Apresentação
Este livro reúne os trabalhos que foram apresentados durante a realização do VIII Seminário
Internacional de Direitos Humanos e Democracia, promovido pelo Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito da UNIJUÍ. Nesta edição, o evento aconteceu integralmente em ambiente virtual e
teve por tema os desafios jurídicos impostos pela pandemia da Covid-19.
O tema deste Seminário não poderia ser mais oportuno. Já integra o “senso comum” a expressão
segundo a qual a pandemia da Covid-19 representa um verdadeiro “divisor de águas” na história
da humanidade. Cogita-se o surgimento de novas formas de relacionamento intersubjetivo, novas
dinâmicas econômicas, novas formas de trabalho, etc. Por outro lado, alterações legislativas têm sido
produzidas com bastante intensidade em todo o mundo, o que indica um fenômeno de transformação/
adaptação do direito à nova realidade posta pela pandemia. Do mesmo modo, categorias tradicionais
como “soberania”, “fronteiras”, “estado-nação”, parecem perder força diante de uma doença que
avança sem reconhecê-las, exigindo esforços coletivos para o seu enfrentamento que parecem exigir
uma refundação da ideia de solidariedade no cenário internacional.
De fato, a pandemia tem suscitado diversas questões que são responsáveis por tensionar, a todo
momento, conceitos jurídicos que até então pensávamos inquestionáveis, o que inclui, obviamente, os
Direitos Humanos – particularmente em cenários como o brasileiro, nos quais a pandemia torna ainda
mais evidentes as constantes violações pelas quais esses direitos passam na contemporaneidade.
O leitor tem em mãos, portanto, um material privilegiado para a discussão desse cenário, a
partir de um conjunto de textos que, acima de tudo, estão profundamente comprometidos com a
temática da efetivação dos direitos humanos.
Esta obra reúne pesquisadores de vários Estados brasileiros e de alguns países europeus e latino-
americanos, os quais realizaram a submissão de seus trabalhos por meio do edital do evento, disponibilizado
no sítio virtual da UNIJUÍ e que previa a publicação dos textos selecionados na presente coletânea.
Muito obrigado a todos esses pesquisadores por terem escolhido o nosso evento para o
compartilhamento de suas pesquisas! Ao leitor, o desejo de uma agradável leitura!
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SUMÁRIO
Amparo legal das crianças e adolescentes frente ao abuso sexual e estupro como 109
sujeitos de proteção integral
Paula Baptista Oberto
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Direitos humanos e diversidade cultural sob a ótica dos direitos sexuais e 169
reprodutivos das mulheres
Joice Graciele Nielsson e Leticia Gheller Zanatta Carrion
O controle reprodutivo através do planejamento familiar: uma análise dos casos de 222
esterilização feminina no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Joice Graciele Nielsson e Mariana Emilia Bandeira
O corpo feminino como território biopolítico e a prática do estupro nas guerras não 233
convencionais: recorte latino-americano
Ana Paula Kravczuk Rodrigues e Joice Graciele Nielsson
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O papel da vítima no processo penal e a exposição midiática da mulher nos crimes 273
sexuais: um estudo sobre os processos de sobrevitimização
Driane Fiorentin e Felipe da Veiga Dias
Poder obstétrico e regulação dos corpos gestantes em uma Unidade Básica de 303
Saúde no Sul do Brasil
Paulo Ricardo Favarin Gomes
Políticas migratórias e fascismo social: a relação catalisada pela pandemia do novo 309
coronavírus
Stefanni Fonseca Jabert e Pedro Sampaio Minassa
Que “eles” sejam o normal: a normalização dos corpos transexuais a partir do 320
dispositivo da sexualidade de Michel Foucault
Kaoanne Wolf Krawczak
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Violência contra a mulher em tempos de pandemia: quando o isolamento social não 377
afasta a morte
Rafaela Weber Mallmann
Violência contra as mulheres e a Lei Maria da Penha: uma análise dos indicadores 386
de violência e concessões de medidas protetivas pelo poder judiciário na Comarca
de Crissiumal/RS
Ana Luiza Scherner e Joice Graciele Nielsson
Entre o Sharp Power e recessão democrática. Uma análise elementar da conjuntura 459
internacional pós-2015
Gabrieli de Camargo e Carelisa Stoffel de Siqueira
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GRUPO DE TRABALHO 1
MULTICULTURALISMO,
BIOPOLÍTICA E GÊNERO
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INTRODUÇÃO
1 Fernanda Maria Grasselli Freitas, mestranda em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGD UFRGS,
assistente de pesquisa e colaboradora do Grupo Fundamentos Epistêmicos da Bioética da UNISINOS e Clínica de Direitos
Humanos – CDH UFPR. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3897040124373511.
2 Gerson Neves Pinto, Gerson Neves Pinto, Doutor em Philosophie, Textes Et Savoir - Sorbonne, Paris (2011), Mestrado em
Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998). É professor adjunto da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado).
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próprio corpo para fins do exercício da saúde sexual e reprodutiva. Com isso, a possibilidade de não se
reproduzir causou uma ruptura no fluxo “normal” da vida, e a reprodução humana passou a ser uma opção
e não mais uma evolução natural do ser humano (BOTTEGA, 2018:54). A gestação, antes mero fruto do
acaso, tornou-se uma escolha autônoma, passível de manipulação de forma deliberada em virtude dos
avanços científicos no campo da saúde, notadamente da saúde reprodutiva, por meio de procedimentos
como a inseminação artificial e os métodos contraceptivos, entre os quais, a esterilização voluntária.
Com isso, as pessoas passaram a ter autonomia para gerenciar o imutável, modificando o
entendimento que se tinha sobre a vida e o que se poderia fazer com ela. Diante desse panorama,
o procedimento de esterilização voluntária foi regulamentado no Brasil pela Lei N° 9.263/1996, que
trata do planejamento familiar, dispondo a necessidade do consentimento expresso de ambos os
cônjuges para a realização do procedimento.
Dado o exposto, imperativo discutir os aspectos éticos e morais que tocam a Bioética, com
recorte sobre os princípios da igualdade, da liberdade e da autodeterminação, para desvendar os
fundamentos que embasaram a exigência de tal consentimento pela legislação brasileira. Desta
forma, pretendeu-se buscar argumentos para fundamentar (ou não), a coerção por parte do Estado
ao impor uma limitação ao acesso à esterilização voluntária. Em que pese a exigência de autorização
seja para ambas as pessoas de uma relação, acredita-se que essa igualdade formal não produz uma
igualdade material, na medida em que os resultados práticos dessa anuência são diferentes para os
homens e para as mulheres.
Nesse sentido, foi analisada a obrigação dessa regra na perspectiva de gênero, buscando identificar
quais os efeitos da norma para a promoção da igualdade entre os sexos. A discussão que se apresenta
é, com base no princípio da igualdade, quais as consequências que a imposição de limites para a
esterilização voluntária gera para ambos os sexos, uma vez que o livre exercício da sexualidade é parte
integrante dos Direitos Humanos, recebendo proteção através dos direitos sexuais e reprodutivos.
A existência de restrições para o acesso ao procedimento se torna um verdadeiro óbice para
o pleno exercício desses direitos e uma afronta ao princípio da dignidade humana, que pressupõe
a autonomia e a autodeterminação corporal. Nesse sentido, essas exigências impostas pela Lei
do Planejamento Familiar ignoram as liberdades individuais, e têm se demonstrado como mero
instrumento de controle dos corpos e limitação da autonomia da pessoa por parte do Estado, com
efeito mais negativo sobre a sexualidade das mulheres.
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para Aristóteles, a superioridade do homem sobre a mulher seja uma consequência da desigualdade
biológica original de sua época, onde encontramos na biologia hipocrática-aristotélica a concepção
segundo a qual o homem contribuía com o princípio de movimento (a causa formal) e a mulher a
matéria (a causa material). (ARISTÓTELES, 2013, v. I: 716 a 1 – 716 a 9).
Percebe-se que as ideias aristotélicas diferenciavam substancialmente as mulheres e os homens,
limitando, inclusive, as capacidades cognitivas das mulheres, encerrando-as à função reprodutiva.
Esse entendimento pode ter sido um dos grandes responsáveis pelo pensamento discriminatório
disseminado na sociedade, onde a mulher assume o lugar de submissão e inferioridade ao homem,
especialmente no que concerne à sexualidade, reprodução humana e contracepção.
Avançando na linha do tempo, várias são as manifestações encontradas sobre as relações entre
as pessoas e seus sexos. A igualdade tanto debatida, muito defendida e poucas vezes obtida se
revestiu de várias nuances. A antropóloga e feminista francesa Françoise Héritier (1996), também
tratou muito bem em suas pesquisas a questão da igualdade a partir dessa diferenciação binária
masculino versus feminino.
A autora não dispensou a ideia de “um dado biológico de base”, que parte da observação e
identifica dados morfológicos e fisiológicos como fez Aristóteles. Para ela, entretanto, todas essas
observações são apenas diferenças de forma e nada pode ser dito ao contrário, não podendo ser
usadas como definição do masculino e do feminino por natureza. A autora compreende, entretanto,
que existe uma assimetria funcional.
Em sua obra Masculin/féminin I: la pensée de la difference, a autora não tentou explicar essas
diferenças, mas sim, descrever antropologicamente as razões pelas quais essas diferenças existem.
Para ela, existem elementos obscuros, independentemente da sociedade a qual se refira, que estão
sempre presentes e se traduzem num tipo de desigualdade “natural”. Sua proposta é a de que se as
pessoas tomassem consciência da existência desses elementos, não haveria a aderência aos mesmos.
Em suas palavras: “Já seria um grande progresso se esta adesão não fosse mais cega. Consciência, se
não razão, é uma fonte poderosa para fazer as coisas acontecerem.” (HÈRITIER, 1996).
No âmbito internacional, a autora destacou que, somente na Conferência Mundial das Mulheres,
realizada no ano de 1995, em Pequim, reconheceu-se pela primeira vez às mulheres o livre exercício dos
direitos sexuais e reprodutivos, dissociado de qualquer tipo de coerção. Entretanto, a autora identifica
uma dificuldade em atingir a igualdade desses direitos entre mulheres e homens. Segundo o relatório de
desenvolvimento humano das Nações Unidas (PNUD), citado pela autora, inexiste atualmente no mundo
qualquer sociedade com igualdade de oportunidades para ambos os sexos (HÈRITIER, 1996).
Em suas pesquisas, a autora identificou a existência de certos tipos de categorias cognitivas
que não são biologicamente herdadas, mas sim construções sociais que perpassam de geração em
geração. Nessas categorias, encontram-se diferenciações entre o feminino e o masculino e até mesmo
diferenças físicas construídas a partir da dominação masculina (HÈRITIER, 1996).
Segundo sua teoria “valência diferencial dos sexos”, é ela quem conduz, na maioria dos casos,
à dominação masculina que se manifesta, por exemplo, quando os homens tentam se apropriar de
faculdades necessariamente femininas, como é o caso da gestação. O próprio Aristóteles explicava a
fraqueza inerente à constituição feminina através do conceito de substância. Nesse sentido, defendia
que os homens só perdiam seu sangue ou esperma de forma voluntária. Já as mulheres, seriam
mais fracas devido à perda de substância sanguínea que sofrem regularmente, evento que elas são
incapazes de se opor ou restringir. Assim, a autora explica sua teoria da seguinte maneira:
Por isso, a autora entende que dificilmente se chegará a um ideal de igualdade entre mulheres
e homens (feminino e masculino), uma vez que seria necessário um esforço conjunto para esse fim.
Ela entende que não se constrói um ideal a partir de regras e sim por uma mudança na perspectiva do
pensamento com intuito de fomentar ações práticas. Héritier defende a importância da antropologia
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para o conhecimento da dominação masculina, mas sabe que apenas tomar consciência dessa
dominação não resolverá o problema da igualdade entre os sexos, e dispõe que:
Uma das funções atuais da chamada antropologia do gênero é destacar os problemas levantados
pela dominação masculina. É mais do que um trabalho legítimo e necessário, não há dúvida sobre
isso. Mas acreditar que o conhecimento antropológico de mecanismos complexos pode influenciar
decisões políticas ou outras, eu duvido, especialmente porque situações objetivas não mudam
por simples consciência ou por decreto (HÈRITIER, 1996). (grifo nosso).
Para ela, existem diferenças fundamentais entre o masculino e o feminino nos aspectos
morfológicos, biológicos e psicológicos, que são identificadas em quase todas as sociedades. Essas
diferenças são sempre encontradas num formato de valoração binário, como positivo e negativo, no
qual se destaca um sexo forte, quente, que produz calor (“esperma = sangue = calor = veículo da
vida”), portanto, de maior importância e, consequentemente um frágil, o de menor importância, que
alterna momentos de calor e frio (HÈRITIER, 1996).
Essa sexualidade binária é também reportada quando se trata da infertilidade. Em suas pesquisas,
a antropóloga identificou, especialmente em sociedades africanas, que para as mulheres, a fertilidade
é condição para serem consideradas mulheres de verdade. A incapacidade de gestar é um veredito de
uma vida sem utilidade e viver num corpo que não serve para o seu fim, é o mesmo que não viver. Já
o homem estéril não será considerado inútil desde que suas esposas tenham um filho legítimo, pois
esse filho será considerado como seu, mesmo sendo de outro homem. Neste caso específico, resta
clara a percepção de que o sexo forte domina o frágil, a ponto de que para “limpar” a mácula da sua
infertilidade basta uma criança concebida por sua esposa legítima. Ao passo que à mulher não resta
solução, a não ser o rótulo de pessoa sem serventia, melhor dizendo, uma não-pessoa (HÈRITIER, 1996).
Mais uma vez é possível identificar as diferentes nuances da desigualdade, pois mesmo em condição
idêntica - a infertilidade, mulheres e homens recebem tratamentos distintos em determinadas sociedades.
Mesmo nas mais primitivas é clara a percepção de que existe um conjunto de conceitos que, não só
legitimam essas diferenças, como ainda aumentam a desigualdade entre os sexos (HÈRITIER, 1996).
Em busca da igualdade, a humanidade sempre tentou explicar as diferenças entre o masculino e o
feminino. E, nesse caminho, alguns mistérios envolvendo as mulheres instigaram ainda mais desigualdade.
Uma das grandes distinções entre os sexos é a capacidade que somente as mulheres possuem de gerar
uma vida. Para justificar essa “vocação”, criou-se o mito, em algumas sociedades, senão na maioria, do
papel secundário da mulher, colocando-a num lugar de submissão. Nessa perspectiva, sua função básica e
única é a de ser o receptáculo da vida, ou ainda aquela que possui a semente esperando ser “regada” pelo
homem. Enfim, sempre um papel coadjuvante no mistério que é a concepção de uma vida.
Cada sociedade buscou explicar à sua maneira e a partir de suas observações, as diferenças que
tocam a cada sexo da espécie humana, especialmente com relação à reprodução. O mais curioso é que
o entendimento, em praticamente todas elas, é de que a gestação da mulher é definida pelo homem,
inclusive pelo do papel secundário que ela assume pelo domínio do homem sobre seu corpo. Essa
dominação dos corpos foi incorporada de tal maneira, a ponto de o homem apropriar-se da concepção,
levando esse domínio para o corpo das leis, criando labirintos legais e institucionais que vão desde a
proibição e limitação da contracepção, até a própria obrigação em gestar, com a proibição do aborto.
Por tudo isso, é fundamental tomar como base que, mesmo que a igualdade entre as mulheres
e os homens seja o ideal almejado para uma sociedade ser considerada justa, existem diferenças,
quer sejam biológicas quer sejam sociais, que perduram desde os primórdios da humanidade. Ignorar
essas diferenças não promove a igualdade, pelo contrário, podem ajudar a propagar a desigualdade.
E como princípio fundamental, a igualdade tem importância e relevância para a discussão do tema da
esterilização voluntária, especificamente no que concerne à autonomia corporal, quanto ao acesso
ao procedimento. Será que, ao exigir o consentimento de ambas as pessoas de uma relação, seja
ela conjugal ou união estável, estar-se-á respeitando efetivamente a igualdade entre elas? Ou, do
contrário, promovendo maiores desigualdades?
Nesse sentido, torna-se fundamental compreender como o Direito atua na promoção da igualdade,
que não só fundamenta a legitimidade de uma democracia, como também figura como um dos ideais
mais importantes de uma sociedade que se pretenda justa.
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3 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem precon-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. BRASIL. Constituição (1988). Consti-
tuição da República Federativa do Brasil de 1988.
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[...] a dificuldade de estabelecer esse significado descritivo reside sobretudo em sua indeterminação,
pelo que dizer que dois entes são iguais sem nenhuma outra determinação nada significa na
linguagem política; é preciso que se especifique com que entes estamos tratando e com relação a
que são iguais, ou seja, é preciso responder a duas perguntas: a) igualdade entre quem?; e b)
igualdade em quê? (BOBBIO, 1997:11). (grifo nosso).
Assim, por exemplo, a mulher e o homem são iguais entre si, perante a lei maior, mas observando
sob o ponto de vista biológico existem diferenças importantes. E são essas as diferenças que o Estado
se imiscuiu de observar quando i) editou norma sobre direito reprodutivo dentro da legislação do
planejamento familiar, ao invés de tratá-la como questão de saúde pública; e ii) condicionou o acesso
ao procedimento de esterilização voluntária à uma pessoa a quem o direito não afeta.
À primeira vista, o legislador observou a igualdade entre as mulheres e os homens quando
exigiu o consentimento tanto dela quanto dele para a realização do procedimento. Entretanto, essa
igualdade presumida é ficta, uma vez que, segundo Rosa: “[...] se sou igual ao outro, devo receber
o mesmo tratamento que ele. O tratamento igual, nesse sentido, é autojustificado; a simetria de
tratamento acalma e tranquiliza já que é previsível e não traz surpresas” (ROSA, 2006:461).
Porém, do ponto de vista biológico, essa igualdade desaparece na medida em que o resultado da
esterilização é diferente: a mulher esterilizada não precisará buscar outros meios para contracepção,
alguns extremamente nocivos à sua saúde, e, principalmente, não incorre em risco de se obrigar a uma
gestação não planejada. A mulher não esterilizada precisará buscar outros métodos contraceptivos
que, caso falhem, resultará numa gravidez indesejada que não poderá ser resolvida, no Brasil, pela
prática do aborto. Quanto ao homem, quando esterilizado não terá mais sua função reprodutiva; e
caso não esterilizado, manterá essa função.
Como se vê, a igualdade pressupõe uma complexa relação com a liberdade. E essa liberdade se
concretiza quando é dada à pessoa a opção de escolha, e quando a sua vontade, livre de qualquer
tipo de coação, prevalecer. Assim como a igualdade, a liberdade deve ser promovida pelo Estado,
que deve atuar protegendo e respeitando as liberdades individuais (MENDES, 2006:536).
Para Bobbio, a liberdade é uma qualidade, tanto física quanto moral, que seus significados
vão depender das particularidades de cada pessoa. Já a igualdade é uma relação formal passível de
receber várias interpretações. Assim descreve que: “[...] enquanto X é livre é uma proposição dotada de
sentido, X é igual é uma proposição sem sentido, que, aliás, para adquirir sentido, remete à resposta à
seguinte questão: igual a quem?” (BOBBIO, 1997:12) ou seja, a liberdade não exige um complemento,
ao passo que a igualdade pressupõe uma relação entre outras pessoas sobre determinada situação.
Na teoria existencialista, a pessoa passa a ser o resultado de suas escolhas livres, uma vez que
tem responsabilidade pelo sentido de sua vida. De acordo com Mendes:
Não há mais ninguém (Deus, natureza humana, etc.) a quem se possa transferir a responsabilidade
de um ato pessoal. O homem – visto como projeto a ser realizado – torna-se, ao mesmo tempo,
inteiramente responsável pela sua definição como sujeito, e responsável por toda a humanidade. O fato
de ser plenamente livre reforça a inevitabilidade de seu engajamento no mundo (MENDES, 2006:536).
Dentre a multiplicidade de acepções de liberdade, Bobbio destaca dois significados que, para
esse autor, são os mais relevantes dentro da linguagem política: a liberdade positiva e a liberdade
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negativa. Como liberdade negativa, entende-se a possibilidade da pessoa de agir ou não agir sem
qualquer tipo de impedimento ou constrangimento, ou seja, a liberdade de fazer ou não fazer tudo o
que as leis permitem ou não proíbem. Já a liberdade positiva, também chamada de autodeterminação,
ou mais propriamente de autonomia, é a possibilidade de a pessoa poder se autodeterminar para uma
finalidade e tomar suas decisões sem ser determinada pelo querer de outrem. Nesse sentido, Bobbio
diferencia as liberdades da seguinte forma:
Pensando sobre a esterilização voluntária a partir dessa distinção entre os tipos de liberdade, para a
concretização da liberdade negativa, não poderiam existir obstáculos para a realização do procedimento.
Do mesmo modo, para que a vontade de se esterilizar seja livre, do ponto de vista da liberdade positiva,
essa vontade deve partir da própria pessoa, ou seja, uma vontade livre de coerção ou impedimentos.
Nessa perspectiva, é possível identificar que o Estado brasileiro desrespeita os dois conceitos
de liberdades identificados por Bobbio, uma vez que i) a normativa referente ao procedimento da
esterilização voluntária impõe diversos óbices para sua realização, como faixa etária mínima e número
mínimo de filhos havidos até a data da cirurgia; e, como consequência, ii) desrespeita a autonomia da
pessoa, ao condicionar sua escolha a um querer alheio.
Assim, as ações ou omissões, por parte do Estado brasileiro, que não observam as desigualdades
pré-existentes entre mulheres e homens, mesmo que pretendam, não conseguem promover a
igualdade. Isso porque, em que pese a saúde sexual e reprodutiva ser um direito de todas as pessoas,
as mulheres acabam sendo as mais afetadas pelas consequências negativas da inobservância das
desigualdades quando da promulgação das leis que afetam o tema.
Dado tudo o que foi exposto, é flagrante o desrespeito a igualdade e a liberdade exercido pelo
legislador pátrio. Ao tentar promover a igualdade entre mulheres e homens, primeiramente incluiu
uma normativa de saúde pública, concernente aos direitos sexuais e reprodutivos, dentro da lei de
planejamento familiar. Na sequência, impôs vários limites às liberdades individuais e, portanto, à
autonomia e a autodeterminação corporal. Tudo isso, sob o manto da proteção da família, como bem
maior e protegido constitucionalmente.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, nota-se que mesmo que a normativa brasileira que trata do acesso à esterilização
voluntária tivesse o condão de conferir tratamento igualitário às pessoas que fazem parte de um contexto
familiar, ela se imiscuiu de considerar as desigualdades preexistentes entre as mulheres e os homens.
A capacidade exclusiva da mulher de gerar a vida a colocou num lugar de submissão ao homem,
e essa construção histórica de domínio dos corpos se perpetua na modernidade. Nesse sentido, para
a promoção da igualdade entre mulheres e homens, especificamente no que concerne à autonomia
corporal para a realização dos direitos sexuais e reprodutivos, notadamente, à esterilização voluntária,
deve-se, primeiramente, considerar as diferenças biológicas e sociais preexistentes quando da
criação de normas para a realização de direitos. Do contrário, ignorar essas diferenças só geraria
mais desigualdades, como é o caso da norma em debate.
Assim, para a soberania de um Estado, a igualdade deve ser considerada como meio e fim e o
direito deve atuar como fiscal e promotor dessa igualdade. Isso porque, a partir do surgimento do
Estado social, a igualdade formal não foi capaz de dar conta da complexidade de nuances existentes
numa sociedade democrática, cedendo espaço à igualdade material.
O legislador passou a vincular-se a esse princípio, obrigando-se na elaboração de normas não
só promotoras da igualdade, como também redutoras das desigualdades, o que exigiu, por parte do
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Estado, ações positivas com o viés de realizar os direitos fundamentais de segunda geração. Assim, as
pessoas não só deveriam ser tratadas como iguais, mas também como desiguais, quando o resultado
for a redução das desigualdades.
Além disso, existe uma complexa relação entre a igualdade e a liberdade, que se concretiza quando
é dada à pessoa a responsabilidade por suas próprias escolhas e, principalmente, livre de qualquer
tipo de coação. Assim como a igualdade, a liberdade deve ser promovida pelo Estado, que deve atuar
protegendo e respeitando as liberdades individuais, através de políticas públicas que garantam a
liberdade de escolha, bem como a responsabilidade sobre as consequências de suas decisões.
Nesse sentido, foi possível identificar que a imposição de limites para o acesso à esterilização voluntária
é um flagrante desrespeito à igualdade e à liberdade exercido pelo legislador pátrio, condicionando a
liberdade de escolha da pessoa a outros interesses que não os seus. Não há exemplo mais perfeito de
biopoder do que a invisibilidade imposta à mulher, através da ingerência grotesca sobre o seu útero,
impondo-lhe o dever de salvaguarda da família em detrimento da autodeterminação corporal.
REFERÊNCIAS
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2016.
DWORKIN. O domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
GOTMAN, Anne. Pas d’enfant: la volonté de ne pas engendrer. Paris: Éditions de la Maison des
sciences de l’homme, 2016. Livro eletrônico.
HÉRITIER, Françoise. Masculin/féminin I: la pensée de la différence. Paris: Odile Jacob, 1996. Livro
eletrônico, não paginado.
MENDES, Alexandre Fabiano. Liberdade. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do
Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006. p. 536.
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PINTO, Gerson Neves. A invenção da bioética. Scientia Iuris, Londrina, v. 18, n. 2, p. 211-226, dez.
2014.
QUADROS, Marion Teodósio de; SANTOS, Giselle Maria Nanes Correia dos. Obstáculos na procura
pela esterilização feminina entre mulheres do Bolsa Família. Caderno de Saúde Pública, Rio de
Janeiro, v. 33, n. 4, p. 1-12, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-311X2017000405012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 ago. 2017.
ROSA, André Vicente Pires. Igualdade. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do
Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006. p. 456 – 462.
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RESUMO: o presente artigo tem como proposito medir a eficácia da Lei de Planejamento Familiar na
contemporaneidade, desse modo é exposto a construção histórica da mesma e a análise do conteúdo
promulgado pela lei. Por fim, de maneira a relatar a eficácia da lei dentro dos juris brasileiros, é
analisado as decisões judiciais proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da realização da
laqueadura tubária e comparado as premissas obtidas com o conteúdo exposto anteriormente.
INTRODUÇÃO
A realização da laqueadura tubária por muito tempo não foi regulamentada no Brasil,
proporcionando a ocorrência de ações controlista e eugenistas quanto a esterilização feminina.
Contudo, com o empoderamento feminino, foi-se necessário a elaboração de uma lei que abordasse o
assunto, sendo promulgada em 1996 e nomeada como “Lei de Planejamento Familiar” – Lei 9.263/96,
ela serviu como complemento do art. 226, parágrafo 7º, da Constituição Federal de 1988. Portanto,
para entender o motivo das condições expressas em seu texto, é necessário transcorrer sobre o
período histórico que antecedeu, acompanhou e procedeu a sua formulação.
A Lei de Planejamento Familiar foi um marco para os direitos sexuais e reprodutivos femininos,
regulamentando questões como a esterilização cirúrgica (masculina e feminina) e proibindo políticas
demográficas. Destarte, para que essa vitória seja evidenciada, é necessário medir a verdadeira eficácia
do texto legislativo dentro da sociedade, desse modo, foi realizado uma pesquisa jurisprudencial no
site do Superior Tribunal de Justiça (STJ), procurando compreender como as decisões judiciais acerca
da laqueadura tubária são tratadas pelos magistrados.
Ademais, para que a melhor compreensão da pesquisa jurisprudencial, é necessário perpassar
pelo significado dos direitos reprodutivos e sexuais, visto que a lei aborda os mesmos. Dessa maneira,
é válido questionar-se acerca dos fundamentos que acompanham a tomada de decisão no cotidiano,
sejam elas importantes ou não. Desse modo, ao permear a liberdade de escolha a todas as mulheres,
sem atentar-se às diferentes necessidades sociais, estar-se-á prendendo-as a uma cadeia, invisível
e naturalizada, pautada em uma grande interação social que influencia (e muda) a escolha final da
mulher sobre seu próprio corpo.
Nesse sentido, no decorrer do artigo, é exposto, na primeira parte do texto, uma visão
contemporânea e feminista acerca dos direitos sexuais e reprodutivos, para, em um segundo momento,
4 Acadêmica do Curso de Direito, Unijuí, Campus Ijuí, brunahahn31@hotmail.com.Bolsista PIBIC/Cnpq do Projeto de Inicia-
ção Científica vinculado ao Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos no Projeto de Pesquisa: CONTROLE REPRO-
DUTIVO SOBRE O CORPO FEMININO EM UMA PERSPECTIVA BIOPOLÍTICA: análise comparada acerca de legislações, políticas
públicas e controvérsias judiciais sobre planejamento familiar e esterilização de mulheres no Brasil, Peru e Bolívia.
5 Doutora em Direito Público (Unisinos), Mestre em Direitos Humanos (UNIJUI), Professora pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da UNIJUI - e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI.
E-mail: joice.gn@gmail.com
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A luta pelo reconhecimento dos direitos das mulheres sobre seu próprio corpo e pelo controle de
sua capacidade reprodutiva é histórica, sendo que somente a partir dos anos 1970 é que teve início no
plano internacional o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos
humanos. Na atualidade, pode-se considerar que direitos reprodutivos são compostos por princípios
e normas que garantem o exercício da sexualidade e reprodução humana, garantindo a liberdade para
decidir o número de filhos, o intervalo entre seus nascimentos e o acesso aos meios necessários para
o livre exercício de sua autonomia reprodutiva, sem sofrer qualquer tipo de discriminação, violência
ou restrição de qualquer natureza (VENTURA; 2009).
No entanto, em muitos momentos históricos, no Brasil e no mundo, a capacidade reprodutiva
das mulheres foi objeto de controle por parte de Estados que buscavam gerenciar o crescimento ou
a diminuição populacional, ou de determinadas populações, violando assim uma grande quantidade
de direitos. Somando-se a isso, as práticas reprodutivas das mulheres, tais como reprodução, aborto,
contracepção, vida sexual, menstruação, etc, sofrem influência das necessidades sociais presentes
em suas vidas (NIELSSON; 2020), selecionando mulheres como desejáveis, ou não, para a reprodução.
Para Butler (2018), certas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio
sociais e econômicas mais que outras, tornando-se, assim, diferencialmente expostas ao dano, à violência e
à morte, isto é, a vulnerabilidade e exposição de uma parcela da sociedade à violência arbitraria legitimada
pelo próprio Estado. Destarte, no âmbito do controle reprodutivo, essa situação é gerada ao promover
técnicas de politização da vida natural típicas da biopolítica, ou seja, um fato biológico é encarado como um
fato social e político, visão que é sustentada por formas de controle, regulação, intervenção e valorização
diferenciada ao longo do tempo (NIELSSON;2020). Sendo assim, é possível apontar medidas pró ou contra
nascimento, penalização de pessoas com ou sem filhos, proibição do aborto ou esterilização compulsória,
têm sido utilizadas para, seletivamente controlar o comportamento reprodutivo.
Desse modo, é notório que o próprio contexto social, cunhado em bases patriarcalistas (IPEA; 2014),
age como arbítrio ao legitimar diferentes graus de distribuição da capacidade e responsabilidade reprodutiva
para cada estrato social. Nesse sentido, a expansão desses direitos para o englobamento das necessidades
sociais é notória, visto que o próprio contexto social age de maneira a selecionar mulheres legíveis e ilegíveis
à reprodução, portanto, nada adianta garantir direitos às mulheres e não construir meios que permitem o
alcance e realização dos mesmos (NIELSSON; 2020b). É importante ressaltar que, caso as necessidades
sociais não sejam supridas, o conceito de uma real escolha sexual e reprodutiva torna-se utópico.
Na consideração atual, a concepção de direitos reprodutivo, segundo Corrêa e Petchesky (1996)
deve estar vinculada à garantia de quatro princípios norteadores, no que tange à mulher, quais sejam:
respeito à integridade corporal; à autonomia pessoal; à igualdade; e à diversidade. Estes devem
estar presentes na ação positiva do Estado e de instituições privadas que abordam essas questões e
formulam políticas que tratam de controle demográfico, planejamento familiar e reprodução.
Segundo as autoras, a integridade corporal, ou o direito à segurança e ao controle sobre o próprio
corpo, é encarada como um pilar fundante dos direitos sexuais e reprodutivos. Já a autonomia pessoal
demanda que as mulheres sejam tratadas como indivíduos capazes de tomar decisões em assuntos de
reprodução e sexualidade (CORRÊA; PETCHESKY, 1996). A igualdade é aplicada aos direitos sexuais e
reprodutivos em duas esferas principais, a relação entre homem e mulher e a relação entre mulheres
(CORRÊA; PETCHESKY, 1996). A diversidade busca estabelecer o respeito pelas diferenças entre mulheres,
assim, respeitando suas crenças e escolhas (CORRÊA; PETCHESKY, 1996). É de extrema relevância atentar
à conexão entre a igualdade e a diversidade, visto que, a sobreposição de um em relação ao outro não
pode acontecer sem que haja prejuízo dos direitos sexuais e reprodutivos (WICHTERICH; 2015).
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A Lei de Planejamento Familiar foi promulgada em 1996 (BRASIL; 1966), sendo formada por
três capítulos (do planejamento familiar; dos crimes e da penalidade; das disposições finais) e vinte e
cinco artigos, surgindo para legitimar o parágrafo 7º do art. 226 da Constituição Federal e as práticas
contraceptivas (ALVES; 2014). Em primeira instância, é importante ressaltar a bagagem histórica que
acompanhou a concretização dessa Lei, atentando à influência da moral cristã, da estrutura patriarcal
e machista na política, que, também, mostram-se extremamente presenta na sociedade brasileira de
maneira naturalizada (IPEA; 2014).
As políticas de natalidade do século XX tiveram forte marca eugenista, conduzindo à
culpabilização da mulher como responsável pela produção e manutenção da pobreza (ALVES; 2014).
Desse modo, instituições a favor do planejamento familiar controlado pelo Estado, como a BEMFAM
e a CPAIMC, foram constituídas no Brasil. E, como uma resposta às práticas de natalidade, diversos
grupos feministas influenciaram a criação de políticas públicas governamentais, como o Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que
defendiam o direito da mulher ao próprio corpo, à saúde e a liberdade de escolha.
Na ótica do texto constitucional de 1988, ambas vertentes obtiveram influência em sua
formulação na Assembleia Nacional Constituinte. O resultado desse embate configurou-se na
existência do planejamento familiar inserido na Constituição Federal, abordado no parágrafo 7º do
artigo 226, tornando direito dos cidadãos e cidadãs decidir pela limitação ou aumento de sua prole
traz o seguinte enunciado
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
tubária realizada de maneira clandestina e a recusa por parte dos empregadores em contratar mulheres
não esterilizadas (BRASIL; 1993). Desse modo, foi recomendado ao Poder Legislativo um projeto de
Lei que abrangesse as políticas de natalidade, sendo a Lei 9.263 promulgada em 1996, consolidando
a terceira fase, caracterizada pelo planejamento familiar a partir do olhar dos direitos humanos.
Em seu texto, o Estado propõe a proibição de ações de controle demográfico e realiza apoio e
assistência à concepção e a contracepção. Juntamente a isso, o Estado propõe o auxílio do controle
de doenças sexualmente transmissíveis e doenças que acometem órgãos reprodutivos (BRASIL;1966).
Contudo, visto que a sua pré-existência se formulou com base em questões contraditórias, as suas
normas acabam assumindo a mesma característica. Exemplificando, o livre exercício expressa a possibilidade
dos cidadãos e cidadãs administrarem o uso dos seus corpos da forma como desejarem, fato que é
questionável ao compreender que na contemporaneidade a liberdade é assunto de diversos mecanismos
do governo que discutem e elaboram a ética regulamentar da existência (FOUCAULT; 1976/2007). Dessa
maneira, é notório que a proibição do aborto no Brasil contradiz diretamente a integridade corporal, tendo
em vista que o Estado interfere na decisão feminina, proibindo e delegando sanções.
Por fim, o artigo 10 da Lei arbitra acerca da esterilização voluntária, a partir da cirurgia de
laqueadura, o que está diretamente ligado ao exercício dos direitos reprodutivos femininos. Desse
modo, a escolha para esterilização é permitida perante duas situações, quando à saúde da mulher ou
do futuro concepto são colocados em risco (desde que testemunhados em relatório escrito e assinado
por dois médicos) e no momento em que os dois gêneros estejam acordo com as seguintes condições,
Homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade, ou,
pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias
entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa
interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe
multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce.
Os requisitos exigidos no texto legislativo foram formulados como uma maneira de vetar o
regresso dos acontecimentos do período pré-lei. Desse modo, o prazo de sessenta dias exigido entre
a expressão do desejo e a ocorrência do procedimento, aponta para a oportunidade de as mulheres
obterem tempo à tomada da decisão, diminuindo, assim, o número de arrependimentos. Somando-
se a isso, o artigo 10 também veda a esterilização cirúrgica em mulheres durante o parto ou aborto
(exceto nos casos comprovados de necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores). Contudo, na
atualidade esse requisito tem sido ignorado pelos profissionais da saúde (CAETANO; 2014).
É importante ressaltar que, o consentimento expresso de ambos os cônjuges (art. 10, par 5°) é uma
condição que coloca muitas mulheres como submissas a seu companheiro, tendo em vista a supremacia
masculina que permeia a sociedade contemporânea (IPEA;2014), impondo um grande limite a sua autonomia
e integridade corporal. Contudo, considerando que o consentimento feminino também é necessário
à esterilização masculina e que a vasectomia ser abordada no texto legislativo desvincula a função de
reproduzir apenas à mulher, é possível apontar um avanço cultural quanto ao quesito igualdade de gênero.
Por fim, o artigo 10, parágrafo 6º, disserta acerca da esterilização cirúrgica em pessoas incapazes,
decretando que somente poderá ocorrer mediante autorização judicial. Por conseguinte, essa medida
legislativa pode ser encarada como uma dicotomia ao observar a intenção do texto de proteger os
direitos sexuais e reprodutivos do menor incapaz e a justificativa da sentença pelos tribunais, visto que
a prática demonstra uma maior preocupação com o contexto social do que com os direitos da menor,
fato que será evidenciado na pesquisa jurisprudencial apontada no trabalho. Vale ressaltar, que o texto
normativo não aborda o absolutamente incapaz, apesar de sua presença nas decisões judiciais.
No intuito de evidenciar a maneira como o Superior Tribunal de Justiça lida com casos envolvendo
o planejamento familiar, foi realizado uma pesquisa jurisprudencial no seu respectivo site. Desse modo,
abrangendo decisões monocráticas e acórdãos, as seguintes palavras-chaves foram selecionadas:
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esterilização (305 casos); laqueadura (211 casos); direitos reprodutivos (28 casos) e lei 9263/96 (19 casos),
totalizando 563 decisões judiciais. Após a análise e leitura de cada caso, restringiu-se o número total para
39 decisões judiciais que abordavam a questão do planejamento familiar e esterilização da mulher.
Previamente, é possível apontar a afirmativa à realização de laqueadura tubária imediatamente
após o parto, tendo ou não manifestação da vontade da paciente/casal explicita em um documento
escrito. Sustentando, assim, a tese de que a lei não está de acordo com a realidade, deixando de
cumprir seu dever social e, portanto, sendo ineficiente.
Caso Jurisprudência
Agravo em recurso especial - Esterilização cirúrgica imediatamente após o parto, sem prévia autorização da
nº 833.222 – Acre paciente e notificação da família;
- Pedido de indenização por danos morais;
- Agravo em recurso especial, contra a decisão que admitiu a indenização por
danos morais, não foi provido;
Recurso especial nº - Laqueadura tubária imediatamente após o parto, consentimento da paciente
1.433.549 – Rio Grande do se deu no ato cirúrgico, não havendo consulta ao companheiro;
Sul - Pedido de indenização por danos morais;
- O seguimento ao recurso especial, contra a decisão que admitiu indenização
por dano moral. foi negado;
Agravo em recurso especial - Pedido à realização da cirurgia de laqueadura de trompa durante o parto do
nº 523.991 – Rio de Janeiro quarto filho;
- Fundação hospitalar em questão aponta que apoia, fomenta e gere hospitais
públicos atuantes exclusivamente de urgência e /ou emergência, estando fora
de sua função realizar cirurgias eletivas, como a esterilização;
- Agrava em recurso especial negado, dando provimento à cirurgia de laquea-
dura tubária;
Caso Jurisprudência
Por fim, os casos que apresentaram o pedido de esterilização de incapazes, seja por doença
mental, seja pelo vício de drogas e de bebidas, obtiveram afirmativa por parte do magistrado. Dessa
maneira, é possível perceber, pela análise dos mesmos, que a justificativa utilizada ao deferimento
permeia entre “não permitir que mais uma criança abandonada no mundo” e “visando a saúde do (a)
responsável pela incapaz”, mostrando a não relevância dos direitos sexuais e reprodutivos da paciente.
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Caso Jurisprudência
Recurso especial nº - Pedido de realização da ligadura de trompas em paciente com transtorno
1.157.006 – Espírito Santo psicótico;
- A necessidade da cirurgia de esterilização foi comprovada por atestados
médicos;
- A parte recorrente aponta para o não preenchimento dos requisitos legais
por parte da paciente;
- O pedido foi deferido;
Destas decisões, alguns pontos merecem destaque: a) é possível apontar a afirmativa por parte do
magistrado à realização de laqueadura tubária imediatamente após o parto (tendo ou não a manifestação
da paciente/casal em um documento escrito) algo que é vedado pela legislação ; b) há autorização
para realização de esterilização de pessoas incapazes e de pessoas absolutamente incapazes ; c) e
ainda, é possível verificar a concessão de autorização para a realização de esterilização de incapazes
(viciadas em drogas e bebidas alcoólicas, e pobres), mesmo que estas sejam compulsórias ou que a
vontade da parte não seja manifesta.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeira instância, a Lei de Planejamento Familiar foi construída como uma maneira de
assegurar os direitos sexuais e reprodutivos. Contudo, visto que a sua eficácia não é aplicada em sua
plenitude, fato apontado pela pesquisa jurisprudencial, os direitos em questão são acarretados por
uma ausência de proteção legislativa. Portanto, no cotidiano as decisões que englobam esses direitos
são realizadas individualmente, por arbítrio dos magistrados e profissionais da saúde.
Ademais, é possível apontar certo viés controlista presente nas decisões judiciais, o que acarreta na
desmoralização dos princípios norteadores dos direitos sexuais e reprodutivos ao colocar em segundo
plano a autonomia pessoal e integridade corporal feminina. Dessa maneira, percebe-se que, ressaltando
que a lei sobre planejamento familiar não resolve todas as necessidades sociais, foi necessário buscar
outras formas de justificar o deferimento da cirurgia de esterilização, argumentos que são fundamentados
nas crenças individuais e em condições extralegais. Destarte, a pesquisa jurisprudencial expos decisões
pautadas em preocupações com o contexto social, deferindo a decisão para “poupar o mundo de uma
nova criança abandonada” ou, até, “preservar a saúde das pessoas ao redor da paciente”.
REFERÊNCIAS
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BRASIL; Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Cadernos
de Atenção Básica: Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
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Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9263.htm. Acessado em 27 de junho de 2020.
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Martins. 2014.
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BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Decisão monocrática n 1.348.136. Relator Ministro Raul Araújo. 2013.
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Salomão. 2014.
BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de
assembleia. Trad. Fernanda Siqueira Miguens. 1ª ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. História Do Corpo Na Idade Média, Uma. Editora Record, 2006.
NIELSSON, Joice Graciele. Corpo Reprodutivo e Biopolítica: a hystera homo sacer. Revista Direito
Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 880-910, abril de 2020. Disponível em <http://www.scielo.br/
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OLIVEIRA, Amanda Muniz; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Blessed be the fruit: resquícios de um
viés controlista em ações sobre cirurgia de laqueadura no Judiciário de Santa Catarina (2015-2016).
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
RESUMO: O presente trabalho objetiva refletir sobre a feminização das migrações enquanto uma
das principais tendências do processo migratório contemporâneo. O ensaio é construído a partir
do método dialético, e dos procedimentos metodológicos de pesquisa bibliográfica e documental.
Pretende-se destacar a importância das migrações internacionais na estruturação dos corpos políticos
e a relação de funcionalidade atribuída nas políticas migratórias, que, em um paradigma biopolítico de
reforço do fechamento de fronteiras e resgate dos nacionalismos, incluem pela exclusão. Entende-se
que, ainda que presentes os desafios à mulher migrante, a feminização das migrações dá indícios do
rompimento das relações sociais tradicionais e da hegemonia masculina no processo de mobilidade
humana, desestabilizando as relações de poder e o dispositivo imperante sobre as mulheres a partir
de sua sexualidade e/ou gênero.
INTRODUÇÃO
6 Mestre em Direito (URI). Doutorando (bolsista CAPES/PROSUC) em Direito no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Santo Ângelo. E-mail: dg_rotta@hotmail.
com. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-1333-0028.
7 Pós-Doutor (UNISINOS). Pós-Doutorando (USACH). Mestre e Doutor em Direito (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-
Graduação em Direito da UNIJUI e do Programa de Pós-Graduação em Direito da URI, Santo Ângelo. E-mail: andre.co.petti@
hotmail.com. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-1087-1195.
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Objetivando percorrer tal tema, este trabalho é estruturado a partir do método dialético,
refletindo as dimensões da historicidade, da totalidade, a interação dos fenômenos, da contradição
e transformação, possibilitando uma interpretação contextualizada da realidade. No tocante aos
procedimentos metodológicos, empregou-se a pesquisa bibliográfica e documental.
Para tanto, o trabalho será dividido em dois capítulos. No primeiro momento, discutir-se-á a
relação entre as migrações internacionais e a estruturação das políticas de governamentalidade do
povo e território dos Estados-nação nos últimos dois séculos. Pretende-se destacar a funcionalidade
atribuída ao fenômeno migratório contemporâneo quando da elaboração de políticas migratórias e os
desafios do paradigma biopolítico à integração dos migrantes no atual cenário internacional.
Em uma segunda etapa, objetiva-se destacar a tendência da feminização das migrações enquanto
um espaço de complexificação da mobilidade internacional de pessoas, bem como de reflexão sobre
a mudança nas relações sociais e possível transformação dos dispositivos de gênero impostos sobre
o corpo feminino. Buscar-se-á mapear os principais aportes teóricos no estudo desta tendência das
migrações contemporâneas em confluência com os estudos das relações de poder a partir do gênero,
refletindo sobre os caminhos e desafios enfrentados pelas mulheres migrantes, em razão do seu gênero
(mulher) e da sua situação de migração (não pertencimento/integração aos Estados-nação de acolhida).
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
que se inicia um modelo de reforço da soberania dos Estados, mediante o controle da mobilidade
internacional de pessoas (MOSES, 2013).
Na Primeira e Segunda Guerra Mundiais (1914-1918 e 1939-1945), o fenômeno migratório ganhou
novas e peculiares características. De um lado, visualizou-se um crescente número de pessoas, em
situação de deslocamento forçado ou voluntário, fugindo da devastação provocada pela guerra ou da
perda de conexão com seus respectivos Estados-nação (e consequentemente dos seus direitos). De
outro, considerada a livre movimentação como uma dinâmica “desvantajosa” à segurança dos Estados
(BADER, 2005, p. 334-335), desenvolveu-se uma estrutura de limitação da mobilidade humana, a
partir da securitização das políticas migratórias fundadas em doutrinas de segurança nacional.
Como resultado dessa dinâmica, o cenário das migrações passa por uma etapa de complexificação,
com contingentes expressivos de refugiados, apátridas, pessoas sem destino ou atrás de melhores
condições de vida, que passam a gravitar entre as fronteiras dos estados, relegadas a um estado de
natureza por não conseguir integrar-se em qualquer corpo político. Paradoxalmente, mesmo após a
criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e o compromisso moral solidificado em
uma estrutura de proteção internacional dos direitos humanos, com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, seguida por outros tratados internacionais, pela materialização de tribunais penais
e cortes regionais para a punição de crimes atentatórios e lesivos aos direitos humanos, o cenário
de exclusão dos “estrangeiros” e securitização da mobilidade humana ainda se manteve. O medo do
estrangeiro, do outro enquanto causa de insegurança e sofrimento (FREUD, 2011) permanece.
Como herança da polarização ideológica, a Guerra Fria, marca nova etapa de políticas de controle
de migrações, pautadas na segurança nacional e proteção ideológica, considerando os “estrangeiros”
como seres subversivos à integridade política e interesses nacionais dos Estados-nação (ROTTA,
2018, p. 12). Com o final da Guerra Fria, em 1991, a reestruturação política, sobretudo da antiga
União Soviética e das Alemanhas Oriental e Ocidental, inaugura a possibilidade de fuga dos regimes
totalitários, provocando mais uma etapa de complexificação da mobilidade internacional, com um
massivo fluxo de migrantes, refugiados e apátridas.
No Século XXI, a polarização ideológica e manutenção do medo como ferramenta de guerra
intensifica-se com o cenário de potencialização dos fluxos migratórios em função da globalização e
suas tecnologias de transporte, das crises econômicas, desastres ambientais e atentados terroristas
que marcam uma ruptura internacional com os sonhos de integração e cosmopolitismo, retornando
às comunidades e Estados-nação fechados em si mesmos.
Nesse contexto, as migrações internacionais estão em processo de infinita complexificação, com
constante redirecionamento dos fluxos para países em desenvolvimento, constituindo uma dinâmica
intrínseca ao processo de globalização (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2014, p. 11-14). A globalização das
migrações internacionais resulta na “convivência e coabitação entre pessoas de contextos físicos e culturais
cada vez mais diversos” (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2014, p. 340), criando uma superdiversidade
(SANTOS e LUCAS, 2019; VERTOVEC, 2007). Há um conjunto de diferentes atravessamentos culturais,
ou choques interculturais, promovidos pelas novas tecnologias de comunicação e de movimentação e,
logicamente, pelo próprio cruzamento das fronteiras do Estado-nação.
Considerando a complexidade das migrações, Stephen Castles, Hein de Haas e Mark J. Miller
(2014, p. 25-27, tradução nossa) entendem que o fenômeno migratório atual constitui-se em um
processo migratório, abrangendo um complexo conjunto de fenômenos não isolados, “de fatores
e interações que levam à migração e influenciam seu curso”, com variação no tempo e espaço, que
acompanha toda a vida do migrante (e das gerações futuras), bem como das pessoas à sua volta.
Tal dinâmica carrega uma ação de razão coletiva que afeta todas as relações sociais, nos espaços de
origem e recepção, em um período indeterminado de tempo (idem).
Esse processo migratório também apresenta distintas tendências gerais: a) a “globalização das
migrações”, envolvendo mais países e pessoas de diferentes localidades e de um “amplo espectro
econômico, social e fundos culturais”; b) “mudança de direção dos fluxos migratórios dominantes”;
c) a “diferenciação da migração”: heterogeneidade, simultaneidade e mudança das motivações da
mobilidade de pessoas (migração laboral, reunião familiar, refúgio ou assentamento permanente); d) “a
proliferação da transição migratória”, a partir da qual “terras tradicionais de emigração tornam-se terras
de imigração”; e) a “feminização da migração laboral”, sobretudo a partir dos anos 60, quebrando com
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ao fenômeno migratório coloca o migrante em uma situação volátil “dependente dos jogos de poder do
governo, das elites dominantes e da satisfação da opinião popular” (SANTOS e ROTTA, 2019, p. 216).
Há a necessidade de romper o paradigma de controle biopolítico em que os migrantes são
capturados no estado de exceção e presos na ambivalência “matável e insacrificável”, incluídos pela
sua exclusão, afastados da sociedade e do abrigo dos direitos, e tratados enquanto “não-pessoa”
(FOUCAULT, 2008; AGAMBEN, 2002 e 2004; DAL LAGO, 2012). Nesse cenário “não há mais espaço
para a manutenção de uma narrativa/conjunto de narrativas em que o contrato social, na instituição
do Estado, possua o poder/liberdade de suprimir as diferenças”, já que em todas dimensões espaço-
temporais “o Eu é constantemente conectado/obrigado a conectar-se com a diversidade do ‘outro’
(étnica/cultural/de gênero), centrada, neste trabalho, na figura do migrante” (ROTTA, 2018, p. 53).
A construção das políticas migratórias necessita de novas projeções de administração do
fenômeno, tornando imperiosa a reconstrução do pacto social (SANTOS e CHAUÍ, 2014), livrando-
se dos movimentos homogeneizadores das diferenças, repensando o Estado (contrato social)
enquanto “novíssimo movimento social” (SANTOS, 1999, p. 66-74), possibilitando a inclusão das
novas demandas apresentadas pelas diferenças, pelas minorias sociais, dentre as quais encontram-
se situadas as demandas dos migrantes, de forma a potencializar e ampliar o espectro de inclusão
cidadã nos moldes defendidos por Hannah Arendt (1979), enquanto um grande direito a ter direitos
a partir da inclusão um determinado corpo político.
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continentes da África e Ásia” (UN, 2015, p. 10-11, tradução nossa). Na Ásia e África o número caiu,
concentrando mais homens em razão da demanda de mão de obra masculina nos países produtores
de óleo da Ásia Ocidental (UN, 2015, p. 10-11, tradução nossa, UN, 2017, p. 9; UN, 2019, p. 14).
Na Europa e América do Norte, a proporção de mulheres migrantes subiu entre 2000 e 2015, de
51,6% para 52,4% e 50,5% para 51,2%, respectivamente, em razão do envelhecimento das migrantes
chegadas décadas antes e da maior expectativa de vida das mulheres em relação aos homens (idem).
Nas regiões mais desenvolvidas (Norte), as mulheres constituíam 51,8% e 51,5% do total de migrantes,
respectivamente, enquanto nas regiões menos desenvolvidas, o número de mulheres migrantes
baixou de 47,0% em 1990, para 43,9% em 2017 e 43,4% em 2019 (UN, 2017, p. 9; UN, 2019, p. 14).
Tomando em conta o fator econômico, em 2019, as mulheres migrantes totalizaram “47,6% de
todos os migrantes internacionais em países de alta renda, 48,2% em países de renda média e 50,9% em
países de renda baixa” (UN, 2019, p. 14). No ano de 2019, homens e mulheres dividiram praticamente
a mesma quota das migrações internacionais, correspondendo as mulheres a 50,4% das migrações na
Oceania; 49,9% na América Latina e Caribe; 49,4% no Centro e Sul da Ásia; 49,3% na Ásia e Sul da Ásia
Oriental (idem). No entanto, na África Subsaariana, no Norte da África e Ásia Ocidental, a participação
das mulheres nas migrações internacionais ficou em 47,5%, e 35,5%, respectivamente (UN, 2019, p. 14).
As características de desenvolvimento econômico e demanda de trabalho dos países de
origem e de destino colocam-se como fatores determinantes para a diferenciação das migrações
internacionais a partir do gênero. Em países de baixa e média renda per capita, bem como nos de alta
renda (não membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de regra, os
homens assumem o papel de migrantes em busca de trabalho, em contraste com o protagonismo
feminino nos países de alta renda, sobretudo naqueles membros da Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (IOM, 2019, p. 34; UN, 2015; UN, 2017; UN, 2019). Ainda, importa
ressaltar que países com tradição de imigração tendem a receber mais mulheres em razão de reunião
familiar (MARINUCCI, 2007, p. 9).
Outro fator de fundamental importância são as condicionantes de fatores relacionados ao gênero
das pessoas migrantes, que, mesmo podendo variar no tempo e espaço, geralmente apresentam mais
obstáculos às mulheres do que aos homens (BOYD e GRIECO, 2003, BOYD, 2006, apud MARINUCCI,
2007, p. 9-10). Os papéis, escolhas, acesso a recursos e até a quantidade de dinheiro ou informação
que chegam às mulheres são tolhidos em sociedades de origem com culturas tradicionalmente
hierárquicas e relações patriarcais, prejudicando suas decisões autônomas (idem). Da mesma forma,
nos espaços de chegada, em razão das políticas migratórias, dos estereótipos culturais e das redes
migratórias as mulheres também são vítimas de esquemas criminosos de servidão, exploração sexual
ou outros tipos de violência.
Mesmo que, globalmente, as mulheres não tenham superado o número de homens migrantes
(sobretudo em busca de trabalho), as características da migração foram alteradas: as mulheres agora
migram de forma independente, não necessariamente atrelada ao grupo familiar e estão ativamente
envolvidas no mercado de trabalho, apesar de também estarem mais suscetíveis à vulnerabilidade
correlatas ao gênero, como tráfico para a indústria do sexo, trabalho doméstico, casamento forçado
ou servil e exploração da mão de obra de migrantes com baixa qualificação por mulheres com mão
de obra altamente qualificada (IOM, 2019, p. 71).
A feminização das migrações também representa um contexto em que a visibilidade, ou mais
precisamente a invisibilidade das mulheres na construção teórica das migrações – a ausência de
análise das particularidades da experiência migratória feminina – passa a ser discutida com maior
ênfase (MARINUCCI, 2007). A “compreensão etimológica” sobre o fenômeno migratório, visualizada
nas teorias neoclássicas, estruturalistas e nas teorias de migrações em rede, desconsiderava as
questões de gênero como fator relevante, analisando apenas as questões econômicas e do mercado
de trabalho, colocando os homens como atores do fenômeno migratório, enquanto as mulheres
representavam papéis passivos ou dependentes como “mães e esposas”; focava tão somente nas
questões de classes, “considerando os deslocamentos humanos como consequências de uma coerção
estrutural” relativizando, assim, a abordagem de gênero; e “priorizava a atuação estratégica de
grupos sociais, raramente considerando as estratificações e conflitos de gênero presentes dentro de
tais redes”, mascarados pela ilusão de que as decisões eram realizadas a partir de uma participação
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nas análises das migrações internacionais.” (MARINUCCI, 2007, p.1). Isso porque, em décadas anteriores,
entendia-se que as migrações estavam relacionadas à busca de trabalho e que as mulheres “participavam
delas apenas enquanto acompanhantes ou, eventualmente, na hora da reunião familiar” (idem).
A partir dos estudos feministas e de gênero, a feminização das migrações discute a resistência
feminina, haja vista que o cruzamento de fronteiras, “mesmo que possa reforçar a exploração da
mulher” – em razão da submissão a trabalhos ou situações de menor renda e prestígio social em
comparação aos homens – “também pode ajudar as mulheres de sociedades patriarcais a ganhar mais
controle sobre as suas próprias vidas” (VASTA 1993 e PHIZACLEA, 1998 apud CASTLES, DE HAAS e
MILLER, 2014, p. 61-62, tradução nossa).
As mulheres estiveram por muito tempo fixadas à sua sexualidade, um “dispositivo de sujeição
milenar” que as coloca enquanto sexo frágil, sendo o seu corpo tomado como “objeto médico por
excelência” (FOUCAULT, 2019, p. 351 e 395). Diante de seus “papéis primários na sociedade patriarcal
enquanto esposa e mãe, dependente de um de um chefe de família e provedor masculino”, era
“particularmente fácil atribuir inferioridade às mulheres migrantes trabalhadoras”, dinâmica essa que,
em boa parte, continua a ser reproduzida (VASTA 1993 e PHIZACLEA, 1998 apud CASTLES, DE HAAS e
MILLER, 2014, p. 61-62, tradução nossa).
A migração feminina “é um fenômeno que merece atenção pela repercussão social, econômica
e cultural”, sobretudo “porque se trata de um grupo social vulnerável, suscetível a vários tipos de
violência, principalmente o trabalho escravo, a exploração sexual e o tráfico humano” (QUEIROZ, 2015,
p. 15). Além das discussões sobre o controle da mobilidade humana, a feminização das migrações
desvela, pois, um terreno fértil para a discussão, reflexão e resistência sobre as relações de poder
que imperam sobre o corpo das mulheres migrantes a partir da expressão de sua sexualidade ou, de
forma mais abrangente, de seu gênero.
Ao longo da história, o sexo foi disciplinado, controlado, domesticado, aprisionado em uma
verdade produzida pelas disciplinas científicas e substituídas pelas instituições médicas, pedagógicas
e outras, “por meio de procedimentos destinados a normalizar os corpos sexuados” (FOUCAULT apud
ST-HILAIRE, 2000. p. 86). O sexo tornou-se “uma questão política”, recaindo sobre as pessoas como
uma forma de controle de seus corpos a partir de sua sexualidade, de uma produção da sexualidade
por parte do Estado (idem).
A forma de controle que impera sobre a sexualidade propriamente dita é representada por Michel
Foucault (2019, p. 364-406) mediante a noção de “dispositivo de sexualidade”, que é “um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas”, constituindo-se no emaranhado discursivo ou não entre tais elementos, que respondem
à uma urgência e um objetivo estratégico, exercendo a força sobre e a partir da sexualidade ou, de
forma mais abrangente, sobre o gênero, nas diversas instâncias e estruturas da sociedade. É um
conjunto de discursos mediante o qual sujeitos enquanto indivíduos e coletividades constituem-se
em objetos sobre os quais as relações de poder atuam e, ultimamente, em sujeitos, pensados à luz
das “categorias do dispositivo” (FOUCAULT apud ST-HILAIRE, 2000, p. 86).
Trata-se de um “instrumento metodológico que permitiria a percepção das relações entre saber,
poder e subjetividade em um dado objeto histórico, a sexualidade.”, sendo mutável diante dos
objetivos do poder exercitado sobre os corpos a partir de seu sexo/sua sexualidade, razão pela qual
deve ser analisado a partir das circunstâncias espaço-temporais em que é aplicado ou que permanece
vigente (FOUCAULT apud ST-HILAIRE, 2000, p. 86). Contudo, Foucault não pensou a “diferença de
sexos como um dispositivo”, a sua ligação com as relações de poder (ST-HILAIRE, 2000, p. 87). As
estratégias de poder, de controle da sexualidade, do corpo, advindas de diversas instituições, também
importam a reflexão sobre a “função normativa, reguladora da diferença dos sexos” e as condições
em que são possíveis (idem).
Ao seu tempo, o conceito de gênero “repousa numa conexão integral entre duas proposições”
interrelacionadas: “é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos” e “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 85-86).
Enquanto noção mais ampla, englobando as diferenças biológicas de sexo e as relações sociais, o gênero
é um operacionalização do dispositivo, uma relação de discurso ou forma primária de dar significado
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ou ser espaço de articulação das relações de poder diante de um determinado objetivo estratégico,
sobretudo nas tradições judaico-cristãs e islâmicas (SCOTT, 1995; FOUCAULT, 2019; ST-HILAIRE, 2000).
A construção das tramas de poder a partir da sexualidade, abrem a possibilidade de mutações
do dispositivo da “fronteira de sexos” em razão das alterações nas relações sociais de poder (como
as provocadas pelo movimento feminista) também nas formas de constituição do ser feminino, de
rediscussão e descolonização da sexualidade feminina a partir de seu próprio discurso (ST-HILAIRE,
2000; FOUCAULT, 2019, p. 351 e 395). Sendo o dispositivo um conjunto de relações e discursos
de produção de sujeitos e identidades, esses são produzidos em uma dinâmica instável, “sempre
constituídos na encruzilhada de vários dispositivos” (ST-HILAIRE, p. 88). Assim, “o poder funciona
com o risco de tomar outra forma e direção”, marcado “por sua carga de novidade e criatividade”,
pela potencialidade de transformação (BUTLER apud ST-HILAIRE, 2000, p. 88). Constituir-se sujeito é
sempre um processo em trânsito. O sujeito forma-se e é (re) criado pela operacionalização do poder
sobre seu corpo e atuação. É resultado dos dispositivos e do exercício de sua ação e discursividade
sobre os espaços, as relações sociais e, de forma redundante, sobre os próprios dispositivos vigentes.
Considerando que mudanças “na organização das relações sociais” são sempre correspondentes
a “mudanças nas representações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86) e que a mutação ou mudança dos
dispositivos de sexualidade é perfeitamente possível (ST-HILAIRE, 2000), a crescente migração de
mulheres é campo de mutação/renovação dos dispositivos que imperam sobre os corpos femininos a
partir de sua sexualidade ou seus respectivos gêneros, abrindo, consequentemente, novos horizontes
para a constituição da subjetividade feminina.
O aumento numérico nos fluxos migratórios contemporâneos e o protagonismo nas sociedades,
na busca de novas condições de vida, empregos, no ativismo feminista, na preservação dos e
reprodução dos laços culturais representa, uma mudança nas relações sociais ou instabilidade nas
construções de poder a partir do gênero que permeiam e antes permeavam o processo migratório. No
momento em que o papel de “ser mulher” desloca-se da sexualidade feminina enquanto corpo-objeto
de reprodução e desejo para o de protagonista nas comunidades e no mercado de trabalho, expõe-
se o fenômeno de erosão das “fronteiras de sexo” ou mutação dos dispositivos e relações de poder
(FOUCAULT, 2019, p. 344; ST-HILAIRE, 2000).
Considerando a possibilidade de ressignificação dos dispositivos sobre sexo, gênero e
sexualidade, bem como as “mudanças nas representações de poder”, a feminização das migrações
permite repensar os dispositivos e relações de poder nas e a partir das interações e relações sociais
contemporâneas, abrindo espaço para novas possibilidades de constituição do sujeito, novas formas
de subjetividade, discursividade e representação da mulher migrante (ST-HILLAIRE, 2000; SCOTT,
1995). Guardados os desafios ainda presentes, tal contexto significa uma erosão das “fronteiras de
sexo” ou mutação nos dispositivos tradicionais, dando espaço para o protagonismo da mulher nas
migrações contemporâneas, a busca de melhores condições de vida e o exercício de sua própria
construção enquanto sujeito no espaço e na sociedade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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RESUMO: O presente trabalho visa analisar em que medida a divisão dos direitos humanos em
gerações é inadequada para tratar dos direitos das mulheres. Partindo da constatação de que os direitos
nascem conectados com o movimento da história, convencionou-se dividir os direitos humanos em
três gerações. Porém, é possível concluir que a divisão geracional não é compatível com a conquista
de direitos humanos pelas mulheres. Isso porque, elas conquistaram primeiro direitos considerados
de segunda geração, para depois conquistarem direitos civis e políticos. No contexto brasileiro, a
Carta da Mulher Brasileira ao Constituinte de 1988 demonstra que os direitos humanos são fruto de
lutas e que as mulheres vindicam direitos assegurados aos homens desde o século XVIII.
INTRODUÇÃO
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Em uma concepção clássica, os direitos humanos são definidos como o direito a ter direitos. São
direitos humanos aqueles que podem ser gozados por todas as pessoas, “sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.” (ONU, 1948)
O conceito de direitos humanos está relacionado a afirmação da dignidade do ser humano
perante o poder estatal. Assim, esses direitos seriam atributos inatos da pessoa, garantidos a todos,
sem necessidade de reconhecimento. Os direitos humanos são comumente definidos como universais
e históricos. Nesse sentido, seriam garantidos para todas as pessoas, independentemente de qualquer
vinculação com o Estado. (NIKKEN, 1997; ARIFA, 2018)
Em razão de serem pensados dentro de um contexto histórico específico, os direitos humanos
seriam “frutos de seu tempo”, e como tal, só puderam existir em razão de um conjunto de acontecimentos
que permitiu sua garantia. Em razão de sua vinculação com acontecimentos históricos, é possível
dizer que os direitos humanos, da forma em que são conhecidos hoje, nascem no mundo ocidental
“civilizado” do século XVIII, em um local específico, qual seja, o Estado Moderno. (FACCHI, 2011)
A partir da visão histórica, fica claro que os direitos não são reconhecidos ao mesmo tempo. Cada
novo direito surge quando “o aumento do poder do homem sobre o homem (...) ou cria novas ameaças
à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para suas indigências.” (BOBBIO, 2004, p. 26)
Para o surgimento dos direitos humanos em seu formato atual, foi necessário que o homem se enten-
desse como ser autônomo, que surgisse a ideia do direito como um atributo do sujeito, e por fim, foi neces-
sário que se lutasse contra a arbitrariedade dos poderes soberanos. Como os direitos humanos caminham
com a história, mudanças sociais e econômicas, inevitavelmente, levam a câmbios em suas configurações.
Assim, é normal que esses direitos sejam modificados, ampliados, transformados. (FACCHI, 2011)
A partir da ideia de que os direitos nascem através de reivindicações específicas de um tempo
histórico, convencionou-se dividir os direitos humanos em gerações. A ideia de geração de direitos
humanos é elaborada por Karel Vasak (1977) em um discurso sobre a luta para conferir força de lei à
Declaração de Direitos Humanos de 1948, que então contava com 30 anos de história.
Vasak (1977, p. 29) defendeu que os direitos humanos podem ser divididos em três gerações.
A primeira geração de direitos, composta pelos direitos civis e políticos, é caracterizada pela
reivindicação de liberdades perante o Estado. Já a segunda geração é marcada por direitos que exigem
a atuação estatal, tais como os direitos sociais, econômicos e culturais. Por fim, a terceira geração de
direitos seria ligada aos chamados direitos de solidariedade, que exigiriam a ação coletiva de Estado,
indivíduos e de outras unidades políticas.
A divisão dos direitos humanos em gerações leva em consideração a cronologia em que os
direitos fundamentais foram formalmente conquistados pela humanidade. A citada divisão ganhou
destaque com a obra de Norberto Bobbio (2004), e passou a ser reproduzida em diversos manuais de
direito constitucional e de direitos humanos. A formulação ganhou tanta importância que encontra
ressonância até mesmo nas decisões do Supremo Tribunal Federal. 10
Dentro do ideário geracional, os primeiros direitos humanos a surgirem foram os direitos
negativos. Esses direitos foram inseridos nas primeiras declarações de direito modernas, documentos
com valor político e jurídico, proclamados no contexto da independência dos Estados Unidos da
América e da Revolução Francesa. (FACCHI, 2011)
Os direitos de primeira geração têm como principal característica o fato de representarem uma
pretensão de não-intervenção estatal. Eles nascem como exigência de que o indivíduo conserve uma
esfera de liberdade que não pode ser violada pelo Estado ou pela Igreja. (BOBBIO, 2004, p. 90)
Nesse sentido, os citados direitos trazem a pretensão de que o Estado de respeite a liberdade
dos indivíduos bem como o fundamentam anseio de verem reparadas as agressões eventualmente
efetuadas. Os principais direitos de primeira geração, também classificados como civis e políticos, são
os direitos como a liberdade religiosa, igualdade formal, vida, propriedade. (MENDES E GONET, 2020)
10 Sobre o tema conferir as seguintes decisões: BRASIL. Supremo Tribunal de Federal. Plenário. Recurso Extraordinário
654.833 Relator Min. Alexandre de Moraes. DJE, Brasília, 24 jun. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal de Federal. Plenário. Mandado de Segurança 22.164. Relator Min. Celso de Mello. DJ, Brasília, 17 nov. 1995.
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(...) um marco decisivo na história. Significava que doravante o Homem, e não o comando de Deus
nem os costumes da história, seria a fonte da Lei. Independente dos privilégios que a história
havia concedido a certas camadas da sociedade ou a certas nações, a declaração era ao mesmo
tempo a mostra de que o homem se libertava (...) (ARENDT, 2012, p. 324)
Apesar da sua ampla difusão, a classificação dos direitos humanos em gerações não está livre
de críticas. Nesse sentido, a palavra geração representaria, de forma errônea, que certos direitos já
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foram consolidados. Em uma perspectiva semântica, é possível criticar a escolha da palavra geração,
da qual se extrai a falsa ideia de que os direitos de primeira e de segunda geração já estão plenamente
assegurados. (KHVOSTOVA et al, 2019)
Destarte, é necessário lembrar que o simples fato de um direito ser enunciado em uma norma
jurídica, não significa, em absoluto, que ele está garantido. Assim, o problema da divisão em gerações
está no fato de conduzir a uma lógica que traz garantias antes da existência de condições materiais
para sua fruição. É necessário ressaltar esses direitos são oriundos de lutas e que não existem
simplesmente em função de um reconhecimento jurídico. (FLORES, 2009)
Os direitos humanos não guardam completa identidade com o que positivado nacional e
internacionalmente. Isso porque, na medida em que não podem retirar garantias do papel, os documentos
jurídicos não tem poder de criar, de forma efetiva, direitos humanos. Esses são processos, são resultados
temporários da luta humana para ter acesso ao que é essencial para viver. (FLORES, 2009)
Nesse diapasão, a divisão em gerações veicula a ideia de que certos direitos já foram garantidos,
desprezando o fato de que a luta pelos direitos humanos é constante. Mesmo que um direito humano
esteja implementado, a luta para que ele permaneça é constante. O movimento da história dos direitos
humanos é pendular, marcado por momentos de avanços e de retrocesso. (FLORES, 2009)
A classificação em gerações também é acusada de ser imprecisa, visto que os primeiros
documentos que positivaram direitos humanos já traziam direitos sociais. Nesse giro, a Constituição
francesa de 1791 incluiu a previsão de que o Estado criasse instituições com o fito de prestar
assistência às crianças abandonadas, já a Constituição do Império, de 1824, inclui direitos como o
socorro público e a instrução primária gratuita. (DIMOULIS e MARTINS, 2018)
Além das citadas críticas, a classificação geracional parece ser inadequada para tratar dos direitos
das mulheres. Inicialmente, é necessário entender que os direitos humanos surgem em sociedades
influenciadas pelo ideário Iluminista. O Iluminismo “aporta à humanidade duas grandes propostas
políticas e éticas: a da liberdade e a da igualdade”. O pensamento iluminista defende, baseado nas
ideias de estado de natureza, que todos nascem livres, iguais e racionais. Um de seus corolários é
a teoria liberal e contratualista, um pilares que sustentam a modernidade. (NIELSSON, 2018, p. 93)
Essa nova sociedade, focada no individualismo, procura sua justificativa nas teorias do contrato social.
Em linhas gerais, o contratualismo defende que a formação da sociedade civil acontece através de um pacto
social, onde indivíduos abrem mão de todos, ou de parte dos direitos que gozavam no estado de natureza,
para que o Estado garanta direitos naturais como vida, liberdade e propriedade. (WEFFORT, 2001)
As teorias do contrato social são responsáveis por ajudar na difusão da “ideia de direitos naturais,
individuais, inatos e iguais para todos os seres humanas”. Ante a ideia de que todos os homens
nascem livres e iguais, os direitos humanos nascem com pretensão de universalidade, ou seja, todos
são supostamente titulares desses direitos. (FACCHI, 2011, p. 45)
As teorias contratualistas são responsáveis por fundamentar um modelo de sociedade onde o
Estado seria o responsável por garantir os direitos naturais dos indivíduos. A partir da ideia de que o
Estado existe para garantir os direitos dos homens, é possível a afirmação dos de direitos como os de
primeira geração, mormente negativos.
Com o propósito de diminuir a ingerência do Estado na vida dos indivíduos, as ideias liberais e
contratualistas do século XVIII trazem uma separação entre o ambiente público e o ambiente privado.
A mulher é naturalizada como ser responsável pelo ambiente doméstico, encarregada de reproduzir,
cuidar do lar e de seus filhos. (NOVAES, 2015)
Conforme esclarece Facchi (2011) a ordem social, fundada na valorização do indivíduo, na
racionalidade e na liberdade, é uma ordem masculina. A mulher, vista como ser inferior e propensa
aos sentimentos, é excluída da titularidade dos direitos civis e políticos. Nesse giro, as declarações
de direito do século XVIII, que supostamente positivam direitos humanos universais, não incluem
direitos para as mulheres:
É que esse homem abstrato, resultado das revoluções liberais do século XVIII, é vazio, pois a partir
do momento em que se introduzem experiências reais e características concretas na natureza
humana abstrata, verifica-se que a igualdade e a dignidade preconizadas pelas declarações
tornam-se quase que falaciosas. (LUCAS; GHISLENI, 2017, p. 97)
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Se a mulher é feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornar-se agradável ao homem ao
invés de provocá-lo. Sua violência está nos seus encantos; é por eles que ela deve constrangê-
lo a encontrar sua força e empregá-la. (…) Quando a mulher se queixa a respeito da injusta
desigualdade que o homem impõe, não tem razão; (ROSSEAU, 1979, p. 306)
Então, se as mulheres não são um encame de seres frívolos e efêmeros, por que deveriam ser
mantidas na ignorância, sob o enganoso nome de inocência? Os homens se queixam, com razão,
da insensatez e dos caprichos de nosso sexo, quando não satirizam de forma mordaz nossas
paixões impetuosas e nossos vícios abjetos.
As reivindicações femininas do século XVIII, se estendem aos séculos XIX, XX, e XXI, momento
que as mulheres ainda lutam por direitos negativos, chamados de primeira geração. Dessarte, é
possível afirmar que os direitos chamados de segunda geração já estavam em pleno desenvolvimento
quando as mulheres sequer haviam conquistado direitos civis e políticos compatíveis com os
masculinos.11 Resta claro que as mulheres tiveram direitos de segunda geração garantidos antes
mesmo de conquistarem os de primeira. (FACCHI, 2011)
Conforme citado anteriormente, a Constituição do México, de 1917, é uma das cartas que
marcam o início de uma segunda geração de direitos humanos. O documento entra para história pelo
fato de garantir diversos direitos sociais, entre eles, direitos trabalhistas. Apesar da ampla garantia
de direitos sociais, o citado documento não reconhece o direito ao sufrágio feminino. Mesmo com a
11 Interessante citar que a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher é 1953, momento em que o direitos sociais já
estavam em pleno desenvolvimento. (FIORI, 1997)
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12 Alguns países trazem a igualdade entre homens e mulheres mais cedo. A Constituição de Weimar, de 1919, trouxe direi-
tos políticos para as mulheres já no início do século XIX. (FACCHI,2011)
13 As mulheres suíças passaram a ter direito ao voto em 1971. Já na Arábia Saudita, as mulheres votaram pela primeira vez
em 2015.
14 Apesar de escapar ao escopo do presente artigo, ainda é possível pensar na inadequação do conceito de gerações para
tratar de direitos de pessoas LGBTQIA+, dos direitos dos povos tradicionais, entre outros. Nesse sentido, conforme esclare-
cem Lucas e Spengler (2012, p. 54) “talvez as formas tradicionais de se pensar o direito e de praticá-lo ainda não se deram
conta das profundas mudanças que povoam esse novo tipo de conflito.”
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é posteriormente substituída pelo texto constitucional de 1988, trazendo a afirmação que “homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
Apesar da igualdade formal aparecer em todos os textos constitucionais brasileiros, é notório
que, de forma geral, os direitos humanos da mulher passaram por processo de ampliação. Em
sociedades eminentemente positivistas, o reconhecimento jurídico, apesar de não ter o condão de
mudar a realidade, não deixa de ser o resultado de lutas. (ESPÍNOLA, 2018)
Isso significa que apesar do direito não criar realidade, incluir um tema em um diploma legal,
principalmente na Constituição Federal, é resultado de um árduo processo de batalha. Portanto, as
mulheres lutaram por séculos pelo reconhecimento de certos direitos, e continuam lutando para ver
para ver seu conteúdo realizado.
Na visão de Flores, (1997) após o reconhecimento jurídico, a luta pela efetivação dos direitos
passa a se apoiar “em sistemas de garantias já formalizados”. Nesse giro, a positivação de um direito
na Constituição Federal, apesar de não ter o condão de transforma-lo em realidade, é um elemento que
soma força na luta pela sua efetivação. Em uma tentativa de trazer parte da batalha das mulheres pelo
reconhecimento de direitos humanos, e demonstrar que a ideia de geração não é compatível com o
caminho trilhado por elas trilhado, relembramos a Carta da Mulher Brasileira ao Constituinte de 1988.
Após a conquista de direitos políticos, nos anos 1930, a luta das mulheres por direitos perde
força. Porém, o movimento ressurge em meio a ditadura militar, reivindicando, além de direitos civis
e culturais, o retorno da democracia. Nessa época, mulheres intelectuais e de camadas populares
começam a se articular para enfrentar problemas como os baixos salários, desnutrição infantil, alta
dos preços dos alimentos e violência intrafamiliar. (SILVA, 2012)
Com o fim da ditadura militar, iniciou-se a articulação para elaboração de uma Constituição
compatível com o regime democrático vindouro. Para cumprir o citado desiderato, em 1985, foi
convocada a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), por meio de emenda à Constituição de 1967/69.
Nesse período, floresce a articulação feminina voltada à influenciar na elaboração da Constituição
Federal. Ainda em 198515, instala-se o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, criado com diversos
objetivos, entre eles o de promover uma maior participação feminina na vida pública e criar medidas
para eliminar a desigualdade de gênero:
A campanha pelos direitos das mulheres na Constituição desenvolveu-se de 1985 até a promulgação
da Constituição em 1988, e constitui uma das principais ações de advocacy pelos direitos das mulheres
na história do Brasil. Essa campanha antecede a eleição do Congresso Nacional, acompanha todo o
processo constituinte e, após a promulgação da Constituição, desenvolve estratégia de comunicação,
informando a sociedade sobre os direitos adquiridos. (PITANGUY, 2018)
A mais ampla campanha realizada pelo CEDH, denominada “Mulher e Constituinte”, se organizou em
duas frentes. A primeira delas visava garantir a eleição do maior número possível de parlamentares mulhe-
res, já a segunda tinha como objetivo garantir a positivação de direitos da mulher no texto constitucional.
A eleição para congressista Constituinte elegeu 559 membros, dentre eles, 26 mulheres. Apesar
de o número parecer baixo, a quantidade de mulheres eleitas representou um grande avanço em
termos percentuais. Nesse sentido, importante lembrar que com exceção da participação de Carlota
Pereira na Constituinte de 1934, não existiu, na história do constitucionalismo brasileiro, outro
momento em que a Constituinte contou com a participação das mulheres. (SILVA, 2012)
A campanha foi responsável por articular movimentos femininos e feministas de todos os rincões
do Brasil, trabalhando para um desiderato comum, qual seja, a garantia de direitos para as mulheres
brasileiras através da participação no processo de elaboração da Constituição Federal. Interessante
observar que, apesar de seu papel central, o movimento não esteve restrito à atuação do CNDM. O
sucesso da campanha foi possível pela
soma articulada das centenas de experiências populares experimentadas por mulheres comuns
das periferias das grandes e pequenas cidades no pós-1970, nesta constituição inédita de práticas
e espaços políticos que descentralizaram a militância da fábrica ao bairro, como vimos aqui.
(CRESCÊNCIO e OLIVEIRA, 2019)
15 O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foi criado pela Lei n. 7.353, de 29 de agosto de 1985.
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Utilizando dos meios dos comunicação disponíveis, como imprensa escrita e televisão, bem
como através da realização de encontros e palestras, procurou-se criar um processo de diálogo com
mulheres de todo o Brasil. Assim, a luta pela participação na Constituinte não ficou restrita aos
grandes centros, incluindo mulheres de zonas rurais e de locais periféricos. Recebendo sugestões
de todo o país, o CNDM fez o papel de filtrar as demandas das mulheres e elaborar um documento
conjunto para ser apresentados aos constituintes. (MELO, 2018)
A luta das mulheres teve como um de seus resultados a Carta das Mulheres Brasileiras aos
Constituintes de 1988, documento que reuniu um conjunto de reivindicações que elas desejavam ver
incluídas na Constituição Federal. A Carta, discutida e elaborada a partir da contribuição de mulheres
de todo Brasil, foi entregue ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimaraes, em
26 de março de 1987. (SILVA, 2012)
O texto trouxe vindicações sobre temas como família, trabalho, saúde, violência de gênero, assuntos
internacionais, educação e cultura. A partir das demandas das mulheres, o documento deixa claro que
para a efetivação dos princípios de igualdade é fundamental que a futura Constituição Brasileira: 1.
Estabeleça preceito que revogue automaticamente todas as disposições legais que impliquem em
classificações discriminatórias; 2. Determine que a afronta ao princípio da igualdade constituirá
crime inafiançável; (CNDM, 1987)
Analisando a Carta a partir da divisão geracional dos direitos humanos, é possível notar que
ao final do século XX, as mulheres brasileiras apresentavam demandas que podem ser classificadas
nas três gerações de direitos humanos. Em relação aos direitos de primeira geração, as mulheres
reivindicaram, por exemplo, que o Estado não interfira no exercício da sexualidade. Além da citada
exigência, a Carta reivindicou igualdade perante a lei na medida em que exige a eliminação do termo
“mulher honesta” e prega a “plena igualdade entre os cônjuges no que diz respeito aos direitos e
deveres quanto à direção da sociedade conjugal, à administração dos bens do casal, à responsabilidade
em relação aos filhos, à fixação do domicílio da família, ao pátrio poder”. (CNDM, 1987)
Mister salientar que, apesar do reconhecimento da igualdade formal, a legislação brasileira
carregava, antes da Constituição de 1988, uma grande quantidade de normas com teor discriminatório
e limitador dos direitos da mulher. Entre essas normas, destaca-se o Código Civil de 1916, arranjado
de forma submeter a mulher à autoridade do marido e inúmeras outras, como a Consolidação das Leis
do Trabalho, que chegou a limitar o trabalho da mulher ao período diurno. 16
A Carta também reivindica direitos típicos de segunda geração, entre eles, a criação de um
Sistema Único de Saúde e a estabilidade para mulher gestante. Em relação aos direitos classificados
como de terceira geração, as mulheres reivindicam proteção ao meio ambiente, proteção à
integridade das comunidades indígenas, paz nas relações internacionais, política externa baseada na
autodeterminação dos povos, entre outros. (CNDM, 1987)
Conforme assinado por Neto (2018), a mobilização social das mulheres de todo Brasil ajudou
a criar um sentimento de identidade entre as parlamentares eleitas para a ANC. Isso tornou a
bancada mais forte, e fez com que cerca de 80% das demandas das mulheres constituintes fossem
incorporadas à Constituição Federal. Nesse sentido, a Constituição Federal incorporou reivindicações
como o reconhecimento da união estável, ampliação da licença maternidade, igualdade de direitos na
sociedade conjugal e responsabilidade estatal em coibir a violência doméstica.
Ainda que se considere o reconhecimento de um direito como marco de sua efetiva implementação,
resta demonstrado que a classificação de direitos humanos em gerações é absolutamente incompatível
com a trajetória de luta pelos direitos humanos das mulheres. Isso porque, ao final século XX,
momento em que a Carta da Mulher ao Constituinte é elaborada, as mulheres ainda lutam por direitos
concedidos aos homens ainda no século XVIII. 17
Cabe ressaltar que os direitos das mulheres previstos na Constituição Federal, mesmo que não
16 Art. 379, CLT, redação original. É vedado à mulher o trabalho noturno, considerado este o que for executado entre as
vinte e duas (22) e as cinco (5) horas do dia seguinte. Art. 379, CLT, redação alterada: É permitido o trabalho noturno da
mulher maior de 18 (dezoito) anos, salvo em empresas ou atividade industriais.
17 Um dos exemplos para a situação narrada é o art. 233, Código Civil de 1916: O marido é o chefe da sociedade conjugal.
Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao
marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da ideia de que os direitos nascem com a evolução da história, convencionou-se, a partir
da obra de Karel Vasak, em dividir os direitos humanos em gerações. A primeira geração, ligada ao
valor da liberdade, trouxe direitos civis e políticos. Já a segunda geração, preocupada com a igualdade,
traz direitos de cunho social. Por fim, a terceira geração de direitos, focada na fraternidade, positiva
direitos de cunho coletivo.
Porém, a divisão geracional não é compatível com a conquista de direitos humanos pelas
mulheres. Isso porque, elas conquistaram primeiro direitos considerados de segunda geração, para
depois conquistarem, ainda que formalmente, direitos civis e políticos. No contexto brasileiro, a
Carta da Mulher Brasileira ao Constituinte de 1988 demonstra que as mulheres lutaram, já no século
XX, pelo reconhecimento de direitos assegurados aos homens desde o século XVIII.
No contexto da Assembleia Nacional Constituinte, as mulheres, através do movimento Mulher e
Constituinte, trabalharam para que o texto constitucional lhes trouxesse o reconhecimento de direitos
civis, políticos, sociais e coletivos. O sucesso do movimento fez com que várias demandas fossem
incluídas na Constituição Federal. Porém, apesar do reconhecimento de direitos ser fruto de lutas, a
batalha pelas condições materiais e culturais essenciais para sua fruição é continua. Olhar os direitos
humanos da mulher como direitos que já foram garantidos é esquecer que direitos são reversíveis, e
que sua manutenção é sempre vinculada as lutas sociais.
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RESUMO: Este artigo tem por objetivo compreender o processo histórico de objetificação da mulher
a partir da análise da obra “O Segundo Sexo” da pensadora francesa Simone de Beauvoir. Através do
uso de diversas situações descritas pela autora, é possível analisar a dominação do sexo feminino
ao longo dos séculos, e a importância de cada pequena conquista feminina. Ademais, é importante
inferir a crucialidade do feminismo em uma sociedade plural e moderna, levando em consideração a
sua importância histórica. Em termos metodológicos, optou-se pelo enfrentamento da obra referida
e sua relação crítica histórica com eventos que demonstram os processos de dominação masculina.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa elucidar a situação de dominação histórica da mulher frente a uma
sociedade machista, através da correlação com a obra “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir.
A obra foi escrita no ano de 1949 pela francesa Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de
Beauvoir, mais conhecida como Simone de Beauvoir, e tornou-se uma das obras mais importantes
do movimento feminista, sendo amplamente discutida nos dias de hoje, por retratar de forma muito
atual a situação feminina. Posteriormente publicada no Brasil, a obra é fonte de grande conhecimento
tanto nos meios informais quanto no meio acadêmico.
Em seu livro, Simone de Beauvoir explana, com base em diversos fatores, as justificativas
machistas dadas à dominação das mulheres, buscando normalizá-la. Através da biologia, Beauvoir
desmistifica a crença de que as condições biológicas da mulher seriam motivo para sua dominação;
através da psicanálise, a pensadora evidencia a profunda violência que a mulher sofre ao ver a si
mesma marginalizando o próprio sexo; e por fim, através do contexto histórico, que será o mais
amplamente abordado no presente artigo, Beauvoir aborda como se deu a dominação feminina e as
razões da sua dificuldade em sair de tal situação.
O trabalho será dividido em cinco partes, objetivando explanar os fatos trazidos por Beauvoir em
seu livro “O Segundo Sexo” e correlacionando-os com as evidências atuais, dando enfoque a maneira
como situações vividas no passado ainda ocorrem na sociedade do século XXI. Primeiramente, será
tratada a questão biológica trazida pela autora, acrescida de fatos atuais que tornam impensável a
teoria da dominação feminina através da justificativa de sua condição biológica. Após isso, é crucial dar
destaque a situação histórica da mulher, desde os primórdios da humanidade até o fim do feudalismo
e o enfraquecimento da influência da igreja católica, relatando as violências sociais e íntimas sofridas
pela mulher. Será então tratada a forma como essa violência foi representada com a descoberta do
“Novo mundo” e as diferenças que isso causou da sociedade da época, evidenciando que desde
aquele momento até os dias atuais essa situação não acabou. Torna-se importante destacar algumas
personalidades femininas que chamaram muita atenção ao longo da história humana. Depois, será
abordada a importância que essa obra e a sua escritora tiveram e tem para o movimento feminista
atual. Por fim, é fundamental demonstrar como essas formas de violência ainda estão presentes na
18 Bolsista de iniciação científica Pibic/Unijui, acadêmica do 4° semestre do curso de Direito da Unijuí. E-mail: eduarda-
fkreutz@gmail.com.
19 Professor orientador. Doutor Unisinos e Pós-doutor pela Università degli Studi Roma Tre. Professor da graduação, mestra-
do e doutorado em direito da Unijui. E-mail: doglasl@unijui.edu.br.
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A primeira questão a receber destaque não poderia ser outra: o que é uma mulher? Muitas já
foram as respostas elaboradas. Em seu livro previamente citado, “O Segundo Sexo”, Beauvoir destaca
alguns pensadores com fortes opiniões quanto a isso, dentre eles Aristóteles, que via a mulher como
um homem incompleto, cujos órgãos sexuais não alcançaram sua plenitude, e em vez de tornarem-se
exteriores ao corpo, permaneceram dentro dele.
Na obra sobre o qual este trabalho se baseia, “O Segundo Sexo”, percebe-se que a teoria mais
aceita era a mais simples: a mulher era um útero. Não passava de um receptáculo para que o homem
pudesse depositar a sua “semente” e gerar a vida. Mas é importante destacar: apenas o homem gerava
a vida, à mulher cabia apenas alimentar a semente de vida, protegendo-a.
A mulher não era vista como um sujeito, não era tratada como um humano racional. Era apenas
o que se esperava dela: um receptáculo. Sua condição social não era nem pensada, suas necessidades
sociais incompreendidas e seus sentimentos ignorados.
Após a fecundação, sabe-se que o corpo da mulher passa por mudanças irreversíveis, preparando-se
para não apenas suprir as necessidades da mãe, mas também as do feto. Após o nascimento – muitas vezes
extremamente doloroso, inclusive podendo levar a mãe a morte – advém a necessidade de alimentar a criança.
A amamentação, por mais natural que seja, muitas vezes causa dores à mulher, além de uma exaustão intensa.
Neste contexto, qual é o papel do homem? Sabe-se que o homem não é capaz de gerar uma vida sozinho
ou carrega-la em seu corpo, e não pode por isso ser rechaçado. Contudo, isso não exclui a necessidade de
sua participação na vida familiar. Por muito tempo, sua participação na reprodução era unicamente o ato
sexual, após isso não se esperava dele nada mais do que a proteção e obtenção de alimentos. Considerando
isso, a mulher teria a obrigação natural de criar a prole, educá-la e alimentá-la da melhor forma possível.
Ao macho, após o coito, caberia dar continuidade a sua vida. A ele são garantidas liberdades inexistentes
às mulheres, muitas delas relativas à reprodução, como mais tarde será abordado, quanto a quantidade de
parceiras sexuais. Mas a questão chave neste contexto não é repudiar o homem por não ser capaz de gerar
a vida, mas sim exigir dele a participação efetiva da vida familiar. Da mesma forma que a mulher, deve ter a
oportunidade e a necessidade de criar laços afetivos com seus descendentes.
Uma vez infundada a justificativa que coloca o homem como ser principal da reprodução, como
anteriormente citado, passou-se a utilizar a justificativa da força corporal para legitimar sua superioridade,
uma vez que a mulher possui, conforme estudos citados por Beauvoir, cerca de apenas dois terços da força
muscular do homem, sendo, portanto, inferior. Contudo, como toda tentativa de declarar a superioridade
masculina, essa justificativa falhou. Primeiro, por que é impossível generalizar a questão da força, uma vez
que cada corpo é único, mas especialmente, pelo fato de que a força bruta, não pode ser responsável pela
hierarquização da sociedade humana, que se diz racional. A humanidade sempre se declarou superior ao
reino animal, onde impera a lei do mais forte, mas muito a usou para tentar marginalizar a mulher. Como
Beauvoir muito bem destaca “quando o pleno emprego da força corporal não é exigido nessa apreensão,
abaixo do mínimo utilizável, as diferenças anulam-se; onde os costumes proíbem a violência, a energia
muscular não pode alicerçar um domínio [...]” (BEAUVOIR, 1988, p. 55).
Observando os fatos supracitados percebe-se a maneira como a mulher vê a si mesma distante
do seu próprio corpo. A reprodução é imposta a ela, e posteriormente, sua vida vê-se sujeitada a
criação da prole. Seu corpo sofre inúmeras mudanças ao longo da vida, a maioria delas relacionadas
à reprodução. Vê-se diminuída e marginalizada como indivíduo. A mulher não só torna-se “O outro”
na visão masculina, como passa a ver a si mesma dessa maneira.
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Não se sabe ao certo o exato momento do surgimento da humanidade na terra, e muito menos o
exato momento em que a mulher foi dominada pelo homem. Em seu livro, Beauvoir descreve que não
houve um momento marcante, não houve revolução e nem guerra, e nem mesmo uma proclamação
que determinasse o momento em que a mulher fora dominada. Isso aconteceu de forma gradativa,
até que o sexo feminino já não pudesse mais escapar.
Conforme a obra de Beauvoir aqui utilizada, sabe-se que tudo começou na Idade da Pedra, onde a
propriedade era inexistente e todos viviam em comunidade. Não havia sentimento de posse para com
as coisas, e tudo era dividido. Nesse momento a mulher até mesmo encontrou certa autonomia e uma
espécie de igualdade nas divisões das tarefas. Contudo, convém analisar o fato de que a mulher é um
ser extremamente fértil, e por isso, estava constantemente grávida. Isso a sujeitava a um trabalho mais
próximo do lar, cuidando do lar e da prole. Ao homem, cabia a tarefa exterior à casa, sendo responsável
pela caça e pela pesca, além da proteção da mulher e das crianças, considerados mais fracos.
Com o passar do tempo, as sociedades antes coletivas foram perdendo este caráter, passando
a isolarem-se até que poucas coisas ainda fossem coletivas de fato, inclusive a família. Foi o homem
quem tornou-se senhor das terras e dos bens, e mesmo sem autoridade para isso, da mulher. A mulher
tornou-se um bem para que o homem pudesse dela dispor, reivindicando para si a sua propriedade e
os seus filhos. A partir desse momento que a mulher se vê mais do que nunca a mercê dos desejos
masculinos. O trabalho antes por ela executado passa a ser do escravo, e a sua função torna-se única
e exclusivamente servir ao seu marido e garantir-lhe herdeiros que pudessem carregar seu legado.
Essa mudança foi gradativa, lenta, mas certeira.
Constantes humilhações perpassaram o tempo, não abstendo-se de níveis sociais ou graus
de influência, sendo sofridas não apenas por mulheres comuns, como também o era por rainhas e
membros da corte. Pouco importava a posição da mulher, ou mesmo o momento histórico em que isto
ocorria, ela sempre estava abaixo do marido.
A sociedade em geral era dominada pelos homens, que eram os únicos que poderiam ocupar
altos cargos de poder, mas em um lugar uma mulher encontrou certa individualidade, e até mesmo
poder. É o caso de Cleópatra na sociedade egípcia, que apresentava diversos avanços para a época.
Às mulheres era permitido escolher os casamentos, herdar e possuir propriedades, além de exigir o
divórcio. Contudo, convém acrescentar tais fatos não garantiam à mulher liberdade e igualdade. Apesar
de terem direitos muito semelhantes aos masculinos, e mesmo serem profundamente respeitadas,
esse respeito era voltado ao seu desempenho doméstico, como mãe e esposa, uma vez que sem a
proteção masculina ela poderia facilmente ser explorada, conforme Gregory da Silva Balthazar (2011).
Apesar disso, em uma sociedade com uma maior abertura a diferença, Cleópatra viu a chance de agir
como um “Sujeito”, não aceitando a marginalização de ser tratada como “Outro”.
Conforme Arlete Salvador (2011), Cleópatra Thea Filopator foi a última rainha da dinastia
Ptolomeu, e viveu entre 69 a. C. e 30 a. C. Era amplamente conhecida por sua inteligência e capacidade
estratégica. Além de falar vários idiomas, era ótima em literatura, filosofia e astronomia. Era vista por
seus súditos como a encarnação da própria deusa Ísis.
Após ver-se obrigada a casar com o próprio irmão para manter a linhagem real, Cleópatra foi
traída e banida por este, que queria governar sozinho. É Júlio César que tenta resolver o conflito entre
os irmãos, e leva-a novamente ao Egito, onde ela passa a governar ao lado de seu irmão/marido.
Cleópatra nunca deteve o governo só para si, mas sempre foi ela quem de fato governou.
Em seu livro, Arlete comenta que o governo de Cleópatra incomodava homens poderosos de
Roma, dentre eles Otávio, que desejava a morte da rainha. Prevendo a tragédia, Cleópatra não aceitou
o destino de uma morte ultrajante pretendida por Otávio, e a versão mais aceita de sua morte é a de
que ela cometeu suicídio, através da picada de uma serpente venenosa. A última rainha do Egito teria
abandonado a vida da mesma maneira como viveu: do seu jeito.
Ao longo dos anos, ela foi vista de muitas formas, e a história escrita pelos homens a trata de
maneira vil. Por séculos foi vista como uma usurpadora do trono, quando na verdade era seu por direito.
O que ninguém exalta, é que Cleópatra foi uma brilhante governante, sempre em busca do melhor para
seu povo, mostrou-se uma mãe protetora e uma guerreira decidida a não ser ofuscada por aqueles que
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desejavam a sua derrota. Ela esteve muito à frente de seu tempo, sem aceitar as condições que lhe eram
impostas. Cleópatra jamais aceitou ser tratada como “Outra”, exigindo ser reconhecida pelo que de fato
era: uma rainha que não estava abaixo de ninguém, dona de suas vontades e desejos.
É visível que o Egito Antigo estava muito à frente de seu tempo permitindo às mulheres direitos
civis inexistentes em muitas sociedades da época, mas tão logo Cleópatra morreu, o Egito foi dominado
pelo Império Romano, e a situação da mulher tornou-se trágica. Conforme Beauvoir destaca em seu
livro, ao passo que o Império Romano se alastrava, mais e mais mulheres tornavam-se dependentes
completas de seus maridos. Na sociedade romana, as mulheres perderam todos os direitos da vida
civil, e passaram a ser tuteladas.
De acordo com o disposto na obra “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir muito comenta quanto
às grandes invasões à Roma e o advento do cristianismo, e a forma como toda a sociedade viu-se
modificada, e a mulher mais no que nunca, desprezada. A instauração do feudalismo somado ao
grande poder e influência da Igreja católica causaram instabilidade na situação feminina. Ora venerada
por ser mulher como Maria, mãe de Jesus Cristo, ora odiada e desprezada por ser descendente de Eva,
responsável por levar Adão ao pecado.
Em um período em que a religião desempenhava papel primordial, a própria Bíblia foi responsável
pela marginalização da mulher. A mulher, por ser descendente de Eva, já não deveria receber confiança,
conforme a Igreja pregava. Em vários trechos, a Bíblia a submete a posição de inferioridade, como no
trecho em que Deus diz à mulher “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores,
teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio” (Bíblia Sagrada, 1982,
Gn. 3,16). Com base neste trecho, é possível perceber como o costume de marginalizar as mulheres
se difundiu facilmente nesse período. A Bíblia católica, como pilar da religião católica, possuía grande
influência na sociedade da época, e o fato de Deus declarar que a mulher deveria ser submissa ao
homem não permitia discussão, deveria ser respeitado.
Bruxas! Eram isso que elas eram! No século XV a Igreja Católica conseguiu disseminar o medo,
tornando as mulheres que não se encaixavam nos padrões esperados pela Igreja em nada mais e
nada menos do que servas diretas do Diabo. Com o surgimento dessa denominação, os inquisidores
receberam uma tarefa especial: reprimir esse mal que assolava a sociedade. Foi escrita então, a obra
que foi para muitas mulheres a sentença final: “O Malleus Malleficarum” (Martelo das Bruxas). O livro
funcionava como um manual para identificar e punir bruxas, e foi amplamente utilizado para aniquilar
milhares de mulheres consideradas agentes do mal.
Nunca antes a mulher sofrera tanto. Nunca antes fora tão humilhada e sentira tanto medo de
ter nascido mulher. Uma denúncia bastava para que fosse considerada bruxa, e após isso, nada
poderia salvá-la. Como diz Eduardo Galeano, citado por André Copetti e Doglas Cesar Lucas (2019):
“Se confessavam, mereciam o fogo. Se não confessavam, também, porque só uma bruxa, fortalecida
pelo amante, o Diabo, nas festas de feiticeiras, conseguia resistir a semelhante suplício sem abrir a
boca”. A fogueira era seu único destino.
Neste contexto, de acordo com a historiadora Edineide Dias de Aquino, ocorria a guerra que
mais tarde ficou conhecida como a Guerra dos 100 anos, entre França e Inglaterra. Eis que em plena
guerra surge uma figura que ficou conhecida até os dias de hoje: Joana D’arc.
Joana cresceu em uma França devastada, em clima de guerra constante. Mas isso não a aterrorizou,
apenas a motivou a desenvolver um sonho: salvar o seu país. Desde seus treze anos ela afirmava
ouvir vozes de São Miguel e Santa Catarina, e sentiu-se encorajada para, aos dezessete anos, procurar
o chefe militar da sua região, que a levou ao Delfim.
Em sua presença, pediu que este lhe concedesse um exército, para que ela pudesse libertar
a França dos ingleses. Seu pedido foi concedido, mas somente após ela passar por um teste que
garantisse sua virgindade, para assegurar que ela não fosse uma feiticeira (pressupunha-se que
feiticeiras não eram virgens, uma vez que mantinham relações sexuais com o Diabo).
Ela recebeu o comando do exército após a ter-se decidido pela credibilidade da sua missão divina. E
Joana agiu de acordo com seus ideais. Relatos da época narram que após a sua chegada e batalhas sangrenta,
milhares de ingleses foram aniquilados. Mas, diferentemente de grandes personalidades masculinas da
época, Joana D’arc não foi consagrada como uma heroína. Sua morte foi absolutamente injusta.
Ainda conforme Edineide Dias de Aquino, no fim de mais uma de suas batalhas, no ano de 1431,
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quando Joana contava com aproximadamente dezenove anos, ela foi aprisionada e entregue aos
ingleses. Ela esperou que o rei da sua amada França a regatasse, mas ele não o fez. Ela foi julgada
pela Inquisição, e queimada como uma bruxa herege.
Mesmo tendo sido testada, e mesmo tendo sido comprovada que ela era virgem, o fato de ser
mulher bastou para que Joana fosse condenada à fogueira. Era inadmissível que ela, sendo uma
mulher, fosse capaz de levar um exército a vitória sem a ajuda do Maligno.
Muitos anos mais tarde, reconhecendo o erro cometido, a Igreja Católica buscou se retratar e
canonizou Joana, no período em que Leão XIII era Papa, denominando-a “Donzela de Orleans”, de
acordo com Edineide Dias de Aquino. Mas isso não é o suficiente. A vida de Joana fora ceifada por ela
sair do padrão imposto às mulheres, por almejar algo mais que uma vida doméstica, e ainda, por lutar
por um motivo tão nobre quanto a libertação de seu povo.
É possível ver o quanto a sociedade pressionava a mulher a moldar-se aos desejos masculinos.
Construíram uma imagem de mulher casta, submissa, e servil, e demonizaram tudo o que fosse fora disso.
Joana D’arc não foi a única mulher a morrer tão injustamente. Milhares de mulheres foram torturadas e
queimadas, pelo simples fato de não atenderem as exigências, ou não se curvarem aos costumes vigentes.
Não lhes era permitido pensar, evoluir e transformar-se no que desejavam ser. Não lhes era permitido
viver como sonhavam, e muitas vezes, não era nem mesmo permitido a elas serem felizes. A conhecida
Idade das Trevas foi o período em que, mais do que nunca, a mulher foi sujeitada ao inimaginável.
Com a descoberta das américas em 1492, e posteriormente a descoberta do Brasil em 1500 (que
já era habitada por índios), diversas mudanças sociais ocorreram.
Mas as mais importantes para as mulheres ocorreram posteriormente. A primeira é a Revolução
Francesa, uma revolução de cunho burguês, que lutavam por, dentre outras coisas, uma agenda
liberal de direitos individuais para classe capitalista que estava se afirmando.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ocorreu em 1789, na França. É também
nesse contexto que surge a figura de Olympe de Gouges, uma ativista política e feminista. De origem
humilde, ela apoiou a Revolução Francesa e seus ideais, e dois anos depois, em 1791, ela propõe
a “Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne” (Declaração dos direitos da mulher e da
cidadã), de acordo com a Biblioteca Virtual de Direitos Humanos.
O documento não alcançou a rainha Maria Antonieta a quem dedicou a Declaração, e nem
mesmo passou pela Assembleia Nacional. Olympe foi acusada de propaganda monarquista, foi presa
e condenada à morte. Em 1793 foi guilhotinada. O primeiro Artigo por ela proposto tratava de um
assunto quase absurdo de ter que ser pedido “A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do
homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.” (Olympe de Gouges,
1791). A mulher era tão naturalmente considerada inferior, que o simples pedido de ser tratada de
forma igual ao homem caracterizava uma revolução inaceitável.
O que Beauvoir diz, é justamente o que Cleópatra, Joana D’arc e Olympe de Gouges tentaram
realizar. Tentaram fazer parte da história, buscaram fazer a diferença, agindo com coragem e inteligência,
e visando o bem do povo. As semelhanças entre elas não terminam em seus objetivos de vida e na força
com que lutaram para conquista-los, mas também no seu fim: todas foram condenadas à morte.
Cabe destacar que o machismo ao longo da história não foi reproduzido apenas por homens,
assim como nem todos os homens da história foram machistas. É extremamente perigoso generalizar
o fato, uma vez que se sabe que durante toda a história da humanidade milhares de mulheres não
apenas corroboraram com atitudes machistas como as praticaram, desde o início da sociedade aos
dias contemporâneos. Da mesma forma, diversos homens lutaram pela libertação das mulheres,
acreditando na necessidade de igualdade entre sexos.
Na economia, a mulher começou a ter nova importância com o advento da Primeira Revolução
Industrial, no século XVIII. A mão de obra masculina já não era capaz de suprir toda a demanda
exigida, e passou-se a recorrer ao trabalho feminino e infantil. O trabalho masculino e feminino era
extremamente semelhante, a principal diferença era a questão salarial. Conforme dados trazidos por
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[...]Ultimamente, acabou de dar-me a última prova de seu total esquecimento a meu respeito,
maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças. Muito e
muito tinha a dizer-te, mas faltam-me forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será
sem dúvida a causa da minha morte [...] (LEOPOLDINA, 1826).
Sabe-se que os casamentos reais não eram firmados por amor, mas por interesses políticos, e
Dom Pedro I não era obrigado a nutrir sentimentos de amor para com a arquiduquesa. Contudo, é de
se ressaltar que por mais que as traições de Dom Pedro não fossem bem-vistas, não eram reprovadas,
enquanto à arquiduquesa, eram impensáveis, uma vez que sua posição e sua fé exigiam dela devoção
e submissão ao seu marido, dando-lhe herdeiros reais, sendo quase apenas um receptáculo real.
Leopoldina era amada pelo povo brasileiro, até mais que o próprio Dom Pedro, e foi uma tristeza para
a nação quando ela faleceu em 1826, devido a complicações de um aborto espontâneo. A arquiduquesa
deixou para traz um povo profundamente abalado com sua morte. Na triste história de Leopoldina, é visível
que nem mesmo figuras de alta posição social estavam livres das humilhações impostas pelos homens.
Ela era jovem quando lhe foi imposto um casamento com um homem que ela nem mesmo
conhecia. Ela dedicou-se ao máximo ao seu marido pois era isso que se esperava dela, e de acordo
com as cartas que escreveu para sua irmã, de fato o amava. Foi-lhe fiel em todos os dias de sua vida,
tentando sempre o atrair para que ele de fato a visse pelo que ela era, e para que assim pudessem ter
um relacionamento feliz. Mas tudo o que ele lhe ofereceu em troca foram traições e humilhações, que
levaram a um estado de saúde tão frágil, que ainda muito jovem sucumbiu à depressão.
A mulher dessa época era instruída a ser total e completamente fiel ao marido, mesmo que esse
não fosse. Era criada para perdoar os erros do seu companheiro, sabendo que jamais teria os seus
perdoados. Aprendia desde muito cedo, que as liberdades eram garantidas aos homens, enquanto a
elas cabia suportar isso.
Mas essa fora a realidade de um membro da realeza. Nas camadas populares, as mulheres viam no
casamento a promessa de uma vida tranquila e estável, mesmo que isso lhes fosse penoso. Não raras as ve-
zes jovens casavam-se com homens muito mais velhos que elas, apenas ela promessa de proteção e fartura.
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Em um contexto como este, como poderiam as mulheres pobres verem-se livres de casamentos
infelizes? Mesmo que fossem maltratadas e humilhadas, esta era a única realidade que conheciam, e
com a qual sempre foram instruídas a conviver. Essa instrução por vezes ocorria pelo exemplo, vendo
às situações as quais a própria mãe se sujeitava no ambiente doméstico.
E a situação da mulher escrava? Primeiramente cabe pontuar que a mulher escrava estava em
um dos patamares mais baixos de uma sociedade hierarquizada e sexista, uma vez que era mulher,
negra e escrava. Aos olhos de seu senhor, não possuía semelhança com a mulher branca. Enquanto
esperava-se da mulher branca a submissão e a produção de herdeiros, a fertilidade da mulher escrava
era um problema, já que passavam a desenvolver com menor intensidade as atividades braçais
quando estavam em estágios mais avançados da gravidez, o que não agradava de nenhuma forma os
senhores, que viam essas crianças como despesas.
Às mulheres eram negados direitos hoje entendidos como inerentes à pessoa. Eram consideradas
incapazes socialmente, individualmente e mentalmente apenas pelo fato de biologicamente possuírem
um útero que carregava a vida. As prerrogativas masculinas de dominação se utilizam de justificativas
tão absurdas para dominar a mulher que é impensável acreditar que por séculos isso realmente
funcionou. Mas a questão é que isso já não era mais aceito.
O mais relevante movimento ocorreu na década de 1960, nos Estados Unidos, e dali se alastrou para
todo o mundo. O movimento foi impulsionado, em grande parte, pela referida autora francesa Simone de
Beauvoir. Sua obra analisando e criticando a posição secundária da mulher na sociedade patriarcal chegou
aos Estados Unidos em 1953, e encorajou diversas mulheres insatisfeitas com sua situação a unirem-se e
lutarem por melhorias. Dentre os objetivos, estava a regularização do uso de pílulas anticoncepcionais, a
igualdade salarial, a legalização do aborto, entre tantas outras coisas. O movimento encontrou um campo
muito fértil nos Estados Unidos, e não tardou a chegar em vários outros países, e mesmo continentes.
Neste período, o Brasil vivia um período de regime militar, o que dificultou o desenvolvimento
do feminismo, uma vez que o governo não via de maneira positiva as manifestações, considerando-
as perigosas moralmente, desviando as mulheres da posição de “mulher direita”. Contudo, o governo
militar não foi capaz de impedir que as brasileiras lutassem pelos seus direitos, e o movimento
feminista passou a desenvolver-se timidamente no Brasil. Na década de 1970, conforme Cynthia
Andersen Sarti (2004), as mulheres passaram a ir às ruas para defender seus direitos, até mesmo
pegando em armas. Em meio a um processo de modernização criaram-se zonas mais propícias ao
desenvolvimento do movimento.
Em 1975, com o reconhecimento oficial da ONU pela questão da mulher, e a declaração do Ano
Internacional da Mulher, o movimento feminista mundial ganhou ainda mais visibilidade e reconhecimento.
Esse reconhecimento possibilitou que grupos, antes clandestinos, passassem a existir abertamente, dentre
eles os conhecidos como “Brasil Mulher”, “Nós Mulheres” e “Movimento Feminino pela Anistia”.
A partir de 1980, com a redemocratização brasileira, o feminismo tem mais uma chance de
desenvolver-se, e as manifestações clamando por igualdade salarial, por oportunidades de emprego,
por cargos semelhantes aos masculinos, pelo fim do preconceito sexista, entre muitas outras coisas
ganham ainda mais intensidade e apoiadores.
Atualmente, no mundo inteiro, o feminismo foi e é crucial tanto para as mulheres quanto para
outras categorias. Isso porque ele não só engloba as causas femininas, como também de questões
de gênero. A comunidade LGBTQIA+ é englobada pelo movimento, e recentemente tem conquistado
um grande espaço na sociedade. Apesar do grande preconceito, e das violências por eles sofridas, a
comunidade tem adquirido cada vez mais direitos e visibilidade.
Atualmente, muito se diz que a mulher já conquistou a igualdade por ela tão almejada, mas isso
não é uma realidade. A igualdade que a mulher deseja não é apenas a igualdade salarial, a igualdade
social, mas sim a igualdade individual. Ser livre e agir como bem entender da mesma forma que
sempre foi permitido ao homem. Liberdade para desenvolver suas habilidades e buscar seus sonhos
sem ser barrada por limites sociais machistas que a rotulem.
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Conforme Beauvoir, a mulher não é um apenas um corpo biológico, e logo, não pode ser apenas
por ele definida. A mulher é na verdade a soma de todas as situações por ela vividas, todos os seus
sentimentos e todas as suas convicções. Logo, o fato de ser do sexo feminino não torna uma mulher
de fato mulher. Ela deve sentir-se assim. Deve ter a liberdade de se descobrir e se identificar com isso,
e deve ter a seu dispor meios para que o faça. Que fique claro, não se fala aqui de meios especiais
que devam ser entregues especialmente a ela, mas sim meios que sempre lhes foram negados. Não
se trata de prerrogativas especiais, mas sim de liberdades que deviam lhe ser inerentes.
A mulher nunca encontrou espaço para conhecer a si mesma, seu corpo e suas emoções, sob o
pretexto de que tudo era “errado”. Seus sonhos eram menosprezados, uma vez que sua preocupação
primordial, como Beauvoir destaca em seu livro, deveria ser o trabalho doméstico. Ela não deveria
demonstrar as suas emoções, pois era seu dever permanecer sempre serena, para que a casa fosse
acolhedora ao seu marido. Deveria ser casta, pois apenas um homem poderia tocar-lhe por toda a sua
vida: o marido, de quem ela não deveria esperar o prazer erótico, uma vez que não podia reclamar de
nada. Buscar o prazer por si mesma era um absurdo, um tabu sem comparações.
O machismo jamais foi praticado apenas por homens, uma vez que já se comentou que muitas
mulheres compactuavam com isto e mesmo reproduziam o comportamento. A questão é que o
machismo também é prejudicial ao sexo masculino, uma vez que exige do homem um comportamento
viril e másculo o tempo todo. No ambiente doméstico, nos dias de hoje, não raras as vezes as meninas
são instruídas a agirem de forma submissa e servil, enquanto aos meninos é ensinado comportamentos
dominantes, mas proibidos demonstrações sentimentais. A sociedade, tendo conhecimento da própria
história, reproduz os comportamentos retrógrados aos quais está acostumada, tornando meninas
submissas e meninos dominantes. Mas essa realidade já não mais serve. O feminismo não se trata de
uma guerra entre sexos, mas da busca de uma harmonia entre eles.
Por fim, um dos fatores de maior relevância a ser discutido é sem dúvidas a questão de como a
sexualidade se põe ao homem e à mulher perante a sociedade. Como já foi colocado, o ato sexual é essencial
para a manutenção da vida, mas com as conquistas feministas quanto ao uso dos métodos contraceptivos,
o ato tornou-se também apenas uma fonte de prazer. Isso contudo não se aplica a muitas mulheres.
Em um mundo globalizado, muitas mulheres tem sido objetificadas como estereótipos sexuais
para os homens, o que tem causado sérios problemas ao sexo feminino. O corpo feminino tornou-
se apenas um objeto de desejo, uma forma para o homem saciar suas vontades eróticas. Não raras
as vezes, no ato sexual a mulher não alcança o ápice de prazer, e nem sabe disso. Isso porque não
recebe instruções de como o próprio corpo funciona, pois é um “tabu”. A mulher vê-se alheia ao
próprio corpo, ficando a mercê do homem para sentir prazer. Sem conhecer a si mesma, muitas vezes
não reconhece também quando atitudes lhe são abusivas.
Da mesma forma, é necessário inferir que o contrário também ocorre. Homens também são
sexualizados e também sofrem aos serem tratados como objetos por mulheres. Na contemporaneidade,
onde algumas mulheres de fato encontraram protagonismo, essas atitudes têm ocorrido cada vez
mais, configurando mais uma esfera desse problema social.
Pode-se então desmistificar a ideia de que a mulher alcançou a igualdade plena, uma vez que
sofre agora não com leis que a subjuguem, mas com costumes fortemente enraizados na sociedade,
que ainda tentam colocá-la na posição secundária de “Outro”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do artigo proposto, é possível verificar que ao longo dos séculos as mulheres tem sido
obrigadas a adequar-se às regras e ditames que lhes foram impostos, sem jamais poder transcender
ou agirem conforme suas vontades.
Em sua obra, Beauvoir traz a ideia de que a mulher é na verdade uma construção social, e não
apenas um ser do sexo feminino. Na maior parte da história, ela foi limitada por essa sociedade, que
não a deu liberdade para descobrir a si mesma. Ela foi subjugada pelo pelos costumes machistas,
tendo de suprir suas expectativas e anseios, sem pensar em si mesma.
As justificativas biológicas para declarar a inferioridade feminina caem por terra quando se
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começa a estudar e entender o corpo feminino, agora visto como mais que apenas um receptáculo
para o sêmen masculino. Ela é fundamental para a reprodução, e as diferenças do seu corpo para com
o corpo masculino não podem ser pretextos para inferioridade em uma sociedade que se diz racional.
Por sua vez, ao analisar brevemente a história da humanidade, pode-se ver a crueldade com que
a mulher foi tratada, e a completa absurdidade que isso causou. Ao ser tratada como propriedade,
como ser inferior, a mulher criou essa visão de si mesma.
Foi a segunda onda feminista que de fato mudou a situação. Com seus ideais bem alicerçados na
obra de Beauvoir, milhares de mulheres por todo o mundo foram às ruas em busca de seus direitos, e
sofreram muito até consegui-los. Foram criticadas, oprimidas, mas nunca caladas. Sua luta surtiu grandes
efeitos, e por todo o mundo, as mulheres passaram a tornar-se cada vez mais partes ativas na sociedade.
O movimento também englobou a categoria LGBTQIA+, e tornou-se um movimento que mais
do que tudo, busca a igualdade de gênero em todas as esferas sociais. Seguindo o pensamento de
Beauvoir, surgiram novas pensadoras contemporâneas, que além de firmar o que a francesa já havia
dito, ampliaram seu pensamento, criando novas formas de ver não só as mulheres, como todas
aquelas pessoas que são marginalizadas devido a opção sexual ou identidade de gênero.
Uma das mais influentes pensadoras do século XXI é a estadunidense Judith Butler, que em
sua tese busca defender a superação de suposições feministas, dando lugar a um pós-feminismo.
Ela revisa os pressupostos existencialistas de Beauvoir e tenta ampliar ainda mais a abrangência do
movimento pós-feminista.
Atualmente, a mulher tem por lei muitos de seus direitos garantidos, mas o machismo não foi
erradicado. Mulheres ainda se veem ameaçadas por costumes antigos, por indivíduos machistas que
não aceitam a posição que hoje o sexo feminino encontra na sociedade. A mulher ainda é agredida,
violentada, e subjugada, e cabe à própria sociedade resolver isso, não apenas conhecendo os ideais
feministas, como também os aderindo, visando diminuir consideravelmente o machismo enraizado e
possibilitando às mulheres mais do que serem mulheres, mas tornarem-se mulheres.
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João Pessoa: Cadernos Imbondeiro, 2010.
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RESUMO: Esse artigo busca compreender a realidade do compartilhamento de fotos íntimas como
forma de coação e destruição de reputações na sociedade atual. Como hipótese, apresentou-se que
existem hoje um crescente número de casos de pornografia de vingança na internet, e por isso
é necessária uma tentativa de coibir tais atos. Com a popularização da internet e a facilidade em
compartilhar arquivos, a pornografia de vingança se tornou uma prática de coação e chantagem
muito comum, causando inúmeros danos e sendo muito eficaz em destruir reputações. Sendo assim
a regulação por parte do estado faz necessária para coibir esses crimes. A metodologia utilizada
passa pelo método de procedimento hipotético-dedutivo, com uma abordagem qualitativa e técnica
de pesquisa bibliográfico- documental.
INTRODUÇÃO
A agilidade com que os dados hoje em nossa sociedade conseguem ser compartilhados ou
transferidos, cria diversos pressupostos aos quais todos os dias precisam ser os mesmos analisados pelo
direito, e inseridos em nossa ordem social para que possam funcionar de maneira correta. Porém, isso
pode ser usado de forma benéfica, com a facilidade de compartilhamento de dados interessantes e uteis
para a sociedade, mas também pode ser usado de forma maléfica, onde em diversos usos se demonstra
como uma forma de chantagear ou destruir a vida de pessoas partindo da divulgação de arquivos íntimos.
O presente estudo busca no primeiro momento conceituar a pornografia de vingança apresentando
os pressupostos da prática e as noções gerais para contextualizar o problema e suas causas em
uma perspectiva global. Em segundo momento, apresenta as estratégias para combater a prática,
demonstrando como o mundo está se mobilizando para que ela seja coibida e deixe de causar os
sérios danos na moral e na reputação de pessoas inocentes, e no terceiro a forma como essa prática
tem se desenvolvido no Brasil.
Se apresenta como problema de pesquisa a questão de que com a rápida evolução das novas
tecnologias, se existirão ferramentas regulatórias que poderão coibir essa prática deixando com que
o ambiente de rede fique mais seguro, e de que forma isso poderá ser feito na nossa nação?
A hipótese trabalhada é a de que a evolução tecnológica se apresenta como um fator de melhora
na vida humana sendo importante para o desenvolvimento da humanidade como sociedade, porém,
ao concluir que existem abusos do seu uso, como o caso da pornografia de vingança, necessitam-se
que ocorram regulações e tentativas de coibir essa prática, que precisa ser estudada e positivada no
direito brasileiro.
O presente estudo tem como objetivo geral abordar a pornografia de vingança, seus danos
na sociedade e necessidade de regulamentação. Para a consecução desse objetivo geral, o artigo
possui três objetivos específicos, cada qual correspondente a uma seção sua. A primeira dessas
seções apresenta noções gerais sobre essa prática, estabelecendo os fundamentos dela em uma
perspectiva generalista. Em segundo momento, busca entender como as práticas atinentes ao
20 Bacharela em Direito pela UNIJUI, advogada e pesquisadora de novas tecnologias. email: fernandalencinaribeiro@gmail.com
21 Bacharel e mestre em Direito com concentração em Direitos Humanos e pesquisador de novas tecnologias. email: tiago.
protti.spinato@gmail.com.
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ransomware ocorrem, e que impactos têm para o crescimento da insegurança tecnológica, expondo
seus riscos para uma melhor visualização do problema em um âmbito geral. Na terceira parte do
trabalho encontram-se parâmetros para a regulação jurídica que venha a coibir esse tipo de prática,
sendo observada também a ocorrência desse tipo de prática delituosa em um ambiente conectado
global, onde a questão territorial tem pouca influência prática.
A metodologia utilizada para a conclusão desse estudo se deu no método hipotético- dedutivo,
visto que se utilizou de bibliografias disponíveis para comprovar uma hipótese previamente definida
pelo trabalho, com a investigação baseada na tecnologia e em possíveis ataques coordenados que
fazem vítimas e movimentam um mercado paralelo de valores expressivos, com método de abordagem
qualitativa e técnica de pesquisa bibliográfico-documental.
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Embora existam novas leis que buscam punir o agressor que divulga fotos de ex-companheiras na
internet, ainda faltam leis que possam punir outros tipos de práticas abusivas existentes, vinculadas ao uso
indevido de imagens, como de forma sexualizada e de gênero (MCGLYNN; RACKLEY, HOUGHTON, 2017).
1.2 A relação entre a evolução tecnológica e a chantagem virtual pela divulgação de fotos
intimas
As imunidades que são comumente aplicadas ao agressor, que expõe fotos intimas da vítima, são
baseadas em uma não culpabilidade institucionalizada, em que a ação é justificada pela moralidade, a
defesa da honra, e assim um crime que pode levar ao suicídio, pode simplesmente ficar impune, graças
a uma sociedade tradicionalmente machista e uma justiça despreparada (ALEXANDER, FERZAN, 2019).
Ainda, a justiça de forma transformadora precisa oferecer uma maneira para que cada comunidade
possa solucionar os problemas da sua população específica, da maneira mais apropriada a cada caso,
para evitar que essa violência se torne sistêmica (HAMILTON, 2018). Caso ela se torne algo comum e cor-
riqueiro pode apresentar graves danos em muitos círculos, sendo até difícil de estimar a proporção deles.
Dessa forma, são necessárias algumas mudanças nas ideias desatualizadas e no pensamento primitivo.
É preciso que se leve em conta os danos causados pela pornografia de vingança, e além disso, que se busque
atender às vítimas da forma necessária. Ninguém está totalmente protegido de ter uma foto sua publicada
e compartilhada, e quando isso ocorre, a violência se estende por toda família que sofre com o constrangi-
mento causado á vítima e mais ainda com o pensamento da sociedade, de reprovação à conduta da vítima.
Esse pensamento precisa ser mudado, pois muitas vezes a sociedade condena a vítima e não o ofensor. Será
necessário um esforço de todas as partes interessadas para reconhecer as principais desse comportamento
e desmantelar os sistemas, mentalidades e valores que permitem que ele continue (HAMILTON, 2018, p. 44).
É tarefa do direito administrativo impor sanções a quem desrespeita as normas legais, com o fim
de proteger os bens públicos, o que segundo a filosofia jurídica, engloba aquilo que é melhor para
a sociedade, que pode beneficiar as pessoas como a liberdade de expressão e direito a privacidade,
etc. (HILDEBRANDT,2019)
O direito penal entra com as formas de punição ao agente, autor dos ilícitos, que não se trata
somente de pagar um preço pela violação, mas sim censurar e fazer com que os que desrespeitem as
leis tenham que prestar contas a sociedade, por ofender o direito dos demais.(HILDEBRANDT, 2019).
Ainda, há casos em que os criminosos cobram da vítima valores ou favores, que caso não
haja cumprimento de suas exigências, publicam as fotos intimas. Essa chantagem pode vir tanto de
profissionais que tiveram acesso as imagens quanto de ex companheiros que estejam praticando o
pornô de vingança (PATCHIN, HINDUJA, 2018).
O departamento de justiça, nos Estados Unidos, relatou que a tortura sexual é a maior ameaça
em crescimento entre os adolescentes, que ganhou atenção da mídia após uma adolescente de apenas
15 anos cometer suicídio em virtude de ter suas fotos nuas divulgadas na internet no ano de 2012
(PATCHIN, HINDUJA, 2018).
O revange porn tem funcionado como uma tática de vergonha, exercida por meio de violência
sexual, que acaba vinculando às vítimas a economia da pornografia, gerando lucro para sites que
buscam as fotos divulgadas, e ainda para que a vingança do usuário que divulgou as fotos seja
concretizada. (LANGLIOS; SLANE, 2017)
Muito além de um crime, a pornografia de vingança se mostra como uma crise social, em que
a própria sociedade reproduz criticas as vítimas e não ao agressor. Um problema que surgiu com p
pornô de vingança foi a disparidade das políticas de segurança adotadas pelas redes sociais e as leis
de proteção de dados pessoais. As plataformas Facebook, Instagram e Twitter por exemplo, tem sua
própria regulamentação, que pode contribuir inclusive para adoção de normas técnicas as leis que
criminalizam o prono de vingança (WALDMAN, 2019).
Sendo assim podemos visualizar uma intrínseca relação entre a evolução dos meios de
comunicação para popularizar a prática da pornografia de vingança, sendo que seu ápice acontece
justamente nos nossos tempos, em que nunca foi tão acessível e fácil o compartilhamento de
informações em uma rede invariavelmente infinita.
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2.1 Os esforços para coibir a prática e garantir mais segurança no ambiente de rede
A segurança de rede nunca foi algo que precisou de tanta atenção quanto nos tempos atuais,
pois hoje além de nossas fotos e arquivos, elas mantêm muito do que faz a nossa sociedade continuar
funcionando de forma normal e pacífica. Tudo que se encontra conectado depende fortemente da
transmissão de informação, de forma rápida e segura, e nesse sentido temos que garantir a integridade
de milhões de dados.
No ano de 1980, a revista pornográfica Hustler solicitou fotografias intimas, com nudez
explicita de modelos não profissionais. “Embora existissem procedimentos para impedir a publicação
não consensual de fotografias, 3 em pelo menos uma mulher teve sua fotografia publicada sem o
consentimento em Hustler na década de 1980.” (JACOBS, 2016, p 2, tradução nossa.).
Mais tarde, em 2010, o site ISANYONEUP? Se tornou um dos maiores sites desse tipo de
publicação, alcançando o patamar de trinta milhões de visualizações por mês no ano 2011. Em 2014
várias celebridades tiveram sua privacidade invadida, com uma grande quantidade de fotografias
intimas publicadas sem consentimento. (JACOBS, 2016).
Nos Estados Unidos, a polícia e o parlamento não reconhecia que a pratica do revange porn era
um tipo de exploração sexual, agora com o aumento significativo de queixas, estão começando a
tomar medias, mas sem uma lei nacional as vítimas são obrigadas a confiar em leis que não abrangem
a pornografia de vingança (BRADY, 2017).
Dessa forma, a lei de direitos autorais sobre as fotografias acabou se tornando aliada para algumas
vítimas, já outros países como Alemanha e Israel estão buscando uma abordagem correta especialmente
para proteger as vítimas, que poderia servir de exemplo para os Estado Unidos (BRADY, 2017).
Ainda, a mídia começou a dar uma maior visibilidade para o crime quando ocorreu com alguns
atores internacionais, como Jannifer Lawrence por exemplo, que teve suas contas de armazenamento
online roubadas e divulgadas fotos íntimas por hackers que buscam o perfil de celebridades, para que
essas imagens sejam postadas em sites (BRADY, 2017).
Em 2017, as empresas Google, Facebook e Twitter estavam banindo definitivamente as
publicações relacionadas a pornografia não consensual de suas plataformas e o termo revange porn
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Uma das partes mais importantes no controle da pornografia de vingança é o ataque as imagens e
arquivos que circulam, pois ao conseguir que a mesma pare de ser compartilhada, se consegue mitigar
as consequências do ato em seu cerne, dando mais chances a vítima de que esses dados não vão
chegar ao grande público. Essa é uma das formas mais eficazes de tratar o problema, conjuntamente
com a necessária responsabilização da prática pelo ofensor, que precisa ser punido pelo rigor da lei
A sociedade acaba culpando as vítimas pela exposição de suas fotos, pois entendem que a vítima
incitou a pornografia de vingança, colocando como se não estivessem vulneráveis e ainda culpam as
mulheres por esse crime, que ainda sofrem muitas vezes pela hostilidade a que são tratadas tanto por
policiais quando no judiciário. (KINLAW, 2018)
Muito mais que um crime, a pornografia de vingança é contra a moral e ética que há em um
relacionamento entre parceiros, até mesmo depois deles, em que a confiança é totalmente desrespeitada
por quem comete esse tipo de violência (HAYNES,2018).
Pesquisas revelam que a maioria da população está consciente da existência do revange porn,
mas a conscientização depende muito do nível de educação, da idade, raça e ideologia de cada um.
O que mais uma vez deixa claro que as crenças sobre gênero e culturais fazem grande diferença no
apoio a regulamentação e a proteção de vítimas (LAGESON, MCELRATH, PALMER).
As vítimas que sofreram com o revange porn também sofrem com o assédio online, quem recebe
as fotos intimas se vê no direito muitas vezes de fazer piadas e insinuações sobre a vítima, sendo que
as fotos foram postadas sem seu consentimento. Essas pessoas acabam associando as fotos postadas
com os perfis das vítimas e com segundas intenções aumentam mais ainda o sofrimento (LEE, 2018).
É preciso a criação de nova estratégias para controlar os efeitos do porno de vingança, para
proteger as mulheres da exposição, um rprograma de controle de dados, para que se possa fazer
com que a vítima tenha suas fotos excluidas de mídias sociais, e assim continuar suas vidas livres de
qualquer tipo de assédio (VITAK et al, 2020).
O que também deve ser levado em conta é que as restrições em redes sociais devem favorecer as
vítimas, e que jornalistas e a mídia em geral podem fazer campanhas de conscientização, principalmente em
espaços comuns a adolescentes, universitários e jovens, que apresentam um maior indice de ocorrências
A nação Brasileira, sempre se encontrou em uma posição curiosa entre os grandes países do
mundo, pois tem uma grande parcela da população que sofre com graves problemas econômicos e
não acesso a bens e serviços essenciais como o acesso a rede de esgotos municipal que não está
presente em 37,5% das casas no Brasil. Porém, segundo dados do IBGE 70% das residências tem
acesso diário a internet, podendo acessar conteúdos e fazer parte da vida virtual corriqueiramente,
demonstrando uma discrepância entre um serviço básico de uso necessário para um que até certo
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O termo pornografia de vingança ficou conhecido no Brasil quando duas adolescentes cometeram
suicídio, em 2013, em diferentes estados, no pequeno intervalo de 10 dias, pelo mesmo motivo,
tinham sido vítimas de um crime que o mundo já conhecia, mas que no Brasil ainda não havia
grande popularidade, foram expostas por seus ex companheiros, suas fotos íntimas foram expostas
e essas adolescentes acamaram se suicidando. Foi a partir daí que os casos trouxeram o debate
até o Congresso Nacional, onde se viu a necessidade de proteger as vítimas, investigar e punir os
responsáveis por esse crime ainda não regulamentado (NERIS; RUIZ; VALENTE, 2017).
Ainda na América do Sul, mais precisamente no Chile, esse tipo de crime é algo comum, que
existe desde 2007, em que uma jovem foi filmada durante o ato sexual e teve seu vídeo exposto em
vários sites da internet, e ainda, foi expulsa do colégio, seus dados pessoais e de sua família também
foram expostos, o que levou a jovem a tentar suicídio (NERIS; RUIZ; VALENTE, 2017).
Já nos Estados Unidos, foi criado um site em que eram postadas fotos, que em sua maioria eram
intimas, femininas, que eram postadas sem a autorização, as vítimas nem sequer tinham conhecimento
da exposição, em 2010. O mesmo ocorreu no Canadá, entre 2012 e 2013 com duas jovens que tiveram
fotos e publicadas sem o seu consentimento, em sites na internet, inclusive quando uma delas estava
sendo abusada, com 15 anos, casos que tiveram grande repercussão (NERIS; RUIZ; VALENTE, 2017).
Ocorreu na Espanha, em 2012, a exposição de uma vereadora que teve um vídeo íntimo
divulgado, que acabou disseminado e com a grande repercussão, ela teve que renunciar ao cargo de
vereadora. (NERIS; RUIZ; VALENTE, 2017).
Com a velocidade da transformação das novas tecnologias, surge a necessidade de uma regulação
estatal, principalmente no âmbito da internet. Dessa forma, novos desafios são apresentados para
que a Constituição, que já está sendo aplicada a três décadas, ainda possa estar protegendo os
direitos fundamentais ao longo do tempo (HARTMANN, 2018).
É a partir de então que surgiu no Brasil uma lacuna legislativa com a disseminação da prática
do revenge porn, no Brasil, “Trata-se de prática totalmente inexistente e imprevisível na época da
Assembleia Constituinte, como aliás diversas outras condutas on-line.” (HARTMANN, 2018, p.14).
Quando uma vítima busca a responsabilização penal do criminoso que divulgou suas fotos
intimas ela encontra grandes dificuldades, pois ao buscar uma reparação moral acaba chamando mais
atenção ao fato, com uma maior disseminação nos canais de notícias, o que muitas vezes faz com que
a lesividade da conduta se estenda ainda mais (HARTMANN, 2018).
Não é difícil notar que o Brasil é um país sexista ao estremo, com pensamentos e conceitos
misóginos, que foram constituídos a muitos anos passados, em uma sociedade completamente diferente
da atual, mas ainda permanecem até hoje. Dessa forma, o livre exercício da sexualidade feminina é algo
que os brasileiros ainda apresentam grandes dificuldades em aceitar (RODRIGRES; NOGUEIRA, 2018).
Nesse contexto, ainda há a insuficiência de normas adequadas para retratação do tema, que
com a grande violência psíquica que as mulheres acabam sofrendo, muitas vezes deixam de procurar
a justiça, deixam de noticiar a violência, o que acaba gerando um recuo na doutrina e jurisprudência
pelos números de casos que realmente chegam até o judiciário (RODRIGRES; NOGUEIRA, 2018).
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Dessa forma, é claro o entendimento de que a violência de gênero precisa ser combatida, embora
tenha ocorrido um avanço nos últimos anos, estamos longe disso. No entanto, a construção de uma
lei que tipifique o crime e possa punir aqueles os agentes que estão praticando tais atos, seja uma
resposta para a desconstrução dessa violência hierárquica.
As decisões judiciais no Brasil, sobre o tema pornografia de vingança, tem se demonstrando muito
sucintas, decisões simples sobre temas complexos, que precisam de uma maior análise e reflexão
jurídica, justamente para que sejam aplicadas posteriormente como jurisprudência, abrangendo
outros casos (DIAS; BOLESINA, 2019).
Ocorre que no sistema jurídico atual ainda não há uma linha de jurisprudência cível segura, sem
contar que os artigos relacionados pela lei do Marco Civil na Internet, não são utilizados de forma
segura, sendo o judiciário carente de estudo teórico, prático e específico (LANA, 2019).
Um avanço ocorreu em setembro de 2018, quando foi sancionada a lei de importunação sexual,
onde foi tipificado o crime de divulgação seja por imagem ou vídeo, de sena de sexo ou nudez, sem
que haja consentimento da vítima, incluindo a divulgação de vídeos de estupro, com pena ente 1 e
5 anos, podendo ser aumentada em até dois terços, se o crime foi praticado por ex companheiro ou
pessoa próxima que tinha acesso aos dados pessoais da vítima (LANA, 2019).
Dessa forma, a partir dessa lei, o pornô de vingança foi tipificado como crime no Brasil, o que
apresentou um grande avanço na esfera penal, o que infelizmente não ocorreu na esfera cível, que ainda
não vem sabendo lidar com os casos e não responsabiliza os provedores de internet (LANA, 2019).
Na legislação brasileira, quando falamos em segurança de dados, a Lei do Marco Civil da Internet,
lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, traz em sua redação, princípios e normas a serem seguidas na
utilização de internet no Brasil, com 32 artigos, entrou em vigência em julho de 2014 (BRASIL, 2014).
A lei do Marco Civil elenca no seu artigo terceiro, princípios assegurados aos usuários, entre eles
a liberdade de expressão e comunicação bem como a proteção da privacidade e dos dados pessoais,
englobando ainda a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades (BRASIL, 2014).
No entanto, a lei também estabelece, em seu artigo 18 e 19, que o provedor de internet não
será responsabilizado civilmente pelos dados relativos a conteúdos produzidos pro terceiros, sendo
possível de ser punido somente quando não toma as previdências exigidas em ordem judicial, o que
nos demonstra certa insegurança na legislação frente a punições pelos direitos violados (BRASIL, 2014).
Anterior a lei do Marco Civil, houve ainda uma alteração do Código Penal, relativa a Lei
12.737, de 30 de novembro de 2012, que acrescentou os artigos 154 A e 154 B, tipificando os
delitos informáticos, de forma a punir aqueles que invadem dispositivos alheios, mediante invasão a
mecanismo de segurança, sem autorização do usuário, sendo punido com uma pena de detenção de
3 meses a um ano, assim como pune quem divulga, comercializa ou transmita a terceiros os dados
obtidos através de uma invasão ou controle, com pena variando de 6 meses a dois anos, a partir de
uma ação condicionada a representação do ofendido (BRASIL, 2012).
Frente a isso podemos ver que existem de fato muitos casos de pornografia de vingança no
nosso país, porém, de forma bastante eficaz o nosso estado tomou medidas e positivou questões
inerentes aos crimes virtuais, fazendo com que os culpados pudessem ser culpabilizados com rigor.
Assim, fez com que leis como o marco civil da internet sejam louváveis mudanças para um mundo
também novo, onde a maioria das questões envolvendo privacidade e transmissão de dados do
passado se encontram hoje completamente mudados
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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conteúdo compartilhável em segundos para todo o globo. Antigamente quando isso não era nem uma
questão suscitável, o mundo era diferente e não precisava se preocupar com os novos pressupostos
que a tecnologia gerou na nossa sociedade.
Certamente conseguimos então enumerar grandes quantidades de situações, trabalhos
e diversões que ficaram mais fáceis e práticas, com o advento e ajuda dessas tecnologias e sua
influência em nossas vidas. Porém e como já exposto acima, se criaram também atitudes perniciosas
e mal comportamento na rede, gerando problemas e crimes que não tinham qualquer regulação ou
positivação dos estados.
Essa questão foi por muito tempo um grave problema, pois aconteciam diversos crimes nas
redes, mas não existiam precedentes e não existiam leis, sendo assim muitos criminosos ficaram
impunes e não tiveram qualquer penalidade pelo comportamento malicioso. Isso, porém, gerou uma
grande resposta da comunidade internacional e dos estados, que aliados com os donos das redes
sociais se uniram para tentar conseguir soluções para o problema.
No Brasil os casos de pornografia de vingança ocorrem todos os dias, porém temos avanços
significativos na área, como o marco civil da internet e alterações no código penal para que as leis
possam ser cumpridas dentro de ações cometidas na internet. Sendo assim podemos propor um bom
prognostico na nossa nação, pois medidas foram de fato tomadas e isso sempre será um fator que
coíbe a prática, pois os infratores têm de lidar com a possibilidade de serem processados e punidos,
tanto em sede penal quanto cível.
Sendo assim, podemos concluir que o advento das novas tecnologias ainda virá para impactar cada
vez mais as vidas dos seres humanos, e que isso normalmente indica que a sociedade viverá de forma mais
confortável e prática. Porém, não se pode esquecer a existência de atividades malignas que também advém
dessa inovação, e devem ser sempre estudadas com cuidado, e reguladas, em tempo hábil suficiente para
que não cause gigantescos danos aos quais normalmente sequer podemos medir a extensão.
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RESUMO: Este trabalho possui como temática a relação entre gênero, religião e biopolítica. Questiona-se
acerca da possibilidade de relacionar a Religião Cristã com um instrumento da biopolítica no exercício
de controle sobre os corpos e os direitos das mulheres brasileiras. O objetivo central consiste em
demonstrar como religião e biopolítica se relacionam para manter padrões de normalização, controle
e disciplina sobre os corpos e direitos das mulheres. O modo de raciocínio utilizado é o dedutivo,
com abordagem complexo-paradoxal e pesquisa em fontes indiretas. O trabalho subdivide-se em
dois momentos, sendo que no primeiro relaciona-se Religião com biopolítica e no segundo momento,
demonstram-se as influências da Religião sobre os corpos e direitos das mulheres.
INTRODUÇÃO
Gênero, Direito25 e Religião26 não são temas frequentemente discutidos no espaço acadêmico
brasileiro. Muito disto deve-se ao fato de que há uma compreensão firmada no sentido de que a Religião
é um mecanismo castrador de corpos e desejos, e, portanto, trata-se de um campo de discussão
que se afasta dos direitos que objetivam o reconhecimento e o tratamento igualitário aos diversos
gêneros, com ênfase ao gênero feminino. Assim, a Religião fica restrita a um espaço de misticismo
e fundamentalismo, livre de interferências científicas e éticas no que se refere ao conteúdo de suas
ideologias e doutrinas. Neste sentido, este trabalho se refere ao grande tema das relações entre
gênero feminino, Direito e Religião, possuindo como delimitação o processo de instrumentalização da
Religião para fins biopolíticos de controle dos corpos e dos direitos das mulheres no Brasil.
Sabe-se que a trajetória da conquista de direitos pelas mulheres - não apenas no Brasil, mas
em todos os demais países do globo - tratou-se de um processo gradual e histórico, marcado pela
reivindicação de reconhecimento, igualdade e equidade de direitos em relação aos sexos feminino e
masculino. Atendo-se especificamente à realidade brasileira, percebe-se que as condições de equidade
entre homens e mulheres ainda carecem se manifestar no mundo fático. Isto porque, apesar de o
Estado, por intermédio das leis, reconhecer a igualdade e estipular algumas políticas de equidade
entre os homens e as mulheres, a cultura social patriarcalista ainda limita a liberdade de escolha
feminina sobre muitos aspectos de sua vida.
22 Utiliza-se o termo Tradicionalista em consonância com os estudos de Boaventura de Sousa Santos, para se referir às corren-
tes religiosas que se detém a uma postura fundamentalista, que buscam normatizar a vida social atual com normas e preceitos
religiosos da antiguidade, bem como, se atêm a uma leitura e interpretação bíblica literal para proferir discursos excludentes.
23 Mestranda e bacharela em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus
de Santo Ângelo. Bolsista CAPES, na modalidade PROSUC/TAXA. Membro do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq “Novos
Direitos em Sociedades Complexas”. E-mail para contato: alanatcs.adv@gmail.com
24 Pós-doutor pela Faculdades EST. Doutor em Ciências da Religião, Ciências Sociais e Religião, pela UMESP. Professor Tempo
Integral da URI, Campus de Santo Ângelo. Graduado em Filosofia e Teologia. Possui formação em Direito. Integra o Corpo
Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado em Direito. E-mail: nolihahn@san.uri.br
25 Utiliza-se o termo Direito com inicial maiúscula quando se refere ao ramo de conhecimento da ciência jurídica. Quanto se referir
às garantias que protegem os seres humanos contra poderes arbitrários e lesivos, utiliza-se o termo direito com inicial minúscula.
26 Da mesma forma, utiliza-se Religião com inicial maiúscula por se referir ao ramo do conhecimento do saber religioso.
Quando se referir ao sentimento espirituoso, utiliza-se o termo religiosidade.
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Uma discussão sobre gênero, biopolítica e Religião é delicada, principalmente porque algumas
destas questões se apresentam como tabus ou fundamentalismos para o meio público. Ao resgatar
estes termos - que também compreendem categorias da compreensão - para a seara de uma discussão
científica, requer-se também uma sensibilidade, a fim de demonstrar alguns elementos que compõem
seus conceitos. Importante que, neste trabalho, em referência ao pensamento complexo e paradoxal
de Edgar Morin (2007), não se definem conceitos fechados. Em virtude da complexidade do mundo e
devido ao fato de que conceitos últimos e absolutos podem promover mutilações em formas de ser e
de viver, mantém-se, através da abertura conceitual, um campo teórico que aceita incertezas, aceita
outros elementos de composição dos conceitos e, consequentemente, incentiva a diversidade das
formas de ser e de bem viver. Assim, tendo estas premissas como base para a construção da lógica
do pensamento aqui exposto, é possível identificar alguns elementos que compõem os conceitos dos
principais termos que norteiam esta pesquisa: biopolítica e Religião.
O conceito de biopolítica alicerça-se no pensamento de Michel Foucault. Thomas Lemke (2017)
explica que Foucault foi um grande expoente na formulação do conceito de biopolítica, sendo um dos
primeiros autores a vinculá-lo com formas específicas de exercício do poder. Segundo o autor, “La biopolítica
representa una constelación en la que las ciencias naturales y humanidades modernas y los conceptos de
normalidad que surgen de éstos dan estructura a la acción política y determinan sus objetivos” (LEMKE,
2017). Neste sentido, Lyra e Wermuth (2018) explicam que a vida humana politizada acaba vinculando-
se a uma relação em que a soberania estatal transmuta-se em poder sobre a vida e a morte dos cidadãos
vinculados a uma ordem estruturante. Delimita-se uma ordem estruturante, pois ela pode ser manifestada
por instituições diferentes do Estado, como, por exemplo, o mercado. A ordem estruturante define os
padrões de normalização da vida, de subjetivação dos desejos individuais e pode ser incentivada pela
política de Estado a fim de promover a submissão e disciplina da sociedade (LEMKE, 2017).
A sociedade da disciplina é um termo muito utilizado para explicar o pensamento biopolítito
de Foucault. Disciplinar a sociedade é uma forma de identificar o biopoder27 exercido sobre a vida
individual e coletiva. A disciplina, neste sentido, é instituída a fim de moldar o pensamento e os
27 Biopoder se refere a um poder paralelo ao de soberania estatal. Se, por um lado, a soberania é o poder sobre a morte das
pessoas, sendo esta morte podendo ser causada em situação de guerra, de marginalização ou de vulnerabilidades causadas
pela estrutura de governabilidade do Estado, o biopoder refere-se diretamente ao poder sobre a vida das pessoas, ou seja,
o poder que disciplina e controla (LEMKE, 2017).
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desejos das pessoas para atender as demandas necessárias para se manter a ordem estruturante
de determinado modelo de sociedade (LEMKE, 2017). Assim, a disciplina a ser instituída pelo
capitalismo, por exemplo, se expressa desde a escola, onde ensinamentos como ordem, organização,
produtividade e lucratividade são internalizados no imaginário de cada indivíduo. Esta internalização
faz subsistir condições psicossociais que garantem que tanto o corpo individual quanto o corpo
coletivo reproduzam sistematicamente padrões comportamentais que permitem a perpetuação do
sistema social no decorrer do tempo. Além da manutenção social, a disciplina tem por principal
objetivo a dominação sobre o corpo social e o corpo coletivo, no sentido de que se trata de um
processo de adestramento, de internalização de ideias e valores no patrimônio ideológico e axiológico
dos seres humanos que correspondem a interesses das estruturas de poder (LEMKE, 2017). Neste
sentido, manifesta-se uma forma de dominação branda, isto é, a completa submissão a um poder sem
se ter consciência de seu status de submisso, pois se trata de uma dominação que se fundamenta
pela força das ideias e valores, e não pela força coercitiva (SANTOS; LUCAS, 2015).
Outro elemento que caracteriza a discussão sobre biopolítica na contemporaneidade é definido
por Agamben como a vida nua. Para Lyra e Wermuth (2018), a vida nua de Agamben é um estado onde
o ser humano é meramente uma presença corpórea. Para a manutenção da biopolítica, é necessária
a existência de dois grupos de pessoas, sendo que um destes possua uma significação e existência
jurídica e o outro é delegado a uma vida nua, ou seja, uma vida sem qualidade, de privação de direitos
e de marginalização. Isto significa que “La inclusión en la comunidad política sólo és posible con la
exclusión simultanea de seres humanos a los que se les rehúsa el estatus de derecho” (LEMKE, 2017).
Existem uma série de outras implicações da teorização da biopolítica, onde a guerra, o Estado
de exceção e a instrumentalização do Direito à vontade do poder são abordados. Entretanto, neste
trabalho aborda-se especificamente um ponto de intervenção da biopolítica sobre os corpos das
mulheres e, portanto, é necessário um recorte teórico. Para fins deste estudo, cabe compreender a
biopolítica como uma forma de exercício do poder, onde a política se estrutura a partir do controle
sobre a vida. O controle sobre a vida é constituído a partir de instrumentos que servem ao processo de
adestramento social, onde as instituições internalizam convicções nos seres humanos que fazem com
que ajam de determinada forma que lhes convém. Estes instrumentos de disciplina contêm tecnologias
de normalização, ou seja, recursos ideológicos e retóricos que definem o normal e o anormal, aqueles
que podem ser incluídos e aqueles que podem ser excluídos – mais radicalmente, definem aqueles que
podem viver e aqueles que podem morrer – (LEMKE, 2017). O Direito também constitui um instrumento
da biopolítica, na medida em que as leis podem ser modificadas pelos interesses dos grupos de poder e,
inclusive, podem-se forjar estados de exceções às regras, sob pretexto de intervenção na vida social. É
possível, neste contexto, identificar formas de vida nua, ou seja, pessoas com sua existência reduzida a
uma presença corpórea, sem significação e sem proteção jurídica do Estado. As pessoas relegadas a uma
vida nua permanecem em situação de marginalização e vulnerabilidade, estando com suas existências
constantemente ameaçadas para manter a estrutura de poder. Estão excluídas do grande corpo social,
e muitos destes excluídos podem ser aqueles que não se submetem às políticas de adestramento social
e negam o papel social28 que o sistema lhes impõe.
Por outro lado, partindo-se para a explicação acerca do conceito de Religião, se adotam conceitos
precisos. Isto porque se faz necessário limitar a amplitude do estudo a determinadas relações,
firmadas em determinadas instituições e campos sociais. Assim, Religião, neste estudo, possui um
caráter de institucionalização da fé, das crenças e de ensinamentos tradicionais. Conforme apreende-
se dos escritos de Gianni Vattimo (1998), a Religião pode adquirir sentidos diferentes, de acordo com
os elementos que compõem a sua compreensão e amplitude. O autor utiliza esta terminologia para
se referir à fé institucionalizada em um órgão burocrático e hierárquico, como é o caso das Igrejas
Medievais, Modernas e Contemporâneas. Recorrendo-se a mais uma especificação do campo a ser
estudado como Religião, utiliza-se neste estudo a Religião institucionalizada a partir da vertente Cristã
Apostólica Romana, que compreende o catolicismo ocidental e as ramificações do protestantismo
28 O papel social é teorizado por Dahrendorf e pode ser resumido às diferentes funções e aos diferentes comportamentos
que os seres humanos devem assumir no trabalho, na vida social, na vida familiar. O papel social não considera as aspira-
ções pessoais ou os sentimentos e necessidades subjetivas e individuais, é um código de comportamento pré-constituído e
visa atender expectativas sociais (DAHRENDORF, 1969).
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(evangélicos, luteranos, etc). Além disto, o estudo se restringe a uma abordagem das Religiões Cristãs
Tradicionalistas, também chamadas fundamentalistas, que possuem uma cosmovisão singular e que
representa atos e discursos de biopoder. Assim, busca-se evidenciar, neste tópico da pesquisa, os
possíveis usos de ensinamentos religiosos cristãos, dentro destas vertentes religiosas institucionais,
como instrumentos a favor da biopolítica.
Morais (2017) explica que o cristianismo possui um papel importante para a formação da
pessoa e da ordem política ocidental. Da mesma forma, o autor refere que Foucault, em sua obra, não
considera o cristianismo como uma organização paralela à política ou à governabilidade. Nos escritos
de Foucault, Religião, governo e poder se entrelaçam em uma complexa rede de institucionalização
de formas de controle. Assim, Morais evidencia que, em uma sociedade disciplinar, a vigilância é de
extrema importância. Os corpos dos indivíduos e o corpo social devem estar em constante vigilância
para garantir que estejam cumprindo seus papéis de acordo com as normas disciplinares do sistema. A
disciplina e a vigilância são elementos importantes que compõem a estrutura e o imaginário religiosos.
O saber religioso se alicerça sob padrões de disciplina e normalidade da vida individual e coletiva.
A legitimidade deste saber advém de uma ordem transcendental divina, que representa a voz, a vontade
de Deus, que é o detentor da certeza, da correnteza e da verdade (VATTIMO, 2016). Girard, em diálogo
com Vattimo (2010), explica que a normalização da vida a partir de estruturas abstratas e metafísicas
religiosas remonta a uma ordem de polarização entre os normais e os diferentes, entre os amigos e os
inimigos. Isto remonta a uma internalização de dualismo, rivalidade e combate às diferenças, na medida
em que os diferentes são considerados a causa para crises sociais, pois representam a parte desagregada
da sociedade, ou seja, aqueles que não estão comprometidos com a coesão do grupo social. Levando-se
em consideração que a biopolítica possui em suas bases esta diferenciação social entre o normal e o
anormal e a institucionalização do combate ou da invisibilidade dos anormais, percebe-se uma estreita
relação dela com a Religião, no sentido de que a Religião atua como instrumento do biopoder.
Esta instrumentalização se manifesta no momento em que através de discursos religiosos se
estipulam padrões disciplinares com base nas ideias de graça e pecado. Aqueles que não seguem
a norma religiosa ou aqueles que não se enquadram nos padrões da norma são pecadores,
desqualificados pela vontade de Deus, e cujas existências são reduzidas a uma vida nua. A vida nua
estipula uma situação de vulnerabilidade, onde indivíduos e grupos são segregados da sociedade
através de preceitos morais e culturais. Segundo Morais, “A religião se apresenta como um dispositivo
biopolítico na medida em que ela produz discursos racistas e pode ampliar a potencialidade da morte
do “inimigo”. E assim, a religião e a violência se unem sob o biopoder” (2017, p.81).
Portanto, é possível identificar a Religião como um dispositivo da biopolítica, na medida em que se
estrutura sob bases de exercício do biopoder através de dogmas e ensinamentos que se dão no campo
religioso. Por outro lado, trata-se de um campo específico, com implicações na vida privada e na seara
moral, parecendo desvinculado de uma biopolítica a ser exercida através do Direito e do poder estatal.
Se esta forma de biopoder não possui vinculação com a ordem estatal ou jurídica, não há de se falar em
suas implicações sobre os direitos, pois estes estariam envoltos por outras forças e interesses que não
os religiosos. Entretanto, o próximo tópico desta pesquisa desmistifica esta percepção, relacionando o
biopoder religioso com legislações e políticas estatais brasileiras, demonstrando as intersecções entre
pensamento político, jurídico e religioso. A base para demonstração destas relações será tomada a
partir da situação das mulheres, ou seja, dos mecanismos de biopoder voltados para os sexos feminino
e masculino que se perpetuam da seara religiosa para a seara jurídica.
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pela Igreja Cristã. Este período foi marcado por discursos e práticas religiosas radicais no sentido
da dominação dos corpos. As mulheres sofreram especialmente com esta dominação, pois a Igreja
Cristã legitimava sua submissão aos homens e seu status de objeto. Ainda, as mulheres que não se
adaptavam a este papel social submisso eram marginalizadas, chegando ao ápice de, no período
Inquisitorial (século XII a XIV ou XV) promover a famosa caça às bruxas, ou seja, a perseguição, a
tortura e o julgamento a penas de morte cruéis às mulheres que tinham comportamentos desviantes
em relação aos exigidos pela Igreja (FEDERICI, 2017).
Entretanto, para compreender a complexidade que se desenlaça ao se estudar ensinamentos e
dogmas cristãos, deve-se estar atento para aspectos ideológicos, culturais e históricos. A Religião Cristã
baseia-se nas escrituras sagradas constantes na Bíblia. A interpretação destas escrituras - cuja algumas
datam desde 1.500 a.C – são utilizadas para construir ideologias e perpassá-las à sociedade. Estas ideias,
portanto, têm relação direta com os escritos bíblicos. Por outro lado, deve-se ter em mente que os escritos
bíblicos se originam dos povos hebreus originários, que possuíam uma cultura profundamente patriarcal29.
O contexto histórico, cultural e social da época em que a Bíblia foi escrita possuía diferenças substanciais
com a era atual e o problema reside nas tentativas de continuar utilizando estes mesmos mecanismos de
controle e padrões de normalização da antiguidade na contemporaneidade (HELMINIAK, 1998).
No que se refere às relações de gênero, na sociedade hebraica originária, as tribos organizavam-se
em clãs, onde as crianças e os jovens submetiam-se à autoridade do pai que, por sua vez, submetia-se
também à autoridade de seu genitor, e assim sucessivamente. O pai mais antigo era o grande líder da
tribo, o patriarca. Todas as relações humanas se davam, portanto, tendo como instituição base a família.
As mulheres, portanto, possuíam um papel vital, no sentido de que elas eram as genitoras, ou seja, a
partir delas a família poderia aumentar seus membros. Como a família era a principal instituição que
determinava o governo do povo hebraico antigo, o controle sobre os corpos das mulheres era essencial
para a manutenção da governabilidade. A sociedade hebraica originária não reconhecia o instituto da
adoção e, portanto, a ideia de filhos legítimos do casal era supervalorizada e protegida. Restringir a
sexualidade era uma forma de garantir a legitimidade da linhagem sanguínea da família, bem como,
garantir que mais mão-de-obra familiar para conquistar ainda mais riquezas (HELMINIAK, 1998).
A virgindade também era supervalorizada nesta época. Isto se deve, principalmente, à importância
econômica que os corpos das mulheres possuíam. Sendo a sociedade hebraica originária essencialmente
patriarcalista, o governo era exercido apenas por homens. As mulheres, nesta sociedade, não possuíam
status de seres humanos. Elas eram consideradas propriedade do pai ou do marido, tanto que eles
poderiam dispor delas como bem entendessem. Como propriedades, eram dos corpos das mulheres
que provinham os herdeiros e um possível dote da família do noivo para a família da noiva e isto
significava riqueza e prosperidade à família, ou seja, ao governo e a toda tribo (HELMINIAK, 1998).
Na contemporaneidade, as condições sociais, culturais, políticas e econômicas que são os
fundamentos para as ideias e a normalização de certas condições sociais representadas na Bíblia
não mais existem. A família, por exemplo, apesar de ser ainda uma instituição primária de muita
importância na vida das pessoas, é apenas parte de uma estrutura social maior, que engloba instituições
educacionais, correcionais e estatais. Bem como, a importância da mulher na sociedade contemporânea
não se dá mais exclusivamente ao seu papel de reprodutora. Entretanto, através de interpretações
bíblicas literais, as Religiões Cristãs ainda fazem persistir até os dias atuais no imaginário popular
estas normas a padrões de normalização patriarcalistas repressivas. Isto ocorre basicamente porque a
racionalidade por detrás do pensamento teológico tradicional é centrada na figura do divino, de onde
provém tudo que é bom e correto. Por se tratar de um fundamento transcendental, o divino não erra,
não mente, pois ele não é humano, é superior ao ser humano e é a manifestação de tudo aquilo que
é correto. Assim, o ensinamento advindo do fundamento de pensamento teológico transcendental é
metafísico, no sentido de ser absolutamente verdadeiro aplicável a todas as épocas e contextos, sem
acompanhar o ritmo de modificação das sociedades (VATTIMO, 2016).
Segundo Tesser (2019), os discursos religiosos, com ênfase nas Igrejas de matriz cristã, promovem
a invisibilidade das mulheres em suas pregações. Esta invisibilidade deriva do fato da maioria das
29 O patriarcalismo pode ser entendido como uma cultura que constrói discursos e práticas de supervalorização do sexo
masculino e submissão do sexo feminino. Para a cultura patriarcal, existem apenas estas duas identidades de gênero, e elas
são definidas a partir da biologia do corpo, da genitália (RICHARDS, 1993).
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escrituras bíblicas conterem como protagonistas homens e, quando se refere às mulheres, valoriza
seu papel doméstico de progenitora e cuidadora, acusando de pervertidas as que não se encaixam
nestes papéis, como Eva ou Maria Madalena. Estas pregações introjetam mensagens hegemônicas de
dominação entre os sexos nas comunidades, influenciando valores e interesses individuais e coletivos
que buscam manter a organização social pautada na submissão das mulheres perante os homens. Ou
seja, são discursos e práticas de exercício de biopoder sobre os corpos e subjetividades das mulheres.
É importante frisar que, a partir do controle da sexualidade e dos padrões disciplinares impostos
às mulheres pela Religião Cristã, normalizaram-se formas de convívio e papéis sociais, inclusive,
legalmente. Por mais que se considere que o Brasil é, atualmente, um Estado Laico, ou seja, não
admite influência de interesses de fundamento religioso metafísico para a formulação de leis, políticas
públicas ou decisões de governo, é possível perceber inúmeras discussões com base religiosa em
questões públicas dos direitos das mulheres. Miguel Reale (2010) demonstra através de seus estudos
que a norma de direito se encontra intimamente vinculada ao contexto social, econômico e cultural de
um povo. Para o autor, o Direito possui três dimensões diferentes: norma, fato e valor. Nesta terceira
dimensão (valor), Reale indica que condutas valorizadas na cultura como justas ou injustas acabam
por refletir um valor ao ordenamento jurídico, e, em última análise, podem tornar-se positivadas
em lei. Isto significa que o ordenamento jurídico irá proteger legalmente os valores considerados
importantes para a sociedade. Se uma sociedade se orienta por valores patriarcalistas, isto estará
presente nas leis que negarão algumas prerrogativas às mulheres.
Pode-se utilizar como exemplo desta relação entre valores socialmente protegidos e leis, a
vigência da expressão chefe de família para identificar os direitos pertinentes apenas aos homens
que constituíssem família com suas respectivas esposas no Código Civil brasileiro de 1916 (revogado
pelo Código Civil de 2002). No artigo 186 do referido diploma legal, estava estipulado que em caso
de casamento entre menores de 21 anos que necessitassem da autorização dos pais, em discordância
destes, prevaleceria a vontade paterna. Nos artigos 218 e 219, inciso IV, também estabelecia a
possibilidade da anulação do casamento fundada no desconhecimento do marido de que a esposa
já tivera relações sexuais anteriores. Por fim, o artigo 233 estabelecia claramente a chefia da família
aos maridos, cabendo-lhes representar a esposa e os filhos nos atos da vida civil (BRASIL, 1916).
As disposições jurídicas hegemônicas acerca das relações de gênero constantes no Código Civil de
1916 estão em consonância com os valores perpassados pelas correntes religiosas tradicionalistas.
O mesmo ocorre também com questões atinentes à diversidade cultural, étnica, sexual e econômica.
Outra problemática envolvendo manifestos exercícios de biopoder pela Religião é a formação de
bancadas religiosas no Congresso Nacional Brasileiro. Este órgão é responsável pela formulação das
leis do país e representa, portanto, a governabilidade pelo ente estatal. Porém, ao admitir presença de
bancadas que publicamente fundamentam seus projetos com base nos escritos bíblicos e na presença
do divino, há uma fragilização da laicidade e, portanto, uma influência direta da Religião na esfera
pública e no poder estatal. Desta forma, há uma vinculação do biopoder exercido pela Religião na
esfera estatal, transmutando-o em política de governabilidade e, portanto, em biopolítica. Há, neste
sentido, uma relativização da laicidade para que a biopolítica se utilize das tecnologias de biopoder
da Religião e, desta forma, passe a exercer controle e disciplina sobre os corpos.
No que se refere à bancada religiosa no Congresso Nacional, tem-se destaque a Frente
Parlamentar Evangélica (FPE), reconhecida por mobilizar deputados e senadores com ideologias cristãs
fundamentalistas, que promovem diversos atentados contra os indivíduos e os grupos que não se
adequam aos padrões de normalização impostos pela Igreja. Dentre os projetos de lei movidos pela FPE,
no período entre 2014 e 2017 se destacam 26 contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
No Brasil, a discussão mais debatida em público na atualidade sobre os direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres é o direito ao aborto legal. O aborto é considerado crime pelo Código Penal Brasileiro
(artigos 124 a 128), admitida sua forma legal apenas em situação de feto anencefálico, de perigo de
vida da mãe ou de estupro. Entretanto, os projetos de lei movidos pela FPE buscam impedir quaisquer
possibilidades legais de aborto (DIP, 2018). Do ponto de vista da laicidade, as vertentes religiosas
têm liberdade para se posicionar e pregar ensinamentos que proíbam o aborto, a respeito do direito
à liberdade de crença. Por outro lado, não se podem embasar decisões jurídicas de governabilidade
com fundamento nos dogmas ou na moral religiosa. Então, neste aspecto específico, não se trata de
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negar espaço às correntes religiosas para debater questões que envolvem seus ensinamentos, mas,
sim, de impedir que fundamentos de ordem divina sirvam de base para propostas de leis.
É importante salientar que a normalização do modo de vida submisso e objetificado das
mulheres não corresponde aos anseios e às necessidades da sociedade contemporânea, em relação à
sociedade hebraica originária que redigiu muitos textos bíblicos. Na contemporaneidade, as mulheres
são reconhecidas como sujeitos de direitos, possuindo liberdade para ir e vir, liberdade de expressão,
direito ao voto, ao trabalho digno e a decidir sobre seu futuro e sobre sua vida, assim como os homens
(HELMINIAK, 1998). Neste novo contexto, uma das poucas justificativas para continuar perpetuando e
embasando decisões políticas e propostas legislativas em mandamentos religiosos fundamentalistas
é para manter os interesses de controle das estruturas de poder sobre os corpos das mulheres.
Estas estruturas podem ser representadas pela cultura patriarcal, que ainda persiste nas camadas
dominantes na política e na economia, sendo estas compostas majoritariamente por homens. Assim,
uma das justificativas para a perpetuação destes modos de pensar é a manutenção da biopolítica.
Os efeitos negativos que advém desta relação entre Religião Cristã, biopolítica e direitos das
mulheres são presentes na realidade brasileira. Além do fato de que muitas Igrejas incentivam as mulheres
a se manterem omissas em casos de violência doméstica, ainda internalizam ideias que culpabilizam
as vítimas da violência (podendo ser até mesmo sexual). Em 2020, o ápice do estado de barbárie
contra as mulheres promovido por integrantes/membros de Religiões Cristãs no Brasil se deu em um
caso ocorrido no Espírito Santo, onde uma menina de dez anos, após sofrer abusos sexuais por parte
de um tio, engravidou e ingressou no sistema judiciário requerendo a interrupção legal da gravidez.
Além de tratar-se de uma criança, dados sigilosos sobre o hospital em que se realizaria o procedimento
foram disponibilizados ao público, causando uma mobilização de ordem religiosa fundamentalista.
Os membros do movimento tomaram o pátio do hospital exigindo que não houvesse a interrupção do
procedimento, acusando ambos o médico e a vítima de assassinos (EL PAÍS, 2020).
Neste viés, é possível perceber, portanto, que a Religião pode ser um instrumento de prática
de biopoder sobre os corpos das mulheres, que influencia a não aquisição de seus direitos por,
principalmente duas vias: a primeira, a partir dos ensinamentos religiosos as mulheres podem
permanecer alienadas de sua própria subjetividade e individualidade, de seus direitos e de suas
condições de submissão, e isto acarreta a normalização de suas condutas submissas. Por esta via,
os direitos das mulheres restam prejudicados uma vez que, pela normalização de suas condições, as
próprias mulheres não se reconhecem como seres em vulnerabilidade e, portanto, deixam de lutar
e reivindicar para si direitos e melhores condições de vida. A segunda via é que, a partir da moral
religiosa é possível internalizar culturalmente na sociedade padrões comportamentais patriarcalistas
e, através de sua valorização, positivar legalmente algumas diretrizes normativas que servem para
perpetuar e legalizar a desigualdade entre o sexo feminino e o masculino.
Assim, a biopolítica é auxiliada pela Religião em sua função dominadora, controladora e
vigilante. Isto se verifica na Religião de viés tradicionalista ou fundamentalista, que tende a promover
interpretações literais dos textos bíblicos para legitimar relações de dominação da antiguidade ainda
presente na contemporaneidade. Nesta senda, é importante reconhecer os discursos religiosos que
são voltados a práticas de biopoder e desmistificá-los a partir de movimentos teóricos que reforcem
valores como a tolerância, a igualdade, a equidade e o amor e respeito ao próximo. No que se refere
à situação das mulheres, é visível o aparato disciplinar e controlador da Religião sobre seus corpos
e suas vontades, sendo necessário, portanto, a insurgência de movimentos revolucionários como
o feminismo e as Teologias Progressistas, que identificam estes discursos e práticas biopolíticas e
tendem a combatê-las em prol da libertação dos corpos e da autonomia da vontade do sexo feminino.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desta pesquisa foi possível identificar a Religião Cristã de matriz fundamentalista como
instrumento da biopolítica, na medida em que manifesta exercícios de biopoder. A biopolítica, assim
como o biopoder, são conceitos amplamente discutidos e com implicações variadas em diferentes
campos de estudo. Alguns dos elementos que os compõem são: dominação de corpos e de vontades,
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REFERÊNCIAS
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anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html> Acesso em
set 2020.
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HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. São Paulo:
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RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge
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SANTOS, André Leonardo Copetti; LUCAS, Doglas Cesar. A (in)diferença no direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2015.
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RESUMO: Este estudo tem-se como objetivo analisar a heteronormatividade como cultura que impõe
a limitação de manifestações sexuais e de gênero, assim como a ausência de dispositivo legal que
ofereça proteção a população LGBTQIA+. Para isso, faz-se uma abordagem dos papeis de gênero e de
fatores que naturalizaram imposições limitadoras em sociedade, além de investigar a atuação ativa
do judiciário diante da omissão normativa e a medida da contribuição de uma legislação específica,
para proteção dos direitos LGBTQIA+. Em relação à metodologia, esta pesquisa valeu-se do método de
abordagem dedutivo e método de procedimento histórico e analítico, enquanto a técnica de pesquisa
foi documental indireta.
INTRODUÇÃO
30 Pós-Graduando em Direito Civil e Empresarial pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC - São Paulo, e Bacha-
rel em Direito pela Unidade Central de Educação Fai Faculdades - UCEFF. E-mail: daniel.leidens@yahoo.com.br.
31 Doutoranda, e especialista em Direito Público, pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul -
UNIJUI. Mestra em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI; Professora e Advogada
coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário FAI. E-mail: leticia.uceff.edu.br
80
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Embora os direitos LGBTQIA+ estejam, no atual momento da história pouco mais visíveis aos olhos
de parcela da sociedade, tais indivíduos, permanecem apresentando uma simbologia de identidade
estigmatizada como pecadora e imoral, que atenta em desfavor a uma convicta regularidade de
identidade de gênero e de orientação sexual, que não admite o reconhecimento de condições fora de
padrões heterossexuais (ARAUJO, 2018).
A heteronormatividade, neste aspecto, é caracterizada por ser uma norma heterossexual, que
regula os modos de vivência, os desejos corporais, sexualidades e a própria identidade de gênero, no
intuito de estabelecer padrões sociais ligados à compreensão biologicista, dentro da qual só existem
duas contingências de locação: a feminina e a masculina, heterossexual (SILVA, 2016).
As noções de certo ou errado, no âmbito das identidades de gênero e orientações sexuais, nesse
sentido, se originaram justamente pela construção de valores culturais, provenientes quase sempre,
de quem possui uma posição de poder, seja ela política, social ou religiosa, mas que torna os valores
concernentes à heterossexualidade como superiores, compulsórios e mais dignos do que aqueles que
não seguem as conjecturas heterotradicionais (BORGES, 2013).
Todavia, fato é que desde os primórdios da humanidade, as práticas sexuais e modos de vivências
não condizentes com as heterossexuais, já existiam, e, para tanto, eram, inclusive, consideradas
naturais dentro de uma comunidade (DIETER, 2012).
Ocorre que, com a evolução social e o surgimento de figuras possuidoras de poder e de grande
influência, os sujeitos LGBTQIA+ passaram, aos poucos, a serem observados como seres diferentes,
sobre os quais começaram a recair desconfianças, tão só pelo fato de não enquadrarem-se dentro
daquilo que era considerado como padrão sexual (BPRGES, 2013).
Na intenção de fortalecer a norma heterossexual, juízos morais, principalmente advindos das
igrejas propagavam que as sexualidade e identidades de gênero “diferentes”, eram passíveis de
converter ou perverter a ordem social, heterossexual, convencionada até então (BORGES, 2013).
Desta forma, as sexualidades e identidades de gênero discordantes das heterônomas passaram
a sofrer a imposição da heterossexualidade, visto que, a influência religiosa não permitia a existência
de outra sexualidade e identidade, senão a heterossexual, pois em suas concepções os textos bíblicos
entendiam que as práticas homogenitais não eram naturais, comuns, ou que eram impuras e contrárias
a Deus (HAHN, 2010).
Contudo, a contra-senso das posições religiosas, atos homogenitais, por ocasião, não possuem
o mesmo significado de orientação sexual ou identidade de gênero, de modo que, o que a bíblia
condenava, em verdade, não era a homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, tampouco as
identidades de gênero, mas as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, que eram associadas
à idolatria, atividades pagãs e à identidade gentia, de maneira que questão principal não era sexual,
mas pura a simplesmente religiosa (HAHN, 2010).
Por isso, a partir dessas equivocadas interpretações bíblicas/religiosas, é que se deu início a
cultura heteronormativa que, nos ensinamentos de Foucault, induziu a sociedade a convenciona-
se, pela necessidade de disciplinar sujeitos, para que fossem heterossexuais e para que, assim,
difundissem seus valores (FOULCAULT, 2005).
No entanto, a percepção da heteronormatividade que se tinha naquela época, por mais absurda
que pudesse ser, passou a sofrer constantes transformação e reconstruções com o passar dos anos,
ao passo de que no atual momento da história, reforça, inclusive, discursos de ódio e violência à
comunidade, configurando o que se compreende por LGBTQIA+fobia (LOURO, 2009).
Por isso, a vista destas questões, faz-se necessária uma breve abordagem acerca das discussões
e prerrogativas que moldaram a heteronormatividade e que a impuseram na sociedade, contribuindo
à inexistência legislativa de proteção de direitos e reconhecimento, por meio dos padrões de gênero.
Logo, ao analisar as questões que adentram ao gênero, denota-se, que as construções de papéis
sociais estão diretamente relacionadas a este, que, em seu conceito, abarca relações de poder sobre
o corpo sexuado, sobre o qual são impostas regras, de modo a submetê-lo a portar-se de acordo com
elas, sob pena de ser visto como figura “desviada” (SCOTT, 2005).
Os papeis de gênero são concebidos a partir de uma estereotipagem de como deve ser o
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feminino e o masculino, encaixando os individuos, a depender de seu sexo, dentro de uma concepção
introduzida pela sociedade como regra, induzindo-os e orientando-os a seguirem suas vidas dentro
de padrões de comportamentos considerados adequados (SANTOS, 2013).
Tais padrões de comportamento, circundam pelas maneiras de se portar, de falar, pela forma de
se vestir, de realizar tarefas domésticas, na divisão do trabalho e profissões exercidas por homens
e mulheres, além de padrões sexuais e de identidade. Reconhece-se, neste ponto, que normas são
importantes à convivência em comunidade, porém, o que se deve refletir, são seus limites ao bom
funcionamento social (STUDAR, 1980).
Por outro lado, no que concerne aos comportamentos sexuais e de gênero, é incontroverso o
fato de que normas sociais extrapolam limites, visto que a imposição de um comportamento “padrão”,
como ocorre sob as orientações sexuais e identidades de gênero, afrontam claramente a dignidade da
pessoa humana, por violar a subjetivação do comportamento individual, cerceando a livre autonomia
pessoal e personalidade sexual e de gênero de cada indivíduo (SCOTT, 2005).
Santos, bem esclarece:
Os papéis de gênero, […] são definidos como aquelas expectativas partilhadas acerca das
qualidades e comportamentos apropriados aos indivíduos, em função do gênero socialmente
definido. Ou seja, cada indivíduo tem um papél socialmente aceito - definido através do processo
de socialização que indica como se deve ou como se deveria se comportar - e também papéis de
gênero, nos quais são definidos os comportamentos socialmente esperados para mulheres e para
homens. Esta definição, considera que os papéis de gênero são padrões de comportamento que a
cultura define como sendo adequada para cada gênero (SANTOS, 2013, p. 262).
Nessas definições, Santos deixa claro que a imposição dos papéis sociais, influi diretamente na
aceitação dos indivíduos, essencialmente os LGBTQIA+, que não seguem a orientação heterossexual.
Além disso, sabe-se que todos os indivíduos sociais, são criados dentro de uma instituição
heterônoma, a qual, giza-se, os ensina a seguir padrões heterossexuais, à exemplo de atrair-se física
e emocionalmente por homens, quando mulheres, e por mulheres, quando homens.
Entende-se, neste aspecto, que a imposição de um comportamento padrão pode acarretar
consequências extremas, ao ponto de conceber desigualdades sociais, como ocorre com os LGBTQIA+.
A construção social de papéis de gênero produz pressão sobre as mulheres e homens quando se
desviam deste padrão arbitrário, sejam por atos, comportamentos, vestimentas e estereótipos
heteronormativos mas, sobretudo, quando se tratam de questões sexuais (AMÂNCIO, 2001).
Assim, os papeis de gênero nada mais são do que construções sociais que, dificultam e diminuem
a liberdade individual, a autopercepção e o autoconhecimento de cada indivíduo, sobretudo pelo fato
de já serem impostos antes do próprio nascimento, quando do descobrimento da genitália da criança
(SANTO, 2013). Ou seja, a sociedade define o que seus indivíduos irão ser, como se portarão, de quem
gostarão, em termos de gênero e orientação sexual, desde a descoberta de seu órgão sexual.
Portanto, nota-se que os papéis de gênero não afetam somente o feminino e o masculino
heterossexual, mas, sobremaneira às identidades LGBTQIA+, que não seguem o padrão pré-estabelecido
pela sociedade, de masculinidade e feminilidade, de modo que quando mais imposições de padrões
existem, mais corrobora-se a tese de que tudo que é diferente dos padrões heterossexuais, não é
merecedor de direito, nem mesmo de respeito dentro de uma sociedade.
Inobstante a isso, o estudo dos conceitos de papéis de gênero, são necessário à compreensão,
também dos conceitos e aspectos que dificultam a desconstrução da heteronormatividade, bem como
o entendimento da naturalização destes comportamentos.
A naturalização da heteronormatividade, nesse sentido, se deu a partir da organização familiar
em que mulheres e homens detinham distintas atribuições. As mulheres eram consideradas frágeis,
do lar, mães de família, verdadeiros objetos de cama e mesa, ao passo de que os homens eram viris,
fortes, agressivos, e concentravam suas atribuições baseadas no sustento familiar, como chefes de
família (STUDART, 1980).
Nada obstante, dentro desta lógica, cada qual, ao se desviar destas atribuições e modos de ser, não
haveria de ser digno de compor o grupo familiar. O homem, por exemplo, quando demonstrasse fragilidade
ou algum traço de feminilidade, era visto com outros olhos. Contudo, até então não havia a construção de
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denominações como homo, bi, trans, mas certamente já existente, porém de forma camuflada, uma vez que
o homem, não poderia demonstrar qualquer traço inerente à mulher (CHOERI, 2004).
Embora não se possa estipular uma data para o início do processo de naturalização
heteronormativa, esta foi ficando mais forte, como já dito, a partir da influência religiosa e da maior
visibilidade da figura do inadaptado em sociedade, que facilitou seu enquadramento patologizante,
no caso dos LGBTQIA+ (LOURO, 2009).
Dentro desta perspectiva, a inadaptação do sujeito em sociedade é obviamente característica inerente
a ela. Entretanto, falando de questões sexuais e de gênero, o inadaptado é caracterizado pelo desvio da
conduta heterossexual, vivenciando uma forma de sexualidade percebida como “ilegítima”, dentro da
qual, enquadravam-se as relações LGBTQIA+, bem como a prostituição e o adultério (LOURO, 2009).
O entendimento de tal aspecto é necessário à compreensão de que foi a partir da dificuldade
de enquadramento nas imposições, que as sexualidades discordantes da hétero passaram a ser
patologizadas, tal como sucedeu com a homossexualidade até os anos 90 e com a transexualidade
até pouco tempo. Essa patologização, auxiliou ainda mais na naturalização da heteronormatividade,
tendo como premissa maior a heterossexualidade como única sexualidade natural e a antinaturalidade
de todas as demais (LOURO, 2010).
Entretanto, o discurso de que a heterossexualidade é fenômeno único de naturalidade, é
perceptivelmente falacioso, uma vez que se estrutura sob clara imposição heterônoma, patriarcal
e heterossexista, que retira qualquer forma de espontaneidade que o sujeito pode ter com sua
sexualidade (LOURO, 2010).
Outro aspecto importante, está inserido nas concepções religiosas, pois a igreja sustenta, ainda
hoje, uma tradição de condenação às experiências LGBTQIA+, devido à cultura patriarcal, a qual
exige a cura e conversão destes à heterossexualidade. Nesse sentido, a exemplo do homem gay, o
qual apresenta um novo modelo de homem, a mulher lésbica apresenta um novo modelo de mulher,
ambos não condizentes com as estruturas patriarcais, essencialmente por seus estilos de vida serem
subversivos (HAHN, 2010).
Nas igrejas, sustenta-se a condenação dos sujeitos LGBTQIA+ por meio dos textos bíblicos, ou
melhor, a partir da interpretação destes que, no mais das vezes, e de forma equivocada, se mostram
ausentes de uma real interpretação e de um contexto lógico temporal. A teologia classifica estas
expressão da sexualidade, dentre outras, como pecadoras, por se afastarem do seu fim que é a
continuação da espécie pela reprodução humana, associando a homossexualidade, por exemplo, ao
ato sexual pecaminoso (HAHN, 2010).
Portanto, a heteronormatividade instalou-se sobre uma perspectiva muito forte, sobretudo na
questão religiosa, haja vista tocar em uma das esferas mais íntimas dos seres humanos, a crença. A
partir da interpretação errônea da bíblia e do seguimento das convicções tradicionais e patriarcalistas
se constrói na mente, daqueles que acreditam nas forças divinas, que somente a heterossexualidade
seria a sexualidade abençoada por Deus.
No que tange à legislação, a lei brasileira pouco aborda a identidade humana, tampouco a de
gênero e a orientação sexual. As referências, em sua maioria, tratam-nas como meras peculiaridades, no
sentido de individualização dos sujeitos. Segundo Raul Choeri, o legislador parece não ter incorporado
a temática, deixando de atribuir dimensão e importância a estes institutos (CHOERI, 2004).
O Código Civil de 2002, do qual esperava-se uma devida regulamentação acerca do tema, ou,
pelo menos, uma breve abordagem, omitiu-se quanto ao instituto da identidade sexual e de gênero,
porém, progrediu, no tocante aos direitos de personalidade. Neste ínterim, dispôs implicitamente
sobre a identidade humana, quando refere ao direito de nome e a imagem (CHOERI, 2004).
Maria Berenice Dias, sustenta que a Constituição Federal, também nada dispõe, especificamente,
sobre o direito à livre identidade de gênero e orientação sexual. Explica, que isso se dá pela resistência
dos representantes do povo em aprovar uma proposta de emenda constitucional, ou mesmo um
projeto de lei que venha atender às necessidades da população LGBTQIA+ (DIAS, 2011).
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Apesar das muitas repercussões midiáticas dos direitos LGBTQIA+, até o momento nenhuma
legislação acerca do reconhecimento da livre identidade de gênero e orientação sexual dos sujeitos
LGBTQIA+, foram aprovadas no Brasil. Isso ocorre, sem dúvida, pelo fato do Congresso Nacional
ser composto por bancadas evangélicas e católicas (heteronormativas), que atuam relativamente na
mesma direção quando se tratam de direitos LGBTQIA+ (CARRARA, 2010).
Nesse ponto, oportuno mencionar as diversas tentativas dos movimentos ativistas LGBTQIA+ no
intuito de criminalizar a homofobia, mediante a formulação de legislação específica, transformando
a discriminação baseada na identidade de gênero e orientação sexual, em delito penalizado pela
legislação penal. Todavia, os argumentos utilizados pelas bancadas religiosas do Congresso, são
sempre as mesma, no sentido de que a partir da criminalização, haveria cerceamento da liberdade
de opinião daqueles que, com base na bíblia, acreditam poder condenar a sexualidade diversa da
heterossexual (CARRARA, 2010).
Importante mencionar, nesse ponto, que apesar de grande parte da legislação não mais
penalizar as práticas LGBTQIA+, a homossexualidade ainda é contemplada pelo Código Penal Militar
como prática criminosa entre militares, ou, com eles, em lugares sujeitos à administração militar. O
dispositivo legal, por óbvio, é inconstitucional, porém até o momento não foi assim declarado, nem
revogado (DIAS, 2011).
Diante dos comandos constitucionais, enquanto ordens supremas que consagram a dignidade
da pessoa humana e zelam por uma sociedade não discriminatória, é difícil compreender a inércia
do Poder Legislativo na codificação da proteção legal de diferentes identidades sexuais e de gênero.
Incontáveis projetos de lei já foram apresentados, contudo, arquivados, apensados, configurando um
constante ir e vir, sem resultado algum (DIAS, 2011).
Portanto, são notáveis os traços heteronormativos e patriarcais que insistem em permanecer após
tantas décadas de luta pela abolição da discriminação baseada na diferença de gênero e sexualidade.
É absolutamente discriminatório o ato de afastar, por qualquer justificativa, a possibilidade de
reconhecimento dos direitos LGBTQIA+ como direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da
pessoa humana que, pela ordem jurisdicional, goza de todas as benesses do direito à cidadania.
De outro norte, diante dos preceitos heteronormativos que dificultam a regulamentação de
leis específicas atinentes à matéria, a exemplo da criminalização da homofobia, a justiça se utiliza
de outros meios (mecanismos de oxidação ao ordenamento jurídico), por vezes não tão eficazes à
resolução destas questões, à exemplo das regras principiológicas do direito constitucional.
À vista da ausência legislativa e da necessidade de soluções que atendessem à comunidade
LGBTQIA+, o Poder Judiciário atribuiu a si, na pessoa de seus magistrados, uma postura ativa na busca
por uma hermenêutica jurídica mais ampla, cujo propósito valeu-se a garantir o direito da(s) parte(s),
diante da lentidão e omissão legislativa. Isto se justifica na preponderância do princípio da supremacia
do interesse público que, de modo contrário, denega o direito fundamental à justiça (SOUZA, 2013).
O legislador, como dito, quase sempre foi omisso, inerte e precário na implementação de
fatores que consubstanciem o princípio da igualdade, tratando os desiguais na exata medida de suas
desigualdades, sobretudo nas questões sexuais e de gênero, as quais demandam especial atenção
por configurarem direitos de minoria.
Por oportuno, frisa-se, que a atuação ativa do judiciário diante da falta de lei não configura
qualquer vantagem aos LGBTQIA+, mas, tão somente, a observância de suas necessidades, suprimidas
por um grupo dominante e conservador, como é o heterossexual (REIS, 2018).
Para melhor compreender:
[…] com a omissão legislativa em regulamentar essas políticas e preceitos de afirmação para as
categorias socialmente fragilizadas e enfraquecidas, amparados no princípio da inafastabilidade
de jurisdição e no acesso à justiça e de que a lei não poderia excluir ou afastar da análise do
Poder Judiciário qualquer violação, descumprimento ou ameaça de violação a direitos é que, os
juízes e tribunais, vestem-se de nova função de concretização de direitos e passam a determinar,
em suas sentenças, decisões e acórdãos, a efetivação desses direitos negados pelo Executivo,
substituindo-se a vontade política dessas instituições, pela sua soberania das decisões, e assim,
passam a determinar através de liminares, condenações e aplicações de multa a efetivação desses
direitos para aquele que, em demandas judiciais, sentiram-se lesados e prejudicados. É, portanto,
o Judiciário agindo no lugar daquele que, constitucionalmente, deveria agir e se fez ausente numa
completa omissão constitucional (REIS, 2018).
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Nesse contexto, infere lembrar, que, nas últimas décadas, o judiciário tomou posse de várias
demandas concernentes às questões homossexuais, casamento homoafetivo, identidades de gênero,
e recentemente sobre a criminalização de condutas discriminatórias de gênero e sexualidade.
Pode-se afirmar, tendo em vista a conquista de alguns direitos logrados pela comunidade LGB-
TQIA+ e a efetivação daqueles já adquiridos, que o Poder Judiciário aparece em primeiro lugar entre
as esferas que legitimam a existência e proteção de direitos ao grupo. Não obstante, contribui à
desconstrução de uma cultura sedimentada de preconceitos e discriminações, garantindo acesso à
cidadania e à desconstituição de relações odiosas, mesmo com a resistência de grupos conservadores
que acabam acentuando conflitos (ALBERNAZ, 2015).
É de se reconhecer o progresso dos Tribunais na interpretação e reconhecimento jurídico de
certos aspectos da realidade LGBT+. Percebe-se a antecipação do poder jurisdicional, frente à omissão
de legalidade o que, por sua vez, configura uma importante arma na concretização dos direitos
LGBTQIA+, pois sem a força do judiciário tais questões permaneceriam apenas no papel, razão pela
qual sua postura é, sem dúvida, um importante ganho na efetivação das condições sociais e pessoais
de cada ser humano (ALBERNAZ, 2015).
Neste contexto, a atuação do Poder Judiciário, enquanto figura essencial para assegurar direitos
mínimos e fundamentais é, sobretudo, uma forma de não relegar parcela da sociedade que, a décadas,
luta pelo reconhecimento e visibilidade em meio a uma sociedade impregnada de pré-conceitos
estruturais, que buscam impor uma cultura que nem a todos identifica.
Assim, utilizando-se de uma postura ativa na concretização dos direitos LGBTQIA+, dentre outras
questões como as referidas acima, o Supremo Tribunal Federal julgou recentemente duas ações que,
neste ponto, merecem atenção.
Uma delas, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275, que, discutiu a possibilidade
de substituição do prenome, bem como do sexo, diretamente no Registro Civil, possibilitando o
reconhecimento da identidade de gênero a pessoa transexual (BRASIL, 2018). E a outra, Ação
Declaratória de Omissão (ADO), nº 26, em conjunto ao Mandado de Injunção nº 4733, cujo desenrolar
da discussão, criminalizou a LGBTQI+fobia, equiparando-a ao delito de racismo (BRASIL, 2019).
A rigor, quando da análise dos citados casos, denota-se que o órgão julgador utilizou-se, tão
somente de princípios constitucionais e seus desdobramentos para conferir proteção aos LGBTQIA+,
o que é possível pela utilização da técnica hermenêutica do pós-positivismo, que considera possível,
também a utilização de princípios na resolução de questões de difícil resolução.
Todavia, nas palavras de José Afonso da Silva, os princípios e garantias fundamentais, individuais
constitucionais, de liberdade, igualdade e dignidade, tem aplicação imediata por se concretizarem
como direitos de primeira dimensão, mas alerta que em termos constitucionais “aplicação” não pode
ser confundida com “aplicabilidade, na medida em que os princípios nem sempre são auto-aplicáveis”
(SILVA, 2004), a exemplo do presente caso.
Assim, importante compreender que a aplicabilidade das normas se divide em plena, contida e
limitada, ao passo de que as primeiras possuem aplicabilidade direta e imediata, enquanto a última
tem aplicabilidade mediata e indireta. Já em relação à “aplicação”, quando imediata, significa que
a própria norma possui força necessária e incidência aos fatos, o que certamente não se encaixa à
proteção da identidade de gênero pela principiologia constitucional (LENZA, 2017).
Nessa proporção, no entendimento de Maria Berenice Dias, os princípios se apresentam como
não-autoaplicáveis, pois necessitam ser invocados para que o Estado cumpra com seu dever de
assegurar o direito de quem está condenado à invisibilidade social, pela própria condição. Assim,
a aplicação dos princípios aproxima-se da aplicabilidade limitada, de onde surgem as normas
programáticas que ditam valores e princípios e que necessitam de norma regulamentadora para ter
sua plena aplicabilidade (DIAS, 2011).
Por isso, conclui-se que uma vez invocados os princípios constitucionais de liberdade, igualdade
e dignidade, em conjunto aos preceitos de personalidade, dentro de uma decisão judicial, não há
dúvida quanto à proteção da livre identidade de gênero e orientação sexual. Todavia, os princípios de
per si, diante da omissão do legislador acerca da matéria, não são autoaplicáveis, ao ponto de dispor
de representatividade e visibilidade que a norma regulamentadora lhes conferiria.
Reconhece-se que o Brasil já possui uma das legislações mais complexas e de difícil interpretação
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do mundo. As leis quase sempre emergem após uma comoção social explorada pela imprensa, quando
surge a ideia de propor um projeto de lei para tratar da matéria. Há quem diga que as normas não
surgem após um período de reflexão, a fim de responder a uma questão já estudada, mas de forma
casuística, o que vem a complicar o próprio sistema jurídico (DUARTE, 2010).
É bem verdade que a criação de uma legislação, por si só, não resolve o fato de haver
discriminação, mas é a partir dela que se passa a reconhecer, que, todos os sujeitos, independente de
suas orientação sexuais e identidades de gênero, merecem igual respeito, proteção, consideração e
aplicação de todos os direitos inerentes a qualquer pessoa (SILVA, 2015).
Neste ponto, salienta-se, que o mérito da questão, não se encontra nem mesmo, em não poder
punir, em razão de não haver uma legislação específica, haja vista a própria Constituição fazer tal
referência, mesmo que de forma genérica. No entanto, a relevância da normatização possibilitaria
o posicionamento em relação à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, sem a
necessidade de enquadrá-las em outra norma ou tipificação legal, tal como foi a criminalização da
LGBTQIA+ fobia, no delito de racismo (BASTOS, 2017).
Ocorre que, assim como qualquer outro indivíduo, os LGBTQIA+ estão expostos à ausência de
segurança (em todos os sentidos), problema que de fato assola o país, mas também, estão sujeitos a
serem discriminados, excluídos, feridos e mortos, tão só por sua condição.
A criminalização da homofobia, por exemplo, ainda que não totalmente eficaz, por meio de
legislação própria, inibiria inúmeras práticas agressivas e de ódio, desnaturalizando a hostialidade e
a concepção enraizada de que há uma “permissão” a esse tipo de violência (SILVA, 2015).
Bastos refere, que a normatização específica marcaria, sobretudo, o posicionamento do Estado
contra a naturalização das condutas homofóbicas, bifóbicas, transfóbicas e discriminatórias de
gênero, tendo em vista não se tratar apenas de punir tais ações, mas de certificar legislativamente
que a discriminação não mais será tolerada (BASTOS, 2017).
Portanto, embora se reconheçam os efeitos de ambas as decisões do Supremo Tribunal Federal,
no sentido de conferir o mínimo de dignidade a uma população, que desde sempre foi relegada pela
sociedade, o que caracteriza, até hoje, o maior passo na concretização dos direitos LGBTQIA+, entende-se
que, se o objetivo é superar a discriminação, a exclusão e a dificuldade de abordar a questão, para tornar
a sociedade mais inclusiva, mostra-se extremamente pertinente a elaboração de legislação específica.
Isso porque, continuar submetendo a identidade de gênero e a orientação sexual a preceitos
ultrapassados, e inadequados, não contribui em nada à construção de uma sociedade que viabiliza a
cidadania e que busca a equidade material, ao contrário, só estimula a marginalização e o sofrimento
de quem não se curva aos padrões que a sociedade lhe atribuiu.
Enfim, não há como permanecer tolerando o sofrimento de quem apenas quer ver reconhecida sua
verdadeira identidade, seja pela ignorância da família, pela omissão do Estado, seja pela inaceitação da sociedade
que, por hora, não consegue assegurar direitos iguais e permanece fixada em uma realidade de mundo que,
de fato, nunca existiu, pois, mesmo em uma realidade dita “predominantemente” cisgênero e heterossexual,
há uma enorme diversidade que não pode, sob nenhuma hipótese, ser tão facilmente contestada.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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dentro de padrões de comportamento, sob pena de serem percebidas como “inadaptados” e “antinaturais”.
São por essas e outras concepções avelhantadas que a lei brasileira pouco aborda a identidade
sexual e de gênero, omitindo-se quanto à elaboração de legislações específicas que, se existentes,
inibiriam inúmeras condutas sociais e estatais que denegam a aplicação do direito aos sujeitos LGBTQIA+.
Importante destacar, nesse sentido, a atuação ativa e positiva do Poder Judiciário em impor
soluções às questões da comunidade, principalmente no reconhecimento da identidade de gênero
aos transexuais, e da criminalização da LGBTQIA+.
Em que pese se reconheça a dificuldade dos magistrados em aplicar o direito não positivado, o
judiciário tornou-se uma importante arma na concretização de direitos LGBTQIA+ e sem dúvida, um
significativo ganho na efetivação das condições sociais e pessoais de cada ser humano.
Percebe-se, nesse sentido, que para o julgamento dessas questões, a Corte utilizou-se
exclusivamente de princípios constitucionais e direitos de personalidade, que quando aplicados
conferem, de fato, a devida proteção ao direito de livre identidade sexual e de gênero.
Todavia, conclui-se que, pela análise da doutrina, os princípios não são auto-aplicáveis, pois
enquanto não invocados, não possuem a mesma força que teria uma norma regulamentadora,
situação que permite compreender, que os princípios não conferem, por si só, a representatividade e
visibilidade que uma legislação conferiria, pelo que se mostra necessária a elaboração de legislação
específica da matéria, para a plena e completa proteção dos direitos LGBTQIA+.
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RESUMO: Essa pesquisa tem como escopo analisar os números de mulheres imigrantes ao redor do
mundo utilizando-se como base a teoria biopolítica para elencar a total desumanização e objetificação
da mulher imigrante através da construção da vida nua. A pesquisa busca diversos aspectos das vidas
femininas que imigram e analisa também os labores que recaem sobre esses sujeitos. A pesquisa é
exploratória e utiliza do método bibliográfico para compreender as mais diversas questões que se
entrelaçam nas vidas imigrantes, tem como técnica de pesquisa a documentação indireta e como
técnica de análise a quantitativa e a qualitativa. Os dados demonstram que o número de mulheres que
imigra vem aumentando e principalmente ocorrendo sem a presença do homem. Contudo, os labores
que as imigrantes desempenham no país de destino são parcamente remunerados, invisibilizados e
recaem nos antigos papéis constitutivos da desigualdade de gênero.
INTRODUÇÃO
Há pouco tempo na história da humanidade as mulheres se tornaram protagonistas de muitos
vieses de suas vidas. Tradicionalmente, as poucas mulheres que imigravam faziam na companhia do
cônjuge, cenário que vem se modificando através dos novos arranjos das vidas femininas e múltiplos
fatores que intervêm nesse ato. No início do século XXI a migração tornou-se um dos temas mundiais
de primeiro plano pelo vasto número de pessoas que migravam, passando a ocupar um lugar de
destaque na agenda política internacional.
Para a total compreensão da pesquisa que se apresenta, é importante entender algumas definições
utilizadas durante o estudo. Migrante é a pessoa que migra, desloca-se, entra ou sai de uma localidade.
As definições utilizadas por essa pesquisa baseiam-se nas definições da Organização das Nações Unidas
(ONU), a qual relata que imigrante deve ser compreendido como uma pessoa que adentra para viver
em outro país que não o seu de nascimento ou no local onde seja considerado como cidadão, ou seja,
ela saiu de sua nação para viver em outra. Já o refugiado é o sujeito que sai do país de origem em
detrimento de conflitos armados ou perseguições, necessitando de refúgio em outro país (ONU, 2019).
A temática da pesquisa se insere na investigação das vidas de mulheres imigrantes e no labor
desempenhado por elas no país que escolhem para fazer sua nova morada. Mas não só. A pesquisa
utiliza-se do constructo teórico da biopolítica para traçar o perfil da imigrante em virtude das relações
de poder, desigualdade e de desumanização pela qual perpassam no processo migratório pautando-
se, para isso, em aspectos materiais e simbólicos. A problemática que envolve o estudo cinge-se na
investigação dos labores desempenhados por essas mulheres quando imigram, questionando quais
são os labores executados por elas no país de destino?
A motivação principal da pesquisa quanto ao tema das mulheres é interpretar e compreender
32 Orientanda. Mestra e Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ). Pós-graduada em Direito Civil. Bolsista CAPES/PROSUC. E-mail: juliamenuci@hotmail.com
33 Orientador. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pós doutorado pela UFF com estágio de
doutorado na l’Université Paris III Sorbonne Nouvelle, Instituto de Cinema e Audivisual com orientação de Philippe Dubois.
Pesquisador associado a UNESCO a Cátedra de Diversidade Cultural, Gênero e Fronteiras. Professor da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), atuando na Graduação de História presencial e EAD e no Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos, Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais na
cidade de Ijuí. E-mail ivo.canabarro@unijui.edu.br.
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O fenômeno migratório não é um fato novo, há séculos as pessoas se locomovem entre fronteiras
por diversos motivos, da colonização até a necessidade de uma vida mais digna, fugindo de guerras,
pobreza, fome, etc.. Entretanto, muitas vezes abordar a temática da migração nem sempre engloba
avaliar as vivências dos protagonistas desse fenômeno, os imigrantes. Há uma série de aspectos que
devem ser observados quando se intenta olhar sobre esse advento com uma perspectiva mais humana
que foge dos estereótipos que pré-julgam os imigrantes como agentes agressivos e violentos, que
intentam “roubar” as oportunidades dos nacionais e que devem padecer na miséria.
A escola biopolítica auxilia em uma nova concepção acerca dos indivíduos imigrantes diante
de sua condição de vida que se sobressai na multidão de nacionais, os quais não percebem as
relações de poder que estão inseridos. O imigrante, por ser o sujeito mais vulnerável em um território
desconhecido e que não lhe acolhe, é inserido na biopolítica e em suas linhas de poder e padece das
mais diversas situações, que intentam – e conseguem – retirar-lhe a humanidade, por vezes alocados
em verdadeiros campos de concentração.
Segundo o autor André Duarte (2010, p. 46) a biopolítica atua cotidianamente através de um “poder
estatal que investe na multiplicação da vida por meio da aniquilação da própria vida, a partir do advento
recente da política transnacional globalizada”. Disseminada mundialmente, muitos seres humanos estão
inseridos em sua redoma, mas não percebem sua influência. Duarte (2010) segue a linha foucaultiana
que compreende a biopolítica através de uma série de conjuntos e relações de poder que se sucedem
até mesmo nos indivíduos mais frágeis, tais como os (i)migrantes. Na contemporaneidade, surge um
novo modelo de sociedade calçada no biopoder, o qual gere todos os indivíduos, transformando-os em
uteis e dóceis. Ademais, o biopoder também regula as condutas dos sujeitos entre si, as relações de
poder que se formam e que devem seguir a ideologia de um poder soberano.
O biopoder utiliza-se de formas variadas de racismos para exercer seu direito de matar grupos de
indivíduos diante da justificativa da preservação da raça e purificação dessa. Do mesmo modo, incita
nos concidadãos o sentimento de nacionalismo e pertencimento, fazendo com que os imigrantes fiquem
ainda mais isolados no país em que se encontram, tanto culturalmente como geograficamente. Isso
porque seu isolamento, segundo Macé (2018), é premeditado. O local que esses indivíduos ocupam nas
cidades é justamente a margem, locais reservados para sujeitos indesejados, caracterizando verdadeiros
campos de concentração. Através da justificação da violência contra o imigrante se escracha um dos
maiores princípios da biopolítica, o poder de deixar viver e fazer morrer (FOUCAULT, 2010).
O biopoder controla as vidas que estão em determinado local de modo a proteger as vidas que
importam e aniquilar as vidas que não importam, que não produzem e não merecem ser vividas,
tais como as dos (i)migrantes, esse conceito biopolítico é explanado por Agamben (2004) quando
o autor menciona a conceituação de vida nua. As vidas nuas são desprovidas de valor político e
direitos, abandonadas pelas governanças e até mesmo por outros seres humanos. Essas vidas não
importam, seu direito à vida passa a não existir e sua morte é justificada e desejada. Ao elencar o
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limite da vida protegida e daquela exposta à morte, Agamben expõe simultaneamente o princípio
maior da biopolítica, a politização da vida e da morte de acordo com os interesses do Estado. Assim,
compreende-se que o regime biopolítico poderá incentivar tanto a manutenção da vida como o
incentivo da morte, de acordo com seus interesses.
O sujeito da vida nua é denominado por Agamben (2010) como homo saccer, esse sujeito não é
contemplado pela lei, ele pode ser assassinado a qualquer momento sem que isso constitua um delito
ou ato ilícito. A vida nua não é chorada ou lamentada, ela é ignorada, pois sem valor algum ao Estado
biopolítico. Na teoria de Agamben, a vida nua se personifica nos campos de concentração modernos,
locais onde indivíduos que não são desejados socialmente são alocados, esquecidos e mortos. A obra
de Macé (2018) vai diretamente de encontro aos escritos agambenianos quando a autora menciona a
exclusão dos imigrantes quando alocados em massa em espaços determinados (ou não) a eles, mas
que refletem o esquecimento de seres humanos pelos próprios seres humanos.
A disciplina e a dominação dos corpos intentada pelo biopoder atua de modo a docilizá-los para
maximizar o rendimento de trabalho e capital. O capitalismo, segundo Foucault (2008), influencia
diretamente na biopolítica visto que ela é uma mistura de totalitarismo disfarçada de democracia,
através dessa mescla de elementos surgem micropoderes, atuando sobre a coletividade de acordo
com as instruções do governante. Duarte (2010, p. 68) esclarece que o local onde o biopoder atua é
a cidade, pois “diante do crescimento exponencial, as cidades se transformaram em focos de ameaça
política e sanitárias na medida em que as classes perigosas34 também cresceram”.
Nesse ponto, o biopoder tem por agente máximo o Estado moderno, cuja função é deixar viver e/
ou fazer morrer, ou seja, dar condições para o prolongamento da vida em seu ciclo produtivo ou findá-
la quando achar conivente (FOUCAULT, 2010). O biopoder utiliza do controle social para administrar o
coletivo, interpretando as normas conforme seus ideais e rearticulando o ordenamento jurídico para
que seja compatível com seus projetos, assim ele “é outro nome da real submissão da sociedade ao
capital, e ambos são sinônimos da ordem produtiva globalizada” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 37).
O poder de fazer morrer recai sobre as classes perigosas apontadas acima, a morte do outro,
daquele que é perigoso e improdutivo para o sistema criado, ou, a omissão quanto aquele sujeito
irá tornar a vida do coletivo mais pura e sadia. Através da biopolítica as diferenças individuais
são ampliadas fazendo com que os nacionais se unam contra o sujeito desconhecido através do
medo implantado pelo biopoder. Sob essa perspectiva, Agamben (2004, p. 12), revela que “uma das
características essenciais da biopolítica moderna [...] é a sua necessidade de redefinir continuamente,
na vida, o limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora”, separando
nacionais versus imigrantes, vidas que devem ser mantidas e vidas descartáveis.
O pano de fundo da biopolítica é o estado de exceção, que se apresenta como o paradigma do
governo dominante diante da política contemporânea. A nomenclatura do extado de exceção por si
só demonstra seu caráter temporário, ocorre que houve um deslocamento de uma medida que, em
tese, era para ser provisória, atribuindo-lhe caráter permanente e alterando radicalmente a forma de
estrutura social e poder do governo. “O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como
um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”, acrescentando-lhe, ainda, o caráter
totalitário por parte da ação do governante (AGAMBEN, 2004, p. 13). A declaração do estado de exceção
é realizada por um ato governamental que produz um ser juridicamente inválido e inclassificável diante
do ordenamento jurídico, que está sempre disponível às vontades do governo. Isso porque, a vida nua
requer a indeterminação, retirando todas as prerrogativas que fazem do indivíduo um ser humano.
O estado de exceção não é uma ditadura, ele é um espaço vazio de direito onde todos os
vieses jurídicos estão desativados. O vazio existente no estado de exceção, paradoxalmente, possui
relevância estratégica que perfaz as decisões tomadas naquele cenário. Macé (2018, p. 10) afirma
que muitos imigrantes vivem provisoriamente em um eterno, à espera, à beira “de um futuro que não
chega”. Macé (2018) exemplifica o campo, referido por Agamben, elucidando o cais de Austerlitz, em
Paris, revelando o contraponto que execrava aos olhos uma vez que ali vivia um grupo de imigrantes,
às margens do Sena, ignorados por todos, esquecidos, siderados, invisibilizados. O local é chamado
34 Em tempos de biopolítica, as supostas classes perigosas são todos aqueles que destoam ou não se encaixam no modelo
de cidade e de (re)produção previsto pelo biopoder. Os imigrantes podem ser um desses grupos, mas também outros indi-
víduos podem ser elencados, tais como negros, homossexuais, etc.
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pela autora como “campo” em link direto com as obras de Giorgio Agamben, referindo-se ao campo
dos exilados, ao campo de extermínio, de esquecimento daqueles confinados.
A autora explana que muitos imigrantes possuem uma humanidade precarizada que é facilmente
mutilável, exilável, apontando toda a vulnerabilidade humana. Sob esse prisma, Macé (2018) afirma
que é siderante toda a vivência que se faz vizinha aos sujeitos imigrantes e que tem facilidade
em ignorá-los, torná-los invisíveis, tornando as bordas ainda mais bordas. A palavra limítrofe está
diretamente imbuída de significado quando se observa as vidas imigrantes, sendo “o limítrofe aquele
que se mantém na borda, no limite, o que vive na fronteira e faz nela sua estadia; é o que se nutre no
limite e se nutre do limite, mas é também de certa maneira o que nutre o limite” (MACÉ, 2018, p. 23).
Nessa perspectiva, as bordas da cidade abarcam espaços visíveis e invisíveis, “onde um espaço beira
espaços completamente diferentes” (2018, p. 23), demonstrando que todas as vidas se mesclam no
mesmo local, ainda assim, grupos humanos se abstêm uns dos outros.
Rememorando Hanna Arendt, é preciso pensar nas vidas que não possuem outra alternativa
senão construir suas vidas no campo, no pequeno espaço que lhes é destinado dentro de um
território. É preciso pensar, segundo Macé (2018), nos espaços que se consideram inabitáveis e ainda
assim são habitados por imigrantes que sofrem duras penas e perdas. Outro exemplo de campo é o
local onde os imigrantes que intentam adentrar os EUA ficavam reclusos, na fronteira com o México,
local onde muitas famílias eram separadas e que fora notícia mundial. Isso demonstra que uma das
características mais marcantes do fenômeno da imigração é a sua binariedade de sentidos quanto a
duração, dissimulando-se a si mesma como coloca Sayad (1998, p. 45), “não se sabe mais se se trata
de um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente ou , ao contrário, se se trata de
um estado mais duradouro mas que se gosta de viver com um imenso sentimento de provisoriedade”.
Há certa oscilação quanto ao estado real do sujeito imigrante visto que por momentos ele é provisório,
diante das circunstâncias de direito e é, ao mesmo tempo, duradouro de fato. Por vezes, conveniente que
a situação do imigrante seja provisória e por outras que seja definitiva, tal como a expansão econômica
necessita de mão-de-obra permanente e numerosa e ainda assim nega-lhes os direitos que somente um
cidadão possui. Muito embora as vidas de imigrantes sejam totalmente desconsideradas para fins de
direitos e políticas públicas, elas são avistadas, sideradas quando convém, como é o caso dos labores que
são destinados aos imigrantes e que não são primeira opção dos nacionais.
Sayad (1998) afirma que por esse motivo a situação do imigrante foi se modificando em diversos
locais em que eles se aglomeravam. Ao depararem-se com a importância de seu labor para a economia
local, a figura do imigrante passa a almejar mais do que lhe era dado, além de sua atuação, sendo esse
um dos estopins para que se reformule o imigrante sob os aspectos mais desumanizadores possíveis,
para não outorgar-lhes direitos de nacionais. Contudo, Sayad (1998) alerta que a perspectiva acerca da
imigração, com vistas aos nacionais, é contabilizar somente os lucros desse ato e jamais conferindo-
lhe custos. Com efeito, não se pode olvidar que por trás do trabalho imigrante está o direito jurídico
que tutela o trabalho, direitos esses que devem ser reconhecidos ao imigrante uma vez que irá morar
e trabalhar na localidade que se encontra, fato esse que não ocorre.
Sayad (1998, p. 54) assevera que o imigrante é visto como “uma força de trabalho, e uma força de
trabalho provisória, temporária, em trânsito”, ou seja, é um trabalhador que eternamente será tratado como
provisório, ainda que ele seja definitivo, ainda que viva toda a sua vida trabalhando e morra como imigrante,
sempre será passageiro. O trabalho do imigrante encontra-se no “mercado de trabalho para imigrantes”, ele
não é qualquer trabalho. Quando o trabalho acaba, também acaba o fundamento do imigrante estar ali uma
vez que o imigrante somente será desejado enquanto aquilo que se espera dele estiver vivo, ele somente
terá salvaguarda até o momento que a sua razão de ser provisório justifique sua presença.
O estatuto político atribuído ao imigrante garante que ele seja taxado e identificado como um
não-nacional fazendo com que sua existência no país migrado seja precária, excluindo-o do campo
político e de qualquer possibilidade de atuação e poder de fala. O imigrante é obrigado – e se sente
nessa obrigação – de adotar a polidez política, uma neutralidade de quem é/está de fora, seguindo
todos os imperativos políticos que lhes recaem advindos dos próprios nacionais. A arbitrariedade
existente entre a dicotomia do nacional-não-nacional propicia um aumento das discriminações de
modo legitimado por um poder maior e superior. O ideal os governos, segundo Sayad (1998), é que o
imigrante seja uma máquina de labor e não necessite nada além disso, porém essa não é a realidade.
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Como trabalhador, é preciso que seja alojado, mas então o pior dos alojamentos (que ele consegue
sozinho) é amplamente suficiente; como doente, é preciso que seja tratado (isso por ele mesmo,
e talvez muito mais pela segurança dos “outros”), mas que seja da forma mais rápida e mais
econômica (SAYAD, 1998, p. 58).
Reflete-se que o mínimo existencial conferido aos imigrantes recai sobre uma questão de
dignidade precária ao passo que isso lhe é concedido para “manter limpa a consciência da sociedade
que dele se utiliza”, em virtude de alguns princípios morais que ainda poderiam existir nesse caso
na relação sociedade-imigrante (SAYAD, 1998, p. 59). A política que abarca todos os vieses das vidas
imigrantes – social, político em sentido estrito, cultural, etc. – é a política do mínimo, que na verdade é
uma ausência total de política. O imigrante é lembrado diariamente que ele é um sujeito que pertence
a outro lugar e que deverá regressar, mesmo que nunca regresse, sendo que a dimensão econômica,
conforme Sayad (1998), é o que determina sua condição, seu status. O imigrante é um estrangeiro
cuja permanência necessita de caridade e está subordinada ao trabalho desempenhado naquele local,
possuindo uma presença totalmente provisória e utilitária no local que se encontra.
Todos os elementos abordados no primeiro tópico dessa pesquisa imbricam nas vidas
imigrantes e mesclam diferentes conceitos embasados na biopolítica para apontar a precariedade
das circunstâncias que giram em torno desses indivíduos. Por fim, o labor abordado por Sayad, é um
fator de extrema relevância quando observadas as vidas femininas, que por si só já são incrustradas
de normatizações patriarcais, ratificadas mesmo em mobilidade. As mulheres imigrantes padecem da
condição de imigrante, mas também da condição de mulher, desempenhando labores de cuidado e
(quase) não remunerados, tratados como labores invisíveis.
2 MOTIVOS E DESIGUALDADE
Muitos são os motivos que fazem com que as mulheres tomem a iniciativa de imigrar, seja a
busca pela melhora de vida, fins matrimoniais, reintegrar a família, motivações econômicas, a busca
por independência, e motivações de melhora profissional; ou ainda uma compilação de todos esses.
Pizarro (2003) aponta que o movimento imigratório de mulheres se inicia – timidamente – a partir
de 1930 com o advento da globalização e da industrialização de certas localidades europeias. Em
detrimento das grandes guerras e das alterações econômicas mundiais, as mulheres são consideradas
mão de obra preferencial pelas empresas de manufaturados leves - eletrônicos, roupas, brinquedos,
sapatos, etc. – por carregarem consigo estereótipos da condição feminina nos quais afirmam que
as mulheres se adaptam melhor à atividades repetitivas e minuciosas, trabalhando em troca de
remuneração baixa em subempregos que não respeitam a legislação trabalhista.
Lim (1998) relata que avaliando a inserção laboral de mulheres em países que recebem grande
fluxos de imigrantes tal como os do leste europeu, percebe-se que muitos são os labores com viés
doméstico desempenhado pelas imigrantes. Isso se sucede também porque “o envelhecimento das
sociedades e a crescente integração das mulheres ao mercado de trabalho favorece o emprego de
muitas imigrantes de países em desenvolvimento como empregadas domésticas” (1998, p. 16) tendo
em vista que à mulher sempre são designados os labores informais e de cuidado. Ainda, a construção
social de gênero também facilita labores como enfermeiras e paramédicas ou em indústrias têxteis,
contudo, a vulnerabilidade dos labores desempenhados por essas mulheres cresce na medida em que
o fluxo migratório também vem crescendo, diminuindo suas prerrogativas como trabalhadoras.
Historicamente às mulheres recaem os trabalhos de cuidado e reprodução, esses labores se
caracterizam pela atuação no rol doméstico com atribuições das mais variadas em prol da preservação
do lar, da criação das crianças e do zelo com os idosos. Muito embora esse trabalho seja completamente
invisível aos olhos do capitalismo, pois atua silenciosamente dentro do âmbito privado, ele é de
extrema importância para a manutenção social de indivíduos que atuam inseridos fora do doméstico.
Esses sujeitos são homens e mulheres que possuem labores remunerados e que produzem capital sob
o viés econômico (MAYORGA, 2011). Esse dilema irá percorrer toda a pesquisa em questão porquanto
a figura que assume o papel de cuidado dentro do privado é, muitas vezes, a mulher imigrante.
Nesse prisma, o Brasil é um país marcado pelo intenso fluxo migratório desde os anos de 1530
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com a chegada dos portugueses colonizadores. De acordo com Seyferth (2002), a migração para o país
era vista com bons olhos uma vez que a reprodução de imigrantes alemães e italianos com os índios e
originários da terra brasileira que aqui viviam favoreciam o embranquecimento da população, objetivo
almejado por João Baptista de Lacerda no Congresso Universal das Raças, ocorrido em Londres no ano
de 1911. Entretanto, na atualidade a imigração não é cobiçada em quase nenhum país do globo por
parte do país imigrado. Para as corajosas que imigram, Érica Silva (2007) reflete que é comum passar
por situações de desqualificação e desumanização da imigrante de acordo com as regras e desejos
estipulados pelo país no qual se encontra. “O elemento vindo de fora deveria se ajustar à imagem
que se exigia dele, à de trabalhador honesto, qualificado e exemplar, e sempre ausente das questões
políticas nacionais” (SILVA, 2007, p.142).
A política que é aplicada ao imigrante é agressiva e fundamenta-se diante de uma degeneração
da biologia humana, partindo do darwinismo social e em aspectos ético-sociais da exclusão dos
menos favorecidos. “Os que careciam de privilégios sociais eram considerados “lixo urbano” e para
combater a pobreza, nada mais coerente que limpá-la” (2007, p. 143). Nessa senda, Nancy Pereira
(2016) alerta para duas realidades incômodas acerca das vivências que a maioria das mulheres
imigrantes perpassa: o trabalho doméstico e o trabalho sexual. “São trabalhos árduos, repetidos, não
necessariamente criativos, de forte demanda, baixa remuneração, podendo se diferenciar; o senso
comum diz que para estas tarefas não é preciso qualificação, treinamento, formação ou coisa do tipo.
Basta ser mulher” (PEREIRA, 2016, p. 64).
Pereira (2016, p. 70) revela uma realidade cruel das mulheres imigrantes, há grande demanda de
mercado para serviços sexuais dessas mulheres no país sendo que “a prostituição feminina disputa
o segundo lugar com o tráfico de armas como o negócio ilegal que movimenta mais dinheiro depois
do narcotráfico”. Haja vista o grande lucro aliado ao baixo investimento, utiliza-se da herança do
colonialismo para atrelar gênero, classe e raça em um negócio com alta demanda e duradouro.
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contudo, segundo Nancy Pereira (2016, p. 72) “o que acontece é o deslocamento da desigualdade
de gênero no mercado global” uma vez que os salários precários e a falta de direitos escracham a
desvalorização da mulher, pautando-se no sistema capitalista de produção e acumulação de capital.
Ademais, Pereira (2016) refere que as imigrantes que adentram nos EUA possuem filhos e têm em
média 29 anos, contudo, é improvável que todas elas consigam levar sua prole durante o processo de
imigração devido a motivos legais e econômicos. Nessa conjuntura, as imigrantes ainda sofrem por
serem taxadas como mães que abandonaram seus filhos, promíscuas, etc.
Nessa mesma linha, alerta Pereira (2016) que outro aspecto que se alia à vivência imigrante
feminina é a chamada reprodução geracional. Esse tipo de reprodução resulta em um efeito em cadeia
de todo o sistema já posto visto que através da reprodução uma nova geração nascera dentro da
lógica do capitalismo e do trabalho invisibilizado, as quais as mães estão suscetíveis. As gerações
que se desenvolvem inseridas nessa dinâmica, irão reproduzir a sistemática de labor e corresponder
às demandas do sistema. Muitas mulheres imigrantes “socializam milhares de milhares de crianças
num esquema ambíguo de valorização sentimental que nem sempre se expressa na valorização do
trabalho e garantia de direitos, reproduzindo os esquemas de opressão do papel materno no âmbito
da família burguesa” (PEREIRA, 2016, p. 75).
Há uma latente crise de cuidado nos países subdesenvolvidos que obrigam muitas mulheres
a imigrar, o que ocorre é que a saída delas de sua origem sobrecarrega outras mulheres, que
encontram-se no local deixado por elas assumindo a criação de sua prole e dependendo dos esforços
da imigrante para percebimento de renda. Como resultado desse ciclo vicioso tem-se uma falsa
sensação de igualdade de gênero para as mulheres nacionais, mas que perpetua os estereótipos para
as imigrantes. Isso resulta na autorregeneração do sistema econômico, político e social com vistas à
manutenção da feminização da pobreza ultrapassando fronteiras.
A feminização da pobreza é um fenômeno social que cresce alimentando-se da desigualdade de gênero
e faz com que as mulheres assumam o posto de as mais pobres entre os pobres. Por diversos motivos –
percebimento de menores salários, divisão sexual do trabalho, dupla ou tripla jornada de labor no espaço
público e privado, imigração e marginalização, etc. – as mulheres acabam assumindo locais de desvantagem
nas sociedades. Somando-se a isso, a desigualdade de gênero que se originou da sistemática patriarcal
na qual a humanidade está inserida faz com que a feminização da pobreza seja um aspecto importante
e preocupante para os estudos feministas. Embora todos esses aspectos impossibilitem o crescimento
profissional da imigrante em um novo país, os números de mulheres que imigram crescem. Atualmente, o
indivíduo imigrante não é mais somente o homem – ou ainda o homem que carrega consigo a figura passiva
da companheira - e os números apontados no próximo item dessa pesquisa irão corroborar isso.
Para que se possa visualizar em números o tema abordado nessa pesquisa e comparar com
as informações postas acima utilizou-se de uma metodologia de coleta de dados em documentos
internacionais oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU) e da International Organization
of Migration (IOM) para fins de análise quantitativa e posteriormente qualitativa. Em um primeiro
momento, far-se-á investigação de números para averiguar o quantitativo de mulheres que imigram,
observando principalmente o aumento dos números durante a última década. Posteriormente,
a pesquisa intenta analisar esses números de forma qualitativa, relacionando-os com os labores
desempenhados por elas no país de destino e averiguando como o ato de imigrar impacta as vidas
femininas, sob a perspectiva dos estudos de gênero e biopolítica descrita no primeiro tópico.
O International Migrant Stock 2019, estudo realizado pela ONU, aponta um panorama de
imigração elevado comparando números de 1990 a 2019. Logo de início os números chamam a
atenção no estudo uma vez que a partir dos anos noventa houve grande crescimento econômico
mundial e grandes industrias se estabeleceram em locais variados, o que proporcionou aumento
laboral nas mais diversas áreas em todo o globo e ainda movimentou o deslocamento de múltiplos
sujeitos. Nos últimos dez anos (2010-2019) o número de imigrantes subiu 51 milhões, alcançando a
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marca de aproximadamente 272 milhões de pessoas que imigram para múltiplos lugares do mundo,
perfazendo 3,5% da população global (ONU, 2019).
Segundo os dados da ONU, 52% das imigrações ocorridas em 2019 foram de sujeitos homens, ao passo
que 48% delas foram de mulheres. Em sua grande maioria, os indivíduos possuem entre 20 e 64 anos de
idade, nomeada como faixa de idade laboral, quando os sujeitos estão aptos para desempenhar atividades
remuneradas. Se forem examinados os números de mulheres imigrantes desde o marco inicial do estudo, de
1990 até 2019, não se tem grandes disparidades de crescimento visto que em 1990 a porcentagem era de
38%, subindo para 46% entre 2010 à 2017 e aumentando sutilmente em 2019 com 48% nas regiões menos
desenvolvidas, já nas mais desenvolvidas a estimativa sobre para 51,5% (ONU, 2019).
O país de onde mais saem tanto os imigrantes homens quanto as mulheres é a Índia, seguida da
China e do México, sendo que o local de destino da maioria dos imigrantes é a Europa, com cerca de 82
milhões e a América do Norte com 59 milhões (IOM, 2019). Muito embora a categoria de refugiados não
seja objeto desse estudo por ser um grande grupo com diversas peculiaridades, importa mencionar que
de 2010 à 2017 o número de pessoas refugiadas no mundo aumentou em 1,3 milhões, sendo do norte
da África e principalmente da Síria onde mais se tem refugiados buscando novos lugares para viver e
trabalhar, como consequência dos conflitos armados que ocorrem nessas áreas.
Por fazer divisa territorial com a Síria, a Turquia é o país que mais acolhe os refugiados que adentram
no país pela fronteira que separa as duas regiões. Ademais, recentemente a Venezuela também teve um
grande número de pessoas que saíram do país para buscar melhores condições de vida em detrimento
do comando autoritário do governo e das necessidades econômicas que a população vive, muitos,
inclusive, adentrando o Brasil e estabelecendo-se com auxílio do governo e do exército (IOM, 2019).
Em sua grande maioria, imigrantes de ambos os sexos se concentram em poucos locais, culminando
com o aglomeramento de imigrantes em países que acabam por não almejá-los. O documento da ONU
(2019) reflete que em 2019 dois terços dos imigrantes mundiais concentravam-se em apenas 20 países,
superlotando-os. O país com o maior número de imigrantes é os Estados Unidos da América (EUA), ao longo
da história os EUA contam com 51 milhões de pessoas que imigram para lá, totalizando 19% da escala
mundial, na sequencia avista-se Alemanha e Arábia Saudita, com cerca de 13 milhões cada (ONU, 2019).
Essas pessoas imigram com intuito principal de obter renda para enviar para familiares que
ficaram em seu país natal ou ainda buscam conseguir um emprego que possibilite, posteriormente,
trazê-los ao país de destino. Um dado pertinente à pesquisa no estudo da IOM (2019) é a tabela a
qual realça o número de imigrantes homens (male, representado pela letra M) e mulheres (female,
representado pela letra F) que trabalham nos países de destino, apontando números em milhões e
em porcentagem global e ainda avistando os níveis de desenvolvimento de renda dos países desses
países, sendo elas, baixa renda (low-income), renda média-baixa (lower-middle-income), renda média-
alta (Upper-middle-income) e renda alta (high-income):
Os dados acima demonstram que o número de mulheres imigrantes é menor que o de homens
e que a diferença de números diminui nos países com rendas médias, que poderiam propiciar o
desenvolvimento pessoal e profissional desses imigrantes. No entanto, outra possível interpretação
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dos números referentes ao labor também pode se justificar pelo tipo de labor desempenhado visto
que as atividades remuneradas atribuídas às mulheres imigrantes se adequam as condições de
gênero impostas, ou seja, esses labores recaem na invisibilidade do doméstico e na informalidade,
não adentrando nos números oficiais.
Conforme dados da International Organization for Migration (IOM, 2019), o número de mulheres
que imigram está aumentando em diversas localidades, muito embora o aumento dos números não pareça
significativo, essas mulheres vêm conquistando um espaço novo de protagonismo, de luta por sobrevivência
e melhora de vida. Muitas delas se deslocam por questões de trabalho e se tornam as principais responsáveis
pela manutenção da família. Outrossim, o recomeço não é tarefa fácil visto que a dificuldade de conseguir
um emprego pela flagrante desigualdade de gênero que acomete as mulheres do mundo todo faz com
que as imigrantes percebam menores salários do que as mulheres nacionais. Os empregos informais e mal
remunerados são a forma de sustento que essas mulheres encontram nos países que não reconhecem elas
como cidadãs e dignas de amparo social, isso reflete em diversas outras áreas que requerem investimento
monetário, como por exemplo creches para os filhos, alimentação, moradia, saúde.
Empregadas domésticas invisibilizadas, babás, garçonetes, lavadeiras e prostitutas, esses
são os labores que as mulheres imigrantes mais executam quando imigram. Labores de cuidados e
reprodução recaem sobre as mulheres uma vez que elas carregam consigo uma carga histórica de
características de acordo com o gênero, atribuídas pela sistemática patriarcal. O labor doméstico é
a estrutura vital que mantém o sistema capitalista, uma vez que as imigrantes necessitam de uma
atividade remunerada rápida quando adentram em países desconhecidos e as oportunidades são
parcas, acabam por se sujeitarem a qualquer atividade que lhes pague minimamente um salário para
sua manutenção. Todavia, esse labor invisível e pouco remunerado influencia diretamente na vida da
própria mulher, de sua prole e de toda a sua família que está em seu país de origem, a qual muitas
vezes conta com a ajuda financeira percebida pela imigrante, abatendo todo o núcleo familiar em
virtude dessa realidade (NASH, 2012).
A ‘mercantilização das tarefas domésticas e de cuidado’ é um fenômeno que pode ser caracterizado
como global desde finais do século XX e cada vez mais associado às migrantes, as ‘recém chegadas’,
muitas delas convertidas em ‘mães substitutivas da infância global’, fenômenos que para essa
autora renova, o já conhecido debate de traspasso de funções domésticas, sempre e unicamente
entre mulheres (MARINUCCI, 2007, p. 5).
Longe da família, mas muitas vezes carregando sua prole consigo, as mulheres imigrantes
sofrem diversas discriminações nos mais variados locais que adentram: por serem mulheres, pela cor
da pele, por estarem imigrando, por adentrarem em uma cultura diversa da sua que por vezes rechaça
seus costumes, etc., assumindo o papel de vida nua no ato de imigrar, desprovida de direitos. Ainda
assim, o panorama da vivência dessas mulheres no Brasil se mostra positivo em certos aspectos,
principalmente na proteção contra a violência doméstica, no amparo social e na multiplicidade cultural
existente nas terras tupiniquins. Entretanto, obviamente muitas delas padecem da falta de direitos, ou
mesmo do conhecimento desses, do trabalho precário, da falta de reconhecimento de suas atividades
e da (quase) inexistência de amparo trabalhista e previdenciário somados à exploração sofrida.
A falta de visibilidade desses labores é ratificada pelo próprio sistema econômico que rege os
países capitalistas, segundo essa sistemática as mulheres não produzem, efetivamente, um produto
palpável para a economia quando desempenham algumas das funções elencadas acima. Entretanto,
somente o labor doméstico da imigrante que possibilita que muitos homens e mulheres nacionais
possam trabalhar fora de suas casas produzindo mais capital econômico para o país. Mesmo sendo
um fenômeno em cadeia, as atividades realizadas dentro do espaço privado não são consideradas
para fins de valoração de trabalho e de garantia de direitos, fazendo com que as mulheres que ocupam
esses cargos – não somente imigrantes – fiquem a margem social e econômica. Indo além, tal advento
reflete também na economia do país no qual essa imigrante é originária uma vez que não raro essas
mulheres mandam o dinheiro que recebem para os filhos e parentes próximos nesses países.
O advento das agências de trabalhadoras temporárias por meio de contratações terceirizadas
ou informais auxilia na manutenção da mecânica capitalista favorecendo a precarização do trabalho
das imigrantes e fazendo dessas trabalhadoras um grupo de indivíduos em fluxo contínuo entre a
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uma mudança radical no padrão de vida ou decidem partir para modificar a realidade vivida, tal como
a violência doméstica (HANDERSON; JOSEPH, 2015).
Essas mulheres adentram em países completamente distintos dos seus e que impõem uma grande
carga burocrática para validação de diploma e reconhecimento das atividades desempenhada por elas
(HANDERSON; JOSEPH, 2015). Todo esse aparato burocrático é nitidamente um reflexo da relação de
poder entre Estado-imigrante, quando o ente intenta dificultar o acesso da imigrante a opções que
as nacionais possuem, pautando-se na biopolítica. Um exemplo disso é que muitas imigrantes não
possuem o amparo jurídico que necessitam e acabam desistindo da validação de seu diploma – o que
talvez possibilitaria a obtenção de um ofício com melhor remuneração. Outras nem sequer tentam, e
tem ainda as que tentam, mas que o país de destino não reconhece sua formação.
Partindo do prisma que as imigrantes precisam começar a trabalhar tão logo adentram em
outra nação, a burocratização do sistema leva-as laborar no espaço o qual não necessita de nenhuma
formação, o doméstico. Ainda, caso não consigam visto ou o reconhecimento de seu diploma,
muitas imigrantes ficarão presas eternamente aos labores não reconhecidos e “improdutivos”. “Tais
atividades se tornam como uma categoria de trabalho subalterno, reservadas às pessoas que não
podem encontrar um emprego melhor” (HANDERSON; JOSEPH, 2015, p. 13).
A vulnerabilidade das mulheres imigrantes apontada em toda a pesquisa reflete diretamente a
exploração e discriminação sofrida por elas, refletindo a posição de vidas nuas. Esse panorama faz
com que se perdurem as relações de poder e de desigualdade de gênero, perfazendo ainda uma falsa
sensação de autonomia das mulheres nacionais, que exploram as imigrantes tornando o ciclo da
desigualdade repetitivo. Outrossim, o que também viabiliza isso é que as imigrações se desenvolvem
principalmente sob o viés trabalhista considerado um rol de atividades como “responsabilidade masculina”
e tantas outras como as responsabilidades que recaem às mulheres, avistadas em numerosas regiões
conservadoras da mecânica patriarcal. Por fim, até 1990 as mulheres imigrantes eram consideradas
meras alegorias no processo migratório, pois acompanhariam seus companheiros sendo que o ato de
imigrar era majoritariamente masculino, não se podendo negar a modificação do cenário migracional.
Diante das novas construções de redes por mulheres que imigram sozinhas, com outras mulheres,
e/ou com filhos, o cenário com vistas às mulheres imigrantes vêm se modificando qualitativamente
ao longo dos últimos vinte anos, mesmo que ainda precário com relação à valorização do labor
desempenhado por elas. Muitos são os aspectos que envolvem essas vidas, alguns abordados aqui e
outros que fogem a pesquisa, no entanto, o que se vislumbra através de números, dados e estudos é
que as mulheres imigrantes sofrem de diversos flagelos advindos das próprias mulheres, dos homens
e do Estado, ratificando a condição vulnerável e precária que assume ao imigrar.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Mesmo que a vida melhore em um sentido econômico, essas mulheres acabam mantendo o
ciclo vicioso que se retroalimenta de mulheres no âmbito privado. A falsa sensação de autonomia e
empoderamento faz com que as mulheres nacionais possam sair para trabalhar fora de casa enquanto
outras mulheres atuam nesse lugar vazio. Somando-se a isso, a parca remuneração e a falta de garantias
fazem com que a desigualdade de gênero cresça pelas mãos das próprias mulheres, resultando na
feminização da pobreza e no reforço da invisibilidade do labor doméstico.
Por fim, paradoxalmente, se de um lado a mulher se encontra mais independente e empoderada
por migrar sozinha, sem vinculação à figura do homem; por outro, ela ainda padece de diversos tipos
de subalternidade, desempenhando as atividades que outra mulher deixou de fazer. Esse cenário
aponta que a desigualdade de gênero, aliada a muitas outras, faz da mulher imigrante uma vida
nua em sua condição maior, pois não padece apenas pelas mãos do patriarcado, mas também pelo
sistema econômico e pelas próprias mulheres nacionais do país de destino.
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Fernanda Parussolo35
Dieniffer Portela Perotto Lopes36
RESUMO: o presente trabalho tem como objetivo relatar acerca da violência de gênero, onde
historicamente as mulheres são posicionadas em uma relação de poderes desiguais, discriminadas e
subjugadas por questões de gênero. Averiguar fatores que em situação de isolamento social levam à
maiores índices de violência doméstica, bem como se o convívio ofensor e vítima é uma perspectiva
agravante e como afeta o direito a dignidade humana. Examinar como a pandemia da Covid-19 chama
a atenção para os casos de violência contra a mulher.
INTRODUÇÃO
A história das mulheres sempre foi marcada por lutas pelo reconhecimento de direitos iguais,
por buscas e questionamentos, divergências, antagonismos, enfim, por processos dinâmicos de
construção e reconstrução, inicialmente objetivando apenas a sobrevivência individual, para depois
gradativamente se voltar para a vida em sociedade e para o coletivo.
A mulher desde a origem das civilizações, ocupou um papel de subordinação e submissão, era
tida como mero objeto, o que hoje ainda faz com que alguns homens acreditem poder dispor de seus
corpos e de suas vidas.
No percorrer da história do ser humano, denota-se que se faz necessário modificações no
35 Fernanda Parussolo. Bacharela em Direito. Mestranda em Direitos Humanos pela Unijuí. E-mail: feparussolo@hotmail.com
36 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, no
campus de Ijuí – RS, 2019. Advoagada. E-mail: advdieni@gmail.com
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emocionar, uma vez que este faz o ser humano se estabilizar. Logo, as mudanças culturais estão
correlacionadas a conversões do indivíduo em comunidade.
Deste modo, se faz necessária a compreensão do surgimento do patriarcado, assim, segundo
Humberto Maturana e Gerda Verden-zoller (2015, p. 13)
Disso tudo, concluímos que o patriarcado surgiu exatamente assim: como uma alteração na
configuração do emocionar que constituía o fundamento relacional da cultura matrística pré-
existente. Daí resultou uma mudança no modo de pensar, degustar, ouvir, ver, temer, desejar,
relacionar-se..., em suma, nos valores mantidos geração após geração. Isto é, segundo pensamos,
o patriarcado surgiu por meio de uma modificação no espaço psíquico em que viviam e se
desenvolviam as crianças.
Para Bourdieu (2017), o mundo predetermina que a mulher seja sexualmente hierarquizada,
sendo lançado a essas mulheres ordens, tendo de aceitá-las de forma natural e inquestionáveis,
assim, impondo ordem aos corpos. Por conseguinte, fazem que a mulher desde criança saiba que sua
posição perante o homem é a de obedecer. Para o autor, é “através do adestramento dos corpos que
se impõem as disposições mais fundamentais, as que tornam ao mesmo tempo inclinados e aptos a
entrar nos jogos sociais mais favoráveis ao desenvolvimento da virilidade: a política, os negócios, a
ciência etc.” (BOURDIEU, 2017, p. 83)
De tal modo, a Igreja intervia nas relações de homens e mulheres. A mulher era considerada como
um símbolo de desobediência. Logo, via a figura masculina e patriarcal, tendo como um objetivo limitar
a figura de autonomia da mulher, levando a ela o espaço sagrado da maternidade. (NIELSSON, 2018)
Assim, as mulheres eram consideradas instrumentos da vontade de Deus. Desse modo, para a
autora Karina Kosicki Belloti (2007), desde o triunfo do cristianismo no Império Romano, a cultura
patriarcal judaico-cristã modelou os papéis sociais de homens e mulheres, santificando a opressão
masculina e a inferiorização feminina.
O patriarcado impõe-se como uma forma rigorosa, que deprecia a mulher, deixando de lhe
atribuir um valor para além da serventia da procriação. Nas palavras de Peter N. Stearns (2007, p. 32):
Nas sociedades patriarcais, os homens eram considerados criaturas superiores. Tinham direitos
legais que as mulheres não possuíam [...] estabelecia que uma mulher que não - tenha sido uma
dona de casa cuidadosa, tenha vadiado, negligenciado sua casa e depreciado seu marido‖ deveria
ser - jogada na água.
Logo, a desigualdade entre homens e mulheres veem sendo concretizada desde a origem das
civilizações, constando-se que homens e mulheres já nasciam com seus papeis sociais materializados
em razão de seu gênero, o que fez com que os homens fossem considerados superiores.
Ademais, a cultura histórica do patriarcado fez com que surgissem as diferenças de gênero,
onde, fica pré-determinado desde criança o papel de cada um, dessa forma, segundo os autores
Maturana e Verden-zoller (2015, p. 15):
Assim, ao falar da origem do patriarcado, mostramos que ele é um modo de emocionar que
pode ser vivido de muitas formas. Se não reconhecermos esse aspecto, podemos confundi-lo
com símbolos, ideias, instituições ou comportamentos específicos. Desse modo, permaneceremos
insensíveis ao que acontece na infância, e não perceberemos que é a vivência das emoções
aprendida pelas crianças que leva à conservação do patriarcado como modo de emocionar.
Dessa maneira, o homem tinha como ideia que seu papel era trazer o dinheiro para casa e garantir o
sustento familiar, enquanto a mulher deveria obedecer e cuidar da casa. Na opinião Bourdieu (2017, p. 24):
A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação
masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão sexual do trabalho, distribuição bastante estrita das
atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é
a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e
a casa, reservada às mulheres; ou no próprio lar, entre a parte masculina, com o salão, e a parte
feminina com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, as atividades do dia, o ano
agrário, ou o ciclo de vida, com momento de ruptura, e longos períodos de gestação, femininos.
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Destarte, o autor Bourdieu (2017) explica autenticidade do poder masculino que a própria
sociedade testemunha de forma aceitável, sendo apreendida nas vivências sociais a cada um a ideia da
dominação masculina, de modo que a figura do feminino seja considera frágil e incapaz. Desse modo,
Chartier, citado por Losandro Tedeschi (2008, p.18), relata em seu contexto a noção de apropriação
conforme a história cultural, afirmando que “a apropriação, tal como entendemos, tem por objetivo
uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais [que são
sociais, institucionais e culturais] e inscritas nas práticas específicas que as produzem.
Logo, o homem com seu sentimento de posse da mulher, cobrava que esta exercesse o trabalho
de dona de casa e mãe, sacrificando os seus interesses pessoais em nome família. Como a função era
cuidar da família era impossível que as mulheres conseguissem realizar desejos pessoais ou ainda se
profissionalizar, nunca a mulher poderia ser considerada de mais sucesso que seu marido, deveria dar
apoio e prestigiar o sucesso do marido.
Consequentemente, tendo sido a história contada pelo homem, a exclusão da mulher foi
naturalizada, tornando-se assim uma sociedade preconceituosa, tendo em vista que desta exclusão
fez com que surgisse uma das maiores consequências destas relações hierárquicas entre os gêneros,
que é a violência moral (psíquica) ou, física.
Consequentemente, os seres humanos já passam a ter seus papéis traçados, logo, a dinâmica racional
fez com o sistema produzisse as consequências, dessa forma Maturana Verden-zoller (2015, p.17):
Assim, Bourdieu (2017) explica a dominação masculina, como uma autêntica forma de poder
que a própria sociedade admite, sendo apreendida com naturalidade nas trajetórias sociais. Nesse
sentido, Scott, citado por Tedeschi (2008), relata que a necessidade da existência de uma história das
mulheres a ser escrita, deve abordar uma noção de representação e dominação, da desigualdade de
poder na história dada pela dominação masculina.
A violência contra as mulheres preocupa a todos, a brutalidade com que são tratadas diariamente
tem sido alarmante, quando não deixada com marcas, ignorada pelo povo, pois, diante de tanta
violência passa a ser um mal menor.
Dessa forma, segundo Karen Alonso Zayas (2015, p.90):
La violencia de género es consecuencia de las normas, valores, roles y estereotipos que se aprenden
como parte del proceso de socialización del género. Dicha socialización se basa en relaciones
desiguales entre mujeres y hombres que determinan posiciones antagónicas con relación a la
distribución del poder en el ámbito público y privado.
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que ocorre em situação de coabitação ou afetividade, torna-se motivo de alerta para governos. De
acordo com o PNUD (2020), a perspectiva de agravamento da situação é dada por fatores como o
maior tempo de convívio entre agressor e vítima, o maior número de conflitos cotidianos, a falta
de momentos rotineiros de afastamentos, que interrompem a violência prolongada, e a sensação
de impunidade do agressor.
Logo, com a pandemia do coronavírus, muitas medidas de prevenção foram tomadas, como o
isolamento social, o que restou em diversas mudanças em nossa sociedade, assim, uma das consequências
desta condição é a violência baseada no gênero, vivenciadas por muitas mulheres em todo o mundo.
Assim, segundo Joana Alencar, Paola Stuker, Carolina Tokarski, Iara Alves e Krislane de Andrade
(2020, p.07):
De tal maneira, o que se visualiza é que além da agressão física, também há a violência psíquica,
onde a estrutura mental da mulher fica abalada, por não se achar suficiente para desempenhar seu
papel, assim, nas palavras de Karen Alonso Zayas (2015, p.92):
En los coercitivos, el hombre usa la fuerza moral, psíquica o de su propia personalidad para intentar
someter a la mujer. Son mecanismos que tienen efecto porque provocan un profundo sentimiento
de derrota al comprobar, con posterioridad, la pérdida, ineficacia o falta de fuerza y capacidad para
defender las propias decisiones o razones. Sus consecuencias son la inhibición, desconfianza en sí
misma y disminución de la autoestima. Expresiones de este tipo de micromachismo son la intimidación,
la toma repentina del mando, la insistencia abusiva5 y la apelación al argumento lógico
Hoje,o que torna tudo ainda mais delicado é a realidade que enfrentamos causada pelo COVID-19,
fazendo com que a sociedade se volte única e exclusivamente para o ambiente doméstico
como fonte de segurança, saúde e cuidado.Os níveis de violência doméstica aumentaram
exponencialmente quando mulheres precisaram aderir a quarentena frente a uma das maiores
crises sanitárias já vistas mundialmente.
Assim, nas palavras de Emanuele Souza Marques, Claudia Leite de Moraes, Helena Hasselmann,
Suely Ferreira Deslandes e Michael Eduardo Reichenheim (2020, p.02), o afastamento das mulheres
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de familiares e amigos, as faz em situação de vulnerabilidade, uma vez que quanto mais afastada,
menores as chances de denúncias pelas vítimas:
Logo, o que se pode notar que as mulheres têm sofrido mais intensamente a violência baseada
no gênero cometida por companheiros à medida que a pandemia da Covid-19 se espalha pelos países
e elas são colocadas em isolamento social com seus agressores, assim, segundo os autores Emanuele
Souza Marques, Claudia Leite de Moraes, Helena Hasselmann, Suely Ferreira Deslandes e Michael
Eduardo Reichenheim (2020, p.02)
Na dimensão individual, podem ser estopins para o agravamento da violência: o aumento do nível de
estresse do agressor gerado pelo medo de adoecer, a incerteza sobre o futuro, a impossibilidade de
convívio social, a iminência de redução de renda - especialmente nas classes menos favorecidas, em
que há grande parcela que sobrevive às custas do trabalho informal -, além do consumo de bebidas
alcoólicas ou outras substâncias psicoativas. A sobrecarga feminina com o trabalho doméstico e o
cuidado com os filhos, idosos e doentes também pode reduzir sua capacidade de evitar o conflito
com o agressor, além de torná-la mais vulnerável à violência psicológica e à coerção sexual. O
medo da violência também atingir seus filhos, restritos ao domicílio, é mais um fator paralisante
que dificulta a busca de ajuda. Por fim, a dependência financeira com relação ao companheiro em
função da estagnação econômica e da impossibilidade do trabalho informal em função do período
de quarentena é outro aspecto que reduz a possibilidade de rompimento da situação.
No tocante da pandemia, vemos que a convivência de longa data e restritiva gerada pelo
isolamento social não atua como uma das causas das situações de violência, mas sim, de um modo
agravante, o que seria responsável pelo aumento das incidências neste contexto, sobretudo porque
essa forma de violência tem na esfera doméstica o seu ponto central, logo, as chances por cônjuges
manter-se em mesmo ambiente doméstico aumenta as probabilidades de casos de violência doméstica.
Assim, além de todos os enfrentamentos da vítima de violência, ainda há de e pensar no
atendimento da mesma, o que é mais dificultoso durante esse período, segundo Joana Alencar, Paola
Stuker, Carolina Tokarski, Iara Alves, Krislane de Andrade (2020, p.08):
Além dos fatores envolvendo as dinâmicas internas da violência doméstica e familiar contra
mulheres, o impacto da quarentena na prestação dos serviços de atendimento e enfrentamento a
situações de violência doméstica como as instituições de segurança pública e justiça e assistência
social também são fatores agravantes. Ao seu turno, a dificuldade de acesso às instituições de
saúde, que neste contexto trabalham em regime prioritário aos casos de Covid-19, é um elemento
a ser considerado nesta conjuntura.
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o dizer: Denuncie a violência doméstica. Para algumas famílias, o isolamento está sendo ainda mais
difícil”, essa campanha no intuito de abordar não tão somente a violência contra a mulher, mas
também contra idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes.
Segundo a ministra Damares Alves (2020): “Com a decretação de quarenta em vários municípios,
vítimas e agressores passaram a viver juntos 24 horas”, ainda continuou que “Vamos ter que encarar
a violência doméstica durante a pandemia. E de que forma a gente encara? Denunciando. Esse é o
objetivo da campanha”
Ademais, Raquel Montalvão (2020) relata que:
Ainda assim, Joana Alencar, Paola Stuker, Carolina Tokarski, Iara Alves, Krislane de Andrade
relata (2020, p.14)
Por sua vez, o foco das ações em aplicativos que dependem de celulares com tecnologia avançada e nas
mídias sociais deixa de lado as mulheres que não têm acesso a estas tecnologias e à internet. Um olhar
comparativo entre os países da Europa, onde esse tipo de medida também foi adotada, e o Brasil revela
diferentes possibilidades de alcances às mulheres. Enquanto no continente europeu a taxa de acesso à
internet chega a 100% em algumas regiões,27 no Brasil 71% dos domicílios possuem esse recurso.
Nesse contexto, denota-se que o isolamento social tem sido uma medida necessária para evitar as
taxas de transmissão de contaminação pela Covid-19, logo, diminuindo o crescimento de contaminação.
Nesse sentido, as medidas mitigatórias e de enfrentamento a essa violência devem, em paralelo, serem for-
talecidas e se adaptarem neste contexto. A compreensão do fenômeno, a observação do cenário internacio-
nal, a apreensão das ações anunciadas pelo governo federal orientam recomendações às políticas públicas
brasileiras no que concerne ao enfrentamento da violência doméstica em tempos de isolamento social.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a chegada da pandemia do coronavírus, pode-se dizer que a população do mundo, tem
sido testemunha da história e dos efeitos negativos sobre as suas vidas, compreendidas individual ou
coletivamente num todo perante sociedade.
No entanto, com a pandemia a população mundial tem vivido uma experiência extrema, assim,
a pandemia trouxe uma tarefa/ dever de uma reorientação sobre o foco da política pública no sentido
de estabelecer linhas de diálogos entre as instituições e as mulheres em situação de vulnerabilidade
dentro de suas próprias casas, isto é, para que seja necessário o reconhecimento dos movimentos
de mulheres, onde as mesmas demandavam a desmitificação do espaço doméstico e a necessária
intervenção sobre violências praticadas no lar.
Portanto, com a demonstração de aumentos de violência contra a mulher, há a necessidade de
voltar-se para os objetivos extrapenais de acolhimento e assistência das vítimas e para medidas de
prevenção da violência doméstica contra a mulher. Por fim, este seja um caminho para conferir maior
proteção às mulheres sujeitas, neste momento, a pandemias concomitantes.
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INTRODUÇÃO
Com o passar dos anos percebe-se grande avanço em diversos fatores envolventes em nossa
sociedade assim como nota-se cada vez maior preocupação quanto à criança e o adolescente quando
voltado para o estupro e a exploração sexual como sujeitos de direitos.
Desta forma a situação tem gerado enorme “caos” fazendo com que seja trabalhado e avançado sua
forma de conscientização na sociedade em um contexto geral tornando de certa forma obrigatório o ato.
Na realização da mesma será feito o uso do método de abordagem hipotético-dedutivo, observando
a seleção de bibliografia e documentos afins à temática e na Internet, interdisciplinares, capazes e
suficientes para que o pesquisador construa um referencial teórico coerente sobre o tema em estudo.
Assim, será apontado o amparo legal aparente voltado para a Criança e o Adolescente bem como
conceitos de abuso sexual e estupro como sujeitos de proteção integral.
37 Bacharel em Direito pela Unicruz -RS, Aprovada no VII Exame de Ordem - OAB/RS nº 87603, Pós-Graduada em Direito
Previdenciário pela Universidade Anhanguera - UNIDERP-MS, Idioma Inglês - Wizard W6 em andamento, Mestranda em Direito
pela UNIJUÍ - RS – paulabap@oberto.com.br.
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“[...] me parece que a locução proteção integral seja auto-explicativa [...] Proteção Integral exprime
finalidades básicas relacionadas às garantias do desenvolvimento saudável e da integridade,
materializadas em normas subordinantes que propiciam a apropriação e manutenção dos bens da
vida necessários para atingir destes objetivos.” (PAULA, 2002, p.31).
A Doutrina da Proteção Integral veio contrapor a Doutrina da Situação Irregular então vigente
instituída pelo Código de Menores de 1979, “[...] onde a criança era vista como problema social, um
risco à estabilidade, às vezes até uma ameaça à ordem social [...] a infância era um mero objeto de
intervenção do Estado regulador da propriedade [...]”. Assim, a doutrina da situação irregular não
atingia a totalidade de crianças e adolescentes, mas somente destinava-se àqueles que representavam
um obstáculo à ordem, considerados como tais, os abandonados, expostos, transviados, delinquentes,
infratores, vadios, pobres, que recebiam todos do Estado à mesma resposta assistencialista, repressiva
e institucionalizante. (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 68).
Pela nova ordem estabelecida, criança e adolescente são sujeitos de direitos e não simplesmente
objetos de intervenção no mundo adulto, portadores não só de uma proteção jurídica comum que é
reconhecida para todas as pessoas, mas detém ainda uma “supraproteção ou proteção complementar
de seus direitos”. (BRUNÕL, 2001, p.92). A proteção é dirigida ao conjunto de todas as crianças e
adolescentes, não cabendo exceção.
Ademais, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente tem-se que:
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos,
e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas
entre dezoito e vinte e um anos de idade.
Assim, com base na supremacia que o valor da dignidade da pessoa humana recebeu na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, foi inaugurado um sistema especial de
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proteção à infância, expressamente referido no parágrafo 3º do artigo 227, também no artigo 228,
artigo 226, caput §§ 3º, 4º, 5º e 8º e 229, primeira parte da CF/88. Ainda, XXX e XXXIII do artigo 7º, e
§ 3º do artigo 208.Extrai-se do art. 227 da Constituição Federal e art. 4º do Estatuto da Criança e do
Adolescente que o dever de assegurar este sistema especial de proteção cabe à família, comunidade,
sociedade em geral, poder público, que o farão com absoluta prioridade.
A Proteção Integral é defendida pela ONU (Organização das Nações Unidas) com base na
Declaração Universal dos Direitos da Criança havendo um reflexo direto do que está em nossa Carta
Magna de 1988 em seus Artigos 227 e 228. Vide artigos da Carta Magna de 1988:
Art. 227 Caput. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).
Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da
legislação especial.
De acordo com a Proteção Integral prevista no ECA as crianças e os adolescentes são sujeitos de
direitos e são também pessoas em desenvolvimento por isso é necessário medidas políticas e normas
de proteção especial (LIBERATI, 2003).
Liberati (2003) entende prioridade absoluta como estar a criança e o adolescente em primeiro
lugar na escala de preocupações dos governantes, que em primeiro lugar devem ser atendidas as
necessidades das crianças e adolescentes. Exemplifica:
Por absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existirem creches,
escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias
e trabalho, não se deverão asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos
etc, porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de
concreto, que ficam para demonstrar o poder do governante. (LIBERATI, 2003. p. 47).
A lei ordinária nº 8.069/90, no parágrafo único do artigo 4º, detalhou a garantia da prioridade
absoluta como sendo: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na
formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos
públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Outra base que sustenta a nova doutrina é a compreensão de que crianças e adolescentes estão
em peculiar condição de pessoas humanas em desenvolvimento, encontram-se em situação especial e
de maior vulnerabilidade, ainda não desenvolveram completamente sua personalidade, o que enseja
um regime especial de salvaguarda, o que lhes permite construir suas potencialidades humanas em
plenitude (MACHADO, 2003).
Neste sentido, afirma Machado (2003) que o direito peculiar de crianças e adolescentes
desenvolver sua personalidade humana adulta integra os direitos da personalidade e é relevante
tal noção por estar ligada estruturalmente a distinção que os direitos das crianças e adolescentes
recebem do texto constitucional.
“[...] sustento, pode-se afirmar, ao menos sob uma ótica principiológica ou conceitual, que a
possibilidade de formar a personalidade humana adulta – que é exatamente o que estão “fazendo”
crianças e adolescentes pelo simples fato de crescerem até a condição adulta – há de ser reconhecida
como direito fundamental do ser humano, porque sem ela nem poderiam ser os demais direitos da
personalidade adulta, ou a própria personalidade adulta.” (MACHADO, 2003, p. 110).
Entretanto, frisa a autora, que a personalidade infanto-juvenil não é valorizada somente como
meio de o ser humano atingir a personalidade adulta, isto seria um equívoco, uma vez que a vida
humana tem dignidade em si mesma, em todos os momentos da vida, seja no mais frágil, como no
momento em que o recém-nascido respira, seja no momento de ápice do potencial de criação intelectual
de um ser humano. Assim, o que gera e justifica a positivação da proteção especial às crianças e
adolescentes não é meramente a sua condição de seres diversos dos adultos, mas soma-se a isto a
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
maior vulnerabilidade destes em relação aos seres humanos adultos, bem como a força potencial que a
infância e juventude representam à sociedade (MACHADO, 2003). Ocorre que a efetivação dos direitos
fundamentais de cidadania pressupõe a criação de um Sistema de Garantia de Direitos, que atue na
perspectiva da promoção, da defesa e do controle. Este direito deve ser produzido na sociedade, onde
se experimenta um intenso processo de correlações de forças, considerando a histórica postura de
negligência e arbitrariedade com crianças e adolescentes no Brasil (MACHADO, 2003).
A Doutrina da Proteção Integral instaurou um sistema especial de proteção, delineando direitos
nos artigos 227 e 228 da Constituição brasileira, tornando crianças e adolescentes sujeitos dos
direitos fundamentais atribuídos a todos os cidadãos e ainda titulares de direitos especiais, com base
na sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento (MACHADO, 2003).
Machado (2003) afirma serem os direitos elencados no caput do artigo 227 e 228 da CF/88
também direitos fundamentais da pessoa humana, pois o direito à vida, à liberdade, à igualdade
mencionados no caput do artigo 5º da CF referem-se a mesma vida, liberdade, igualdade descritas
no artigo 227 e § 3º do artigo 228, ou seja, tratam-se de direitos da mesma natureza, sendo todos
direitos fundamentais.
Porém, os direitos fundamentais de que trata o artigo 227 são direitos fundamentais de uma pessoa
humana de condições especiais, qual seja pessoa humana em fase de desenvolvimento. Neste sentido,
Bobbio (2002, p.35) aponta como sendo singular a proteção destinada às crianças e adolescentes:
Se se diz que “criança, por causa de sua imaturidade física e intelectual, necessita de uma proteção
particular e de cuidados especiais”, deixa-se assim claro que os direitos da criança são considerados
como um ius singulare com relação a um ius commne; o destaque que se dá a essa especificidade
do genérico, no qual se realiza o respeito à máxima suum cuique tribuere. (grifo do autor).
Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer
atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as
exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da
criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Considerando que negligência é descuido, incúria, desleixo, estes agentes sociais são
negligenciados de várias formas, que passam pela família, pelas relações de trabalho, por vários
níveis da vida em sociedade e, no limite, pelo Estado. Qualquer tipo de ação que não atenda às suas
necessidades básicas de alimentação, moradia, educação, saúde, lazer constitui descuido, incúria e
desleixo e é, portanto, considerada negligência (MACHADO, 2003).
A criança e o adolescente sofrem discriminação, ou seja, sofrem por atos de diferenciação que
os estigmatizam. Ao contrário do que se propala, que socialmente estariam guindados à categoria de
cidadãos, na prática, não são nada mais que cidadãos de segunda classe. Esta situação se agrava se
pertencerem às camadas mais pauperizadas da população - o que significa a grande maioria - e, mais
ainda, se forem negros (MACHADO, 2003).
A exploração na família, no trabalho, que as crianças e adolescentes sofrem, está ligada à intenção de
deles tirar proveito. As vítimas em que se transformam está demonstrado em pesquisas que se fazem no
meio acadêmico, que tenham como objeto as relações familiares, relações de trabalho, criança e adolescente
em estado de carência, abandono, ou ainda aquelas que estudam maus-tratos e violência (MACHADO, 2003)
Interpretar e aplicar a lei são tarefas distintas, pois a aplicação pressupõe o conhecimento do
sentido e alcance da norma jurídica, portanto, prévia interpretação. Por esta razão a ciência do direito
não pode prescindir de métodos de interpretação da lei para sua justa e perfeita aplicação. Tendo
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isso em vista, muitos legisladores tomam a precaução de inserir o método de interpretação no próprio
texto legal, como forma de orientar o juiz, aquele que precisa compreender o intuito da lei e o seu
alcance antes de aplicá-la. Este artifício está presente, por exemplo, no artigo 5º da Lei de Introdução
ao Código Civil, que assim dispõe: na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum. O artigo 6º do ECA, por sua vez, é igualmente fruto
deste recurso. Inspirado no mencionado artigo 5º da Lei de Introdução, prega que a interpretação do
Estatuto leve em conta os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum. Não existe
norma que não contenha uma finalidade social imediata. Entende-se por fim social o objetivo de
uma sociedade, a somatória de atos que constituíram a razão de sua composição, abrangendo assim
seus anseios, o equilíbrio de interesses, etc. Ademais, entende-se por elementos do bem comum a
liberdade, a paz, a justiça, a segurança, a utilidade social e a solidariedade. Mas além dos fins sociais
e das exigências do bem comum, o artigo 6º preconiza que na interpretação do ECA também sejam
considerados a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento e
os direitos e deveres individuais e coletivos (MACHADO, 2003).
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente observa-se que a partir dos Artigos 225
e 226 tem-se os crimes e as infrações administrativas, in verbis:
Art. 225. Este Capítulo dispõe sobre crimes praticados contra a criança e o adolescente, por ação
ou omissão, sem prejuízo do disposto na legislação penal.
Art. 226. Aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e,
quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal.
A tutela penal desse grupo vulnerável não se verifica apenas no ECA, que é o diploma legal
específico, mas, no próprio Código Penal, percebemos que o legislador dispensou a devida proteção
ao menor, de modo geral, quando também se encontra na posição de destinatário de um injusto
penal. A criança e o adolescente gozam de proteção penal porque, além de serem considerados um
grupo vulnerável, a eles é garantida a proteção integral não por força do direito penal, em si, mas da
própria CRFB, que obriga a punir severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e
do adolescente (artigo 227, § 4º). Isso significa que, quando o constituinte tomou para si o dever de
tutela do menor, a fim de proporcionar as condições necessárias ao seu desenvolvimento completo,
não se referia apenas à promoção de políticas públicas que visassem a esse fim, mas também ao
cerceamento das condutas delituosas envolvendo menores pela via do direito penal, criando tipos
penais específicos. Àquelas condutas mais graves, em especial as que atingem o desenvolvimento
saudável da criança e do adolescente, o legislador apostou na repressão criminal como forma de
inibi-las. O capítulo dos crimes contra a criança e o adolescente, no referido estatuto, dispõe dobre
os delitos por ação ou omissão, sem prejuízo do disposto na legislação penal (cf. ECA, artigo 225).
Aplicam-se aos crimes do ECA todas as normas da Parte Geral do Código Penal e, no que tange ao
processo, as normas pertinentes ao Código de Processo Penal (ECA, artigo 226), sendo importante
frisar que todos os crimes nele previstos são de ação pública incondicionada (ECA, artigo 227).
Isso, porém, não significa que exista substancial diferença, em termos processuais, entre os crimes
previstos no Código Penal e os crimes previstos no ECA. Refere-se, contudo, ao fato de que o processo
e o julgamento dos crimes previstos na Lei nº 8.069/90 só serão de competência do juízo da infância
e da juventude no que se refere às infrações administrativas, como prevê o artigo 148, VI do ECA. Em
geral, a competência para processar e julgar esses crimes fica a cargo do juízo criminal, a não ser que
exista disposição em contrário na Lei de Organização Judiciária local.
O abuso sexual contra crianças e adolescentes tem sido considerado um grave problema de saúde
pública, devido aos altos índices de incidência e às sérias consequências para o desenvolvimento
cognitivo, afetivo e social da vítima e de sua família (Gonçalves & Ferreira, 2002; Habigzang &
Caminha, 2004; Osofsky, 1995). Esta forma de violência pode ser definida como qualquer contato
ou interação entre uma criança ou adolescente e alguém em estágio psicossexual mais avançado do
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desenvolvimento, na qual a criança ou adolescente estiver sendo usado para estimulação sexual do
perpetrador. A interação sexual pode incluir toques, carícias, sexo oral ou relações com penetração
(digital, genital ou anal). O abuso sexual também inclui situações nas quais não há contato físico, tais
como voyerismo, assédio e exibicionismo. Estas interações sexuais são impostas às crianças ou aos
adolescentes pela violência física, ameaças ou indução de sua vontade. (Azevedo & Guerra, 1989;
Thomas, Eckenrode & Garbarino, 1997).
O abuso sexual também pode ser definido, de acordo com o contexto de ocorrência, em diferentes
categorias. Fora do ambiente familiar, o abuso sexual pode ocorrer em situações nas quais crianças e
adolescentes são envolvidos em pornografia e exploração sexual (Amazarray & Koller, 1998; Koller,
Moraes & Cerqueira-Santos, 2005). No entanto, a maioria dos abusos sexuais cometidos contra crianças
e adolescentes ocorre dentro de casa e são perpetrados por pessoas próximas, que desempenham
papel de cuidador destas. Nesses casos, os abusos são denominados intrafamiliares ou incestuosos
(Braun, 2002; Cohen & Mannarino, 2000a; Habigzang & Caminha, 2004; Koller & De Antoni, 2004).
Dessa forma, as relações sexuais, mesmo sem laços de consanguinidade, envolvendo uma criança
e um adulto responsável (tutor, cuidador, membro da família ou familiar à criança) são consideradas
incestuosas (Azevedo, Guerra & Vaiciunas, 1997; Cohen & Mannarino, 2000a; Thomas & cols., 1997).
Isto inclui madrastas, padrastos, tutores, meio irmãos, avós e até namorados ou companheiros que
morem junto com o pai ou a mãe, caso eles assumam a função de cuidadores (Forward & Buck, 1989).
A familiaridade entre a criança e o abusador envolve fortes laços afetivos, tanto positivos quanto
negativos, colaborando para que os abusos sexuais incestuosos possuam maior impacto cognitivo
comportamental para a criança e sua família (Furniss, 1993; Habigzang & Caminha, 2004).
O abuso sexual pode afetar o desenvolvimento de crianças e adolescentes de diferentes formas, uma
vez que algumas apresentam efeitos mínimos ou nenhum efeito aparente, enquanto outras desenvolvem
graves problemas emocionais, sociais e/ou psiquiátricos (Heflin & Deblinger, 1996/1999; Saywitz,
Mannarino, Berliner & Cohen, 2000). O impacto do abuso sexual está relacionado a fatores intrínsecos
à criança, tais como, vulnerabilidade e resiliência (temperamento, resposta ao nível de desenvolvimento
neuropsicológico) e a existência de fatores de risco e proteção extrínsecos (recursos sociais, funcionamento
familiar, recursos emocionais dos cuidadores e recursos financeiros, incluindo acesso ao tratamento).
Algumas consequências negativas são exacerbadas em crianças que não dispõem de uma rede de apoio
social e afetiva (Brito & Koller, 1999; Saywitz & cols., 2000). Os fatores que influenciam o impacto do
abuso sexual são: saúde emocional prévia, crianças com saúde emocional positiva antes do abuso
tendem a sofrer menos efeitos negativos; tipo de atividade sexual, alguns dados sugerem que formas
de abuso mais intrusivas, como a penetração, resultam em mais consequências negativas; duração e
frequência dos episódios abusivos; reação dos outros, a resposta negativa da família ou dos pares à
descoberta do abuso acentuam efeitos negativos (família, amigos e juízes atribuindo a responsabilidade à
criança); dissolução da família depois da revelação; criança responsabilizando-se pela interação sexual; e,
quando a vítima recebe recompensa pelo abuso e o perpetrador nega que o abuso aconteceu (Amazarray
& Koller, 1998; Deblinger & Heflin, 1992/1995; Gabel, 1997; Mattos, 2002; Rouyer, 1997). Apesar da
complexidade e da quantidade de variáveis envolvidas no impacto do abuso sexual na criança, esta
experiência é considerada um importante fator de risco para o desenvolvimento de psicopatologias
(Saywitz & cols., 2000). A literatura aponta que crianças ou adolescentes podem desenvolver quadros
de depressão, transtornos de ansiedade, alimentares, dissociativos, hiperatividade e déficit de atenção
e transtorno de personalidade borderline. Entretanto, a psicopatologia decorrente do abuso sexual mais
citada é o transtorno do estresse pós-traumático (Cohen, Mannarino & Rogal, 2001; Duarte & Arboleda,
2004; Habigzang & Caminha, 2004; Heflin & Deblinger, 1996/1999). Além disso, estas podem apresentar
crenças disfuncionais envolvendo sentimento de culpa, diferença em relação aos pares e desconfiança
(Cohen & Mannarino, 2000b). Alguns estudos epidemiológicos têm sido desenvolvidos com os objetivos
de investigar a incidência e a prevalência do abuso sexual, bem como analisar indicadores psicológicos
e sociais associados a este fenômeno. Os resultados têm apontado que a maioria dos abusos sexuais
contra crianças e adolescentes ocorre dentro das casas da vítima e configuram-se como abusos sexuais
incestuosos, sendo que o pai biológico e o padrasto aparecem como principais perpetradores. Ocorre,
também, uma maior prevalência em meninas, principalmente entre os abusos incestuosos. A idade de
início é bastante precoce, sendo que a maioria se concentra entre os 5 e os 8 anos de idade. A mãe é
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a pessoa mais procurada na solicitação de ajuda e a maioria dos casos é revelada pelo menos um ano
depois do início do abuso sexual (Braun, 2002; Cohen, 1997; Caminha, Habigzang & Bellé, 2003; De
Lorenzi, Pontalti & Flech, 2001; Kristensen, Oliveira & Flores, 1999). Estes resultados são relevantes para
o desenvolvimento de políticas públicas eficazes para prevenção e tratamento.
Estupro é um crime previste no artigo 213 do Código Penal brasileiro, onde é protegida
a dignidade sexual da pessoa humana, baseando-se na dignidade da pessoa humana prevista na
Constituição Federal de 1988. “O crime de estupro consiste no fato de o agente “constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele
se pratique outro ato libidinoso” (CP, art. 213, caput)”. Entende-se por violência o emprego de força
física e por ameaça a promessa da prática de um mal a alguém. Trata-se de um crime comum, onde
indeterminadas pessoas podem cometer e para que uma ação seja considerada estupro é preciso que
as ações acima sejam praticadas em conjunto com o não consentimento da vítima. Assim, não há
falar-se em estupro quando a negativa não é sincera, ou se a vítima de início resistiu, mas, iniciada
a conduta, consentiu o contato sexual. Dessemelhante acontece nos estupros de vulneráveis, onde
com ou sem o consentimento da vítima, o crime será o de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A).
Quando a vítima do estupro é vulnerável a pena é diferenciada, sendo ela de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
Entendendo que a pena é maior percebesse que essa modalidade é ainda mais gravosa.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema e a abordagem sobre o abuso sexual e estupro contra crianças e adolescentes ainda é
recente no serviço público e envolve tabus importantes. Iniciativas do governo federal, suportadas
pelo ECA, pela Constituição Federal e legislações esparsas, têm assegurado novas investidas tentando
ao máximo combater através das informações contidas estes dois fenômenos que agridem nossos
sujeitos de direitos.
Compreender, assimilar e identificar conforme o caso concreto o que assola quando envolve
Criança e Adolescente é fundamental, pois através disso pode-se partir para próximos passos de
alcance e solução para almejar o que é tão esperado. O desafio atual é a articulação efetiva da rede
de atenção e proteção com intercomunicação dinâmica, efetiva e democrática.
Desta forma, estudos ulteriores poderão identificar variáveis que influenciam o desenvolvimento
e a consolidação da rede, ou ainda, corroborar na investigação de outros elementos sociais e culturais
inerentes ao tema.
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INTRODUÇÃO
Ao pensarmos em algum ambiente seguro, logo nos remete a ideologia de nossa casa. Porém, em
virtude da Pandemia, lugar este que deveria ser seu refúgio das vítimas, se torna seu principal cárcere.
Ademais, o maior índice de agressões é proveniente de companheiros ou ex-companheiros,
no âmbito doméstico e com quem possui contato diariamente. Ou seja, quem esta escolheu para
conviver e amar, se torna seu principal inimigo.
Em virtude disso, o presente trabalho tem o fito de investigar se houve aumento nos índices de
violência doméstica, considerando o convívio acentuado durante o isolamento social, tal como se existe
alguma condição determinante que levou a tal e se houve promulgação de alguma legislação específica no
amparo das vítimas. A partir do exposto, tem-se o questionamento: Houve aumento nos índices em casos
de violência doméstica? Há implementação de políticas públicas na busca pela diminuição de tais eventos?
No primeiro capítulo, tenciona-se analisar dados referentes a violência doméstica, comparando
os anos 2019-2020 em diferentes cenários do mundo em tempos de Pandemia.
Já no segundo capítulo, parte-se da verificação acerca dos fatores que influenciam o provável
aumento, com ênfase no ciclo da violência.
No derradeiro capítulo, pretende-se expor as medidas adotadas, políticas públicas e as legislações
vigentes, com ênfase na Lei 14.022/20, a qual torna o atendimento às vítimas de violência doméstica
serviço essencial, sendo que este não poderá ser interrompido enquanto durar o estado de calamidade
pública ocasionado pelo Coronavírus.
O presente capítulo visa investigar os índices relativos a violência doméstica durante a covid-19
em diversas esferas, seja internacional, nacional e estadual, bem como, de que forma a Pandemia
influenciou para tal.
38 Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil. Integrante do grupo de pesquisa do mestrado e
doutorado em Direito da UNISC, Políticas públicas e inclusão Social. E-mail: gedafini@hotmail.com.
39 Doutora em Direito pela UNISC. Estágio de Pós-Doutoral em Direito pela Universidade La Salle. Mestre em Direito na área
de concentração e políticas públicas de inclusão. Professora na UNIJUÍ, lecionando na graduação em Direito e Programa de
Pós-Graduação em Direito Mestrado e Doutorado. E-mail: rosane.c.p@unijui.edu.br.
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Atualmente, fomos acometidos por uma pandemia, decorrente de um vírus. Até o momento,
visando o achatamento da curva de contágio e a superlotação de hospitais, houve a adoção de medidas
sanitárias, entre elas, o distanciamento social. Outrossim, se por um lado houve deliberações no intuito
de diminuir a propagação do vírus, de outro, houve um aumento expressivo em índices de feminicídio.
Ademais, trouxe consigo diversas transformações no modo como nos relacionamos, vivemos
e laboramos. As informações se modificam a todo tempo, ao passo que muitas vezes, nos faltam
respostas. O impacto atinge a todos, seja direta ou indiretamente. Porém, no mundo das incertezas,
uma afirmação é cristalina: os grupos mais vulneráveis, como o das mulheres, são os mais atingidos,
eis que perdurarão mais tempo e com maior inquietude. (OLGA, 2020)
A violência, bem como o convívio acentuado, a incerteza do momento em que vivemos,
combinado com a tensão e o distanciamento de familiares e amigos, concorre para o aumento da
violência doméstica. (MAZZI, 2020)
Ademais, em vários países do mundo, como China, Estados Unidos, Espanha, Itália, dentre outros,
avaliar os danos, entretanto, se torna desafiador ao passo que as vítimas estão confinadas com seus
ofensores, resultando em uma vasta dificuldade em denunciar através de órgãos públicos.
A nível internacional, como na Itália, houve adoção de medidas rigorosas de isolamento social
com o fito de conter o vírus, o que em primeiro momento, demonstrou uma diminuição drástica de 43%
em ocorrências de violência doméstica. Tal diminuição decorreu da ausência de políticas adotadas para
o amparo das vítimas, pois a maioria destas, não obteve êxito em realizar denúncias, seja por receio do
ofensor ou por dificuldade em sair de suas residências. (FÓRUM DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020)
Conforme a Folha de São Paulo (2020, <https://gazetaweb.globo.com/>) dos 93% dos casos
analisados pelo Instituto Nacional de Estatísticas (Istat), foi no âmbito doméstico o principal local
onde a violência contra a mulher ocorreu na quarentena. E, de acordo com relatos de 75% das vítimas,
as agressões ocorriam há anos. Os levantamentos oficiais acerca do período de confinamento ainda
não foram integralizados, mas estima-se que sucederam ao menos 11 feminicídios, considerando os
dados apresentados pela imprensa italiana.
A nível nacional, através de dados disponibilizados pelo Fórum de Segurança Pública, notou-
se um crescimento de 22,2% em relação aos feminicídios, correspondente a 143 mulheres, em
comparação aos meses março/abril de 2019 e 2020.
Porém, houve uma diminuição no número de medidas protetivas concedidas, considerando a
mesma limitação de tempo (2019/2020). No Acre, por exemplo, ocorreu uma queda de 31,2%, já no
Rio de Janeiro, 28,7%.
Na mesma senda, também ocorreram reduções nas denúncias quanto as lesões corporais dolosas
resultantes de violência doméstica, equivalente a 25,5%, em relação ao mesmo período do ano de
2019, o que confirma o protótipo verificado em outros países como na Itália e no Estados unidos, ou
seja, dificuldade em realizar as denúncias. O Estado do Maranhão, por sua vez, foi o mais atingido,
com uma redução de 97,3%. (FÓRUM DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020)
Além disso, conforme o Comitê Parlamentar de Violência contra as mulheres, houve diminuição
de 652 pareceres policiais em virtude de agressões no âmbito doméstico, delimitando os 22 primeiros
dias de março, em comparativo com igual período em 2019. O Telefone Rosa, conhecido como
o principal método de comunicação para a realização das denúncias, informou que as chamadas
diminuíram em 55%. Neste contexto ilusório, ainda que houve uma redução, esta, não condiz com
a veracidade, mas com a enorme dificuldade que as vítimas enfrentam em realizar as denúncias
durante o período de confinamento. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020)
A maioria das mulheres não denuncia o seu agressor ainda. Vivemos em uma sociedade muito
machista e patriarcal que culpabiliza a mulher pela agressão, pelo fim de uma relação, especialmente
se envolver filhos, e que desestimula essa mulher a denunciar. O convívio intenso, nesse momento
de muita ansiedade e tensão, tem piorado os casos. Uma pessoa que nunca bateu, por exemplo,
pode ter descambado para a violência física (MAZZI, 2020, <https://oglobo.globo.com/>)
Para exemplificar a questão, apresenta-se abaixo duas tabelas com o balanço geral do Rio Grande
do Sul referente a violência doméstica – ameaça, lesões corporais - respectivamente, compreendendo
o ano de 2019/2020.
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Tabela 1. Monitoramento dos indicadores de violência contra as mulheres no Rio Grande do Sul
referente aos meses de março a agosto de 2019.
Tabela 2. Monitoramento dos indicadores de violência contra as mulheres no Rio Grande do Sul
referente aos meses de março a agosto de 2020
Em resumo, podemos concluir que houve uma queda significativa no número de ocorrências, o
que demonstra uma vasta subnotificação, posto que os índices de feminicídio consumado aumentaram,
ou seja, os casos se agravaram e chegaram ao ápice da violência antes mesmo de chegarem a uma
delegacia. Vejamos um comparativo:
Tabela 1. Monitoramento dos indicadores de violência contra as mulheres no Rio Grande do Sul
referente aos meses de março a abril de 2019.
Tabela 2. Monitoramento dos indicadores de violência contra as mulheres no Rio Grande do Sul
referente aos meses de março a abril de 2020.
Nota-se que houve uma variação de 66,7% em comparação ao mês de abril de 2019 e 2020 e
no total, um aumento de 23,5%.
Assim, conforme CUNHA (2020), a subnotificação quanto aos índices apresentados a respeito
das ameaças e lesões corporais deriva de vários fatores, entre eles: a ocupação com os filhos e a
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residência, considerando que os mesmos estão sem frequentar a escola, ocasionando um obstáculo
em se afastar e proceder com a denúncia, e ainda a carência de deslocamento por transporte público
diante da dependência financeira do ofensor, associado com o medo de contrair o vírus.
Realizada a abordagem acerca dos índices de violência, necessário faz-se explanar os fatores
que levam a tal para podermos visualizar os mecanismos necessários para a intervenção e cessação.
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indicadores para avaliar, tendo em vista que muitas já naturalizaram ameaças, agressões psicológicas
entre outras, não percebendo como formas de violência e dessa forma, não considerando um fator
para a pesquisa. (PARREIRAS, 2020)
Foram utilizados como indicadores:
...trocas de insultos, pessoas levadas a chorar por medo ou ofensa, ameaças de se atirar objetos
ou de os usar para bater, o cumprimento dessa hostilidade, empurrões, bofetadas e chutes,
espancamentos, ameaças com armas de fogo ou lâminas e agressões armadas (PARREIRAS, 2020,
<https://www.em.com.br>).
Esse capítulo visa expor as políticas públicas adotadas, legislações específicas promulgadas
durante o estado de calamidade Pública, como a Lei 11.022/20.
Internacionalmente, houve a adoção de medidas de contenção. Na França, por exemplo, as
vítimas podem realizar denúncias pela internet, onde estas possuem um chat para dialogarem
diretamente com policias, possuindo um botão de emergência que, ao ser acionado, a página é
fechada e a conversa excluída. Também foi criado uma espécie de senha para pronúncia ao adentrarem
nas farmácias, despertando o sistema de alerta. Há pagamento de quartos de hotéis para as vítimas
e abertura de centros de orientação. Na Espanha, houve a criação de dispositivo para denúncia por
mensagem através de geolocalização por WhatsApp e também apoio psicológico para as que optarem
por ficar em suas residências. (BIANQUINI, 2020)
No Brasil, também houve a implementação de canais de atendimento as denúncias, através
do aplicativo Direitos Humanos BR. Outrossim, OFÍCIO-CIRCULAR Nº 1/2020/DEV/SNPM/MMFDH
encaminhado aos Organismos Governamentais de Políticas para Mulheres, recomenda, além de
outras normas, a instalação de comitês de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres no âmbito
da COVID-19, assim como promoção de campanhas com o fito de repassar a relevância da denúncia
em situações de violência doméstica. (ANESP, 2020)
Se sucedeu recentemente a sanção da Lei nº 14.022, de 7 de julho de 2020 que alterou a Lei
nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 a qual dispõe sobre as medidas de enfrentamento à violência
doméstica e familiar contra a mulher, como também de crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas
com deficiência durante a o estado de calamidade Pública, possuindo como principais tópicos: I- Para
prazos, apreciações de matérias, atendimentos aos envolvidos e concessão de medidas protetivas
que foram relacionadas à violência domésticas não haverá suspensão; II- Os registros poderão ser
realizados por meio eletrônico ou através de um número telefônico específico fornecido pelos órgãos
de segurança; III- Os processos que tratam da referida lei serão de natureza urgente; IV- Deverão ser
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Assim, podemos notar que há muitas ações em andamento para o auxílio das vítimas, que aos
poucos estão sendo reconhecidas, fazendo com que a Pandemia não sirva para desfechos ruins, mas sim,
como um marco para outras implementações, visando sempre o bem-estar e a segurança das mulheres.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
INTRODUÇÃO
O presente trabalho irá apresentar os aspectos que circundam o vínculo de interdependência das
formulações propostas, biopoder e patriarcalismo, que devido ao estreitamento do laço que os une,
propagam-se de forma irrestrita, influenciando diretamente na vida das mulheres em todos os âmbitos.
Desse modo, torna-se relevante assimilar as teorias de biopoder e biopolítica refletidas por Michel
Foucault como necessárias a compreensão de como o patriarcalismo se apresenta na sociedade, assim
como de onde ele tira forças para comandar de maneira tão incisiva a vida e o corpo das mulheres.
Nesse percurso, analisa-se como o alcance do patriarcalismo como ideologia encampada por uma
classe hegemônica masculina se alastra pelos meios sociais como forma a impedir o protagonismo
livre da mulher – tanto na sua vida particular, quanto representando um papel substancial no corpo
social –, busca-se na abordagem da temática, exemplificar de modo amplo e sintético sua extensão,
tendo em conta que ilustrar todas as esferas pelas quais ele se dissipa tornaria o trabalho bastante
extenso, haja vista sua abrangência.
Para isto, recorre-se ao emprego da metodologia teórico-analítica apoiada na pesquisa de autores
que se debruçaram em compreender a funcionalidade da temática exposta. Assim, fora analisado
como o poder se apresenta na sociedade de forma multifacetada, valendo-se da sua apropriação
conceitual para explicar o enraizamento do patriarcalismo na sociedade pós-moderna.
Vastas são as formas na qual o poder se manifesta, tendo em conta que se modificam
frequentemente diante da reorganização social atravessada pelos tempos. Um enfoque significativo
para se ter como ponto de partida na análise deste tema, é de que as dimensões de poder nunca
serão singulares, ou seja, um indivíduo dentro de uma sociedade está exposto a diversas expressões
de controle a todo momento.
Esse efeito vem desde as instituições mais básicas em que o indivíduo está inserido, seja a família
como primeiro norte no tocante a valores morais ou conceitos de atitudes corretas e incorretas dentro
40 Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – Uri Campus Santiago e pós gra-
duanda em Direito do Trabalho pela faculdade Dom Alberto – Santa Cruz do Sul. E-mail: tricielir@gmail.com
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do corpo social, posteriormente a escola como o começo dos contatos deste indivíduo com o mundo
além de seio familiar, as instituições religiosas na qualidade de guia a preceitos especificamente
espirituais e também difusor de moral religiosa – interessante relacionar que, muito frequentemente,
a colocação do indivíduo no ambiente religioso vem primeiramente à escola e outros contextos –.
Enfim, são profusos os nichos sociais subsequentes em que há inclusão natural do ser como também
o serviço militar, ambiente de trabalho, vida conjugal, etc.
Pois bem, sob um prisma mais explícito, não se parece uma relação difícil de compreender,
contudo o embaraço se encontra nas relações que não são perceptíveis com tanta clareza, e neste
ponto a construção do patriarcalismo na sociedade se faz presente de forma contundente em todos
aspectos nos quais o seres estão colocados.
A construção que fora feita do que é ser mulher na sociedade atual está particularmente ligada
à figura do patriarcalismo. Isto advém em razão de que ele se ramificou e criou suporte tão profundo
muito difícil de ser identificado e combatido, compondo todas as esferas da vida da mulher, seja ela
social, política, familiar, sexual, reprodutiva, entre outras. A força que o patriarcalismo possui na
formação desta estrutura vem, em parte, por estar conectado aos conceitos desenvolvidos em Michel
Foucault de biopoder e biopolítica.
Desse modo, estando os conceitos essencialmente ligados, é necessário avalia-los como forma
de compreender o coletivo que permeia o corpo social, as desigualdades que o moldam, bem como
projetar diretrizes que fortaleçam o enfrentamento às suas amarras juntamente ao patriarcalismo.
Partindo dos pressupostos acima delineados, para haver uma compreensão do vínculo das
mulheres com o poder – tanto de apropriação, quanto na óptica da dominação –, é essencial recorrer
à uma das vertentes da funcionalidade dos aparatos de domínio. Nesse viés, a perspectiva de análise
através das singularidades compostas no biopoder é premente para a percepção da funcionalidade
do patriarcalismo.
À vista disso, como princípio deste conceito, baseando-se nos estudos de Foucault, inicialmente
a formulação de biopoder fora desenvolvida com o objetivo de solidificar como era exercido o poder
de vida e morte sobre os corpos dos indivíduos. Primordialmente, ele era executado pela figura de um
poder soberano, que detinha consigo o poder de designar a vida e a morte de seus súditos:
O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou
contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. O direito
que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver.
(FOUCAULT, 1988, p. 127).
Basicamente, esse poder de “vida e morte” fundamentava-se nas atividades de sociedades longínquas
a nossa, onde a mercantilização era incipiente e as disputas restritas praticamente ao domínio territorial.
Conforme se prolongam suas pesquisas, ele analisa que esse poder se desloca da figura do soberano para
algo mais abrangente como regulador da ordem de vida biológica, convertendo-se em dirigir e investir
sobre a vida e não mais apenas atribuir a morte, pois absorve no conceito de investir sobre a vida uma
ferramenta importante para ser utilizada no aprimoramento dos mecanismos de poder, desempenho
mercadológico da força de trabalho e, subsequentemente, para a mantença do giro de capital.
É a partir dessas possibilidades de manipulação da vida pelo capital e seus gestores, que se verifica
a transferência de foco das atuações do biopoder, adentrado ao indubitável papel que o corpo começa
a desempenhar, tanto como sujeito, quanto como objeto de outra ideia deveras usada, a biopolítica:
o conjunto de mecanismos por meio dos quais aquilo que, na espécie humana, constitui seus
traços biológicos fundamentais poderá ser parte de uma política, de uma estratégia política, de
uma estratégia geral de poder; em outras palavras, como, a partir do século XVIII, a sociedade,
as sociedades ocidentais modernas, tomaram em conta o fato biológico fundamental de que o
homem constitui uma espécie humana. (FOUCAULT, 2006, p. 15).
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Neste seguimento, o corpo passa a ser o meio pelo qual os possuidores do poder transmitem a sua
vontade, propagam sua hegemonia e autoridade, inclusive como reguladores da ordem social. A perspicácia
com que o poder se alastra e trasmuda, desloca-se da figura do soberano para ideologias e condições criadas
pelo poder em sua totalidade, seja para defender sua atuação ou justificar suas estratégias de gestão.
Isto é, a relação entre o poder e o organismo que o permeia não é, de forma alguma linear, mas
sim uma relação de domínio em que temos o regulador da ordem social e seus objetos de alcance do
poder. Logo, para os que estão em posição de receptores deste poder não questionem as ordens que
estão sendo recebidas eles precisam ser geridos de algum jeito, sejam por leis, costumes, preceitos
morais que determinem a forma de comportamento, ou como historicamente sistematizado, o
patriarcalismo como estratégia de dominação.
Mas esse formidável poder de morte — e talvez seja o que lhe empresta uma parte da força
e do cinismo com que levou tão longe seus próprios limites — apresenta-se agora como o
complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão,
sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de
conjunto. As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em
nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da
necessidade de viver. (FOUCAULT, 1988, p. 128).
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As relações entre grupos eram de solidariedade e partilha de bens e de vida. Com as sociedades
de caça se instauraram as primeiras relações de violência: os mais fortes começam a dominar e a
ter privilégios e o masculino passa a ser o gênero dominante. Da consciência e da solidariedade a
humanidade passa à consciência da competição. (MURARO; BOFF, 2002, p. 11).
A reflexão trazida pelos autores se faz pertinente na conjuntura deste trabalho, tendo em vista
que traz certo alento e esperança no tocante à luta por igualdade de gênero, visto constatar que
existiram outras remodelações do corpo social no decorrer do tempo, igualmente pressupõe ser
exequível a existência de outras realidades futuras possíveis à desconstrução do problema proposto.
Não fosse só, deve se perceber que em determinados momentos – por mais que agora pareçam
de dificultosa materialização –, a mulher obteve em sua propriedade o poder que hoje tanto lhe afeta
negativamente. Houveram no desenrolar-se do tempo sociedades predominantemente alicerçadas no
matriarcalismo, todavia amplamente diferenciadas do contexto de patriarcado como se conhece hoje,
e sim voltado a autoridade como exemplo de inteligência e retidão, ao contrário de algo baseado
meramente no intuito de dominância e sobreposição à mulher. (CHAGAS; CHAGAS, 2017, p. 01-08).
As questões que permeiam a posição da mulher no matriarcado, assim como no núcleo familiar
são curiosas, pois se buscar na historicidade como se dava a estruturação de algumas relações, a
construção da família “tradicional”, por exemplo, se embasou no patriarcado. Coloca-se a relevância
de citá-la, haja vista que a construção moral do indivíduo começa pela família, não sendo diferente
com a mulher que, como dito previamente, tem em seus valores familiares as expectativas de
comportamento esperadas pelo patriarcado.
Nessa senda, nota-se que a maioria dos seres humanos parecem ter o costume de se desvincular
de seu passado histórico ou dos fatos que podem lhe propiciar certa “vergonha”, pois a família
contemplada pela perspectiva de integrante ativo na sociedade, reorganiza-se de acordo com a
mesma reorganização pela qual a sociedade movimenta-se. Nisso, Friedrich Engels refere em seu
livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que a origem de algumas civilizações
ao redor do mundo não chegavam nem perto de possuir o conservadorismo e o pudor existente
hoje, porquanto haviam concepções livres da sexualidade de ambos os sexos que, em muitos casos,
baseavam-se na relação sexual de uma mulher com vários homens e um homem com várias mulheres,
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Consoante referido, a força que o patriarcado possui sobrevém porque numerosos são os
ambientes de promulgação. Portanto é significativo entender que no transpassar da história a mulher
foi invalidada de diversas formas e que essa ação foi corroborada inclusive pela área da ciência, o
que faz com que se compreenda porque é tão difícil se soltar da prisão que é o patriarcado. Até que
houvessem movimentos de militância a favor dos direitos das mulheres, a mulher fora impossibilitada
de atuar em diversos campos sociais, entre eles a história, filosofia, ciências, etc., sem falar que quando
este espaço lhe fora concedido, sempre era dificultosa a sua livre atuação, trazendo a luz desigualdades
que até hoje perpetuam – como a diferença salarial entre os gêneros, por exemplo –, diante disso:
A mulher na história foi pouco reconhecida como ser humano de direitos e um ser capaz de
filosofar. Muitos filósofos se posicionaram de forma que contribuísse para a exclusão das mulheres
e seus silenciamentos. Para Pitágoras, a mulher era um princípio mau. Aristóteles acreditava
que as mulheres sofriam de uma carência natural e, por isso, defendeu que um princípio mau
criou o caos, as trevas e as mulheres, enquanto que o bom criou a ordem, a luz e os homens.
Também disse Aristóteles que “a fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades”.
Kerkgaard considerava uma infelicidade ser mulher. Foram muitas as aberrações ditas pelos
filósofos na história da Filosofia; nem mesmo Santo Tomás de Aquino deixou de dizê-las. Para
eles, a mulher é um homem incompleto, um ser ocasional. Hegel considerava que as fêmeas não
eram desenvolvidas e, por isso, as considerou seres passivos, sendo o homem o princípio ativo.
(MACHADO; GIL, 2016, p. 121-122).
Do que se depreende do trecho citado, o atributo do feminino era visto como um caráter, obviamente
pela interpretação negativa, porque a mulher era vista somente como um acessório do homem e que
deveria agradar ao homem, sem valor, despossuída de humanidade e dignidade. Ou seja, diversos
filósofos e estudiosos vistos como vanguardistas que asseguravam a ideia do livre pensar atribuíram
essa possibilidade de pensamento livre e questionamentos múltiplos exclusivamente ao homem.
Isto posto, a mulher vem marcada antes de ser humana, na imagem de mulher na ilustração
maculada imputada à palavra, tendo o seu corpo visto outrora – quiçá atualmente – meramente para
reprodução e como dito, retirada de si sua individualidade, ficando sua existência direcionada aos
papéis de gênero previamente constituídos e sua representação estrita ao ambiente doméstico.
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(...) as mulheres, quando se lhes confia uma menina, buscam, com um zelo em que a arrogância se
mistura ao rancor, transformá-la em uma mulher semelhante a si próprias. E até uma mãe generosa
que deseja sinceramente o bem da criança pensará em geral que é mais prudente fazer dela uma
“mulher de verdade”, porquanto assim é que a sociedade a acolherá mais facilmente. Dão-lhe por
amigas outras meninas, entregam-na a professoras, ela vive entre matronas como no tempo do
gineceu, escolhem para ela livros e jogos que a iniciem em seu destino, insuflam-lhe tesouros de
sabedoria feminina, propõem-lhe virtudes femininas, ensinam-lhe a cozinhar, a costurar, a cuidar
da casa ao mesmo tempo que da toilette, da arte de seduzir, do pudor, vestem-na com roupas
incômodas e preciosas de que precisa tratar, penteiam-na de maneira complicada, impõem-lhe regras
de comportamento: “Endireita o corpo, não andes como uma pata”. Para ser graciosa, ela deverá
reprimir seus movimentos espontâneos; pedem-lhe que não tome atitudes de menino, proíbem-lhe
exercícios violentos, brigas: em suma, incitam-na a tornar-se, como as mais velhas, uma serva e um
ídolo. Hoje, graças às conquistas do feminismo, torna-se dia a dia mais normal encorajá-la a estudar,
a praticar esporte; mas perdoam-lhe mais do que ao menino o fato de malograr, tornam-lhe mais
difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma
mulher, que não perca sua feminilidade (BEAUVOIR, 1970, p. 23).
Não pode ser negado ainda, que a utilização do corpo da mulher traz um paradoxo interessante.
Ao mesmo tempo em que o patriarcado age para que as mulheres não possuam papel de destaque no
âmbito público, conduzindo-as apenas no que tange ao privado – como mencionado, confinar as mulheres
somente em estereótipos de filha, esposa, mãe –, ele também coloca o corpo da mulher como se fosse
um domínio público e isso é notável quando observa-se a assimetria das relações de gênero na sociedade
pós-moderna. A violência e os abusos cometidos por homens contra mulheres são uma doença presente
na cultura do estupro, publicidade abusiva (MACHADO; GIL, 2016, p. 115-116) e na compreensão errônea
da sociedade de que o corpo da mulher pertence a todos – homens no geral e ao Estado no que confere a
pauta sobre a descriminalização do aborto, exemplificando – , menos a ela mesma.
Conforme relatado em toda a narrativa, o patriarcado foi plantado no corpo social – como se pode
verificar concisamente desde à família e as relações sociais rudimentares – e suas raízes se estenderam
até relações que nem se pode imaginar, visto que em um primeiro momento parece até imperceptível
e depreende uma observação analítica para entender seu funcionamento. A desvalidação do corpo
feminino surge com a perda de soberania de si sobre o próprio corpo, como se fosse um território,
uma terra sem lei, que pode ser invadida a qualquer momento. É inadmissível que esse pensamento
esteja estabelecido na maioria social ainda no momento em que se vive.
A saída pela tangente não poderia ser outra, a luta pela emancipação feminina, não apenas na
formalidade, mas na materialidade. O roteiro dessa luta abarca a totalidade do cenário explanado
neste trabalho, como também visa conceder às mulheres a liberdade no sentido genuíno da palavra,
disponibilizando melhores condições de vida em todos os aspectos.
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2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do que se disse, pode se concluir que o patriarcalismo fortalece as relações assimétricas de
gênero na sociedade, não somente ele surge como forma a oprimir, subjugar e, em situações extremas,
mostrar que o corpo da mulher não possui valor na sociedade, sendo violentado e assassinado.
A desigualdade de gênero é colocada como plano de fundo neste trabalho, mostrando que o
feminismo deve ser encarado como um contrapoder ao patriarcado e suas amarras, devendo ser
ampliado com a mesma força com que o patriarcado se estabelece nas sociedades de todo o mundo.
Portanto, um mundo sem o feminismo, sem a luta, sem a reflexão, sem a liberdade em todos os
sentidos, sem o questionamento frequente, não pode ser imaginado. O mundo que possuímos é este,
e as armas para combater as injustiças que o compõem estão em nossas mãos para que possamos
torna-lo um lugar melhor para todas e todos.
REFERÊNCIAS
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Fronteira. Rio de Janeiro: 1970.
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social do machismo no Brasil. Revista Psicologia.pt. ISSN 1646-6977. Disponível em: https://
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Leticia Sangaletti41
Daniela Andreatta 42
RESUMO: Este trabalho debate a cota de gênero e o protagonismo feminino na democracia, abordando
as conquistas históricas que resultaram no sufrágio feminino, direitos sociais políticos. Para tanto,
analisamos como a cota de gênero implementada pela Lei 9.504/1997, possibilitou a inserção de
mulheres no espaço público. Como aporte teórico, utilizamos, dentre vários autores, Pierre Bordieu,
Hannah Arendt, Simone Beauvoir, Juergen Haberman e John Stuart Mill. Os apontamentos conclusivos
dão conta há existência, ainda hoje, de desigualdade de gênero na esfera política em prejuízo às
mulheres, apesar dos movimentos feministas das gerações precedentes especialmente dos direitos
políticos que emergem da primeira onda dos direitos feministas.
INTRODUÇÃO
Apesar das conquistas históricas que resultaram dos movimentos feministas mundiais que atravessaram
os tempos e traduzidos nos mais diversos diplomas legais, a exemplo do reconhecido direito ao sufrágio
feminino, direitos sociais e políticos, a presença das mulheres ainda é reduzida no espaço político.
Neste sentido, cabe questionar a representatividade feminina em âmbito público no que
concerne ao exercício de direitos políticos, sendo a cota de gênero implementada pela Lei 9.504/1997
instrumento de promoção de igualdade e justiça já que possibilita o exercício de direitos que devem
ser garantidos pelo Estado com vistas a efetivar a dignidade o que pode vir a ser alcançado através
de avanços no plano normativo.
A investigação é de caráter teórico, de natureza qualitativa, com fins explicativos. O método
de abordagem é hipotético-dedutivo, com procedimento histórico e comparativo. Assim, o presente
trabalho vista expor brevemente as conquistas dos movimentos feministas sufragistas e suas bases
filosóficas e políticas que possibilitaram o acesso contemporâneo aos direitos políticos pelas mulheres.
41 Doutoranda em Letras do Curso de Doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. RS.
Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – UFSM Frederisco Westphalen (2010). Mestra em Le-
tras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Frederico Westphalen, RS em 20013. Jornalista.
42 Mestranda e integrante da linha Multiculturalismo, identidade e gênero do curso de Mestrado da Universidade Regional
do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo.RS.Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões – URI Santo Ângelo, RS em 2007. Pós-graduada em Direito Tributário, curso concluído em 2010 pelo LFG –
Instituto Luiz Flávio Gomes. Advogada.
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of Woman e A Vindication of the Rights of Men” reivindicando igualdade de direitos políticos, civis e
econômicos femininos ao lado de outros pensadores liberais que igualmente vão apoiar a Revolução
de Independência da América (1776) e a Revolução Francesa (1789) fixando as bases jurídicas e
filosóficas das lutas pelo exercício do poder político no movimento sufragista inglês:
A humanidade já há muito tempo abandonou os únicos princípios que podem apoiar a conclusão
de que as mulheres não devem votar. Hoje em dia, ninguém mais sustenta que as mulheres devam
ser escravizadas; que não possam lei nenhum outro pensamento, desejo ou ocupação, que não o
de ser burro de carga de seus maridos, seus pais ou seus irmãos. É permitido às mulheres solteiras,
e por muito pouco o também às mulheres casadas, possuir fortuna própria, e de ter interesses
pecuniários, comerciais da mesma maneira-que os homens. É considerado desejável e conveniente
que as mulheres pensem, escrevam e ensinem. A partir do momento em que estas coisas, alio
admitidas, a incapacidade política já não mais se baseia em nenhum princípio (MILL, 1861, p.97).
O autor ainda afirma que a liberdade das mulheres pelo direito ao sufrágio também causa
uma melhora na qualidade do voto em razão da ampliação do diálogo entre homens e mulheres,
exemplificando que, no caso dos homens casados, o debate fortaleceria suas opiniões políticas através
da arte da argumentação e convencimento, sendo a liberdade individual da mulher necessária do
ponto de vista dos valores liberais para a limitação do poder do Estado e arbitrariedades combatidas
pelas revoluções liberais:
Mas não é nem mesmo necessário chegar a esse ponto para provar que as mulheres devem ter
o direito de voto. Mesmo que fosse tão justo quanto é injusto o fato de que as mulheres devam
ser uma classe subordinada, confinada às ocupações domésticas e submissa a uma autoridade
doméstica, elas ainda assim precisariam da proteção do sufrágio para se garantirem contra o abuso
daquela autoridade. Os homens, assim como as mulheres, não precisam dos poderes políticos
para que possam governar, mas sim para que não possam ser mal governados (MILL, 1861, p. 98).
No ano de 1869, o constitucionalista e feminista inglês ainda escreve a obra Sujeição das Mulheres
tecendo considerações acerca da sujeição das mulheres pelos homens em uma analogia com a escravidão
(que vai desaparecer em muitos lugares naquele momento histórico) mas que persiste na sociedade inglesa,
já que desprovidas de autonomia privada e política, sendo consideradas seres inferiores. (OLIVEIRA, 2013).
Harriet Taylor Milll (1807 – 1858) vai defender o sufrágio feminino com fundamento no liberalismo
e escritos norte-americanos dos quais destacam-se os relatos das “Women’s Rights Conventions” norte
americanas ocorridas em 1850-51 sendo a convenção de Seneca Falls de julho de 1948 considerada como
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o início dos movimentos sufragistas femininos americanos que igualmente se inspiravam em ideais liberais.
A inferioridade feminina ainda será utilizada por alguns liberais, socialistas e radicais que em tese
seriam aliados naturais das mulheres na afirmação dos seus direitos individuais, mas que, no entanto,
expressam temor ao favorecimento de partidos conservadores e reacionários já que enxergam as
mulheres como mais religiosas e reacionárias, se opondo ao sufrágio feminino (PINSKY, 2003).
Nesta perspectiva a condição de sujeito é questionada pelas filósofas feministas ao se apropriarem
dos ideários da Revolução Francesa, das ideias iluministas na afirmação do sujeito autônomo e racional
e do conceito marxista de proletariado como sujeito histórico:
As reflexões feministas, a partir do século XVIII até nossos dias, trouxeram outra grande
contribuição ao debate do tema sujeito. Ao penetrar nas sutilezas tanto do pensamento liberal
como do pensamento marxista, as filósofas feministas constataram que sujeito fundamentalmente
era concebido e definido como identidade universal, ocultando e desconsiderando especificidades
(HAN, CONPENDI, 2015).
Apesar de posições contrárias, o feminismo inglês como movimento pelos direitos das mulheres
conquista em 1870 direitos como frequência à cursos universitários, controle dos seus rendimentos
em 1878 e em 1882 as inglesas são autorizadas por lei a administrar suas propriedades, lutas que
foram travadas ao lado de causas como a abolição da escravatura e direitos políticos às mulheres
trabalhadoras (PINSKY, 2003).
Anne Knight (1786-1862) militante de movimentos anti – escravagista e cartista funda juntamente
com 7 mulheres cartistas a primeira ‘Female Political Association’ britânica para lutar pelo direito ao
sufrágio feminino que elabora petição para a Câmara dos Lordes, citada por Harriet Taylor Mill em
ensaio referido, apresentada na Câmara dos Comuns por John Stuart Mill, deputado, que apesar
de vencido afirma ser sido o mais importante trabalho de sua vida, sendo considerada “decisiva” a
influência de Harriet Taylor:
Nomes ilustres, como a poetisa Florence Nightingale, a reformadora política Harriet Martineau e
a matemática Mary Somerville, figuravam entre as mulheres que subscreveram petições exigindo
o direito de voto. Oitenta deputados votaram a favor. Não foi, contudo, ainda um número
suficiente para que a petição fosse aprovada. A influência de Harriet Taylor foi assim decisiva no
empenhamento desse filósofo e parlamentar na defesa do direito das mulheres ao sufrágio, e no
desencadeamento do movimento de luta por esse direito, que evoluiu de formas passivas de luta,
nas últimas décadas do século XIX, para a militância agressiva que caracterizou a campanha pró-
sufrágio nas primeiras duas décadas do século XX (ABREU, 2003).
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Neste ponto, é necessário apontar o potencial transformador existente nos movimentos sociais
no que concerne em seu aspecto sociocultural na busca pela construção da identidade com vistas a
superar àquelas impostas pela sociedade, ou seja, de fora (GOHN, 2008).
Cabe destacar que o voto somente foi estendido em igualdade de condições às mulheres
inglesas no ano de 1928, sendo os países do norte europeu pioneiros na concessão do direito ao
voto conferido às mulheres da Nova Zelândia na data de 1893, ainda no século XIX, sendo admirável
as conquistas pela cidadania das americanas que puderam votar e serem eleitas em alguns Estados
americanos já no ano de 1913, sendo ainda reconhecidas através da 19ª emenda a todas as mulheres
maiores de 21 anos (PINSK, 2003).
A Primeira Guerra Mundial é considerada um marco nos direitos políticos femininos quando
as mulheres foram convocadas para a guerra e “substituindo a mão de obra masculina no esforço
de produção das indústrias” como a indústria armamentista, o que soterrou argumentos machistas
relacionados à natureza da mulher (PINSK, 2003, p. 295).
Para Simone de Beauvoir, as liberdades cívicas permanecem abstratas quando não acompanhas
de autonomia econômica e mesmo as mulheres que trabalham não receberiam da sociedade e/ou
marido a ajuda necessária para se tornarem concretamente iguais aos homens, sendo que somente
as mulheres que militam poderiam dar um sentido ético à existência, informando ainda que
estes benefícios se reduziriam em âmbitos políticos e sociais (pois uma vez herdeiras da tradição
se submissão, estariam privadas de lazeres), afirmando igualmente que a mulher que se liberta
economicamente do homem, nem por isso alcançaria uma situação moral, social e psicológica igual
(BEAUVOIR, 2009, p. 879).
Para Guareschi costumes, tradições e legislação são culturais e geradas pelos grupos detentores
de poder e prestígio social impondo a sua vontade que é posta como lei para os outros. (GUARESCHI,
2005). Assim, tornou-se prática cultural a naturalização da condição feminina que para Bourdieu poderia
ser compreendida em relação aos efeitos duradouros exercidos pela ordem social sobre as mulheres,
sendo a força simbólica uma forma de poder exercido sobre os corpos, como espécie de magia, sem
qualquer coação física, mas que dependeria de predisposições mais profundas (BOURDIEU, 2002,p. 59).
Habermas compreende a dominação de gênero como uma forma “assimétrica e desfavorável à
igualdade de direitos”, sendo que as lutas feministas podem vir a afetar a dinâmica desta relação de
forma positiva para as mulheres como a seguir expõe.
Embora o feminismo não seja a causa de uma minoria, ele se volta contra uma cultura dominante que
interpreta a relação dos gêneros de uma maneira assimétrica e desfavorável à igualdade de direitos.
A diferenciação de situações de vida e experiencias peculiares ao gênero não recebe consideração
adequada, nem jurídica nem informalmente; tanto a autocompreensão cultural das mulheres quanto
a contribuição que elas deram à cultura comum estão igualmente distantes de contar com o devido
reconhecimento; e com as definições vigentes, as carências femininas mal podem ser articuladas de
forma satisfatória. Assim, a luta política por reconhecimento tem início como luta pela interpretação
de interesses e realizações peculiares aos diferentes gêneros; à medida que logra êxito, essa luta
modifica a identidade coletiva das mulheres, e com ela a relação entre os gêneros, afetando assim,
de forma imediata, a autocompreensão dos homens (HABERMAS, 1996, p. 247).
Do ponto de vista histórico, os movimentos feministas nas lutas por direitos ocorridos no final
século XIX, denominados primeira onda, foram mobilizações por direitos sociais com enfoque em
questões econômicas e de distribuição o que restou denominado de “igualdades formais” (SILVA, 2018).
No Brasil, o movimento sufragista liderado pela bióloga e Deputada da Câmara Federal Bertha
Luz aprova o direito ao voto feminino em 1932 com o Novo Código Eleitoral, (Decreto n.21.076,
de 24 de fevereiro de 1932) conhecido como Código Assis Brasil, vindo a representar em 1945 na
Organizações das Nações Unidas com a mensagem “ Nunca haverá paz no mundo, enquanto as
mulheres não ajudarem a cria – la” sendo conhecida pela sua contribuição para o preâmbulo da Carta
da ONU (art.8º) no que concerne à igualdade entre homens e mulheres. (Informativo 895, STF).
No entanto, apenas o direito ao voto não basta. As mulheres devem ter o direito de influir nas
decisões políticas do Estado. E a nossa atual Constituição Federal garante que “a soberania popular
será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (art.14,
caput)” (MENDES, 2014, p. 707).
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Para Hannah Arendt os aspectos da condição humana estão necessariamente relacionados com
a política, sendo que o sujeito político se revela às outras no discurso e na ação, expressando a
sua diferença, sendo marcada pelo agir no mundo, ou de iniciar algo novo, ou seja existir de forma
singular e expressar a sua existência:
Em sua forma mais abstrata, a alteridade está presente somente na mera multiplicação de objetos
inorgânicos, ao passo que toda a vida orgânica já exibe variações e diferenças, inclusive entre
indivíduos da mesma espécie. No homem a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que
existe, e a distinção que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade
humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares (ARENDT, 2005, p.189).
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como forma de combate à cultura patriarcal para efetividade dos direitos que se encontram no plano
formal reconhecidos:
Embora, na atualidade, na maioria dos países ditos democráticos, os direitos humanos das mulheres
tenham sido equiparados juridicamente ao dos homens, essa realidade é bastante recente, e o
alcance dessa suposta equiparação segue sendo motivo de acalorados debates e, ao mesmo tempo,
de demanda de movimentos feministas, uma vez que muitos desses direitos ainda não foram
efetivados na sua totalidade ou parcialidade, em espacial devido à cultura patriarcal dominante nas
sociedades que, de forma direta, influencia na sua efetivação (SANTOS, 2015, p. 66).
Simone de Beauvoir esclarece a necessidade de direitos iguais que serão efetivados unicamente
se houver a presença do sexo feminino na atividade pública como medida imprescindível para a
libertação das mulheres (BEAUVOIR, 2009).
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A opressão sofrida pelas mulheres pode ser superada através de instrumentos normativos constantes
de diplomas Constitucionais como a Lei 9.504/1997, com vistas a inclusão das mulheres nos espaços
políticos contribuindo para as transformações sociais e políticas necessárias na sociedade contemporânea.
Nesta perspectiva observa-se a existência ainda hoje de desigualdade de gênero na esfera política
em prejuízo às mulheres, apesar dos movimentos feministas das gerações precedentes especialmente
dos direitos políticos que emergem da primeira onda dos direitos feministas.
Como comprovado nesta oportunidade, as mulheres em escala mundial, como em âmbitos
jurídico nacional e internacional ainda ocupam lugares de predominância masculina, que continua
a deter o capital social, cultural, político e econômico em detrimento da mulher, através da exclusão
dos espaços públicos e políticos que continua a constituir óbice ao protagonismo feminino.
A contemporaneidade, portanto, apresenta diversos desafios que devem ser enfrentados pela
sociedade, para a promoção da igualdade, respeito e liberdade que é direito de todos e todas.
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RESUMO: O presente artigo discorre sobre a temática da criminalização das migrações com o objetivo
de questionar se esse fenômeno constitui uma tendência no Brasil como política institucional em matéria
de migrações internacionais. A partir de pesquisa de caráter bibliográfico e documental, busca-se situar
a realidade brasileira na dinâmica das migrações internacionais modernas a fim de se identificarem
possíveis laços entre a severidade penal aos imigrantes como produto da aliança dos discursos de
defesa social com o neoliberalismo e a crimigração. Nesse propósito, incursiona-se pela historicidade
do tratamento reservado aos estrangeiros no Brasil com foco na criminologia das mobilidades.
INTRODUÇÃO
Vivemos a “era das migrações”. É o que se diz. O Brasil, que por muito tempo se caracterizou
como um país de emigração, agora passa a receber imigrantes de diversas nacionalidades, sem,
contudo, estar preparado para essa inversão de tendência. Entre diversas possíveis abordagens do
tema das migrações internacionais, uma, embora ainda não suficientemente enfrentada pelas ciências
criminais, vem ganhando destaque nos últimos anos: a criminalização das migrações, ou crimigração.
Estaria esse fenômeno se configurando no Brasil, um país considerado acolhedor, de população
miscigenada, cuja sociedade foi historicamente constituída pela agregação de várias nacionalidades?
Ou a generosidade estatal brasileira não passaria de mera falácia elaborada por discursos de
segmentos sociais dominantes? O presente trabalho busca investigar em que medida a política
migratória brasileira estaria recentemente mais concentrada na criminalização das migrações do que
no acolhimento humano e culturalmente plural de quem vem ao país para fixar domicílio ou por ele
transita com destino a outros países.
Para tanto, desenvolve-se inicialmente uma reflexão sobre a posição do Brasil na chamada Era
das Migrações, levando-se em conta ser ele um dos principais países de destino e de trânsito no
universo das migrações Sul-Sul. Em um segundo momento, examina-se a interseccionalidade dos
estudos criminológicos sobre as migrações internacionais, sugestiva de que o tratamento penal mais
severo dado aos imigrantes exprime uma resposta da aliança entre o neoliberalismo e as exigências de
segurança e defesa social, condicionada pelo fato de ser a raça a principal marca das hierarquizações e
opressões coloniais e imperialistas que modificaram a geopolítica mundial e que ainda hoje influenciam
os deslocamentos humanos. Por fim, analisa-se a historicidade das políticas migratórias no Brasil e
seus reflexos no tratamento dos imigrantes. A pesquisa é de caráter bibliográfico e documental.
43 Mestranda da Linha Estudos Críticos do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Pará. Pós-Graduada em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisadora Voluntária do
Grupo Cabano de Criminologia. Integrante do Grupo de Estudos “Nós Mulheres”. Advogada inscrita no Conselho Seccional
da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará sob n. 27.496. Consultoria Jurídica na Secretaria de Estado de Segurança
Pública e Defesa Social do Pará. anelise.trindadenazare@gmail.com
44 Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais (área de Direito Penal) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Professor Associado do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor permanen-
te do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública da UFPA. Juiz de Direito
em Belém. marcusalan60@hotmail.com
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Segundo Massey (2019, apud ARAÚJO et al., 2017), as migrações modernas podem ser divididas
em quatro etapas: a) etapa mercantil (1500-1800); b) etapa industrial (1800-1925); c) etapa de
migração limitada (de 1925 até o final da II Guerra Mundial); d) e etapa pós-industrial (1960).
No primeiro desses períodos, os fluxos migratórios eram principalmente protagonizados pelos
europeus em virtude dos processos de colonização ou do crescimento econômico do capitalismo
mercantil. Já no período industrial, as migrações obedeceram a uma dinâmica hemisférica Norte-Sul ou
Norte-Norte, com a saída de europeus para a América do Norte e América do Sul. Nesse mesmo período,
países como Brasil, Uruguai, México e Cuba receberam milhares de pessoas oriundas da Europa. Ressalte-
se que esses movimentos migratórios foram decisivamente motivados pela Primeira Guerra Mundial.
A etapa migratória industrial é também chamada por Bassanezi (2013) de período de migração de
massa. O Brasil, àquela altura, necessitava de crescimento populacional para levar adiante a expansão
econômica e a ocupação do seu território. Para atingir essas metas, executou uma política migratória que
privilegiou famílias brancas, europeias, e homens e mulheres para trabalharem nas lavouras de café.
A terceira vaga migratória (migração limitada) pode ser entendida como reflexo da crise econômica
que se abateu sobre a Europa após a Primeira Grande Guerra, impulsionada pela Grande Depressão de
1929 e, logo depois, pela Segunda Guerra Mundial. Esses movimentos migratórios sofreram oscilações
sazonais condicionadas também pela variação do contexto econômico europeu. Por fim, no período pós-
industrial as migrações internacionais ganharam novos contornos, e países que anteriormente atraíam
imigrantes tornaram-se lugar de partida, com uma clara inversão do fluxo de deslocamento humano
na direção de países recuperados da instabilidade econômica. É a chamada Migração Sul-Norte (MSN).
Babic (2017) explica que a classificação dos movimentos migratórios por um critério de
repartição hemisférica - Sul-Norte e Norte-Sul – se justifica por parâmetros de desenvolvimento
humano e econômico. Nesse sentido, integram o espaço Sul países com desempenho baixo ou
mediano em variáveis como Produto Interno Bruto per capita e Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH). Ao mesmo tempo, no contexto sociopolítico, são considerados países em desenvolvimento,
como passaram a ser definidos a partir da década de 1960. Por outro lado, os países do espaço Norte
são tomados como centrais no plano geopolítico e desenvolvidos economicamente.
Quando se examina a dinâmica das migrações Sul-Norte, percebe-se que não há espaço para
acolhimento das pessoas em deslocamento. Não existe preocupação quanto ao desenvolvimento de
uma política migratória de atração de migrantes do Sul Global, uma vez que
[...] as trajetórias de chegada, instalação e assentamento de migrantes do Sul Global nos países do
Norte são representadas, em muitas ocasiões, de forma miserabilista e etnicista, como se migrantes
fossem estranhos, extemporâneos e atrasados, portanto, ‘evoluíveis’, educáveis ou consertáveis,
ou seja, figuras de carência e alteridade. A sua presença é representada constantemente como um
grave problema ou ameaça social” (ARAÚJO et. al., 2017, p. 15).
Talvez o exemplo mais expressivo nesse cenário seja o da migração de nacionais mexicanos,
brasileiros e de outras origens da América Latina em direção aos Estados Unidos. Sem uma política
migratória de atração e acolhimento, essas pessoas são vistas e tratadas como um estorvo, um
problema social rejeitado. O fluxo migratório desejado por países considerados desenvolvidos – como
os Estados Unidos e os da União Europeia – é composto por pessoas profissionalmente qualificadas,
para intervalos de tempo limitados, com data certa de chegada e partida. Afinal, é essa a massa humana
que forma a força-produtiva de expansão do capital, e que transfere know-how e potencialidades
criativas aos países economicamente hegemônicos, por prazo certo e sem impactos culturais.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) emitiu relatório em 2017 em que
aponta as peculiaridades desses fluxos migratórios. O documento ressalta que a América do Sul é,
simultaneamente, continente de origem, de destino e de trânsito internacional de migrantes, o que
aflora em frequentes vagas de emigrantes, imigrantes e de refugiados. De um total de 10 milhões de
imigrantes, 713.568 se encontram em solo brasileiro. Com esse quantitativo, o Brasil possui a terceira
maior população de imigrantes da América do Sul.
Paralelamente a esse quadro, o cenário das Migrações Sul-Sul (MSS) se caracteriza pelo crescimento
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- especialmente durante a primeira década do século XXI - de fluxos migratórios oriundos da África e
da Ásia em direção a países do continente sul-americano, em virtude, sobretudo, do endurecimento
de políticas migratórias restritivas na Europa e nos Estados Unidos. Assim é que países do sul global
passam a receber imigrantes oriundos de espaços nacionais periféricos do capitalismo mundial. É o
que acontece, por exemplo, com o Haiti, Ilha do Caribe de forte cultura emigratória, e cujos fluxos
migratórios são redirecionados a países da América do Sul, dentre os quais o Brasil, em especial
após o terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010, que destruiu a capital Porto Príncipe. As MSS,
segundo Babic (2017), são impulsionadas por diferentes causas. Entretanto, a pobreza, a mobilidade
de baixo custo, o quadro político, os menores diferenciais de renda e as fronteiras precárias são
fatores decisivos para a movimentação migratória nessa linha hemisférica horizontal.
A exata compreensão desse fenômeno - as MSS – depende de uma perspectiva crítica em relação
ao significado geopolítico de “Sul” global. Aqui o conceito de colonialidade do poder, desenvolvido por
Aníbal Quijano, se revela essencial. O autor peruano entende a colonialidade do poder enquanto um
produto do fim do colonialismo em que a modernidade ocidental europeia, além de não extinguir a
divisão internacional do trabalho entre centros e periferias, preservou hierarquizações étnico-raciais
entre populações e incentivou a formação de estados-nação na periferia do capitalismo (QUIJANO, 2000).
Se antes havia uma relação de sujeição e dominação entre colonizado e colonizador, hoje esse
vínculo se estabelece no contexto migratório – ao largo, portanto, da ideia de ocupação de um território –
a partir do racismo que permeia a cultura ocidental. Trata-se de uma experiência diretamente derivada
do colonialismo, aqui entendido como “um exercício da violência que se caracteriza por uma forma
específica de produção de subjetividade. Do mesmo modo, o racismo contemporâneo assegura uma
produção de sujeição que lhe é própria” (LAZZARATO, 2019, p. 48). Imigrantes assim rotulados são
rejeitados pelos países centrais, que erguem dificuldades para ingresso dessas pessoas em território
nacional, de modo que o Brasil passa a ser uma opção de destino.
Nota-se, assim, que as causas das migrações e da mobilidade transnacional se vinculam a fatores
como a racialização, o colonialismo, a expansão do capitalismo, mas também exprimem a lógica das
estruturas de dominação e das desigualdades sociais no plano geopolítico (FELDMAN-BIANCO, 2014).
Ademais, é importante destacar que as migrações internacionais também materializam processos de
hierarquização cultural, espacial e de gênero. Por isso a categoria imigrante deve ser compreendida em
um sentido amplo que abranja todas as motivações para as migrações internacionais: busca de trabalho,
união familiar, desastres ambientais, questões afetivas, conflitos religiosos, guerras, instabilidade
política, etc. Um quadro que requer, sem dúvida, atenção e sensibilidade às múltiplas vulnerabilidades45
vivenciadas pelos imigrantes, inclusive no Brasil. Nesse sentido, BERTOLDO (2018, p. 316) comenta:
Todo esse cenário que caracteriza o espaço-tempo das migrações contemporâneas coloca o(a)
migrante em situação de múltiplas vulnerabilidades, sendo que a privação dos seus direitos
humanos fundamentais se dá na medida em que sua opinião não é significativa e sua ação não
é eficaz perante o espaço público. Através dessas premissas nota-se como a realidade do(a)
migrante os coloca em um patamar distante dos nacionais, sendo que sua presença nunca é plena
no espaço do Estado, tanto política, jurídica e simbolicamente.
Países não se preparam para receber grandes vagas migratórias. Nem mesmo os países centrais
do capitalismo mundial, que protagonizam, como destino, as migrações Sul-Norte. É necessário,
contudo, refletir sobre a necessidade de instituição de políticas públicas voltadas às migrações
internacionais e que definam, com planejamento prévio, respostas institucionais a esse fenômeno.
Duas tendências parecem marcar esse debate: uma, comprometida com a defesa e preservação
dos direitos humanos daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade decorrente de
migração; e outra, que difunde uma mentalidade de exclusão por meio de políticas restritivas e de
criminalização das migrações. Essa última – da qual se tratará doravante - está estreitamente ligada à
lógica neoliberal de acumulação de riquezas.
45 Importante destacar que a vulnerabilidade não é algo inerente à pessoa do imigrante. Em verdade, a vulnerabilidade
decorre da situação psicofísica, jurídica e socioeconômica em que ele se encontra por força do processo migratório.
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O recrudescimento da resposta penal pela ampliação das agências punitivas e pela intensificação
do discurso de insegurança pública e de defesa social é uma característica do neoliberalismo e
do capitalismo de mercado. Segundo Wacquant (2010, p. 198-199) “a severidade penal é, então,
apresentada praticamente por todo lado e por todos como uma necessidade saudável, um reflexo
indispensável de autodefesa do corpo social ameaçado pela criminalidade, qualquer que seja a sua
gravidade”. O autor aponta a hipertrofia da população carcerária nos países desenvolvidos como um
reflexo desse cenário. Uma tendência que também se verifica no Brasil.
Todavia – e como ainda ressalta Wacquant (2010) - essa expansão está longe de significar que
o aparelho repressivo tenha se tornado mais efetivo, muito menos que tenha ocorrido aumento da
criminalidade. Os índices de delinquência pouco oscilam, e a ação das agências penais se vale de
velhas técnicas autoritárias. O que há de novo é o foco sobre um público que até bem recentemente
não chamava a atenção do sistema penal: os imigrantes pós-coloniais. Tornaram-se, mesmo em países
reconhecidos por adotarem uma política migratória de acolhimento e respeito à diversidade cultural,
alvo de processos de criminalização.
No Norte Global46, a criminalização das migrações recai sobre grupos cujo ingresso e permanência
no país são vistos como causa de problemas sociais. São os indesejáveis, aqueles cuja mão-de-obra é
pouco qualificada e que se tornarão força-produtiva excedente e, não raro, dependentes de programas
de assistência social. Parte expressiva dessa mão-de-obra não chega a ser absorvida pelo mercado
e alimenta uma demanda de políticas sociais onerosas consideradas, pelos nacionais do país, uma
distorção da função estatal, que investe recursos públicos para prover uma massa humana improdutiva.
A lógica neoliberal de minimização do Estado e maximização do mercado não é compatível com
a assistência a quem, nessa perspectiva, não produz e, sobretudo, também não consome. A solução
mais consentânea com os interesses do mercado é a flexibilização das relações de trabalho de modo
que a apropriação e acumulação de capital são potencializadas quando a mão-de-obra excedente de
imigrantes pode ser descartada sem grandes custos.
Para evitar ou reduzir o fluxo dessa massa humana improdutiva, criam-se políticas restritivas
às migrações internacionais, que, todavia, não se aplicam aos chamados trabalhadores destacados47
na Europa, dispositivo de dumping social interno na União Europeia que permite o rebaixamento
global dos salários e das condições de trabalho nos países que integram o bloco econômico. Carvalho
(2017) explica que os trabalhadores destacados, via de regra, são oriundos de Estados-membros de
menor desenvolvimento econômico e social no contexto europeu e são recrutados para exercer a
mesma função de trabalhadores nacionais dos países mais desenvolvidos, em troca, entretanto, de
remuneração inferior. Dessa maneira, prevalece o interesse corporativo empresarial em reduzir os
custos de mão-de-obra a fim de que seus produtos se tornem mais baratos e, consequentemente,
mais competitivos no mercado.
Além das políticas restritivas ao ingresso e permanência de estrangeiros no país, a criminalização das mi-
grações vem se intensificando nos últimos anos no continente Europeu e na América do Norte. Ela consiste em
[...] um processo por meio do qual instrumentos legais e discursivos são mobilizados no sentido
de interpelar a mobilidade humana a partir de códigos e leis do sistema de justiça criminal. Esse
processo enseja a discriminação de migrantes, refugiados e outros grupos tornados estigmatizados
em seus deslocamentos e estratégias de mobilidade e está essencialmente relacionado à prática de
Estados-nacionais, por meio de estruturas de repressão e controle (DIAS; SPRANDEL, 2017, p. 153).
46 A divisão entre “Norte” e “Sul” Global, segundo Babic (2017), se explica por critérios econômicos e políticos, e não me-
ramente geográficos.
47 O destacamento de trabalhadores, segundo Carvalho (2017), consiste no deslocamento temporário de trabalhadores, no
âmbito da União Europeia, os quais possuem um vínculo empregatício pré-existente, para exercer a sua atividade habitual
em outro Estado-membro do bloco econômico.
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razão disso, as agendas punitivas neoliberais desses países se voltam ao imigrante e ao refugiado, com
reforço das estratégias de controle a grupos estigmatizados e de novas formas de dominação racial. Essa
dinâmica pode ser melhor compreendida a partir das teorias histórico-estruturais sobre as migrações.
Dina Araújo et al. (2017) observam que as interpretações marxistas do capitalismo pautadas
na dicotomia desenvolvimento vs. subdesenvolvimento e na estruturação da economia mundial
influenciaram as teorias histórico-estruturais. Esse modelo explicativo identifica as causas das
migrações internacionais nas forças macroestruturais historicamente formadas pela luta de classes,
enfatizando a natureza intrinsecamente exploradora e assimétrica do poder econômico no capitalismo.
A teoria do sistema-mundo capitalista, por exemplo, propõe que as migrações são um produto
da dominação colonial e pós-colonial capitalista exercida pelos países centrais do Norte Global sobre
os países pobres da periferia e da semiperiferia mundial. O trabalho de Immanuel Wallerstein (2001),
intitulado “Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista”, delimita conceitualmente o sistema-mundo
capitalista. Para Wallerstein, o capitalismo é um sistema histórico baseado essencialmente no capital
enquanto riqueza acumulada, ou seja, na acumulação do produto do trabalho realizado pela mão-de-
obra remunerada (expropriação do valor do trabalho), e que tem, exatamente na acumulação de capital
para a sua própria expansão, seu maior e principal objetivo. Além disso, afirma o autor que a “[...] a
gênese desse sistema social se situa na Europa no final do século XV, se expandiu no espaço até cobrir
todo o planeta no final do século XIX; e que ainda engloba a Terra inteira” (WALLERSTEIN, 2001, p. 19).
Em virtude de sua expansão planetária, praticamente todos os países fazem parte, de algum modo,
do sistema-mundo capitalista, ainda que em condições distintas e desempenhando diferentes papéis.
A hegemonia mundial do capitalismo enquanto modelo de produção, expropriação e acumulação de
riquezas gera, ainda na lição de Wallerstein (2001), a polarização entre regiões centrais e periféricas da
economia global.
Nolasco (2016) descreve, de forma bem didática, a dinâmica dessa polarização geopolítica e
geoeconômica:
O centro é composto por países poderosos, com esmagador poder político e militar, elevado
nível de desenvolvimento social, grande investimento tecnológico, e com um avassalador sistema
económico e financeiro. A periferia caracteriza-se por uma posição diametralmente oposta, sem
poder, sem desenvolvimento e sem capacidade económica, limitando-se a produzir matérias-
primas, produtos agrícolas e fornecer mão de obra barata ao centro. Numa relação de trocas
desiguais, o centro impõe-se e domina a periferia. A semiperiferia funciona como um espaço
intermédio no contínuo dicotomizado centro/periferia, possuindo em simultâneo características
do centro que a impedem de ser caracterizada como periferia, e características da periferia que a
impedem de ser considerada como centro (NOLASCO, 2016, p. 22-23).
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internacionais também ocorre pela criminalização desse fenômeno, que nenhuma relação tem, em
sua origem, com a delinquência. Stumpf (2006) designa essa estratégia que emprega as agências do
sistema penal como se fossem elementos de uma política migratória mais rigorosa de crimmigration.
A crimigração – esclarece a autora – implica uma distinção promovida tanto pela legislação
migratória quanto pela legislação penal entre insiders e outsiders. Os primeiros são considerados
incluídos, estrangeiros bem-vindos, por seu status econômico e cultural; os segundos são tratados
como excluídos, e convertem-se em alvo das agências (polícia e órgãos de imigração) que empregam
a legislação penal associada a sanções administrativas, de modo a alcançar resultados eficientistas em
termos de repressão à imigração indesejada. Para Guia (2012), a crimigração tem-se materializado na
criminalização de comportamentos ligados ao ingresso ilegal de imigrantes no país e sua permanência
no território à margem da lei, e que são distorcidamente confundidos com a prática de crimes.
Dakwar (2016), ao tratar das dificuldades da população imigrante nos Estados Unidos, reforça as
ideias de Stumpf. Afirma que a crimigração no país se expandiu após os atentados de 11 de setembro
de 2001, e explica:
A crimigração atinge também quem auxilia o imigrante em condição ilegal. Este é visto como
inimigo, como indesejado, e aquele que, de algum modo, presta-lhe apoio ou solidariedade, é rotulado
como cúmplice. Na Itália, por exemplo, a lei sanciona com pena de até três anos quem aluga imóvel a
imigrante irregular. Impõe ainda a funcionários públicos - exceto médicos e professores – a obrigação
de denunciar imigrantes sem documentação regular (LYRA, 2013).
Na realidade latino-americana, Padovani (2015) argumenta haver uma aproximação entre o
discurso de guerra às drogas e as políticas de criminalização nos governos da América do Sul e Central.
Tais políticas são direcionadas às populações mais pobres e racializadas nos países da região. Com
a tendência de transnacionalização das políticas de repressão – em virtude da hegemonia dos países
desenvolvidos, cujos modelos de reação estatal aos problemas sociais são copiados inclusive nas
regiões periféricas – difunde-se a mentalidade da criminalização a uma região global inteira (América
Latina), ou ainda, por questões de fundo racial, a pessoas com um determinado perfil étnico, como
os africanos (PADOVANI, 2015). Com efeito, “[...] os critérios e as origens raciais dos migrantes, por
vezes, são acionados para discriminá-los e rejeitá-los por causa de sua origem étnico-racial. Esses são
os considerados “indesejáveis” para a formação social do lugar de instalação” (HANDERSON, 2017, p.
597). Xenofobia e racismo são, portanto, as duas faces de uma mesma moeda.
Estaria a criminalização das migrações distante da realidade brasileira? A crimigração seria um
fenômeno ainda estranho à política migratória do Brasil? Ou, nessa questão, o país também reproduz
a escolha repressiva das regiões centrais e hegemônicas no contexto hemisférico Norte-Sul?
No período industrial das migrações, a economia brasileira sofreu um grande impacto, segundo
Moraes (2016), em razão da abolição da escravatura e do fim do tráfico transoceânico de escravos. Com
o crescimento da agricultura lastreada no cultivo do café, houve necessidade de se incentivar a vinda de
imigrantes do continente europeu para o trabalho nas lavouras. Definiu-se, portanto, uma política migratória
de caráter essencialmente utilitário. Seu objetivo era atrair mão-de-obra externa que, mesmo subsidiada,
ainda se podia considerar barata em uma economia baseada no latifúndio de monocultura. Além disso, os
novos imigrantes preencheriam o espaço deixado pela força de trabalho escrava e povoariam áreas de baixa
densidade demográfica. Deu-se início, assim, ao processo de branqueamento da população brasileira.
O tempo logo se encarregou de rotular esse novo elemento humano, vinculando-o à imagem
de insurgente. A reinvindicação de direitos pelos trabalhadores imigrantes nas primeiras décadas
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do século XX, já no cenário político da República Velha, contribuiu, segundo Moraes (2016), para
dar contornos à figura do sujeito indesejável: o anarquista-estrangeiro, o inimigo externo. Não era
bem-vindo e deveria ser expulso, sentimento que se difundiu, sobretudo, com o fortalecimento do
nacionalismo no Estado Novo de Vargas.
Ainda no governo de Getúlio Vargas, estipulou-se no texto constitucional (1934) um regime de cotas
na política migratória, limitando-se o ingresso de estrangeiros no país, com fins de imigração, segundo
a média de entrada verificada nos 50 anos anteriores. Essa equação foi preservada pela Constituição
outorgada em 1937, muito em razão das tensões no plano internacional causadas pelo forte sentimento
nacionalista e pelo medo do estrangeiro. Assim, a limitação dos fluxos migratórios transnacionais foi
uma estratégia de repulsa ao imigrante construída em torno da imagem do estrangeiro-anarquista e
comunista. Esse regime de cotas veio a ser extinto pela Constituição de 1946 (TIBÚRCIO, 2008).
Aprofundando o ideário de rejeição ao imigrante politicamente engajado, os governos militares
instituíram as diretrizes da doutrina de Segurança Nacional como eixo da política migratória. Seu
propósito consistia em viabilizar, no plano legal, a expulsão de qualquer estrangeiro considerado
subversivo, dissidente político, um elemento tido por nocivo ao nacionalismo político. Tratava-se, na
verdade, de um pseudo-ufanismo patriótico que servia apenas para alimentar o discurso intervencionista
e autoritário da ditadura. O hoje revogado Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/1980) deu corpo
legal a esse pensamento. Assim, o imigrante politicamente comprometido ou que simplesmente
defendesse ideias consideradas incômodas pelo governo era considerado um outsider (BECKER,
2008), um desviante, um insubmisso que causava problemas. Em uma palavra: o inimigo.
Ao analisar a condição jurídica do estrangeiro nas constituições brasileiras, Tibúrcio (2008)
afirma que a Constituição de 1967, bem como o texto que resultou da promulgação da Emenda
Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, mantiveram o direito de ingresso do estrangeiro no
país, e sua permanência no território nacional foi regulamentada pelo Decreto-lei nº 7.967/1945,
que permaneceu em vigor até 1980, quando o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 6.815/1980,
atualmente revogada pela Lei de Imigração sancionada em 2017 (Lei nº 13.445/2017). De início, a Lei
nº 6.815/1980 foi muito criticada por segmentos da Igreja Católica ligados a movimentos de proteção
dos direitos humanos, em virtude das restrições impostas ao direito de permanência do estrangeiro
no país e aos meios de defesa disponíveis em processos de expulsão.
Tibúrcio (2008) explica que o direito internacional tradicionalmente não restringe o poder dos
Estados de controlar a imigração e o ingresso de estrangeiros no país. Esse quadro passou a ser
questionado, sobretudo em face de circunstâncias que não somente recomendam como mesmo
impõem ao Estado o dever de receber estrangeiros. É o caso de diplomatas, estrangeiros residentes
permanentes, vítimas de desastres naturais e refugiados. Trata-se de perspectiva também abraçada
em tratados e convenções internacionais sobre migração que proíbem a discriminação e o tratamento
desumano ou degradante do estrangeiro.
Essa tendência marcante nos países do Norte Global não se reproduz na América Latina e no
Caribe. É importante mencionar que a despeito das críticas frequentemente dirigidas às políticas
restritivas de imigração vigorantes nas regiões centrais, há aqui países onde, segundo Dias e Sprandel
(2017), são adotadas medidas favoráveis às migrações simultaneamente a iniciativas de crimigração.
No Brasil há sinais claros de preferência por uma política crimigratória. Recentemente foi editada
pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública a Portaria nº 666, de 25 de julho de 2019, que tratou do
impedimento de ingresso, da repatriação e da deportação sumária de pessoa perigosa, mas que veio
a ser revogada em outubro do mesmo ano, após ter sua constitucionalidade questionada por diversas
entidades atuantes na causa migratória. Note-se que medidas como esta são adotadas pelo governo
brasileiro em clara afronta ao princípio da não criminalização das migrações instituído no art. 3º, III,
da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migrações).
Friedrich et al. (2020) lembram que o estrangeiro não está sujeito a responsabilização criminal por
entrar irregularmente no Brasil, circunstância que configura mero ilícito administrativo. Criminalizar
a condição do imigrante não documentado implicaria, sem sombra de dúvidas, substituir a dinâmica
do Direito das Migrações, inspirada no acolhimento digno de qualquer pessoa no plano internacional,
pela lógica punitiva do Direito Penal, em um claro movimento de crimigração que tende a atingir
o estatuto político do imigrante, de forma incompatível com a Declaração Universal dos Direitos
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Humanos, cujo art. VI estabelece que toda pessoa tem o direito de ser, em qualquer lugar, reconhecida
como pessoa (FRIEDRICH et al., 2020).
Nesse sentido,
O migrante deixa de ser visto como uma ameaça à segurança nacional, e passa a ser uma pessoa
titular de direitos. A referida previsão é imprescindível, uma vez que o Estatuto do Estrangeiro
(Lei 6815/1980) nada dizia sobre o acesso à justiça do migrante, mostrando-se em descompasso
com a carga axiológica do Texto Constitucional, visto que os direitos fundamentais são orientados
nos princípios dos direitos humanos, garantindo a liberdade, a vida, a igualdade e entre outros.
(FRIEDRICH et al, 2020, p. 28).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha brasileira em sede de política migratória no século XXI ainda se revela confusa e incerta.
Há indefinição entre a defesa clara e comprometida dos direitos humanos de imigrantes e a mera
reprodução de iniciativas criminalizantes adotadas em países centrais. A hostilidade ao imigrante
inimigo que caracterizou determinados momentos históricos do país pode encontrar terreno fértil para
renascer, inspirada agora por ideias autoritárias vinculadas a um nacionalismo xenófobo e racista. Esse
propósito parece ter sido buscado por medidas já adotadas, nos últimos dois anos, pelo atual governo,
ao criar a possibilidade normativa de se impedir o ingresso, de se repatriar ou deportar sumariamente
pessoa considerada perigosa. A crimigração pode se tornar realidade no país, muito embora o texto
constitucional brasileiro adote um modelo de intervenção mínima em matéria penal e esteja orientado
ao reconhecimento da diversidade cultural e ao respeito à identidade e dignidade da pessoa humana.
O Brasil tornou-se um destino cada vez mais buscado por imigrantes latino-americanos e
africanos. Deve, não apenas por exigência constitucional, mas também e, sobretudo, por deferência
a uma mentalidade mundial de preservação dos direitos humanos, dar visibilidade ao fenômeno
migratório e se empenhar para a eliminação das vulnerabilidades causadas por questões étnicas,
culturais e de gênero. Se não for assim, não haverá no país uma política migratória que se possa dizer
verdadeiramente humanitária.
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INTRODUÇÃO
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1 DESENVOLVIMENTO
No século XIX surgiram, particularmente no campo na antropologia física, teorias que explicaram
a inferioridade feminina com base na biologia. Este campo explicativo tomou muita força na
sociedade moderna, pois teria o “aval” da ciência. Contrapondo-se a esta perspectiva, o movimento
feminista problematizou e reconstruiu argumentos em torno da determinação biológica das
hierarquias entre homens e mulheres, colocando em xeque as concepções relativas ao feminino e
masculino na sociedade ocidental. (SILVA, 2007, p. 253)
O que se questiona não é a existência de tarefas ou ações tipicamente desempenhadas por homens
ou por mulheres, mas sim, a existência de uma hierarquia destas atividades, as quais rotulam os homens
ou mulheres que as realizam em posição de desigualdade, de domínio e de subordinação. (LOURO, 2009)
A questão da igualdade de gênero está intrinsecamente ligada à efetivação da dignidade humana, um
direito fundamental do cidadão. A alteração do âmbito legal possibilita a igualdade formal entre homens e
mulheres, mas é por meio da igualdade nas relações concretas que se efetivará a igualdade de fato.
A igualdade formal é um pressuposto para a uniformização do regime das liberdades individuais a
favor de todos os sujeitos, de um ordenamento jurídico. A igualdade jurídica surge, assim, indissociável
da própria liberdade individual. (CANOTILHO, 2003). Os movimentos sociais atuam de diferentes
formas e podem ser compreendidos como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural
que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. São verdadeiras
manifestações de resistência como passeatas, perturbações da ordem e negociações. (GOHN, 2003)
Quanto à utilização dos termos gênero, direitos humanos, igualdade e respeito:
O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é tributária de movimentos
sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas. Tem uma trajetória que acompanha a luta por
direitos civis, direitos humanos, enfim, igualdade e respeito. (PEDRO, 2005, p. 78)
50 “Masculinidade diz respeito a um conceito que se refere ao conjunto de práticas e ações legitimamente reconhecidas e
aceitas no universo social, como um padrão de comportamento que afirma e realiza um ideal masculino, representando o
homem (gênero) no imaginário cultural coletivo.” (NOVAES, 2013, p. 368).
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sempre é abordado, pois o enfoque dos estudos normalmente segue na direção das questões femininas.
“A masculinidade constrói a civilização pela exclusão, exploração e pela violência, baseadas em seu
sistema de domínio”. (PISANO, 2017, p. 25)
No entanto, ao se considerar o gênero como uma construção social podemos compreendê-
lo como algo que está em constante transformação, dependente da cultura e do ambiente em que
se está inserido. Dessa forma: “associado ao sistema capitalista, o patriarcado funciona como um
sistema que reforça as estruturas de desigualdade e exploração do corpo e trabalho das mulheres.”
(PARADIS, 2014, p. 60). Portanto, o sistema do patriarcado naturaliza a opressão das mulheres.51
Necessário uma mudança acerca do pensamento que desqualifica as mulheres no sentido corporal,
intelectual e moralmente. Simone de Beauvoir ressalta que a sociedade ainda não alcançou o fim da
desigualdade, da subordinação, da violência e de todas as formas de discriminação contra a mulher:
[...] sendo o corpo o instrumento de nosso domínio no mundo, este se apresenta de modo
inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis porque os
estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que
recusamos é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma
hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para
sempre essa condição subordinada. (BEAUVOIR, 2009, p. 65)
Não é diferente quando se busca discutir acerca de mulheres não nascidas com o sexo feminino,
mas que se identificam como sendo do gênero e que sofrem, principalmente, situações de preconceito
e de violência doméstica.
Neste sentido, o Projeto52 de Lei do Senado n° 191, de 2017, de autoria do Senador Jorge Viana
visa a alterar a Lei Maria da Penha para estabelecer que independe da identidade de gênero a garantia
de direitos à mulher. A idéia do referido projeto é a promoção de políticas públicas de prevenção e
combate a qualquer forma de violência para aquelas que não nasceram biologicamente com corpo
feminino, mas que se entendem, agem e se identificam como mulher, deve ser efetivada.
A necessidade da proteção e cuidado da mulher deve ser debatida, sendo indispensável uma
maior compreensão acerca do gênero nas relações sociais. A respeito do tema:
[...] uma construção social e histórica de caráter relacional, configurada a partir das significações
e da simbolização cultural de diferenças anatômicas entre homens e mulheres. [...] Implica o
estabelecimento de relações, papéis e identidades ativamente construídas por sujeitos ao longo
de suas vidas, em nossas sociedades, historicamente produzindo e reproduzindo relações de
desigualdade social e de dominação/subordinação. (BARREDA, 2012, p. 101)
Dessa maneira, “[...] O principal ponto é que a vulnerabilidade alcança em princípio, a todo o
gênero feminino, em qualquer e diversa situação social e econômica e em qualquer contexto, dada a
ancestral legitimidade do poder pátrio masculino”. (MACHADO, 2016, p. 170).
O grande desafio é a compreensão social acerca da igualdade de gênero com ações que promovam
o respeito à mulher e a conscientização sobre a inexistência de hierarquia entre os sexos. Necessária
a construção de uma sociedade baseada no respeito à diversidade e identidade do sujeito, bem como,
ações governamentais que contribuam para a superação da desigualdade de gênero.
E o Brasil como um Estado democrático, nos termos da Constituição Federal de 1988 prevê a
dignidade da pessoa humana no seu artigo 1º, inciso III, a saber: “A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] a dignidade da pessoa humana.”
51 “[...] A maior parte das agressões sofridas pelas mulheres é decorrente de conflitos interpessoais, o que acaba por mere-
cer pouca atenção e sua exposição causa embaraço.” (BANDEIRA, 2014, p. 449)
52 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129598. Acesso em 25 de setembro de 2020.
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A proteção da dignidade humana está diretamente ligada às ações estatais, sendo importante
destacar a construção de um conceito destas denominadas políticas públicas, pois: “Pode-se dizer que
essas duas categorias – direitos e políticas públicas – fazem parte de um mesmo campo semântico.
São como duas faces da mesma moeda: a primeira remete à sociedade e a segunda, ao Estado.”
(NOVAES, 2012, p. 332). Ademais, “é possível compreender como políticas públicas as ações que
nascem do contexto social, mas que passam pela esfera estatal como uma decisão de intervenção
pública numa realidade social [...].” (BONETI, 2018, p.18)
O acompanhamento dos resultados das políticas, em especial as educacionais, vão refletir se a
desigualdade de gênero já foi suficientemente debatida na sociedade e, principalmente, no ambiente
educacional. Cabe destacar que quanto à política pública de educação superior: “não pode deixar de
estender as características acadêmicas, o rigor científico, a liberdade do pensamento e de expressão e a
condição de geradora da cultura local, estadual e nacional a todos os cidadãos.” (ZAINKO, 2003, p. 45)
Além disso, as políticas públicas são formalizadas por meio de teorias edificadas no campo da
sociologia, da ciência política e da economia, bem como, refletem em todos os setores da sociedade.
Acerca do contexto cita-se que:
[...] Pode-se, então, resumir política pública como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo
tempo, ‘colocar o governo em ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando
necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A formulação
de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus
propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças
no mundo real. (SOUZA, 2006, p. 25)
Desta maneira, “Políticas, (omissis), são as formas próprias de o Estado agir nos diversos níveis, de
acordo com as formas como planeja atender às necessidades da população.” (AZIBEIRO, 2002, p. 20). A
política social não deve ser vista unicamente como uma “mera “reação” do Estado aos “problemas” da classe
operária, mas contribui de forma indispensável para a constituição dessa classe. A função mais importante
da política social consiste em regulamentar o processo de proletarização” (LENHARDT; OFFE, 1984, p. 22).
A realidade da mulher no mercado de trabalho53 é um exemplo que comprova a desigualdade
e “[...] atinge, em muito maior extensão e profundidade, as mulheres em idade produtiva do que
os homens nas mesmas condições.” (SAFFIOTI, 1987, p. 125). Com isso, “[...] lá onde há poder,
há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de
exterioridade em relação ao poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 91)
Sendo assim, fica claro que historicamente o homem obteve êxito no mundo público, restando
à mulher apenas o espaço no âmbito privado das relações sociais:
Tudo isso nos faz refletir sobre os traços que se formam na socialização diferenciada dos sexos e
como são valorados socialmente. Sabemos que se preparam homens e mulheres desde o berço.
Ao homem corresponde o mundo público; o ponto de vista é o futuro; se fomenta a intrepidez,
a inovação. À mulher, pelo contrário, lhe corresponde a esfera doméstica e é educada para que
deseje permanecer nela; o ponto de vista é o passado e o presente; e se fomenta a rotina, a
conservação, a repetição. (RUIZ, 2004, p. 139)
É evidente “[...] a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social
adicionado (políticos, religiosos, militares etc.)” (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599)
Neste sentido, salienta-se que “[...] os arranjos familiares e os padrões da divisão sexual do
trabalho modificaram-se, mas continuam a implicar, nas suas formas correntes, maior vulnerabilidade
para as mulheres, especialmente as mais pobres.” (BIROLI, 2018, p. 34)
No que tange aos impactos da discriminação de gênero vale destacar que:
Poucas são as investigações que abordam o impacto da discriminação de gênero nas políticas
públicas educacionais, tais como a persistência da discriminação contra as mulheres expressa
53 “[...] na maior parte dos países, as mulheres são amplamente sobrerepresentadas entre os 50% dos salários mais baixos,
de modo que as fortes diferenças entre países refletem, em grande medida, as diferenças salariais entre homens e mulhe-
res”. (PIKETTY, 2014, p. 251)
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Quanto ao ambiente escolar é necessária uma reestruturação dos conteúdos e a uma maior
capacitação de profissionais da educação, de forma a trazer visibilidade a figura feminina e transformar
o pensamento acerca de que: “[...] a mulher é o oposto, ‘o outro’ do homem: ela é o não homem, o
homem a que falta algo [...]” (EAGLEATON, 1983, p. 143). Sobre a instituição escolar:
A instituição escolar, de forma explícita ou implícita, por meio de seu currículo, seu projeto
político pedagógico, plano anual, plano de aula, material pedagógico, suas práticas pedagógicas,
linguagens, brincadeiras, ainda é um local privilegiado para discussão e reflexão sobre a produção
e reprodução das desigualdades entre os gêneros. (GRAUPE e SOUSA, 2015, p. 111)
Abordar questões de gênero no ambiente escolar pode ser algo difícil, principalmente por muitos
acreditarem que a escola não é o local apropriado para discutir tal temática. Sobre o assunto ressalta-se que:
Sobre o tema vale salientar que o Supremo Tribunal Federal já decidiu acerca da inconstitucionalidade
de lei que vedava ensino sobre gênero e orientação sexual. A ação de descumprimento de preceito
fundamental54 – ADPF n.º 460 foi ajuizada contra o artigo 2º, parágrafo único, da Lei 6.496, de 24
de junho de 2015, do Município de Cascavel/PR, que aprova o plano municipal de educação e veda
política de ensino com informações sobre gênero no município.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental constitui instrumento jurídico
apropriado para sanar lesão ou ameaça de lesão a preceitos e princípios fundamentais provocados
54 Artigo 1º da Lei 9.882/99: “A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Su-
premo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:
I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou muni-
cipal, incluídos os anteriores à Constituição.”
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por ato comissivo ou omissivo do poder público, quando não haja outro meio apto a saná-la.
No caso da ADPF n.º 460 o trecho da Lei 6.496/2015 do Município de Cascavel/PR a que se
refere a argüição é o previsto no artigo 2º, parágrafo único, em que consta: “[...] Além das diretrizes
previstas nos incisos de I a X deste artigo, fica vedada a adoção de políticas de ensino que tendam a
aplicar a ideologia de gênero, o termo “gênero” ou “orientação sexual”.
Na ação em comento a Procuradoria Geral da República descreve que:
A Lei 6.496/2015 utiliza indevidamente a expressão “ideologia de gênero” (cujo conteúdo é incerto
e constitui, ela própria, uma manifestação ideológica) e não “estudos” ou “teoria de gênero”, para
legitimar fusão artificial entre gênero e interesses e afastar a temática do campo dos direitos e do
processo educativo. Ao proibir uso e veiculação de material didático que contenha “ideologia de
gênero”, a lei tenta driblar a discriminação latente da população LGBT e a simples discussão sobre
gênero e sexualidade, o que parece ser seu principal intento. “Ideologia”, nesse caso, serve como
palavra-disfarce. Por essa razão, não haveria utilidade em debater seu sentido na lei municipal.
A ampla proibição da Lei 6.496/2015, que abrange identidade, ideologia e orientação de gênero,
além de imprecisa, é discriminatória, porquanto violadora da laicidade do estado e dos direitos
fundamentais à igualdade, à liberdade de ensino e de aprendizado, à proteção contra censura e à
liberdade de orientação sexual. (ADPF n.º 460, petição inicial, p.10)
Além disso, a mulher esteve presente desde o início da industrialização, mas seu trabalho era
menos qualificado, mal pago e raramente colocado no nível onde se exercia o poder, ficando sempre
em posição secundária e subordinada ao seu papel de mãe e de esposa que era seu único papel social
reconhecido e legítimo.
Desta maneira, evidencia-se a importância do estudo dos direitos humanos com enfoque na temática
gênero, bem como, a importância da educação55 para combater todas as formas de desigualdade. Muitas
destas legislações vigentes destacam o importante papel da escola na formação do cidadão, uma vez
que é o local propício para a discussão e reflexão das desigualdades, principalmente entre os gêneros.
Uma escola é uma entidade social; não a mera reunião de indivíduos com diferentes papéis. Trata-
se, pois, da preparação de profissionais cujo trabalho será sempre ligado a uma instituição com
práticas, valores e princípios sedimentados ao longo de sua existência histórica. É o que poderíamos
denominar ‘mundo escolar’ ou ‘vida escolar’. (CARVALHO, 2007, p. 472)
55 “[...] educação não é o mesmo que escola. Esta última é uma invenção da humanidade no seu processo histórico para
difundir o conhecimento de forma sistematizada” (BITTAR, 2009, p.16)
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Evidente que não basta apenas reconhecer e enumerar direitos fundamentais. Deve existir, de fato,
um esforço por parte do Estado para que se tornem efetivas as políticas públicas já institucionalizadas,
um engajamento da sociedade e, principalmente, da escola no combate a todas as formas de violação
de direitos humanos.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por muito tempo as diferenças entre homens e mulheres foram legitimadas pela separação dos
sexos e pela posição que homens e mulheres ocupavam na sociedade. O papel cultural de ambos
promoveu uma relação hierarquizada, passando a ser legitimada a dominação do homem sobre a mulher.
A emancipação da mulher deve ser ressaltada na educação básica onde se atinge o comportamento
daqueles que estão com a personalidade em formação e os que estão na fase adulta e desconhecem
a realidade, e as demais questões acerca do gênero. Portanto, é através da existência de políticas
públicas voltadas à educação, proteção e cuidado, que se promove uma sociedade melhor onde se
prevaleça o respeito, o combate à criminalidade e à intolerância.
É crucial o papel da escola na formação do aluno como cidadão e sujeito de direitos e, no setor
público, cabe ao Estado a formulação de políticas públicas na área de Educação em Direitos Humanos.
Assim, a escola é uma instituição de formação de alunos, mas também do cidadão, sendo indispensável
essa conexão do aluno com os problemas sociais e com as formas de enfrentamento da desigualdade.
A promoção de políticas públicas de prevenção e combate a qualquer forma de desigualdade
deve ser efetivada para toda a sociedade, inclusive no ambiente escolar. O ambiente escolar é um
espaço favorável para se promover reflexões, a desconstrução do pensamento acerca da inferioridade
feminina e a inibição de comportamentos discriminatórios e preconceituosos. O investimento em
educação e a capacitação dos profissionais da área são mecanismos que fortalecem a discussão do
tema, a promoção dos direitos humanos e a proteção da dignidade humana.
Para a ascensão da igualdade de gênero, faz-se importante uma reflexão sobre a realidade
escolar, a diversidade, as mudanças no currículo pedagógico, inserindo a discussão de assuntos como
a inclusão, o preconceito, o gênero e todas as formas de violência.
Assim, as temáticas gênero e violação de direitos humanos devem ser discutidas em sala de
aula, assim como a instituição de cursos voltados à formação continuada de professores com enfoque
na proteção dos direitos humanos.
A promoção de políticas públicas de prevenção e combate a qualquer forma de desigualdade deve
ser efetivada inclusive no ambiente escolar. Portanto, a criação de leis de amparo, de proteção, de combate
à desigualdade de gênero, retrata um avanço da sociedade e demonstra que a referida legislação deve ser
ampliada para atender às transformações sociais e a prevenção à violação de direitos humanos.
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RESUMO: O Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC) é realizado de variadas formas, a partir das
diversas dimensões do uso violento do trabalho humano, tendo a exploração ilegal do indivíduo
para fins de lucro, qualquer que seja, como característica comum. A condição de TEC é derivada
das vulnerabilidades do sujeito; dentre elas, a mais marcante é a pobreza (ONU, 2002) que insere
os indivíduos no sistema de desigualdade e discriminação estruturais da sociedade brasileira. Neste
sentido, a discriminação se apresenta sistêmica, enquanto dispositivo biopolítico de controle da vida,
e consiste de normas legais, políticas ou práticas culturais, geradas por desigualdades e violências.
Assim, a partir dos estudos de Galtung (1969) sobre a compreensão da violência para os estudos de paz
e da biopolítica em Agamben, analisa-se as conclusões da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH) no Caso “Fazenda Brasil Verde v. Brasil” para compreender, à luz das teorias adotadas,
como a prática de trabalho escravo acontece em desfavor de grupos que histórica e sistematicamente
são mantidos em uma situação de exclusão, marginalização e violência.
INTRODUÇÃO
O Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC) é um fenômeno social global que, apesar de ilegal,
se mantém, com o descarte de vidas e com a garantia de vantagens do ponto de vista econômico e
operacional para o explorador. A condição de vulnerabilidade dos mais pobres é causa de exclusão
social e de inserção destes sujeitos na rede de exploração do trabalho humano, que alicia indivíduos
de maioria jovem, analfabeta e de regiões com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (OIT,
2011). De acordo com o sociólogo Kevin Bales (2012), a escravidão contemporânea é mais vantajosa
que a antiga escravidão, legalmente permitida, mas que possuía alto custo, lucros baixos e dificuldade
para se obter mão de obra. O TEC, ao contrário, tem baixo custo de recrutamento da mão de obra,
maior lucro em razão da rotatividade e considera os indivíduos como descartáveis, devido ao grande
contingente de trabalhadores desempregados e em situação de miserabilidade.
Para o Global Slavery Index 2018, da Walk Free Foundation57, em 2016 a escravidão contemporânea
atingiu cerca de 45.800.000 de pessoas, quase 0,5% da população mundial (WALK FREE FOUNDATION,
2018). Sobre os dados do Brasil, segundo a mesma organização, há 161.100 trabalhadores escravos
contemporâneos. Reflexo dessa realidade de exploração violenta, o Brasil foi o primeiro país integrante
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos pela prática de escravidão contemporânea. Em dezembro de 2016, a Corte IDH condenou
o Estado brasileiro no caso “Fazenda Brasil Verde”, derivado da Petição nº 12.066 apresentada em
1998 pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)
à CIDH. O caso diz respeito ao resgate de 85 trabalhadores vítimas de trabalho escravo nos anos
2000 na Fazenda Brasil Verde, no município de Sapucaia, no sul do Estado do Pará, e que não houve a
responsabilização civil e criminal dos responsáveis, em razão de fatores que expuseram a complexa
56 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Especialista em Direito Público pela Estácio de Sergipe. Analista
do Ministério Público de Sergipe. E-mail: lucascarvalho.br@gmail.com
57 A opção pelos dados da WFF para esta pesquisa fundamenta-se no conceito de escravidão contemporânea para a referida
organização, o qual nos filiamos. Para o relatório Global Slavery Index 2018, a escravidão contemporânea abrange um con-
junto de conceitos jurídicos específicos, incluindo trabalho forçado, servidão por dívidas, casamento forçado, escravidão e
práticas semelhantes à escravidão e tráfico de seres humanos. Compreendemos, assim, que todas estas práticas são formas
contemporâneas de escravidão.
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O Caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde contra a República Federativa do Brasil” é derivado
da Petição nº 12.066 apresentada em 1998 pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)58 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
A Fazenda Brasil Verde está localizada no município de Sapucaia, no sul do Estado do Pará e pertencia
a João Luiz Quagliato Neto, um dos maiores criadores de gado do Norte do país. Tem-se notícia de que
as violações aos direitos dos trabalhadores naquela propriedade rural remontam aos anos 1980, com
denúncias apresentadas à Polícia Federal em dezembro de 1988 e janeiro de 1989. Nos primeiros
anos da década de 1990 houve o registro das primeiras autuações da Delegacia Regional do Trabalho por
fatos que poderiam caracterizar trabalho escravo contemporâneo, mas que não foram assim analisados
pelas autoridades locais. No entanto, somente em 1997, como consequência da fiscalização realizada pelo
Grupo Móvel do Ministério do Trabalho59 nos dias 23, 28 e 29 de abril de 1997, que houve a primeira
denúncia penal contra o proprietário e os aliciadores, todavia, não houve a responsabilização dos infratores.
Foram dezenas de trabalhadores submetidos à condição de escravidão contemporânea durante
este longo período, tendo a sentença identificado a existência de oitenta e cinco trabalhadores vítimas
da escravidão no ano 2000 e outros 43 trabalhadores que foram resgatados na mesma propriedade
em 1997, e que tampouco receberam proteção judicial adequada, o que equivaleu a negar-lhes acesso
à justiça. Durante a instrução processual na Corte, foram ouvidas algumas vítimas de um aliciamento
ocorrido no ano 2000 por um aliciador (“gato”) conhecido como “Meladinho”, que prometeu um salário
de 10 reais por “alqueire de juquira roçada”, o que era considerado pelos trabalhadores como um salário
muito atrativo. Além disso, como parte da oferta, o “gato” entregava aos interessados um adiantamento
de salário entre 30 e 60 reais e lhes oferecia transporte, alimentação e alojamento durante sua estada
na fazenda. Para chegar à Fazenda Brasil Verde, os trabalhadores recrutados tiveram de viajar durante
aproximadamente três dias em ônibus, trem e caminhão, que não eram aptos ao transporte de pessoas.
Quando os trabalhadores chegaram à Fazenda Brasil Verde, entregaram suas carteiras de trabalho ao
gerente conhecido como “Toninho”, sem que estas fossem devolvidas depois, além de o gerente os
obrigou a assinar documentos em branco. Ao chegarem à Fazenda, os trabalhadores perceberam que
nada do que lhes havia sido oferecido era certo. Através das dívidas fraudulentamente impostas e da
vigilância armada, os trabalhadores foram privados de sua liberdade, com ameaças e agressões que
constituíam riscos à vida e à integridade física dos trabalhadores, além de, por outra parte, as pobres
condições de trabalho atentavam contra a honra e a dignidade das pessoas.
Na sentença proferida pela Corte Interamericana em 20 de outubro de 2016, o Tribunal asseverou
que o Estado brasileiro não adotou medidas para prevenir a forma contemporânea de escravidão a
que foram submetidas mais de uma centena de pessoas, nem para interromper e punir os crimes de
que foram vítimas. Ninguém foi responsabilizado civil ou criminalmente e as 128 vítimas resgatadas
em 1997 e 2000 não foram indenizadas, o que corresponde a ofensa ao direito às garantias judiciais
e denegação de Justiça.
Para conceituar o TEC, a Corte utilizou-se dos tratados e da jurisprudência internacional
para atualizar os conceitos sobre a matéria e delimitar o alcance do artigo 6 da CADH, explicado
anteriormente. Segundo a Corte IDH, o elemento de “propriedade” previsto nas Convenções deve
58 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma organização da Igreja Católica, criada em junho de 1975, durante o Encontro
de Bispos e Prelados da Amazônia, voltada para a defesa dos direitos humanos e da reforma agrária. Tem como missão “ser
uma presença solidária, profética, ecumênica, fraterna e afetiva, que presta um serviço educativo e transformador junto aos
povos da terra e das águas, para estimular e reforçar seu protagonismo” (CPT, 2001). Foi criada para ser um serviço à causa
dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e de ser um suporte para a sua organização. Desde a sua criação possui forte
atuação nas denúncias de trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Andrade (2015) afirma que a Comissão tem agido
tanto no âmbito preventivo, na formação e na disseminação de informações para os trabalhadores, quanto no coercitivo,
enquanto provocador dos órgãos de repressão para tornar o combate efetivo.
59 Em 1995, ano em que o Brasil reconheceu oficialmente perante a OIT a existência de trabalho escravo, algumas medidas
foram tomadas como a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) e do Grupo Executivo de Repressão ao Tra-
balho Forçado (Gertraf), no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) do governo federal. O GEFM é responsável
pela apuração das denúncias e realiza uma inspeção, feita por auditores do trabalho, policiais federais ou rodoviários e
procuradores do trabalho. Já o Gertraf surgiu com a finalidade de coordenar e implementar as providências necessárias à
repressão ao trabalho forçado (OIT, 2010).
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No Brasil, Osório (2009) explica que a sociedade brasileira além de ser socialmente desigual é
também marcada pela desigualdade racial, uma herança do passado escravagista que se manteve
após a Abolição e às transformações sociais ao longo do século XX. A persistência dessa desigualdade,
segundo o autor, se deve a uma combinação da origem social, da discriminação nas trajetórias
educacionais e de trabalho, associada à desigualdade regional conjugada com a variabilidade da
composição racial das populações locais.
De acordo com o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil (BRASIL, 2018), a maioria dos
municípios de origem dos trabalhadores resgatados se caracterizam pela pobreza, desigualdade e baixo
índice de desenvolvimento humano. Cerca de 57% dos municípios de naturalidade dos trabalhadores
entre 2003 a 2017 possuem um terço ou mais dos seus habitantes vivendo em domicílios nos quais
nenhum morador tem ensino fundamental completo.
Nesse contexto, 91% dos trabalhadores egressos no mesmo período nasceram e cresceram em
locais cujo índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M, 1991) era considerado “muito baixo”
para os padrões das Nações Unidas. Cerca de vinte anos depois, 32% dessas localidades ainda apresentam
IDH-M (2010) baixo ou muito baixo, o que destaca a correlação existente entre pobreza, os déficits de
desenvolvimento humano e a vulnerabilidade social que facilita o aliciamento para o trabalho escravo.
O Radar do Trabalho Escravo da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Governo Federal, que reúne
dados das ações de combate ao trabalho escravo desde 1995, aponta também para a relação de desigualdade
e desemprego com a escravidão contemporânea. Segundo o Órgão, em 2018, 45% dos trabalhadores
maiores de 18 anos resgatados pelas equipes de fiscalização nunca possuíram um emprego formal antes
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da data do resgate, 57% deles tiveram nenhuma ou apenas uma admissão no mercado de trabalho formal
e 72% obtiveram, no máximo, três admissões registradas no histórico laboral (BRASIL, 2019).
As informações, que têm como base dados do seguro-desemprego do trabalhador resgatado
e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), revelam também que 87% dos
trabalhadores resgatados eram homens e 13%, mulheres; 22% deles tinham apenas até o 5º ano do
ensino fundamental; 18% possuíam ensino fundamental completo e 11% eram analfabetos.
A condição de vulnerabilidade desses sujeitos é perpetuada dentro de uma realidade de
desigualdade estrutural que se constitui em forma de exercício de controle sobre a vida. Em uma
análise biopolítica, a exploração econômica da força de trabalho em condições de escravidão ocorre
a partir da manutenção da violência estrutural, reduzindo-o a uma vida nua.
Com a assunção da biopolítica, Agamben (2014) nos explica que o paradigma do poder moderno
consiste na “gestão de coisas e pessoas” com o objetivo de produzir sujeitos governáveis a partir da
captura de sua subjetividade. A estrutura da biopolítica moderna determina-se, então, pela decisão sobre
o valor ou (des)valor da vida e o soberano é quem decide, produzindo a vida nua do homo sacer. A
vítima do trabalho escravo tem a sua subjetividade capturada. Encontra-se desnudado de qualquer tutela
jurídica, o que o reduz a um corpo “qualquer”, ao portador de uma vida nua, isto é, uma vida política (bíos)
reduzida a zoé, vida animal, biológica, a potencialidade do que seria, dentro de toda a sua potência.
Para Agamben (2014), a biopolítica é a marca fundamental de toda a política ocidental, sendo
radicalizada na modernidade, com a entrada da vida do homem e dos processos biológicos inerentes
ao ser humano como parte do cálculo do poder, diante da necessidade do Estado em fortalecer a sua
força produtiva. O autor assinala que o controle disciplinar aplicado por intermédio de um conjunto
de tecnologias de poder criou as condições necessárias para o êxito do capitalismo. Desse modo, com
o argumento de proteção da vida da população, o poder soberano passou a preservar a vida de alguns
e a morte de outros, consistente no direito de vida e de morte, direito de fazer viver e deixar morrer.
Explicando o trabalho de Foucault sobre a transformação do poder na idade moderna, Agamben
(2008, p. 88) esclarece que, na sua figura tradicional – de soberania territorial – o poder é definido
essencialmente como direito de vida e de morte. Contudo, este direito é assimétrico, pois se exerce do
lado da morte e se relaciona com a vida de forma indireta, como abstenção do direito de matar. É assim
que “Foucault caracterizou a soberania territorial com a fórmula fazer morrer e deixar viver” (2008, p.88).
Quando, a partir do século XVII, com o nascimento da ciência da polícia, o cuidado da vida e
da saúde dos súditos começa a ocupar um lugar cada vez mais importante nos mecanismos e nos
cálculos dos Estados, o poder soberano transforma-se gradualmente naquilo que Foucault denomina
de biopoder. O antigo direito de fazer morrer e deixar viver dá lugar a uma figura inversa, que
define a biopolítica moderna e que se expressa na fórmula fazer viver e deixar morrer. Esta marca
do biopoder transforma “a estatização do biológico e do cuidado com a vida no próprio objetivo
primário” (AGAMBEN, 2008, p. 155).
Pode-se dizer, então, que o poder soberano divide a sociedade entre aqueles aptos a exercerem
a sua cidadania e os impossibilitados a tais direitos, apesar de teoricamente serem sujeitos desses
mesmos direitos. Agamben, assim, afirma que na “biopolítica moderna, soberano é aquele que decide
sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal”. (AGAMBEN, 2014, p. 149). É no controle
biopolítico do direito de vida e de morte que está a figura do homo sacer.
Carvalho e Ávila (2017) explicam, que para Agamben, o homo sacer, do antigo direito romano,
é um indivíduo não sacrificável e ao mesmo tempo matável, o homem sacro, por estar destituído
completamente da condição humana de protegido pelo direito. Uma figura jurídico-política pelo qual
uma pessoa, ao ser proclamada sacer, era legalmente excluída do direito. Esta condição impedia-o de
ser legalmente morto (sacrificado), porém qualquer um podia matá-lo, pois a lei não punia por isso.
Esta sacralidade da sua vida configura-se não uma ambiguidade, mas uma dupla exceção: o
homo sacer é excluído incluindo-o – tanto do direito divino, pois não pode ser objeto de sacrifício,
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como do direito dos homens – diante da possibilidade de dispor de sua vida sem cometer homicídio60.
Neste sentido, Castro (2013, p. 65) explica que a sacralidade da vida é uma produção política, a
contraparte do poder soberano, da vitae necisque potestas (poder de vida e poder de morte).
O homo sacer é o incluído pela exclusão e excluído de forma inclusiva. Ao ser incluído pelo
abandono está exposta à vulnerabilidade de todas as formas de violência. Essa figura paradoxal,
utilizada por Giorgio Agamben, revela os dois indivíduos que estão fora e acima da ordem: o homo
sacer e o soberano. A vida humana abandonada pelo direito, o homo sacer, existe porque há uma
vontade soberana que tem o poder de suspender a ordem, decretar a exceção e a existência da vida
nua. Esta vida nua foi colocada para fora da jurisdição humana, tendo como maior exemplo, trazido
por Agamben, a vida no campo de concentração.
Agamben utiliza-se dessa figura histórica para afirmar que homo sacer é a vida abandonada
pelo direito, a vida nua. Neste contexto, o corpo é o elemento primordial da estratégia política do
soberano, pois ao tomá-lo sem identidade jurídica, demonstra com clareza que a bíos, como a vida
política, fora reduzida a zoé, aqui como vida animal, biológica. Neste sentido, o filósofo sugere haver
a noção de bando, que por si só, significa a existência um paradoxo: é, ao mesmo tempo, o ato do
poder soberano de se incluir no âmbito da legislação alguém que será, por esta razão, excluído de
sua comunidade. Aplicando-se a lei, que não lhe garante direitos, mas excepcionalidades, se exclui
os indivíduos, que se despersonalizam frente a sua comunidade, o que os torna incluídos-excluídos.
Agamben chama bando à relação de soberania e refere-se tanto à vida excluída da comunidade quanto
à insígnia do soberano.
A relação de abandono é, de fato, tão ambígua, que nada é mais difícil do que desligar-se dela. O
bando é essencialmente o poder de remeter algo a si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em
relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto em bando é remetido à própria separação
e, juntamente, entregue à mercê de quem o abandona, ao mesmo tempo excluso e incluso,
dispensado e, simultaneamente, capturado (AGAMBEN, 2014, p. 109).
Esta exposição do limiar entre vida e direito, no domínio do estatuto da vida nua, em que interno
e externo se confundem, constituem a relação de exceção que é uma relação de bando. Uma relação
paradoxal e de indeterminação em que, excluído, o banido estará ainda ligado por esta situação de
abandono. Por um lado excluído e exposto, por outro incluído e ligado ao bando, haja vista a sua
exclusão. Esta permanência do controle político sobre aquele que foi “abandonado” pelo “bando” é a
pedra de toque do exercício da soberania, pois “a implicação da vida nua na esfera política constitui
o núcleo originário ‒ ainda que encoberto ‒ do poder soberano” (2014, p. 14).
Essas relações implicam formas de violência exercidas através de estruturas de poder que
controlam a vida, funcionando como dispositivos biopolíticos. Quando diferentes fatores impedem a
realização do indivíduo, tem-se um tipo de violência que se revela para além de sua dimensão física e
direta, e que está relacionada com a cultura, que faz com que a exploração e a opressão sejam vistas
como naturais ou ainda as torna invisíveis.
Isto é, a cultura faz com que vejamos a exploração e/ou a repressão como normais ou naturais,
ou que simplesmente não as vejamos. E a manutenção ou quebra dessa violência estrutural passa
pelo recurso à violência directa. (PUREZA; MOURA, 2005, p. 4).
60 Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar sacrifício; e sagrada, exposta à morte
e insacrificável, é a vida que foi capturada nessa esfera. [...] A sacralidade da vida, que hoje se pretende valer contra o poder
soberano como um direito humano fundamental em todo sentido, expressa na origem, ao contrário, precisamente a sujeição
da vida a um poder de morte. Sua irreparável exposição na relação de abandono. (AGAMBEN, 2014, p. 92-93)
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e está relacionada diretamente com a injustiça social, cuja melhor representação seria a morte das
pessoas devido à pobreza, citada por Gomes (2013).
A violência cultural se perfaz quando aspectos da cultura impedem que seja percebida a violência,
o que promove e justifica a violência direta e estrutural. Ela é definida como aspecto ou elemento de
uma cultura, da esfera simbólica da nossa existência que pode ser usado para legitimar socialmente a
violência direta ou estrutural. A violência cultural, atuando através de mecanismos de interiorização,
faz com que a violência direta e a estrutural pareçam corretas, ou que pelo menos não pareçam
erradas (PUREZA; MOURA, 2005, p. 3). Há um continuum entre violência direta, violência estrutural e
violência cultural que se manifesta pela institucionalização de estruturas violentas, a internalização
de uma cultura violenta e consequente institucionalização e repetição da violência direta.
Em um Estado Democrático de Direito, homo sacer refere-se à vida abandonada, ao sujeito que vive
à margem da sociedade. A precarização das condições de vida, a marginalização de uns e o assassinato
de outros, o alijamento de todos os direitos previstos na Constituição e documentos internacionais de
direitos humanos constituem produções contínuas de vidas nuas, de sujeitos expostos à violência e à
miséria. Uma sobra humana que nutre a própria manutenção de uma estrutura de poder.
A vida nua do homo sacer é sacrificada na estrutura biopolítica contemporânea. O homo sacer
é a pessoa que não faz parte da vida a ser preservada, mas, sim, da vida descartável, compondo a
estrutura da exceção contemporânea. Sacer remete à vida sacra e sacra é a vida capturada pelo bando
soberano, é a vida sujeita, originalmente, ao poder de morte do soberano. Portanto, quando se usa a
retórica que defende a sacralidade da vida, fala-se de uma vida submetida a um poder de morte, uma
vida que é matável e insacrificável.
Agamben ao retomar esta ideia mostra que nos Estados Democráticos de Direito contemporâneos
a vida nua do homo sacer está submetida ao biopoder. Nesse sentido, a manutenção de grupos
populacionais em situação de vulnerabilidade faz parte do próprio exercício de poder em relação
àqueles que não podem ser autônomos no âmbito do exercício de direitos, exemplo de quando a
excepcionalidade vira regra são os trabalhadores escravos contemporâneos.
O TEC é realizado de variadas formas, a partir das diversas dimensões do uso violento do trabalho
humano, tendo a exploração ilegal do indivíduo para fins de lucro, qualquer que seja, como característica
comum. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) (2016), a região do planeta com a maior
prevalência de trabalho escravo, definida como o número de vítimas por mil habitantes, é o centro e
sudeste da Europa (compostos por países que não integram a União Europeia) e a Comunidade de Estados
Independentes (4,2 por 1.000 habitantes). Em seguida, estão a África (4 por 1.000 habitantes), Oriente
Médio (3,4 por 1.000 habitantes), Ásia-Pacífico (3,3 por 1.000 habitantes), América Latina e Caribe (3,1 por
1.000 habitantes) e, por fim, as economias desenvolvidas e a União Europeia (1,5 por 1.000 habitantes).
Isto significa que parcela da população mundial é mantida nesta situação de vulnerabilidade, vivem a
excepcionalidade permanente. Nessas circunstâncias, a sua existência evidencia a crise radical dos direitos
humanos: é diante das situações mais explícitas de vulnerabilidade que os direitos humanos, na forma
como são manejados pelas estruturas de poder, não conseguem extinguir o processo de naturalização da
desigualdade, que constitui uma marca da sociedade ocidental, pois seu caráter emancipatório é contido
pelo seu uso biopolítico para controlar a vida dos indivíduos.
A condição de trabalhador escravo é derivada das vulnerabilidades do sujeito e, dentre elas, a mais
marcante é a pobreza. Sobre este ponto, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Observação
Geral nº 20, considerou que a pobreza é uma “condición humana que se caracteriza por la privación continua
o crónica de los recursos, la capacidad, las opciones, la seguridad y el poder necesarios para disfrutar de un
nivel de vida adecuado y de otros derechos civiles, culturales, económicos, políticos y sociales” (2001, p. 8)61.
Por sua vez, os Princípios Diretores sobre Extrema Pobreza e Direitos Humanos da ONU define-a como “una
61 “Uma condição caracterizada pela privação contínua e crônica de recursos, capacidade, opções, segurança e poder para
desfrutar de um padrão de vida adequado e outros direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais”. (tradução livre)
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combinación de escasez de ingresos, falta de desarrollo humano y exclusión social”62 (2012, p. 30).
Além disso, o Comitê de DESC constatou que a discriminação contra alguns grupos é onipresente
e está frequentemente arraigada ao comportamento e à organização da sociedade, implicando em
atos de discriminação. Esta discriminação sistêmica e, por vezes, histórica, pode consistir em normas
legais, políticas, práticas ou atitudes culturais que geram desigualdades. Neste aspecto, a prática de
trabalho escravo acontece em desfavor de grupos que histórica e sistematicamente são mantidos em
uma situação de exclusão e marginalização.
Os trabalhadores escravos contemporâneos encontram-se inseridos em um sistema de
desigualdade e discriminação estruturais da sociedade. Sobre o conceito de discriminação, para a
Corte IDH (2016), intérprete da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), a Convenção não
contém uma definição explícita do conceito de “discriminação” nem de quais grupos são submetidos
à discriminação. Diante disso, o Tribunal tem assinalado que discriminação é: “toda distinción,
exclusión, restricción o preferencia que se basen en determinados motivos, como la raza, el color,
el sexo, el idioma, la religión, la opinión política o de otra índole, el origen nacional o social, la
propiedad, el nacimiento o cualquier otra condición social, y que tengan por objeto o por resultado
anular o menoscabar el reconocimiento, goce o ejercicio, en condiciones de igualdad, de los derechos
humanos y libertades fundamentales de todas las personas.”63 (CORTE IDH, 2016, p. 3)
No julgamento do Caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde versus Brasil, o juiz Eduardo
Ferrer Mac-Gragor Poisot analisou o fenômeno do TEC no Brasil dentro do contexto de “discriminação
estrutural histórica” do país que, de maneira sistemática, permitiu e permite a exploração violenta do
ser humano. A Corte IDH considerou a pobreza como um componente da proibição de discriminação
por “posição econômica”, encontrando-se fundamento na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. Considerou-se, na sentença, que as discriminações sofridas pelos 85 trabalhadores escravos
da Fazenda Brasil Verde são derivadas da posição econômica, por sua situação de pobreza64.
62 “Uma combinação de escassez de renda, falta de desenvolvimento humano e exclusão social” (tradução livre)
63 “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em certos motivos, tais como raça, cor, sexo, língua, re-
ligião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou qualquer outra condição social cujo
objetivo ou resultado seja anular ou impedir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, dos direitos
humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas.” (tradução livre)
64 339. […] en el presente caso algunas características de particular victimización compartidas por los 85 trabajadores res-
catados el 15 de marzo de 2000: [i)] se encontraban en una situación de pobreza, [ii)] provenían de las regiones más pobres
del país, [iii)] con menor desarrollo humano y perspectivas de trabajo y empleo, [iv)] eran analfabetas, y [v)] tenían poca o
nula escolarización […]. Lo anterior los colocaba en una situación que los hacía más susceptibles de ser reclutados mediante
falsas promesas y engaños. Dicha situación de riesgo inmediato para un grupo determinado de personas con características
idénticas y originarios de las mismas regiones del país, tiene orígenes históricos y era conocida desde, al menos, 1995,
cuando el Gobierno de Brasil reconoció expresamente la existencia de “trabajo esclavo” en el país. […]
341. Una vez constatada la situación anterior, la Corte estima que el Estado no consideró la vulnerabilidad de los 85 traba-
jadores rescatados el 15 de marzo de 2000 en virtud de la discriminación en razón de la posición económica a la
que estaban sometidos. Lo anterior constituye una violación al artículo 6.1 de la Convención Americana, en relación con
el artículo 1.1 del mismo instrumento, en perjuicio de ellos. (CORTE IDH, 2016, p. 56) (grifou-se)
65 “De uma condição estrutural, a pobreza passou a ser pensada e tratada como uma categoria sociocultural, ou seja, um
critério de classificação que define oportunidades, cancela expectativas e modela os corpos daqueles que não se enquadram
nos “novos” territórios neoliberais. Operação histórica que, no entanto, torna-se mais visível hoje em dia devido à presença
de meios de comunicação que atuam não apenas como caixas de ressonância para a sociedade, mas também se tornaram
atores decisivos para a configuração de modelos sociais que rivalizam com as instâncias e os discursos de socialização
“tradicionais” (a escola, a família, a paróquia, o livro didático, entre outros).” (tradução livre)
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sistemática de vidas nuas e constituem parte de um sistema que sobrevive da produção de desigualdade
e da exploração violenta, vítimas da violência estrutural. O exercício de biopoder, de poder sobre a
vida ou de manutenção da mera vida, explica como as condições de vulnerabilidade são perpetuadas,
o que inclui o desconhecimento e/ou a própria opressão do sistema jurídico, bem como a apatia e a
discriminação por isso provocada.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as questões atinentes aos direitos humanos,
sua construção, formalização e desenvolvimento, abordando a possibilidade de sua observância
frente à diversidade cultural, salientando os papéis ocupados por tais conceitos na modernidade. Sob
este prisma, o enfoque recai sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, reconhecimento
ocorrido após um processo histórico de lutas por igual dignidade, sendo que a diversidade está
presente na pluralidade de identidades femininas existentes no mundo.
INTRODUÇÃO
O presente estudo pretende analisar os direitos humanos, entendidos como não sendo inatos
à humanidade, mas fruto de muitas lutas e transformações sociais, ao longo da história, sendo
que a concepção contemporânea dos direitos humanos se caracteriza pela universalidade e pela
indivisibilidade desses direitos, inaugurada com a Declaração Universal de 1948.
A extensão universal dos direitos humanos alcança todos os seres humanos do planeta, tendo
como base a ideia de que a condição de pessoa é o único requisito à dignidade e à titularidade de
direitos. Assim, a dignidade humana é pressuposto ao estabelecimento de uma ordem pública mundial,
abrigando valores considerados básicos da humanidade, sendo fundamento dos direitos humanos.
A partir da mudança do pensamento mundial, expressa na Declaração da ONU, ocorre o
reconhecimento do indivíduo como um ser dotado de dignidade, exigindo uma nova forma de
proteção dos direitos dos indivíduos, tornando-se fundamental a convocação para que os mesmos
sejam resguardados e garantidos internacionalmente.
Nesse cenário, surge um rol de direitos materializado por bens jurídicos protegidos,
independentemente de quaisquer particularismos de nacionalidades ou de matriz cultural, tais como
vida, integridade física e moral, garantias judiciais básicas, o que implica num dever de proteção
universal efetiva dos direitos humanos.
A partir deste ponto, pode-se direcionar a discussão histórica que envolve o corpo feminino,
cujo controle tem sido regularmente exercido pelo Estado, representando o alvo central de ideologias
conservadoras e fundamentalistas, numa abordagem dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
sob a perspectiva da diversidade cultural, particularizando e destacando direito à igual dignidade.
1 DIREITOS HUMANOS
A proteção aos direitos humanos passou por diversas mudanças, haja vista que inicialmente
restringia-se a algumas legislações internas de países como a Inglaterra (1684), os Estados Unidos
66 Doutora em Direito, UNISINOS; Mestre em Desenvolvimento, UNIJUI; Professora do PPGDireito, Mestrado em Direitos Hu-
manos e Graduação em Direito da UNIJUÍ; Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos
67 Mestre; Professora da UCEFF Itapiranga, Advogada; Doutoranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ; Integrante do Grupo
de Pesquisa Biopolítica & Direitos Humanos
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respeitada, promovida e protegida, não podendo ser criada, concedida ou retirada, já que existe em
cada ser humano como algo inerente (SARLET, 2006).
O Direito Internacional Público passa a se constituir a partir do princípio da proteção internacional
da dignidade da pessoa humana, o qual se sobrepõe ao da soberania. A importância daquele princípio o
torna fundamento de um núcleo rígido de direitos, que vincula os Estados à comunidade internacional,
fixando direitos irredutíveis, instituídos a partir da Declaração Universal.
O “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, com princípios próprios, solidifica-se como corpo
jurídico dotado de uma variedade de instrumentos internacionais de proteção, impondo obrigações
e responsabilidades aos Estados, com relação às pessoas a ele submetidas. Sua observância deixou
de atender ao interesse estritamente doméstico dos Estados, passando a ser matéria de interesse do
Direito Internacional e objeto de sua regulamentação (MAZUOLLI, 2001).
O reconhecimento e institucionalização dos direitos humanos tem aumentado nos últimos anos,
mas muitas violações continuam acontecendo ao redor do mundo. É muito comum o descaso estatal
com alguns de deveres básicos, o que justifica a existência de um sistema internacional para proteger
os direitos humanos violados. Nesse sentido, um sistema internacional de proteção de tais direitos
representa garantia fundamental, pois fortalece o mecanismo de garantia no interior dos Estados. Além
disso, os sistemas regionais dão segurança aos cidadãos da região e sinalizam que, caso um Estado não
consiga proteger a população, há um espaço além das fronteiras nacionais. (BEDIN E SCHNEIDER, 2012)
Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos são o interamericano, o europeu e
o africano, com suas respectivas Comissões e Cortes, criados para efetivar a aplicação da tutela
vinculando os Estados partes. O sistema global é subsidiário aos sistemas internos de tutela, de
modo que só é movimentado quando o sistema nacional falhar em garantir os direitos humanos.
O “direito a ter direitos” passou a ser a principal referência deste processo de internacionalização
dos direitos humanos, que surgiu como uma reação às barbáries cometidas durante o holocausto
bélico/militar do século XX (ARENDT, 1995). Criou-se uma sistemática internacional de proteção que
torna possível a responsabilização do Estado, no plano externo, quando, internamente, os órgãos
competentes não apresentarem respostas satisfatórias na proteção desses mesmos direitos.
Os direitos humanos envolvem reconhecimento recíproco de obrigações fundamentais à garantia
da vida do indivíduo, em sua universalidade, não podendo ser mitigados por conta de particularismos
culturais, representando patrimônio comum da humanidade, imperativos categóricos jurídicos em
relação aos quais não se transige, desvinculados da satisfação de expressões culturais. (LUCAS, 2013)
A internacionalização dos direitos humanos implicou em um reexame dos valores da soberania,
pois os mesmos deixaram de pertencer ao domínio dos Estados e passaram a submeter-se ao controle
da comunidade internacional.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra o seu fundamento no valor da dignidade
da pessoa humana, concretizando as ideias de que o homem constitui um fim em si mesmo, dotado
de dignidade; é insubstituível; e único e, por isso, não deve ser tomado como um meio a ser usado
para algum propósito (KANT, 1989).
A universalidade de tais direitos leva em conta a preocupação com a coletividade, não apenas
a individualidade. Entretanto, a sociedade é formada por uma multiplicidade de culturas, com
particularidades que devem ser atendidas, para possibilitar o desenvolvimento humano e a dialética
entre igualdade e diferença (SANTOS E LUCAS, 2015).
A tarefa dos direitos humanos, nesse cenário, é a de estabelecer os exatos limites da igualdade e
da diferença entre os indivíduos e entre as culturas, sem, contudo, negar os aspectos comuns que
os identificam na qualidade de sujeitos particulares. Numa sociedade multicultural, esse desafio
configura-se ainda maior, pois, enquanto as múltiplas identidades culturais existentes em um
país, postulam o direito de manifestarem suas especificidades nas mesmas condições os direitos
humanos como universais devem tutelar apenas as diferenças que não sufocam sua missão, de
garantir a todos os homens, enquanto tais e não como integrantes desta ou daquela cultura, os
direitos necessários ao exercício de suas liberdades e autonomia (SANTOS E LUCAS, 2015).
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2 DIVERSIDADE CULTURAL
Uma relação de interculturalidade é qualquer uma que ocorre entre pessoas ou grupos sociais
de culturas diferentes. Por extensão, pode-se chamar também de interculturais as atitudes de
pessoas e grupos de uma cultura que se referem a elementos de outra cultura. (SJ., 2005, p. 47)
Por não guardar relação exclusiva com a nacionalidade, a cultura, a religião e as tradições
culturais particulares, os problemas que afetam a humanidade não podem ser enfrentados por uma
cultura de direitos humanos que observe, apenas, o reconhecimento de práticas culturais que marcam
a tradição de uma comunidade. Nesse contexto, para que a cultura dos direitos humanos enfrente os
desafios de seu tempo, deve ser fundada em bens e valores comuns a todos, independentemente de
tempo e lugar, numa moralidade que se manifesta na substancialidade das conquistas civilizacionais
de toda a humanidade, a base moral dos direitos humanos. (LUCAS, 2013)
A diversidade e a amplitude que os novos conceitos estão imprimindo, na sociedade mundial,
torna necessário que os indivíduos sejam encarados de modo a acompanhar a velocidade das
transformações mundiais desta realidade multicultural, da qual vem surgindo novos paradigmas em
diversos campos sociais.
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Um tema que vem suscitando discussão acalorada ao longo dos anos diz respeito à proteção dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, desde a década de 1960, acompanhando as questões
populacionais e feministas.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a
forme que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora
esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino (BEAVOIR, 2016).
Na cultura ocidental, quem nasce com um corpo de mulher deve se submeter ao código moral da
maternidade (TIBURI, 2014). Ao longo da história as mulheres reivindicam a liberdade sobre o próprio
corpo, buscando desconectar a razão de sua existência da maternidade, tida como um atributo sob
o qual não é possível optar, sendo que o reconhecimento do direito de decisão foi um acontecimento
importante no século XX (DEL RE, 2009).
O controle dos corpos é instituído pelo Estado, de acordo com sua discricionariedade, afirmando
um poder que está na máquina estatal e não no indivíduo. A questão da sexualidade está mais ligada
à sociedade, a qual regula e modela o sexo conforme a discricionariedade do Estado, principalmente
no que diz respeito às taxas de natalidade e mortalidade (FOUCAULT, 1999).
A depender do contexto social, era conveniente que as mulheres tivessem mais filhos, devendo
o Estado incentivar o aumento da natalidade, o que era comum após as grandes guerras, devido ao
grande número de mortes – ou menos – devido ao aumento da densidade demográfica nos grandes
centros, com posicionamento favorável a medidas contraceptivas. Tal pensamento não considera a
individualidade e a sexualidade da mulher, pois a trata como um meio e não como um fim.
No caso das mulheres, estereótipos de gênero ainda agravam este cenário, no qual a completa
domesticação, controle do desejo, da carne e do prazer, ou sua extirpação, são sempre enaltecidos.
Virgindade, pureza, recato, inocência, castidade, são adjetivos de carne nobre. Quando muito, o uso
do útero e da carne dentro do lar/campo é permitido: ser mãe, esposa, fiel, honesta, zelosa, cuidadosa,
significa cumprir com os requisitos de valoração moral passíveis de qualificar o corpo em carne como
dignos da proteção do biopoder governamental. Do contrário, a carne sexualizada, a carne pública, a
carne que se torna visível enquanto carne feminina, que manifesta seu desejo, se transforma em carne
inútil, transgressora, e, portanto, punível, e enquanto tal, estuprável. (NIELSSON E WERMUTH, 2018)
Desde o início do século XX, asseverou a demanda por emancipação sexual e pela realização
pessoal da mulher, afastando a moral tradicional, a imposição da maternidade, a possibilidade de uso
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É neste contexto que se vislumbra a violência biopolítica exercida sobre o corpo como território,
especialmente o corpo feminino, e perpetuada no limbo entre regra e exceção, e suas várias faces e
estratégias de manifestação. Uma delas, realizada sob o manto da legalidade estatal é o seu controle
reprodutivo. A redução da mulher a sua função reprodutiva, e seu manejo, conforme a disposição
do poder soberano, revelam uma face cruel do biopoder, capaz de perpetuar sucessivas violação de
direitos a corpos femininos já violados pelos poderes patriarcais (DELAJUSTINE E NIELSSON, 2019).
A sexualidade da mulher é controlada por muitas regras e o debate feminista “mostrou que o
patriarcalismo, como cultura e como relações sociais, prendia a sexualidade da mulher no controle da
sua capacidade reprodutiva e a família era o mecanismo por excelência desse controle” (PAOLI, 1985).
O movimento feminista trouxe conquistas importantes às mulheres como medidas de prevenção,
educação sexual, métodos contraceptivos modernos (pílula do dia seguinte, DIU, entre outros), mas
o reconhecimento pelo direito ao aborto tornou-se uma constante demanda.
O estabelecimento do paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos representou uma resposta
aos movimentos feministas, pela libertação da violência patriarcal promovida contra os corpos
femininos e pelo controle da sexualidade (WICHTERICH, 2015).
Tais direitos foram reconhecidos como direitos humanos, representando o resultado de
reinvindicações dos movimentos feministas, estando relacionado a questões envolvendo família,
filiação, concepção, entre outros costumes e práticas sociais (PEGORER, 2016).
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4 CONCLUSÃO
O cenário mundial contemporâneo desafia a efetividade dos direitos humanos como um conjunto
comum de reciprocidades e de responsabilidades a ser respeitado pelos diversos povos do globo,
seja em razão do rearranjo das relações internacionais, seja pela falta de efetividade das legislações
protetivas dos Estados-Nação, seja pelo conflito intenso entre as posições culturais particulares e a
universalidade dos direitos humanos.
Por não guardar relação exclusiva com a nacionalidade, a cultura, a religião e as tradições culturais
particulares, os problemas que afetam a humanidade não podem ser enfrentados por uma cultura de
direitos humanos que observe, apenas, o reconhecimento positivo de cada país ou práticas culturais
que marcam a tradição de uma comunidade. Nesse contexto, para que a cultura dos direitos humanos
enfrente os desafios de seu tempo deve ser fundada em bens e valores comuns a todos os homens,
independentemente de tempo e lugar, numa moralidade que se manifesta na substancialidade das
conquistas civilizacionais de toda a humanidade, e que é a base moral dos direitos humanos.
A universalidade dos direitos humanos consolida-se com a coroação da dignidade da pessoa
humana como núcleo de todo o ordenamento jurídico, tendo em vista que a dignidade é inerente a toda
e qualquer pessoa, sendo vedada qualquer discriminação. Os direitos humanos representam o mínimo
ético necessário ao estabelecimento do diálogo intercultural, protegendo a universalidade do homem
como tal, admitindo a particularidade das culturas quando não forem razão de exclusões e desigualdades.
Faz-se necessário destacar o papel dos direitos humanos na proteção de direitos fundamentais
da humanidade e seu alcance universal, o que também justifica a ampliação conceitual da cidadania.
Diante da amplitude de tais questões, torna-se imprescindível colocá-las diante da interculturalidade
a fim de para buscar respostas que envolvam o respeito à diversidade.
Nesse cenário, os Estados se interessam em controlar a população de um território específico,
também tendo o dever de respeitar, proteger e observar os direitos sexuais e reprodutivos dos
cidadãos, entendidos como portadores de direito.
A fertilidade feminina é vista como a raiz e a solução de vários problemas complexos,
representando mais um obstáculo à implementação dos direitos das mulheres ao invés de promovê-
los. Para se tornarem efetivos, articulados no paradigma dos direitos humanos, os direitos sexuais e
reprodutivos precisaram ser traduzidos em leis e políticas nacionais, e alçados de vagas noções de
Direito a regras juridicamente vinculantes.
Sob esta perspectiva, os direitos humanos, mesmo reivindicando validade normativa universal,
não podem ser aplicados de maneira uniforme, uma vez que devem ser adequados às regras, medidas
e necessidades especiais, visando equilibrar as desigualdades sociais, proporcionando proteção e
tratamento individualizado a grupos mais vulneráveis e minorias, conferindo liberdade e autonomia
às mulheres quanto ao livre exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.
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RESUMO: O presente artigo desenvolve uma reflexão acerca do recente encarceramento em massa de
mulheres, a partir de uma perspectiva crítica que relaciona a atuação do sistema de justiça criminal
brasileiro, questões de gênero e necropolítica. Ante o encarceramento sem precedentes de mulheres
e as condições de violação de direitos humanos em que se encontram submetidas no cárcere,
questiona-se se esse cenário corresponde à noção de “mundos de morte” operados por meio de
uma necropolítica que expõe à morte e/ou a condições desumanas de sobrevivência populações
específicas consideradas como “indesejadas”, “descartáveis”. O método de abordagem é o hipotético-
dedutivo, em uma pesquisa do tipo exploratória, com a adoção de procedimentos tais como seleção
da bibliografia que forma a base teórica e análise de pesquisas que demonstram a realidade das
mulheres encarceradas.
INTRODUÇÃO
68 Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Unijuí. Bolsista PROSUC/CAPES. Integrante
do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq/Unijuí). Graduada em Direito pela Unijuí (2019). Email: emanue-
ledmori@gmail.com.
69 Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Unijuí. Bolsista PROSUC/CAPES. Integrante
do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq/Unijuí). Graduada em Direito pela Unicruz (2018). Email: tatia-
na_diel@hotmail.com
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A sociedade não nasceu patriarcal, ela se constituiu dessa forma por meio de um processo
gradual e histórico que levou cerca de 2.500 anos para ser implementado e utilizou-se de diversos
mecanismos, práticas e padrões culturais para perpetuar no decorrer dos anos a ideia de superioridade
masculina (LERNER, 2019). Segundo Izabel Solyszko Gomes (2017), essa estrutura social e política
não permanece a mesma e tampouco inerte ao longo dos séculos: ela foi remodelando as suas formas
de exploração a partir de projetos que se modernizam e se reestruturam com o fim manter a lógica
de controle e dominação, de modo que as mulheres – especialmente “determinadas” mulheres –
continuam, apesar de todos os avanços, a figurarem como “corpos de menor valor”, sendo, por tal
razão, discriminadas, violentadas e até mesmo mortas.
Nesse sentido, Gomes (2017, p. 137) destaca “que o patriarcado é uma estrutura social tão
potente (e mais antiga) que o capitalismo” e uma de suas formas de reprodução na contemporaneidade
é através da atuação necropolítica do Estado, que pode tanto ser verificada por meio de ações diretas
quanto omissivas, ou seja, quando o Estado “fecha os olhos” e deixa de agir diante das múltiplas
formas de violência e violações às quais inúmeras mulheres estão expostas cotidianamente no Brasil.
O conceito de necropolítica foi desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, a partir
de uma nova compreensão do pensamento de Michel Foucault acerca do seu referencial teórico
biopolítico, vinculado com a noção de soberania e estado de exceção. Inicialmente, tem-se como marco
teórico incipiente a biopolítica, que pode ser considerada como “o conjunto de técnicas e estratégias
de governança para construção de poder que orienta e controla os corpos, a saúde e a vida de
uma população inteira através da regulação da reprodução, fertilidade e mortalidade” (WICHTERICH,
2015, p. 25). Nessa estrutura, o biopoder é a técnica de governo cuja finalidade é entregar ao poder
soberano o direito de dispor da vida e morte, ou, na esteira de Foucault (2005, p. 286), “fazer viver e
deixar morrer”. Ocorre que essa técnica utilizou-se do racismo como mecanismo apto a definir uma
certa hierarquia entre as raças (ou seja, operar “cesuras biológicas”), para que, a partir disso, pudesse
atuar sobre – ou “deixar morrer” – a raça definida como inferior.
Na visão de Mbembe (2018, p. 71), porém, o conceito de biopoder não é suficiente para “dar
conta das formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte” e, a partir da análise
da ocupação colonial da Palestina e de países africanos, da proliferação de armas e da consequente
criação de “mundos de morte” que correspondem a “formas únicas e novas de existência social,
nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de
‘mortos-vivos’”, o autor demonstra que apesar da noção de biopolítica (política da vida) representar
um importante ponto de partida para a análise da regulação das populações, na atualidade, em
contextos e países distintos, a necropolítica (política de morte) tem predominado.
Como parte do seu percurso teórico, Mbembe (2018, p. 9) questiona a noção de soberania que
se originou na modernidade, segundo a qual a sua expressão máxima é a “produção de normas gerais
por um corpo (povo) composto de homens e mulheres livres e iguais” que, na condição de sujeitos
racionais – nesse paradigma, “a razão é a verdade do sujeito” – concretizam a política a partir do
exercício da razão na esfera pública. Ocorre que, apesar de ser esse o conceito consagrado na teoria,
a realidade é que são exercidas outras formas de soberania, cujo projeto central não é a luta pela
autonomia, mas sim a destruição de corpos e populações – porém, frise-se: não todos, mas corpos
específicos. Com base nessa categoria de análise, é possível constatar que alguns corpos racializados
“recebem a preferência na distribuição das chances de vida e de morte” (ALVES, 2011, p. 119).
Portanto, a partir desse viés, Mbembe (2018, p. 11) sugere que é possível desenvolver “uma
leitura da política, da soberania e do sujeito, diferente daquela que herdamos do discurso filosófico
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da modernidade” e, a partir disso, faz uma análise da soberania como direito de matar e/ou expor
à morte. Dessa forma, é possível depreender então, que a ideia de soberania se vincula à estratégia
de definir quais vidas importam e, consequentemente, quais podem ser consideradas descartáveis
para o poder (MBEMBE, 2018). Silvio de Almeida (2018), ao pontuar sobre necropolítica, demonstra
que se trata de um conceito que amplia e apresenta um refinamento teórico sobre o racismo como
instrumento essencial para o funcionamento de uma política de morte a partir da escravidão e do
colonialismo que reverberam na atualidade. O autor elucida que as formas atuais de instituição de
colônias ocorrem dentro dos próprios estados e representam uma nova maneira de “dominação
política em que se juntam os poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico” (ALMEIDA, 2018, p. 94).
No mesmo sentido, Ariadna Estévez (2018, p. 18, tradução nossa), em artigo denominado
“Biopolítica y necropolítica: ¿constitutivos u opuestos?” dispõe que a ideia apenas de biopoder/
biopolítica não dá conta de explicar as complexas relações de poder que ocorrem nos países de
terceiro mundo, nos quais a “violência criminal e estatal revelam que o objetivo é o regulamento
não da vida, mas da morte”70, uma vez que os dispositivos, técnicas e estratégias utilizadas nas
estruturas de dominação desses países possuem efeitos extremamente radicais. Para Estévez (2018),
não se trata de dizer que biopolítica e necropolítica são opostos, uma vez que as duas práticas são
constitutivas uma da outra e se relacionam na busca de atingir os fins a que se propõem.
Ao analisar os cenários de migração na fronteira México-Estados-Unidos, Estévez (2018b, p. 4,
tradução nossa) indica a existência de necropolíticas – políticas de morte – direcionadas a populações
consideradas descartáveis para o sistema capitalista neoliberal que realiza “a administração da
morte” fazendo morrer os grupos sociais marginais, a fim de que possam viver os favorecidos pelo
neoliberalismo – homens brancos, ricos e do ocidente71. Para a autora, é evidente o fato de que as
necropolíticas podem ser compreendidas como tecnologias que objetivam organizar o meio social
com base em hierarquias de gênero, raça e classe que “justificam” as mortes e as existências em
condições desumanas (ESTÉVEZ, 2018b).
Considerando que o presente estudo busca realizar suas análises sob uma perspectiva de gênero,
faz-se pertinente relacionar o conceito de necropolítica formulado por Mbembe com a condição
de gênero feminino. Nesse viés, Montserrat Sagot (2013, n.p., tradução nossa) suscita a noção de
“necropolítica de gênero” como a construção de um sistema de hierarquia de vidas femininas a partir
de sua importância, que instrumentaliza a vida das mulheres mais vulneráveis, “constrói um regime
de terror e decreta a pena de morte para algumas”72, tudo isso, ressalta-se, com a cumplicidade do
Estado. Além disso, Sagot (2013) refere que a necropolítica de gênero expõe desproporcionalmente
algumas mulheres a violências e à morte em razão da posição social que ocupam, ou seja, por
serem atravessadas por outros marcadores sociais de diferença além do gênero, tais como raça,
classe, local de origem e etc., que quando interseccionados produzem formas ainda mais extremas
de vulnerabilidade e tornam alguns grupos específicos de mulheres mais suscetíveis às práticas
necropolíticas.
O necropoder “enfatiza a primazia da morte como estratégia de exercício do poder moderno”
(ALVES, 2011, p.118) o qual Mbembe classificou como racista e classista e Gomes (2017, p. 139)
acrescentou, ainda, as condições de “machista e sexista”. A necropolítica de gênero gera um contexto
político favorável à manutenção de fragilidades sociais, que além de promover, tolera e sustenta
históricas desigualdades e potencializa opressões, expondo à morte e/ou a condições desumanas de
sobrevivência muitas mulheres, especialmente, mulheres negras e pobres.
É oportuno sublinhar que, quando falamos em morte, não necessariamente referimo-
nos ao sentido literal da palavra, mas, utilizando-nos da ideia de Foucault (2005, p. 306),
também àquilo que pode ser considerado “assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a
rejeição, etc.”. Ou, na esteira do que propõe Mbembe, à produção de “zonas de morte”, que conferem
a essas mulheres a condição de mortas-vivas, uma vez que despidas muitas vezes de condições
70 “Violencia criminal y del Estado revelan que el objetivo es la regulación no de la vida, sino de la muerte”.
71 “[...] es para hacer morir a los grupos sociales marginales y dejar vivir a los favorecidos por el neoliberalismo (hombres
blancos, ricos, de occidente). Es una administración de la muerte”.
72 “construye um régimen de terror y decreta la pena de muerta para algunas”.
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73 Segundo a autora, (2004, p. 337-338), a caça às bruxas foi um fato histórico e político marcado por um verdadeira guerra
contra as mulheres, em uma “tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social”, uma vez que
foi “precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras, nas quais as bruxas morreram, onde se forjaram os ideais burgue-
ses de feminilidade e domesticidade.
74 Cabe destacar que, segundo o autor, o “saber” sobre a histeria entrava em campo quando, justamente, o médico possuía uma
falta de conhecimento a respeito da doença, e, portanto, tratava-se de um conceito que recolhia “todos os fantasmas – não daque-
le que é ou que se crê um doente, mas do médico ignorante que faz de conta que conhece a situação” (FOUCAULT, 1978, p. 309).
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75 Andrade (2005, p. 79) refere-se a uma “eficácia instrumental invertida” do sistema de justiça criminal: “ou seja, enquanto
suas funções declaradas ou promessas apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema) por-
que não são e não podem ser cumpridas, ele cumpre, latentemente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às
socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade”.
76 Segundo o Infopen Mulheres (2018), 62% estão presas em razão de crimes relacionados ao tráfico de drogas.
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Embora seja possível observar pequenos avanços a partir da promulgação da Lei de Drogas
– Lei nº 11.343/2006 –, como a previsão de outras penas que não a privativa de liberdade no caso
de consumo pessoal (artigo 28), a realidade prática e, principalmente, dos presídios brasileiros, é
alarmante. Ademais, vale destacar que o mesmo artigo, mesmo que citado como um ponto positivo,
também deixa margem para uma interpretação bastante arbitrária. Conforme explica Torcato (2016,
p. 339), a Lei de Drogas teve como um de seus efeitos “reforçar o tratamento diferenciado, pois os
jovens, brancos e das classes mais altas passaram a ser caracterizados como usuários com penas
leves, enquanto os negros, pobres e de periferia continuam a ser enviados para os presídios”.
Esses são apenas alguns dos aspectos envoltos na atual situação do sistema penal brasileiro,
oficialmente reconhecido por seu “estado de coisas inconstitucional”, conforme decidido pelo
Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, de 2015, mas que também poderíamos chamar de seletivo,
beligerante, ideológico... Arriscamos dizer que a lista de adjetivações é pouco lisonjeira. Diversas
outras tendências perniciosas no âmbito do sistema de justiça criminal poderiam ser apontadas,
porém, dado que fogem ao escopo do presente estudo, passaremos, na sequência, à análise do
encarceramento de mulheres em suas especificidades.
A relação direta das mulheres com o sistema de justiça criminal é recente. De acordo com Zaffaroni
(2009), o poder patriarcal responsabilizou-se, historicamente, pelo controle das mulheres, de modo
que ao sistema punitivo restava controlar os homens jovens e adultos. Nesse viés, elas foram as que
permaneceram, sob a autoridade do poder patriarcal, no âmbito privado, ou doméstico, como prefere
Susan Moller Okin (2005), enquanto os homens dominaram o espaço público. Conforme explica Flávia
Biroli (2014, p. 32), “na modernidade, a esfera pública estaria baseada em princípios universais, na
razão e na impessoalidade, ao passo que a esfera privada abrigaria as relações de caráter pessoal e
íntimo”. De acordo com essa diferenciação, o espaço da mulher seria, “naturalmente”, o privado, já
que os estereótipos de gênero atribuem às mulheres uma série de papéis, dentre eles a “dedicação
prioritária à vida doméstica e aos familiares”, os quais “colaboraram para que a domesticidade
feminina fosse vista como traço natural e distintivo, mas também como um valor a partir do qual
outros comportamentos seriam caracterizados como desvios” (BIROLI, 2014, p. 32).
Ocorre que a dicotomia público/doméstico e a consequente reclamação de que a mulher exerça
os papéis que lhe são “naturais”, embora amplamente problematizada por estudos feministas – e
aparentemente obsoleta –, continua a reverberar em muitas práticas sociais, inclusive no modo
como as mulheres são vistas pelo sistema de justiça criminal, conforme veremos a seguir. Por ora, é
importante destacar que foi em meados da década de setenta, na esteira dos movimentos feministas
e também da crítica do modelo androcêntrico de ciência, que surgiu o tema da mulher no contexto do
direito penal, tanto na condição autora como na de vítima de crimes (BARATTA, 1999; RAMOS, 2012).
Contestou-se, nesse momento, a “ausência da mulher nos estudos da linha tradicional” e também o
“claro reducionismo biológico e psicológico patente nas primeiras tentativas de estudar a mulher que
comete crimes”, que costumava a distorcer “suas experiências transgressivas de modo a enquadrá-la
nos estereótipos dominantes” (MATOS; MACHADO, 2012, p. 34).
Atualmente, diversas pesquisas têm se dedicado a analisar as razões da massiva criminalização
das mulheres e a forma como as instituições do sistema penal perpetuam estereótipos de gênero
comuns na sociedade. Aline Cruvello Pancieri, Bruna Banchik Silva e Luciana Peluzio Chernicharo
(2014) apresentam vários dados relevantes para se entender a relação entre as mulheres e o tráfico de
drogas. Segundo elas, a organização do tráfico, embora possa variar dependendo do local, apresenta,
em geral, complexas estruturas de hierarquias, de modo que há diferentes graus de participação
e importância. Nesse sentido, as pesquisas apontam que também vige, nesse sistema, a divisão
sexual do trabalho77, onde as mulheres são aquelas que ocupam as posições subalternas, as quais
77 Sobre o tema, ver: HIRATA, Helena. Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero. Divisão sexual do trabalho
numa perspectiva comparativa. São Paulo: Friedrich Ebert Stiftung Brasil, out. 2015. Disponível em: http://library.fes.de/
pdf-files/bueros/brasilien/12133.pdf.
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são também as mais selecionadas pelo sistema punitivo. Ou seja, “encontram-se no cárcere somente
aquelas pertencentes à categoria dos excluídos, sendo que os verdadeiros donos do lucrativo negócio
ficam intocáveis e jamais são presos” (PANCIERI; SILVA; CHERNICHARO, 2014, p. 13).
As autoras (2014, p. 8) ressaltam o crítico papel que a lei de drogas (Lei nº 11.343/2006)
desempenha nesse cenário. Isso pois, “além de não diferenciar o tráfico do uso de drogas em situações
concretas, também não diferencia as diversas categorias de comerciantes existentes no mercado ilícito
das drogas”. Dessa forma, pessoas presas e enquadradas em crime de tráfico poderão ser condenadas a
duras penas, sendo que sua função na rede poderia ser de menor importância, e, inclusive (ou em razão
disso), facilmente substituída. Ademais, deve-se destacar que há margem para larga interpretação pela
polícia, no momento da prisão, em relação ao enquadramento como usuário ou traficante.
Quanto ao cárcere, se o masculino já é marcado por “condições hobbesianas de sobrevivência”
(WERMUTH; NIELSSON, 2019), a situação é sensivelmente preocupante no que diz respeito às mulheres78,
eis que, historicamente, as prisões foram organizadas tendo em vista o público masculino – veja-se que
apenas em 2010 a Assembleia Geral da ONU aprovou as Regras para o Tratamento de Mulheres Presas
(Regras de Bangkok), enquanto que as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso existem desde
1957. Apesar disso e de alguns avanços legislativos em relação ao tema, as prisões não se encontram
adequadas às necessidades das mulheres, de modo que muitas “vivem gestações, partos e maternidades
precárias, e suas crianças formam parcela invisível da população prisional”79 (BRAGA, 2015, p. 531).
Em pesquisa denominada Criminalidade e prisão feminina: uma análise da questão de gênero,
Marlene França (2014) explica que as mulheres presas, em sua grande maioria, conviveram com
situações precoces de violência que perduraram até a fase adulta, sendo que a prisão representa
“apenas” mais uma a qual são submetidas, fator também apontado por Pancieri, Silva e Chernicharo
(2014). Os processos de estigmatização sofridos pelas presas demonstram que são submetidas a
(no mínimo) uma dupla penalização: não apenas por conta do delito que culminou na sua prisão,
mas também em razão de romperem com o papel que, historicamente, a elas foi relegado – o de
serem submissas e passivas. Ao cometerem crimes, elas estão assumindo um lugar “pertencente” aos
homens, ou seja, de agressores e violadores da ordem (FRANÇA, 2014).
Quanto àquelas que são mães, a situação é ainda mais dramática, pois são consideradas
perversas e irresponsáveis: são irreconciliáveis as “exigências e performances” designadas ao papel
de ser mãe com a vida no crime, “ainda que perversamente se aceite conciliá-lo com a vida na prisão”80
como explica Braga (2015, p. 527-528). De forma que “O entrelaçamento dos universos da prisão e
da maternidade produz um exercício da maternidade no registro do sacrifício e da disciplina”, o que
se insere no “projeto mais amplo de domesticar o desvio e o desejo feminino, criminal e sexual”. A
representação “criminosa” é a que se sobrepõe sobre o que mais aquela mulher pode ser – como, por
exemplo, mulher, mãe, etc. Em razão disso, “A subjetividade da presa é reduzida ao seu crime e o
interrogatório é seu único momento de fala “na Justiça”, uma fala pautada, engasgada, limitada ao que
lhe foi perguntado, se lhe for perguntado” (BRAGA, 2015, p. 529).
Ante esse cenário, mostra-se necessário pensar o encarceramento massivo de mulheres no
encadeamento das políticas criminais repressivas e da estruturação androcêntrica das instituições de
controle. Isso pois, historicamente, as mulheres foram controladas muito mais pelo sistema de controle
informal (família, casamento, igreja, escola, etc.) do que pelo sistema formal, de modo que o sistema
prisional e penal como um todo está “adaptado” pelos homens e para homens. Daí resultam várias
consequências, algumas das quais apresentamos brevemente até aqui. Ademais, a partir do momento
em que as mulheres passam a ser massivamente criminalizadas, isso não se dá apenas na via da
violação da lei penal, como também na representação da transgressão dos “seus papéis” na sociedade.
Nesse contexto, que, embora – e é importante salientar – analisado de forma breve e limitada,
oferece uma dimensão dos inúmeros problemas envolvidos no encarceramento de mulheres, é
78 Para citar poucos exemplos, Germano, Monteiro e Liberato (2018) mencionam: mulheres que tiveram seus filhos algema-
das, presídios sem creches, presas que são obrigadas a utilizar miolo de pão como absorventes.
79 O próprio Infopen Mulheres (2018) explica que foi possível analisar os dados a respeito do número de filhos referentes a apenas
7% da população prisional feminina, não obstante a proposição aos gestores para preenchimento de formulários a respeito.
80 A esse respeito, é importante a problematização de como a melhora das condições da prisão por vezes serve de argu-
mento para um “discurso benevolente e paternalista de que a vida atrás das grades é o melhor destino para ambas” (BRAGA,
2015, p. 532), mãe e criança.
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que problematizamos justamente essa racionalidade que atua dissimuladamente, amparada por
um discurso de proteção de direitos humanos, mas que, na verdade, lança milhares de pessoas no
verdadeiro antro de suplícios que é o sistema carcerário brasileiro. A ideia de necropolítica apresentada
na primeira seção, sendo assim, parece se adaptar nesta conjuntura em que, embora evidentes as
mazelas, não se observa um movimento no sentido de encolhimento do direito penal.
Convém referir a advertência de Andrade (2005, p. 77) quando diz que “O sistema somos,
informalmente, todos nós: em cada sujeito se desenha e opera, desde a infância, um microsistema de
controle e um microsistema criminal (simbólico) que o reproduz, cotidianamente”. E acrescentamos:
não apenas um microssistema criminal, como também de racismo e desigualdade de gênero. Logo,
cumpre, em primeiro lugar, reconhecermos essa responsabilidade compartilhada, para que então seja
possível agirmos buscando modificar essa realidade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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INTRODUÇÃO
A justiça restaurativa surgiu em meados dos anos 70 do século XX, ante o insucesso e ineficácia da
justiça retributiva, e se colocou como um paradigma que busca a participação das vítimas e infratores na
reparação do mal causado pelo delito. Permite uma efetiva comunicação entre os “proprietários do con-
81 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. E-mail:
tainaramariana2009@hotmail.com.
82 Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em
Direitos Humanos, do Curso de Graduação em Direito na UNIJUÍ e integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos
Humanos (CNPq).
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flito” na busca por uma solução que satisfaça os interesses e necessidades de ambos (MARQUES, 2020).
Frequentemente citada como a definição mais consagrada de justiça restaurativa é a de Tony
Marshall: “Restorative justice is a process whereby parties with a stake in a specific offence collectively
resolve how to deal with the aftermath of the offence and its implications for the future”83 (MARSHALL,
1999, apud DOOLIN, 2015, p.428).
Trata-se de uma definição minimalista, de caráter procedimental, na medida em que para Marshall,
mais importante que a solução reparadora é a forma com que a obtemos. Sob essa perspectiva, não
é permitido o uso de coação no processo restaurativo, tendo em vista a necessidade de estabelecer
uma comunicação entre as partes, que não será alcançada mediante ausência de voluntariedade. Isto
tem logo uma consequência prática, diminuindo o número de casos em que a Justiça restaurativa
mostra-se adequada (BENEDETTI, 2009).
No entanto, ainda é importante mencionar a definição trazida por Balzemore e Walgrave: “every
action that is primarily oriented towards doing justice by restoring the harm that has been caused by
a crime”84 (BALZEMORE; WALGRAVE, 1999, p.48 apud BENEDETTI, 2009, p.45).
A conceituação trazida pelo autor é de perspective maximalista, focado no resultado restaurativo
do processo. Sob essa perspectiva, legitima-se o uso de coação para a materialização da justiça
restaurativa, tendo em vista que a solução reparadora nem sempre é alcançada em processos
voluntários. Como consequência lógica desse paradigma, aumenta-se o número de casos em que a
justiça restaurativa mostra-se adequada (BENEDETTI, 2009).
A escolha da lente afeta aquilo que parece o enquadramento da foto, da mesma maneira que a
lente que escolhemos para analisar o crime e a justiça afeta o que elegemos por variáveis relevantes.
Destaca-se um conjunto de diferenças entre duas formas de ver o crime: a retributiva (sistema de
justiça comum) e a restaurativa (justiça restaurativa) (ZEHR, 2008).
O processo penal vê o delito através da lente retributiva, no entanto fracassa no atendimento as
necessidades da vítima e ofensor, bem como na responsabilização do último pela conduta delitiva.
“Tal incapacidade nos trouxe até a sensação de crise generalizada que vivemos hoje. Muitas reformas
foram implementadas. As modas mais recentes são a monitoração eletrônica e a supervisão intensiva”
(ZEHR, 2008, p. 08).
Há diferenças pontuais entre essas duas formas de ver o crime e a reação social. Destaca-
se que, sob uma perspectiva retributiva, o crime é uma violação contra o Estado e será a justiça
que determinará a culpa e promoverá dor ao indivíduo, materializada através da punição. “justiça
retributiva define o estado como vítima, define o comportamento danoso como violação de regras e
considera irrelevante o relacionamento entre vítima e ofensor” (ZEHR, 2008, p. 09).
Sob uma perspectiva retributiva, os aspectos que formam a ideia de crime são os seguintes
(ZEHR, 2008, p.29):
1) o crime viola o estado e suas leis; 2) o foco da justiça é o estabelecimento da culpa 3) para que
se possa administrar doses de dor; 4) a justiça é buscada através de um conflito entre adversários
5) no qual o ofensor está contra o estado; 6) regras e intenções valem mais que os resultados; 6)
um lado ganha e o outro perde.
Neste modelo de justiça, o Estado é sempre a vítima, e quem comete o crime age contra uma
ordem estabelecida e regulada por um conjunto de normas abstratas que se impõem a todos (LIMA;
SECCO, 2018, p. 447):
Sob a égide da retribuição, a principal meta é a punição daquele indivíduo que infringiu determinada
normativa. “A determinação da culpa é vista como objetivo a ser buscado, a fim de se alcançar o objetivo
83 Tradução livre: “A justiça restaurativa é um processo através do qual todas as partes interessadas em um crime específico se reú-
nem para solucionar coletivamente como lidar com o resultado do crime e suas implicações para o futuro.” Perspectiva minimalista.
84 Tradução livre: “Toda a ação que é primariamente orientada na direção de fazer justiça por meio da restauração do dano
que tenha sido causado pelo crime”.
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principal que é a aplicação da pena, que representa (ou deveria representar) não só a retribuição pelo
mal causado, mas também prevenção para novos delitos” (MONTOLLI, 2017, p.34).
A participação da vítima nesse processo, mostra-se como secundária e pouco valorizada. “A
verdadeira vítima é sistematicamente excluída, suas necessidades e vontades são claramente
ignoradas e, por isso, sua participação será reduzida a de uma testemunha de luxo, nos casos em que
seu testemunho é indispensável” (MONTOLLI, 2017, p.35).
De outro norte, a justiça restaurativa, constitui um modelo que tem como principais pressupostos
(ZEHR, 2008, p.29):
Além disso, as vítimas precisam ser empoderadas. A justiça não pode simplesmente ser feita para
e por elas. As vítimas precisam se sentir necessárias e ouvidas ao longo do processo. Uma das
dimensões do mal é que elas foram despidas de poder, portanto, uma das dimensões da justiça
deve ser a restituição desse poder. No mínimo isso significa que elas devem ser a peça principal
na determinação de quais são suas necessidades, e como e quando devem ser atendidas. Mas as
vítimas deveriam participar de alguma forma do processo como um todo.
85 Tradução livre: Talvez a característica mais importante de uma conferência de justiça restaurativa para as vítimas seja a
possibilidade de restauração emocional que ela oferece.
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a violação. “Corrigir é algo central para a justiça. Acertar o que está errado não é uma atividade
periférica e opcional. É uma obrigação. Idealmente, o processo de justiça pode ajudar os ofensores a
reconhecerem e assumiram suas responsabilidades voluntariamente” (ZEHR, 2008, p. 20).
Desse modo, a justiça restaurativa tem se mostrado um importante mecanismo para a resolução
de conflitos sociais em todo o mundo, centrada no atendimento das necessidades da vítima e
responsabilização dos ofensores. Entretanto, será que a justiça restaurativa se mostraria adequada
para tratar dos conflitos oriundos da prática de violência doméstica?
Muitas destas práticas têm sido intensamente avaliadas (até porque alguns destes mecanismos
resultaram de projectos experimentais desenvolvidos em meio académico) e as conclusões são,
de uma forma geral, bastante positivas, quer no que diz respeito ao próprio processo - satisfação
dos intervenientes com a justiça do tratamento recebido, com a qualidade da mediação e com a
oportunidade de participar no processo de tomada de decisão –, quer quanto aos resultados – as
vítimas que participam em processos restaurativos têm maior probabilidade de obter respostas às
suas perguntas, de receber pedidos de desculpa do infractor, de eliminar estereótipos sobre este,
de se sentir menos receosas relativamente à possibilidade de revitimação e menos zangadas com o
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infractor, de reduzir os níveis de ansiedade e sentir que aquele capítulo mau da sua vida defechou,
de recuperar sentimentos de auto-confiança e confiança nos outros e de receber compensação,
tudo isto comparativamente com vítimas que participam no processo criminal convencional. No
que respeita aos infractores, encontram-se alguns indicadores, embora ainda não totalmente
seguros e variando consoante o tipo de criminalidade, de que a justiça restaurativa pode ter um
efeito positivo ao nível da redução da reincidência.
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Sabemos que há mulheres que maltratam homens, mulheres que maltratam mulheres e homens
que maltratam homens. Sabemos que há situações em que a violência não tem continuidade,
sendo um episódio fortuito. Sabemos que em muitos casos a origem da violência não radica
num padrão de controlo resultante de valores patriarcais e machistas, mas noutras causas como
sejam características específicas de determinados indivíduos, características da própria relação ou
distúrbios de personalidade. E sabemos que a sociedade (já) não é tão complacente com este tipo
de comportamentos como por vezes se supõe.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas são as críticas referentes a utilização da justiça restaurativa para resolver conflitos
advindos do contexto doméstico. A utilização dessa justiça, muitas vezes, terá o condão de afastar
os seus principais valores e premissas se utilizada nos casos de violência doméstica.
No entanto, deve-se, primeiramente, reconhecer a diversidade para entender que a justiça
restaurativa poderá ser adequada para tratar de algumas formas de violência doméstica. Por conseguinte,
o primeiro passo é o reconhecimento de que nem sempre a violência doméstica será materializada em
“preto e branco”, de modo que muitas são as formas em que a violência poderá se manifestar.
É certo que a justiça restaurativa se mostrará inadequada para tratar dos tradicionais casos de
violência doméstica, nos quais há a coação e o controle do homem sobre a mulher, parte mais fraca
dessa relação, tendo em vista que o episódio, no mais das vezes, retrata apenas mais uma das facetas
do grande ciclo de violência.
No entanto, deve-se considerar a possibilidade de utilização eficiente da justiça restaurativa
quando o episódio de violência for isolado e descontínuo, não havendo prévio desequilíbrio de poder
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entre infrator e vítima. Reconhece-se, entretanto, que esses casos são minoria dentro do todo, e que, no
mais das vezes, a justiça restaurativa terá uma aplicabilidade inabitual nos casos de violência doméstica.
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Athena, 2012.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça – justiça restaurativa.
Palas Athena, 2008.
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Alessandra Mainardi86
Fernanda Serrer87
RESUMO: A pesquisa investiga a relação existente entre o discurso filosófico e a construção da igualdade
de gênero, ressaltando a constituição de um campo teórico fundado nos movimentos feministas,
adequado para o surgimento e desenvolvimento de modos de pensar críticos e emancipatórios. Faz
uma reflexão sobre a violência doméstica, que se desenvolve por meio de um processo silencioso,
deixando marcas invisíveis em todos os envolvidos. Refere o estudo da mediação como técnica de
resolução de conflitos e sua contribuição para a construção de novos espaços de fala e reconhecimento
feminino, a partir da experiência vivenciada no Projeto de Extensão universitária “Conflitos Sociais e
Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”, do Curso de Direito da Unijuí.
INTRODUÇÃO
86 Aluna do Curso de Graduação em Direito da Unijuí. Bolsista PIBEX do Projeto de Extensão Universitária “Conflitos Sociais
e Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”, do Curso de Direito da Unijuí. E-mail: alessandra.
mainardi@sou.unijui.edu.br.
87 Professora do Curso de Graduação em Direito da Unijuí Mestre e doutoranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Direitos Humanos da Unijuí. Extensionista no Projeto de Extensão Universitária “Conflitos Sociais e Direitos Humanos:
alternativas adequadas de tratamento e resolução”, do Curso de Direito da Unijuí. E-mail: Fernanda.serrer@unijui.edu.br.
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e métodos que buscam a igualdade de gênero por meio do reconhecimento de direitos, bem como a
construção de espaços de emancipação feminina, dentre os quais está a mediação de conflitos que é
desenvolvida pelo Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas adequadas
de tratamento e resolução”, vinculada ao Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.
Sendo assim, esta pesquisa tem por objetivo analisar e descrever a relação existente entre o
patriarcado, os movimentos feministas e o espaço de fala da mulher na contemporaneidade, por
meio das ações desenvolvidas pelo Projeto de Extensão, destacando de que maneira estas conquistas
femininas e os métodos alternativos de enfrentamento de conflitos contribuem para a formação e
desenvolvimento da sociedade.
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A Modernidade traz a noção de um sujeito individual e abstrato que passa a ocupar o espaço
central da filosofia dentro da tradição moderna, modificando suas pretensões básicas, almejando não
mais a essência das coisas, mas a definição de princípios do conhecimento racional que estarão na
consciência de cada indivíduo autônomo.
A partir disso, no Século das Luzes, o sujeito passa a ser guiado pela razão, agindo de maneira
justa e livre, deixando de lado possíveis influências provenientes de um sacerdote ou soberano
absoluto e configurando uma verdadeira revolução de espírito. É do Iluminismo que nasce o sujeito
pensante, racional e liberal da modernidade. De tal forma que o liberalismo, feminismo e direitos
humanos são conceitos modernos vinculados com a entrada da sociedade nesta nova etapa.
Bobbio (1997, p. 97), define a liberdade como uma “qualificação da vontade”, a saber, “a situação
em que um sujeito tem a possibilidade de orientar sua vontade para um objetivo, de tomar decisões
sem se ver determinado pela vontade dos outros”.
A partir disso, o liberalismo realizou uma notável obra institucional conhecida como Estado
de Direito, um modelo de Estado constitucional representativo, sustentado pelo reconhecimento de
uma tábua de direitos e liberdades básicas e pelo estabelecimento da separação de poderes para que
prospere a liberdade do indivíduo e seja garantida sua segurança pessoal.
Nesta época, a igualdade estava intrinsecamente ligada com a sua proclamação como norma
jurídica, constituindo-se, basicamente, como atributo jurídico conferido aos indivíduos. Acerca do
conceito de igualdade formal, tão caro ao modelo de Estado de Direito, afirma Joaquim Barbosa
Gomes (apud LOBATO; SANTOS, 2003, p. 18):
O princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as
virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em
sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas
delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e intoleráveis.
Desse modo, a igualdade formal refere-se à preocupação de um tratamento igualitário sem aferições
sobre qualidades ou atributos pessoais dos destinatários da norma. Sendo assim, resulta da perspectiva
política do Estado de Direito, que é fundado na lei igual para todos. Logo, todos são iguais perante a lei
como forma de garantia dos direitos fundamentais estabelecidos por este Estado de Direito.
É no período iluminista que se encontra o berço do feminismo, a era dos direitos BOBBIO, 1992).
O feminismo surge com princípios reivindicados pelas mulheres como: a universalidade da razão, a
emancipação frente aos preconceitos, a ampliação do princípio de igualdade e a ideia do progresso.
Ademais, se faz importante enfatizar que a reivindicação, a igualdade e o Iluminismo mantêm uma
intensa união, pois a reivindicação é possível graças à existência prévia das ideias iluministas liberais
que buscavam a igualdade entre homens e mulheres.
Nesse sentido, percorrer este intenso caminho prático-teórico desenvolvido ao longo do século
XX demonstra a riqueza e a pluralidade da construção teórica da justiça sob o enfoque do gênero,
conhecidas como as ondas feministas.
O feminismo chega ao século XX vivenciando a primeira onda feminista. Tal onda se apresenta
com o surgimento do movimento feminista, que nasce como movimento liberal da luta das mulheres
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A revolução cultural de fins do século XX pode assim ser mais entendida como o triunfo do
indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres
humanos em texturas sociais. Pois essas texturas consistiam não apenas nas relações de fato
entre seres humanos e suas formas de organização, mas também nos modelos gerais dessas
relações e os padrões esperados de comportamento das pessoas umas com as outras; seus papéis
eram prescritos, embora nem sempre escritos (HOBSBAWM, 1995, p. 261).
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Beauvoir questiona como se constitui tal situação de opressão das mulheres e conclui que a
causa originária da opressão estaria em uma idade remota, provavelmente na Idade do Bronze, na
qual as mulheres foram excluídas das expedições guerreiras e, culturalmente, a superioridade é
outorgada ao sexo que mata e não ao que engendra (BEAUVOIR, 1980). Neste sentido, a autora não
aceita a inferioridade física das mulheres como causa de subordinação, mas a interpretação cultural
da reprodução como um fato que não leva à transcendência (NIELSSON, 2016).
A importância de sua análise se reflete na influência alcançada na elaboração teórica posterior, a
partir da interpretação da tese da autora como uma explicação inicial do conceito de gênero.
Ainda na segunda onda, a francesa Betty Friedan publicou em 1963 o livro “A Mística Feminista”,
retomando as ideias de Beauvoir, através de depoimentos de mulheres da classe média que
correspondiam ao ideal de rainhas do lar e concluiu que elas demonstravam descontentamento com
a própria identidade (CONSOLIM, 2017). Sendo assim, a autora acabou por desmistificar o papel da
mulher na sociedade da época, contribuindo para que elas revivessem a luta por seus direitos.
A terceira onda surge a partir da década de 90 no século XX. Nessa fase, as feministas focaram
na mudança de estereótipos, nos retratos da mídia e na linguagem usada para definir as mulheres.
Além disso, mulheres negras começaram a se destacar no movimento e negociar seus espaços para
revelar as diferenças vividas por mulheres com diferentes condições sociais e étnicas
Judith Butler, filósofa estadunidense, se apresenta como uma das grandes representantes da
terceira onda, na discussão sobre gênero e sexualidade. De tal maneira que Butler desconstrói a ideia de
mulher e, consequentemente o sujeito histórico do feminismo através da Teoria Queer. Nesse sentido, a
crítica central da teoria de Butler tem como base a noção de identidade, a qual é construída por meio de
discursos e práticas que concretizam a essência de um indivíduo na sociedade, e que por fim criam uma
ampla representação simbólica que destaca diferenças de gênero e sexualidade (BURCKHART, 2017).
Portanto, a desconstrução que Butler apresenta colabora na superação de uma cultura autoritária
que se reproduz através das décadas, com o intuito de garantir maior liberdade e autonomia ao sujeito.
Além disso, defende a desconstrução de gênero e sua binaridade (homem e mulher) visando a diminuição
da opressão das singularidades humanas que não se encaixam no cenário que se entende como ideal.
A quarta onda do movimento feminista aborda a questão do ativismo digital.
Por um lado, o gênero estrutura a divisão fundamental entre trabalho “produtivo” remunerado e
trabalho “reprodutivo” não-remunerado, atribuindo às mulheres a responsabilidade primordial por
este último. Por outro lado, o gênero também estrutura a divisão interna ao trabalho remunerado
entre as ocupações profissionais e manufatureiras de remuneração mais alta, em que predominam
os homens, e a ocupação de “colarinho rosa” e de serviços domésticos, de baixa remuneração, em
que predominam as mulheres.
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Desse modo, a injustiça de gênero se apresenta como uma espécie de injustiça distributiva que
necessita compensações redistributivas das condições materiais da vida para a melhoria dos espaços
de emancipação feminina, devido ao modo de exploração e marginalização especificamente marcados
pelo gênero. No entanto, existe também uma diferenciação de valoração cultural que abarca elementos
que se assemelham à sexualidade, ou seja, existe uma problemática referente ao reconhecimento.
Nesse sentido, essa desvalorização se expressa através de uma variedade de danos sofridos
pelas mulheres, incluindo o assédio e a desqualificação em todas as esferas da vida cotidiana; as
representações objetificadoras e humilhantes na mídia; a discriminação atitudinal; e a exclusão das
esferas públicas e centros de decisão (FRASER, 2001). Esses danos são injustiças de reconhecimento,
sendo relativamente independentes da economia política.
Esse caráter bivalente do gênero exige a lógica da redistribuição e reconhecimento. Porém, as
soluções pendem para direções opostas, ou seja, a luta ao mesmo tempo para abolir a diferenciação
de gênero e a valorização da especificidade de gênero. Dessa forma, é perceptível a grande dificuldade
de perseguir estas soluções.
Além disso, a divisão racial contemporânea faz parte do legado histórico do colonialismo e da
escravidão. Sendo assim, a mulher de cor sofre com as representações estereotipadas, sujeitadas às
normas eurocêntricas que fazem com que pareçam inferiores e que contribuem para mantê-las em
desvantagem em relação ao “ser branco” (FRASER, 2001).
Nesse sentido, apesar de tantas lutas e conquistas feministas, ainda se faz muito presente a
violência contra mulher, ação que traumatiza e desrespeita suas vítimas.
A violência intrafamiliar pode ser compreendida como qualquer ação ou omissão que resulte em
dano físico, sexual, emocional, social ou patrimonial de um ser humano, onde exista vínculo familiar
e íntimo entre a vítima e seu agressor (CARAVANTES, 2000). As violências domésticas ocorrem no
âmbito familiar ou doméstico e consistem em diversas formas de violência que podem ocorrer nesse
espaço. Dentre os possíveis agressores estão: maridos, amantes ou namorados atuais.
Para o Ministério da Saúde (BRASIL, 2001) e estudiosos que trabalham essa questão, a violência
doméstica pode ser dividida em quatro distintas categorias, dentre as quais podem ser enumeradas a
violência física, a violência sexual, a violência psicológica e formas de negligência.
Por violência física se entende aquela que “ocorre quando alguém causa ou tenta causar dano,
por meio de força física, de algum tipo de arma ou instrumento que pode causar lesões internas:
(hemorragias, fraturas), externas (cortes, hematomas, feridas)” (BRASIL, 2001).
A violência sexual “é toda a ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga uma outra
à realização de práticas sexuais contra a vontade, por meio da força física, da influência psicológica
(intimidação, aliciamento, sedução), ou do uso de armas ou drogas” (BRASIL, 2001).
Ademais, a negligência se apresenta como “omissão de responsabilidade, de um ou mais
membros da família, em relação a outro, sobretudo, com aqueles que precisam de ajuda por questões
de idade ou alguma condição específica, permanente ou temporária” (BRASIL, 2001).
Por fim, a violência psicológica “é toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima,
à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Inclui: ameaças, humilhações, chantagem, cobranças
de comportamento, discriminação, exploração, crítica pelo desempenho”, gerando isolamento social
e dependência em relação a administração do próprio patrimônio.
Dentre as modalidades de violência, a violência psicológica é a de mais difícil identificação e
pode facilmente conduzir a vítima a quadros patológicos, transtornos psíquicos, resultando até em
suicídios.
Segundo dados da BBC News Brasil em São Paulo, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou
sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram
por algum tipo de assédio. Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico. Após
sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou
ajuda (FRANCO, 2019).
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A institucionalização das práticas sociais contra a violência de gênero resultou na criação das
Delegacias da Mulher, uma garantia de direitos sociais, proteção policial e acesso à justiça. Além
disso, a estrutura legal com foco no enfrentamento aos diferentes tipos de violência contra mulher
foi se consolidando, a exemplo da Lei Maria da Penha em 2006, da mudança na lei de estupro em
2009, da lei do feminicídio em 2015, e da mais recente lei de importunação sexual de 2018 (BUENO;
DE LIMA, 2019). Assim, as delegacias especializadas passaram a ser responsáveis pelo registro e
apuração de crimes contra a mulher, pelo seu enfrentamento e prevenção, de modo que representa o
início da desnaturalização e do controle dessa ação violenta.
Porém, perceber que está vivendo uma situação de violência, muitas vezes, é difícil para a
mulher. Faz parte da própria situação de violência que a mulher interiorize opiniões do companheiro
sobre si e absorva desejos e vontades que a ele pertencem, anulando os seus (VERARDO, 2004).
Ademais, é dessa falta de diálogo que resultam os conflitos familiares, os quais ocorrem devido à
vínculos afetivos permeados por mágoas, ressentimentos ou dependência psicológica.
Sociologicamente o conflito é tratado como fonte de mudanças, em especial em uma sociedade
dinâmica, interativa e democrática, constituindo-se em uma das formas de estabelecer vínculos
humanos. Logo, o conflito é uma forma social que possibilita reações evolutivas e retroativas em
relação a instituições e interações sociais (SPENGLER, 2008).
Afirma Georg Simmel sobre o conflito:
O próprio conflito resolve a tensão entre contrastes. [...]. Essa natureza aparece de modo mais
claro quando se compreende que ambas as formas de relação - a antitética e a convergente - são
fundamentalmente diferentes da mera indiferença entre dois ou mais indivíduos ou grupos. [...] o
conflito contém algo de positivo (SIMMEL, 1983, p. 123).
Diante do cenário crescente de violência, o entendimento sobre os conflitos sociais assume uma im-
portância significativa para a compreensão da realidade social, para que possa configurar-se numa interven-
ção construtiva. Nesse sentido, estudiosos trabalham com a Comunicação Não Violenta, uma ferramenta
poderosa para lidar com conflitos e que se tornou uma das bases fundamentais das Práticas Restaurativas.
Sabe-se da extrema importância da utilização do diálogo para a resolução de conflitos. Nesse
sentido, a Comunicação Não Violenta (CNV) se apresenta como um método e um modo de ver as
relações humanas que tem como veículo principal a boa comunicação e a sociabilidade. Além disso,
a CNV se expandiu pelo mundo nestes 40 anos de existência, é utilizada em vários espaços, e se
destaca como modelo para as metodologias de resolução de conflitos, mediação e diálogos, bem
como nos círculos restaurativos. A CNV possibilita a minimização de consequências negativas, o
entendimento do que o outro quer e a percepção de si mesmo no conflito e no diálogo.
Sendo assim, esse método vem sendo utilizado em diversos espaços de resolução de conflitos,
a exemplo pelo Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas adequadas de
tratamento e resolução”, desenvolvido na UNIJUÍ.
Nesse sentido, para além das conquistas empreendidas pelos movimentos feministas na
construção de espaços de reconhecimento da mulher, ações como as desenvolvidas pelo Projeto de
Extensão “Conflitos Sociais e Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”
buscam contribuir com o reconhecimento de espaços de fala para as mulheres, de tal forma que
possam participar ativamente da solução dos conflitos mediante o posicionamento diante da situação,
defendendo suas necessidades, questões, interesses e podendo falar de seus sentimentos em um
ambiente seguro e não violento.
O Projeto de extensão Conflitos Sociais e Direitos Humanos teve início das atividades no ano de
2013 e visa desenvolver ações comunitárias através de discussões e aplicações de meios alternativos/
adequados de tratamento de conflitos. O projeto possui parceria com o Poder Judiciário do Estado do
RS, Defensoria Pública do Estado do RS, Secretarias de Educação – Santa Rosa, PROCON/RS e Municípios
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de Ijuí, Três Passos e Santa Rosa. Além disso, utiliza a mediação, a negociação e a conciliação como
meios de resolução de conflitos e conta com uma equipe de bolsistas e seus orientadores para a
realização de ações referentes ao projeto (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).
A mediação, desenvolvida no Projeto de Extensão, é um método consensual que tem como
objetivo solucionar conflitos e despertar no outro alteridade e empatia por meio da facilitação
do diálogo entre os envolvidos no conflito, para que possam melhor administrar suas questões
e consigam, por si só, alcançar seus interesses. O processo busca uma construção participativa,
conjunta e corresponsável das partes, visando benefícios mútuos e a minimização de consequências
negativas entre os indivíduos. Sendo assim, auxilia os indivíduos a redimensionar o conflito a partir
do exercício do diálogo e da cidadania (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).
Dessa forma, a mediação familiar no Projeto de Extensão Conflitos Sociais e Direitos Humanos se
desenvolve em cinco etapas. A primeira etapa consiste na triagem dos casos que chegam ao Escritório
de Prática Jurídica do Curso de Direito, campus Santa Rosa – RS. São agendadas entrevistas de indivíduos
com questões envolvendo conflitos familiares para a análise do possível encaminhamento à sessão de
mediação. Essa etapa é realizada pela bolsista do projeto de extensão (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).
Em segundo momento, com a possibilidade de realizar a mediação em razão do diagnóstico do
conflito e da voluntariedade do usuário, a entrevistadora realiza o contato com o outro mediando,
efetuando o convite para a participação da sessão. A partir do aceite, a sessão de mediação é agendada
em prazo que antecede dez dias, contados do aceite.
A terceira etapa, mediante as técnicas aplicáveis que visam alcançar os objetivos propostos pela
mediação, consiste em: início da sessão de mediação, coleta de informações, identificação de questões,
interesses e sentimentos; pauta de trabalho; resolução de questões; aproximação do acordo; formalização
do acordo e encerramento da sessão. Cada momento é crucial para a apresentação, compreensão e solução
dos conflitos juntamente com as técnicas aplicadas pelo mediador: a arte de perguntar, a técnica do resumo e
a despolarização do conflito. Essa etapa é ministrada pela mediadora professora, pela co-mediadora bolsista
ou voluntária do projeto de extensão e é possível a participação de observadores, alunos da graduação em
estágio obrigatório, os quais firmam termo de confidencialidade (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).
Além disso, são realizadas sessões individuais, recomendadas quando uma das partes não se
sente à vontade para expor o que sente. Após essas sessões, os mediandos voltam a sessão conjunta,
o que espera como resultado que as partes voltem a dialogar para construir o entendimento.
O quarto momento se resume, quando desejado pelos mediandos, na realização do termo de
entendimento, com lavratura do termo e encaminhamento para a homologação previstos na Lei da
Mediação para a atuação do mediador como procurador judicial, os mediandos são encaminhados a
Defensoria Pública da Comarca.
Por fim, a quinta etapa ocorre após o encerramento da sessão de mediação, com a aplicação de
questionário de avaliação da(s) sessão(ões) de mediação e a coleta de informações sobre essa forma
de resolução de conflitos (PROJETO DE EXTENSÃO, 2019).
Portanto, as atividades desenvolvidas no âmbito do projeto buscam a socialização, a promoção da
paz e a integração entre a Universidade e a comunidade local a partir da criação dos espaços públicos
os quais colaboram no exercício da cidadania, estimulando a autonomia frente aos conflitos por
aqueles que os vivenciam. Ademais, o processo de mediação é pensado e preparado cuidadosamente,
sendo de extrema importância pois tem como objetivo oportunizar a cidadania feminina através da
fala, e desse modo agrega autonomia e liberdade de expressão.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O patriarcado está presente desde a Antiguidade e é um sistema ideológico que possui como
característica a supremacia masculina. Além disso, se reproduz mediante de discursos e crenças que
estabelecem uma divisão entre homens e mulheres, que se faz presente nas relações socioculturais e
opera na subjetividade dos indivíduos. Logo, atua como um mecanismo de dominação e poder, mas
que gradualmente está sendo contestado.
A partir dos ideais Iluministas do século XVIII, o feminismo surge com princípios reivindicadores,
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os quais buscam igualdade entre homens e mulheres. Além disso, os movimentos feministas da
Modernidade aparecem como uma reviravolta, na luta constante das mulheres em busca de direitos
civis e políticos. Ao longo das décadas, o feminismo se desenvolveu e conquistou muitas ações que
contribuíram na igualdade e liberdade a partir da inclusão das mulheres nas áreas sociais, culturais e
econômicas, tal fato proporciona novas oportunidades em diversos campos.
Porém, ainda se faz muito presente a violência contra mulher, em destaque a violência doméstica,
que resulta em traumas para a vítima. Dessa maneira, a atuação do Projeto de Extensão “Conflitos Sociais e
Direitos Humanos: alternativas adequadas de tratamento e resolução”, a partir da mediação, se apresenta
como um meio de inclusão da mulher e de diminuição da desigualdade, pois possibilita a fala do sujeito
sem que haja a subordinação e discriminação. Desse modo, o processo de mediação é capaz de reequilibrar
e superar as diferenças de poder mediante a contribuição de ambas as partes, visando o benefício mútuo.
Portanto, é possível perceber que os movimentos feministas colaboraram com uma nova
percepção acerca do feminismo e contribuem com novas conquistas e possibilidades em amplos
campos. Além disso, a mediação realizada através do Projeto surge como uma forma de inclusão a
partir do exercício da autonomia e da comunicação não violenta. Porém, há muitas ações que ainda
devem ser realizadas para reforçar o respeito e a valorização feminina.
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Mariana Chini88
Ariane Faverzani da Luz89
RESUMO: a pesquisa revela a vulnerabilidade dos refugiados e a sua manipulação a partir de critérios
bio e necropolíticos. Assim, utilizando-se do escopo teórico-bibliográfico e do método hipotético-
dedutivo, serão apresentados concisos aportes sobre o multiculturalismo e sua relação com os
direitos humanos, considerando as adversidades experenciadas pelos imigrantes e pelos refugiados
na concretização de sua dignidade. Ainda, a vida precária a que os refugiados são submetidos será
analisada sob preceitos bio e necropolíticos no cenário pandêmico. Os resultados obtidos indicaram
que, embora o multiculturalismo aja como parâmetro positivo para o respeito e reconhecimento de
grupos e culturas, as condições bio e necropolíticas ainda atingem de modo precarizante a vida de
populações excluídas, a exemplo dos refugiados, principalmente em momentos como o da pandemia
do Coronavírus.
INTRODUÇÃO
88 Mestra em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF) com auxílio CAPES. Especialista em Direito do Trabalho e
Processo Trabalhista pela UNINTER. Especialista em Teologia pela UNESA. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UPF.
Bacharela em Filosofia pela UNISUL. E-mail: mar.chini@hotmail.com.
89 Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF) com auxílio CAPES. Especialista em Direito Público pela
FMP-RS. Especialista em Ciências Criminais pela FMP-RS. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela IMED. Graduada
em Direito pela IMED. Advogada. E-mail: arianefaverzani@outlook.com.
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necropolítica sobre os corpos excluídos e precarizados, demonstrando que os mesmos sofrem repetidas
violações aos direitos humanos, exemplificando tal situação com base na pandemia do Corovavírus
em relação aos refugiados, especificamente os de Moria. Por fim, objetiva-se sugerir alternativas que
contribuam para o reconhecimento e garantia de direitos das populações excluídas.
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A democracia deliberativa visa organizar a legitimidade pública e coletiva “[...] nas principais
instituições de uma sociedade com base no princípio segundo o qual as decisões que atingem o bem-
estar de uma coletividade podem ser vistas como o resultado de um procedimento de deliberação
livre e racional entre indivíduos considerados iguais política e moralmente” (BENHABIB, 2007, p. 48).
Desse modo, privilegia-se o bem-estar social, não sendo aceitas violações de direitos humanos, como,
a título de exemplo, a mutilação genital feminina praticada por poderes locais de inúmeros países
da África, do Oriente Médio, da Ásia, da América Latina e entre populações imigrantes que vivem na
Europa Ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia (ONTIVEROS, 2019).
Um dos principais desafios decorrentes do pluralismo cultural surge com a migração de
centenas de pessoas que, objetivando fugir de uma crise econômica no seu país, de perseguições
e/ou discriminações de cunho religioso, político, étnico e cultural e/ou de outras situações, buscam
uma vida digna para si e seus familiares em outra nação. A partir da chegada dos imigrantes e dos
refugiados no país de acolhida, a identidade coletiva do país é atingida, pois estes trazem consigo
suas próprias tradições (HABERMAS, 2007, p. 255), o que ocasiona impasses para inseri-los como
cidadãos dignos no organograma social.
Assim, “o movimento transfronteiriço de pessoas, como um fato relacionado ao multiculturalismo,
desafia nosso senso ético de convivência e ideia de reconhecimento da dignidade humana” (RUBIO, 2014,
p. 46) e “faz com que a busca de uma concepção coerente de cidadania se estenda aos direitos humanos”
(RUBIO, 2014, p. 46). Além disso, o processo migratório revela “[...] o reconhecimento de direitos para além
e em face de um Estado-nação, que, portanto, coloca em discussão os limites do modelo de ‘cidadania’
concebido na modernidade como possibilidade de direitos” (REDIN; MINCHOLA; ALMEIDA, 2020, p. 14).
Nas palavras de Rubio (2014, p. 47), “[...] todas as culturas são incompletas, construídas por signos,
saberes e significações que permanentemente transformam as relações sociais, culturais e institucionais,
e nestas relações são edificados os significados”. Tal afirmação demonstra que “cada cultura é impregnada
por várias culturas e racionalidades, e que devemos defender a igualdade na diferença, combinando
ambos os princípios em toda situação que produza a desigualdade” (RUBIO, 2014, p. 47).
Embora haja o interesse em garantir a dignidade aos imigrantes e aos refugiados, o cenário atual
revela que essas pessoas enfrentam dificuldades para se inserirem no novo país e terem seus direitos
reconhecidos, sentindo-se seres inferiores em relação aos nacionais. Nesse sentido, Taylor (1998, p.
56) alude que “a projeção de uma imagem do outro como ser inferior e desprezível pode ter um efeito
de distorção e de opressão, ao ponto de essa imagem ser interiorizada”.
Dentre os empecilhos vivenciados pelos imigrantes e pelos refugiados, destacam-se os de cunho
linguístico e de comunicação, a falta de conhecimento sobre o novo país, o desemprego, a falta de moradia,
o acesso à assistência médica e o preconceito local, que gera a prática de ações de discriminação, de ódio
e de intolerância. Diante disso, torna-se essencial a realização de um processo social de integração desses
indivíduos, especialmente no Brasil, pois “[...] a prática migratória da esfera pública brasileira, desde o
período colonial aos dias atuais, foi tratar o imigrante em uma pura relação de trabalho sem estabelecer
as políticas de integração/inserção na sociedade” (ZAMBERLAM et al., 2016, p. 17).
Atualmente, em virtude da pandemia ocasionada pela Covid-19, a vulnerabilidade dos imigrantes
e dos refugiados se acentuou, evidenciando as inúmeras violações de direitos humanos já existentes.
Nessa perspectiva, torna-se imperativo utilizar a situação dos refugiados como um paradigma
para analisar os efeitos bio e necropolíticos que recaem sobre esses corpos e, por conseguinte, o
descumprimento dos direitos humanos, considerando o contexto pandêmico.
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encadear o exame dessa situação bio e necropolítica ao cenário da pandemia da Covid-19 e às repetidas
violações aos direitos humanos que ocorrem em relação aos refugiados em meio a esse contexto.
Como apresentado no tópico anterior, a imigração aparece como um desafio ao multiculturalismo
ao desafiar o que Rubio (2014, p. 46) denomina como “senso ético de convivência” e “reconhecimento
da dignidade humana”, impelindo a criação de espaços, inclusive jurídicos, onde todos possam ser
respeitados e reconhecidos.
Os espaços jurídicos de reconhecimento, porém, trazem uma grande problemática quando
analisados a partir da ótica nacionalista. Tendo em vista que cada Estado possui seu próprio
ordenamento jurídico, mesmo com a criação de leis internacionais, é difícil definir uma legislação
comum que proteja todas as pessoas da mesma forma.
Nessa constante, pode-se perceber que os indivíduos que se moldam às características de
cidadania formuladas na era moderna possuem maior acolhimento nos ordenamentos jurídicos aos
quais pertencem por nascimento ou naturalização; o que seria uma característica positiva, não fosse,
como diria Campuzano (2016, p. 163-164), o fato de que o condicionamento de direitos à característica
de cidadão leva à consequências prejudiciais à três quartos da população mundial.
Lucas (2016, p. 95) assevera que “pertencer é também uma forma de negar acessos, de não
pertencer a outro lugar”, de modo que se afirma o estrangeiro como uma “ameaça que vem de fora e
que deve lá ser mantida ou que está dentro e deve ser eliminada jogando-a para fora”.
Ao desenvolver tanto espaços de inclusão e reconhecimento quanto espaços de exclusão
e colonização, a modernidade - em meio à construção do sistema capitalista - levou à criação de
instrumentos capazes de racionalizar a vida coletiva, tais como a ciência moderna, o direito estatal
moderno e o mercado (RUBIO, 2014, p. 65, 71).
Nesse contexto, “a errância, a ausência de domicílio, o desemprego, a incapacidade de
participação nas sociedades de consumo” levam à exclusão do mercado (SANTOS, 2016, p. 68) e,
consequentemente, à exclusão da redoma de direitos sociais garantidos aos cidadãos considerados
ativos na vida capitalista.
No campo da cidadania, como diria Gorczevski (2018, p. 181), se verifica um aspecto de
diferenciação e exclusão entre as pessoas, não apenas na modulação moderna, mas também nas
novas searas “pós-nacional, cosmopolita, transnacional, transcultural, multicultural”. E, a partir da
nova racionalidade de mercado, se percebe a imposição de um modelo no qual “aceitam-se como
naturais as desigualdades estruturais e legitimam-se como inevitáveis os modelos de dependência e
exclusão” (RUIZ, 2004, p. 193).
Segundo Butler (2018, p. 21), precariza-se a situação de muitas populações através da biopolítica
atual, que traça uma “obrigação de maximizar o valor de mercado de cada um como objetivo máximo
de vida”. Nesse mesmo sentido, Rubio (2010, p. 39, 46) afirma a visão do ocidente como única cultura
legítima e a criação da ideia de pessoas-coisas que podem ser sacrificadas em nome dos direitos de alguns,
o que se reflete pela apropriação dos poderosos sobre, inclusive, o “discurso dos direitos humanos”.
Warat (2010, p. 43) assevera que os refugiados, sejam eles econômicos ou políticos (bem como
os esquecidos e os excluídos, em geral), servem como espelho para o reflexo da politização na
relação entre a vida nua, os direitos relativos à espécie humana e aqueles que os Estados nacionais
reconhecem como titulares desses direitos, ou seja, os cidadãos em sentido específico do termo.
Ademais, segundo Butler (2018, p. 17-18), a racionalidade de mercado decide, de modo bio e
necropolítico, “quais saúdes e vidas devem ser protegidas e quais não devem”, sendo possível distinguir
entre “políticas que buscam explicitamente a morte de determinadas populações e políticas que
produzem condições de negligência sistemática que na realidade permitem que as pessoas morram”.
Para a supracitada autora, Foucault ajuda a fazer essa distinção ao tratar “sobre as estratégias bastante
específicas de biopoder, a gestão da vida e da morte, de forma que não requerem mais um soberano que
decida e ponha em prática explicitamente a questão sobre quem vai viver e quem vai morrer”, e Achille
Mbembe elabora “essa distinção com o seu conceito de ‘necropolítica’” (BUTLER, 2018, p. 18) - a qual se
caracteriza nas “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte” (MBEMBE, 2016, p. 146).
Em texto sobre a pandemia do Coronavírus, Mbembe (2020) reflete sobre o confinamento
enquanto parte da condição atual e lembra que esse tipo de situação já faz parte da rotina daqueles
que “povoam as prisões do mundo, e também aqueles outros cujas vidas foram despedaçadas face
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aos muros e outras técnicas de fronteirização”. Isso demonstra como a distinção entre populações
exime aqueles que se encontram em posição de privilégio de ter que pensar (e agir) em relação à vida
e a morte de outrem.
Muitas são as situações degradantes pelas quais os outros, os excluídos, os precarizados,
passam. No entanto, com a expansão da pandemia da Covid-19, tais situações pioraram. Exemplo
latente é o cenário do considerado “maior campo de refugiados da Europa, o Moria, localizado na ilha
grega de Lesbos” (LABROPOULOU, 2020).
Após 35 pessoas testarem positivo para Covid-19, o campo de refugiados foi colocado em
lockdown, o que acarretou grande desespero nos refugiados, visto que o campo já se encontrava
em más condições, segundo Axel Steier da ONG Mission Life. Para Steier, “as pessoas em Moria estão
expostas a um estresse psicológico extremo. [...] Os refugiados em Moria não são tratados como
humanos” (LABROPOULOU, 2020).
Em meio a esse contexto, “um grupo de caridade alemão no local disse que um protesto irrompeu no
campo na noite de terça-feira por causa das medidas de lockdown” e, de modo ainda desconhecido, um
incêndio irrompeu no campo na manhã de quarta-feira, 09 de setembro. Bombeiros, então, “tentaram conter
o fogo no local, onde estima-se que vivem cerca de 13.000 pessoas, mais de seis vezes a capacidade máxima
de 2.200”. Com o incêndio, George Moutafis, um fotógrafo local, disse que “o campo foi completamente
destruído. Os contêineres e as tendas foram completamente destruídos” (LABROPOULOU, 2020).
Essa situação demonstra como a pandemia agravou a já difícil situação dos refugiados. Os
refugiados de Moria, em específico, além de estarem em situação de exclusão total - fora de qualquer
território e ordenamento jurídico próprio -, têm enfrentado superlotação nos campos, surtos de
Covid-19, níveis de estresse elevados, e agora, falta de abrigo e nova indeterminação. Se antes eles
não sabiam se receberiam refúgio em algum país, agora eles não sabem se receberão refúgio em
algum outro campo.
Na conjuntura atual, ao se refletir acerca de um “pós-covid-19” ou um “dia seguinte” Mbembe
(2020) assevera que “ele não poderá ocorrer às custas de alguns, sempre os mesmos, como na Antiga
Economia. Ele dependerá, necessariamente, de todos os habitantes da terra, sem distinção de espécie,
raça, gênero, cidadania, religião ou qualquer outro marcador de diferenciação”.
É necessário que se deixe de lado o pensamento de que “o problema não é a população, mas
como salvar a economia, a vida do capital”, pois esse tipo de afirmação advém da generalização do
capitalismo contemporâneo de uma guerra contra os vivos, que é feita desde o início da história
capitalista, visto os vivos serem “o objeto da sua exploração”, sendo que “para explorá-los, deve
subjugá-los” (LAZZAROTO, 2020).
Nesse contexto, a vida dos humanos é submetida “à lógica contábil que organiza a saúde pública
e decide quem vive e quem morre”, do mesmo modo que a vida dos não humanos também se submete
às mesmas condições, “porque a acumulação de capital é infinita e se o ser vivente, com a sua finitude,
constitui um limite à sua expansão, o capital o afronta, como todos os outros limites que encontra,
superando-o. Esta superação implica, necessariamente, na extinção de cada espécie” (LAZZAROTO, 2020).
Visando contrapor esse tipo de lógica, necessário se faz que haja resistência e busca por
alternativas. Como dizem Hardt e Negri (2016, p. 46):
A fenomenologia dos corpos em Foucault chega ao ponto máximo na análise da biopolítica, e aqui,
se nos concentramos no essencial, seu programa de pesquisa simples. Seu primeiro axioma é que
os corpos são os componentes constitutivos da trama biopolítica do ser. No terreno político – e
este é o segundo axioma -, no qual os poderes são constantemente feitos e desfeitos, os corpos
resistem. Precisam resistir para existir. Desse modo, a história não pode ser entendida meramente
como o horizonte no qual o biopoder configura a realidade através da dominação. Pelo contrário,
a história é determinada pelos antagonismos e resistências biopolíticas ao biopoder. O terceiro
axioma de seu programa de pesquisa é que a resistência corpórea produz subjetividade, não de
uma forma isolada ou independente, mas na complexa dinâmica com as resistências de outros
corpos. Essa produção de subjetividade através da resistência e da luta se revelará central, à
medida que prosseguimos em nossa análise, não só para a subversão das formas existentes de
poder mas também para a constituição de instituições alternativas de libertação.
Os autores acima mencionados trazem ainda como desafio a busca por “maneiras de traduzir
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a produtividade e a possibilidade do pobre em poder”. Segundo eles, “[...] o pobre não é definido
pela falta, mas pela possibilidade”. Isso significa que “os pobres, os migrantes e os trabalhadores
‘precários’ (ou seja, os que não têm emprego estável) são muitas vezes considerados excluídos, mas
na realidade, apesar de subordinados, estão perfeitamente dentro dos ritmos globais da produção
biopolítica” (HARDT; NEGRI, 2016, p. 10 e 11).
Essa afirmativa serve para esclarecer que mesmo a exclusão está inclusa nos ditames biopolíticos
de produção e exploração. Ocorre que “as estatísticas econômicas são capazes de captar a condição da
pobreza em termos negativos, mas não as formas de vida, linguagens, movimentos ou capacidade de
inovação por eles gerados” (HARDT; NEGRI, 2016, p. 11); e é essa última habilidade o que possibilita
a constituição de alternativas de libertação.
Como declara Rubio (2014, p. 128), são as relações e práticas pessoais e sociais (jurídicas
ou não) que “nos dão a justa medida se fazemos ou não fazemos direitos humanos, se estamos
construindo processos a partir de relações baixo dinâmicas de reconhecimento, respeito, e inclusão
ou através de dinâmicas de império, dominação e exclusão”.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve por objetivo central demonstrar a situação de vulnerabilidade dos refugiados
em meio à pandemia da Covid-19, além de examinar - ainda que de modo sucinto - a manipulação bio e
necropolítica sofrida pelos mesmos. Para tanto, foi necessário traçar aportes sobre o multiculturalismo
e sua relação com os direitos humanos, bem como, analisar de que modo a bio e a necropolítica afetam
a efetivação dos direitos humanos em relação aos corpos excluídos e precarizados.
Nesse contexto, a primeira parte do artigo tratou sobre o modo como o multiculturalismo é passível
de análise sob perspectivas diferentes, mas que têm em comum o enfoque na coexistência de grupos
e culturas diferentes. Tal coexistência, porém, é marcada por intensas dificuldades, principalmente
no contexto da globalização; isso porque, embora a visão ocidental moderna compreenda os direitos
humanos como universais, muitas culturas têm tradições e valores que contrastam com essas regras.
Torna-se, portanto, um paradoxo tratar dos direitos humanos no cenário multicultural, pois,
ao mesmo tempo em que documentos como a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural
declaram que as diferenças culturais são necessárias para o gênero humano, também enfatizam
que essas não podem ser usadas como justificativa para violações e limitações de direitos humanos
garantidos internacionalmente.
É nesse sentido que Boaventura de Sousa Santos sugere uma concepção multicultural de direitos
humanos que seja baseada em um diálogo intercultural, capaz de fomentar equilibro entre poderes
globais e locais, para que se possa pensar em um mínimo ético que proteja os direitos humanos da
forma mais eficaz possível.
Ainda, examinou-se a questão da migração enquanto desafio para o modelo de cidadania constituído
pela modernidade enquanto traço característico para o reconhecimento e garantia de direitos.
Na segunda parte do artigo, por sua vez, foi analisada a situação bio e necropolítica dos corpos
cuja vida se encontra em situação de exclusão e precariedade, mais especificamente, dos corpos
refugiados. O exame, então, foi recortado em torno do cenário da pandemia da Covid-19 e das
violações aos direitos humanos ocorridas em relação aos refugiados nesse contexto.
Observou-se que o processo moderno de racionalização da vida coletiva através de meios como
a ciência, o direito e o mercado, acarretou na polarização entre inclusão e exclusão; de modo que
tudo - e todos - que estivessem conformados aos padrões estabelecidos era considerado digno de
reconhecimento e garantias, enquanto tudo - e todos – que se encontrassem em desacordo com a
racionalização imposta era considerado indigno (ou sequer considerado para qualquer fim social).
Ademais, mesmo com novas modulações além da moderna (a exemplo do multiculturalismo),
se apresenta uma nova racionalidade de mercado que ainda é capaz de gerir e legitimar situações
de dependência e exclusão. Além disso, muitas populações são submetidas a uma precarização bio
e necropolítica que desconstitui a possibilidade de reconhecimento e garantia de direitos humanos.
Exemplo dessa situação é o caso dos refugiados, em especial os de Moria, que em meio à
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pandemia do Coronavírus foram expostos não apenas à indeterminação acerca de seu futuro em
algum país europeu ou à necessidade de volta a seus países de origem, mas também à superlotação,
ao atingimento pela Covid-19, ao lockdown, a um incêndio que destruiu completamente o campo, e
à nova indeterminação, dessa vez em relação não apenas a saber se serão aceitos em novos países,
mas também se seriam aceitos em novos campos.
Diante desse contexto é necessário pensar em resistências e alternativas que contraponham à
lógica bio e necropolítica que afeta as populações precarizadas, começando pelo reconhecimento e
garantia de sua identidade individual, bem como, de sua identidade multicultural.
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213
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RESUMO: O presente estudo busca perceber a maneira que os estudantes de graduação em direito
enxergam as pessoas refugiadas, com destaque às pessoas que estão no Brasil, bem como, também
buscamos perceber o conhecimento dos graduando sobre direitos das pessoas refugiadas, para
isso, Tivemos como objetivo geral: Identificar o que pensam os graduandos de um curso jurídico
sobre garantias concedidas à pessoas refugiadas. Como objetivos específicos pautou-se: Analisar
os percalços migratórios do século passado até a contemporaneidade. Observar as dificuldades do
sistema global na defesa dos direitos humanos, e, Identificar o conhecimento e visão de graduandos
de um curso jurídico sobre as garantias de pessoas refugiadas. Conclui-se o relatório final, com a
percepção de que os Estudantes do início do curso estão bem mais preocupados com a proteção dos
direitos dos refugiados e cautelosos com a sua segurança.
INTRODUÇÃO
A cada dia, se percebe a necessidade sobre o conhecimento e percepção dos direitos de pessoas
refugiadas, tendo em vista que, esse é um tema atual e de grande importância para América Latina.
Para alcançar tais objetivos utilizamos dos benefícios de uma pesquisa em forma de questionário de
autoria própria aplicado em turmas do curso de direito de um Centro Universitário do Agreste de Pernambuco
tendo como tema, a visão dos universitários do curso de direito sobre direitos de pessoas refugiadas,
observando-se o (des)conhecimento e a percepção dos entrevistados em razão da temática analisada.
Assim, os trajetos metodológicos para desenvolver o presente trabalho serão o método indutivo
e de abordagem mista, utilizaremos também da pesquisa bibliográfica, descritiva, exploratória e
técnica de análise de dados a partir da análise de conteúdo.
O presente estudo não foi submetido ao Comitê de Ética devido à aplicação da Resolução
510/2016, que dispõe em sua matéria sobre as novas normas aplicadas a pesquisas em ciências
humanas e sociais. Esse documento revela que os procedimentos metodológicos que envolvam a
utilização de dados diretamente obtidos com os participantes, desde que de forma a aferir apenas
opinião e que não seja de modo identificado, passam a ter dispensa de submissão ao órgão regulador
dos aspectos éticos em pesquisas com seres humanos.
O objetivo geral foi de identificar o que pensam os graduandos de um curso jurídico sobre
garantias concedidas à pessoas refugiadas. E objetivos específicos de, analisar os percalços migratórios
do século passado até a contemporaneidade. Observar as dificuldades do sistema global na defesa
dos direitos humanos, e, identificar o conhecimento e visão de graduandos de um curso jurídico sobre
as garantias de pessoas refugiadas. Levantamos o seguinte problema: O que pensam os graduandos
de um curso jurídico sobre garantias concedidas à pessoas refugiadas?
Faz-se necessário um debate no meio acadêmico sobre o tema, mostrando a realidade da
sociedade que “acolhe” pessoas refugiadas e a visão da sociedade acadêmica, fazendo com que os
pesquisadores voltem seus olhos para essa realidade. Nas palavras da Alta Comissária das Nações
Unidas para os Refugiados Sadako Ogata (2002, p.05), “a questão dos refugiados deve ser colocada
a todos os governos e a todos os povos como um teste revelador do seu empenhamento em prol dos
direitos humanos”.
90 Mestranda em Direito no PPGD/UNICAP. Pós-graduada em Direito Processual Civil – UNINASSAU. Graduada em Direito –
Unifavip/Wyden. Pesquisadora do LabICPP no ICPP. E-mail: verallyverally@gmail.com.
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1 METODOLOGIA DA PESQUISA
Apresentaremos o percurso metodológico do trabalho nesta seção, onde este se fez de
fundamental importância para a realização da pesquisa. Abordaremos os métodos e as técnicas que
foram exploradas para a preparação do trabalho em questão. Da mesma forma, serão evidenciados
quais os instrumentos eleitos a coleta de dados.
No caso em questão o estudo deu-se com graduandos/as de um curso de Direito, matriculados
nos períodos iniciais e final, de Instituição de Ensino Superior localizada no agreste Pernambucano.
Para a realização do estudo, foi utilizado o método indutivo, o qual permite que através da
observação de um contexto específico, possa-se chegar a conclusões mais amplas, quão seja a
construção de hipóteses sobre um dado universo (GIL, 2009).
A abordagem qualitativa, nesta pesquisa, articula-se com algumas categorias analíticas extraídas
da investigação a partir da técnica de Análise do Conteúdo. Que envolve a preparação dos dados para
análise e posterior categorização. No pensamento de Minayo (1995, p. 21-22):
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências
sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, ela trabalha com o
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde
a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis.
Usou-se também outra abordagem metodológica, qual seja, a quantitativa, que parte de um
processo mais indutivo, explora os temas de forma mais específica, com o intuito de destacar, por
meio de fórmulas, valores, crenças e atitudes presentes em um dado objeto. Assim:
O método quantitativo é bastante usado no desenvolvimento das pesquisas nos campos social,
de opinião, de comunicação, mercadológico, administrativo e econômico, representando de forma
geral a garantia de precisão dos resultados, evitando enganos e distorções na interpretação dos
dados (OLIVEIRA, 2002, p. 155).
Logo, chega-se à conclusão de que a metodologia de pesquisa utiliza é mista, pois se expressa
não no sentido de integrar as duas formas de inquérito, mas no sentido de utilizar características
associadas a cada uma dessas abordagens. Uma vez que a pesquisa qualitativa é a qualificação dos
dados coletados, e a pesquisa quantitativa, é o uso estatístico ou de dados numéricos (MORAES;
NEVES, 2007). Em relação aos tipos de pesquisa, foram abordados os procedimentos decorrentes de
pesquisa bibliográfica, somada às pesquisas exploratória e descritiva.
Atenta-se que a pesquisa bibliográfica se fez presente desde as buscas para o processo de
delineamento do estudo. Fonseca (2002, p. 32) conceitua o procedimento de pesquisa bibliográfico,
no qual diz que se trata de um levantamento de publicações existentes, dessa forma o pesquisador
poderá conhecer do assunto.
No tocante ao procedimento de pesquisa descritiva, Vergara (2000) nos diz que esta é uma
pesquisa que proporciona a identificação de um determinado universo, pois esta expõe as peculiaridades
considerando as variáveis pertencentes à definição da natureza do objeto. Pode-se dizer ainda que
esta pesquisa tem o intuito de esmiuçar as peculiaridades de uma determinada população.
A pesquisa também é classificada como descritiva, pois utilizou-se técnicas padronizadas para
a coleta de dados, como aplicação de questionários, buscando conhecer as diversas situações e
relações que ocorrem no universo pesquisado.
Em se tratando da pesquisa exploratória, o uso desta tem como propósito interpretar e analisar
fatos. Esse tipo de pesquisa requer um maior investimento de teorização e reflexão sobre o objeto
a ser estudado. Para Gil (2009), com a pesquisa exploratória visa-se identificar os fatores que levam
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a ocorrência de determinado fenômeno, explicando a razão. O estudo foi realizado com estudantes
de primeiros períodos e décimos períodos do curso de Direito de uma instituição de ensino superior
localizada no município de Caruaru, agreste Pernambucano.
Esta, que têm uma vasta amplitude de alunos, possuindo 30 cursos de graduação e mais de 14
cursos de pós-graduação, totalizando mais de 8.000 alunos.
Para se realizar o estudo, tivemos o apoio da faculdade em face, e, consequentemente, da
contamos com a colaboração e disponibilidade dos/as estudantes. Sendo importante que o sujeito
fosse, primeiramente, graduando do curso em direito.
A partir da narrativa e entendimento dos estudantes de direito, busca-se analisar suas percepções
sobre direitos de pessoas refugiadas, através das respostas dados frente ao questionário aplicado. A
coleta de dados deu-se a partir de um questionário estruturado. Os eixos foram pensados de modo
que fosse possível obter dados dos entrevistados como: nível de conhecimento sobre os direitos
básicos garantidos às pessoas refugiadas no Brasil, nível de instrução, faixa etária, entre outros dados
importantes para realização do trabalho.
A análise de dados na presente pesquisa deu-se por meio da técnica de análise de Conteúdo.
Como forma de explorar e aprofundar uma melhor compreensão sobre a percepção de estudantes de
direito a respeito de direitos de imigrantes refugiados. Retrata Chizzotti (2006, p. 98): “o objetivo da
análise de conteúdo é compreender criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto
ou latente, as significações explícitas ou ocultas”.
O presente estudo não foi submetido ao Comitê de Ética devido à aplicação da Resolução
510/2016 que dispõe em sua matéria sobre as novas normas aplicadas a pesquisas em ciências
humanas e sociais.
Por fim, a identificação das pessoas a que as informações não será revelada, sendo garantido o
pleno anonimato das opiniões/percepções.
2 DESENVOLVIMENTO
A universalidade dos direitos humanos nasce com o advento da Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948, baseado na razão de que o indivíduo por ser, ser humano é dotado de direitos,
deveres e garantias fundamentais.
Posteriormente ao processo de universalização dos direitos humanos nasce o sistema
internacional de proteção, tendo o mesmo como cunho principal o resguardo mínimo de direitos, para
esse feito, sempre analisasse o princípio da ponderação e equivalência. Por sua vez, em concomitância
ao sistema global, surge os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, sendo estes, o da
Europa, África e da América.
Todos esses sistemas são complementares, os regionais seguem as normativas do sistema
global e ambos unidos ao sistema nacional, garantem e proporcionam uma melhor efetivação dos
direitos individuais e coletivos do ser humano, pois assim como a mundo o ser humano está em
constante variação de seu ponto de vista. O autor Allan Rosas (1995, p. 243) a respeito da síntese de
direitos humanos defende que: “o conceito de direitos humanos é sempre progressivo. […] O debate
a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa
história, de nosso passado e de nosso presente”.
Para ele os direitos humanos é algo que está em constante modificação, pelo motivo de que o
mundo e por consequência o indivíduo está em constante modificação seja pela globalização seja
pela renovação de conceitos e paradigmas.
O surgimento do sistema global de proteção aos direitos humanos em relação as pessoas que
se encontram em situação de refúgio, se deu com o fim da Segunda Guerra Mundial, onde tomamos
conhecimento histórico das inúmeras perseguições, torturas e violações realizadas pelos Nazistas em
face de uma determinada raça.
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Nas palavras da Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados Sadako Ogata (2002,
p.05), “a questão dos refugiados deve ser colocada a todos os governos e a todos os povos como
um teste revelador do seu empenhamento em prol dos direitos humanos”. Ficha Informativa, Nº 20 –
Comissão Nacional para as Comemorações 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e Década das Nações Unidas para a Educação em Matéria de Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direito Humanos, logo de início não foi bem aceita pelos Estados
Ditatoriais, em razão dessa descaracterizar a centralização do Poder Estatal e introduzir a centralização
de poder de maneira Universal.
Para Piovesan (2001, p. 15) “a ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecer
de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades
humanas, de forma livre, autônoma e plena”.
Este Sistema é composto por quatro normativas bases: a Carta das Nações Unidas, Declaração
Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Humanos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional de Direitos Sociais, econômicos e Culturais, ambos de 1966. Mello refere-se aos direitos
humanos dizendo que,
Esses direitos são concebidos de forma a incluir aquelas reivindicações morais e políticas que
no consenso contemporâneo, todo ser humano tem o dever de ter perante sua sociedade ou
governo, reivindicações essas reconhecidas como de direito e não apenas por amor, graça ou
caridade (2001, p. 34).
Nesta etapa do trabalho iremos expor quatro perguntas que foram feitas aos alunos do curso de
direito, sendo duas delas aos alunos de períodos iniciais e duas aos alunos do último período do curso.
A primeira pergunta feita foi, “Você considera que a diferença cultural entre as pessoas refugiadas e
os nacionais, pode ser um obstáculo à sua integração no Brasil?” e observemos a seguinte resposta:
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1º Período
Pelas respostas acima coletadas, verifica-se que 52% dos alunos compreendem que existe uma
grande dificuldade de integração do imigrante no Brasil, em relação a intolerância à cultura, no entanto,
20% dos universitários responderam que cada tanto os refugiados como as pessoas dos países que os
abrigam defendem sua própria cultura, observa-se ainda o mesmo percentual de 18% ao responderem
que o ser humano de adapta ao lugar em que vive, por fim o percentual de 10% consolidou que o
entendimento dos alunos é que o respeito a tradição cultural de cada indivíduo deve prevalecer.
Nesta pergunta que apresentada, percebe-se que em sua maioria, os universitários compreendem
que existe uma grande intolerância em relação a aceitação da cultura dos refugiados, pois os seres
humanos de forma geral defendem a forma que foram ensinados, ou seja, cada um defende sua cultura,
entretanto, as respostas também revelam que muitos universitários compreendem que o ser humano
se adapta ao lugar em que vive e uma minoria enfatiza que a tradição dos refugiados deve prevalecer.
Em seguida, perguntamos aos primeiros períodos, “Você concorda que doenças como vírus Zika,
a Chikungunya e a H1N1 só chegaram ao Brasil porque nosso país aceita refugiados, principalmente
aqueles de países da África?”, e as respostas foram:
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Constatamos através dos dados acima que 68% dos alunos não concordam com a associação
feita, pois, a chegada dessas doenças no Brasil não está vinculada a vinda dos refugiados. Em segundo
lugar com 24% das opções está a alternativa que deixaram de responder a presente pergunta.
E, com a porcentagem mínima de 8% estão as pessoas que concordam que sim, porém não de todos
os países, mas, somente aqueles vindos de países da África porque a maioria de seus países são pobres,
sujos e cheios de doenças, nesta alternativa podemos identificar o preconceito à determinadas raças.
Já quando essa pergunta foi feita aos décimos períodos a maioria dos estudantes associaram a
chegada dessas doenças virais à chegada de pessoas refugiadas no país.
Nesse bloco, apresentaremos as perguntas que foram direcionadas aos décimos períodos do
curso, dessa forma, a primeira pergunta foi: “Concorda que a Europa feche suas fronteiras?”
10º Período
Pelas respostas coletadas fica evidenciado que 32% dos futuros juristas escolheram por não
responder a essa pergunta. A alternativa que elenca proteções por exemplo, a vida, como é o caso
da letra B, assim como a opção C que diz “por mim tanto faz, esse assunto não me interessa” e
a alternativa racista que dispõe que os refugiados de países que possuam terroristas devem ser
barrados na fronteira, essas opções foram escolhidas por apenas 4% dos entrevistados.
Liderando as opções de escolha postas aos universitários, está aquela que podemos dizer ser a
mais preocupante pois mostra que a maioria concorda que deve ser fechada a fronteira da Europa, e,
por consequência, as pessoas que almejaram ao refúgio permanecem em seus países, mesmo sabendo
que é “impossível” sua continuidade com uma vida sadia no mesmo, conforme as opiniões expressadas.
Nesta pergunta, obtivemos um dado bastante preocupante, pois, a prevalência das opiniões direcionou-
se para a alternativa em que mais estava presente a incompreensão e a falta de tolerância para com o
imigrante, chegando-se a cogitar, inclusive a se colocar mais uma vez em risco, a vida dessas pessoas.
Para finalizar esse bloco de perguntas, fizemos a seguinte indagação: “Para você, além de obter
o Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), os refugiados têm direito aos documentos de identidade
dos estrangeiros no Brasil; Carteira de Trabalho e Previdência Social definitiva (CTPS); e número de
Cadastro de Pessoa Física (CPF) e documento de viagem?”
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar Projetos de Pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
MORAIS, Ana Maria; NEVES Isabel Pestana. Fazer investigação usando uma abordagem metodológica
mista. Revista Portuguesa de Educação, v. 20, n. 2, p. 75-104, 2007.
OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Tratado de Metodologia Científica – projetos de pesquisas, TGI, TCC,
Monografias, Dissertações e teses, São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
PIOVESAN, F., O “direito de asilo e a proteção internacional dos refugiados. In N. Araújo & G.A.
Almeida, eds. O Direito Internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001.
ROSAS, Allan. Economic, Social and Cultural Rights. Dordrecht, Boston, Londres: Martins Nijhoff
Publisher.
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RESUMO: O presente artigo visa demonstrar a evolução do que se entende por direitos reprodutivos e direi-
tos sexuais na contextualização do planejamento familiar e esterilização das mulheres no Brasil, evidencian-
do que apesar dos inúmeros avanços históricos na promoção da defesa da liberdade reprodutiva feminina,
é possível ainda perceber a influência do Estado no poder de decisão de quem pode ou não reproduzir-se,
baseado na raça, classe, capacidade intelectual e vulnerabilidade feminina. Por esse modo, analisa-se a apli-
cação da Lei do Planejamento Familiar - Lei 9.263/1996 nas decisões jurisprudenciais através da prática da
esterilização feminina voluntária ou compulsória, evidenciando a desigualdade de gênero na responsabili-
zação da mulher como fonte reprodutora, e a interferência na livre decisão do casal na escolha reprodutiva.
INTRODUÇÃO
O corpo feminino há muito tem sido objeto de debates quanto a construção de seus direitos
sexuais e reprodutivos e sua aplicação dentro das políticas de Planejamento Familiar no Brasil,
abordando através de reivindicações de cunho feminista, uma tentativa de igualdade entre homens e
mulheres, que mesmo evoluída, ainda se encontra distante da realidade vivida no mundo todo.
A culpabilização da mulher por sua sexualidade é algo arraigado na cultura e mentalidade dos
indivíduos dentro da sociedade, um exemplo pode ser encontrado dentro dos casos de estupro, onde
a vítima é colocada em situação de dúvida quanto ao momento e situação sofrida, imputando-lhe
responsabilidad por uma agressão que não poderia evitar. A tentativa de culpabilidade feminina é
extraída também na reprodução, não por uma agressão como no estupro, mas pela incapacidade de
gerar uma prole, ou pela responsabilidade da “superlotação populacional” que sua reprodução causa,
recaindo em si, a obrigação pelos problemas populacionais.
É possível vislumbrar a interferência do Estado no corpo feminio em inúmeros locais do
mundo, não sendo diferente no Brasil, resultando em um cenário de massiva violação dos direitos
reprodutivos, principalmente o direito de mulheres negras, pobres e periféricas, contribuindo para
a gestão e instrumentalização de seus corpos e vidas, implantando projetos eugênicos e racistas de
controle populacional (ANDRADE; STURZA; NIELSSON, 2020).
Partindo desta discussão, o artigo irá dividir-se em duas partes, onde em primeiro momento
será analisado a evolução do que se tem por direitos sexuais e reprodutivos em uma contextualização
nacional e internacional, subdividindo-se em pré e pós edição da Lei nº 9.263 de 1996 que trata do
Planejamento Familiar no Brasil. Em um segundo momento será abordado a esterilização feminina como
forma de controle através da pesquisa jurisprudencial realizada no Tribunal do Estado do Rio Grande
do Sul, como uma análise crítica das hipóteses de concessão ou não dos procedimentos esterilizadores.
91 Doutora em Direito Público (UNISINOS), Mestre em Direitos Humanos (UNIJUÍ), Professora pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da UNIJUÍ - e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ.
E-mail: joice.gn@gmail.com
92 Acadêmica do Curso de Direito da Unijuí. Bolsista PIBIC/CPNq do Projeto de Pesquisa: CONTROLE REPRODUTIVO SOBRE O
CORPO FEMININO EM UMA PERSPECTIVA BIOPOLÍTICA: análise comparada acerca de legislações, políticas públicas e controvérsias
judiciais sobre planejamento familiar e esterilização de mulheres no Brasil, Peru e Bolívia. E-mail: marianaebandeira@gmail.com
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através de uma polêmica disputa entre políticas de controle demográfico e aqueles considerados
na época como anti-controlistas. Os conflitos internacionais criaram um controle demográfico, na
tentativa de reduzir o seu crescimento, posto que o progresso econômico e desenvolvimento somente
seriam possíveis através das intervenções com o objetivo de redução populacional (COSTA, 1996) É a
partir deste momento que cria-se um debate pró e contra natalista, onde junto aos movimentos sociais
e partidos políticos clandestinos, demais setores da sociedade progressista mostravam-se contra os
princípios defendidos pelas políticas controlistas, sob o argumento da necessidade de ocupação do
território nacional, apoiados pelos militares que defendiam a ideia de “segurança nacional”.
Foi após a Guerra nas décadas de 1950 e 1960 havendo uma expansão demográfica denominada
por Thomas Malthus como “bomba populacional”, que a situação dos países subdesenvolvidos foi
problematizada através do crescimento e desenvolvimento econômico, principalmente no contexto
da Guerra Fria (NIELSSON, 2020). Ressalta-se então, que a partir desse momento,a ideia de pobreza
era associada à questão de natalidade, e a contracepção que antes era utilizada para manter a eugenia
da população, passa a ser usada como controle de fertilidade, chegando até mesmo a ser financiada
pelo próprio Estado (COSTA; STOTZ; GRYNZPAN; SOUZA, 2006).
É no meio do contexto de mulheres como autoras no processo de planejamento familiar, que
no ano de 1965 surge a Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil (BENFAM), e posteriormente
em 1970, o Centro de Assistência Integrada a Mulher e a Criança (CPAIMC), ambos financiados pelo
Capital Internacional e filiadas ao IPPF (International Planned Parenthhood Federation) (COSTA, 1996).
Mediante tal cenário se alteram as posturas referentes a tal ideia, havendo à partir desse momento
o endurecimento da ditadura militar vigente na época com o intuito de evitar a “convulsão social”
causada pelo crescimento populacional, gerando um grande contingente de pobres e numerosas
famílias, além de uma política mais permissiva advinda da Igreja Católica (NIELSSON, 2020).
Com o contexto que se delineava na sociedade, e aumento de meios contraceptivos, em 1974 na
Conferência Mundial sobre População foi delineado o primeiro acordo com o objetivo de proporcionar
informação e educação reprodutiva, sendo posteriormente reafirmado em 1984 na Conferência
Mundial de População e Desenvolvimento no México (NIELSSON, 2020).
No contexto da busca por meios contraceptivos, em 1993 o Ministério da Saúde cria o Programa
de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), desenvolvido inicialmente na rede pública de cada
região, dependendo da necessidade de cada área para sua implementação. Todavia, apesar de grande
expectativa, o PAISM não resultou em grandes e significativos impactos no tema planejamento familiar,
não estando os serviços públicos preparados para tal demanda contraceptiva, abrindo espaço para
que o BENFAM e CPAIMC apresentassem um serviço com melhor prestação de assistência, passando
a “ditarem os rumos do planejamento familiar” (NIELSSON, 2020).
É a partir dessa tomada de rumos que na década de 1980 iniciam-se relatos de denúncias
quanto a práticas de abortos e a colocação de anticoncepcional subcutâneo, além de denúncias
de esterilização em mulheres pobres, por meio de coação nas unidades do CPAIMC, utilizando-se
para tanto, dos recursos do Fundo de População das Nações Unidas e o United States Agency for
International Development (USAID) .
Um dos marcos após a criação do PAISM, foi o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres
no ano de 1985, que teve grande relevância na Assembléia Nacional Constituinte de 1988, que
consagrou na Constituição Brasileira o planejamento familiar ao estabelecer em seu artigo 226,
parágrafo 7, diretrizes a serem obedecidas, como no caso da liberdade de escolha do casal, ou ainda
a responsabilidade do Estado em prover recursos educacionais e científicos para o exercício desse
direito (COSTA, 1996). Todavia, a transição da fecundidade, que resultou sua queda, teve início
já na segunda metade da década de 1960, não apenas no Brasil, mas também na média mundial,
sendo essa fase denominada como contracepção moderna, pelo aumento das cirurgias de laqueadura
tubária, em especial nas áreas mais pobres do país
Os procedimentos de esterilização cirúrgicas eram realizados em sua maioria no curso das
operações de cesáreas, o que produziu um aumento nos índices de partos cirúrgicos, sendo que
mulheres que não queriam mais filhos, mas também não possuíam dinheiro para uma laqueadura,
utilizavam-se de tal método para sua realização, contando com a ajuda profissional dos médicos,
mesmo que esta fosse proibida. As altas taxas de cesarianas exibidas no Brasil passam a estar entre
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as mais elevadas do mundo, reproduzindo uma cultura de falta de informações associadas a ausência
de outra alternativa, principalmente entre as mulheres mais jovens. (COSTA, 1996)
É neste cenário de contracepção em massa que foram intensificadas as preocupações de gestores de
saúde e movimentos feministas, assim como pesquisadores e autoridades contra uma prática sistêmica
e ações intervencionistas. Em 1991, a instauração da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI)
através do Congresso Nacional, denunciou ao fim de suas investigações, a baixa disponibilidade dos
métodos contraceptivos para a população de baixa renda e a inexistência de serviços de planejamento
familiar e afetivo, não restando outra solução a não ser a esterilização (COSTA, 1996).
Até o momento, as mazelas associadas à pobreza, fome, degradação ambiental e grande
crescimento populacional eram atribuídas às mulheres, vindo a resultar posteriormente em políticas
coercitivas e de controle populacional, lideradas por organizações internacionais e apoiadas por
fundações internacionais privadas. Com a ascensão da Lei, as formas de controle passam a ser
feita pelo Estado, e não mais por meio de investimentos privados internacionais, onde nas próprias
instituições internas aplica-se políticas públicas na formulação e delimitação de leis e decisões
jurisprudenciais (NIELSSON, 2020).
Como já relatado, o corpo da mulher foi o principal alvo do planejamento familiar, através
de programas focados nas minorias pobres, classes e castas baixas, e indígenas, criando através
de tais indivíduos metas demográficas em detrimento de normas sociais e culturais. Ademais,
o desenvolvimento de contraceptivos por fabricantes para o controle de fertilidade, tais como
esterilização, injeções e implantes não tinham qualquer preocupação quanto a saúde das mulheres,
mas sim um objetivo puramente de interesses políticos.
Após a 4ª Conferência Mundial de Mulheres realizada em Beijing na China no ano de 1995, é
decretada e sancionada em 12 de janeiro de 1996 a Lei nº 9.263 pelo Presidente Fernando Henrique
Cardoso, concernente ao planejamento familiar e esterilização voluntária (ROCHA, 2019). Posteriormente
a edição da lei, é possível se perceber a ambivalência biopolítica entre a retórica de tais direitos e prática
exercida pelo dispositivo reprodutividade no controle por ele operado. (NIELSSON, 2020)
A Lei traz em seu artigo 2º uma definição ao conceito de planejamento familiar que harmonizasse
com uma definição já aceita em escala internacional:
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação
da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela
mulher, pelo homem ou pelo casal.
A promulgação da Lei traz também uma responsabilidade ao Sistema Único de Saúde (SUS),
que passa a ser responsável pela assistência ao planejamento familiar e reprodutivo, incluindo a
viabilização do acesso a métodos e técnicas de concepção e contracepção, evitando de se colocar em
risco a vida de ainda mais mulheres (VENTURA, 2009). Mas, apesar da estipulação legal, não é isso
que se têm visto dentro dos hospitais públicos, onde a falta de informações faz cada vez mais vítimas
e o Estado se mostra omisso quanto a isso.
Fabiane Kravutschke Bogdanovicz em seu texto “O direito à contracepção no Brasil e a Lei do
Planejamento Familiar (9.263/96)” pontua três elementos que precisam de atenção na Lei do Planejamento
Familiar, a começar pela omissão da lei ao tratar da saúde reprodutiva e sexual entre adolescentes, focando
principalmente em adultos acima de 25 anos, condicionando estes jovens a anuência de seus responsáveis
até mesmo para se ter acesso a meios contraceptivos. O segundo ponto abordado, e talvez o mais relevante
do ponto de vista histórico, é a necessidade expressa na lei do consentimento do cônjuge (artigo 10,
parágrafo 5º), e mesmo que esta anuência valha tanto para homens quanto para mulheres, não é isso que é
visto nos procedimentos de laqueadura e vasectomia, sendo muito mais comum e habitual a exigência de
autorização do homem, e não da mulher, condicionando sua vontade à vontade de seu marido.
O último ponto abordado pela autora, são as ações educativas a respeito dos métodos
contraceptivos, e neste ponto levanta a crescente intervenção de cunho religioso dentro das escolas
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com o intuito de impedir o ensino sexual “deixando o Brasil com os piores índices de educação sexual
da América Latina”. E essa carência de educação sexual e contraceptiva por motivos retrógrados
mantém uma cultura de imposição a maternidade, através de uma idealização imposta, sendo o papel
da mulher uma mera reprodutora.
A Lei em perspectiva do desenvolvimento busca a contribuição para a promoção de saúde familiar,
principalmente ao tratar das famílias de baixa renda e na provocação de mudanças econômicas, através
de uma pesquisa que demonstra um equilíbrio entre renda e número de filhos (SANTOS; FREITAS, 2009).
No entanto, sua promulgação não impediu que o Estado continuasse impondo sua vontade sobre o
corpo feminino, mantendo seu controle através da própria legislação, e o planejamento familiar surge
como uma solução às crises econômicas, para que se pudesse proteger a sociedade por meio de uma
seleção de quem seria apto ou não a procriação, criando uma seleção ‘não natural’ de indivíduos.
Clarissa Bottega em seu artigo “Liberdade de não procriar e Esterilização Humana”, classifica
a esterilização baseada em diversos critérios, quanto ao consentimento ou falta deste, no caso da
esterilização compulsória, e quanto ao seu propósito específico, no caso a eugenia, cosmetologia,
punição e limitação de natalidade. No Brasil, é possível reconhecer dois tipos de esterilização, conforme
a autora, a voluntária e a compulsória, ambas presentes na Lei do Planejamento Familiar.
O aumento dos casos de esterilização na década de 1960 através da procura por meios
contraceptivos era condicionado a um contexto social, não partindo de uma escolha de submissão
a este, mas sim de uma quase obrigatoriedade, como era o caso das mulheres que optaram por
tal procedimento devido a necessidades de trabalho em contexto econômico e cultural. (BARROSO,
1983) Todavia, embora tenha se visto uma evolução e ascensão da mulher independente dentro da
sociedade e do próprio mercado de trabalho, a responsabilidade por uma gravidez ou contracepção
para evitá-la, continua em muitos casos, a cargo da mulher, e não do casal, refletindo essa visão
e entendimento na sociedade como um todo, refletindo na diferença existente ainda nos dias de
hoje nos procedimentos esterilizadores, onde a laqueadura mostra-se muito mais utilizada que a
vasectomia. Cita-se para tal fundamento as tabelas extraídas de dados do Ministério da Saúde pelo
Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) e trazidas por Bogdanovicz em seu
artigo, que mostram que entre o ano de 2008 e abril de 2017, o número de laqueadura em comparação
as vasectomias foram superiore 220.662 casos, 574.802 laqueaduras para 353.140 vasectomias.
O conceito de responsabilidade feminina advém também de uma postura do Estado, que sem
qualquer apoio social força uma jornada dupla de trabalho entre casa e profissão, e diante da necessidade
econômica os meio de comunicação reforçam a praticidade advinda do procedimento através da
promessa de uma maior liberdade sexual livre de preocupações quanto a concepção e outros meios
de contracepção. No Brasil são vários os fatores que influenciam na escolha da esterilização cirúrgica,
desde a mortalidade materna em altos índices, até a falta de acesso a meio contraceptivos seguros,
reversíveis, de baixo custo e de fácil uso, havendo falta de informações e até mesmo exposição a
riscos por ingestão de medicamento sem um acompanhamento médico apropriado (BARROSO, 1983).
Diante de todo o exposto, como meio de aprofundamento, cabe analisar o tema a partir das
decisões jurisprudenciais. A pesquisa se deu inicialmente no Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul - https://www.tjrs.jus.br/novo/ - utilizando-se das palavras-chaves: Esterilização; laqueadura;
direitos reprodutivos; planejamento familiar; e lei nº 9.283/96. O período pesquisado foi de 1996 até
a atualidade (considerando que a Lei 9.283/96 entrou em vigor em 28 de janeiro de 1996 no Brasil).
No TJ/RS foram encontrados os seguintes resultados, de acordo com as palavras-chaves de pesquisa:
“Esterilização” - 163 casos; “laqueadura” – 185 casos; “direitos reprodutivos” – 19 casos; “planejamento
familiar” - 132 casos; e “lei 9263/96” - 31 casos, totalizando, inicialmente, 530 casos. Estas 530 menções
foram analisadas atentamente, e excluídas as repetições de casos e aqueles cujas temáticas não diziam
respeito diretamente ao tema da pesquisa (muitos dos casos excluídos diziam respeito à pedido de
indenização por gravidez posterior à laqueadura), chegou-se a um total de 56 casos relevantes à pesquisa,
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
O primeiro grupo de casos analisados diz respeito aqueles nos quais mulheres alegaram que
foram submetidas a esterilizações sem sua autorização, ou seja, quando a decisão sobre a realização
da laqueadura foi tomada e colocada em prática pelo médico. Nestes casos, as ações referem-se à
pedidos de reparação judicial em função da realização da laqueadura de trompas, pelo médico, sem
o expresso consentimento da parte, de acordo com os requisitos da Lei nº 9.263/96.
Sobre esta questão, a Lei 9.283/96, em seu artigo 10, expressa que:
Em vias gerais, a lei, portanto, proíbe a realzação da cirurgia durante o parto, e exige o consentimento,
da parte, escrito e registrado, que não pode ser feito de modo verbar, especialmente durante o proprio
parto. A exceção verifica-se em caso de risco à vida ou à saúde da mullher ou do futuro concepto.
Dos 09 casos analisados, apenas 03 mulheres tiveram providas suas demandas por indenização.
Em sua defesa o Centro Clínico Canoa LTDA alegou que a autora estava apta a realização do
procedimento de laqueadura.
Argumentou ter sido consentido o procedimento, ainda que ausente documento escrito para
comprovar essa situação, pois a recorrida já possuía um filho, tinha tido quatro abortos e estava
com seu aparelho reprodutor comprometido pela pelviperitonite. Defendeu, assim, que seus
prepostos agiram dentro de todos os preceitos médicos e éticos sem incidir em atos de imperícia,
imprudência ou negligência. Teceu considerações acerca do quantum indenizatório arbitrado,
pugnando ao final pela redução da verba honorária. (Apelação Cível, Nº 70042878710, Décima
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Balson Araújo, Julgado em: 29-03-2012
No entanto, o artigo 10, parágrafo 3º da Lei nº 9.263 proíbe a “manifestação de vontade, na forma
do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Ministério Público ou
6 casos 1 caso 4 concedidos
Defensoria Pública
Com a tabela acima é possível perceber que dentre os 28 casos que tramitaram no Tribunal do
Rio Grande do Sul, em pelo menos 11 foi concedida a esterilização se sequer pensar na vontade da
parte. O direito ao corpo e as decisões sobre ele não pertencem a mulher que sofrerá o procedimento,
mas sim ao tribunal e a um terceiro que possuem poder sobre sua própria vontade.
O primeiro caso a ser analisado trata-se de um Agravo de Instrumento interposto na cidade
de Porto Alegre pelo Ministério Público pedindo a esterilização após o parto de uma mulher, que
encontra-se em sua quarta gestação, com três filhos vivos, dependente química, e portadora de HIV
positivo, alegando ser pedido da própria parte a realização da cirurgia.
228
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Em primeira instância o pedido é negado sob o fundamento “de que não cabe a realização da
laqueadura pleiteada no momento do parto, salvo quando comprovada necessidade, o que, conforme
entendimento do juízo a quo, não ocorreu, havendo indícios, tão somente, sobre a conveniência da
realização do procedimento, mas não de real necessidade.” No entanto, o Ministério Público sustenta
a tese de que a única forma de proteção neste caso para a proteção gestante e prole futura, é por
meio de sua esterilização. A decisão se dá do seguinte modo:
Por fim, frise-se que, embora a paciente seja usuária contumaz de substâncias entorpecentes, fato
que poderia causar questionamentos quanto à sua capacidade no momento em que manifestou
o desejo de se submeter ao procedimento postulado, a oficial de justiça, que possui fé pública,
responsável pela citação da favorecida, afirmou que esta se encontrava lúcida e que reiterou
à servidora pública a intenção de realizar a esterilização cirúrgica, vontade que já havia sido
manifestada em outras oportunidades, conforme se depreende da análise dos autos.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento. (Agravo de Instrumento, Nº
70073885386, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos,
Julgado em: 17-08-2017)
Outro caso que merece análise é uma Apelação Cível da comarca de Campina das Missões, onde
a própria parte vem em defesa de seus direitos, para que não fosse submetida ao procedimento
esterilizatório contra sua vontade.
Todavia, mesmo na tentativa de defender seu direito, a parte vê seu pedido negado, sendo
forçada a um procedimento altamente invasivo e que pode lhe causar tanto consequências físicas,
quanto psicológicas, pois seu corpo e seu direito fundamental lhe foi negado diante da decisão do
Tribunal. O requerimento da parte é apenas contra a cirurgia.
Nas razões (fls. 111-5), insurge-se somente contra o deferimento da esterilização. Afirma que
a esterilização é providência de risco, uma vez que é realizada mediante cirurgia, além de ser
irreversível. Sustenta que a providência perseguida e concedida viola direitos humanos da pessoa
interdita. (Apelação Cível, Nº 70061015814, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Sandra Brisolara Medeiros, Julgado em: 24-09-2014)
Como se vê, como não considerar a alternativa de proteger a incapaz, evitando gestações
indesejadas e, anunciadamente, conturbadas, considerando sua vida sexual promíscua e
desregrada. Como consentir que uma jovem impossibilitada permanentemente de cuidar de si
mesma gere filhos que, certamente, ficarão abandonados à própria sorte, em atitude que põe em
risco a sua própria saúde, pois certamente não haverá adesão ao pré-natal.
Conforme manifestei ao início desse voto, conheço a discussão em torno de violação dos direitos
fundamentais do incapaz, principalmente o que tutela a dignidade da pessoa humana, e em
respeito a tão propalado princípio, reconheço que há determinados casos em que a laqueadura
revela-se como alternativa desproporcional e violadora dos direitos fundamentais mencionados.
Entretanto, não creio ser essa a situação ora retratada, ante a claríssima ausência de perspectivas
a respeito da melhora do quadro psicológico, psiquiátrico e comportamental de Margarete.
(Apelação Cível, Nº 70061015814, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra
Brisolara Medeiros, Julgado em: 24-09-2014)
229
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
São duas decisões interpostas por terceiros que mostram o controle que o Estado exerce na vida
das mulheres, concedendo procedimentos contra a sua vontade para tentar resolver um problema
social. Sacrificam o corpo e livre-arbítrio dessas mulheres para protegê-las de uma gravidez indesejada
ao próprio sistema, não solucionando as desigualdades sociais, raciais e econômicas, mas mutilando
as mulheres para que não precisem preocupar-se com futuras proles.
2.3 Esterilização a pedido das proprias mulheres: quando a vontade da mulher é submetida
à justiça
O controle reprodutivo sobre o corpo feminino já pode ser vislumbrado na diferença do número
de casos entre requerimento de terceiro e requerimento da parte, onde dos 20 casos analisados,
apenas quatro foram concedidas e puderam ser realizadas. Um caso que chama a atenção é a Apelação
Cível nº 70040902652 interposto por Ana Laura Gomes Paixão na comarca de Giruá, que alega ser
dependente química e não possui condições de cuidar da filha que vive com a avó materna e com o
nascituro que estava para nascer, uma vez que encontrava-se no oitavo mês de gestação. Todavia o
tribunal negou o provimento pela seguinte fundamentação:
Primeiramente, cabe observar que a realização da cirurgia de laqueadura tubária constitui procedimento
cirúrgico dotado de irreversibilidade, e que somente poderá ser admitida em casos excepcionais.
No caso em concreto, a requerente não preencheu os requisitos mínimos necessários nos quais a
lei que disciplina o planejamento familiar (Lei nº 9.263/96) exige, ou seja: a) a autora não possui
mais de vinte e cinco anos de idade e não conta com 02 filhos vivos (art.10, inc.I); b) não foi
observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico (art.10,
inc.I); c) inexiste prova de risco à vida ou à saúde da requerente (art.10, inc.II); d) não há expressa
manifestação da vontade da autora por escrito (art.10, §1º) e, e) não pode ser considerada a
manifestação de vontade durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por
influência de estado emocional alterado, circunstância que ora se faz presente.
Portanto, mostra-se inviável o deferimento da medida pleiteada.
Ademais, tenho que a laqueadura constitui providência contraceptiva agressiva e degradante,
ensejando sua esterilização, o que viola não apenas a integridade física, como também a intimidade
da jovem, causando-lhe danos permanentes.
Ante o exposto, INDEFIRO A INICIAL, com base no art. 267, inc. I, e art. 295, parágrafo único,
inc.III, ambos do CPC, nos termos da fundamentação. (Apelação Cível, Nº 70040902652, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em: 15-12-2011)
De que forma este caso diferencia-se do primeiro caso relatado no requerimento de terceiro,
onde tratava-se de um dependente química que “consentiu” com a decisão do Ministério Público em
esterilizá-la para solucionar um problema social? A resposta poderia ser talvez no número de filhos,
ou porque aquela era portadora de HIV, ou talvez porque era considerada imprópria para a reprodução
pelo próprio órgão que decidiu que retirar sua capacidade reprodutiva, tirar um pedaço seu, passando
por cima de direitos e garantias era a melhor forma de “melhorar sua vida”, tirando de si o peso de
um aumento ainda maior de sua prole.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas três subseções articuladas a partir das decisões do Tribunal do Rio Grande do Sul é visível,
de maneira muito clara a distinção que o próprio judiciário faz ao tratar das mulheres que podem
ou não ser esterilizadas. A análise dos casos corrobora com todo o contexto desta última fase do
Planejamento Familiar no Brasil, que prometia uma mudança ao cenário brasileiro com a implementação
de legislações protecionistas dos direitos sexuais e reprodutivos individuais, mas mostrou-se uma
mudança falha e promessa que não foram cumpridas. Existe uma ambiguidade nas decisões não
só no Tribunal estudado, mas em grande parte dos tribunais do país, entre o direito ao controle
reprodutivo frente ao controle exercido pelo Poder, decidindo por critérios próprios que perpassam a
história, quem pode ou não se reproduzir dentro do contexto social.
São critérios pessoais que decidem a vida de centenas de jovens que não tem oportunidade de
230
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defesa, que não entendem muitas vezes a gravidade do que está acontecendo ou as consequências
que irá sofrer por decisão de outros. A Lei nº 9.263/96 que deveria proteger a livre tomada de
decisões quanto ao planejamento de quantos filhos terá, quando os terá, ou se os quiser ter, tornou-
se uma justificativa para mutilar o corpo dessas mulheres em nome do bem comum, em nome do que
acredita-se ser o melhor para ela, baseada em uma falsa ideia de hegemonia que ainda é implantada
em território nacional, aprofunda ainda mais a desigualdade de gênero e classe no Brasil, afetando
diante disso, as mulheres, principalmente, negras, que foram e são submetidas aos procedimentos
compulsórios de esterilização, sem qualquer direito a decidir sobre elas mesmas.
REFERÊNCIAS
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231
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
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232
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
RESUMO: O presente estudo aborda, a partir do marco teórico biopolítico, a utilização do estupro como
arma de guerra por agentes estatais em zonas de conflito armado. Para tanto, analisa o contexto latino-
americano, através da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos – SIHD, no que
tange à prática do estupro por forças estatais em contextos de violência e conflito, a fim de evidenciar
de que modo o exercício de poder sobre o corpo feminino, tomado como território de domínio, é
estratégico para a demarcação e estruturação de relações patriarcais de poder, em tais contextos.
INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda, a partir do marco teórico biopolítico, a utilização do estupro como
arma de guerra por agentes estatais em zonas de conflito armado. Para tanto, analisa o contexto
latino-americano, através da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos – SIHD,
no que tange à prática do estupro por forças estatais em contextos de violência e conflito, a fim de
evidenciar de que modo o exercício de poder sobre o corpo feminino, tomado como território de
domínio, é estratégico para a demarcação e estruturação de relações patriarcais de poder, em tais
contextos. O marco teórico biopolítico a ser utilizado é estudado por diversos autores e autores,
porém nesta pesquisa utilizarei três principais, os quais delimitarei no decorrer do texto.
Tendo em vista a intensificação, no cenário atual, dos conflitos armadas - chamados de guerras
não convencionais da contemporaneidade – e de situações nas quais a violência e o conflito armado
não marcam apenas situações temporárias de guerra com objetivos específicos e com tempo
determinado, mas se transformam no modus de vida de populações e comunidades inteiras. Por
meio de uma práxis pedagógica e cotidiana de violência e crueldade, a presente pesquisa analisa a
existência de violências específicas praticadas sobre os corpos femininos, especialmente o estupro.
Diante disso, questiona: pode-se falar, no contexto latino-americano, da proliferação do estupro
como arma de guerra em tais espécies de conflitos? Em um cenário latino-americano e brasileiro,
com um passado ditatorial ainda muito presente no imaginário das forças estatais de segurança, e no
qual se concentram atualmente algumas das cidades mais perigosas do mundo, pode-se considerar
que a prática de estupros em zonas de conflitos armados, por forças estatais, representam uma
forma de perpetuação de um domínio heteronormativo e colonial que necessita de um continuum de
violência como forma estrutural de conquista e manutenção de poder. O corpo feminino passa a ser
um território a ser “conquistado”, e sobre o qual se incidem práticas de violência que tem o condão
de demonstrar força e poder de aniquilamento sobre o “inimigo”. Portanto, longe de ser uma mera
prática sexual individualizada, fruto de indivíduos perversos que não contem seus impulsos sexuais,
93 Bolsista CAPES. Mestranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Curso de Mestrado e
Doutorado da UNIJUÍ (2019). Linha de Pesquisa 1 – Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos – Gêne-
ro, Grupo de Extensão Cinema e Direitos Humanos e Grupo de Extensão Diálogos: Tecendo Vidas sem Violência de Gênero.
Bacharela em Direito pela UNIJUÍ (2016). Email: anakravczuk@gmail.com.
94 Doutora em Direito (UNISINOS), Mestre em Desenvolvimento (UNIJUI), Professora-pesquisadora do Programa de Pós-Gradua-
ção em Direito – Mestrado em Direitos Humanos – e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. Integrante do Grupo de Pes-
quisa Biopolítica e Direitos Humanos. Coordenadora do grupo de extensão Diálogos: tecendo vidas sem violência de gênero.
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Pela perspectiva foucaultiana a biopolítica representa fazer da vida um objeto de juízo político e valor,
seja para melhorá-la ou selecioná-la. Nas de Foucault (2010), em seu livro O Nascimento da Biopolítica:
Entendia por biopolítica a maneira como se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas
criados à prática governamental pelos fenômenos específicos de um grupo de seres vivos constituído
em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças.(FOUCAULT, 2010, p. 393).
De acordo com o autor filósofo italiano Giorgio Agamben (2010, p. 118), o irromper da biopolítica
representa a culminância de um processo: “antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século
[século XX], o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida homo sacer, corre de modo subterrâneo,
mas contínuo”. (WERMUTH; NIELSSON, 2018, p. 37). O autor analisa também as imbricações
contemporâneas entre soberania, biopoder e a produção de vidas nuas.
A autora Wichterich (2015, p. 25) ensina que a biopolítica pode ser definida como o conjunto de
técnicas e estratégias de governança para construção de poder que orienta e controla os corpos, a
saúde e a vida de uma população inteira através da regulação da reprodução, fertilidade e mortalidade.
A partir deste marco teórico, pode-se realizar uma leitura dos modos pelos quais o biopoder
tem utilizado estratégias de controle para constituir a biopolítica das populações, o que se vincula,
na contemporaneidade, com a intensificação dos conflitos armados - chamados de guerras não
convencionais da contemporaneidade – e de situações nas quais a violência e o confronto bélico
deixam de marcar apenas situações temporárias de guerra com objetivos específicos, e com tempo
determinado, mas se transformam no modus de vida de populações e comunidades inteiras.
Ao conceituar o fenômeno contemporâneo das guerras não convencionais, Rita Segato (2016),
destaca a proliferação de zonas (permanentes) de conflitos armados violentos nas grandes cidades,
nas quais a condição de guerra assume a característica da informalidade, da paraestatalidade, e da
permanência, sendo um veículo de violência expressiva.
(...) en estas guerras de bajos niveles de formalización, parece estar difundiéndose uma
convención o código: laafirmación de lacapacidad letal de lãs facciones antagónicas em lo que
llamé<la escritura em elcuerpo de lasmujeres> (SEGATO, 2006 y 2013(, de forma genérica e
por suasociación com lajurisdiciónenemiga, como documento eficaz de laefímeravictoria sobre la
moral del antagonista. (SEGATO, 2016).
No panorama latino-americano, essas novas formas de guerra encontram-se sob diversas faces,
de modo não convencional por não se apresentarem como guerras deflagradas formalmente entre
Estados e por delas participarem efetivos e corporações armadas estatais e não estatais. Segato (2006)
expõe que se trata de um universo mafioso da cena bélica difusa e em franca expansão, vinculado à
informalidade da economia e ao aumento do capital não declarado em crimes organizados. Eventos
de violência que se apresentam fragmentados e de baixa inteligibilidade parecem estar à margem da
vida social de uma gigantesca estrutura que interfere diretamente na esfera política e nos governos,
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Estas manifestações novíssimas de guerras ocorrem em países que vivem formalmente em paz: seja
em sociedades que vivem em processos de reconstrução pós-conflito, onde facilmente se opera
uma transferência da violência militar anterior para uma violência social disseminada associada
ao uso de armas de fogo, seja em situações de hiper-concentração territorial de violência armada
em contextos de paz formal e institucionalizada. (MOURA, 2005, p. 93).
Tal mudança no paradigma da guerra se aproxima de outra alteração identificada por Foucault é
a transformação do paradigma territorial ou territorialidade típica da modernidade. Segundo Foucault
(2004), na época feudal e início da modernidade a forma de governar foi o governo do território ou
“domínio” de um senhor feudal ou rei, e isto incluía todas as coisas e pessoas que estavam nesse
determinado espaço delimitado. Somente depois, a partir do século XVIII, o governo se transformou em
um governo da população, ou seja, da administração de um grupo humano assentado em um território.
Essa mutação significou uma mudança profunda na concepção de propriedade e posse que,
certamente, devido a continuidade cognitiva entre o corpo da mulher e território, resultou em uma
transformação profunda das concepções de gênero e sexualidade.Neste sentido, configura-se uma
espécie de territorialidade em rede, sendo um dispositivo através do qual os sujeitos são atraídos a
um pertencimento, recrutados e marcados (SEGATO, 2016).
Essa territorialidade é paraétnica, não sendo outra coisa senão pré-condição das guerras não-
convencionais: o poder atua nesse estado diretamente sobre o corpo, e é por isso que, dada esta
perspectiva, é possível dizer que os corpos e seu ambiente espacial imediato constituem tanto um
campo de batalha de poderes em conflito como uma armação onde se perduram e se exibem os sinais
de sua anexação (SEGATO, 2016). O corpo feminino ou feminizado se adapta mais efetivamente a esta
função enunciativa porque sempre foi relacionado ao significado de território. O destino dos corpos
femininos, violados e inseminados nas guerras de todas as idades são testemunhas disto.
No contexto latino-americano, cenários de guerras não convencionais, ou seja, de vivências
permanentes de conflitos armadostem proliferado. A nova caracterização da violência na América
Latina é resultado da perpetuação das violências estruturais ao longo das últimas décadas, legitimadas
pela própria cultura e se propagando a novos espaços. (MOURA, 2005). “A América Latina é hoje um
dos palcos mais expressivos deste “novo” tipo de violência. Ele emergiu nos anos 80 e 90 e resulta da
combinação de vários fatores” (MOURA, 2005, p. 83), dentre os quais a autora destaca,
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É por isso que nosso continente sedia algumas das cidades e espaços territoriais mais violentos
do mundo – alguns exemplos apresentados pelos estudos são: do Rio de Janeiro, México, Cali, Bogotá,
El Salvador, Honduras, Chile, Perú, Guatemala, Colômbia.
Não coincidentemente, também no cenário latino que se verificam alguns dos espaços do mundo
mais violentos para com as mulheres. A elaboração do fenômeno da violência contra as mulheres como
problema de Estado tem sido um problema crescente na América Latina, provocada pelas denúncias
de organizações feministas e defensoras dos direitos humanos de suas vítimas e familiares, bem como
pelos inúmeros resultados de pesquisas científicas. (ALMEIDA, 2014). Montserrat Sagot R. (2013) em
seus estudos sobre o feminicídio na Centro América compartilha informações que apenas reforçam a
necessidade do recorte territorial latinoamericano ao falarmos da violência contra a mulher por ser uma
das regiões mais violentas do mundo. Segundo a autora, “centroamérica es hoyendía una de lasregiones
más violentas del mundo, con países como El Salvador, Guatemala y Honduras conalgunas de lastasas
de homicidios más altas para regiones que no se encuentranen guerra abierta.” (SAGOT, 2013, p. 9).
O crescimento desproporcional dos feminicídios na Centro América é o resultado de um longo processo
histórico que envolve a economia política e, logo, um sistema estruturado em cima da desigualdade de
gênero. Conforme a hierarquia estrutural de gênero se aprofunda, adicionando-se a outras intersecções
como desigualdade social e raça, determinadas regiões do mundo se tornam mais desiguais no quesito
de distribuição de riquezas e mobilidade social. Do que se depreende que aqui, qualquer abordagem do
tema deva apresentar um caráter interterseccional, pelo que se compreende, segundo HIRATA (2014) o
uso da interseccionalidade para designar a interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe
A recorrência da violência de gênero no cenário latino-americano, e sua intensificação em tempos
recentes, segundo Sagot (2013), pode ser compreendida a partir de um olhar sobre a imbricação entre
patriarcado e capitalismo, que se constituiu a partir do empreendimento colonial da modernidade,
gerando o que Wermuth e Nielsson (2018) chamado de patriarcalismo. Segundo Segato (2016),
na versão atual do capitalismo, ou seja, com o avanço do neoliberalismo, tem-se a utilização da
democracia como um instrumento político para facilitar o acúmulo de capital e, desta forma, são
constituídos regimes sociais caracterizados pelas relações de poder extremamente desiguais, níveis
de violência e insegurança de todos os tipos, o que apenas reforça o fascismo social. Isto significa
que: apesar da formalidade externa de uma sociedade na qual se vive democraticamente expondo
garantir direitos fundamentais aos seus cidadãos, existe a dualidade desta mesma sociedade ser
pautada em suas relações sociais pelo autoritarismo, violência extrema e exclusão.
Nesta forma, pode-se inferir que o acúmulo do capital na sociedade regida pelo neoliberalismo se
vincula ao patriarcalismo, à estrutura patriarcal já citada permeada pelo capitalismo, sistema econômico
que tem como base a propriedade privada dos meios de produção e com a visão no lucro desenfreado.
A consolidação do sistema capitalista no mundo está imbricada com a invasão e a dominação dos
territórios latino-americanos e a imposição ao mundo de um modelo de ser humano universal
moderno que corresponde, a prática, ao homem, branco, patriarcal, heterossexual, cristão,
proprietário. Um modelo que deixa de fora diversas faces e sujeitos, em especial as mulheres. O
feminismo das 99% não se furta do esforço de romper com essa lógica colonizadora. (PETRONE,
2019, p. 16).
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Resulta daí um verdadeiro biopatriarcalismo, cujo investimento das formas de poder, com vistas
ao domínio da “totalidade da sociedade”, age não mais dentro das tradicionais fronteiras típicas
da modernidade, mas tem como território privilegiado o controle e a gestão dos corpos e vidas
das populações, com grande ênfase no controle reprodutivo sobre o corpo feminino. (NIELSSON;
STURZA; WERMUTH, 2019, p. 43).
Segato (2016) explica que neste novo mundo, temos a noção de uma nova ordem de discurso que
é pautada pela colonialidade do poder e apenas esta noção é insuficiente. Pois aliado à colonialidade
retoma-se conquistualidad, sem as amarras ou limitações impostas pela igreja no auge do período
Colonial. Para nosso continente latino americano, as formas extremas de crueldade se expandem
desde México, América central e Colômbia até o sul, a atmosfera de drama, caos e crescentemente
violenta podem ser atribuídas ao fato de que o processo de conquista é contínuo e ainda não terminou.
Nesta fase que a autora chama de apocalíptica na qual “rapiñar, desplazar, esclavizar y explotar
al máximo sonelcamino de laacumulación” (SEGATO, 2016, p. 99), ou seja, a grande meta do projeto
histórico do capital se demonstra como a instrumentalização para a redução da empatia humana e
condicionar as pessoas para que consigam executar, tolerar e conviver com atos de crueldade cotidianos.
Debe ser por eso que uma estratégia central de lãs guerras contemporâneas, guerras ya entre
Estados, guerras de um alto grado de informalidad, em América Latina e Medio Oriente, es
laestrategia de laprofanación (Segato, 2014; Kaldor, 2012). No es por outra razón que los expertos
hablanhoy de una <feminización de la guerra>. Existeninnumerablespruebas em documentos
humanos de todo tipo y lugar de que es laposiciónfemeninala que custodia, encarna e representa
el arraigo territorial, lo sagrado, lavincularidad e lacomunidad. (SEGATO, 2016).
Em muitos casos, pode-se chegar a considerara que a progressão das modalidades de governo,
todavia, continua até um estado final de controle da sociedade: do poder como biopoder, exercido
através de uma (necro)biopolítica (MBEMBE, 2019), com seu governo correspondente, ou seja, um
governo de pessoas a partir da gestão de seus corpos. Do ponto de vista das guerras não convencionais,
o avanço do biopatriarcalismo e desta forma de biopoder que produz a morte tem gerado profundas
alterações nas suas dinâmicas, especialmente no que tange à violência contra a mulher.
Neste contexto da contemporaneidade a violência contra as mulheres deixa de ser um efeito
colateral e secundário dos conflitos armados e passa a ser um objetivo estratégico no cenário bélico,
executada para se tornar um verdadeiro espetáculo exibicionista de poder, ao que Segato (2016)
descreve como a emergência de uma “pedagogia da crueldade” contra aquelas que não desempenham
o papel de antagonistas armadas nos embates, sendo vítimas sacrificáveis, por ser nelas que é inscrita
a imagem e mensagem de soberania destinada ao antagonista.
Por mais que desde as guerras tribais os corpos femininos e feminizados sempre foram
marcados com o significado territorial, sendo considerados corpos cuja existência ocorre sob custódia
dos homens (sejam pais, maridos, irmãos ou filhos) e acompanharam o destino das conquistas e
anexações de grupos inimigos, hoje, tem-se a destruição desses mesmos corpos com o excesso de
exploração, tortura e morte, caracterizando total insensibilidade e truculência a toda comunidade
nelas representadas. Ou seja, o que era considerado um costume militar se torna um comportamento
planejado altamente sexualizado nessas guerras, e o corpo mais vulnerável (feminino ou feminizado)
se torna terreno-território da própria ação bélica. (ALMEIDA, 2014).
Ainda, Segato (2006) traz que essas guerras expressam o espírito de corporação dos seus
perpetradores e transformam o corpo das mulheres em suporte no qual a estrutura bélica se manifesta
e se reproduz, uma vez que é nele que se inscreve/escreve a derrota moral do inimigo, especialmente
quando não há um documento formal de rendição nessas situações caracterizadas pela informalidade.
Características apontadas também por Mary Kaldor (2012), especialista em novas formas de guerra,
que traz em seus estudos a exposição de uma guerra privatizada, nas mãos de forças para-militares,
que se afirmam na desmoralização das elites, profanação de mesquitas e outros lugares considerados
sagrados, juntamente com a violação massiva de mulheres como um método militar de máxima eficiência.
Elizabeth Odio (2001) retoma antecedentes históricos para tratar das guerras não convencionais,
principalmente no que tange a violação de mulheres. Expõe que a violação (sexual) de mulheres
nas guerras durante os séculos XIX e XX acaba sendo similar, pois entre origens tão profundas de
tão grave violação aos direitos fundamentais, se encontra a majoritária opinião entre autores de
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que as mulheres têm sido legalmente propriedades masculinas. Os corpos das mulheres se tornam
um território simbólico a ser conquistado, e homens, ao dominá-los, marcam sua posse através,
tornando-se “donos” e humilhando os outros homens - do território que foi conquistado. O estupro de
guerra não é sobre sexo, é sobre dominação, conquista e posse do poder, conquista na qual os corpos
femininos são utilizados como instrumento.
Nos casos de feminicídio — assassinatos de mulheres por motivações de gênero — essa é uma
marca comum. Matar não basta. É preciso ferir o corpo, nas regiões associadas à prática sexual
ou à feminilidade. Rosto, ventre, seios, vagina. É preciso ferir fisicamente para marcar o ódio.
Há algo de pessoal na violência contra a mulher, que não segue a lógica do extermínio pura e
simplesmente. É sobre manter o aspecto pessoal. Se numa guerra, homens viram apenas corpos a
serem exterminados, o estupro parece lembrar: são indivíduos passíveis de serem humilhados. E,
em nossa sociedade, para conquistar um território, é preciso primeiro assegurar o controle sobre
as mulheres como posse primeira. O requinte de crueldade é um lembrete: mesmo após a morte,
posso continuar a te ferir. Seu corpo ainda me pertence. (TOKITAKA, 2019).
Segundo a autora (2019), esses conflitos refletem a violência corporal e anômica expressa de
forma privilegiada nos corpos das mulheres, e essa expressividade denota precisamente o espírito
de cooperatividade de quem a perpetua. É necessário entender e reafirmar que estes crimes não são
crimes de motivação sexual, como os meios midiáticos e as autoridades insistem em publicizar. São
crimes de guerra, uma guerra que deve ser urgentemente redefinida, analisada sob uma nova luz e
a partir de outros modelos para, assim, ser incorporada com novas categorias jurídicas no Direito e,
especialmente, no Direito Internacional, no campo dos Direitos Humanos e da Justiça Humanitária.
Os tribunais ad hoc têm privilegiado uma definição de estupro baseada no consentimento da
vítima a partir do precedente Kunarec et al. (GREWAL, 2012), sendo esta a primeira ocasião em que
se utilizou a expressão “autonomia sexual” na jurisprudência criminal internacional. A importância
dada à consideração do não consentimento é em geral justificada em termos de proteção da
autodeterminação/autonomia sexual das mulheres e da alegada flexibilidade e capacidade ampla de
inclusão por comportamentos ilegais. (MOURA, 2017).
O fato de que o estupro somente é processado em tribunais internacionais quando associado aos crimes
reputados mais graves pela comunidade internacional – genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de
guerras – torna o elemento do consentimento uma questão redundante e até indigna de ser priorizada nessas
circunstâncias, pois questionar a vítima se ela aceitou livremente a comissão de qualquer desses atos é não
somente ilógico, como também repugnante à dignidade humana básica. Tal elemento não precisa existir
somente porque a problemática envolve órgãos sexuais, sexualidade ou mulheres. (MOURA, 2017).
A fraca jurisprudência dos tribunais ad hoc, nesse sentido, acaba produzindo uma imagem
ilusória de feminilidade tradicional que nem sempre se aprofunda m situações de conflito armado.
Funcional para a perpetuação do estereótipo da mulher enquanto vítima impotente da guerra, o
discurso jurídico acaba contribuindo para, em última instância, retirar outros vários tipos de poder –
dentro eles, o poder até para resolver e/ou prevenir conflitos. (ENGLE, 2005).
Sobre o fenômeno da feminização da guerra, uma série de casos em todo o continente demonstra
como o crime íntimo passa a ter características de crime bélico, o descarte da vítima (mulher) ao ar
livre, em valas, esgotos. A espetacularidade nos assassinatos que tem ultrapassado o local privado
e invadem descaradamente o espaço público (SEGATO, 2016). A necessidade da análise de casos
concretos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos demonstra esse terror difuso
das execuções sumárias, extrajudiciais e feitas pelas mãos de agentes estatais. O terror aumenta
juntamente com o aumento desenfreado da violência contra a mulher a cada dia na América Latina e,
especialmente, no Brasil, afrontando a ideia de estabilidade que se espera de um Estado Democrático.
De acordo com Samantha Nagle Cunha de Moura (2017), foi de grande resistência tornar o
reconhecimento da categoria de estupro dentro dos conflitos armados como um tema merecedor de
atenção e punição adequada por parte da comunidade internacional e dos Estados nacionais.
O poder do estupro enquanto arma pode ser identificado sobretudo em sociedades em que
atitudes e estereótipos culturais e religiosos vêem a castidade da mulher como valor moral a ser
preservado, tornando-o um instrumento muito eficaz para esfacelar o tecido social de determinada
comunidade. (MOURA, 2017).
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Em razão disto, é importante destacar como um dos elementos cruciais para a discussão a
expressão “cultura do estupro” é o que ela acarreta. De acordo com Nielsson e Wermuth (2018),
se caracteriza como “a culpabilização da vítima pelo fato de ter sido alvo de violência sexual,
compreendido como um comportamento masculino “natural”.Ainda, nas palavras dos autores, (2018),
quando se fala em cultura do estupro, não se pretende “naturalizar” a perpetuação do ato, mas
assim, evidenciar e denunciar a constituição e perpetuação desta prática com a responsabilidade do
Estado e também da própria sociedade, pois se trata de um processo histórico que é desequilibrado
e genocida. (WERMUTH; NIELSSON, 2018).
Nas palavras de MárciaTiburi (2014)
E se, por um lado, a cultura do estupro produz corpos femininos estupráveis, ou uma condição
feminina estuprável, por outro, produz sujeitos estupradores, ou uma condição masculina
estupradora, que também se constitui como um produto cruel da sociedade regida pela biopolítica
da carne. (...) Pode-se afirmar que a cultura do estupro é constituída a partir de um cenário de
politização e controle biopolítico e patriarcal da vida humana, agora um corpo transformado em
carne. (p. 191-192).
Dito isto, Moura (2017) destaca que o estupro passa a caracterizar, nesse sentido, uma manobra
política deliberadamente orientada à destruição e ao sofrimento não só da vítima direta, mas também
do inimigo, pois o conhecimento da estigmatização atrelada ao ato sexual transforma o estupro nessa
tática de guerra citada anteriormente e, por extensão, atinge o homem proprietário guardião em sua
honra e, logo, a própria comunidade na qual a mulher vive.
No caso de zonas permanentes de conflitos armados, o estupro passa, assim, a ser utilizado
como arma em conflitos armados, também por forças estatais. Vejam-se, no cenário latino, os casos
María Dolores Rivas Quintanilla vs. El Salvador, Favela Nova Brasília vs. Brasil, Campo Algodonero
vs. México, Massacre Dois Erres vs. Guatemala, Espínosa Gonzalés vs. Perú, entre outros que foram
selecionados para análise posterior, julgados pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para
demonstrar as semelhanças entre as formas de violência e crueldade contra as mulheres para que a
comunidade toda seja atingida e desestabilizada, mesmo que em cidades diferentes.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No tocante à violência urbana e armada no Brasil, ainda são poucos os estudos e políticas públicas
que levam em conta a questão de gênero. Em sua maioria, por considerar que a grande maioria de
vítimas e autores de violência são os homens, esses estudos e políticas tendem a focar na questão das
masculinidades. No que nos diz respeito, sabendo que, demograficamente, as mulheres constituem a
metade da população, acreditamos, como Holzmann (2008), que as elas deveriam ser ouvidas quando
se trata de construir soluções. De forma geral, as mulheres que atuam no enfrentamento de situações de
violência, a partir de papéis tradicionais de gênero, também estão se contrapondo à sujeição feminina.
De forma consciente ou não, também estão comprometidas com a defesa dos interesses de gênero.
A pesquisa justifica-se por várias razões, que se relacionam com o elevado número de estupros
de meninas e mulheres com o qual convivem os países da América Latina, e também o Brasil, em um
processo de naturalização tamanha que permite falar na perpetuação de uma cultura do estupro. O
estudo sobre o índice de violência sexual começou a ser feito em 2007, desde então em 2018 foram
66 mil vítimas de estupro no Brasil, de acordo com o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
disponibilizado no site do Fórum de Segurança. A maioria (53,8%) das vítimas foram meninas de até
13 anos, sendo que quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no Brasil.
Considerando este contexto, uma pesquisa que pretenda investigar tal tema, especialmente em
zonas de conflito armado deve se pautar a partir do conceito de interseccionalidade pois de cada
dez estupros que contra meninas e mulher, a maioria (50,9%) são mulheres negras.Neste sentido,
quando nos referimos à América Latina, falamos de um contexto que se apresenta como o local mais
perigoso do mundo para mulheres, mesmo fora de zona de guerras declaradas. Nos países latinos,
nove mulheres são assassinadas por dia, vítimas da violência de gênero.
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No Brasil, por sua vez, os números seguem a tendência latina, apresentando 2.559 assassinatos
de mulheres no ano de 2018, apesar de o país contar com uma legislação avançada sobre o tema, mas
com uma estrutura falha e que não cria uma rede de apoio por conta da demanda. No ano de 1.133
brasileiras foram assassinadas por questões de gênero, o que gera uma média de três mulheres por dia.
Na região da América Latina, os países que concentram os índices mais altos de violência
machista estão na América Central. El Salvador figura com a maior taxa de feminicídios por 100.000
mulheres, 10,2 (345 casos); seguido de Honduras, com um índice de 5,8; Guatemala e Nicarágua. O
Brasil está em 14º lugar em relação à taxa de feminicídios entre os 23 países da América Latina e do
Caribe analisados pela ONU Mulheres: no ano passado (2019), 1,1 a cada 100 mil mulheres foram
assassinadas. A taxa brasileira é a mesma da Argentina e da Costa Rica.
É neste contexto de violência, portanto, que esta pesquisa se foca em uma das mais cruéis
manifestações, a prática do estupro, em um contexto de conflitos armados.
A crueldade misógina que transforma o sofrimento de corpos femininos é, em palavras
simples, um espetáculo banal e cotidiano, é a pedagogia que normaliza as massas a conviver com
a arbitrariedade, com a marginalidade da vida humana e com o caráter ficcional das instituições.
(SEGATO, 2016).
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. Corpo feminino e violência de gênero: fenômeno persistente
e atualizado em escala mundial. Soc. Estado. Brasília, p. 329-340, 2014.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. 2ª ed. São Paulo:
MartinsFontes, 2010.
GREWAL, Kiran. The Protectionof Sexual Autonomyunder Internacional Criminal Law: The
Internacional Criminal CourtandtheChallenge os Defining Rape. Journalof Internacional Criminal
Justine, v. 10, 2012.
KALDOR, Mary. New andOld Wars: OrganisedViolence in a Global Era. Cambridge/Stanford: Polity
Press/Stanford UP, 1999.
MOURA, Samantha Nagle Cunha de. Estupro de mulheres como crime de guerra. Lições sobre
Direito, Feminismo e Vitimização. 1ª ed. Campinas: Servanda, 2017.
NIELSSON, Joice Graciele. Mulheres e justiça: teorias da justiça da antiguidade ao século XX sob a
perspectiva crítica de gênero. 1º ed. Curitiba: Appris, 2018.
240
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
NIELSSON, Joice Graciele; STURZA, Janaína Machado; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. O direito
ao acesso à saúde reprodutiva de mulheres migrantes: desvelando processos de precarização
da vida. In: FINCO, Matteo; MARTINI, Sandra Regina; STURZA, Janaína Machado. Direito à saúde:
Ponte para a cidadania. O Movimento entre os saberes, a transdisciplinaridade e o Direito – Vol. XII.
Porto Alagre: Evangraf, 2019.
PETRONE, Talíria. Prefácio. In: ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo
para os 99%: um manifesto. Boitempo Editorial, 2019.
SEGATO, Rita Laura. La guerra contra lasmujeres. Madrid: Traficantes de Sueños, 2016.
TIBURI, Marcia. Lógica do estupro: tudo começa com uma inversão, 2014.
TOKITAKA, Tainá Muhringer. O corpo da mulher como território em disputa. Médium: 2019.
WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; NIELSSON, Joice Graciele. A “CARNE MAIS BARATA DO
MERCADO”: uma análise biopolítica da “cultura do estupro” no Brasil. RFD-Revista da Faculdade
de Direito da UERJ, n. 34, p. 171-200, 2018.
WICHTERICH, Christa. Direitos Sexuais e Reprodutivos. Rio de Janeiro: Heinrich Böll Foundation,
2015.
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RESUMO: O presente estudo analisa o grau de eficácia das medidas estatais tomadas pelo Brasil
para prevenir ou evitar a mortalidade em massa de presos do seu sistema prisional, frente ao rápido
avanço da transmissão viral da doença COVID-19. Para tanto, a presente pesquisa parte do método
qualitativo, tendo adotado a técnica de pesquisa bibliográfica, com análise de dados estatísticos sobre
a contaminação e a morte de presos por COVID-19. O problema de pesquisa pode ser assim referido:
em que medida a pandemia da Covid-19 incrementa, no âmbito do sistema prisional brasileiro, as
políticas de morte já em curso há longa data no país? Para responder ao mencionado problema de
pesquisa, são invocadas as teorias de Michel Foucault, de Giorgio Agamben e de Achille Mbembe,
sobre a aferição do efeito necropoder nesse cenário, contrapondo-se ao mesmo fenômeno de atenção
estatal face ao sistema prisional na Itália.
INTRODUÇÃO
Tão logo se iniciou o ano de 2020 o mundo foi tomado por uma pandemia. Estima-se que já no
mês de fevereiro ocorreu a chegada, ao Brasil, da primeira pessoa infectada pelo vírus SARs-Cov-2
denominado de novo coronavírus, causador da doença denominada COVID-19. Conforme informações
constantes na página virtual do Ministério da Saúde, do governo federal brasileiro, a COVID-19 apresenta
um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves96.
No mencionado portal, há também, menção sobre indicadores da Organização Mundial da Saúde
(OMS), com a informação de que a maioria dos pacientes portadores de COVID-19 (cerca de 80%)
podem ser assintomáticos e cerca de 20% dos casos podem necessitar de atendimento hospitalar
por apresentarem dificuldade respiratória, sendo que, desses casos, aproximadamente 5% podem
demandar a necessidade de suporte ventilatório para o tratamento de insuficiência respiratória aguda.
O vírus pode ser transmitido por meio da absorção de gotículas de tosse ou espirro de uma pessoa
infectada, ou pelo contato com superfícies virais97.
Salienta-se, nessa seara, a importância do grau de atenção eficaz de Estados ao seu respectivo
sistema prisional. E, no Brasil, em razão da histórica aglomeração de detentos no interior das
penitenciárias, situação que facilita a propagação do mencionado vírus, dentre outros muitos fatores
que maximizam o risco de contágio como, por exemplo, a precariedade estrutural e sanitária das
instituições prisionais brasileiras.
Sob essa ótica, o presente estudo está imbuído na busca pela compreensão mais aproximada
possível do comportamento do Estado brasileiro em relação às (in)ações governamentais de
preservação da saúde de pessoas em situação de cárcere, eis que a proteção da integridade física,
biológica e psicológica das pessoas sob custódia do Estado (população carcerária) são obrigações
decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, bem
como das disposições constitucionais. Sobre o tema, o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal
95 Doutorando em Direitos Humanos – UNIJUI. Mestre em Direito Público – UNISINOS. Membro do Grupo de Pesquisa CAPES:
Biopolítica e Direitos Humanos, refletindo sobre as vidas nuas na contemporaneidade. Professor de Graduação em Processo
Penal. Advogado criminalista. Endereço eletrônico: clbprado@yahoo.com.br.
96 Informações disponíveis em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid. Acesso em: 25 jun. 2020.
97 Informações disponíveis em: https://www.uniftc.edu.br/covid-19-entenda-como-o-novo-coronavirus-age-dentro-do-or-
ganismo/. Acesso em: 25 jun. 2020.
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brasileira, cláusula pétrea relativa ao direito dos presos, determina o respeito estatal à integridade
física e moral dos apenados, do que se depreende o direito humano fundamental à preservação da
saúde e da vida do custodiado no cárcere.
Para tanto, a presente pesquisa parte do método qualitativo, tendo adotado a técnica de pesquisa
bibliográfica, e alimentada, acessoriamente, por notícias e informações de organismos estatais
de saúde e de segurança pública sobre a pandemia em comento. Para efetivar a pesquisa em tela,
adotou-se a análise de dados estatísticos sobre a contaminação e a morte de presos por COVID-19,
estabelecendo-se comparativo estatístico entre os planos de ação do Brasil e da Itália. Para tanto, ao se
avaliar determinadas posturas governamentais, no âmbito federal, tem-se constatado a necessidade
de estabelecer a compreensão para inquietantes hipóteses de possível solução ao seguinte problema
perquirido: em que medida a pandemia de Covid-19 incrementa, no âmbito do sistema prisional
brasileiro, as políticas de morte já em curso há longa data no país?
Para responder ao mencionado problema de pesquisa, são invocadas as teorias de Michel
Foucault – acerca da biopolítica – e de Giorgio Agamben e Achille Mbembe – acerca do estado de
exceção, da tanatopolítica e da necropolítica –, as quais têm implicações diretas nessa perspectiva
de análise, uma vez que podem contribuir para a possível corroboração da hipótese que orienta
o artigo, qual seja, a de que a pandemia do novo coronavírus, no âmbito do sistema prisional
brasileiro, representará um incremento das políticas de morte voltadas às vidas nuas em situação
de cárcere no Brasil, considerando a grande facilidade e agilidade de transmissão viral em massa
nesses espaços estatais.
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a realidade do cenário estatal, no Brasil, acerca das ações tomadas na prevenção do avanço letal do
novo coronavírus sobre a população carcerária:
Nos estados, com apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Depen realiza videoconferências
com representantes de todos os estados brasileiros desde o início de março. O objetivo é
repassar orientações a respeito da prevenção e dos cuidados sobre o coronavírus no sistema
prisional e apresentar as próximas ações do projeto, que consistem na entrega dos materiais
da campanha de comunicação [...]. Foi reforçado que as unidades prisionais devem seguir
os protocolos publicados pelo Ministério da Saúde sobre o coronavírus. Para qualificar a
divulgação de informações e orientações, o Depen instituiu Grupo de Trabalho visando auxiliar
os gestores estaduais. Outro ponto discutido foi acerca dos materiais da campanha
educativa do projeto Prisões Livres de Tuberculose, como canetas, canecas, murais
informativos e cartilhas sobre tuberculose e HIV/Aids, que serão entregues em todas
as unidades prisionais do país. O Departamento Penitenciário Nacional, órgão fiscalizador
da execução penal em todo território nacional, vem trabalhando incansavelmente na prevenção
da disseminação do COVID-19 nos estabelecimentos prisionais brasileiros. A exemplo, foi
instituído já no dia 28 de fevereiro, por meio da Portaria Gab-Depen nº 135, Grupo de Trabalho
no âmbito do órgão, cuja missão precípua é desenvolver protocolos de atuação preventiva para
o sistema penitenciário federal de forma que auxilie os estados em seus respectivos planos de
atuação. [grifo nosso]. (DEPEN, 2020d).
Escancara-se, com isso, que o Estado brasileiro está centrando suas ações, dentre os presos
do sistema, em campanhas de esclarecimento acerca do comportamento da doença de COVID-19, e
como evitar o contato com o vírus, mediante distribuição de materiais educativos, desconsiderando,
completamente, que praticamente a maioria esmagadora das penitenciárias brasileiras sequer possui
sanitários ou lavatórios que viabilizem a adoção das mínimas medidas de higiene recomendadas em
tempos de pandemia. A realidade do sistema é marcada por celas reduzidas e superlotadas, sujas,
mal ventiladas, configurando, portanto, espaço propício à proliferação de doenças.
Nessa seara, é possível referir outro movimento estatal, consistente na Recomendação n.° 62,
emitida em 17 de março de 2020, pelo Conselho Nacional de Justiça,99 lastreando-se no fundamento
de que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde
coletiva e, em razão disso, orienta e recomenda que seja feita a reavaliação das prisões provisórias e a
análise da liberação antecipada de pessoas que integram o grupo de risco — como idosas, gestantes,
portadores de doenças crônicas ou outras comorbidades preexistentes. No entanto, essas medidas
consistem em mera recomendação aos Tribunais Superiores do Brasil, sem efeito prático e eficaz de
vinculação efetiva.
No que diz respeito à Itália, é importante consignar que o governo italiano agiu rápido em
relação ao seu sistema prisional, tendo adotado sérias e contundentes medidas, tendo sido, inclusive,
consignadas na página virtual do próprio DEPEN, que tratou de criar um painel mundial com os dados
de óbitos e contaminações dentro do sistema prisional de cada país, bem como com as medidas
estatais de prevenção tomadas em relação ao cárcere. Importante esclarecer que o presente estudo
selecionou a Itália para estabelecer comparação com o Brasil, devido ao fato de a COVID-19 ter chegado
antes naquele país, bem como pelo fato de a Itália encontrar-se em meio a uma crise econômica, a
exemplo do momento atual do Brasil, ressalvadas as devidas proporções a respeito de eventuais
diferenças nesse critério de similitude.
Desse modo, é possível resumir as medidas estatais que o governo italiano pôs em prática,
mediante enumeração a seguir exposta: distribuição de kits de proteção para higiene pessoal entre o
pessoal das prisões; estabelecimento de tendas de pré-triagem nas penitenciárias; testes sorológicos
rápidos para todos os detidos, bem como para todo o pessoal da prisão e da polícia administrativa
que trabalha nas instituições prisionais; aquisição de telefones para os presos se comunicarem
com familiares; uso do serviço de lavanderia da prisão sem custo para os detentos; possibilidade
de os reclusos do sistema prisional receberem transferências bancárias online; aumento do limite
de despesas para todos os presos; e, ampliação do número de presos em monitoração eletrônica
(DEPEN, 2020e).
99 Recomendação n.º 62, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Acessado no endereço eletrônico https://www.cnj.jus.br/
wp-content/uploads/2020/03/62. Acessado em abril/2020.
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100 Dispõe o referido artigo, em sua íntegra: “1. In deroga al disposto dei commi 1, 2 e 4 dell’articolo 1 della legge 26
novembre 2010, n. 199, dalla data di entrata in vigore del presente decreto e fino al 30 giugno 2020, la pena detentiva
e’eseguita, su istanza, presso l’abitazione del condannato o in altro luogo pubblico o privato di cura, assistenza e accoglien-
za, ove non sia superiore a diciotto mesi, anche se costituente parte residua di maggior pena, salvo che riguardi:
a) soggetti condannati per taluno dei delitti indicati dall’articolo 4-bis della legge 26 luglio 1975, n. 354, e succes-
sive modificazioni e dagli articoli 572 e 612-bis del codice penale;
b) delinquenti abituali, professionali o per tendenza, ai sensi degli articoli 102, 105 e 108 del codice penale;
c) detenuti che sono sottoposti al regime di sorveglianza particolare, ai sensi dell’articolo 14-bis della legge 26
luglio 1975, n. 354, salvo che sia stato accolto il reclamo previsto
dall’articolo 14-ter della medesima legge;
d) detenuti che nell’ultimo anno siano stati sanzionati per le infrazioni disciplinari di cui all’articolo 77, comma 1, numeri
18, 19, 20 e 21 del decreto del Presidente della Repubblica 30 giugno 2000, n. 230;
e) detenuti nei cui confronti sia redatto rapporto disciplinare ai sensi dell’articolo 81, comma 1, del decreto del Presidente
dela Repubblica 30 giugno 2000, n. 230, in quanto coinvolti nei disordini e nelle sommosse a far data dal 7 marzo 2020;
f) detenuti privi di un domicilio effettivo e idoneo anche in funzione delle esigenze di tutela delle persone offese dal
reato.
2. Il magistrato di sorveglianza adotta il provvedimento che dispone l’esecuzione della pena presso il domicilio,
salvo che ravvisi gravi motivi ostativi alla concessione della misura.
3. Salvo si tratti di condannati minorenni o di condannati la cui pena da eseguire non e’ a superiore a sei mesi e’
applicata la procedura di controllo mediante mezzi elettronici o altri strumenti tecnici resi disponibili per i singoli istituti
penitenziari.
4. La procedura di controllo, alla cui applicazione il condannato deve prestare il consenso, viene disattivata quando la
pena residua da espiare scende sotto la soglia di sei mesi.
5. Con provvedimento del capo del dipartimento dell’amministrazione penitenziaria del Ministero della giustizia, d’intesa
con il capo della Polizia-Direttore Generale della Pubblica Sicurezza, adottato entro il termine di dieci giorni dall’entrata
in vigore del presente decreto e periodicamente aggiornato e’ individuato il numero dei mezzi elettronici e degli al-
tri strumenti tecnici da rendere disponibili, nei limiti delle risorse finanziarie disponibili a legislazione vigente, che
possono essere utilizzati per l’esecuzione della pena con le modalita’ stabilite dal presente articolo, tenuto conto anche
delle emergenze sanitarie rappresentate dalle autorita’ competenti. L’esecuzione del provvedimento nei confronti dei
condannati con pena residua da eseguire superiore ai sei mesi avviene progressivamente a partire dai detenuti che devono
scontare la pena residua inferiore.
6. Ai fini dell’applicazione delle pene detentive di cui al comma 1, la direzione dell’istituto penitenziario puo’ ome-
ttere la relazione prevista dall’art. 1, comma 4, legge 26 novembre 2010, n. 199. La direzione e’ in ogni caso tenuta ad
attestare che la pena da eseguire non sia superiore a diciotto mesi, anche se costituente parte residua di maggior pena,
che non sussistono le preclusioni di cui al comma 1 e che il condannato abbia fornito l’espresso consenso alla attivazione
delle procedure di controllo, nonche’ a trasmettere il verbale di accertamento dell’idoneita’ del domicilio, redatto in via
prioritaria dalla polizia penitenziaria o, se il condannato e’ sottoposto ad un programma di recupero o intende sottoporsi
ad esso, la documentazione di cui all’articolo 94, comma 1, del testo unico di cui al decreto del Presidente della Repubblica
9 ottobre 1990, n. 309, e successive modificazioni.
7. Per il condannato minorenne nei cui confronti e’ disposta l’esecuzione della pena detentiva con le modalita’ di cui al
comma 1, l’ufficio servizio sociale minorenni territorialmente competente in relazione al luogo di domicilio, in raccordo con
l’equipe educativa dell’istituto, provvedera’, entro trenta giorni dalla ricevuta comunicazione dell’avvenuta esecuzione
della misura in esame, ala redazione di un programma educativo secondo le modalita’ indicate dall’articolo 3 del decreto
legislativo 2 ottobre 2018, n. 121, da sottoporre al magistrato di sorveglianza per l’approvazione.
8. Restano ferme le ulteriori disposizioni dell’articolo 1 della legge 26 novembre 2010, n. 199, ove compatibili.
9. Dall’attuazione del presente articolo non derivano nuovi o maggiori oneri a carico della finanza pubblica. Le ammi-
nistrazioni interessate provvedono alle attivita’ previste mediante utilizo delle risorse umane, finanziarie e strumentali
disponibili a legislazione vigente.” (ITÁLIA, 2020).
245
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Em entrevista concedida pelo então Ministro brasileiro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio
Moro, publicada pela imprensa do próprio órgão ministerial, em 01 de abril de 2020, sobre eventuais
medidas que o Estado brasileiro propunha para evitar a transmissão em massa, pelo novo coronavírus,
entre as pessoas da população carcerária, afirmou-se que:
Uma série de medidas profiláticas vem sendo tomadas pelo Governo Federal e estaduais para
reduzir esse risco, entre eles a suspensão das visitas, a restrição das saídas temporárias, cuidados
com os agentes penitenciários. O que se vê no mundo, é que o risco de contaminação da população
carcerária é diminuto em comparação com a população em geral (BRASIL, 2020).
Verifica-se, não só por meio desse pronunciamento, mas também pelo teor das demais medidas
tomadas pelo Brasil, analisadas no tópico anterior desse estudo, a potência estatal de minimização
fática em relação ao possível extermínio massivo de presos, em razão da contaminação pelo novo
coronavírus, considerando, ao que tudo está a indicar, a implícita omissão do Estado em tomar
medidas eficientes de prevenção ao contágio do vírus entre a população carcerária.
Antes, contudo, cumpre salientar que as sociedades pós-modernas têm vivenciado o progressivo
surgimento de fatores geradores de complexidade social, derivados do progresso tecnológico em
vários setores da vida coletiva e econômica das pessoas e das instituições. Sob esse panorama, Silva
Sánchez (1999), concebe a existência de um fenômeno de institucionalização da insegurança.
Sendo assim, o perfil da sociedade não se limita apenas ao risco de fatores palatáveis ou programados,
mas é, também, uma sociedade com outras características individualizantes, que reforçam o aspecto de
sociedades pautadas por uma espécie de insegurança legitimada, não só por discursos institucionais,
mas também por decisões e posturas institucionais convergidas, ou orientadas, no retrocesso social,
político e jurídico, sobretudo no sentido normativo dos direitos humanos, consagrados na Constituição
Federal de países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Daí resulta que, conforme Silva Sanchez
(1999), dentre outros fatores advindos com a globalização, e diante de determinadas posturas, cujos
possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos, repercutirão como resultados danosos no futuro,
muito depois de realizada a conduta danosa. Desse modo, o problema está não apenas nas decisões
humanas geradoras de riscos, mas naquelas que os distribuem.
Nessa esteira, é propício considerar que a distribuição de riscos também é ocasionada, em
muitas circunstâncias, pelo próprio Estado, dependendo da tarefa (de ordem pública) que lhe incumbe
realizar, e, dependendo, sobretudo, da postura (ideológica) do dirigente das (in)ações levadas a efeito
em relação à preservação dos direitos humanos (mínimos) em tempos de crise social e/ou sanitária,
provocadas no contexto da pandemia que se vivencia.
Consequência dessa realidade palpitante, sentida pelos mais débeis, desde as últimas décadas,
e registrada pela concepção de Pérez Cepeda (2007, p. 51), está no considerável aumento do número
de países que adotam uma forte postura de politização do Direito Penal, acelerada pelos meios de
comunicação de massa populistas, direcionadas unilateralmente. Nessa ótica, a opinião pública quer
ver resultados rápidos, e a isso os políticos reagem debilitando as garantias relativas à segurança
jurídica, mediante a introdução de medidas legislativas simbólicas. Segundo a sobredita autora (2007,
p. 51-52), essa é a tendência seguida no campo da criminalidade clássica, eis que aparece um sistema
penal reelaborado para a ocasião, que se trata de uma espécie de microssistema paralelo, devidamente
dirigido ao alcance da efetividade de inocuização de presos a qualquer preço, e propositalmente
distanciado da rede (constitucional) de tutela efetiva dos direitos humanos do cidadão encarcerado.
Nessa seara, segundo Brandariz García (2004, p. 17), a consequência desses aspectos tem sido
a formação de sociedades contemporâneas permeadas por “un cierto pánico moral” que deriva do
incremento aparentemente descontrolado, de diferentes formas de riscos, situação que é mediada
na construção de seu sentido pela representação midiática, focalizada no fomento de uma sensação
de insegurança cidadã, derivada da delinquência urbana com vítimas individuais, particularizadas
com determinados contextos, consistentes nas periferias de grandes centros urbanos, e com sujeitos
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
sociais estereotipados. É nesse contexto, que se torna possível a constatação mais ampliada desse
“pánico moral”, referido pelo autor, em dimensões mais insanas, diga-se de passagem, no âmbito de
uma pandemia que assola e desafia o sistema público de saúde e as autoridades sanitárias.
E o trato estatal em relação aos moldes de medidas governamentais que vão sendo tomadas, em
meio à pandemia, conforme o público a (não) ser atendido pelas possíveis medidas, vai fomentando um
processo de inocuização em grau máximo dos indivíduos que se encontram presos em penitenciárias
brasileiras, considerando que parcela majoritária da população carcerária, no Brasil, está circunscrita
a pequenas áreas de celas, em situação de grande aglomeração em locais inóspitos pela ausência
de recursos sanitários mínimos, expostos ao contato diário com agentes insalubres e perigosos,
considerando o alto nível de depredação da estrutura prisional brasileira, o que agrava ainda mais a
disseminação do novo coronavírus, que pode resultar em morte(s).
Sobre esse aspecto, conforme Bustos Ramírez (1997, p. 31), é nessa toada que a atual política criminal
sintoniza sua intensidade e frequência de modulação em relação a sua incidência material no cotidiano
das pessoas, e isso é perpassado pela consideração de todo o processo de criminalização. Não apenas
o de criação da norma (criminalização primária), senão também o de aplicação da norma (criminalização
secundária). Logo, isso significa que a visão crítica político-criminal não só alcança as normas (penais,
processuais, penitenciárias), mas também alcança as instâncias concretas em que atuam os operadores
sociais, isto é, a polícia, o processo penal, o subsistema penitenciário, os diferentes organismos auxiliares
(assistentes sociais psicólogos, psiquiatras, médicos, etc), de modo a compreender a existência, implícita
e explícita, do processo institucionalizador da legitimação da insegurança, pautados pelo ideal de
inocuização de indivíduos presos, concebidos sob a etiqueta de descartáveis (do mundo dos vivos).
E aqui tem-se a identificação da presença, arraigada na cultura social brasileira, de um poder
simbólico estratificado na crença de que o indivíduo preso merece ser contaminado com vírus mortais,
por exemplo, e que, por isso, deve perecer o quanto antes, como forma de eliminar esse indivíduo
simbolizado como (se fosse um) câncer maligno que se necessita ser conspurcado de uma coletividade
(tida como) socialmente saudável, justa e igualitária. Segundo Pierre Bordieu (1989, p. 12), esse poder
simbólico “consiste em um poder quase mágico, que possibilita obter o equivalente daquilo que
é obtido pela força (física ou econômica)”, graças ao efeito específico de mobilização (ideológica),
vindo a permanecer em situação de velamento, ignorando-se assim como postura eivada de violência,
simbolizada na crença repetida e ressonante de geração em geração. Isso está a indicar que o poder
simbólico não está nos sistemas simbólicos como uma força ilusória, mas que se caracteriza numa
relação determinada entre os que exercem o poder (o Estado) e os que lhe estão sujeitos, quer dizer,
isto é, na própria estrutura do campo (simbólico, para diferenciar do campo agambeniano) em que se
(re)produz essa crença (de que bandido bom é bandido morto).
A consequência desse fenômeno reside na dissimulação (transfiguração) desse arquétipo coletivo,
de modo a promover uma transubstanciação (conversão) do deixar presos morrerem amotinados em
masmorras sem que isso configure uma violência atroz, ou, ainda, que essa violência é precisamente
necessária à manutenção das relações de força estabelecidas nesse cenário (Estado-sistema prisional-
preso). É essa conversão de valores que resultam na violência por meio de um poder simbólico que
produz efeitos reais sem dispêndio aparente de energia, apto a promover a manutenção de um habitus
estratificado na coletividade brasileira, que ignora ou permanece indiferente à essa decomposição
estatal de indivíduos desumanizados. (BOURDIE, 1989, p. 15).
Verifica-se, com isso, que a política de gestão do sistema prisional brasileiro está ancorada
(e isso não é uma realidade exclusiva do período atual de pandemia) na segregação, na exclusão,
e na consequente inocuização dos presos. Esse fenômeno, no entanto, está pautado pelo confisco
estatal do (elemento) biológico da vida humana em coletividade. Segundo Foucault (2018, p. 201),
essa segregação ocorre, precisamente, como elemento fundante de uma nova concepção de poder
– biopoder –, que se manifesta mediante progressivo processo de estatização do biológico. Para
a clássica teoria da soberania, era comum o direito de vida e de morte ser um atributo do Estado-
soberano. Mas, segundo Foucault (2018, p. 201-202), “o que é ter direito de vida e de morte?”
Essa inquirição está ancorada no fato de que o soberano dispõe do direito de vida e de morte
sobre seus súditos, representando que ele pode fazer morrer e deixar viver, de modo que essa vida
e essa (possível) morte deixam de ser fenômenos meramente naturais, para adentrarem no campo
247
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
político de intromissão (direta e/ou indireta) do Estado-soberano (FOUCAULT, 2018). Nesse sentido,
para Foucault (2018, p. 202), “é justamente por causa do soberano que o súdito tem direito de estar
vivo, ou tem direito, eventualmente, de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte dos súditos só se
tornam direitos pelo efeito da vontade soberana”.
É nesse instante que Foucault faz menção a um paradoxo que se completa por um desnível
prático, caracterizado pelas possibilidades outorgadas ao soberano, que exerce o seu poder no
instante em que pode matar; e, simultânea, e consequentemente, por isso, é admissível que esse
mesmo soberano tenha, também, direito sobre a vida dos súditos. O que conduz a essa conclusão
estabelecida por Foucault, na qual, o soberano tem “o direito de fazer morrer ou de deixar viver. O
que, é claro, introduz uma dissimetria flagrante”. (FOUCAULT, 2018, p. 202).
Assim, ocorrem fenômenos de tomada de poder pelo Estado sobre o corpo, ocorrida mediante
práticas concernentes à individualização. Posterior a esse momento, tem-se uma segunda tomada
de poder, que não é individualizante, mas massificante, orientada não mais em direção ao “homem-
corpo”, mas ao “homem-espécie”. Nesse sentido, Foucault reflete que a invasão política sobre o corpo
humano, ocorrido durante o século XVIII, dá lugar, no fim desse mesmo século, a uma “biopolítica” da
espécie humana. (FOUCAULT, 2018, p. 205).
Sob essas circunstâncias, importa esclarecer qual seria a finalidade buscada por essa nova
tecnologia de poder, caracterizada como biopolítica, que se instala mediante adoção de práticas
estatais de biopoder. Convém ressaltar que esse biopoder é o resultado da condição de possibilidade
técnica e política de o homem “não só organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar
algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar – no limite – vírus incontroláveis e universalmente
destruidores”. (FOUCAULT, 2018, p. 213).
Nessa esteira, Giorgio Agamben (2017, p. 229) assevera que, nesse aspecto, é necessário compreender a
extensão da articulação que se estabelece entre a simples vida, desnudada de quaisquer adereços de proteção
civil, e, por isso, denominada de zoé, vida nua, e bíos, caracterizada como sendo vida autárquica, sendo que,
nesta, é possível conceber vida politicamente qualificada. Aqui se tem, portanto, indicativos dessa amplitude
do biopoder, e da condição de possibilidade que uma pandemia pode permitir a sua própria utilização pelo
Estado, como mecanismo biopolítico gerador de inocuização ou de eliminação de corpos, em situação de vida
nua, no campo do sistema prisional brasileiro. Nesse sentido, Agamben (2017) concebe que o poder político,
como já é conhecido, sempre está respaldado, em última instância, pela separação de uma dimensão de vida
nua em relação ao âmbito das formas de vida.
Nessa seara, Agamben (2017, p. 235) é categórico ao concluir que o poder estatal é definido
pela vida nua, e não pela vontade política, considerando que essa vida é conservada ou mantida,
justamente porque, “está subordinada ao direito de vida e de morte do soberano (ou da lei)”. Nesse
contexto fragmentado e atemporal de instituição estatal, o estado de exceção, que era essencialmente
uma suspensão temporal e transitória do ordenamento, adquire uma ordem espacial de perpetuação
que, sob tal condição, fica constantemente fora do ordenamento regular (AGAMBEN, 2015).
Assim, os denominados campos representam um espaço de exceção, mediante suspensão
indeterminada das regras jurídicas, tudo que ocorre de impossível no seu interior passa a ser,
realmente, admitido e possível. Com efeito, os habitantes do campo são indivíduos desvalidos em
meio a uma sociedade excludente, estando reduzidos integralmente à vida nua, de modo que essa
exclusão se maximiza no interior do campo prisional, eis que este pode ser caracterizado como o
mais absoluto espaço biopolítico que já existiu, no qual o poder não tem diante de si senão a pura
vida biológica, destituído de qualquer mediação ou anteparo que o limite acerca do (ab)uso que se
pretenda dar a essa vida nua (AGAMBEN, 2015).
E, é justamente aqui, que mais uma barreira que separa o ser humano da (pre)potência do Estado
cai por terra, e com ela o cidadão fica ainda mais despido do estatuto jurídico de proteção normativa,
já que, confinado a um fragmento de território estatal, isso passa a ser concebível como possível. Aí,
sob tais circunstâncias do campo, tem-se o sujeito convertido em indivíduo, totalmente fragilizado,
vulnerável, integralmente submetido ao fetiche estatal de expropriação lenta e cruel da sua vida
desumanizada, mediante a prática de sucessivos processos violentos, acerca de sua desintegração
física e moral, iniciando o percurso do caminho que conduzirá ao desfecho necropolítico de sua
existência material.
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Nesse ponto, importa compreender que o estado de exceção, sobre o qual o soberano tem o
arbítrio da escolha, consiste exatamente na representação da vida nua, sendo que esta encontra-se
conectada aos muitos patamares de formas de vida social, de modo que um possível resultado desse
estado de exceção consiste na manifesta revogação da vida nua, enquanto fundamento final do poder
político. Sobre o tema, Agamben (2017, p. 235) arremata: “o sujeito derradeiro, que se trata de excluir
e, ao mesmo tempo, incluir na cidade, é sempre a vida nua”.
E assim a exceção vai se modulando ao cotidiano de violência institucional que se inicia com a
cultura de aceitação passiva de legitimidade dessa mesma exceção (eivada de violência), enquanto
regra. Sobre o estado de exceção, Agamben (2004, p. 12) refere que as medidas excepcionais se
localizam no paradoxo de medidas jurídicas, que não podem ser absorvidas no plano do direito. Isso
porque um estado de exceção se mostra como “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.
Sob essa concepção de Estado, no qual uns têm direito à vida, e outros têm o dever de morte,
flutua o que Agamben (2004, p. 13) denomina estado de exceção permanente, dentro do que se
concebe o próprio totalitarismo moderno, como sendo o sentido “de uma guerra civil que permite a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos
que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”.
Nesse cenário, Achille Mbembe (2018) designa que o modo biopoder do Estado, por ocasião da
utilização de mecanismos de poder em situação de campo (como o uso biopolítico da pandemia do
novo coronavírus no sistema prisional) promove uma ressignificação da condição de possibilidade
concreta dos elementos: sacrifício e terror. É nesse sentido, que Mbembe reforça que se vivencia uma
necropolítica (política da morte), na medida em que o Estado faz uso de ideologias pautadas pelo
necropoder, de modo a inaugurar novos “mundos de morte”, ao transgredir o acesso estatal para
além das fronteiras do corpo do indivíduo (desvalido), em vida nua, mediante admissão implícita da
possibilidade de morte em massa de presos por omissão estatal em adotar medidas materialmente
eficazes de prevenção ao novo coronavírus, no interior das instituições do sistema prisional brasileiro.
Nesse sentido, Agamben (2018) ressalta que o estado de exceção viabiliza fundar e definir a
validade da regra legal regular, ou seja, é possível estabelecer julgamento da regra geral por meio da
situação extrema de exceção, de modo que a exceção explica a regra. Será no campo, portanto, que
as decisões em torno da situação extrema permitirão distinguir o que é humano e o que não é. E a
omissão estatal frente a uma pandemia viral expõe a referida medida de exceção.
O presente estudo está centrado na busca de possíveis soluções ao problema de pesquisa assim
delineado: em que medida a pandemia da Covid-19 incrementa, no âmbito do sistema prisional
brasileiro, as políticas de morte já em curso há longa data no país?
Para tanto, a pesquisa em tela utilizou dois momentos de verificação de dados durante a
pandemia de coronavírus, que ainda se encontra em curso. O primeiro momento de coleta ocorreu em
14 de maio de 2020; o segundo momento se deu em 24 de maio de 2020. O consequente intervalo
de 10 dias justifica-se em razão da necessidade de observação do comportamento do vírus no interior
do sistema prisional brasileiro e italiano, respectivamente, de modo a aferir, pelo mencionado decurso
mínimo de tempo, o grau de eficácia das medidas já referidas no item 3 desse estudo, que cada um
dos Estados se ocupou em realizar no âmbito do seu respectivo sistema prisional.
Os dados estatísticos foram obtidos junto à página virtual do Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN). Esses dados constantes no sitio da mencionada instituição pública são atualizados
diariamente, posto que as informações são repassadas pelas unidades prisionais componentes, tanto
dos sistemas prisionais estaduais, quanto do sistema prisional federal.
Diante dessas premissas de idoneidade da fonte estatal de coleta, assevera-se que o problema
de pesquisa tem relação direta com a eventual utilização da pandemia de coronavírus, enquanto
dispositivo estatal de biopoder dirigido à eliminação de vidas nuas dos presos em situação de
cárcere, no que diz respeito à quantidade de óbitos ocorridos nas penitenciárias do Brasil, mediante
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Tabela 01:
Data da consulta 14/05/2020 14/05/2020 24/05/2020 24/05/2020
País Brasil Itália Brasil Itália
Óbitos por COVID-19 26 3 34 3
Casos suspeitos 310 260 856 260
Casos confirmados 653 94 1.114 159
Testes realizados (total) 2.575 Testagem geral 4.156 Testagem geral
População prisional até dez/2019 745.746 60.971 745.746 60.971
Fonte: DEPEN, 2020f.
Nesse cenário, ressalta-se também a quantidade de presos que compõem a população carcerária
de cada um dos dois países analisados. O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do
mundo, contando, até dezembro/2019, com 745.746 presos; enquanto que a Itália possuía, até
dezembro de 2019, a quantidade de 60.791 presos.
Diante disso, o tamanho da população carcerária de um país é relativo, quando se analisam as
políticas públicas de saúde dirigida aos custodiados privados da liberdade. Ainda que a população
carcerária do Brasil (745.746 presos) seja muito maior que a população carcerária da Itália (60.791
presos), torna-se importante avaliar a possibilidade econômica de um Estado em custear políticas públicas
dignas e eficientes destinadas à sua respectiva população carcerária. Para tanto, faz-se necessário avaliar
o Produto Interno Bruto (PIB) de ambos os países estudados nessa pesquisa, a fim de averiguar a soma
de riquezas produzidas por cada um destes, e aí, então, evidenciar o grau de capacidade econômica
que permitiria a realização de investimentos no sistema prisional, face aos muitos fatores econômicos
gerados pelo PIB, dentre os quais, o critério proporcional de receita tributária auferida pela arrecadação
dessas riquezas geradas, e refletidas no Produto Interno Bruto de cada nação.
Sendo assim, verifica-se que o PIB anual do Brasil, em 2018, foi de 1.584.004M.e.; enquanto que, na
Itália, o índice em comento foi de 1.765.421M.e. Esse cenário econômico evidencia que o Brasil é possuidor
de riquezas em nível quase semelhante ao da Itália, quando o assunto é a soma de todas as riquezas
produzidas pelos referidos países. No entanto, a diferença entre os dois países analisados reside na injusta
distribuição social dessas riquezas, e isso se escancara no instante em que o Estado brasileiro tem condições
de investir no sistema prisional, mas não o faz, diversamente da Itália (COUNTRY ECONOMY, 2020).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das análises aqui empreendidas, evidencia-se que o Estado brasileiro tem se utilizado
de algumas medidas públicas preventivas de inibição ao contágio do novo coronavírus em muitas
localidades e regiões do país. No entanto, diante do cenário instalado pela pandemia, verifica-se que as
medidas tomadas pelo governo brasileiro, na tentativa (simulada ou forjada) de conter a contaminação
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da população prisional, têm se mostrado inúteis ou ineficazes, de pouca, ou quase nenhuma utilidade
prática no sentido de evitar a infecção dos presos integrantes do sistema prisional brasileiro.
E essa intenção biopolítica de inocuização, pela eventual e aleatória contaminação, e, possível
morte de indivíduos presos no interior do sistema prisional de um Estado, deixa de ser apenas
desejável, e passa a ser factível, no instante em que surge um mecanismo de poder que está à
disposição do soberano, e este, passa a fazer (ab)uso oportuno desse mecanismo no modo biopoder,
tendente a eliminar vidas (não desejáveis).
Tem-se desse modo, a utilização biopolítica da pandemia viral, bastando ao soberano (estatal), por
exemplo, deixar de executar qualquer medida eficaz que viria a evitar a contaminação e o possível óbito
dos detentos no sistema prisional, vindo a resultar na informal condenação à morte de parcela conside-
rável da população carcerária, mediante a simples inércia do poder público em adotar medidas de saúde
eficaz e preventiva, tais como: testagem obrigatória de todos os presos do sistema prisional (o Brasil tem
potencial econômico para promover essa medida), isolamento eficiente de presos com sintomas gripais
iniciais, montagem de hospitais de campanha no interior de todas as unidades prisionais do país, dentre
outras medidas eficazes que deveriam ter sido tomadas pelo Estado brasileiro, apenas para citar algumas.
Sobre isso, importa verificar que no momento em que o Estado toma medidas inócuas ou sem
qualquer efeito prático de prevenção ao contágio no âmbito prisional, a exceção se transmuta em
regra duradoura, e a pandemia passa a ser estratégia de poder biopolítico de eliminação de vidas
nuas no campo prisional. Tem-se, assim, a ocorrência episódica de um estado de exceção dentro
de outro estado de exceção, pautados pela ausência de medidas eficazes de saúde pública no
sistema prisional, em razão de ali existirem pessoas que não “merecem” os cuidados do Estado, eis
que, duplamente descartáveis, em razão da periculosidade e da potencialidade viral na pandemia.
Desse modo, num primeiro momento as vidas nuas são passíveis de descarte, a medida em que são
inseridas no campo do sistema prisional, em situação de completa indignidade, considerando todas
as formas de violência que se praticam no interior do cárcere brasileiro (tanto que a própria Suprema
Corte brasileira reconheceu o estado de coisas inconstitucional); para, num segundo momento, ante
o descarte das vidas nuas, no contexto de pandemia do novo coronavírus, pela simples adoção
estatal de medidas pouco ou nada eficazes em relação à possível prevenção de contaminação viral
no interior do cárcere, situação que evidencia a inércia biopolítica do Estado na busca pela finalidade
necropolítica de eliminação aleatória dessas vidas nuas em situação de campo prisional.
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COUNTRY ECONOMY. Compare a economia dos países: Brasil vs Itália. Disponível em: https://
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WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; NIELSSON, Joice Graciele. “Crônica de uma morte anunciada”:
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com.br/index.php/rbsd/article/view/140>. Acesso em: 25 jun. 2020.
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RESUMO: O presente escrito traz apontamentos teóricos sobre materialismo histórico, método
desenvolvida por Karl Marx para compreender a sociedade burguesa em seu tempo histórico. Aumenta-
se mais a dificuldade quanto se relaciona com o feminino marxista que demonstra as limitações do
marxismo clássico por um lado, e amplia sua análise por outro, especialmente no tocante ao trabalho
não-remunerado e a desigualdade de gênero. Desse modo, o objetivo precípuo deste artigo é analisar
a desigualdade de gênero, a partir do marxismo e do feminismo marxista, e seus desdobramentos no
âmbito da sociedade capitalista.
INTRODUÇÃO
A luta das mulheres feministas ao longo da história demonstra a mudança dos feminismos
em relação ao próprio objeto de reivindicações pautadas a partir de seu horizonte histórico. Se um
primeiro momento, o feminismo de primeira onda, exigiu o reconhecimento, a partir de direitos,
principalmente relacionado ao voto, mesmo que não tenha questionado a estrutura do sistema
burguês. O feminismo marxista, por sua vez, apresentou uma nova unidade discursiva concreta ao
considerar necessário para redistribuição econômica material. São essenciais além do reconhecimento,
que sejam revisadas as distribuições das condições materiais de vida, colocando em questionamento
a estrutura do próprio sistema social.
A primeira etapa do trabalho propõe um estudo introdutório sobre a teoria social marxista,
mais especialmente ao materialismo histórico e dialético, em especial atenção à luta de classes e ao
trabalho desenvolvido no âmbito do sistema capitalista. Na segunda etapa, apresenta-se o feminismo
marxista que procura superar não apenas as contradições da sociedade burguesa, mas também
ampliar o debate marxista ao ser omisso em relação à desigualdade de gênero e ao trabalho no
âmbito doméstico. Por fim, destaca-se o entendimento de Nancy Fraser, quando amplia a discussão
sobre o capitalismo/neo-liberalismo e o trabalho não-remunerado desenvolvido pela mulher.
A metodologia utilizada neste artigo é pesquisa qualitativa/bibliográfica ou de fontes secundárias
que abrange a bibliografia tornada pública em relação ao tema estudado. A finalidade desse método é
colocar o pesquisador em contato direto com o que foi escrito sobre determinado assunto (LAKATOS;
ARCONI, 2003). Desta forma, destaca-se o materialismo histórico desenvolvido pela filosofia marxista
e a relação entre o feminsimo marxista que amplia a análise das contradições da sociedade capitalista
na contemporaneidade.
101 Bacharela em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI; Mestranda do Programa
de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito – Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ, Ijuí. Bolsista CAPES/PRO-
SUC. E-mail: barbara.saikoski@sou.unijui.edu.br.
102 Mestrando em Direito pelo PPGD – área de concentração em Direitos Humanos – da UNIJUÍ, com bolsa da CAPES. Inte-
grante do Grupo de Pesquisa do CNPq: Fundamentação Crítica dos Direitos Humanos. Graduado em Filosofia pela UFSM.
Acadêmico do Curso de Direito da UNICRUZ. E-mail: ionathanjunges@yahoo.com.br.
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Discorrer sobre o materialismo histórico enquanto análise social desenvolvida pelo pensador Karl
Marx não é tarefa fácil. Desta maneira, trata-se de trazer apontamentos que permite uma análise de
compreensão geral da proposta aduzida pelo filósofo, mas que ao mesmo, torna-se palpável sua instru-
mentalização de análise a outros segmentos social para ampliar o horizonte de sua compreensão prática.
Para Netto (2011), os aspectos teóricos e metodológicos da obra de Marx, presente muitas
dificuldades derivadas ao tratamento equivocados que a obra do filósofo foi submetida. Parte dessas
deformações teve origem no próprio marxismo, principalmente por pensadores como Plekhnov e
Kautsku, intelectuais da organização socialista fundada em 1889. O marxismo, por esta interpretação
apresentou-se como uma teoria fragmentada distante da totalidade pretendida por Marx.
A partir da análise da sociedade burguesa, a teoria social de Marx, busca estruturar e compreender
a dinâmica da sociedade burguesa e de seu modo de produção capitalista, na perspectiva do seu tempo
histórico. O objeto de estudo do marxismo é a sociedade burguesa e as constantes transformações
que ocorre em suas relações. Assim, o sujeito ao estudar seu objeto deve estar atento ao movimento
dinâmico que ocorre no próprio objeto, dado que se desenvolve no âmbito de uma sociedade
concreta. O feminismo, os direitos humanos, o racismo, são construções teóricas que não surgem
do nada, mas que está diretamente adstrita a realidade concreta, a realidade vivida enquanto forma
de manifestação fenomênica de um sistema social complexo, que reproduz formas de opressão em
vários níveis. Porém, é necessário ir além dos fenômenos e compreender sua “essência”, isto é, sua
estrutura e dinâmica, desse modo:
[...] teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa:
pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa.
E esta reprodução (que constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e
verdadeira [...] para Marx, o objeto da pesquisa (no caso, a sociedade burguesa) tem existência
objetiva; não depende do sujeito, do pesquisador, para existir. O objetivo do pesquisador, indo além
da aparência fenomênica, imediata e empírica-por onde necessariamente se inicia o conhecimento,
sendo essa aparência um nível da realidade e, portanto, algo importante e não descartável-, é
apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto (NETTO, 2011, p.20-21).
De acordo com o professor, Marx analisou como objeto de seu estudo a sociedade burguesa de
sua época. Considerando o próprio projeto marxiano entende-se enquanto teoria, um conjunto de
relações de compreensão do real e do movimento do real, e sua própria dinâmica. Em outras palavras,
a dinâmica da sociedade ocorre de tal forma que é preciso compreender a sua essência, compreender
suas estruturas e formas de agir, enfim a totalidade de seu modo de produção na medida em que
repercute na vida social.
Dessa forma, ao pesquisador(a) social, ao analisar a sociedade de seu tempo, parte do plano
analítico e teórico que tem por objetivo compreender as estruturas mais determinantes daquele objeto
de estudo. A relação entre o sujeito e objeto não é uma relação de exterioridade, mas de implicamento.
A medida que se produz uma análise de determinado fenômeno, busca expor os resultados arguidos
no campo teórico. Desse modo, o método proposto por Marx, parte da realidade material concreta
da sociedade, que em seu tempo histórico fez presentes categorias que determinavam condições
sociais e que possibilitavam, por sua vez, explicar as relações de reprodução da vida social, em um
determinado momento. Conforme o próprio Marx escreve:
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histórico temporal. Logo, as categorias que hierarquizam determinadas estruturas sociais são
históricas, e, portanto, não naturais.
Ainda que se atestem cotidianamente várias formas de opressão, como o machismo, o racismo, a
intolerância, por exemplo, na sociedade contemporânea faz-se necessário a produção de um discurso
– conhecimento, que demonstre as contradições de um sistema opressor. Neste sentido, a capacidade
de análise do marxismo parte do conceito de abstrair.
Conforme Netto (2011) abstrair, na compreensão marxiana, é extrair - examinar um contexto - um
elemento determinado diante da complexidade do mundo real. A realidade concreta é compreendida
aqui enquanto síntese de muitas determinações que operam no âmbito de uma ontologia, a unidade
do diverso que é próprio de toda totalidade do ser social. Assim, ao abstrair um problema social,
como por exemplo, a desigualdade de gênero, busca-se analisar as estruturas que fundamentam este
determinado fenômeno, respeitado seu tempo histórico.
A partir desta interpretação, é possível pensar o marxismo relacionado a diferentes conjuntaras
teórica e socais, como o feminismo ou movimento negro, por exemplo. Com está análise, vinda
desses movimentos, permite-se uma análise social muito mais crítica e perspicaz da realidade.
Engels (2010), ao elaborar a defesa do marxismo como método histórico, descreve a história
das sociedades, enquanto um guia de estudo necessário para a sociedade. Ao analisar com detalhes
as condições de existência das variadas formações sociais e, deste modo, deduzir as ideais políticas,
jurídicas e outras expressões que correspondem a determinado tempo histórico. Dessa maneira, o
marxismo se ocupa da economia política para analisar a sociedade moderna capitalista, que superou
o modo de produção feudal, em uma verdadeira “luta de classes”.
De acordo com Marx, a totalidade das relações econômicas corresponde a determinada
consciência, elevadas por uma superestrutura jurídica e política. A produção de vida material condiciona
os processos de vida social, ou seja, determina condições de desenvolvimento de estruturas que
legitimam a manutenção do sistema. Tornam-se concretas na medida em que sintetizam uma unidade
ao determinar a consciência dos próprios sujeitos, como sustenta o filósofo:
No Manifesto Comunista, lançado em 1848, Marx, (2008, p.10) escreve que “a história de todas
as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”. Considerando a burguesia como um
produto de um longo processo histórico, dado que ela transformou o sistema de produção feudal em
um sistema de produção capitalista.
Por este viés, ocorreu uma verdadeira revolução nos processos de produção e circulação de
mercadorias, até então a mais sofisticada e complexa conhecida à época. Não parando por aí, a
burguesia produziu um discurso jurídico e político que legitimou o modo de produção capitalista.
Assim, “a propriedade burguesa moderna constitui a última e mais completa expressão do modo
de produção e apropriação baseado em antagonismos de classes, na exploração de uma classe por
outra” (MARX, 2008, p.33).
Engels aponta a visão do marxismo em relação a uma concepção materialista de história, em
que a produção capitalista da sociedade é base para a ordem social, configurando uma sociedade
inexoravelmente dividida em classe social, e seu modo de produção correspondente, conforme Engels:
A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos
produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela
história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes
ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os
seus produtos (ENGELS, 1999, p. 95).
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tem daqueles que detém os meios de produção, e por outro lado, aqueles que participam do processo
através da venda de sua força de trabalho. Dessa forma, a dimensão da categoria de trabalho, opera
em um horizonte ontológico na perspectiva marxista.
Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (2010), desenvolve a teoria do trabalho estranhado,
como a forma essencial do trabalho no modo de produção capitalista. A sociedade do capital traz
consigo um modo particular de construção do trabalho e das relações entre o trabalhador e o produto
do seu trabalho. No sistema capitalista, o trabalhador é afastado dos meios de produção, sua única
forma de manter a subsistência é a venda de força de sua própria força de trabalho. O problema,
é que a partir desta perspectiva, o trabalhador se torna produto de seu próprio trabalho, torna-se,
portanto, uma mercadoria, uma objetivação – coisa, conforme escreve o próprio Marx:
O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a
valorização do mundo das coisas. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si
mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria [...] O produto do trabalho é o trabalho que fixou
num objeto, fez-se coisa, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é sua objetivação. A
efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação do trabalhador,
a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento,
como alienação (MARX, 2010, p. 80).
Desse modo, a categoria de trabalho no marxismo é uma conceito ontológico na medida em que
determina, a partir das relações de trabalho uma coisificação do humano. O trabalho passa a alienar o
trabalhador(a) e o próprio fruto de seu trabalho, que em última instância lhe é estranho. Nesta perspectiva,
o sistema capitalista molda o comportamento humano ao impor um trabalho que cria uma verdadeira
coisificação do humano ao tornar ele também um produto – uma mercadoria no próprio capital.
A produção econômica, o dinheiro, na atual conjuntura da sociedade em que Marx analisava era
a principal categoria no interior da sociedade burguesa, pois a partir dele estaria configurado grande
parte dos problemas sociais. Isso não significa que atualmente, não tenha outras categorias que impera
forças hierárquicas no interior da sociedade, e que, concomitante a análise marxista, torna-se um aparato
teórico e crítico poderoso na sociedade atual. Neste sentido, o feminismo ao combinar o método marxista
compreende a sociedade a partir de seu próprio horizonte histórico, e o materialismo histórico a maneira
de denunciar as formar de opressão que existe no sistema capitalista somando a desigualdade de gênero.
A lógica das contradições sociais, desigualdade econômica e de gênero são evidentes na sociedade
contemporânea, e uma análise mais profunda é imprescindível para compreender as relações de poder
e as hierarquias nela apresentada. O feminismo marxista permite a análise de outras categorias que
não foram observadas no marxismo clássico e que são fundamentais para uma sociedade mais justa.
Para Fraser (2009), o feminismo de segunda onda surgiu entre as décadas de 1960 e 1970 e ampliou
o significado de justiça, pois orquestrou uma revolução cultural em relação ao reconhecimento de temas,
apesar de pouca transformação institucional prática. Para a filósofa, deve-se na sociedade contemporânea
pautar-se por uma nova compreensão de justiça, uma compreensão tridimensional de justiça.
Com enfoque na cultura, na economia e na política, aproxima a abordagem em relação à família,
a cultura, e a sociedade. É necessário superar a noção de reconhecimento focada em relação aos
aspectos psicológicos ou ainda culturais. Entretanto, é necessário ater-se aos fatores econômicos da
má distribuição que o sistema capitalista/neo-liberal promove.
Para Safiotti (2004) o conceito de gênero deve ser compreendido como uma categoria ontológica.
A partir da perspectiva de Lukács103, a filósofa insere o gênero em uma perspectiva do “ser social”
103 Lukács (2012) complementa a análise ontológica marxista, a partir de uma ontologia que leva em conta três esferas de
ser: A esfera inorgânica define-se pela incessante produção do outro, interagindo física ou quimicamente com um segundo
componente para dar um ponto de partida a outro corpo. A esfera orgânica que faz surgir o fenômeno da reprodução de si
mesmo e a reprodução biológica, a partir de leis próprias. E por fim, o ser social, que opera sobre categorias ontológicas
próprias. A ação teleológica humana busca chegar a um determinado fim, transformando os meios a natureza por meio de
um processo estabelecido conscientemente.
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que constitui uma forma ideológica na construção social. É uma maneira fundamental para alienar e
reificar – coisificar – o humano, como ocorre também em relação as construções sobre a etnia, raça
e classe social, por exemplo. Assim, a ideologia de gênero é uma forma política eficaz no controle
e na legitimação do sistema, aliada a violência para manter seu “status quo”. A filósofa compreende
que o gênero está em uma perspectiva histórica, designada a partir das ações humanas, aquelas que
visam uma finalidade - teleologia. Por este viés, o gênero situa-se em um horizonte ontológico social
e orgânico, pois, pertence à totalidade do ser (inorgânico, biológico, social).
Desta maneira, a categoria de gênero é um fenômeno histórico que não deva ser definitivamente
separada do sexo biológico na medida em que este se insere na natureza (ontologia orgânica – reprodução)
e no ser social – quando as ações humanas modificam e recriam construções e configurações de mundo.
De acordo com a Safiotti, a representação do feminismo e do masculino ocorre na própria esfera
ontológica do ser social e em sua base ontológica orgânica, na forma de reprodução de vida. Na medida
em que a sociedade torna-se mais complexa, a cultura iniciou o processo de construções representativas
do feminino e do masculino. Conforme escreve a autora: “Constitui-se, assim, o gênero: a diferença
sexual, antes apenas existente na esfera ontológica orgânica, passa a ganhar um significado, passa a
constituir uma importante referência para a articulação das relações de poder” (SAFIOTTI, 2004, p.133).
Na medida em que a diferença sexual adere na ontologia do ser social ela cria e recria sempre
novos fenômenos e relações. Pois as ações humanas incidem sobre a natureza ao modificar e
ressignificar suas relações, seja quando relacionada à própria sobrevivência ou ainda quando busca
moldar a conduta humana, em especial a construção dos estereótipos – feminino – masculinos.
Desta forma, o sistema social é uma maneira eficaz para dinamizar a reprodução do ser social,
em seus mais variados espectros. Neste sentido, ao criar novas configurações e questionar a natureza
da desigualdade de gênero é um importante processo para desarticular as matrizes dominantes e que
representam sua posição hegemônica. Neste sentido, o trabalho doméstico não-remunerado é uma
intervenção na sociedade na sociedade capitalista.
Em vez de ser reconhecido como um trabalho, o trabalho na esfera privada foi designado como um
não-trabalho à medida em que a não-remuneração é fundamental para sua condição. Segundo Federici
(2019), isso é uma condição muito importante, pois, justamente a não-remuneração é a condição
determinante de sua legitimação social como um não-trabalho e para que seja reconhecido como tal.
Entretanto, o sucesso dessa compreensão advém do poder ideológico promovido pelo sistema capitalista
vigente. Ao negar o trabalho doméstico como forma de trabalho, o sistema capitalista transformou o
trabalho doméstico em um ato de amor, que naturalmente pertence a mulher. Para a filósofa:
Primeiramente, ele obteve uma enorme quantidade de trabalho quase de graça e assegurou-se de
que as mulheres, longe de lutar contra essa situação, procurariam esse trabalho como se fosse
a melhor coisa da vida (as palavras mágicas: “sim, querida, você é uma mulher de verdade”).
Ao mesmo tempo, o capital também disciplinou o homem trabalhador, ao tornar “sua” mulher
dependente de seu trabalho e de seu salário, e o aprisionou nessa disciplina, dando-lhe uma
criada, depois de ele próprio trabalhar bastante na fábrica ou no escritório (FEDERICI, 2019, p. 44).
Deste modo, além de disciplinar a mulher, o sistema capitalista disciplinou também o homem e a
estrutura familiar no sistema capitalista. Logo, um modo de desestruturar a ideologia instaurada pelo
sistema capitalista é a revolução em relação ao trabalho doméstico. Em um primeiro momento exigir
o reconhecimento de sua remuneração, e paulatinamente romper com o próprio sistema, uma vez o
trabalho doméstico é uma das formas que legitima e estrutura o sistema capitalista.
De acordo com Federici (2019) o trabalho doméstico foi o que mais sofreu com a carga ideológica
de manipulação, quando foi relacionado a um atributo natural da psique feminina, como o afeto, o
dever de cuidado e da casa. Assim, lutar pela dignidade do trabalho é a condição política fundamental
para subverter a condição natural de não-trabalho que o labor capitalista inventou para condição da
mulher. Porém, o próprio marxismo foi omisso muitas vezes em não reconhecer a importância do
trabalho doméstico para a manutenção do sistema capitalista.
Para Federici (2019) ao analisar a categoria de trabalho, Marx o compreendeu no horizonte de
seu tempo histórico, a partir da situação da classe operária, principalmente dos trabalhadores da
Inglaterra. Neste sentido, o trabalho doméstico realizado pela mulher não foi objeto diretamente de
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investigação, dado que a condição capitalista de divisão de classe estaria incluída todas as formas de
desigualdade. Dessa forma, para a autora, não apenas Marx, mas principalmente alguns marxistas
negligenciaram a situação da mulher, pois o trabalho para Marx estaria adstrita apenas ao modo de
produção capitalista.
Assim, o marxismo não analisou a relação entre capitalismo e a família patriarcal que reproduz
o interesse masculino no interior dos espaços “privados”, em que o poder patriarcal perpetua-se e
com ele a relação entre o trabalho doméstico e o sistema capitalista. Desse modo, o trabalho na
esfera familiar/doméstica é reconhecido como um não-trabalho, enquanto um não-ser, caracterizado
portanto, pela exploração econômica (NIELSSON, 2018).
Outra críticas em relação ao marxismo refere-se a centralidade da luta de classes em detrimento a
desigualdade de gênero. Conforme Nielsson (2018), a interpretação marxista considera a desigualdade
de gênero a partir das desigualdades de classe, da exploração econômica, e, portanto, não da
subordinação hierárquica de poder na construção de estereótipo masculino e feminino. Assim, a partir
da perspectiva de Hartmann, o marxismo embora apresente uma abordagem metodológica importante,
não debate as questões de gênero. Neste sentido, para Miguel, o gênero não é parte integrante do
projeto marxista uma vez que a categoria classe ocupa um lugar dominante na teoria. Apesar dessas
ressalvas, e de acordo com a Hartmann, as estruturas de dominação sejam elas de classes ou de gênero
são igualmente importantes na determinação social das mulheres (MIGUEL, 2017).
De fato, são poucas às vezes em que Marx e Engels são sensíveis as desigualdades de gênero, em
uma dessas passagens Engels, observa a subordinação da mulher na estrutura da família tradicional.
No livro, A Origem da Família, do Estado e da Propriedade escreve Engels:
Por fim, o feminismo aprofunda a análise marxista, mas não se limita a ela, ao apontar suas
deficiências em relação à análise social. Desta maneira, ao denunciar também outras formas de
opressão ou ao questionar o sistema que reproduz formas sistemáticas de desigualdades o feminismo
busca libertar não somente a mulher, mas todos os atores sociais.
Ao questionar as origens da perpetuação do poder, o feminismo marxista demonstra outras relações
que ampliam o debate, como por exemplo, o patriarcalismo nas relações de família, a desigualdade
de gênero, a veemente discrepância econômica oriunda de uma divisão de classes e de um sistema
capitalista, ou ainda ao denunciar o não reconhecimento do trabalho doméstico não remunerado.
O feminismo da segunda onda marca um período importante na história das lutas pelos direitos
das mulheres. A sua inserção na dinâmica social de uma sociedade globalizada é marcada fortemente
pelas tensões entre o capitalismo/neoliberalismo e a necessidade de uma justiça social que assegure
o mínimo de dignidade e segurança aos indivíduos, principalmente quando se trata da condição de
vulnerabilidade da mulher subjugada a “moralidade familiar” e ao mandonismo do trabalho doméstico.
Por hora, considera-se imprescindível a necessidade de que as atividades no âmbito doméstico
devam ser realizadas. Neste sentido, não significa necessariamente uma condição de opressão dos
indivíduos, uma vez que, adultos funcionais possuem tarefas distintas que conjugadas organizam a
rotina dos agrupamentos humanos, no mais amplo sentido que se possa conferir.
Contudo, quando a condição de regência dos afazeres domésticos categoriza pessoas entre
aqueles indivíduos considerados “aptos” as atividades produtivas remuneradas do capital e aqueles
condicionados somente ao ambiente do lar, sem qualquer tipo remuneração, sendo que tais tarefas
são fundamentais para que inúmeras outras se concretizem, bem como, quando a compreensão
social corrobora tal divisão com base no gênero, delegando as mulheres a esse único posto, há uma
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Partiendo de nuestra situación como mujeres, sabemos que la jornada laboral que efectuamos
para el capital no se traduce necesariamente en un cheque, que no empieza y termina en las
puertas de la fábrica, y así redescubrimos la naturaliza y la extensión del trabajo doméstico en sí
mismo. Porque tan pronto como levantamos la mirada de los calcetines que remendamos y de las
comidas que preparamos, observamos que, aunque no se traduce en un salario para nosotras,
producimos ni más ni menos que el producto más precioso que puede aparecer en el mercado
capitalista: la fuerza de trabajo. El trabajo doméstico es mucho más que la limpieza de la casa. Es
servir a los que ganan el salario, física, emocional y sexualmente, tenerlos listos para el trabajo
día tras día (FREDERICI, 2018, p.30).
Assim, ao verificar os efeitos provocados pela apropriação desse labor da mulher, pode-se perceber
o quão necessário se faz a sustentação contínua e a efetivação das reinvindicações por redistribuição,
uma vez que, interconectam-se tais postulados de redistribuição aos imperativos das mulheres enquanto
classe produtiva viva necessária à sustentação do capital, os postulados das teóricas feministas aqui
postas, apontam para a necessidade de reconstrução do sistema social de justiça, no sentido de:
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A justiça surge então como uma categoria bidimensional que abrange ambos os tipos de
reivindicação. Desta perspectiva bifocal, torna-se desnecessário optar entre uma política de
reconhecimento e uma política de redistribuição, impondo-se, pelo contrário, uma política que
abarque os dois aspectos. A aceleração da globalização faz com que, em princípio, tal política se
torne possível. Nesta sociedade, como vimos, a identidade já não está exclusivamente ligada ao
trabalho e as questões da cultura são intensamente politizadas. Contudo, a desigualdade económica
continua a manifestar-se desmedidamente, uma vez que a nova economia global da informação
está a alimentar importantes processos de recomposição de classe. Além disso, a actual população
diversificada de trabalhadores simbólicos, trabalhadores de serviços, trabalhadores manuais,
trabalhadores temporários e a tempo parcial, bem como os socialmente excluídos, tem extrema
consciência das múltiplas hierarquias de estatuto, incluindo as ligadas à diferença sexual, “raça”,
etnicidade, sexualidade e religião. Neste contexto, não é viável nem um economicismo redutor,
nem um culturalismo banal. Pelo contrário, a única perpectiva adequada é uma perspectiva bifocal
que abarque tanto o reconhecimento como a distribuição (FRASER, 2002, p.12).
Ao abordar tal aspecto, nota-se que inquietações tradicionais das demandas de classe como a
desigualdade social, a exploração, pobreza, postam-se aqui resignadas aos papeis de gênero, unindo
desigualdades de classe ao gênero, condicionando tais injustiças que urgem tanto por reconhecimento,
mas principalmente por redistribuição da divisão do trabalho.
Quando se trata de reverberar tais contextos provindos do feminismo socialista de segunda
onda, é necessário verificar que, a exclusão da mulher e de sua voz das lutas de classes, pode ser
também considerada como uma armadilha do próprio sistema capitalista, uma vez que, as mesmas
características que configuram o “ser mulher” – dócil, amável, carinhosa e sensível – são exatamente
as mesmas que a desabilitam de exercer as funções fora da ambiente doméstico.
No instante que se lançam ao espaço público, no ambiente social/político, mulheres são
postas flagrantemente como seres inaptos ao lugar que almejam, vistas como seres pouco racionais
para um sistema predatório, são descritas como pouco sociáveis, desagradáveis, histéricas e
desproporcionalmente emotivas, características exatamente opostas aquelas que as delegam como
aptas ao ambiente doméstico.
A teórica Silvia Federici menciona em seus estudos que, mesmo as mulheres alcem voos rumo
a um segundo, destas não são retiradas a imposição da salvaguarda e responsabilidade das tarefas
domésticas constituindo a popularmente chamada dupla jornada, que exige das mesmas, dedicação
intensa as labores domésticos constantes e exaustivos, ao mesmo tempo, devem estar bem vestidas
e asseadas para o emprego externo (FEDERICI, 2018).
Dessa forma, padrões institucionalizantes sistematizam em categorias de valores a divisão
sexual do trabalho, pautando todo o acesso a oportunidades, os modos de operação do sistema e
as interações sociais que formam as cadeias produtivas, privilegiando homens em detrimento de
mulheres, as quais são jogadas por essa mesma sistematização de reprodução da vida e do capital
para o ambiente da chamada “economia dos cuidados”104, esta, fundamental para a perpetuação de
um sistema econômico pautado na exploração, exclusão e diferença.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise da sociedade burguesa, a teoria social de Marx, busca estruturar e compreender
a dinâmica da sociedade burguesa e de seu modo peculiar de produção (capitalista), na perspectiva do
seu tempo histórico. O objeto de estudo do marxismo é a sociedade burgueses e o modo de produção
capitalista cuja exploração do humano no âmbito do trabalho e da divisão de classe é as formas
naturais neste sistema.
O feminismo aprofunda a análise marxista, mas não se limita a ele, apontando sua limitação em
relação à análise social. Desta maneira, ao denunciar também outras formas de opressão ou ao questionar
o sistema que reproduz formas sistemáticas de desigualdade, o feminismo busca libertar não somente
a mulher, mas todos os atores sociais. Neste sentido, o feminismo ao combinar o método marxista
compreende a sociedade a partir de seu próprio horizonte histórico, e o método a maneira de denunciar
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REFERÊNCIAS
FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista.
Editora Elefante. 2019.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. Cultura, Arte e literatura. Textos escolhidos. S. Paulo: Expressão Popular, 2010.
MIGUEL, Luis Felipe. Voltando à discussão sobre capitalismo e patriarcado. Florianópolis, 2017.
NETTO, José Paulo. Introdução ao Estudo do Método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
NIELSSON, Joice Graciele. Mulheres e Justiça: teorias da justiça da Antiguidade ao século XX sob a
perspectiva crítica de gênero. Curitiba: Appris, 2018.
SAFIOTTI, Heleieth I.B. Gênero, Patriarcado e violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
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O PANOPTISMO EM REVISÃO:
DA ORIGEM HISTÓRICA AOS USOS NO NEOLIBERALISMO
RESUMO: No intuito de facilitar a vigilância e a coerção sobre seus subordinados na Rússia do século
XVIII, Samuel Bentham cria um novo conceito de monitoramento, o Panóptico, que ao longo dos
séculos toma novas formas e avança até se adaptar ao tempo presente. A partir dessa ideia, este
artigo analisa o contexto histórico no qual se formou o modelo panóptico de vigilância com o objetivo
de demonstrar, além dos elementos por trás de sua criação, como opera o sistema pós-panóptico
contemporâneo de poder público e privado para controlar trabalhadores e professores, sob os mais
diversos pretextos. Ver-se-á o modelo panóptico aplicado à sociedade atual, exposta às políticas
neoliberais que remodelam os métodos de vigilância social.
INTRODUÇÃO
105 Mestrando em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Graduado em Direito pela Fundação Universidade
Regional de Blumenau. Integrante do Grupo de Pesquisas em Pensamento Jurídico Crítico Latino-americano (UNESC). Advo-
gado. Endereço eletrônico: daniel.fiamon@hotmail.com
106 Doutora em Direito pela UFPR; Mestra em Direito pela UFSC. Graduada em Direito pela FURB. Professora no curso de Di-
reito da UNESC. Pesquisadora no Grupo de Pesquisas em Pensamento Jurídico Crítico Latino-americano (UNESC). Advogada.
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Os textos que trazem como tema o cárcere, ou assuntos correlatos, como segregação racial,
encarceramento em massa, etc., em sua maioria, creditam a ideia do projeto do panóptico tão somente
a Jeremy Bentham, omitindo que seu irmão, Samuel Bentham, foi quem primeiramente idealizou o
modelo. Samuel forneceu os desenhos dessas construções, cuja arquitetura estrutural se ergueria com
o intuito de facilitar a vigilância dos subalternos por sentinelas, a seu irmão, que posteriormente os
empregaria em seu projeto de prisão (WERRETT, 2008, p.47-49; 1999, p.3-4). Motivada por corrigir
algumas imprecisões históricas, a viúva de Samuel, Mary Sophia Bentham, escreveu a biografia do irmão
menos famoso de Jeremy, explicando que seu marido sempre flertou com a construção naval, o que o
levou a seguir carreira, chegando a se tornar Comissário de sua Majestade Naval (BENTHAM, 1862, p.2).
Por seus conhecimentos, foi contratado para trabalhar na Rússia, onde mais tarde surgiram suas ideias
para o Panóptico. Devido a sua íntima relação com o príncipe107 estadista Russo, Gregório Alexandrovich
Potemkin, Samuel conquistou maior liberdade para trabalhar em suas criações (PEASE-WATKIN, 2002,
p.2; BENTHAM, 1862, p.65-78), recebendo, em 1784, do Estado russo, local e trabalhadores para ajudá-
lo com os mais diversos afazeres, incluídos os militares (BENTHAM, 1862, p.77).
Dois anos depois, durante o outono de 1786, em Krichev, Samuel desenvolve o princípio da inspeção
central e desenha o projeto do panóptico que o incorporaria (PEASE-WATKIN, p. 2). Segundo Philip
Steadman, “Foi dito que a preocupação de Samuel era como os supervisores poderiam melhor treinar e
supervisionar a força [de trabalho] dos inexperientes trabalhadores locais” (2012, p. 2. Tradução livre108),
o que indica certo desconforto com a disciplina e eficiência da mão de obra. Os supervisores prestariam
assistência técnica e disciplina aos locais e, segundo Simon Warret, após a atuação dos supervisores “[e]
m nenhum momento, os camponeses [trabalhadores locais], ofereceram a Bentham quaisquer problemas
específicos com disciplina” (WARRET, 1999, p. 6. Tradução livre109). Em um primeiro momento, em 1784,
com os supervisores, o trabalho foi otimizado, porém, no verão de 1786 foram reportados a Samuel vários
problemas decorrentes da insubordinação dos próprios supervisores ingleses (WERRET, 1999, p.6; 2008,
p.52). Samuel teria dito, segundo Mary: “Manhã após manhã, deparo-me principalmente com disputas
entre meus oficiais” (BENTHAM, 1862, p.79. Tradução livre110).
Os eventos de indisciplina dos locais e também dos supervisores parecem ter despertado em
Samuel a necessidade de criar algo que facilitasse a vigilância sobre seus subordinados, mas não
só isso; ao analisar o contexto histórico e tendo em vista a íntima ligação das práticas de Samuel
Bentham com personalidades e instituições russas, há fortes indícios de que características culturais
daquele país no século XVIII tenham influenciado a elaboração dos conceitos panópticos (WERRETT,
1999, p.7). John Bowring afirma que no modelo inicial, o supervisor teria que mudar frequentemente
a posição para atender tantos quantos trabalhadores se fizer necessário (BOWRING, IV, p. 41). Isso
não representava nenhum grande avanço com relação a outros métodos de supervisão e instrução
já existentes na época. Tal fato corrobora com a ideia de que não foi somente a necessidade de
controlar a disciplina dos trabalhadores que levaram Samuel a pensar o conceito. Para entender os
motivos e acontecimentos por trás das ideias do criador do conceito do “elaboratório”, é preciso
tomar conhecimento daquilo que Simon Werrett chama de “Teatralidade” na cultura russa.
Essa expressão remete à reconstrução socioeconômica que Catarina, a Grande111, vinha
implementando em seu país, como continuidade do trabalho de Peter, o Grande, principalmente
(WERRET, 2008). Em meio a disputa entre dois partidos russos – liderados pelos Orlov e outro por
Nikita Panin -, estava um dos favoritos112 de Catarina na época, o já citado Potemkin (MIAKINKOV,
2009, p.68), que era, segundo Robert K. Massie (2011, p. 59) “a figura mais marcante do reinado da
107 Potemkin foi condecorado Príncipe do Sagrado Império Romano pelo Imperador José II a pedido de Catarina II. Após
receber o título passou a ser tratado por “Príncipe” e “Vossa Alteza Serena” (MASSIE, 2011, p.352)
108 “It has been said that Samuel’s concern was with how these supervisors might best train and oversee a force of inexpe-
rienced local workmen”.
109 “At no time, however, did the peasants offer Bentham any particular problems of discipline”
110 “Morning after morning”, he said, “I am taken up chiefly with disputes amongst my Officers”.
111 Catarina II, mais conhecida por Catarina, a Grande, tornou-se imperatriz da Rússia após ser prometida e subsequente-
mente ter casado com o imperador Pedro III. É uma das mais pitorescas figuras da história moderna (ALEXANDER, 1989).
112 “Favorito” era o termo usado para designar um amante formalmente reconhecido da mulher que ocupava o trono, a
imperatriz Elizabeth (MASSIE, 2011, p.360).
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imperatriz”. O livro de Massie, “Catarina, A Grande: Retrato de uma mulher”, expõe várias frações de
cartas escritas pela própria imperatriz que não deixam dúvidas de sua absoluta confiança, bem como
do extremo fascínio que tinha pelo príncipe. O relacionamento entre os dois deve ser considerado na
busca dos motivos que levaram à criação do panóptico. Para obter influência nas questões políticas
Potemkin, por exemplo, utilizou de sua privilegiada posição de favorito, obtendo informações sobre
os gostos pessoais de Catarina (STEADMAN, 2012, p.2). Em 1784, logo após seu retorno a São
Petesburgo, então capital da Rússia, Potemkin convida Catarina para uma visitação – um verdadeiro
tour – pelas terras do sul. Sobre o propósito da viagem, descreve George Soloveytchik:
[...] ele [Potemkin] apresentaria à Catarina, e ao mundo inteiro, suas conquistas realizadas. [Ele]
a levaria para um passeio pelas províncias do sul, as novas cidades, e o milagre da conquistada
Crimea. A Europa deveria olhar para esse piquenique com atenção e por último entender que a
Rússia era rica e poderosa, capaz de desenvolver seus próprios recursos, que sob o governo da Mãe
Catarina foi uma benção para os seus recém-adquiridos milhões de súditos fiéis (SOLOVEYTCHIK,
1938, p.273. Tradução livre113).
Potemkin era ávido por poder, e para obtê-lo e impressionar Catarina, a viagem dela às terras do
sul foi crucial e consolidou-se como o maior triunfo de Potemkin (MASSIE, 2011, p.391). A teatralidade
se deve ao fato da imersão da Rússia na ocidentalização, que se tornou um verdadeiro teatro para a
nobreza. De acordo com Massie, para muitos, no entanto, isso não passava de um “enorme engodo”,
um espetáculo montado para imprimir em Catarina a falsa ideia de uma Rússia aos moldes de um
“Jardim do Éden” (MASSIE, 2011, p. 391), mesmo que tal evento tenha acompanhado por vários outros
líderes europeus que, supostamente, atestarem sua veracidade (MASSIE, 2011, p. 391; WERRETT,
2008, p.56). Enfatiza-se que Samuel estava completamente envolvido nesse processo, sendo o
administrador de várias destas tarefas, estando compromissado, inclusive, na construção da balsa real
que transportaria Catarina quando de sua visita; sempre sob o comando de Potemkin (WERRETT, 2008,
p.57; STEADMAN, 2012, p.4). Sobre o que foi exposto acerca dos motivos da concepção do panóptico,
Warret afirma que “Jeremy Bentham foi bastante explícito que sua teatralidade era fundamental para
seu funcionamento” (2008, p. 59. Tradução livre114). É nesse âmbito – da transformação da Rússia
pela teatralidade – que a casa de inspeção de Samuel surgiria como uma estrutura de poder, capaz de
oferecer de forma eficaz, a qualquer instituição, a vigilância sobre seus subordinados.
O projeto do panóptico a ser apresentado em Krichev era, de fato, uma representação espacial
da propriedade familiar da nobreza russa, e assim, não seria totalmente estranho aos olhos de quem
o contemplasse (WERRETT, 2008, p.60). Se, para os Bentham, o panóptico representava uma forma
de controlar os trabalhadores e os supervisores ingleses, para a nobreza russa era uma forma de
controlar seus plebeus (RAMOS, 2014, p.135-136). E a forma de vigilância e coerção dos plebeus
àquela época era regida em muito pela Igreja Ortodoxa Russa, inclusive em sua própria arquitetura,
pois “os russos aprendiam sobre sua posição e função terrenas através de sua relação com Deus,
mediada, claro, pela Igreja Ortodoxa” (RAMOS, 2014, p.136). Foucault também fala sobre o tema:
Antes [no séc. XVIII], a arquitetura respondia, acima de tudo, a necessidade de manifestar o
poder, a divindade, a força. O palácio e a igreja constituíam as grandes formas, às quais é preciso
acrescentar as fortalezas; manifestava-se o poder, manifestava-se o soberano, manifestava-se
Deus. A arquitetura se desenvolveu durante muito tempo ao redor destas exigências (MIRANDA,
1979, p.11. Tradução Livre115).
113 “[...] he would show Catherine and he would show the whole world his achievements accomplished [He] would take
her for a walk through the provinces of the south, the new cities and the miracles of the conquered Crimea. [Europe should
watch this picnic with attention and at last understand that Russia was rich and powerful, capable of developing her own re-
sources, that living under the rule of Mother Catherine was a blessing for her newly acquired millions of faithful subjects.]”.
114 “Jeremy Bentham was quite explicit that theatricality was critical to its functioning”.
115 Antes, el arte de construir respondía sobre todo a la necesidad de manifestar el poder, la divinidad, la fuerza. El palacio y
la iglesia constituían las grandes formas, a las que hay que añadir las plazas fuertes; se manifestaba el poderío, se manifestaba
el soberano, se manifestaba Dios. La arquitectura se ha desarrollado durante mucho tiempo alrededor de estas exigencias.
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A ideia era demonstrar aos nobres da época que poderiam, dentro de um local próprio, monitorar
e coagir seus comandados, vigiando-os sem que pudessem ser percebidos, de forma semelhante àquilo
que ocorre dentro da Igreja Ortodoxa, cujo papel do “ver sem ser visto” exercia papel crucial. O projeto
da Igreja Ortodoxa foi pensado para delimitar quem são os fiéis – que não podem ter contato visual com
o local da eucaristia -, através da figura do “Cristo Pantocrador”116, da mesma forma que no panóptico
essa mesma função arquitetônica delimita quem são os subalternos. Não apenas semelhanças estruturais
podem ser visualizadas entre a Igreja Ortodoxa e o panóptico, mas também a construção de uma nova
relação de poder. Um modelo que assegura ao vigilante – dentro da relação vigilante-vigiado – a imposição
de uma determinada atuação. (RAMOS, 2014, p. 136). Werrett afirma que tanto do panóptico quanto da
Igreja Ortodoxa têm arquitetura articulada pela noção de observar sem ser visto. O mesmo autor afirma
que as semelhanças entre os desenhos dos irmãos Bentham e os da Igreja da época podem ser reflexo do
profundo conhecimento que Samuel detinha sobre a Igreja Ortodoxa (WERRETT, 2008, p.63-64).
Outro fato importante nesse contexto foi a secularização da igreja, promovida pelo império Russo
desde Pedro, o Grande, que tornou a tornou subordinada ao Estado. Catarina, ao tomar o trono, e tendo
se convertido à ortodoxia já aos 14 anos de idade117, teve apoio da igreja e garantiu a instituição religiosa,
em um primeiro momento, a posse sobre suas terras e servos. Porém, a imperatriz era contra o enorme
acúmulo de riquezas por parte da Igreja e, em verdade, queria manter as posses das terras e os servos sob
o domínio do Estado. Afixava-se o apoio da Alta Nobreza – profundamente secular - para com os ideais
de Catarina e novamente se estabeleceu a supremacia do Estado sobre a Igreja. A própria Igreja tornou-se
propriedade do Estado. Todo alto e baixo clero tornaram-se assalariados deste, e os servos - que passaram
à condição de camponeses – deveriam agora, pagar impostos. Tais fatos mudaram por completo – em
todas estruturas – a vida russa (MASSIE, 2011, p. 247-250; ALEXANDER, 1989, p.76-77).
Conforme Werrett, o panóptico pode ser visto como outra intervenção secular na ordem religiosa.
Nas cartas de Jeremy, por exemplo, é possível encontrar várias alusões à secularização russa. Durante
os anos de 1770 até a década de 1780, a secularização converteu edifícios eclesiásticos em escolas,
hospitais, prisões e asilos; justamente as instituições a que Jeremy alegava em suas cartas ser possível as
aplicações do projeto que desenvolvera a partir das ideias de seu irmão Samuel, isto é, o panóptico. Os
moldes da cultura da Igreja Ortodoxa foram mantidos, enquanto seu conteúdo era alterado, subvertido e
secularizado. O projeto de Catarina e Potemkin visava reestabelecer algo como o antigo império Bizantino
Ortodoxo e, de fato, era chamado “projeto grego”. Catarina poderia fantasiar ser a restauradora do
império ortodoxo em um passeio regado de configurações ortodoxas subvertidas. Isso torna claro porque
Samuel poderia ter construído uma “igreja secular”, com o panóptico parodiando a igreja Ortodoxa em
um contexto cuja paródia constituía o tema central da organização. O panóptico possibilitava aos nobres
russos uma maneira secular de controlar o campesinato e, ao mesmo tempo, um lugar esclarecido e
produtivo, com referências suficientes à arquitetura Ortodoxa. (WERRETT, 2008, p.63-66).
116 Cristo Pantocrador deriva do grego pan (tudo ou todo) e kratos (alto, em cima), exprimindo a ideia de governo, poder;
mais especificamente, em se tratando de figura divina, Onipotência (TOMMASO, 2013, p. 63).
117 Sophia Frederika Augusta era o nome da imperatriz, que passou a se chamar Catarina (Catherine) após se converter à
religião Ortodoxa. (MENZE, 1973, p.15)
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radial -, segundo o mesmo autor, se espelhou na a escola de artes já citada, apesar desta não ter sido
um sistema prisional (STEADMAN, 2012, p. 25-26).
Foucault descreve, em sua obra “Vigiar e Punir”, a ideia permanente e sempre avante da vigilância
panóptica. Essa ideia avançou no tempo, foi renovada com a era digital, e Foucault anteviu e escreveu
os efeitos de sua aplicação futura de forma clara, já em 1975. Diz o autor:
Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações
do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo. Inscreve em si a relação de poder na
qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição
(FOUCAULT, 1999, p. 168).
Muito do que Foucault previu, se concretizou. Escreveu, por exemplo, sobre a vigilância escolar,
do corpo docente e discente, quando “o diretor pode espionar a todos os empregados que tem a seu
serviço [como] professores [e] poderá julgá-los continuamente, modificar seu comportamento,
impor-lhes métodos que considerar melhores” (FOUCAULT, 1999, p.168-169. Sem grifo no
original). Estava certo, portanto, quanto ao panóptico ser polivalente em suas aplicações. É claro que
no mundo contemporâneo, devido à informatização, encontram-se presentes no cotidiano diversas
formas de vigilância que remetem ao panóptico: “Sorria, você está sendo filmado”, dizem algumas
placas de avisos. Também é sabido, que governos e corporações vasculham enorme quantidade de
informações sobre pessoas específicas, ou grupos maiores, a fim de monitorá-los (SHERIDAN, 2016,
p.1). Este artigo, porém, abordará dois campos principais onde este tipo de monitoramento se verifica
atualmente: a vigilância nas relações de trabalho e de ensino.
O conceito de panoptismo eletrônico ou tecnológico surge em meados de 1990 (FATOUROS; JERRAD,
2005, p. 2), porém, segundo Büyük e Keskin, antes mesmo do termo surgir, os mecanismos tecnológicos
de vigilância já operavam. A transformação pela qual a sociedade passou através da informatização foi
sendo acelerada a partir dos anos 1980 com a aplicação dessas tecnologias como fator estratégico
de competitividade (Büyük; Keskin, 2012, p.75-76). Atualmente, uma empresa pode verificar com
precisão a proporção de trabalho de seus funcionários. Nada resiste ao monitoramento. Os dados são
salvaguardados em um servidor e reportados ao superior hierárquico (SHERIDAN, 2016, p.40). Portanto,
o monitoramento no trabalho vai além da simples instalação de câmeras, levando aos questionamentos
feitos por Johnathan Yerby: “Os empregadores devem poder monitorar seus empregados? [Eles têm] o
direito de saber que seus empregadores os vigiam?” As justificativas para o monitoramento em locais
de trabalho sempre elencam o quesito financeiro, por exemplo, a perda potencial de produtividade,
que acarretaria prejuízos caso os funcionários passassem certo período por dia navegando na internet
(YERBY, 2013, p.46). Mas quais são os riscos do monitoramento à saúde dos trabalhadores?
O principal dano citado em pesquisas do tipo é o estresse. Gómez-Mejía, Balkin e Cardy expõem
no livro “Managing Human Resources” alguns dados que demonstram que o uso de monitoramento
eletrônico em locais de trabalho fez surgir novas preocupações quanto a seu efeito desumanizante
sobre os empegados. Muitos empregados sentem que isso põe fim ao elemento humano de seus
trabalhos e causa muito estresse. Os autores citam um estudo que compara trabalhadores clericais
monitorados com outros não monitorados, demonstrando que cinquenta por cento do primeiro grupo
– os monitorados – sofreram com estresse, contra trinta e três por cento do outro grupo. Além
disso, trinta e quatro por cento dos trabalhadores monitorados perderam tempo em seus afazeres
devido ao estresse auto induzido, contra vinte por cento dos não monitorados. Afirmam ainda, que
algumas pesquisas apontam que há uma alta incidência de dores diversas dentre esses trabalhadores.
Outro dado interessante citado pelos mesmos autores diz respeito a quantidade de trabalhadores
secretamente monitorados nos anos dois mil, algo em torno de trinta milhões, somente nos Estados
Unidos (GOMÉZ-MEJÍA; BALKIN; CARDY, 2011, p.476). Alguns grupos norte-americanos relacionados
aos direitos dos trabalhadores determinam que o fato do monitoramento secreto infringir os direitos
de proteção à privacidade bastaria para que não pudesse ser realizado (YERBY, 2013, p.48). Contudo,
atendo-se ao exemplo dos EUA, existe uma lei118 que impede a exclusão de dados relevantes a possíveis
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processos litigiosos futuros, ou seja, não há o que fazer quando a justiça desse país requisita dados
de trabalhadores, pois a lei prevê sanções em caso de descumprimento (ALEXI, 2008). O cenário não
é tão díspar quando aplicado em instituições de ensino, ainda que muito mais complexo.
Nas instituições de ensino, o monitoramento engloba o controle do que, para quem e como o
conteúdo é transmitido aos estudantes. Além disso, mecanismos injustos de avaliação – que também
são considerados formas de vigilância - implicam em maior desigualdade social. Isso se deve muito
– conforme será visto - a maneira discriminatória com a qual ocorrem as avaliações. Mudanças
drásticas que também afetaram o modo como se opera o monitoramento, e fizeram surgir o termo
pós-panoptismo ou panotpismo contemporâneo, que é definido em um artigo de 1997, escrito por
Thomas Mathiensen. Para desenvolver o novo panoptismo ele cria o termo “sinoptismo” (synopticism),
definindo-o como “a situação em que um grande número [de indivíduos] focam em algo comum que
se encontra condensado”, contrapondo a ideia de que poucos vigiam muitos ao dizer basicamente
que nos tornamos uma sociedade expectadora (MATHIENSEN, 1997, p. 219). E é nesse contexto que
se dá a vigilância voltada para às instituições de ensino. Damien Page escreve sobre a participação
voluntária na vigilância que, segundo ele, seria “uma consequência das preocupações neoliberais com
a competitividade individual”, e continua:
nós voluntariamente compartilhamos informações pessoais com bancos, lojas online e rede
sociais, procuramos ativamente nos engajar em nossa vigilância a partir de um desejo neoliberal
de ser classificado nas categorias ‘bom’ em vez de ‘ruim’; o ‘sucesso’ e não o ‘fracasso’; o digno de
crédito e o não o indigno de crédito; o cidadão em vez do terrorista; o feliz ao invés do triste [...]
(PAGE, 2016, p.4. Tradução livre119)
Vários países no mundo já estão seguindo a tendência de avaliar em “bom” ou “ruim”, “sucesso”
ou “fracasso”, tanto as instituições de ensino, quanto os próprios professores, e isso acaba afetando
os próprios acadêmicos. Segundo Page (2016), em escolas e universidades do Reino Unido, nos anos
2000, o mecanismo de vigilância atingiu seu auge, tendo sido promovido por líderes sêniores e pela
Ofsted, responsável pela inspeção escolar na Inglaterra. Escolas e universidades teriam inspeções
internas semanais, sendo que em todos os casos, os professores seriam avisados com antecedência,
ou seja, poderiam se preparar e aperfeiçoar seus planos de aula, visando a inspeção. Tais inspeções
foram, à época, a principal forma de vigilância no Reino Unido, porém, no mesmo período, surge o
gerenciamento de desempenho nas escolas e universidades – algo como o ENADE120 e o SENAES121
no Brasil. Devido ao avanço do neoliberalismo nos últimos anos, a mercantilização e a competição
passaram a ser cada vez mais intensas no sistema escolar, produzindo maiores preocupações com
risco, e mecanismos de julgamento mais rígidos (PAGE, 2016, p.4).
Para explicar o aumento da rigidez das avaliações, Page afirma que os diretores antes contavam
com a possibilidade e apoio para reverter um resultado insatisfatório, o que não ocorre atualmente,
sendo os diretores, em algumas situações, inclusive forçados a sair imediatamente, passando o
gerenciamento, ou monitoramento, a ser efetuado por uma organização externa, envolvida na tomada
de decisões122. Os diretores e professores passam a sofrer um tipo de vigilância visível e contínua, e
estão cientes disso (PAGE, 2016, p.4-5). Sobre isso, escrevem Shore e Roberts:
119 […] we voluntarily share personal information with banks, online shopping outlets and social networking, we actively
seek to be engaged in our surveillance from a neoliberal desire to be sorted into the ‘good’ rather than the ‘bad’ categories:
the successful rather than the failure; the credit-worthy rather than the credit unworthy; the citizen rather than the terrorist;
the happy rather than the sad
120 Cf. em http://inep.gov.br/enade
121 Cf. em http://inep.gov.br/sinaes
122 C.f. em http://www.selfleadershipinitiative.com/blog/what-does-academisation-mean-for-our-schools
123 Like Bentham’s prisoners, university staff more or less unwitting accomplices in the setting-up of a wider system of
imprisonment. In Foucauldian terms, this is a classic example of the moulding of subjectivity through the internalisation of
externally-imposed norms.
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São vários os tipos de monitoramento sobre o trabalho dos professores, e sob a óptica da vigilância,
deve-se refletir como as políticas neoliberais estão influenciando o aumento da estratificação e da
segregação do ensino nos Estados Unidos. É, de fato, um alerta para que professores se preparem para
o panóptico neoliberal. O discurso econômico neoliberal é ditado pelo Banco Mundial e pelo Fundo
Monetário Internacional, o FMI, aos países com baixos recursos financeiros que buscam desenvolvimento,
e é caracterizado por políticas de privatização, austeridade, e liberalização do comércio como condições
para aprovação de investimentos, empréstimos e alívio da dívida. Ocorre que os países em
desenvolvimento praticamente não têm escolha que não adotar tais políticas, pois para aliviar seus
débitos, dependem do FMI, que os pressiona a aceitar os termos. As regras são injustas, e os pressupostos
de concorrência que o mercado capitalista utiliza para apoiar o neoliberalismo, exacerbam iniquidades
e utilizam isso para se beneficiar daqueles que foram desprovidos de direitos. A estratificação, ou
segregação, do conhecimento, é suportada por desigualdades econômicas e é criada quando grupos
com diferentes padrões de conhecimento, e econômicos, são certificados pela escolarização. O
desempenho de aprendizagem recai sobre a necessidade de atingir metas predefinidas, que por si
só, já criam uma estratificação, pois determinam a identidade dos alunos e demarcam seus futuros
econômicos. A política neoliberal continua se justificando com base no continuo discurso de mérito,
progresso e escolha; inclusive utilizando esse discurso para naturalizar a estratificação educacional
criada. Sobre isso, afirmam Webb, Briscoe e Mussman: “É falso afirmar que os valores de escolha e
competição (especialmente em um campo de jogo desigual) são mais propensos a trazer o bem comum
do que os valores de igualdade e equidade” (WEBB; BRISCOE; MUSSMAN, 2009, p5).
As consequências das políticas neoliberais no sistema de ensino, são desastrosas. É o caso do
projeto estadunidense “No Child Left Behind” (nenhuma criança deixada para trás), também conhecida
pela sigla “NCLB”, criado para responder questões sobre o desempenho econômico da educação pública
nos EUA, com intuito de saber se os educadores cumprem as expectativas neoliberais e se os alunos
estão aprendendo o que precisam para alcançar objetivos econômicos. São realizadas avaliações de
alto risco, baseadas em testes anuais padronizados, onde os distritos que não progridem durante
o ano são sujeitos à diversas sanções, e os que atingem as metas concorrem a uma premiação de
reconhecimento para os estudantes. A estratégia é a vigilância, pois, para receber verbas do projeto,
o governo federal norte-americano encoraja os estados a exibirem publicamente os resultados dos
testes e, com base nestes resultados, os prêmios serão concedidos e as punições aplicadas. Caso
os estados não sigam as diretrizes da NCLB, poderão ser multados (WEBB; BRISCOE; MUSSMAN,
2009, p.6). Monitoramentos explícitos como os descritos, causam verdadeiro terror, pois enquanto
professores sofrem ameaças de demissão, escolas são ameaçadas de fecharem (KING, 2013, p.100).
Webb, Bricoe e Mussman demonstram que existe uma disparidade de recursos escolares e distritais
em todo território estadunidense e, para regular os currículos, a NCLB utiliza a vigilância coerciva
combinada ao financiamento desigual, determinando que todas as crianças atendem aos mesmos
padrões para realização dos testes, porém, sem que as escolas tenham paridade de financiamento.
Em síntese:
Das escolas com poucos recursos e com alunos que sofrem de privação econômica espera-se que
produzam pontuações de teste semelhantes às escolas afluentes cujas famílias de estudantes
possuem uma infinidade de recursos econômicos. O aparato disciplinar da NCLB estratifica
estudantes e educadores (de “baixo desempenho” e “alto desempenho”) exigindo que estes rótulos
devem ser aplicados às escolas com base nos resultados dos testes (WEBB; BRISCOE; MUSSMAN,
2009, p.8. Tradução Livre124).
Dessa forma, as escolas com “baixo desempenho” focam em planos de ensino voltados a ensinar
a passar no teste (KING, 2013, p.140; WEBB; BRISCOE; MUSSMAN, 2009, p.9), um fenômeno assustador
que reduz a pedagogia às tentativas de atingir as estatísticas. De forma bem clara, as escolas pobres
têm seus currículos estreitados, assim, os professores tendem a aumentar o uso da pedagogia didática,
124 Schools with few resources and with students who suffer from economic deprivation are expected to produce student
test scores similar to affluent schools whose students’ families have a plethora of economic resources. The disciplinary ap-
paratus of NCLB stratifies students and educators (“low-performing” and “high-performing”) by demanding that these labels
be applied to schools on the basis of their test scores.
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algo conhecido nos EUA como drill and kill125, que estimula o pensamento convergente no lugar do
divergente. Deste modo, as crianças afetadas são preparadas propositalmente para o trabalho de
serviço local, pois esse sistema de ensino em massa produz trabalhadores dóceis para uma economia
baseada cada vez mais em serviços (WEBB; BRISCOE; MUSSMAN, 2009, p.9). Ao contrário do alegado
pela NCLBa prática de vigilância continua a segmentar os estudantes em subgrupos que consistem
em raça, status socioeconômico e dificuldades de aprendizagem (KING, 2013, p.126).
A forma de resistência encontrada pelos professores foi burlar o sistema através de “fabricações
pedagógicas”. Acerca disso, Weeb, Briscoe e Mussman dizem que, quando sabem estarem sendo vigiados,
os professores “fabricam” um tipo de performance para demonstrar que estão seguindo as regras, porém,
quando as portas são fechadas, tentam utilizar o método genuíno (WEBB; BRISCOE; MUSSMAN, 2009,
p.10). Pode-se confirmar isso pelo relato – desabafo - de Jim, professor estadunidense do segundo ano:
[...] quanto mais os administradores enfatizam algo que eu não acredito, mais me torno paralisado e
ineficaz. Estou ensinando algo que não concordo. Estou sendo forçado a ensinar de uma certa maneira
(uma fabricação). E tento fazer do outro jeito [método autêntico] de uma forma que não chame muita
atenção deles, mas isso se torna paralisante. Você se pega rodando em círculos [corrompendo-se] em
vez de ensinar. E assim, as crianças tornam-se os verdadeiros perdedores nas mãos de professores
que não acreditam no que eles estão fazendo (Webb, 2006, p.209. Tradução livre126).
Os professores também são acometidos por danos psicológicos. Comprova-se isso com outro
relato, este da professora Diane:
Minha primeira reação foi ‘Eu não vou jogar o jogo, mas estou jogando e eu sei que eles sabem
que estou. Não me respeito por isso; o respeito por mim mesma vai pra baixo. Por que não
estou tomando uma posição? Por que não estou dizendo, ‘Eu sei que posso ensinar; digam o que
quiserem dizer’, e então, eu perco o respeito por mim mesma. Eu sei quem sou; eu sei o motivo
pelo qual ensino, e eu não gosto do que está acontecendo; eu não gosto deles fazendo isso, e isso
é triste, não é? (JEFFREY; WOODS, 1998, p. 155.Tradução livre127).
Percebe-se, ante os fatos, que a vigilância nas instituições de ensino, no contexto do pós-
panoptismo, acaba por gerar problemas que tendem a afetar apenas a educação das classes mais
baixas, ou seja, ocorre a amplificação das desigualdades sociais, principalmente porque “os objetivos
da escolaridade entram em conflito com as democracias capitalistas corporativas” (Webb, 2007, p.289).
Seria então necessário, um aprofundamento acerca de novas práticas que visem evitar essa destruição
social, justamente para poder ajudar os estudantes a compreender suas próprias posições e seus futuros
papéis como educadores dentro da sociedade neoliberal de vigilância (WEBB; BRISCOE; MUSSMAN, 2009,
p.12). Pensando em uma perspectiva mais ampla desses processos, influenciados desde o projeto do
panóptico dos irmãos Bentham, que afetam, dentre outros, trabalhadores, estudantes, pais e professores,
deve-se atentar, principalmente, para as propostas elaboradas nos vários campos do pensamento crítico,
pois o avanço das políticas neoliberais seguem prejudicando o progresso social humanitário.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através dos séculos, várias práticas de vigilância social foram sendo desenvolvidas pelos
detentores do poder, a fim de impor aos povos e classes sociais, seja no âmbito territorial interno ou
externo, condições de vida que sirvam ao sistema existente em cada período histórico. O conceito
125 Refere-se a aplicação repetitiva de exercícios, sem o devido contexto, que frequentemente leva a um aprendizado su-
perficial ou limitado. Cf. em https://www.nytimes.com/2010/09/19/magazine/19fob-medium-heffernan-t.html
126 … the more they [district administrators] emphasize something that I don’t believe in, the more I become paralyzed and
ineffectual. I’m teaching something I don’t agree with. I’m being forced to teach in a certain way [a fabrication]. I try to do
the other one [authentic teaching] in a way that’s not drawing the attention of the administrators too much, but it becomes
paralyzing. You find yourself wallowing instead of teaching. And, so, the kids become the real losers with teachers who
don’t believe with what they’re doing
127 My first reaction was ‘I’m not going to play the game’, but I am and I know they know I am. I don’t respect myself for it; my own
self-respect goes down. Why aren’t I making a stand? Why aren’t I saying, ‘I know I can teach; say what you want to say’, and so I
lose my own self-respect. I know who I am; I know why I teach, and I don’t like it; I don’t like them doing this, and that’s sad, isn’t it?
269
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
do panóptico, pensado por Samuel e desenvolvido por seu irmão, Jeremy Bentham, no século XVIII,
trouxe uma nova visão sobre a vigilância social em uma sociedade que denunciava como o poder
seria exercido em relação aos menos favorecidos. Tenha sido construído para manter em ordem os
comandados por Samuel, tenha sido utilizado por Potemkin para impressionar a imperatriz Catarina,
a Grande, fato é que, o modelo do panóptico viria a servir um propósito cada vez mais evidenciado,
qual seja, a coerção através da vigilância.
Pensado em uma época em que o monitoramento através de equipamentos eletrônicos sequer era
imaginada, a coerção social através da vigilância atingiria níveis nunca antes vistos com chegada da
era digital no final do século XX e início do século XXI, apesar de já amplamente utilizada em estruturas
como prisões radiais do século XIX e início do século XX, ou mesmo pela Igreja Ortodoxa desde o século
XVIII. Transformando-se gradualmente, conforme transformava-se a própria humanidade, a noção de
poder atrela-se à noção de direito, como pode ser percebido na obra “Vigiar e Punir”. Foucault, crítico
do sistema panóptico, fez previsões acertadas de como as práticas de vigilância poderiam vir a ser
utilizadas em futuro não tão distante de sua época. O projeto pensado para as instituições de ensino
e o mercado de trabalho, pensado pelas políticas neoliberais, deixa de atender ao desenvolvimento
social e seus sustentáculos para focar em produzir indivíduos devidamente esculpidos para atender
às relações de mercado, e entender os danos sociais causados por tais políticas exige destrinchar
programas falsamente divulgados como projetos sociais.
Pesquisas sobre os efeitos do monitoramento social, como os expostos neste texto, teriam muito
a contribuir. E teriam grande importância hoje, no Brasil, devido ao cenário político neoliberal que
emerge e avança, bastando estar atento aos acontecimentos políticos para perceber o alinhamento do
governo brasileiro com projetos estadunidenses de monitoramento e coerção. Conforme demonstrado,
as práticas de vigilância, acabam por gerar mais desigualdade social, o que fica mais evidente nas
instituições de ensino. Acende-se, portanto, o sinal de alerta para os povos historicamente oprimidos,
principalmente aqueles de países em desenvolvimento, que estão sendo alvos de coerção do sistema
econômico mundial para aderirem à suas políticas predatórias. Novamente, a esperança nasce na
resistência daqueles que são historicamente marginalizados por políticas que geram desigualdade.
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272
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
Driane Fiorentin128
Felipe da Veiga Dias129
RESUMO: Esta pesquisa objetiva compreender o papel da vítima no processo penal e sua ligação com
o processo de sobrevitmização, em especial as vítimas de crimes sexuais, partindo da análise de três
casos midiatizados. Delimitou-se o tema no debate sobre o a posição da vítima na instrução criminal,
com o objetivo de entender os processos de sobrevitimização. Utilizando de uma metodologia de
abordagem indutiva, este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de estudar os processos de
sobrevitimização para que se possa compreender como o sistema penal trata estas vítimas. Concluiu-
se que as fases processuais ignoram a vulnerabilidade em que a vítima se encontra, buscando meios
de assegurar a condenação do acusado através da objetificação da vítima, fato que se evidencia
também nas coberturas midiáticas dos casos criminais analisados.
INTRODUÇÃO
Este trabalho possui como objetivo compreender as etapas do processo de revitimização a partir
da posição da vítima dentro do decurso processual penal, a fim de com isso verificar se as etapas que
constituem a instrução processual penal contribuem para a sobrevitimização nos crimes sexuais. Para
tanto, analisou-se três reportagens publicadas pela rádio Planalto F.M, localizada na cidade de Passo
Fundo-RS, publicadas entre os meses de maio a julho de 2020, com o intuito de demonstrar ainda os
discursos midiáticos em torno das vítimas.
Para o desenrolar do trabalho, contou-se com a utilização de metodologia indutiva, combinada
com o método de procedimento monográfico e pesquisa em fontes indiretas. Ainda, relevante destacar
que, apesar da maior parte das vítimas serem menores de idade, optou-se por estruturar esse trabalho
a partir do recorte de vítimas maiores de idade, motivo ao qual reduziu-se quantitativamente o número
de reportagens aptas a contribuir com esta pesquisa.
Logo, o número de notícias foi reduzido em razão do escopo do estudo, porém registre-se que
quantitativamente foram registrados resultados consideráveis na cobertura midiática no período de
meses analisado, mas que aqui fogem a alçado do artigo. Ademais, os discursos midiáticos aqui são
apreciados enquanto fatores complementares dentro da sistemática processual penal que envolve o
tratamento das vítimas de crimes sexuais.
Deve-se atentar ao fato de que desde o ano de 2008 o país não atingia números tão alarmantes na
128 Bacharela em Direito pela Faculdade Meridional (IMED) – Passo Fundo. Integrante do Grupo de Pesquisa “Criminologia,
Violência e Sustentabilidade Social”, coordenado pelo prof. Dr. Felipe da Veiga Dias (IMED). Bolsista de Iniciação Científica
PROBIC-FAPERGS. Email: driane_morais@hotmail.com
129 Pós-doutor em Ciências Criminais pela PUC/RS. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado, Escola de Direito IMED. Coordenador do Grupo de
Pesquisa “Criminologia, Violência e Sustentabilidade Social”. E-mail: felipe.dias@imed.edu.br.
273
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
questão de registro de crimes sexuais. Segundo os dados divulgados pelo 13º Anuário, no ano de 2018
o Brasil registrou 66.041 estupros, em média 180 estupros por dia, além de que este montante repre-
senta um aumento de 4,1% em relação ao ano anterior (FÓRUM DE SEGURANÇA, 2019). Destas vítimas,
81,8% eram do sexo feminino, além de que 53,8% dos estupros ocorreram com crianças de até 13 anos,
preponderando também entre pessoas negras (50,09% eram negras) (FÓRUM DE SEGURANÇA, 2019).
Ainda, é necessário entender que os dados expostos pelos veículos oficiais acerca dos crimes
sexuais não representam os números reais de casos que de fato ocorrem. A primeira e única Pesquisa
Nacional de Vitimização, publicada no ano de 2013, estimou que apenas 7,5% dos crimes sexuais são
denunciados as autoridades competentes (BRASIL, 2013, p.13), ao passo que o Instituto de Pesquisa
Aplicada (IPEA), no ano de 2014, estimou uma média de 10% de notificações (IPEA, 2014, p. 26), ou
seja, os dados disponíveis em relação ao tema demonstram a complexidade da situação em que se
encontram as vítimas de crimes sexuais no Brasil.
Ao processo de subnotificação, seja por falta de interesse estatal ou por falta de investimento
em pesquisas para a coleta dessas informações, denomina-se cifra oculta da criminalidade. Significa
dizer que, “o delito registrado é uma mostra não representativa das delinquências” (CASTRO, 1983,
p.34). Isto porque as principais vítimas são crianças, o que dificulta a realização da denúncia deste
tipo penal, além do medo de exposição e represália social no que diz respeito às vítimas adultas.
Nota-se, com preocupação, que os últimos dados coletados pelo Ministério da Justiça em parceria
com outras entidades sejam do ano de 2013, e que desde o período mencionado os números de
crimes contra a liberdade e dignidade sexual não reduziram. Como anteriormente mencionado, o
último anuário publicado pelo Fórum de Segurança Brasileira constatou números significativos sobre
violência sexual, além do registro nacional de 4 estupros de meninas de até 13 anos por hora (FÓRUM
DE SEGURANÇA, 2019), o que demonstra a urgência no debate acerca da temática.
Somente no ano de 2019 foram propostos ao menos 7 projetos de lei130 na seara dos crimes
sexuais, sendo que todas as propostas relacionavam-se ao aumento de pena a estes crimes ou outras
medidas que visavam dificultar a progressão de pena do agressor, bem como manter de forma
constante seu monitoramento após o cumprimento de pena. Nenhuma das propostas contemplavam
medidas protetivas ou políticas públicas a fim de auxiliar as vítimas.
Sendo assim, é fundamental entender as etapas do processo de instrução criminal, partindo
desde a denúncia em sede de delegacia até a última audiência na qual a participação da vítima se faz
necessário, para se compreenda se este processo contribui para a sobrevitimização da mesma, além
de tornar claro qual é de fato o papel da vítima no processo criminal.
Até a vigência da Lei 13.718 de 2018 (BRASIL, 2018) os crimes sexuais procediam-se através de ação
pública condicionada a representação, contendo algumas exceções em relação ao tipo de ação, ou seja,
significa dizer que o Poder Público somente entraria em ação se a iniciativa de denúncia partisse da vítima.
Observar essa primeira etapa do processo é fundamental para entender onde começa o processo
de sobrevitimização imposto a vítima maior de idade, pois uma vez que se não se considerava relevante
o dano físico, sexual e emocional causado a esta (ao menos não para impulsionar automaticamente
os agentes estatais), sendo esperado que ela confirmasse seu repudio, dirigindo-se até uma delegacia
para dar início ao trâmite processual.
Importa ressaltar que embora parte do campo criminológico critico ainda utilize do termo
“revitimização” para tratar sobre os processos de violência ao qual a vítima é submetida (tanto no
decorrer do processo como após este), optou-se pelo uso da palavra “sobrevitimização”, visto que
além da violência institucional reproduzida pelo sistema, as mulheres ainda ficam sujeitas aos danos
sociais encobertos por uma sociedade sexista e por políticas públicas ineficientes131.
130 Projetos de Lei: I) 452/2019; II) 2.846/2019; III) 483/2019; IV) 1018/2019 V) 2930/2019 VI) 3133/2019 e VII) PL
4788/2019.
131 Salienta-se que a mera existência legislativa de assistência às vítimas de crimes sexuais não significa que esta tornem-se
eficazes ou que sequer seja efetivada pelos agentes estatais.
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Ainda, se esclarece que antes de adentrar na discussão proposta quem são os representantes
do sistema penal nestes casos, visto que o primeiro contato com esse sistema é a própria lei e as
instituições que cumprem estas regras, ou seja, polícia, promotor de justiça, sistema penitenciário e
outros (ANDRADE, 2012, p.132-133).
Neste contexto considera-se, para esta pesquisa, que a iniciativa tenha partido da vítima, uma
vez que a lei mencionada alterou a partir da data de sua publicação a necessidade de interesse
processual para dar início ao trâmite processual, ficando a critério do Ministério Público o poder
de decidir sobre a ação processual (ação penal pública incondicionada – art. 257, I, do Código de
Processo Penal) (BRASIL, 2018), mesmo sem o interesse da principal pessoa afetada, conforme dispõe
o artigo 225 do Código Penal brasileiro, regulada pela lei 13.718 de 2018 (BRASIL, 2018).
Por conseguinte, tratando-se de bases legislativas, deve-se destacar que a Lei 11.690 de 2008, em
seu artigo 201, §2º, garantiu as vítimas o direito de informação sobre a situação processual da qual é parte.
Sendo assim, apesar da redação disposta na Lei 12.845/2013, a qual garante as vítimas de violência sexual
amparo médico e psicológico, até o momento de conclusão deste trabalho, não há legislação especifica que
ampare estas pessoas na busca indenização em casos de omissão ou negligências do Estado. De fato, trami-
ta desde 2010 no Congresso brasileiro um projeto de lei que dispõe sobre o tema, o qual foi aprovado em
2017 na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher a proposta da PL 7441/10, mas que segue em votação.
Ao optar pela denúncia, a vítima é submetida a um exaustivo depoimento para que se relate o
ocorrido, no qual se vê obrigada a relembrar os momentos e detalhes do crime, a fim de auxiliar a
autoridade policial em proceder com a investigação. Ainda, acaba sendo requisitada para que proceda
ao exame pericial, através do Instituto Médico Legal, os quais atentam-se na busca de evidências
através de presença de esperma, ruptura do hímen e lesões corporais, entre outros (CRUZ, 2004,
p.187), ou seja, na submissão física da vítima para que se produza provas do crime.
É importante esclarecer que, embora compreenda-se a necessidade da produção de provas a
fim de que se proceda com a ação criminal de forma fundamentada, deve-se levar em consideração a
saúde mental e física da vítima, pois mesmo quando esta opta pela denúncia, deve ter sua integridade
física e psíquica preservada.
Nos casos em que ocorre a identificação do agressor, a vítima pode ser levada a prestar
reconhecimento deste, ainda no intuito de produzir provas para o andamento do processo penal.
Posteriormente, em sede de audiências, a vítima acaba sendo posta no papel de “testemunha” principal
e desta forma, exposta as dúvidas das partes presente no processo, acarretando novamente, em seu
bem-estar posto de lado em nome de uma necessidade absoluta de uma resposta jurisdicional.
No decorrer da ação penal, desde a denúncia em delegacia até ao final da audiência de instrução,
a vítima e sua saúde são deixadas de lado em detrimento da produção probatória e da garantia de
uma condenação criminal do ofensor. Nessas etapas, nota-se que o processo de sobrevitimização
ocorre de forma insensível, nos quais a vítima é utilizada como fonte probatória e não como parte
no processo, reduzindo-a a um instrumento pelo qual o Ministério Público alcançará seu objetivo de
condenar o réu, mesmo que as custas da parte ofendida na ação penal.
A transformação de um problema particular em uma questão coletiva (e consequentemente criminalizá
-lo), é um movimento arriscado, considerando que se expõe o conflito a um processo de duplicação de vio-
lência, já que o mesmo sistema que se compromete a resolve-lo também o amplifica (ANDRADE, 2003, p.86).
Portanto, o sistema é tão inabilitado estruturalmente quanto é ineficiente no cumprimento
de suas próprias funções de prevenção e de resolução e conflitos, a ponto de não ofertar o devido
amparo a vítima e fornecer enquanto única solução a punição ao infrator (ANDRADE, 2012, p.131).
Nota-se então que o papel atribuído a vítima no decorrer do processo é de objeto probatório, não
sendo prioridade do Judiciário ou sequer do Ministério Público a reparação ou auxílio para estas.
Em determinadas situações os meios de comunicação mantem seu foco em crimes sexuais, uma
vez que os mesmos são delitos pelos quais a sociedade costuma reagir com considerável indignação,
em especial os delitos nos quais crianças são as vítimas, despertando um interesse desmedido de se
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Quando a criminologia midiática instala uma vítima-herói, explora algumas de suas características
particulares, como o histrionismo e talvez traços histéricos, as reforça, oferecendo-lhe um cenário
gigantesco para seu desenvolvimento, mas sobretudo porque fica no momento de extroversão da
culpa, fortalecendo ao máximo essa fase, imobiliza a pessoa nela e lhe interrompe brutalmente o
cainho de elaboração do dolo, ou seja, de restabelecimento de seu equilíbrio emocional. A pessoa
redefine sua autopercepção como vítima e fica fixada nesse papel (ZAFFARONI, 2013, p. 210).
[...] a vítima não encontra maior espaço de proteção de seus interesses particulares, como sujeito
processual, pois ao Estado interessa precipuamente a apuração do fato sob a perspectiva criminal,
em cujo contexto aquela aparece como objeto de prova, dando seu ‘testemunho’ do crime ou
submetendo-se a exame de corpo de delito, conforme o caso; mas, de qualquer modo, não
recebendo adequadas informações sobre o andamento do processo e, muitas vezes, sequer sobre
seu resultado (BARROS, 2008, p.04).
Neste sentido, analisou-se três reportagens publicadas pela Rádio Planalto F.M, a fim de entender
estes discursos midiáticos em torno das vítimas de crimes sexuais. A primeira reportagem estudada
detinha como título “Homem agride companheira e a obriga a manter relações sexuais em Passo
Fundo” (RÁDIO PLANALTO, 2020a), o que evidência objetivamente a escolha do meio de comunicação
em não utilizar a palavra que define o tipo penal narrado: estupro.
Nota-se isso porque “notícias são o produto final de um processo complexo que começa com
uma classificação e seleção sistemática de eventos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias
socialmente construídas” (HALL, 1978, p.53, tradução nossa).
Relata a reportagem que os agentes policiais encontraram a vítima machucada próxima ao
agressor, a qual expos aos policiais que estava sendo agredida pois não queria ter relações sexuais
com o companheiro. Observa-se que em nenhum momento da reportagem a tipificação correta dos
fatos narrados é mencionada, limitando-se a destacar a prisão do indivíduo e o desejo da vítima em
representar criminalmente contra seu agressor (RÁDIO PLANALTO, 2020).
A segunda reportagem evidencia o discurso problemático de instrumentalização da vítima
como meio de fundamentar discursos punitivos. O título da matéria descreve que “Solto em razão
da pandemia, preso estupra e mata garota em MG” (PLANALTO, 2020b), limitando-se o conteúdo a
mencionar a vítima em apenas duas situações. Inicialmente a reportagem menciona que a moça foi
estuprada e morta por um detento, voltando a mencioná-la novamente apenas no intuito de explicar
que a jovem estava se deslocando entre o terminal de ônibus e sua casa no momento do ocorrido.
O teor da matéria concentrou-se em evidenciar que o acusado já havia respondido por crime
do mesmo tipo penal e que o apenado apenas havia sido solto em razão da atual crise pandêmica
que o mundo vive, visto que o mesmo é hipertenso e desta forma, faz parte do grupo de risco132. Ao
132 De acordo com a matéria, em razão da pandemia global causada pelo coronavírus (COVID-19), a recomendação do Con-
selho Nacional de Justiça é de liberar os detentos que não cometeram crimes graves e estão nos grupos de risco.
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final, a matéria transcreve uma entrevista realizada com um promotor de justiça, o qual expõe sua
indignação com a liberação do apenado, não sendo mencionada novamente a vítima.
A última reportagem, publicada no dia 09 de julho deste ano pela rádio mencionada, descreve
uma ocorrência de roubo com tentativa de estupro, na qual a vítima narra os fatos, relatando que
um dos envolvidos na ação rasgou sua calça a fim de abusá-la sexualmente, sendo impedido pelo
outro envolvido no roubo. De forma breve, a matéria não descreve detalhadamente a situação da
vítima durante a ação ou posteriormente, restringindo-se a uma simples síntese do ocorrido, no qual
a vítima ocupa uma posição secundária (PLANALTO, 2020b).
Posto isso, o retrato midiático utiliza a vítima como objeto de intervenção, igualmente ao
processo penal, porém realiza tal adoção enquanto constrói uma realidade ficcional (selecionando
fatos e formas de propagação das narrativas) (ROCHA, 2010, p. 52) sobre os crimes sexuais. Essa
afirmativa pode ser verificada no fato de que dois dos três casos localizados apresentam a situação
do ataque de sujeitos estranhos as vítimas, ou seja, a violência realizada fora do ambiente doméstico/
familiar, algo que destoa dos dados nacionais acerca dessas condutas.
Além desse espectro de construção, não há em nenhuma das passagens midiáticas o registro
ao recente esvaziamento das políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher. Essa
informação seria relevante ao público, a fim de compreender que o atual contexto de incremento de
violência contra a mulher se enquadra em um desprestígio político, com a retirada de investimentos
da área, algo já referendado por deputadas durante o ano de 2020 (BRASIL, 2020)133.
Ademais, seja o processo penal, seja o retrato midiático observado, ambos apenas mantêm em
continuidade o tratamento das mulheres vítimas de crimes sexuais, por vezes sendo uma atuação
combinada. Deste modo, a sobrevitimização pode ser vista como retrato de uma situação endêmica, a
qual é ocultada na sua falta de investimentos pela atual cobertura midiática e pelas sanções eventuais
aplicadas pelo sistema penal, enquanto em realidade nada alteram substancialmente sobre a realidade
de violência enfrentada pelas mulheres no país.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de estudar os processos de sobrevitimização para
que se possa compreender como o sistema penal trata as vítimas de crimes sexuais, além de observar
as retratações midiáticas destas mulheres.
No desenrolar da pesquisa notou-se que as fases do processo criminal ignoram a vulnerabilidade
em que a vítima se encontra, optando por buscar meios que assegurem a condenação do acusado. Nota-
se também que o processo de sobrevitimização está presente desde o momento em que a vítima opta
por proceder com a denúncia. Sobre isso, torna-se relevante mencionar de novo que os crimes sexuais
passaram a proceder por ação penal incondicionada, ou seja, basta o Ministério Público tomar conhecido
do fato (que detenha indícios de autoria e materialidade) para dar prosseguimento da ação penal.
Ignorar a vontade e o tempo da vítima de crimes sexuais de decidir sobre oficializar a denúncia
do crime aparenta ser um equívoco ao mesmo tempo que demonstra ser um estímulo ao processo de
sobrevitimização. Não há como afirmar que o Estado está promovendo “justiça” pela vítima quando o
processo para alcançar este fim desencadeia uma longa e dolorosa sequência de lembranças que são
também prejudiciais à saúde mental desta.
Portanto, a utilização da mulher no controle punitivo do sistema penal acarreta uma experiência
cultural vinculada a humilhação, a discriminação e na sua rotulação social (ANDRADE, 2012, p.132).
Posto isso, embora faça parte do discurso político-criminal usual a preocupação ou defesa de direitos
das vítimas, a realidade nacional demonstra um quadro de desprestígio pela proteção dessas mulheres
no caso dos crimes sexuais, fato este somado ao tratamento objetificante, tanto do sistema penal
quando do viés midiático. Assim, a vítima é reduzida a mero elemento probatório ou de propulsão
de discursos punitivos, sendo que acaba igualmente implicada na reafirmação do sofrimento advindo
133 Apenas a título elucidativo a redução no volume da pasta referente a secretaria de direitos da mulher entre 2015 e 2019
teve a queda de R$ 119 milhões para 5,3 milhões.
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Cristiane Westrup134
RESUMO: O artigo traz uma análise sobre o racismo compreendido como uma estrutura de poder, presente
nas estruturas sócio econômicas, cultural e política da sociedade. A operacionalidade seletiva do sistema
penal que recai sobre o indivíduo negro, o genocídio como uma política instrumentalizada pelo Estado,
praticado desde o período escravocrata. O Estado policial de exceção, compreendido sob os conceitos de
Necropolítica e Biopolítica. A metodologia utilizada é a bibliográfica, de abordagem qualitativa, a partir de
análise de documentos, como livros, teses, dissertações e artigos disponíveis via online.
INTRODUÇÃO
O artigo num primeiro momento traz uma análise sobre o racismo definido como uma estrutura
de poder instituído desde o período da escravidão que perdurou no Brasil por quase quatro séculos. O
racismo permanece nas estruturas socioeconômicas, cultural, política, na construção das subjetividades,
no imaginário coletivo de uma sociedade desigual e excludente. A raça não mais entendida como um
conceito biológico, mas definida como uma construção social determinaria uma hierarquia sócio-
racial, em que uma sociedade hegemônica branca permaneceria detentora do poder por meio da
marginalização e controle de uma população negra subalternizada. Num segundo momento aponta a
concepção da operacionalidade do Estado policial de exceção que atinge a população negra, sob os
conceitos de Necropolítica e Biopolítica.
134 Acadêmica da Graduação do Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Bolsista do PIBIC/UNESC.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: Núcleo de Estudos em Gênero e Raça - NEGRA (UNESC). E-mail: cristiane.wp79@gmail.com.
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A diáspora escravista constituiu-se numa geografia de morte, produzida por necropolíticas anti-
negro ultrapassando fronteiras obedecendo às hierarquias de cada Estado, estando todos coligados a
partir do genocídio cometido por todas as sociedades escravocratas (GÓES, 2016, p. 156).
A necropolítica segundo Achille Mbembe (2016, p. 125) não consiste em uma forma de soberania
que pugna pela autonomia do Estado, mas sim, uma soberania exprimida numa operacionalização
disseminada da vida humana, na destruição material de corpos e de populações configuradas tanto
pela instalação do estado de exceção quanto pelo estado de sítio.
A simbologia do poder punitivo colonial representou mais do que a morte pública. Outros
elementos como o pelourinho, o chicote, o tronco, as correntes, as senzalas foram práticas punitivas
associadas à escravidão e aos povos não europeus. A escravidão foi reestruturada e fundamentada
não a partir de condutas do escravizado, mas, por sua condição humana, ressignificando assim a pena
de morte, passando fazer parte do disciplinamento, vigilância, repartição de corpos, apropriação,
confinamento, a barbárie contra os povos colonizados (DUARTE, 2017, p. 155-156).
A atuação dos sistemas penais marginais é pautada nas relações sociais de poder que permeiam
a sociedade dominante e, na ação efetiva sobre os indivíduos que são seus destinatários. Neste
sentido, o racismo é o pressuposto para validar a existência de um sistema penal que tem o genocídio
como seu principal método de operacionalidade (FLAUZINA, 2006, p. 30).
A fundação do Estado brasileiro é marcada pela obediência e submissão na qual a sociedade
hegemônica restabelece o contrato social pela conciliação dos protegidos pelo instituto da cidadania
e o extermínio dos grupos que não se encontram amparados pela lei, representada pela exceção. O
cidadão brasileiro passa a existir no mesmo momento do não cidadão (D’ELIA FILHO, 2015, p. 232).
O controle social era exercido diretamente sobre as populações negras no período pós-abolição,
no início da primeira década do século XX, representado o maior número de pessoas presas. A cor da
pele era quesito determinante na aplicação da lei penal entre as condenações e absolvições (DUARTE,
2017, p. 196-197).
O racismo se encontra no cerne da história latino-americana, num contexto em que negros e
indígenas são considerados a causa do atraso da civilização. Essa civilização se compreende como
tal a partir do modelo eurocêntrico. Uma política de extermínio dos segmentos indesejáveis se torna
possível, cria-se uma cultura simbólica de resistência, não reconhecendo a existência desses grupos
legitimando o genocídio, prática adotada comumente pelo sistema penal (FLAUZINA, 2006, p. 32-33).
O Estado policial se institui quando o poder punitivo através do sistema penal pretende controlar
os excluídos, no entendimento de que existe um terrorismo de Estado contra os pobres, os imigrantes,
os jovens das periferias, o inimigo a ser combatido (ZAFFARONI, 2013, p. 157-159).
Ainda segundo o autor:
A técnica de controle dos excluídos responde a ideia de que os negros se matem entre eles, assim
não incomodam. Essa é a lógica não confessada do racismo de nossos dias. E ela é eficaz, porque
isso permite que inclusive entre os próprios excluídos tenha êxito a publicidade televisiva que os
erige em um eles inimigos da sociedade (ZAFFARONI, 2013, p. 159).
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[...] cria a realidade de um mundo de pessoas decentes, diante de uma massa de criminosos,
identificadas através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade,
por ser um conjunto de diferentes e maus. O eles da criminologia midiática incomodam, impedem
que se durma com portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por
todos os lados e, por isso, devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos,
sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para isso é necessário que a polícia nos
proteja de seus assédios perversos, sem nenhum obstáculo nem limite, porque nós somos limpos,
puros, imaculados (ZAFFARONI, 2013, p. 197).
O imaginário racista que retrata o negro como criminoso, validado pelo discurso midiático,
não se sustenta sem um sistema penal seletivo, a criminalização da pobreza e ideologia da guerra
às drogas, que contribuem para a perpetuação do estado policial de exceção e o genocídio contra a
população negra. Se para a sociedade o negro é lido como suspeito, aparece na mídia como suspeito,
pessoas negras também podem enxergar o negro como suspeito, como ocorre com policiais negros
que integram as instituições de controle e repressão exercidas pelo Estado (ALMEIDA, 2018, p. 52-53).
O sistema de justiça criminal se ancora em práticas apresentadas como civilizatórias, racionais e
burocráticas na instauração da verdade jurídica que torna possível um juízo de violência de acordo com o
Direito, na constituição dessa violência caracterizada a partir das decisões de agentes públicos pela defesa
da ordem jurídica. Neste sentido tem-se a evidencia da existência de uma política pública contribuindo
para os elevados indicadores de letalidade do sistema penal brasileiro (D’ELIA FILHO, 2015, p.23-24).
O uso legal da força pelo Estado através da polícia transforma-se de uma medida excepcional
para uma prática governamental demonstrando como se torna possível a ocorrência de massacres
com níveis de letalidade que superam os de uma guerra numa prática sistêmica consumada por
agentes do Estado (D’ELIA FILHO, 2015, p. 137).
O racismo tem dois preceitos vinculados ao poder do Estado, o primeiro se refere à distinção
biológica da espécie humana criando um conceito dualista em relação ao superior e o inferior, o bom
e o mau, indivíduos que devem viver e indivíduos que podem e devem morrer. A morte neste sentido
não é apenas a supressão da vida, é entendida como o perigo de morte, a morte política, a exclusão.
O segundo preceito é a aceitação de forma favorável a morte do considerado como “o outro” visto
como não humano e que deverá ser descartado (ALMEIDA, 2018, p. 87-89).
Uma chacina não é só uma chacina, não deveria ser. Chacina praticada pelo braço armado do
Estado é a falência total da política de segurança pública e dos valores republicanos, violação dos
direitos humanos. E o grosso da população dos bairros pobres e miseráveis o que faz? Repete [...]
o discurso de legitimação da morte ouvido nos programas sensacionalistas da TV-caça-bandidos.
Julgam que ao aliarem-se aos mais fortes, aos donos das armas, receberão proteção, por serem
trabalhadores e os outros, bandidos. Que nada. Ninguém, ninguém é cidadão! E o gosto do sangue
das vítimas só chegará à boca e aos olhos dos apoiadores das chacinas quando os tiros ceifarem a
vida dos meninos criados por suas famílias e pela comunidade [...]. Meninos que se transformarão
em corpos estendidos no chão (SILVA, 2016, p. 31-33).
A Constituição Federal em seu artigo 142 atribui às Forças Armadas a incumbência da garantia
da lei e da ordem, constituindo a militarização da segurança pública, não fazendo distinção entre as
forças incumbidas pela guerra (Exército) e a Polícia Militar responsável pela conservação da ordem
interna. As polícias Militares estão definidas pela Constituição como forças auxiliares do Exército,
o que distingue o país em relação a outros países democráticos que têm polícias militares, mas
que são regidas por outros Ministérios como o da Justiça ou da Defesa. Dessa forma no Brasil, as
ações militares executadas pelo Exército, se assemelham às ações de segurança pública atribuídas às
Polícias (D’ELIA FILHO, 2015, p. 249-250).
A garantia de direitos humanos e de cidadania são premissas basilares para uma política de
segurança pública, onde a polícia deveria ser orientada sob esses elementos, uma instituição que
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deveria promover a proteção dos cidadãos. O que temos é uma polícia treinada para a guerra, para o
combate e eliminação do inimigo (FREIXO, 2015, p. 11).
Essa prática policial não foi criada nas dependências da academia de polícia, mas, pensada e
aprimorada por intelectuais incumbidos de desenvolver em políticas públicas de segurança nacional,
pautados na ideia da necessidade de aplicação da lei de forma diferenciada aos cidadãos e aos
delinquentes, estes últimos definidos como não cidadãos. [...] a ideologia da repressão, da lei e da
ordem é disseminada na construção dos inimigos da sociedade e da democracia expostos ao poder
soberano que decide quem merece viver ou morrer (D’ELIA FILHO, 2015, p. 252-255).
A ocupação colonial do passado, na atualidade pode ser manifestada como um fenômeno da
dominação política, incluindo os poderes reguladores da Biopolítica e da Necropolítica, instituídos
dentro dos limites dos Estados como componentes das políticas de segurança pública. O inimigo a ser
eliminado será construído a partir das políticas de segurança do Estado, pelos meios de comunicação
em massa, onde o medo é difundido para justificar o monopólio da violência. O racismo banaliza a
prática da violência sobre a qual populações são subordinadas, é naturalizada a morte de crianças
pela força armada. Lugares periféricos, onde o saneamento a educação, a saúde entendidos como
necessidades primárias não chegam. Jovens negros são exterminados aos milhares todo ano, numa
guerra não declarada (ALMEIDA, 2018, p. 94).
A Biopolítica conforme os ensinamentos de Michel Foucault (1979, p.128-134):
O poder de soberania, o direito de causar a morte ou de deixar viver tão característico desse
poder, é agora substituído por um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função de seus
reclamos [...]. O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num
mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual
e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em que se pode reparti-las [...]. Pela
primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é
mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e
de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder. Se
pudéssemos chamar de ‘bio-história’ as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os
processos da história interferem entre si, deveríamos falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz
com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-
saber um agente de transformação da vida humana.
O biopoder opera sob uma separação entre indivíduos que devem viver e outros que devem morrer.
Essa divisão classifica os seres humanos em grupos que se subdividem estabelecendo um recorte biológico
entre estes. Essa é a definição que Foucault atribui para o racismo. Na lógica do biopoder, o racismo
funciona na disseminação da morte e torna possível o papel homicida do Estado (MBEMBE, 2016, p. 128).
A barbárie nacional não se explica apenas pelo esquizofrênico sistema de justiça criminal que
adotamos: instituições partidas com atribuições fragmentadas e dissonantes. Há muita cólera
latente; desafeição silenciosa que se manifesta em crueldade não apenas nas intervenções policiais,
mas no trânsito selvagem das ruas, avenidas e rodovias brasileiras, no campo, no interior dos
domicílios, nas escolas e nos estádios de futebol. Obra, quem sabe, da escravidão, herança de
uma ordem social baseada na divisão entre senhores e escravos. Apesar de todas as conquistas
recentes, ainda somos uma sociedade afetada pela desigualdade, na indiferença do olhar recusado
ao sofrimento do outro, que não conseguimos enxergar como de nossa mesma estatura. Há mais
de cem anos tentamos erguer uma república sobre essa mentalidade autoritária, presença que se
desvela tanto na invisibilidade dos considerados inferiores na hierarquia social – os destituídos
de autoridade e de poder – quanto no apego que temos à sujeição, como indissociável da ideia de
ordem. E por isso há muito ódio entre nós (PEREIRA, 2015, p. 41).
O poder de morte conferido ao soberano se revela como equivalente a um poder que se realiza
de forma benéfica sobre a vida, seja na sua valoração, reprodução, controle e normatização. As
guerras não se realizam em nome do soberano ou em sua defesa, mas são deflagradas em nome da
existência e sobrevivência de todos. A violência destrutiva de uns sobre outros pela ânsia de viver. O
princípio “poder matar para poder viver” uma estratégia de combates, foi convertido num princípio
ardiloso pelos Estados, pois a “existência” aqui não é mais entendida como jurídica dentro de um
conceito de soberania, mas a existência biológica de uma população (FOUCAULT, 1979, p. 129).
A soberania exprime a ocupação colonial, que coloca o colonizado entre a posição de sujeito
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e objeto. Neste contexto a soberania tem a capacidade de decisão sobre quem importa e quem não
importa; quem é considerado descartável ou quem não se enquadra nessa definição. A ocupação
colonial na contemporaneidade é uma correlação dos poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico.
O que lhe confere o domínio sobre os indivíduos do território ocupado (MBEMBE, 2016, p. 135-137).
A questão racial para Achille Mbembe (2016, p. 141-146), se o poder está sujeito a um controle
dos corpos, as novas armas e mecanismos de destruição querem incluí-los na ordem econômica
extrema que é traduzida no massacre. Os contornos atuais que dominam a vida ao poder da morte
(necropolítica) reformulam as conexões entre resistência, sacrifício e terror. A ideia de necropolítica
e necropoder ilustra as diversas formas pelas quais na atualidade, armas de fogo são utilizadas para
a destruição de indivíduos e na produção de universos de morte porque alguns corpos são matáveis.
Há muitas décadas, pelotões de policiais armados, em grande maioria jovens negros e pobres
são impelidos para dentro das periferias, onde se encontram outros jovens pobres e negros, numa
tentativa insana de acabar com uma guerra simbólica. A letalidade policial é inexplicável, sendo
legitimada no ideário da militarização da segurança pública e a reprodução coletiva da figura do
criminoso, construído como potencial inimigo a ser exterminado, produto de um autoritarismo
socialmente permitido (PEREIRA, 2015, p. 43).
Os índices de encarceramento em massa são potencializados pelas ações da polícia nas prisões
em flagrante derivadas da política da guerra às drogas pelo seu caráter proibicionista. Indivíduos
jovens que não estavam na posse de armas, nem eram participantes do crime organizado, não eram
violentos, superlotam as prisões, reflexo de um artifício que criminaliza a pobreza e mostra a face
do racismo institucionalizado. Após a Constituição de 1988, as instituições de segurança pública,
em especial as polícias não se adaptaram às novas normas legais, mantendo no âmbito destas o
modelo organizacional da ditadura. O novo modelo constitucional foi interpretado pelo autoritarismo
presente nessas instituições (SOARES, 2015, p. 29-31).
A guerra às drogas não representa uma guerra contra coisas, ou contra entorpecentes. Ela é
gerida contra as pessoas que compõe a hierarquia deste processo: os produtores, os comerciantes e
seus consumidores. Os atingidos no processo de criminalização dentre estes indivíduos, os inimigos
de fato dessa guerra são os pobres, os marginalizados, os negros, os despojados de poder, como
os que comercializam frações de droga nas favelas e são demonizados com a alcunha de traficantes
(KARAM, 2015, p. 36-37).
A Organização Mães de Maio, que foi fundada no ano de 2006, no Estado de São Paulo, por
uma mãe que perdeu seu filho, morto por ações da polícia, que culminaram como o registro de 505
mortes de civis em apenas 10 dias. A partir daí a organização vem dando voz a outras mães que
perderam seus filhos na mesma situação. Denuncia a letalidade do Estado sobre os corpos negros, o
descaso da mídia em noticiar os casos que viram somente estatísticas ou mais um registro de morte.
A invisibilização dessas mortes oculta a realidade periférica, permitindo que sejam invisibilizados e
suprimidos os direitos dessas populações (CAPRIGLIONE, 2015, p. 55-57).
A polícia é executora da violência institucionalizada pelo Estado, autorizada a eliminar jovens
negros e pobres, como também as minorias. Essas mortes ocorridas pela força policial não se classificam
como homicídios. Permanece a questão sem resposta, quando as famílias carecem justificar que seus
parentes assassinados não eram criminosos e se o fossem não deveriam ser mortos pela singela
conclusão que inexiste pena de morte amparada pela lei no Brasil. Se conclui a partir desse argumento
que pessoas negras não possuem direito à vida (SILVA, 2016, p. 35-39).
O debate sobre enfrentamento da violência policial deverá ultrapassar os muros da esfera acadêmica
e as instituições governamentais para alcançar o espaço em que a resistência diária da população que
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enfrenta essa violência vem acontecendo em termos práticos. A periferia, a favela, as prisões, os centros
de cumprimento de medidas socioeducativas resistem ao poder punitivo que assegura a opressão e a
exploração da população negra. Resistência assinalada por vivências e conhecimentos que não fazem
parte dos livros de história produzidos no Brasil, dos quais não estão impressos as histórias do povo
negro, indígena e periférico. O Movimento Independente Mães de Maio se mobiliza todos os dias na
luta contra o genocídio da população negra, pobre e periférica em âmbito nacional para nos esforços de
conter a violência do Estado policial e penal (SILVA; DARA, 2015, p. 83-85).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O racismo se institui através de práticas discursivas que são transportadas para a realidade por
atitudes individuais ou coletivas. O racismo integra a ordem social vigente, compondo essa estrutura
social, sendo reproduzido sistematicamente. O controle social exercido sobre as populações negras e
mestiças manteve-as na subalternidade atribuindo-lhes o rótulo de delinquentes, anormais, perigosos.
Neste sentido, buscou-se legitimar um direito penal igualitário que resguardasse os direitos dos cidadãos,
este admitia a desigualdade racial onde o direito penal seria aplicado de forma mais rigorosa e repressiva
às populações negras. Esse pensamento influencia a legislação penal até os dias atuais, presente nas
leis que são respaldadas pela igualdade formal, mas tem sua aplicabilidade diferenciada ou suprimida,
dando legitimidade à exceção, que é regra aos definidos com não cidadãos. Desse modo, as garantias dos
direitos humanos e de cidadania são violadas por uma política de segurança pública destinada a proteger
apenas uma parcela da população. A biopolítica e a necropolítica atuam com poderes reguladores que
fazem parte da estrutura das políticas públicas de segurança, na criação do inimigo, onde o medo atua
como uma justificativa para a manutenção e naturalização do monopólio da violência.
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Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo,
2015. p. 27-32.
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Celso Gabatz135
Rosângela Angelin136
RESUMO: A abordagem da pesquisa busca, por meio de um estudo hipotético dedutivo, evidenciar
como os discursos patriarcais hegemônicos repercutem e incidem na invisibilidade das mulheres no
decorrer da história, tanto na perspectiva da violência simbólica, das sexualidades e maternidade
compulsórias, bem como, nas questões relativas aos corpos. O objetivo é, pois, compreender,
mesmo que de forma bastante sintética, algumas questões pertinentes ao tema, sobretudo, em suas
implicações no âmbito das sociabilidades contemporâneas. O estudo evidencia a necessidade de
se ampliar o horizonte crítico e compreensivo sobre as lutas das mulheres nos espaços públicos e
privados e, ao mesmo tempo, se atentar mais às controvérsias com as possíveis articulações para
a supressão de certas liberdades individuais e coletivas alicerçadas pelas premissas patriarcais
hegemônicas e que interferem nos processos de socialização para uma convivência na perspectiva da
alteridade, equidade, diversidade, pluralidade e democracia.
INTRODUÇÃO
A expressão “nossos corpos nos pertencem” tem sido uma das bandeiras centrais dos movimentos
feministas nas últimas décadas. Ela expressa a vontade de autonomia das mulheres, de ter desejos
e exercê-los sem o controle dos homens, de sua família, do Estado ou das instituições religiosas.
Ela recobre o questionamento à imposição de padrões de beleza, de normas na perspectiva das
sexualidades e na reprodução. Aparentemente, a mudança de certos paradigmas e a maior presença
das mulheres na vida pública aliada aos avanços tecnológicos teria feito desta bandeira uma realidade.
Mas para quantas mulheres? E por quanto tempo? Qual a atualidade do debate em relação ao direito
das mulheres de decidirem sobre os seus corpos?
O que se tem visto nos últimos anos é que as pressões patriarcais, das instituições religiosas
e do Estado, se somam às ofertas e exigências do mercado. O mercado se apropria de elementos
da construção do gênero feminino, como sua identidade relacionada ao “outro”, num movimento
permanente de tentar agradá-lo. Entre os caminhos para esta realidade podem ser referenciados a
maternidade e a prostituição (JULIANO, 2006). Os meios de comunicação e a publicidade, em particular,
constroem o imaginário de uma mulher através de um corpo com padrões estéticos pré-estabelecidos
a partir de certas peculiaridades de “perfeição” (MUJICA, 2007).
Importa lembrar que a sociedade atual se consolida por meio de uma ideologia que cimenta
relações sociais de poder por conta de uma clara tendência à naturalização de tudo que envolve
a reprodução e a maternidade. Omitem-se, assim, os custos e o trabalho da reprodução que são
designados às mulheres. É tarefa quase impossível conhecer se o desejo de uma mulher de ser mãe
é uma vontade própria, ou se trata de satisfazer certas sociabilidades ou vontades da família, do
companheiro, ou ainda, de garantir que alguém cuidará dela na velhice. Estas e outras motivações
135 Pós-Doutorando e Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) da Faculdades EST, São
Leopoldo-RS. Doutor em Ciências Sociais (UNISINOS). Mestre em História (UPF). Pós-Graduado em Ciência da Religião e em
Docência no Ensino Superior. Graduado em Sociologia, Teologia e Filosofia. E-mail: gabatz12@hotmail.com
136 Pós-Doutora pela Faculdades EST (São Leopoldo-RS). Doutora em Direito (Osnabrück, Alemanha). Docente na Graduação
e no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões (URI), Campus Santo Ângelo/RS. E-mail: rosangelaangelin@yahoo.com.br
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têm a ver com as práticas sociais hegemônicas que a sociedade repercute. Para aqueles que creem
e buscam os caminhos da emancipação humana, é preciso salientar que se trata de uma jornada na
qual as mulheres expressam a sua responsabilidade consigo mesmas, com sua comunidade e com
as gerações futuras para que estas tenham condições e direitos para, de fato, decidir acerca de seu
protagonismo no mundo (MOUFFE, 1996).
Diante do exposto, esta abordagem pretende descortinar questões inerentes aos discursos patriar-
cais hegemônicos e alguns de seus desdobramentos para a invisibilidade das mulheres no decorrer da
história, a violência simbólica, sexualidade e maternidade compulsórias, questões relativas aos corpos e
os sacrifícios inerentes. A intenção é divisar, mesmo que de forma bastante sintética, algumas questões
pertinentes ao tema, sobretudo, em suas implicações no âmbito das sociabilidades contemporâneas.
Trata-se de observar como estas demandas vem colocando as mulheres no horizonte dos
debates públicos e, ao mesmo tempo, suscitando controvérsias com as possíveis articulações para
a supressão de certas liberdades individuais negligenciando, desta forma, processos de socialização
para uma convivência na perspectiva da alteridade, equidade, diversidade, pluralidade e democracia.
Assim, por meio de um estudo hipotético dedutivo, e atendendo as perspectivas acima expostas, o
trabalho aborda, inicialmente questões envolvendo o controle dos corpos das mulheres na história,
para então refletir sobre a sexualidade e os processos de dominação e opressão decorrentes. Por
último, não menos importante, o trabalho aborda questões sobre gênero, relações de poder e a
retórica hegemônica na contemporaneidade.
A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a
forma da lei ou a unidade global da dominação; estas são apenas [...], suas formas terminais.
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de
força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que,
através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais
correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário,
as defasagens e contradições que as isolam entre si. [...] O poder está em toda parte; não porque
englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares (1987a, p. 88-89).
Assim, depreende-se desta compreensão que o poder disciplinar é uma categoria de poder. A
origem deste poder disciplinar estaria associada às mudanças do cotidiano, a saber, as transformações
econômicas, jurídicas, religiosas, políticas e científicas, nos termos da formação de uma nova sociedade
que se anuncia com a Revolução Industrial e as mutações advindas. Importa, sobretudo, o fato de que os
indivíduos se sintam vigiados, mesmo quando não estejam ou não saibam (FOUCAULT, 1987b p. 166).
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Trata-se, assim, de um elemento que encontra estreita relação com as exigências econômicas e políticas
na perspectiva de tornar os indivíduos dóceis, úteis e eficazes, dentro de um modelo de produção vigente.
De forma peculiar, a partir da metade do século XVIII é que ocorre a ampliação de uma série de
novas complexidades sociais, oriundas dos processos de industrialização, urbanização e aumento
demográfico. Esta realidade suscitou a criação de mecanismos de controle, não somente dos corpos,
mas, também, das massas populacionais em larga escala. Levando em conta esta realidade, o filósofo
italiano, Giorgio Agamben, (2002, p. 11) refere que “o triunfo do capitalismo não teria sido possível [...]
sem o controle disciplinar [...] que criou para si, por assim dizer, através de uma série de tecnologias
apropriadas, os ‘corpos dóceis’ de que necessitava”.
Esta dimensão do poder está diretamente ligada a consolidação do processo de industrialização
e otimização das forças de trabalho e, em consequência, do aumento da produção e dos lucros. Frente
a um momento histórico desafiador, o controle das massas e as articulações para tornar os corpos
dóceis e disciplinados, para que estes pudessem ser eficientes ao modelo de produção vigente, se
impunha como estratégia indispensável.
A realidade, à época, descortinava-se em direção a um poder que não fosse apenas individualizante,
mas, massificante. Ou seja, um poder que se aplicasse às vidas dos indivíduos de forma ampla. Assim,
tem-se o que o autor denomina de biopolítica. Algo que pode ser entendido como a inserção da vida
natural nos mecanismos e nos cálculos do poder, envolvendo questões como fecundidade, natalidade,
longevidade, mortalidade. Um poder que consiste em fazer viver ou deixar morrer. Foucault pondera que,
Um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução,
a fecundidade de uma população [...]. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de
longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção
de problemas econômicos e políticos, constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os
primeiros alvos de controle da biopolítica [...]. O poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer
pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir
toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo
duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra
(FOUCAULT, 2000, p. 289).
Significa, portanto, compreender o poder a partir de sua capacidade de se instrumentalizar para orde-
nar a vida, pois, ao fazer uso da tecnologia e do saber, transforma a vida em seu próprio objeto. É o resul-
tado de uma inversão da dinâmica entre os poderes do Estado com o governo das populações estendido
às várias dimensões da vida humana. Giorgio Agamben (2002), por sua vez, acentua a questão do poder
dentro do paradigma do estado de exceção, que segundo ele, em nosso tempo, tende a se tornar regra.
O pano de fundo é que o corpo e o seu respectivo controle passa ser a principal referência para a
tomada de decisões políticas, havendo uma unidade imediata entre política e vida. Desta forma, vida e
morte deixam de ser compreendidos enquanto conceitos científicos e se tornam conceitos políticos que
adquirem significado através de certas decisões (AGAMBEN, 2002, p. 171) Cabe salientar, entrementes,
em um espectro compreensivo mais amplo, que é justamente com a era cristã que este controle é mais
efetivo e o corpo passa a ser desvalorizado e reprimido por meio de um sistema simbólico.
Ao fim de uma longa caminhada, ao preço de ásperas lutas ideológicas e de condicionamentos prá-
ticos, o sistema de controle corporal e sexual instala-se, portanto, a partir do século XII. Uma prática
minoritária estende-se à maioria dos homens e mulheres urbanos da Idade Média. E é a mulher que
irá pagar o tributo mais pesado por isso. Por muitos e muitos anos (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 52).
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esta submissão do feminino através de um enunciado no qual a mulher seria “um macho imperfeito”. A
construção da imagem feminina neste período tende a variar entre a “Eva pecadora”, que tem seu ápice no
Renascimento quando é transformada em feiticeira no século XIV e que perdura até o século XVII e a “Maria
redentora”, ou seja, a beleza profana diante da beleza sagrada (KRAMER; SPRENGER, 1991, p. 143-144).
Com o progressivo aperfeiçoamento e o crescimento de mecanismos de controle, dominação e
repressão do corpo e da sexualidade, notadamente, das mulheres, ocorre a afirmação de um saber.
Os corpos e as sexualidades passam a ser não somente recusados ou reprimidos, mas, também
transformados em objeto de estudo, intolerância coletiva e de intervenção médica e judiciária, com
elaborações teóricas, que resultam em concepções preconceituosas e discriminatórias, associando
características físicas das mulheres com o caráter moral dos indivíduos (AGACINSKI, 1999). É
neste período onde também se acentua a construção do feminino como um ser inferior, perigoso,
desconhecido, diabólico, semelhante a satã, cujo objetivo era inspirar o medo e, como consequência,
operar o domínio e a repressão de outros setores da sociedade.
Foi através dos discursos construídos neste período que se criou uma ciência do sexo, cujo
principal objetivo era controlá-lo e reprimi-lo através de técnicas para obter a sujeição dos corpos e o
controle das populações. O poder sobre a vida desenvolveu-se em duas formas principais; no corpo
como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças,
no crescimento paralelo de sua utilidade e na docilidade com a integração em sistemas de controle.
O segundo, no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do indivíduo como suporte dos
processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, a saúde, a duração da vida e a
longevidade (FOUCAULT, 1987a, p. 131).
No contexto de uma sociedade em acelerada transformação onde as relações sociais tornavam-
se mais complexas, foi preciso compreender o corpo e o sexo enquanto objetos de disciplina, de
regulamentação, de controle social e de disputa política no âmbito das relações de poder. Relações
construídas sob a ótica do masculino, com base na disciplina do corpo e na regulação e submissão
das sexualidades femininas (LAQUEUR, 2001). Convém frisar que no mundo ocidental, os mecanismos
de controle foram modificados para se adequar as novas realidades vigentes. Os corpos e as
sexualidades, a despeito das transformações históricas, continuam sendo objetos estratégicos para
a repressão, o controle e a domesticação das massas empobrecidas e das minorias sociais. No que
tange especificamente às mulheres, tal controle faz-se mais visível quando se fala em reprodução,
contracepção e, principalmente, do aborto e sua criminalização.
O controle e a dominação dos corpos e das sexualidades das mulheres foram significativos e
constantes a partir de certas imposições. O feminino foi encarado como um ser inferior, desempenhando
um papel secundário nas relações sociais. Os corpos e as sexualidades passaram a ser controlados,
reprimidos e, portanto, domesticados. Suas atribuições estavam ligadas aos espaços domésticos,
em grande medida, resumidos ao papel de cuidar do lar, dos filhos, do marido. Sua integração ou
inserção na sociedade ocorria através do casamento e da maternidade.
É o medo que explica a ação persecutória em todas as direções, conduzidas pelo poder político-
religioso, na maior parte dos países da Europa no começo da Idade Moderna. Foi preciso em
seguida chegar aos totalitarismos de direita e esquerda do século XX para reencontrar – em escala
bem maior! – obsessões comparáveis no escalão dos corpos dirigentes e inquisições de mesmo
tipo no nível dos perseguidos (DELUMEAU, 1989, p. 394).
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Para Rousseau a mulher não seria nem inferior, nem imperfeita, ao contrário, ela seria perfeita
para sua especificidade, dotada de características biológicas e morais condizentes com as funções
maternas e a vida doméstica, enquanto os homens seriam mais aptos à vida pública, ao trabalho
e às atividades intelectuais (NUNES, 2000, p. 38).
É com base neste entendimento que será legitimada a associação das mulheres com os afazeres
domésticos e a maternidade. Tal compreensão não estava na contramão dos ideais liberais da época. De
acordo com este entendimento, tanto o controle como a domesticação dos corpos e da sexualidade não
derivava de uma imposição social, mas daquilo que estaria na essência da própria natureza das mulheres
(STEARNS, 2012). O grande paradoxo suscitado pelo pensamento de Rousseau tem a ver com o fato de
que este considerava as mulheres, naturalmente, voltadas para a passividade e a subordinação, e, ao
mesmo tempo, expostas a um projeto pedagógico para o adestramento e domesticação do feminino.
A construção do feminino no contexto da modernidade foi estabelecida com base na seguinte
dicotomia: ou a mulher era associada à figura da maternidade e do matrimônio, à figura da “santa-
mãezinha”, ou à figura do “agente de satã” (DEL PRIORE, 1993). Este dualismo servia para separar
e distinguir as mulheres puras e saudáveis, das impuras e não saudáveis, libidinosas, vadias, cujo
objetivo último era o controle, a dominação e a repressão.
As mulheres, em muitos momentos, desafiaram meios para prover certa solidariedade umas com as
outras. Eram elas que dominavam as ervas medicinais e ajudavam na cura de doenças com sua sabedoria
popular. Algo que, entrementes, era condenado pela Igreja. Ajudavam-se e compartilhavam segredos, no
combate às enfermidades e nos males femininos. As doenças da “madre” (útero) eram um mistério para os
homens. Havia mulheres que preparavam tratamentos para a esterilidade, corrimentos, dores, sangramen-
tos, abortos e gestações indesejadas (SALLMANN, 2002). As mulheres acabaram por construir uma sociabi-
lidade e uma linguagem próprias, criando laços de solidariedade e amizade em um mundo dominado pelos
homens. Souberam unir-se em diversas situações, partilhando experiências, trocando conselhos, descobrin-
do segredos, e, quase sempre, arquitetando maneiras para melhor se relacionarem naquele contexto.
O historiador Ronaldo Vainfas (1986) destaca que a solidariedade tinha muitos limites, pois, o que
unia as mulheres era, na maioria das vezes, o desejo (e a necessidade) de serem amadas ou protegidas
pelos homens. Oprimidas, violadas, cerceadas em sua liberdade, agredidas, abandonadas, traídas,
presas a relacionamentos abusivos, mas, buscando formas de lutar e mudar a sua situação. Conforme
o enunciado de Michelle Perrot, o “homem habituou-se demais a impor o silêncio às mulheres, a
rebaixar suas conversas ao nível da tagarelice, para que elas não ousassem falar em sua presença”
(1992, p. 207). A mentalidade da mulher demonizada teve como fundamento o corpo e a sexualidade
feminina que representava um perigo para os homens e para o todo da sociedade (JULES, 1992). Tais
discursos antifeministas e misóginos afirmavam que as mulheres tinham uma visão cheia de veneno,
sem fé, sem lei, sem moderação, inconstantes, avarentas, feiticeiras, enganadoras, ambiciosas,
vingativas, fingidas, impetuosas, mentirosas.
Durante todo o século XIX, quando tentam fixar a mulher no casamento e na esfera doméstica,
os discursos médicos constroem uma dupla imagem feminina. De um lado, colocam a mulher
como um ser frágil, sensível e dependente, construindo um modelo de mulher passiva e
assexuada; por outro, verifica-se o surgimento de uma representação de mulher como portadora
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de uma organização física e moral facilmente degenerável, dotada de um ‘excesso’ sexual a ser
constantemente controlado. Nessa perspectiva, procura-se patologizar qualquer comportamento
feminino que não corresponda ao ideal de esposa e mãe, tratando-o como ‘antinatural’ e ‘anti
social’ (NUNES, 2000, p. 12).
Em resumo, o pensamento, historicamente construído, nas mais diferentes épocas, serviu aos
mecanismos de controle do corpo e da sexualidade das mulheres. Fundamentalmente, serviu para a
hierarquização entre os sexos nos mais distintos momentos, satisfazendo os interesses, ora da igreja,
ora dos seguimentos conservadores da sociedade, alcançando e criando um modelo de dominação e
controle das sexualidades, intrinsecamente ligado à ideia de procriação. Um saber capaz de dizer o
que era verdadeiro e o que era falso quando conectado ao sexo e à reprodução.
Por meio da naturalização dos gêneros, foi sendo construída socialmente a ideia de que haveria
uma divisão binária entre homens e mulheres, instituindo, desta maneira, uma relação de coerência
e continuidade entre o sexo biológico, o gênero, a prática sexual e o desejo. Produziu-se, portanto,
uma matriz heterossexual por meio de discursos que prescreviam a identificação biológica de cada
ser enquanto macho ou fêmea, homem ou mulher e, por extensão, com desejos e práticas sexuais
orientados para o sexo oposto. O que escaparia desta premissa firmada no binarismo foi sendo
descrito como abjeto e passou a ser excluído socialmente (BUTLER, 2003).
É importante perceber que ao longo do tempo foram sendo estabelecidos espaços sociais
diferenciados para homens e mulheres. Por isso, o conceito de gênero é fundamental para compreender
o caráter cultural das distinções. As discriminações de gênero foram assumido diferentes formas,
variando conforme os momentos históricos e os lugares, sendo, na maioria das vezes, justificadas
mediante a atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes para homens e mulheres
e também como justificativas para delimitar espaços de inserção. Dessa maneira, a categoria gênero
oferece possibilidades de análise sobre diferentes experiências que variam de acordo com as
classificações acerca do que possa ser feminino ou masculino. Gênero é uma categoria de análise e
também de transformação, permitindo ampliar uma compreensão firmada apenas em certo período.
De acordo com a pedagoga, Guacira Lopes Louro:
É preciso recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem
as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser
buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de
sua constituição social), mas, sim, nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos
recursos da sociedade, nas formas de representação (LOURO, 2003, p. 22).
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Para Bourdieu (2011), grupos sociais hegemônicos, de qualquer natureza, exercem e garantem
a reprodução de sua posição social e da coesão que mantém a sociedade através de um modo de
existir, empregando coerção aos grupos dominados, por processos ideológicos, físicos e econômicos,
a partir da economia das trocas simbólicas e das posições sociais de quem pode dar e quem precisa
receber, tanto em aspectos objetivos como nos subjetivos das relações sociais. Ao analisar a questão
de gênero na sociedade, Pierre Bourdieu (2011), retrata a dominação masculina que se consolida
enquanto diferença anatômica, também em relação aos órgãos sexuais, como justificativa para as
diferenças de gênero com aquilo que se entende como sendo parte de um caráter natural, e, portanto,
consolidado por uma leitura socialmente construída por homens dominantes. Ressalta-se o aspecto
mágico que essa forma naturalizada dá aos homens, até mesmo porque com base na obviedade
desenvolvem-se maneiras sistemáticas de comprovar a lógica da arbitrariedade, sem se questionar o
motivo pelo qual se detêm prestígio no campo simbólico.
Neste processo de economia dos bens simbólicos que produzem as crenças, as disputas por posições
de poder e das mensagens consideradas como “verdades” se constituem também as lutas por legitimidade
entre aqueles que desejam ser interlocutores de seus grupos, representantes das posições dominantes
frente aos dominados (BOURDIEU, 2014b). Trata-se- de um processo que é dinâmico nas relações que “se
fazem, se desfazem e se refazem na e pela interação entre as pessoas [...] tem a opacidade e a permanência
das coisas e escapam à influência da consciência e do poder individuais” (BOURDIEU, 2014b, p.193).
Questionar os padrões hegemônicos seria como questionar as condições sociais que permitem
e legitimam o domínio sobre os corpos e sobre os sexos, sendo importante o entendimento dos
fenômenos da vergonha (corporal e cultural) frente aos modelos de correção. Tem a ver também
com um campo de lutas políticas onde ocorrem disputas entre os dominantes pela apropriação
da “energia social acumulada” (BOURDIEU, 2014a, p. 25) em relação à instituição de verdades em
concorrência com a (im)possibilidade de experiências socialmente aceitas. Utilizando as prerrogativas
descritas acima é possível compreender que ao afirmar a defesa incondicional da família nuclear
tradicional e heterossexual, por exemplo, no fundo, o que se está respaldando é uma mensagem
que legitime certos representantes políticos frente a um determinado público que assimila certas
práticas e representações reguladoras tidas como “naturais”. De igual forma, trata-se ainda de afirmar
uma demarcação publica de uma posição contra antagonistas ou oponentes, fazendo prevalecer a
importância da repercussão midiática de disputas entre interpretações, em grande medida, religiosas
conservadoras, sobre a sexualidade e a luta dos movimentos sociais como das mulheres.
O meio de manifestação e de manutenção de uma pretensa “ordem” por meio de um discurso
dominante compulsório é estruturado e estruturante “por meio da imposição mascarada (logo, ignorada
como tal) de sistemas de classificação e de estruturas mentais objetivamente ajustadas às estruturas
sociais” (BOURDIEU, 2007, p. 13). Desta forma, o “paradoxo” aqui entabulado tem a ver com o fato de que
os dominados aceitam sua condição e a reproduzem, não apenas por não a questionar, mas, também,
por defender a sua lógica. Esta premissa tem a ver com aquilo que é enunciado por Paulo Freire, a saber,
quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor (FREIRE, 2004).
Apresentar-se como a guardião da moral é uma de suas estratégias para que os discursos hegemônicos
sejam recebidos e aceitos por muitas pessoas, inclusive pelas próprias mulheres. A civilização do controle
e do medo instaurada pelo Cristianismo, associada à repressão do prazer e à suspeita sobre o sexo é
inseparável da desvalorização simbólica e social (MIGUEL, 2016, p. 590-621). As diferenças biológicas,
constantemente invocadas, validam a atribuição das mulheres à esfera doméstica, reafirmando a legitimidade
de sua exclusão da esfera pública e reiterando sua inferioridade social e política (BURGGRAF, 2001).
É necessário defender a igualdade de gênero, mas não a partir de uma ideologia deturpada
disseminada por forças reacionárias. Primordial é a erradicação das iniquidades de gênero, que fazem uma
distinção binária entre masculino e feminino, relegando o feminino a um plano inferior, estabelecendo
papéis inflexíveis para o masculino e o feminino que apenas servem para reforçar as desigualdades,
muitas vezes originados no patriarcado ou em uma “ordem patriarcal de gênero” (SAFIOTTI, 2004, p.
136). Convém salientar ainda que nenhuma pessoa deveria ser compreendida como tábula rasa. Alguém
que somente reproduz aquilo que escuta. Na retórica da afirmação de dispositivos hegemônicos se
subestima a capacidade do outro pensar por conta própria e desenvolver o seu raciocínio autônomo a
partir das experiências vivenciadas em sua história e em seu cotidiano (BENTO, 2011, p. 549-559).
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os processos históricos nunca são homogêneos e nem lineares. Perceber a complexidade que
envolve a interlocução das sociabilidades não é tarefa fácil e nem simples. As conquistas e a afirmação
do protagonismo das mulheres sempre tiveram relação estreita com certas peculiaridades históricas
entranhadas no cotidiano das relações sociais. Ultrapassar os limites que foram sendo consolidados
ao longo dos tempos requer sabedoria, resiliência, discernimento e capacidade para romper as cadeias
que são continuamente exacerbadas e que (de) limitam as possibilidades das mulheres de se abrirem
para novas formas de pensar, sentir e ser no mundo.
As mulheres, a partir de sua percepção acerca da realidade, na qual se insere, do lugar que lhes foi
atribuído e das obrigações impostas, tem buscado reivindicar o seu lugar na perspectiva do reconhecimento
sobre o seu lugar no mundo para além de qualquer essencialismo hegemônico, hierárquico ou moral.
Trata-se de perceber, sobretudo, as necessidades conjunturais segundo um ideário de direitos que possa
permitir o pleno exercício da cidadania e de uma agenda de direitos na qual se afirme a luta contra muitas
bandeiras como as questões relativas à sexualidade, maternidade voluntária, violência doméstica, aliadas
às reivindicações culturais, políticas, religiosas e sociais, que permitam outra entendimento acerca dos
próprios corpos. É preciso refletir e acolher também, e de forma contínua, as dores e vicissitudes de modo
a entabular gestos de amparo e ressignificação em direção a libertação.
Por intermédio dos movimentos feministas, na sua complexidade e diversidade, e em conexão
com outros movimentos sociais, culturais, políticos e religiosos, as mulheres vêm afirmando o seu
direito a plena participação e o reconhecimento na história do mundo. Não raro, nesta trajetória,
acabaram por se descobrirem colonizadas e inferiorizadas de muitas maneiras. No entanto, souberam
abrir caminhos para pensar e repensar a suas próprias biografias, mesmo que mediante certas teorias
ou lógicas masculinas nas quais se percebiam ausentes. Diante das (des)venturas, das muitas lutas
pela dignidade, não há certezas de que as sementes plantadas haverão, necessariamente, de frutificar.
A vida das mulheres continua recomeçando sempre... e de novo!
REFERÊNCIAS
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Gabriel Maçalai137
Luciano Augusto de Oliveira Paz138
RESUMO: Tendo por objeto os movimentos sociais, este trabalho delimita-se a analisar o os seus
reflexos no campo político-jurídico e na construção da realidade social. Para tanto, questiona-se: qual
é o papel dos movimentos sociais na (re)construção dos sentidos das relações sociais? Essa indagação
revela o objetivo da pesquisa. Em uma linha geral de conclusões, a hipótese norteadora da resolução
da problemática é confirmada: com um debate multicultural/intercultural provocado pelos movimentos
sociais, que é no que consiste a sua influência político-jurídica, as instituições jurídico-politicas podem
reconhecer à diversidade. Metodologicamente, trata-se de investigação teórica, com tratamento
qualitativo de dados e fins explicativo-descritivos, com dados coletados por meio de investigação
bibliográfica e analisados e interpretados a partir de método de abordagem hipotético-dedutivo.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como tema o objeto dos movimentos sociais. A sua delimitação temática, por
sua vez, visa a analisar o objeto dos movimentos sociais e os seus reflexos nos campos político e
jurídico e a sua influência na construção da realidade social. Diante disso, questiona-se: qual é o papel
dos movimentos sociais na (re)construção dos sentidos das relações sociais?
Desse modo, estabelece-se como objetivo geral deste artigo o estudo do objeto dos movimentos so-
ciais e o seu papel na construção da realidade social. Para esse fim, porém, traçam-se objetivos específicos,
quais sejam: a) compreender os conceitos de sujeito, indivíduo e ator e sujeito coletivo; b) compreender a
influência dos movimentos sociais na política e no direito, quando buscam ressignificar os sentidos sociais.
A pesquisa se justifica porque a política, como espaço público equivalente à rua, é o locus de
reinvindicações e de demandas. Nesse locus, os sujeitos não aceitam apenas a condição de consumidores
do Direito apresentado pela política. Antes, querem que o Direito reconheça a diversidade de visões
de mundo existente, sem que seja uma visão ajustada entre alguns condicionante/determinante. Esse
contexto questiona: como os movimentos sociais defendem diferentes visões?
Quanto à metodologia adotada, relativamente à sua natureza, trata-se de pesquisa teórica detida
à revisão bibliográfico-doutrinária. Relativamente ao tratamento dos dados, este é qualitativo, visando
a explicar como os movimentos sociais transformam as relações sociais. Para análise e interpretação
dos dados, segue-se método hipotético-dedutivo, sustentando-se que, influindo na política e no
Direito, os movimentos sociais emancipam o indivíduo de condicionamentos/determinações.
Com isso, o artigo é divido em duas partes. A primeira, intitulada O Objeto dos Movimentos
Sociais sob a Ótica de Alain Touraine, busca compreender os conceitos de sujeito, indivíduo e ator e
a formação de sujeitos coletivos que atuam na sociedade. Já a segunda parte, por sua vez, intitulada
Os Movimentos Sociais e os seus Reflexos nos Campos Político e Jurídico: o movimento do Direito,
busca compreender os conceitos de habitus, campo político e campo jurídico e a atuação dos sujeitos
coletivos nesses campos.
137 Doutorando em Direito (URI), Mestre em Direito - Direitos Humanos (UNIJUÍ). Advogado, filósofo e teólogo. Professor
Coordenador dos Cursos de Pedagogia, Psicologia e Teologia da FAL. E-mail: gabriel.macalai@americalatina.edu.br.
138 Mestre em Direito pela URI, Campus de Santo Ângelo - RS, sendo bolsista PROSUC/CAPES. Especialista em Direito Pú-
blico pela EBRADI/UNA. Bacharel em Direito pela FEMA. Professor do Curso de Graduação em Direito da FACOL. Professor
do Estratégia Concursos. Advogado. E-mail: lucianoaugustopaz@gmail.com.
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Neste breve trabalho, quer-se analisar o objeto dos movimentos sociais sob a ótica de Alain
Touraine. Utiliza-se este autor em particular para abordar os movimentos sociais, tendo em vista a sua
contribuição à Sociologia em 50 anos de trabalho (GOHN, 2010). Com isso, neste primeiro momento,
quer-se analisar os conceitos estabelecidos por Touraine para compreender as figuras de sujeito, de
indivíduo e de ator (HAHN, 2015).
Para Touraine, o conceito de sujeito se estabelece em um processo de resistência. Historicamente,
na polis grega, o todo precedia a parte. Isto é, o todo, a totalidade social predominava sobre o
sujeito, determinando o sentido do que era cidadania. Já na Idade Moderna, na visão cartesiana, o
sujeito é reduzido à razão, ao conhecimento – “penso, logo existo”. Também na Idade Moderna, na
visão empirista, o sujeito é reduzido não ao ser pensante simplesmente, mas ao ser transformador
da realidade – Francis Bacon, David Hume. Na visão kantiana, apriorista ou criticista, não basta que
a razão pura ou a experiência pura, sendo uma inter-relação entre juízos universais e experiências
sensíveis que constrói a razão/conhecimento (HAHN, 2015, p. 6-7).
Em apertada síntese, têm-se, então, dois momentos: no primeiro, o todo precedia à parte, uma
razão externa determinava o sujeito; no segundo, uma razão interna, determina o sujeito. O segundo
momento rompe com o primeiro. No entender de Noli Bernardo Hahn, é com a razão interna que
se tem a descoberta do reconhecimento e que se tem a proclamação do sujeito. Nesse momento, o
sujeito aparece como um ser-no-mundo independente, à parte de totalidades sociais, como a polis,
como a política, como a religião (HAHN, 2015, p. 7).
No século XIX, mais uma vez é trazida ruptura à lógica externa aqui comentada. No período,
percebeu-se que a aplicação das ideias liberais fez com que fosse sujeito o detentor dos meios de
produção e a condição de sujeito ligou-se ao conceito de propriedade. Com isso, Marx afirma que a
luta de classes é uma força de transformação histórico-social, rompe igualmente com a razão externa.
Na ocasião, assenta-se uma razão coletiva, um sujeito coletivo, o proletariado, resistente à lógica de
que uma razão externa – a propriedade – determina quem é sujeito ou não (HAHN, 2015).
No mesmo sentido, a partir do século XVIII, as reflexões feministas contribuíram/contribuem para
esclarecer que o sujeito, o ser-no-mundo universal era/é masculino, branco, heterossexual e proprietário.
Isto é, uma parte, feminina, negra, homossexual, proletária, não era/é sujeito. A lógica da razão externa,
totalizante, condicionava/condiciona o ser sujeito. Em um processo de resistência, as críticas/reflexões fe-
ministas reconhecem o sujeito como à parte da todo, da totalização social, da lógica externa (HAHN, 2015).
Já no século XX, quando se torna possível uma reflexão que entende que, para afirmar o sujeito,
é necessário resistir à lógica da razão externa, rompendo com esta, Hahn indica que se experimenta
a condução de uma mão invisível. Isto é, referindo-se a Adam Smith, o autor lembra que surge um
contexto em que o mercado pode escolher, decidir, impor. Com isso, no século XXI o ser humano
moderno/pós-moderno indaga: “[...] quem escolhe? A razão individual ou o mercado? Uma razão
individual ou coletiva? ‘Eu’ ou ‘outro’?” (HAHN, 2015, p. 8).
Essa apertada historicização demonstra, em Touraine, que o sujeito é construído em um processo
de resistência às razões sociais totalizantes que tentam lhe condicionar/determinar. A construção se
dá no entorno da defesa dos direitos do homem – em específico, sob os ideais da Revolução Francesa
–, bem como no entorno da afirmação da personalidade. Para o autor
Isso fez com que categorias como classe, estratificação social, sistema, atores sociais, categorias
sociais fossem deixando lugar para categorias e temas como cultura, personalidade, vida privada,
relações entre mulheres e homens, religiosidade não institucionalizada, vida sexual, vida familiar,
liberalização de costumes, homossexualidade, imigrantes, minorias, estima de si, fio condutor
da vida individual e coletiva. A passagem temática mostra que não são mais os papéis e relações
sociais o centro da sua reflexão e, sim, a afirmação da vida pessoal. Tal passagem evidencia que se
está num contexto de mudanças culturais e não mais, somente, num contexto de transformações
sociais. (HAHN, 2015, p. 9).
Diante disso, Touraine deixa claro que as suas compreensões sobre razão e modernidade não
se reduzem à expressão modernidade racionalista ou à racionalidade instrumental. O autor prefere
observar o que chama de metade escondida da modernidade, que, para ele, é a “[...] emergência
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do sujeito humano como liberdade e como criação [...]” (TOURAINE apud HAHN, 2015, p. 10). E,
por isso, sujeito é vazio, é sem conteúdo social. Ou seja, o sujeito é constituído sem ser definido/
determinado pelo conteúdo social – justamente por resistir às suas definições/determinações. Desse
modo, Hahn aduz que sujeito é desejo, luta, busca, força, resistência – resistência à razão externa, às
determinações totalizantes da sociedade (HAHN, 2015).
É somente nesse ponto, depois de ter-se estabelecido quem é o sujeito, que se pode falar quem é
ator e quem é indivíduo. Se o sujeito é desejo, é vazio social, como mencionado; ator, ao contrário, não
é vazio social. Para Touraine, sujeito é o desejo de ser ator. Isto é, trata-se do desejo de assumir uma
afirmação, de afirmar-se perante a sociedade, de construir-se, de escrever a sua história, no contato
interpessoal – e perante si mesmo, ao permitir reconstruir-se no contato intrapessoal (HAHN, 2015).
Já ator é “[...] aquele que modifica o meio ambiente material e sobretudo social no qual está
colocado, modificando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as
orientações culturais [...]” (TOURAINE apud HAHN, 2015, p. 13). O indivíduo, por sua vez, “[...] não é
senão a unidade particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiência e a consciência
[...]” (TOURAINE apud HAHN, 2015, p. 13). Retomando os conceitos anteriores, o sujeito é desejo.
Trata-se do desejo do indivíduo de ser ator, de ter a sua personalidade afirmada (HAHN, 2015).
Compreendidas as figuras de sujeito, de indivíduo e de ator em Touraine é que se pode
compreender o que são os movimentos sociais. Para tanto, Touraine estabelece um modelo teórico
chamado de ciência da ação social ou sociologia da ação, também chamada de acionalismo. Por
meio desse modelo teórico, a vida social é percebida como uma luta permanente pelo controle das
capacidades de transformação da sociedade (GOHN, 2010).
Desse modo, Touraine nega que a sociedade seja dominada por macroestruturas, como leis
naturais. Antes, para o autor, a realidade social é uma construção resultante das atuações dos sujeitos
na sociedade com as suas culturas, com os seus pertencimentos e com a sua historicidade. Assim,
o modelo teórico de Touraine leva em consideração a ideia de conflitos sociais ocasionados por
diferentes direitos culturais, valores morais e categorias de pertencimento (etnia, raça, religião,
territorialidade e grupos etários) construtores da realidade (GOHN, 2010).
Nesse ponto, Touraine assinala que a ideia de sujeito liga-se à ideia de movimento social. O autor
sustenta que sujeito é vontade/desejo139 de emancipação do indivíduo e, do mesmo modo, não há
movimento social sem vontade/desejo de emancipação do indivíduo. No entanto, sendo o sujeito
vontade/desejo, não se trata apenas uma experiência imediata em si, isto é, um indivíduo ensimesmado.
Para que a ideia de sujeito e de movimento social possibilite uma ação em direção à emancipação,
o sujeito deve ser compreendido como membro de uma classe, etnia, parte de um gênero, de uma
nacionalidade, de uma religião, culto ou crença, etc. É dizer: o sujeito deve ser coletivo (GOHN, 2010).
Afinal, Touraine analisa o sujeito como agente dinâmico, produtor de reivindicações e de
demandas e não como simples representante de papel que lhe seja atribuído.140 Desse modo, o ator
social tem a possibilidade de dar sentido às suas condutas, mesmo quando em oposição ao sentido
dado pela sociedade.141 Para tanto, o ator social deve levar em consideração as suas ligações, os
seus pontos em comum com diferentes indivíduos. Por isso, para Touraine, o movimento social é
considerado como a ação de um grupo, de um ator coletivo que, por meio de um movimento social,
faz reinvindicações e opõe a um grupo adversário (GOHN, 2010).
Nesse contexto, o objeto dos movimentos sociais, sob a ótica de Touraine, é possibilitar a
superação de contradições, abolindo relações de dominação, fazendo triunfar um princípio de
igualdade, por meio de sujeitos coletivos, como o de classe ou o político. Para o autor, é por meio de
sujeitos coletivos que se pode reagir contra dominações intoleráveis, construções da realidade que
não respeitam diferentes direitos culturais, valores morais e categorias de pertencimento (GOHN,
2010). Impende, a partir daí, examinar os reflexos dos movimentos sociais nos campos político e
jurídico e a sua influência na construção da realidade social.
139 Aqui é traçado o paralelo vontade/desejo. A primeira expressão é utilizada por Maria da Glória Gohn (GOHN, 2010)
e a segunda por Noli Bernardo Hahn (HAHN, 2015). Ambas as expressões têm a mesma conotação e o paralelo traçado é
feito apenas para encadear significados.
140 Ao representante de um papel social pré-determinado Touraine dá o nome de sujeito histórico (GOHN, 2010).
141 À possibilidade de o ator social dar sentido às suas próprias condutas, ainda que em oposição aos sentidos já estabe-
lecidos pela sociedade – ou pela totalidade social, ou razão externa –, Touraine dá o nome de Projeto (GOHN, 2010).
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Para examinar os reflexos dos movimentos sociais nos campos político e jurídico e a sua influência
na construção da realidade social, nesse ponto do trabalho, expõem-se os conceitos estabelecidos
por Pierre Bourdieu para compreender as figuras de habitus, campo, campo político e campo jurídico.
A essa base de conceituação sociológica, conjugam-se os conceitos de Touraine. Assim, viabiliza-
se uma análise da construção da realidade social que leva em consideração os movimentos sociais
contemporâneos, aproximando a narrativa teórica de uma narrativa prática.
Em Bourdieu, a noção de habitus, desprezando a ideia de um espírito universal e de uma natureza ou
razão humanas, remonta à ideia de conhecimento adquirido. Este é apontado como um bem ou um capital
adquirido possuído pelo indivíduo. Com esse capital em mãos, o indivíduo é tornado em um agente142 apto
à ação. Em outras palavras, o habitus é apontado como um conjunto de disposições adquiridas, produto
de condicionamentos ao indivíduo, o qual tende a reproduzi-los. Isso possibilita que um comportamento
seja naturalizado, convencionado como sendo o único possível (DA ROCHA, 2008).143
A noção de campo, por sua vez, alinha-se a uma ideia de disputa entre agentes. Para Bourdieu,
para ser definido, o campo precisa de objetos a ser disputados e de agentes interessados a disputa-
los. É a estrutura interna de cada campo (político ou jurídico, por exemplo) que estabelece os objetos
de disputa entre os agentes, tendo em vista os seus padrões de pensamento e de formação, isto é, o
seu habitus (DA ROCHA, 2008).
Por essa ocasião, a noção de campo se faz indissociável da noção de habitus. É que a estrutura
do campo, segundo Bourdieu, é um estado dinâmico entre agentes, que visam à manutenção do
campo com o equilíbrio de seus interesses. Afinal, é o êxito de uma estratégia ou ação empreendida
no campo que determina a distribuição de capital, ditando qual o habitus que será conservado, em
uma clara relação de força que visa a monopolizar o capital (DA ROCHA, 2008).
Desse modo, em Bourdieu, o habitus aparece como um conjunto de referências externas ao
agente – que eventualmente as reproduz –, ditadas por um campo (político ou jurídico, por exemplo)
(DA ROCHA, 2008). Aproximando essa leitura de Touraine, retoma-se a ideia de que, embora
macroestruturas, como leis naturais, sejam negadas, a realidade é uma construção social resultante
das atuações dos sujeitos na sociedade com as suas culturas, com os seus pertencimentos e com a
sua historicidade (GOHN, 2010) ou ainda com os seus padrões de pensamento e de formação.144
Essa inter-relação é feita porque, em Touraine, o sujeito é afirmado agente dinâmico, produtor
de reinvindicações e de demandas que dá sentido às suas condutas, ainda que em oposição ao
sentido dado pela sociedade (GOHN, 2010). Quando a sociedade apresenta um campo em que
agentes disputam para conservarem os seus habitus (DA ROCHA, 2008), é em contraposição à ideia
de conservação de um habitus – ou em justaposição à ideia de criação de um novo habitus – que
surgem os movimentos sociais, para emancipação do indivíduo. É que a ideia de conservação indica
de razões sociais totalizantes, as quais visam a condicionar/determinar o sujeito. E o que querem os
movimentos sociais é possibilitar a abolição das relações de dominação (GOHN, 2010).
A partir do estabelecimento dessa inter-relação é que se buscam os sentidos de campo político
e de campo jurídico, partindo-se, então, a uma aproximação da narrativa teórica à narrativa prática.
Afinal, o campo jurídico é apontado por Bourdieu como
[...] o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição
(nomos) ou a boa ordem, no qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo
tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de
maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima,
justa, do mundo social. (BOURDIEU apud DA ROCHA, 2008, p. 20).
142 Agente aqui é compreendido como o indivíduo – na própria acepção da expressão, sem, nessa ocasião, referir-se à
conceitualização de Touraine – inserido em um corpo socializado, capaz de adotar uma postura social (DA ROCHA, 2008),
143 Resumidamente, Maria da Graça Jacintho Setton afirma: “Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as características
de uma identidade social, de uma experiência biográfica [...] para designar então características do corpo e da alma adqui-
ridas em um processo de aprendizagem.” (SETTON, 2002, p. 61).
144 Embora Touraine difira sujeito, indivíduo e ator (HAHN, 2015) e Bourdieu trabalhe a ideia de agente (DA ROCHA, 2008),
tanto para um autor quanto para o outro, tem-se a ideia de alguém que participa de processos de disputa para poder afirmar
a sua personalidade.
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Essa compreensão, para Bourdieu, faz surgir uma ilusão, com o que o Direito é percebido como
absolutamente autônomo a pressões externas. É que, em que pese a interpretação das leis possa
ser objeto de disputa, uma vez que na concorrência pelo monopólio de dizer o Direito diferentes
interpretações possam conflitar, o que há, segundo o autor, é um arranjo de manutenção do campo, por
meio do qual posições divergentes reduzem-se a uma referência comum, a visão de mundo dominante
na sociedade, a qual é absorvida pelas lógicas sociais, ou seja, naturalizada (DA ROCHA, 2008).
No entanto, as leis são apresentadas pelos agentes do campo político. Para Bourdieu, o campo
político é compreendido como um campo de lutas em que se visa a transformação de relações sociais,
como “[...] o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos,
produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos [...]”
(BOURDIEU apud DA ROCHA, 2008, p. 23). Ao contrário do campo jurídico, o campo político não
mantém uma ideia de autonomia. Desse modo, depende de um processo de legitimação externa,
como o processo eleitoral, ao qual se submetem os parlamentares (DA ROCHA, 2008).
Quando Bourdieu refere-se ao campo político como um campo de lutas em que se visa a transformação
relações, o autor está falando do processo democrático-legislativo, em que o Direito é apresentado. Mais
que isso, Bourdieu refere-se ao processo democrático-legislativo representativo. A estrutura do campo
político baseia-se na relação entre mandantes (parlamentares) e mandatários (eleitores) e a relação entre
estes últimos e as suas organizações, tendo em vista a sua distância dos instrumentos de produção
política. Isso faz com que o autor considere a vida política baseada na lógica da oferta e da procura. Nesta,
os eleitores são reduzidos a consumidores da produção política parlamentar, sendo mais consumidores
quanto mais distantes do lugar de dita produção (DA ROCHA, 2008).
É aqui que entra o objeto dos movimentos sociais, que é a abolição das relações de dominação.
Nos movimentos sociais são encontradas as relações entre os mandatários/eleitores do campo
político com as suas organizações, visando a aproxima-los do campo político. Para abolir relações de
dominação, não basta ser consumidor da produção política. São os movimentos sociais que atuam
no campo político para transformar relações de força, apresentando o Direito ou um novo Direito de
modo que não se trate apenas de uma referência comum ou visão de mundo dominante absorvida
e naturalizada, isto é, tornada em razão externa ao sujeito, para condiciona-lo, para conversar com
Touraine. São os movimentos sociais que, no campo político, permitem uma postura reflexiva145 que
decide conservar ou mudar o habitus, para conversar com Bourdieu.
Estabelecidos os marcos teóricos considerados fundamentais para a compreensão de como os
movimentos sociais movem o Direito, parte-se, então, a uma narrativa prática. Afinal, o que se quer,
neste trabalho, ao falar-se em movimentos, é compreender o seu objeto, o seu papel na construção
da realidade. Nesse sentido, encontra-se em Touraine o desenvolvimento dos movimentos sociais ao
longo do tempo. Para o autor, na década de 1960, os movimentos sociais traduziam-se como uma luta
de classes em uma sociedade industrial (GOHN, 2010).
No entanto, a partir das décadas seguintes, os movimentos sociais aparecem como lutas de
classe por produções culturais. Segundo Touraine, nas décadas de 1970 a 1990 os movimentos
sociais aparecem como um sistema de forças que busca a sua própria direção cultural. Para o autor,
movimentos sociais formam atores sociais, cujas ações coletivas conferem orientações culturais à
sociedade. Afinal, as crises contemporâneas têm a ver com diferenças socioculturais e crises de valores,
dificuldades de integração dos indivíduos na sociedade, defesa de direitos culturais e resistências às
diferenças, choques e conflitos de concepções, etc. (GOHN, 2010).
Ilse Scherer-Warren, ao falar sobre os movimentos sociais no Brasil na década de 1990, explica
que, a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-
92), é estimulado o diálogo entre os movimentos sociais e entre estes e o Estado. A Conferência,
anota a autora, teve participação de movimentos sociais de ambientalistas, urbanos e rurais, do
sindicalismo e ligados à cultura, à religião. O que se desenhava era uma identidade comum por
direitos de cidadania, bem como por reconhecimento de diversidades e de identidades específicas.
145 Setton compreende que, em um cenário em que se encontram diversas referências, o indivíduo pode ver-se impelido a tra-
çar as suas próprias diretrizes. Para a autora, “A coexistência de distintas instâncias de socialização, com projetos múltiplos e
uma maior circularidade de valores e referências identitárias [...] [possibilita] [...] a construção de um habitus, de um novo sujei-
to social, agora não apenas influenciado e determinado por instâncias tradicionais da socialização [...] (SETTON, 2002, p. 67).
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, compreende-se que o sujeito é desejo do indivíduo de ser ator, de ter a sua
personalidade afirmada. A construção do sujeito, no entanto, só se dá em um processo de resistência
às razões sociais que tentam lhe condicionar/determinar. Se se quer falar em movimentos sociais,
precisa-se falar em sujeito.
É que, tanto o movimento social como o sujeito são vontade/desejo de emancipação do indivíduo
de condicionamentos/determinações. No entanto, é só no movimento social que se percebe o ator
social como a soma de diferentes indivíduos com visões em comum do mundo. Assim, movimento
social é sempre um sujeito coletivo.
Esse sujeito coletivo, tornado ator social, ganha corpo e força para atuar no campo político. É
no campo político que diferentes habitus ou razões sociais, isto é, visões de mundo, são debatidas,
positivando o Direito. Quando o sujeito coletivo entra em campo político, articula-se para que
diferentes habitus sejam reconhecidos e o Direito então apresentado pela política não se resuma a
uma visão de mundo dominante e dominadora.
Desse modo, o papel dos movimentos sociais na sociedade contemporânea é apontado como
sendo o de (re)construção dos sentidos das relações sociais. Nesse papel, o sujeito coletivo nega a
possibilidade de ser apenas um consumidor do Direito produzido pela política. Nega, assim, o Direito
como uma redução dos modos de ver o mundo. Antes, o sujeito coletivo pretende participar da
construção da realidade, por meio de uma postura reflexiva, pela qual habitus então conservados são
confrontados e redesenhados.
Nesse sentido, a hipótese defendida é afirmada: os movimentos sociais emancipam o indivíduo
de condicionamentos/determinações – ou, no mínimo, possibilitam a isso, quando visam à abolição
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Acesso em: 15 fev. 2018.
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RESUMO: O presente artigo contempla parte de uma pesquisa realizada com mulheres gestantes em
uma cidade do sul do Brasil, mais especificamente em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do Sistema
Único de Saúde (SUS). As participantes são mulheres que estavam realizando consultas de pré-natal,
independentemente das semanas de gestação. O objetivo foi analisar e desnudar os dispositivos
biopolíticos, por meio de técnicas e discursos biomédicos que são acionados sobre os corpos
femininos, além de trazer à tona a fala dessas mulheres de modo a perceber as suas subjetividades.
INTRODUÇÃO
O presente artigo contempla parte de uma pesquisa realizada com mulheres gestantes em uma
Unidade Básica de Saúde (UBS), em uma cidade no sul do Brasil. A referida UBS possui assistência
voltada, majoritariamente, para mulheres grávidas e crianças (saúde materno-infantil), é cem por cento
pública, e atende a todos por meio do maior plano de saúde do país, o Sistema Único de Saúde (SUS).
O modelo de assistência pré-natal é tema de crescente estudo na área das ciências da saúde
e em relação à criação a manutenção dos dispositivos sanitários que envolvem esse universo no
contexto brasileiro, no âmbito do SUS.
Para entender a gestação como fenômeno da vida, adota-se um enfoque biopolítico baseado no
pensamento de Michel Foucault (2008), que entende a biopolítica a partir de um duplo movimento:
sendo ela tanto a apreensão da vida pela política quanto o avanço da concepção da vida enquanto
resistência à forma pela qual o Estado se encarrega do controle da população.
Nesta perspectiva, o poder não se localiza em um único ponto, nem se polariza segundo uma única
forma de tensão social. Sobretudo, o poder é absolutamente relacional e presente em toda a espessura do
corpo social, atravessando indistintamente Estado e sociedade civil. As relações de poder se configuram
em uma rede de micropoderes, que não atingem uma configuração definitiva (FOUCAULT, 2008).
A reflexão de Foucault enfatiza essa trama de poderes que se exercem entre os corpos, na forma
como eles são investidos politicamente. A partir dessa relação estreita entre política e corpo, pode-se
entender a importância do papel que a medicina vai passar a exercer na determinação das formas e
das normas pelas quais o corpo humano politizado será constituído (NETO, 2010).
A constituição do saber médico e o processo de medicalização da sociedade produziu o binarismo
sexual baseado na genitália e nas capacidades reprodutivas (ROHDEN, 2009). Nesse cenário, o gênero
feminino é produzido como verdade pela incontestabilidade da ciência; é inexoravelmente natural,
sendo essa natureza incontrolável, que precisa dos procedimentos médicos para ser domesticada no
espaço estreito de uma normalidade reprodutora (VIEIRA, 2002; ROHDEN, 2009).
Martins (2004) investiga o processo de dominação a partir do qual, desde os séculos XVI e
XVII, a figura masculina tem se utilizado na ciência para demarcar a supremacia do homem sobre
a natureza, tendo como subsídio os processos dicotômicos e segregadores como natureza/cultura,
emoção/razão, corpo/mente, particular/universal, etc. Desse modo, a partir do estudo dos corpos
estabeleceu-se um conjunto de “diferenças” encontradas no sexo feminino e que contribuiu para a
produção da objetificação do corpo da mulher.
Michel Foucault desnuda o processo que conduz à politização do corpo da população por meio
da medicina. Seu objetivo é demonstrar que “a medicina moderna é uma medicina social que tem por
background uma certa tecnologia do corpo social”, ou seja, que a medicina “é uma prática social que
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Na obra de Alfonsina Faya Robles (2015b), a autora faz alusão à categoria “risco” na
contemporaneidade brasileira e à sua expansividade nos estratos sociais como forma de categorização
e gestão da vida e da saúde. A autora refere que essa categoria opera em dois níveis biopolíticos, quais
sejam: a) vigilância epidemiológica das populações; b) nível micro de prescrição de comportamentos, as
quais atuam como ferramentas de autotransformação moral em detrimento das doenças e deficiências.
A categoria de risco age como agente transformador, de modo a atuar sobre o corpo da mulher
gestante, tornando-a diferenciada àquelas gestantes que não são categorizadas da mesma forma.
Assim, espera-se das grávidas em gestação “de risco”, dos profissionais de saúde, bem como dos
indivíduos que constituem seu meio social, uma posição e determinado autocuidado, imposto sobre
seus corpos para que “eles” mantenham a segurança do feto (ROBLES, 2015b).
O modo de atuação da desconstrução da mulher como um indivíduo dotado de condições
objetivas e subjetivas, para a transição, ou melhor, a criação do “ser mãe”, é acionado a partir de
duas técnicas, quais sejam: medicalização e sanitarização. Na primeira, reúne-se o modelo biomédico
propriamente dito, com suas intervenções sobre os processos considerados patológicos, muitas vezes
sem respaldo científico. Já a segunda, age de modo intrínseco, diretamente nas questões subjetivas,
uma vez que tende a classificar as gestantes que se encontram na juventude, como indignas e sem
capacidade para dar o aporte necessário para a vida que está sendo gerada (ROBLES, 2015a).
O processo de regulação dos corpos femininos, na realidade brasileira, tem se dado por meio
dos dispositivos de regulação e pela grande expansão dos serviços de saúde, principalmente a partir
dos anos 1990, com a implementação do SUS. É importante, nesse sentido, a análise dos seguintes
indicadores: a) baixa taxa de natalidade, b) aumento da utilização de métodos contraceptivos e c) alta
mortalidade infantil, por meio dos quais é possível evidenciar o implemento de estratégias e programas
de saúde voltados, na sua grande maioria, para as populações que indicavam esses indicadores
epidemiológicos considerados problemáticos, ou seja, nas quais se localizavam as camadas mais
pobres da sociedade (ROBLES, 2015a).
Esses dispositivos tendem a minar a autonomia das mulheres que, com isso, passam a ter
preocupações muito mais voltadas a possíveis problemas patológicos, que possam prejudicar a saúde
materno-infantil. Nesse contexto, excluem-se as questões subjetivas, como a própria condição de
estar grávida, negligenciada na grande maioria das vezes.
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Na fala de uma das entrevistadas, que chamaremos pela primeira letra do nome, “S”, ela relata
que procurou a UBS por um determinado médico prestar assistência naquele local. Questionada sobre
como se dá o processo das consultas ela diz: “... a gente acompanha tudo, alimentação, peso, bebida...
eles explicam tudo pra gente”. Evidencia-se, nesse momento, as técnicas descritas na pesquisa de
Robles (2015a): a primeira, medicalização, o processo pelo qual o modelo biomédico opera. Seguindo,
ainda nessa fala: “têm mães que não cuidam e é onde as crianças acabam vindo com problema de
saúde”. Aqui, percebemos a técnica da sanitarização, voltada às mulheres consideradas indignas e
incapazes de cuidarem dos seus filhos. A fala é percebida de modo estar imbuída de pré-conceitos
por um modelo cultural apropriado e que tende a ser disseminado.
A mesma situação, ocorre com “J”. Ela relata que passou muito tempo querendo engravidar,
em seu outro relacionamento, tentando por três anos. O relacionamento teve, então, seu término e,
quando ela iniciou um relacionamento com outro parceiro, sem pensar constantemente que deveria
engravidar, acabou engravidando naturalmente (ela tentara por inseminação no relacionamento
anterior). “J” conta sobre o tipo de parto: “por decisão minha, preferi cesárea, né, até porque eu fiz
uma cirurgia na coluna”. Ela segue referindo que “tenho quatro parafusos...além disse, tem a questão
do medo”. Seguimos nosso roteiro, sempre de modo muito flexível, para esclarecer um pouco mais
esse aspecto do medo. Ela diz: “infelizmente, né, pelo SUS, tenho uma espera muito grande pro bebê
nascer naturalmente...não sei se pra não gastar... eu fico muito apreensiva em ter que esperar e ser
prejudicial pra mim e pro bebê”. Assim, começamos a compreender que a decisão não era pura e
simplesmente vontade da nossa participante, mas sim da estruturação de um contexto de medo pelo
próprio sistema de assistência e que acaba por ser utilizado pelo modelo biomédico dos profissionais,
pois em seus relatos ela segue afirmando que “eu já consegui o laudo com meu ortopedista, que dai
foi o que ele me pediu (obstetra)...porque eu querer, pelo SUS, não funciona”. Fica muito evidente as
técnicas do estudo de Robles(2015a), quando analisamos com cuidado as falas de “J”, a qual busca o
aporte medicalizador e utiliza o método de sanitarização para justificar suas “escolhas”.
A apropriação do corpo feminino não é algo incomum. Exemplo disso, no Brasil, foi publicado
artigo no jornal Folha de São Paulo, na data de 09 de junho de 2018, intitulado: “Justiça, ainda que
tardia”, no qual é descrita a situação de uma mulher que foi obrigada a passar por um procedimento
de esterilização cirúrgica, sendo conduzia coercitivamente por meio da decisão de um Promotor
Público, o qual se quer teria elegido um curador para a mulher, procedimento que deve ser realizado
na falta dela auto representar-se. Esse evento chocante ganhou grande discussão nas redes sociais,
porém tornou-se pouco evidente nos canais abertos de televisão, muito provavelmente pela condição
de vulneração que se encontrava a mulher, que teve seu direito de autonomia totalmente infringido
pelo magistrado e que deferiu, no processo, a realização do procedimento pleiteado (VIEIRA, 2018).
A partir da análise das Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal (BRASIL, 2017),
pode-se observar que não ocorreram grandes alterações quanto à categorização de risco, apesar
da introdução deste manual demonstrar grande preocupação com os aspectos da subjetividade das
mulheres, de modo a sensibilizar as equipes de saúde. No que tange ao aspecto psíquico, encontram-
se, ainda, indicações de risco gestacional e, consequentemente, trabalho de parto para: cesarianas
prévias, doenças hematológicas, como anemia falciforme, comumente associada à raça/etnia negra.
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profundamente entrelaçada com a emergência da medicina, no século XVIII, como área de saber
técnico-científico, de domínio masculino (COSTA ET AL, 2006). A própria medicalização produziu o
binarismo sexual baseado na genitália e nas capacidades reprodutivas, tendo como padrão o corpo
masculino e considerando o corpo feminino como desviante (ROHDEN, 2009).
A necessidade de controlar as populações, aliada ao fato da reprodução ser focalizada na mulher,
transformou a questão demográfica em problema de natureza ginecológica e obstétrica, permitindo
a apropriação médica do corpo feminino como objeto de saber – e poder –, levando assim à sua
medicalização (VIEIRA, 2002; ROHDEN, 2009).
Nesse cenário, a medicalização da gravidez foi o centro do que a antropóloga Robbie Davis-
Floyd (1994) chama do modelo tecnocrático de nascimento, que se tornou hegemônico no ocidente
com a institucionalização do parto nos hospitais entre o século XIX e a primeira metade do século XX,
correspondente a uma sociedade industrial cada vez mais caracterizada como tecnocrática, na medida
em que supervaloriza e se organiza de maneira hierarquizada em torno das suas tecnologias. Nessa via,
o modelo dominante de nascimento transformou a gravidez e o parto em condições médicas e delineou
o lugar hierarquizado da ciência e da tecnologia, e das instituições que as disseminam e controlam.
Esse aporte teórico é identificado na fala de “E”, que teve seu primeiro filho quando era
mais jovem. Atualmente (2018) ele está com onze anos de idade, e ela está gestante novamente.
Aparentemente acreditamos que ela estaria mais segura de si, por ter a experiência do nascimento de
seu primeiro filho e por criá-lo. No entanto, deparamo-nos com a situação oposta. “E” nos conta: “a
primeira gestação do meu guri...parecia que foi mais rápido, como eu era mais nova, né”. Percebemos
uma postura passiva, quando ela segue: “a gente parece que fica mais, mais, como é que eu vou te
explicar...tu não tem vontade de ter relação” e compartilha suas subjetividades: “só que agora eu
tô com trinta e dois anos, a gente sente uma diferença, até assim, tudo que é relação, até no meu
psicológico. Esse relato de “E” é muito forte, pois perceber que aos trinta e dois anos de idade, o que
na atualidade possui conotação de jovem, ela se sente “velha”, nos causou certa perplexidade.
Mas no relato de “E” encontramos outras questões que nos elucidaram acerca de seus receios.
Ela nos disse: “na primeira (gestação), eu não sabia que era cesariana...já tinha rompido a bolsa...
eu não sabia...dai eu consultei na médica...ela perguntou pra mim qual era os meus sintomas, dai
eu explique pra ela, dai ela disse não, tem que sentir dor, dai eu peguei embora”. Percebemos como
foi aceita a explicação pela médica, sem nenhum questionamento, algo que se repete no desfecho
desse evento: “mas dai eu vim embora até com aquela agonia, porque ele (bebê) já não mexia mais”.
Assim, ela procurou novamente o serviço de saúde: “ dai era outra médica, e disse não, nem todas
as gestações das mulheres são iguais, vamos te induzir no soro, ela disse que eu devia ter ganhado
antes...eu tinha um risco, dai eu já ganhei ele passado das quarenta e uma semanas”.
Como ressaltam Carole Browner e Nancy Press (1996), o período pré-natal é o momento em
que o processo de medicalização da gravidez entra em ação. Renovadas regulações do corpo, assim
como novas subjetivações se dão através desse dispositivo de saúde, que teve uma grande expansão
no Brasil nos últimos anos (ROBLES, 2015a). No país, essa assistência é orientada desde o ano de
2011 pela Estratégia Rede Cegonha do Ministério da Saúde, que preconiza a cobertura universal e a
qualidade do atendimento da saúde materno-infantil, assim como a sua humanização (BRASIL, 2011).
Arguedas (2016) aduz, por meio da análise das condições sócio demográficas, como o modelo
patriarcal, que em grande parte é fundador das técnicas biomédicas, contribui para a docilização do
corpo feminino, de modo que esses corpos são observados e alocados no meio social, a partir da
perspectiva de quem os vê, bem como o modelo sanitário, que passa por estigmatizar os extremos
etários, como jovens e idosos. Assim, dá-se aquilo que aqui denominamos de exercício de poder
sobre o corpo grávido. Seguindo o relato de “E”, evidenciamos como o estudo de Arguedas é claro.
Nossa entrevistada nos conta: “agora é noventa por cento que vai ser cesariana...ele marcou na minha
caderneta...eu queria que fosse parto normal...que dai a gente sofre menos...dai eu já tenho trinta e
dois anos, já parece que fica mais lento o processo”. Percebemos que a entrevistada foi literalmente
induzida – por meio de uma cesariana marcada em sua caderneta, de modo que não tivesse escolha
para o tipo de parto – a se submeter ao procedimento cirúrgico. Além disso, referiu que escuta muito,
durante as consultas, que possui idade avançada, fato que contribui, ainda mais, para o processo de
docilização e condição de passividade da gestante.
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Apesar de Robles (2015) abordar em sua pesquisa a estigmatização às jovens grávidas, por
serem consideradas com psicológico e corpo inadequados para a gestação, aos trinta e dois anos de
idade, “E” parece ter sido condicionada à mesma situação, o que não estranhamos, infelizmente, após
atentarmos para seu relato de experiência na assistência pré-natal, anterior e recente.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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Rede Cegonha. Ministério da Saúde, Brasil, 2011.
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Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Trad. Anayr Porto Fajardo. 2 ed. Porto Alegre: Artmed,
2005, p. 21-29.
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n.2, p. 190-213, abr-jun.2015b. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/
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ROHDEN, F.. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. 2. ed. rev.. Rio de
Janeiro: FIOCRUZ, 2009.
VIEIRA, O. V.. Justiça, ainda que tardia. Folha de São Paulo. São Paulo-SP, 09 de jun. 2018.
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2018/06/justica-ainda-
que-tardia.shtml>. Acesso em: 11 de jun. de 2018.
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RESUMO. O presente trabalho possui como mote central realizar de forma analítico-qualitativa um
cotejo entre as políticas migratórias correntes e o fenômeno do fascismo social, em pleno vigor no
cenário brasileiro e mundial, acentuado pelo advento da pandemia da Covid-19, o novo coronavírus.
Para tanto, desenvolver-se-á predominantemente a metodologia da cibercartografia - baseada
na tradição pós-estruturalista, que considera e aproveita todas as possibilidades de obtenção de
elementos discursivos, com diferentes formatos e técnicas -, bem como de alguma revisão da literatura
disponível no campo sociológico e jurídico.
INTRODUÇÃO
146 O presente artigo foi apresentado originalmente com o título “Políticas Migratórias e Fascismo Social” para o X Congres-
so da AbraSD, ocorrido em outubro de 2019, na cidade do Recife, integrando os anais do evento (cfr. https://drive.google.
com/file/d/1ZG1Ymd3m1krjh9uxqnHifH-wXR1koHPR/view) sob o registro ISSN 2358-4270, tendo sido reconfigurado a fim
de atender o escopo da presente obra, à luz dos desafios impostos pela pandemia do coronavírus.
147 Pós-graduanda em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito
Santo. stefanni.jabert@gmail.com.
148 Mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Universidade de Lisboa. Pós-graduando em Direito Público pelo Da-
másio Educacional, IBMEC-SP. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. pedrosampaiominassa@gmail.com.
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Observar-se-á, ao cabo, que a ideia de “gestão controlada da exclusão”, cunhada por Boaventura em
sua A Gramática do tempo: para uma nova cultura política (DE SOUSA SANTOS, 2006), nunca se fez tão
premente quanto no contexto do fascismo social, morada hostil aos sujeitos das políticas migratórias.
De Jason Stanley (STANLEY, 2018) é a lição de que, em última análise, viemos a instaurar a
política do «nós e eles», ou seja, a partir de certos interesses, a sociedade tornou-se capaz de tolerar
o antes intolerável, normatizando uma ideologia agressiva e autoritária com aquele que é visto como
estranho no meio, a fim de repeli-lo. Portanto, por meio dessa narrativa e com a constatação da
ocorrência do fascismo social no contexto pátrio, buscar-se-á traçar, quando possível, alternativas à
realidade que se impõe, enraizada em muitos dos discursos e atos políticos e jurídicos, e servindo-se
do desentranhamento do comportamento cotidiano, conforme enunciado por Gilles Deleuze e Félix
Guattari em O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Por fim, serão correlacionados os conceitos supra com a eclosão da pandemia da Covid-19,
objetivando analisar se houve influência dos ideais do fascismo social – e em quais níveis – na
disseminação avassaladora do vírus nos países, cujos governos de extrema-direita, parecem ter
acentuado ainda mais aquilo que Boaventura de Sousa Santos denominou “permanente estado de
crise” (DE SOUSA SANTOS, 2020).
Embora sabido que o fluxo migratório está em crescente ascensão, não necessariamente pode-
se afirmar que os Estados-Nação acompanharam tal crescimento com mudanças políticas satisfativas
para se adequar à nova realidade.
Segundo Antônio Tadeu Ribeiro, no trabalho intitulado “Nova lei brasileira de migração: avanços,
desafios e ameaças” (RIBEIRO, 2017), as políticas migratórias brasileiras estavam defasadas em
relação a sua atual conjuntura democrática, tendo em vista que seu marco regulatório era baseado na
segurança nacional149.
Entretanto, diante do cenário de fascismo social que assombra a atualidade brasileira e – mundial,
dentro de suas características, é constante a ameaça aos direitos conquistados por minorias sociais
no país nos últimos anos, inclusive no tocante aos assuntos migratórios.
O ano de 2019 começou com o exercício do então eleito Presidente da República, Jair Messias
Bolsonaro, que se alinhou às políticas de extrema-direita em plena expansão pelo globo, trazendo à tona
uma perspectiva sombria, permeada de incertezas, quanto aos direitos positivados e supostamente
conquistados pelos grupos migratórios no Brasil no trilhar dos últimos eventos histórico-legislativos,
tendo em vista o recorrente e hostil discurso por tais tipos de governança aos fluxos migratórios.
O presente tópico pretende discorrer sobre a ótica fascista, desde a sua construção e disseminação
até seus possíveis resultados e, ao fim, propor uma possível superação da preocupante e atual
conjuntura sócio-política que vivenciamos em pleno século XXI.
Muito embora se tenha aprendido, de uma forma geral, que o fascismo foi um momento histórico
vivenciado na Itália e sobretudo na Alemanha nas primeiras décadas do século XX, a verdade é que
para além de um acontecimento, o fascismo é um ideal que rotula qualquer tipo de “ultracionalismo
(étnico, religioso, cultural), no qual a nação é representada na figura de um líder autoritário que fala
em seu nome” (STANLEY, 2018), sem que necessariamente seja fruto de um regime “antidemocrático”.
Seguindo a leitura de Stanley, filósofo norte-americano estudioso do neofascismo, a construção
149 A análise legislativa detalhada fora realizada no trabalho originário, já referenciado nas notas explicativas.
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[...] uma vez que distintas perspectivas neoconservadoras fundadas tanto em uma espécie de
revisionismo histórico quanto em fundamentalismo financeirizado passaram a ocupar um lugar
cada vez mais central nas decisões políticas de muitos países. Assim, o Estado de bem estar
social, presumidamente assegurado por políticas progressistas, acabou entrando em declínio
concomitantemente com a garantia de parte dos direitos constitucionais, conforme pudemos verificar
com o fim de certa dimensão de uma democracia participativa presente no modelo dos conselhos de
participação da sociedade civil, que foram extintos no centésimo dia do governo do presidente da
república Jair Bolsonaro (PSL), que se assumiu declaradamente conservador. (ROSA, 2019, p. 19-20)
Ainda quanto aos mecanismos de construção do fascismo, temos acentuado no atual governo a
criação de um passado mítico associado com a propaganda, o que legitimou e foi causa essencial para
que se elegesse. Quanto ao passado mítico, tem-se a tentativa de retomar supostos valores que foram
enfraquecidos junto com a nação diante de ameaças trazidas com o globalismo e valores universais. Já a
propaganda é utilizada, a grosso modo, como veículo que além de propagar, dissimula e oculta os objetivos
claramente políticos, dando-os um disfarce de ideais amplamente aceitos, com base no anti-intelectualismo.
Em tempos onde a internet tem sido o maior veículo de informações e que as mesmas se tornam
cada vez mais consumidas e propagadas sem maiores filtros e de forma completamente superficial, as
redes sociais contribuíram de forma acentuada não só para o resultado eleitoral no Brasil, mas também
para grande parte dos países que atualmente seguem a mesma linha política de extrema direita.
Assim, ainda segundo Rosa, ao tratar da catarse cibercartográfica acerca do que chamou de
novíssimas direitas, embora possamos observar as diferentes abordagens associadas nos pensamentos
liberais conservadores que passaram a ocupar locais cada vez mais relevantes nas decisões de governo
de muitos países, tal advento não pode ser visto de forma tão inocente, pois
apesar de termos a sensação de estarmos nos tornando cada vez mais conservadores no que se
refere às nossas condutas cotidianas morais, não é possível realizarmos esse tipo de análise sem
considerarmos a governamentalidade algorítmica e toda a construção de Big Data que passou
não apenas a prever, mas a orientar o nosso comportamento, assim como são impraticáveis
investigações acerca do campo político e econômico na contemporaneidade que desconsiderem
as implicações das fake News nas mais distintas eleições ocorridas a partir da segunda década do
século XXI, a exemplo dos Estados Unidos, com a vitória de Donald Trump, do Brasil com o triunfo
de Jair Bolsonaro e até mesmo a saída do Reino Unido da União Europeia, fenômeno conhecido
como Brexit. (ROSA, 2019, p. 84)
Neste contexto, podemos observar de forma clarividente que o Brasil está com a política do
fascismo em pleno vigor, tendo em vista que a mesma é observada a partir do emprego das táticas
que são utilizadas para que se chegue ao poder e, os regimes que eles praticam, em grande parte,
são determinados por condições históricas específicas, já que a política fascista não necessariamente
conduz a um estado explicitamente fascista.
No que diz respeito ao Brasil, tel construção, explicada a partir do pensamento de Stanley,
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foi de suma importância não só para a ascensão dos grupos neoconservadores, mas também e,
principalmente, para a chegada dos mesmos até o poder, culminando no atual estado de esfacelamento
das supostas garantias que comporiam o contrato social.
Fascismo social foi o termo encontrado pelo sociólogo luso, Boaventura de Sousa Santos,
para definir o modelo social presente em diversas partes do globo no atual século e que, por suas
características inerentes, tendem a reproduzir os sustentáculos discursivos do fascismo enquanto
regime político. Importante para uma abordagem sobre o fenômeno será enunciar brevemente o
contexto teórico em que o autor o insere, nomeadamente nos critérios de exclusão/inclusão do
contrato social, como veremos a seguir.
A corrente contratualista do Século das Luzes (Séc. XVIII), encabeçada principalmente por John
Locke e Jean-Jacques Rosseau, dispunha através de diferentes concertos teóricos, que a sociedade
caminharia no sentido de abandono do estado de natureza (da barbárie) rumo ao estado civil e que
por meio da instituição de um governo das leis, o monopólio do uso da força restaria suficientemente
ordenado e centralizado na figura do representante, trazendo liberdade e bem comum ao povo. Para
tanto, a transição entre os dois estágios deveria ser instrumentalizada por meio de um contrato social,
em que houvesse efetivamente a renúncia à autotutela e a criação de mecanismos de heterotutela
junto a um governo civilmente representado.
Acontece que a teoria contratualista viu-se contrariada, ora pela doutrina a ela posterior, ora pela
realidade fática do Estado Moderno que não confirmou muitas de suas premissas. Boaventura aponta
que o contrato social tal como definido anteriormente não revela o real conflito a ele subjacente. Para
o autor, é sobre a esteira dialética entre regulação e emancipação social que se assenta o contrato
social, devendo gerir permanentemente interesses e vontades conflitantes e de diferentes escalas,
sempre entre o particular e o geral, o individual e o coletivo.
Dessa feita, o contrato social é, por natureza, objeto de tensão constante entre entes sociais no
sentido de sua inclusão ou exclusão. Para que possa ser efetivado o contrato social numa sociedade
eminentemente desigual, como o é a brasileira, os critérios de inclusão/exclusão ao seu acesso são
bem vastos face aos sujeitos que poderão usufruir ou não das benesses do estado civil, como a
liberdade e o bem-estar. Diante disso, o sociólogo apresenta dentre vários critérios de exclusão que
encerra o contrato social, a cidadania territorialmente fundada.
[...] O segundo critério é o da cidadania territorialmente fundada, pelo que é fundamental distinguir dos
cidadãos todos aqueles, que não sendo cidadãos, partilham com eles o mesmo espaço geopolítico. Só
os cidadãos (homens) são parte do contrato social. Todos os outros – sejam eles mulheres, estrangeiros,
imigrantes, minorias (e, às vezes, maiorias) étnicas – são dele excluídos. Vivem no estado de natureza
mesmo quando vivem na casa dos cidadãos. (DE SOUSA SANTOS, 2006, p. 318)
A cidadania territorialmente fundada consiste, pois, no critério impeditivo das minorias que
pretendem aceder ao contrato social e que, ainda que territorialmente ocupantes do mesmo espaço
geográfico, são obstadas de fazê-lo. As políticas migratórias num cenário de fascismo social pautam-
se, portanto, necessariamente neste critério, na medida em que toda minoria étnica imigrante
dificilmente logrará êxito em fruir dos direitos que o contrato social atribui a determinado grupo
dentro do arranjo social, por mais que com este mesmo grupo compartilhe o chão da cidade.
O presente critério, outrossim, tem que ver com a face do fascismo social a qual o autor chama de
fascismo do apartheid social, isto é, “trata-se da segregação social dos excluídos através de uma cartografia
urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas” (DE SOUSA SANTOS, 2006, p. 334). Ao cabo, é-se
cidadão na cidade, quando se pode adentrar no contrato social e é-se indigente na mesma cidade, quando
restrita a sua inclusão ou quando imposta a sua exclusão. Os excluídos, in casu, os imigrantes, são por isso,
nas palavras de Boaventura, “declarados vivos em regime de morte civil”. (DE SOUSA SANTOS, 2006, p. 318)
O Estado Moderno teve que lidar com essas questões relativas aos processos inclusivos e
exclusivos do contrato social e não as resolveu a contento, muito em razão do fato de buscar a
disseminação de um sistema exclusivo, que é o capitalismo, ladeado a um regime supostamente
inclusivo, a democracia. A lógica disruptiva entre capitalismo e democracia perseguiu muitos
estudiosos até o atual século, pois o modelo social que garantiu a supremacia do sistema sobre o
regime é justamente o fascismo, ao propor a “rendição total da democracia perante as necessidades
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O pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos e interesses sociais até agora incluídos no
contrato social são dele excluídos sem qualquer perspectiva de regresso. [...] O pré-contratualismo
consiste no bloqueamento do acesso à cidadania por parte dos grupos sociais que anteriormente
se consideravam candidatos à cidadania e tinham a expectativa fundada de a ela aceder. (DE
SOUSA SANTOS, 2006, p. 328)
A bem da verdade que a passos lentos, conseguiu com a publicação e vigência da Lei n. 13.445/17
(revogadora do criticado Estatuto do Estrangeiro) ressignificar o tratamento que o Estado direcionaria
aos coletivos migrantes no país, enunciando diretrizes para a implementação de políticas públicas no
sentido de tutela deste grupo. Com a Lei de Migração, em 2017, os imigrantes tiveram pela primeira
vez na história legislativa brasileira, no nível infraconstitucional, o ambiente propício para ingresso
no contrato social brasileiro, ainda que burocraticamente.
Por esta via, cremos que, apesar de avanços em termos políticos nos primeiros decênios deste
milênio, os imigrantes no Brasil ainda se encontram no estágio pré-contratualista, pois embora detalhada
e legalmente garantida a sua tutela pelo Estado brasileiro a partir de 2017, frustrados estão atualmente
pelo fascismo social brasileiro em sua expectativa de aceder ao contrato social plenamente.
“Quando se fala em globalização, geralmente esquece-se o que ela também implica em dimensões
deletérias: ao passo em que se globalizam tecnologias e informação, globalizam-se também os vírus
e o esforço para combatê-los.” (MINASSA, 2020) Acontece que, num cenário em que a cooperação
internacional, o multilateralismo e os investimentos nacionais nos organismos internacionais, como a
Organização Mundial da Saúde (OMS), estão paulatinamente desacreditados pelos novíssimos fascismos
sociais, ainda mais dificultada se torna uma resposta coesa a uma crise sanitária de escala mundial.
Como visto na seção anterior, as políticas migratórias se inserem dentro de uma gama de
políticas que são alvo simultâneo do fascismo social. Que o contrato social, base dos regimes
democráticos liberais, está desnaturando, não é fato novo. Entretanto, de tempos em tempos, quer
por conflitos militares contra um inimigo externo específico, quer por um vírus que atinge proporções
pandêmicas, a humanidade se vê no limiar de alguma alteração, fazendo daquelas mazelas, antes
parcimoniosamente ignoradas, agora inocultáveis. A crise do novo coronavírus, pois, é um desses
decisivos processos históricos, que teve início no ano de 2019, tornando-se a primeira pandemia do
corrente século, cuja primeira lição foi posicionar a humanidade frente ao espelho estilhaçado do
sistema (capitalista) fragilmente emoldurado pelo regime (democrático). A pandemia da Covid-19 é a
primeira crise sanitária global nos tempos da chamada pós-verdade.
É catalisadora da relação “políticas migratórias-fascismo social”, porque embora não inaugure
a referida relação, acelera-a, sinaliza-a e potencializa-a. É o que Boaventura se refere quando diz que
“[…] a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população mundial tem estado
sujeita” (DE SOUSA SANTOS, 2020, p. 6), ou o que constata Anjuli Tostes, nos seguintes termos: “a
pandemia da Covid-19 surge nesse contexto, já bastante tensionado, a inserir mais um ingrediente de
complexidade proporcionado pelo medo e pela incerteza.” (TOSTES, 2020, p. 31).
Quando reconhecido o estado de pandemia pela OMS, em meados de 2020, os cenários políticos
desenhados para enfrentamento dos efeitos durante e pós-crise foram múltiplos, mas dois se destacaram
por serem totalmente opostos: i) governos de extrema-direita, populistas e com traços de fascismo
social tenderiam a arrefecer, diante da desastrosa abordagem de combate à doença, dando espaço
para que frentes democráticas avançassem nos próximos pleitos; ou, ii) esses mesmos governos,
utilizando-se dos mesmos mecanismos de sempre (ataque à imprensa, à ciência, autoritarismo),
conseguiriam a manutenção, ou ainda, a expansão da tensão popular pelo acirramento das nuances
fascistas, as quais o contexto de excepcionalidade imposto pelo vírus enredou, cujo efeito seria, de
plano, um ganho em capital eleitoral.
Ainda não é possível dizer, com certeza, qual desses dois cenários há de se concretizar
plenamente, mas indiscutível foi a completa ineficiência política dos governos caracterizados pelo
fascismo social, ao lidarem com a pandemia. Não à toa que até a data de envio deste artigo, os países
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com os maiores números de casos e de mortes (EUA, Brasil e Índia), tenham na sua cúpula, gestores
autoritários (Donald Trump, Jair Bolsonaro e Narenda Modi).150
Na presente crise humanitária, os governos de extrema direita ou de direita neoliberal falharam mais
que os outros na luta contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade
científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para
chicana política. […] Deram a entender que uma dose de darwinismo social seria benéfica: a
eliminação de parte das populações que já não interessam às economias, nem como mão de
obra trabalhadora nem como fonte consumidora, ou seja, populações descartáveis, como se a
economia pudesse prosperar sobre uma pilha de cadáveres. Os exemplos mais marcantes são
a Inglaterra, os EUA, a Índia, o Brasil, as Filipinas e a Tailândia. (DE SOUSA SANTOS, 2020, p. 36)
Quer isso dizer que a democracia carece de capacidade política para responder a emergências? Pelo
contrário, The Economist mostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais
em países democráticos devido à livre circulação de informação. Mas, como as democracias estão
cada vez mais vulneráveis às fake news, teremos de imaginar soluções democráticas assentes na
democracia participativa no nível dos bairros e das comunidades. (DE SOUSA SANTOS, 2020, p. 8)
Isso não implica dizer, porém, que ao novo coronavírus pode ser atribuído um qualquer caráter
democrático, ao supostamente atingir a todos os atores sociais da mesma forma. Ao contrário, o novo
coronavírus tende a ser um aliado de governos autocráticos.
Se é verdade que a doença é capaz de chegar a todos, ricos e pobres, mulheres e homens, ocidentais
e orientais, também o é que ela não atinge a todos na mesma proporção e intensidade. A Covid-19
veio escancarar a putrefata face da desigualdade social que o capitalismo insiste em ignorar. […] A
crise sanitária fica mais agravada em locais em que crises de natureza outra também se apresentam
(econômicas, políticas, institucionais ou mesmo sanitárias, ocasionadas por outros agentes
infecciosos). Entretanto, verifica-se que ainda mais alarmante é a utilização arbitrária, por alguns
regimes pouco afetos às liberdades democráticas, de declarações de emergência ou calamidade
pública, as quais sustentam decisões excepcionais restritivas a nível de direitos fundamentais (a
começar pela liberdade de locomoção), para uma escalada do arbítrio autoritário. Disso resulta, por
exemplo, na medida que prolonga o estado de alarme indefinidamente na Hungria, que autorizou o
Executivo, liderado pelo ultradireitista Viktor Orbán, a seguir governando extraordinariamente por
decretos. No mesmo sentido, perde força noutras regiões do globo o apelo à resposta científica,
naturalmente construída pela incerteza, como forma de superar a pandemia. Nos EUA, Donald
Trump, defensor do uso irrestrito da hidroxicloroquina, sugeriu o uso de desinfetante pela população
150 Boaventura nos auxilia a vislumbrar alguns dos possíveis cenários do pós-pandemia, em sua “A cruel pedagogia do
vírus”. Senão, vejamos: a) “o Estado, ao tomar medidas de vigilância e de restrição de mobilidade sob o pretexto de com-
bater a pandemia, adquiriria poderes excessivos que poriam em causa a própria democracia” (p. 18); b) “o pós-crise será
dominado por mais políticas de austeridade e maior degradação dos serviços públicos onde isso ainda for possível” (p. 34);
c) “a extrema direita e a direito hiperneoliberal ficam definitivamente descreditadas (espera-se)” (p. 34); d) “tenhamos em
mente que, no período imediatamente anterior à pandemia, havia protestos massivos em muitos países contras as desigual-
dades sociais, a corrupção e a falta de proteção social. Muito provavelmente, quando terminar a quarentena, os protestos e
os saques voltarão até porque a pobreza e a pobreza extrema vão aumentar.” (p. 40). Para todos os efeitos, cfr. DE SOUSA
SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Boitempo Editorial, 2020.
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Para além disso, destacam-se duas características do fascismo social que foram catalisadas pela
pandemia: o anti-cientificismo e a aversão aos imigrantes (xenofobia). A disseminação descontrolada do
vírus em países sob governos de extrema-direita demonstra como se tornaram ambientes férteis para o
negacionismo, o obscurantismo e o anti-cientificismo. Desde a busca por um povo culpado (daí expressões
como “vírus chinês”, utilizado por Donald Trump151), até a defesa de medicamentos e tratamentos sem lastro
de certeza científica (cloroquina e desinfetante). É parte do enredo fascista desacreditar toda informação
e dado que contrarie o modus operandi do governo. Dessa forma, o anti-cientificismo serve tanto como
mecanismo de ataque discursivo e sugestivo de alternativas não comprovadas pelo conhecimento
científico, quanto pelo esvaziamento dos aportes públicos àqueles órgãos e instituições que produzem
respostas científicas (e.g. universidades, institutos de pesquisa e laboratórios).
No jogo do “nós e eles” que detalha Jason Stanley, o antagonista é essencial para a manutenção da
massa cativa, do corpo dócil que sustenta o “neofascismo” (LOWY, 2020, p.148). Nessa toada, “é antagoni-
zando com a imprensa, com as instituições e com o partidos que Bolsonaro segue adotando a estratégia
populista como método de governo, e alimentando sua base política entre os descontentes com a ordem”.
(TOSTES, 2020, p. 34). Os imigrantes, sobretudo refugiados, não passam incólumes do fascismo social
“temperado” pela crise sanitária. A sociologia das ausências, termo cunhado por Boaventura para se referir
as zonas cinzentas em que se encontram grupos sociais invisibilizados, ficou ainda mais patente na pande-
mia. Se a situação de desassistência material e financeira aos coletivos migrantes, nos campos de refugiados
e fora deles, nos EUA e na Europa já era crítica antes de 2020, com o catalisador Covid-19 isso se agravou.
Trata-se de populações que, em, grande parte, vivem em permanente quarentena e em relação
às quais a nova quarentena pouco significa enquanto regra de confinamento. Mas os perigos que
enfrentam no caso de o vírus se propagar entre eles serão fatais e ainda mais dramáticos que os
que enfrentam as populações de periferias pobres. Por exemplo, no Sudão do Sul, onde mais de
1,6 milhão de pessoas estão deslocadas internamente, são necessárias horas, senão dias, para
chegar às unidades de saúde. As principais causas de morte são malária e diarreia, doenças para
as quais já há remédios. No caso de campos de internamento às portas da Europa e dos EUA, a
quarentena causada pelo vírus impõe o dever ético humanitário de abrir as portas dos campos de
internamento sempre que não for possível criar neles as mínimas condições de habitabilidade e
de segurança exigidas pela pandemia. (DE SOUSA SANTOS, 2020, p. 26-27)
Por fim, a xenofobia foi igualmente acentuada, através do sentimento de desconfiança popular no
“outro”. No início da crise sanitária, a aversão foi nomeadamente dirigida a chineses, sino-descendentes
e, até mesmo, a outros povos asiáticos. Como qualquer outra ferramenta do fascismo social alimentada
pela divisão entre “nós e eles”, “na xenofobia, não importam os dados, pois, como todo radicalismo, o
que vale é a construção do estereótipo social a ser alvo da aversão”. (MINASSA, 2020).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
151 Nos EUA, Donald Trump menosprezou a gravidade da pandemia desde o início do surto em seu país, que hoje é aquele
que registra o maior número de mortos. O ataque às entidades científicas e aos profissionais da pesquisa se fazem perceber
na sua relação com o Centro de Controle e Prevenção à Doença americano. “At the center of the US response to the COVID-19
crisis is one of the country’s most venerable scientific institutions, the Centers for Disease Control and Prevention, which has
traditionally been staffed with committed, knowledgeable, highly trained professionals. To Trump, the ultimate know-nothing
politician, such experts pose a serious problem, because they will contradict him whenever he tries to make up facts to serve
his own interests” Cfr. STIGLITZ, Joseph E. Plagued by Trumpism. In: TOSTES, Anjuli. MELO FILHO, Hugo (org). QUARENTENA:
Reflexões sobre a pandemia e depois. Projeto Editorial Praxis, Canal 6 editora, 1ª ed., Bauru, 2020, p. 120.
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quase homogêneo a todas as minorias que se encontram no território em que se instala, sejam elas
nacionais ou provenientes de outras nações, como os imigrantes lato sensu. Lamentavelmente, fato
é que as políticas migratórias configuram-se apenas como uma de outras tantas políticas sociais que
são constantemente expurgadas do plano político do Estado pela iniciativa de governos fascistas.
Neste trabalho, buscou-se, para além de estabelecer o enquadramento das políticas migratórias
no contexto fenomenológico do fascismo social no Brasil, adentrar em aspectos de ordem jurídica e
sociológica. Na seção inaugural, pretendeu-se construir um breve panorama geral sobre as Políticas
migratórias no Brasil, para fins de enunciar as principais transformações na regulamentação das
questões migratórias no território.
Na segunda seção, a centralidade do trabalho restou patente diante da construção teórica
do fascismo social essencialmente nas teorias desenvolvidas por Jason Stanley em sua obra Como
funciona o fascismo? A política do “nós” e “eles” e Boaventura de Sousa Santos em A Gramática do
tempo: para uma nova cultura política. Nesse arranjo teórico, forjou-se a situação política migratória
atual do Brasil, resultando num cotejo entre os dois principais vetores da presente investigação.
Para fins de conclusão, passaremos brevemente a expor, tal como enunciado na introdução do
presente, algumas alternativas sugestivas à realidade política e social que se expôs até o momento,
certos, desde já, de que não passarão de meras indicações decorrentes das análises ora realizadas e,
por isso, insuficientes para tratar de maneira plenamente satisfativa de questão tão complexa, a qual
merecerá, decerto, não menos complexa resposta institucional no Brasil.
Diante da verificada crise no contrato social brasileiro, espaço fértil para o fascismo social, e que
afeta de sobremaneira os coletivos migrantes no país, por esbarrarem recorrentemente nos critérios
de exclusão/inclusão de acesso, filiamo-nos à alternativa proposta por Boaventura de Sousa Santos
de construção de um contrato social de tipo novo:
[...] construído sobre pressupostos muito distintos daqueles que sustentaram o contrato social
moderno ocidental. É antes de mais um contrato muito mais inclusivo porque deve abranger não
apenas o ser humano e os grupos minoritários, mas também a natureza. (DE SOUSA SANTOS,
2006, p. 339)
A pandemia da Covid-19 lança luz sobre a emergência de se buscar um novo arranjo social, em que
sejam respeitadas as premissas desse tipo novo de contrato, pautado na inclusão social das minorias
(v.g. imigrantes) e na resposta compatível às crescentes prejudicialidades da crise climática. É pela
via do remodelamento da ideia clássica de contrato social, que deve admitir, à partida, a inoperância
sistêmica que pretende superar, que as alternativas deverão ser traçadas para o pós-pandemia.
Afinal, se aparentemente não há alternativas é porque “o sistema político democrático foi levado
a deixar de discutor as alternativas” (DE SOUSA SANTOS, 2020, p. 7). Sendo certo, contudo, que não
é esta pandemia (como não o foram as anteriores), a panaceia em si mesma, de todas as mazelas que
o fascismo social fortalece, pois “o que tem capacidade de alterar o curso da história, a caracterizar
uma efetiva ruptura da ordem política e econômica, são as transformações nos modos de reprodução
da vida em sociedade”. (TOSTES, 2020, p. 33)
Não obstante a isso, como alternativas mais pragmáticas no contexto brasileiro, observamos a
necessidade de implementação efetiva da Lei de Migração por meio de políticas públicas em todos
os níveis da federação, não devendo estados e municípios ficarem de fora deste concerto, sobretudo
porque é ali onde efetivamente se sentem os maiores impactos das políticas migratórias.
Doutra banda, deve haver fiscalização constante pelos órgãos federais, nomeadamente pelo
Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União quanto ao resguardo dos direitos
fundamentais dispostos na Carta Magna e endereçados aos imigrantes, bem como dos mecanismos
tutelares previstos a nível infraconstitucional, lançando-se mão, quando possível, de ações no campo
do contencioso judicial e administrativo.
Acresce-se a isso, a necessária autonomização dos órgãos como o OBMigra a fim de que
possa perseguir os seus objetivos com o devido afastamento de possíveis ingerências políticas,
deslocando-o do plano instável governamental para o quadro de uma política de Estado. Para que
isso ocorra, premente também a viabilização do acesso à informação, da participação popular e do
controle externo pela sociedade civil na tomada de decisões junto aos órgãos competentes para a
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questão, devendo sempre que possível haver número considerável de representantes nos conselhos
e comissões deliberativas, em especial de imigrantes (maiores interessados).
Por fim, mas com equivalente importância, urge adotar um sistema de nível (inter)institucional
para viabilizar o acesso a informações credíveis sobre a temática da imigração pela sociedade civil,
sobretudo quanto aos dados, fazendo cessar dois dos maiores vetores de sustentação do fascismo
social: o discurso de ódio e o anti-intelectualismo.
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cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 18 nov. 2019.
DE SOUSA SANTOS, Boaventura. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Edições
Afrontamento, 2006.
LIMA, João Brígido Bezerra, [et al.]. “Refúgio no Brasil: caracterização dos perfis
sociodemográficos dos refugiados (1998-2014).” 2017.
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FILHO, Hugo (org). QUARENTENA: Reflexões sobre a pandemia e depois. Projeto Editorial Praxis,
Canal 6 editora, 1ª ed., Bauru, 2020.
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OIM, ONU. “/La Migración haitiana hacia Brasil: caracteristicas, oportunidades y desafíos,
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RIBEIRO, Antônio Tadeu. Nova lei brasileira de migração: avanços, desafios e ameaças. Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, Belo Horizonte, v. 34, n.1, p.171-179, jan.abr. 2017.
ROSA, Pablo O. Fascismo Tropical: Uma cibercartografia das novíssimas direitas brasileiras.
Vitória: Editora Milfontes, 2019.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: A política do” nós” e” eles”. L&PM Pocket, 2018.
STIGLITZ, Joseph E. Plagued by Trumpism. In: TOSTES, Anjuli. MELO FILHO, Hugo (org).
QUARENTENA: Reflexões sobre a pandemia e depois. Projeto Editorial Praxis, Canal 6 editora, 1ª
ed., Bauru, 2020.
TOSTES, Anjuli. Pandemia, populismo e nova ordem social. In: TOSTES, Anjuli. MELO FILHO, Hugo
(org). QUARENTENA: Reflexões sobre a pandemia e depois. Projeto Editorial Praxis, Canal 6
editora, 1ª ed., Bauru, 2020.
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RESUMO: Através dos estudos de Michel Foucault (2015) que desvelaram as relações de poder,
inicialmente disciplinar e posteriormente biopolítico, que se efetivaram a partir do controle do
corpo ou da coletividade do corpo social, as relações entre corpo, sexualidade e gênero passaram
a receber uma atenção especial. Por meio das estratégias do biopoder, com uma gestão calculada
da vida do corpo social, o dispositivo da sexualidade buscava regular os prazeres e as expressões
corporais, institucionalizando a binariedade de gênero e a heterossexualidade compulsória, de modo
a normatizar e normalizar os corpos dos indivíduos. Nesse contexto os sujeitos transexuais, que
não se enquadram na lógica de inteligibilidade cultural sexo/gênero/desejo/práticas sociais acabam
por ser marginalizados, sendo vítimas dos mais diversos estigmas relacionados às sexualidades e as
expressões de gêneros intensificados pela violência estrutural.
INTRODUÇÃO
A partir dos estudos de Michel Foucault (2015) que desvelaram as relações de poder, disciplinar,
em um primeiro momento, e posteriormente biopolítico, as quais foram efetivadas a partir do controle
do corpo, seja ele físico e individual, ou um controle da coletividade do corpo social, as relações
estabelecidas entre corpo, sexualidade e gênero passaram a receber uma atenção especial. De modo
que as estratégias do biopoder, através uma gestão calculada da vida do corpo social, tornou o
sexo o centro da disputa política enquanto produto do dispositivo da sexualidade. Tal dispositivo
buscava regular os prazeres e as expressões corporais, institucionalizando a binariedade de gênero
e a heterossexualidade compulsória, de modo a normatizar e normalizar os corpos dos indivíduos.
Diante disso, o objetivo deste trabalho é compreender, a partir dos estudos de Michel Foucault,
de que forma o dispositivo da sexualidade e o processo de normalização das relações de gênero e
dos corpos influenciam os processos de corporificação dos transexuais. Parte-se da hipótese que
os sujeitos transexuais, que não se enquadram na lógica de inteligibilidade cultural sexo/gênero/
desejo/práticas sociais acabam por ser marginalizados, sendo vítimas dos mais diversos estigmas
relacionados às sexualidades e as expressões de gêneros intensificados pela violência estrutural.
Estas violências ocorrem sem que haja um grande clamor por parte da mídia e da sociedade em geral
que reconhece como sujeitos de direitos apenas aqueles que performam estereótipos de gênero,
seguem padrões estéticos e se enquadram na tradicional classificação binária homem-mulher.
Assim para a realização do presente trabalho será utilizado o método hipotético-dedutivo, tendo
como metodologia a pesquisa do tipo exploratória, através de revisão bibliográfica, na qual utilizou-
se, no seu delineamento, da coleta de dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e
na rede de computadores. Desse modo o artigo será estruturado em dois tópicos: a) o dispositivo da
sexualidade e a normalização das relações de gênero; e, b) a biopolítica e o corpo transexual.
152 Doutoranda e Bolsista Integral CAPES no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Direito– Curso de Doutorado em
Direitos Especiais da URI/SAN. Mestra em Direito pela UNIJUÍ. E-mail: kaoanne.krawczak@gmail.com CV: http://lattes.cnpq.
br/0939417143976643 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9358-2481
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As imbricações entre corpo, sexualidade e gênero são históricas, mas especialmente a partir de
meados do século passado passaram a ser descortinadas por um pensamento crítico. Neste contexto,
os estudos de Michel Foucault (2015) tiveram grande relevância, na medida em que desvelaram
as relações de poder, inicialmente disciplinar, e posteriormente biopolítico que se efetivavam
principalmente a partir do controle do corpo, seja ele físico e individual, ou a coletividade do corpo
social. Esta imbricação, segundo Duarte (2008, p. 06) é identificada por Foucault a partir do século
19, momento em que “já não importava mais apenas disciplinar as condutas, mas também implantar
um gerenciamento planificado da vida das populações”.
O que se produz por meio da atuação específica do biopoder não é mais apenas o indivíduo dócil
e útil, mas a própria gestão calculada da vida do corpo social, colocando o sexo como centro de disputa
política. “A partir do século 19, ele é o foco de um controle disciplinar do corpo individual, ao mesmo
tempo em que está diretamente relacionado aos fenômenos de regulação das populações, conferindo um
acesso do poder soberano à vida da própria espécie” (DUARTE, 2008, p. 06), e a sexualidade, tal como
produzida por toda uma rede de saberes e poderes que agem sobre o corpo individual e sobre o corpo
social, isto é, “o sexo como produto do que Foucault chamou de dispositivo da sexualidade, será então a
chave para a análise e para a produção da individualidade e da coletividade” (DUARTE, 2008, p. 06).
Este poder, segundo Foucault (2015, p. 88 e 89) é experimentado em todas as instâncias da vida
social, econômica e política, e deve ser entendido,
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lógica perversa que procura normatizar e normalizar os corpos”. (GROSSI, 2012, p. 164)
De modo que, nas palavras de Soares (2015, p. 242) “a diferenciação sexual binária (homem-
mulher) e as atribuições essencializadas das características atribuídas aos seres humanos (masculino-
feminino) ligam-se diretamente às atuações e disputas de poder”. Pensar desta forma requer
compreender os conceitos de gênero e sexualidade, como construções históricas e não dados naturais,
algo já proposto há 70 anos por Simone de Beauvoir (1980). Tradicionalmente, o gênero seria aquilo
que nossas genitálias informam. Assim, para esse sistema que se fundamenta na diferença sexual é
preciso haver uma concordância entre gênero, corpo e sexualidade.
“Vagina-mulher-emoção-maternidade-procriação-heterossexualidade; pênis-homem-racionalidade
-paternidade-procriação-heterossexualidade.” (BENTO, 2006, p. 7) No entanto, pensar os gêneros como
dispositivos que se processam pela materialização do poder, como efeito das estratégias de disciplinari-
zação dos corpos, e do biopoder, como efeito do gerenciamento das massas e da criação de verdadeiras
vidas “matáveis”. (WERMUTH; NIELSSON, 2016) Neste contexto, o “gênero não é algo que está dado, mas
é construído social e culturalmente e envolve um conjunto de processos que vão marcando os corpos a
partir daquilo que se identifica ser masculino e/ou feminino.” (GOELLNER, 2015, p. 137)
Neste sentido, gênero, segundo Joan Scott (1990), é a organização social da relação entre os
sexos, presentes em todas as relações sociais, em todas as sociedades e épocas, sendo, portanto,
atemporais e universais. É, de acordo com a autora, tanto um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar
relações de poder, cuja construção apresenta três características principais: uma dimensão relacional,
a construção social das diferenças percebidas entre os sexos e um campo primordial onde o poder
se articula. Enquanto constitutivo das relações sociais implica, primeiro, nos símbolos culturalmente
disponíveis que evocam representações simbólicas do que somos e nos conceitos normativos expressos
por teorias religiosas, jurídicas, educativas, científicas cujas interpretações dão sentido aos símbolos,
as quais esforçam-se para limitar e conter suas possibilidades e tomam a oposição binária para afirmar
o sentido categórico do feminino e masculino como dado fixo e não conflituoso. (SCOTT, 1990) Implica
ainda na dimensão política que estrutura essas relações, que inclui a família, as relações de parentesco,
a divisão sexual do trabalho, a educação e o sistema político. E por fim, na identidade subjetiva, na qual
interagem os elementos de ordem subjetiva e as relações sociais.
E deste modo, gênero é também o campo primordial através do qual o poder se articula, uma vez
que, “estabelecidos como um conjunto de referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção
e a organização simbólica de toda a vida social” e “na medida em que estas referências estabelecem
distribuições de poder o gênero torna-se envolvido na concepção e na construção do poder em si
mesmo.” (SCOTT, 1990, p. 16) Sua efetivação se intensifica ao impor que “as ‘pessoas’ só se tornam
inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do
sexo”. (BUTLER, 2010, p. 37)
Se o gênero é uma construção histórica, a própria sexualidade também o é, medida
primordialmente pela lógica do saber-poder, lembrará Anne Fausto-Sterling (2001, p. 20), na medida
em que desenvolve seus estudos sobre a intersexualidade. Fausto-Sterling (2001, p. 27) denuncia
a construção da sexualidade a partir do saber-poder da medicina, de modo que, “o conhecimento
desenvolvido pelas disciplinas médicas dá aos médicos o poder de sustentarem uma mitologia do
normal, alterando o corpo intersexual para ajustá-lo, tanto quanto possível, a um dos dois caminhos
[...] consequentemente deve haver só dois caminhos: macho e fêmea”.
Afirma Fausto-Sterling (2001, p. 26) “ao ajudarem o normal a assumir a precedência em relação
ao natural, os médicos também contribuíram para a biopolítica populacional” e para a normalização
das condutas e identidades relativas ao corpo, ao gênero, e à sexualidade, condicionando à condição
de patologia desde o corpo doente, enfermo, até mesmo aquele cujas construções o colocam em uma
postura do ‘diferente’, o intersexo, o transexual, até as famílias monoparentais. Em qualquer situação,
“a imposição da norma de gênero tem um motor social e não científico”. (FAUSTO-STERLING, 2001,
p. 26) Cabe destacar que a autora (2001, p. 26) não rechaça a existência de aspectos biológicos, de
modo que, “variações em cada um desses aspectos da fisiologia afetam profundamente a experiência
individual do gênero e da sexualidade”.
Falar sobre a sexualidade humana requer um conceito do material, mas a ideia do material já
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chega contaminada, contendo dentro dela ideias pré-existentes sobre a diferença sexual, de modo
que, cada vez que tentamos nos voltar para o corpo como algo que existe antes da socialização,
antes do discurso sobre macho e fêmea, afirma Butler (2010, p. 28), “descobrimos que a matéria está
inteiramente sedimentada com discursos sobre o sexo e a sexualidade que prefiguram e limitam os
usos que podemos fazer desse termo”. Essa perspectiva levou Butler (2010) a problematizar a respeito
de uma verdade sobre os gêneros, e sobre os corpos, que estaria presente nas relações humanas e
sociais, o que somente seria possível através de “gêneros inteligíveis”.
Butler (2010) considera que as regulações de gênero não são apenas mais um exemplo das
formas de regulamentação de um poder mais extenso, mas constituem uma modalidade de regulação
específica que tem efeitos constitutivos sobre a subjetividade. As regras que governam a identidade
inteligível são parcialmente estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma
hierarquia entre masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória. Nestes termos o gênero
não é nem a expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma construção
social. O sujeito gendrado seria, antes, o resultado de repetições constitutivas que impõem efeitos
substancializantes. Com base nestas definições, a autora chega a afirmar que o gênero é ele próprio,
uma norma. (BUTLER, 2009)
Essa inteligibilidade é fundamental para problematizar a respeito da construção de identidade,
mas também, da própria noção de ‘pessoa’ que seria constituída a partir de sua lógica de coerência
aos códigos inteligíveis da ordem dominante, assim como, pela sua continuidade dentro de uma
lógica de repetição binária dos modelos previamente dados. A esse respeito, Butler (2010, p. 38)
também atesta que, em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo,
gênero e sexualidade, “a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural
daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não
se conformam às normas de gênero da integibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas”.
Evidentemente a produção de identidades fixas e absolutas remete a um modo de subjetivação
possível que se orienta pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, que produziriam sujeitos
do sexo/gênero definidos e definitivos, a partir da produção de códigos inteligíveis, gerados pela
heteronormatividade: um princípio regulador, disciplinar e compulsório da heterossexualidade.
Qualquer variação das proposições dadas pelo sistema sexo/gênero colocará os sujeitos
dissidentes na marginalidade, tendo a sua disposição os mais diversos estigmas relacionados às
sexualidades e as expressões de gêneros, que se intensificam mais ainda quando se compõe com
outras categorias, como classe social, raça e etnia, geração, enfim, com a violência estrutural. Tudo
isto, afirma Jaqueline de Jesus (2016), acaba intensificando a crença de que o outro é doente, uma
pessoa incapacitada, que não tem a plena condição de falar por si mesmo, ou de si mesmo. Verdadeira
despersonalização que deriva da patologização do diferente, e que demonstra que a própria categoria
gênero é patologizada, tratada como um transtorno que deve ser diagnosticado, caso a identidade de
gênero do indivíduo não se adeque às expectativas.
Butler (2010) analisa grupos como transexuais, intersexos, homossexuais e transgêneros, abordando
o problema da sua (in)adequação a um ideal normativo, que os torna “patológicos”, a partir do que passa
a questionar o que é humano, e como se dá seu reconhecimento. Para a autora (1998, p. 36), a tentativa
de estipular conceitos universais a partir de identidades pré-definidas soa excludente e contraditória:
“as categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal,
exclusivistas”. Desse modo, a tentativa tradicional de constituir a identidade dos sujeitos a partir da
descrição revela-se um ato de normatização, controlando, pela exclusão e pré-definição, comportamentos
linguísticos e sociais em geral. O perigo na definição de critérios a priori de humanidade está no seu
oposto, ou seja, na produção do menos “humano”, do inumano, do abjeto, justamente aqueles a quem a
autora (2002, 2009) quer dar conta, concedendo humanidade ao inabitável, ao “invisível”.
É neste contexto que Foucault (2015, p. 77) ressalta o caráter histórico e biopolítico dos corpos,
no sentido que a sociedade exerce um controle sobre os indivíduos não apenas através de ideologias
ou da consciência, mas também por meio dos corpos. “Foi no biológico, no somático, no corporal
que antes de tudo investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica”. (FOUCAULT,
2015, p. 77) Conforme o autor destaca no capítulo final da História da Sexualidade, a partir da virada
para o século 19, deu-se um importante deslocamento na forma de exercício do poder soberano, que
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passou a se afirmar não mais como um poder de matar a vida, mas sim como um “poder que gere a
vida”. Agora, interessava ao poder estatal estabelecer políticas públicas por meio das quais poder-se-
ia sanear o corpo da população, depurando-o de suas infecções internas.
De acordo com a síntese de Duarte, Foucault compreendeu que, a partir do momento em que a
vida passou a se constituir como elemento político por excelência, sua administração, cálculo, gerencia
e normalização por políticas estatais levou, não a uma diminuição da violência, mas ao contrário.
O cálculo biopolítico da vida de uns traz consigo, de maneira necessária, a exigência contínua e
crescente da morte em massa de outros, pois é apenas no contraponto da violência depuradora que
se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Não há, portanto,
contradição entre o poder de gerência e incremento da vida e o poder de matar para garantir as
melhores condições vitais possíveis: toda biopolítica é também, intrinsecamente, uma tanatopolítica.
Assim, a partir do momento em que a tarefa do soberano foi a de “fazer viver”, isto é, a de estimular
calculadamente o crescimento da vida, as mortes de alguns, se tornaram necessárias.
É a partir do gerenciamento deste recorte biopolítico entre as vidas vivíveis e as sacrificáveis
que se torna possível falar, biopoliticamente, em corpos, ou vidas que importam, e ao contrário, dos
que não importam, considerados abjetos pela norma, desconstituídos de humanidade, e invisíveis,
e paralelamente empreender uma tentativa ética de desvincular do caráter patológico aqueles que
apresentam complexidades não absorvidas pelo ideal normativo para, a partir da desmistificação das
configurações sociais excludentes, devolver-lhes o direito básico a uma existência legítima.
A transexualidade tem sua história embasada em mitos e lendas que acabam por revelar a sua
existência desde os primórdios da humanidade, mesmo que as análises científicas e médicas só
tenham ocorrido, de fato, nos últimos 50 a 70 anos. (SZANIAWSKI, 1998) Atualmente, nos termos legais
e médicos, considera-se que o indivíduo transexual seja aquele que possui claramente a sensação
de que a biologia enganou-se quanto ao seu corpo, “colocando-o” em um sexo que não é o seu, e
que, portanto, vive um grande conflito interior, vez que mesmo com todos os atributos físicos de um
sexo, ele sente, pensa e age como integrante do oposto, e, na quase totalidade dos casos, comete
atos contra si mesmo, na intensa vontade de adequar seu corpo à sua alma. (STURZA; SCHOOR, 2015)
Na conceituação de Vieira (2000, p. 88), transexual pode ser definido como “o indivíduo que possui
a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento,
reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia”.
Klabin (1977, p. 5) concebe o transexual como “[...] um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que
acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo
desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao ‘verdadeiro’ sexo, isto é, ao seu sexo psicológico”.
Recentemente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2018, p. 18) conceituou,
Independente da definição alerta Patrícia Grossi (2012, p. 173), em muitos contextos, “a violência
contra essa população é legitimada na sociedade por meios dos discursos ideológicos manifestos por
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instituições, como a igreja, a família, a mídia, a justiça e a escola, e é considerada por muitos como
fato positivo para a correção de desvios e transgressões”. E assim “reafirma ideologias que têm em
seu cerne a reificação do sujeito, a subalternidade dos indivíduos e a necessidade de “eliminação” de
qualquer identidade que não siga à risca o destino e o padrão predefinido pela heteronormatividade”.
(GROSSI, 2012, p. 173) Diariamente, lembra Jaqueline de Jesus (2016, p. 539), “pessoas trans sofrem
porque diferentes organizações não lhes permitem utilizar seus nomes sociais” e impõem obstáculos
para a adequação jurídica “de seus registros civis (nomes e sexo na certidão de nascimento) à sua
realidade. Têm acesso dificultado ou impedido à educação, ao mercado de trabalho qualificado e até
mesmo ao uso de banheiros”, de modo que, todas estas situações de discriminação e opressão153,
dada a falta de um referencial legislativo que verse sobre o tema, desembocam no Poder Judiciário
que, ao tomar suas decisões pode superá-las, em nome da dignidade ou perpetuar, e em muitos casos
reforçar as situações de discriminação.
No Brasil, até 1997, transexuais não tinham quaisquer direitos específicos reconhecidos. A
realização da cirurgia de transgenitalização era considerada não apenas um ilícito civil, mas também
crime. À época, afirmava-se que amputar parte saudável do corpo era um ato ilegal, e o consentimento
do paciente não tinha qualquer valor jurídico. (CAMPOS, 2016) A primeira cirurgia de redesignação
ocorreu com o transexual Waldir Nogueira em 1971. Não obstante, o Ministério Público ofereceu
denúncia contra o médico pela prática de crime de lesões corporais de natureza gravíssima, o que
ensejou a sua condenação em primeira instância a dois anos de reclusão. Em 2º grau foi absolvido,
pois o tribunal compreendeu a inexistência de ação dolosa em sua atividade profissional, tendo
caráter terapêutico. (BUNCHAFT, 2013)
Assim, durante muitos anos, o Conselho Federal de Medicina compreendia que essa cirurgia tinha
caráter mutilante e não corretivo, e o médico que a praticasse cometia crime de lesão corporal. A
partir da Resolução n. 1.482/97, oriunda de uma mudança de interpretação do campo da medicina, a
cirurgia passou a ser considerada terapêutica, e não criminosa. O Conselho Federal de Medicina editou,
em 2002, a Resolução n. 1.652/02, seguida pela resolução n. 1.955/2010, que permitiu que toda e
qualquer cirurgia de redesignação sexual seja procedida em hospitais públicos ou privados. No entanto,
antes de realizar a cirurgia, o transexual, maior de 21 anos deve se submeter a um acompanhamento por
uma equipe médica multidisciplinar constituída por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e
assistente social por período não inferior a dois anos. (BUNCHAFT, 2013)
Esta resolução definiu o indivíduo transexual como sendo “portador de desvio psicológico
permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou
autoextermínio”, devendo ele obedecer a alguns critérios: ter profunda insatisfação com o sexo
anatômico, desejo expresso de eliminar as genitais, permanência desse distúrbio de forma contínua
e consistente por, no mínimo dois anos e ausência de outros transtornos mentais. (BUNCHAFT, 2013)
Na questão jurídica, foi a partir do Código Civil de 2002 que seu artigo 13 dispôs que “Salvo exigência
médica, é defeso ato de disposição do próprio corpo, quando importar em diminuição permanente
da integridade física ou contrariar os bons costumes”. (BRASIL, 2002, s.p.) A cirurgia de redesignação
passou a ser permitida por lei, pois realizada por exigência médica com caráter terapêutico. Assim,
afirma Campos (2016), para manter a ordem dual heteronormativa, a legislação brasileira atribui a essa
identidade uma conotação negativa e depreciativa, e a expõe a mais discriminação. Tal ‘alternativa’
está, portanto, muito longe de ser satisfatória.
Mesmo depois da “permissão” jurídica e médica concedida para a realização da cirurgia de
transgenitalização, permaneceu uma grande celeuma quanto à possibilidade de alteração de prenome
e do status de gênero. Tais questões, uma vez que não reguladas por nenhuma legislação, acabaram
sendo objeto de demandas judiciais, que atualmente englobam também discussões jurídicas a respeito
da utilização de banheiros por pessoas trans, dentre outras. (RIOS; RESADORI, 2015) Quanto ao
primeiro ponto, durante a década de 1980, a jurisprudência havia consagrado a tese da imutabilidade
do prenome e do estado sexual no registro. Somente as retificações da Lei de Registros Públicos eram
153 Conforme aponta Jesus (2016, p. 540), o Brasil “é o país onde mais se matam pessoas travestis e transexuais no mun-
do. Segundo a pesquisa Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), conduzida pela organização não-governamental
TransGender Europe - TGEU, nosso país responde por 39,8% dos 816 assassinatos de pessoas trans registrados no mundo
entre 2008 e 2011 e, tomando-se apenas o ano de 2011, das 248 pessoas assassinadas por serem transexuais ou travestis,
ao redor do globo, 101 eram brasileiras”. (JESUS, 2016, p. 539)
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admitidas, pois o registro público deveria ser preciso e regular, constituindo expressão da verdade.
Quanto à mudança de sexo, o entendimento era no sentido de que sexo não era uma questão de
escolha, mas determinado biologicamente.
Consequentemente, a cirurgia não suscitava uma verdadeira alteração do sexo. Tal retificação
do registro civil só era admitida, em regra, no caso do intersexual. A modificação em relação a este
entendimento surge na década de 1990 na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, que passou a decidir favoravelmente em relação à admissibilidade da modificação do registro
do transexual redesignado. (BUNCHAFT, 2013) Nesta esteira, alguns tribunais passaram a decidir
pela licitude da cirurgia e pela admissibilidade da mudança do prenome, e o entendimento passou a
ser no sentido de que nada adiantará ao transexual a cirurgia, se houver a situação vexatória de se
apresentar à sociedade com um prenome incompatível com a sua situação física.
Atualmente, a jurisprudência majoritária permite a alteração de prenome independentemente da rea-
lização da cirurgia de transgenitalização, mas negando quanto à alteração de gênero no registro, condi-
cionando-o ao procedimento cirúrgico154. No entanto, anteriormente havia controvérsia na jurisprudência,
havendo decisões que consideravam o sexo não como uma questão de escolha, mas biologicamente deter-
minado, o que só foi superado em 2009, no julgamento do RESP n. 1008398/SP pelo STJ. (BUNCHAFT, 2013)
Do exposto, aduz-se que tanto neste como na maioria dos fatos jurídicos relativos ao tema,
a heteronormatividade sempre acaba sendo mobilizada como parâmetro de deliberação para
o reconhecimento ou não do direito à identidade de gênero. Os estereótipos de feminilidade e
masculinidade privilegiados, mesmo em discussões de temas como a transexualidade, ainda se
constituem em modelos aprisionantes e geradores de separações entre os seres dignos e passiveis
de direitos, daqueles que estão à margem. Deste modo, o direito perpetua sua tradicional tarefa de
criação e de perpetuação do gênero, da sexualidade, e das relações de poder nele implícitas.
No caso específico dos transexuais, “o que se busca é o reconhecimento legal de sua identidade
de gênero, cabendo ressaltar que a vivência das pessoas trans com seu gênero não tem nada a ver
com orientação sexual: elas lutam para serem reconhecidas pelo gênero com o qual se identificam,
e não por aquele que lhes atribuíram”. (JESUS, 2016, p. 541) Como as demais pessoas, “uma pessoa
trans pode ser bissexual, heterossexual, homossexual ou ainda assexual, dependendo do gênero que
adota e do gênero com relação ao qual se atrai afetiva e sexualmente”. (JESUS, 2016, p. 542) Portanto,
a exclusão e violência contra pessoas trans não são derivadas de sua orientação sexual, mas devido
ao preconceito quanto à sua identidade de gênero, pautada na crença de que “natural” é que aquele
atribuído no nascimento seja o com o qual as pessoas se identificam e, qualquer desvio mereceria
repúdio ou mesmo agressão, em um nível diferente do da homofobia. (JESUS, 2016) Neste caso, pode-
se falar no direito de vida e de morte, ao passo que “o direito que é formulado como ‘de vida e morte’
é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver [...]”. (FOUCAULT, 2014, p. 148)
Ao passo que “[...] o poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-
se princípio de estratégia entre Estados; mas a existência em questão já não é aquela — jurídica —
da soberania, é outra — biológica — de uma população” (FOUCAULT, 2014, p. 149) Nesse sentido, o
poder se exerce agora ao nível da vida, da raça, da espécie e de todos os outros fenômenos maciços
da população. (FOUCAULT, 2014, p. 150) Sendo que “[...] é o fato do poder encarregar-se da vida, mais
do que a ameaça da morte, que lhe dá acesso ao corpo.” (FOUCAULT, 2014, p. 155)
A partir deste referencial teórico foucaultiano pode-se compreender a violência e a morte de inúmeras
mulheres transexuais, sem que haja um grande clamor por parte da mídia e da sociedade em geral. Pode-
se também compreender de que modo se exerce o poder de causar a morte ou de deixar viver, que se
intensifica quando estas não se sujeitam a seguir os padrões estéticos e a performar os estereótipos do
gênero feminino impostos pelo processo de estetização do mundo na sociedade de consumo, que reconhece
como sujeitos de direitos apenas aqueles que enquadram na classificação binária homem-mulher.
Nesse sentido, conforme dados registrados em um relatório de 2012 pela Secretaria Federal de
Direitos Humanos sobre a violência contra as pessoas LGBT no Brasil (GLOBAL RIGHTS, 2013), apesar
de as mulheres trans representarem cerca de 10% da população total de LGBTs no Brasil, elas foram
154 Ver, nesse sentido, manifestação do Tribunal de Justiça de Sergipe através da 1ª Câmara Cível no julgamento da Apela-
ção Cível n. 2012209865 por meio da relatora, Desembargadora Maria Aparecida Santos da Silva Diário da Justiça 9/7/2012.
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responsáveis por desproporcionais 50,5% dos cerca de 300 assassinatos de pessoas LGBT. Outro dado
relevante é o fato de que 52% das vítimas eram de pele negra ou marrom. Assim também, um relatório
anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), uma organização nacional dedicada a combater a violência contra
LGBT brasileiros, afirmou que houve um aumento de 21% em assassinatos de pessoas LGBTs entre
2011 e 2012, elevando o número total de vítimas de 266 para 338. (GRUPO GAY BAHIA, 2012)
Conforme dados da ONG internacional Transgender Europe (BENTO, 2014, p. 31), “o Brasil é o país
onde mais ocorrem assassinatos de [...] transexuais [...] De janeiro de 2008 a abril de 2013, foram 486
mortes [...] Em 2013, foram 121 casos de [...] transexuais assassinados em todo o Brasil. Esses dados
estão subestimados”. Ainda, segundo relatórios desta mesma ONG, 1731 pessoas trans foram mortas
entre 2008 e 2015, destes 1350 assassinatos aconteceram na América Latina, dos quais 689 foram no
Brasil, assim, com base nas palavras de Loureiro e Vieira (2015, p. 49), conclui-se que “o Brasil é o país
mais violento para pessoas trans”. A passo que “El denominador común de esta violencia es la idea que
tiene el perpetrador de quela víctima ha transgredido las normas de género aceptadas” (CIDH, 2014, p. 1)
Conforme dados do comunicado de Imprensa 153/14 da Corte Interamericana de Direitos
Humanos “Se producen casos de violencia contra personas LGBT en los 35 Estados Miembros de la
OEA pero no siempre son objeto de denuncias ni se reportan en los medios de comunicación”. (CIDH,
2014, p. 2) De modo que “muchos casos de violencia contra personas LGBT no se denuncian ya
que muchas personas, temiendo represalias, no quieren identificarse como LGBT o no confían en la
policía o en el sistema judicial”. (CIDH, 2014, p. 2) Ao passo que “A la COMISSÃO INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS le preocupa la información inquietante relativa a abusos policiales, tales como
actos de tortura, tratos inhumanos y degradantes, y ataques verbales y físicos.” (CIDH, 2014, p. 3)
Além disso, para melhor exemplificar como ocorre a discriminação dos transexuais, seguem dados
da Fundação Americana para Prevenção de Suicídio e do Instituo Williams (Ucla) de “como é a discriminação
das pessoas trans nos EUA, onde há pesquisa sobre o tema”. (LOUREIRO; VIEIRA, 2015, p. 49) Assim,
temos que: 70% sofreram violência física ou sexual da polícia; 57% foram rejeitados ou abandonados pela
família; 69% já ficaram desabrigados; 45% das pessoas trans tentaram o suicídio antes de completar 24
anos; entre 0,25% e 1% da população norte-americana se declara transgênera; e que, 3 (três) em cada 4
(quatro) transgêneros sofrem abuso sexual na escola. (LOUREIRO; VIEIRA, 2015, p. 49)
Os números relatados até o início do ano de 2016 foram tão alarmantes que levaram a ONU e seus
parceiros a concluir que “a violência contra pessoas trans é ‘extremamente alta nas Américas” (BRITO, 2016,
s.p.), pois o Brasil, juntamente com os Estados Unidos, a Colômbia e com Honduras se mostrou entre os paí-
ses mais violentos para trans no continente. Levando o escritório da ONU a se reunir com a Comissão Afri-
cana de Direitos Humanos e dos Povos e com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para
elaborar um relatório reunindo os debates e dados apresentados na ocasião – em 7 (sete) de abril de 2017.
De modo que “a CIDH observa que as estatísticas disponíveis não reproduzem a dimensão da
violência enfrentada pelas pessoas LGBTI no continente americano. [...] Os mecanismos de coleta de
dados nos países da OEA são muito precários” (CIDH, 2015, p. 81 e 82) Pois “a insuficiente capacitação
de agentes de polícia, promotores e autoridades médico legais também pode ser a causa dos registros
imprecisos” (CIDH, 2015, p. 82) Ao passo que “Os índices baixos de denúncias e a ausência de
mecanismos oficiais de coleta de dados invisibilizam a violência contra pessoas LGBT e dificultam a
resposta efetiva dos Estados.” (CIDH, 2015, p. 83)
Por conseguinte, a partir do cenário traçado pode-se compreender de que modo as pessoas
transexuais, vítimas de toda sorte de violações de direitos humanos em função de sua condição de
gênero e sexualidade, tornam-se típicas vidas matáveis da contemporaneidade, cujas mortes tornam-
se irrelevantes para a grande maioria da sociedade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através dos estudos de Michel Foucault (2015) que desvelaram as relações de poder, inicialmente
disciplinar e posteriormente biopolítico, que se efetivaram a partir do controle do corpo, seja ele
físico e individual, ou a coletividade do corpo social, as relações entre corpo, sexualidade e gênero
passaram a receber uma atenção especial. Por meio das estratégias do biopoder, com uma gestão
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calculada da vida do corpo social, o sexo se tornou o centro da disputa política tornando-se produto
do dispositivo da sexualidade. Tal dispositivo buscava regular os prazeres e as expressões corporais,
institucionalizando a binariedade de gênero e a heterossexualidade compulsória, de modo a normatizar
e normalizar os corpos dos indivíduos. Diante disso, o objetivo deste trabalho era compreender, a
partir dos estudos de Michel Foucault, de que forma o dispositivo da sexualidade e o processo de
normalização das relações de gênero e dos corpos influenciam os processos de corporificação dos
transexuais. Ao passo que a hipótese provisória foi completamente comprovada, pois os sujeitos
transexuais, que não se enquadram na lógica de inteligibilidade cultural sexo/gênero/desejo/práticas
sociais acabam por ser marginalizados, sendo vítimas dos mais diversos estigmas relacionados às
sexualidades e as expressões de gêneros intensificados pela violência estrutural.
De modo que conforme dados do comunicado de Imprensa 153/14 da Corte Interamericana de
Direitos Humanos “Se producen casos de violencia contra personas LGBT en los 35 Estados Miembros
de la OEA pero no siempre son objeto de denuncias ni se reportan en los medios de comunicación”.
(CIDH, 2014, p. 2) Os números relatados até o início do ano de 2016 foram tão alarmantes que
levaram a ONU e seus parceiros a concluir que “a violência contra pessoas trans é ‘extremamente alta
nas Américas” (BRITO, 2016, s.p.), pois o Brasil, juntamente com os Estados Unidos, a Colômbia e
com Honduras se mostrou entre os países mais violentos para trans no continente. Por conseguinte
resta salientar que as pessoas transexuais são vítimas de toda sorte de violações de direitos
humanos em função de sua condição de gênero e sexualidade e tornam-se típicas vidas matáveis da
contemporaneidade, cujas mortes tornam-se irrelevantes para a grande maioria da sociedade.
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330
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
INTRODUÇÃO
155 Bacharel e mestre em Direito com concentração em Direitos Humanos e pesquisador de novas tecnologias. email: tiago.
protti.spinato@gmail.com
156 Bacharela em Direito pela UNIJUI, advogada e pesquisadora de novas tecnologias. email: fernandalencinaribeiro@gmail.com
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
que por muitas vezes também não tem conhecimento de que pode vir a ser uma vitima do delito.
Ocorre que com os delitos relacionados a ele estão aumentando de forma bastante rápida, e sua
frequência está causando prejuízos financeiros gigantescos, devemos supor que discorrer sobre o
assunto se apresenta como algo significativo para a sociedade atual.
O termo ransomware é um utilizado como termo genérico para que se possa identificar um tipo
de malware comumente utilizado para a prática de crimes de extorsão, quando ameaçam as vítimas
por meios digitais, obrigando-as a fazer pagamentos de valores específicos em moedas determinadas
em troca de seus dados (LISKA; GALLO, 2017).
A definição mais aceita nos dias de hoje, e que conceitua bem o que é realmente o ransomware,
é que ele é um tipo especifico de malware que nega o acesso do usuário a seus dados, criptografando
drives inteiros e demandando um ranson para que o usuário possa ter as suas informações devolvidas
(HASSAN, 2019). Normalmente essa devolução somente ocorre com o pagamento de um resgate, e por
isso que essa prática muitas vezes é conhecida também como um sequestro digital, mudando o alvo que
usualmente são pessoas, para os seus dados, que muitas vezes tem informações vitais e importantes
para o andamento de companhias ou mesmo valor comercial ou sentimental para o seu dono.
Essa problemática cria novos jeitos de extorsão virtual, gerando um mercado bastante
lucrativo e sem precedentes, e que pode gerar inúmeros prejuízos, pois, antigamente, a lógica era
a de roubar dados de grandes empresas usando de malwares, para vender aos seus concorrentes
como um tipo moderno de espionagem industrial, se valendo de roubo por autônomos, que depois
tentavam capitalizar as informações. Não podemos claramente dizer que essa prática foi extinta,
porém pensando que as grandes corporações que tem poder econômico são limitadas, e dificilmente
incorreriam no erro de ter seus dados roubados de forma sistemática, se apresenta um mercado com
mais possibilidades, colocando como vitima qualquer pessoa que faça uso da rede, assim a lógica que
legitima o golpe se dá na quantidade de pessoas que podem ser atacadas.
332
MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
As informações que todos nós diariamente despejamos nas redes compartilhadas, são inúmeras
e fazem com que bancos de dados tenham uma visão praticamente completa de nossas vidas,
interesses, gostos e poder de compra. Isso faz com que esses dados sejam uma moeda muito
valorizada no mercado, porque quem detêm a informação também sabe como deve proceder para
seu produto vender mais, ou para controlar uma nação em um estado autoritário.
Frente a isso podemos entender que a moeda mais cara do mercado nos dias de hoje, são
os dados que gratuitamente fornecemos as redes, que de forma peculiar conseguem monetizar os
mesmos para auferir lucro e fazer suas ações de marketing para o consumo de massa. Ocorre que
então, existem cada vez mais criminosos que tentam acessar e roubar esses dados, para conseguir,
com chantagem e ameaças, que valores sejam pagos.
Para que a segurança cibernética seja mantida, existem várias formas de blindagem de dados,
como a utilização de antivírus, realizar o backup regular dos dados, firewalls de segurança, cópias
via e-mail, entre outras formas de proteção importantes, principalmente contra ataques criminosos
realizados por amadores (BRILL; THOMPSON, 2019). Isso faz com que as informações e dados não
fiquem restritas a apenas um local, minimizando o dano e retirando o poder do criminoso, que, ao
roubar dados duplicados, não causará dano real a vítima.
Para isso, algumas companhias de seguro já começaram a oferecer um seguro cibernético, para que
estejam preparadas para ataques e não tenham grandes prejuízos, com uma cobertura variada de acordo
com a necessidade de proteção e o risco de violação de cada instituição (BRILL; THOMPSON, 2019).
Contudo, espera-se que as vítimas aprendam como funcionam os ataques e assim consigam
formas de se proteger de novos ataques, e vendo outras vítimas, consigam ter noção do alcance que
essas ameaças podem ter. “Em cada período, uma nova vítima decide se deve ou não pagar o resgate
e o criminoso decide se deve ou não devolver os arquivos.” (CARTWRIGHT; CARTWRIGHT, 2019, p.2).
Assim, e como demonstrado por dados reais, os ataques de ransomware estão em franca
escalabilidade, com um crescimento exponencial que se apresenta como uma epidemia nas redes de
todo o mundo, ocorrendo pelo fato de que a regulação e as punições são quase inexistentes, e o valor
recebido nessas operações costuma compensar o esforço realizado. Muitas vezes as pessoas e empresas
com medo de perder os seus dados, simplesmente aceitam a chantagem, realizam o pagamento e sequer
procuram as autoridades competentes, devido a isso podemos entender que o número de ataques, que
mesmo agora já alarmantes, podem ter um número muito maior que não é conhecido.
2 RANSOMWARE E A CIBERSEGURANÇA:
No atual contexto em que vivemos, a internet está cada vez mais presente em nossa vida, desde
nas relações entre amigos, amorosas e até mesmo entre a família, até a nossa forma de comprar objetos,
contratar serviços, adquirir conhecimento, passando também pelo nosso dia a dia, a forma como pedimos
a nossa comida e a o serviço de streaming utilizado para assistirmos a filmes, séries e documentários.
Sem contar a forma utilitária para pagamento de contas, transferências, detalhamento de crédito, tudo
passa pela internet, sendo que está pode estar conectada por fio ou sem fio (PRASAD; ROHOKALE, 2020).
Dessa forma, é conexão se torna um fator de grande importância, para que cada um tenha
acesso a esses serviços, sem conexão, não há como partilhar dados nem realizar tarefas, e é devido a
essa conectividade que se torna possível o rastreamento de dados de todos os usuários e objetos por
meio do endereço IP (PRASAD; ROHOKALE, 2020). Podemos usar de exemplo à formação do estado,
onde se permitiu a restrição de certas liberdades, para a confecção de um contrato social que seria
benéfico a toda sociedade, e nos novos tempos, abdicamos da privacidade para usufruir das benesses
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O ransomware é uma forma de chantagem que vem sendo utilizada por usuários maldosos, que
acessa os arquivos do sistema de dados e capturam arquivos de diferentes formatos e segmentam esses
arquivos, tornando quase impossível recuperá-los sem a utilização de uma chave de criptografia, que
estão nas mãos dos criminosos. (MAIGIDA et al, 2019). Esse tipo de coação se demonstra como um ótimo
meio de auferir ganho para os criminosos, que ao privarem as vitimas de seus dados, muitas vezes as
colocam em situações desesperadoras, envolvendo seu trabalho, ou mesmo sua vida pessoal com a perda
fotos e lembranças que não poderão ser recuperadas se o pagamento não ocorrer de forma rápida.
Dessa forma, os pesquisadores de segurança e tecnologia vêm buscando meios de solucionar
esses ataques, e ainda prevenir os mesmos, para que haja mais segurança entre os usuários e que a
solução seja duradoura, visto que a tecnologia está em constante transformação (MAIGIDA et al, 2019).
Pois como podemos constatar, não mais apenas os dados dos seres humanos podem ser bloqueados
por esse tipo de ação, mas as consequências podem ir para esferas práticas da sociedade, inclusive
podendo causar um sério dano a vida de seres humanos que estão sendo tratados em hospitais com
o auxilio de sistemas ligados a redes.
Existem duas principais tendências atualmente, que discutem a segurança cibernética quando
utilizadas na área médica, sendo que a primeira aborda o crescimento da utilização da tecnologia por
profissionais da saúde, com novos dispositivos e novos usos de sistemas para o benefício dos pacientes.
Sistemas, softwares e computadores que desempenham funções cada vez mais complexas. (WIRTH;
GRIMES, 2020). Esses sistemas inovadores podem vir a serem grandes aliados da comunidade médica
para mitigar erros e tornar a detecção de doenças uma prática mais célere, sendo uma realidade já nos
dias de hoje, e claramente demonstrando que terá um crescimento exponencial com o passar dos tempos.
A segunda discussão revela a forma como os ataques vêm se atualizando e aumentando, se
mantendo cada vez mais sofisticados e protagonizando ameaças mais destrutivas, causando prejuízos
cada vez maiores para a saúde dos pacientes que necessitam destes dispositivos médicos, os quais
enfrentam ameaças que não foram projetados com um sistema de defesa, pois só agora foi possível
perceber a vulnerabilidade desses sistemas (WIRTH; GRIMES, 2020). Esse erro se deu pelo fato de que os
desenvolvedores não conseguiram prever que ataques ransomware poderiam também afetar esse tipo
de equipamento, pois na época de seu desenvolvimento, sequer era cogitado que isso poderia ocorrer.
Outro setor que pode ser virtualmente destruído com o advento desses ataques maliciosos, é
o das novas moedas digitais, conhecidas como criptomoedas sendo a mais popular e valiosa delas a
moeda conhecida como Bitcoin. Quantidades astronômicas de dinheiro circulam por esses meios, e
elas podem ter a sua segurança corrompida por ataques ransomware que visariam tornar o acesso do
proprietário da moeda impossível, fazendo com que a chantagem possa cobrar valores para que ele
tenha novamente sua carteira disponível.
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Uma das pautas mais discutidas quando entramos na questão do ransomware e no ataque
aos dados de usuários, é a questão da segurança de informação e de que forma podemos de forma
realmente efetiva tomar medidas para mitigar os danos e o acesso dos criminosos a esses dados. Isso
se torna um problema de grande complexidade quando as redes e códigos inerentes ao funcionamento
da tecnologia se demonstram como algo mutável onde novos paradigmas vêm sendo desenvolvidos
todos os dias, tanto para a proteção, mas também para o uso malicioso.
Dessa forma, os pesquisadores de segurança e tecnologia vêm buscando meios de solucionar
esses ataques, e ainda prevenir os mesmos, para que haja mais segurança entre os usuários e que
a solução seja duradoura, visto que a tecnologia está em constante transformação (MAIGIDA et al,
2019). Consequentemente existem esforços globais que tentam frear o uso malicioso de programas,
sendo que muitas vezes os estados oferecem aos criminosos remição na sua pena se assim contribuir
para esses esforços.
Assim, com base na análise de dados e de ransomware, é possível concluir que a melhor forma
de proteção contra os ataques, para prevenir e dessa forma criar um mecanismo de defesa, é realizar
um backup dos artigos regularmente, além de buscar novos avanços tecnológicos que possam trazer
mais segurança ao usuário, como desenvolvimento de algoritmos para proteção de dados (MAIGIDA
et al, 2019). Ocorre que isso visa apenas mitigar os danos causados pelos ataques, e não tem um
papel prático na hora de evitar os mesmos, mesmo assim no atual momento se demonstra como a
melhor forma de segurança na rede.
Aliados aos pesquisadores, as autoridades policiais também têm um papel importante na
investigação dos ataques, para identificar os responsáveis e puni-los, “Juntas, a academia, as autoridades
policiais estaduais e locais, a segurança privada e as agências reguladoras podem estender melhor a
segurança pública no mundo cibernético. “(LOSAVIO et al, 2019, p. 215).
Com a crescente ocorrência desses crimes de sistemas cibernéticos, a cibersegurança se tornou
uma questão geral de segurança pública, principalmente com a Internet estando cada vez mais presente
em todas as relações, transformando até mesmo a forma como crimes são cometidos (LOSAVIO et al,
2019). Isso demonstra que a preocupação em combater esses crimes mesmo que nova, se torna vital
para a manutenção da sociedade, visto que os dados hoje são usados como uma moeda poderosa e
vital na nossa conjectura social.
Por esse motivo se necessita que a sociedade crie maneiras de regular esses crimes, e ter
mecanismos de mitigação dos danos e punição de seus culpados, pois como anteriormente exposto,
o a ataque aos dados podem ocasionar danos reais e comprometer até a integridade física de pessoas
que se encontram em hospitais conectados a redes.
Com o advento das novas tecnologias que permeiam o nosso mundo, criamos artificialmente
milhões de possibilidades diferentes, e com isso encontramos condições mais cômodas para a vida
dos seres humanos, fazendo com que máquinas e programas hoje realizem atividades complexas
que antes eram relegadas apenas aos seres humanos, que faziam isso de forma mais lente e menos
eficaz. Essa revolução cibernética se apresentou para a sociedade com um viés de transformação tão
profundo, como poucas vezes em nossa breve história foi vislumbrado pelos seres humanos, que hoje
tem uma dependência quase vital a rede e as máquinas virtuais que fazem parte da nossa existência.
Porém como a história pregressa demonstra, sempre que surgem inovações na sociedade, que
visam apenas o bem estar humano, também ocorrem a destruição dessas expectativas, frente a
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subversão da tecnologia, que pode ser usada para fins maliciosos e gerar inúmeros prejuízos para
muitas pessoas. Nos tempos antigos os crimes eram essencialmente territoriais, e ocorriam no local
em que a pessoa estava sendo assim as leis e políticas de repressão foram construídas baseadas
nesse pressuposto, incluindo aí as legislações de países e também as condições de soberania de
territórios, e de condutas praticadas em sua terra física.
Com esse aumento dos crimes cibernéticos, e de chantagens às empresas e aos usuários, os
pesquisadores e especialistas do meio, trabalham exaustivamente para solucionar os ataques, mas nesse
tempo os crimes continuam ocorrendo e os sistemas ficando cada vez mais a mercê de criminosos. Existe
já um projeto com 13 diretrizes que funcionariam para prevenção dos ataques, porém trata-se de apenas
diretrizes básicas de segurança da internet, não tendo a eficácia necessária (MANJEZI; BOTHA, 2019).
Esse sistema de diretrizes demonstra que os especialistas em segurança cibernética não estão
preparados para ataques que estão em constante evolução e acreditam que utilizando diretrizes
básicas e antigas conseguiriam controlar a disseminação dos ataques, e ressaltando ainda o baixo
nível de conscientização das empresas da existência de ataques, o que faz com que os esforços de
treinamento baseados nas diretrizes básicas não sejam eficazes de fato (MANJEZI; BOTHA, 2019).
A efetiva função do estado como regulador das atividades humanas, muitas vezes se da de
forma lenta frente a evolução da sociedade, que de forma exponencial cria soluções e alternativas
tecnológicas para resolver os problemas do mundo, e com isso causa danos com sua inércia, e sua
inabilidade de regular a sociedade como ela de fato se encontra na época. Esse sempre foi um problema
enfrentado pelo nosso ordenamento, porém hoje ele se agrava, pois a velocidade de mudança se
apresenta em proporções nunca vivenciadas pelos seres humanos em qualquer época.
Segundo Reins (2019), são amplos os questionamentos que surgem quando falamos em um
sistema jurídico com normas atualizadas e prontas para as novidades que vem surgindo, com o
crescimento constante da tecnologia, esses questionamentos servem para analisar se a o sistema
jurídico atual pode se adequar e ser aplicado para as novas formas de comercio de bens e serviços,
assim como a novas moedas, ou se será necessário novas normas.
Contudo o que se questiona é de que forma o atual direito civil e contratual não seria aplicável, se
este estaria desatualizado perante a mudança, se o que temos atualmente não é o suficiente para suprir as
mudanças da inovação tecnológica (REINS, 2019, p.11). Assim, frente a perspectivas históricas, o direito
normalmente anda a passos lentos frente a mudanças da sociedade, e nesse caso não seria diferente,
demonstrando que existe uma grande necessidade de mudar esse fator, tornando a positivação mais
célere conforme os pressupostos tecnológicos mudam de forma cada vez mais agressiva.
O crescente aumento no setor de segurança da informação reflete o grave teor dessa ameaça
criminosa cibernética no âmbito global, o que resulta em altos custos para a economia mundial.
Ainda, as pesquisas sobre como os crimes cibernéticos têm se desenvolvidos estão atrasadas pela
dificuldade de compreender o avanço desses ataques. (SCHIRRMACHER, 2018).
Além das despesas com segurança da informação, ocorrem custos adicionais no caso de um ataque
bem-sucedido, quando as empresas implantam recursos para eliminar danos ao equipamento,
perda de informações, perda de receita e perda de imagem. (SCHIRRMACHER, 2018, p. 2).
Dessa forma, para que se diminua os prejuízos causados, é necessária uma maior investigação
relacionada a segurança de informação por agentes capacitados. “Para entender, antecipar e controlar
os modelos bem-sucedidos de criminosos cibernéticos, os pesquisadores precisam entender os
recursos inerentes aos criminosos cibernéticos.” (SCHIRRMACHER, 2018, p.7).
Ainda, a origem criminosa dos valores arrecadados pelos cibercriminosos faz com que s mesmos
não tenham que pagar impostos, saindo em vantagem econômica e fazendo com que possam investir
seus lucros em novos ataques, gerando cada vez mais riqueza para os agentes, que podem investir
em novas formas de atividades cibercriminosas. (SCHIRRMACHER, 2018).
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À medida que nos encontramos no início de uma nova era, com ataques de ransomware mais
sofisticados ainda por vir, a conscientização e o conhecimento sobre os recursos cibercriminosos
são fundamentais para avançar nas estratégias de segurança da informação e criar resiliência
cibernética (SCHIRRMACHER, 2018, p.7).
Ocorre que as chamadas ciber-moedas acabaram por se tornar ferramentas utilizadas no mercado
de bens e serviços ilícitos, servindo como uma moeda de troca comum, no mercado ilegal. Dessa
forma, as plataformas disponíveis para troca de mercadorias ilícitas, possibilitam que seus clientes
utilizem as ciber-moedas com intuito de adquirir substâncias entorpecentes, armas, entre outros itens
não permitidos pela legislação. (IRWIN; DAWSON, 2019).
A melhor forma de buscar solucionar esses ataques seria buscar investigar o ransomware, para
que possam, de alguma forma, auxiliar as agências policiais a identificar quem são os criminosos que
estão utilizando das criptomoedas para realizar ou facilitar ataques e uso de dados ilegais. (IRWIN;
DAWSON, 2019).
As regulações são bastante necessárias, só que elas precisam ser viáveis economicamente, pois
em um mundo onde o capital de fato comanda praticamente todas as decisões, quando ele é atacado
normalmente sai vitorioso em sua tentativa de se restabelecer.
Esses desafios parecem crescer principalmente quando se trata de processar criminosos por ofensas
relacionadas ao Bitcoin, devido à enorme falta de acordo dentro da justiça sistema da maioria dos
países quanto ao legado apropriado definição para Bitcoin (IRWIN; DAWSON, 2019, p. 17).
Como exposto anteriormente, uma das maneiras desse negócio ilegal ser realmente viável é
por meio das moedas cripto, sendo seu uso amplamente difundido no meio do ransomware como
principal forma de cobrança dos resgates.Ainda, cabe ressaltar que o uso do bitcoin como moeda será
cada vem mais semelhante ao uso da moeda fiduciária utilizada tradicionalmente ao redor do mundo.
“Isso ocorre porque o bitcoin tem um valor que é transferível para moeda fiduciária e é utilizado da
mesma maneira quando se trata de comprar bens e serviços.” (IRWIN; DAWSON, 2019, p.18).
Portanto, é indispensável a regulamentação para garantir que transações que possam ser
consideradas de risco, imediatamente sejam visíveis para que o usuário tenha tempo suficiente para
identificar o indivíduo responsável pela atividade, e ainda, que o mesmo recurso esteja disponível
para os usuários padrão e também para a polícia, que por sua vez pode encontrar os usuários que
praticam atividades ilícitas, investigá-los e processá-los. (IRWIN; DAWSON, 2019).
Porém, ao se colocar a questão em análise, temos de entender que a regulação se faz necessária,
e que essa é a única forma de coibir os danos causados pelos ataques, sendo então preciso que existam
maneiras de aliar a questão da privacidade com a questão do poder efetivo de buscar soluções para
crimes do estado.
A preocupação em estabelecer um sistema de identificação de Bitcoin e outras ciberocorrências
e para que esse sistema possa funcionar efetivamente, precisa ser global, funcionando com uma
cooperação mútua entre todos os países, também pelo fato de que a moeda é sim uma moeda
internacional, que não é regulada por fronteiras.
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Isso ocorre porque é concebível que qualquer pessoa, em qualquer país, poderia utilizar o Bitcoin
ou outros ilícitos. Por exemplo, um indivíduo australiano dual pode comprar Bitcoins online e usá-
los, pagar um hacker americano para realizar um ransomware ataque a um terceiro indivíduo, que
reside na Rússia. (IRWIN; DAWSON, 2019, p.18).
Assim, com a regulamentação em todos os países e jurisdições, o sistema terá completa eficácia,
com a uma maior probabilidade de punição aos responsáveis e redução de crimes. Do contrário, os
crimes de uso indevido de Bitcon e ciberocorrencias simplesmente se concentraram em jurisdições
que não contemplam a regulamentação.
Dessa forma, a atenção encontra-se voltada para solucionar as dificuldades em estabelecer e
implementar um sistema eficaz e global para combater as ciberocorrências e crimes relacionados a
lavagem de dinheiro e terrorismo, financiados por meio de Bitcoin e os usuários. Para que assim, seja
possível concretizar uma cooperação necessária para o combate dessa indústria de crimes. (IRWIN;
DAWSON, 2019).
Ainda é de se considerar a disparidade entre as sociedades, em que muitas trabalham com
diferentes formas de controle de mercadorias, bens e serviços, enquanto outras tendem a manter
certo equilíbrio, como as sociedades democráticas, que buscam diferentes objetivos sociais, com
uma regulamentação diversa das demais referente ao uso da tecnologia (REINS, 2019).
À medida que a humanidade evolui e continua a busca por melhorias tecnológicas, a questão de
como efetivamente regular essas melhorias continuará a existir. Por fim, a regulamentação de
tecnologias é - como todas as outras formas de regulamentação - o resultado de um exercício
de ponderar e equilibrar objetivos e interesses sociais conflitantes na estrutura de diferentes
preferências regulatórias. (REINS, 2019, p. 313)
Deste modo podemos concluir que, na realidade, não há uma forma ideal de regulamentação
para todos os tipos de tecnologias que possa abranger toda a sociedade, e sim a busca deve ser para
encontrar uma regulamentação que possa ser abordada por cada ordenamento jurídico, com toda sua
especificidade, buscando os interesses globais, mas atendendo as necessidades locais. “Os processos
regulatórios das novas tecnologias sejam capazes de capturar essas preferências - muitas vezes
concorrentes - sem, ao mesmo tempo, sufocar a inovação no processo. Isso é ainda mais crucial nos
tempos incertos em que estamos.” (REINS, 2019, p. 313).
O desenvolvimento tecnológico vem aumentando da mesma forma que o mundo vem
enfrentando graves problemas geopolíticos, transformações climáticas e um crescimento exponencial
no fluxo da migração, desafios enfrentados diretamente pela sociedade, que estão dependentes de
regulamentação (REINS, 2019).
Com isso, podemos vislumbrar um futuro deveras incerto, pois as condições de regulação para os
ataques cibernéticos se baseiam em uma cooperação internacional que muitas vezes é inexistente, e
perpassa a questão da privacidade de da regulação das moedas cripto. Assim, enquanto não existirem
políticas reais com a intenção de punir os criminosos, eles continuarão atuando, pois existem grandes
potenciais de lucro nessa atividade, e pouco risco de sofrerem sanções, comparados a outros tipos
de crimes mais tradicionais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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RESUMO: Este artigo discorre sobre as origens e a implementação do sistema de punição e traça um
paralelo entre o que deveria ser e o que é o sistema prisional do Brasil. Com fundamento em dados do
Ministério da Justiça do Governo Federal, o Estado Brasileiro possuía, no levantamento mais recente -
em junho de 2019, uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os
regimes. Mencionados dados colocam o Brasil em terceiro lugar no ranking dos países com a maior
população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Dados coletados demonstram que
entre os anos de 2014 a 2017 pelo menos 6.368 homens e mulheres morreram em penitenciárias do país,
em decorrência de diversos fatores, entre causas naturais, doenças adquiridas no local de cumprimento
da pena, homicídios, enfrentamento entre detentos e servidores públicos, além das enumeradas como
causas indeterminadas ou desconhecidas. No quesito homicídios, o levantamento mostra que a média
dentro das penitenciárias supera a dos assassinatos nas ruas. De acordo com o Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada), a taxa de homicídios no país é de 30,3 para cada 100 mil habitantes. Nas
penitenciárias a taxa é de 43. Os anos anteriores e posteriores não foram diferentes. Muito embora não
se tenha dados estatísticos precisos sobre a quantidade de mortes nas cadeias públicas, os fatos falam
por si. As inúmeras rebeliões nos presídios do país afora, nos últimos 4 anos, demonstram as agruras
e atrocidades dos que convivem com a liberdade cerceada. A ausência de políticas públicas do Estado
atrelada a um sistema de encarceramento em massa redunda, assim, num verdadeiro genocídio velado,
fato que se torna mais evidente ao apreciarmos que a taxa de homicídios no país é de 30,3 para cada
100 mil habitantes enquanto que nas penitenciárias é de 43, ou seja, o risco de morte nas prisões do
que em sociedade. Nesse sentido, a presente pesquisa pretende demonstrar que o sistema prisional do
Brasil fere frontalmente o direito do preso como humano, carecendo urgentemente de intervenção, na
medida em que não atinge a finalidade para qual foi instituída - ressocialização do preso, mas, a contrário
sensu, se enquadra como um sistema extermínio disfarçado - com aspectos de legalidade abarcada pelo
nosso ordenamento jurídico penal. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica, usando o método
dedutivo e abordagem qualitativa, assim conceituando, relacionando e analisando o tema em questão.
INTRODUÇÃO
157 Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI -
Brasil. Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia – FARO - Brasil. Graduado em
Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo – UMESP - Brasil. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Lute-
rana do Brasil – ULBRA - Brasil. Pós-Graduado em Gestão e Direito de Trânsito pela Faculdade Mário Schenberg – FMS - Brasil.
Procurador Autárquico no Estado de Rondônia – PGE/RO – Rondônia – Brasil. Professor do Curso de Direito da Faculdade São
Paulo – FSP - Rolim de Moura – Rondônia – Brasil. E-mail: saulorogeriosouza@gmail.com
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Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e
orientar o retorno à convivência em sociedade.
Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso (BRASIL, 1984)
Assim, ressoa claro que desde o momento em que o preso ingressa no sistema prisional o Estado
assume a responsabilidade legal e moral de possibilitar a ele meios para que possa ter um adequado
retorno à sociedade, visando uma sociedade harmônica, pacífica e justa. Por outra via, uma vez sob
a tutela do Estado, este passa a ser responsável, também, pela saúde, integridade física e moral do
preso (art. 5º, XLIX, da Constituição Federal).
Entretanto, não é isso o que temos visto há décadas. O Estado não tem cumprido seu encargo. Além
da superlotação dos presídios - que redunda em conflitos e mortes dentro das celas -, as condições de
higiene na maioria estabelecimentos integrantes do sistema prisional são precárias. Soma-se a tudo isso
o fato de que, em alguns presídios, inexiste acompanhamento médico aos detentos, o que faz proliferar
e agravar o estágio de enfermidades decorrentes de doenças contagiosas e, por conseguinte, mortes.
Segundo dados estatísticos, morrem mais indivíduos no espaço interno dos presídios do que
na sociedade livre (O PODER 360, 2018). Diante de tal situação, o presente trabalho visa apresentar
dados, estatísticos e teóricos, e sopesar se o sistema prisional brasileiro hodierno se mostra como um
modelo de genocídio velado - estando as incontáveis mortes acobertadas sobre as sombras de uma
pseudo aplicação do sistema sancionatório penal.
Para a elaboração da pesquisa, foi adotado o método dedutivo, através de levantamento
bibliográfico, seguindo a abordagem qualitativa. Logo, o conhecimento da presente pesquisa está
fundamentado principalmente em levantamento bibliográfico de autores que tratam do tema objeto,
nas legislações envolvendo a execução de pena, na Constituição Federal e em dados estatísticos
do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN do Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN), organismo integrante do Ministério de Justiça e Segurança Pública, de forma a
garantir um real conhecimento sobre o tema em questão.
Dessa forma, a investigação segue os métodos descritos, conceituando e apresentando o
embasamento através de pesquisa bibliográfica, de modo a relacionar e analisar os aspectos legais
sobre as questões, descritas a seguir: (i) as origens do sistema prisional brasileiro; (ii) finalidade
declarada da pena privativa de liberdade no sistema penal brasileiro e as transgressões dos direitos
do preso; (iv) a realidade do modelo prisional brasileiro frente às sanções penais descritas em seu
ordenamento jurídico – Pena de morte ou restritiva de liberdade?
O sistema de aplicação de pena no mundo, na sua origem, foi marcado por sanções cruéis e
desumanas. Essa situação começou a mudar a partir do século XVIII. Até o século XVIII a privação de
liberdade como forma de pena não era aplicada. O que havia era a custódia, mediante o encarceramento
do acusado, cujo fim era assegurar que ele não iria fugir, bem como a produção de provas por meio
da tortura (que era uma forma lícita, até então, de se produzir provas). Assim, na definição de Luiz
Francisco Carvalho Filho (2002, p. 21),
Até o século XVIII a pena privativa de liberdade não fazia parte da relação de punições do Direito
Penal. Com a evolução do sistema penal e a eliminação sucessiva das penas cruéis e desumanas,
passa-se a uma nova fase a pena de prisão desempenha o seu real papel, que é punir. Essa é
retratada como a humanização das penas.
Segundo Werner Engbruch e Bruno Morais di Santis (2012, p. 3), Foucault assevera que:
[...] a mudança no meio de punição vêm junto com as mudanças políticas da época, com a queda
do antigo regime e a ascensão da burguesia a punição deixa de ser um espetáculo público, já que
assim incentiva-se a violência, e é agora uma punição fechada, que segue regras rígidas, portanto
muda-se o meio de se fazer sofrer, deixa de punir o corpo do condenado e passa-se a punir a sua
“alma”. Essa mudança, segundo o autor, é um modo de acabar com as punições imprevisíveis e
ineficientes do soberano sobre o condenado, os reformistas concluem que o poder de julgar e
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
punir deve ser melhor distribuído, deve haver proporcionalidade entre o crime e a punição já que
o poder do Estado é tipo de Poder Público [...].
Além dos castigos corporais infligidos aos escravos pelos senhores e seus prepostos, após 1830,
com a entrada em vigor do Código Criminal do Império – em caso de condenação à prisão – enquanto
aos libertos e livres, pelo menos em tese, cabiam as então modernas formas de punir (reeducar e
ressocializar), aos cativos continuava reservada a pena de açoites. Pena esta que, em casos extremos,
de até oitocentos açoites, era caracterizada pelos práticos e cirurgiões que as acompanhavam como
morte com suplício – típica punição do Antigo Regime (FERREIRA, 2009, p. 179-180).
Em que pese a pena de prisão ter sido adotada no Código Penal de 1830, esta só foi implementada
na prática à partir de 1850, com a inauguração da Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro.
A República foi proclamada em 15 de novembro de 1889, com o golpe militar de Marechal
Deodoro da Fonseca. Diante de alguns avanços sociais, como a lei Áurea, o antigo Código Criminal
do império, necessitava ser urgentemente substituído. O decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890,
convolou o projeto no “Código Penal dos Estados Unidos do Brasil”. (TAKADA, 2010, p. 3).
Dentro das inovações do Código Criminal, a pena privativa de liberdade passa a ser o ponto fulcral
do sistema penal, quer em razão do estabelecimento da prisão disciplinar, do trabalho obrigatório,
do estabelecimento agrícola, da reclusão em fortalezas ou da prisão celular (MOTTA, 2011, p. 295).
No ano de 1934 entra em cena no Brasil mais uma Constituição. Essa Carta Magna foi promulgada
e recebeu a nomenclatura de Constituição da República Nova. Nela, atribuiu-se competência exclusiva,
tal qual hodiernamente, para legislar sobre o sistema de cárcere no país, bem ainda eliminava as
penas de morte, de caráter perpétuo, entre outras, excepcionando a pena capital em caso de guerra
declarada. Diante das novas premissas, no ano de 1935 foi editado o regulamento penitenciário, cuja
elaboração vinha de encontro aos anseios dos críticos e daqueles que se empenhavam em remodelar
o sistema penitenciário no Brasil, já que a falência da pena privativa de liberdade era evidente, prova
disso é a reincidência que já aparecia naquela época (MAIA, 2009, p. 117).
Um dos marcos mais importantes no sistema penal brasileiro teve início no ano de 1937 com a
entrada do Estado Novo, fruto da Revolução de 1930. Naquele ano surge um novo capítulo na história,
uma nova Constituição Federal é outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, que detinha um poder
autoritário e militar - o congresso é destituído. No intuito de fazer novas alterações na legislação
penal, o ministro da justiça à época, Francisco Campos, designou o professor Alcântara Machado para
estudar as mudanças na lei penal. O anteprojeto de Alcântara Machado prévia as penas de reclusão,
detenção, segregação e multas. O anteprojeto, o qual teve em Nélson Hungria seu principal redator,
foi erigido ao novo Código Penal no dia 31 de dezembro de 1940 (DOTTI, 2003. p. 65-66).
Como já era corriqueiro no século XIX, mais uma vez o Brasil promulga uma Constituição Federal,
agora em 1946. A referida Carta trouxe limites ao poder punitivo estatal e dessa forma, “Consagrou-
se, formalmente, a individualização e a personalidade da pena. Nesse contexto, a Lei nº 3.274/1957
declarou a necessidade da individualização da pena.” (SHECAIRA; CORRÊA JUNIOR, 2002, p. 44).
Nos idos de 1969, quando o país já se encontrava sob regime da Ditadura Militar - decorrente
do golpe militar em 1964, a junta Militar decretou um novo Código Penal, “que possuía modificações
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A Lei nº 7.210/1984, a qual instituiu a Lei de Execução Penal brasileira, é clara ao mencionar
no seu capítulo I, que o objetivo da execução penal é “efetivar as disposições de sentença ou decisão
criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Além desses, ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela
sentença ou pela lei (arts. 1º e 3º). (BRASIL, 1984).
Partindo de tais premissas legais, podemos entender que o aprisionamento dos agentes que
praticaram atos delituosos tem tripla finalidade declarada em lei: a de penalizá-lo pelas transgressões
ao sistema legal; a de proteger a sociedade para que este não venha a cometer novos crimes; bem
ainda a de prepará-lo para que seja reinserido na sociedade.
Nesse contexto, ressoa claro que a punição do criminoso está umbilicalmente ligada ao encargo
estatal da humanização, isso porque, antes de criminoso, o delinquente é humano e, como tal, tem
direito de receber um tratamento digno e com condições de amadurecimento e crescimento para que
possa adequadamente retornar ao convívio social. O preso tem a sua liberdade cerceada. Contudo,
tem direito a um tratamento digno e de não sofrer violência física e moral.
O supedâneo para aludido posicionamento está claramente estampado no art. 1º, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que expressa que “todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros
em espírito de fraternidade.” (ONU, 1948).
Uma vez sob o poder do Estado, o preso passa a ser responsabilidade deste cumprindo-lhe assegurar
os direitos que lhe são pertinentes, conforme disposto no art. 41, da Lei de Execução Penal, que prevê um
rol desses direitos: a) alimentação suficiente e vestuário; b) atribuição de trabalho e sua remuneração;
c) Previdência Social; d) constituição de pecúlio; e) proporcionalidade na distribuição do tempo para
o trabalho, o descanso e a recreação; f) exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas
e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; g) assistência material, à
saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; h) proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
i) entrevista pessoal e reservada com o advogado; j) visita do cônjuge, da companheira, de parentes
e amigos em dias determinados; l) chamamento nominal; m) igualdade de tratamento salvo quanto
às exigências da individualização da pena; n) audiência especial com o diretor do estabelecimento;
o) representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; p) contato com o mundo
exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não
comprometam a moral e os bons costumes; q) atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob
pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. (BRASIL, 1984).
Além destes direitos, o preso ainda detém outro básico, a vida e a sua integridade física (art. 5º,
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XLIX, da Constituição Federal). Em que pese, o Estado não tem cumprido o seu encargo de garantir
aos detentos aludidos direitos, dentre inúmeros outros.
Em razão do arcabouço de direitos dos presos violados ser exaustivo, bem ainda em decorrência
da delimitação do tema em estudo, focaremos apenas na violação do direito à vida dos presos.
Não é recente que a vida e integridade física de presos tem sofrido atentados – decorrentes de
superlotação dos presídios, rebeliões, ambientes insalubres, ausência de tratamento médico, entre outros.
A mídia e as estatísticas de órgãos oficiais têm, diuturnamente, reforçado a ocorrência de tais fatos.
O Poder Judiciário, não alheio a tais ocorrências, em inúmeras circunstâncias já responsabilizou o
Estado por tais omissões. O Supremo Tribunal Federal – STF, inclusive, diante das rotineiras ocorrências,
em sede de repercussão geral, fixou a seguinte tese:
Causa perplexibilidade que situações como a retratada no julgado transcrito, diante da nítida
evolução dos nossos sistemas jurídico e público nos últimos anos, ainda persistam em nosso país. A
realidade, contudo, é pior, consoante abordagem que será realizada em sequência.
Podemos pensar que sabemos como o sistema de justiça criminal funciona. A televisão está
repleta de dramas ficcionais sobre polícia, crimes e promotores – programas como Law & Order.
Assim como o noticiário policial, essas ficções tendem a se concentrar em histórias individuais de
crime, vitimização e punição, e são tipicamente contadas do ponto de vista das autoridades de
segurança pública. Um policial, investigador ou promotor carismático luta com sues próprios demônios
enquanto tenta heroicamente um crime horrível Ele finalmente consegue uma vitória pessoal e moral
ao encontrar o cara mau e jogá-lo na cadeia. Essa é a versão feita para a TV do sistema da justiça
criminal. Ela perpetua o mito de que a principal função do sistema é manter nossas ruas a salvo e
nossos lares seguros ao caçar criminosos e puni-los. (ALEXANDER, 2017, p. 109).
Em que pese a retórica midiática, a realidade é bem diferente da reportada pela mídia. Indivíduos
que já se envolveram com o sistema criminal sabem que como ele realmente se desenvolve. Aponta
Alexander (2017, p. 109-110), na obra já citada, que:
Exames exaustivos de culpa ou inocência raramente ocorrem; muitas pessoas nem mesmo
se encontram com um advogado; as testemunhas são rotineiramente pagas ou coagidas pelo
governo; a polícia para e revista pessoas sem motivo algum; as penas para muitos crimes são
tão severas que pessoas inocentes se declaram culpadas, aceitando negociações injustas para
evitar sentenças obrigatórias severas demais; e crianças de catorze anos são enviadas a prisões
de adultos. Princípios legais e processuais, como “culpa para além da dúvida razoável”, “causa
provável” ou “fundada suspeita”, ordem ser encontrados facilmente em séries de tribunais ou nos
livros de faculdade de direito, mas são muito difíceis de serem vistos na vida real.
Na obra citada, Alexander (2017) reporta as ocorrências vivenciadas nos Estados Unidos. Mas
tais se amoldam perfeitamente ao que sucede no Brasil. Não é incomum nos depararmos com notícias
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MIEA ND EPA OSDMPT CJIURÍAFD SE :IC ROAME SDHUITNR
narrando violação de direitos humanos por parte das forças de segurança pública, de abusos policiais
em abordagens, com alteração de cenas de crimes – visando isentar policiais pela prática de excessos,
produção ilícita de provas, chacinas, torturas, entre outros. Essa é a nossa realidade.
Todas essas atitudes ilegais praticadas pelos órgãos integrantes da segurança pública, e que
as vezes acabam por ser convalidadas pelo Poder Judiciário – quando não se consegue provar no
curso do processo as ilicitudes, acabam por levar o suposto criminoso para um frio e obscuro lugar,
a prisão. Mas, para este lugar, além daqueles que são injustamente condenados, vão também aqueles
que cometeram crimes, que mereciam e foram punidos pelo Poder Judiciário. Todos no mesmo lugar.
Não merecem abordagem no presente artigo, de forma mais detida, as ilegalidades perpetradas
ou a tendência de encarceramento de pessoas em decorrência da cor ou da renda, mas se no país não
se está, por conta dos fatos, implementando veladamente uma nova modalidade de pena, até então
vedada pela Constituição Federal – exceção em caso de guerra declarada, qual seja, a pena de morte.
Diz-se que a finalidade maior das prisões é a ressocialização dos presos. A partir dessa afirmativa
cabe uma indagação. As prisões brasileiras estão sendo espaços de ressocialização como se propõe?
Tratando do assunto ora abordado, Ana Gabriela Mendes Braga (2014, p. 4) salienta:
[...] essa forma de exercício do poder de punir contrasta com a realidade dos presídios brasileiros,
marcados pela superlotação, pelo controle dos presos da dinâmica prisional e pela existência
de certas liberalidades. O controle, e mesmo a disciplina, ocorrem mais pela ação dos próprios
presos do que pela via estatal. O Estado não inclui nem exclui completamente, e nossas prisões
continuam sonhando o sonho da reabilitação.
Apesar do Brasil nunca ter concretizado o paradigma da reabilitação, este é até hoje invocado
como princípio norteador da nossa execução penal. Há uma funcionalidade em manter este
discurso em voga, ainda que sem perspectiva de sua realização concreta. [...].
Diante disso, o tão sonhado êxito na ressocialização soa como mero artifício ardiloso de
justificação, ou, na melhor das hipóteses, como promessa utópica irrealizável. As histórias de
“sucesso” daqueles que emergem do sistema penitenciário são histórias de sobrevivência. Não são
demonstrações da capacidade da pena para fazer o bem. A prisão não ressocializa. Ela dessocializa.
Ela não integra, mas segrega. (KHALED JÚNIOR, 2014, p. 54).
A bem da verdade, ao apreciarmos a realidade das nossas prisões país afora, notamos que essas
têm mais caráter genocida do que propriamente ressocializador.
Segundo dados oficiais, colhidos no site Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, órgão
vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil (DEPEN, 2020), no mês de dezembro
de 2019 encontravam-se presos no Brasil a quantidade de 755.254 pessoas, entre homens e mulheres.
No período de janeiro de 2017 a dezembro de 2019 morreram em nossas prisões cerca de 6.176
presos - homens e mulheres, por diversas causas, entre essas naturais ou por motivos de saúde,
criminais, suicídios, acidentais e decorrentes de causas desconhecidas. Uma média de 2.058 pessoas
por ano perdem suas vidas nas prisões brasileiras. Ademais, com base na mesma fonte, no mês
de dezembro de 2019 o país possuía, em suas prisões, 31.792 presos - homens e mulheres, com
doenças transmissíveis (HIV, sífilis, hepatite, tuberculose, entre outras).
É importante destacar que tais dados não expressam, detidamente, a realidade das nossas prisões,
visto que nem todos os Estados brasileiros enviam informações ao Governo Federal sobre a temática
ou as prestam sem a atenção acurada – as prestam por desencargo sem que efetivamente expressem
as ocorrências locais. Por conta disso, aludidos dados na realidade certamente possuem quantitativos
maiores. Eis aí a grande dificuldade em obtermos um vislumbre mais próximo da realidade vivida no
sistema prisional brasileiro.
Voltando aos dados já transcritos, notamos que esses nos mostram um quadro extremamente
grave. Além dos óbitos efetivos, o grande número de presos com doenças transmissíveis, somados
à superlotação das celas e à ausência de política de saúde nas prisões, desnuda uma situação
preocupante e que tende a incrementar desmedidamente o número de óbitos.
A situação apresentada nos leva a refletir se atualmente não estamos vivendo um outro
holocausto brasileiro, semelhante ao retratado no livro intitulado “Holocausto brasileiro”, lançado no
ano de 2013, que tem como autora a jornalista Daniela Arbex, e que retrata os maus-tratos da história
do Hospital Colônia de Barbacena administrado pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais
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- FHEMIG. Consta da referida obra que por omissão do poder público em proporcionar aos internados
acompanhamento médico e tratamento adequado, alimentação, entre outros, cerca de 60 mil pessoas
morreram no hospital.
Cabe aqui um parêntese. O termo holocausto, tal qual empregado para as ocorrências do Hospital
Colônia de Barbacena não é o mais adequado para retratarmos o que sucede em nossas prisões. Naquele,
muito embora o poder público também estivesse responsável pela integridade física e moral dos internados,
estes eram levados para lá por seus familiares. Ou seja, o poder público não os retirava compulsoriamente
da sociedade. No sistema prisional brasileiro é diferente, na medida em que o poder público intervém
coercitivamente e arrebata o criminoso da sociedade havendo, em razão disso, uma responsabilidade
maior em garantir ao preso meios dignos para que o mesmo possa cumprir a sua reprimenda.
Portanto, o termo mais adequado para o expressar a realidade do nosso sistema prisional seria
“genocídio velado”. A palavra “genocídio” (do grego genos – tribo, raça; e do latim cide – matar) é
usada para fazer referência ao ato de exterminação sistemática de um grupo étnico ou a todo ato
deliberado que tenha como objetivo o extermínio de um aspecto cultural fundamental de um povo.
O termo foi utilizado pela primeira vez em 1944 por Raphael Lemkin, jurista polonês que contribuiu
durante e depois do período da Segunda Guerra Mundial para a construção das leis internacionais
acerca desse crime. (OLIVEIRA, 2020).
Quando se trata dos criminosos, dos presos, dos delinquentes, fala-se de um grupo de pessoas
e não do ser individual e devidamente identificado. Não se refere ao sujeito na sua individualidade.
Se o “João” comete o furto ou o roubo de determinado objeto, esse recebe o nome do seu grupo
social - o bandido, o criminoso. Esses fatos também são reverberados na mídia. Quem nunca leu uma
notícia com os seguintes dizeres: “Criminoso é preso pela polícia”?. Isso se torna mais claro ainda
ao apreciarmos uma frase de efeito muito usada por políticos e genocidas, a de que “bandido bom é
bandido morto”. Esquece-se o humano e lembra-se os atos.
Com fundamento no Dicionário, “velado” é aquilo “Que está oculto ou escondido; encoberto,
tapado.” (MICHAELIS, 2020). O poder público, valendo-se do ordenamento jurídico brasileiro e do
anseio popular de mais proteção, acaba por se imiscuir, disfarçadamente, das suas responsabilidades
e de adotar mecanismos que efetivamente garantam a integridade física e moral do preso. Assim, sua
responsabilidade nas mortes ocorridas é, no mínimo, na modalidade culposa - por omissão.
Nilo Batista (1990, p. 47), corroborando as afirmativas até aqui lançadas, enfatiza que:
Durante os anos 80, juristas e criminólogos que desenvolvem extensa pesquisa, patrocinada
pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, perceberam que os sistemas penais latino-
americanos operam como uma nítida tendência genocida. A despeito de se legitimarem um discurso
que os apresentam como protetores da vida, tais sistemas - em seu desempenho prático – expõe
uma perturbadora constante: a morte massificada de pessoas integrantes de estratos sociais bem
caracterizados. Seja pela atuação de grupos de extermínio (“justiceiros”, “esquadrões”, “polícia
mineira”, etc), seja pelo abuso nas situações de enfrentamento (a menor relutância em submeter-
se ou entregar-se vale como condenação à pena de espancamento ou mesmo à pena capital,
executadas durante ou após a resistência), seja pela indiferença institucional (expressa pelo
desinteresse - homicídios carcerários ou registro de “encontro de cadáver” jamais investigados
- ou pela conivência - a justificativa, verdadeira ou não, da “guerra de quadrilhas” subtraindo
relevância de chacinas), as agências executivas dos sistemas penais latino-americanos, direta
ou indiretamente, produzem, administram ou toleram um volume de mortes que, face a certa
homogeneidade social das vítimas, introduz necessariamente a idéia de genocídio.
Ora, não é exatamente isso, um genocídio velado, o que está por acontecer nas prisões?
Na teoria, patente que a pena de morte não figura como mecanismo sancionatório para a prática
de crimes no Brasil, o que inclusive é textualmente afirmado em nossa Constituição Federal – exceção
em caso de guerra declarada. Na prática, diante do cotidiano retratado neste artigo, podemos ver que
a pena restritiva de liberdade acaba por ser, na realidade, um mecanismo que se transmuta em pena
de morte. Como dito na narrativa do resumo deste artigo, a taxa de homicídios no país é de 30,3
para cada 100 mil habitantes, enquanto que nas penitenciárias é de 43, ou seja, corre-se maior risco
de morte nas prisões do que em sociedade (levantamento efetuado entre os anos de 2014 a 2017).
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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INTRODUÇÃO
A pandemia do covid-19, a qual exigiu ações imediatas dos governos contemporâneos, trouxe à luz
uma série de problematizações a respeito das condições éticas no que diz respeito à proteção da vida, em
especial, a partir da disponibilização e alocação de recursos para enfrentamento da referida pandemia.
Dentro desse cenário, o presente estudo tem por objetivo geral promover uma reflexão a respeito
do “protocolo de alocação e recursos em esgotamento durante a pandemia por covid-19”, elaborado
pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira – AMIB, visando, especificamente, como hipótese de
158 Doutorando em Ciências Jurídicas em andamento pelo Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR, tendo como linha
de pesquisa os Direitos da personalidade e seu alcance na contemporaneidade (2019-). Mestrado em Direito pelo Centro
Universitário de Maringá - UNICESUMAR (2012). Graduação em DIREITO pelo Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR
(2008). Atualmente é professor assistente (CBO 234515) do curso de Direito do Centro Universitário Cidade Verde - UniFCV.
Integrante da Rede Internacional de Estudos Schmittianos (RIES), composta por especialistas de diversos países. Integrante do
Grupo de Pesquisa de Bioética e Direitos Humanos (UNIVEM), composto por pesquisadores e especialistas de diversas Institui-
ções de Ensino Superior do Brasil. Tem experiência na área de Teoria Geral do Direito, Filosofia do Direito, e Direito e Educação.
159 Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2004), Mestrado (2006) e
Doutorado (2012) em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Realizou Estágio de
Pós-Doutoramento, sob a supervisão da Profa. Dra. Lilian Milnitsky Stein, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
PUCRS (2018). Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Campus Maringá). Atualmente, também é Professor
Permanente do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciência Jurídica do Centro Universitário de Maringá.
Também é Professor da Especialização em Ciências Penais da Universidade Estadual de Maringá, ABDConst, Universidade
Ceuma, PUCPR, Univel, Universidade Feevale e Instituto Paranaense de Ensino. Consultor do Innocence Project Brasil. Mem-
bro Permanente da Associação Internacional de Criminologia em Língua Portuguesa. Editor Adjunto da Revista Brasileira de
Ciências Criminais e da Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Membro dos Corpos Editoriais da Revista de Estudos
Criminais (Qualis A1), Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM (Qualis A1), Psicologia: Teoria e Pesquisa (Qualis A1),
Revista da Faculdade de Direito da UFMG (Qualis A1), Revista de Direitos Sociais e Políticas Públicas - Unifafibe (Qualis B1),
Revista da Associação dos Magistrados do Rio Grande do Sul (Qualis B1), Revista Eletrônica Direito e Sociedade - REDES (Qua-
lis B1) e Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Co-líder do Grupo de Pesquisa "Instrumentos jurisdicionais de
efetividade dos direitos da personalidade", vinculado ao Mestrado e Doutorado em Ciências Jurídicas do Unicesumar e
cadastrado junto ao CNPq. É membro dos Grupos de Pesquisa em Processos Cognitivos (PUCRS) e "Sistema Constitu-
cional de Garantia dos Direitos da Personalidade" (Unicesumar), ambos cadastrados no CNPq. Tem experiência na área
do Direito, com ênfase em Direito Processual Penal, Direito Penal, Psicologia do Testemunho, Criminologia em suas reper-
cussões aos Direitos da Personalidade. Realiza investigações sobre as relações entre as distorções de memória e privações
de liberdade, bem como tem se ocupado da análise da expansão dos controles contemporâneos.
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investigação, em que medida o referido “protocolo”, cuja finalidade declarada é o alívio da pressão
sobre os profissionais da saúde que estão na linha de frente quanto o enfrentamento da pandemia,
implica em uma política da morte (tanatopolítica).
Para tanto, valendo-se do método procedimental hipotético-dedutivo de pesquisa bibliográfica dos
referenciais teóricos demarcados, o percurso metodológico se inicia – no primeiro movimento do trabalho
–, com a abordagem acerca das condições em que o Brasil se encontram em relação à pandemia do co-
vid-19, no sentido de demonstrar o cenário no qual “nasce” o protocolo de alocação e recursos em esgota-
mento durante a pandemia em questão, bem como dos critérios éticos constantes no referido documento,
em uma aproximação à matriz da racionalidade biopolítica insculpida a partir de Michel Foucault.
No segundo movimento, para além dos estudos do autor francês, será explorado a dimensão
do paradigma imunitário e o enigma da biopolítica a partir da obra de Roberto Esposito, no
sentido de demonstrar em que medida a biopolítica, entendida como política sobre a vida, implica,
intrinsicamente, na política sobre a morte, ou seja, em tanatopolítica, mobilizando para tanto os
conceitos de communitas e immunitas, como, respectivamente, elemento fundacional do corpo
político e condição de sua manutenção.
Em seguida, e já no terceiro movimento, uma mirada no liberalismo, centrado na estrutura do
capital, de racionalidade matricialmente biopolítica, será abordado no sentido de demonstrar em
que medida o “protocolo” serve de standard de normalização da morte, uma vez que os critérios
éticos elencados para a manutenção da vida (bioética), se reverte em uma ética voltada para a morte
(tanatoética), ou seja, das condições em que a morte, simbolicamente ressignificada pelo ritual
procedimental do “protocolo”, é não só justificável, mas, também, entendida como necessária à
manutenção da comunidade.
Em razão do percurso metodológico em que se deduziu a hipótese levantada, o estudo demonstra
– a título de conclusão – que não só o “protocolo” apresenta critérios econômicos de qualificação a
vida, em nome da manutenção das condições de produção e reprodução do capital neoliberal, mas,
também, que essa racionalidade implica em um jogo antitético entre vida e morte ressignificados
pela regulamentação ritualística do mito sacrifical do capital como religião no seu efeito mais radical,
operando o processo de despersonalização e a normalização da morte.
Brasil, maio de 2020. Dois meses após o registro do primeiro caso de Covid-19, associações
médicas elaboraram um “protocolo” ético estabelecendo critérios para a “eleição” quanto à internação
de pacientes com covid-19 em leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).
O aumento acelerado e descontrolado no número de casos da covid-19 no Brasil, que atualmente
conta com 4.732.309 casos confirmados, e 141.741 óbitos oficialmente registrados160, fez, com
menos de dois meses do registro do primeiro caso no país, que cidades pelo Brasil tenham fila de
espera por leitos de UTI em hospitais. Atualmente, o Brasil ocupa ao 2º lugar do macabro ranking
mundial de mortos por covid-19161. Os olhos do mundo estão voltados para nós, sendo considerado
o epicentro da epidemia na América.162
Segundo os canais de comunicação jornalísticos163 do país, o motivo pelo qual esse “protocolo”
foi elaborado, seria para “aliviar” a pressão sobre os profissionais da saúde que estão na linha de frente
quanto o enfrentamento da pandemia. Ou seja, o denominado “protocolo de alocação e recursos em
esgotamento durante da pandemia por covid-19”, estabelecem critérios para a tomada de decisão,
pelos médicos, de quais pacientes serão submetidos à internação, e, via consequência, ao tratamento
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adequado à enfermidade, e aqueles que serão descartados, fornecendo, assim, uma triagem para a
decisão quanto a internação do paciente infectado.
Ao promover a justificativa para o respectivo procedimento, a Associação de Medicina Intensiva
Brasileira – AMIB164, destacou que:
um protocolo de triagem é o de retirar das mãos de profissionais que estão na linha de frente
do cuidado a responsabilidade de tomar decisões emocionalmente exaustivas e que possam
aumentar os já elevados riscos de problemas de saúde mental provocados pela pandemia da
COVID-19 e consequentemente comprometer a capacidade para o trabalho a curto e longo prazo.
Profissionais da saúde desejam conduzir seus trabalhos moralmente. Tomar decisões de grande
peso moral de maneira subjetiva e sem apoio institucional ou de recomendações formais pode
ser emocionalmente debilitante. Somam-se as preocupações com potenciais questionamentos
jurídicos relacionadas às decisões e que também podem aumentar os riscos de danos à saúde
mental dos profissionais. A responsabilidade quanto aos princípios que devem guiar decisões
de alocação de recursos escassos, portanto, ao envolver questões de justiça distributiva deve
ser idealmente compartilhada com as autoridades competentes. A utilização de um protocolo
de maneira consistente pelas diversas instituições de saúde garante que um maior número
de pacientes sejam igualmente sujeitos aos mesmos critérios chancelados pelas autoridades
responsáveis tanto pelo zelo técnico-científico quanto o ético-legal do processo (AMIB, 2020).
Muito embora haja alguma menção a respeito da dignidade intrínseca de cada pessoa, a qual
acaba por exigir – tanto do ponto de vista ético, quanto jurídico – que cada paciente seja submetido ao
tratamento adequado, mesmo aqueles que se aproximam da morte, o protocolo tem por finalidade a
preservação dos profissionais da saúde, não só no que se refere à sua saúde mental, mas, sobretudo,
quanto às consequências ético-jurídicos do exercício da profissão diante da extremidade, precariedade
e escassez de recursos – humanos e técnicos – para despender o tratamento necessário a todos os
pacientes, não só os que estão infectados com a covid-19, mas a todos que, em alguma medida,
dependem de algum tratamento médico intensivo (AMIB, 2020).
Ainda, é importante mencionar que em períodos de exceção, como este, é necessário repensar
os padrões normalmente utilizados para alocar recursos escassos (GOOLD, 2020). Literalmente o que
se faz, em um contexto dramático, é a “troca de uma vida por outra” (DUNHAM, 2020).
Assim, restou estabelecido três critérios – normativos – que servirão de standard para a tomada
de decisão de quais pacientes efetivamente terão o seu direito ao tratamento médico pautado na
internação na UTI, ou seja, quem terá direito à um leito de UTI, a saber: (1) salvar mais vidas (vidas a
curto prazo); (2) salvar mais anos de vida (vidas a longo prazo); e (3) equalizar as oportunidades de
se passar pelos ciclos da vida (AMIB, 2020).
Cada um desses critérios dispõe de uma pontuação, um escore de gravidade, o qual é medido
pelo Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), que varia de dois a onze pontos, onde quanto
menor for a pontuação de um paciente, maior será a sua prioridade de alocação de recursos escassos.
No primeiro critério – salvar mais vidas (vidas a curto prazo) – é avaliado o grau de gravidade das
disfunções orgânicas apresentadas por um paciente. O escore SOFA é dividido em quartis baseados
na mortalidade hospitalar identificada pela literatura médica. “Cada quartil recebe uma pontuação
crescente de um a quatro pontos no sentido da menor para a maior pontuação total, ou seja, maiores
pontuações representam menores probabilidades de sobrevida a curto prazo” (AMIB, 2020)165.
No segundo critério – salvar mais anos de vida (vidas a longo prazo) – é avaliada a probabilidade de
sobrevida inferior a um ano em decorrência da presença de comorbidades, tais como Hipertensão Arterial
Sistêmica e Diabetes Mellitus, o que será feito por intermédio de critérios clinico-laboratoriais associados
a presença de doenças avançadas. Assim, “dois pontos são alocados a pacientes com expectativa de
sobrevida inferior a cinco anos e quatro pontos alocados a pacientes com expectativa de sobrevida inferior
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O poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência, e
as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os genes, o corpo, a afetividade,
o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido,
colonizado; quando não diretamente expropriado pelos poderes (PELBART, 2007).
166 O protocolo de Biddinson “é fruto de um processo que incialmente contou com consultas à profissionais e à população
de Maryland - EUA, seguida por grupos de trabalho que identificaram os temas e as perspectivas obtidas neste processo
de consulta e finalmente estes princípios foram incorporados em recomendações redigidas por um grupo de profissionais
da saúde, bioeticistas e profissionais do direito. O protocolo final foi composto por um sistema de pontuação baseada em
múltiplos critérios que representam diferentes objetivos éticos: salvar o maior número de vidas, salvar o maior número de
anos/vida e equalizar as oportunidades de se passar pelos diferentes ciclos da vida”.
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Vigora entre nós, portanto, desde o século XIX, um acoplamento de tecnologias de poder disciplinar
e previdenciária, conseguindo cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico
do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das
tecnologias de regulamentação, de outra. Portanto, estamos num poder que se incumbiu tanto
do corpo quanto da vida ou que se incumbiu [...] da vida em geral, com o polo do corpo e o
polo da população. Biopoder, por conseguinte, do qual logo podemos localizar os paradoxos que
aparecem no próprio limite de seu exercício (FOUCAULT,1999, p. 302).
A vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada ao sistema
que tentava controla-la. Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou objeto das lutas
políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito. O “direito” à
vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o “direito”, acima de todas
as opressões ou “alienações”, de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse “direito”
tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos esses novos
procedimentos de poder que, por sua vez também, também não fazem parte do direito tradicional
da soberania (FOUCAULT, 2015, p. 157).
167 Diferente da lei, a norma não exige promulgação oficial pelas instâncias legislativas do Estado, ela não tem o estatuto
imperativo formalmente estatuído e garantido pelo poder soberano. No sentido em que as compreende Foucault, normas
são regras que instituem padrões de medida e standards pelos quais são mensurados rendimentos e performances. A norma
é, assim antes de tudo, uma regra que institui uma medida, uma maneira de produzir a medida comum. [...]. Em relação
a essa medida, definem-se limiares de aproximação e desvio, de normalidade e patologia, portanto, são critérios para se
definir tipos de subjetividade, para fixar configurações desejáveis e identidades ou comportamentos desviantes (GIACOIA
JR, 2018, p. 108).
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De um modo geral, na junção entre corpo e população, a vida biológica tornou-se alvo central de
um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça de morte (FOUCAULT,
2015, p. 159), implicando em uma ressignificação do princípio tradicional da soberania, do soberano
como gládio, vedugo e suplícios, que tinha como efeito geral sobre a morte, fundada na lei e no
corpo, de se “fazer morrer” ou “deixar viver”, “com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro,
mas vai penetrá-lo, perpassá-lo” (SANTOS; WERMUTH, 2016, p. 405-424), modificando-se em um
poder que irá agir no sentido inverso: de “poder fazer viver” e de “deixar morrer”.
No campo decisório da soberania – a respeito da vida e da morte – competências são fixadas,
critérios são estabelecidos, asseguram-se prerrogativas, liberdades públicas são concedidas. A
garantia dos direitos fundamentais – os direitos derivados da humanidade do homem – e, ainda, a
própria condição de pessoa, é precisamente o que é suspenso quando se configuram as situações em
que caracterizam os estados de emergência, como o da pandemia ocasionada pelo covid-19.
A partir da senda aberta por Michel Foucault, Roberto Esposito tem se destacado no cenário
contemporâneo ao fornecer uma releitura da biopolítica a partir do paradigma da imunidade na
teoria política. Ao perceber um vazio semântico da configuração do conceito de biopolítica traçado
por Foucault, sugerindo que o conceito apresentado pelo autor francês estaria preso a um bloqueio
hermenêutico porque os dois termos – vida e política, em particular, vida e direito, vida e poder – haviam
sido pensados como originariamente distintos, somente sendo ligados, de modo mais intrínseco,
em momento posterior, Esposito propõe que a etimologia que o conceito de communitas carrega
superaria os limites anteriormente referidos, a fim de apresentar uma concepção contemporânea de
biopolítica, fundado no paradigma imunitário, o qual apresentaria alguma solução ao que denominou
de “enigma da biopolítica”.
Ao explorar os limites da análise foucaultiana168, Esposito conclui que o autor francês não
conseguiu fornecer uma análise a bom termo do chamado enigma da biopolítica, qual seja: “por que
motivo a biopolítica, que tem como fim a proteção da vida e a promoção da subjetividade, acaba por
produzir a morte e a dessubjetivação?” (NALLI, 2013). Conforme os termos postos por Esposito: “Por
que a biopolítica ameaça continuamente de se reverter em tanatopolítica?” (ESPOSITO, 2004, p. 34).
Segundo Esposito, a vantagem hermenêutica do paradigma imunitário, está na circunstância em
que os dois efeitos de sentido – positivo e negativo, conservador e destrutor – encontram-se em uma
articulação interna que os coloca em uma relação causal, mesmo que seja em sentido negativo. “Isto
significa que a negação não é uma forma de sujeição violenta que de fora o poder impõe a vida, mas o
modo intrinsecamente antinômico em que a vida se conserva através do poder. Deste ponto de vista,
pode-se dizer que a imunização é uma proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2004, p. 74).
Da etimologia do termo communitas, Esposito recuperou três significados distintos, porém
correlacionados entre si, todos derivados do termo original múnus, representando ônus (onus), ofício
(officium) e, como uma combinação de ônus e ofício, representa, também, dom (donus) (ESPOSITO,
2017, p. 140).
Analisando os elementos fundacionais da comunidade, o autor italiano compreende que: “uma
168 O objeto do presente estudo não é analisar a crítica de Esposito a Foucault, nem mesmo se é possível interpretar a
leitura foucaultiana de modo a encontrar elementos capazes de escapar do paradoxo identificado por Esposito. Pretende-
mos promover uma comparação analítica quanto aos argumentos de que Esposito se vale para introduzir sua proposta de
solução ao enigma da biopolítica, com as políticas públicas de combate à pandemia promovida pelo covid-19, do qual o
“protocolo de alocação e recursos em esgotamento durante da pandemia por covid-19”, no Brasil, é uma de suas expressões.
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vez que alguém aceitou o munus, ele é obrigado a devolver o onus, na forma de bens ou serviços
[officium]” (ESPOSITO, 2017, p. 141). Pensar a comunidade pelo instituto da communitas implica em
reconhecer a nomeação do dom que continua a ser entregue, uma reciprocidade no presentear com
um donativo que não pertence – e não pode pertencer – propriamente a ninguém, constituindo um
débito individual, ou a obrigação de doar (CAMPBELL, 2011, p. x).
Nessa operação – nomeação e aceitação do dom – repousa um defeito original que alcança a todos
aqueles que pertencem a comunidade: ao aceitar o munus, instala-se o débito que acaba por prejudicar
a capacidade do indivíduo em identificar-se a si próprio, de tal modo que esta identificação – pelo
indivíduo – se dá com a comunidade. Do indivíduo como parte da comunidade (CAMPBELL, 2011, p. x).
No limiar da comunidade (communitas), encontra-se a imunidade (immunitas) que nega àquela
e a protege daquilo que lhe é externo (FRANÇA, 2014). Imune é o dispensado, aquele que recebeu a
dispnesatio da entrega recíproca (ESPOSITO, 2004, p. 80). “Ele foi libertado das obrigações comunais ou
que goza de uma autonomia original ou, subsequente liberado de um débito anteriormente contraído,
goza a condição de immunitas” (CAMPBELL, 2011, p. xi). Essa imunidade denota os meios pelos
quais o indivíduo liberta-se dos efeitos expropriatórios da comunidade, explicitando uma condição
paradoxal: “a imunidade pressupõe a comunidade, e a nega; como se a própria comunidade reagisse,
protegendo a si de um possível excesso de entrega comunitária, e admitisse para o eu interior a
negatividade do seu próprio oposto” (FRANÇA, 2014).
O significado mais incisivo da immunitas se inscreve no reverso lógico da communitas: imune é
o “não ser” ou o “não ter” nada em comum, de tal modo que a implicação negativa com o seu contrário
indica que o conceito de imunização pressupõe aquilo que, no entanto, nega. É logicamente derivado,
e, ainda, internamente habitado pelo seu oposto (ESPOSITO, 2004, p. 81).
Dentro dessa perspectiva, o sujeito de direito, na modernidade, é constituído pela tentativa de
obtenção da imunidade contra o contágio da possibilidade de comunidade (CAMPBELL, 2011, p. xi). Ou
seja, os direitos próprios do indivíduo – direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade
– representam a tentativa de imunização da comunidade em relação ao indivíduo, contra os excessos
internos que lhe são inerentes. Fazendo uma leitura a partir da estrutura hobbesiana, Esposito define o
soberano como aquele que imuniza a comunidade contra seus próprios excessos implícitos:
A instituição do poder soberano tem por finalidade a imunização da comunidade face a inclinação
natural e mais latente do homem: a dominação, e, ainda, do direito de natureza, da liberdade natural
que engendra o estado de natureza e a “guerra de todos contra todos”. É neste ponto que Esposito
compreende que a soberania, tal como foi delineada por Hobbes, é constituída a partir de uma
autonegação e uma autopreservação comunitárias (CAMPBELL, 2011, p. xii):
A vida humana, se for abandona às suas forças internas, às suas dinâmicas naturais, está destinada
a autodestruir-se porque transporta dentro de si própria alguma coisa que a põe inelutavelmente
em contradição consigo mesmo. Por isto, para poder salvar-se, precisa sair de si própria e constituir
um ponto de transcendência de que receba ordem e proteção (ESPOSITO, 2004, p. 90-91).
Para que o poder soberano possa realizar a autoconservação da comunidade, ele deve romper
com esta e prosseguir através de uma estratégia que lhe é contraria. Ou seja, a conservação passa,
necessariamente, pela suspensão, ou alienação daquilo que se deve conservar (ESPOSITO, 2004, p.
91). Portanto, a proteção da comunidade, e, também, da vida, implica na suspensão de uma parte que
lhe é constitutiva. Para que a vida seja conservada, é preciso imunizar – suspender, alienar – aquela
parte que possa lhe causar a morte. Para que a comunidade seja conservada, é preciso imunizar –
suspender, alienar – aquela parte constitutiva que coloca em risco a sua manutenção, que no léxico
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hobbesiano significa a vontade de todas as coisas, que, de lado, põe em risco a vida do homem, e, do
outro, a própria manutenção da comunidade.
Sob este aspecto, por trás de sua narrativa autolegitimadora, torna-se evidente a real função
biopolítica desenvolvida pelo individualismo moderno: apresentando como descoberta e
efetivação da autonomia do sujeito foi na realidade o ideologema imunitário através do qual a
soberania moderna desenvolveu a sua missão de proteção da vida. Não se deve perder de vista
nenhum passo intermédio dessa dialéctica. Mesmo no estado de natureza os homens relacionam-
se entre si segundo uma modalidade de tipo individual – que, como se sabe, conduz ao conflito
generalizado. Mas esse conflito não deixa de ser sempre uma relação horizontal que vincula os
homens a uma dimensão comum. Ora é exatamente essa comunidade – o perigo que dela deriva
para a vida de todas e de cada um – que é abolida mediante a individualização artificial constituída
justamente pelo dispositivo soberano (ESPOSITO, 2004, p. 94).
A razão de ser do poder soberano – em sua missão de proteção da vida, que é tornada privada:
privatizada e privada de sua relação que a expõe ao seu traço comum – implica na operação de sua
redução, e, como consequência da produção do indivíduo. O ser tornado indiviso, e, portanto, unido a si
próprio. O ser separado, pela mesma linha, de todos os demais, que engendra a libertação que se projeta
sobre todos os homens. A sua transformação em indivíduos igualmente absolutos mediante a subtração
ao munus que os mantém unidos em um vínculo comum. O poder soberano se afigura como o não ser em
comum dos indivíduos, ou seja, a forma política da sua dessocialização (ESPOSITO, 2004, p. 94).
O que entra em questão é o caráter excepcional, antinômico, da imunização soberana, a qual
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é fundada na relação tensa entre norma e exceção, entendida aqui como a coincidência liminar da
conservação e da sacrificabilidade da vida, e que representa o resto não mediável e a antinomia
estrutural que rege a máquina imunitária. Esta é ao mesmo tempo o resíduo da transcendência não
reabsorvível pela imanência; a saliência do político em relação ao jurídico com o qual, no entanto se
identifica; e, também o motor aporética da sua dialética, como se o negativo, remetido a sua função
imunitária de proteção da vida, colocasse para fora do seu âmbito e a golpeasse de volta com uma
inconfundível e tenaz violência (ESPOSITO, 2004, p. 96).
O enigma da biopolítica encontra alguma explicação à medida em que se reconhece no paradigma
imunitário, e no instituto da communitas, os elementos fundacionais da soberania e do indivíduo como
sujeito de direito. A imunização da comunidade em relação às forças que lhes são destrutivas, implica
na condução aporética de que para conservar a vida é preciso reduzir uma parte que lhe é constitutiva
à morte. Para preserva a vida comum, a comunidade, a soberania invade todas as categorias do
político em um resultado inevitável da sua declinação imunitária. A atuação da soberania no que
se refere à proteção a vida, se reverte, dialeticamente, na promoção da morte, fazendo com que a
tanatopolítica seja a contraface da biopolítica.
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pela vida daqueles que dele se alimentam. Assim, a vida (bios) passa a depender igualmente dessas
condicionantes mitológicas, de tal modo que, aquele que mata animais em excesso, ou, ainda, não
atende aos rituais de execução do “sacrifício”, deixará de ser visto pelo ser sagrado em sua próxima
encarnação. O indivíduo em questão será deixado à morte pela escassez de alimento, e não por uma
execução direta do soberano (CAMPBELL, 2008, p. 54).
De outro lado, em uma referência à vida vegetal na terra, há uma identificação de que a
vida provém da morte, devendo esta última ser ritualizada e sempre efetivada como condição de
preservação da primeira (CHAHRUR; TAJERO, 2015, p. 84). Em uma referência a uma essência feminina,
personificando o poder de geração da “mãe terra”, Campbell escreve que “quando se anda por uma
floresta tropical, vê-se vegetação em decomposição por todo lado, e dessa matéria podre brota vida
nova, verde”, fazendo surgir um ensinamento óbvio: “a vida provém da morte”. É desse silogismo que
se desenvolveu todo um sistema de ritual de morte que, no limite, extrapola o âmbito da floresta,
e, também, no político, se funda o entendimento de que o matar – o sacrifício – dá origem à vida
(CAMPBELL, 2008, p. 57-58).
Essa dualidade antitética entre vida [Leben] e morte [Tanatus] também foi concebida por Freud
ao relacioná-la à constituição jurídica da comunidade política. Desde Totem e Tabu, o autor alemão já
havia desvendado a relação antitética quanto à proibição dos instintos (mais primitivos e duradouros)
quanto ao parricídio e a exogamia como elementos constitutivos da relação entre os membros de um
mesmo grupo totêmico169.
O totemismo, em sua condição animista, revela a ambivalência dos afetos que constituem a
consciência individual e coletiva a partir do sangue. O totem é do mesmo sangue que o homem e,
consequentemente, a proibição contra o derramamento de sangue – a morte do animal totêmico – (em
conexão com a defloração e a menstruação), também impõe uma proibição de ter relações sexuais
com uma mulher que pertença ao seu totem (FREUD, 1996). A violação dessas duas proibições – o
assassínio do animal totem e a exogamia – implicaria na morte do transgressor.
É nesse ponto que a explicação de Freud lança luz aos elementos aos sentimentos de união que
constituem a manutenção do grupo totêmico (e, em medida mais ampla, do da comunidade política),
e revela, neste sentido, a condição antitética entre vida e morte enquanto elementos da formação do
corpo político e da lei.
O animal totem, considerado como o animal ancestral do grupo, o que indica não só os laços
de sangue entre os mesmos, mas, sobretudo, o nome do grupo e a indicação da ancestralidade, é
simbolizado na figura do ancestral comum, o “pai” primevo, e guarda uma significação ambivalente
(tabu). Na medida em que o animal totem é considerado o símbolo do poder ancestral [como um deus
primitivo], sua morte (assassínio) somente pode ocorrem mediante a realização do ritual sacrificial, o
que constituía um sacramento, e o próprio animal sacrificado era membro do clã. Era de fato o antigo
animal totêmico, o próprio deus primitivo, através de cuja morte e consumo os integrantes do clã
renovavam e asseguravam sua semelhança com ele.
O clã se acha celebrando a ocasião cerimonial pela matança cruel de seu animal totêmico e está
devorando-o cru - sangue, carne e ossos. Os membros do clã lá se encontram vestidos à semelhança
do totem e imitando-o em sons e movimentos, como se procurassem acentuar sua identidade
com ele. Cada homem se acha consciente de que está executando um ato proibido ao indivíduo e
justificável apenas pela participação de todo o clã, não podendo ninguém ausentar-se da matança
e da refeição. Quando termina, o animal morto é lamentado e pranteado. O luto é obrigatório,
imposto pelo temor de uma desforra ameaçada. (...). Mas o luto é seguido por demonstrações de
regozijo festivo: todos os instintos são liberados e há permissão para qualquer tipo de gratificação.
Encontramos aqui um fácil acesso à compreensão da natureza dos festivais em geral. Um festival
é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição. Não é que
os homens cometam os excessos porque se sentem felizes em consequência de alguma injunção
que receberam. O caso é que o excesso faz parte da essência do festival; o sentimento festivo é
produzido pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido (FREUD, 1996).
169 O totem é o antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos,
e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão
na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar
proveito dele de outras maneiras). O caráter totêmico é inerente, não apenas a algum animal ou entidade individual, mas a
todos os indivíduos de uma determinada classe (FREUD, 1996).
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Assim, ao consumirem a carne do totem, os membros do clã adquirem sua santidade, de tal
modo que a o corpo do totem pode ser entendido como a substância ética das concessões e proibições
tabus do clã, reforçando, assim, sua identificação com ele e uns com os outros.
O ritual sacrifical – na sua expressão violenta [Gewalt] – que não só constitui a identidade
individual e coletiva do grupo totêmico, é, precisamente, aquilo que expressa o sentimento (elemento)
comum e ético, do qual decorrem os costumes, a lei (concessões e proibições) das relações entre os
membros do mesmo grupo totêmico, e entre esses e outros grupos. Nisto reside a criação de uma
instância superior dotada de poder [Macht]. Uma sem a outra seria inútil, e a união do clã não seria
possível, na medida em que são as relações de poder que são capazes de controlar, em alguma
medida, os instintos antitéticos de amor [Eros] e destruição, morte [Tanatus].
Segundo Freud, esses instintos primitivos (animistas) são aquilo que constitui tanto a formação
da psique individual (ontogênese), quanto uma psique coletiva, comum (filosgênese). O instinto de
autopreservação é de natureza erótica (narcisista). Porém, não obstante, deve ter à sua disposição a
agressividade, violência, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto de amor, quando
dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio para que obtenha a
posse e a manutenção desse objeto (FREUD, 1996).
Do ponto de vista social e político, a satisfação dos desejos [Eros] comuns dependem da disposição
da violência, na forma da lei [Gewaltakte] para atingir os seus objetivos de natureza erótica e idealista.
Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os
instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo
quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo
preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de
morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos
fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição (FREUD, 1996).
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mais amargo que a própria doença”, fazendo uma referência à economia brasileira. O atual presidente
tem defendido, cotidianamente, que as consequências da pandemia – a que se refere como uma “neurose
coletiva”, e, em particular, a quantidade de mortes – não pode prejudicar a economia do pais. “O Brasil
(economia neoliberal) não pode parar”, afirma cotidianamente o presente em exercício, na tentativa de
justificar (sacrificar) as mortes dos brasileiros para “salvar” a economia do país.172
É a partir desse cenário extremo do liberalismo político e econômico em “exercício”, aliado um
“negacionismo”, que o Brasil vivencia a pandemia causada pelo covid-19, e que se coloca em destaque
a “máquina sacrificial” em prol do capital e da economia do país, reproduzindo uma tanatopolítica e
uma “tanatoética”, imprimida pelos instrumentos normativos e protocolos que definem as condições
de tratamento da vida (bios).
O liberalismo político – fundado nos postulados da liberdade, igualdade e dignidade – e econômico –
de matriz capitalista –, que legitima a existência de uma ordem normativa dogmática, e que imprime uma
noção ideológica da ordem social decorrentes da concepção de um “bem comum” (FÉLIX, 2019), inaugura
um ritual sacrifical de produção da vida social em que as noções de mérito e capacidade, se apresentam
como a força motriz da produção do lucro e a conversão de capital em fetiche (ALMEIDA, 2015, p. 114).
A condição humana, livre, é reduzida em valor, liberal, sendo sua estrutura como símbolo da
humanidade e sua posição estrutural no sistema social determinado pela sua condição de trabalho.
O elemento axiológico da função social humana está na estrutura de capital. A normalidade, a
função geral do ente social se mede por meio de sua posição na sociedade, medida por meio
de sua função dentro da estrutura social e, por conseguinte, pelo modo como é valorado
economicamente, do contrário, fora da régua social, nada resta ao homem senão a condição e
homo sacer (ALMEIDA, 2015, p. 114-115).
A função simbólica do conceito de ser humano integrado na sociedade, portanto, trata-se da força da
capacidade humana, intrínseca à existência do ser, definido, consequentemente, em razão de sua posição
como incluso na sociedade e em função instrasistêmica, que, por conta da complexidade da estrutura
social – em termos de econômicos de sua produção – traduz, simbolicamente, a condição humana como
estrutura política, e sua dimensão cultural fundada em sua posição social (o valor econômico de sua
função), a fim de reduzir os riscos da falência do liberalismo (ALMEIDA, 2015, p. 114-115).
Essa estrutura reproduz a matriz da biopolítica, pois se trata de um conjunto de mecanismos
pelos quais aquilo que na espécie humana constitui seus traços biológicos fundamentais, vai poder
entrar no interior de uma política, de uma estratégia política, de uma estratégia geral de poder.
Esse conjunto de mecanismos define outro modo de agenciamento do espaço, especifica uma forma
diferente de normalização e singulariza um novo “corpo” enquanto objeto e sujeito da estratégia de
poder representada pela biopolítica (FONSECA, 2002, p. 207).
Assim, a condição de manutenção do liberalismo (democracia liberal) ocorre mediante o signo
econômico do ente social. A condição humana é economicamente qualificada, hierarquizada e
regulamentada (mercantilização), de tal modo que a vida (bios) passa a ser axiologicamente centrada
como medida econômica.
A condição de valores como sistema cultural ideológico da sociedade liberal – a partir da fórmula
do fetiche do capital – confundiu-se com o valor econômico, ou melhor, como valor de mercado,
a inserção da vida (expressa pela força de trabalho) como produto e a posterior transgressão da
finalidade da moeda para produto igualmente valorizado reproduz a condição humana a partir de
uma ambivalência. Ao mesmo tempo é direito e valor. Porém, valor é sempre presente, por sistema
axiológico de cultura, nesse ponto a culturalização do valor demonstra-se primordial na relação do
sujeito de direito com a estrutura social (ALMEIDA, 2015, p. 111).
A definição de standards econômicos de medição da vida (bios), reproduz a mesma condição
antitética da immunitas, na medida em que a imunização – o desligamento do munus econômico –
é inscrito no reverso lógico da estrutura social significada pelo capitalismo. A imunização indica a
172 Não se nega a importâncias das condições econômicas para o país, e, ainda, para a própria manutenção das condições
sociais dentro de uma estrutura capitalista. O que entra em jogo na análise das declarações do atual presidente da República,
é a radicalização da própria dimensão do ritual sacrifical (econômico-liberal) que coloca a vida em relação à morte, ou seja,
da morte como condição da vida, o que reafirma, em última análise da condição paradigmática da imunização.
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inclusão da vida na communitas mediante sua qualificação (valoração) em termos econômicos, o que
implica na exclusão (negação) daquela que é economicamente desvalorizada.
Os critérios normativos que orientam a tomada de decisão a respeito de quais pacientes serão
submetidos à internação no leito de UTI, para tratamento da covid-19, no Brasil, que, em última
análise, refletem os critérios éticos de manutenção da vida (bioética), se reverte em uma ética voltada
para a morte (tanatoética), ou seja, das condições em que a morte, simbolicamente ressignificada pelo
ritual procedimental do “protocolo”, é não só justificável, mas, também, entendida como necessária à
manutenção da comunidade.
A imunização produzida pelo protocolo de alocação e recursos em esgotamento durante da
pandemia por covid-19, reflete a negação das vidas economicamente definidas como improdutivas,
desvalorizadas, e, que em última análise, colocam em risco a manutenção das condições materiais-
econômicas de produção e reprodução da comunidade política, cuja a morte, do ponto de vista
simbólico, não mais se traduz como tal, mas como sacrifício.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
361
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RESUMO: A violação de direitos humanos é uma realidade no sistema carcerário brasileiro. A partir
disso, problematiza-se a afronta aos direitos humanos em face dos custodiados como resultado, ou
não, da intencionalidade do Estado e da sociedade. Emerge-se da hipótese, ao fim corroborada, acerca
do entrelaçamento das relações de poder nas esferas institucional e social com indicativos sobre a
vontade de infringir os sobreditos mandamentos. O estudo tem os objetivos de analisar a prisão com
escopo nos direitos humanos e na violência; discutir o sistema de justiça penal com supedâneo no
embate entre as leis e os fatos em suas declaradas ou latentes razões de ser; e refletir a sua vinculação
com a biopolítica e a banalidade do mal na pandemia de Covid-19. A metodologia abarca o método
fenomenológico-hermenêutico, a abordagem qualitativa, a técnica exploratória e os procedimentos
bibliográfico e documental.
INTRODUÇÃO
173 Doutorando e Mestre em Direito pelo PPGD – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos – da UNIJUÍ. Bacharel em
Direito pela UNIJUÍ. Bolsista da CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa em Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq). E-mail:
andre_castro500@hotmail.com.
174 Doutor e Mestre em Direito pela UNISINOS. Coordenador do PPGD – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos – da
UNIJUÍ. Professor do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. Líder do Grupo de Pesquisa em Biopolítica e Direitos Huma-
nos (CNPq). E-mail: madwermuth@gmail.com.
175 Os Estados Unidos da América e a China situam-se, respectivamente, na primeira e na segunda posições com aproxima-
damente 2 e 1,6 milhões de segregados (BRASIL, 2019).
176 O aumento da população carcerária é gradativo no Brasil. Em 1990, havia 90 mil presos; em 1992, 114,3 mil; em 1993,
126,2 mil; em 1994, 129,2 mil; em 1995, 148,8 mil; em 1997, 170,6 mil; em 1999, 194,1 mil; em 2000, 232,8 mil; em 2001,
233,9 mil; em 2002, 239,3 mil; em 2003, 308,3 mil; em 2004, 336,4 mil; em 2005, 361,4 mil; em 2006, 401,2 mil; em 2007,
422,4 mil; em 2008, 451,4 mil; em 2009, 473,6 mil; em 2010, 493,3 mil; em 2011, 514,6 mil; em 2012, 549,8 mil; em 2013,
581,5 mil; em 2014, 622,2 mil; em 2015, 698,6 mil; em 2016, 722,1 mil; e, em 2017, 726,3 mil (BRASIL, 2019).
177 O perfil do preso no Brasil é o seguinte: sexo – homem (95%) e mulher (5%); etnia/raça – pardo (46,27%), branco (35,48%),
negro (17,37%), amarelo (0,67%) e indígena (0,22%); idade – 18 a 24 anos (29,95%), 25 a 29 (24,11%), 30 a 34 (18,33%), 35
a 45 (19,45%), 46 a 60 (6,92%), 61 a 70 (1,04%) e mais de 70 (0,2%); escolaridade – analfabeto (3,45%), alfabetizado (5,85%),
ensino fundamental incompleto (51,35%) e completo (13,15%), ensino médio incompleto (14,98%) e completo (9,65%), ensi-
no superior incompleto (0,95%) e completo (0,56%) e ensino acima de superior completo (0,04%); e tipo penal – patrimonial
(234.866 incidências), droga (156.749), pessoal (64.048), Estatuto do Desarmamento (24.122), dignidade sexual (20.906),
paz pública (8.874), legislações específicas (4.919), fé pública (3.169), trânsito (1.435), crime praticado por particular contra
a Administração Pública (680) e delito em face da Administração Pública (483) (BRASIL, 2019).
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A violação de direitos humanos é recorrente neste contexto. São contínuos os estudos acadêmicos
e as notícias na mídia com relatos – sem necessidade de citá-los – das afrontas aos mais comezinhos
valores da Constituição Federal de 1988 e dos textos declarativos. A partir das relações de poder
conformadas institucional e socialmente no Brasil, questiona-se: em que medida a não observância
dos direitos humanos em face dos custodiados resulta da intencionalidade do Estado e da sociedade?
Emerge-se da seguinte hipótese: o sistema de justiça penal e, especificamente, a prisão não se
constituem à revelia dos interesses dos cidadãos, notadamente em virtude de o poder ser ascendido
e fomentado com supedâneo nas relações dos indivíduos com as instituições. Logo, embora sem
trazer a lume elementos incontestáveis, há indicativos sobre a vontade de obstar os sobreditos ideais
aos encarcerados, o que se intensifica, aliás, com a pandemia ocasionada pela Covid-19 à luz dos
contornos da biopolítica e de uma – possível – banalização do mal.
A fenomenologia hermenêutica, com base nas lições de Martin Heidegger (1998) e Hans-Georg
Gadamer (1999), mostra-se como o método hábil à consecução deste trabalho acadêmico. O referido
método transborda as fronteiras formais do Direito e viabiliza, a teor de Ernildo Stein (2001, p. 169),
novos olhares desde outras áreas do saber através do acesso “ao fenômeno no sentido fenomenológico”,
o que se realiza com o desvelamento daquilo que “primeiramente e o mais das vezes não se dá como
manifesto”, pois considera a relação entre o sujeito-pesquisador e o objeto-pesquisado. A revelação
do fenômeno da violação de direitos humanos em detrimento dos custodiados como decorrência da
vontade, ou não, do Estado e da sociedade em desatender aos valores elencados nos documentos
nacionais e internacionais no transcurso da história e, essencialmente, na situação em andamento do
novo coronavírus exibe-se como válida. A metodologia atende, reflexamente, à abordagem qualitativa,
à técnica exploratória e aos procedimentos bibliográfico e documental.
Este texto assume a missão de tentar desvelar as nuanças, frequentemente, ocultas do controle
(bio)político-jurídico sobre os corpos e as vidas. A esfera criminal mostra-se como um âmbito contínuo
de ordenação do tecido societal, seja positiva, seja negativamente. É a razão de ser deste trabalho
acadêmico. O artigo em tela objetiva, inicialmente, analisar a prisão com escopo nas suas ausências
em relação aos direitos humanos e nas suas afirmações no tocante à violência; na sequência, discutir
o sistema de justiça penal com supedâneo na contradição do mundo abstrato das leis (dimensão
programadora) com o mundo concreto dos fatos (dimensão operacional); e, a seguir, refletir o curso da
atualidade sobre a vinculação do cenário acima delineado com a biopolítica e a – possível – banalidade
do mal no contexto da pandemia de Covid-19 com as perspectivas e os desafios agudizados ou
emergidos devido à conjuntura em voga. Posteriormente, a título derradeiro, sem o intento de concluir,
esboçam-se as considerações finais.
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p. 496), proclama que a execução criminal promovida com excesso ou desvio representa um fenômeno
aberrante “não apenas sob a perspectiva individualista do status jurídico do destinatário das penas e
das medidas de segurança”, pois “a normalidade do processo de execução é uma das exigências da
defesa social”. O atendimento às normas estatuídas pelo Estado deveria ocorrer, então, no transcurso
da estada carcerária. Contudo, as disposições legais178, constitucionais ou infraconstitucionais, não
encontram respaldo concreto, mantendo-se adstritas, dessa forma, à abstração.
A sanção, na visão de Miguel Tedesco Wedy (2016), em vez de reduzir, deve afirmar a condição
do homem. Apesar deste postulado do Estado Democrático de Direito, as celas brasileiras exibem
uma sociedade em que algumas pessoas possuem direitos e outras, não. Para Lenice Kelner (2018), o
segregado materializa a figura do sujeito sem direitos, mormente em virtude da proliferação social e
midiática do discurso de “extermínio” do criminoso, cujo desiderato é a escolha, pelo Estado, da prisão
como a resposta aos anseios da coletividade. O descaso institucional com os custodiados não resulta,
todavia, da ausência de previsão legal, mas, sim, do descumprimento das normas, assim como da
carência de políticas públicas. “O abandono, a falta de investimento e o descaso por parte do público ao
longo do tempo” podem ser apontados como “fatores que fizeram com que chegasse o país a conviver
com o precário sistema do qual nos deparamos hoje” (KELNER, 2018, p. 221). A instituição estatal viola
os direitos humanos, ao mesmo tempo em que encontra anuência do tecido societal.
A partir disso, a infringência dos respectivos preceitos pode ser considerada como resultado da
percepção, conforme Nils Christie (1998), de que a gravidade do fato delituoso deva ser equiparada
com uma medida de dor, sem a qual não haveria a punição. Com efeito, Alessandro De Giorgi (2017, p.
39) assevera que emerge a noção de que a eficácia repressivo-punitiva exige “condições de existência
piores do que as garantidas a quem se submeter a ela”, cujo paradigma, no seio de uma sociedade
capitalista como a do Brasil, é “a condição do proletariado marginal”. A vida atrás das grades deveria
ser, por conseguinte, inferior à vida dos pobres, notadamente para figurar, efetivamente, como
“pena”. Tal raciocínio é fortalecido porque, a teor de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2015, p. 33),
são vislumbradas diversas dificuldades fora das celas e, logo, “para que a prisão consiga manter seu
caráter de contenção da criminalidade, ela ‘precisa ter’ condições de vida que são inapropriadas e
ameaçadoras”, o que contradiz o Estado, pois “cobra o respeito à lei, mas ele próprio não a respeita”.
Nesse sentido, ao vivenciar as agruras do sistema carcerário brasileiro, Igor Mendes (2017, p.
34) narra o ingresso na prisão como “a descida aos porões mais obscuros de nossa sociedade”. O
desrespeito ao ordenamento jurídico, que no Brasil elenca um rol extenso e não taxativo de direitos
humanos, enseja a seguinte indagação: “o que é a própria privação de liberdade, afinal, senão uma
forma moderna de tortura, igualmente cruel, embora socialmente aceita?” (MENDES, 2017, p. 139).
Essa conjuntura rompe com a idealização da harmonia e pacificação do corpo social ao transgredir a
violência legítima monopolizada pela instituição estatal, de tal modo que Luigi Ferrajoli (2002, p. 318)
argumenta que “um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer
legitimidade, senão que contradiz sua razão de ser, colocando-se no nível dos mesmos delinquentes”,
notadamente porque, se o cidadão que violou a lei é considerado criminoso, o Estado, que a infringiu,
não obstante com a justificativa de defendê-la, também o é.
A história das penas, na visão de Ferrajoli (2002, p. 310) é, indubitavelmente, “mais horrenda e
infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos”. São dois os motivos para isso: em
178 À luz da Constituição Federal de 1988, nos termos do artigo 5º, XLV, XLVII, XLVIII, XLIX e L, os direitos dos presos são
a impossibilidade de passar a pena de uma pessoa para outra; a inexistência de penas de morte, com exceção do caso de
guerra declarada, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis; o cumprimento da pena em estabele-
cimentos distintos, conforme a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; o respeito à integridade física e moral; e
a permanência das presas com os filhos no período de amamentação (BRASIL, 1988). A Lei de Execução Penal estabelece,
especificamente, a teor do artigo 41, I a XVI, o seguinte rol de direitos: alimentação suficiente e vestuário; atribuição de
trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para
o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anterio-
res, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com a defesa; visita do cônjuge, da
companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento, salvo quanto
às exigências da individualização da pena; audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição
a qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior mediante correspondência escrita, de leitura e
de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes; e atestado de pena a cumprir, emitido
anualmente, sob pena de responsabilidade da autoridade judiciária competente (BRASIL, 1984).
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primeiro lugar, “porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos
delitos têm sido as produzidas pelas penas”; e, em segundo lugar, “enquanto o delito costuma ser uma
violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre
programada, consciente, organizada por muitos contra um” (FERRAJOLI, 2002, p. 310). No Brasil, aliás,
consoante Vera Regina Pereira de Andrade (2017, p. 309), a violação dos direitos humanos não se dá
pela “inexistência de infraestrutura ou por qualquer disfunção, mas, ao contrário, pela existência de
uma lógica estrutural: a inconstitucionalidade é aberta”. Há um sentido na inconsistência formal e real
do sistema carcerário brasileiro, concebido por Salo de Carvalho (2001, p. 263) como o local “onde a
civilização não se fez presente, por inércia ou desinteresse do poder público”.
Torna-se forçoso assinalar, então, a teor de Vera Malaguti Batista (2017, p. 24), que, no âmago das
prisões nacionais, “não há direitos, suspensas estão todas as garantias e toda a beleza e delicadeza
que os homens e mulheres ali jogados tentam teimosamente reconstruir todos os dias”. A atuação
do Estado, nessa esteira, caminha no sentido de violar os preceitos considerados basilares à vida
digna, como se o “inimigo” a ser enfrentado, como resultado de sua afronta às condutas consideradas
adequadas ao tecido societal, fosse, de fato, retirado de sua condição de ser humano. Logo, se o
indivíduo deixa de ser humano, aniquila-se o atributo fundante do sujeito de direitos, como se, por
conseguinte, não lhe fosse autorizado gozar das benesses da humanidade, mas tão somente receber
a violência como resposta à sua violência ao corpo social. Porém, a violência não conduz à segurança.
Para Hannah Arendt (1985, p. 45), a violência, assim como qualquer ação, “transforma o mundo, mas
a transformação mais provável é em um mundo mais violento”.
Tudo isso contradiz com a narrativa fundante da restrição da liberdade como sanção. Ela
ascendeu com a ideia humanizadora do rol de punições do Estado. O corpo utilizado nos suplícios foi
substituído pelo tempo de vida em liberdade. A partir do seu nascer, contudo, a prisão sofre crítica.
Nesse sentido, Michel Foucault (2013, p. 218) afirma que se conhecem “todos os inconvenientes
da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando não inútil”, mas “não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar”,
de maneira a ser considerada como “a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. Faz-se
necessário, todavia, tomar a referida assertiva com cautela a fim, aliás, de não validar o seu eterno
funcionamento. As deficiências da pena privativa de liberdade não a fizeram, com efeito, deixar
de alcançar o status de medida sancionatória por excelência na atualidade. Trata-se do contexto
brasileiro. A conjuntura hodierna notabiliza o encarceramento em massa como uma realidade, uma
escolha e um dilema no Brasil. Nessa esteira, Camila Caldeira Nunes Dias (2017, p. 18) assevera:
A partir deste horizonte, a restrição de liberdade não se valida mais com escopo na segurança
pública. Em que pese formalmente continue a trazer este ideário nos textos legais, a realidade evidencia
razões outras para o seu funcionamento. Singular ou estruturalmente, as incoerências são constatadas
no caminhar da história e amoldadas à dinâmica institucional e social. Apesar desta incongruência, a
prisão mantém a sua centralidade na órbita securitária, não obstante os seus intentos, quiçá, se situem,
preferencialmente, em dimensões outras. Os tempos contemporâneos podem estar encontrando no
encarceramento em massa a estratégia para o alcance de fins escusos. Aliás, se a maximização das
cifras segregadas criasse uma – ilusória – aura de harmonia e pacificação na sociedade, a engrenagem
atenderia aos interesses da coletividade. Surge, porém, o paradoxo: à medida do avanço da massa
carcerária, o anseio punitivista também aumenta. Uma relação contraditória. É o que se almeja
aprofundar, à vista do exposto, na próxima seção.
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179 O acesso à educação, previsto nos artigos 10 e 11, IV, da Lei de Execução Penal, é considerado como instrumento à
reabilitação, reeducação e ressocialização devido à melhor condição de inserção ou, se for o caso, reinserção ao mercado de
trabalho. No entanto, apenas 10,58% dos encarcerados estão envolvidos em atividades educacionais, as quais são distribuí-
das em 9,6% de atividades de ensino escolar e 1,04% de atividades educacionais complementares (BRASIL, 2019).
180 O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, instituído pela Portaria Interministerial nº 1.777/2003, prevê o
atendimento da população carcerária na esfera do Sistema Único de Saúde (SUS), o que contempla os artigos 12 e 14 da Lei
de Execução Penal. O Brasil contabiliza 469.953 presos em unidades com módulo de saúde, ao passo que 234.292 segrega-
dos se encontram em unidades sem módulo de saúde, o que representa 66,7% do contingente recluso em estabelecimentos
com profissionais e equipamentos sanitários (BRASIL, 2019).
181 O artigo 28 da Lei de Execução Penal determina a finalidade educativa e produtiva do labor exercido pelos condenados.
Todavia, somente 17,5% dos custodiados encontram-se envolvidos nestas funções, as quais são exercidas, sobremaneira,
como atividades internas, na cifra de 80,56%, ao passo que 19,44% se referem às atividades externas (BRASIL, 2019).
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de entorpecentes. A atuação do Estado, a bem da verdade, não se adstringe àqueles que convivem
face a face com a população prisional. Trata-se, na percepção de Mendes (2017, p. 138-139), de uma
maquinaria maior:
A sucessão de responsabilidades é longa. Inclui o juiz que decreta prisão, indiferente e mesmo
hostil àqueles que são objeto de sua decisão, pouco se importando para onde será enviado e
em que condições será mantido o “seu” preso. Abrange os políticos que, em troca de votos,
fazem o fácil discurso populista, prometendo leis ainda mais duras e maior encarceramento,
investindo mais em construção de prisões e armamento das polícias do que na assistência à
nossa juventude. Passa pelos burocratas dos milhares de órgãos que, de um jeito ou de outro,
são responsáveis pela fiscalização do sistema penal, até chegar aos diretores e subdiretores que
costumam fechar os olhos ante o “excesso” de seus homens. Isso para ficarmos restritos aos que
operam o sistema penal, não discutindo as causas econômicas e sociais desses males, com raízes
ainda mais profundas em nossa história.
Um elemento válido à elucidação deste cenário é a relação entre a existência real e a criação de
uma sensação de insegurança. Quer dizer: o aumento da criminalidade baseia-se no acréscimo de
ocorrências infracionais ou no sentimento de se estar à mercê da violência. Para Jock Young (2002),
a atuação do Estado-juiz é outro fator substancial à conformação dessas visões dos seres humanos
sobre a violência criminalizada. “Os aumentos da criminalidade se tornaram sinais”, consoante Young
(2002, p. 62), “não tanto de mudanças da taxa ‘real’ de criminalidade, mas de aumentos das respostas
governamental e do público à criminalidade”, as quais são utilizadas, às vezes, “como cortinas de
fumaça para os interesses investidos do sistema de justiça criminal” e, às vezes, “como metáforas
de ansiedades sociais mais amplas não relacionadas à criminalidade”. É como se a área securitária
fosse usada como subterfúgio para a realização de anseios escusos, embora estes, mantidos sub-
repticiamente, se exibissem através de aspirações coletivas em prol do combate à delinquência.
O arcabouço normativo criminal, nesse sentido, assume a sua razão de ser no âmago da
sociedade em que foi estabelecido. O Direito Penal e seus ramos correlatos vêm ao mundo, na lição de
Nilo Batista (2017, p. 19, grifos do autor), com vistas a satisfazer às suas funções, especialmente reais
e não abstratas, “dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada
maneira”. Logo, o nomos, embora instaurado estatalmente, não se dissipa da sociedade, mas convive
com as suas relações de poder. A partir disso, os sistemas punitivos, conforme Juliana Borges (2019,
p. 44), “não são alheios aos sistemas políticos e morais”, senão, isto sim, são fenômenos sociais
vinculados, mas não restritamente, ao Direito. Os interesses dos membros do tecido societal, seja em
menor, seja em maior grau, situam-se no coração do sistema de justiça penal e, consequentemente, da
prisão. Assim, não há como cindir os discursos da sociedade com as ações do Estado, especialmente
devido à – aspirada e/ou suposta – representatividade democrática.
O desalinho entre o ser e o dever ser, às vezes, é um resultado involuntário, mas, às vezes, é um
efeito intencional. Torna-se forçoso evidenciar esta sinuosa relação estabelecida, historicamente, com
a – declarada – tentativa de oferecer segurança pública e com a – latente – funcionalidade da aparelhagem
securitária do Estado, pois, de acordo com Andrade (2017, p. 317), “a prisão vai contraditoriamente
se tornando o que sempre foi, ela vai ficando nua, porque o que interessa hoje é ‘neutralizar’ a
exclusão social”. A partir desta configuração do aparato repressivo-punitivo contemporâneo, Andrade
(2003, p. 293) sintetiza os percursos e os percalços: “promessas vitais descumpridas, excessivas
desigualdades, injustiças e mortes não prometidas”; ciente e consciente, então, desta conformação da
realidade, “mais do que uma trajetória de ineficácia, o que acaba por se desenhar é uma trajetória de
eficácia invertida, na qual se inscreve não apenas o fracasso do projeto penal declarado”, senão, isto
sim, no seu interior, “o êxito do não-projetado; do projeto penal latente da modernidade”.
A crônica realidade brasileira sobre o modus operandi do controle social, mormente repressivo-
punitivo, demonstra as vicissitudes do ciclo autoritário e democrático da história. A regressão democrática
e a progressão autoritária, atualmente, têm construído os traços de uma conjuntura de assimetria entre
os ditames normativos e as evidências fáticas, social e/ou institucionalmente. A Assembleia Nacional
Constituinte edificou um Estado Democrático de Direito com a Constituição Federal de 1988, mas os
vinte e um anos de ditadura civil-militar, na visão de Loïc Wacquant (2001, p. 10, grifos do autor),
“continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as mentalidades
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coletivas”, fazendo as classes sociais identificarem “a defesa dos direitos do homem com a tolerância à
bandidagem”, razão pela qual, “além da marginalidade urbana, a violência no Brasil” se encontra envolta
de “uma política que permanece profundamente marcada pelo selo do autoritarismo”. Tal situação, na
esteira de Lilia Moritz Schwarcz (2019), tem se fortalecido recente e hodiernamente.
A violação de direitos humanos no sistema carcerário brasileiro, à vista do exposto, apresenta
um trajeto que se incorpora à realidade do tecido societal e à conformação do poder estatal. Os
discursos sociais e – por que não dizer – as ações institucionalizadas direcionam-se à estruturação
de um aparato repressivo-punitivo que se manifesta em afronta aos textos legais e se realiza com
o afastamento dos valores edificantes do Estado Democrático de Direito. O descumprimento das
normas estatuídas em alusão à dignidade da pessoa humana, que, no caso em apreço, se relaciona
à população prisional, não significa, contudo, a incapacidade do ente estatal de atender aos seus
interesses, ou mesmo aos da sociedade, posto que, vez ou outra, as ambições são veladas, mas
aptas a se solidificarem. Atualmente, a pandemia ocasionada pela Covid-19 parece ter intensificado a
desigualdade, nas suas variadas dimensões, e acentuado a cesura biopolítica entre os seres humanos.
É o que, portanto, se anseia refletir a seguir.
A violação de direitos humanos no sistema carcerário brasileiro é recorrente. Trata-se de uma realidade
constante evidenciada tanto nos estudos acadêmicos como nas notícias dos veículos de comunicação.
Falta de acesso aos elementos básicos à subsistência, enfrentamento entre as facções, violências entre
servidores e custodiados. São situações cotidianas no embate entre a vida e a morte. O que se suscita
como necessário de ser desvelado, porém, não é saber se há infringência aos direitos humanos dos
presos, se o Estado não observa as suas funções elementares no tocante aos segregados, se a infração
cometida pelo recluso foi mais ou menos grave. Tudo isso é importante e – por que não dizer – conhecido.
O problema, no entanto, está em revelar a provável existência de uma maquinaria de poder na qual a
realidade posta faça sentido. Por isso, esta seção visa a demonstrar, à luz da biopolítica, a configuração
da prisão como lócus de afronta aos valores relacionados à dignidade com base em razões ocultas, mas
vivificadas nos corpos político-social como reflexo de uma – possível – banalidade do mal.
O biopoder constitui-se, substancialmente, de dois termos, quais sejam: vida e poder. O poder
da vida ou o poder sobre a vida. Um poder que se exerce em prol da vida ou que se utiliza da vida.
O século XVIII e, essencialmente, o século XIX viram, na leitura de Foucault (2005, p. 285-286), “a
assunção da vida pelo poder”, concebida como “uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser
vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao
que se poderia chamar de estatização do biológico”. O nascimento da biopolítica adiciona e fortalece
a anátomo-política, emergida no século XVII182. Ao lidar com a população como problema, de um lado,
político e, de outro lado, biológico, a biopolítica, juntamente com a anátomo-política, visa, na lição
foucaultiana (2001, p. 131), à “administração dos corpos” e à “gestão calculista da vida” acerca da
natalidade, longevidade, mortalidade. O que se verifica é a utilização dos atributos inerentes à vida
como estratégia de poder, mas vistos sob a perspectiva politizada.
A vida não se mantém mais nos confins meramente naturais. Ela se insere na esfera elementarmente
política. O resultado disso é a conformação da vida como objeto e objetivo da política. A política,
nesse sentido, estrutura-se e manifesta-se, na esteira de Laura Bazzicalupo (2017, p. 48), como “luta
pela definição da natureza – biológica, viva – do homem” com base em uma missão normativa e
182 O poder sobre a vida, na visão de Foucault (2001, 131, grifos do autor), forjou-se desde o século XVII em duas formas
não antitéticas, senão, isto sim, relacionadas: “Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo
como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo
de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por
procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um
pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica
do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a
duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante
toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regu-
lações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.”
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seletiva de inclusão e exclusão das vidas consideradas dignas ou indignas de viver. Para Castor
M. M. Bartolomé Ruiz (2016, p. 51), a atualidade transformou a vida dos seres humanos em “um
objeto central dos dispositivos de poder”, no seio dos quais “ela foi capturada como elemento natural
produtivo e eficiente que deve ser rentabilizado de acordo com parâmetros de metas de governo”,
razão pela qual, na acepção de Ruiz (2018a; 2018b), o intento maior da biopolítica é administrar a
liberdade dos indivíduos, não obstante a vida se defenda através da ameaça, se cuide através da
instrumentalização e se proteja através do controle.
Os tempos hodiernos, a teor de José Francisco Dias da Costa Lyra e Maiquel Ângelo Dezordi
Wermuth (2018, p. 20), demonstram o controle do Estado como “uma verdadeira máquina de captura
de corpos, vocacionado à incapacitação e exclusão de malfeitores, os inimigos do pacto social”.
A partir do – suposto – almejo de enfrentar a criminalidade, a instituição estatal, “por razões de
segurança”, consoante Daniel Arruda Nascimento (2018, p. 299), “pode tudo contra a insegurança”
mediante a eleição dos indivíduos que merecem, ou não, viver. A biopolítica costura seleções, cesuras
e mortes, não obstante em seu seio sustente a vida (para uns e não para outros). Em um contexto assim
delineado, Aline Albuquerque (2017, p. 17-18) identifica nas falas “bandido bom é bandido morto”
e “direitos humanos para humanos direitos” o “bandido” como “humano não direito” e destinado à
morte em favor dos – autointitulados – “humanos direitos”, o que se faz, no Brasil, com “escolhas
políticas claras e notórias quanto a matar pessoas ou deixá-las morrer sem qualquer comoção social”.
Se a realidade de outrora evidenciava a imbricação da vida com a política e a seleção de corpos
a serem incluídos e excluídos, a pandemia resultante da Covid-19 intensifica este contexto. O que se
constata com a calamidade decorrente do novo coronavírus é o sobressalto, na acepção de Zaffaroni
(2020), dos problemas pré-existentes. As infringências aos direitos humanos, com efeito, aumentam.
Essa visão é corroborada na lição de Schwarcz (2020, p. 6-7): “a desigualdade tem muitas dimensões
e a pandemia escancara as nossas”, pois, se o vírus “chegou ao país de avião, por meio de pessoas
da elite que estavam no estrangeiro e voltaram contaminadas”, não tardou a invadir fortemente as
periferias, os subúrbios, as comunidades, as favelas e – por que não dizer – as prisões. Insta trazer
à tona, por oportuno, os números do Departamento Penitenciário Nacional contabilizados até o dia
25 de setembro de 2020, quais sejam: 85.329 testes, 26.038 detecções, 24.846 recuperações, 4.749
suspeitas e 110 óbitos nos estabelecimentos de custódia (BRASIL, 2020b).
As mazelas históricas do Brasil tornam-se mais visíveis neste ano de 2020. Se antes os desafios
eram enormes, a situação em curso dificulta ainda mais a minimização ou, se for o caso, a superação
das afrontas aos direitos humanos. Além dos tradicionais obstáculos, o novo coronavírus tem
demarcado, na leitura de Renato Duro Dias (2020, p. 16), “uma trágica etapa historiográfica para a
República brasileira” devido à “dimensão territorial”, “dificuldade de articulação entre diversos atores
sociais” e “concorrente competência entre os entes federados em matéria de saúde pública”. Os
embates das lideranças políticas, o negacionismo da ciência e a dicotomia entre saúde e economia
têm caracterizado a cena institucional e social. Apesar disso, várias medidas foram tomadas com o
intuito de conter a proliferação do referido vírus e de atender às necessidades clínico-hospitalares. A
atenção com os cidadãos livres, contudo, na esteira de Ana Elisa Liberatore S. Bechara (2020), não se
dá com os cidadãos em restrição de liberdade, evidenciando-se o descaso183.
Os problemas da sociedade brasileira agudizam-se nos presídios. Por isso, o acesso ao
atendimento em saúde é debilitado. A pandemia de Covid-19, de acordo com Alexandra Sánchez,
Luciana Simas, Vilma Diuana e Bernard Larouze (2020), depara-se com um sistema de saúde prisional
frágil e sobrecarregado, cujo desiderato é a recorrência de alta mortalidade. Não se trata de uma
situação esporádica e momentânea. É, a bem da verdade, uma constância. Para Gabriela Gusis e
Nadia Espina (2020), a morte sob a custódia do Estado acontece nas prisões da América Latina, mas
as chances de vidas serem ceifadas aumentam em virtude da pandemia do novo coronavírus. Se
um surto ocorrer entre os muros de um estabelecimento de custódia, o resultado tem o condão de
ser catastrófico. Esse risco, porém, é abandonado, assim como o são, com supedâneo em critérios
183 Faz-se necessário referir, no entanto, a existência de dois documentos com alusão à condição dos custodiados, quais
sejam: a Resolução nº 1 – Pandemia e Direitos Humanos nas Américas, datada de 10 de abril de 2020, da Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos (2020), e a Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça
(BRASIL, 2020c).
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O encarceramento em massa é uma realidade neste limiar do terceiro milênio. Com a terceira
maior população prisional do mundo, o Brasil adota a restrição de liberdade como a sanção por
excelência do sistema de justiça penal. Aparentemente, não se trata de uma opção sem razões ou,
aliás, de uma opção com razões fundadas na lei, senão, isto sim, uma opção (bio)político-jurídica
baseada na seletividade dos corpos e das vidas abandonados em relação aos direitos, mas abarcados
no tocante aos deveres. São motivos velados, embora constantes. Por isso, a violência contida nas
instituições encarregadas de realizar o ambicioso controle sobre os desviantes não acontece à revelia
das aspirações sociais. As contradições e os interesses, à luz da empreitada analítica deste texto,
mostram-se, a priori, paradoxais, mas, a posteriori, denunciam a funcionalidade lógica do mecanismo
de exclusão de indivíduos do tecido societal e a sua derradeira inclusão como desiderato das relações
de poder construídas entre o Estado e a sociedade.
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RESUMO: A partir das medidas de isolamento social devido à propagação do coronavírus (Covid-19)
no Brasil, os casos de violência contra a mulher ocorrem diariamente e de forma menos visível. A fim
de verificar os índices de violência doméstica no decorrer do ano de 2020, inserido nesse contexto
de pandemia, são analisadas inicialmente questões referentes às desigualdades de gênero e violência
doméstica, para após, demonstrar os dados publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP), coletados com as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social e Tribunais de
Justiça relativos à violência doméstica de estados que forneceram de maneira ágil os dados solicitados.
INTRODUÇÃO
184 Mestranda e bolsista Capes/Proex do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul - PUCRS. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. E-mail: rafaela.mallmann@edu.pucrs.br.
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A violência doméstica foi definida pela Lei Maria da Penha como sendo “qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial” (PLANALTO, 2020), sendo inserida no ambiente doméstico, familiar e relações amorosas.
Com a promulgação desta legislação em 2006, foi possível dar mais visibilidade ao fato da violência
doméstica que as mulheres sofrem. O judiciário ao deferir as medidas protetivas, oportuniza que o
agressor, que na maioria dos casos é o próprio companheiro da vítima, seja afastado do lar.
Diante da “sutilidade” de algumas formas de abuso como o psicológico e o moral, muitas
mulheres não percebem estar inseridas em um contexto de violência, o que leva a grande parte dos
casos de denúncias ocorrerem quando já há a violência física. O medo, a insegurança e a falta de
conhecimento sobre os meios corretos e seguros de denunciar o agressor também são obstáculos na
vida de muitas mulheres.
Em tempos de pandemia, com o isolamento social e as novas definições de ficar em casa, os índices
de registros de casos dessa forma de violência diminuíram significativamente. Entretanto, é necessário
observar os motivos que levam a isso, e um deles é a falta de oportunidade da vítima denunciar o
agressor, tendo em vista que passa mais tempo com ele e não consegue efetivar a denúncia.
O resultado da impossibilidade de denúncia muitas vezes leva aos casos de feminicídios. Este
termo, adotado pela antropóloga feminista Marcela Lagarde, representa “un conjunto de violaciones
a los derechos humanos de las mujeres que contienen los crímenes y las desapariciones de mujeres
y que, estos fuesen identificados como crímenes de lesa humanidade”. Assim, o feminicídio é
considerado um genocídio contra as mulheres, que ocorre “cuando las condiciones históricas generan
prácticas sociales que permiten atentados violentos contra la integridad, la salud, las libertades y la
vida de niñas y mujeres” (LAGARDE, 2008, p. 216).
A violência contra o corpo das mulheres também é estudada por Rita Laura Segato, que afirma
que “a pesar de la cantidad de luchas, de leyes, de políticas públicas e instituciones, la letalidad del
género se acrecienta. Esto no implica un aumento solamente en el número de crímenes, sino también
en la crueldad que involucran” (SEGATO, 2016, p.153-154). O mesmo ocorre no campo da violência
não letal contra as mulheres, que não está diminuindo as ocorrências. Muitos que se opõem às lutas
feministas, afirmam que não se pode comparar o passado com o presente, tendo em vista que hoje
as mulheres denunciam mais. Entretanto, é necessário observar o crescimento de casos de violência
doméstica, em que Segato demonstra dados brasileiros de 2012, quando se matava uma mulher a
cada duas horas. No ano seguinte, a proporção era de uma mulher a cada hora e meia.
Conforme dados divulgados pelo Atlas da Violência 2020, em 2018, uma mulher foi assassinada
no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Importante considerar o recorte de gênero
nesses casos, ressaltando que em 2018 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras.
Enquanto a taxa de mortalidade por homicídio de mulheres não negras foi de “2,8 por 100 mil, entre
as negras a taxa chegou a 5,2 por 100 mil, praticamente o dobro”. Ainda, o Atlas demonstra que
“se, entre 2017 e 2018, houve uma queda de 12,3% nos homicídios de mulheres não negras, entre
as mulheres negras essa redução foi de 7,2%” e quando se analisa “o período entre 2008 e 2018,
essa diferença fica ainda mais evidente: enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu
11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%” (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020, p. 37).
Segato afirma que referente à violência não letal, é possível aceitar o argumento otimista de
que há mais denúncias por parte das mulheres, como os casos de violência doméstica. Ainda assim,
verifica-se que não se consegue freá-las e argumenta que “no hay ninguna señal de que esos otros
tipos de violencia no letal estén siendo detenidos por las leyes, o sea, por nuestras luchas dentro del
campo estatal” (SEGATO 2016, p. 154).
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entre posiciones marcadas por un diferencial de prestigio y de poder. Ese cristal jerárquico y
explosivo se transpone y manifiesta en la primera escena de nuestra vida bajo las formas hoy
maleables del patriarcado familiar, y luego se transpone a otras relaciones que organiza a imagen
y semejanza: las raciales, las coloniales, las de las metrópolis con sus periferias, entre otras. En
ese sentido, la primera lección de poder y subordinación es el teatro familiar de las relaciones
de género, pero, como estructura, la relación entre sus posiciones se replica ad infinitum, y se
revisita y ensaya en las más diversas escenas en que un diferencial de poder y valor se encuentren
presentes (SEGATO, 2016, p.92).
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que se encaminha o trabalho reprodutivo à esfera privada, obscurecendo sua importância social
(FRASER, JAEGGI, 2020).
Para Fraser, o imperialismo e a opressão raciais são componentes que integram a sociedade
capitalista, assim como a dominação do gênero. Afirma que da mesma forma que se encontra “uma
base estrutural para a hierarquia de gênero na separação institucional constitutiva do capitalismo
entre produção e reprodução, devemos buscar bases institucionais constitutivas e inerentes para a
opressão racional imperialista” (FRASER, JAEGGI, 2020, p. 57).
Nesse contexto, verifica-se que a história das mulheres é vista como uma construção que resulta
interpretações e representações que têm como fundo as relações de poder (COLLING, 2014). A esfera
pública na modernidade representa o lugar dedicado ao homem, enquanto a esfera privada abriga
as relações de caráter pessoal e íntimo, de modo que cabe à mulher a ocupação deste espaço. Nesse
cenário, à mulher é atribuído o papel de dedicação prioritária à vida doméstica e aos familiares,
gerando um estereótipo em que a domesticidade feminina seja vista como um traço natural e
distintivo, gerando um valor que determina comportamentos diferentes a este, como desviantes.
Assim, a natureza é a base das diferenças hierarquizadas entre os sexos (BIROLI, 2014).
Susan Moller Okin (2008, p. 306), afirma que há duas ambiguidades principais entre o público e o
privado: a “primeira ambiguidade resulta do uso da terminologia para indicar ao menos duas distinções
conceituais centrais, com variações em cada uma delas”. Desse modo, público/privado “é usado tanto
para referir-se à distinção entre Estado e sociedade (como em propriedade pública e privada), quanto para
referir-se à distinção entre vida não doméstica e vida doméstica”. Paradigmaticamente nas duas dicotomias
o Estado é público e a família, a vida íntima e doméstica são privadas. Okin aponta para a diferença crucial
entre os dois ser a de que o domínio socioeconômico intermediário é incluído na primeira dicotomia na
categoria de “privado”, mas na segunda dicotomia incluído na categoria de “público”.
Para esclarecer que a dicotomia público/privado possui mais de um sentido, Okin relembra
a analogia entre publicidade e privacidade e as camadas de uma cebola feita por Weinstein (1971).
Explica que “assim como uma camada que está do lado de fora de outra camada estará também
dentro de uma outra, algo que é público em relação a uma esfera da vida pode ser privado em
relação a uma outra” (OKIN, 2008, p.307). Ao focar no segundo significado da dicotomia, afirma que
é a permanência dela que “torna possível que os teóricos ignorem a natureza política da família, a
relevância da justiça na vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das desigualdades de
gênero”. Okin refere-se então a essa dicotomia como público/doméstico, determinando que ainda no
interior desta dicotomia permanece uma ambiguidade que resulta diretamente das práticas e teorias
patriarcais do passado, gerando sérias consequências práticas, principalmente para as mulheres.
A divisão do trabalho entre os sexos é fundamental para essa dicotomia. Os homens, nesse
contexto, estariam ligados “às ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por
elas, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade
e reprodução” (OKIN, 2008, p.308). Tendo como base os estudos feministas, é revelado que “desde
os princípios do liberalismo no século XVII, tanto os direitos políticos quanto os direitos pertencentes
à concepção moderna liberal de privacidade e do privado têm sido defendidos como direitos dos
indivíduos”. Acontece que esses indivíduos foram frequente e explicitamente definidos, como: adultos,
chefes de família masculinos. Com isto, a perpetuação da desigualdade de gênero se solidifica, pois
ao mesmo tempo em que os direitos destes indivíduos determinam que são livres de intrusão por
parte do Estado, da igreja ou dos vizinhos, também se determina aos direitos destes indivíduos a
“não sofrerem interferência no controle que exerciam sobre os outros membros da sua esfera de vida
privada – aqueles que, seja pela idade, sexo ou condição de servidão, eram vistos como legitimamente
controlados por eles” e que sua existência está limitada à esfera de privacidade.
Verifica-se que a ideia de separação entre o público e o privado ainda está presente nos discursos
da sociedade, como no jargão “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. A designação da
mulher ao espaço privado e a privacidade dada a esse ambiente, possibilita de certo modo que muitos
casos em que vizinhos escutam brigas referentes à violência doméstica, não denunciem. O medo de
“intromissão” na vida do casal também é um empecilho no combate à violência contra a mulher.
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No intuito de verificar os índices de violência doméstica nos primeiros dias das medidas de
isolamento social no Brasil, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) produziu, a pedido do
Banco Mundial, um estudo com dados oficiais coletados com as Secretarias Estaduais de Segurança
Pública e/ou Defesa Social e Tribunais de Justiça relativos à violência doméstica em seis Estados
que forneceram os dados de forma mais ágil e desburocratizada, ainda, é apresentado um estudo
produzido em parceria com a empresa Decode Pulse, que analisou relatos de brigas de casais e
violência doméstica nas redes sociais entre fevereiro e abril deste ano de 2020. Considerando que
nem todos os estados apresentaram todos os dados solicitados em tempo suficiente para a publicação
desta edição, alguns não constarão nos dados e serão atualizados quando possível no site do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública em novas edições do documento.
As unidades da Federação com dados coletados são: São Paulo, Acre, Rio Grande do Norte, Rio
Grande do Sul, Mato Grosso e Pará. A metodologia consistiu na seguinte: foram coletados dados ao
longo da segunda semana de abril, solicitando a cada um dos entes informações de março/abril de
2020. Na primeira edição, foram solicitadas as seguintes variáveis:
Como resultado deste primeiro relatório, verificou-se que os registros de boletins de ocorrência
apresentaram queda nos primeiros dias de isolamento em crimes como lesões corporais dolosas em
decorrência de violência doméstica (que necessita presença da vítima). As agressões em decorrência
de violência doméstica caíram “49,1% no Pará na comparação de março de 2020 com março de
2019; no Ceará a queda foi de 29,1%, no Acre de 28,6%, em São Paulo de 8,9% e no Rio Grande do
Sul de 9,4%” (FBSP 1, 2020, p. 15). No caso do Rio Grande do Norte houve crescimento de 34,1% nos
registros de violência doméstica nas delegacias, fato este que pode estar relacionado à data em que
o isolamento social foi decretado naquele estado, sendo apenas em 1º de abril.
Quanto aos registros de violência sexual, houve redução na maioria dos Estados observados.
“No Ceará a redução foi de 25% na comparação de março de 2020 com o mesmo mês de 2019; no
Mato Grosso a queda foi de 25,6% nas ocorrências de estupro, e no Rio Grande do Sul de 22,9%”( FBSP
1, 2020, p. 15), enquanto no Rio Grande do Norte observou-se que dobrou o número de registros de
violência sexual nesse período.
Referente às Medidas Protetivas de Urgência concedidas pelos Tribunais de Justiça, é possível
verificar que apenas houve variação a partir do final de março e primeiros dias de abril, em que há
uma queda no número de MPUs concedidas. No Pará a redução foi de 32,9%, em São Paulo de 31,5%
e no Acre a redução chegou a 67,7%;
Apesar da aparente redução de violência de gênero, os índices de feminicídio e homicídios
femininos apresentam crescimento, apontando a ascensão da violência doméstica. Em São Paulo o
aumento de casos de feminicídios chegou a “46% na comparação de março de 2020 com março de
2019 e duplicou na primeira quinzena de abril. No Acre o crescimento foi de 67% no período e no
Rio Grande do Norte o número triplicou em março de 2020” (FBSP 1, 2020, p. 15), enquanto no Rio
Grande do Sul não houve variação no número de feminicídios.
Nesta mesma edição, a Decode coletou em torno de um pouco mais de 52 mil menções no
Twitter que indicam briga entre casais vizinhos no período de fevereiro a abril. “Após uma filtragem
com foco apenas nas mensagens que indicassem a ocorrência de violência doméstica, resultaram
5.583 menções”, em que se apresentam os seguintes exemplos dos relatos coletados:
Relato 1 “os vizinhos estavam brigando e ele bateu na mulher, eu não consigo ouvir isso e não
sentir vontade de chorar, parece que eu sinto na pele tudo o que ela está sentindo.” (relato de
usuário em redes sociais).
Relato 2 “Meus vizinhos estão brigando a essa e eu to quase entrando lá c o pé na porta p n ter
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A partir da análise dos dados desagregados por mês, é indicado um aumento de 431% entre fevereiro e
abril, o que demonstra um aumento de quatro vezes em relatos de brigas de casal com indícios de violência
doméstica. Mais da metade (53% dos relatos) foram publicados apenas no mês de abril. Ainda, grande parte
dos relatos foram publicados “às sextas-feiras, entre 20h e 3h da manhã, sendo que, aproximadamente 25%
do total de relatos de brigas de casal foram feitos às sextas-feiras” (FBSP 1, 2020, p. 12).
As mulheres usuárias foram as quem mais reportaram as brigas de casal no Twitter no período
de fevereiro a abril deste ano, o que demonstra a maior sensibilidade e preocupação em relação ao
problema, sendo responsáveis por 67% dos relatos. Como resultado desta pesquisa, foi identificado que
houve um aumento em 431% de relatos de brigas de casal por vizinhos entre fevereiro e abril de 2020.
A terceira edição do documento, apresentada em 24 de julho de 2020, conta com dois tipos de
informação sobre o tema, sendo “(1) os registros de ocorrência lavrados pelas Polícias Civis; (2) as
Medidas Protetivas de Urgência distribuídas e concedidas pelos Tribunais de Justiça”.
Com os registros de ocorrência, foi possível coletar dados de “feminicídios, homicídios dolosos, lesão
corporal dolosa, estupro e estupro de vulnerável e ameaça para doze Unidades da Federação”, sendo estes
“Acre, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande
do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo”. A escolha das Unidades se deu pela rapidez e transparência na
divulgação das estatísticas necessárias. Enquanto os dados sobre “Medidas Protetivas de Urgência foram obti-
dos junto aos Tribunais de Justiça dos Estados do Acre, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo” (FBSP 3, 2020, p.03).
Os registros de lesão corporal dolosa entre março e maio de 2020 apresentaram uma redução em
comparação ao mesmo período em 2019, havendo uma “queda de 27,2% no período acumulado, com
as maiores reduções nos estados do Maranhão (84,6%), Rio de Janeiro (40,2%) e Ceará (26%)”. No mês de
março a queda foi de 16,2%; enquanto em abril de 35,4%; e em maio, de 26,1%. No mês de maio de 2020
7 das 10 Unidades da Federação com dados disponíveis apresentaram queda nos registros de
lesão corporal em relação a maio de 2019, com exceção do Pará (que teve um aumento de 97,2%),
do Rio Grande do Norte (cujos registros cresceram 25,8%) e do Amapá (com um pequeno aumento
de 8%). As maiores reduções foram observadas nos estados do Rio de Janeiro (45,9%), Maranhão
(34,5%) e São Paulo (27,1%) (FBSP 3, 2020, p.03).
Referente aos casos de feminicídios registrados, houve um aumento de 2,2% entre março e maio
em comparação ao mesmo período de 2019 (189 casos em 2020 e 185 em 2019). O estado do Acre
apresentou um aumento de 400% nos registros, sendo registrado 1 em 2019 e 5 em 2020. No Mato
Grosso, passou de 7 para 18 casos, com um aumento de 157,1%. O Maranhão registrou aumento de
81,8% nos registros, com 11 casos em 2019 e 20 casos em 2020. O Pará apresentou um crescimento
de 8 casos para 14, representando um aumento de 75% dos registros. De modo diverso, outros
estados apresentaram reduções nos registros de feminicídios neste mesmo período, como o Amapá
com 100%, o Rio de Janeiro com 44% e o Espírito Santo com 42,9%.
Em maio de 2020 houve uma queda de 27,9% nos registros de feminicídios em comparação a
2019, enquanto os dados de março demonstram um aumento em 38,9% e abril um crescimento de
3,2%. Já em relação aos homicídios dolosos de vítimas mulheres, houve aumento de” 7,1% no mês de
maio, passando de 127 em 2019 para 136 em 2020. Os aumentos mais expressivos foram o do Ceará
(208,3%), do Acre (100%) e do Rio Grande do Norte (75%)”, sendo que “no acumulado entre março e
maio, houve apenas um pequeno crescimento nos registros, que foram 382 vítimas em 2019 para
386 em 2020” (FBSP 3, 2020, p. 05).
Em março de 2019 foram registrados 27,9% de casos de homicídio de mulheres classificados
como feminicídio, enquanto em 2020 foram 34,3%. Do mesmo modo, em abril de 2019 26,6% dos
casos de homicídio foram classificados como feminicídios, enquanto em abril de 2020 passou para
31,7%. No mês de maio, a proporção inverteu, contabilizando 33,9% no ano de 2019 e 24,4% em maio
de 2020. Segundo o relatório, essa mudança aponta para dois “possíveis fenômenos: a diminuição na
violência letal contra as mulheres motivada por questões de gênero; ou uma piora no registro inicial
dos feminicídios no mês de maio de 2020” (FBSP 3, 2020, p. 06).
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Houve pelo terceiro mês consecutivo uma redução em registros referentes a estupro e estupro de
vulnerável nos estados analisados. No mês de maio de 2020 houve uma redução de 31,6%, passando
de 2,116 casos em 2019 para 1.447 em 2020. No período entre março e maio de 2020 a redução foi
de 50,5% nos registros, sendo as maiores reduções presentes nos estados do Espírito Santo (79,8%),
Ceará (64,1%) e Rio de Janeiro (61,2%).
Quanto aos registros de ameaça contra mulheres, o índice também diminuiu no período de
isolamento. Com redução de 26,4% nos registros de ameaça em maio de 2020, em comparação ao
mesmo período de 2019. Entre março e maio de 2020, houve redução de 32,7% em relação a 2019.
As maiores reduções se deram no Rio de Janeiro (50,5%), Ceará (36,8%) e São Paulo (35,1%).
Todos os estados analisados “apresentaram reduções no número de medidas protetivas de
urgência concedidas no período entre março e maio de 2020, em comparação com o mesmo período
do ano passado”. Com uma queda de 11,6% em São Paulo de 17.539 em 2019 para 15.502 em 2020,
enquanto no Pará, “o número de medidas concedidas foi de 1.965 em 2019 para 1.719 em 2020”,
representando uma queda de 12,5%. No estado do Rio de Janeiro, houve redução de 30,1%, passando
de 7.706 em 2019 para 5.385 em 2020, e por fim, o “Acre apresentou uma redução no de 30,7% na
concessão de medidas do período acumulado, indo de 434 medidas concedidas entre março e maio
de 2019 para 289 em 2020”( FBSP 3, 2020, p. 08).
No dia 07 de julho de 2020, é publicada a Lei Nº 14.022/20 que dispõe sobre “medidas de
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra
crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública
de importância internacional” que surgiu após o surto do coronavírus (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020).
A lei determina a manutenção dos serviços essenciais no enfrentamento à violência destes grupos, bem
como, na medida do possível, manter os atendimentos presenciais dessas demandas.
Apesar da criação legislativa, a violência doméstica segue crescendo e prejudicando diversas
mulheres pelo país. As medidas de isolamento são necessárias para evitar a disseminação do
coronavírus, entretanto, é necessário criar mecanismos de denúncia alternativos que possibilitem às
mulheres seguirem denunciando seus agressores e possibilitando o afastamento do lar. O resultado
das agressões muitas vezes leva a casos de feminicídio. O Brasil não está preparado para lidar com a
violência contra a mulher, apesar dos avanços legislativos sobre o tema. A criação de uma lei surge
como resposta ao alto índice de violência já sofrido pelas mulheres, ou seja, não resolve o problema.
É necessário criar políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher desde o ensino
básico das crianças, de modo que possibilite uma educação que preze pelo respeito ao outro, com
a proteção efetiva dos direitos humanos de cada um. Ao crescer, a criança pode desenvolver um
senso crítico determinando que a conduta da violência é errada, e assim, quebrando esse padrão de
comportamento masculino.
É necessário reconhecer que a violência doméstica está presente em todas as classes sociais, desde
os mais ricos até os mais pobres, pois a questão fundamental não é o dinheiro que cada família possui,
e sim os traços machistas e misóginos presentes nas condutas masculinas. O estereótipo de “homem”
constituído culturalmente determina a ele o uso da força e a não reprodução de sentimentos emocionais.
O reconhecido jargão de “homem não chora” é um exemplo de como o machismo afeta o próprio homem.
Nesse contexto, acabar com esses estereótipos e reinventar as concepções culturais em relação aos
gêneros é essencial para promover a redução e possível erradicação da violência contra a mulher.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
BIROLI, Flavia. O público e o privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flavia.
Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014. p.31-46.
FRASER, Nancy. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica/ Nancy Fraser, Rahel
Jaeggi; tradução Nathalie Bressiani – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2020.
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HERRERA FLORES, Joaquin. De habitaciones propias y otros espacios negados. Una teoría
crítica de las opresiones patriarcales. Bilbao: Universidad de Deusto, 2005.
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 440,
maio-agosto/2008.
SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Traficantes de Sueños C/ Duque de Alba 13:
Madrid, 2016.
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RESUMO: O presente artigo busca analisar a efetividade de uma das maiores contribuições da Lei
Maria da Penha, as medidas protetivas de urgência e a recente Lei 13.641/2018, que cria o crime de
Descumprimento de Medida Protetiva. Para tanto, a pesquisa exibe dados públicos, extraídos dos
sites da Secretaria da Segurança Pública e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
referentes aos números de registros realizados pelas vítimas de violência doméstica na Comarca de
Crissiumal, nos anos de 2017, 2018, 2019 até agosto de 2020, bem como os dados atinentes as
medidas protetivas deferidas pelo Poder Judiciário, dos anos de 2017, 2018 e 2019, realizando uma
análise comparativa entre os mesmos.
INTRODUÇÃO
A Lei Maria da Penha detém o mérito de ter transferido para a esfera pública o tema de violência
doméstica e familiar contra a mulher, fazendo com que mais mulheres tomassem a iniciativa e
denunciassem as próprias histórias de abusos sofridos. Tal lei criou mecanismos de proteção para coibir
e prevenir a violência doméstica e familiar. Dentre estes mecanismos estão as medidas protetivas de
urgência, que se dividem entre aquelas que obrigam o agressor a não praticar determinadas condutas
e as medidas que estão exclusivamente direcionadas à proteção das mulheres e de seus filhos.
No ano de 2018 a Lei 13.641 introduziu na Lei Maria da Penha o artigo 24-A, o qual tipifica como
crime a ação do agressor de descumprir a decisão judicial que deferiu medidas protetivas de urgência
à ofendida. Tal artigo carrega o único delito tipificado dentro da própria Lei 11.340/06.
Nesse sentido, a presente pesquisa possui como objetivo analisar os dispositivos jurídicos que
estabelecem as Medidas Protetivas de Urgência e a recente Lei 13.641/18 que criou o crime de
Descumprimento de Medida Protetiva de Urgência. Bem como verificar, a partir da análise de dados,
a existência de aumento ou diminuição de registros referentes à delitos praticados contra mulheres
entre o período de 2017 a agosto de 2020 e sua relação com os deferimentos de medidas protetivas
do período de 2017 a 2019, na Comarca de Crissiumal/RS.
Para a concretização do presente artigo foram efetuadas pesquisas bibliográficas, leituras
de artigos e doutrinas, bem como houve a coleta de dados públicos, realizada junto aos sites da
Secretaria da Segurança Pública dos anos de 2017, 2018, 2019 até agosto de 2020 e do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, dos anos de 2017, 2018 e 2019, onde tais dados coletados
foram tabulados em forma de tabelas e figuras, e discutidos a partir de referenciais teóricos que
analisam a problemática.
A principal justificativa para o presente tema consiste na análise dos dispositivos legais que
185 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: analus-
cherner2@gmail.com.
186 Doutora em Direito (UNISINOS). Professora-pesquisadora do Programa de Pós-graduação – Mestrado e Doutorado – em
Direitos Humanos da UNIJUUI. E-mail: joice.nielsson@unijui.edu.br.
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tratam das Medidas Protetivas de Urgência e o novo tipo penal, que comina pena de detenção de três
meses a dois anos para o indivíduo que descumprir a decisão judicial que defere Medidas Protetivas
de Urgência. A partir da realidade transmitida pelos dados coletados na Comarca de Crissiumal/RS,
buscará se demonstrar o número de registros realizados por mulheres que sofreram algum tipo de
violência, qual o delito mais praticado pelos agressores nas Cidades de Crissiumal/RS e Humaitá/RS,
bem como quantas medidas protetivas são deferidas pelo poder judiciário, a fim de constatar se os
números estão aumentando ou diminuindo de ano para ano.
As medidas protetivas de urgência possuem como o seu maior objetivo garantir a integridade
física, moral, psicológica e patrimonial das mulheres que sofrem qualquer uma das formas de violência
doméstica e familiar descritas no artigo 7º da Lei 11.340/06, possibilitando a estas uma proteção
jurisdicional cautelar, independentemente da existência de eventual processo criminal.
A vontade da vítima é primordial para a concessão da medida protetiva, uma vez que parte dela
a iniciativa para proceder ao registro de ocorrência e solicitar os mecanismos de proteção contra o
agressor. Urge considerar que a vítima da violência doméstica é a principal interessada no deferimento
das medidas protetivas, daí que, com fulcro no princípio da inércia da jurisdição, incumbe à ofendida a
movimentação da máquina judiciária, cabendo, outrossim, a esta a determinação do fim das medidas
protetivas de urgência que foram impostas.
Devido ao caráter urgente da proteção, a Lei Maria da Penha confere à mulher legitimidade e
capacidade postulatória para requerer medidas protetivas. No entanto, passada a situação de urgência,
deve ser nomeado um advogado para o acompanhamento da ofendida. Nesse sentido, Maria Berenice
Dias (2019, p. 162) dispõe que:
[...] não há como impor que as medidas protetivas sejam pleiteadas por meio de procurador ou
defensor. Mesmo que a Lei garanta à mulher em situação de violência acesso aos serviços da
Defensoria Pública ou da Assistência Judiciária Gratuita 38 (LMP, art. 28), em sede policial não
condiciona o pedido de tutela de urgência à representação por advogado (LMP, art. 27).
Urge considerar, ainda, que a concessão de medidas protetivas independe da prática de crime ou
contravenção penal, bastando que a conduta do agressor se amolde a uma das formas de violência
contra a mulher previstas na Lei Maria da Penha. Como exemplo, pode-se usar o adultério, que
não caracteriza um ilícito penal, no entanto, é uma forma de violência psicológica e merece medida
protetiva (CUNHA; PINTO, 2019).
Entre os artigos 22 a 24, a Lei 11.340 elenca um rol de Medidas Protetivas de Urgência com o fim
de dar efetividade ao seu maior propósito, que é assegurar à mulher independentemente de classe,
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, uma vida digna e
sem violência (BRASIL, 2020).
Pois bem, dedica a Lei Maria da Penha um único artigo às Medidas Protetivas que Obrigam o Agressor.
Conforme o caput do artigo 22 da Lei Maria da Penha, “constatada a prática de violência doméstica e
familiar contra a mulher”, em consonância com os termos previstos na Lei protetiva, “o juiz poderá aplicar,
de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente” as medidas protetivas de urgência previstas na
Lei 11.340, entre outras que se mostrarem necessárias para a proteção da mulher (BRASIL, 2020).
O conjunto de medidas que obrigam o agressor foi elaborado pelo legislador a partir do
conhecimento das práticas comumente empregadas pelo autor da violência doméstica, sendo que as
mesmas estão voltadas para a garantia da integridade física, psicológica, moral e material da mulher
e de sua família. Nesse seguimento, em relação ao artigo 22 da Lei Maria da Penha, Juliana Garcia
Belloque (2011, p. 309) refere que:
Na sua essência, as medidas trazidas pelo dispositivo em comento possuem natureza de restrições
administrativas, como a suspensão da posse de arma de fogo, ou de decisões provisórias relativas
a restrições de direitos previstos na lei cível, especialmente no âmbito do direito que regula as
relações familiares, como a obrigação de prestar alimentos e a restrição ou suspensão do direito
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de visitas aos filhos menores. [...] as medidas previstas na Lei Maria da Penha que obrigam o
agressor estão voltadas à garantia da ordem pública, em especial à integridade física e psicológica
da mulher e dos demais integrantes da família, e à conveniência da instrução criminal, intentado
impedir que o agressor se utilize do poderio econômico ou da ameaça à reiteração da violência
contra a ofendida e seus filhos como forma de constranger a declarante ou as testemunhas durante
a persecução penal.
Frisa-se, por oportuno, que o rol do artigo 22 não é taxativo, conforme dispõe o §1º: “As medidas
referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre
que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada
ao Ministério Público” (BRASIL, 2020).
A novíssima Lei nº 13.984 de 03 de abril de 2020, acrescentou os incisos VI e VII ao artigo
22 da Lei 11.340 de 2006, com o propósito de estabelecer como medidas protetivas de urgência o
comparecimento do agressor a programas de educação e reabilitação e o acompanhamento psicossocial
deste (BRASIL, 2020).
As medidas protetivas destinadas à ofendida estão previstas no artigo 23 da Lei Maria da Penha.
Em seu inciso I, o artigo 23 traz a possibilidade de encaminhar a mulher vítima de violência e os seus
dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento. “O art. 35, I e II, da
lei, trata “dos centros de atendimento integral e multidisciplinar e das casas-abrigos”, locais para onde
poderá ser a mulher encaminhada” (CUNHA; PINTO, 2019, p. 215).
No que concerne às demais medidas previstas nos incisos II, III e IV, verifica-se que estas são todas
no âmbito das relações familiares, uma vez que determinam a recondução da ofendida e a de seus
dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; o afastamento da ofendida do lar,
sem prejuízo do direito à bens, guarda dos filhos e alimentos; e a separação de corpos (BRASIL, 2020).
A Lei n. 13.882 de 2019 incluiu ao artigo 23 o inciso V, o qual garante à mulher vítima de
violência doméstica e familiar a matrícula de seus dependentes em instituição de educação básica
mais próxima de seu domicílio (BRASIL, 2020).
Por sua vez, o artigo 24 do diploma protetivo prevê medidas que protegem o patrimônio da
sociedade conjugal ou os bens de propriedade particular da mulher. Nesse sentido, a Lei Maria da
Penha busca proteger o patrimônio pertencente a mulher exatamente “quando esta se encontra em
situação de iminente ou concreto perigo por atos abusivos do ofensor, garantindo que a mulher tenha
plena disponibilidade de seus bens e não sofra qualquer prejuízo ou restrição indevida em razão da
situação de violência doméstica e familiar” (HEERDT, 2011, p. 322).
Não é despiciendo salientar que a aplicação das medidas protetivas não possui início somente nos
procedimentos instaurados em sede policial, elas também podem ser requeridas nas demandas cíveis,
interpostas pela vítima ou pelo Ministério Público, desde que tenham origem em uma situação de violência
doméstica. Até mesmo o Magistrado pode de ofício determinar medidas para a proteção da ofendida, assim
como aos membros de sua unidade familiar, especialmente aos filhos menores de idade (DIAS, 2019).
Ademais, no ano de 2018, por meio da Lei 13.641, foi introduzida na Lei Maria da Penha o tipo
penal de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência, tipificado no artigo 24-A e parágrafos.
A criação de tal delito trouxe maior efetividade para a Lei Maria da Penha, sanando as controvérsias
existentes em relação à punição do indivíduo que descumpre a decisão judicial que defere medidas
protetivas de urgência, além de possuir caráter pedagógico, desestimulando a ação do agressor.
O presente delito é um “crime próprio, pois só pode ser cometido por quem deve observância às
medidas protetivas decretadas” (CUNHA; PINTO, 2019, p. 229). Outrossim, possui pena de detenção
que varia de três meses a dois anos. Segundo Dias (2019, p. 181), “a tipificação do crime independe
de quem concedeu a medida, se foi o juízo cível ou criminal (LMP, art. 24-A, §1º)”.
Com efeito, em regra a aplicação do novo crime exigirá a prévia intimação do agressor, a fim
de informá-lo sobre o deferimento das medidas protetivas de urgência em favor da ofendida. Caso,
mesmo intimado do vigor das medidas protetivas de urgência o agressor deixa de tomar as devidas
cautelas para cumprir a ordem judicial imposta, como por exemplo mantendo contato com a mulher, ou
praticando novamente atos violentos contra esta, haverá dolo em tais condutas, bem como a presunção
de ilegalidade, sendo o crime previsto no art. 24 – A perfeitamente aplicável ao caso (ÁVILA, 2018).
A nova Lei é considerada mais gravosa, isso porque antes de sua publicação a conduta de
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A implantação das Medidas Protetivas previstas no texto da Lei Maria da Penha na comarca de
Crissiumal/RS, como em outras do estado do Rio Grande do Sul, representa um profundo avanço na
proteção das mulheres, vítimas de violência doméstica e familiar.
O emprego da violência pelo agressor tem como desígnio “a afirmação de poder e dominação
nas relações, e sua expressão como violência de gênero revela-se na intenção de impedir que as
mulheres sejam sujeitos de direitos, capazes de decidir e expressar livremente sua vontade, nos mais
variados planos da vida” (FEIX, 2011, p. 205-206).
Nesse sentido, a mulher que se encontrar em situação de violência doméstica ou grave ameaça
“deve procurar a polícia e registrar a ocorrência na delegacia onde aconteceram os fatos, na do local
em que se encontra ou onde ela reside. Requerida a concessão de medidas protetivas, o procedimento
deve ser encaminhado ao juízo da mesma comarca” (DIAS, 2019, p. 201).
Antes de adentrar na análise dos dados coletados no site da Secretaria da Segurança Pública
(2020), deve ser aclarado que a Comarca de Crissiumal abrange dois municípios localizados na
microrregião de Três Passos, quais sejam Crissiumal/RS e Humaitá/RS, que possuem, respectivamente,
uma população estimada de 13.448 e 4.762 habitantes, ou seja, são cidades com baixa densidade
demográfica (IBGE, 2020). À vista disso, as tabelas e figuras que serão a seguir cotejadas levam em
consideração os registros advindos de delitos praticados contra mulheres em ambos os municípios,
para que ao final se chegue ao real número de registros realizados na Comarca supracitada.
Pois bem, passamos, por conseguinte, à análise dos dados indicadores da violência contra a
mulher nas cidades de Crissiumal/RS e Humaitá/RS, respectivamente, coletados no site da Secretaria
da Segurança Pública (2020). Consoante se observa das tabelas 1 e 2 que abaixo estão expostas,
foram coletados dados referentes aos registros efetivados em decorrência da prática do crime de
Ameaça (artigo 147 do Código Penal187), onde as vítimas eram mulheres.
Não é despiciendo salientar que o delito de Ameaça está inserido dentro da violência psicológica
prevista no artigo 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha, que assim dispõem (BRASIL, 2020):
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
[...]
II- a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; [...]
O delito de Ameaça se constitui como uma agressão emocional, “sua justificativa encontra-se alicerçada
na negativa ou impedimento à mulher de exercer sua liberdade e condição de alteridade em relação ao
agressor” (FEIX, 2011, p. 205), muitas vezes pode se tornar mais grave ou até pior que a agressão física.
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - Somente se procede mediante representação (BRASIL, 2020).
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Destarte, para que se chegue ao real número de registros realizados por mulheres que foram
ameaças na comarca de Crissiumal, é necessário somar os números torais de cada cidade, chegando-
se assim ao quantitativo de duzentos e vinte e quatro registros realizados no período de 2017 a
agosto de 2020.
Pois bem, abaixo estão colacionadas as tabelas 3 e 4 as quais demonstram os números de
registros realizados em virtude da prática, pelo agressor, do delito de Lesão Corporal (artigo 129, §9º
do Código Penal188) contra a mulher. Na Lei Maria da Penha tal tipo de violência está prevista no artigo
7º, inciso I, que assim dispõem: “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal” (BRASIL, 2020).
Nesse sentido, a violência física se caracteriza pelo “uso da força, mediante socos, tapas,
pontapés, empurrões, arremesso de objetos, queimaduras etc., visando, desse modo, ofender
a integridade ou a saúde corporal da vítima, deixando ou não marcas aparentes, naquilo que se
denomina, tradicionalmente, vis corporalis” (CUNHA; PINTO, 2019, p. 74).
Ao analisar as tabelas, verifica-se que novamente o município de Crissiumal possui mais registros
de Lesão Corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico, com o total de sessenta e nove
registros efetuados. Já o município de Humaitá possui apenas dez registros realizados durante o
período de 2017 a agosto de 2020.
188 Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano.
[...]
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou
tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação
dada pela Lei nº 11.340, de 2006) Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de
2006) (BRASIL, 2020).
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Do mesmo modo, ao somar os totais de ambas as cidades, temos o real quantitativo de registros
efetuados na Comarca de Crissiumal, qual seja setenta e nove registros realizados em virtude da
prática do delito de Lesão Corporal contra mulheres.
Ademais, no site da Secretaria da Segurança Pública pode-se encontrar dados referentes aos
delitos de Estupro, Feminicídio consumado e tentado, praticados contra a mulher. Contudo, Crissiumal
e Humaitá não possuem dados expressivos em relação a estes delitos no período aqui analisado,
possuindo, no município de Crissiumal, um Feminicídio consumado no mês de janeiro de 2018 e um
Femincídio tentado, no mês de fevereiro de 2018. Já no município de Humaitá, houve em agosto de
2020 uma tentativa de feminicídio.
Segue abaixo a figura que compara os números totais de cada delito analisado na Comarca de
Crissiumal/RS, no período de 2017 a agosto de 2020, sendo que o crime de Ameaça é o que possui
maior incidência tanto no município de Crissiumal, como também no município de Humaitá.
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Além disso, antes de finalizar a análise dos dados referentes aos registros realizados por mulheres
que sofreram algum tipo de violência, é significativo constatar que no ano de 2019 houve um maior
número de denúncias realizadas, com o total de noventa e seis registros. Verifica-se que no ano de
2018 houve o total de setenta e seis registros, o menor número apresentado na tabela, vez que no
ano de 2017 foram efetuados setenta e oito registros. Importante frisar que os quantitativos utilizados
para a confecção da tabela abaixo derivam da soma dos dados de registros efetuados nas cidades de
Crissiumal/RS e Humaitá/RS, bem como do fato que foram usados somente os anos que já se findaram.
Figura 2- Gráfico do número total de registros efetuados em cada ano findado, na Comarca de
Crissiumal.
Nesse sentido, com base nos dados acima dispostos foi criada a figura abaixo, a qual demonstra
um comparativo entre os totais de medidas protetivas concedidas entre os anos de 2017 a 2019.
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Conforme verifica-se dos dados extraídos no primeiro semestre de 2017, compreendido entre os
meses de janeiro a junho, houve na Comarca de Crissiumal a concessão de sessenta e seis medidas
protetivas de urgência, já no segundo semestre do mesmo ano, o qual abarca os meses de julho a
dezembro, efetuou-se o deferimento de cinquenta e quatro medidas. No tocante a 2018, em seu primeiro
semestre houve a concessão de setenta e quatro medidas protetivas, já em seu segundo semestre
houve o deferimento de setenta e três. Outrossim, no ano de 2019 em seu primeiro semestre ocorreu o
deferimento de cinquenta e duas medidas protetivas, já em seu segundo semestre foi efetuado o dobro
de concessões de medidas protetivas de urgência, totalizando cento e vinte e cinco medidas deferidas.
Nesse mesmo sentido, com base nos dados acima explanados foi criada a figura que está baixo
colacionada, a qual demonstra que no primeiro semestre dos anos de 2017 e 2018 há um maior
número de Medidas Protetivas concedidas, bem como verifica-se que no ano de 2019, diferentemente
dos outros dois, há um elevado número de medidas protetivas deferidas no segundo semestre.
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, o presente trabalho teve como escopo o estudo acerca da Violência Doméstica contra as
Mulheres e seu tratamento a partir da Lei Maria da Penha, e as mudanças legislativas que já ocorreram em
seu texto legal, com a finalidade de assegurar uma maior eficácia na proteção das mulheres. Ademais,
analisou-se a efetividade de uma das maiores contribuições da Lei, as medidas protetivas de urgência,
as quais se dividem entre àquelas que obrigam o agressor, e as que protegem a vítima. Tais medidas
se traduzem como um importante instrumento de proteção jurisdicional utilizadas contra o agressor.
Outrossim, verificou-se com a presente pesquisa que para que estas medidas sejam deferidas
em favor da ofendia não é necessário que o seu início se dê somente nos procedimentos instaurados
em sede policial, elas também podem ser requeridas nas demandas cíveis, interpostas pela vítima ou
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pelo Ministério Público, desde que tenham origem em uma situação de violência doméstica. Inclusive o
Magistrado pode de ofício determinar medidas para a proteção da ofendida, assim como aos membros
de sua unidade familiar, especialmente aos filhos menores de idade.
Além disso, buscou-se analisar a implantação da recente Lei 13.641/2018, que criou o delito de
Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência, tipificado no artigo 24-A e parágrafos. Verificou-
se que com a criação de tal delito, pode-se ter uma maior efetividade da Lei Maria da Penha, sanando
as controvérsias existentes em relação à punição do indivíduo que descumpre a decisão judicial que
defere Medidas Protetivas de urgência.
A partir da exibição dos dados referentes aos números de registros realizados pelas vítimas de
violência doméstica na Comarca de Crissiumal, nos anos de 2017, 2018, 2019 até agosto de 2020,
bem como os dados atinentes as medidas protetivas deferidas pelo Poder Judiciário, dos anos de
2017, 2018 e 2019, constatou-se que houve um aumento, tanto de registros, em especial no que
diz respeito ao delito de Ameaça, como também de medidas protetivas deferidas, de ano para ano.
Fato este que é muito preocupante, vez que com o passar dos anos mais mulheres sofrem violência
doméstica e precisam buscar a proteção estatal. Pelo contrário, também, nota-se que mais mulheres
não estão se calando, estão denunciando a ação violenta de seus agressores e buscando proteção.
Outrossim, apesar de todas as alterações já realizadas em nosso ordenamento jurídico visando
uma maior efetividade na proteção da violência doméstica e familiar, há muito o que ser feito. Várias
são as causas que alimentam a violência contra a mulher, mas a principal, sem sombra de dúvidas, é
a cultura machista e conservadora na qual a nossa sociedade ainda está inserida.
Destarte, a melhor solução para este problema é a educação, a conscientização da população a
partir da discussão das questões de gênero, tanto em salas de aula, como também na sociedade como
um todo. Deve-se trazer à tona o debate pela luta dos direitos fundamentais, a igualdade e, acima de
tudo, o respeito ao outro, para que futuramente à cultura da educação e da igualdade coíba a violência
doméstica e familiar contra a mulher e tome as vezes do que teve que o legislador prever via o último
mecanismo de controle social – tipificação do crime.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Thiago Pierobom de. “O novo crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência:
primeiras considerações”, In Compromisso e Atitude: Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://www.compromissoeatitude.org.br/o-novo-crime-de-descumprimentode-medidas-protetivas-
de-urgencia-primeiras-consideracoes-por-thiago-pierobom-de-avila/ . Acesso em: 21 set. 2020.
BELLOQUE, Juliana Garcia. Das medidas protetivas que obrigam o agressor. In: CAMPOS, Carmen
Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada na perspectiva jurídico-feminista. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 307-314.
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha.
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Lei 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. 8. ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: Editora
JusPodivm, 2019.
CAVALCANTE, Marcio André Lopes. Comentários ao novo tipo penal do artigo 24-A da Lei
Maria da Penha. Disponível em https://www.dizerodireito.com.br/2018/04/comentariosao-novo-
tipo-penal-doart.html. Acesso em: 21 set. 2020.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 6. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.
FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º. In: CAMPOS, Carmen Hein de
(org.). Lei Maria da Penha comentada na perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011, p. 201-213.
HEERDT, Samara Wilhelm. Das medidas protetivas de urgência à ofendida – artigos 23 e 24. In:
CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada na perspectiva jurídico-
feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 315-325.
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RESUMO: O presente artigo aborda o tema da violência nos relacionamentos homossexuais, analisando
a existência de uma violência particular e ainda pouco manifestada, já que a maioria dos casais é
heterossexual, tratando-se de uma problemática que merece atenção e grande reflexão. O objetivo
deste trabalho é investigar o fenômeno da violência doméstica em casais do mesmo sexo. A primeira
parte deste artigo aborda algumas particularidades dos novos núcleos familiares contemporâneos. Na
segunda parte, demonstrar-se-á a violência doméstica nas relações homoafetivas e por fim, buscar-
se-á demonstrar a situação de vulnerabilidade social e emocional na qual se encontra grande parcela
dos homossexuais brasileiros. Propõe-se com este trabalho uma análise da ação violenta entre casais
homossexuais, colaborando para futuras precauções e intervenções.
INTRODUÇÃO
Nesse sentido, importante retratar as diversas realidades que não ficam limitadas ao homem
e mulher como centro de uma configuração conjugal. O que deve ser ressaltado é que este tipo de
189 Vanessa Andriani Maria – Advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho e Pós-Graduanda em Direito Cível. Membro
da Comissão de Direitos Humanos e do Grupo de Violência de Gênero da OAB Santa Maria-RS/ vanessamariaadvs@gmail.com
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violência existe apesar de quase passar despercebida pela mídia ou padrões estatísticos e pode ser
tão hostil quanto qualquer outro tipo de violência doméstica.
Grossi (2000, p. 304) destaca que: “A violência doméstica é resultado de complexas relações
afetivas e emocionais, não restritas ao âmbito da heterossexualidade, podendo também ocorrer em
relações afetivas envolvendo duas mulheres ou dois homens.”
A violência doméstica entre pessoas do mesmo sexo é uma ação frequente, porém é subnotificada
(LUZ, GONÇALVES, 2014). No Brasil as pesquisas e produções acadêmicas dessa problemática são
tímidas e escassas (NUNAN, 2004; NASCIMENTO, CHACON, 2009).
Com base em um estudo realizado em 1991, e ainda hoje bastante referido, autores alegaram
que a violência doméstica homossexual representaria um dos três maiores riscos à saúde dos
homossexuais, ficando atrás apenas do HIV/AIDS e do abuso de álcool e drogas (NUNAN, 2004).
A singularidade da violência sofrida e praticada por pessoas homossexuais justifica o
desenvolvimento deste trabalho, a fim de que melhor permitam ser aferidas as suas necessidades,
objetivo que norteou o estudo que se apresenta em seguida.
Também objetiva-se perceber as experiências de violência das vítimas, descrever as suas
perspectivas sobre os serviços de apoio e identificar as suas necessidades relativamente aos serviços.
O resultado do estudo servirá de suporte para o aumento da visibilidade do fenômeno, para
implementar as políticas legais, públicas, governamentais e sociais no âmbito da violência doméstica
em casais homossexuais, assim como para os/as técnicos/as que trabalham no campo e para o
aperfeiçoamento de medidas de apoio e de prevenção e intervenção adequadas, de maneira a
reconhecer as especificidades e minimizar os obstáculos que as vítimas de violência de uma relação
com um/a parceiro/a do mesmo sexo enfrentam.
O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase
constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo
doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais
heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão
‘família’, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil
ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas
adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar
que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição
designa por „intimidade e vida privada‟ (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e
pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo
à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo
o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não reducionista do conceito de família como
instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da CF de 1988 no
plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sóciopolíticocultural.
Competência do STF para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental
atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das
pessoas.”( Supremo Tribunal Federal. Acórdão da ADI nº4.277 e da ADPF nº132; BRASIL, 2011a).
Ainda sobre o mesmo tema, o Ministro Celso de Mello pontuou em outro julgamento semelhante:
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No que diz respeito à diferença entre homens e mulheres imposta pela sociedade: pares de
conceitos, como “produção-reprodução”, “público-privado”, “razão-sentimento”, etc. Tais pares
correspondem, ao masculino e ao feminino, e evidenciam a prioridade do primeiro elemento, do qual
o outro se deriva, conforme supõe o pensamento dicotômico (LOURO, 2003, p. 32).
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A conduta abusiva na violência doméstica, não se configura como um fato isolado, ela segue
um padrão cíclico de eventos violentos que se repetem. Richards et al. (2003), mencionam o “ciclo da
violência” como o modo que a violência e o poder se manifestam e se instituem nos relacionamentos
íntimos. Estes apresentam três fases a saber: Fase 1- Construção de tensão: A tensão começa a aumentar
na relação, o agressor aumenta as ameaças e assume o controle. Vítima faz esforços crescentes para
agradar o abusador, e acalmá-lo, nega a iminente violência, afasta-se e experimenta uma perda de
controle; Fase 2- Ato de Violência: O agressor torna-se imprevisível e perde o controle, atacando seu
parceiro, se torna extremamente abusivo, a vítima sente-se presa e vitimada; e Fase 3- Bondade e
Comportamento amoroso “lua de mel”: O abusador é extremamente atento e amoroso, muitas vezes
expressando culpa e vergonha. Abusador é manipulador e promete mudar, às vezes o agressor culpará
seu parceiro pela violência, deixando a vítima com sentimentos mistos, sentimento culpado e responsável
pelo abuso (RICHARDS et al., 2003, p. 8). Ainda de acordo com Richards et al. (2003), é corriqueiro que
o ciclo se repita com mais violência e num intervalo menor de tempo entre as fases.
Após ter sido abusivo(a), o(a) parceiro(a) apresentava reações e/ou comportamentos com maior
porcentagem de resposta como: “prometia que mudava”, “prometia que não tornaria a acontecer” e
“desculpava-se”, o que é consistente com a terceira fase do ciclo de violência. Nesta fase o agressor,
após o evento de violência, modifica o seu comportamento, tratando a vítima com carinho e atenção,
demonstrando arrependimento, desculpando-se pelas agressões, enfatizando a mudança no seu
comportamento, levando a vítima a acreditar que os episódios de violência são casos isolados que
não se voltarão a repetir (NUNAN, 2004).
Destaca-se que as fases apenas sugerem um padrão geral para compreender o fenômeno da
violência, sendo que esta pode se apresentar de forma sutil e imperceptível.
O tipo de violência mais aludido, apresentando maiores porcentagens, é a violência psicológica,
o que vai ao encontro dos resultados da maioria dos estudos nacionais e internacionais (ANTUNES,
400
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é uma “doença” ou “perversão”, ou pelo medo em que este tipo de informação seja usado contra o
grupo impedindo, por exemplo, ganhos legais tais como os direitos a casais do mesmo sexo e a
adoção de crianças e ao próprio casamento (LELAND, 2000).
Efetivar um registro de ocorrência implica em questões que muitos indivíduos em situação
de violência não estão preparados para enfrentar sozinhos. Diante da falta de apoio de amigos,
familiares e de profissionais capacitados, esconder-se parece ser a opção mais viável (NUNAN, 2004).
O afastamento da rede de apoio e a falta da fonte de renda são, concomitantemente, os impactos mais
presentes na vida destas pessoas, potencializando ainda mais o índice de vulnerabilidade ao novo
coronavírus, já que não conseguem sair deste círculo vicioso a que estão submetidos.
Com a pandemia do novo coronavírus e o isolamento social, muitos casais fizeram uma avaliação
da qualidade de seus relacionamentos e se a presença deste outro era realmente importante, pois
com a convivência intensa, pode-se observar alguns sinais de irritação um com o outro. A pandemia
aumentou a visibilidade de desigualdades sociais que se encontram arraigadas nas nossas atividades
cotidianas mais corriqueiras. A rotina intensa de trabalho e outras prioridades que fazia com que
estes casais não se encontrassem com tanta frequência durante a semana deu lugar a uma nova
rotina. Agora, o desafio está em conseguir se adaptar ao trabalho remoto de cada um, respeitar
individualidades, e dividir o mesmo espaço e as demandas dos trabalhos da casa.
A satisfação no relacionamento sofreu na maioria dos casos, impacto de fatores negativos
neste período de pandemia, entre eles estão: sentimento de pouco comprometimento de um parceiro
para com o outro e aumento dos atritos entre ambos. Pode-se entender que quanto maior o tempo
de distanciamento social imposto, mais fortemente estes impactos podem ser sentidos, pois a
proximidade dos casais dentro de suas casas é maior.
A convivência contínua compelida no lar pode ser estressante e exatamente o lugar mais perigoso
para vítimas de violência doméstica. Neste diapasão, quando o convívio acarreta o risco de morte, é
que se faz imperativo solicitar medidas protetivas de afastamento do lar, do agressor.
Levando-se em consideração a questão de saúde pública que impõe riscos não somente à pessoa
atingida, mas, também, para a sociedade, salienta-se que a violência doméstica ocorre em todo o mundo,
independente do nível social, econômico ou grau de instrução das pessoas. Atualmente, esta temática
tem recebido ênfase devido ao contexto particular que vivemos durante a pandemia da COVID-19.
A OMS tem se pronunciado a respeito e vem alertando para o aumento do risco de mulheres
sofrerem violência doméstica durante a pandemia, pois a associação do isolamento social a fatores
como a maior proximidade e convivência forçada com agressores, o aumento do estresse, o uso de
álcool e outras substâncias, a restrição de acesso aos serviços públicos de proteção às vítimas e as
dificuldades econômicas das famílias, criam um contexto favorável para as múltiplas manifestações
de violência doméstica. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020)
É lamentável que muitos casais homossexuais sejam expostos reiteradamente a tantas agressões
e crueldades, agravadas ainda mais pelo período de isolamento físico decorrente da pandemia. Uma
das implicações mais acentuadas da pandemia na população LGBT em geral é o desencadeamento de
crises psicológicas que podem suscitar descontrole emocional e, em muitos casos, comportamentos
de risco à vida.
No caso de mulheres, o sentimento de culpa, de vergonha, de isolamento e, principalmente, do
estigma, são os grandes obstáculos, especialmente, à denúncia da violência dos parceiros íntimos.
Essa experiência estigmatizada resulta da vergonha de serem reconhecidas pela sociedade, como
mulheres espancadas e maltratadas pelos parceiros e em situação de inferioridade e desvantagem
social. (MOREIRA et al, 2011)
O importante é ter mais calma para passar pelas adversidades durante esse período. A pandemia
e as dificuldades financeiras, já que os cenários de liberdade e espontaneidade estão restritos ao
ambiente “caseiro” (perda do espaço físico), junto ao (a) seu (sua) parceira(o) e a paciência é uma das
chaves fundamentais neste processo de adaptação.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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GRUPO DE TRABALHO 2
DIREITOS
HUMANOS, RELAÇÕES
INTERNACIONAIS E
EQUIDADE
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RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar as decisões do Superior Tribunal de Justiça e
do Supremo Tribunal Federal acerca da incidência da atenuante da confissão, confrontando-as. O marco
teórico adotado pela pesquisa foi a análise crítica da dogmática penal. A pergunta a ser respondida
pela pesquisa é: em face da competência cumulativa entre as instituições e seus entendimentos, qual
é o método correto de aplicação da atenuante da confissão “qualificada” na dosimetria da pena? A
pesquisa foi desenvolvida nos sítios do STF e do STJ, durante o marco de tempo de 1º de janeiro de
2017 a 1º de outubro de 2019, totalizando 49 manifestações. O trabalho está estruturado por duas
partes. Os resultados obtidos pela pesquisa mostram que há uma divergência jurisprudencial no STF,
diferenciando a confissão qualificada da denominada confissão justificante.
INTRODUÇÃO
190 Graduado e Mestrando em Direito pela Faculdade Meridional - IMED/RS. Membro do Grupo de Pesquisa “Grupo de Es-
tudos em Desenvolvimento, Inovação e Propriedade Intelectual – GEDIPI”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu da Faculdade Meridional – IMED. Advogado. E-mail: wgnoatto.adv@gmail.com;
191 Pós-doutor em Ciências Criminais pela PUC/RS. Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) com
período de Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
– Mestrado, Escola de Direito. Advogado. E-mail: felipe.dias@imed.edu.br.
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pesquisa o algoritmo “confissão qualificada e ilicitude”, em ambos os sítios, pois com o algoritmo “e”,
vincula-se os casos em que se observa a exclusão da ilicitude junto da análise da confissão qualificada.
O trabalho possui uma estruturação bipartida. Na primeira parte, desenvolve a natureza jurídica
da dosimetria da pena, perpassando pelos métodos de aplicação da pena até a acertada elaboração
do método trifásico para individualizar a pena ao indivíduo. Por conseguinte, aborda a característica
do princípio da individualização da pena como um direito e, portanto, uma garantia do indivíduo que
se sujeita às normas do Estado.
Na segunda parte, com uma aplicação empírica da metodologia indutiva enquanto método
de abordagem da pesquisa, serão analisados posicionamentos jurisprudenciais das Instituições,
compactuando as análises aos estudos teóricos produzidos ao desenvolver da pesquisa. Complementa-
se que a pesquisa utiliza como método de abordagem o hipotético-dedutivo e como método de
procedimento o estatístico, bem como aplicar-se-á a técnica de pesquisa da documentação indireta,
com ênfase bibliográfica e jurisprudencial.
Para compreender a amplitude da dosimetria da pena, cumpre realizar uma análise de sua
evolução na história e, principalmente, no ordenamento jurídico brasileiro, com uma análise de seu
desenvolvimento em conexão com o aspecto e momento social vivenciado em seu ciclo de alterações
realizadas pelo Poder Legislativo e, também, pelo Império Brasileiro.
Com efeito, no Brasil se obteve o primeiro Código Penal em 1830, ainda sob o comando do
Império brasileiro. Indubitavelmente, este Código permitia uma individualização da pena com amarras
ao juiz, preestabelecendo mínimo, médio e máximo. Deste modo, o juiz era tão somente “boca da
lei” e era impedido de empregar as circunstâncias do caso concreto no momento de dosar uma
pena imposta. Em um século revolucionário para o Brasil, ocorreu a proclamação da República em
1889 e, de forma imediata, um Código Republicano em 1890, que continuava a posicionar o juiz
a reproduzir um cálculo aritmético ao balizar a pena. Perpassando por modificações e até mesmo
uma Consolidação das Leis Penais, fora editado em 1932 um novo Código Penal para instituir estas
alterações (BOSCHI, 2013, p. 146-147).
Nesse sentido, o princípio da individualização da pena possui raízes históricas, desde o cenário
iluminista, berço da Revolução Francesa em 1789, em que a moral iniciou seu processo de separação
do Direito, com autores vanguardistas como Voltaire, Locke, Rosseau, Hobbes e, inclusive, Cesare
Beccaria, instituindo-se a ideia de um Estado laico e desvinculado das regras da Igreja, devendo esta
ser subordinada ao Estado. Nesse momento, o ideal de uma democratização da pena – e não uma
penitência divina – passou a se emancipar em âmbito social e jurídico, visualizando o indivíduo como
ser racional e livre (BOSCHI, 2013).
Posteriormente, diante da (des)organização do sistema penal brasileiro, em razão das diversas
leis esparsas que eram promulgadas – estas, impulsionadas pelo contexto republicano – surgiu em
1932 a Consolidação das Leis Penais de Piragibe, por meio do Decreto nº 22.213 de 1932 (BRASIL,
1932), juntando-as, e assim permanecendo até 1940.
Por sua vez, o Código Penal de 1940, com uma vacatio legis de 02 (dois) anos, passou a vigorar
apenas em 1º de janeiro de 1942, em razão do progresso jurídico implementado, com todas as suas
nuances, conforme previa o artigo 361 do diploma legal (BRASIL, 1940). Surgiu, assim, de forma
expressa e consolidada, a confissão espontânea como meio justificado de se atenuar a pena, no corpo
do artigo 48, especificamente no inciso IV, alínea “d”, com a ressalva de aplicabilidade apenas em caso
de autoria ignorada ou atribuída a outrem. Daí se depreende o quão prematuro é o tema em estudo,
porquanto historicamente novo e em embate com a sociedade.
O Decreto-Lei nº 1.004 de 1969, que alterou o Código Penal, manteve em sua integralidade
a norma penal referida, realocando-a, contudo, ao artigo 58, inciso III, alínea “d” (BRASIL 1969).
Posteriormente, mais especificamente no ano de 1984, sobreveio a Lei nº 7.209, que trouxe para o
ordenamento jurídico brasileiro o instituto da confissão espontânea nos moldes de aplicação atual,
dispondo na íntegra, por meio do artigo 65 do Código Penal: “são circunstâncias que sempre atenuam
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a pena: III - ter o agente: [...] d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do
crime” (BRASIL, 1984).
Dessa forma, instituía-se a confissão como fato. Circunstância valorada deste modo, em caráter
objetivo e de ampla aplicação processual, gerando a merecida atenuação de eventual pena aplicada.
Como progresso que é, dúvidas passaram a surgir, e a jurisprudência passou a balizar as idas e vindas
da atenuante, sendo discutido até hoje seus requisitos ou, até mesmo, se eles existem de forma
taxativa (BITENCOURT, 2019).
Importante ressaltar que a individualização da pena, por mais racional, democrática e burocrática
que seja, possui em seu cerne a tentativa de humanizar o exercício de punir, ainda que com prescrição,
que sobreveio com a ideia de uma aplicação de pena racional, com todo o movimento iluminista
(MACHADO, 2009).
Outrossim, refere Boschi que: “espontânea é a confissão realizada sem nenhuma circunstância
que a provoque, embora haja precedentes mais liberais em contrário, admitindo-a independentemente
de outras exigências” (2013, p. 234, grifo nosso). Logo, a espontaneidade possui um valor essencial
na confissão, uma vez que é ela quem resguarda a vontade final do agente que a proclama e legitima
a contrapartida estatal no sentido de concessão da atenuante genérica prevista no art. 65, inciso III,
alínea “d”, do Código Penal (BRASIL, 1940).
Nesse sentido, por força da Constituição Federal, o juiz deve fundamentar todas as suas decisões,
nos termos do artigo 93, inciso IX (BRASIL, 1988), e a dosimetria da pena faz parte da decisão judicial
como direito fundamental, conforme artigo 5º, inciso XLVI (BRASIL, 1988), cumprindo a ele designar
o retrato perfeito para a moldura pré-escolhida192. A reforma de 1984 adotou o método trifásico
de aplicação da pena, cumprindo ao juiz seguir etapas para estabelecer a pena definitiva, porém,
com discricionariedade para em cada uma prosseguir com seu entendimento ao caso concreto,
em consonância com o art. 68, caput, do Código Penal (BRASIL, 1940). Em conformidade com este
entendimento, doutrina Santos:
A atividade intelectual de aplicação da pena criminal tem por objetivo estabelecer a pena
necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime, conforme o seguinte método (art.
68, CP): a) definição da pena-base, fundada nas circunstâncias judiciais (art. 59, CP); b) agravação
ou atenuação da pena-base, fundada nas circunstâncias legais (arts. 61, 62 e 65, CP); c) fixação da
pena definitiva, fundada nas causas especiais de diminuição e/ ou de aumento da pena, da parte
geral e da parte especial do Código Penal (SANTOS, 2014, p. 523).
Nessa senda, cumpre salientar que, ao delimitar a pena-base, o juiz deve efetuar a análise das
circunstâncias judiciais que, com efeito, classificam-se em subjetivas e objetivas. Todavia, em que pese
as circunstâncias sejam denominadas de “objetivas”, elas devem ser devidamente fundamentadas na
decisão judicial, não suprindo a carência de fundamentação a menção de imperatividade do instituto.
Portanto, cumpre ao juiz, em sua decisão - no tocante à confissão espontânea - explanar a caracterização
da espontaneidade, principalmente nas condições em que o acusado busca evadir-se da sanção penal.
Atrelado a isso, o núcleo de análise primordial do instituto da confissão espontânea é se basta o
íntimo do agente e seu intuito de confessar perante a autoridade, ou se esta prova deve direcionar o
juízo, embargado pelo livre convencimento motivado, ao desfecho do fato, confrontando a confissão
com as provas angariadas, colhidas e dilatadas nos autos e instrução processual, conforme prevê
o artigo 197 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Questiona-se, outrossim, a faculdade do
magistrado ao valorar a confissão, fazendo com que o tema em questão ganhe caráter determinativo:
afinal, o reconhecimento da atenuante é objetivo (e, portanto, imperativo) ou facultado ao juízo
(mencionando na sentença)?
Cumpre ressaltar a característica do interrogatório como meio de defesa, e não de produção de prova,
motivo pelo qual o objetivo principal da inquirição do acusado é oportunizar a este uma chance de trazer
sua verdade aos autos (FEITOZA, 2010). Contudo, o Estado não pode(ria) legitimar a conduta do réu que
objetiva ludibriar o juízo para obter a benesse, utilizando o momento para usufruir de uma atenuante em
face de eventual iminente condenação, vez em que a oportunidade é o último ato da instrução processual.
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Ao mesmo passo, a espontaneidade não pode ser minimizada a mera iniciativa do acusado.
Somente tem sentido no contexto da sinceridade de intuito, revelando-se objetivamente o âmbito da
iniciativa de agir. Ademais, é elemento subjetivo a ser analisado na moldura do caso concreto, sendo
ponderado o resultado na busca de uma sanção adequada em respeito ao princípio constitucional da
individualização da pena.
É nesse sentido que a subjetividade do agente ganha relevância na configuração da
espontaneidade. O indivíduo institui sua subjetividade baseado em uma síntese singular que é
construída com as experiências da vida social e cultural, com a materialização do mundo das ideias,
indagações e reflexões do próprio acusado, partindo de suas vivências e atos comportamentais,
delimitados, principalmente, pelo controle social imperativo e inerente ao atual modelo de sociedade
(MAMELUQUE, 2006).
Em compasso com o tema em análise, recentemente sobreveio ao ordenamento jurídico brasileiro a
Súmula nº 630 do Superior Tribunal de Justiça, referindo que: “A incidência da atenuante da confissão espontânea
no crime de tráfico ilícito de entorpecentes exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, não
bastando a mera admissão da posse ou propriedade para uso próprio” (BRASIL, 2019, grifo nosso).
Nesse sentido, a súmula é embasada em diversos precedentes que demonstram o entendimento
da Corte na incidência da atenuante de confissão no delito de tráfico de drogas. Ressalta-se que o
motivo que enseja a súmula é, de fato, a delimitação de requisitos para que haja o reconhecimento
da atenuante, não se atentando, tão somente, a utilização da declaração do réu na sentença para
caracterizar essa atenuante que tem força preponderante, por mais que valorada e utilizada pelo
magistrado ao tempo na sentença, uma vez que os acusados utilizavam-se da objetividade do instituto
para admitir, tão somente, a posse das drogas, obtendo a benesse e, por outro lado, deixando de
confessar o crime processado (tráfico de drogas).
Outrossim, a menção da confissão na sentença de forma sucinta não demonstra a espontaneidade
e a vontade final do agente, motivo pelo qual a decisão deve ser devidamente fundamentada, sob
pena de haver desrespeito ao disposto no artigo 93, IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Ademais, surge a indagação hipotética: a natureza jurídica da confissão espontânea é baseada
no direito à autodefesa? Nessa senda, a temática se demonstra intrigante, uma vez que conceituar a
natureza jurídica da confissão acertadamente possibilita(ria) uma definição metodológica sobre sua
incidência consubstanciada com tese de exclusão de ilicitude. Nesse teor, disciplina Aury Lopes Jr. que:
Nesse aspecto, imperioso ressaltar a intelecção que se depreende da Súmula nº 630 do STJ
(BRASIL, 2019). A súmula exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, para fazer incidir a
atenuante da confissão espontânea e, portanto, trouxe uma – e, até então, a primeira – exceção para
a atenuação da pena, com a inocorrência mesmo que parcial ou qualificada.
Nessa senda, a edição da referida súmula denota que o entendimento do próprio STJ restringiu
a aplicação que outrora havia autorizado desenfreadamente por meio da Súmula nº 545 (BRASIL,
2015) e que, em apenas quatro anos, seus reflexos na individualização da pena foram intensificados
e acarretaram em uma normatização restrita para um tipo penal específico.
O entendimento se firma no argumento de que, conforme refere a Min. Maria Thereza de Assis
Moura, por meio do julgado no AgRg no AREsp 1263525, “[...] inexiste, sequer parcialmente, o
reconhecimento do crime de tráfico de drogas, mas apenas a prática de delito diverso” (BRASIL, 2018j).
Considerando este posicionamento do Tribunal, depreende-se, portanto, que ao ocorrer um delito de
homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal (BRASIL, 1940) e a denúncia tenha como circunstância
fática, outrossim, o tipo penal de porte ilegal de arma de fogo, previsto no art. 14 da Lei nº 10.826
(BRASIL, 2003), se o agente confessar tão somente o último tipo penal, incidirá a atenuante da confissão?
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[...] 2. Nos casos em que a confissão do acusado servir como um dos fundamentos para a
condenação, deve ser aplicada a atenuante em questão, pouco importando se a confissão foi
espontânea ou não, se foi total ou parcial, ou mesmo se foi realizada só na fase policial, com
posterior retratação em juízo. (BRASIL, 2018, grifo nosso).
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No entanto, algumas decisões do STF vão de encontro com o entendimento demonstrado pelo STJ,
denominando a confissão qualificada como confissão “justificante”, atribuindo-lhe, dessa forma, essência
diversa àquela utilizada pelo STJ, decorrendo desta prática uma divergência sobre a incidência ou não da
atenuante, sendo que sua aplicação acaba por ter como fator determinante a distribuição interna do HC
ou recurso oportuno. A fim de ilustrar o confronto mencionado, apresenta-se o seguinte gráfico:
Do gráfico acima, depreende-se que a maioria das decisões são no sentido da não incidência da
atenuante e, a minoria, de incidência. Contudo, esta linha tênue está muito próxima e, portanto, gera
insegurança jurídica.
Da pesquisa, não houve incidência da atenuante da confissão nas seguintes decisões: HC 171.207/
SP (BRASIL, 2019d); HC 157.278/TO (BRASIL, 2019g); HC 153.384 (BRASIL, 2018b); HC 144.646 (BRASIL,
2017a); ARE 1060372 (BRASIL, 2017b); RE 940.096 (BRASIL, 2017c); e HC 140.132 (BRASIL, 2017d).
De outra banda, ocorreu a incidência da atenuante da confissão nas seguintes decisões: ARE
1175887 (BRASIL, 2018c); e HC 157.729 (BRASIL, 2018e).
Excluiu-se da análise 17 (dezessete) decisões, vez em que não abordavam o tema em análise,
todas elas por indeferimento de análise do recurso/ação por ausência de pressuposto recursal,
prequestionamento ou que a pretensão ensejava reexame de prova, embasado das Súmulas nº 279
(BRASIL, 1963), 284 (BRASIL, 1963) e 287 (BRASIL, 1963) do STF.
Nesse cenário, depreende-se que 70% dos julgados analisados no STF, em que há decisão de
mérito sobre o tema, são no sentido de não incidência da atenuante na confissão qualificada, enquanto
30% ratificam o entendimento do STJ, concedendo a atenuante mesmo em caso de ela ser qualificada.
Outrossim, cumpre enfatizar que dentro do universo de 70% de julgados em que não houveram
a incidência da atenuante, 57,1% possuem como relator o Min. Edson Fachin, sendo que os outros
42,9% são de relatoria dos Min. Gilmar Mendes, Celso de Mello e Rosa Weber. De outra banda, dos 30%
de julgados que fizeram incidir a atenuante, ainda que em confissão qualificada, 66,6% (2/3) são de
relatoria da Min. Cármen Lúcia, e 33,4% (1/3) de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski.
Dessa forma, percebe-se que a maioria dos votos que conduzem ao entendimento majoritário
do STF são de relatoria do Min. Edson Fachin (57,1%), fato que demonstra a relativização da
jurisprudência, enfraquecendo-a, quando em confronto com a Súmula nº 545 (BRASIL, 2015) e,
portanto, o entendimento do STJ. A edição do referido enunciado pelo STJ apenas apaziguou as
circunstâncias de incidência ou não da atenuante da confissão espontânea, mas não as delimitou.
Nesse teor, o autoconhecimento pelo acusado de que sua atitude configura um ato ilícito e
criminoso, e sua vontade de agir final no sentido de ser responsabilizado na medida de sua
culpabilidade, alinhada ao momento oportuno para se alegar com a obtenção de uma benesse legal
(atenuante genérica da confissão), fazem incidir a confissão espontânea que acaba, por assim, sendo
utilizada como um meio de prova pelo magistrado (SANTOS, 2019).
No entanto, a denominada confissão “justificante”, expressão utilizada nos julgados analisados
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do STF, incide como uma confissão intrínseca e subentendida, da qual o agente se utiliza para justificar
sua conduta e dizer ao magistrado: “fiz! Contudo, qualquer outro assim o faria!”. A ponderação da
incidência da atenuante da confissão não pode ser bárbara a ponto de assim ocorrer para aquele que
sustenta a referida tese desde eventual prisão em flagrante ou investigação policial tanto quanto
àquele que justifica sua conduta em um cenário de iminência condenação (em detrimento do amplo
conteúdo probatório colhido, em sede de dilação probatória, por exemplo).
A prática jurídica demonstra de forma pragmática que, infelizmente, a jurisprudência brasileira
sofre diversas oscilações em interpretações de casos semelhantes e, até mesmo, repetitivos, tornando-se,
dessa forma, um problema histórico. Para sanar este problema, os Tribunais Superiores editam súmulas
e demonstram por meio destas um exemplo jurisdicional a ser seguido, um ditame (SCHVEITZER, 2017).
É perspicaz a análise atual de que a segurança jurídica acaba por ser um dogma em seu interior,
acarretando em uma ideia que se legitima pela força em nome de qual proclama a mesma, tornando-a
completamente flexível e passível de argumentação (ANDRADE, 2015).
O embate dos entendimentos no campo da incidência ou não da atenuante da confissão
espontânea denota uma insegurança jurídica no ordenamento. Nessa senda, o confronto específico
da incidência da confissão qualificada possui contornos ainda mais dogmáticos com a sua análise no
local onde a sua arguição mais ocorre: no Tribunal do Júri.
O Tribunal do Júri está disciplinado e legitimado, primordialmente, no artigo 5º, inciso XXXVIII, o qual
aduz que: “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: [...] c) a so-
berania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida” (BRASIL, 1988).
Desde cedo, percebe-se que a argumentação de julgamento realizado “por seus pares” não encontra funda-
mento legislativo, porquanto a lei prevê a notória idoneidade, conceito de “excelência social”, como pressu-
posto para exercício da função de jurado e, portanto, para compor o Conselho de Sentença (RANGEL, 2018).
Nesse passo, a fundamentação das decisões do Conselho de Sentença sofreu maior retaliação com
a reforma que a Lei nº 11.689 de 2008 trouxe ao Código de Processo Penal, sendo que anteriormente
o réu teria como saber se, por exemplo, o motivo de sua condenação foi por ausência de injustiça
da agressão a qual supostamente se defendeu, desmembrando-se em mais quesitos aos jurados.
Atualmente, resume-se à objetividade do quesito: “o jurado absolve o acusado?”, conforme art. 483,
parágrafo 2º, do diploma legal (BRASIL, 1941).
O destinatário da prova – nesse caso, os jurados integrantes do Conselho de Sentença – possui uma
característica de vulnerabilidade, alinhada ao sistema da íntima convicção que pode, inclusive, acarretar
certa irresponsabilidade por parte do julgamento (inter)pessoal do jurado. As arbitrariedades e fantasias
demonstradas e aplicadas durante um debate em Plenário vulgarizam a prova que se destina a um julgador
que é convencido por uma retórica robusta, enérgica e, entretanto, nem sempre técnica (BRAGA, 2019).
Portanto, a incidência da confissão, ainda que qualificada, em sede de desclassificação de tipificação
no procedimento do Tribunal do Júri, é descabida, visto que este cenário retrata, objetivamente, em
uma ausência de legitimação do magistrado em fazê-la incidir ao efetuar a dosimetria da pena, em
que pese seja deste a responsabilidade de efetuar a individualização da pena, uma vez que não se
pode atribuir ao jurado a responsabilidade, atualmente, de motivar a desclassificação.
Nesse momento, o vere dictum193, função indelegável dos jurados componentes do Conselho
de Sentença, em compasso ao sistema da íntima convicção, o acusado se encontra sendo “julgado
pelos seus pares”194 em uma selva de facultatividade do representante do Ministério Público e de seu
advogado, porquanto os elementos probatórios são maleáveis em nome da retórica (RANGEL, 2018).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do trabalho foi o de analisar os julgados do STF e STJ sobre a temática da confissão
denominada de “qualificada”, e observar suas respectivas fundamentações e entendimentos.
Com a análise dos julgados, foi possível concluir que o STJ possui posição consolidada sobre o
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tema, expressada por meio da Súmula nº 545 (BRASIL, 2015). Surpreendentemente, entretanto, o
entendimento majoritário do STF vai de encontro com o manifestado na referida súmula, distinguindo
a confissão “qualificada” de confissão “justificante”, sendo que esta não detém o condão de fazer
incidir a atenuante da confissão genérica na individualização da pena.
Percebeu-se que a dissonância de aplicação da incidência ou não da atenuante da confissão
espontânea, ainda que disciplinada por súmula, aponta para o cenário de instabilidade para assegurar
o direito fundamental à individualização da pena do acusado, que coagido pelo processo movido
pelo Estado, possui uma situação de vulnerabilidade para com a jurisdição, e por conseguinte com o
próprio poder punitivo do Estado.
Outra conclusão possível após a análise dos julgados é de que a própria Súmula nº 545 do STJ
(BRASIL, 2015) possui incongruências quando analisada, principalmente, em sede de procedimento
do júri – uma vez que a fundamentação é o cerne da incidência ou não da atenuante, segundo a
referida Súmula, e no procedimento do júri isto não ocorre –, principalmente pela sinalização, por
meio da Súmula nº 630 (BRASIL, 2019), de que a confissão qualificada possui desdobramentos mais
assertivos do que a simples menção desenfreada como o Tribunal havia fazendo.
Foi perceptível também que a incidência da atenuante da confissão espontânea possui contornos
temerários, em nome segurança jurídica e de uma individualização da pena coerente, uma vez
que é uma circunstância preponderante na dosimetria da pena e, além disso, compensa-se com a
agravante da reincidência, em razão da mútua preponderância. Com isso, ficou evidenciado que a
confissão qualificada possui instabilidade jurisprudencial sobre sua incidência, em que pese haja sido
disciplinada por meio de entendimento sumulado do STJ. Além disso, sua aplicação desenfreada entre
os anos de 2015 até abril de 2019 – momento em que sobreveio a Súmula nº 630 do STJ (BRASIL,
2019) – já demonstrou a necessidade de freios e contrapesos em relação a sua incidência.
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RESUMO: A internet é marcada pela disseminação horizontal da informação, o que é facilitado pela
utilização dos dados pessoais dos usuários para que os algoritmos possam realizar um direcionamento
dos conteúdos postados online de acordo com as preferências de cada pessoa. Contudo, podem
existir riscos nesse direcionamento, como a violação de direitos fundamentais, o que pode ser
potencializado pela pandemia da Covid-19. Dessa forma, questiona-se: Como a pandemia de Covid-19
acirrou a atuação dos algoritmos em plataformas na internet e a violação de direitos fundamentais ao
realizar o direcionamento de conteúdo? Foi possível concluir que a pandemia alargou a possibilidade
de atuação discriminatória e violadora de direitos fundamentais dos algoritmos na medida em que
tornou a população mais vulnerável e aumentou a quantidade de informação disponibilizada nas
plataformas digitais.
Palavras-chave: Algoritmos. Big Data. Covid-19. Filtro bolha. Violação de direitos fundamentais.
INTRODUÇÃO
195 O artigo foi desenvolvido no Centro de Estudos e Pesquisas em Direito e Internet (CEPEDI/UFSM), como parte do projeto
de pesquisa “Construtos Jurídicos sobre Algoritmos: a violação de direitos fundamentais a partir dos dados pessoais e das
fake news”. Tem apoio da CAPES - Código de Financiamento 001.
196 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em
Direito e Internet (CEPEDI/UFSM). Bolsista PIBIC/2020-21. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3314168049325773. En-
dereço eletrônico: luiza.bergerv@gmail.com.
197 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista CA-
PES. Advogada. Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito e Internet/UFSM. Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/4588534886687945. Endereço eletrônico: bts.bru@gmail.com.
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razão das medidas de isolamento social, o que fez aumentar as informações disponibilizadas na rede
e o material disponível para manipulação pelos algoritmos.
Diante desse cenário, a presente pesquisa questiona: como a pandemia de Covid-19 acirrou a
atuação dos algoritmos em plataformas na internet e a violação de direitos fundamentais ao realizar
o direcionamento de conteúdo? Para responder ao problema de pesquisa, utiliza-se o método de
abordagem dedutivo, partindo da compreensão da atuação dos algoritmos no direcionamento de
conteúdo para que o estudo possa estreitar-se sob o viés da possibilidade de maior violação de direitos
fundamentais no cenário digital em razão da pandemia da Covid-19. O método de procedimento, para
tanto, é o funcionalista, no estudo do papel dos algoritmos de direcionamento de conteúdo na dinâmica
informacional da internet; e o monográfico, compreendendo casos relativos a filtragem, seleção e
recomendação de conteúdo que incorrem na violação de direitos fundamentais como representativos
de outros semelhantes, com base nas técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.
O trabalho pretende verificar a possibilidade de aumento da violação de direitos fundamentais
feita por algoritmos que direcionam conteúdo em plataformas na internet. Para tanto, o estudo foi
dividido em dois capítulos, sendo o primeiro responsável por verificar como os algoritmos atuam nas
plataformas online, especialmente no tocante ao direcionamento de conteúdos diante das informações
disponibilizadas pelos usuários das plataformas, enquanto o segundo busca entender se existe a
possibilidade de violação de direitos fundamentais no direcionamento de conteúdos e de que maneira
essa realidade foi ampliada em razão da pandemia da Covid-19.
Na interação, cada vez mais digital, entre pessoas, comunidades, instituições e empresas, por
vezes, torna-se difícil, humanamente, lidar com um bombardeio de informações que chega a cada
segundo nas telas dos dispositivos eletrônicos. Não é possível avaliar a relevância subjetiva de cada
assunto que surge na internet, de modo que a simples tentativa tornaria a própria rede um inútil
depósito de dados. É esse o contexto em que surge a criação e o emprego de algoritmos nas plataformas
online. Inicialmente, em páginas como os mecanismos de busca, essa tecnologia serviu para analisar a
popularidade de um assunto e sua correspondência com o assunto procurado; mais tarde, foi usada por
diversos outros websites para fornecer uma experiência personalizada a cada indivíduo.
Os recentes algoritmos funcionam identificando um padrão na navegação na internet - por
exemplo, os sites mais visitados, o tempo despendido em publicações e a localização geográfica
- utilizando os dados da própria plataforma a que servem e, também, dados de outras empresas
da internet - que podem incluir até mesmo a rede de conhecidos, informações sobre ocupação e
gostos pessoais - o que possibilita a formação de um perfil único que identifica cada pessoa. Depois,
utilizam-se essas informações de forma preditiva para recomendar, mostrar com mais frequência ou
em posição de destaque os conteúdos que o usuário provavelmente demonstrará mais interesse.
A experiência sob medida na internet facilita o encontro de temas de interesse e consegue antecipar
até mesmo relacionamentos. Entretanto, o fenômeno da filtragem é demasiadamente desconhecido por
quem utiliza a ferramenta. Uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center revelou que a grande
maioria dos internautas acredita nos mecanismos de busca como ferramentas imparciais, precisas e
verossímeis. (PURCELL; BRENNER; RAINIE, 2012) Isso se dá pois pouco se sabe da existência e atuação da
bolha dos filtros. A falta de transparência no funcionamento das plataformas silenciosamente promove
a ilusão de que a totalidade do conteúdo na rede é acessada por todos, e que ocorre de forma igual.
Os algoritmos são, por vezes, tão complexos, que nem sequer seus desenvolvedores têm a
capacidade de compreender por que a máquina tomou aquela decisão. Isso ocorre quando se utiliza a
técnica de machine learning, que proporciona a autonomia da programação para o próprio algoritmo,
de maneira que, estudando uma base de dados, a própria máquina sequencia os passos necessários
para atingir o objetivo, em vez de sê-lo feito por um programador humano.
Independentemente do desenvolvimento posterior, seja feito por humano, seja pela própria máquina,
os algoritmos são construções humanas destinadas para um fim específico; vale dizer, têm pontos cegos
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que são reflexo dos objetivos de seus criadores e mesmo da própria natureza limitada da máquina, que
não é capaz de ter valores éticos inerentes ou a percepção das complexidades das relações humanas. Os
desenvolvedores constroem sua programação tendo como base a estreita tarefa que pretendem realizar
e sua própria visão de mundo, que não é necessariamente representativa de todos aqueles que serão
atingidos por sua tecnologia. Então, as tecnologias produzidas carregam o viés algorítmico e a ideologia
das pessoas que lhe dão origem e não podem ser tidos como neutros. (O’NEIL, 2016)
As empresas que controlam as plataformas, quando confrontadas sobre a transparência de seu
serviço, alegam ainda que não compartilham detalhes do funcionamento de seus algoritmos por uma
questão de proteção de propriedade intelectual. Nas palavras de Silveira (2019, s.p),
No livro The Black Box Society, Frank Pasquale argumentou que as corporações ocultam seus
códigos e algoritmos utilizando três alegações: a defesa de seus segredos de negócios, a proteção
da propriedade intelectual e a necessidade de evitar que os usuários driblem seus algoritmos
caso sejam abertos. Isso garante que essas corporações atuem de modo completamente obscuro
e inacessível para a sociedade. Por isso, as plataformas podem realizar operações legalmente
discutíveis ou no vazio da lei, como afirmou Shoshana Zuboff.
Uma vez incompreensível a operação e os critérios com que algoritmos tomam suas decisões,
é questionável a aparente imparcialidade que as plataformas online carregam no ideário popular.
O que ocorre na prática é uma mediação entre usuário e conteúdo por lentes de viés narcisista e
financeiro, uma vez que à pessoa é exibido mais de seus próprios gostos, e que o modelo de negócio
da internet é baseado em anúncios - isto é, privilegia o conteúdo patrocinado em detrimento dos
demais. (PARISER, 2012; NOBLE, 2018)
Justamente por centrarem-se na renda de patrocinadores, não são classificadas como mídias
de informação, mas, na verdade, como mídias de publicidade (NOBLE, 2018). Com esse pretexto
- somado à declaração de atuarem com a veiculação, e não efetivamente produção de informação -
eximem-se da responsabilidade pela veracidade das informações e pela reprodução de conteúdo que
viola direitos fundamentais, como a não discriminação, a dignidade e a liberdade de informação - e,
mais contemporaneamente, de visualização.
Importa ainda indicar que o tráfego das redes é feito de forma assimétrica entre sites. Schneier
(2015) afirma que a relação do usuário com as empresas que têm mais poder na internet é menos
similar a uma relação comercial, e mais a uma relação feudal. Isso se dá especialmente porque aqueles
que acessam a web não são os consumidores reais das empresas em que navegam: uma vez que seu
lucro advém da publicidade, os consumidores dos serviços das plataformas seriam os anunciantes, e
os usuários, o produto. O autor sumariza a situação da analogia aduzindo que “somos arrendatários
dessas empresas, trabalhando em suas terras, produzindo dados que, por sua vez, elas vendem para
obter lucro”198. (SCHNEIER, 2015, p. 69)
Outro ponto que vale atenção é que, embora caracterizando-se como empresas privadas, as
redes de informação e comunicação online realizam verdadeiras funções públicas na medida em que
funcionam como local de debate e manifestação política e como fonte primária de recebimento de
informações e notícias sobre o mundo. O poder exercido por esses entes na construção das realidades,
formadas pelo compartilhamento de experiências e saberes comuns, cresce quanto mais se amplia
seu domínio sobre a informação e a personalização. Silveira (2019, s.p) defende que “o problema
das plataformas privadas que se colocam como espaços públicos é que suas regras são decididas
monocraticamente pelos seus donos”. Assim, o interesse público pode ser facilmente sobreposto por
interesses privados, que carecem de compromisso com valores inerentes ao pleno funcionamento do
Estado Democrático de Direito.
Por fim, ressalta-se que nem mesmo os algoritmos “inteligentes”, como os que utilizam machine
learning, irão, sozinhos, promover princípios, direitos fundamentais e valores democráticos se não
for previamente inserida essa instrução em seu código. Portanto, na atual realidade em que cada vez
mais os algoritmos têm poder de decisão e influência sobre diversos aspectos da vida das pessoas,
entre eles o acesso à informação, a responsabilidade social dos desenvolvedores seria assegurar que
198 Em tradução livre de “We are tenant farmers for these companies, working on their land by producing data they in turn
sell for profit”.
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seus algoritmos respeitem e protejam os direitos fundamentais. Esses valores éticos, conforme Kearns
e Roth (2019), devem ser inseridos diretamente na programação técnica da tecnologia, tomando
forma de condição imposta no processo de alcance do objetivo do programa.
Esta seção trouxe à tona a compreensão sobre o funcionamento das ferramentas presentes na
internet, as quais medeiam o conteúdo acessado pelos usuários através de seus algoritmos. Estes últimos,
apesar de serem parte essencial na dinâmica informacional, filtrando e direcionando aquilo que está
disponível na rede, não são levados à ciência das pessoas cujas vidas impactam direta ou indiretamente,
quer por impossibilidades técnicas, quer por falta de interesse das empresas que detêm o poder sobre
eles. Essa falta de transparência mascara o fato de que a tecnologia carrega um viés que representa uma
parte limitada do entendimento do mundo, restringido aos grupos responsáveis por desenvolvê-la.
Os internautas, então, estão inseridos em uma situação de vulnerabilidade perante o poder exercido
pelas empresas. Estas últimas mostram-se capazes de influenciar decisivamente na compreensão da
realidade e nas escolhas feitas pelos usuários da internet, o que, por seu funcionamento, caracteriza
o exercício de uma função pública pela plataforma privada, que requer a inserção de condições
democráticas e garantidoras de direitos fundamentais para que seu serviço esteja em conformidade
com os princípios constitucionais. Nesse contexto, o capítulo seguinte abordará os aspectos em que
essa estrutura informática abre portas para a violação de direitos fundamentais, tendo em vista o
cenário da pandemia da Covid-19 como evento amplificador dos impactos causados.
O capítulo anterior deu conta de introduzir a presença dos algoritmos nas plataformas de
conteúdo presentes na internet, explicando como o direcionamento de conteúdos é realizado para
cada usuário, de forma mais ou menos automatizada. A atuação desses algoritmos depende, de
forma direta, das informações que os próprios usuários disponibilizam nas redes sociais e em outros
espaços virtuais, porque é a partir dessa união de dados pessoais que é possível traçar as preferências
de cada pessoa, possibilitando que determinado conteúdo apareça para alguns usuários em razão do
perfil identificado pelo algoritmo.
É claro que o direcionamento de conteúdo não é totalmente ruim. Na realidade, o senso comum
do cidadão cosmopolita conectado à internet é de aproveitar esse direcionamento de forma quase
irrestrita, em razão da facilidade em ter acesso a assuntos que são de interesse de cada pessoa.
O filtro bolha, nesse sentido, atua para que os usuários tenham uma navegação facilitada e um
acesso mais simples àqueles produtos, serviços, ideias e posicionamentos que mais lhe agradam,
tornando o acesso à internet e o próprio consumo online mais prático e adequado à velocidade da
vida contemporânea. (BRANCO, 2017)
Entretanto, nem tudo são flores. Isso significa dizer que esse direcionamento de conteúdo,
organizado e realizado pelos algoritmos, nem sempre traz apenas benefícios para o usuário das
plataformas digitais, e esse lado negativo da filtragem pode incorrer em violações de direitos
fundamentais e colocar em risco a saúde da população e a própria manutenção do Estado Democrático
de Direito. Conforme Pariser (2012, s.p) bem menciona, “para um consumidor, não há nada de errado
em eliminar o que é irrelevante ou desagradável. Mas o que é bom para os consumidores não é
necessariamente bom para os cidadãos”.
Tinha-se uma considerável positividade em relação às potencialidades da internet e do uso
dos algoritmos para o direcionamento de conteúdo. Contudo, os algoritmos e os softwares não
reduziram a desigualdade social, não bloquearam o poder econômico de definir a agenda política e
não aumentaram a participação popular. Pelo contrário, escancararam os processos discriminatórios
presentes na sociedade, aumentaram a exclusão de determinados segmentos sociais e potencializaram
a alienação da sociedade, que agora consomem mais do mesmo todos os dias. (SILVEIRA, 2019)
A possibilidade de violação de direitos fundamentais, nesse ínterim, decorre do fato de que
os “algoritmos podem possuir viés, ou seja, um direcionamento, uma tendência e, algumas vezes,
procedimentos equivocados”. Enquanto estruturas performativas, “podem promover uma série de
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distorções que, em inúmeros casos, podem ser apresentadas como representações fiéis e objetivas da
realidade”. (SILVEIRA, 2019, s.p) Isso faz com que aumentem os riscos de que os algoritmos estejam
repetindo padrões opressivos que já existem na sociedade, como o racismo, a misoginia e outras
potencialidades discriminatórias. A tecnologia dos algoritmos, sozinha, não é capaz de compreender
a complexa relação social entre seres humanos, de modo que acaba refletindo as opiniões e limitações
de seus criadores, em geral homens brancos heterossexuais e cisgênero. (SILVA, 2020)
Nesse sentido, Cathy O’Neil (2016) demonstra que as opiniões podem estar embutidas na
matemática, criando verdadeiras Armas de Destruição Matemática a partir da tendência já inserida na
própria base de dados que é analisada pelos algoritmos para direcionarem determinado conteúdo.
Essa realidade acirra os processos discriminatórios e a desigualdade social, além de gerar sensação
de injustiça e de exclusão que é perpetuado na internet pelo próprio algoritmo (O’NEIL, 2016). O
algoritmo é, de certa forma, limitado a reproduzir o padrão encontrado no banco de dados, que
espelha e potencializa os preconceitos presentes na sociedade. Um exemplo disso é que, ao digitar
“bebês” no Google Imagens, os resultados serão de bebês brancos. Para imagens de bebês negros,
deve-se digitar “bebês negros”, o que demonstra a restrição da diversidade do algoritmo.
Se o algoritmo pode demonstrar um viés preconceituoso e excludente, também pode conter
direcionamento político. Assim, é importante lembrar que o direcionamento de conteúdo, além de
correr o risco de produzir situações discriminatórias que certamente violam uma dúzia de direitos
fundamentais, também reduz a capacidade de diálogo, limitando a própria participação política baseada
nas instituições democráticas. (SILVEIRA, 2019) Os exemplos trazidos pelo escândalo da Cambridge
Analytica são suficientes para perceber que eleições podem ser manipuladas pela formação de perfis e
pelo direcionamento de conteúdo por meio desses algoritmos, transmutando as relações democráticas
e criando uma espécie de lacuna que impossibilita o diálogo de forma determinante. (EMPOLI, 2019)
Isso viola as liberdades do usuário da internet, como a de pensamento e a de escolha, que são
constitucionalmente asseguradas, além de contribuir para a alienação, uma vez que o usuário passa a
acreditar numa enxurrada de conteúdos semelhantes e a ignorar que possam existir outras formas de
pensar e de se posicionar. Essa percepção significa dizer que determinado grupo de pessoas recebe
um conteúdo direcionado que o restante dos usuários sequer tem ideia que está circulando nas redes
sociais. (SILVEIRA, 2019) “A democracia exige que os cidadãos enxerguem as coisas pelo ponto de
vista dos outros; em vez disso, estamos cada vez mais fechados em nossas próprias bolhas [...], estão
oferecendo universos distintos e paralelos” que prendem os usuários na sua própria bolha, aumentam
os processos de isolamento social, excluem a diversidade e impedem o pleno exercício dos princípios
democráticos (PARISER, 2012, s.p).
Uma sociedade comandada por algoritmos parece não ser uma sociedade transparente. Além
disso, o processo de decisões algorítmicas é incompreensível para a grande maioria das pessoas.
Essas duas características colocam em dúvida as possibilidades democráticas dos algoritmos
de machine learning, deep learning e outros tipos de algoritmos de inteligência artificial. Num
contexto neoliberal, de supremacia das empresas sobre outras unidades da sociedade, os riscos
aumentam muito, principalmente se a análise de grande quantidade de dados permitir ver coisas
que sentimos. (SILVEIRA, 2019, s.p)
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presença ubíqua dos algoritmos na internet dá a eles um poder extenso sobre a vida de quem
a utiliza como fonte de comunicação e de informação. A falta de transparência em seu funcionamento,
entretanto, coloca em situação de vulnerabilidade as bilhões de pessoas que confiam na imparcialidade
e na neutralidade das plataformas, uma vez que, na verdade, se apresentam tendenciosas aos vieses
algorítmicos de seus desenvolvedores e aos vieses econômicos dos patrocinadores.
Isso significa dizer que os algoritmos e a sua atuação no direcionamento de conteúdos nas
plataformas digitais pode refletir processos discriminatórios presentes na sociedade em razão daqueles
que os desenham, bem como pode limitar a liberdade de pensamento e de escolha dos cidadãos tanto
em aspectos consumeristas quanto na questão da participação política. O direcionamento de conteúdos
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faz com que haja a redução do diálogo e a perpetuação de padrões estereotipados que contribui para
a manutenção de preconceitos, como racismo e misoginia, e o tolhimento da diversidade.
Com o isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19, uma doença zoonótica causada
pelo coronavírus (SARS-Cov-2), o principal meio de contato entre as pessoas é o digital, que aumentou
o tempo de conexão individual de forma significativa. Isso tornou a população ainda mais suscetível
aos riscos do direcionamento de conteúdo feito por algoritmos, que dificilmente atuam sobre valores
éticos, resguardando direitos e garantias fundamentais, além de aumentar as informações constantes
nos bancos de dados que alimentam a atuação dos algoritmos.
A alegação das plataformas sobre propriedades intelectuais de seus algoritmos e de sua
natureza privada como justificativa para manter a salvo da ciência popular o funcionamento de seu
serviço caem por terra ao serem ponderadas com a função pública de informação e comunicação que
exercem, de forma a monopolizar esse nicho. Isso já chama atenção aos olhos de uma regulação ética
que inclua, na própria programação dessas tecnologias, inputs éticos e de controle da veracidade das
informações veiculadas online, bem como outros tipos de fiscalização para resguardar os direitos
daqueles que a utilizam.
Conforme estudado, a própria tentativa de coibir a disseminação de fake news é dificultada pela
atuação dos algoritmos, na medida em que alguns conteúdos só aparecem para determinado grupo
de pessoas em razão dos seus perfis algorítmicos, o que implica no desconhecimento da veiculação
de certas informações para os demais grupos sociais. Em tempos de pandemia da Covid-19, além dos
riscos a outros direitos fundamentais já comentados, o direcionamento de conteúdo (e de notícias
falsas) colocou e ainda coloca em risco a saúde de milhares de pessoas, que se veem vulneráveis
frente ao conteúdo que têm acesso graças às plataformas digitais.
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THE LANCET. Covid-19 in Brazil: so what? In: The Lancet, v. 395, n. 10235. 2020, p. 1461.
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Rafael Hollweg199
Maria Cristina Schneider Lucion200
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar a problemática do refúgio sob o ponto
de vista da sua historicidade e atual afirmação internacional. Primeiramente será realizada uma
breve apresentação da sua evolução histórica, acerca de como se chegou a conclusão do conceito de
refugiado a partir de uma abordagem geral de acordo com o que dispõem as regras e organismos
internacionais, dentre os quais a Convenção de 1951 relativa ao Estatuto do Refugiado. A partir de
então, visa-se compreender a institucionalização do refúgio no âmbito internacional, diante da busca
por abrigo por aqueles que necessitam de segurança, bem como, como fica a garantia de seus direitos
humanos frente as diversas crises instauradas em seus países de origem. Tem-se, em meio a toda a
problemática relatada, que o refúgio assume papel importante e crescente no do Direito Internacional,
sendo cada vez mais latente necessidade de compreensão e resolução da matéria.
INTRODUÇÃO
Um mundo próspero e seguro é aquele no qual as pessoas sentem-se protegidas em seus lares
em companhia de seus familiares, convivendo em plena harmonia com a sociedade, em um ambiente
pacífico, próspero e seguro, livre de conflitos, guerras e da miséria, distante de catástrofes naturais,
com uma economia nacional que consiga acompanhar o dinamismo do país.
Deixar a terra natal para fugir de conflitos ou perseguições é o que mais caracteriza e denomina
o termo refugiado. Assim sendo, o refúgio é uma questão de sobrevivência, e não uma escolha livre
e desimpedida. Refugiado é aquele que deixa seu país de origem e teme voltar ali por causa de suas
opiniões políticas, religiosas ou por pertencer a um grupo social perseguido.
Neste sentido, importante referir que refugiado diverge do imigrante e que, aquele, geralmente
abandona seu país natal por motivos econômicos ou desastres naturais. Por isso, dizemos que todo
refugiado é um imigrante, mas nem todo imigrante é refugiado.
Ao longo da história, diversos fatos aconteceram e fizeram com que as pessoas fossem compelidas
a deixar seus lares, começando uma nova vida em um novo local, muitas vezes distantes de suas
origens. Quando a guerra ou a agitação civil devastam uma comunidade, pessoas são deslocadas
à força para proteger a vida e a integridade física. Estas decisões são tomadas por uma questão de
escolha consciente, muitas vezes é a única alternativa entre a vida e morte.
Tendo em vista estas premissas, discute-se no decorrer da presente pesquisa o conceito de
refúgio a partir de sua historicidade, delineando seu caminho histórico até sua institucionalização
a nível internacional. Ato contínuo, trabalhar-se-á o refúgio como um direito humano, fruto do
reconhecimento internacional da figura do refugiado enquanto ser humano sujeito de direitos.
199 Acadêmico do 7º semestre do Curso de graduação em Direito da Faculdade Três de Maio – SETREM. E-mail: rafael_
hollweg@outlook.com
200 Mestre em Direito Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Especialista em Direito
Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Professora do Curso de graduação em Direito
da Faculdade Três de Maio - SETREM. Coordenadora da do Núcleo de Pesquisa do curso de Direito da SETREM. E-mail: maria-
cris.schneider@setrem.com.br.com.br
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A temática dos refugiados é intimamente pertencente a própria afirmação dos direitos humanos,
pois diz respeito a grupos de pessoas que foram forçadas a sair de suas casas e países devido
ao evidente risco de morte, guerras, intolerância (religiosa, racial ou política) e perseguições que
violam gravemente a dignidade da pessoa humana. Por isso, em um primeiro momento é válido
compreender a evolução histórica e conceitual do tema, para então entrelaçarmos o refúgio como um
direito humano no cenário atual.
Com efeito, o conceito de refúgio não surgiu de forma imediata e sistematizada, mas foi sendo
construído e desenvolvido sob moldes de pensamento e intenções culturais, como qualquer outro
conceito jurídico. Seu desenvolvimento representa os valores de uma época. Não é um instituto
jurídico que nasce da vontade de um Estado soberano de ofertar proteção a um cidadão estrangeiro
que se encontra em seu território, é tão somente o reconhecimento de um direito pré-existente à
demanda formal do indivíduo (SOUSA, 2019).
Com efeito, o refúgio não é vontade exclusiva de um Estado, mas sim uma situação jurídica grave
que merece total atenção das nações. Seu conceito está ligado proteção de direitos, sendo o refúgio
o direito de asilo foi amplamente utilizado e concedido pelos governos das cidades-estados.
Significava a noção de abrigo e de refúgio inviolável, direito dos homens perseguidos e que
tinham, em virtude desta perseguição, suas vidas ameaçadas. Os locais reservados à proteção
dos indivíduos eram, usualmente, templos religiosos, bosques sagrados, estátuas de divindades
e as casas dos governantes ou políticos importantes das cidades. Esse direito e seu respectivo uso
foram muito favorecidos, na Grécia Antiga, pois, para os helenos, a hospitalidade a estrangeiros
e peregrinos representava um alto grau de humanidade e cultura, em oposição à barbárie de
outros povos que rechaçavam tais práticas. Da mesma forma que os egípcios, os gregos, apesar
de reconhecerem o direito de asilo, utilizavam o exílio como punição, submetendo o condenado à
obrigatoriedade de, como pena, asilar-se em algum local fora dos limites territoriais da respectiva
cidade que o condenou. Para alguns pesquisadores, a opção da pena do exílio foi dada a Sócrates,
contudo ele preferiu a morte, ao beber cicuta, do que ter que viver asilado em outro local que não
sua terra natal (PEREIRA, pg. 44-45, 2009).
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Embora tenha sido mencionada a palavra “refugiado” nestes períodos remotos, a primeira referência
histórica a essa palavra ocorreu no século XVII na França, durante a fuga de pessoas por perseguições
religiosas, pois pertenciam a religião protestante e eram chamados de “huguenotes” (SILVA, 2017).
As perseguições aos protestantes, retomaram devido a revogação do Édito de Nantes, que era um
decreto promulgado em 1598 pelo rei Henrique IV. Destinava-se a restaurar a paz interna na França,
rompida com a Guerra das Religiões, ou seja, o decreto impedia a perseguição religiosa aos protestantes
qual tinham a liberdade de praticar o protestantismo. Com a revogação do referido decreto, as perseguições
aos protestantes retomaram e fizeram com que eles buscassem refúgio em ouras regiões (SILVA, 2017).
No âmbito internacional a noção de refúgio adveio da grande demanda pós os acontecimentos
mundiais do início do século XX. A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa forçaram milhões de
pessoas a se deslocarem de seus países na condição de refugiados. A violência que atingia grande parte
do globo gerou enormes fluxos de migrantes e refugiados, um verdadeiro fenômeno de massa, criando
a necessidade de lidar com este problema no nível da política internacional (BARRICHELLO, 2015).
A situação se agravou a partir da segunda grande guerra, tornando latente a crise humanitária
vivenciada pelos grupos fragilizados que se viam obrigados a deslocar-se de seus países em busca de
sobrevivência digna. Foi a partir de então que
Neste momento histórico, no entanto, os direitos dos refugiados não gozavam de uma oficialidade
internacional. O primeiro marco para a conquista destes direitos só veio a ser conquistado após a
Segunda Grande Guerra Mundial, e foi com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,
tendo a aprovação de 48 Estados e 8 abstenções (PIOVESAN, 2018).
Atualmente, 193 Estados são signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Brasil,
além de fazer parte desse grupo de países, foi uma das primeiras nações a ratificar o documento,
sendo um dos 48 Estados que votou a favor da DUDH durante a Assembleia de 1948.
Elaborada pela recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), na data de 10 de dezembro
de 1948, A Declaração Universal dos Direitos Humanos, instituiu internacionalmente a primeira forma
de proteção às pessoas em vulnerabilidade na busca por refúgio.
Esta garantia evidencia-se ao observamos disposto no artigo 14, inciso 1, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que “toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e
de beneficiar de asilo em outros países” (DUDH, 1948).
A partir da ascensão e afirmação dos direitos humanos no século passado, a temática dos
refugiados assume um ponto de partida de constante aperfeiçoamento e evolução. Isso porque, sendo
o refúgio reconhecido como sendo um direito humano, o seu conceito não é engessado e estático,
mas sim, pode ser modificado de acordo com as interações e necessidades sociais. Aliás, nenhum
conceito, nem nas ciências humanas e nem nas exatas, é absoluto, pois eles estão sujeitos a uma
historicidade construída ao longo dos anos (SOUSA, 2019).
Para a professora Flavia Piovesan, Doutora em Direitos Humanos, a Declaração Universal de 1948:
[...] Objetiva delinear, uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao
consagrar valores básicos universais. Desde seu preambulo, é afirmada a dignidade inerente a toda
pessoa humana, titular de direitos iguais ou inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a
condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A universalidade
dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava a titularidade
de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana), (PIOVESAN, 2018, pg. 231).
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Piovesan (2018) conceitua os direitos humanos como, [...] sendo um termo de uso comum, mas
não categoricamente definido. São concebidos de forma a incluir aquelas reivindicações morais e
políticas que, no consenso contemporâneo, todo ser humano tem ou deve ter perante sua sociedade
ou governo [...] (PIOVESAN, 2018, Pg. 81).
Todas as pessoas possuem direitos mínimos para viver e esses direitos são irrenunciáveis,
inalienáveis e indisponíveis. Antonio Enrique Perez Luño (1990) aponta seu conceito acerca dos
direitos humanos, afirmando que os direitos humanos, “surgem como um conjunto de faculdades e
instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e
igualdade humanas, as quais devem ser conhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos, nos
planos nacional e internacional (LUÑO, 1990, Pg. 48)
Observamos que ao longo da história essa relação entre refugiado e direitos humanos evoluiu
à medida que as necessidades e acontecimentos demandaram, pois desde os séculos passados,
na antiguidade, já se ouvia falar nos deslocamentos forçados das pessoas, evidenciando-se com o
final da segunda guerra mundial em 1945, onde líderes de vários países cansados das opressões
e desrespeitos aos seres humanos, resolvem elaborar um guia para garantir os direitos, ainda que
básicos, de todos os povos, representando assim, um marco na história dos direitos humanos, pois,
pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos foi posta em um documento.
Os direitos humanos são direitos assegurados internacionalmente, inerentes a todo ser humano,
indisponíveis e protegem valores sociais mínimos, como a saúde, a paz, a dignidade, a educação,
a segurança, dentre outros. Tais direitos essenciais devem ser respeitados por todos os Estados da
comunidade internacional, independente de raça, cor, sexo, religião e opinião política.
Nesse contexto, para entender o motivo pelo qual os refugiados, na qualidade de pessoas, sem
ter escolhas, abandonam seus países de origem, necessitam de um novo local para viver, com o mínimo
de dignidade possível, é fundamental que os direitos humanos atuem para evitar possíveis danos aos
refugiados.
Os direitos humanos estão previstos em documentos internacionais e tendem a concretizar
a dignidade da pessoa humana, independentemente de religião, classe social, raça, sexo, opinião
política ou nação. Representam o reconhecimento universal de que nenhum ser humano pode afirmar-
se superior ao outro. Todas as pessoas possuem direitos mínimos para viver e esses direitos são
irrenunciáveis, inalienáveis e indisponíveis (PIOVESAN, 2018).
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que o refúgio é um instituto jurídico internacional de alcance universal, aplicado a casos em que a
necessidade de proteção atende a um número elevado de pessoas, onde a perseguição tem aspecto
mais generalizado, sendo suficiente o fundado temor de perseguição e em regra, esta proteção se
opera fora do país como uma medida de caráter humanitário.
O Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), define que os refugiados seriam
pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições e que com frequência, sua situação é
tão perigosa e intolerável no cruzando fronteiras internacionais para buscar segurança nos países mais
próximos, tornando-se um refugiado reconhecido internacionalmente, com o acesso à assistência dos
Estados, do ACNUR e de outras organizações (ACNUR, 2020).
Já Flavia Piovesan (2015), em entrevista ao podcast Rio Bravo, analisando a condição de vida
daqueles que, correndo risco nos seus países de origem, têm buscado refúgio em outras nações,
define que “refugiado é uma pessoa que sofre um grave padrão de violação a direitos e que o drama
dos refugiados é o drama da violência e da dor de ser levado a sair da sua zona de conforto, de seu
país, em busca de um futuro incerto, em uma terra desconhecida (PODCAST RIO BRAVO, 2015).
Definições mais amplas passaram a considerar como refugiados as pessoas obrigadas a deixar
seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos,
assim como também aqueles acometidos por catástrofes naturais por força da natureza.
Temos ainda a definição dos refugiados ambientais, que segundo Guerra (2018, p. 191), “são indivíduos
forçados a migrar devido a desastres ambientais ocasionados por causas naturais ou interferência antrópica”.
Contudo, não estão formalmente reconhecidos em nível internacional por não constarem no rol
estabelecido pela Convenção da ONU de 1951. Diante disso, muito tem se discutido quanto a inclusão
dessas pessoas na categoria de refugiado.
Importante mencionar que nas últimas décadas os deslocamentos forçados de pessoas em
situação de refúgio atingiram níveis sem precedência. Segundo dados recentes do Alto Comissariado
das nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, 2020), revelam que mais de 67 milhões de pessoas
no mundo deixaram seus locais de origem por causa de conflitos, perseguições e graves violações de
direitos humanos. Entre elas, aproximadamente 22 milhões cruzaram uma fronteira internacional em
busca de proteção e foram reconhecidas como refugiadas.
Esse número impressiona e é justificado por conflitos diversos, como na Nigéria, no Iêmen, no Sudão,
na Síria (onde ocorre uma guerra civil que assola), entre outros. A situação se agrava quando países ricos,
como Estados Unidos e algumas nações europeias, associam a atual crise humanitária a riscos de terrorismo
e de criminalidade. Muitos se preocupam com as consequências econômicas negativas sobre empregos e
assistências sociais e optam por enrijecer leis e adotar medidas duras para não acolher refugiados.
Wermuth (2017), destaca que “deslocamentos humanos, embora tenham sido constantes na
história da humanidade, têm se intensificado cada vez mais no atual cenário geopolítico mundial,
desafiando as fronteiras que dividem o mundo em Estados-nação desde a Modernidade” (p. 301).
Diante destas afirmações é possível aferir que o número de pessoas obrigadas a se deslocar no
planeta por causa de guerras, perseguições políticas ou violações de direitos humanos, cresceu de
forma exponencial, se dispersando pelo mundo.
Com isso, esse contingente, considerado na maioria dos países ilegal, cresce desacerbadamente, as-
sumindo proporções cada vez maiores, exigindo grandes mudanças na postura dos Estados (WERMUTH,
2017). Torna-se, assim, evidente a necessidade de flexibilização e uma melhor adequação à realidade atual.
Contudo, no Brasil, o cenário é um pouco diferente. Apesar de inúmeros problemas, existem
grupos sociais e ONGs que promovem ações para melhorar a condição de quem enfrenta essa dura
realidade. Além disso, o país vem avançando sua legislação e adotando medidas para regulamentar
a concessão de asilo.
O Estado brasileiro já manifestou expressamente sua preocupação com as lacunas de proteção
em relação a novas situações e é preciso continuar a luta conjunta com todos os atores envolvidos em
prol de ações concretas nesse sentido. Dos países do Cone Sul, o Brasil, foi o primeiro país a ratificar
a Convenção de 1951 e a sancionar uma lei nacional que tratasse deste tema, ou seja, a Lei n. 9.474
de 22 de julho de 1997, que define os mecanismos de implementação do Estatuto dos Refugiados
de 1951 e determina outras providências, como a criação do Comitê Nacional para os Refugiados
(CONARE), que é um órgão de deliberação colegiada e tripartite responsável, em primeira instância,
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os mais recentes desafios mundiais que, atualmente, colocam em voga a proteção humanitária
em diversos aspectos, levam ao entendimento que a forma com que o ser humano interage com o
mundo e com seus semelhantes é fluída e está em contínua alteração. Ao abordarmos este pensamento
na esfera normativa do refúgio, temos que é cada vez mais difícil a adequação completa das normas
de direitos humanos, mesmo com a definição mais ampla adotada pelo Brasil.
A pressente pesquisa procurou mostrar, ainda que brevemente, que a evolução do conceito de
refúgio ocorreu paulatinamente no decorrer da história mundial, e as primeiras práticas a seu respeito
foram se desenvolvendo e evoluindo ao decorrer dos anos conforme o desenvolvimento humano
acontecia. Essa evolução da temática está intrínseca ao próprio desenvolvimento da sociedade e na
medida em que a crise social causada pela migração de refugiados aumenta.
No âmbito internacional, institucionalização do conceito se deu em decorrência de fatos
históricos, tais como as Grandes Guerras Mundiais na primeira metade do século passado. A partir de
então, o desenvolvimento da temática do refúgio e a sua institucionalização deu-se através de fases e
expandiu-se gradualmente até ganhar um regime internacional próprio, consolidado em documentos
internacionais de extrema importância, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É fundamental entender, também, que o fortalecimento e afirmação dos direitos humanos se
alinha à temática dos refugiados, bem como que os dispositivos internacionais e a legislação brasileira
têm total ligação com a situação dos refugiados. Isso porque, na qualidade de pessoas que não
escolheram abandonar seu país de origem, mas sim são forçadas a tal situação, necessitam de um
novo local para viver, com o mínimo de dignidade possível, e é nesse cenário que os direitos humanos
atuam para evitar possíveis danos a estas pessoas.
Atualmente a ACNUR, enquanto agência das Nações Unidas, preocupa-se com a proteção aos
refugiados em caráter mundial produzindo modelos e diretrizes mais gerais a serem aplicados pelas
demais instituições e países, sendo desta forma a principal elaboradora do Regime Internacional de
Refugiados. Sua abordagem tem, assim, um caráter mais humanitário.
Por fim, a questão dos refugiados no mundo ganha contornos dramáticos, pois, além dos
problemas severos que abrangem as suas áreas de origem, ainda existem os problemas que esses
migrantes encontram nos locais para onde se deslocam. Entre esses problemas, destacam-se as
diferenças culturais, as dificuldades com idiomas, a busca por emprego e, principalmente, a xenofobia
(aversão a estrangeiros) praticada pela população residente das áreas de destino.
REFERÊNCIAS
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nacoesunidas.org/agencia/acnur//>. Acesso em: 09 mai. 2020.
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RESUMO: A proposta deste artigo consiste em discutir uma das mais preocupantes crises humanitárias
globais: a Crise dos Refugiados. Este segmento social tem sofrido constantemente com o sentimento
de insegurança, onde a sua única alternativa de sobrevivência é fugir da perseguição, da violação dos
seus direitos humanos e da pobreza extrema. Entretanto, a sociedade parece não ter capacidade de
reconhecer que essas pessoas necessitam de asilo e proteção. Desta forma, ao entrarem nesta nova
nação que deveria ser o novo “porto seguro”, passam a ser tratadas como invasoras que ameaçam a
cultura do país de acolhimento, passando a serem obrigadas a modificar as suas próprias identidades
para que consigam o mínimo de reconhecimento frente à nova comunidade. Desta forma, o trabalho
pretende responder as seguintes questões: Qual é o verdadeiro motivo dos refugiados necessitarem
alterar as suas identidades socioculturais para serem reconhecidos em um ambiente que também seria
seu por direito? Qual seria o principal culpado por este sentimento de aversão aos migrantes? E ainda,
qual seria a solução? A hipótese é a de que os países receptores, por mais que tenham assinado a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, continuam disseminando uma ideia de proteção extrema
da unidade territorial, construindo a imagem dos estrangeiros como uma ameaça a esta segurança. A
principal causadora desta ideia é a propaganda de um orgulho ultranacional, salientando que quem
não está ligado a este território não merece proteção jurídica, política ou social. Nesta pesquisa,
portanto, necessita-se realizar uma análise bibliográfica histórica, sociológica e filosófica, com o
objetivo de compreender o porquê de uma forte cultura etnocêntrica ainda estar presente nos Estados
Contemporâneos.
INTRODUÇÃO
De acordo com a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), o mundo
contemporâneo já gerou mais de 79 milhões de pessoas deslocadas à força de seus países de origem,
resultando no total de 1% da população mundial. Frente a estes números preocupantes, mostra-se
necessária a discussão sobre como a sociedade internacional está se comportando frente a esta crise, e
quais seriam as alternativas que poderiam ser utilizadas para diminuir as consequências dessa lamentável
situação. Infelizmente, percebe-se que a resposta observada pelas comunidades não vai ao encontro dos
objetivos propostos pelos direitos humanos, haja vista que os sentimentos de etnocentrismo continuam
prevalecendo na ideologia social, onde os migrantes são tratados como “estranhos”, como se não
necessitassem de proteção, fugindo da responsabilidade moral de cada indivíduo e, principalmente, do
Estado. Esta perspectiva é construída pelo ultranacionalismo, o qual prega a cidadania e a proteção das
pessoas que pertencem à nação, fazendo com que os “não” nacionais sejam excluídos das margens de
reconhecimento. Desta forma, o trabalho tem como fim realizar uma pesquisa bibliográfica e histórica
201 Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI),
campus Santo Ângelo/RS. Bolsista PIIC/URI. Integrante do Grupo de Pesquisa “Novos Direitos em Sociedades Complexas”,
vinculado ao PPGD da URI. E-mail: isadorasorteiadaponte@gmail.com
202 Pós-Doutor pela Faculdades EST, São Leopoldo, RS. Doutor em Ciências da Religião, Ciências Sociais e Religião, pela
UMESP. Graduado em Filosofia e Teologia. Possui formação em Direito. Professor Tempo Integral da URI Campus de Santo
Ângelo, RS. Integra o Corpo Docente do PPGD em Direito. E-Mail: nolihahn@santoangelo.uri.br
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para compreender como se construiu essa ideologia de aversão aos refugiados e por que eles estão
ficando fora das principais preocupações internacionais, sendo que eles também são detentores
dos direitos humanos. Além disso, objetiva-se entender a nacionalidade e como ela impulsiona esse
sentimento de xenofobia, concluindo as reflexões com uma solução possível para que o produto desta
crise humanitária não seja apenas uma memória histórica rodeada de arrependimentos por não termos
oferecido uma alternativa ao sofrimento de milhares de pessoas.
De acordo com o artigo 1º da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados,
também conhecida como Convenção de Genebra de 1951, o refugiado pode ser definido como toda a
pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade,
associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que,
em virtude destes temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país, ou ainda, aquela
pessoa que “não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual
em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a
ele” (CONVENÇÃO RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951). Ou seja, os refugiados são um
segmento social vulnerável que não pode se proteger ou proteger a sua família dos acontecimentos
existentes em seu país de origem, ficando à disposição dos direitos internacionais.
Atualmente, segundo a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), o
mundo contemporâneo já produziu mais de 79 milhões de pessoas deslocadas a força de seus países
de origem, totalizando em 1% da população mundial. O país que mais gera refugiados e migrantes
no mundo é a Síria, em virtude de constantes conflitos nesta localidade. Em contrapartida, o país que
mais acolhe estas pessoas é a Turquia. Conforme pesquisa realizada pela ACNUR em 2018, “uma em
cada 110 pessoas na Terra foi forçada a fugir”.
De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas) estamos vivenciando a maior crise
humanitária desde a Segunda Guerra Mundial, verificando que estes dados migratórios observados
vêm aumentando de forma alarmente, sendo uma realidade cada vez mais presente em todos os
territórios mundiais.
Felizmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) possibilitou que os refugiados
encontrassem proteção à luz do direito internacional. Nesse sentido, a todos é assegurado o direito
fundamental de não sofrer perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, participação
em determinado grupo social ou opiniões políticas. Como ferramenta para garantir esse direito,
o artigo 14 da referida Declaração proporciona a garantia de toda pessoa, vítima de perseguição,
procurar e gozar asilo em outros países.
Outrossim, verifica-se que este direito de asilo acaba sendo visto como um impasse de ordem
pública, disseminado como direito estatal e não individual. Nessa perspectiva, o Estado, de forma
discricionária, escolhe a quem irá proporcionar o asilo, situação esta observada em países como os
Estados Unidos, o qual restringe a entrada de estrangeiros, sem qualquer critério ou distinção.
Embora algumas garantias sejam aplicadas incorretamente pelos Estados, os direitos humanos,
apesar de não terem valor obrigatório mundialmente, são a fonte que possibilita a construção de
novos tratados, convenções e as próprias legislações internas de cada Nação.
Uma das principais proteções internacionais criada a partir dos direitos humanos e com o
objetivo de zelar pela dignidade dos refugiados é a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto
dos Refugiados (Convenção de Genebra de 1951), a qual foi formalmente adotada em 28 de julho de
1951, principalmente, para resolver os problemas dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra
Mundial. Este documento esclarece quais são os direitos e deveres entre países signatários e os
refugiados. Atualmente, a Convenção continua sendo a base principal para a defesa destes migrantes,
entretanto, enfrenta desafios sem precedentes, tendo em vista que os refugiados se deslocam “não
apenas por conflitos e perseguições, mas também pela extrema pobreza e pelo impacto das mudanças
climáticas. Esses fatores estão cada vez mais inter-relacionados” (GUTERRES, 2011). Nesse sentido,
o Alto Comissário também afirma que necessitamos encontrar “formas inovadoras para preencher
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Como visto, os refugiados já possuem um reconhecimento jurídico frente aos países signatários de
Convenções Internacionais, os quais proporcionaram direitos mínimos para uma migração digna. Entretanto,
a comunidade internacional não tem a mesma resposta observada nos documentos legislativos, sendo
que passam a tratar estas pessoas como invasoras, como ameaças a suas crenças, culturas, tradições e
economias, fazendo com que a cultura etnocêntrica continue viva no sentimento mundial.
De acordo com o dicionário Oxford Languages, a ideologia do etnocentrismo significa uma “visão
de mundo característica de quem considera o seu grupo étnico, nação ou nacionalidade socialmente
mais importante do que os demais” (OXFORD LANGUAGES). Essa ideologia faz com que a sociedade
de um determinado território não aceite indivíduos que fogem do padrão/modelo existente na sua
nação, fazendo com que os refugiados tenham que alterar as suas identidades socioculturais para que
possam ser reconhecidos dentro destas novas comunidades.
Infelizmente, esse sentimento faz com que a sociedade internacional retire da sua responsabilidade
moral esta crise migratória, tendo em vista que os refugiados passam despercebidos e não elencados
nas maiores preocupações estatais.
Em decorrência da globalização, nunca houve momento histórico com tamanha mobilidade
humana, o que causa certa incompreensão frente ao elevado repúdio ao estrangeiro e à diferença,
verificando que a percepção tradicional dos direitos humanos já não dá mais conta do problema.
O sociólogo Bauman tenta compreender o porquê desta aversão continuar presente mesmo em
um mundo desenvolvido, averiguando que para a comunidade receptora, essa migração sinaliza uma
competição pelo mercado de trabalho, gerando um sentimento de incerteza e insegurança frente a
novos indivíduos reivindicando pelas mesmas oportunidades que os receptores objetivam (BAUMAN,
2017). Em outra perspectiva, nas partes mais desenvolvidas do planeta, essa migração forçada é vista
de maneira diversa, onde “os interesses empresariais desejam com firmeza o influxo de mão de obra
barata e de habilidades lucrativamente promissoras” (BAUMAN, 2017). Dessa forma, mesmo quando
os refugiados não são tratados como inúteis, os seus direitos humanos são violados.
Além disso, percebe-se que a comunidade internacional classifica os refugiados na categoria de
potenciais terroristas, causando ainda mais pânico moral e repúdio ao que é diferente. Entretanto,
relacionando os ensinamentos de Jean-Claude Juncker, Bauman afirma que “os que organizaram esses
atentados e os que os executaram são exatamente aqueles de quem os refugiados estão fugindo, e
não o oposto”. Neste sentido, este pensamento só nos leva ao hábito humano destacado por este
sociólogo: “culpar e punir os mensageiros pelo conteúdo odioso da mensagem de que são portadores”
(BAUMAN, 2017, p. 21).
Dessa forma, percebe-se que a imagem de refugiados desesperados chegando às ilhas gregas
e corpos de crianças flutuando em praias turísticas são produtos deste sentimento de repúdio ao
diferente. Contudo, destaca-se que o etnocentrismo não é uma solução ao medo do estrangeiro ou
das consequências que este possa vir a trazer ao novo país. “Em sociedades modernas, comunidades
e grupos étnicos estão fadados a coexistir, apesar da retórica de quem sonha com o retorno a uma
nação sem misturas” (BAUMAN, 2017, p. 63).
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Esta resposta observada nas comunidades receptoras causam uma desumanização dos refugiados,
abrindo caminho à exclusão desta categoria de seres humanos legítimos, “pessoas reais, dotadas de
corações, famílias e, a menos que nos esqueçamos, direitos humanos” (BAUMAN; BARNETT, 2017, p. 85).
Segundo Bauman:
os problemas gerados pela “crise migratória” atual e exacerbada pelo pânico que o tema provoca
permanecem à categoria dos mais complexos e controversos: neles, o imperativo categórico da
moral entra em confronto direto com o medo do “grande desconhecido” simbolizado pelas massas
de estranhos à nossa porta (BAUMAN, 2017, p. 104).
Evidencia-se que esse sentimento de medo frente ao desconhecido não é base suficiente para
tamanhas atrocidades vivenciadas pelos refugiados. Crianças afogadas, muros erguidos, cercas de
arame farpado, campos de concentração são alguns dos perigos que estas pessoas correm ao viajarem
rumo à segurança.
Portanto, o verdadeiro motivo dos refugiados necessitarem alterar as suas identidades
socioculturais é inexistente, haja vista que nenhum preconceito etnocêntrico, nenhuma insegurança
frente ao mercado de trabalho e nem mesmo nenhum pensamento de que estas pessoas ameaçariam
a cultura ou tradição do seu país, é argumento suficiente para a construção de muros que impeçam
que os migrantes cheguem em nossos quintais ou para que os refugiados precisem abandonar as
suas personalidades e identidades para satisfazerem uma nova comunidade, que, indiscutivelmente,
faz parte de uma única humanidade. A migração deve ser encarada como fenômeno humano e não
como uma guerra a ser combatida.
3 ORGULHO NACIONALISTA
Um dos principais culpados por este sentimento de aversão aos refugiados, com base em uma
cultura etnocêntrica da sociedade internacional, é a exaltação de um orgulho nacionalista, o qual
acaba sendo um argumento para legitimar a exclusão e o preconceito frente aos estrangeiros.
De uma perspectiva, a construção de uma nacionalidade simbolizou o elo jurídico e político entre
o indivíduo e o Estado, desenvolvendo a organização dos territórios e a possibilidade da elaboração
de diversos direitos e garantias que toda a população nacional poderia usufruir. Entretanto, a criação
desta ideia de nacionalidade também trouxe problemas àqueles que foram contemplados com um
território instável que viola os seus direitos e não garante o mínimo de segurança a seus habitantes.
Vale lembrar que, de acordo com os direitos humanos, a migração é um direito de todo e qualquer
indivíduo. Contudo, os ideais nacionais, baseados em princípios da autonomia dos estados e soberania
nacional, declararam que nenhum Estado é obrigado a aceitar estrangeiros em seu território, podendo
valer-se do direito estatal de deportação. Desta forma, as Nações podem decidir livremente a respeito
da concessão ou não do asilo e do refúgio.
Nesse sentido, a nacionalidade passou a ser vista como uma porta de acesso para a garantia dos
direitos fundamentais de cada Estado-Nação. Assim, os nacionais de um Estado passaram a receber toda
a proteção oriunda das legislações da sua localidade e todo o reconhecimento social possível frente à
comunidade que fazem parte, e os “não” nacionais, categorizados como refugiados, acabam não tendo
uma localidade promissora, portanto acabam não atingindo os benefícios da segurança e da proteção.
Desta forma, a nacionalidade foi capaz de “estruturar barreiras definitivas entre nações e disseminar
ódio e repulsa do cidadão nacional perante o estrangeiro”, onde “o orgulho da nacionalidade muitas vezes
representa a legitimidade para neutralizar e excluir o diferente” (SANTOS; BERTASO; PIAIA, 2015, p. 136).
“O ultranacionalismo do século XX acarretou uma onda de guerras de conquistas e construiu
campos de concentração para pessoas que dançavam ao som de outra melodia” (HARARI, 2016, p.
257). A aliança moderna com o nacionalismo não resolveu todas as lacunas e ao mesmo tempo
criou uma série de novos problemas. A nossa memória histórica possibilita a reflexão de que o
ultranacionalismo já desencadeou guerras e construiu impérios, sinalizando qual deveria ser o seu
legado no pensamento mundial. Estes acontecimentos deveriam nos servir para não praticar os
mesmos erros do passado, construindo novas alternativas a conflitos sociais.
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Além disso, a nacionalidade traz esse sentimento de aversão ao que foge do padrão nacional,
entretanto, “como comparar o valor de experiências comunitárias com o de experiências individuais?”
(HARARI, 2016, p. 256). Será que a preservação de culturas e tradições nacionais justificaria deixar
milhões de refugiados à nossa porta, suplicando por suas vidas? Há uma única resposta à questão: a
nacionalidade é uma construção imaginária da humanidade, não sendo base argumentativa suficiente
para esta aversão.
A solução encontrada para que os refugiados passem a ser reconhecidos pelas novas comunidades
receptoras sem que precisem alterar as suas identidades socioculturais é a desconstrução da ideologia
nacionalista extrema, a qual, conforme argumentos elencados anteriormente, criou um pensamento
social excludente.
Evidencia-se que a alternativa não é desconstruir os limites territoriais ou as fronteiras estatais,
mas, sim, a propaganda nacionalista, a qual construiu padrões e barreiras culturais entre os Estados,
fazendo com que a sociedade tratasse as pessoas advindas de localidades diversas de modo
preconceituoso, como se não fossem nem mesmo seres humanos de uma mesma espécie.
Se a nacionalidade é uma construção imaginária criada pela humanidade, a ideia de desconstruir
a maneira que ela é interpretada não está tão distante. A nacionalidade jurídica que proporciona o
elo de direitos e deveres entre cidadão e Estado não merece ser questionada ou combatida, o foco
da desconstrução está na ideologia da nacionalidade sociologicamente instaurada na imaginação
comunitária, onde o orgulho das tradições de uma localidade passa a ser base para a legitimação de
violências e marginalizações.
A globalização possibilitou a migração de milhares de pessoas ao redor do mundo, ficando cada
vez mais evidente que todos têm, ou deveriam ter, a liberdade para se deslocar. De acordo com Kevin
Kenny “todas as pessoas atualmente vivas são descendentes de um pequeno grupo de seres humanos
anatomicamente modernos”, sendo que “recentes estudos genéticos demonstram que as mitocôn-
drias encontradas nas células humanas descendem de uma mulher” (BAUMAN; KENNY, 2007, p. 70).
Estas observações comprovadas cientificamente deveriam ser suficientes para que compreendêsse-
mos que somos uma única humanidade, sem distinções ou critérios mínimos para que mereçamos o
reconhecimento social.
Os refugiados buscam os mesmos requerimentos de todas as sociedades: o direito à vida e não
apenas à sobrevivência. Nesse sentido, Bauman relaciona os seus estudos aos de Immanuel Kant,
evidenciando que a
hospitalidade significa o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo
fato de estar em território alheio. Não há nenhum direito de hóspede em que se possa basear
essa existência, mas um direito de visita, direito a apresentar-se à sociedade, que têm todos os
homens em virtude do direito da propriedade em comum da superfície da Terra, sobre a qual o ser
humano não pode se estender até o infinito, por ser uma superfície esférica, tendo que se tolerar
uns juntos aos outros, e não tendo ninguém originalmente mais direito que o outro de estar em
um determinado lugar da Terra (BAUMAN, 2017, pg. 73).
Como dito, a solução não é o cancelamento da distinção entre terras, mas um direito de se
associar. Desta forma, seria possível visualizar horizontes comuns às diversas nações, imaginando-
se a construção de pontes e não de muros, onde a solidariedade prevaleceria em detrimento de
interesses meramente estatais, evidenciando que somos uma única humanidade, sem raças, credos
ou culturas superiores. Os refugiados também são pessoas reais, dotadas de sentimentos, famílias,
culturas e tradições, as quais não são necessariamente uma ameaça às novas comunidades, mas, sim,
uma possibilidade de engrandecer as sociedades receptoras.
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Os dados que numeram a quantidade de pessoas refugiadas são preocupantes, deixando evidente
que estamos diante de uma crise migratória e humanitária. Estes migrantes são forçados a se deslocarem
de seus países de origem em busca de proteção e segurança, para que possam tornar real o sonho
de viver em paz, livre de ameaças e conflitos. Entretanto, na trajetória rumo à proteção, deparam-se
com uma sociedade indiferente aos seus sofrimentos, onde os refugiados, além de reivindicarem por
segurança, precisam demonstrar e comprovar que merecem o reconhecimento social.
Entretanto, esta comprovação deveria ser desnecessária, visto que o simples fato de existirem já
bastaria para que a estas pessoas fossem fornecidos todos os reconhecimentos possíveis, não apenas
pelas suas situações de vulnerabilidade, mas porque o reconhecimento digno é um direito mínimo
de todos os seres humanos.
A humanidade deve se sentir responsável pela dor e sofrimento do refugiado, tendo em vista
que as causas que fazem com que estas pessoas sejam forçadas a se deslocarem são efetivadas
pelos interesses criados pela sociedade e traçados como objetivos políticos a serem alcançados pelos
próprios seres humanos.
Desta forma, conclui-se que inexiste um verdadeiro motivo sensato para que os refugiados
necessitem alterar as suas identidades socioculturais para serem reconhecidos em um novo território,
haja vista que todos somos detentores do direito de nos associarmos, em virtude de possuirmos um
direito de propriedade comum sobre a superfície da Terra.
Como o exposto anteriormente, a ideologia do ultranacionalismo é uma das responsáveis por
esse sentimento de aversão aos refugiados. Esta ideia se relaciona com a cultura do etnocentrismo,
onde os nacionais passam a considerar as suas culturas, tradições e interesses superiores aos de
outros grupos sociais, fazendo com que a crise dos refugiados não esteja na lista das principais
preocupações dos Estados.
O nacionalismo muito contribuiu para a organização dos Estados e para a criação de um vínculo
entre a população e a instituição estatal, entretanto essa ideia fez com que as pessoas passassem
a transformar os seus sentimentos em um certo orgulho nacional, o qual seria a sua justificativa
legítima para oprimir e excluir o diferente.
Em verdade, quando o refugiado é tratado como “o diferente” já se está disseminando um
pensamento preconceituoso. Estes migrantes são diferentes apenas aos olhos de quem traça os
modelos nacionais, mas, inquestionavelmente, eles também são pessoas que existem fisicamente e
que possuem sentimentos com relação à luta por reconhecimento que precisam efetivar para poder
se tornar alguém merecedor de garantias e direitos no novo Estado.
Portanto, uma solução eficaz para que, ao menos os refugiados passem a ser reconhecidos
mundialmente e aceitos, independentemente, de suas culturas, religiões, origens ou tradições, em
um novo território, é a desconstrução da ideologia da ultranacionalidade, enraizada nos princípios
estatais e no pensamento social.
Repita-se que o objetivo não é acabar com a divisão dos territórios, mas com a ideia de uma
nacionalidade social pura e sem miscigenações. Historicamente, observa-se que a esperança de grupos
sociais por uma nação sem misturas causou a maior catástrofe mundial, a Alemanha Nazista, onde
milhares de pessoas alemãs foram convencidas de que eram superiores aos judeus, sem argumentos
sólidos que legitimassem tamanha atrocidade realizada com estas pessoas, apenas com um pensamento
de que as suas culturas, religiões, raças e tradições eram superiores das vivenciados pelos judeus.
Percebe-se, portanto, que nenhuma exclusão é válida frente aos refugiados. Estes migrantes
encontram-se em situação de maior vulnerabilidade e ficam à disposição da vontade da sociedade
para os aceitar e os reconhecer como seres humanos que também têm direitos, opiniões, famílias,
sentimentos e culturas diferentes das nossas, e isso não quer dizer que são uma ameaça às nossas
origens. Deve-se efetivar as garantias positivadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não
apenas em legislações estatais, mas também no coração e no pensamento das massas sociais, pois
apenas a comunidade receptora é capaz de fazer com que a luta dos refugiados, por um lugar seguro
para viver, possa ser efetivamente conquistada e mantida no horizonte da utopia.
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INTRODUÇÃO
Segundo os ensinamentos do jurista e sociólogo Niklas Luhmann (2005, p. 40) “o mundo é extre-
mamente complexo”. A sociedade complexa se desenvolveu sob o impacto da ciência e da tecnologia,
com origem na Europa nos séculos XVII e XVIII. Nessa perspectiva de Luhmann (2005, pg. 77):
O mundo torna-se problema [...] sob o ponto de vista da sua complexidade. Por complexidade
deve aqui entender-se, numa primeira abordagem a este conceito difícil, a totalidade dos
acontecimentos possíveis. Esta definição, como toda a definição que utiliza o conceito de
possibilidade, é incompleta; mas tal não é uma deficiência, antes uma referência ao problema que
com este conceito se assinala.
A sociedade de risco pode ser considerada aquela que, devido ao crescimento econômico
permanente, sem a adequação dos mecanismos jurídicos a fim de solucionar os problemas, pode
vir a sofrer, a qualquer momento, as consequências de uma catástrofe ambiental. [...] O risco
tornou-se tema central na modernidade.
203 Advogada, Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – Campus de Santo Ângelo. Especialista em Direito Processual Civil com ênfase em Dirieto do Trabalho
e Processo do Trabalho Pelo IESA; adv.gabi@hotmail.com.
204 Advogada, Doutoranda e Mestre em Direito pela URI - Santo Ângelo/RS. Especialista em Direito Processual Civil pela
UNISUL. Integrante do Grupo de Pesquisa “Tutela dos Direitos e sua Efetividade”; Cursando Filosofia pela UNINTER; Pós Gra-
duada em Filosofia na Contemporaneidade pela URI; Cursando Pós em Filosofia na UFPEL. Email – joiciantonia@yahoo.com.br
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Nesse sentido, a intensificação das relações sociais em escala mundial, onde acontecimentos
locais são modelados por eventos que ocorrem do outro lado mundo, a muitas milhas de distância. A
transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais
através do tempo e do espaço. Nesse viés, convêm trazer à baila o entendimento de Anthony Giddens
(GIDDENS, 1991, pg. 69; 70):
De acordo com a UNESCO, as alterações globais trazidas pelas mudanças climáticas, pela
urbanização crescente, pela degradação da camada de ozônio, pelo crescimento populacional, pela
expansão das infraestruturas, pelas migrações e pela poluição estão alterando drasticamente a
face do planeta e o funcionamento de seus sistemas. Todavia, a constatação de que o planeta passa
por mudanças drásticas e, talvez, irreversíveis, não é fato que dependa de conhecimento técnico
profundo [...] ao contrário, mesmo as comunidades mais isoladas do planeta – provavelmente
antes do que quaisquer outras – já se deram conta de que algo de muito ruim está ocorrendo.
Não que algum evento cataclísmico ou apocalíptico tenha ocorrido [...] mas pelas preocupações
cotidianas de que o planeta não lhes provê mais como antes.
Nesse contexto de complexidade, as ameaças ecológicas são parte de um novo perfil de risco
introduzido pelo advento da modernidade. Um elenco específico de ameaças ou perigos característicos
da vida social moderna. intensidade de risco é certamente o elemento básico no aspecto ameaçador
das circunstâncias em que se vive hoje. A possibilidade de guerra nuclear, calamidade ecológica,
explosão populacional incontrolável, e outras catástrofes globais que podem ocorrer, fornecem um
horizonte inquietante de perigos para todos. Apesar de a possibilidade de catástrofe ecológica ser
menos imediata que o risco de uma grande guerra, por exemplo, suas implicações são igualmente
perturbadoras para a humanidade.
Um exemplo é que danos ambientais irreversíveis de longo prazo podem já ter ocorrido, talvez
envolvendo fenômenos que ainda não temos conhecimento. O desenvolvimento industrial pode ter
alterado o clima do mundo, e danificado nosso habitat terrestre. O ano de 1998 possivelmente tenha
sido o ano mais quente da história, as temperaturas se elevaram a quase 46ºC, enquanto o consumo
de água se elevou em 40% (GIDDENS, 1991, pg. 71;71).
Um exemplo do caos trazido pela modernidade é a escassez de água que assola o mundo como
um todo. Em decorrência disso, a Assembleia geral das Nações Unidas reconheceu o direito humano
a água potável no ano de 2010 através da Resolução 64/292. Referida resolução manifesta uma
profunda preocupação, uma vez que 884 milhões de pessoas não tem acesso a água potável. Estudos
revelam que todos os anos morrem cerca de 1,5 milhão de crianças menores de cinco anos devido a
doenças relacionadas a falta de água (GALLO 2012, p. 58).
Portanto, devido a transformação social, a ação humana acabou alterando o trajeto da água
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e sua absorção pelo solo, causando impactos no meio ambiente e também na qualidade da água.
Com a industrialização e o aumento das cidades, em meados do século passado vieram a poluição
e a degradação das águas (JIMÉNEZ, 2012). Com o advento da modernidade e nesse contexto de
complexidade social, esses são alguns fatores que contribuíram para a constatação de uma realidade
de crise de água potável no mundo todo.
Dessa forma, pode-se dizer que a sociedade moderna criou um modelo de desenvolvimento tão
complexo e avançado, que faltam meios capazes de controlar e disciplinar esse desenvolvimento. Por
isso que em muitos casos se socorre aos direitos humanos.
Sob a ótica dos portadores ou destinatários dos direitos humanos, estes têm a pretensão de
validade universal, uma vez que todo homem é portador dos direitos humanos, sem exceção. “Podem-
se definir os direitos humanos, nessa perspectiva, como expectativas normativas de inclusão jurídica
de toda e qualquer pessoa na sociedade (mundial) e, portanto, de acesso universal ao direito enquanto
subsistema social” (NEVES, 2005, pg. 08).
É sob essa perspectiva de universalidade de direitos e constatação de uma realidade de crise do
recurso hídrico que teve origem com a modernidade e a complexidade social, que houve no ano de
2010 o reconhecimento do direito humano à água potável. Pois os direitos humanos constituem uma
ferramenta indispensável para evitar as catástrofes que com frequência ameaçam a vida humana,
e, para neutralizar as catástrofes busca-se o reconhecimento dos direitos humanos. O processo de
universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção
o qual é integrado por tratados internacionais que refletem a consciência ética contemporânea
compartilhada pelos Estados, vez que invocam o consenso internacional de determinados temas
de direitos humanos, na busca de salvaguarda dos mesmos (PIOVESAN, 2008). O que se aplica às
questões voltadas ao recurso hídrico que atinge a humanidade com um todo.
No entanto, há que atentar de que o universalismo dos direitos humanos enquanto exigência de
inclusão jurídica no âmbito da sociedade mundial relaciona-se com a heterogeneidade das pessoas
e grupos no tocante a expectativas normativas, valores e interesses, característica da modernidade.
Niklas Luhmann nasceu no ano de 1927 em Lüneburg na Alemanha. Produziu, a partir de meados
dos anos 60 até à sua morte, em 1998, uma obra que, pela sua dimensão, pluralidade temática e,
sobretudo, colossal ambição teórica, se tornou uma referência incontornável. Luhmann formou-se
primeiro em direito, antes mesmo de iniciar a carreira como sociólogo. Trabalhou vários anos como
jurista junto a administração pública e como investigador em temas jurídicos em um instituto de
ciências administrativas. O direito ocupou um lugar destacado nas suas reflexões teóricas. Além
do mais, toda sua teoria geral da sociedade é marcada pelo fato de o direito ter sido um dos seus
principais objetos ao qual foi aplicada a sociologia (GUIBENTIF, 2005).
A positivação do direito surge já nos primeiros trabalhos de Luhmann. Assim como outros
sociólogos da modernidade - Weber e Parsons - admitem que o direito desempenha um papel
essencial na sociedade. A característica do direito moderno, que Luhmann considera poder relacionar
diretamente com as características da sociedade moderna, é, então, a sua Positividade.
Luhmann ensina que a Constituição é um instrumento jurídico, como também é um instrumento
político, com relação a isto a Constituição para o sistema jurídico é uma lei suprema e fundamental,
para a política é um instrumento político com duplo sentido, quais sejam: a política instrumental que
modifica situações e política simbólica que não modifica situações. Assim afirma Luhmann (2002, p.
79), “los derechos humanos tienen que ver con la complejidad de las circunstancias [...] os derechos
humanos son el correlato de la apertura estructural de la sociedad de cara al futuro”.
No caso do Brasil, em específico, não há reconhecimento expresso do direito à água potável em
sua Constituição. No entanto, a Constituição Federal de 1988 reconhece, o meio ambiente como um
direito fundamental. Portanto, pode-se dizer que, dessa forma, acaba por reconhecer, indiretamente,
a água como um direito fundamental, tendo em vista que a água é considerada um recurso ambiental,
integrante do meio ambiente.
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Portanto, a solução consistiu em projetar o direito em direção ao futuro. Nação, direitos humanos
e democracia são ideias modernizadas fundamentais para essa projeção do direito no futuro. Os
direitos humanos transformaram-se num texto de direito positivo constitucional, que, por sua vez,
encontrou fundamento na supralegalidade constitucional dos direitos humanos (MAGALHÃES, p. 37):
Para Luhmann, as normas de direito são reconhecidas por meio de suas violações e os direitos humanos
são reconhecidos na medida em que são descumpridos. Assim como frequentemente as expectativas
tornam-se conscientes por via de sua frustração, assim também as normas frequentemente pela ofensa a
elas. Novamente, a questão da água potável retrata muito bem essa temática, vez que só o reconhecimento
do acesso à água potável como um direito humano na medida que se constatou a escassez do recurso.
Os direitos constitucionalmente estabelecidos são válidos, pois positivados, assim deixam-se
projetar para o futuro, por isso, podem ser efetivados no presente. Essa não é uma característica
exclusiva das normas estabelecedoras de direitos cuja concretização, muitas das vezes, é retardada
em face de obstáculos não necessariamente jurídicos; em face da escassez econômica, por exemplo.
A contínua projeção do direito no futuro resulta de sua própria função: aquela de criar vínculos
com o futuro. Esse atrelamento do futuro mediante o direito, o fato de o direito permanecer incerto,
duvidoso em relação à sua efetivação plena, não significa que esse seja menos direito. Importa,
exatamente, que decisões presentes sejam tomadas com base naquelas expectativas futuras que, por
sua vez, podem vir a não se realizarem.
Se antes o passado era uma cadeia que servia de freio para a mudança social, o futuro, como promessa
de mudança, permanece sendo futuro, sempre, em relação a um presente. O que significa, o futuro só tem
sentido como significante do presente. Mais que promessas, as normas constitucionais são compromissos
que, mesmo não se realizando, tornam possível a tomada de decisões no presente (MAGALHÃES, p. 42-44).
Os direitos humanos e suas promessas não podem ser cumpridas, dadas as condições estruturais
da sociedade moderna, extremamente complexa. Daí que faz sentido o apelo aos direitos apenas em
face de sua violação. Quando uma escola funciona bem e oferece educação de qualidade aos seus
alunos, não se clama por direitos humanos. Mas este é o tema da comunicação quando a promessa
de uma boa educação não é cumprida pelos responsáveis e, então, faz sentido falar em “direito à
educação”. Isso revela a medida em que, na sociedade moderna, os direitos humanos assumam um
caráter simbólico. (MAGALHÃES, pg. 71). Nessa lógica, Luhmann afirma que: (2020, pg. 549)
Em muchos países en vías de desarrollo se observe que las Constituciones sirven, de manera casi
exclusiva, como un instrumento de política simbólica. [...] el uso exclusivamente simbólico de
las Constituciones sirve de la política, puesto que la positivazación del derecho representa um
inmenso potencial para la ación política.
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A força normativa dos direitos humanos diz respeito, em primeiro lugar, à concretização das
respectivas normas, sejam constitucionais ou legais no âmbito dos Estados, sejam jurídico-
internacionais ou jurídico-globais. A concretização, por sua vez, concerne à construção do sentido
da norma jurídica a ser aplicada, judicial ou extrajudicialmente, a um caso jurídico determinado.
Da concretização nessa acepção técnica restrita cabe distinguir a realização enquanto eficácia e
efetivação da norma.
No contexto de uma sociedade mundial globalizada, com a internacionalização dos direitos humanos,
estes parecem tender a vencer a luta com a soberania, uma vez que a noção de direitos tornar-se-ia capaz
de desvincular-se das referências territoriais, políticas e jurídicas atinentes aos Estados Nacionais. Cada
vez mais, vislumbra-se que a expectativa entorno aos direitos humanos reside em estes transcenderem
as fronteiras dos Estados, do poder e do direito estabelecido. Da mesma forma, reacendem-se velhas
esperanças de que, pela via dos direitos humanos, a sociedade moderna possa encontrar um caminho
para sua integração. Ou seja, que não apenas direito e política, mas também os outros sistemas sociais,
como a economia ou a educação, possam se deixar regular pelo primado dos direitos humanos.
No caso da proteção do direito humano à água potável, por se tratar de um interesse de proteção
e preservação que transcendem o local e o nacional, vez que é um problema de escala mundial, não
deve haver outro caminho senão pensar em ações de proteção em termos mundiais.
Escassez de água, surgimento de epidemias e disputa violenta por recursos vitais, representam
algumas das consequências ocasionadas pelas mudanças ambientais, que tiveram origem da
modernidade, e que podem impactar seriamente a segurança local e internacional. Pois a recusa da
percepção da realidade de alterações nos sistemas naturais de todo o planeta, que acarretam impacto
na vida social da humanidade agrava a ameaça que ela representa para a estabilidade política e
socioeconômico da humanidade.
A questão da força simbólica dos direitos humanos ganhou um significado particular sobretudo
no campo do Direito Internacional Público ou de um direito mundial emergente. Nesse novo contexto,
discute-se principalmente se e em que medida a ordem jurídica internacional ou transnacional faculta
normativamente o controle e a sanção dos Estados que venham a ofender diretamente os direitos
humanos ou não estejam em condições de protegê-los. Destaca-se, em primeiro plano, o problema da
legitimidade ou não da intervenção para proteger os direitos humanos.
Na medida em que os direitos humanos pretendem dar suporte e resposta normativos a esse
dissenso estrutural, eles exigem uma institucionalização de procedimentos abertos à heterogeneidade
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cultural, complexidade sistêmica e pluralidade discursiva da sociedade mundial, que venham a garanti-
los. A proteção do acesso ao direito à água em quantidade e qualidade recomendáveis, depende,
seguramente, da constante interlocução dos planos a nível nacional e internacional.
O problema reside exatamente no fato de que os direitos humanos, no contexto da sociedade
mundial hodierna, ao contrário dos direitos fundamentais no âmbito estrito do Estado Democrático
de Direito, constituem expectativas normativas carentes de uma institucionalização satisfatória tanto
na dimensão pessoal (consenso sobre procedimentos) e na material (identificação de sentido) quanto
na temporal (normatização).
Implica antes a construção de procedimentos democráticos que se destinem a garantir a
convivência social e política nessas condições de dissenso estrutural, não só absorvendo este, mas
também estimulando a sua emergência. É precisamente esta falta ou fragilidade dos procedimentos
democráticos no âmbito de muitos Estados e no plano internacional ou transnacional que torna muito
insuficiente a institucionalização dos direitos humanos na atualidade.
O propósito de construir uma estrutura jurídica normativa independente das tradições regionais
e dos interesses políticos regionais e estatais, o que não eliminará a diversidade do desenvolvimento
regionais do direito.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que devido ao caráter simbólico, os direitos humanos não são atendidos no contexto
da sociedade moderna, como ocorre com citado exemplo do direito à água potável, que apesar de
seu reconhecimento como direito humano não se vislumbra garantia à população por parte do Estado
Brasileiro, necessitando, portanto, de uma internacionalização dos direitos, justamente porque só se
socorre aos direitos humanos diante de uma efetiva violação de direitos, revelando, assim, o caráter
simbólico dos direitos humanos como fundamentais constitucionalmente.
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OLIVEIRA, Celmar Correia de. Gestão das águas no estado federal. Porto Algre: Fabris. 2006.
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Daniela Roveda205
INTRODUÇÃO
A expansão econômica e política dos Estados do Norte global, amparada pelo direito internacional
do desenvolvimento, marcou significativamente a história e desenvolvimento dos países do Sul
global, especialmente os da América Latina. Nesse contexto, a colonização – entendida como um
fenômeno complexo que abarca dimensões políticas, econômicas, culturais, entre outras - baseada na
degradante divisão entre Estados civilizados e não civilizados, dizimou identidades de diversos povos
indígenas, bem como a diversidade cultural e de identidades da região (JOUANNET, 2012).
Sob essa ótica, a evolução do direito internacional marca a institucionalização das mazelas da
contemporaneidade, contribuindo para agravar, dentre outras, três formas de injustiça que coexistem
na sociedade internacional: (1) a desigualdade sócio econômica, (2) a opressão da diversidade cultural e
de identidades e a (3) subalternização dos saberes e práticas político jurídicas. Se estas três formas de
injustiça foram institucionalizadas pelo direito internacional clássico, também o direito internacional
deve criar meios para tratar de tais injustiças. Assim, foi a partir de uma abordagem crítica do direito
internacional que emergiram novas leituras como forma de amenizar tais injustiças, respectivamente
(i) direito internacional do desenvolvimento, (ii) direito internacional do reconhecimento e (iii) o direito
internacional da decolonialidade.
Nesse contexto, o presente trabalho terá como foco o estudo do direito internacional do
reconhecimento, como instrumento para tratar ou ao menos amenizar as injustiças históricas cometidas
aos povos da América Latina, relacionadas à opressão da diversidade cultural e de identidades. Esse
ramo do direito “traduz a aparição de um novo paradigma social e cultural do reconhecimento das
identidades que se impôs de vez no plano interno e internacional depois dos anos 1990” (JOUANNET,
2012, p.01). Ele se manifesta como uma prática jurídica maleável, formadora de diversas frentes
de luta que buscam essencialmente a preservação de identidades e culturas. Nesse contexto, as
demandas por reconhecimento envolvem a “preservação das identidades e diversidade cultural, bem
205 Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria,
Linha de Pesquisa: Direitos da Sociedade em Rede: atores, fatores e processos de mundialização. Pesquisadora do Núcleo de
Pesquisas em Direito Internacional (NPPDI). Pesquisadora do Núcleo de Direito Constitucional Especialista em Direito Proces-
sual Civil (NDC). Contato: dani_roveda@yahoo.com.br.
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como a reparação dos erros cometidos no passado, em uma tentativa de reconstruir a narrativa
identitária dos povos” (JOUANNET, 2012, p.08). Considerando que a América Latina foi palco de vasta
exploração colonial, as demandas jurídicas e morais da justiça global exigem que aqui sejam criadas
estratégias jurisdicionais em busca de reconhecimento. Isso porque os danos históricos cometidos
contra os povos tradicionais devem ser reparados, como forma de resgatar e preservar a memória
dessas culturas para as presentes e futuras gerações.
Assim, a presente pesquisa quer investigar o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) em aplicar o direito internacional do reconhecimento, nos enfoques propostos por Emmanuelle
Jouannet, nas suas sentenças referentes a opressão as identidades e diversidade cultural dos povos
indígenas. A atuação contenciosa da Corte tem papel de destaque em enfrentar esta demanda por
reconhecimento, já que é responsável por conhecer e julgar as violações de direitos humanos que
impactam na tutela das múltiplas identidades e diversidade cultural dos povos da região.
A dinâmica do direito internacional ao longo da história sempre serviu de instrumento aos Estados
hegemônicos, seja para justificar a imposição de suas culturas aos Estados concebidos como “não
civilizados”, seja pela perpetuação da dependência econômica desses Estados após sua independência.
Esse movimento acabou por institucionalizar uma série de injustiças globais na sociedade internacional
contemporânea, relacionadas a desigualdade social, a opressão das identidades e diversidade cultural
e, por fim, a subalternização dos saberes e práticas político-jurídicas. Sob esse enfoque, cada uma
dessas injustiças globais deu ensejo a emergência de novas concepções para o direito internacional,
sucessivamente, o direito internacional do desenvolvimento, o direito internacional do reconhecimento
e o direito internacional da decolonialidade.
Nesse aspecto, a busca por uma sociedade justa, baseada nos valores da liberdade e igualdade
concebidos por John Rawls não se mostra suficiente para tratar das injustiças que se prolongam
ao logo da história. Essa insuficiência ganha maior relevância se considerarmos o cenário de
multiculturalidade em que estamos inseridos, ao lado da recorrente opressão de culturas, identidades
e etnias marginalizadas, especialmente na América Latina, já que: “Ao menos na América Latina, houve
larga imposição, por meio do direito internacional, de padrões espirituais, econômicos e jurídicos
que desconsideraram e sufocaram as tradicionais experiências e formas de agir e de pensar locais.
(GIANNATASIO, 2019, p.15). Daí a necessidade de se buscar uma sociedade internacional não apenas
justa, mas decente, com o respeito, resgate e reconhecimento das diferenças, conforme proposta de
viés crítico de Emmanuelle Jouannet.
Nesse viés, o direito internacional do reconhecimento surge a partir da dualidade entre direito
internacional clássico e o direito do desenvolvimento, como marco do período colonial, enquanto o
reconhecimento reflete o viés pós-Guerra Fria. Até a descolonização, o direito internacional clássico
era estimatizante, por evidenciar a distorção de poderes entre Estados, a partir da negação do
reconhecimento e de dominação das culturas locais, baseado na distinção entre Estados civilizados
e não civilizados. Esse cenário binário tinha por base o “padrão de civilização” ao qual tinha que
se conformar qualquer povo que desejasse se tornar sujeito de direito internancional, e que não
era senão o da civilização euro-americana” (JOUANNET, 2012, p.02). Esse acesso a “comunidade de
Estados civilizados” com a atribuição de igualdade de status como sujeito de direito internancional
ocorria através da assimilação forçada e uniformizada dos padrões europeus, o que acabou por
oprimir a diversidade cultural e de identidades na América Latina. Após a descolonização, com os
movimentos de independência, foram atribuídos aos Estados personalidade e soberania, com base na
autodeterminação em substituição ao critério de civilização. Assim:
Esta é uma das razões pelas quais as suas demandas por reconhecimento vai evoluir ao longo do
tempo para assumir a forma atual de um direito para preservar juridicamente as suas culturas,
bem como, em alguns casos, demandar a reparação de danos históricos inflingidos às identidades
machucadas e desprezadas pela colonização. Por isso mesmo, as suas novas reinvindicações
se inserem em um movimento bem mais global que vai afestar todo o conjunto da sociedade
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Essa busca por reconhecimento coincide com as reinvindicações crescentes relacionadas “a gênero,
nação, idiomas, história e culturas presentes em sociedade internacional marcada pelo pluralismo
étnico-cultural, decorrentes da miscigenação e movimento das populações como características da
história da humanidade” (JOUANNET, 2012, p. 09). Nessa perspectiva, o reconhecimento se perfaz sob
dois aspectos que estão intrinsecamente relacionados, quais sejam, o moral e o jurídico. A concepção
moral foi teorizada por Axel Honneth (2009), ao propor que o reconhecimento está baseado nas
relações intersubjetivas dos indivíduos e que da sua ausência se desenvolvem os mais diversos
conflitos sociais. Já o aspecto jurídico foi desenvolvido por Emmanuelle Jouannet (2012), no sentido
de que o reconhecimento se perfaz no desenvolvimento de instrumentos jurídicos que garantam a
proteção da identidade e diversidade cultural, nos seguintes termos:
Tais elementos são reforçados pela crescente reinvindicação de grupos relacionados a gênero,
nação, culturas e religiões, por uma sociedade internacional justa, fundada nos valores da liberdade
e igualdade, e descente, a partir do reconhecimento. Essa mudança para “o reconhecimento parece
ser a contrapartida ao direito internacional do desenvolvimento, como elemento essencial para uma
sociedade internacional justa, ou seja, uma sociedade não apenas equitativa mas também decente,
baseada no respeito aos outros” (JOUANNET, 2012, p.07).
Segundo JOUNNET (2012), o direito internacional do reconhecimento pode ser entendido como
um conjunto de instituições jurídicas, discursos, práticas e princípios que até então não estavam
suficientemente teorizados e agrupados. Em outros termos, o paradigma da igualdade de direitos
instituída pelo direito internacional ao desenvolvimento cede lugar ao direito de ser diferente, de
preservar a identidade e cultura dos povos e grupos sociais, historicamente marginalizados. Nessa
linha, o direito foi mobilizado no âmbito internacional para dar respostas as reinvindicações por
reconhecimento a demandas relacionadas as identidades e diversidade cultural.
Assim, percebe-se que com a evolução da sociedade está sendo gradualmente estabelecido no
direito internacional um regime jurídico da diferença, ao lado do regime jurídico da igualdade, na
busca por respostas as injustiças globais relativas à opressão da diversidade cultural e de identidades
na América Latina (JOUANNET, 2012). Emerge, então, a necessidade de se criar meios que consolidem
a tutela a essas novas demandas, exemplo do viés jurídico do reconhecimento.
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Tal movimento partiu da “negação do valor da pessoa humana como valor e fonte do direito”, quando
passou a emergir “[...] a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e
paradigma ético que aproxime o Direito da Moral” (PIOVESAN, 2011, p. 129). Nessa linha, o direito
foi mobilizado no âmbito internacional para dar respostas as reinvindicações por reconhecimento
a demandas relacionadas as identidades e diversidade cultural. Ou seja, o direito internacional
do reconhecimento se propõe a atuar em três esferas, relacionadas aos elementos essenciais da
preservação da diversidade cultural e de identidades. São elas:
A garantia jurídica da diversidade das culturas não basta, por si só, para reconhecer cada pessoa
no que constitui a sua dignidade e a sua especificidade, se esta deve ser protegida de forma
mais especial. Ela deve ser acompanhada pela concessão de direitos subjetivos que conferem a
cada pessoa direitos próprios oponíveis ao Estado, mas que também conferem aos grupos mais
vulneráveis - minorias, povos indígenas - os meios jurídicos para preservar sua identidade diante
dos grupos majoritários dos Estados. (JOUANNET, 2011, p. 120)
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advento que coincide com o surgimento da proteção dos direitos humanos a nível internacional. O
surgimento da concepção dos direitos humanos, emerge como uma abordagem mais vantajosa para
a sociedade internacional, já a proteção transcende a condição de minorias e volta-se para a tutela da
natureza humana comum a todos. Essa mudança surge na tentativa de suplantar as demandas dos
movimentos nacionalistas que desestabilizavam a integridade dos Estados europeus e do mundo, já
que fundadas na busca por proteção que considerem as diferenças culturais, religiosas ou linguísticas,
que caracterizaram as minorias. (JOUANNET, 2011).
Percebe-se que o direito internacional da época protegia as minorias a partir de garantias que
assegurassem a não discriminação e tratamento igualitário com as maiorias, sem, contudo, reconhecer
direitos específicos a esses grupos. Assim, o princípio da não discriminação, que já tinha aplicação no
período entre guerras tornou-se um princípio do direito internacional de direitos humanos , previsto
nos artigos 1 e 55 da Carta, no artigo 2 da Declaração de 1948 e dos Pactos de 1966 ou ainda no
artigo 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais da 1950. Em
outras palavras, o reconhecimento da não discriminação e igualdade entre grupos minoritários e
maiorias não foi suficiente para garantir a identidade cultural das minorias. Assim:
Deste ponto de vista, o direito internacional dos direitos humanos após 1945 foi um fracasso
sombrio, porque não apenas os direitos humanos e, em particular, o princípio da não discriminação,
se mostraram completamente insuficientes para combater a discriminação e a marginalização de
fato sofridas por muitas minorias, mas, além disso, as tentativas de assimilar minorias apenas
reforçaram, por reação, suas diferenças identitárias. (JOUANNET, 2011, p. 124)
Essa insuficiência de proteção as minorias, que seguiam marginalizadas, provocou uma nova
flexibilização no direito internacional, voltado para o reconhecimento de direitos especiais aos
membros das minorias, resgatando a proteção iniciada no período entre guerras. O primeiro marco
dessa mudança veio em 1966, com o Pacto dos Direitos Civis e Políticos firmado na ONU, que,
no artigo 27, reconheceu de forma específica o direito a membros de minorias “étnicas, religiosas
ou linguísticas” de ter “em comum com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural,
professar e praticar sua própria religião ou usar sua própria língua” (JOUANNET, 2011, p.08). Essa regra
acabava por impor uma obrigação negativa aos Estados, já que garantia que estes não privassem os
grupos minoritários da sua vida cultural. Surge aqui o paradigma do reconhecimento das identidades,
conforme traz o preâmbulo da Convenção-Quadro para proteção das Minorias Nacionais, de 1995:
Uma sociedade pluralista e genuinamente democrática não deve apenas respeitar a identidade
étnica, cultural, linguística e religiosa de cada pessoa pertencente a uma minoria nacional, mas
também deve criar condições adequadas que lhes permitam expressar, preservar e desenvolver
essa identidade (JOUANNET, 2012, p.16).
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Este é o primeiro acordo político de envergadura universal que busca enquadrar de modo
construtivo os efeitos da mundialização no âmbito da cultura. Trata-se de um primeiro esforço para
moderar a lógica uniformizante que subjaz nos processos econômicos e tecnológicos mundiais.
Permanece nas mãos dos governos, da sociedade civil e da comunidade internacional a decisão
de se servir deste instrumento jurídico para criar em seus países e no mundo um clima estável de
confiança, de cooperação e de desenvolvimento (2003, p. 17-18).
Nesse viés, a diversidade cultural pode ser compreendida como “à multiplicidade de formas
em que se expressam as culturas dos grupos e sociedades. Estas expressões se transmitem entre os
grupos e as sociedades e dentro deles” (UNESCO, 2005, p. 06). Esta diversidade cultural “é, para o
gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para os organismos vivos e constitui
o patrimônio comum da humanidade, que deve ser reconhecido e consolidado em benefício das
gerações presentes e futuras” (UNESCO, 2001, p.03).
Foi a partir da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais que
a pluralidade étnico-cultural passou a ser uma norma, um princípio da diversidade que visa a proteção
e promoção da pluralidade, gerando novos direitos e obrigações. Nesse viés, o texto da Convenção
vincula o princípio da diversidade de expressões culturais a uma concepção ampla de cultura, que deve
estar relacionada às identidades de indivíduos e grupos (JOUANNET, 2012). Essa vinculação entre cultura
e identidade é confirmada pelo conceito de “propriedade cultural”: definida “como propriedade que
simbolicamente transmite “identidade, valores e significado” (Preâmbulo e Artigo 1, g), da mesma forma
que o conteúdo cultural é definido em relação às identidades (Artigo 4.2)” (JOUANNET, 2012, p.11).
Nesse aspecto, Emmanuelle Jouannet destaca que o princípio da diversidade cultural deve ser
amplamente aplicável, destacando três elementos fundamentais desse regime jurídico, quais sejam,
a igual dignidade e igual respeito a cada cultura (Artigo 2.3); o objetivo de preservação e proteção da
diversidade e, por fim, quanto a obrigação dos Estados aplicarem o princípio em seu próprio território
(Artigo 5.2). Por essa razão, a normatização do princípio da diversidade adquire a natureza de um
princípio fundamental do direito internacional, refletindo a novo paradigma do reconhecimento. Assim:
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foi prevista tanto na Declaração Americana dos Direitos do Homem, em seu artigo XIII, bem como
no Protocolo adicional à Convenção, referente a direitos econômicos, políticos e culturais, em seu
artigo 14. Contudo, apesar da inexistência da previsão expressa, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos utiliza a combinação de dispositivos na apreciação dos casos contenciosos, a exemplo do
trecho da sentença proferida no Caso Comunidade Indígena Yakye Axa versus Paraguai:
O direito à identidade cultural, ainda que não esteja expressamente estabelecido, está protegido
na Convenção Americana a partir de uma interpretação evolutiva do conteúdo dos direitos
consagrados nos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), 5 (direito à integridade pessoal),
11 (proteção da honra e da dignidade), 12 (liberdade de consciência e de religião), 13 (liberdade
de pensamento e de expressão), 15 (direito de reunião), 16 (liberdade de associação), 17 (proteção
à família), 18 (direito ao nome), 21 (direito à propriedade privada), 23 (direitos políticos) e 24
(igualdade perante a lei), a serem aplicados conforme os fatos do caso concreto. Ou seja, nem
sempre que se infringir um dos artigos mencionados, o direito à identidade cultural será afetado.
(CHIRIBOGA, 2006, p.51)
De igual modo, merece destaque a sentença proferida no caso sentença proferida em 2004
no caso Massacre Plan de Sanchez contra a Guatemala. O caso chegou a Corte Interamericana em
2002, para declarar a responsabilização do Estado pelas violações a direitos a integridade pessoa,
igualdade, liberdade de consciência e religião, previstos nos artigos 5, 8, 12, 21 e 24 da Convenção,
em razão do massacre de 268 (duzentas e sessenta e oito pessoas), em sua maioria pertencentes
ao povo indígena Maya da aldeia de Plan de Sanchez, executados por membros do exército daquele
país. A sentença reconheceu a responsabilidade da Guatemala pela violação de diversos direitos,
condenando o Estado a indenizar os sobreviventes e familiares das pessoas executadas pelos danos
materiais causados e, seguindo a linha do direito internacional do reconhecimento, a reparação dos
danos imateriais e morais cometidos, conforme segue:
En primer lugar, mediante el pago de una cantidad de dinero que el Tribunal determine en aplicación
razonable del arbitrio judicial y en términos de equidad. Y, en segundo lugar, mediante la realización
de actos u obras de alcance o repercusión públicos, tales como la transmisión de un mensaje de
reprobación oficial a las violaciones de los derechos humanos de que se trata y de compromiso con
los esfuerzos tendientes a que no vuelvan a ocurrir, que tengan como efecto la recuperación de la
memoria de las víctimas, el reconocimiento de su dignidad y el consuelo de sus deudos.
Especificamente em relação a cultura indígena, o Estado foi condenado a realizar uma série de medi-
das no intuito de difundir e preservar a cultura Maya, como se denota nos seguintes trechos da sentença:
(...)
110. Dado el daño ocasionado tanto a los miembros de la comunidad de Plan de Sánchez como a
los miembros de las comunidades de Chipuerta, Joya de Ramos, Raxjut, Volcanillo, Coxojabaj, Las
Tunas, Las Minas, Las Ventanas, Ixchel, Chiac, Concul y Chichupac, por los hechos del presente caso,
este Tribunal dispone que el Estado debe desarrollar en dichas comunidades, independientemente
de las obras públicas del presupuesto nacional que se destinen para esa región o municipio, los
siguientes programas: a) estudio y difusión de la cultura maya achí en las comunidades
afectadas a través de la Academia de Lenguas Mayas de Guatemala u otra organización
similar; b) mantenimiento y mejoras en el sistema de comunicación vial entre las indicadas
comunidades y la cabecera municipal de Rabinal; c) sistema de alcantarillado y suministro
de agua potable; d) dotación de personal docente capacitado en enseñanza intercultural
y bilingüe en la educación primaria, secundaria y diversificada de dichas comunidades, y
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A leitura dos trechos citados indicam que as medidas impostas ao Estado, pela sentença
condenatória, envolvem tanto a retratação pública quanto a criação de programas que promovam o
estudo e difusão da cultura Maya, revelando a preocupação em fomentar a preservação da cultura
desses povos. Essas respostas evidenciam a preocupação da CIDH em criar formas de amenizar
a histórica discriminação a esses povos, o que revela, também a nível judicial, a preocupação em
atender as reivindicações por reconhecimento.
É nesse contexto que se revela a importância de responder as injustiças globais quanto a exclusão
do cenário social de indivíduos e grupos em razão de suas identidades e diversidade cultural. Se
uma sociedade justa somente pode ser garantida através do respeito aos valores da igualdade e
liberdade, é a partir do combate a opressão das identidades e diversidade cultural que tal intento será
alcançado. Esse é o paradigma assumido pelo direito internacional pós Guerra Fria, especialmente
no que diz respeito ao direito internacional do reconhecimento, em busca de uma sociedade justa e
decente. Nessa linha:
Sob essa perspectiva, o direito à identidade cultural consiste no direito de todo grupo étnico-cultural
e seus integrantes de fazerem parte de uma determinada cultura e, consequentemente serem aceitos e
reconhecidos como diferentes, com o direito de preservar sua própria identidade e patrimônio cultural
tangível e intangível. Além disso, “possuem o direito de não serem coagidos a se tornarem integrantes de
outra cultura ou de ser assimilado, involuntariamente, por ela” (CHIROBOGA, 2006, p. 45).
No terceiro aspecto, ou seja, quanto a demanda por reparação de crimes praticados no passado
contra as identidades e diversidade cultural de grupos se consubstancia no efeito atemporal desse
tipo de violência. Isso porque as identidades de grupos não são formadas unicamente pela história
do indivíduo, mas são tecidas a partir das histórias herdadas do passado e da memória comum
transmitida por gerações (RICOER, 2004). Assim:
A solução para crimes históricos não é apenas jurídica, mas social, política, educacional e cultural.
Para além da justiça feita em um caso específico (...) somente a educação ou a criação de novas
instituições podem permitir a próxima geração de ex-colonizados e de ex-colonizadores extrair
as lições dos erros e crimes do passado, ajudando a desconstruir as estruturas políticas e morais
e as representações culturais subjacentes que tornaram esses crimes possíveis, livrando-se da
perpetuação de regras, práticas e instituições estigmatizantes (JOAUNNET,2012, p. 26).
Assim, percebe-se que com a evolução da sociedade está sendo gradualmente estabelecido no
direito internacional um regime jurídico da diferença, ao lado do regime jurídico da igualdade na busca
por respostas as injustiças globais relativas à opressão da diversidade cultural e de identidades na
América Latina (JOUANNET, 2012). Em outros termos, evidencia-se que a negação do reconhecimento
como elemento presente no decorrer da história é o causador das injustiças globais, especialmente
quanto as identidades e diversidade cultural. Essa demanda por justiça é evidenciada pela busca de
igualdade entre os indivíduos, situação violada pela opressão das identidades e diversidade cultural,
no cenário das injustiças globais. Diante desse cenário, resta eminente a necessidade de criar meios
que ao menos amenizem essas injustiças, como, por exemplo, a atuação contenciosa da CIDH através
de sentenças, em favor de uma sociedade justa e decente.
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2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CHIRIBOGA, Oswaldo Ruiz. O direito à identidade cultural dos povos indígenas e das minorias
nacionais: um olhar a partir do Sistema Interamericano. In SUR- Revista Internacional de
Direitos Humanos. N.5, Ano 3, 2006. Disponível em:<https://www.surconectas.org.> Acesso em
02 mar.2020.
GIANNASTTASIO, Arthur Roberto Capella; MOROSINI, Fabio Costa; BADIN, Michelle Ratton. Direito
Internacional: Leituras Críticas. São Paulo: Ed. Almedina. 2019.
HONNETH, Axel. Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Editora 34, 2009.
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PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12ª edição. São
Paulo: Saraiva. 2011.
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In El Hombre y la Maquina. Nº 24. Enero-Junio 2005. Disponível em: <https://www.redalyc.org/
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unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/diversity/pdf/declaration_cultural_diversity_
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________. Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade Cultural. 2005. Disponível em:
<https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000149742>. Acesso em 28
abr.2020.
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Gabrieli de Camargo206
Carelisa Stoffel de Siqueira207
RESUMO: Este ensaio tem como objetivo apontar como algumas relações na atualidade estão
sendo impactadas diretamente pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs). Através
da apresentação fatorial de alguns segmentos foi ensejada a utilização de ferramentas da análise
conjuntural para explanar inicialmente o cenário dessas relações. Desse modo, segmentou-se como
a Recessão Democrática e a estruturação do Sharp Power são novos conceitos dinâmicos para o
entendimento deste sistema internacional em reconfiguração. Ademais, como resultado inicial
deste ensaio descritivo, a análise focal para síntese foi estruturada observando a movimentação do
principal player dentro do cenário internacional, verificando suas ações e reações, através de teóricos
democratas estadunidenses Christopher Walker, Yasha Mounk e Larry Diamond.
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre a sociedade têm ganhado novas lentes e aporte teóricos, um retrato de que esse
todo social têm sistematicamente se estruturado de forma complexa nas últimas décadas. As dinâmicas
de poder são analisadas por interseccionalidades, operadas por novos códigos e configuradas por
redes de domínios interdependentes. Isso poderia ser uma tradução livre dos estudos aplicados de
uma área focal de Sistema de Informação, sobretudo, elucida como recriamos nas ciências sociais
novas técnicas, ferramentas de análise e conceitos para abordar essa virtualidade que nos alcança
enquanto parte d’um todo com tanta voracidade.
Como proferia Donna Haraway, nossa sociedade hoje é diferente e muito disso cabe ao espectro
de que nós, ciborgues208 passamos por mudanças radicais ao encontro das transformações culturais
que impactam a subjetividade humana. Paralelamente a subjetividade, essas novas configurações
impactam diretamente a organização política. São efetivos os impactos de novas dinâmicas em
fatores: nos sujeitos quanto à subjetividade (ser/estar), nos sistemas de governos (instituições) e nas
estruturas de poder (sistemas e estabelecimento de atores internacionais).
Parte condicionante das transformações que impactam os três fatores citados acima, a questão da
informação e as novas formas de comunicação são basilares para a compreensão dessas redes que nos
interligam como elementos de um sistema interdependente. Se propõe nesse sentido, a emancipação
das TICs (Tecnologia da Informação e Comunicação) com uma simples diferenciação de matéria: a
informação como o conteúdo, a própria mensagem traduzida hoje por dados; e a comunicação como
esse todo complexo de formas, ferramentas, conteúdos transponíveis que interlocutam as inúmeras
relações de dados.
Nesse sentido, este ensaio tem como objetivo articular esses fatores de análise frente às transfor-
mações que a esfera informacional têm segmentado na atualidade. Figurado numa apresentação concei-
206 Internacionalista, Me. e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UNIJUÍ/RS. Bolsista CAPES.
207 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UNIJUÍ/RS. Bolsista CAPES.
208 Seres humanos que se tornam artificiais (não apenas orgânicos). Correntes e circuitos que perpassam unidades, seja
de humano e máquina, orgânico e inorgânico, somos híbridos complexo. “Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo
que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito e desfeito”
(HARAWAY, KUNZRU, TADEU, 2009, p. 32).
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tual onde se utilizou ferramentas da análise de conjuntura, buscou-se descrever algumas questões que
envolvem as dinâmicas sociais nessa reconfiguração do do cenário internacional. Ademais, este trabalho
se expressa como um ensaio articulado entre conceitos teóricos e conjuntura descritiva-analítica.
2 DESENVOLVIMENTO
A forma como nos comunicamos enquanto sociedade se transformou e o modo como produzimos
informação nunca foi visto antes na história da humanidade, para o ano de 2020 acumulamos
cerca de 44 zetabytes de dados (FLORIDI, 2019, p. 102). Hoje somos híbridos, somos ciborgues209.
A política democrática nesse sentido têm sofrido ativamente os impactos destas transformações.
As instituições têm sido questionadas acerca de sua efetividade e legitimidade. Hoje vivemos uma
recessão democrática, mudanças profundas na organização desse corpo artificial que chamamos de
Estado. Para tanto, novas categorias são empreendidas como ferramentas de análise, uma dessas é a
criação e utilização de novos conceitos, como a Recessão Democrática e o Sharp Power.
A análise de conjuntura detém vertentes em inúmeros segmentos das ciências sociais. Seja dentro
da economia, da política e sociologia, a análise de conjuntura implica em reconhecer a pluralidade de
perspectivas teóricas e metodológica (portanto se vale de inúmeros autores do dissenso) e afirmar, que
a dissonância irá se manter, pois de acordo com a importância que impomos em algumas variáveis a
análise pode ser diferente para cada leitura sobre a mesma conjuntura. Quanto à escolha do autor ou
autora referência, podemos estruturar as técnicas e metodologia para a elaboração. Para a elaboração
desta análise inicial nos centramos em alguns pressupostos guiados por um roteiro - de tempo e
diálogo sobre a temática - ancorada no texto referência de Sebastião C. Velasco e Cruz (2000, p. 149-
151). De acordo com o autor, precisamos verificar algumas questões após a descrição do cenário:
209 “Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Seres portadores de órgãos “artificiais”. Seres geneticamente modificados. Ana-
bolizantes, vacinas, psicofármacos. Estados “artificialmente” induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percep-
ção, a imaginação, a tesão. Superatletas. Supermodelos. Super-Guerreiros. Clones. Seres “artificiais” que superam, localizada e
parcialmente (por enquanto), as limitadas qualidades e as evidentes fragilidades dos humanos. Máquinas de visão melhorada, de
reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. Máquinas de guerra melhoradas de um lado e outro da fronteira: soldados e
astronautas quase “artificiais”; seres “artificiais” quase humanos. Biotecnologias. Realidades virtuais. Clonagens que embaralham
as distinções entre reprodução natural e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos
e 13 corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos” (HARAWAY, KUNZRU, TADEU, 2009, p. 12).
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uma análise conjuntural é sempre uma análise de situações em dado momento histórico, referimos o
estabelecimento do período acima.
2. 2 Recessão democrática
Desenvolvido por Larry Diamond, editor do Journal of Democracy - um dos principais cadernos
de altos estudos sobre Democracia, o autor publica sua análise sobre o Enfrentamento da Recessão
Democrática em 2015. Partindo da análise estratégica desse importante autor sobre a temática,
configuramos alguns elementos para estabelecer respostas e retratos sobre as três primeiras
perguntas discutidas dentro da elementar análise de conjuntura. Esse será nosso plano de fundo,
nosso cenário que envolverá os principais atores, jogadores, agência e representação para leitura das
relações de força nas categorias fatoriais - subjetividade (sujeitos ciborgues), governo (instituições)
e poder (dinamismos dentro do cenário entre Estados e organizações de governança internacional).
Diamond situa o período refratário de 1975-2007 como uma expansão notável das democracias,
um crescimento contínuo de um sistema de governo que envolvia o estabelecimento de um Estado de
Direito e de normativas legais sobre as regras do jogo proliferadas dentro do sistema internacional.
Mesmo algumas democracias nascentes serem bastante iliberais (autoritários competitivos) os níveis
de liberdade de direitos políticos e liberdades civis alcançaram números significativos em meados
de 2006. Mas tudo pareceu mudar significativamente quando o número de democracias eleitorais
liberais diminuiu e se nivelou. Uma das questões analisadas sobre esse fato é a frágil relação entre
democracia e liberdade, fundamentada primordialmente nas democracias iliberais se tornando cada
vez mais autoritárias. Mesmo as análises sobre as democracias serem difíceis em níveis de comparação,
podemos verificá-las como variáveis contínuas, medidas por nivelamentos de componentes, como a
oposição, acesso à mídia, campanha e financiamento, sufrágio universal, justiça e administração
eleitoral transparente, extensão de cobertura do governo e outras tantas variáveis que envolvem
direitos de liberdades (DIAMOND, 2015, p. 142).
O autor nesse sentido elabora duas questões que implicam esta recessão democrática: a primeira
com valores qualitativos que contabiliza o colapso de 25 democracias no mundo (golpes militares ou
executivos flagrantes, degradação de direitos ou procedimentais) como levantadas pela Rússia, Turquia,
Botswana e Venezuela. Em resumo, quase uma em cada cinco democracias nessa virada de século
fracassou. Para além dessa questão, houve o declínio aparente de liberdade em diversas regiões, se
cristalizando com o tempo, ocorrem com um massivo declínio nos direitos políticos e liberdades civis,
muitas vezes pouco evidentes para os observadores externos, onde as instituições passaram a colapsar
inclusive em democracias consideradas consolidadas como as de terceira onda. Para o autor,
Democratic institutions such as parties and parliaments are often poorly developed, and the
bureaucracy lacks the policy expertise and, even more so, the independence, neutrality, and
authority to effectively manage the economy. Weak economic performance and rising inequality
exacerbate the problems of abuse of power, rigging of elections, and violation of the democratic
rules of the game (DIAMOND, 2015, p. 150).
O autor aponta que em termos de democracia, os países fora da margem ocidental estável tem
estado estagnadas ou diminuindo e muito disso, se deve ao aprofundamento do autoritarismo em
grandes autocracias - utilizando-se de uma presença externa mais forte militarmente (hard power) e
de uma influência cultural sofisticada enquanto mídia e intercâmbio (soft power). Essas considerações
acerca o soft power é a promoção de uma tendência de renovação autoritária no controle da habilidade
das mídias tradicionais e digitais (shark power).
A retórica discursiva incursiona pela fórmula do desenvolvimento econômico liderado pelo
Estado sem democracia justificaria ações autoritárias de criminalização e constrangimento de
expressões. Mesmo os países com tendências autoritárias, inclusive de sistemas democráticos,
tornaram sofisticada a arquitetura da supressão das liberdades via internet no uso do ciberespaço
para segmentação de um controle social. Mas para o autor, o que mais vêm preocupando é
a autoconfiança das ditas democracias consolidadas no sistema para enfrentar os novos
desafios da governança global. O desaparecimento de frentes populares nos congressos, a o
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The key imperative in the near term is to work to reform and consolidate the democracies
that have emerged during the third wave—the majority of which remain illiberal and unstable,
if they remain democratic at all. With more focused, committed, and resourceful international
engagement, it should be possible to help democracy sink deeper and more enduring roots in
countries (DIAMOND, 2015, p. 154).
Larry Diamond escreve sobre a recessão e os impactos que as mudanças de grandes conjuntos
de fatores (sociais, econômicos e culturais-comunicativos) incursiona pelas democracias estabelecidas
ou em desenvolvimento. O que pode ser apontado, como o autor é certeiro em apontar uma recessão,
já observada tornou-se mais impactante com os eventos que aconteceriam nos próximos anos.
Eleição de Donald Trump, o Brexit no Reino Unido, a onda de populismos que alcançaria com força as
democracias em desenvolvimento, os movimentos extremistas de direita, o fenômeno das fake news e
uma pandemia global. Os últimos cinco anos marcaram novas realidades e emanciparam movimentos
sociais e políticos em todo o globo ao enfrentar o autoritarismo (CASTELLS, 2017). Diamond aponta na
última frase do seu texto que se a democracia entrar em depressão, será porque àqueles estabelecidos
eram seus piores inimigos. Nesse sentido, enfatiza a necessidade de uma democracia que está o
tempo todo em transformação, no qual os percalços fazem com que a sociedade se movimente ao
progresso institucional de garantias.
Na tentativa de desenvolver uma descrição através deste cenário de recessão democrático, foi
possível caracterizar alguns argumentos baseados em conceitos chaves que ajudarão a compreender
esse período entorno dos três fatores. Como já salientado, o mundo atual abrange uma complexidade
incrível, não só pelas relações sistêmicas de interdependência210, mas por engenhar estruturas espacial-
material mas também espacial-virtual. Na atualidade, o controle e arquitetação do ciberespaço têm
sido um forte embate na manutenção do poder. Não à toa que as maiores e mais ricas empresas são do
ramo da tecnologia. Nestes últimos anos os Estados desenvolvem inúmeras ferramentas estatísticas
para governo e de participação através da rede. Além da presença e vigilância através de uma política
de dados bem arquitetada, a engenharia por trás das telas molda uma comunidade do consumo
hibridizada, determinando novos códigos técnicos, numa estrutura não-hierárquica mas em rede,
onde o anonimato pode ser possível e o armazenamento de dados um novo recurso de exploração. O
acesso virou uma problemática e políticas públicas estão sendo desenvolvidas para apreender toda a
sociedade dentro de plataformas digitais (FEENBERG, 2017).
Na tabela a seguir desenvolveu-se uma relação fatorial entre subjetividade, governo e poder de
forma relacional com a estruturação da sociedade ciborgue, instituições democráticas e dinâmicas
de forças (hard, soft e sharp). Como apontado anteriormente, esta relação é puramente conceitual e
abrange ferramentas iniciais para uma análise sintática.
210 It is important that we see power and interdependence, states and people, structure and agency, stasis and dynamism,
all at the same time.12 Table 2 shows what the world looks like, in terms of the actors we see—the assumptions we make
about them alone and in relation to one another, and about human nature— if we put the twin optics of the chessboard and
the web together” (SLAUGHTER, 2017, p. 72).
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Subjetividade Povo contra a Democracia (MOU- O impacto das Mídias e bots Crise da cultura ociden-
NK, 2018); sociais nas eleições (FORNA- tal (HUI, 2016);
SIER, 2020);
Ruptura (CASTELLS, 2018).
Governo Democracia iliberal; Fenômenos autoritários e po- Recessão Democrática
Liberdade sem direitos; pulistas; (DIAMOND, 2015);
Política do inimigo; (RANCIÈRE, Como morrem as democracias
2014) (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018)
Poder Enfraquecimento dos pátios in- Rompimento do ordenamento Sharp Power (WALKER,
ternos da democracia (política neoinstitucional e restabeleci- 2018).
realista, descentralizada e ética); mento do realismo competitivo
Enfraquecimento do discurso dos (FIORI, 2018)
Direitos Humanos como garantias
jurídicas a serem resguardadas;
Tabela 1. Desenvolvida pelas autoras.
Seria improvável incursionar sobre as milhares de relações entre os diferentes fatores numa
estrutura internacional de Estados e Organizações, mas podemos apontar algumas configurações
partindo de trabalhos já desenvolvidos por outros autores. Ao que salienta uma das melhores análises
do período, mesmo com algumas ressalvas, o trabalho de Yasha Mounk de 2018 retrata diversos
fatores e relações que levaram o povo à agir contra a democracia e o perigo que o populismo trás
para as instituições, o desempoderamento dos cidadãos211 e a segmentação das mídias sociais que
impactaram diretamente as eleições políticas nos últimos anos.
Partindo da visão teórica de Diamond, Mounk aponta que simplesmente comunicação e redes
demais para o Estado tudo monitorar e censurar, por ser uma ferramenta de todos, pode ser em
alguma forma, uma manifestação democrática. Para isso, cita inúmeros exemplos de manifestações
e protestos que ganharam espaço ao sul e ao norte, da Primavera Árabe ao Black Lives Matter, uma
coordenação de rede ativista; mas aponta que esse poder de organizar sem organizações também
surge na coordenação de ataques e isso pode causar problemáticas antes nunca vistos.
Sobre a vingança dos tecno-pessimistas, aponta que a ampliação desses espaços ocorrem nos
“[diferentes] contextos locais dariam nova forma ao uso de ferramentas como o Facebook, fazendo
delas instrumento de emancipação em alguns contextos e fortalecendo o governo autocrático - e
incitando o ódio racial - em outros” (MOUNK, 2018, p. 176). Assim, as mídias sociais nesta última
década apontou um papel decisivo, foi potencializador de uma rede difusa de soldados, uns agindo por
ideologia e outros por motivos financeiros em eleições incomuns no norte do sistema internacional.
“Se ideias tão obscuras ganharam tamanha credibilidade, é porque as novas possibilidade da
comunicação muitos-para-muitos estavam cruzando caminho como o surgimento de câmeras de eco
cada vez mais estreias” (MOUNK, 2018, p. 178). Ademais, as forças de sublevação que prometeram
as redes implicam grandes mudanças, sejam a favor da democracia ou não.
As mídias sociais ao olhar de Mounk acaba por diminuir o abismo tecnológico entre os insiders e
os outsiders políticos, “[daí] a oposição democrática nos países autoritários hoje ter mais ferramentas
para derrubar um ditador plantado no poder. Mas por conta disso também os mercadores do ódio
e da mendacidade encontram muito mais facilidade para solapar as democracias liberais” (MOUNK,
2018, p. 179).
Mounk aponta que o desenvolvimento de aparelhos móveis como os celulares impactaram
diretamente na coordenação ao diminuir o abismo entre os insiders e outsiders políticos, dando mais
forças à instabilidade que de ordem. Desse modo, a tecnologia digital ajudou a remodelar a política
211 “[residem] na tomada de poder pelas elites políticas e financeiras. As grandes empresas e os super-ricos defendem ban-
cos centrais independentes e tratados comerciais favoráveis para faturar boladas de dinheiro. Políticos, acadêmicos e jorna-
listas apoiam um modo tecnocrático de governança porque isso isola suas decisões da vontade popular. todo esse egoísmo
fica na prática oculto sob o manto de uma ideologia neoliberal propagada por think tanks e departamentos acadêmicos que
são, eles mesmo, financiados por doadores ricos” (MOUNK, 2018, p. 119).
463
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[as] grandes promessas da Internet também são suas armadilhas. Seu potencial libertador e anti-
establishment pode ser aproveitado por demagogos que apelam aos piores impulsos da multidão. Ao
proporcionarem a ruptura de instituições estabelecidas desatualizadas, a Internet deixou um vácuo
preenchido por apelos diretos de candidatos, notícias falsas e propaganda (FORNASIER, 2020, p. 32).
O Sharp Power - transição literal como poder agudo - foi trabalhado em 2018 por Christopher
Walker na intenção de compreender algumas relações culturais que são utilizadas como ferramenta
coercitivas para influenciar outros países. O termo envolve algumas dinâmicas do soft power212 mas
é mais preciso quanto ao intercâmbio cultural ativo por Estados, na troca de informações demasia
assimétricas, baseados em recursos de poder (primordialmente econômico). Nos últimos anos
utilizado pela China com seus vizinhos Asiáticos e Oceânicos. E talvez, nas últimos séculos utilizados
pelas potências mundiais - mas sendo um conceito recente, não cabe a especulação. Nessa via de mão
único, das transferências unilaterais de informação provavelmente caracterizam dinâmicas nocivas
aos países que não operam como receptores.
Walker (2018) enfatiza que os países autoritários em uma dinâmica positiva da manutenção do
poder têm se projetado de forma a penetrar e perfurar o ambiente político, cultural e informacional
de outros países - principalmente democracias. Investindo em capital material, concentra na
infraestrutura a penetração em ambientes democráticos e também em não democráticos. Estruturando
inúmeros exemplos que o sistema autocrático chinês fez parte de sua política externa, Walker relata a
problemática da cooperação com a rede australiana (levando o silenciamento de uma voz independente)
e a presença do país em áreas educacionais. O autor também questiona que mesmo uma democracia
consolidada como a Austrália não conseguiu estabelecer um sistema imunológico para os efeitos
desse sharp power, sendo assim, o sistema democrático estaria em risco. Uma potente força na era
da globalização, os movimentos autoritários aventuram-se nas democracias abertas. Estas, estão
constantemente em reconfiguração para lidar com a influência e projeção dessas potências por meio
dos mais diversos canais.
Atualmente as dificuldades encontradas pelas democracias consolidadas e em desenvolvimento
enfrentam um cenário internacional em manutenção, onde novas forças e ferramentas incursionar pelas
potências autoritárias veem ganhando espaço nas dinâmicas econômicas e culturais. Essa abertura de
espaço que a cultura dominante apreende além das fronteiras representam sérios danos à democracia,
212 “Since Nye coined the term in 1990, “soft power” has come to be understood by many journalists, policy makers and
academics as any non-military power by nature. Soft power is often seen as something that states seek to “win hearts and
minds” and cultivate a positive public image. It is easy to find examples of Western experts talking about “soft power” in this
way. While soft power remains a broad term to describe non-military and non-coercive forms of influence, consensus among
experts, including Nye himself” (WALKER, 2018, p. 39).
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mas fundamentalmente à soberania do Estado, desafiando as democracias no nível das ideias, princípios e
padrões. “Information may be globalized and internet access is expanding, but today’s leading authoritarian
states have been successful in reaffirming their control over the field of ideas. In both China and Russia, the
state dominates the informational environment and the authorities make the most of digital technologies”
(WALKER, 2018, p. 130). Nessa rotação das dinâmicas estruturais de poder, são as economias capitalistas
de Estados que estão ganhando vantagem comparativa enquanto percentuais de crescimento nos últimos
anos. Para além dos ganhos econômicos, a utilização do sharp power envolve ações de censura, uso e
manipulação de ferramentas para minar a integridades de instituições independentes, limitando liberdade
de expressão, manipulando debates públicos causando certo caos político no interior dos países. Ademais,
[...] Sharp power can also be used through modern forms of censorship, leading the press to
self-censor or employing digital tools such as “bots”, automated accounts that disseminate false
information and divisive speeches online. Sharp power is an integral part of the internationalist
turn that authoritarian states have taken in recent years, and its effects are increasingly visible
in the institutions that are fundamental for democracies to function as free and autonomous
societies (WALKER, 2018, p. 136).
Nesse sentido, dirigida por uma estratégia de hard power, essa penetração, articulação política
externa envolve primordialmente a manipulação de ideias, chantagem e desinformação por meio redes
de bots sociais. São utilizado laboratórios de ideias para apoiar lobbies políticos e ideias infundadas de
dominação ideológica, atribuindo muitas vezes esse papel à imprensa livre que se manifesta contra o
governo. De persuasão agressiva, essa instrumentalidade de novas ferramentas por outros players na
dinâmica internacional têm segmentado as dinâmicas de outras potências, como o estabelecimento
de um nova estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos e inúmeros regulamentos que
envolvem tecnologia da informação e comunicação redigidas pelos conselhos da União Europeia.
Em um importante texto sobre a movimentação estratégica dos Estados Unidos, o professor José
Luís Fiori incrementa uma análise concisa sobre um dos principais players desse sistema. Sendo casa
dessas empresas de tecnologia, ainda possui ¼ do PIB Mundial e mesmo fragilizado internamente, suas
instituições parecem enfrentar as reivindicações massivas desde que Trump se elegeu em 2016. Com
cerca de 85% das transações monetárias mundiais serem através do dólar, o país ainda é uma potência
vitoriosa e tutelas dentro das Organizações Internacionais, mas neste último ano - um ano caótico frente à
emergência de uma crise sanitária global do COVID-19 rompe (2018-2020) de fato com a premissa liberal.
Fiori (2018) apresenta que essa Síndrome de Babel, uma reação ao reconhecimento de outros
jogadores dentro do cenário internacional, resultado disso é a grande expressão de autores
internacionalistas teorizando sobre os processos focais da presença Russa e Chinesa na política
interna do grande player. Para tanto, precisamos lembrar quando os Estados Unidos assume a
presença de novos players, a definição de decisões passa a ser compartilhada. Teoricamente os jogos
de cooperação institucional e manutenção do direito internacional aportam essas grandes decisões,
mas os atos unilaterais que marcaram a presença militar da Rússia na Górgia e o auxílio Russo à Síria
no combate ao Estado Islâmico causaram externamente um rompimento das ações estadunidenses,
uma perda de domínio dentro do sistema, fazendo com que, os Republicamos (frente à diversos
fatores) assumissem novamente e estabelecessem o America First.
Aos analistas políticos sobre a eleição de Trump, um dos fatores que impactaram diretamente as
resoluções foi a presença externa aos meandros eleitorais que após a vitória do do mesmo, acabou
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por causar instabilidades institucionais no país. Dentre as ferramentas utilizadas, a ferramenta de bots
sociais para a movimentação de uma ampla rede de informação guiada a possíveis eleitores. Seria
a questão informacional a nova retratação de novos arquétipos de poder? As redes, nesse sentido,
são articuladas para controle de potenciais eleitores parecem ter decidido uma das mais importantes
eleições do século. Fenômeno ou uma configuração processual?
Networks are the language of our times. Think about alQaeda. The Internet, eBay, Kazaa. The
mobile phone, SMS. Think about iron triangles and old school ties, No Logo and DeanforAmerica.
Think VISA and Amex, the teetering electricity grid, the creaking rail network.” Helen McCarthy,
Paul Miller, and Paul Skidmore, the editors of the volume, explained that although “networks shape
our world,” we do not actually understand their logic well enough to structure our institutions, our
“organizational and public power,” to harness their potential (SLAUGHTER, 2017, p. 229).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estabelecemos aqui neste percurso descritivo, um tanto quanto abrangente, algumas questões
características da nossa sociedade ciborgue. As mídias sociais estão impactando a forma de se fazer
política, os alcances e resoluções, a forma como se estabelecem os discursos e quem tem voz nesse
espaço. Para além disso, as mídias de comunicação tem sofrido grandes interlocuções da sociedade
civil organizada após escândalos ligados à algoritmos vinculados. Já a questão da informação têm sido
uma das principais pautas quando assunto é o debate sobre a mineração de dados. Nessa tentativa
inicial de se estruturar as bases descritivas de uma análise conjuntural, foi possível escurecer acerca
da sistematização do cenário nesses últimos cinco anos e também seus principais atores e agentes que
performam neste cenário. Sendo um ensaio que vincula a parte inicial de uma análise de conjuntura,
os questionamentos mais profundos não foram possíveis de articulação devido o espaço estabelecido
neste trabalho. O que podemos compreender nesta primeira parte, analisando a descrição conceitual e
relacional de conceitos referências é que a instabilidade democrática no sistema internacional, se deve
à uma conjunção de fatores internos (dos principais players democratas do sistema) e externos que
vinculam a ascensão de autocracias neste mesmo sistema. Para além disso, foi possível compreender
como a configuração do sharp power pode ser uma ferramenta importante para a manutenção e
formatação do poder neste cenário enquanto aliada capitalizada das plataformas de domínio digital
que fomentam os híbridos ciborgues. Ao resultados desses exercícios descritivos, inicialmente foi
possível levantar as próximas questões para o fechamento da análise conjuntural:
3) As relações de força - como resulta os processos de luta cuja configuração caracteriza uma
conjuntura dada, estabelecida: como o reconhecimento dos novos players permite a estruturação de
novas dinâmicas de poder dentro de um novo espaço de poder, o ciberespaço.
4) Como é pensada a prática política (fatores objetivos de condições estruturais, normativas,
culturais); Objetivismo e subjetivismo – entre essas duas posições que desde sempre polarizaram
a teoria social como se situam as análises? Como as questões subjetivas - ideológicas, e objetivas -
materiais, são vislumbradas na era das tecnologias da informação. A qualidade valorativa implicada
no sistema técnico da informação (hard e software).
5) Micro-fenômenos ou macro-processos? Como a última pergunta-referência, precisamos
estabelecer como a questão do principal player no sistema internacional irá se desenvolver nos
próximos anos. De acordo com Fiori,
Como já vimos, muitos analistas norte-americanos anunciam atualmente o fim da ordem liberal
internacional, e costumam prever um grande confronto milenar entre o sistema chinês de
organização de suas zonas de influência ou dominação hierárquico-tributária e o sistema de
Westfália, criado pelos europeus e imposto ao resto do mundo, com base na ideia da soberania
dos Estados nacionais. No entanto, o mais provável é que não ocorra nada disto é que o sistema
mundial atravesse um prolongado período de grandes turbulências e guerras provocadas por
mudanças súbitas e inesperadas e por alianças cada vez mais instáveis, exatamente porque todo
o sistema mundial está reproduzindo, neste momento, em escala planetária, o que já foi a história
passada de formação da própria Europa. Neste sentido, sim, é muito provável que este cenário
futuro se transforme num verdadeiro castigo ou pesadelo para o mundo ocidental, provocado pela
universalização de sua principal “criatura”: o sistema interestatal capitalista (FIORI, 2018, p. 58).
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RESUMO: O Direito Internacional encontra-se em uma Nova Ordem Internacional desde 1989. Seu
desenvolvimento ocorreu de forma gradual e foi dividido em três aspectos: político, econômico e
do comércio internacional. O presente trabalho tem por objetivo identificar como os estudos do
Sul Global sobre os aspectos da Nova Ordem Internacional podem promover uma readequação e,
consequentemente, o respeito dos Direitos Humanos. A interlocução entre os pensamentos do Sul
Global demonstrou ser fundamental ao trazer diferentes perspectivas de como a colonialidade e a
imperialidade permeiam a Nova Ordem Internacional, permitindo sugerir um quarto aspecto da Nova
Ordem, qual seja, a humanização do Direito Internacional.
INTRODUÇÃO
A Sociedade Internacional contemporânea tem enfrentado vários desafios, alguns mais antigos,
como o estudo da sua natureza normativa e da força vinculante da Ordem Jurídica Internacional
e novos fenômenos, como a sua constitucionalização e a sua humanização. Esse novo quadro é
composto pelo desenvolvimento da consciência em relação aos problemas sociais, de natureza global,
fome, óbices na educação e, inclusive, a propagação de Organizações Internacionais.
Vivenciamos, simultaneamente, o fenômeno da ampla movimentação de atores, fatores e processos
que ocupam a geografia do mundo ora livres das fronteiras dos Estados, ora limita dos por elas – a
deslocalização – e um conjunto de fenômenos que correspondem às comunicações instantâneas, em
tempo real, dissolvendo a distância espacial – a destemporalização (SALDANHA, 2020).
Assim, em seu Curso de Direito Internacional, Roberto Luiz Silva (2018) faz apontamentos acerca
da Nova Ordem Internacional (1989), na qual os sujeitos do Direito Internacional estão inseridos,
ressaltando os aspectos 1) político; 2) econômico; e 3) do comércio internacional. É nesse contexto
que se desenvolve o Direito Internacional Contemporâneo, que, de forma interdisciplinar, abrange
novas análises e novos conceitos.
Todavia, identifica-se que há um diálogo intenso surgindo entre a mais ampla literatura nacional
e estrangeira de ciências sociais, demonstrando a existência de um quarto aspecto: a humanização do
Direito Internacional, acreditando ser de essencial importância a análise do funcionamento da atual
ordem internacional, especialmente nos casos que envolvem o processo de internacionalização dos
Direitos Fundamentais, que, em âmbito internacional, são denominados Direitos Humanos, uma vez
que é perceptível o crescimento dos sujeitos e atores de Direito Internacional preocupados com o tema.
Os acontecimentos que ocorreram a partir de 1989 (ano histórico que dá início à Nova Ordem Inter-
nacional), como a expansão do discurso de universalidade dos Direitos Humanos e da atuação das Cortes
Internacionais de proteção aos Direitos Humanos, demonstram que há um processo constante de huma-
nização do Direito Internacional, indicando, assim, a existência desse quarto aspecto na Nova Ordem.
Por outro lado, sugere-se que esse movimento de expansão encontra uma tensão entre a
213 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Direito Interinstitucional da Universidade do Vale dos Sinos (UNISI-
NOS). Mestre em Direito Internacional Contemporâneo pela UFMG. Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN - Centro
de Estudos em Direito Internacional. Graduado em Direito pela Faculdades Integradas Pitágoras (FIP). Bolsista do PROEX/
CAPES. Membro do Grupo de Estudos Culturas Jurídicas Comparadas, Internacionalização do Direito e Sistemas de Justiça:
atores, fatores e processos entre mundialização e cosmopolitismo jurídico, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – CCUL-
TIS (2020). Membro do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – NDH (2020). Advogado.
E-mail: gpmdamasceno@hotmail.com.
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214 “A interculturalidade representa uma lógica, não simplesmente um discurso, construída a partir da particularidade da
diferença. Uma diferença, na terminologia de Mignolo, que é colonial, que é consequência da subalternização passada e
presente dos povos, línguas e saberes. Essa lógica, como parte da diferença colonial e, mais ainda, a partir de uma posição
de exterioridade, não se fixa nela, mas trabalha para transgredir as fronteiras do hegemônico, do interno e do subalterni-
zado. Em outras palavras, a lógica da interculturalidade compromete um conhecimento e pensamento que não está isolado
dos paradigmas ou estruturas dominantes; por necessidade (e como resultado do processo de colonialidade) esta lógica
“conhece” esses paradigmas e estruturas. E é por meio desse conhecimento que um ‘outro’ conhecimento é gerado. Um ‘ou-
tro’ pensamento que orienta o programa do movimento nas esferas política, social e cultural, ao mesmo tempo que opera
afetando (e descolonizando) as estruturas e paradigmas dominantes e a padronização cultural que constrói o conhecimento
‘universal’ do Ocidente (tradução nossa)” (WALSH, 2007, p. 51).
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(1) entender, desconstruir e desvelar os usos do direito internacional como um meio para a
criação e perpetuação de uma hierarquia racializada de normas e instituições internacionais que
subordinam não-europeus a europeus; (2) construir e apresentar um sistema jurídico alternativo
para a governança internacional; (3) erradicar, por meios do estudo detalhado, de políticas publicas
e da política, as condições de subdesenvolvimento no terceiro mundo (GALINDO, 2013, p. 51).
A discussão realizada irá trazer à tona a proposta de um quarto aspecto da Nova Ordem
Internacional, que não fora tratada inicialmente por Silva (2018): a humanização do direito internacional.
Esta proposta ampliará os campos do diálogo com o cosmopolitismo subalterno, que consiste em um
“(...) vasto conjunto de redes, iniciativas, organizações e movimentos que lutam contra a exclusão
económica, social, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global,
conhecido como globalização neoliberal (...)” (SANTOS, 2014, p. 41).
A interlocução entre os autores dos respectivos pensamentos será de fundamental importância
e trará maior clareza e diferentes perspectivas de como a colonialidade e a imperialidade permeiam
a Nova Ordem Internacional.
Esta rejeição ao reformismo liberal vem sendo implementada atualmente nos Estados Unidos sob
o rótulo do Contrato com a América, ao mesmo tempo em que é enfiada goela abaixo em todos
os países do mundo pelos ofícios do FMI. É provável que estas políticas abertamente reacionárias
incitem uma reversão política nos Estados Unidos, como já tem acontecido na Europa, porque
elas, longe de melhorarem, pioram a situação econômica da maioria da população no curto prazo.
Mas essa reversão não se traduzirá na volta à crença no reformismo liberal. Ela mostrará apenas
que uma doutrina que combina uma fingida adulação ao mercado com leis contra os pobres e
estrangeiros – e não é outra coisa o que vem sendo impingido pelos reacionários revigorados –
não pode oferecer uma alterativa viável às promessas não cumpridas do reformismo. Seja como
for, minha argumentação não é a deles. Minha perspectiva é a daqueles que sustentam o que eu
chamo (...) de “modernidade da libertação”. Creio que necessitamos ponderar sobre a história
do liberalismo para ver o que podemos salvar da destruição e como podemos lutar, nas difíceis
condições e com o legado ambíguo que ele deixou para o mundo (WALLERSTEIN, 2002, p. 11).
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enquanto era atacado dentro de seu próprio território pelo vírus de Anthrax, disseminado através de
cartas. Em contrapartida, objetivando o combate ao terrorismo, os EUA invadiram a privacidade de
seus cidadãos e estrangeiros em seu território, violando sigilo postal e telefônico. Outros atentados
terroristas aconteceram em 2004 em Madri, resultando em 190 mortes (SILVA, 2018).
Já em 2007, ocorreu a chamada Crise Sistêmica Global, que contagiou os mercados desenvolvidos
a partir da explosão da bolha norte-americana e a queda do tesouro americano, não podendo
esquecer a quebra imobiliária americana, britânica, francesa e também em Dubai (2009), alastrando,
posteriormente, aos demais setores.
A Crise Sistêmica Global traz de volta e questiona o discurso do “fim da história”, com o suposto
triunfo do modelo neoliberal, pois, a partir desses acontecimentos, novas temáticas surgem, como
o aquecimento global, as fontes de energia renováveis, os questionamentos quanto à alimentação,
a globalização das epidemias e muitas outras – reflexo da crescente mídia social internacional
(FERNÁNDEZ, 2018), o que tende a confirmar o pensamento de Wallerstein (2002), que caracterizou
este discurso como uma confusão ideológica e um otimismo generalizado, precoce e ingênuo.
O aspecto político da Nova Ordem Internacional tem colocado ainda mais em evidência que o
liberalismo é uma teoria que desconsidera fatores determinantes da pobreza e das desigualdades
sociais (CULLETON, BRAGATO, 2015).
Quanto ao aspecto econômico, Silva (2018) demonstra que a globalização, em tese, traria uma
liberdade comercial e evolucionária dos Estados, fazendo com que os meios de comunicação, a indústria,
a agropecuária e outros setores que geram riquezas atingissem um nível de crescimento aceitável para
o desenvolvimento econômico com o mínimo de impacto ambiental; no entanto, a globalização tem se
caracterizado como uma imposição de forma quase imperceptível da hegemonia ideológica das elites.
Para o Terceiro Mundo, a globalização significou o domínio das políticas econômicas neoliberais,
o Consenso de Washington, promovendo a privatização e a liberalização; essas políticas foram
vigorosamente promovidas pelas três principais instituições econômicas internacionais, a Organização
Mundial do Comércio – OMC, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI (ANGHIE, 2004).
Esta globalização foi acompanhada por uma série de iniciativas empreendidas pelo direito
internacional e por instituições que visavam trazer a “boa governança”, a criação de instituições
políticas e a formulação de princípios apropriados para a governança de um mundo globalizado.
Conforme aponta Anghie (2004), o FMI e o Banco Mundial, as duas principais instituições financeiras
internacionais (IFIs) do mundo, usam o conceito de governança para expandir suas atividades,
exercendo um enorme poder sobre o funcionamento do sistema financeiro internacional, conforme
se reflete no fato de que metade da população mundial e dois terços de seus governos estarem
vinculados às políticas que prescrevem.
Neste sentido, Boscatto (2020) entende que os ideais de desenvolvimento conjeturados através
do crescimento econômico por meio de investimento estatal, urbanização, abundância da mão-de-
obra barata e iniciativa privada propostos pelos Estados de primeiro mundo pós-1945 resultaram,
por um lado, em uma estrutura econômica de Estados em uma economia mundial dominada pelas
grandes empresas transnacionais ocidentais; por outro lado, gerou-se uma relação assimétrica entre
empresas transnacionais e direitos humanos.
Bederman (2008) afirma que as empresas transnacionais são a manifestação não governamental
do mercado-estado. Essas entidades cresceram tanto em número quanto em influência ao longo do
século passado, em parte porque todo domínio do comércio (incluindo todo o comércio de bens
e serviços) se tornou globalizado, permitindo que muitos conglomerados transnacionais possuam
ganhos anuais superiores ao PIB de muitos Estados (OXFAM, 2018), começando a trazer modificações
no próprio Direito Internacional. As empresas transnacionais passaram a atuar de forma mais intensa
nas configurações tradicionais de Direito Internacional, tais como negociações de tratados e instituições
internacionais, mas também passam a criar normas internacionais vinculativas completamente fora
dos mecanismos habituais para a elaboração de normas internacionais.
Podemos observar grandes empresas no âmbito internacional que se instauram em todas as
partes do globo e acabam por ditar normas de conduta, comercialização, moda, impondo padrões
que, de forma sistêmica, são absorvidos pela população local e mundial. Há, de uma maneira geral,
uma globalização corporativa com o fortalecimento de empresas transnacionais que contrapõem
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as vontades dos Estados-Nação, não só pela capacidade simultânea de operar em vários países ao
mesmo tempo, mas também pela sua crescente interação com a elite governamental.
Por fim, quanto ao aspecto comercial, Silva (2018) aponta para o surgimento de blocos regionais
com liberalismo comercial intrablocos levam a um clima de guerra comercial quando disputam
mercados, principalmente o do BRICS, por se tratarem de Estados de extensão territorial considerável,
de grande população e grandes mercados consumidores em potencial. Além da capacidade de
fornecimento de matéria-prima a baixo custo, são Estados abertos ao mercado internacional.
Assim, em todos os três aspectos trazidos por Silva (2018) podemos identificar o fortalecimento
das instituições internacionais, estatais ou não, modificando estruturalmente a Sociedade Internacional
até então vigente. As relações internacionais, que foram absolutamente concentradas na figura do
Estado soberano, passam a conviver em um cenário que contém novos atores, lógicas, racionalidades,
dinâmicas e procedimentos que se dialogam e extrapolam as fronteiras estatais.
Enquanto até o século XIX não se questionava a exclusividade dos Estados na composição da
Sociedade Internacional, reconheceu-se que determinados “fatores” não estatais, como as Organizações
Internacionais e o Indivíduo, emergiam como detentores de direitos e deveres internacionais, exigindo
uma modificação nessa estrutura (WHEATLEY, 2017).
Os Estados ainda são considerados os únicos dotados de soberania, todavia não é mais necessário
invocar diretamente a soberania para reivindicar personalidade jurídica internacional215, havendo a
consagração das Organizações Internacionais e do Indivíduo como sujeitos de Direito Internacional216.
E mais, contemporaneamente, novos atores internacionais217 que, mesmo sem possuir
personalidade jurídica internacional, cada vez mais possuem poder de influenciar o meio internacional
(SILVA, 2018), havendo uma ampla inter-relação de diversos desses atores, verificada na intensificação
das relações transnacionais, seja mediante práticas estatais, práticas capitalistas globais ou até mesmo
nas próprias relações sociais e culturais entre os povos.
Neste sentido, é crescente os expoentes de uma teoria descolonial, que, ao analisar esses
fenômenos criticamente, entende que por trás de uma agenda dita desenvolvimentista de caráter
neoliberal, há uma internacionalização de modelos políticos-institucionais e jurídico-constitucionais,
com baixa densidade democrática que nem sempre tem obtido os resultados esperados, uma vez que
consagram um modelo evidentemente incompatíveis com a realidade institucional e constitucional
regional de desenvolvimentismo descolonial (LEITÃO, 2019).
A descolonialidade é uma categoria que surgiu dos pensamentos de Quijano, que desenvolveu
a colonialidade de poder, e de Dussel, iniciando os estudos sobre trans-modernidade, que é um
convite a pensar a modernidade e colonialidade de forma avaliativa (BALLESTRIN, 2013). É contrária
às dominações de poder impostas pela organização de Sistema Mundo Global, que valoriza o que é
produzido no ocidente, pelo homem, branco, europeu.
A descolonialidade é, pois, um termo que se relaciona com a resistência de um movimento
teórico e prático. Além disso, é contra o pensamento de hegemonia do conhecimento moderno,
ou seja, se projeta sobre movimentos sociais de resistência produzidos no contexto colonial, pois
acredita que os saberes hegemônicos ocidentais não foram os únicos produzidos, e também não
deveriam ser os únicos validados (BRAGATO, 2014).
Ademais, Ballestrin (2017) sugere que para se falar, na contemporaneidade, em colonialidade
global, não se pode suprimir a imperialidade global. Se por um lado o colonialismo tem por consequência
a colonialidade, o imperialismo tem por consequência a imperialidade.
Neste sentido, Hannah Arendt (1989) afirma que o imperialismo surgiu quando a burguesia,
classe detentora da produção capitalista, deixa de considerar as fronteiras nacionais como barreiras
para sua expansão econômica, introduzindo-se na política por necessidade econômica e impondo
215 Entende-se por personalidade jurídica internacional a aptidão para ser titular de direitos e deveres na Sociedade Internacio-
nal; e, por capacidade jurídica internacional, a aptidão para exercer esses direitos e deveres por si mesmo (TRINDADE, 2015).
216 Em opinião consultiva, a Corte Internacional de Justiça afirmou que os sujeitos de direito não são necessariamente idênti-
cos no tocante à sua natureza ou extensão de seus direitos, bem como que a natureza do sujeito dependerá das necessidades
da Sociedade em que está inserido (SILVA, 2018).
217 Barros-Platiau (2001) compreende que atores internacionais não são sujeitos de Direito Internacional, mas, por outro
lado, entende-se que os sujeitos de Direito Internacional não deixam de ser também atores. Contudo são atores dotados de
personalidade jurídica internacional.
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aos governos uma política expansionista como o objetivo final da política externa. Ao contrário do
que ocorre no colonialismo clássico, não há um laço jurídico-administrativo de metrópole-colônia, o
Estado dominado continua com seu próprio ordenamento jurídico, todavia, apesar de permanecerem
as instituições nacionais separadas da administração colonial, lhe é permitida o exercício de controle.
Desta forma, entender o imperialismo permite verificar que a imperialidade e o encontro colonial
constituíram o Direito Internacional como o conhecemos na contemporaneidade. As categorias chaves
do direito internacional, como a soberania, surgiram para dar conta de situações que se estruturaram
com ocasião do imperialismo e que permitiram seu avanço (ESLAVA; OBREGÓN; URUEÑA, 2016).
Por outro lado, essas potências necessitam dos Estados do Sul Global, pois sem a exploração,
não há possibilidade de manter os seus privilégios, nem o regime econômico capitalista que adotam.
Sem colonialidade e imperialidade, o capitalismo não sobrevive.
Assim como se verá a partir do próximo subtópico, os pensadores descoloniais fornecem a
necessária compreensão do fenômeno da internacionalização dos Direitos Humanos, que vem a ser
um fator essencial para o novo entendimento sobre a Nova Ordem Internacional, pois denunciam
que o triunfo da visão hegemônica eurocêntrica de Direitos Humanos é demonstrado pelos próprios
eventos inaugurais da positivação desses direitos: a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 e a
Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Essas declarações agregam ideais
iluministas, reconhecendo uma igualdade formal, e privilegiam os direitos à liberdade, à propriedade,
à segurança e a resistência à opressão; articulam-se em torno da ideia de sujeito racional e da
viabilização do projeto liberal-burguês de sociedade (BRAGATO, 2014). Dessarte, o que se verifica
é que o discurso dos Direitos Humanos não é humanitário, mas, sim, humanizador, uma vez que
as ações desses direitos selecionam os afortunados e, consequentemente, definem a humanidade
do homem. Essa concepção prevalente permite a manutenção de estruturas sociais desiguais, mas
também as faz surgirem (BRAGATO; ROMAGUERA; TEIXEIRA, 2014).
No final da década de 1990, Trindade (1997) escreveu o artigo denominado “Dilemas e desafios da
Proteção Internacional dos Direitos Humanos no limiar do século XXI”, no qual realizou um balanço dos
avanços conceituais e práticos e das limitações existentes, tanto de ordem legal quanto política, à proteção
universal dos Direitos Humanos, focando na construção progressiva dos tratados internacionais que
abrangem essa temática e o papel das conferências e das cortes regionais de defesa dos Direitos Humanos.
O autor demonstrou que a experiência acumulada nessa área se consubstanciou em um
claro progresso, sobretudo na jurisdicionalização da proteção internacional dos Direitos Humanos,
percebendo, todavia, no final do milênio, que ainda haveria um longo caminho a se percorrer, pois os
obstáculos que se enfrentariam à luta em prol da proteção internacional dos Direitos Humanos seriam
um trabalho que simplesmente não teria fim, e esperava que, no decorrer do século XXI, as gerações
vindouras não hesitariam em abraçar essa causa (TRINDADE, 1997).
Um ponto interessante é que, naquele mesmo ano, Santos (1997) também publicou um artigo
sobre o tema, “Uma Concepção Multilateral dos Direitos Humanos”, no qual afirmava que os Direitos
Humanos têm se tornado um discurso político progressista, utilizado em nome dos objetivos do
desenvolvimento, revolucionários e emancipatórios.
Entendendo que, no final da década de 1990, já se ouvia falar acerca de sociedade civil global,
governo global e equidade global, Santos (1997) aponta que, apesar do reconhecimento político
mundial dos Direitos Humanos, o desafio que surgia era o de tornar a política dos Direitos Humanos
simultaneamente global e cultural. Assim compreende:
O discurso de globalização é uma história de vencedor contada por vencedor, pelo qual determinado
local ou entidade consegue estender sua influência a nível global onde designa como local outra
condição social ou entidade rival. Na verdade, a globalização não existe de fato é apenas uma
questão de localização, mas, o termo é usado para privilegiar a história do mundo na visão dos
vencedores. Por exemplo ao globalizarmos uma língua (inglês) acabamos por localizar outra
também globalizada (francesa). (SANTOS, 1997, p. 108).
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As constatações de Santos são também apontadas por Piovesan (2019) que, prontamente,
demonstra que há intenso debate entre universalistas e os relativistas culturais, questionando se as
normas de Direitos Humanos podem ter um sentido universal ou se são culturalmente relativas.
Tentando encontrar resposta para esse questionamento, Bragato (2014) afirma que a concepção
tradicional acerca dos Direitos Humanos remonta às políticas liberais da Modernidade europeia, que,
após terem se desenvolvido e amadurecido, foram exportadas ou transplantadas para o resto do
mundo, culminando, dessa forma, em um discurso hegemônico eurocêntrico218 de Direitos Humanos.
Atualizando o debate entre os dois textos que deram início a este tópico para os dias atuais,
Bragato, Barreto e Silveira Filho (2017) afirmam que, embora as ideias pró multiculturalismo possuam
elementos positivos, ainda não discutem a individualidade e a racionalidade moderna, responsáveis
pela produção de uma cultura hegemônica ocidental, e, por isso, apenas defende a diversidade cultural,
sendo insuficiente para representar as realidades Latinas e do Caribe. A causa disso é que, apesar de
o discurso multiculturalista enaltecer os direitos humanos, sob uma perspectiva de heterogeneidade
cultural, ele não se manifesta sobre as relações de poder e de dominação que as perpassa (BRAGATO;
BARRETO; SILVEIRA FILHO, 2017).
Superando o multiculturalismo, surge a ideia de um diálogo entre culturas que proporciona a
construção de um mundo pluriversal: a interculturalidade, trazendo à tona a descolonialidade, na
medida em que combate as heranças coloniais enraizadas, ligadas ao pensamento de controle social
sobre raças e ao capitalismo mundial, como consequência dessa dominação (BRAGATO, 2017).
Assim, para que os grupos marginalizados e estigmatizados da América Latina possam ser ouvi-
dos, é imprescindível que uma nova cultura de direitos humanos seja pensada. A interculturalidade é,
portanto, uma forma de promover a circulação de ideias e de relatos que construirá uma visão de mundo
diversificada que se influencia e se transforma, por meio da amplificação da tecnologia, beneficiando o
diálogo, enfrentando a marginalização e o desprezo provocados pelo eurocentrismo (BRAGATO, 2017).
A humanização do Direito Internacional não pode repetir a prática ocidental e imperialista de
exclusão e destruição, devendo, pois, objetivar a descolonização dos Direitos Humanos, o que não
resulta, conforme aponta Barreto (2018), na exclusão das tradições ocidentais e norte-americanas
da história dos direitos humanos. Em realidade, trata-se de criar as condições necessárias para um
diálogo entre as historiografias eurocêntricas e do Terceiro Mundo, garantindo-se um maior respeito
pelos Direitos Humanos e evitando a tendência de construir uma compreensão autocentrada em uma
única visão dominante.
Na prática, as reflexões trazidas por esses autores podem ser denunciadas em diversos
acontecimentos após 1989, marco que consolida a Nova Ordem Internacional, vislumbrando-se a
afirmação de Santos (2013) de que a luta pelos Direitos Humanos no século XXI enfrenta autoritarismos que
são ajustados aos regimes democráticos. O principal ponto denunciante a ser abordado, que acreditamos
ser de fundamental importância para se compreender a humanização do Direito Internacional, conforme
aponta Barreto (2018) são as lutas contemporâneas pelos Direitos Humanos das pessoas e dos povos
contra a violência dos agentes do neocolonialismo – como as empresas transnacionais e instituições
financeiras internacionais –, que podem ser fortalecidas por uma história que retrata as vicissitudes dos
direitos naturais e humanos, sustentando e denunciando o avanço do imperialismo moderno. Saldanha
(2020) ressalta que tais problemas não serão solucionados em atividades isolacionistas dos Estado a
partir de sua pretensa soberania solitária, uma vez que modificar o paradigma da soberania se trata de
uma exigência dos problemas advindos das interdependências globais.
O que se percebe, neste sentido, é que os esforços e a atuação dos órgãos internacionais de
supervisão nos planos global e regional buscam a reparação de danos denunciados e comprovados,
bem como a eliminação das práticas administrativas violatórias dos Direitos Humanos, alterando
medidas legislativas impugnadas, adotando programas educativos e outras medidas positivas por
parte dos Estados. Em um plano mais amplo, o sistema onusiano toma à frente. No plano regional essa
218 “As expressões ‘europeu’ e ‘eurocentrismo’ não estão atreladas ao aspecto geográfico, mas, possuem acepção política,
o que nos remete a forma de dominação imperialista pautada nos ideais modernos. Assim como, o ‘ocidente’, pois, nem
todos os países deste espaço geográfico representam a metódica colonialista, em absoluto. Por exemplo, nesses termos,
são países aderentes dessa concepção de mundo, a Nova Zelândia e Austrália, bem como ausentes dela, Cuba e Jamaica”
(BRAGATO; ROMAGUERA; TEIXEIRA, 2014, p. 6).
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proteção é exercida, na Europa, pela Corte Europeia de Direitos Humanos; no continente americano,
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos;
e, no continente africano, pela Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Neste sentido,
Saldanha (2020) reafirma que as instituições internacionais com competência para decidir sobre temas
concorrentemente aos Estados, como é o caso da proteção dos Direitos Humanos, fez crescer o impacto
do princípio da subsidiariedade, sendo, portanto, que os Estados experimentam a transformação de
uma soberania solitária em uma soberania solidária.
Assim, é preciso atenção para que este processo de transformação da soberania não permita a
perpetuação da colonialidade e da imperialidade, do contrário, a humanização do Direito Internacional
não surtirá efeitos aos subalternizados, que continuarão invisibilizados, calados e explorados.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Duas grandes conclusões podem ser averiguadas através da compreensão das expressões
fornecidas Sul Global da Nova Ordem Internacional. A primeira delas é que é possível pensar em novos
modelos políticos, econômicos e das relações de comércio internacional, devendo estes aspectos
serem descolonizados.
A segunda conclusão é que um dos grandes desafios dessa Nova Ordem, no que tange
à humanização do Direito Internacional, trata não apenas da propagação e positivação dos
Direitos Humanos, mas também do respeito ou desrespeito à interculturalidade. Logo, a partir
dos desdobramentos da descolonialidade e da interculturalidade, o trabalho de internacionalizar
os direitos humanos será remodelado, com o intuito de abranger e respeitar as incomensuráveis
divergências entre os indivíduos. Consequentemente, haverá a sobrepujança da luta e da valorização
dos pensamentos e histórias dos povos não ocidentais, em detrimento da decadência do discurso
dominante da modernidade europeia.
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INTRODUÇÃO
O trabalho é conhecido como valor e atributo que dignifica o homem. Pode ser analisado também
tanto sob o viés do direito, enquanto um direito fundamental e humano, como do dever social que
cada ser humano possui. E enquanto um direito fundamental e humano, todos possuem esse direito
assegurado, sejam as pessoas nacionais, estrangeiras/imigrantes.
Aliás, no que tange à imigração, tem-se que um dos grandes propulsores do fluxo migratório é a
busca por trabalho e vida digna. Pois é através do trabalho que muitas outras necessidades essenciais
à concretização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana são atendidas. Diante dessa realidade,
questiona-se em que medida os imigrantes possuem acesso ao mercado de trabalho formal no Brasil?
Diante dessa problemática, o trabalho se propõe a analisar o acesso dos imigrantes ao mercado de
trabalho formal no Brasil.
Diante desse questionamento, o presente trabalho cuidará de analisar em que medida os
imigrantes que vivem no Brasil conseguem ter acesso ao mercado de trabalho formal, a fim de obter
a dignidade almejada e assegurada por Lei e tratados a todos. Para tanto, o trabalho utilizou como
método de abordagem o dedutivo, uma vez que parte de uma análise geral, cuidando de tratar
do direito ao trabalho enquanto um direito humano, para posteriormente, tratar da situação dos
imigrantes frente ao acesso ao mercado de trabalho formal. Enquanto método de procedimento foi
utilizado o monográfico e estruturalista dado que faz uma análise a partir de uma abordagem em
abstrato, a fim de verificar sua possível aplicação a partir da estrutura social, retornando ao concreto,
no que tange a situação dos imigrantes no mercado de trabalho no Brasil. Ademais, a técnica de
pesquisa empregada foi a bibliográfica, com a utilização de livros, artigos conceituados e dissertações.
Outrossim, resta destacar que o trabalho descreve uma temática que apresenta grande relevância
jurídica, acadêmica e social, uma vez que, o fluxo migratório passa a interferir na sociedade, refletindo
219 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil
(CAPES)- Código de Financiamento 001.
220 Autora. Mestranda em Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES. Graduada pela Faculdade
Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Endereço eletrônico: eduardaparecida@hotmail.com.
221 Orientadora. Doutora em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Mestre em
Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Professora do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). isabelcsdg@gmail.com.
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e causando efeitos no campo jurídico. Sendo assim, se faz necessária a discussão da temática em
estudo com o intuito de que cada vez mais os imigrantes sejam acolhidos pela sociedade e pelo
mercado de trabalho formal no país em que escolheram viver. Ainda, cumpre referir que para um
melhor desenvolvimento do presente trabalho, ele foi dividido em dois capítulos, sendo que o primeiro
deles abordou o direito ao trabalho à luz dos direitos humanos e o segundo, por sua vez, abordou a
situação dos imigrantes e o seu acesso ao mercado de trabalho.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e diante das consequências deixadas por ela, surgiu a
necessidade internacional de tutelar os seres humanos em qualquer lugar do mundo. Dessa maneira,
começou a surgir no âmbito internacional o Direito Internacional dos Direitos Humanos. O que significa
dizer que todo ser humano passou a ser sujeito internacional, já que, até então, apenas os estados
possuíam esse status. Dessa maneira, houve em 1945 o surgimento da Organização das Nações
Unidas (ONU), possuindo como objetivos primários a mantença da paz e a proteção da dignidade da
pessoa humana (GUERRA, 2017, p.106).
A partir de então, documentos internacionais foram criados com o objetivo de tutelar o homem.
Dessa necessidade, foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 1948. Essa
declaração é o marco da proteção dos Direitos Humanos em âmbito universal. Ao lado dela, o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais consistem na Carta Internacional dos Direitos Humanos. Assim, são documentos
importantíssimos no que se refere à temática (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2019, sp.).
Todos aqueles direitos cuja titularidade pertencem ao homem, situam-se no rol dos Direitos
Humanos. Tal afirmativa, mostra-se como correta tendo como fundamento a mais simples conceituação
dos Direitos Humanos. Apesar de não existir uma conceituação exata, pode-se dizer que existem,
ainda, outras duas formas reconhecidas de conceituar tais direitos. A segunda delas é definida como
“formal” e, sugere que direitos humanos são todos aqueles direitos destinados aos homens, sem os
quais torna-se impossível viver, pois são tidos como indisponíveis e, por conseguinte, ninguém pode
renuncia-los ou afastar sua incidência (RAMOS, 2016, p. 39).
Por fim, destaca-se uma terceira maneira de conceituar os direitos humanos, o que se tem denominado
de definição finalística, isso porque, leva em conta a essencialidade dos direitos humanos para a obtenção
de uma vida minimamente digna (RAMOS, 2016, p. 40). Em razão disso, é que não há um rol taxativo
dos direitos humanos, visto que a sociedade evoluiu e com essa evolução, outras necessidades passam a
surgir. Assim, novos Direitos Humanos são passíveis de existir (RAMOS, 2018, p. 30).
No que refere ao rol de direitos, entre eles situa-se o direito humano ao trabalho, previsto de
maneira expressa no art. XXIII da Declaração Universal de Direitos Humanos, conforme segue:
Artigo XXIII 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições
justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer
distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalha tem
direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma
existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros
meios de proteção social (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).
Como visto, a proteção ao trabalho engloba tanto o seu acesso, quanto à dignidade que o envolve
em sua maior extensão, isso no que se refere à dignidade do próprio trabalho quanto a que será propicia-
da por ele. Ademais, em que pese o direito ao trabalho seja um direito humano e por isso, tutelado pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, não se pode esquecer da proteção estabelecida pela Organi-
zação Internacional do Trabalho (OIT) anterior aquela, uma vez que criada em 1919, após a Primeira Guer-
ra Mundial (RAMOS, 2018, p. 49). Porém, no ano de 1948, a OIT tornou-se uma agência especializada da
ONU e dela decorrem, ainda hoje, normas importantes do direito do trabalho (RAMOS, 2016, p. 61).
Em razão da importância de tal direito, esse encontra-se positivado internamente na Constituição
Federal, estando resguardado no rol dos direitos fundamentais sociais. Mas, além de prever o direito
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ao trabalho, a Carta Magna estabelece outras prerrogativas que garantem a dignidade do trabalhador,
o que vem a ser melhor desbravado pela legislação infraconstitucional (BRASIL, 1998).
Ainda, no que tange ao direito ao trabalho e sua relação com os Direitos Humanos, cumpre
destacar a sustentação do autor Maurício Coutinho Delgado (2016, p.85/86), ao mencionar que o
direito ao trabalho e o ramo jurídico decorrente dele, correspondem “[...] à dimensão social mais
significativa dos direitos humanos, ao lado do direito previdenciário [...]”. Isso porque, é através desse
direito e ramo que as pessoas conseguem se inserir no sistema socioeconômico e, por conseguinte,
contemplar um gama de outros direitos e necessidades humanas.
O trabalho é tido, indubitavelmente, como valor humano, capaz de modificar tanto o sujeito
quanto a sociedade em que o trabalhador está inserido, pois através dele é possível atingir a dignidade
necessária a toda vida humana (DELGADO, 2012, p. 309). É por isso que, em umas das três maneiras
de conceituar os direitos humanos, tem-se a classificação finalística ou teleológica, em que se leva
em consideração a finalidade de tal direito em busca da dignidade da pessoa humana, conforme visto
no início desse capítulo. E o direito ao trabalho, é uma excelente forma de exemplificar os direitos
humanos sob o viés teleológico.
Felice Bataglia, em sua obra Filosofia do trabalho, citado por Delgado (2012, p. 311), refere que
o conceito de trabalho é complexo e amplo, notadamente, por se enquadrar como objeto de estudo
de diversas ciências e por influenciar em diversos setores. Além disso, salienta o autor, que o trabalho
é responsável por formar identidade, seja no seu aspecto individual ou de socialização, pois, além de
tudo ele é responsável por grande integração social.
Nesse sentido, o trabalho pode ser analisado sob o viés do dever social, pois, cada indivíduo,
via de regra, não consegue produzir tudo o que necessita para viver. Dessa maneira, faz-se necessário
uma divisão de serviços e com isso, o trabalho torna-se um dever social de todos em proveito do
bem comum e de um melhor desenvolvimento da sociedade (SANTIAGO, 2015, p.216). Mas assim
como o trabalho é visto como valor/dever e como agente que forma a identidade social do homem,
ele também pode ser causador de exclusão e desastre quando direitos mínimos correlatos ao trabalho
não são observados (DELGADO, 2012, p. 313). Justamente porque há outros direitos passam a ser
violados ou inacessíveis sem um trabalho digno.
É por isso que diversos autores discorrem que o Direito do Trabalho é um dos mais importantes
meios de concretizar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, conforme ilustrado pela autora abaixo:
De acordo com o texto retro, justifica-se a tutela dada ao direito ao trabalho, por esse ser tido
como agente responsável por transformação individual, familiar e social. É um direito, que quando
contemplado e respeitado, proporciona o alcance a diversos outros direitos, e ao fim, à dignidade
da pessoa humana. Dessa forma, torna-se inquestionável a relevância do direito ao trabalho frente
ao princípio da dignidade da pessoa humana. Motivo pelo qual, tal direito recebe proteção jurídica
internacional e nacional, conforme demonstrado.
Assim, todo sujeito, independentemente de nacionalidade ou localização de mundo tem esse
direito assegurado. Contudo, tem-se vivenciado em diversos países crises econômicas, políticas e
etc, que vem a desembocar em milhares de desempregos e situações de vulnerabilidades. Inclusive,
a busca por trabalho e consequentemente por uma vida com dignidade é o motivo mais recorrente
para que pessoas deixem seus países e tornem-se imigrantes em outros destinos.
Por essa razão, questiona-se em que medida os imigrantes conseguem ter acesso ao mercado
de trabalho, propiciando uma mudança de vida para si e sua família, quando se trata de imigrantes
que passam a viver no Brasil? A partir desse questionamento, no segundo capítulo, será abordada a
questão das imigrações e do acesso ao mercado de trabalho formal de imigrantes que vivem no Brasil.
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Foi na metade do século XIX que as migrações passaram ocorrer de forma mais frequente em
todo o globo, inclusive alguns autores defendem que a partir de então se passou a viver a era da
migração (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2015, p. 34). Nesse sentido, é considerado imigrante
todo aquele que deixa seu país para viver em outro por diversas razões, mas notadamente, denota-
se a busca por trabalho e uma realidade financeira diferente para si e sua família. O que difere os
imigrantes dos refugiados, é o motivo que os retirou de seus país, visto que esses partem por um
motivo mais grave, como em razão de guerras civis, por exemplo (BEMARTINI, 2010, p, 51).
Mas obviamente, os refugiados são uma espécie de imigrantes. Ao lado do refúgio existem
diversas outras razões que podem levar as pessoas a sair de seu país, que não a busca por um trabalho.
Portanto, não se pode resumir o fluxo migratório à busca por labor, contudo, é notável que essa é a
razão que mais recorre no contexto migratório (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2015, p. 35).
Apesar desse referencial teórico conceitual ser importante para fins didáticos, Mezzadra (2015,
p. 12), aponta que é importante analisar e realizar uma discussão crítica a respeito da linguagem,
taxonomias e das categorias que permeiam o assunto de migrações. Isso devido ao fato de que,
existem múltiplas experiências e realidades de migrações, tanto no que se refere ao status jurídico
quanto ao ingresso no mercado de trabalho.
A imigração se refere a “deslocamentos de pessoas no espaço geográfico, mas também em outros
espaços, como podem ser o social, o político, o econômico ou o cultural” (CAVALCANTI; OLIVEIRA;
TONHATI, 2015, p. 35). Mas mais importante do que observar o campo das migrações como esses
deslocamentos, é ver:
Portanto, o fenômeno migratório não se resumo a encaixar as realidades em conceitos, mas sim
em observar as diferentes realidades que compõem essa temática e principalmente reconhecer todas
as tensões e conflitos inerentes a essa realidade que compõem o migrante, enquanto o não sujeito,
o outro.
Assim, percebe-se com a ocorrência do fenômeno da migração todo um sistema sente os efeitos
dela. Por isso, inclusive, que há no âmbito internacional e nacional normas e programas referente às
imigrações e de amparo aos imigrantes. A despeito disso, existe a Lei nº 13.445 de 2017, denominada
Lei de Migrações, a qual já no seu art. 1º, inciso II, define que é imigrante todo aquele que mora ou
trabalha no Brasil de forma definitiva ou temporária (BRASIL, 2017).
O Brasil, sempre foi um país destino de muitos imigrantes. O quadro abaixo demonstra os
últimos dados oficiais do IBGE referentes aos anos de 2004 a 2009:
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Conforme visto, o número de imigrantes no Brasil sempre foi elevado e nos últimos anos esse
número tende a ter aumentado, principalmente em razão da evasão de venezuelanos que passaram a
viver no Brasil. Não há dados oficiais disponíveis atualizando o número de imigrantes que vivem no
país. Além disso, outro dado importante a ser destacado é referente ao número de desempregados
no Brasil que chegou a aproximadamente, 13,4 milhões, segundo dados fornecidos pelo IBGE em
fevereiro de 2019. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATISTICA, 2019, sp.).
Esse dado acaba por refletir também na realidade dos imigrantes que atualmente buscam viver
no Brasil, uma vez que o emprego é tido como marco inicial para quem busca mudar de realidade e
está em busca de uma vida digna, conforme exposto no capítulo anterior. Ocorre que, nem sempre
a realidade se modifica tão rápido e muitos imigrantes passam por situações difíceis, principalmente
em um momento inicial.
Nessa realidade de migrações, existe muito preconceito e xenofobia sendo proferido em face
desse grupo de pessoas, de modo que são vistos por muitos como sujeitos que vieram para o Brasil
para retirar oportunidades dos brasileiros ou para causar transtornos, tendo os imigrantes que
vivenciar situações de preconceito, ao invés de gestos de acolhimento. Nesse sentido, ressalta-se
que dentro do próprio grupo de imigrantes existe uma certa hierarquia, sendo ela determinada por
características físicas e pelo país de origem.
É justamente nesse sentido que Mezzadra (2015, p.22) faz uma crítica a cidadania, seguidamente
entendida enquanto um conceito de todo benéfico, mas que é responsável pela exclusão do outro,
do estrangeiro, do não sujeito, dado que a cidadania é quem organiza e permeia as taxonomias, as
nomenclaturas e as divisões epistêmicas das migrações. Por isso, além de problematizar os conceitos
inerentes às migrações é essencial verificar os efeitos e as consequências dessa cidadania.
Isso porque, o imigrante ele deixa de ter a cidadania reconhecida, seja porque ele saiu do seu país
de origem, seja porque ingressou em outro país em que é visto como o outro, o estrangeiro, aquele que
não possui cidadania e tampouco nacionalidade. Logo “O imigrante é aquele que realiza essa presença
estrangeira, e, correlativamente, o emigrante é aquele ausente que se encontra no estrangeiro” (SAYAD,
1998, p.268). Esse lugar do imigrante representa por si só, exclusão, preconceito e não pertencimento
a nenhuma ordem e nacionalidade. E isso reflete no dia a dia e nas oportunidades que se perdem.
O Brasil é um país que sempre teve um fluxo migratório significativo, e reconhece-se que soube
muito mais acolher aqueles imigrantes de origem alemã, italiana, por exemplo (BEMARTINI, 2010, p,
51). Reconhecendo a eles cidadania e direitos que são negados a tantos outros. E isso ocorre mesmo
com a existência da Lei nº 13.445/2017, a qual refere que aos migrantes são assegurados um rol
de direitos em igualdade, inclusive, aos nacionais. Entre esses direitos pode-se citar o direito à vida,
liberdades, serviços públicos, trabalho, educação e etc (BRASIL, 2017).
Acontece que, assim como diversas outras leis, apenas a previsão legal não é suficiente para garan-
tir esses direitos no plano fático. Pois, conforme já referido, muitos imigrantes passam por momentos
delicados e precários logo que chegam no país, dado que nesse momento inicial ainda não possuem em-
prego, moradia e consequentemente tantos outros direitos básicos não são observados (PENA, 2010, sp.).
Por essa e por todas as razões já expostas no decorrer desse texto, é que o direito ao trabalho
se faz tão importante e necessário. Ocorre que, muitas vezes os imigrantes necessitam recorrer
ao mercado de trabalho informal para conseguirem manter-se em seu novo país. Por isso, torna-se
recorrente noticias relatando que imigrantes trabalham como ambulantes, possuem trabalho sem
carteira assinadas, enfim, inclusos no mercado de trabalho informal (HUMANISTA, 2018, sp.).
Quanto ao acesso dos imigrantes ao trabalho formal, cumpre referir um dado importante, referente
ao período entre 2011 e 2013 que demonstrou um acréscimo de 50,9%de trabalhadores imigrantes que
conseguiram se inserir no mercado de trabalho formal. Sendo desse número de imigrantes, 70% deles
eram homens (CAVALCANTI; OLIVEIRA; TONHATI, 2015, p. 38). Posteriormente, em 2016 registrou-
se uma queda de 13% de imigrantes com trabalho formal em relação aos anos anteriores, conforme
dados fornecidos pelo Observatório da Migrações Internacionais. Esse resultado decorre de uma crise
econômica vivenciado no país a partir do ano de 2014 (AGÊNCIA BRASIL, 2017, sp).
Com base nos dados, é possível entender que atualmente os imigrantes também sofrem os
reflexos da crise econômica, motivo pelo qual o número de registros com trabalho formal caiu de forma
considerável. Sendo que isso decorre tanto dessa crise, quanto do próprio preconceito que rotula e
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reduz o ser humano em razão da sua condição. Nesse último caso, acredita-se que “os imigrantes estão
em pior situação no mercado de trabalho e são discriminados negativamente, dada a sua inserção em
trabalhos precários no setor periférico do mercado de trabalho segmentado” (VIELA, 2011, p. 89).
Essa realidade fica clara na citação abaixo:
Nesse sentido, vislumbra-se que os imigrantes além de enfrentarem o próprio déficit na oferta de
empregos, ainda precisam ultrapassar as barreiras do preconceito. Conforme destacado acima, nem todos
os imigrantes sofrem esse problema, sendo mais recorrente em face daqueles que são pardos, negros ou
de nacionalidades inferiorizadas aos olhos dos brasileiros. A partir do ano de 2010 tem-se registrado que o
Brasil passou a receber imigrantes em elevado grau de vulnerabilidade, de modo que esses necessitavam
ainda mais de proteção jurídica e auxílio do governo e sociedade. Mas é nesses casos em que xenofobia
mais acontece por questões de racismo e intolerância religiosa (FARAH, 2017, p. 19).
Dessa forma, entende-se que os imigrantes estão tendo acesso ao mercado de trabalho formal,
mas muitos ainda passam por situações de vulnerabilidade social e recorrem aos trabalhos informais.
Essa inclusão se dá em virtude de um amparo jurídico que os imigrantes passaram a receber,
notadamente porque o ser humano tornou-se um sujeito internacional, detentor de direitos humanos
em qualquer lugar do globo. Em contraponto, a exclusão ainda existe muito em razão do preconceito,
xenofobia, intolerância religiosa que ainda, infelizmente, atinge parcela dos imigrantes.
Sendo assim, denota-se um avanço, principalmente, entre os anos de 2010 e 2013, em que
houve um acréscimo considerável de imigrantes inseridos no mercado formal, mesmo que em anos
posteriores, esse número decaiu. Assim, observa-se uma preocupação em incluir essas pessoas na
sociedade, seja através de criações de normas nacionais de proteção quanto com o próprio fato social
de números que incluem o imigrante no trabalho formal, mas há sempre muito a evoluir quando se
fala de imigrantes e mercado de trabalho.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O status de sujeito internacional dado ao homem após a Segunda Guerra Mundial fez com que ele
fosse tutelado por um direito internacional, independentemente do local onde se encontrava, denominado
Direitos Humanos. Esses direitos objetivam garantir uma vida com dignidade, sendo reconhecido o
trabalho e o direito do trabalho como um dos ramos mais importantes a fim de alcançar tal objetivo.
Inclusive, a busca por trabalho e por mudança de vida é um dos motivos que mais leva as pessoas
a saírem de seus países e tornarem-se imigrantes aos olhos do país destino. O trabalho enquanto um
direito humano e fundamental é de titularidade de todos os humanos pelo simples fato de serem
humanos. Portanto, os imigrantes possuem tal direito resguardado, seja pelas normas internacionais
como a Declaração Universal de Direitos Humanos, como pelo amparo dado pela norma nacional
máxima, que se aplica também aos estrangeiros. Além disso, a Lei nº 13.445/2017 estabelece a
igualdade de direitos entre nacionais e imigrantes.
Nesse viés, tem-se mais que assegurado o direito ao trabalho no plano formal. Ocorre que, a
realidade do imigrante nem sempre tende de obter esse direito satisfeito. Muitos imigrantes passam
por dificuldades desde que chegam no país destino, uma vez que, nesse momento não possuem
emprego e tampouco moradia, assim, diversos outros direitos deixam de ser observados.
Além disso, muitos imigrantes precisam recorrer ao mercado de trabalho informal. Inclusive, muitos
deles passam a trabalhar vendendo mercadorias nas ruas, como ambulantes. No entanto, foi possível ob-
servar nos últimos anos (2010/2013) um acréscimo considerável dos imigrantes tendo acesso ao mercado
de trabalho formal. Infelizmente, nos anos seguintes os dados apontaram uma redução, muito em razão
da crise econômica e ao número de pessoas desempregadas no Brasil que, atualmente, é elevadíssimo.
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Ainda, é de consignar que muitos dos imigrantes, principalmente aqueles que recorrem ao Brasil
em decorrência de uma maior vulnerabilidade sofrem maiores ataques preconceituosos e xenofóbicos.
Dessa forma, além de enfrentar as dificuldades comuns de ter que se acostumar com uma nova cultura,
sociedade e a busca por reestruturação de vida, os imigrantes precisam ainda ultrapassar as barreiras
do preconceito, que acabam por rotular e reduzir essas pessoas pelo simples fato de serem imigrantes.
Desse modo, aqueles que realizam deslocamentos e passam pelos campos da migração, tem
com eles acompanhados rótulos e marcas de sujeitos não pertencentes à cidadania, à nacionalidade e
com isso, tornam-se aos olhos de muitos, o outro, o estrangeiro, aquele que não pertence a nenhuma
ordem. Questões que repercutem diretamente na realidade dessas pessoas, seja no acesso ao direito
ao trabalho, seja no acesso a outros direitos igualmente importantes. Por isso, há muito ainda a
evoluir no que se refere aos imigrantes e ao acesso ao mercado de trabalho formal para todos, não
somente para aqueles que o país aceita receber.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA BRASIL. Número de imigrantes com contrato de trabalho formal caiu 13% no
Brasil em 2016. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/
numero-de-imigrantes-com-contrato-formal-de-trabalho-caiu-13-no-brasil-em. Acesso em:
29.ago.2020.
CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Antonio Tadeu; TONHATI, Tânia (Orgs.) A Inserção dos Imigrantes
no Mercado de Trabalho Brasileiro. Cadernos OBMigra, Ed. Especial, Brasília, 2015.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 15ª ed. São Paulo: LTr. 2016.
FARAH, Paulo Daniel. Combates à xenofobia, ao racismo e à intolerância. IN: Revista USP. São
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GUERRA, SYDNEI. Direitos humanos: curso elementar. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA. Desemprego sobe para 12,7% com 13,4
milhões de pessoas em busca de trabalho. Disponível em:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/
agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/24283-desemprego-sobe-para-12-7-com-13-4-
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NAÇÕES UNIDAS BRASIL. A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
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RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 5ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação,
2018.
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 6ª
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SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Aids e o direito fundamental ao trabalho. In: Revista do Direito do
Trabalho. 2015.
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INTRODUÇÃO
222 Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Hu-
manos – da UNIJUÍ. Bolsista CAPES. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq: Direitos Humanos, Governança
e Democracia. Advogada (OAB/RS). E-mail: alineleves@hotmail.com;
223 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado em Direitos Humanos – da UNIJUÍ. Ba-
charela em Direito pela UNIJUÍ. Bolsista CAPES. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq: Direitos Humanos,
Governança e Democracia. E-mail: laura.marcht@hotmail.com;
224 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor dos Cursos de Graduação em Direito
e dos Programas de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNIJUÍ e da URI. Líder do Grupo de Pesquisa do
CNPq: Direitos Humanos, Governança e Democracia. E-mail: gilmarb@unijui.edu.br.
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moderna e anacrônica das fronteiras territoriais westfalianas que dividiram geopoliticamente o mundo
em Estados soberanos.
À vista disso, esse artigo tem o objetivo de analisar, mediante o emprego do método hipotético-
dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica, as características do terrorismo atual como uma
manifestação posterior a Segunda Guerra Mundial e adaptado à contemporaneidade. Justifica-se que
esse fenômeno se utiliza de uma forma de violência ilimitada, cruel e desumana, podendo acarretar
resultados de proporções inimagináveis. Assim, a possibilidade de compreensão do complexo
fenômeno do terrorismo atual implica, em um primeiro momento, no resgate dos principais aspectos
histórico-conceituais e sociológicos acerca dessa temática. Em seguida, exige a contextualização
dos pressupostos mais importantes do século XXI e a problematização do terrorismo na era global,
sobretudo, a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 (EUA), bem como a (re)definição e a
vinculação desse fenômeno com a fragilidade de alguns Estados-nação. Ainda, reivindica uma análise
dos desafios impostos pelo terrorismo, em âmbito jurídico internacional, à proteção dos direitos
humanos e aos instrumentos voltados para a resolução dos conflitos e para a construção de um
cenário de paz mundial duradoura por meio da atuação de novas instituições multilaterais. Por fim,
propõe o pacifismo jurídico de Luigi Ferrajoli para (re)pensar o fenômeno do terrorismo na nova
ordem global. Esse é o percurso estabelecido pelo presente artigo no seu desenvolvimento teórico.
O expressivo aumento da violência, das guerras e dos atos de terror, em geral, fazem parte dos
processos de barbarização que se manifestam através da convivência humana e que vêm adquirindo uma
força significativa no decorrer da história civilizacional. A natureza humana pautou-se sempre nas paixões
beligerantes que inseriam os homens em um contexto de selvageria, opondo-se à almejada sociabilidade.
Desse modo, verifica-se que as antigas civilizações viviam em um constante estado de natureza, ou seja,
de “guerra de todos contra todos” (HOBBES, 2019, p. 57), que era próprio de uma realidade conflituosa na
qual o ser humano revela-se enquanto uma espécie predatória que, de acordo com a metáfora de Plauto
reproduzida por Thomas Hobbes: “homo homini lupus” (“o homem é o lobo do homem”). Foi através da
institucionalização do Estado “Leviatã” como detentor do monopólio do uso da força que ocorreu, de
certo modo, um controle dos conflitos em âmbito interno. Externamente, pelo contrário, encontrava-se
uma condição de austeridade extrema, visto que inexistiam instituições capazes de mediar as relações
entre as nações. Consequentemente, o sistema de equilíbrio entre os Estados soberanos gerou o chamado
bellum omnium (guerra de todos) que, na busca incessante pelo poder e pela anexação de territórios, se
constituíram como um mar de leviatãs, permanentemente predispostos à guerra (HOBBES, 2019).
Vale destacar que o vocábulo terror possui origem indo-europeia e varia a significação de acordo
com o momento histórico. Ainda na época medieval do século XIII, os breves contos franceses designados
de fabliaux introduziram o verbo terrir, proveniente do latim terrere, que significava: assustar e/ou
aterrorizar. Tempos mais tarde, no ano de 1335, surgiu, pioneiramente, na literatura erudita francesa,
através do intelectual franciscano Pierre Bersuire, o termo terreur, que também provinha do latim
terror (de terrere) e expressava medo ou extrema ansiedade, podendo, inclusive, corresponder a uma
ameaça quase imperceptível e amplamente imprevisível (CRETELLA NETO, 2009). Já no século XVI,
terrir ainda significava derrubar e poderia ser fruto de causas naturais, mas, também, remetia-se às
consequências das ações humanas de amedrontar, apavorar e aterrorizar, constituindo-se como o eixo
no desenvolvimento das palavras que se originaram a partir desse radical. Isso significa que o vocábulo
terrorismo, etimologicamente, revela um conjunto de componentes que podem ser considerados arcaicos
e que emergem no sentido axiomático do conceito. Fato é que esses antigos elementos contribuem para
a tradução de determinados graus do medo e, inclusive, para a formação de uma nova conotação que foi
introduzida na acepção do termo, com a Revolução Francesa de 1789 e com os numerosos movimentos
anarquistas do final do século XIX e início do século XX (MANNONI, 2004).
Nesse período, o terror passou a designar uma forma impiedosa e autocrática de governo, a qual
imperou na França por pouco mais de um ano (entre 31.05.1793 e 27.07.1794), adotando inúmeras
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medidas de exceção violentas por meio de uma política estatal considerada abusiva. Em vista disso,
na denominada era do terror, o terrorismo passou a assumir uma nova significação, no sentido de que
versava acerca de uma imposição da vontade imperial do Estado através do medo que ocasionava nos
cidadãos e, em consequência, esta palavra acabou por adquirir uma conotação vastamente negativa.
Foi então que surgiu o termo “terroriste”, o qual era utilizado para qualificar tanto os partidários
revolucionários como os agentes do sistema político de terror vigente (CRETELLA NETO, 2009).
Partindo dessa análise conceitual, verifica-se que o terrorismo apresenta as suas raízes na Revolução
Francesa (1789-1799). No entanto, desde a Antiguidade, diversos grupos humanos utilizaram-se da
ameaça do terror como um instrumento voltado para o alcance de determinados objetivos políticos.
Dentre os mais remotos exemplos que podem ser considerados como atos terroristas, ainda na Grécia
e Roma antigas, identificam-se dois episódios: em 430-350 a.C., quando Xenofonte, soldado grego
e discípulo de Sócrates, relatou que uma das principais táticas empregadas pelos exércitos gregos
antes de uma batalha consistia, justamente, em difundir o terror entre os inimigos; já em 71 a.C.,
após a Revolta de Espártaco ou Guerra dos Escravos, os Romanos foram responsáveis pela morte,
crucificação e enforcamento público de aproximadamente 6.000 (seis mil) escravos (LASMAR, 2017).
Muito embora, a pergunta: “onde o terrorismo começou?”, não possua uma resposta simples ou
definitiva, é justamente no século XX que ocorre a expansão e a internacionalização do terrorismo na
agenda global. Marcado pelas tragédias das duas grandes guerras que assolaram o mundo, diversos
Estados-nação desse período histórico viram-se imersos em regimes totalitários de vastas dimensões,
o que contribuiu para o surgimento de grupos revolucionário-anarquistas e para a intensificação do
terror na ordem interna dos países. No Pós-Segunda Guerra Mundial (1945), o ditador da República
Popular da China entre 1949 e 1976, Mao Tsé-Tung, afirmava: “mate um e aterrorize mil”. Essa premissa
passou a fazer cada vez mais sentido na sociedade internacional, sobretudo, quando ocorreu em
Jerusalém (1946), o ataque terrorista pelo Irgun ao Hotel King David, que marcou o início da luta pela
independência judaica; e quando a Organização de Libertação da Palestina (OLP) realizou, em 1968,
um atentado no aeroporto de Atenas, ao avião da companhia aérea israelense El Al. Esse foi o primeiro
ataque cometido pelo grupo em um país que não o de origem, uma das principais características do
terrorismo internacional (CRETELLA NETO, 2008; SANDER, 2018).
Nesse contexto, evidencia-se um dos desdobramentos trágicos e distintos da atmosfera
polvorosa do Oriente Médio nessa época: o Massacre de Munique. Ocorrido na Alemanha de 1972,
durante os Jogos Olímpicos de Munique, esse atentado foi realizado por “oito terroristas palestinos
treinados na Síria e no Líbano, integrantes da Organização Setembro Negro (facção da OLP)” (SANDER,
2018, p. 58). Posteriormente, em 19 de agosto de 1978, aconteceu o maior atentado terrorista em
solo iraniano, um incêndio ao Cinema Rex na cidade histórica de Abadan – o ataque ocorreu no seio
da Revolução do Irã (1978-1979) (FORBES BRASIL, 2016). Ainda, como uma derivação da revolução
iraniana (1979) surgiu uma importante inovação que, conforme Eric Hobsbawm (2007, p. 130),
mostrou-se “singularmente terrível: o homem-bomba”, introduzido pela “poderosa ideologia islâmica
xiita, que idealizava o martírio, e foi empregado pela primeira vez com o objetivo de produzir efeitos
decisivos em 1983, contra os americanos, pelo Hezbollah, no Líbano”. Destaca-se, então, que durante
a Guerra Civil libanesa (1975-1990), alguns países ocidentais (Estados Unidos, Itália, França e Reino
Unido), com vistas a instituição da paz em território libanês, formaram a Força Multinacional no
Líbano. Em oposição a essa intervenção, o Hezbollah cometeu, em 1983, um atentado contra os
quartéis norte-americanos e franceses de Beirute, com a explosão de dois caminhões-bomba. Já na
década de 90, registrou-se que 13 (treze) bombas explodiram em diversas localidades – como prédios
do governo, hotéis, bancos e mercados – da cidade de Bombaim, na Índia, em março do ano de 1993.
O final do século XX também foi marcado por um dos mais aterrorizantes ataques terroristas
contemporâneos, o Atentado de Oklahoma City (EUA), perpetrado em 19 de abril de 1995, pelo norte-
americano Timothy McVeigh (veterano das forças armadas na Guerra do Golfo), que provocou uma
grande explosão no Edifício Federal Alfred P. Murrah. Nesse período, pode-se dizer que a “escala dos
sofrimentos humanos aumentou terrivelmente” e, mundialmente, “as guerras religiosas que eram
alimentadas por ideologias seculares expandiram-se com o retorno a várias formas de fundamentalismo
religiosos que se manifestam em cruzadas e crontracruzadas” (HOBSBAWM, 2007, p. 128). Desse modo,
resta evidente que o terrorismo consiste em um fenômeno antigo e que apresenta inúmeras motivações
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no decurso do tempo. No entanto, a preocupação internacional com o tema se fortaleceu de forma mais
evidente no século passado. Nesse sentido, as tentativas de compreensão mais sistemáticas acerca dos
atentados terroristas são recentes e peculiares da sociedade globalizada. Por isso, é possível afirmar
que o terrorismo consiste, de fato, em um “fenômeno fácil de reconhecer, mas difícil de definir” (NASSER,
2011a, s.p.). Isso se tornou ainda mais complexo no início do século XXI, tendo o terrorismo adquirido
características transnacionais que desafiam alguns pilares da nova ordem global.
O século XXI se iniciou repleto de promessas e esperanças. Mais do que deixar para trás as catástrofes
das últimas guerras mundiais, a humanidade passou a almejar a paz e o progresso, na medida em que os
processos de diálogo entre os Estados se fortaleceram. Por isso, quase ninguém esperava que o primeiro
ano do novo século seria marcado por um terrível ato de violência. No entanto, esse se configurou. Assim,
a data de onze de setembro de 2001 passou ser um marco histórico importante, em virtude da ocorrência
do maior e mais devastador atentado terrorista da história, que mergulhou o mundo em um estado de
medo generalizado, acarretou a morte de milhares de pessoas e destruiu o mais imponente símbolo
do capitalismo global. O referido fato inaugurou um tempo de alerta e de violência numa intensidade
inédita e bastante desafiadora. Essa particularidade, de certa forma, inaugura uma nova fase das relações
internacionais, impulsionando as formas de controle diante da indeterminação das fontes de perigo. Desse
modo, esse novo momento coloca o medo no centro da agenda política global. Como lembra Zygmunt
Bauman (2008, p.12), esse cenário permite que “novos perigos sejam descobertos e anunciados quase
diariamente”. Com isso, a vida humana transforma-se em uma verdadeira e constante luta contra o medo.
Esse, por sua vez, acaba sendo utilizado pelos atores do terrorismo internacional como uma ferramenta
voltada para amedrontamento dos indivíduos, o que desencadeia novas formas de controle dos governos
dos Estados-nação e das organizações internacionais.
Nesse cenário a busca por “segurança torna-se viciante; [...] O medo alimenta o medo. A resistência
singular e solitária à tendência geral e à disposição universal tem pouca utilidade.” (BAUMAN, 2013,
p. 99-100). Diante disso, a ordem estatal também é fragilizada, ficando evidente que, conforme Yuval
Noah Harari (2018, p. 215), “nenhum Estado soberano será capaz de superar sozinho” os novos
desafios impostos pelo terrorismo atuante em um mundo geopoliticamente fragmentado. De fato,
é possível dizer que os Estados-nação, diante do fenômeno da globalização, não conseguem mais,
por si só, “executar políticas econômicas independentes, declarar e travar guerras quando quiser, ou
mesmo conduzir as próprias questões internas como julgar conveniente.” (HARARI, 2018, p. 215).
Dessa forma, fica evidente que a sociedade internacional passou a conviver com novos grandes
desafios e com riscos continuados. Nesse contexto, o terrorismo situa-se como um fenômeno intenso,
com dimensões abrangentes e efeitos de magnitudes abissais que se propagam celeremente pelos
inúmeros veículos midiáticos e informacionais. Como bem lembra Eric Hobsbawm (2007, p. 131), um
dos sinais mais infelizes da barbárie humana, a qual se manifesta através dos ataques terroristas,
consiste na descoberta dos atores de que sempre que exista “vulto suficiente para aparecer nas telas
do mundo, o assassinato em massa de homens e mulheres em lugares públicos tem mais valor como
provocador de manchetes e [de reconhecimento]”, o que ocasiona, de fato, um vasto medo em função
da propagação mundial que acontece de forma célebre e simbólica.
Fato é que o mundo amanheceu diferente no dia 11 de setembro de 2001 em virtude de uma
série de atentados terroristas arquitetados pela organização internacional fundamentalista islâmica
Al-Qaeda (A Base), nos Estados Unidos da América (EUA), em reação à instauração de bases militares
norte-americanas na península arábica (durante a Guerra do Golfo) e sob a liderança de Osama bin
Laden. Primeiramente, na cidade de Nova York, às 8h46min, um avião da companhia aérea American
Airlines atingiu a Torre Norte do complexo do World Trade Center e, cerca de 20 minutos depois, às
9h03min, uma aeronave da United Airlines, atingiu a Torre Sul. Em seguida, às 9h37min, no condado
de Arlington, um voo da American Airlines atingiu o Pentágono, e, às 10h03min, um avião comercial
da United Airlines, repleto de passageiros, caiu em um campo aberto na região da Pensilvânia, em
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Shanksville, próximo à capital norte-americana de Washington. Além da morte dos passageiros das
quatro aeronaves, o desabamento das Torres Gêmeas resultou em 2.606 mortos, enquanto que no
Pentágono foi contabilizado 125 mortos, totalizando um número de 2.993 vítimas fatais e mais de
8.900 feridos (BORRADORI, 2004; FORBES BRASIL, 2016).
A partir desse ataque avassalador, a humanidade passou a conhecer uma força singular e inédita
do terrorismo global. Os efeitos da globalização sobre a dinâmica do conflito da “Guerra ao Terror”,
lançada pelo governo norte-americano e travada entre os principais atores e líderes do conflito: bin
Laden e George W. Bush, expôs em ritmo acelerado os discursos de ameaça à paz internacional e
uma diversidade de imagens através da mídia. Nesse processo, muitas vezes, a verdade foi omitida e
dissimulada, uma vez que erroneamente e genericamente as culturas islâmicas que se desenvolveram em
territórios ricos pela abundância de recursos naturais, tais como o petróleo e o gás natural, passaram a
ser associadas ao terrorismo e, dessa maneira, tornaram-se mais vulneráveis “à modernização selvagem
produzida pelos mercados globalizados e dominada por um pequeno número de Estados e corporações
internacionais [com acentuados interesses]” (BORRADORI, 2004, p. 33).
Além disso, não são raras as vezes em que líderes políticos vinculam o terrorismo à religião
islâmica, mas, para Nasser (2011b, s.p.), essa é uma concepção errada e perigosa, visto que “atrelar
terroristas ao islã pode resultar em ações de combate ao terrorismo, na maioria das vezes, equivocadas
e injustas”. Com o passar dos anos, o terrorismo foi reinventado e assumiu dimensões inimagináveis
se comparado às manifestações históricas anteriores. O velho terrorismo – como os praticados pelo
Hezbollah no Líbano e pelo Hamas na Palestina – apresentava objetivos políticos bastante tradicionais,
na medida em que tais organizações terroristas possuíam motivações que visavam a fundação de um
Estado nacional e étnico próprio, bem como a eliminação dos ocupantes estrangeiros da região do
Oriente Médio. Para Ulrich Beck (2016, p. 274), a partir de 2001, o terrorismo passou a se destacar
pelo fato de não estar fixado ou motivado “em termos territoriais nem em termos estatais”, ou seja,
os grupos terroristas “não combatem por um Estado próprio – é sobretudo também por isso que os
meios de controle da força hegemônica mundial falham”. Por isso, o novo terrorismo é disperso,
transnacional e não possui um alvo definido, mas, atua na ordem mundial.
Embora seja bastante difícil definir o terrorismo global, Nasser (2011a, s.p.) assevera que esse
consiste em um “método psicológico, inspirador de repetidas ações violentas, pregado por indivíduos,
grupos clandestinos ou Estados”. A doutrina internacional preponderante reputa que um ato terrorista
visa “difundir o medo e coagir um governo ou uma autoridade política internacional” (ZOLO, 2011,
p. 108), por isso, os alvos diretos dos atentados não são as principais metas, porque as vítimas são
escolhidas ao acaso, com vistas à manipulação do alvo principal. Frente à utilização de poderosas
armas nucleares, biológicas, químicas e radiológicas, o neoterrorismo pode acarretar a destruição
em massa e a paralização dos recursos econômicos, políticos e militares de um país ou continente
inteiro. Portanto, a sociedade internacional se defronta com um inimigo que se infiltra na multidão
global, desafiando os direitos humanos e das democracias a duras penas conquistadas. Esse inimigo
apresenta um nome, é membro de organizações que agem privada e clandestinamente, no entanto,
não tem pátria ou rosto e denomina-se: terrorista (CRETELLA NETO, 2009).
A época mais mortífera da história humana foi o século XX, isso porque, consistiu em um período
de guerras praticamente ininterruptas, as quais foram incrementadas ao ponto de transformar e
destruir o planeta. Eric Hobsbawm (2007, p. 22) lembra sabiamente que “o mundo como um todo não
teve paz desde 1914 e não está em paz agora.”. No novo milênio, a questão da guerra e da paz passa
a ser rediscutida a partir de uma análise acerca do passado e do futuro dos neoimperios globais, da
violência política e das novas formas de terror que amedrontam as civilizações. Nesse panorama, o
terrorismo internacional atual não visa a conquista ou a substituição de determinados governos ou
Estados, mas, sim, a sua desmoralização. Por certo, é evidente que todo e qualquer ato de violência
que provoca morte, terror e destruição, atenta contra a paz e os direitos humanos. Verifica-se, então,
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que a relação entre geopolítica, território e terror mudou, especialmente, pelo avanço dos processos
da globalização e da tecnociência, que empalidecem a distinção entre a guerra e o terrorismo. Para
Jacques Derrida (2004, p. 111), o “11 de setembro ainda faz parte do arcaico teatro da violência
destinado a chocar a imaginação”.
Após o mais hediondo e gigantesco atentado da história humana, registraram-se diversos outros
ataques terroristas. Dentre esses, destacam-se os atentados coordenados contra o sistema de trens
suburbanos em Madrid, no mês de março de 2004, três dias antes das eleições gerais do país. No mesmo
ano, na cidade russa de Belsan, um grupo de terroristas da Chechênia, invadiu uma escola e manteve mil e
duzentas pessoas (em sua maioria crianças) como reféns ao longo de três dias. Outros relevantes atentados
do século XXI podem ser evidenciados na Europa. Em Londres, no dia 07 de julho de 2015, aconteceram
quatro ataques suicidas. Na França, em 07 de janeiro de 2015, um atentado terrorista foi cometido pela
Al-Qaeda, contra a sede do jornal satírico Charlie Hebdo. Meses depois, no dia 13 de novembro, ocorreu
outro atentado, realizado pelo grupo terrorista Estado Islâmico, que consistiu em uma série de ataques
contra bares, restaurantes e uma sala de concertos da capital francesa. Já em 14 de julho de 2016, nas
comemorações do Dia da Bastilha, um caminhão dirigido por um integrante do Estado Islâmico avançou
deliberadamente sobre uma multidão em Nice, no sul da França (DEUTSCHE WELLE, 2016).
Em território norte-americano, após o 11 de setembro, outras cidades dos Estados Unidos foram
palco de atentados terroristas islâmicos. No ano de 2013, uma bomba explodiu durante a maratona de
Boston. Em 12 de junho 2016, o grupo terrorista Estado Islâmico (ISIS) perpetrou um atentado contra uma
boate gay em Orlando, na Flórida. Já no continente africano, a milícia terrorista radical Al Shabaab acarreta
medo e terror em toda a África oriental. Por sua vez, na parte ocidental africana, destaca-se a organização
fundamentalista islâmica Boko Haram, que se utiliza de extrema violência para impor uma teocracia
no norte da Nigéria. Desde 2003, esse grupo terrorista raptou mulheres e crianças, bem como matou
milhares de pessoas em ataques realizados contra autoridades, forças de segurança, escolas e igrejas.
Recentemente, o Estado Islâmico assumiu a autoria – mesmo sem apresentar provas de seu envolvimento
– dos oito atentados suicidas cometidos no Sri Lanka, no dia 21 de abril de 2019 (em pleno feriado de
Páscoa). Conforme as investigações preliminares, tais ataques teriam sido uma represália aos atentados
perpetrados contra mesquitas da cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, no dia 14 de março de 2019.
Na atualidade, evidencia-se a ascensão cada vez mais intensa do grupo terrorista extremista
Estado Islâmico (ISIS). Trata-se de uma organização islamita jihadista, que atua majoritariamente em
regiões do Oriente Médio. Pode-se verificar que uma série de atentados terroristas perpetrados no
Ocidente, principalmente em países que promovem ações bélicas contra o ISIS, tiveram a autoria
assumida pelo grupo. Mesmo sem o reconhecimento da sociedade internacional, em julho de 2014,
Abu Bakr al-Baghdadi proclamou o califado do Estado Islâmico, pretendendo impor uma autoridade
religiosa sobre todos os muçulmanos do mundo e desejando controlar diversas regiões de maioria
islâmica – como a Jordânia, a Palestina, o Líbano, o Chipre, Israel, Hatay e uma área no sul da Turquia.
É bem verdade que foi a guerra civil da Síria que oportunizou a esse grupo extremista jihadista o
encontro de um verdadeiro campo aberto de batalha para lutar e prosperar (WEISS; HASSAN, 2015).
Diante do inegável avanço do fenômeno do terrorismo, Danilo Zolo (2011, p. 107) se questiona: “o
11 de setembro teria sido apenas um começo?”. Não há uma resposta definitiva para essa pergunta, isso
porque, atualmente, existem inúmeras formas de terrorismo que se expressam no interior de contextos
distintos. Nesse contexto, a atuação das grandes potências mundiais sob um slogan ético e humanitário,
significa nada mais do que a negação da condição e da qualidade de humano ao “inimigo”, fato esse que
justifica a utilização de métodos cruéis e desumanos, que atingem proporções vastas e inimagináveis nos
territórios onde se situam determinados grupos terroristas. Por detrás da bandeira da paz e da proteção
internacional dos direitos humanos, as intervenções armadas dos Estados Unidos da América (EUA) e seus
aliados (Reino Unido, França e Israel) contra o “eixo do mal”, inflamam ainda mais os conflitos regionais
de Estados fragilizados – sobretudo, na região do Oriente Médio, onde inúmeros grupos terroristas étnico-
religiosos se instauram – e aumentam os números de vítimas inocentes (militares e civis).
Além disso, ressalta-se que a utilização de bombas por parte do Ocidente jamais será inteligente
o suficiente para impedir o terrorismo global, aliás, Beck (2016, p. 287) afirma que “não é o ato
terrorista que destrói o Ocidente, mas sim a reação à antecipação do mesmo”. Por isso, tal solução
não parecer ser a mais adequada, porque esses Estados se utilizam da mesma forma de violência
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sanguinária dos atentados terroristas que pretendem eliminar, para impor ao mundo uma lógica
de poder. No entanto, quando os responsáveis por tais atos são as grandes potências, a jurisdição
internacional parece “não ter coragem suficiente para iniciar uma investigação e encaminhar um
processo” (ZOLO, 2011, p. 111). Foi exatamente isso o que aconteceu nas guerras do Afeganistão e
do Iraque, onde a chamada guerra de prevenção mediante o uso da agressão por parte dos Estados
Unidos e seus aliados, acarretou nos adversários uma verdadeira e contínua onda de medo, de ódio,
de morte e de destruição, capaz de conduzir o mundo para uma guerra terrorista sem fim. Nesse
contexto, Eric Hobsbawm (2009, p. 25) analisa que, atualmente, “os Estados Unidos consideram-se
uma potência com a missão de estabilizar o mundo e, portanto, obrigada a recorrer, sempre que
necessário, a operações policiais internacionais”. Diante disso, pode-se afirmar que a grande potência
norte-americana precisa demonstrar que “suas forças podem intervir em qualquer parte do globo,
de modo a convencer potenciais inimigos fora da área da OTAN.” (HOBSBAWM, 2009, p. 25). No
entanto, Flávia Piovesan (2006, p. 30) adverte acerca da doutrina de segurança adotada pela pelos
EUA após os atentados de setembro de 2001: “imaginem-se as nefastas consequências para a ordem
internacional se cada um dos 200 Estados que a integram invocasse para si o direito de cometer
‘ataques preventivos’, com base no unilateralismo”.
O certo é que a condução de uma guerra contra redes ou grupos terroristas que se ocultam
na multidão global consiste em uma atitude equivocada. É preciso, pois, fortalecer as instituições
multilaterais que se utilizam de mediações dialógicas e diplomáticas, para que se encontrem
alternativas viáveis de prevenção ao terrorismo. Todavia, os impasses da sociedade internacional no
tocante à definição e à tipificação do terrorismo dificultam o enfrentamento desse fenômeno, que
deve ser rechaçado pelo Direito Internacional em nome da proteção dos direitos humanos e da paz
mundial. Frente aos perigos devastadores das novas formas de terrorismo que ameaçam o futuro da
humanidade, torna-se necessária uma reação planetária que envolva mudanças na ordem jurídica
internacional clássica, que permanece ancorada no modelo dos Estados soberanos, “rumo a uma nova
ordem cosmopolita, em que os principais atores políticos seriam instituições multilaterais e alianças
continentais” (BORRADORI, 2004, p. 12). O primeiro passo, sem dúvida, consiste em fortalecer as
organizações mundiais já existentes, o que requer uma reavaliação crítica do significado da soberania
estatal, de tal forma que seja possível implementar uma maior eficácia no alcance diplomático e no
respeito as suas deliberações e encaminhamentos. Somente sob essa condição, seguindo-se a fórmula
kantiana, a sociedade internacional poderá verificar que está continuamente avançando em direção a
uma paz perpétua (KANT, 2004).
Desde o término da Segunda Guerra Mundial, outras formas de guerra tomaram lugar no cenário
global. Um exemplo disso, foi a Guerra do Golfo – ocorrida entre 2 de agosto de 1990 e 28 de fevereiro
de 1991 –, momento em que, pela primeira vez, uma guerra pôde ser considerada da Organização das
Nações Unidas (ONU), e mais, autorizada pela própria organização – tomando grandes proporções em
diversos países do Ocidente (FERRAJOLI, 2004). À vista disso, a obra “Razones jurídicas del pacifismo”
(2004), de Luigi Ferrajoli, é de suma importância para a contemporaneidade. O jurista italiano rechaça
a noção de guerra justa, proveniente do jusnaturalismo, e considera como admissível, apenas, o uso
da força como um instrumento de defesa – da forma que está pré-estabelecida na Carta das Nações
Unidas: “por isso, pretender usar os meios da guerra para combater o terrorismo e outras graves
violações de direitos humanos, implica em renunciar a toda pretensão pacificadora por parte do direito,
quando não sua degradação a um instrumento ilegítimo de terror e arbitrariedade.” (PISARELLO, 2004,
p. 15)225, o que corresponde ao extremo oposto do proposto por Ferrajoli nessa investigação.
É importante ressaltar que o pacifismo, nesse contexto, não tem por intenção criar um governo
225 No original: “Por eso, pretender usar los medios de la guerra para combatir al terrorismo u otras violaciones graves de
derechos humanos comporta uma renuncia a toda pretensión pacificadora por parte del derecho, cuando no su degradación
a ilegítimo instrumento de terror y arbitrariedad.” (PISARELLO, 2004, p. 15).
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mundial hegemônico, mas sim, apostar em instituições de garantia tanto em âmbito internacional quanto
regional – capazes de tutelar a paz e os direitos humanos, de forma simultânea (PISARELLO, 2004). São
três os sentidos que uma guerra pode empreender: a) uma guerra pode ser lícita, e ao mesmo tempo,
ser injusta (juízo de fato); b) uma guerra pode ser justa, e ao mesmo passo, ilegítima (juízo de valor); c)
uma guerra que é não ilegal é também, não ilícita. O terceiro sentido, desse modo, explicita uma relação
intrínseca na temática da guerra: há um nexo entre legalidade e justiça, assim como há um liame
entre direito e moral (FERRAJOLI, 2004). Compreende-se esse terceiro sentido desse modo, pois se lido
como “guerra legal” e “lícita” estaria incorrendo em uma contradição entre o que significam os sistemas
“guerra” e “direito”. Na modernidade, com Hobbes (2019), a guerra é usada como um instrumento de
justificação da guerra de todos contra todos – bellum omnium. Antes da criação da Carta da ONU, não
haviam quaisquer proibições jurídicas contra a guerra. Em decorrência de uma ordem internacional em
formação, havia uma carência de regras, e a relação entre os Estados se dava por intermédio do Estado
de Natureza hobbesiano já exposto na primeira seção desta pesquisa.
Na sobredita obra, Ferrajoli (2004, p. 51) busca responder a seguinte questão: “o que mudou a
partir do 11 de setembro?”226. Os ataques foram direcionados considerando uma geopolítica estratégica:
o World Trade Center como um dos maiores símbolos de potência econômica; e o Pentágono, enquanto
sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América. Após o evento, iniciou-se a sobredita
“Guerra ao Terror”, advinda do que ficou conhecido como a “doutrina Bush”, uma guerra preventiva
contra aqueles países que compunham o “eixo do mal” – países que contrastavam com os interesses
políticos e econômicos estadunidenses. Ferrajoli (2004) refere que nem mesmo com a captura de
Osama bin Laden seria possível acabar com fenômeno do terrorismo, pois esse já estava espalhado
por mais de setenta países do globo. O que o autor faz, no entanto, não é criticar a necessidade de
resposta que o governo americano necessitou após essa tragédia, ou, ainda, subestimar a gravidade
do ocorrido. Ferrajoli (2004) evoca que a forma como essa resposta se deu não pode ser considerada
o melhor método para enfrentar os terroristas e derrubar suas organizações, uma vez que a “Guerra
ao Terror” só fortificou os grupos fundamentalistas.
Uma das principais mudanças advindas do 11 de setembro foi a “nossa subjetividade como
cidadãos do Ocidente.” (FERRAJOLI, 2004, p. 52)227. Isso porque, até então, os cidadãos ocidentais
sentiam-se seguros, bem como invulneráveis – como se os conflitos orientais televisionados nunca
fossem tomar as mesmas proporções no Ocidente. Desse choque, o medo ganhou vez e fenômenos
como a xenofobia e a mixofobia aumentaram velozmente: “Um medo ainda mais forte e angustiante
na medida em que o inimigo é invisível e seus possíveis ataques - ontem, um monstruoso sequestro
de um avião, hoje ou amanhã um ataque químico ou bacteriológico - são tão previsíveis quanto
imprevisíveis.” (FERRAJOLI, 2004, p. 52).228 Havia, até o ataque às Torres Gêmeas, uma ilusão de
que o mundo Ocidental – rico – estava separado do Oriental – pobre –, muito em decorrência do
fenômeno denominado por Edward Said (2007) como “orientalismo”. Essa ilusão ilustra como um
mundo dividido por muros e fronteiras simbólicas causou uma forte confusão entre aquilo que é
interior e o que é exterior. Para Ferrajoli, este último não existe. O que existem são políticas internas e
políticas externas. E as políticas internas devem estar preparadas para enfrentar problemas e desafios
planetários, como o problema da fome, da pobreza e do desmatamento.
Outro ponto nevrálgico em que Ferrajoli toca é que o governo estadunidense respondeu ao ataque
somente um mês após o ocorrido. Como defesa, foi utilizado o artigo 51 da Carta da ONU, o qual prevê
uma resposta imediata, em legítima defesa, para manter a paz (UN, s.d.). Tal dispositivo fora utilizado
em evidente contradição. Ao cuidar dessa tragédia mais como um crime contra a humanidade, do
que como uma guerra em sentido lato, os Estados têm levado a “Guerra ao Terror” a outro nível: são
usadas medidas policiais de prevenção com vistas a manter “a paz e a segurança” (FERRAJOLI, 2004).
Argumentos semelhantes foram utilizados nas Guerras do Golfo, dos Balcãs e do Afeganistão. Para o
filósofo italiano, o valor da vida humana se transformou com as guerras da década de noventa, pois
226 No original: “¿Qué ha cambiado a partir del 11 de septiembre?”. (FERRAJOLI, 2004, p. 51).
227 No original: “nuestra subjetividad como ciudadanos de Occidente.” (FERRAJOLI, 2004, p. 52).
228 No original: “Un miedo todavía más fuerte y angustiante en la medida en que el enemigo es invisible y sus posibles
agresiones – ayer, un monstruoso secuestro de um avión, hoy o mañana un ataque químico o bacteriológico – son tan
previsibles como imprevisibles.” (FERRAJOLI, 2004, p. 52).
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a política se trata do “nós” contra “eles”. Tal política é bem ilustrada pelo filósofo americano Jason
Stanley, em “Como funciona o fascismo” (2019). No capítulo intitulado “Vitimização”, Stanley fala sobre
como grupos dominantes se vitimizam quando se sentem ameaçados por grupos minoritários e como
os nacionalismos emergem em resposta à opressão desses grupos. Desse modo, percebe-se que essa
dicotomia tem tensionado a democracia na contemporaneidade, principalmente na última década com
a ascensão de líderes populistas em países como os Estados Unidos, Rússia, Brasil, França e Hungria.
A lógica da guerra é extremamente oposta ao que pretende o valor simbólico do direito. De
acordo com Ferrajoli, a tragédia do 11 de setembro poderia ter denunciado a precariedade da ordem
internacional atual. E, mais do que isso, com paciência e razoabilidade, as forças terroristas poderiam
ter sido neutralizadas. No entanto, o que resultou disso foi uma guerra sangrenta, em que muitas
vítimas inocentes morreram e muitos locais foram danificados. Ainda, as organizações terroristas se
fortaleceram e bin Laden morreu como mártir. Dessa forma, expandiu-se um “anti-americanismo” em
todo globo, principalmente em países islâmicos, efervescendo os conflitos de origem fundamentalista
com o Oriente Médio. A ONU, muito embora tenha fracassado diversas vezes na mediação de
conflitos, a título de exemplo, na intervenção na Bósnia, Somália ou Ruanda, deve ser fortalecida –
principalmente depois do seu descrédito após o 11 de setembro pelo governo americano. A tese de
Ferrajoli, desse modo, compreende na total ilegalidade das guerras, uma vez que o direito e a guerra,
conectas, são incompatíveis, uma vez que o direito, por si, é um instrumento que busca promover a
paz e regulamenta o uso da força (MACHADO, 2012). Portanto, uma vez que o terrorismo objetiva,
pontualmente, a guerra, a resposta ideal para o fim desses conflitos é, justamente, a promoção da paz
pelo direito (KELSEN, 2011).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não resta a menor dúvida de que a configuração do mundo enquanto um sistema global passou
a ser um dos mais expressivos acontecimentos histórico-sociais. Evidencia-se que o fenômeno da
globalização e a revolução tecnológica unificaram o planeta em todos os sentidos e com diversos
graus de intensidade, de tal modo que os problemas internacionais, como é o caso do terrorismo,
podem ser sentidos em qualquer lugar físico e do ciberespaço. Apesar de ser mais perceptível na
atualidade, em virtude da intensificação dos atentados após o 11 de setembro de 2001, o fenômeno
do terrorismo está presente há muito tempo na sociedade humana. De fato, o terror que destrói a
vida, despreza os direitos e as democracias instituídas no decurso das civilizações, engendra uma
situação praticamente revolucionária, a qual desafia a proteção internacional dos direitos humanos e
as possibilidades da paz.
Sem dúvidas, um dos maiores problemas do novo século consiste em encontrar uma maneira de
enfrentar e derrotar o terrorismo internacional, que é onipresente em grande parte do mundo e torna
remotas as perspectivas dos pacifistas, como Luigi Ferrajoli. Diante dos contornos assumidos pela
sociedade internacional, exige-se dos novos atores multilaterais a adoção de medidas que visam atenuar
o sofrimento e as perdas desproporcionais produzidas pelos terroristas na era global. Assim, é evidente
que uma cooperação maior entre os Estados do globo implica em um maior êxito no enfrentamento
desse fenômeno. No entanto, inúmeros avanços ainda precisam acontecer para dissuadir pessoas de
se utilizarem de práticas terroristas, impedir que os Estados apoiem o terrorismo de modo a reforçar o
combate aos atentados, bem como defender os direitos humanos e a segurança internacional.
À luz desse cenário, o equilíbrio da nova ordem global exige o fortalecimento das instituições
multilaterais e da sociedade civil internacional, com base em uma solidariedade cosmopolita entre
as nações. Enfim, não se pode afirmar que a humanidade está indefesa em relação às ameaças dos
atentados terroristas. Contudo, deve-se reconhecer que o enfrentamento destes através de palavras
igualmente problemáticas como: “guerra contra o terrorismo”, são capazes de regenerar as causas
de um mal que se pretende erradicar, em virtude da excitação hostil entre as culturas. Portanto, uma
efetiva proteção dos direitos humanos deve ser confiada aos novos atores internacionais, tais como
a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Tribunal Penal Internacional (TPI), que se distinguem de
alianças militares na medida em que exigem modalidades de intervenção preventivas (de caráter civil
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e econômico), fundamentadas nos pressupostos do diálogo intercultural (não coercitivo) para mediar
as possibilidades de construção de um cenário de paz duradoura no mundo atual.
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RESUMO: O fenômeno da globalização propicia a configuração uma nova ordem mundial, marcada
pela participação e influência de novos atores que desafiam a forma de produção e aplicação do
direito. Este mesmo fenômeno também logra êxito em descortinar o paradigma do transnacionalismo.
Este, por sua vez, protagoniza o deslocamento da produção normativa tradicionalmente legitimada
ao Estado soberano. Baseado nos elementos caracterizadores deste novo cenário, este trabalho,
utilizando-se do método hipotético-dedutivo, aliado ao levantamento bibliográfico e documental, a
partir de uma análise atenta acerca das Recomendações editadas pelo Grupo de Ação Financeira
Internacional, o GAFI, objetiva analisar em que medida a atuação deste órgão é capaz de dialogar –ou
não- com as normas internas de seu estado receptor sem ferir o contexto democrático vigente.
INTRODUÇÃO
229 Mestranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CAPES/PROEX. Graduada em Direito pela
mesma Universidade. E-mail: luanamarinads@gmail.com.
498
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Impende salientar que a presente pesquisa não pressupõe o esgotamento do tema, tampouco
sugere uma resposta conclusiva ao objeto que aqui se apresenta, mas sim, propõe trazer à tona questões
pontuais acerca da correlação entre os fenômenos globais e as possíveis implicações provindas das
recomendações de um organismo transnacional dentro do cenário democrático brasileiro.
499
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230 The Financial Actional Task Force – FATF. Em português: Grupo de Ação Financeira contra a lavagem de dinheiro e o
financiamento do terrorismo.
231 Ainda que o Brasil tenha sido admitido no grupo somente no ano 2000, em 1998 o país já havia demonstrado interesse
de participar das ações do grupo, a partir da criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), mesmo sem
vínculo com a instituição. (CORRÊA, 2013).
232 A soft law pode ser definida como um conjunto de normas (standards normativos) de categoria residual cujo escopo é
criar vinculações exortatórias, em oposição clara às vinculações obrigatórias próprias da hard law criando, deste modo, uma
expectativa de cumprimento baseada na autonomia da vontade e na boa-fé típica dos acordos convencionados cuja raiz é o
mútuo consentimento. (GREGÓRIO, 2017, p.3)
500
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O poder econômico, com o avanço da globalização, logrou êxito em aumentar seu poder de autono-
mização e, muitas vezes, sobrepõe-se ao poder do Estado, infiltrando-se na forma de produzir o direito,
fragilizando o modelo institucional vigente. Esta reconfiguração de poder, aliada ao seu poder de decisão
vinculante, submete ao poder político direcionamentos que, muitas vezes, apenas refletem os intuitos des-
tas instituições de governança, não se atendo aos princípios e normativas já presentes no Estado receptor.
Diante de uma economia globalizada, torna-se possível que determinados grupos de caráter inter-
nacional, a partir de determinados artifícios, logrem êxito em tornar suas normas internas com caráter
vinculante. Com efeito, percebe-se que a inserção das recomendações do GAFI dento do contexto brasileiro
incidiram de forma atípica de produção normativa, mormente porque a recomendação configurou-se como
um pressuposto para o Brasil se manter no grupo como um estado membro. Esta produção, conforme será
exposto, pode ter ocasionado problemas na esfera normativa brasileira. (CAMBI; ABROSIO, 2017, p. 1379).
O texto adaptado, conforme será abordado, sofreu alterações que lograram êxito em apresentar
contraposições no que diz respeito ao conteúdo do Código Penal Brasileiro. O Brasil, por submeter-
se às exigências do grupo, possibilitou a abertura para a incidência de uma normativa altamente
ambígua, por meio do qual restou possível identificar uma série de fragilidades normativas e
antinomias jurídicas entre a recomendação do organismo de caráter transnacional e as leis internas
do Estado, protagonizando um déficit democrático difícil de ser solucionado.
O projeto de Lei nº 2016/15 foi apresentado234 pelo executivo por meio da presidenta, à época,
Dilma Rousseff e relatado pelo Deputado Federal Arthur Maia. O projeto foi aprovado, em regime
de urgência, na primeira votação realizada na Câmara dos Deputados, em agosto de 2015235. Ainda
que o Senado tenha tentado modificar o projeto, este retornou à Câmara e, em fevereiro de 2016,
233 A hard law é o oposto da soft law, esta, por sua vez, é capaz de criar exigências vinculativas das regras legais. (GRE-
GÓRIO, 2017).
234 Para acompanhar a tramitação completa desta Lei, acesse: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2016/lei-13260-
16-marco-2016-782561-norma-pl.html.
235 À época, o mundo acompanhava os ataques de 13 de novembro de 2015 em Paris, que deixaram 129 mortos. O presi-
dente francês, François, intensificou as ações militares contra a Organização do Estado Islâmico (OEI) e, ainda, propôs uma
reforma constitucional a fim de dar mais poderes ao Executivo. Ainda que estes ataques estejam distantes da realidade bra-
sileira, pode-se supor que a mídia, o governo e a bancada parlamentar conservadora se aproveitaram do referido episódio
para exigir a rápida tramitação e aprovação da Lei 13.260, à época projeto de lei do executivo (PLE) 2.016/2015, demons-
trando a ausência de uma reflexão mais profunda sobre a temática do terrorismo no cenário brasileiro.
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restou aprovada a versão votada em agosto de 2015. A presidenta Dilma, em 16 de março de 2016,
em razão da forte pressão dos movimentos sociais, vetou o referido projeto no que dizia respeito à
definição dos atos de terrorismo, especialmente aos incisos II e III e, também, no que diz respeito ao
artigo236 4º deste texto legal. (BRASIL, 2016).
Ocorre que a lei continuou apresentando defeitos no que diz respeito à sua ambiguidade e
subjetividade. Isso porque, a Lei aprovada pelo congresso, apesar da regra “protetiva” contida no §2º
do artigo 2º, remanescem, ainda, expressões amplas e imprecisas, que, dependendo de sua aplicação,
permanecem protagonizando uma ameaça aos movimentos sociais da sociedade civil. Assim, para verificar
de que maneira a respectiva lei pode afetar as normas internas de seu estado receptor, neste caso, o
Brasil, far-se-á uma breve análise dos artigos contidos nesta lei. Avaliar-se-á de que maneira determinados
artigos contrapõem-se às normativas internas específicas no ordenamento jurídico brasileiro.
O artigo 2º da respectiva lei compreende o crime de terrorismo quando estes consisterem, na
prática, em atos realizados por razões de “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia
e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo
a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Ainda, configura-se como
atos de terrorismo o ato de “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo
explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios
capazes de causar danos ou promover destruição em massa”. As sanções a este dispositivo, se dão
em penas entre 12 a (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão, combinado com multas que correspondam
à ameaça ou à violência daquele o pratica. (BRASIL, 2016).
Ocorre que, o artigo segundo, ao mesmo tempo em que define que expor “a perigo pessoa,
patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública” e “provocar terror social ou generalizado”
caracterizam-se enquanto atos terroristas, não deixa claro nenhum conceito que especifique, de maneira
clara, o teor da frase “paz pública”. Esta, por sua vez, configura-se como um termo de alta amplitude,
com contornos pouco definidos, permitindo, assim, uma série de intepretações possíveis. Manifestações
de civis que impedissem o tráfego de veículos, poderiam dar ensejo a uma possível redução da “paz
pública” em vias que caracterizassem um alto tráfego de automóveis, por exemplo. Ademais, “não se
sabe, por exemplo, o que pode vir a ser caracterizado como ‘terror social ou generalizado’ (artigo 2o,
caput) ou ‘destruição em massa’ (artigo 2o, § 1o, inc. I)”. (CAMBI, ABROSIO, 2017, p. 1376).
No entanto, para além destas ambiguidades, verifica-se que aspectos específicos também são marcantes
no corpo do texto trazido pela Lei 13.260/16. O legislador, ao procurar identificar o que caracteriza estes
atos, os define quando indivíduos portarem consigo “conteúdos químicos ou biológicos”, nos termos do
artigo237 2º, §1º, inciso I. A tipificação contida na Lei Antiterror no que diz respeito ao que caracteriza um
ato de terrorismo, protagoniza um instrumento normativo que, a partir de seus elementos, pode promover
uma série abusos e ilegalidades. Esta tipificação pode caracterizar a preocupação do legislador em evitar
grandes manifestações, como a conhecida “revolta do vinagre”238, que, devido às suas características,
poderia facilmente incidir como um ato terrorista, caso tipificada por este texto de lei. (BRASIL, 2016).
O movimento conhecido como “revolta do vinagre” protagonizou um caso emblemático. Rafael
Braga239, à época, foi o único indivíduo preso nas manifestações de 2013 no Rio de Janeiro, por
236 A Presidente justificou o veto aos incisos II e III, afirmando que os dispositivos apresentavam definições “excessivamen-
te amplas e imprecisas”. Além disso, concluiu que eram atos com diferentes potenciais ofensivos, mas com penas idênticas,
o que viola o princípio da proporcionalidade e da taxatividade. A chefe do Executivo argumentou, também, haver outros in-
cisos que já garantem a previsão das condutas graves que devem ser consideradas atos de terrorismo. O artigo 4o, também
vetado pela Presidente da República, dizia respeito à tipificação do crime de apologia ao terrorismo, entendido como “fazer
publicamente apologia de ato terrorista ou de autor de ato terrorista.” (CAMBI, ABOSIO, 2017, p. 1976).
237 Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xe-
nofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror
social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. § 1º São atos de
terrorismo: I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos,
conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
238 O termo “revolta do vinagre” constitui-se em razão do fato de vários manifestantes usarem panos molhados com vina-
gre perto do rosto como proteção aos efeitos do gás lacrimogênio lançado pelos policiais durante as manifestações.
239 Rafael Braga foi preso, em 20 de junho de 2013, por suposto porte de artefato explosivo/ incendiário. À época, Rafael carregava
consigo duas garrafas plásticas lacradas de produtos de limpeza (água sanitária e desinfetante da marca Pinho Sol). Na ocasião, após
ser abordado por policiais civis próximo às manifestações que ocorriam naquele local, Braga foi abordado e levado à delegacia de
polícia. Rafael foi denunciado pelo Ministério Público por estar portando conteúdos que, a princípio, serviriam de base para a produ-
ção de coquetel molotov. Rafael respondeu ao processo preso e acabou sendo condenado a cinco anos de prisão e dez dias multa.
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carregar um pinho sol e uma garrafa de água sanitária, considerando o Ministério Público que os
produtos iriam ser utilizados para produzir explosivos, como o coquetel molotov240. Rafael foi
condenado em razão da tipificação prevista no artigo 16, inciso III, da Lei 10.826/03, a qual prevê
uma pena entre três a seis anos de prisão e multa. No entanto, caso Rafael fosse enquadrado na Lei
antiterrorismo vigente (hipótese possível diante da tipificação do artigo previsto na lei em questão),
Braga poderia ser considerado como “terrorista”, sofrendo pena de reclusão ainda mais severa, de até
trinta anos de reclusão. (BRASIL, 2003). Além disso, este mesmo artigo, prevê, como característica de
atos terroristas, o ato de “causar danos”. Ocorre que, esta mesma sanção já se encontra devidamente
prevista na legislação brasileira, mais especificamente do artigo 163, do Código Penal, o qual prevê
sanções cabíveis para este tipo de delito, as quais, inclusive, são muito inferiores à pena de reclusão
prevista pela Lei 13.260/16, que prevê a reclusão do infrator entre 12 e 30 anos. (BRASIL, 1940).
Na sequência, verifica-se que o inciso IV, do parágrafo primeiro, do artigo 2º da Lei 13.260/16,
também é capaz de configurar uma ameaça aos movimentos sociais. Este inciso afirma que se configuram
como atos de terrorismo o ato de sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça
a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo
temporário prédios e/ou instituições públicas, entre outros. A partir de um caso prático, verifica-se que
esta tipificação pode ensejar em fortes encobrimentos do cenário democrático. Em 2015, o movimento
conhecido como “ocupada tudo”241, fez com que milhares de estudantes ocupassem escolas e espaços
públicos, principalmente em escolas municipais e estaduais, impedindo o funcionamento regular daqueles
locais. Este ato, hoje, assim como o caso de Rafael Braga, diante da tipificação do artigo descrito, poderia
facilmente enquadrar-se no texto de lei mencionado, fazendo com que estudantes e civis sofressem penas
severas, além de serem considerados como possíveis “terroristas”. (OSHIMA; MORRONE, 2017).
Não tão somente no que diz respeito à tipificação prevista no artigo 2º da lei antiterror, mas, também,
em outros artigos deste instrumento normativo, é possível identificar o possível intuito de uma criminalização
abstrata, marcada pela ligação de um suposto ato terrorista, mas que não exige, necessariamente, um dano
efetivo para verdadeiramente se configurar como tal. O artigo 3º desta lei242, por exemplo, refere que,
aquele que faça parte de determinada ação terrorista, fique sujeito à pena de reclusão, assim como quem
recebe ou obtém recursos ou valores em depósito para o planejamento. Ocorre que, não há critérios que
estabeleçam, explicitamente, como identificar quem está prestando auxílio e/ou mantendo em depósito
recursos que efetivamente se destinem a esta finalidade. (BRASIL, 2016).
Na sequência avaliativa, verifica-se que o artigo 5º desta lei aplica sanções àqueles que realizarem
atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito, porém, existem
sérias críticas a esta tipificação, uma vez que não há elementos concisos acerca do significado243
verbal da palavra “terrorismo”, podendo, esta mesma tipificação, incidir efeitos nos agentes que
participarem de reivindicações populares, como já verificado no próprio caso de Rafael Braga.
O artigo 5º, quando prevê a criminalização de condutas preparatórias, dispensando qualquer
resultado ou risco de um resultado lesivo, demonstra, mais uma vez, a utilização de um texto de
lei que, tendo em vista sua pluralidade de entendimentos, abre margem em permitir determinada
arbitrariedade no que diz respeito a salvaguarda de direitos fundamentais já positivados no
ordenamento jurídico brasileiro.
240 Conhecido como um explosivo químico incendiário, geralmente utilizado em protestos, manifestações e/ou guerrilhas.
No brasil, a posse ou a fabricação do uso configura crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, nos
termos do artigo 16, inciso 3º da Lei 10.826/03. (BRASIL, 2003).
241 Contrários à medida provisória que previa uma reforma do ensino médio (MP 746) e à proposta de emenda constitu-
cional que estabelece teto para o gasto público federal (PEC 55), estudantes de todo o país, como forma de exercerem seu
direito reivindicatório, ocuparam mais de 1.000 escolas como forma de protesto. A onda de ocupações nas escolas públicas
que iniciou-se em São Paulo e, mais tarde, em outros estados, repercutiu de forma dantesca nas redes sociais e nos veículos
jornalísticos. A ocupação deste movimento, além de inviabilizar aulas regulares durante o ano letivo, atrapalhou, inclusive,
o calendário de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Registre-se, no entanto, que a manifestação paulista
logrou êxito em editar a MP 746, que previa uma reforma do ensino médio. No entanto, a PEC 55, restou aprovada, estabe-
lecendo teto para o gasto público federal. (OSHIMA; MORRONE, 2017).
242 Artigo 3º da Lei 13.260/16: “Promover, constituir, integrar ou prestar auxílio, pessoalmente ou por interposta pessoa,
a organização terrorista: Pena- Reclusão, de cinco a oito anos, e multa. (BRASIL, 2016).
243 De acordo com Marta Crenshaw (2010, p. 25), o termo “terrorismo” abarca uma série de diferentes interpretações. O
mesmo apresenta uma conotação contestável, subjetiva e pejorativa, sendo comumente usada pelos que estão no poder
contra grupos dissidentes, para suscitar temor e hostilidade. No entanto, não há um entendimento preciso sobre o que o
termo terrorismo abarca, sendo difícil, senão impossível, identificar uma conceituação precisa acerca da sua definição.
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Diante do aqui explanado, verifica-se que há, entre os artigos pertencentes a esta lei, uma normativa
capaz de reduzir a eficácia de manifestações populares. Além disso, conforme o esposado neste capítulo,
foi possível verificar uma série de antinomias jurídicas no que diz respeito ao conteúdo normativo da Lei
13260/2016 e o Código Penal Brasileiro. Esta normativa, popularmente conhecida como Lei Antiterrorismo,
parece apta a permitir ampla margem de discricionariedade por parte daqueles que a aplicam, suscitando,
diante de todos os elementos expostos, dúvidas consistentes sobre sua real intencionalidade.
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novos centros de poderes, capazes de não evitar a criação de leis alternativas, mas que objetivem
frear aquelas que possam vir a ferir o atual Estado Democrático de Direito.
A fragmentação do direito logra êxito em protagonizar os novos rumos da sociedade
contemporânea, de maneira que o direito não mais pode ser traduzido a um conjunto de normas
emanadas unicamente pelo poder do Estado. Ainda que as pressões oriundas do fenômeno da
globalização conduzam a uma nova forma de produção normativa, é preciso ter cautela quando
do momento de sua aplicação. Por certo, não se sabe, ainda, quais serão todos os efeitos possíveis
que as normas provenientes de uma recomendação do Grupo de Ação Financeira (GAFI) poderão
causar na ordem jurídica Brasileira. No entanto, diante da análise aqui realizada, ainda que
caminhando a passos lentos, percebe-se que esta pode protagonizar um cenário ameaçador do
direito no espaço transnacional.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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RESUMO: Entre as minorias protegidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela série
de documentos internacionais que a seguiram, estão as minorias. texto, tenho o objetivo de abordar
a problemática sobre a natureza dos direitos linguísticos como direitos humanos, segundo o trabalho
crítico de Xabier Arzoz. Apresento, primeiramente, a noção de direitos linguísticos apresentada
na Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, com contextualização voltada para os direitos
linguísticos de migrantes e, em seguida, expor a crítica feita pelo autor. Esse percurso de cunho
teórico-bibliográfico traz subsídios para a problematização da natureza dos direitos linguísticos no
Direito Linguístico brasileiro, campo em emergente constituição no Brasil.
Palavras-chave: Direitos Linguísticos; Direitos Humanos; Xabier Arzoz; Direito Linguístico; Políticas
Linguísticas
INTRODUÇÃO
247 Bacharel e Mestre em Direito. Licenciada, Mestre e Doutora em Letras. Email: jaelgoncalves@gmail.com.
248 Este trabalho é produto textual da dissertação de Mestrado intitulada Direitos linguísticos no acesso ao direito à educa-
ção por migrantes forçados no Brasil: Estado, práticas e educação superior, defendida em 2018 no Programa de Pós-gradua-
ção em Direito no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pelotas.
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A busca por um marco histórico dos direitos linguísticos aponta para a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, no que se pode considerar a gênese do Direito Internacional
dos Direitos Humanos (DIDH). A DUDH, apesar de ter sua força vinculante questionada em função
de se tratar de resolução e não de tratado internacional, impactou decisivamente a positivação
dos direitos linguísticos em constituições datadas a partir de 1948249. Consequência da DUDH,
o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e a Declaração sobre os direitos das
pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas (1992) são outros
dois instrumentos de direitos humanos que se destacam como marcos históricos dos direitos
linguísticos, além de outros documentos legais de direitos humanos cujo objetivo é proteger direitos
de grupos minoritários.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Político, corolário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948) e incorporado à ordem interna brasileira pelo Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992,
é exemplo disso, em seu artigo 27:
Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a
essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de
seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria
língua (BRASIL, 1992).
Esse dispositivo é “the only specific provision of binding international law with regard to the
protection of speakers of minority languages” (ARZOZ, 2007, p. 9) e, ainda, padece de fragilidade em
função da sua vagueza e falta de objetividade, já que não especifica suas implicações nem quanto
a medidas para sua efetividade nem quanto a medidas em caso de violação pelos Estados-parte do
Pacto. Nesse contexto, cresce a importância do Estado na efetivação do que dispõe o artigo 27 do
Pacto, a exemplo de outros dispositivos de direito internacional.
O desprestígio dos direitos linguísticos nos instrumentos de direito internacional para além
dos direitos orientados para a tolerância se explica porque os Estados, protagonistas do direito
internacional, tendem a negar a existência de minorias sob sua jurisdição ou, mesmo reconhecendo
sua existência, argumentam que a proteção de minorias pode afetar negativamente ou colocar em
risco a coesão interna e a unidade nacional do Estado (ARZOZ, 2007, p. 13).
Além dos documentos internacionais acima mencionados, o estudo do que sejam – ou do que
possam ser – direitos linguísticos passa, necessariamente, pela leitura da Declaração Universal dos
Direitos Linguísticos (DUDL).
O texto da DUDL foi patrocinado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO) e assinado em reunião realizada em Barcelona, de 6 a 9 de junho de 1996. É
pautado nos seguintes atos internacionais anteriores:
• Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948);
• Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966);
• Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966);
• Resolução 47/135, de 18 de dezembro de 1992, da Assembleia Geral das Nações Unidas;
• Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais
(1950), Convenção do Conselho de Ministros do Conselho da Europa (1992), Declaração de
Cimeira do Conselho da Europa (1993), e Convenção-quadro para a proteção das minorias
nacionais (de 1994), todas no âmbito do Conselho da Europa;
• Declaração do Recife (1987);
• Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989);
• Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos Povos (1990);
• Declaração Final da Assembleia Geral da Federal Internacional de Professores de Línguas
Vivas (1991);
249 Conforme Relatório da UNESCO. Disponível em: http://www.unesco.org/new/en/indigenous-peoples/cultural-and-lin-
guistic-diversity/. Acesso em: 30 de abril de 2018.
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• Relatório da Comissão dos Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas (1994).
Além disso, o texto da DUDL justifica a necessidade do documento em razão de algumas
considerações, reproduzidas no quadro 1250:
“A maioria das línguas ameaçadas do mundo pertencem a comunidades não soberanas e que
dois dos principais fatores que impedem o desenvolvimento destas línguas e aceleram o pro-
Motivo 1
cesso de substituição linguística são a ausência de autogoverno e a política de Estados que
impõem a sua estrutura político-administrativa e a sua língua;”
“É necessária uma Declaração Universal dos Direitos Linguísticos que permita corrigir os dese-
quilíbrios linguísticos com vista a assegurar o respeito e o pleno desenvolvimento de todas as
Motivo 6
línguas e estabelecer os princípios de uma paz linguística planetária justa e equitativa, como
fator fundamental da convivência social;”
Ao longo de seu texto, a DUDL expõe os conceitos que constituem o documento. Tais conceitos
estão sistematizados no quadro 2:
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“Não apenas como a área geográfica onde esta comunidade vive, mas também
Espaço territorial como um espaço social e funcional indispensável ao pleno desenvolvimento da
língua.”
“Toda a coletividade humana que partilhe uma mesma língua e esteja radicada
no espaço territorial de outra comunidade linguística, mas não possua antece-
Grupo linguístico
dentes históricos equivalentes, como é o caso dos imigrantes, dos refugiados,
dos deportados, ou dos membros das diásporas.”
“Integração entende-se uma socialização adicional destas pessoas por forma a po-
derem conservar as suas características culturais de origem, ao mesmo tempo que
Integração compartilham com a sociedade que as acolhe as referências, os valores e os com-
portamentos que permitirão um funcionamento social global, sem maiores dificul-
dades que as experimentadas pelos membros da sociedade de acolhimento.”
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos que o discurso dos direitos humanos tem
permeado a cultura política popular dentro ou fora da institucionalização científica ou jurídica: “when
an individual or a group has a claim, it tends to be formulated in a rights discourse and, more often
than not, in a human rights discourse” (ARZOZ, 2007, p. 1). Disso resulta uma contínua e intensa
expansão do rol de grupos e bens protegidos pelos direitos humanos nos mecanismos internacionais
de proteção, e a proteção de minorias linguísticas é consequência dessa expansão.
Conforme aponta Arzoz (2007), é à noção de direitos humanos que ativistas de línguas minoritárias,
advogados e acadêmicos apelam ao se referirem a direitos linguísticos, tratando-os como “direitos
humanos linguísticos”. Essa abordagem dos direitos humanos dos direitos linguísticos se sustenta
em uma evidência de que os direitos linguísticos são direitos humanos, evidência que responde à
perspectiva jusnaturalista para a qual os direitos humanos são direitos inerentes à natureza humana.
De acordo com Arzoz (2007, p. 2), na abordagem “direitos humanos linguísticos”, a ênfase é
colocada sobre os direitos linguísticos para a educação: “it is argued that only the rights to learn
and to use one’s mother tongue and to learn at least one of the oficial languages in one’s country of
residence can qualify as ‘inalienable, fundamental linguistic human rights”.
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For sure, the approach is well-intentioned: it aims to secure intergenerational continuity of minority
languages and to redress part of the existing inequalities. However, it should be clarified that
linguistic human rights‘ must be interpreted along these lines as, above all, ideals and aspirations,
and not as entitlements already recognized by international binding rules and whose effective
implementation can be demanded of states.
A partir dessa crítica, Arzoz (2007) propõe-se uma “caracterização mais rigorosa de direitos
linguísticos”. O autor defende que a “the general assimilation or equation between language rights
and human rights is not only erroneous, but it leads to a distorted image of the relationship between
law and politics” (ARZOZ, 2007, p. 3). É que, segundo propõe Arzoz (2007, p.3), “while human rights
do limit (at least, ideally) state behaviour, language rights are, more often than not, an issue devolved
to the political process.”
Na tarefa de definir “direitos linguísticos”, o autor parte da premissa de que essa definição
é genericamente reconhecida como instável na literatura da área. O que pode ser seguramente
assumido, segundo o autor, é que a “the regulation of both human and state behavior through law
always includes, explicitly or implicitly, a linguistic aspect” (ARZOZ, 2007, p. 4). Nesse sentido, os
direitos linguísticos estariam relacionados às regras adotadas por instituições públicas no que diz
respeito ao uso da língua em diferentes domínios – nos setores públicos, nos tribunais, na escola,
por exemplo. Sob o aspecto constitucional, assim, direitos linguísticos se referem a uma língua em
particular ou a grupos de línguas.
O reconhecimento constitucional da língua, no que diz respeito à comunidade indígena, indica o
que, segundo Arzoz (2007, p. 4), é a principal preocupação da noção de direitos linguísticos: a situação
legal de falantes de línguas não-dominantes ou a coexistência de mais de uma língua dominante:
When two or more languages are officially recognized, despite the use in legal norms of generic
phrasing guaranteeing any person the right to use either or any official language, the purpose of
these rights is to enable speakers of the minority language to use their own language rather than
the majority language (ARZOZ, 2007, p. 4)
Assim, no que concerne as minorias linguísticas, Arzoz (2007) faz a distinção entre duas
categorias – tipos ou níveis de proteção – de direitos linguísticos que podem ser concedidos pela
lei: de um lado, o regime de tolerância linguística; de outro, o regime de promoção linguística. O
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regime de tolerância linguística teria o condão de proteger falantes de línguas minoritárias contra a
discriminação e a assimilação. No regimento de promoção linguística, estaria a positivação de direitos
que promoveriam línguas minoritárias no acesso a serviços públicos, como à educação.
Essa distinção tem implícita a diferenciação entre direitos linguísticos negativos – os de tolerância
linguística – e direitos linguísticos positivos – os de promoção linguística. Tal diferenciação, explica
Arzoz (2007), tem sido criticada porque não prevê, por exemplo, o direito a intérprete de réus não-
falantes da língua utilizada nos tribunais; nessa situação, não se está nem tolerando nem promovendo
qualquer língua minoritária. No entanto, casos como esse, na visão do autor, não indicam falha na
distinção tolerância vs. promoção de direitos linguísticos:
The right to have free assistance of an interpreter if she cannot understand or speak the language
used in court is a well-established human right which applies to anyone facing a criminal charge
against her. The right to an interpreter does not aim to afford tolerance, protection or promotion for
any language or any linguistic identity. Its rationale lies somewhere else: in securing trial fairness. The
sole objective of the right is effective communication; it does not independently value the language of
the accused: if the accused can understand and be understood by using the court’s language, even
if it is not his mother tongue or preferred language of expression, the law will hold that effective
communication is adequately served by using the court’s language (ARZOZ, 2007, p. 5).
Assim, o direito a intérprete garantiria o direito a um julgamento justo, o que não diria respeito a
direitos linguísticos, razão por que Arzoz (2007) ainda defende a utilidade, para uma discussão jurídica
sobre direitos linguísticos, da distinção tolerância vs. promoção, liberdades negativas vs. direitos
positivos. Para justificar sua posição, o autor expõe três razões, relacionadas, respectivamente, à
motivação, ao funcionamento e à força executória dos direitos linguísticos.
Em primeiro lugar, Arzoz (2007, p. 6) explica que as críticas que a distinção recebe seriam
mais resultado de entendimentos contextuais do que inerentes ao caráter tecnicamente implicado
de se distinguirem direitos de tolerância (negativos) de direitos de promoção (positivos), e isso se
atribuiria ao silêncio sobre as motivações concretas que conduzem os Estados a tomarem medidas
nesse campo. Isso porque a promoção, pelo Estado, de direitos relativos a uma língua minoritária ou
aos direitos de falantes de línguas minoritária pode advir não necessariamente do interesse desses
indivíduos, mas do interesse do próprio Estado, como o interesse público de que crianças em idade
escolar pertencentes a minorias linguísticas sejam educadas de modo eficiente, o interesse público de
preservar o patrimônio cultural nacional e o interesse público de tornar acessível a todos os cidadãos
a legislação e os serviços públicos.
Em segundo lugar, Arzoz (2007, p. 6) destaca que os direitos linguísticos têm um funcionamento
específico quanto ao status do indivíduo e ao exercício dos poderes estatais. Para explicar esse ponto,
o autor lança mão de uma distinção promovida pela teoria dos direitos fundamentais entre as três
estruturas normativas básicas concernentes à relação entre o indivíduo e o Estado: status negativo;
status positivo; e status ativo:
The status negativus concerns freedom from interference from the state. The status positivus
refers to the circumstances in which the individual cannot enjoy freedom without the active
intervention of the state: one of the most important rights belonging to the status positivus is
judicial protection, but it also extends nowadays to many forms of social protection and social
services (schooling, housing, health care and so on). The status activus refers to the exercise of
the individual’s freedom within and for the state (ARZOZ, 2007, p. 6, grifos do autor).
Na visão do autor, recorrer a essas estruturas normativas oferece uma ferramenta analítica útil
para a compreensão das funções normativas relacionadas não somente à necessidade de tolerância
da existência de minorias (status negativo), mas também à necessidade de proteção de características
minoritárias (status positivo) e à necessidade de representação e participação institucional das
minorias (status ativo). Assim, segundo Arzoz (2007), outras garantias constitucionais, de status
positivo e ativo, devem se juntar à garantia de não-discriminação, de natureza individual e implicada
nos direitos linguísticos orientados à tolerância. Portanto, “tolerance versus promotion proves a useful
conceptual distinction in sociolinguistic and legal assessments of minority language policies, since it
takes into account the special needs of minorities” (ARZOZ, 2007, p. 7).
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Em terceiro lugar na justificativa da utilidade da distinção tolerância vs. promoção, Arzoz (2007)
destaca a força executória dos direitos linguísticos. As previsões normativas que lidam com o fato de
os direitos linguísticos implicarem, por exemplo, o direito de receber serviços públicos educacionais
em uma língua determinada têm diferentes graus de aplicabilidade – do grau de serem autoaplicáveis
ao grau de serem apenas de natureza programática. Nesse espectro, segundo o autor, os direitos
linguísticos positivados tendem a ser provisões programáticas, indicando um dever do Estado de
agir em prol da efetivação desses direitos, daí por que, por envolverem o poder público, os direitos
linguísticos podem ser considerados direitos de prestação. A questão é que, sendo de natureza
meramente programática, se o Estado “does not make the rights effective through the law, individuals
have no chance of obligating it to do so” (ARZOZ, 2007, p. 7).
A partir dessa consideração sobre a lei como lugar de efetivação dos direitos linguísticos, Arzoz
(2007) discute em que medida o direito internacional dos direitos humanos reconhece os direitos
linguísticos. Duas observações guiam a discussão: uma relacionada à confusão entre hard e soft law
no direito internacional de direitos humanos; outra referente à extensão da aplicação das normas de
direito internacional.
Instrumentos normativos internacionais de soft law, como declarações e recomendações, não
têm forma de tratado e, portanto, não são compulsórias perante os Estados (ARZOZ, 2007, p. 7). A
Declaração sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a Minorias Éticas ou Nacionais, Religiosas e
Linguísticas e as Recomendações de Oslo (1998) são documentos normativos de soft law em matéria
de direitos linguísticos, segundo Arzoz (2007).
Instrumentos normativos internacionais de hard law, como os tratados internacionais, obrigam
os Estados signatários a condutas em direção ao alcance do objetivo do acordo, mas, ainda nesse
caso, recai-se na questão referente à extensão da aplicação do tratado. Conforme explica Arzoz
(2007), muitos tratados internacionais sobre direitos humanos apenas são compulsórios perante
Estados que os tenham ratificado.
Além disso, mesmo em tratados com força normativa inquestionável em Estados que os tenham
ratificado e incorporado à ordem interna, a proteção relativa a direitos linguísticos se restringe a
direitos orientados à tolerância – contra a discriminação e à assimilação. Ainda, essa tolerância não é
garantida por normas específicas de direitos linguísticos, mas através de normas genéricas de direitos
humanos, como o direito a medidas de não-discriminação, à liberdade de expressão, às liberdades de
reunião e de associação, que são concedidos a todo ser humano, independentemente de fazer parte
de qualquer minoria.
É essa decalagem entre a tolerância e a promoção de direitos linguísticos no âmbito dos Estados
que explica o intenso debate na arena internacional sobre as medidas positivas para promover os
direitos de minorias linguísticas. Arzoz (2007, p. 13) defende que, além da falta de interesse dos
Estados, essa dificuldade em dar efetividade ao estatuto positivo dos direitos linguísticos tem uma
razão relacionada à natureza inerentemente heterogênea dos direitos linguísticos:
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provide the personnel to facilitate linguistic services in administration, education, justice and so on”
(ARZOZ, 2007, p. 14).
Se, enquanto direitos humanos, os direitos linguísticos se desdobram em direitos de tolerância
(estatuto negativo) e direitos de prestação (positivo), é preciso pensar as consequências desse
desdobramento na implementação de política públicas linguísticas para a sua efetivação. Afinal, se é
verdade que direitos linguísticos são direitos humanos, deve ser também verdade que os Estados têm
responsabilidade sobre sua efetivação, sob pena de descumprimento de tratados e pactos assumidos
na ordem internacional. No entanto, a falta de sanção ao descumprimento dessa responsabilização,
aliada aos argumentos apresentados por Arzoz, podem nos trazer indícios da natureza fragmentária
dos direitos linguísticos como direitos humanos e da possibilidade de se considerar a existência
de direitos linguísticos e de deveres linguísticos fora do escopo dos Direitos Humanos. Isso abre
caminho para se configurar tanto direitos linguísticos como deveres linguístico como objetos não de
Direitos Humanos, enquanto disciplina, mas do Direito Linguístico, que pode contemplar práticas de
regulação da língua afetas ou não aos direitos humanos. Exemplo disso é o Decreto
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho se propôs a incursão no trabalho crítico de Xavier Arzoz para trazer subsídios
à problematização da natureza dos direitos linguísticos como direitos humanos. Trata-se debate
emergente e atual no campo Direito Linguístico brasileiro, que merece espaço de discussão na pesquisa
jurídica sobre direitos humanos e sobre direitos linguísticos e políticas linguísticas. Com as reflexões
apresentadas, podemos identificar alguns caminhos promissores de investigação no campo, para o
que o diálogo entre pesquisadores da Linguística e do Direito é fundamental.
REFERÊNCIAS
ARZOZ, X. (2007). The nature of language rights. European Centre for Minority Issues.
Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/26536934_The_Nature_of_Language_
Rights. Acesso em: 05 de maio de 2019.
RODRIGUES, F. (2018). A noção de direitos linguísticos no Brasil: entre a democracia e o fascismo. In:
Línguas e instrumentos linguísticos, v. 42, p. 33-56.
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SILVA, J. I. Direitos linguísticos dos povos indígenas no acesso à justiça: a disputa pelo
direito ao uso das línguas indígenas em juízo a partir da análise de três processos judiciais. (Tese de
doutorado). Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis: UFSC, 2019.
SKUTNABB-KANGAS, T. Language Rights. (2015). In: WRIGHT, W.; BOUN, S.; GARCÍA, O. The
handbook of bilingual and multilingual education. 1ª edição. John Wiley and Sons, Inc.
______; PHILLIPSON, R. (1994). Linguistic human rights, past and present. In: ______. (orgs.)
Language rights. Vol. 1. p. 71-110.
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RESUMO: O presente estudo visa abordar a temática da adoção internacional em seu âmbito geral,
bem como sua relação direta com os Direitos Humanos, pontuando as normativas internacionais
vigentes e, principalmente, a Convenção de Haia, que rege os estudos em âmbito internacional. O
problema da presente pesquisa está em apresentar, ainda que brevemente, as nuances da adoção
internacional, com enfoque na adoção realizada por cidadãos brasileiros, bem como, apresentar as
características jurídicas atinentes ao tema. Como resultados da pesquisa, aborda-se brevemente a
posição das Nações Unidas acerca da temática da adoção internacional, as orientações do Ministério
das Relações Exteriores acerca do assunto.
INTRODUÇÃO
251 Graduanda do 6º semestre do Curso de Bacharelado em Direito da Sociedade Educacional Três de Maio - SETREM. E-mail:
paoladalavechia@hotmail.com
252 Especialista em Gestão de Pessoas e Desenvolvimento de Talentos e Graduada em Administração pela Sociedade Edu-
cacional Três de Maio - SETREM. Graduanda do 7º Semestre do curso de Bacharelado em Direito da SETREM. E-mail: michele-
rachor@gmail.com
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1 DIREITOS HUMANOS
Os Direitos Humanos surgem a partir da luta pela proteção e pela promoção universal da dignidade
do ser humano, sendo alcançados socialmente e historicamente. O reconhecimento destes direitos
vem sendo construído ao longo do processo de evolução da sociedade, se mostrando necessários
para o progresso da civilização, tendo como base a realidade de cada momento histórico e desafios
enfrentados, afirmam Alvarenga e Melo (2018).
A declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é um marco no que se refere ao processo
de conformação da sociedade internacional e da declaração dos direitos humanos, segundo Schneider
e Bedin (2012). A Declaração tornou-se um pacto jurídico-político no que tange a proteção das pessoas
humanas e de seus direitos nas mais diversas regiões do planeta.
A ONU (2020) define os direitos humanos como sendo
Ainda de acordo com a ONU os direitos humanos são garantidos legalmente com a finalidade
de proteger os indivíduos e grupos contra ações que interferem nas liberdades fundamentais e na
dignidade humana.
Flávia Piovesan (2006) leciona que:
a definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista tal
pluralidade, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a
ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de
Direitos Humanos de Viena de 1993 (Piovesan, 2006, p. 7).
A proteção dos direitos humanos ainda segundo a autora não deve ser reduzida ao domínio reservado
do Estado, pois é a partir dela que o tema de legítimo interesse internacional se revela. Para tanto, esta
concepção aponta duas consequências importantes: 1) revisão da noção tradicional de soberania absoluta
do Estado (o Estado sofre um processo de relativização); 2) solidificação da ideia de que o indivíduo deve
ter direitos protegidos no que se refere a esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.
Bedin (2003) cita algumas declarações importantes que se referem aos Direitos Humanos:
A trajetória histórica da construção dos direitos humanos possui uma longa caminhada. Esta
caminhada iniciou-se com as declarações de direitos de 1776 (Declaração da Virgínia) e de 1789
(Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), passou pela Declaração Universal dos Direitos
do Homem (1948) e alcança a Declaração e o Plano de Ação de Viena (1993) (Bedin, 2003, p. 2).
Para Oliveira (2006), o processo de adoção sua ascensão no âmbito internacional a partir do pós-
guerra em 1945. Sendo que a partir deste momento permitiu-se que várias crianças e adolescentes
encontrassem um novo lar, nova família, já que as suas haviam sido dizimadas. Foi a partir daí que
passou a se pensar em direitos humanos universais como forma de resposta as atrocidades e os
horrores que aconteceram durante a guerra.
Ainda de acordo com Oliveira (2006), o advento da Constituição Federal de 88 a adoção
internacional enfrentou uma revolução, evitando assim que as adoções de crianças e adolescentes
fossem realizadas sem o conhecimento do Poder Judiciário. O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) foi quem de fato regulamentou o tema em âmbito nacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 2009) tratou de reconhecer à infância o
direito no que tange os cuidados especiais: “Art. XXV. 2. A maternidade e a infância têm direito a
cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão
da mesma proteção social”.
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Silva (2013) elenca os principais tratados, diretrizes e convenções que prescrevem a proteção
dos direitos das crianças e adolescentes no âmbito internacional, sendo estes: a convenção americana
sobre direitos humanos (Pacto de San José se Costa Rica), sendo este ratificado no Brasil em 06 de
novembro de 1992, decreto 678, porém a convenção ocorreu em 22 de setembro de 1969. De forma
geral, o Pacto foca na justiça social a todos os países signatários e seu foco é de consolidar o regime
de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais, além
de reconhecer que os direitos humanos da pessoa independem do Estado que ela provém.
Com relação a proteção do direito infanto-juvenil, o pacto especifica em seu artigo 4 e 19,
sendo prescrevidos os direitos à vida, desde o momento da concepção, não podendo ser privado de
sua vida. O artigo 19 afirma que toda criança tem o direito à proteção que a sua condição de menor
requer, por parte da família, sociedade e do Estado.
A declaração universal dos Direitos Humanos, proclamada na Assembleia Geral das Nações
Unidas, resolução 217 A (III) é considerado um dos principais marcos da garantia no que se refere aos
Direitos Humanos, sendo por meio desta reconhecido o direito a dignidade da pessoa humana, direito
a vida, à liberdade, a justiça social e a paz mundial.
No que tange as crianças e adolescentes a Declaração faz destaque em seus artigos XXV e CCVI,
sendo proclamado que a maternidade e a infância possuem direito a cuidados e assistência especiais, e
ainda, que todas as crianças (mesmo nascidas fora do matrimônio) possuem o direito a proteção social.
Declaração dos Direitos da Criança, á aprovada pela extinta Liga das Nações (hoje Organização
das Nações Unidas), aprovada em 1959 e possui dez princípios que garantem a todas as crianças
direitos sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, condição social ou nacionalidade, tanto sua
ou de sua família. Declaração versa principalmente sobre a proteção das crianças e adolescentes no
que se refere a seus Direitos de acesso á educação, socorro e amor.
Declaração mundial sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento das crianças nos
anos 90, aprovado pela ONU em 1990, traz como principal pressuposto a prioridade de bem estar
das crianças e a melhoria na saúde das mães e dos filhos, dando ênfase ao combate da desnutrição,
do analfabetismo e da erradicação de doenças.
No que se refere à conceituação, Rodrigues (2016), define a adoção como sendo o ato jurídico
pelo qual uma pessoa toma ou aceita como seu o filho de outra. A partir dela, o adotante e o adotado
passam a formar uma nova entidade familiar, extinguindo-se definitivamente qualquer vinculação
jurídica do adotado com a sua família biológica.
Para Furtado (2017), a adoção internacional de crianças ou adolescentes, é a transferência de
seu país de origem para um país de residência dos adotantes, com o objetivo de dar-lhes uma família
é relativamente recente.
A partir da adoção, o poder familiar, benefício exclusivo dos pais, passa a ser exercido por
terceira pessoa – denominado adotante -, após processo judicial. Maria Helena Diniz (1993, p. 280),
bem leciona a temática quando descreve as nuances jurídicas do ato de adotar, o qual pode ser
caracterizado como o
ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente
de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo
para sua família, na condição de filho, pessoa que geralmente lhe é estranha” (DINIZ, 1993, p. 280).
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seja somado ao vigoroso saldo de carinho e boa vontade daqueles que buscam adotar. Trata-se de
equação favorável a toda a sociedade” (De Lima; Maia, 2011, p. 277).
Por se tratar de matéria constitucional de cunho fundamental, a adoção não pode ser entendida como
ato de caridade, mas sim, como a expressão da vontade mais digna de formar uma nova família através de
enlaces jurídico-familiares com crianças e adolescentes. Desse modo, é importante ter em mente que
nem os problemas de um casal ou de uma pessoa são os motivadores da adoção. Vale o melhor
interesse da criança ou adolescente, que deve ser garantido através da colocação em um ambiente
sadio que lhe propicie a consecução de sua dignidade. Essa é a feição marcante do conceito do
instituto de acordo com o entendimento atual (De Lima; Maia, 2011, p. 278)
Para além de estabelecer a proteção dos direitos fundamentais ao instituto jurídico da adoção,
a CF/88 é ainda mais específica quanto a matéria ao determinar a igualdade plena entre filhos
biológicos e adotados. No art. §6º do art. 227, dispõe que “os filhos, havidos ou não da relação do
casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação” bem como, que “a adoção será assistida pelo Poder Público,
na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros”,
conforme § 5º do mesmo artigo.
Tem-se, desse modo, por força constitucional, um grande valor jurídico atribuído a adoção,
tanto aquela realizada no território nacional, quanto a internacional. O conceito jurídico de adoção
é o mesmo para ambas, porém, há sensíveis diferenças procedimentais entre elas que devem ser
observadas, especialmente quando se trata de adoção internacional.
A legislação infraconstitucional brasileira que regulamenta a matéria é Lei Federal nº 8.069/1990,
que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, e dá outras providências. No ECA, o
princípio da proteção integral à criança e ao adolescente é estampado já em seu primeiro dispositivo, o
qual “não apresenta rigidez às mudanças ou estabelece-se como normativamente estática” (CUSTÓDIO,
2008, p. 31), característica que sempre leva em conta o melhor interesse da criança e do adolescente
em sobreposição a formas e normas.
Macedo (2011) leciona que:
Nas últimas três décadas, o mundo conheceu um aumento constante da prática da adoção
internacional de crianças, ou seja, da transferência, via contratos de adoção firmados juridicamente,
de crianças oriundas de países ditos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento em direção a
países ditos desenvolvidos. No início dos anos 1980, a prática é quantificada em cerca de dez
mil crianças por ano no mundo. No final dos anos 2000 esse número se eleva a quarenta mil.
Esse crescimento coincidiu com uma maior regulamentação internacional, notadamente através
da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 e da Convenção de Haia
Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional de1993.
Na esfera específica da adoção internacional, o ECA a institui, em seu art. 51, caput, como sendo
“aquela na qual o pretendente possui residência habitual em país-parte da Convenção de Haia, de 29 de
maio de 1993, relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional”.
Ou seja, o ECA oportuniza a adoção internacional para os países que aderiram a Convenção de Haia,
aliando à sapiência proposta na temática do Direito Internacional – pré-requisito para a aplicabilidade
da adoção internacional.
Desta forma, a adoção internacional é passível de direito àquele pretendente que possui residência
habitual em país-parte da Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993, promulgada no Brasil pelo
Decreto n o 3.087, de 21 junho de 1999, e deseja adotar criança em outro país-parte da Convenção.
Muito embora a Convenção de Haia seja o núcleo central de regulamentação da temática, Pereira
(2013) ressalta que há outros dispositivos internacionais que merecem menção quando se fala em
adoção internacional:
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Tendo isto posto, há um entendimento de que a temática da adoção internacional tem por
necessidade a atenção e importância que lhes são inerentes e conjuga, além de normas nacionais e
constitucionais, normativas internacionais, buscando sempre alcançar a primazia do objetivo da adoção
internacional: a formação de novas famílias cujo o maior laço seja constituído do afeto, amor e respeito.
A evolução do processo de adoção ocorre de acordo com as mudanças sociais, e, como dito,
a partir da CF/88, ele preserva os direitos fundamentais das crianças e adolescentes aptas a serem
adotadas. A criação e educação dos filhos, que antes era considerado um poder praticamente ilimitado
do patriarca da família (figura preponderantemente masculina), hoje chamamos de poder familiar,
exercício conjunto de ambas as partes - pai e mãe - com vistas a proteção integral dos filhos e
consideração dos mesmos enquanto sujeitos de direito.
É necessário pontuar que o art. 1634 do Código Civil brasileiro – Lei Federal nº 10.406/2002
- preceitua, em consonância com o que determina a Constituição, que “compete a ambos os pais,
qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em,
quanto aos filhos”, funções exclusivas como:
O poder familiar previsto no Código Civil é também regulamentado pelo ECA, e quando se tem
a consumação da adoção de uma criança ou adolescente, ele passa a ser prerrogativa exclusiva dos
adotantes. Desse modo, mesmo a criança estrangeira adotada por pais brasileiros tem sobre ela o
exercício e proteção do poder familiar a ser exercido por esses pais.
No Brasil, a Lei Federal nº 13.509/2017, que dispõe sobre a adoção e altera o ECA, entre
outras disposições, inseriu o art. 19 no referido Estatuto, passando a determinar que, esgotada a
possibilidade de inserir a criança no núcleo de sua família extensa, a autoridade judicial deverá
decretar a extinção do poder familiar, colocando-a “sob a guarda provisória de quem estiver habilitado
a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional” (Lei
Federal nº 13.509/2017, art. 19-A, § 4º).
Conjugando as disposições dos dispositivos legais mencionados, tem-se que o rompimento do
vínculo de parentesco com a família biológica é a primeira etapa do processo de adoção, e a sentença
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tem efeito declaratório; a constituição de um novo vínculo de filiação com os pais adotivos vem em
momento posterior, e a sentença tem efeito constitutivo.
É de suma importância fazer a colocação de que em decorrência de tais efeitos jurídicos, é
irrevogável a adoção feita tanto no Brasil quanto em outros Estados, sendo preceito de ordem pública
internacional a garantia de irrevogabilidade do vínculo familiar instituído entre adotantes e adotado.
O Decreto nº 3.087, de 21 de junho de 1999, promulga a Convenção Relativa à Proteção das
Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída na Haia, em 29 de maio
de 1993 – a chamada “Convenção de Haia”. Na referida convenção, ratificada pelo Brasil através do
referido decreto, os Estados partícipes acordam diversos direitos e procedimentos relativos a adoção
internacional, sendo de suma importância o apontamento de alguns deles.
O art. 2º da Convenção de Haia estabelece a competência desse diploma internacional ao prever que:
1. A Convenção será aplicada quando uma criança com residência habitual em um Estado
Contratante (“o Estado de origem”) tiver sido, for, ou deva ser deslocada para outro Estado
Contratante (“o Estado de acolhida”), quer após sua adoção no Estado de origem por cônjuges ou
por uma pessoa residente habitualmente no Estado de acolhida, quer para que essa adoção seja
realizada, no Estado de acolhida ou no Estado de origem.
2. A Convenção somente abrange as Adoções que estabeleçam um vínculo de filiação.
Ou seja, a Convenção de Haia determina regras para adoção internacional entre os Estados que
dela fazem parte, sempre observando as determinações das autoridades competentes do Estado de
origem da criança ou adolescente, e também que a adoção corresponda verdadeiramente ao interesse
superior da criança, conforme dispõe o art. 4º. Desse modo, o primeiro passo para as pessoas que
desejem adotar uma criança residente em outro país que seja parte da Convenção é procurar a
autoridade central do Estado de residência do menor.
A Convenção de Haia é resultado de um movimento internacional de uniformização da adoção
entre estrangeiros, na medida em que:
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pelo Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras, que pode ser obtido aqui na versão em texto
e aqui na versão de fluxograma.
Para adoções realizadas tendo o Brasil como país de destino e cujo país de origem não seja
ratificante da Convenção de Haia, deverá ser seguido o que dispõe o artigo 52-D do Estatuto da
Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990, não havendo intervenção das
autoridades centrais (federal ou estaduais). Nesse sentido:
Nas adoções internacionais, quando o Brasil for o país de acolhida e a adoção não tenha sido deferida
no país de origem porque a sua legislação a delega ao país de acolhida, ou, ainda, na hipótese
de, mesmo com decisão, a criança ou o adolescente ser oriundo de país que não tenha aderido à
Convenção referida, o processo de adoção seguirá as regras da adoção nacional. (ECA, Art. 52, 1990)
a presença dos profissionais se faz necessária no processo de orientação e formação dos futuros
pais, dos futuros filhos, ao longo do estágio de convivência entre ambos, bem como após a
sentença de adoção, para acompanhamento do processo de adaptação e as eventuais dificuldades
que podem emergir e que precisam ser seguidas devidamente.(PEREIRA, 2013, p. 51)
Dentre os profissionais que geralmente acompanham a adoção está o assistente social, o qual
“é autônomo no exercício de suas funções, o que se legitima, fundamentalmente, pela competência
teórico-metodológica e ético-política por meio da qual executa o seu trabalho” (CFESS, 2005, p. 28-
29). Ele é um dos principais auxiliares do juiz na decisão pela adoção, pois emite pareceres e realiza
visitas in loco na família que está em formação.
No Brasil, essa aproximação entre adotantes e adotados chama-se “Estágio de Convivência”, e
está previsto no artigo 46 do ECA, a saber:
A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que
a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso.
§ 1º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando já estiver sob a tutela ou
guarda legal do adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência
da constituição do vínculo.
§ 2º A simples guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da realização do estágio de
convivência.
§ 3º Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do País, o estágio de
convivência, cumprido no território nacional, será de, no mínimo, 30 (trinta) dias.
§ 4º O estágio de convivência será acompanhado pela equipe Inter profissional a serviço da Justiça
da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução
da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso
acerca da conveniência do deferimento da medida.
Quanto ao estágio de convivência, Venosa (2003), afirma que “tem por finalidade adaptar a
convivência do adotando ao novo lar. O estágio é um período em que se consolida a vontade de
adotar e ser adotado. Nesse estágio, terão o Juiz e seus auxiliares condições de avaliar a conveniência
da adoção.” (p. 340).
O presente capítulo teve como objetivo apresentar quais os procedimentos a serem adotados para
a adoção internacional ocorrer de fato, isso de acordo com os países que ratificam Convenção de HAIA
e o Estatuto da Criança e do adolescente, a partir do próximo tópico estão elencados a metodologia
utilizada para a realização do presente estudo, bem como os resultados obtidos e a conclusão.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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